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Carla de Araujo Risso

O ato da sociedade paulista Opinião pública e censura ao teatro de 1957 a 1968: manifestações populares presentes nos processos do Arquivo Miroel Silveira da Biblioteca da ECA/USP

Tese apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Univer- sidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Ciên- cias da Comunicação – Área de Concentração: Teoria e Pesquisa em Comunicação – Linha de Pesquisa: Linguagem e Produção de Sentido em Comunicação

Orientadora: Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes

São Paulo 2012 2

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte.

Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

Risso, Carla de Araujo O ato da sociedade paulista : opinião pública e censura ao teatro de 1957 a 1968 : manifestações populares presentes nos processos do Arquivo Miroel Silveira da Biblioteca da ECA/ USP / Carla de Araujo Risso – São Paulo : C. A. Risso, 2012. 277 p. : il. + DVD

Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. Orientadora: Profª Drª Mayra Rodrigues Gomes

1. Opinião pública 2. Censura 3. Imprensa 4. Teatro 5. Discursos circulantes 6. Ditadura 7. Democracia 8. Liberdade I. Gomes, Mayra Rodrigues II. Título

CDD 21.ed. – 070 2

Risso, C. A. O ato da sociedade paulista – Opinião pública e censura ao teatro de 1957 a 1968: ma- nifestações populares presentes nos processos do Arquivo Miroel Silveira da Biblioteca da ECA/USP. Tese apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Ciências da Comunicação – Área de Concentração: Teoria e Pesquisa em Comunicação – Linha de Pesquisa: Linguagem e Produção de Sentido em Comunicação.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ______instituição: ______

Julgamento:______assinatura: ______

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Dedico esta pesquisa a todos aqueles que resistiram às mordaças, aos coturnos, às pressões, à ignorância, à comodidade.

Particularmente, àqueles que resistiram à saudade: Marcello, Alice e Pedro. 4

AGRADECIMENTOS

À minha querida orientadora, Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes, acima de tudo pela confiança, pelos ensinamentos e pelo apoio ao meu trabalho. Sem ela, os caminhos percorridos jamais seriam os mesmos.

À professora Dra. Maria Helena Sousa, da Universidade do Minho, pela acolhida e pelo direcionamento.

Ao Banco Santander S/A, que, por meio do Programa de Bolsas de Mobilidade Internacional do Santander – USP, acreditou nesta pesquisa.

Aos meus entrevistados, Romário Borelli, César Príncipe, Vicente Batalha e Júlio Gago, pela extrema generosidade.

A Ferdinando Martins e Rosana Soares, pelos apontamentos.

Ao amigo e colega Ricardo Dias, que, além das conversas, livros e revistas, esteve sempre presente neste trabalho.

A todo o pessoal do Núcleo de Pesquisas em Comunicação e Censura ECA/USP, em especial a Jacqueline Pithan dos Santos, Lis Coutinho, Barbara Heller, Andrea Limberto Leite e Nara Lya Simões Cabral.

Aos companheiros do Midiato – Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas – USP, pela convivência.

A Analúcia Recine e Mônica Rugai, pela ajuda e amizade.

A Silvia dos Santos Vieira, pelo olhar atento.

A Rosely Vieira de Sousa, secretária do PPGCOM da ECA-USP, sempre bem-humorada e prestativa.

Aos meus queridos amigos portugueses Fernando Jorge, Irene e Manuel Rocha e, em especial, Ana Margarida Pinto, pelos momentos inesquecíveis e por todo o apoio.

À Casa de Santa Zita, que deu-me o aconchego de um lar longe de casa.

Aos brasileiros que se aventuraram a estudar além-mar: Ênio Moraes, Tânia Tavares, Marilda Beijo e Sílvia Carla Conceição, pelas risadas, conversas e pela companhia nas ruas de Braga.

A minha querida família: Maria José, que me ensinou a levar a vida com um sorriso nos lábios; Samuel, que me encheu de sonhos e histórias; Ruy, que me ensinou a dizer “não sei”; Alice e Pedro, que me alimentam de sua juventude; Marcello, que me ampara em seu amor.

A todos meus amigos e professores que, de alguma forma, ajudaram-me a ser quem eu sou. 5

RESUMO

Risso, C. A. O ato da sociedade paulista – Opinião pública e censura ao teatro de 1957 a 1968: mani- festações populares presentes nos processos do Arquivo Miroel Silveira da Biblioteca da ECA/USP. 2012. 300 f. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

Na sociedade de massas, os processos de comunicação dos grupos estão, de modo imediato, sob a influência dos meios de comunicação de massa ou intermediados por “líderes de opinião”. Partindo de questões como a opinião pública, a identidade cultural e a contextualização histórica e social, esta pesquisa focou-se nos processos de censura ao teatro profissional presentes no Arquivo Miroel Silveira, bem como sobre as pági- nas dos principais veículos de mídia impressa da cidade de São Paulo. O universo de amostra contemplou peças que contêm abaixo-assinados, telegramas, cartas e manifestos populares em seus processos de censu- ra: Perdoa-me Por Me Traíres, de Nelson Rodrigues (1957), censurada em nome da defesa da “moral e dos bons costumes”; A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri (1961), com encenação restrita a um só teatro por abordar questões ideológicas; e Roda Viva, de Chico Buarque (1968), que depois de dois atentados – a de- predação do Teatro Ruth Escobar em São Paulo e a agressão ao elenco em Porto Alegre – foi censurada pelo Governo Federal. Quanto ao estudo da imprensa, todos os jornais pesquisados mantêm relação cronológica com as peças selecionadas. Paralelamente, efetuou-se uma investigação em Portugal com o objetivo de deli- near as relações de poder que estruturam a prática censória nos países de língua portuguesa. A peça escolhida para estudo além-mar foi A Promessa, de Bernardo Santareno (1957), obra que ocasionou protestos durante sua encenação na cidade do Porto. Com essa outra perspectiva, pretendeu-se compreender e caracterizar a cultura, a moral e os valores da época para além das barreiras espaciais, fixando-se no território da estrutura simbólica da língua. Apesar das diferenças em relação à liberdade de imprensa nos dois países no período estudado, verificou-se que a metodologia da censura teatral e as manifestações públicas se davam de forma muito semelhante. Tanto no Brasil como em Portugal, o envolvimento da imprensa nos casos em que ocor- reram manifestações públicas pró ou contra a censura teatral – seja na divulgação das peças, na divulgação dos autores, ou até mesmo na fomentação de opiniões – não foi o único fator a desencadear os eventos. Os casos estudados permitem a conclusão de que a trama do tecido social é permeada por diversos discursos circulantes capazes de influenciar a tomada de atitudes no âmbito de microcosmos sociopolíticos. A partir dessa influência, os pequenos grupos, dispostos a expor as suas opiniões publicamente, adquirem o poder de alterar as deliberações da censura teatral, tanto no sentido de proibição como no sentido de liberação. Na totalidade da amostragem verificou-se que, de alguma forma, a encenação da obra teatral foi prejudicada frente à rejeição de uma parcela, mesmo que minúscula, da população.

Palavras-chave: Opinião Pública. Censura Teatral. Imprensa. 6

ABSTRACT

RISSO, C. A. The act of paulista society – The public opinion and theater censorship between 1957/1968: popular manifestations in the processes of Arquivo Miroel Silveira, Library of ECA/USP. 2012. 300 f. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

In a mass society, the communication processes of small groups are constantly under the influence of the mass media or intermediated by “opinion leaders”. Based on concepts as public opinion, cultural identity and historical and social contextualization, this study was designed to deal with the censorship process over the theatrical scene in São Paulo, studying the reviews in the press and the previous censorship documents that are in Miroel Silveira Files (ECA/USP). Three plays which contains petitions, telegrams, letters and any sort of popular manifestation were selected: Perdoa-me Por Me Traíres (Forgive me for Cheating Me), by Nelson Rodrigues (1957), was censored in the name of the “moral principles”; A Semente (The Seed), by Gianfran- cesco Guarnieri (1961), a play with the ideological content – communism – was restricted to one theater; and Roda Viva (The Wheel of Life), by de Chico Buarque (1968), which suffered two attacks by a Command Hunt for Communists (CCC – Comando de Caça aos Comunistas) – the invasion of Ruth Escobar Theater in São Paulo and the aggression toward the cast in Porto Alegre – and was prohibited. In order to establish a parallel between countries that speak Portuguese, this study examines as well the power relations and the practices of censorship in Portugal. The portuguese play chosen was A Promessa (The Promise), by Bernardo Santareno (1957), which motivated some protests in Oporto. Crossing the ocean that separates the two countries and based on the symbolical structures of the languages, this other perspective gave the comprehension of the culture, the moral and the social values at the 50’s. Despite the differences in freedom of the press, the rese- arch indicated that the methodology of theater censorship and the public protests are very similar in Portugal and Brazil. In both of these places, the public manifestations about censorship happened as consequence of many events, one of them was press reviews. This study allows the conclusion that the social fabric is sewed by intermingled speech, capable of influencing the attitudes in the field of socio-political microcosms. Under this influence, small groups willing to express their opinions have the power of changing the determinations of theater censorship – as well as forcing the prohibition or obtaining the liberation. This research indicates that the proper presentations of theater plays were hindered even if a small part of the population felt threatened by their content.

Keywords: Public opinion. Theater censorship. Press. 7

Sumário

Introdução ...... 9 Capítulo 1: Sobre a opinião pública...... 40 1.1 Histórico...... 43 1.2 O conceito de esfera pública...... 47 1.3 O conceito de opinião pública...... 50 1.4 A opinião pública na sociedade de massas...... 53

Capítulo 2: As mídias como atores sociais...... 62 2.1 Os efeitos das mídias...... 63 2.1.1 Efeitos em curto prazo ...... 63 2.1.2 Efeitos em longo prazo...... 69 2.1.3 A construção da realidade...... 72 2.1.4 Outros efeitos da comunicação social...... 74 2.2 A imprensa e a cultura de massa...... 75

Capítulo 3: O grande palco: a cidade de São Paulo...... 80 3.1 A história de São Paulo...... 82 3.2 As greves...... 87 3.3 A mudança do cenário...... 90 3.3.1 O ano de 1922...... 91 3.4 Os movimentos armados...... 93 3.4.1 Revolução Esquecida...... 93 3.4.2 A Revolução de 30...... 94 3.4.3 A Revolução de 32...... 96 3.5 A cultura paulista...... 100 3.5.1 O mecenato e a dramaturgia...... 105 3.5.2 Depois dos mecenas...... 108 8

Capítulo 4: Os três atos da sociedade paulista...... 117

4.1 Primeiro Ato 4.1.1 A obra de Nelson Rodrigues...... 118 4.1.2 Sem Perdão – a peça Perdoa-me Por Me Traíres...... 123 4.1.3 Quase Toda Notícia Será Publicada...... 140

4.2 Segundo Ato 4.2.1A obra de Gianfrancesco Guarnieri...... 148 4.2.2 Semeando a Discórdia – a peça A Semente...... 155 4.2.3 Os Frutos na Imprensa...... 167

4.3 Terceiro Ato 4.3.1 A Obra de Chico Buarque...... 176 4.3.2 A Reviravolta – a peça Roda Viva...... 189 4.3.3 Giram as Rotativas...... 198

Capítulo 5: Aquilo de que não se fala, não existe...... 208 5.1 O Cenário Português ...... 209 5.2 A Censura no Estado Novo...... 211 5.3 O Teatro Português e a Censura...... 215 5.4 Bernardo Santareno...... 219 5.5 A Promessa...... 223 5.6 A Promessa na Imprensa...... 229

Considerações finais...... 247

Referências Bibliográficas...... 259 9

Introdução 10

“O homem, porém, não é apenas um ser vivo; ao lado de outras faculdades, também possui linguagem. Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela mo- rando, o homem ec-site enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a”. Heidegger (1893, p. 159)

Em 2008, tive contato com o Projeto pareceres de censores e ter acesso aos pro- Temático Comunicação e Censura: Análise cessos outrora secretos? Teórica e Documental de Processos Censó- Em meio à sala refrigerada, usando lu- rios a Partir do Arquivo Miroel Silveira da vas de silicone, comecei a me aventurar pe- Biblioteca da ECA/USP – responsável por las pastas e deparei-me com um processo conservar e estudar mais de seis mil proces- singular: Perdoa-me Por Me Traíres, de Nel- sos de censura prévia ao teatro originados son Rodrigues – com certeza, a pasta mais do Serviço de Censura do Departamento de robusta do arquivo. Essa robustez deve-se Diversões Públicas do Estado de São Pau- ao fato de conter – além da documentação lo (DDP-SP). Esse contato se deu por meio costumeira (os originais das peças, o formu- de minha orientadora, Profa. Dra. Mayra lário com o pedido de censura e o parecer Rodrigues Gomes, uma das professoras res- do censor) – páginas e páginas de abaixo- ponsáveis pelo projeto, juntamente com a assinados com mais de 3.000 assinaturas Profa. Dra. Roseli Aparecida Fígaro Paulino solicitando a censura total da peça anterior- e a Profa. Dra. Maria Cristina C. Costa – a mente liberada pelo DDP-SP. O mais curio- coordenadora-geral. so é que essa obra já havia sido encenada A possibilidade que se apresentou de na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, essa estudar esse arquivo demonstrou-se desde o não era a única peça do arquivo a conter primeiro momento um desafio sedutor. Afi- manifestações populares. nal, que pesquisador não se sentiria atraído Várias perguntas surgiram em decorrên- por um acervo que abarca os originais de cia dessa constatação: por que, então, uma algumas obras nunca vistas pelo grande pú- parte da sociedade paulista sensibilizou-se blico do Estado de São Paulo? Além disso, e mobilizou-se com árduo empenho para quem de nós, estudiosos de comunicação produzir um documento contra uma peça e cultura, não teria a curiosidade de ler os de teatro? Qual era o contexto histórico e 11

social dessa cidade que se incomodava com ação que levavam à manifestação: Perdoa- certo tipo de produção discursiva? Como a me Por Me Traíres foi censurada apelando- população ficou inteirada do conteúdo das se à “moral e aos bons costumes”; A Se- peças – se é que ficou, de fato – e como se mente incomodava por questões políticas formou uma opinião pública desfavorável a e ideológicas – trata-se de uma obra sobre esse conteúdo? os conflitos desencadeados pelo movimen- Bem, a hipótese central é que a opinião to operário paulistano; e Roda Viva, peça pública é capaz de alterar as deliberações sobre a massificação imposta pela televi- da censura, tanto no sentido de proibição são, vitimada por um enfrentamento so- como no sentido de liberação. Outra con- cial que provocou a depredação do Teatro jectura é que, de alguma forma, há o en- Ruth Escobar por 110 homens ligados ao volvimento da imprensa nos casos em que Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ocorreram manifestações – seja divulgando e uma mobilização de estudantes para que as peças, seja na divulgação dos autores, ou a peça continuasse sendo encenada. Além até mesmo fomentando a opinião pública. disso, todas elas têm um traço comum: au- Sendo assim, esse projeto procurou tores já consagrados (seja no âmbito teatral, analisar os processos do Arquivo Miroel seja na música) e, portanto, personalidades Silveira, bem como o conteúdo simbólico públicas. impresso nas páginas dos principais jornais A principal dificuldade encontrada no diários da capital do Estado de São Pau- decorrer desta pesquisa diz respeito ao ma- lo, para, assim, compreender que tipo de terial estudado no Arquivo do Estado. Os conteúdo afetou o imaginário dos cidadãos exemplares do jornal Última Hora (de ju- paulistas, levando-os à mobilização duran- nho a outubro de 1957) estão literalmen- te o período de 1957 a 1968. te se desfazendo – algumas folhas se des- O universo de amostra compreende mancharam em minhas mãos. Diante desse as peças de teatro profissional do Arqui- fato, um funcionário determinou a retirada vo Miroel Silveira – contemplando três do material para pesquisa pública. Já o ma- processos: Perdoa-me Por Me Traíres, de terial referente ao jornal Correio Paulista- Nelson Rodrigues (1957); A Semente, de no só está disponível no formato digital de Gianfrancesco Guarnieri (1961); e Roda baixa resolução – a maioria dos textos está Viva, de Chico Buarque (1968). praticamente ilegível. A escolha deu-se porque tais peças Outra dificuldade inerente às matérias exemplificam muito bem três tipos de situ- publicadas nos jornais pesquisados é o fato 12

de que o tema censura teatral não se en- existente entre o Estado Novo de Vargas contra restrito às páginas que tratam de cul- e o de Salazar. tura – podem aparecer em qualquer parte Para além da Era Vargas – com a pers- do jornal. É preciso pesquisar página por pectiva de estudar comparativamente a página procurando as notícias de interesse censura teatral brasileira e a censura teatral e isso demanda tempo, muito tempo. Gra- ocorrida em Portugal, no período de 1957 a ças a um grande esforço, esses obstáculos 1968 –, o objetivo ultramar desta pesquisa foram gradualmente superados. foi delinear as relações de poder que estru- Partindo da opinião pública como ob- turaram a prática censória em outro país de jeto central, este trabalho procura efetuar língua portuguesa. Com isso, pretendeu-se um estudo empregando conceitos de Análi- compreender e caracterizar a cultura e a se do Discurso, Sociologia e Filosofia, a fim moral da época para além das barreiras es- de determinar a contextualização histórica paciais, fixando-se no território da estrutura e social das peças analisadas. simbólica da língua. Em março de 2010, a Pró-Reitoria de A cidade lusitana selecionada para aná- Pós-Graduação da Universidade de São lise foi o Porto. Metodologicamente, a es- Paulo, com o apoio do Santander/ Banes- colha foi feita porque, na época estudada, pa, contemplou-me com uma bolsa do Pro- São Paulo e Porto eram as segundas maio- grama de Mobilidade Internacional de Pós- res cidades de seus respectivos países, sen- Graduandos da USP, para cumprir estágio do superadas apenas pelas capitais Rio de de cinco meses na Universidade do Minho, Janeiro e Lisboa. Outra semelhança entre as em Portugal, a partir de junho do mesmo duas dá-se no âmbito do desenvolvimento ano, sob a orientação da Profa. Maria Hele- econômico: ambas são polos industriais. na Costa Carvalho Sousa. Além disso, no imaginário dos moradores das duas cidades estudadas, estão calcadas marcas que identificam suas cidades ao tra- A investigação em Portugal balho, ao progresso e ao heroísmo. No site O Projeto Temático de pesquisa A Porto XXI.com, na página que descreve a cena paulista: um estudo da produção história da cidade, lê-se: cultural de São Paulo, de 1930 a 1970 a partir do Arquivo Miroel Silveira – no Gentes de linguagem marcada, sonora e gar- rida, trabalhadora e entusiasta, vibrante com qual este trabalho está inserido – já tem seus ídolos desportivos, áspera e livre na crítica trabalhado com o parentesco estrutural e jubilosa nos folguedos. 13

O Porto congrega, cria, difunde densos cam- A metodologia em solo português biantes de contrastes sendo por isto o símbolo portuguesíssimo de um progresso que não se en- vergonha do passado mas nele sustenta o futuro. Havia também que se delimitar o uni- (PORTO XXI. Disponível em: . Porto. os três processos analisados foram criados Acesso: 29 ago. 2010). por autores renomados: Nelson Rodrigues, Na época romana, em 200 a.C., a cida- Gianfrancesco Guarnieri e Chico Buarque. de do Porto era designada de Cale ou Portus Uma das indicações que surgiram duran- Cale, vindo mais tarde a tornar-se a capital te o desenvolvimento da pesquisa é que, do Condado de Portucale – condado que em São Paulo, houve grande comoção nos deu o nome a Portugal. Simbolicamente, casos investigados – Perdoa-me Por Me o Brasil também nasceu como país na ci- Traíres (1957), A Semente (1961) e Roda dade de São Paulo, foi lá que D. Pedro I Viva (1968) – porque os autores censura- proclamou a Independência do país. Aliás, dos eram detentores de fama e prestígio. o mesmo D. Pedro, em Portugal chamado Havia que se encontrar um autor portu- de D. Pedro IV, combateu o cerco ao Porto guês de peso cuja obra abarcasse o perí- efetuado pelas tropas do irmão D. Miguel, odo estudado e o escolhido foi Bernardo na Guerra Civil de 1832-34 – uma guerra Santareno, pseudônimo literário de Antó- travada entre os miguelistas, partidários do nio Martinho do Rosário, considerado por absolutismo, e os liberais, defensores do muitos o maior dramaturgo português do constitucionalismo. século XX. A escolha deu-se não só pela Guardadas as devidas proporções, tan- relevância desse autor no contexto artís- to São Paulo como Porto foram atacadas tico português, mas também por outros pelas tropas do governo central enquanto pontos de tangência com o material brasi- lutavam para o estabelecimento de uma leiro. A obra teatral de Bernardo Santareno constituição nacional mais liberal – Porto iniciou-se no ano de 1957, com a peça A em 1832 e São Paulo, um século depois. Promessa, representada pela companhia de A cidade do Porto desempenhou um papel Teatro Experimental do Porto e encenação fundamental na defesa dos ideais do libe- de António Pedro. Após curta exibição, a ralismo nas batalhas do século XIX e a sua encenação de A Promessa sofreu pressões resistência valeu-lhe o título atribuído pela da Igreja Católica – no mesmo ano e, apa- rainha D. Maria II de “Invicta Cidade do rentemente, nas mesmas circunstâncias de Porto”. Perdoa-me Por Me Traíres. 14

Dentro do universo teatral de Bernardo sobre a investigação. A Censura em Por- Santareno, a análise deste trabalho tomou tugal, de uma maneira geral, não era pro- A Promessa como recorte metodológico. lixa. Pelo contrário, deixava poucas pistas A principal justificativa para essa decisão de sua ação. Ao contrário do Brasil, onde deve-se ao fato de que esta peça é a única podemos encontrar pareceres detalhados, em que se tem menção, em alguns textos, em Portugal, os censores não costumavam da interferência da Igreja Católica junto aos deixar provas escritas de suas ações. Por censores para que fosse retirada de cartaz. isso, houve que se adaptar os procedimen- Devidamente delimitado o campo de in- tos metodológicos à aplicação das práticas vestigação, há que se descrever o contexto censórias portuguesas. Para completar esta em que toda a ação se passou. investigação, foi imprescindível o uso de Em solo português, procurou-se tomar depoimentos testemunhais e muitas das in- como base o mesmo tipo de documentação formações relevantes a este estudo só foram existente no Brasil: os processos de censu- obtidas mediante entrevistas. ra originados no Secretariado Nacional de Informação, que hoje se encontram no Objetivos Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Partindo da opinião pública como ob- Tombo, e o conteúdo simbólico impresso jeto central, este trabalho procurou efetuar nas páginas dos principais jornais diários um estudo empregando conceitos de Análi- da cidade do Porto da época: O Primeiro se do Discurso, Sociologia e Filosofia, a fim de Janeiro, Comércio do Porto e Jornal de de determinar a contextualização histórica Notícias. e social das peças analisadas. Contudo, foram poucas as referências Num primeiro momento, o objetivo encontradas sobre censura teatral em Portu- deste projeto foi compreender as especifi- gal na também censurada imprensa da épo- cidades da sociedade paulista e os motivos ca. E mesmo a documentação produzida que a levaram a se mobilizar para pedir, pela Repartição de Turismo, pela Direcção mediante um documento, a proibição de Geral de Cultura Popular e Espectáculos e peças teatrais. Esta pesquisa também pro- pela Direcção Geral de Informação – hoje curou detectar como se formou a opinião guardada na Torre do Tombo, provenien- pública sobre essas peças e verificar se há a te dos serviços centrais do Secretariado de ocorrência de manifestações populares de Propaganda Nacional/Secretariado Nacio- repúdio à censura, tanto na cidade de São nal de Informação, trouxe poucas luzes Paulo como na do Porto. 15

Ao se descobrir essas respostas, é pos- room.org/publication/atkinshistory.html.>. sível sinalizar um caminho para compre- Chicago. Acesso: 29 ago. 2009). ender a identidade cultural do povo pau- Contudo, a censura não tem uma forma lista e empreender um registro do cenário única e pode se apresentar de várias ma- social de um período muito importante da neiras: como uma arma usada por regimes história do Brasil – enriquecendo a pes- totalitários para impedir a propagação de quisa com um momento também relevan- ideias que questionam a organização do te para a história de Portugal. Se o intuito poder ou como uma autocensura imposta for alcançado, esta será uma contribuição pelos próprios indivíduos a si próprios. Tra- para a preservação de nossa memória cul- ta-se, quem sabe, do preço que temos que tural e um norte para as futuras gerações pagar para manter o diálogo equilibrado. garantirem a liberdade de expressão e de Para entender a censura e o impulso de pensamento. censor é necessário reconhecer que toda A título introdutório, passemos, então, sociedade tem costumes, tabus, ou leis que a delinear uma breve história da censura. regulam os discursos, o modo de vestir, os atos religiosos e a expressão sexual. Em A censura Atenas, berço da democracia, a censura Ao longo de toda a história da huma- era reconhecida como um meio de impor a nidade, a livre expressão de ideias sempre ortodoxia dominante, um instrumento legí- sentiu a sombra de uma grande asa negra timo para regular a moral e a vida política sobre si: a censura – o controle dos com- da população. O julgamento de Sócrates, portamentos e das informações que circu- em 399 a.C., é um exemplo disso. Para lam dentro de uma sociedade. seus acusadores, Sócrates “comete crime Robert Atkins – jornalista, professor corrompendo os jovens e não consideran- da Rhode Island School of Design e autor do como deuses os deuses que a cidade do livro Censoring Culture: Contempora- considera, porém outras divindades novas” ry Threats to Free Expression – afirma que (PLATÃO. Apologia de Sócrates. Disponí- certamente somos a única espécie capaz vel em: . Acesso: 29 ago. 2009) – acusa- o homo sapiens não deveria, na verdade, ção suficientemente forte para levar a uma se chamar homo censoris? (ATKINS, R., A condenação à morte por envenenamento. Brief and Idiosyncratic History of Censor- Em Roma, onde a liberdade de expres- ship. Disponível em:

vam posições de autoridade, cunhou-se o permissão especial do rei. Sua determina- termo “censura”: a fim de racionalizar a co- ção foi logo seguida por outros governantes brança de impostos, a partir do século V a.C. seculares da Europa e todas e quaisquer ex- foram nomeados “censores” para realizar o pressões – artísticas ou científicas – poten- chamado census. A imposição de normas cialmente ameaçadoras à ordem moral e à para a cidadania foi seguida por imposições política da sociedade ficaram sob a censura de normas morais e Augusto (63 a.C. - 14 monárquica. O poderoso sistema burocrático d.C.) codifica em lei esses padrões morais. O de pré-censura praticado na Europa foi alvo historiador romano Tácito relata que Augus- de John Milton, em seu discurso Areopagiti- to foi ainda o primeiro imperador a destruir ca no Parlamento da Inglaterra, em 1644. livros e punir o discurso. Areopagitica é, até os dias de hoje, uma das fontes mais citadas em prol da liberdade de Com o passar da história, a Igreja Católica as- sumiu um forte papel de censor. O decreto de expressão. 1543, por exemplo, determinava que nenhum Durante o século XVIII, a censura co- livro poderia ser vendido ou impresso, sem meçava a perder terreno: a Suécia, em autorização da igreja. Pensamentos comuns eram impostos através da autoridade usufruída 1766, é o primeiro país a abolir a censura e pela Inquisição ibérica que proibia aos homens introduzir uma lei em prol da liberdade de ‘pensar diferente’. Qualquer desvio seria de- imprensa. Elaborada em 1787, a Primeira nunciado, tornando-se prática constante a eli- minação pública do culpado identificado com Emenda da Constituição dos Estados Uni- o Mal. (CARNEIRO, 2002, p. 25) dos assegura a liberdade de expressão. Porém, mesmo com garantias consti- O termo censura assumiu um novo sig- tucionais, os americanos também tiveram nificado com a introdução pelo Papa Paulo seu censor. Em 1868, Anthony Comstock IV, em 1559, do Index Librorum Prohibi- (1844-1915), instalado juntamente com torum – a lista de livros proibidos pelo seu um policial em uma livraria de Nova York, conteúdo herético ou ideologicamente pe- promoveu uma cruzada para a eliminação rigoso, emitida pela Igreja Católica Roma- da obscenidade e para a criminalização do na. As listas, emitidas várias vezes através aborto e contracepção. Comstock inspirou dos séculos por diferentes papas – a última uma lei federal de 1873, que baniu o tema data de 1948 –, foram finalmente suprimi- “prevenção da concepção” de publicações das em 1966. e leis similares aprovadas em 22 estados. Em 1563, Carlos IX de França determi- Abusando de seu prestígio, em 1905 Coms- nou que nada poderia ser impresso sem a tock denunciou o dramaturgo George Ber- 17

nard Shaw por obscenidade. Julgado na sendo suprimidas sob o pretexto de prote- Court of Special Sessions, o autor teatral foi ger as três principais instituições sociais: a absolvido. família, a igreja e o estado. No século XX, continuamos presencian- No Brasil, um exemplo que evidencia do a aplicação da censura no exame de li- isso vem com a Constituição de 1934, que, vros, peças, filmes, programas de televisão em seu artigo 113, proclamava que não e rádio, notícias e outras formas de comuni- seria tolerada a propaganda de guerra ou cação com o objetivo de alterar ou suprimir qualquer processo para subverter a ordem as ideias cujo conteúdo é tido como censu- política e social. Maria Luiza Tucci Car- rável ou ofensivo. Pode-se notar um con- neiro lembra (2002) que o clima de tensão junto poderoso de técnicas e argumentos e de censura à palavra aumentou bastan- para apoiar os esforços de censura governa- te após a “Intentona Comunista” de 1935, mentais. Um dos mais antigos estratagemas admitida constitucionalmente após 1937. utilizados é o argumento religioso: certas Foi instaurado o DIP – Departamento de Im- coisas seriam consideradas “ofensivas” aos prensa e Propaganda, em 1939, que, com- olhos da Divindade e em seu nome seriam plementado pela ação dos investigadores da proibidas. Essas coisas variam de país para polícia política, atuava buscando a unifor- país, de religião a religião, de seita a seita mização da informação. Os “seguidores do e são em sua maioria, embora nem sempre, credo vermelho” tornaram-se os alvos pre- de natureza sexual. ferenciais do DOPS e do DIP que, através A Segurança Nacional também é um de suas sessões estaduais, multiplicaram a outro estratagema amplamente utilizado repressão às ideias. como justificativa para a supressão das O DOPS, durante todo o seu período de atuação liberdades individuais. Muitas das restri- (1924-1983), foi responsável – juntamente com ções à distribuição de informação que se o DIP e Ministério da Educação e Saúde – por atos de saneamento ideológico que nos revelam encontram ainda hoje, em todo o mun- como se processava a lenta mutilação do saber. do, são respaldadas pela figura do Estado Alimentava-se atitudes de delação consideradas como “pai zeloso” ou como “uma sentine- por muitos cidadãos como um ‘ato de fé’, crentes de estarem servindo à Nação em nome da Segu- la atenta”. rança Nacional. (CARNEIRO, 2002, p. 48) As justificativas para a censura têm va- riado. O material pode ser considerado in- Ana Luiza Martins, em seu artigo Sob o decente ou obsceno; herético ou blasfemo; Signo da Censura, ressalta que o controle sedicioso ou traição. Assim, as ideias vêm da ação e das mentes na história do Brasil 18

sempre foi uma constante, dadas as carac- momentos de si mesmo, inserindo-se em terísticas de sua formação colonial. (MAR- outro contexto – simulacro do real – e vi- TINS et al., 2002, p. 156) vencia em si outra personalidade, força ou O recorte deste trabalho é efetuado qualidade. A palavra mimesis em Aristó- sobre um dos braços desse aparato estatal teles está ligada à techné (arte) e à physis criado para vigiar a expressão e a circu- (natureza). lação de ideias: o Serviço de Censura do A tendência para a imitação é instintiva Departamento de Diversões Públicas do Es- no homem, desde a infância. Neste ponto tado de São Paulo (DDP-SP) e seus proces- distinguem-se os humanos de todos os ou- sos de censura ao teatro paulista. Como se tros seres vivos: por sua aptidão muito de- trata de uma manifestação artística distinta, senvolvida para a imitação. Pela imitação a prática teatral e sua censura merecem tó- adquirimos nossos primeiros conhecimen- picos à parte. tos, e nela todos experimentamos prazer.

[...] Como nos é natural a tendência à imitação, O teatro bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois Ao elaborar sua produção discursiva, é evidente que os metros são parte do ritmo), nas primeiras idades os homens mais aptos por o sujeito incorpora elementos pré-constru- natureza para estes exercícios foram aos pou- ídos para formar, repetir, transformar, de- cos criando a poesia, por meio de ensaios im- negar ou esquecer elementos. Trata-se de provisados. alguém preso às dimensões do espaço e à O gênero poético se dividiu em diferentes espé- contiguidade do tempo, inserido num con- cies, consoante o caráter moral de cada sujeito imitador. texto histórico e social interagindo com ou- Os espíritos mais propensos à gravidade repro- tros enunciados. duziram as belas ações e seus realizadores; os Levando em conta esse processo de espíritos de menor valor voltaram-se para as produção discursiva, não é à toa que o tea- pessoas ordinárias a fim de as censurar, do mes- mo modo que os primeiros compunham hinos tro se apresenta como uma das expressões de elogio em louvor de seus heróis. (ARISTÓTE- mais antigas do espírito lúdico e artístico LES, Poética, cap. IV) da humanidade. Graças à sua imensa ca- pacidade de imitar (primeiramente os seus Desde a antiguidade, o homem procura deuses, depois os outros seres humanos, os efetivar a mimesis de suas formas de vida animais etc.), o teatro forma, repete e trans- seduzido pelo desejo de desempenhar tem- forma a produção discursiva de sua época. porariamente o papel de outrem, fantasiar- Ao “imitar”, o homem se desfaz por alguns se e falar à maneira dele. Segundo Jean- 19

Jacques Roubine, Aristóteles colocava a eventos transformando o “verdadeiro” em necessidade da credibilidade da ficção ba- algo “verossímil”. seada na verossimilhança. Mais tarde, Jean Para resolver as restrições impostas pela Chapelain (1595-1674), escritor, crítico e exigência do verossímil, a teoria teatral lança poeta francês, migra o conceito de verossi- mão de uma engenhosa dialética do visível milhança para o conceito de veracidade. e do invisível, daquilo que é “representado” Sobre esse ponto, é notável que Chapelain se e do que é “contado”: há o espaço à vista do dissocie do gosto dominante de seu tempo. espectador e há um espaço periférico, próxi- Seus contemporâneos veem nas regras o meio de fornecer uma representação perfeita de um mo ou distante, invisível, mas utilizável pelo modelo que não o seria obrigatoriamente. A dramaturgo com o recurso da “narração”. arte, através do domínio das leis do Belo, per- Diderot é um daqueles que opõem sistema- mite “corrigir” a natureza sem lhe ser infiel. É o caminho de uma idealização da qual, dora- ticamente “verdade” e “verossimilhança”: vante, a produção teatral “literária” na França Tomando o pé da letra a famosa fórmula de não irá se separar até o final do século XVIII. Boileau, “o verdadeiro pode algumas vezes não (ROUBINE, 2000, p. 30) ser verossímil”, ele subverte radicalmente suas implicações: não é mais o “verdadeiro” que Nessa época impera o dogma da bela deve ser descartado quando parece inverossí- mil, o “verossímil” que se vê recusado como natureza, apoiado nos conceitos antitéticos critério da imitação perfeita. de falso – no qual a representação falhou [...] A finalidade implícita do drama não é mais no objetivo de embelezar a natureza – e a participação do espectador, mas sua alucina- ção. (ROUBINE, 2000, pp. 69-70) fictício – conceito que traz em si o aper- feiçoamento da natureza. A arte deveria Diderot tomou consciência de um fenô- permitir uma representação idealizada do meno capital no teatro: a “teatralidade” (ter- real, nunca se constituindo um obstáculo mo que só foi cunhado dois séculos depois) à participação e à identificação do espec- – a representação, embora seja constituída, tador. Tal estética se estabelece partindo dos mesmos ingredientes da vida real, não do pressuposto de que existe uma essência os utiliza do mesmo modo. Por outro lado permanente do homem, determinada por o espectador também não reage da mesma influências sociais, históricas, biográficas maneira no teatro como reagiria na rua. Pois etc. que devem ser superadas pela arte. A a teatralização da vida nos confronta com verdade é, portanto, insuficiente para ser uma multiplicidade desconcertante e cam- narrada no teatro: para obter-se um efei- biante de identidades possíveis, com cada to narrativo palatável aos espectadores, uma das quais poderíamos nos identificar – muitas vezes é necessário “embelezar” os ao menos temporariamente. 20

O desenvolvimento do teatro como de tom popular, louvando as autoridades. expressão artística procura sintetizar a ne- Alguns historiadores acreditam que, cessidade social que o sujeito tem em as- com a vinda da família real para o Brasil sumir diferentes identidades em diferentes em 1808, foi introduzido o costume de ir momentos – identidades por vezes contra- ao teatro – hábito que a elite de então pas- ditórias ou não-resolvidas que empurram o sou a considerar elegante. Segundo Isabel indivíduo em diferentes direções. Ou seja, Lustosa, o teatro traz em si a possibilidade de es- o rei não perdia um espetáculo no Teatro S. João, truturar uma práxis argumentativa pública. inaugurado em 1813, bem ali onde hoje fica o E é por isso que sempre causou fascínio e João Caetano. D. João ia a todos os espetáculos, foi a convergência das atenções de diversos mas invariavelmente dormia. E quando acorda- va sempre perguntava: “Então, estes marotos já grupos sociais. se casaram?”. (Lustosa, 2004, p. 181)

Na época, as óperas de Rossini ocupa- O teatro e a censura no Brasil vam um lugar de destaque junto à preferên- Pode-se dizer que a primeira manifesta- cia do público. Restaram poucos registros ção teatral em solo brasileiro se deu no Es- de encenações de peças escritas por auto- tado de São Paulo. O jesuíta português José res brasileiros e a prática mais comum era de Anchieta (1534-1597) escreveu autos a representação de dramas, tragédias e co- que representou usando índios como atores médias clássicas. e plateia. Os primeiros textos escritos pelos Nos primeiros anos do século XIX, o Te- jesuítas de Piratininga – como o Auto da fes- atro São João era o lugar de convergência ta de S. Lourenço – misturavam espanhol, da vida cultural do Rio de Janeiro – apre- português e tupi-guarani e eram encenados sentando, por vezes, mais de um espetácu- pelos indígenas visando à catequese. lo por semana. Desde então, e por um longo período, Após a Independência, em 1822, em o teatro em solo do Brasil era fortemente nome da Santíssima Trindade é promulgada colonial, encenado por atores portugueses a Constituição Política do Império do Brasil e com espetáculos importados de Portugal – em 25 de março de 1824. O Título 8º que e da Espanha. Restritas ao Rio de Janeiro, as trata Das Disposições Gerais e Garantias representações aconteciam principalmente dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos em ocasiões festivas, quando grupos ama- Brasileiros, em seu art. 179 – que garante a dores montavam, em praça pública, peças inviolabilidade dos direitos civis e políticos 21

dos cidadãos brasileiros, que tem por base 1863). Em meio a essa profusão de autores a liberdade, a segurança individual e a pro- nacionais, em 30 de abril de 1843 era fun- priedade – no parágrafo 4º estabelece que dado o Conservatório Dramático Brasileiro.

todos podem comunicar os seus pensamentos, Constituído por uma associação formada por por palavras, escritos, e publicá-los pela Im- intelectuais não remunerados, tinha como prensa, sem dependência de censura; com tan- principal missão incentivar a arte teatral e to que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste Direito, nos ca- corrigir os vícios da cena brasileira, quanto cai- sos, e pela forma, que a Lei determinar. ba na sua alçada – interpor o seu juízo sobre as obras, quer de invenção nacional, quer de estrangeira, que ou já tenham subido à cena, ou Contudo, não levou muito tempo para que se pretendam oferecer às provas públicas, e que essa liberdade de pensamento e de ex- finalmente dirigir os trabalhos cênicos e chamá- pressão assegurada pela Constituição fosse los aos grandes preceitos da Arte, por meio de uma análise discreta, em que se apontem e com- desrespeitada. Afirma a pesquisadora Sonia batam os defeitos, e se indiquem os métodos de Salomão Khéde (1981, pp. 56 e 57), em seu os emendar. (KHÉDE, 1981, pp. 57 e 58). livro Censores de Pincenê e Gravata, que data de 29 de novembro do mesmo ano a Em 10 de dezembro do mesmo ano, primeira manifestação de censura teatral foi imposto ao Conservatório Dramático o que se tem notícia no País. Em edital, o In- encargo de exercer a censura nos teatros da tendente Geral da Polícia da Corte e Império corte. Oficialmente, criou-se então uma du- do Brasil, desembargador Francisco Alberto pla atribuição censória. Afinal, a Intendên- Teixeira de Aragão, estabelecia as medidas cia Geral de Polícia, pelo Código Criminal de segurança e de polícia que se deviam ob- do Império, continuava com o poder de servar nos teatros da capital. A censura, até censura. Havia ainda uma censura “oficio- o final do reinado de D. Pedro I, foi subme- sa”, constituída por autoridades ou pessoas tida à Intendência Geral de Polícia e tinha de prestígio que eventualmente interferiam ação local e restrita aos municípios. na decisão censória. Assim era a censura A expressão de autores brasileiros só teatral imperial. O conservatório foi extinto apareceu no Segundo Reinado, a partir da em 1897, mas deixou o seu legado para as criação das comédias de Martins Pena (1815- gerações futuras: 1848) e dos dramas românticos dos poetas da [...] em meio século de atuação, lançou as ba- abolição: Casimiro de Abreu (1806-1860), ses de certa tradição censória brasileira: a prá- tica de arbitrariedades – os motivos da censura Gonçalves Dias (1823-1864), Álvares de raramente estão justificados nos parágrafos da Azevedo (1831-1852) e Castro Alves (1808- lei – e uma atitude paternalista diante do pú- 22

blico que, tal qual Adão e Eva no Paraíso, era antigos líderes, uma nova geração emergiu: considerado sempre despreparado para julgar jovens portadores da ‘ideia nova’, gente o bem e o mal. (COSTA, 2008, p. 17) vinda do seio do caos metropolitano e for- mada nele.” O antigo hábito de descansar Tempos modernos: São Paulo, nos finais de semana foi substituído por teatro e a censura prévia uma irrefreável vontade de sair às ruas em Com a abolição da escravatura e a ins- busca de diversões. tituição de uma nação republicana, no final Nesse período, em meio a um ritmo do século XIX, as elites brasileiras depara- prodigioso de crescimento da cidade, a vam-se com o estabelecimento definitivo de imprensa paulista começou a repercutir a um mundo de trabalho livre. Substituiu-se a imagem de São Paulo como uma das maio- mão-de-obra negra e escrava pela figura do res metrópoles do mundo. imigrante branco europeu assalariado. Verifica-se, pois, o início de uma tomada de E assim, na virada para o século XX, o consciência tanto de um sentido de identida- de, quanto de uma manifestação de destino da Estado de São Paulo – palco desta pesquisa cidade. Cortada do passado pelo seu modo de – veio a se transformar num dos mais im- desenvolvimento abrupto, São Paulo, tal como portantes polos de atração de fluxos migra- era figurada pelos seus cronistas, aparecia insis- tentemente refletida num improvável espelho tórios. O rápido desenvolvimento da região do futuro. (SEVCENKO, 1992, p. 37) e a oportunidade de emprego atraíram um Na tentativa de encontrar sinais da sua grande fluxo de imigração. Em 1901, regis- identidade, São Paulo encontrou uma fór- trou-se a entrada de 1.434 imigrantes na- mula, provida de uma copiosa carga meta- cionais no Estado de São Paulo. No mesmo fórica, para se reconhecer: o mito da ‘Ba- ano, o número de estrangeiros aportados bel Invertida’ – que recebe povos dispersos em São Paulo foi de 70.348 pessoas. Com a pela terra, dando-lhes uma pátria humana. contínua imigração, em 1920 a cidade che- [...] A velha Europa que divide os homens pelo gou à marca de 579.033 habitantes, tornan- ódio, lançando-os uns contra os outros, destruin- do-se a segunda maior cidade do país. do o alto edifício da civilização, é a velha Babel A emergência das grandes metrópoles rediviva. O mundo novo, representado por São Paulo, onde o primeiro branco se fundia com no Brasil e no mundo dissipou as bases de o índio [...] é a nova terra da promissão, onde uma cultura de referências estáveis e contí- se vão erguer as torres sólidas das “novas arqui- nuas. Nicolau Sevcenko (1992, p. 32) afir- teturas da sociedade futura”, a Babel invertida, ma que após a Primeira Guerra, “seja pela a Babel que une e, portanto, leva ao clímax, a consumação da missão mística que a sua ante- morte, afastamento ou desmoralização dos cessora frustrara. (SEVCENKO, 1992, p. 38) 23

Cumprindo sua missão mítica, São Pau- n. 18.527, de 10 de dezembro de 1928 –, lo adotou a modernidade e procurou efe- além de regulamentar a profissão dos “ar- tivar a máxima expressão simbólica desse tistas theatraes”, vai um pouco mais longe. conceito no âmbito das artes. Particular- Seu decreto não se restringia apenas à orga- mente a música e as artes cênicas, seguidas nização das empresas e à prestação de ser- das artes plásticas, poesia, literatura de fic- viços “para dirimir os litigios entre artistas, ção e ensaísmo. autores, emprezarios e auxiliares das em- Não foi por acaso que, em 1911, inau- prezas”. No Capítulo V, intitulado DA FIS- gurou-se o Teatro Municipal de São Paulo CALIZAÇÃO DOS DIREITOS DE AUTOR, – maior e mais imponente que o do Rio de além de disposições sobre os direitos auto- Janeiro (a Capital Federal). rais, o presidente Washington Luis introduz

A profissionalização das companhias teatrais, a censura prévia ao teatro no Brasil: empresários ousados e ávidos de oportunida- Art. 43. A realização de espectaculo, em que des, a transformação da linguagem cênica com se representem peças theatraes de qualquer es- a introdução da eletricidade, os novos meios de pecie ou executem numeros de canto, musica, transporte rápidos e a formação de um amplo bailado, declamação ou pantomina, depende mercado cultural cosmopolita levaram à reorga- da approvação do respectivo programma pela nização das trupes teatrais em autênticas fábricas Censura das Casas de Diversões no Districto de espetáculos. (SEVCENKO, 1992, p. 233) Federal, e repartição de funcção equivalente nos Estados e no Territorio do Acre. Essa profissionalização levou o presi- § 2º A approvação dos programmas será feita dente Arthur da Silva Bernardes a assinar no Districto Federal pelo censor geral dos the- atros e nos Estados e Territorio do Acre pelo o Decreto 4.790, de 2 de janeiro de 1924, funccionario ou autoridade a quem competir o que “Define os direitos autoraes e dá outras serviço de Censura Theatral. providencias”: O decreto n. 18.527 (de 10 de dezem- Art. 2º Nenhuma composição musical, tragedia, drama, comedia ou qualquer outra bro de 1928) seguiu intacto à Junta Gover- producção, seja qual fôr a sua denominação, nativa Provisória de 1930 e a quinze anos poderá ser executada ou representada em the- de getulismo. Em 24 de janeiro de 1946, atros ou espectaculos publicos, para os quaes se pague entrada, sem autorização, para cada José Linhares – que exerceu a presidência vez, do seu autor, representante, ou pessôa le- durante três meses e cinco dias, como pre- gitimamente subrogada nos direitos daquelle. sidente do Supremo Tribunal Federal, após (SENADO FEDERAL DO BRASIL) a derrubada de Getúlio Vargas –, a exatos Seu sucessor, o paulista Washington sete dias de passar o cargo a seu sucessor Luis P. de Sousa – com a sanção do Decreto Marechal Eurico Gaspar Dutra, assinou o 24

decreto nº. 20.493, elaborado por seu Mi- regulamentando a censura prévia de toda nistro da Justiça, Antônio Sampaio Dória, e qualquer manifestação efetuada em espa- que “Aprova o Regulamento do Serviço de ços que fossem frequentados coletivamente Censura de Diversões Públicas do Departa- – teatros, circos, arenas e pistas, parques, mento Federal de Segurança Pública”. salões e sociedades recreativas e desporti- Uma curiosidade sobre o Decreto nº. vas. De estandartes carnavalescos a progra- 20.493 é que o item XII do art. 4º já con- mas de rádio (ou da TV ainda inexistente), templava a censura prévia de exibições de tudo que divertisse a população deveria re- televisão antes mesmo da TV ser implanta- querer a censura ao SCDP. O órgão públi- da no Brasil. O Ministro Antônio Sampaio co, em esfera estadual, poderia, então, ma- Dória antecipou-se aos fatos e, imaginando nifestar-se aprovando ou reprovando, total que a chegada desse novo meio de comuni- ou parcialmente, as obras que lhe fossem cação ao país seria apenas uma questão de submetidas. tempo, procurou criar uma lei duradoura. A censura poderia se manifestar no De fato, quatro anos depois, em 18 de se- sentido de aprovação ou reprovação, total tembro de 1950, o Brasil foi o primeiro país ou parcial, não podendo, no entanto, fazer da América do Sul a implantar a televisão. substituições que importassem em adia- O Capítulo IV, que trata do teatro e di- mento ou colaboração. Na hipótese de re- versões, determina que ao Serviço de Cen- provação parcial, ficaria facultado ao autor sura de Diversões Públicas competia censu- fazer a modificação que lhe aprouvesse, rar previamente as representações de peças desde que a submetesse à nova aprovação teatrais; as irradiações, pela radiotelefonia, da censura. de peças teatrais, novelas, canções, discos Ficou assim determinado que: cantados ou falados e qualquer matéria que Art. 44. Para a representação de qualquer peça tivesse feição de diversão pública; a publi- teatral ou número de variedades o interessado requererá, por escrito, ao S.C.D.P. a censura cação de anúncios na imprensa e a exibi- e o conseqüente registro da peça ou número, ção de cartazes em lugares públicos, quan- apresentando dois exemplares dactilografos ou do tais anúncios e cartazes se referissem às impressos, sem emenda, rasura ou borrão. atividades passíveis de censura prévia; as Parágrafo único. Os requerimentos que se excursões individuais ou de companhias e referirem ao pedido de censura deverão ser conjuntos teatrais e artísticos ao exterior. apresentados com antecedência mínima de cinco dias da primeira representação, e Para salvaguardar a Nação, o ministro deverão conter a denominação da peça ou também zelava pela moral e bons costumes número, o gênero, nome do autor ou compo- 25

sitor, quando houver parte musicada, núme- Contudo, o chefe do SCDP poderia cassar ro de atos ou quadros e o nome do tradutor, ou restringir a autorização na ocorrência quando o original fôr estrangeiro. de motivos imprevistos, justificado pelo in- Art. 47. Qualquer que seja a deliberação da censura, um dos exemplares apresentados será teresse da dignidade nacional, da ordem, conservado no arquivo do S.C.D.P., de onde da moralidade ou das relações internacio- não poderá ser retirado sob qualquer pretexto, nais. Uma vez autorizada a representação e o outro, conferido e visado, entregue ao inte- ou execução, o censor determinava o dia e ressado, mediante recibo. hora para assistir ao ensaio geral da peça. Pela aplicação do art. 43 do Decreto n. Esse ensaio geral deveria ser realizado, pelo 18.527 (1928) e dos art. 44 e 47 do Decre- menos, na véspera da estreia e os artistas to nº. 20.493 (1946) é que se constituiu o eram obrigados a cumprir rigorosamente acervo que hoje compõe o Arquivo Miroel as determinações do censor e do chefe do Silveira, sob custódia da Biblioteca da ECA/ SCDP. Não era permitido, sob nenhuma USP (Escola de Comunicações e Artes da hipótese, o improviso e até os cartazes e Universidade de São Paulo) — responsável anúncios do espetáculo deveriam ser apre- por conservar e estudar mais de seis mil sentados com antecedência mínima de 24 processos de censura prévia ao teatro ori- horas para a devida aprovação. ginados do Serviço de Censura do Departa- O Capítulo XII do Decreto nº. 20.493 mento de Diversões Públicas do Estado de trata das infrações e penalidades do proces- São Paulo (DDP-SP), do período de 1930 a so. A inobservância de qualquer dos dispo- 1970. sitivos do Regulamento acarretava multa A representação de qualquer peça te- de Cr$ 100,00 a Cr$ 5.000,00, elevada ao atral ou número de variedades deveria dobro na reincidência, e as empresas de di- ser requerida à censura, por escrito, apre- versões públicas poderiam ser impedidas de sentando dois exemplares datilografados funcionar por um período de oito dias a um ou impressos. Qualquer que fosse a deli- ano. O decreto determinava também que, beração da censura, um dos exemplares no exercício de suas funções, os censores apresentados era conservado no arquivo do SCDP usariam distintivo idêntico ao dos do SCDP, de onde não podia ser retirado. Delegados de Polícia com os seguintes di- O certificado de aprovação de peças te- zeres: “D.F.S.P. - Censura” e que os casos atrais e o dos números de variedades era omissos deveriam ser resolvidos pelo Chefe válido para todo o território nacional, nor- do Serviço de Censura de Diversões Públi- malmente, prevalecendo indefinidamente. cas, depois de ouvir o Chefe de Polícia. 26

As infrações cometidas por qualquer Segundo Celso Delmanto (2002, p. espetáculo público, contudo, não estavam 145), praticar ato obsceno, isto é, ato que sujeitas apenas às penalidades descritas no ofenda o pudor público, dá-se, “‘objetiva- Decreto nº. 20.493 - de 24 de janeiro de mente’, de acordo com o meio ou circuns- 1946. Elas também se enquadravam em ar- tâncias em que é praticado. O ato pode ser tigos do Código Penal Brasileiro e podiam real ou simulado, mas deve ter conotação ser consideradas crimes de ultraje público sexual, não se enquadrando no dispositivo ao pudor e/ou crime contra a paz pública: a manifestação verbal obscena”. E a definição do termo obscenidade

DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR pode variar enormemente, de acordo com a época em questão. Logo, a configuração Art. 234. Fazer, importar, exportar, adquirir de ato obsceno é feita em face dos costu- ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, mes vigentes. desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto Tomemos o caso de Gerald Thomas, obsceno: que – reagindo a vaias do público que assis- Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) tia, em outubro de 2003, a uma montagem anos, ou multa. da ópera Tristão e Isolda no Teatro Muni- cipal do Rio de Janeiro – baixou as calças, Parágrafo único - Incorre na mesma pena quem: mostrou as nádegas para a plateia e simulou ato de masturbação. Thomas foi acusado II - realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exi- de praticar ato obsceno, previsto no artigo bição cinematográfica de caráter obsceno, 233 do Código Penal, e o caso foi parar no ou qualquer outro espetáculo, que tenha o Supremo Tribunal Federal, que concedeu, mesmo caráter; em 17 de agosto de 2004, habeas corpus ao diretor teatral e determinou o imediato DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA trancamento da ação penal proposta contra

Art. 287. Fazer, publicamente, apologia de ele no Juizado Especial Criminal do Rio de fato criminoso ou de autor de crime: Janeiro. O relator do caso, Ministro Gilmar

Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou Mendes, discorrendo sobre a caracteriza- multa. (CÓDIGO PENAL BRASILEIRO - Decre- ção da ofensa ao pudor público, diz que to-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 In: não se pode olvidar o contexto em que se veri- Eduardo O. C. Chaves. Disponível em: . Acesso caso concreto demonstra que a discussão está em 15 mai. 2008.) integralmente inserida no contexto da liberdade 27

de expressão, ainda que inadequada e desedu- Pelo que se sabe, os volumes contendo os cada... A sociedade moderna dispõe de meca- nismos próprios e adequados, como a própria processos foram encontrados largados no crítica, para esse tipo de situação, dispensando- chão. Ao indagar sobre o destino que se- se o enquadramento penal. (MINISTÉRIO PÚ- ria dado a eles, Miroel soube que seriam BLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO). queimados. Por seu empenho pessoal, o Um dramaturgo que praticasse o mes- professor conseguiu salvá-los de seu triste mo ato há 50 anos não teria a mesma sorte fim e levou-os para sua sala na ECA. diante da lei e da opinião pública. Aos 73 anos, vitimado por uma broncop- neumonia seguida de uma parada cardíaca, Miroel morreu naquele mesmo ano. Em sua O Arquivo Miroel Silveira memória, o acervo que ele resgatou do DDP- Trata-se de uma coleção de 6.205 pro- SP levou o seu nome e hoje se encontra sob a cessos de censura de peças teatrais para responsabilidade da Biblioteca da ECA. apresentação pública, na qual encontram-se A partir de 2005, com financiamento da pareceres, carimbos, vetos e cortes dos cen- FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa sores, além dos originais das peças a serem do Estado de São Paulo) e sob a coordena- encenadas. Tais processos chegaram à Uni- ção da Profa. Dra. Maria Cristina Castilho versidade de São Paulo pelas mãos de Mi- Costa, inicia-se o Projeto Temático A cena roel Silveira, tradutor, adaptador, ensaísta, paulista. poeta, diretor de teatro, ator, diretor, crítico Este projeto temático – que trabalha teatral, jornalista e professor da Escola de com documentação original, em bom esta- Comunicações e Artes (ECA/USP). do de conservação, mas que não pode ser Miroel, ao desenvolver sua tese de copiada mecanicamente nem excessiva- doutorado A Comédia de Costumes – Pe- mente manuseada – procura dar conta da ríodo Ítalo-Brasileiro: subsídio para o es- catalogação e análise do material do Arqui- tudo da contribuição italiana ao nosso vo Miroel Silveira. teatro, usou como uma das fontes a do- Para organização do material pesquisa- cumentação guardada pelo Serviço de do, foi criada uma nomenclatura própria do Censura do Departamento de Diversões arquivo para avaliar os processos quanto à Públicas do Estado de São Paulo. Quan- censura: do a censura foi abolida no ano de 1988, Miroel dirigiu-se ao DDP-SP para saber o Liberadas – peças cuja encenação é que seria feito com aqueles documentos. permitida. 28

Liberadas com cortes – peças que sofreram cenação, mas com proibição etária, por supressão de palavras ou de trechos. exemplo. Liberadas com restrição – peças sem in- Vetadas – peças que tiveram sua apresenta- tervenção censória nos textos ou na en- ção proibida.

Principais números do Arquivo Miroel Silveira

Peças Número

Total de peças do acervo 6.205 Peças catalogadas 3.054 Peças não catalogadas 3.151 Catalogações com resumo da peça 931 Peças digitalizadas 700 Peças digitalizadas disponíveis na internet 20

Autores Número

Autores no acervo 3.114 Autores biografados 281 Biografias na internet 127

Fonte: Arquivo Miroel Silveira - janeiro 2010 Levantamento: Liana Morelli ([email protected]) 29

Tipos de censura

Peças Vetadas 47

Peças liberadas (total ou parcialmente) com algum tipo de restrição 1.684

Restrição etária 1.579 Restrição de gênero 8 Restrição de lugar 62 Restrição de horário 3 Restrição de veiculação (rádio e TV) 22 Censura vinculada ao ensaio geral 1

Peças liberadas (total ou parcialmente) 4.464

Liberadas com cortes 886 Liberadas 3.578

Peças sem indicação de censura 10

TOTAL 6.205

Fonte: COSTA, 2006, pp.255-257. 30

Os originais

As pastas oriundas do Serviço de Censura do Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo (DDP-SP) encontravam- se em caixas 31

Os originais

Os processos estavam encadernados em mais de setenta volumes 32

O tratamento

O tratamento dos processos inciou-se com o desmonte das pastas 33

O tratamento

Retirado o miolo, era necessário remover os pregos

A cola foi raspada 34

O conteúdo dos processos

Os processos foram separados e guardados separadamente em pastas suspensas 35

O conteúdo dos processos

Requerimento de Censura registrado em cartório, de Otelo Queivolo, datado de 13 de abril de 1942, para O Homem que Perdeu a Vergonha - peça a ser encenada em circo, de autoria de Hanis e Chic-Chic. Fonte: Arquivo Miroel Silveira

Cada processo contém o requerimento de censura dirigido ao Serviço de Censura do Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo (DDP-SP) 36

O conteúdo dos processos

Cada processo contém também os originais das peças 37

O conteúdo dos processos

Acima, trecho censurado de O Homem que Perdeu a Vergonha - com os cortes da frase “o amante de minha mulher”. Abaixo, trecho censurado da peça circense O Reservista Ventura, de Laura Corina, com o corte da palavra “amante”.

Fonte: Arquivo Miroel Silveira

Exemplo de originais com marcações dos censores 38

O conteúdo dos processos

O certificado de censura, nos casos em que ocorria a liberação das peças 39

O conteúdo dos processos

Alguns processos continham abaixo-assinados, telegramas e jornais com matérias referentes às peças arquivadas 40 Capítulo 1 Sobre a opinião pública 41

opinião: 1. maneira de pensar, de ver, de julgar, afirmação que o espírito aceita ou rejeita. 2. julgamento pessoal (justo ou injusto, verdadeiro ou falso) que se tem sobre determinada questão; parecer, pensamento. 3. posição precisa, ponto de vista que se adota em um domínio particular (social, religioso, político, intelectual etc.); ideia, teoria, tese. 4. parecer, julgamento emitido após reflexão ou deliberação; voto, partido. 5. hipótese, ideia não verificada ou sem fundamento; presunção. 6. julgamento de valor sobre alguém ou algo; conceito. 7. convicção, julgamento co- letivo; conjunto de ideias partilhadas por um grupo, por uma coletividade a respeito de um assunto particular ou de uma série de temas; consenso. 8. FIL crença adotada como verdade pelo senso comum sem qualquer reflexão a respeito de sua validade, de seus pressupostos e dos meios pelos quais foi obtida. (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 2071)

Apesar do grande interesse que o tema está intimamente ligada às relações da so- desperta, todas as definições elaboradas ciedade burguesa industrial tardia, organi- sempre pecaram por aprisionar o sentido da zada social e estatalmente. expressão “opinião pública” a uma premis- A palavra de origem latina “pública” é sa limitadora. Objeto de estudo multidisci- o feminino singular do adjetivo de 1ª e 2ª plinar, o fenômeno, descrito e conceituado declinação publicus, publica, publicum, por vários pensadores ao longo dos últimos derivada de uma forma mais antiga, popli- 200 anos, popularizou-se e passou a ser ob- cus – ”relacionada a populus (povo)”. O ter- servado sob a ótica do senso comum. mo, em contraposição às sociedades fecha- Há que se empreender uma discussão das, normalmente se refere a lugares que epistemológica sobre o fenômeno, anali- não são considerados propriedade privada, sando o seu sujeito (a coletividade), o seu acessíveis a qualquer um, tais como locais objeto (a relevância necessária para gerar o públicos ou casas públicas. O termo é tam- debate público), a sua forma (a expressão bém aplicado ao “poder público”, o Estado pública) e seu processo de formação (o de- em exercício que administra a res publica bate público). com a tarefa de promover o bem comum a Para Habermas, o uso corrente da pala- todos os cidadãos. Nesse contexto, os “pré- vra “público” denuncia uma multiplicidade dios públicos” – que não pressupõem a pre- de significados concorrentes originados de sença de todos os cidadãos – simplesmente diferentes fases históricas. Sua aplicação abrigam instituições do Estado. 42

A partir do século XVIII, nas camadas esfera do intercâmbio de mercadorias e do mais amplas da burguesia, a esfera do “pú- trabalho social, também penetra na esfera blico” surge inicialmente como ampliação e, das pessoas privadas enquanto público e o ao mesmo tempo, suplementação da esfera contexto da comunicação pública se dis- da intimidade familiar. A camada burguesa solve nos atos estereotipados da recepção é o autêntico sustentáculo do público, que, isolada. desde o início, é um público que lê. Estabelece-se, assim, um outro signifi- Na esfera pública burguesa, desenvol- cado relevante ao termo “público” – toma- ve-se uma consciência política intermedia- do como sinônimo de plateia, audiência – da pela consciência institucional da esfera que envolve a noção de receptor de uma pública literária. Em ambas as esferas se mensagem. forma um público de pessoas privadas que O homem, ser racional por definição, busca ser representado. ao se relacionar com o mundo a sua vol- O processo, ao longo do qual o público consti- ta sempre codificará esse mundo segundo tuído pelos indivíduos conscientizados se apro- a sua percepção das coisas sensíveis. E pria da esfera pública controlada pela autorida- a percepção não é um simples reflexo do de e a transforma numa esfera em que a crítica se exerce contra o poder do Estado, realiza-se que é percebido, trata-se de um processo como refuncionalização da esfera pública lite- de representação, organizado em função rária, que já era dotada de um público possui- de estruturas e estratégias mentais que de- dor de suas próprias instituições e plataformas de discussão. Graças à mediação dela, esse terminam a coerência e a inteligência da conjunto de experiências da privacidade ligada percepção. ao público também ingressa na esfera pública [...] em outras palavras, o espírito/cérebro es- política. (HABERMAS, 2003, p. 68) trutura e organiza representações, isto é, pro- duz uma imagem do real. Essa produção é uma Essa refuncionalização sociopsicológi- tradução, não uma reprodução ou um reflexo. ca da relação originária entre âmbito ínti- (MORIN, 1986, p. 26) mo e publicidade literária correlaciona-se sociologicamente com a mudança estrutu- Nesse sentido, pode-se afirmar que todo ral da própria família. homem tem seu próprio modo de ver, de Com o surgimento de uma esfera públi- pensar, de deliberar. Ou seja, todo homem ca dissociada da esfera do poder público, tem opinião. Mas o que transforma as vá- o publicum se transforma em público e a rias opiniões privadas em opinião pública? esfera pública literária avança no âmbito Pierre Bourdieu (1983, p. 142) objeta do consumo. O mercado, que domina a a existência da crença de que todo mundo 43

pode ter uma opinião, que a produção de vros, dos jornais e, por fim, das técnicas de uma opinião está ao alcance de todos. Tam- comunicação de massa contemporâneas. bém contesta que em uma sociedade todas as opiniões possam ser equivalentes. Na 1.1 Histórico verdade, existe o que se pode chamar de competência política por referência, algo Harwood L. Childs (1967, pp. 44-61) que é dominante e dissimulado e não é – em seu livro Relações públicas, propa- universalmente disseminado, pois varia de ganda e opinião pública, de 1965 – faz um acordo com o nível de instrução. Bourdieu longo histórico sobre a opinião pública e afirma que o princípio a partir do qual as acredita que a origem da expressão está en- pessoas podem produzir uma opinião é o volta em mistério. que ele chama de Apesar do termo “opinião pública” só [...] ‘ethos de classe’ (para não dizer ‘ética de ter sido cunhado no século XVIII, estudos classe’), isto é, um sistema de valores implícitos antropológicos revelam a existência de di- que as pessoas interiorizaram desde a infância e a partir do qual engendram respostas para pro- versas narrativas de um fenômeno similar blemas extremamente diferentes. (BOURDIEU, ao longo da história. O registro mais anti- 1983, p. 143) go de que se tem notícia é de um poema Não haveria, assim, uma hegemonia da produzido no Antigo Egito, no qual há re- opinião pública como a teoria democrá- ferência de uma possível reorientação da tica quer acreditar. Para Monique Augras opinião de um grande número de pessoas. (1970, p. 12), no nível individual, opinião Outros relatos semelhantes podem ser en- é confundida com atitude. E no nível co- contrados na Babilônia e Assíria. Existem letivo, aparece como entidade mítica: a também manifestações da opinião pública opinião pública, muitas vezes, é tomada desde a Grécia e Roma antigas – as deli- como o sentimento do Povo, um fenôme- berações dos cidadãos gregos na ágora da no social que deveria ser expresso livre e pólis influenciavam o governo ateniense e publicamente. a vox populi era ouvida no fórum romano. Augras acredita não ser exagerado defi- Na Idade Média encontramos o conceito nir as diversas etapas da história da opinião de Consensus Ominium – o acordo de to- pelos diversos meios de comunicação, tais dos – e todas as opiniões contrárias eram como a opinião do mercado grego, do te- tomadas como heresias. atro romano, dos sermões, das cartas e das O Renascimento marca a valorização baladas da Idade Média, dos panfletos e li- do indivíduo e, como consequência, a di- 44

versidade das opiniões. Em 1513, no Ca- te a força do hábito à da autoridade. Falo dos usos, dos costumes e, em especial, da opinião. pítulo IX de O Príncipe, Maquiavel anun- (ROUSSEAU, Do Contrato Social. Tradução: cia que “a um príncipe é necessário ter o Rolando Roque da Silva. Ed. Ridendo Castigat povo como amigo, pois, de outro modo, Mores: 2001. Disponível em: . Acesso: 11 ago. 2009) prossegue: E em seu famoso Discurso sobre a Arte Todos vêem o que tu aparentas, poucos sentem e Ciência, de 1750, Rousseau é o primei- aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem ro autor a usar o termo “opinião pública”. a contrariar a opinião dos muitos que, aliás, Na perspectiva do autor, ao pactuar com o estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas ações de todos os homens, em especial dos contrato social cada um submete à comu- príncipes, onde não existe tribunal a que recor- nidade os seus bens e todos os seus direitos rer, o que importa é o sucesso das mesmas. Pro- para, por meio da mediação da vontade co- cure, pois, um príncipe, vencer e manter o Esta- do: os meios serão sempre julgados honrosos e mum, participar nos direitos e deveres de por todos louvados, porque o vulgo sempre se todos. O pacto social exige uma transmis- deixa levar pelas aparências e pelos resultados, são de propriedade sem reservas, uma pro- e no mundo não existe senão o vulgo; os pou- cos não podem existir quando os muitos têm priedade que é ao mesmo tempo privada e onde se apoiar. (MAQUIAVEL, N. O príncipe. pública. Como decorrência, a vontade co- URL: http://www.culturabrasil.org/zip/oprinci- munitária não provém da concorrência de pe.pdf Acesso: 13/08/2009) interesses privados, mas sim de uma espé- A partir daí, a opinião pública é tomada cie de instinto da humanidade. E apesar de com dupla função: ser a expressão genuína sua espontaneidade natural, para exercer a da vontade do povo e meio de manipula- tarefa de controle social, essa opinião pre- ção desse povo. Apesar dessas reflexões, foi cisa ser orientada. só a partir do século XVIII que a expressão Jacques Necker – encarregado da eco- “opinião pública” foi submetida a uma aná- nomia da monarquia francesa pelo rei lise sistemática. Luís XVI em três ocasiões (em 1776, 1788 No livro II, Do Contrato Social, Rous- e 1789) – é um dos primeiros a discutir a seau postula que há uma espécie de lei importância da opinião pública como fator político. É de Necker a única análise por- [...] que não se grava nem no mármore nem no bronze, mas no coração dos cidadãos; que menorizada do conceito de opinião públi- adquire diariamente forças novas; que reanima ca na época da Revolução Francesa. ou substitui as outras leis quando envelhecem ou se extinguem, e retém o povo dentro do espí- Na Alemanha, a maioria dos escrito- rito de sua instituição, e substitui insensivelmen- res da época, dentre eles Hegel, considera 45

que a competência da opinião pública para vada como senhores da casa e sua posição governar estendia-se apenas aos princípios na pólis era baseada na posição assumida gerais. Em alemão, ainda no século XVIII na esfera privada. Aqui a esfera pública as- é que, por analogia a publicité e publicity, sume-se como um reino da continuidade. é formado o substantivo a partir do antigo E esse modelo da esfera pública helênica adjetivo öffentlich (público). perpetuou seu modelo ideológico até nos- Jeremy Bentham, filósofo e jurista in- sos dias. glês, foi o primeiro a tratar minuciosamente Inicialmente, ao longo de toda a Idade do assunto na língua inglesa, enfatizando a Média, foram transmitidas as categorias de importância da opinião pública como meio “público” e de “privado” nas definições do de controle social, discutindo a sua relação Direito Romano: a esfera pública como res com a legislação e qual o papel desem- publica. penhado pela imprensa na sua formação. Durante a Idade Média europeia, a do- Bentham acredita que a opinião pública é minação fundiária e a vassalagem fornecem necessariamente parte integrante de qual- indícios de que não existiu uma antítese en- quer teoria democrática do Estado. tre a esfera pública e esfera privada segun- A análise sociológica de Habermas re- do o modelo clássico antigo. Na sociedade torna à Grécia em busca das origens histó- feudal da alta Idade Média, a esfera pública ricas do significado de “público” e “esfera como um setor próprio, separada de uma pública”: esfera privada, não pode ser comprovada sociologicamente. Tratam-se de categorias de origem grega que nos Com a migração gradativa do campo foram transmitidas em sua versão romana. Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da para as cidades, inicia-se um novo proces- pólis que é comum aos cidadãos livres (koiné) é so. Surgem novos mercados, consolidam-se rigorosamente separada da esfera do oikos, que feiras periódicas e estabelecem-se as bol- é particular a cada indivíduo (idia). A vida públi- ca, bios politikos, não é, no entanto restrita a um sas. Desenvolve-se, assim, uma ampla rede local: o caráter público constitui-se na conver- horizontal de dependências econômicas sação (lexis), que também pode assumir a forma que, em princípio, se afastam das relações de conselho e de tribunal, bem como a de práxis comunitária (práxis), seja na guerra, seja nos jo- de dependência vertical do sistema feudal gos guerreiros. (Habermas, 2003, p. 15) baseadas em formas de economia domés- tica fechada. Os cidadãos da Antiga Grécia têm sua Paralelamente à troca de mercadorias, vida pública vinculada à sua autonomia pri- aparece a troca de informações. Mais ou 46

menos contemporâneos ao surgimento das Dentro dessa ordem política e social, re- bolsas, o correio e a imprensa instituciona- estruturada durante a fase mercantilista do lizam contatos permanentes de comunica- capitalismo, em sentido estrito, começam a ção. Nesse período, contudo, as notícias circular os primeiros jornais semanais. A troca transmitidas profissionalmente ainda não de informações desenvolve-se em relação às são publicadas e as novidades, por sua vez, necessidades de intercâmbio de mercadorias, publicadas sem qualquer regularidade, ain- por isso os jornais impressos desenvolvem-se da não foram transformadas em notícias. frequentemente a partir dos escritórios de cor- A partir do século XVI, as companhias respondência que habitualmente providen- de comércio não mais se satisfazem com ciavam a divulgação dos eventos comerciais. mercados ainda limitados. São inaugura- Visando ao lucro, uma parte do material no- das, então, expedições de grande estilo, ticioso disponível é periodicamente impresso novos territórios para a expansão do mer- e vendido anonimamente – passando a ter, cado. Só então é que se constituiu o que assim, caráter público. chamamos de Estado Moderno, com suas A imprensa torna-se também um ins- instituições burocráticas, um eficiente sis- trumento do poder público para divulgar tema de impostos para atender à demanda decretos e portarias. De muitos modos, as de capital. Daí resulta a separação entre os agências noticiosas são assumidas pelo go- bens da Casa Real e os bens do Estado e o verno e os jornais informativos são trans- surgimento de outra esfera social: a esfera formados em boletins oficiais. Habermas do poder público. afirma que O poder público se consolida e, neste a autoridade dirige a sua comunicação “ao” pú- sentido estrito, “público” torna-se sinônimo blico, portanto em princípio, a todos os súditos; de estatal. O poderio senhorial transforma- comumente, ela não atinge, assim, o “homem se em “polícia” e as pessoas privadas, sub- comum”, mas, se muito, as “camadas cultas”. Junto com o moderno aparelho de estado sur- metidas a ela, constituem um público. Para giu uma nova camada de “burgueses” que as- Habermas (2003, p. 33), a sociedade civil sume uma posição central no “público”. Esta burguesa constituiu-se como contrapeso à camada “burguesa” é o autêntico sustentáculo do público, que, desde o início, é um público autoridade e as atividades e relações de de- que lê. (Habermas, 2003, p. 37) pendência que, até então, estavam confina- das ao âmbito da economia doméstica, ul- Assim, nas palavras de Marcondes Filho trapassaram as fronteiras do orçamento do- (2002, p. 18), “a informação deixa de ser méstico e surgiram à luz da esfera pública. ‘capital’ para ser ‘mercadoria’”. Ao invés de 47

ficar confinada nas rodas de intelectuais, a em torno de si mesmo, “num processo de informação não pode mais ficar armazena- auto-compreensão das pessoas privadas da, antes disso, como mercadoria altamen- em relação às genuínas experiências de sua te perecível, deve ser consumida rápida e nova privacidade”. integralmente. A esfera pública é separada do setor Com a comercialização das notícias privado pela linha divisória que existe entre surgem os primeiros jornais diários. O jor- Estado e sociedade. Cabe lembrar que para nal diário mais antigo de que se tem notí- Habermas o setor público limita-se ao po- cia e que sobrevive até os dias de hoje é o der público e que o setor privado também Einkommende Zeitung, que surgiu em Lei- abarca a “esfera pública” propriamente pzig em 1650. O primeiro jornal diário em dita, pois trata-se de uma esfera pública de língua inglesa é o Daily Courant, que apare- pessoas privadas, por isso, dentro do setor ceu em Londres em 1702 (STEPHENS, His- restrito às pessoas privadas, há que dividi- tory of Newspapers. Collier’s Encyclopedia. lo entre esfera privada e esfera pública. Site: NEW YORK UNIVERSITY. Disponível Em sentido mais restrito, esfera privada em: . Acesso: 20 ago. setor que tange a troca de mercadorias, o 2009). Outros grandes jornais diários o se- trabalho social, a família e sua esfera íntima. guiram, tais como: The Times (1785), The A esfera pública política se origina da litera- New York Herald Tribune (1835), The Guar- tura e faz intermédio, por meio da opinião dian (1850), The New York Times (1851). pública, entre o Estado e as necessidades da sociedade. O crescimento das cidades, além da 1.2 O conceito de esfera pública mudança das relações econômicas, faz sur- Para Habermas, o emprego mais fre- gir uma crítica inicialmente literária, e pos- quente de “opinião pública” está ligado a teriormente política, que passa a efetivar uma esfera pública revoltada ou bem in- uma espécie de paridade entre os homens dignada ou informada e o sujeito da esfera da sociedade aristocrática e da intelectuali- pública é o público enquanto portador da dade burguesa. opinião pública. As hierarquias são substituídas pela Para Habermas (2003, p. 44), a esfera crença na igualdade. Para o espírito vi- pública é definida como um campo de ma- gente no século XVIII, a paridade significa nobras de um raciocínio público que gira a igualdade do simplesmente “meramente 48

humano” e essa ideia foi institucionalizada instituições da crítica de arte, literária, tea- como reivindicação objetiva. tral e musical – criadas para organizar o jul- À medida que as obras de arte em geral gamento leigo do público. Criações típicas são produzidas para o mercado e interme- do século XVIII, os jornais dedicados à arte diadas por ele, os bens culturais deixam de e à crítica cultural são instrumentos dessa ser parte constitutiva da representatividade crítica de arte institucionalizada. pública eclesiástica ou cortesã e tornam-se Neste contexto, aparece um novo fe- acessíveis a todos. nômeno: os semanários moralistas como o As questões discutíveis tornam-se “gerais” não Tatler, o Spectator, o The Guardian. Joseph só no sentido de sua relevância, mas também de Addison (1672–1719) – ensaísta, poeta e sua acessibilidade: todos devem poder partici- colaborador do Tatler – vê a si mesmo como par. Onde o público se estabelece como grupo fixo de interlocutores, ele não se coloca como censor da moral e dos bons costumes. equivalente ao grande público, mas reivindica O “grande” público – que agora fre- aparecer de algum modo como seu porta-voz, quenta teatros, museus e concertos – é um talvez até mesmo como seu educador. (HABER- MAS, 2003, p. 53) público burguês que se observa no centro da temática das obras: o foco da ação cen- Contudo, com a existência de muitos trava-se na nova esfera da intimidade fami- pobres no limite da subsistência, sem po- liar da pequena família patriarcal – a repre- der de compra para ter acesso ao mercado sentação dos interesses de uma esfera priva- de bens culturais, surge uma nova catego- tizada da economia de trocas é interpretada ria social composta por um público difuso, com ajuda de ideias que brotaram do solo que se constitui no embalo da comerciali- da intimidade da nova vida familiar. zação da troca cultural. No transcurso do século XVIII, na esfera Assim como na literatura, também os pública burguesa, desenvolve-se uma cons- concertos e o teatro só ganham público, ciência política que articula contra a mo- em sentido estrito, quando os teatros das narquia absoluta e que aprende a afirmar a cortes ou dos palácios reais se tornam “pú- opinião pública como única fonte legítima blicos”. Na mesma época, os museus insti- das leis. tucionalizam o julgamento do leigo sobre a Uma esfera pública funcionando poli- arte: a discussão torna-se um meio de sua ticamente aparece primeiro na Inglaterra, apreciação. na virada para o século XVIII. São três os À medida que as exposições públicas acontecimentos entre 1694/95 que desen- atraem círculos mais amplos, surgem as cadeiam a evolução da esfera pública ingle- 49

sa: a criação do Banco da Inglaterra – que Também na França surge, na metade do representa o fortalecimento do sistema século XVIII, um público que raciocina po- capitalista, até então mantido apenas pe- liticamente. Com a Revolução Francesa, es- las trocas comerciais à base do modo de tabelecem-se na França, da noite para o dia, produção –, a superação do instituto da as instituições que até então faltavam para o censura prévia – que possibilita o ingresso público politizado. A Assembléia Nacional do debate na imprensa, transformando-a Constituinte da França revolucionária apro- num instrumento que ajuda a tomada de vou 1789 a Declaração dos Direitos do Ho- decisões perante o novo fórum do públi- mem e do Cidadão (Déclaration des Droits co –, e a implantação do primeiro gover- de l’Homme et du Citoyen), suplementando no de gabinetes – um longo passo para a a “esfera pública” no Artigo 11o: parlamentarização do poder estatal que A livre comunicação de ideias e opiniões é um acaba por estabelecer a própria esfera pú- dos mais preciosos direitos do ser humano. Por blica em função política como órgão do isso, cada um pode falar, escrever e imprimir li- vremente, resguardando-se a responsabilidade Estado. quanto ao mau uso dessa liberdade nos casos Como consequências dessa nova esfera previstos por lei. (Procuradoria Federal pública temos a eliminação da crença no dos Direitos do Cidadão. Disponível em: . Acesso: 28 Com a chegada do século XIX, aban- dez. 2011). dona-se o termo “opinião vulgar” (common opinion), e adota-se a “public opinion” – Para Habermas (2003, p. 93), ao ter atu- que se constitui em discussões públicas, ação política, a esfera pública ganhou o sta- depois que o público, por formação e infor- tus normativo de um órgão de automediação mação, torna-se apto a formular uma opi- da sociedade burguesa com o poder estatal. nião fundamentada. Habermas (2003, p. Essa esfera pública, “desenvolvida” num 85) acredita que a opinião pública não se mercado tendencialmente liberado, trans- forma sem crítica, apenas oscilando entrea formou os assuntos particulares das pessoas aprovação ou rejeição. Seja ela ingênua ou privadas e disseminou-os na esfera da repro- plebiscitariamente manipulada através do dução social, completando assim, finalmen- senso comum, a opinião pública sempre te, a privatização da sociedade burguesa. nasce na luta dos argumentos em torno de A ideia burguesa de Estado de Direito algo, diante da apresentação dos fatos. é vinculada às atividades do Estado, cujo 50

sistema normativo deve ser legitimado pela privada enquanto uns não tomarem conhe- opinião pública. É instituído um grupo de cimento do que os outros estão pensando. direitos fundamentais que se refere à esfera Sendo assim, a primeira condição para uma do público pensante, ao status da liberdade opinião se tornar pública é que esta seja ex- do indivíduo fundado na esfera íntima da pressa publicamente. Em segundo lugar, o pequena família patriarcal e ao intercâmbio tema deve ser relevante o bastante para ge- dos proprietários privados na esfera da so- rar uma ampla discussão na coletividade, ciedade burguesa – liberdade pessoal, liber- não sendo condição necessária o envolvi- dade de opinião e de expressão, liberdade mento de toda a sociedade. de imprensa, liberdade de reunião e de asso- O princípio da “publicidade” encontra ciação, inviolabilidade da residência, igual- a sua configuração teórica amadurecida dade perante a lei, garantia da propriedade com Kant, que assume esse princípio como privada etc. o único capaz de garantir um acordo entre a política e a moral. No público das pessoas privadas pen- 1.3 O conceito de opinião pública santes se desenvolve o que em Kant se cha- Ciro Marcondes Filho (2002, p. 17) ma de “concordância pública”; em Hegel, conceitua opinião pública como “a con- de “opinião pública” ou “a universalidade densação das posições e das preferências empírica dos pontos de vista e dos pensa- num determinado momento, oriundas dos mentos de muitos”. Hegel postula que debates ocorridos na esfera pública”. a liberdade formal, subjetiva, que os indiví- Sob a ótica dos cientistas políticos e de duos enquanto tais têm e expressam em seus alguns historiadores, a opinião pública ten- próprios juízos, opiniões e conselhos, encontra de a ser associada ao conceito de soberania a sua manifestação no contexto do que se cha- ma opinião pública. (HEGEL apud HABERMAS, popular, às leis, aos costumes e à moral. Os 2003, p. 142). sociólogos consideram-na produto da co- municação e da interação social. Hegel define a função da esfera públi- Uma vez detectado um problema cole- ca como a racionalização da dominação. tivo, certo número de pessoas começará a Tal degradação da opinião pública resulta, se manifestar sobre a questão. Um grande necessariamente, do conceito hegeliano da número de pessoas pode ter o mesmo pon- sociedade burguesa. to de vista em relação a algum assunto, mas A sociedade burguesa, aos olhos de esses pontos de vista continuarão na esfera Hegel, detém uma divisão profunda causa- 51

da pela desigualdade instaurada por natu- a igualdade de oportunidades, para que reza e por uma desigualdade imposta pelas qualquer um de seus componentes possa aptidões, pelo acúmulo de riquezas e até conseguir seu status de formação cultural mesmo pela formação intelectual e moral. e de propriedades. A esfera pública, sob E apesar de seu excesso de riqueza, a socie- a ótica de Marx, contradiz o seu próprio dade burguesa não é suficientemente rica princípio de acessibilidade universal – o para resgatar a pobreza que ela cria. Assim público não é idêntico à nação, nem a so- sendo, a opinião das pessoas privadas reu- ciedade civil burguesa é idêntica à socie- nidas num público não conserva uma base dade de modo geral. para a sua unidade e não passa de uma opi- A solução de Marx era a ampliação da nião subjetiva de muitos. Habermas (2003, esfera pública com a transformação de gru- p. 145) afirma que a opinião pública tem pos que não dispusessem de propriedades em Hegel a forma de bom senso humano, e em sujeitos da esfera pública. Contudo, a está espalhada entre o povo como precon- dialética da esfera pública burguesa não se ceitos. Apesar disso, espelha, ainda que de completou do modo como havia sido pre- modo confuso, “as verdadeiras necessida- visto nas primeiras esperanças socialistas. des e corretas tendências da realidade”. A A expansão dos direitos de igualdade opinião pública chega à consciência de si política para todas as classes sociais, que mesma na assembleia dos estados, onde os ocorreu no âmbito dessa sociedade de clas- estamentos profissionais da sociedade civil ses e acarretou a ampliação da esfera públi- burguesa participam da legislação. ca, não levou fundamentalmente à utópica A esfera pública é reduzida a um meio soberania da opinião pública. Pelo contrá- de formação, e não um princípio do Ilumi- rio, a esfera pública parece perder a força nismo ou uma esfera em que a razão se reali- de seu princípio – “publicidade crítica” – à za. Nesse contexto, a publicidade serve ape- medida que se amplia enquanto esfera e, nas como instrumento de integração entre as além disso, acaba por esvaziar também o opiniões subjetivas e o Estado objetivo. setor privado. Para Habermas, o jovem Marx denuncia Isso se dá porque, no pensamento a opinião pública como falsa consciência: habermasiano, ela esconde de si mesma o seu verdadeiro a redução da esfera privada aos círculos internos de uma família stricto sensu, em grande parte caráter de máscara do interesse de classe despida de funções e enfraquecida em sua au- burguês. Isso porque a sociedade burgue- toridade – a felicidade no recanto do lar –, só na sa não possui os pressupostos sociais para aparência é que há uma perfeição da intimidade, 52

pois à medida que as pessoas privadas abando- vontade, a opinião do povo raramente ain- nam os seus papéis obrigatórios de proprietários da mantém alguma função politicamente e se recolhem ao espaço livre de obrigações do tempo de lazer, acabam caindo imediatamen- relevante. Apesar de não ser possível detec- te sob a influência de instâncias semipúblicas, tar se essa “opinião pública” foi constituída sem a proteção de um espaço familiar intrínseco por via da comunicação pública ou privada, institucionalmente garantido. O comportamento durante o tempo de lazer é a chave para a “pri- pode-se afirmar que se trata de uma ficção vacidade sob holofotes” das novas esferas, para constitucional: ela não emana diretamente a desinteriorização da interioridade declarada. do povo e não pode mais ser identificada no O que hoje se delimita como setor do tempo de lazer ante uma esfera autonomizada da profissão comportamento real do próprio público, não assume tendencialmente o espaço daquela esfe- está presa a regras do debate público ou nem ra pública literária que, outrora, era a referência precisa estar envolvida com problemas polí- da subjetividade formada na esfera íntima da fa- ticos ou endereçada a instâncias políticas. mília burguesa (HABERMAS, 2003, p. 189) Sendo assim, “opinião pública” pode O espaço social das decisões privadas assumir dois diferentes significados: 1. uma é prejudicado também por fatores obje- instância crítica normativamente exigida tivos como o poder de compra, a partici- em relação à “publicidade” no exercício do pação em grupos e, sobretudo, pelo status poder político e social; 2. uma instância re- socioeconômico. ceptora de mensagens de instituições, bens Para Habermas, perante a esfera públi- de consumo e programas na relação com a ca ampliada, os próprios debates sociais publicidade difundida de modo demonstra- são estilizados num show da mídia, no qual tivo e manipulativo. Ambas as formas co- os argumentos são pervertidos em símbolos existem na esfera pública – “publicidade” que não podem ser respondidos com argu- e publicidade –, e têm “a” opinião pública mentos, mas sim com identificações. Desse como destinatário-comum. modo, a “publicidade” – presa ao exercício Para Habermas, é preciso diferenciar do poder político e do equilíbrio entre os nitidamente as funções da “publicidade” e poderes – perde a sua função crítica em fa- da publicidade, a crítica e a manipulati- vor de uma função demonstrativa. va, cada uma delas com uma expectativa Na sociedade de massas, a relação do de comportamento: uma é voltada para a indivíduo com o Estado não é a participação opinião pública; a outra, para a opinião política, mas um posicionamento genérico pessoal e informal – orientada para esta ou com uma “indiferença plena de pretensões”. aquela direção através de determinadas No processo de formação da opinião e da medidas e acontecimentos. 53

1.4 A opinião pública na recebe, a comunidade do público torna-se sociedade de massas uma coleção abstrata de indivíduos para os quais é muito difícil responder de modo Como objeto de estudos de Psicolo- imediato ou com qualquer eficácia às men- gia Social, a “opinião pública” refere-se a sagens recebidas. atitudes convergentes de pessoas que são Heloisa Dias Bezerra, em artigo intitu- membros do mesmo grupo social. Nesse lado Atores políticos, informação e demo- contexto teórico, “público” é equiparado a cracia, afirma que “massa”, como o substrato sociopsicológi- no imaginário ocidental, a mídia comercial co de um processo de comunicação e de preenche de modo inequívoco o lugar de an- teparo entre Estado e sociedade, tal qual pos- interação entre dois ou mais indivíduos, e tulado por liberais republicanos como Arendt, “opinião” ainda é identificada com a pró- para os quais a sociedade não pode prescindir pria “atitude”. Para Childs (1967, p. 54), de mecanismos de proteção contra possíveis investidas totalitárias do poder público e dos atitude é uma tendência para agir de um governantes. modo particular, “uma tendência que se li- O problema é que a mídia comercial não mais bera cada vez que surge o estímulo adequa- consegue preencher todos os requisitos desse guardião imaginário da democracia e da socie- do. Assim como as atitudes são subjetivas, dade, pois evoluiu em direção às características as opiniões são objetivas, e tomam a forma de qualquer segmento do mercado econômico, de palavras escritas ou faladas”. com interesses e características próprios. Economicamente vigoroso e altamente compe- A opinião, assim considerada, não pre- titivo, o mercado da informação permanece cisa ser verbalizada e abrange também os errático em termos de pluralidade de fontes e hábitos expressos em concepções religio- de espaço para vozes dissonantes. (Bezerra sas, nos usos, costumes e em simples “pre- 2008, p. 416) conceitos”. O atributo de “ser público” é Para Habermas, a conexão efetuada pe- conquistado pela opinião por meio de sua los meios de comunicação de massa é sem- correlação com processos grupais. pre demonstrativa ou manipulativa e, assim Na sociedade de massas, os processos sendo, não pode haver opinião pública nesse de comunicação dos grupos estão, de modo contexto, pois essa opinião pública precisa, imediato, sob a influência dos meios de co- necessariamente, da publicidade das nego- municação de massa ou intermediados por ciações parlamentares para se informar. “líderes de opinião”. Ora, como no âmbi- A opinião pública, ao se tornar “opinião to das comunicações organizadas, muito de massa”, é arrancada do contexto funcio- menos gente expressa opiniões do que as nal das instituições políticas e passa a ser 54

considerada como produto de um proces- conhecimento direto. Walter Lippmann, so de comunicação intrínseco às massas, em seu livro Opinião Pública, afirma que, que não está preso nem ao princípio do uso para agirmos nesse ambiente, temos que público da razão nem ligado à dominação reconstruí-lo num modelo mais simples política. antes de poder manejá-lo. Assim, no nível da Para Harwood L. Childs (1967, p. 50), a vida social, a adaptação do indivíduo ao seu expressão “opinião pública” tem sido em- ambiente se dá por meio de representações pregada em muitos sentidos diferentes, de do ambiente, ou ficções (LIPPMANN, 2008, tal forma, que alguns estudiosos ficaram em p. 28). E essas ficções determinam em dúvida se seria aconselhável a sua utiliza- grande parte o comportamento político dos ção. Muitas tentativas foram feitas para de- seres humanos. finir a expressão num sentido que pudesse O único sentimento que alguém pode ser aceito por todos. ter acerca de um evento que não vivenciou Childs salienta que a expressão “opinião é o sentimento provocado por sua imagem pública” é uma expressão geral e bastante mental daquele evento. Em uma vida pú- abrangente que só adquire um significado blica, várias imagens simbólicas competem no sentido de poder ser estudada quando se para governar os comportamentos. Cabe refere a um público específico e a opiniões lembrar que, para Lippmann, o compor- específicas sobre assuntos definidos. A con- tamento não é um ato prático, mas sim o sequência imediata disso é a proposição de que chamamos aproximadamente de pen- várias definições, nenhuma abarcando to- samento e emoção. Sendo assim, dos os aspectos do fenômeno e todas trazen- o analista da opinião pública precisa começar reconhecendo a relação triangular entre a cena do em seu cerne algum tipo de limitação. da ação, a imagem humana daquela cena e a Algumas restringem a formação da opinião resposta humana àquela imagem atuando so- pública ao universo racional, outras ao seu bre a cena da ação. É como uma peça teatral sugerida aos atores com base em suas próprias sujeito, outras ainda quanto à relevância dos experiências, em que a trama é transacionada na assuntos públicos, ignorando aqueles que vida real dos atores, e não meramente com base podem adquirir importância. Há definições nas partes da cena. (LIPPMANN, 2008, p. 31) que operam um reducionismo ao associar a Portanto, não podemos considerar todo opinião pública a reações e afirmações defi- o mundo como um dado certo de realidade, nidas em uma situação de pesquisa. pois esse mundo está politicamente fora de O mundo é excessivamente grande e por nosso alcance, fora de nossa visão e com- demais complexo para um indivíduo obter preensão e deve ser explorado, relatado 55

e imaginado. O homem, uma criatura da de classificação dos objetos, das ações e evolução que pode abarcar somente uma das normas de julgamento. porção suficiente da realidade que admi- Os grupos criam assim representações nistra para sua sobrevivência, gradualmen- discursivas que, essencialmente, têm três te cria para si próprio uma imagem crível funções sociais intimamente ligadas umas em sua cabeça do mundo que está além do às outras: a organização e normatização seu alcance. coletiva dos sistemas de valores; a exibi- Para Lippmann (2008, p. 40), podemos ção das características comportamentais chamar rudemente de opinião pública os do grupo (rituais e lugares-comuns), pois, aspectos do mundo exterior que têm a ver para construir sua identidade, os membros com o comportamento de outros seres hu- do grupo precisam tornar visível aquilo que manos, “na medida em que o comporta- compartilham e que os diferencia de outros mento cruza com o nosso, que é dependen- grupos; a encarnação dos valores dominan- te do nosso, ou que nos é interessante”. tes do grupo em figuras (indivíduo, institui- As opiniões públicas seriam as imagens ção, objeto simbólico) que desempenham na cabeça destes seres humanos, a imagem o papel de representar a identidade coleti- de si próprios, dos outros, de suas neces- va. Segundo Charaudeau, o espaço público sidades, propósitos e relacionamentos. Já não pode ser universal, uma vez que de- aquelas imagens feitas por grupos de pes- pende das especificidades culturais de cada soas, ou por indivíduos agindo em nome grupo inserido na sociedade. dos grupos, é Opinião Pública com letras Para responder à questão da natureza maiúsculas. do espaço público, Charaudeau refere-se à Há variáveis fundamentais para a for- noção de “discurso circulante”: mação das atitudes e opiniões: fatores lin- O discurso circulante é uma soma empírica de guísticos, fatores sociológicos e fatores enunciados com visada definicional sobre o que psicológicos. são os seres, as ações, os acontecimentos, suas características, seus comportamentos e os julga- Para Patrick Charaudeau (2006, p. 116), mentos a eles ligados. Esses enunciados tomam a resposta encontra-se no fenômeno de uma forma discursiva que, por vezes, se fixa em constituição, de manutenção e de desapa- fragmentos textuais (provérbios, ditados, máxi- mas e frases feitas), por vezes varia em maneiras recimento das línguas, quer sejam patoás, de falar com fraseologia variável que se consti- dialetos ou línguas nacionais. Afinal, todo tuem os socioletos. É através desses enunciados grupo social, para reconhecer-se como tal, que os membros de uma comunidade se reco- nhecem. (CHARAUDEAU, 2006, p. 118) precisa regular suas trocas segundo regras 56

O discurso circulante tem ao menos necessário ou do verossímil”. Ela depende, com três funções: a instituição do poder/contra- efeito, de um cálculo de probabilidade, que leva o sujeito a tomar uma atitude intelectiva de poder diz respeito ao discurso do poder po- aceitação ou não da verossimilhança. A opinião lítico – de tudo o que o encarna institucio- assemelha-se à crença, pelo movimento de ser a nalmente e particularmente do que aparece favor ou contra, mas dela se distingue pelo cál- culo de probabilidade que não existe na crença sob a figura do Estado – e dos discursos de e que faz com que a opinião resulte de um jul- contestação da ordem imposta – cuja força gamento hipotético a respeito de uma posição depende ao mesmo tempo da organização favorável/desfavorável e não sobre um ato de adesão/rejeição. Por outro lado, a opinião não do grupo que os produz; a regulação do co- deve ser confundida com o conhecimento. Este tidiano social – os discursos que ritualizam é independente do sujeito que sabe; a opinião, os hábitos comportamentais (alimentares, ao contrário, revela o ponto de vista do sujeito a respeito de um saber. A opinião não enuncia de transportes, de trabalho, de lazer etc.) uma verdade sobre o mundo, ela remete ao su- e os códigos linguageiros (de polidez, de jeito. (CHARAUDEAU, 2006, pp. 121-122) honra, de acolhimento) são determinantes para o comportamento do corpo social; a Assim, a opinião é uma forma de “jul- dramatização – são as histórias, os relatos gamento reflexivo” que corresponde a um ficcionais, mitos e outros discursos que re- tipo de atividade linguageira que procede gistram o destino humano. sobre o fato como uma avaliação intelec- Tais funções se entrecruzam de manei- tiva. Trata-se de um sistema de avaliação ra permanente, “construindo um espaço que se refere a um modelo de comporta- público que não pode ser considerado um mento social pelo viés de um sistema de lugar homogêneo, posto que é atravessado normas, o qual é sempre relativo a um con- por movimentos e discursos de socializa- texto sociocultural. ção e de publicização”. (CHARAUDEAU, Os fatores sociológicos a serem conside- 2006, p. 119). O espaço público é, então, rados na formação da opinião estão ligados concebido como a conjunção entre as prá- ao conceito de status, seja ele relativo aos ticas sociais e as representações, numa in- membros de um grupo (líderes e liderados), teração dialética que constrói algo plural e seja relativo ao grupo dentro de uma socie- em movimento. E é nesse espaço público dade como um todo (grupos influentes so- que são formadas as opiniões. cialmente). Os fatores sociológicos devem ser analisados sob a ótica da economia, do A opinião é o resultado de uma atividade que consiste em “reunir elementos heterogêneos e ambiente no qual o grupo está inserido e da associá-los ou compô-los segundo a lógica do constituição ideológica das classes sociais. 57

Os fatores psicológicos, resgatando as de estereótipos. Conta-nos sobre o mundo an- teorias de Freud, estão ligados ao mecanis- tes de nós o vermos. Imaginamos a maior parte das coisas antes de as experimentarmos. E estas mo fundamental para a interpretação das preconcepções, a menos que a educação tenha relações sociais: a identificação – seja ela nos tornado mais agudamente conscientes, go- introjeção (assimilação das características vernam profundamente todo o processo de per- cepção. (LIPPMANN, 2008, p. 91) do outro), seja projeção (atribuição ao outro de suas próprias características), seja rejei- Além da economia do esforço, há ou- ção (negação das características do outro). tra razão para frequentemente sustentarmos A identidade do grupo é construída sobre nossos estereótipos quando perseguimos os alicerces da identificação e é por meio uma visão mais desinteressada: os sistemas dela que um grupo compõe um conjunto de estereótipos podem ser o cerne de nossa estruturado de ideias, atitudes ou crenças tradição pessoal e as defesas de nossa posi- que têm por função afirmar o grupo peran- ção na sociedade. te os demais e perante si próprio. Trata-se Cada um cria para si uma imagem do da elaboração de um sistema simbólico mundo mais ou menos ordenada e consis- dependente das representações coletivas. tente, capaz de ajustar os hábitos, os gos- Lippmann sugere que a opinião pública é tos, as capacidades, os confortos e as espe- primariamente uma versão moralizada e ranças. Dentro dessa imagem de mundo, as codificada dos fatos. pessoas e as coisas têm seus lugares bem Na vida moderna, apressada e com múl- conhecidos e fazem certas coisas previsí- tiplas tarefas, não há nem tempo nem opor- veis. O indivíduo assim se sente confortá- tunidade para conhecimento íntimo. Gra- vel, enquadra-se no mundo e torna-se parte ças a uniformidades práticas no ambiente, dele. É por meio desse padrão de estereóti- numa observação casual percebemos sinais pos que podemos reconhecer o que nos é reconhecíveis do ambiente. Empreendendo familiar, normal e seguro, uma economia na captação do mundo, co- Contudo esse padrão nunca é neutro. locamos esses sinais no lugar das ideias, e Na verdade, antes de tudo, é a fortaleza essas ideias é que irão preencher o nosso de nossa tradição. Trata-se de uma proje- repertório de imagens. ção sobre o mundo de nosso sentido, nosso Observamos um traço que marca um tipo muito próprio valor, nossa própria posição e nos- conhecido, e o resto da imagem preenchemos sos próprios direitos. Nosso mundo estere- com os estereótipos que carregamos em nossas cabeças. As mais sutis de todas as influências otipado não é necessariamente o mundo são aquelas que criam e mantêm o repertório desejado idealmente, trata-se simplesmente 58

de um mundo que se comporta de acordo Do ponto de vista histórico, o estereo- com nossas expectativas – uma combina- tipo pode permanecer por várias gerações. ção do que há no mundo e do que lá espe- Contudo, para Lippmann, os homens capa- ramos encontrar. zes de mudá-los são os artistas pioneiros e A moralidade e o bom gosto padroni- críticos – aqueles que conseguem projetar zam e enfatizam alguns dos preconceitos o que estava latente dentro das cabeças de subjacentes. Enquanto o indivíduo se ajusta um grande número de pessoas. Esses ar- aos seus códigos morais, ele ajusta os fatos tistas estabelecem uma nova forma que é que vê a esses códigos. Para Lippmann, o então copiada interminavelmente até que código moral assume uma visão particular isso, também, torne-se um estereótipo de dos casos. Sob o termo “códigos morais” percepção. Lippmann inclui todos os tipos: o pessoal, Em 1922, Walter Lippmann (2008, p. o familiar, o econômico, o profissional, o 275) já afirmava que era universalmen- legal, o patriótico, o internacional. te admitido que a imprensa é o principal meio de contato com o ambiente invisível. Uma vez que meu sistema moral se apoia em Há muito tempo se supõe que a imprensa minha versão aceita dos fatos, aquele que nega tanto meus julgamentos morais ou minha ver- deveria fazer espontaneamente por nós o são dos fatos é para mim perverso, estranho e que a democracia primitiva imaginava que perigoso. cada um de nós faria espontaneamente para ... deste modo, onde duas facções veem vivida- mente cada um o seu próprio aspecto, e tramam si próprio. suas próprias explicações do que veem, é quase A imprensa, contudo, é demasiada- impossível para eles creditarem ao outro hones- mente frágil para carregar todo o peso da tidade. Se o padrão encaixa a suas experiências num ponto crucial, não vê mais isso como uma soberania popular e para fornecer esponta- interpretação. Vê isso como “realidade”. Pode neamente a verdade do modo que os teóri- não parecer realidade, exceto de que isso culmi- cos da democracia gostariam. Afinal, num na na conclusão do que se ajusta à experiência real. (LIPPMANN, 2008, p. 121) mundo marcado pela divisão do trabalho e distribuição da autoridade, a natureza das O que é aceito como verdade, como notícias é limitada diante da complexida- realista, como bom, como mau, como de- de da sociedade. Nesse contexto, os jornais sejável, não é eternamente fixado. São con- não dão conta de traduzir toda a vida públi- ceitos fixados por estereótipos, adquiridos ca da humanidade para que todo homem em experiências precoces, e carregados aos adulto alcance ter uma opinião em todo julgamentos posteriores. debate, nem é possível também supor que 59

haja opiniões universais em toda a popu- ões individuais, ignorando que as relações lação. A imprensa veio a ser considerada entre opiniões são conflitos de força. Isto como um órgão de democracia direta en- implica a crença desprovida de fundamen- carregado, numa escala muito mais ampla, to de que todas as opiniões se equivalem, de promover, referendar e recordar as a ideia de que existe uma opinião pública grandes questões do cotidiano. “O Tribu- unânime capaz de legitimar as relações de nal da Opinião Pública, aberto dia e noi- força que a constituíram. Sob a forma de te, deve baixar uma lei para tudo o tempo porcentagens, a opinião pública é todo. Isso não é realizável”. (LIPPMANN, um artefato, puro e simples, cuja função é dis- 2008, pp. 307-308) simular que o estado da opinião num certo mo- Cabe notar que nas democracias de mas- mento é um sistema de forças, de tensões, e que não existe nada mais inadequado para repre- sas, nem todos costumam se manifestar em sentar o estado de opinião do que uma porcen- relação a assuntos públicos – alguns não se tagem. (BOURDIEU, 1983, p. 140) interessam, outros talvez nem tenham conhe- cimento das discussões. Assim sendo, a opi- Partindo dessas premissas, Bourdieu nião de alguns grupos, apesar de se manifes- (1983, p. 151) afirma que não existe opinião tarem publicamente, pode muitas vezes não pública “no sentido da definição social im- passar de manifestação isolada de parcelas plicitamente admitida pelos que fazem son- muito específicas da sociedade e não expres- dagens de opinião ou pelos que utilizam os sar o pensamento da maioria dos cidadãos. resultados das sondagens de opinião”. Pierre Bourdieu, apontando justamen- Grande parte dos problemas concei- te para esse fato, afirma que os temas das tuais referentes à opinião pública advém pesquisas de opinião não são a expressão do fato de identificar o fenômeno com o do real interesse de todos os entrevista- resultado das pesquisas. Provavelmente, dos; na verdade, os assuntos abordados isso acontece porque essa é a forma mais são meras imposições dos pesquisadores. óbvia, mais concreta e mais divulgada na Sua argumentação lança mão também da era contemporânea. A grande implicação ideia amplamente disseminada pelo sen- lógica dessa identificação é que nos lo- so comum e por parte de alguns analistas cais onde não são realizadas pesquisas de que a opinião pública está intimamente não há opinião pública. Outros críticos associada ao resultado das pesquisas. Para das pesquisas não aceitam que se igua- Bourdieu, as pesquisas tratam a opinião lem todas as opiniões individuais, pois pública como uma simples soma de opini- fazê-lo significa ignorar a pluralidade que 60

envolve o conceito de opinião pública. be da mídia, a análise de um formador de Afinal, não existe uma, mas sim várias opinião e muitos outros fatores. maneiras de se expressar a opinião públi- Não existe, portanto, apenas uma, mas ca, por meio de grupos organizados, ma- várias maneiras de se identificar os fenôme- nifestações mais ou menos espontâneas, nos de opinião pública: através de grupos eleições, comícios, discussões em reu- organizados, das manifestações espontâne- niões sociais, os meios de comunicação as, das pesquisas, das eleições etc. O sujei- etc. As pesquisas são, na verdade, apenas to da opinião pública é composto por um mais uma forma de expressão entre tantas grupo significativo de pessoas que tenham outras, o instrumento capaz de manifes- algumas características em comum, não tar os aspectos latentes do conjunto dos importando a classe social, se pertencem à pensamentos individuais e, portanto, da elite ou à massa, se são informadas ou for- própria sociedade. madoras da opinião, se apelam para o emo- Para Figueiredo e Cervellini, diretor do cional ou para o racional na construção de CEPAC e gerente do IBOPE, respectivamen- seus julgamentos. te, a opinião pública está fundada na dis- Figueiredo e Cervellini (1996, p. 23-24) cussão coletiva, cujo debate não pressupõe entendem opinião pública como “a expres- uma racionalidade a priori. Os autores res- são de modos de pensar de determinados saltam que grupos sociais ou da sociedade como um todo a respeito de interesses comuns em numa sociedade de massas as discussões podem se dar de maneiras difusas e muito complexas, um dado momento”. sem que fiquem explicitadas. Até mesmo o pro- Ainda que não se tenha conseguido cesso de transmissão de comportamento, via formar um modelo geral para o estudo educação formal e informal, pode ser encarado como uma discussão coletiva. (FIGUEIREDO; epistemológico da opinião pública, alguns CERVELLINI, 1995, p.178). estudiosos como V. O. Key Jr. (Public Opi- nion and American Democracy, New York, Assim, para se conceber a opinião pú- Alfred A. Knopf: 1961) conseguiram esta- blica deve-se levar em conta, antes de tudo, belecer alguns níveis de abordagem muito a sua pluralidade. O indivíduo, por ter di- úteis para a descrição e análise dos resul- ficuldade em formar uma opinião isolada- tados das pesquisas quantitativas. São eles: mente, leva sempre em conta o que lhe en- a distribuição – forma como as opiniões sinaram os pais, o que pensam as pessoas individuais estão agrupadas que mostra o de suas relações, as informações que rece- nível do conflito (do consenso absoluto a 61

uma situação de total dissenso); a direção indivíduo, um grupo ou uma classe social pela – posicionamento favorável ou não que in- ideia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o dica o conteúdo da escolha; a intensidade segundo... é a substituição do direito de cada – grau de adesão de cada opinião que dá um e de todos de opinar em público pelo poder indicação da força de reação; a coerência de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de opi- ou consistência interna dos fenômenos – nião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalis- que indica a estabilidade das opiniões; e a tas; o terceiro (...) decorre de uma mudança na latência – “hibernação” ou “ativação” dos relação entre os vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e di- fenômenos que expressa o nível de reação. gital e da formação de oligopólios midiáticos Por tudo o que foi exposto até ago- globalizados (...). Esse terceiro deslocamento se ra, pode-se afirmar que a opinião pública refere à forma de ocupação do espaço da opi- nião pública pelos profissionais dos meios de origina-se de um debate público, implícito comunicação. (Chauí, 2006, pp.11-13) ou explícito. Trata-se de um fenômeno que propicia o afloramento de manifestações. Essa ocupação do espaço da opinião Marilena Chauí postula que é possível pública pela mídia – uma ficcionalidade perceber três deslocamentos por que passa- sobre a qual se constroem e se exercem as ram a ideia e a prática da opinião pública. práticas da comunicação de massa – tem O primeiro efeitos estudados por diversas teorias ao

é a substituição da ideia de uso público da ra- longo do século XX. Este é o tema a ser tra- zão para exprimir interesses e direitos de um tado a seguir. 62 Capítulo 2 As mídias como atores sociais 63

Os mídia constituem o melhor sistema de informação que pode conceber. Uma trama cerrada que cobre a superfície do globo, capta e transmite imediatamente o fato. Pesquisadores e jornalistas mergulham nos problemas que surgem no seio das sociedades. A todo instante, temos a possibilidade de ver/saber o que está acontecendo. Podemos ter, diariamente, conhecimento da história que se está realizando. O planeta Terra tornou-se a laranja azul que podemos contem- plar a todo o momento. (...) E, no entanto, este planeta aparece-nos envolto em nuvens. Sofremos simultaneamente de subinformação e superinformação, de escassez e excesso. MORIN (1986, p. 31)

2.1 Os efeitos das mídias mentos de Teoria e Pesquisa da Comuni- cação e dos Media, serão apresentadas as Os efeitos produzidos pelas mídias nos diferentes teorias dos efeitos que já foram níveis individual, social, cultural e histórico elaboradas. encontram-se constantemente na pauta de vários pesquisadores. Para Maffesoli:

A comunicação é a cola do mundo pós-moder- 2.1.1 Efeitos em curto prazo no. Dito de outra forma, a comunicação é uma O primeiro “modelo” para explicar os forma de reencarnação desse velho simbolismo, simbolismo arcaico, pelo qual percebemos que efeitos dos meios de comunicação em curto não podemos nos compreender individualmen- prazo ficou conhecido por Teoria das Balas te, mas que só podemos existir e compreender- Mágicas (que atingem todos da mesma ma- mo-nos na relação com o outro. Nesse sentido, a idéia de individualismo não faz muito sentido, neira) ou da Agulha Hipodérmica (o que é pois cada um está ligado a outro pela mediação injetado em diferentes pessoas tende a ter da comunicação. O importante é o primum re- os mesmos efeitos). Criado pela influência lationis, ou seja, o princípio de relação que me une ao outro. (Maffesoli, 2003, p.13) do positivismo e da psicologia behaviorista logo após estudos sobre a propaganda de- Seguindo os apontamentos de Jorge Pe- senvolvida durante a Primeira Guerra Mun- dro Sousa, no Capítulo Teorias dos efeitos dial, esse modelo trazia a ideia de que os da comunicação social de seu livro Ele- meios de comunicação são capazes de pro- 64

vocar mudanças de opinião e de comporta- voto dos cidadãos de uma pequena cida- mento nas pessoas. A crença na influência de americana, a pesquisa de Lazarsfeld, direta da comunicação sobre as pessoas Berelson e Gaudet conduziu à constata- deve-se, segundo conceituação da época, à ção de que os meios de comunicação não constituição da sociedade como uma aglo- têm um poder ilimitado sobre as pessoas. meração de indivíduos numa massa unifor- Para esses autores, há um mecanismo de- me e passiva. nominado exposição seletiva: as pessoas, Com a emissão radiofônica da Guerra de antemão, tendem a ler, ver ou escutar dos Mundos abalou-se, pela primeira vez, aquilo com que já estão de acordo e dar a crença behaviorista do estímulo-resposta ouvidos às pessoas com quem já concor- aplicada aos efeitos da comunicação social: dam – um mecanismo de defesa contra a os indivíduos, afinal, não reagem todos da persuasão. mesma maneira às mensagens difundidas Por essa pesquisa, há também que se pela mídia – pessoas com profundas cren- considerar a influência de determinados ças religiosas, menor capacidade crítica, in- agentes mediadores entre as mídias e as seguras e sem autoconfiança assustaram-se pessoas: os líderes de opinião, cuja ação se com a transmissão mais do que as outras. exerce no nível da comunicação interpes- Em artigo intitulado A comunicação sem soal, influenciando as pessoas à sua volta fim (teoria pós-moderna da comunicação), e promovendo a circulação da informa- Michel Maffesoli assegura que ção que recebem no seu contexto social a emissão não pode controlar efetivamente a imediato. recepção. A instrumentalização da informa- Mediante a constatação da experiência ção aconteceria se essa informação fosse total, de um patamar mediador entre o público global, capaz de dar nova substância ao velho fantasma do universalismo. Ora, na prática, a in- em geral e os meios de comunicação so- formação só consegue unir microgrupos, micro- cial (Two-Step), percebeu-se que os meios cosmos, universos segmentados. (Maffesoli, de comunicação não são os únicos agentes 2003, p.15) que influenciam as decisões das pessoas. Outro estudo científico, em 1944, de Dez anos mais tarde, em 1954, Berel- Lazarsfeld, Berelson e Gaudet, deu origem son, Lazarsfeld e McPhee indicaram outro às teorias do Two-Step e do Multi-Step Flow mecanismo de resistência à persuasão, a of Communication. chamada percepção seletiva – as pessoas Destinada a averiguar a influência da são mais receptivas às posições que refor- imprensa e do rádio sobre a decisão de çam e ratificam as suas próprias ideias. 65

Em 1955, outro estudo dirigido por Katz podem ser assimilados em longo prazo, se e Lazarsfeld identificou outro fenômeno: a a memória seletiva os tiver fixado – a in- memorização seletiva – as pessoas não só fluência persuasiva, nesses casos, pode per- se expõem aos conteúdos dos meios de ma- manecer latente e os receptores tendem a neira seletiva como também tendem a me- esquecer da fonte e só se lembrarem do que morizar a informação que mais se adequa foi dito. às suas ideias. Hovland, Lumsdaine e Sheffield, além Em 1963, as pesquisas de Wilbur disso, apontaram para o fato de que o per- Schramm apontaram para o fato de que os fil psicológico e a educação podem tornar próprios líderes de opinião recebem infor- as pessoas mais ou menos resistentes à mações colocadas nas mídias por outros persuasão. líderes de opinião. Foi, então, introduzi- Pierre Bourdieu, no livro A Distinção: do o conceito de “fluxo de comunicação Crítica Social do Julgamento – escrito origi- em múltiplas etapas” (Multi-Step), que tem nalmente em 1979 –, investigando a aqui- como foco a complexa teia de relações so- sição do capital simbólico, também ressal- ciais que permeia os meios de comunica- tou os diferentes modos hierarquizados de ção social. aquisição da cultura ligados às classes de Alinhados às conclusões de Lazars- indivíduos. feld, Berelson e Gaudet, os pesquisadores Discorrendo sobre “A economia das Hovland, Lumsdaine e Sheffield, em 1949, práticas”, Bourdieu tratou do espaço so- destacaram o mecanismo da atenção seleti- cial e de suas transformações: cada grupo va: as pessoas tendem a aceitar e consumir social, em função das condições que ca- as mensagens que vão ao encontro dos seus racterizam sua posição na estrutura social, interesses e do seu sistema de crenças e va- constitui seu próprio sistema específico de lores e, por sua vez, rejeitam ou deturpam disposições para a ação – o habitus –, com- as mensagens que venham a colidir com posto por esquemas de ação e pensamento esse sistema. construídos pelo acúmulo histórico de ex- Hovland, Lumsdaine e Sheffield igual- periências de êxito e de fracasso. mente enunciaram a lei do emissor em co- Segundo Bourdieu (2007, p.164), “pelo municação: a mensagem tende a ser mais fato de que condições diferentes de exis- ou menos persuasiva conforme a credibi- tência produzem habitus diferentes”, as lidade do emissor. Contudo, os argumen- práticas engendradas pelos diferentes ha- tos de uma fonte pouco digna de crédito bitus apresentam-se como configurações 66

sistemáticas e funcionam como estilos de índice elevado de não-resposta. Observa-se vida. Estrutura estruturante, no dizer do au- o silêncio daqueles que se julgam incom- tor, que organiza as práticas e a percepção petentes estatutariamente para exercer seus das práticas, o habitus é também estrutura direitos políticos. Esses admitem que a po- estruturada que organiza a percepção do lítica não lhes diz respeito e que, por serem mundo social e, por consequência, funcio- desprovidos dos meios reais de exercê-la, na como uma força conservadora que man- abdicam dos direitos formais que lhes são tém a divisão em classes sociais. reconhecidos. Condenam-se, então, a de- Nesse contexto, os membros das dife- legar a sua voz àqueles que julgam os mais rentes classes sociais distinguem-se não competentes: as mulheres em favor dos tanto pelo grau segundo o qual eles “reco- homens, os menos instruídos em favor dos nhecem” a cultura, mas pelo grau segun- mais instruídos, aqueles “que não sabem do o qual a “conhecem”. A diferença entre falar” em favor daqueles “que falam bem”. o conhecimento e o reconhecimento é o Anos antes das pesquisas de Pierre princípio da “boa vontade cultural” que as- Bourdieu, em 1973, a socióloga alemã Eli- sume formas diferentes segundo o grau de sabeth Noelle-Neumann já havia apontado familiaridade com a cultura tida como le- para a existência de uma Espiral do Silên- gítima. Bourdieu acredita que um dos mais cio. O argumento central da Teoria da Es- seguros testemunhos de reconhecimento piral do Silêncio é que as pessoas temem o da legitimidade dessa boa vontade cultural isolamento e vivem buscando a integração “reside na propensão dos mais desprovidos social. Por essa razão, os indivíduos perma- em dissimular sua ignorância ou indife- necem atentos às opiniões e aos comporta- rença” (2007, p. 298) e que, assim sendo, mentos majoritários e procuram expressar- há uma profunda submissão – em matéria se dentro dos parâmetros da maioria. de cultura e de linguagem – aos valores A formação das opiniões majoritárias dominantes. seria, então, o resultado das relações entre Essa dominação cultural tem fortes os valores sociais, os meios de comunica- consequências na esfera política: os agen- ção de massa e a percepção que cada in- tes “mais legítimos” culturalmente são tidos divíduo tem de sua própria opinião ao ser como os mais competentes para opinar so- confrontada com o que outros pensam. bre as questões que interessam à sociedade Segundo Noelle-Neumann, as pesso- – dentre os operários, na pesquisa de cam- as se definem em relação às suas opiniões po efetuada por Bourdieu, verificou-se um e atitudes estáticas, por acordo e adesão 67

ou por desacordo e afastamento. É o que nião se torna pública. Portanto, pode então vimos como padrão de estereótipos em existir uma maioria silenciosa que passe Lippmann. por minoria devido à ação dos meios de Mas como se daria, então, a mudança comunicação. Sob este prisma, o conceito de um estereótipo de percepção? de opinião pública como opinião domi- A socióloga acredita que, se um indiví- nante ou opinião consensual é meramente duo pode perceber que a mudança está ali- ficcional. nhada a suas opiniões pessoais e se houver A Teoria da Espiral do Silêncio é an- receptividade pública para a expressão des- corada na estruturação das percepções e sas opiniões, ele não hesitará em expô-las. opiniões em torno de pontos de vista do- Contudo, se a mudança não corresponder minantes ou que parecem dominantes. O às suas crenças ou se não houver recepti- indivíduo se impõe um autosilenciamento vidade pública para a exposição das suas por julgar-se minoria. opiniões, o indivíduo tende a silenciar-se. Em 1978, Niklas Luhmann retomou al- Para Noelle-Neumann (1977 apud SOUSA, gumas ideias de Noelle-Neumann e apre- 2006, p. 508), o resultado é um processo sentou a Teoria da Tematização: a opinião em espiral que leva os indivíduos a perce- pública não é inteiramente livre, pois sua ber as mudanças de opinião e a segui-las manifestação é dependente da valorização até que uma opinião se estabeleça como a que os meios de comunicação social dão atitude prevalecente. Há uma tendência a aos temas políticos, segundo critérios do rejeitar ou evitar outras opiniões, à exceção que é notícia. de poucos que persistem em sua opinião. O Lippmann nos diz que todas as notícias termo espiral do silêncio foi cunhado para envolvem informação, descrever este mecanismo psicológico. que são no melhor dos casos espasmodicamen- Na teoria de Noelle-Neumann, os meios te registradas. As informações podem estar es- de comunicação tendem a destinar mais es- condidas porque ninguém pensa que o registro é importante, porque pensa que é um procedi- paço às opiniões que aparentemente são mento burocrático, ou porque ninguém ainda dominantes, reforçando-as e contribuindo inventou um sistema objetivo de medição. En- tão as notícias nestes assuntos estão compelidas para “calar” as minorias. a serem discutíveis, quando não são totalmente Corriqueiramente, confunde-se opinião negligenciadas. Os eventos que não são pontu- pública com o conjunto das opiniões ex- ados são reportados ou como assunto pessoal e opiniões convencionais, ou então eles não são pressas pelos meios da comunicação social notícias. Não tomam a forma até que alguém – posto que é por meio deles que a opi- proteste, investigue, ou alguém publicamente, 68

no sentido etimológico da palavra, faça uma Uma outra teoria alinhada à tematiza- polêmica deles. (Lippmann, 2008, p. 293) ção dos meios de comunicação foi apre- sentada por McCombs e Shaw, em 1972. Para os teóricos da tematização, opi- A Teoria do Agenda-Setting, ou do Agen- nião pública é aquilo que se diz nas mídias damento – elaborada a partir do estudo da sobre os grandes temas políticos. Como a campanha eleitoral para a presidência dos maior parte das pessoas não tem acesso fá- Estados Unidos, em 1968 – destaca que os cil e regular à comunicação social, é pos- meios de comunicação têm a capacidade sível que passe por opinião pública unica- de agendar temas que são objeto de de- mente a opinião publicada, que pode, de bate público em cada momento. Quanto fato, não corresponder às correntes de opi- maior é a ênfase dos media sobre um tema nião pública. e quanto mais continuada é a abordagem Luhmann observou que, na complexa desse tema, maior é a importância que o sociedade atual, os diversos grupos sociais público lhe atribui na sua agenda. tendem a perseguir interesses muito dife- Em 1971, Lazarsfeld, Berelson e McPhee rentes – algumas vezes, até divergentes –, já haviam constatado que o grau de motiva- o que torna difícil ou impossível, por meio ção e de interesse de uma pessoa em rela- de uma opinião pública, a obtenção de ção às notícias pode variar de acordo com o um consenso que resulte do debate livre grau de exposição a um tema. Um ano de- e racional dos temas de interesse público. pois, McCombs concluiu que a influência Logo, a opinião pública só pode comportar dos meios de comunicação social é pouco uma seleção contingente de temas que é, relevante nos casos em que ocorre a media- de certo modo, orientada para a resolução ção da comunicação interpessoal por meio de problemas pontuais. de debates públicos amplos e intensos. Rositi, em 1982, sustentou que a ori- Cabe também ressaltar que em certas gem da tematização se ancora nos jornais ocasiões a agenda estabelecida pelos meios de qualidade – jornais de referência ou de de comunicação de massas é diferente da elite (como o Estado de S. Paulo, O Globo agenda do público. E, assim sendo, pode e a Folha de S. Paulo, no Brasil)–, passando, acontecer o movimento inverso: a reação depois, para os outros meios de comunica- pública a um determinado assunto pode fi- ção, que não são capazes, pelo distancia- xar a agenda dos meios. mento do poder político, de iniciar por si Há casos também em que os meios se próprios um processo de tematização. agendam uns aos outros. Um exemplo claro 69

disso ocorreu com a publicação, em 27 de Mesmo no jornal Le Monde, talvez o mais sério maio de 1992, pela revista Veja, da entre- e intelectualizado da imprensa francesa, a se- ção mais lida é a dos necrológios. Por quê? No vista exclusiva de Pedro Collor de Mello – fundo, por uma razão simples: estar em dia com irmão do então presidente Fernando Collor o fluxo da vida. (Maffesoli, 2003, pp.17-18) de Mello. As denúncias nas páginas de Veja de um esquema de corrupção política en- 2.1.2 Efeitos em longo prazo volvendo Paulo César Farias, tesoureiro de Como um dos principais efeitos em lon- Fernando Collor, tomaram conta dos prin- go prazo da comunicação social, no foco cipais veículos de comunicação do Brasil – de vários pesquisadores, encontra-se o pa- impressos e eletrônicos –, até desencadear pel socializador das mídias. Afinal, com a o processo de impeachment do presidente. expansão da cultura de massa, os meios Dentre os fatores que podem contribuir competem com a família, a escola, as re- para o sucesso do agendamento temos: a lações informais, os partidos políticos, o acumulação – quando mais e mais pessoas governo etc. como agentes de socialização. são expostas, sucessivamente, às mesmas Isto significa que os meios de comunicação mensagens; consonância – quando as men- promovem a aprendizagem de normas, va- sagens transmitidas pelas diferentes mídias lores e expectativas de comportamento, em são semelhantes. função do contexto das situações e do pa- Uma das críticas mais bem fundamen- pel desempenhado pelas pessoas em socie- tadas à teoria do agenda-setting foi elabora- dade. E esses efeitos são abordados pelas da por Neuman, Just e Crigler, em 1992. Os teorias da socialização pelas mídias. autores acreditam que existe uma relevante Embora não exista uma teoria específi- dissonância entre a agenda midiática e a ca sobre a ação socializadora dos meios de agenda pública, uma vez que as mídias ra- comunicação social, esta dimensão é trata- ramente agendam temas importantes para a da em todas as teorias dos efeitos em longo vida das pessoas. prazo e nas teorias que conferem às mídias Sobre o agenda-setting, Maffesoli co- um papel sustentador do status quo. menta que Existem três grandes linhas de investi- os programas de televisão fornecem (agendam) gação sobre o papel dos meios de comuni- os assuntos da manhã seguinte nos pátios das escolas, nos escritórios e por toda parte. Cada cação nos processos de socialização: um poderá dizer o que bem entender, fazer co- mentários contra ou a favor. Apenas os assuntos 1. Meios de comunicação como institui- estão sugeridos. No dia seguinte, serão outros. ções-agentes de socialização – interação 70

das mídias com outras instituições sociais, conteúdos às suas estruturas cognitivas. O modificando os canais e as formas de co- consumo dos meios de comunicação, en- municação entre as instituições e o meio tão, favoreceria o aumento do fosso cultural social, entre as pessoas e os grupos em so- que se verifica entre os detentores de maior ciedade. A família e a escola, por exemplo, escolaridade e os de menor escolaridade. tiveram de reformular as suas práticas co- Segundo a Teoria do Knowledge Gap, municacionais devido à ação midiática. os meios de comunicação têm efeitos pode- rosos em longo prazo no que diz respeito à 2. Meios de comunicação como agentes distribuição e apreensão social de conheci- de socialização política – os meios de co- mentos. Outra questão central dessa teoria municação podem apresentar conteúdos é a relação entre a manutenção do poder e políticos ou não políticos que venham a a distribuição social do conhecimento. To- gerar atitudes e comportamentos com con- mando como premissa que o controle do sequências políticas. conhecimento é essencial para assegurar a 3. Acontecimentos críticos e processos de manutenção do poder, o sistema de distri- socialização política – os meios de comu- buição do conhecimento depende do grau nicação podem atuar como referentes e de- de pluralismo da sociedade. As diferentes finidores de novas formas de pensar e atuar visões da realidade protagonizadas pelos em situações de crise e ruptura. diferentes grupos sociais numa sociedade Nos anos 1970, por exemplo, surgiu a plural são, porém, um permanente foco de Teoria do Knowledge Gap (ou Teoria das tensões e conflitos.

Diferenças de Conhecimento, do Diferen- Os problemas, em termos de distribuição de cial de Conhecimento ou ainda do Distan- conhecimentos, decorrem do fato de muitos ciamento Social), proposta por Tichenor, dos conflitos que existem nas sociedades plu- rais serem artificialmente criados por determi- Donohue e Olien. Sua hipótese central nados grupos de interesse capazes de o fazer é de que, em longo prazo, a comunica- unicamente como uma forma de controle so- ção social tenderia a aumentar a diferen- cial, já que os meios de comunicação atentam nas posições dos grupos em confronto e divul- ciação das “classes” sociais em função do gam-nas, em detrimento de outras visões sobre conhecimento. a realidade. (SOUZA, 2006, pp. 515-516) As pessoas com maior educação formal teriam, potencialmente, mais condições Alguns autores, porém, sustentam que de absorver os conteúdos veiculados pe- a complexidade da informação difundida los meios de comunicação e integrar esses pela comunicação social é reduzida e aces- 71

sível à maioria das pessoas. A razão princi- 2. Efeitos afetivos – neutralização afetiva, pal para a diferenciação do conhecimento uma certa insensibilidade que decorre da reside nas motivações que levam as pesso- exposição prolongada a mensagens violen- as a querer conhecer mais e com mais pro- tas; medo e ansiedade, decorrentes da expo- fundidade. Os indivíduos com maior nível sição prolongada a mensagens alarmantes; educativo e cultural teriam mais motivação moral e alienação – os meios de comunica- para o consumo e para o uso da informação ção podem atuar como agentes de integra- e também mais condições econômicas para ção, já que informam sobre os problemas adquirir a informação. das comunidades e dos grupos, dando-lhes Em meados da década de 1970, Ball- coesão, quer como modificadores da mo- Rokeach e DeFleur lançaram outro mode- ral, quer como agentes de alienação. lo teórico: a Teoria da Dependência, uma 3. Efeitos comportamentais – ativação e concepção sistêmica da sociedade, na qual desativação de comportamentos, que ocor- o sistema de meios de comunicação man- rem quando as mídias impelem as pessoas tém uma situação de interdependência com a alterar o seu comportamento ou a adotar os sistemas sociais (político, religioso, fami- comportamentos novos. liar, econômico, educativo etc.). As mídias, conceituadas como a princi- Para os teóricos, esse modelo, o tipo e pal fonte de informação e de comunicação a intensidade dos efeitos da comunicação da sociedade, são necessárias em sua essên- social dependem das pessoas, dos sistemas cia para a manutenção e o funcionamento sociais e da sociedade como um todo. A do restante dos sistemas. Cabe lembrar que teoria da dependência, desta forma, relati- a dependência do sistema de meios de co- viza os efeitos da comunicação social, em municação é proporcional ao nível de ins- função das contingências. tabilidade de um sistema social. Outros pesquisadores ao longo do tem- Um dos pontos principais da teoria da po acreditam que os meios de comunica- dependência reside na sistematização dos ção, através dos seus conteúdos, criam for- efeitos da comunicação social: mas de compreensão compartilhadas que permitem às pessoas enfrentar o cotidiano; 1. Efeitos cognitivos – resolução de ambi- tornam públicos determinados aconteci- guidades de certas informações; formação mentos e ideias; oferecem entretenimento; de atitudes; reforçar, mudar ou propor no- criam consumidores; fornecem as bases vos valores e crenças; e agenda-setting. para que a política se transforme numa coi- 72

sa pública; permitem a aculturação, inde- tica –, o Entretenimento e a Identificação pendentemente da mediação interpessoal; pessoal – percepção de conteúdos alinha- e moldam normas, valores, atitudes, gostos dos ao sistema de crenças, valores, ideias e e preferências. expectativas do receptor. A finalidade da comunicação mediada Para os seguidores da Teoria dos Usos seria o cultivo/incubação de pautas (ideias, e Gratificações, as mídias não podem ser valores, modos de vida etc.) dominantes. vistas unicamente como agentes ativos de Nessa concepção surgiu a teoria do cultivo comunicação sobre seres meramente passi- ou da incubação, para a qual a influência vos. Pelo contrário, as pessoas também são dos meios de comunicação social seria acu- ativas e usam as mídias de forma a satisfa- mulativa e ancorada na transmissão – suces- zerem as suas necessidades e sentirem-se siva e a longo prazo – de significados sobre gratificadas. a realidade, valorizando certos assuntos e Metodologicamente, essa teoria dá um propondo permanentemente modelos de novo status ao receptor: ele passa a ser con- atuação. O conteúdo dos meios de comu- siderado, a partir desses postulados, como nicação, assim definido, seria um indicador um ente capaz de, conscientemente, infor- social e um indicador de mudanças. mar sobre o que o motiva a consumir a co- Contra as hipóteses e teorias dos efei- municação social. tos poderosos da comunicação social, sur- giu a Teoria dos Usos e Gratificações. Essa 2.1.3 A construção da realidade teoria, baseada nos estudos pioneiros de Herta Herzof (1944), Berelson (1949) e de Inspirados pelo ramo da sociologia Schramm, Lyle e Parker (1961), ao invés de convencionalmente designado por sociolo- analisar os efeitos que os meios produzem gia do conhecimento e pela fenomenologia nas pessoas, procurava observar o uso que social de Alfred Schütz – sociólogo ameri- as pessoas fazem da comunicação social. cano, considerado o pai da sociologia fe- Blumer (1979 apud SOUSA, 2006, p. nomenológica, um ramo da sociologia in- 512) realçou o caráter social das necessi- terpretativa que nega o positivismo –, Peter dades pessoais e salientou que os motivos Berger e Thomas Luckmann, seus alunos e que levam ao uso dos meios de comuni- discípulos, apresentam em 1976 a Teoria cação podem ser: a Orientação cognitiva da Construção Social da Realidade. – necessidade de se obter determinado co- Tomando os fatos sociais como resul- nhecimento através da informação jornalís- tados de um processo histórico de constru- 73

ção coletiva de conhecimento, a perspecti- Assim, o processo político, em sentido estrito, va central desse modelo teórico é que toda não seria produtivo, nada geraria de substan- cialmente novo. Mesmo assim, as relações de a realidade é socialmente construída, dia a poder, tal qual estão configuradas em cada dia, pelas práticas individuais e sociais – o formação social, não são mera expressão de que conduz a uma permanente redefinição atributos, e sim produto de conflitos concre- tos, batalhas travadas no campo econômico e renegociação das regras, normas, signifi- e no terreno do simbólico. Afinal, é nesse cados e símbolos sociais. terreno que se articulam as interpelações a As formas sociais do passado são repro- partir das quais os sujeitos e as identidades coletivas se constituem. (MARTÍN-BARBE- duzidas e transformadas cotidianamente RO, 2001, pp. 286-287) pelas interações e práticas dos atores so- ciais. Interagindo, os indivíduos criam no- As identidades coletivas e as realida- vas representações e definições da socie- des sociais (convenções, valores, institui- dade, novos significados sobre a realidade ções, grupos, organizações etc.) são exte- social. riorizadas, objetivadas e interiorizadas no Segundo Berger e Luckmann, a cons- conhecimento comum, nas representações trução social da realidade decorre da exis- e percepções constantemente produzidas tência de uma relação dialética entre o in- no contexto das interações dos indivíduos, divíduo e a sociedade que resulta da inte- entendidos como atores sociais. E a comu- ração de três processos: exteriorização – a nicação social é essencial para a criação sociedade e a ordem social existem somen- de um patamar mínimo de entendimento te como produto das ações dos indivíduos; comum da realidade social. Sendo assim, objetivação – a sociedade é uma realidade a comunicação social influencia a atuação objetivamente independente da consciên- das pessoas sobre a sociedade e é capaz de cia dos indivíduos; e interiorização – os in- propor modelos de comportamento e defi- divíduos são produtos da sociedade. nição de papéis sociais. Martín-Barbero afirma que a concepção Altheide e Snow, dentro do prisma es- que se tinha dos sujeitos políticos encontra- tabelecido por Berger e Luckmann, desen- se em processo de mudança. Hoje, prevale- volveram uma teoria da mediação – que ce uma concepção substancialista das clas- procura explicar a ação social global dos ses sociais, como entidades que repousam meios de comunicação. sobre si próprias, isto é, impera a visão de Pressupondo não só que a vida social se cons- que o conflito social é uma manifestação titui por e através de um processo permanente dos atributos dos atores. e multifacetado de comunicação, mas também 74

que pessoas e grupos sociais têm competência no contexto da nossa vida quotidiana e na para codificar e descodificar os significados presença de emissor e receptor – continua emergentes desse processo, os autores veem a comunicação social como um agente capaz a ser uma forma fundamental de comunica- de participar, por um lado, na modelação e na ção para a construção de sentidos. Afinal, reconstrução sucessiva (e na mudança) da rea- a construção de significados depende de lidade social e, por outro lado, na construção quem interpreta os conteúdos e dos contex- de referentes para a ação individual. (SOUSA, 2006, p. 527) tos de recepção dos conteúdos. São três os contextos: o da lógica e das convenções dos Para exercer o papel altivo de media- produtos midiáticos; o do consumo desses dores do processo de construção social da produtos; o da criação dos significados. realidade, os meios de comunicação pro- Ressalta-se também que o sistema de curam condicionar a atenção, a apreensão produção de conteúdos dos meios de co- da informação e a construção de significa- municação é modelado pelas estruturas dos por parte do público com base em seus midiáticas. Sendo assim, de certa forma, os formatos – os pressupostos determinantes conteúdos existem à margem da audiência para a fixação da estratégia, da forma de e são influenciados por fatores econômicos produção, da apresentação e interpretação – como os índices de audiência, interesses da informação – e em sua gramática espe- políticos e legais, entre outros. cífica – a organização lógica dos conteúdos que torna possíveis a localização, hierar- 2.1.4 Outros efeitos da quização, organização e interpretação dos comunicação social conteúdos definidos pelos formatos (Ex.: distribuição das notícias em seções e edi- Efeitos fisiológicos: Estudos comprovaram torias, técnicas jornalísticas de relato dos que a transmissão de alguns programas – jo- acontecimentos e vocabulário específico). gos de futebol e de filmes de terror, por exem- Para autores como Montero (1993 apud plo – provoca o aumento da frequência car- SOUSA, 2006, p. 528), os meios de comu- díaca e a aceleração do ritmo respiratório. nicação têm ainda a capacidade de orga- nizar as dimensões espaciais e temporais Efeito recíproco: mudanças de caracte- do cotidiano, marcando o horário das refei- rísticas de um determinado fenômeno ao ções, o tempo de diversão etc. ser comunicado pela mídia. É o caso, por Cabe lembrar que dentro do campo de exemplo, de uma briga de vizinhos que ad- estudo definido pela teoria da mediação, a quire maior importância e impacto por ter comunicação interpessoal direta – realizada sido transmitida pela televisão. 75

Efeito de boomerang: uma mensagem pro- Tomando as palavras de Jorge Pedro voca efeitos contrários aos esperados, atin- Sousa (2006, pp. 499-500), gindo retroativamente o emissor. Os des- deste conjunto de dados, podemos reter, prin- mentidos públicos geralmente causam esse cipalmente, que o processo que pode originar efeito. mudanças de opinião, de atitudes e de com- portamentos através da persuasão midiática é Efeito de transvaze: uma mensagem provo- muito complexo e que os meios de comunica- ca efeitos numa entidade na qual, de início, ção social não são o único agente que conduz não se esperavam quaisquer mudanças. Por a essas mudanças, mas apenas um entre vários fatores de influência, embora se admita que exemplo, no Brasil, em 2000, o então Mi- possam, por vezes, ser o fator decisivo. nistro da Saúde, José Serra, além de proi- bir a veiculação de anúncios, baniu todo e Uma das hipóteses deste trabalho se qualquer evento que fosse promovido pelas sustenta justamente nessa afirmação. Pro- indústrias de cigarros. Foram assim extin- cura-se aqui investigar em que medida os tos o Hollywood Rock, o Carlton Dance e o meios de comunicação social, em especial Free Jazz Festival. A notícia levou empresas o jornalismo impresso, foram agentes que de outros setores a organizar eventos capa- conduziram parte da população da cidade zes de ocupar as lacunas deixadas pela de- de São Paulo a se manifestar contra ou a liberação ministerial. Foram criados o TIM favor da censura a peças teatrais no período Festival, o Claro que é Rock, o Coca-Cola de 1957 a 1968. Vibe Zone, o Skol Beats. Tratemos, então, da imprensa escrita. Efeito em terceiras pessoas (third person effect): cada indivíduo em geral crê que a 2.2 A imprensa e comunicação social influencia mais os ou- a cultura de massa tros do que a si mesmo. Este efeito, frequen- Os progressos tecnológicos e a organi- temente, acarreta a censura. Por exemplo, zação empresarial, desde o século XIX, ini- um legislador pode pensar que deve prote- ciaram um processo de aumento do públi- ger “os outros” da comunicação social e le- co da imprensa em larga medida. A criação gislar no sentido de censurar os conteúdos do telégrafo, por exemplo, acarretou o sur- veiculados pela mídia. gimento das primeiras agências internacio- Efeito de atrelado ou vagão: tendência das nais de notícias – um marco no movimento pessoas a seguir as opiniões que são ou pa- de globalização na produção e consumo de recem ser dominantes. notícias. Também outros avanços na área 76

gráfica, como a rotativa, a linotipia etc., per- O século XX experimentou a expansão mitiram outra grande mudança: o aumento do poder industrial por todo o globo terres- das tiragens dos jornais e o barateamento tre e o progresso ininterrupto da técnica. dos custos de produção. Os jornais, então, Surge aquilo que, para Morin (1981, p. tornaram-se economicamente acessíveis à 14), pode ser considerado como uma Ter- maioria da população e, nos Estados Unidos, ceira Cultura, oriunda da imprensa, do ci- emergiu a chamada penny press – jornais a nema, do rádio e da televisão, “que surge, preço de um penny. Nesse momento, o ato desenvolve-se, projeta-se, ao lado das cul- de ler notícias deixou de ser um privilégio da turas clássicas – religiosas e humanistas – e elite para abranger a maioria da população. nacionais”. Buscando corresponder aos interesses Essa Terceira Cultura, denominada mass de um novo tipo de leitores, os jornais adap- culture ou cultura de massa, é um corpo de taram seus conteúdos, efetivaram a sínte- símbolos, mitos e imagens associado à vida se das informações e passaram a utilizar a prática e à vida imaginária, que produz linguagem factual em suas narrativas. Este conteúdos segundo as normas da fabrica- movimento, chamado de Novo Jornalismo, ção industrial e destina-se a um aglomera- teve como principais expoentes e impulsio- do gigantesco de indivíduos compreendi- nadores Pulitzer – à frente do The World, dos dentro das várias estruturas internas da um jornal de linguagem clara, concisa e di- sociedade (classes, família etc.). reta, com um grafismo inovador apresentan- Neste mercado comum das mass me- do manchetes, ilustrações e fotografias – e dia, segundo Morin, são abolidas as fron- Hearst – comandando o New York Journal, teiras culturais para que haja a reconstru- veículo criador do yellow journalism (jorna- ção das estratificações no interior da nova lismo amarelo), por inventar fatos e trazer cultura: uma abordagem sensacionalista. Em outras palavras, a nova cultura se inscre- O pesquisador português Jorge Pedro ve no complexo sociológico constituído pela Sousa (2006, p. 153) ressalta que a expansão economia capitalista, a democratização do da imprensa, com suas crescentes responsabi- consumo, a formação e o desenvolvimento do novo salariado, a progressão de determinados lidades, surge acompanhada do conceito de valores. Ela é – quando consideramos as clas- “Quarto Poder”, invocando a defesa e a vigi- ses da sociedade, quando consideramos os es- lância da força chamada “opinião pública” tatutos sociais no seio do novo salariado – o lugar-comum, o meio de comunicação entre que, por sua vez, deve atuar como legitima- esses diferentes estratos e as diferentes classes. dora da nova força social que é a imprensa. (Morin, 1981, pp. 42-43) 77

Martín-Barbero (2008, p. 196) define massa só tem sua razão de ser se houver um cultura de massa “como um conjunto de grande público interessado em consumi-la. meios massivos de comunicação”. Aplicando as palavras de Marx, citadas por Morin: “a produção cria o consumidor[...] A Estamos situando os meios no âmbito das me- diações, isto é, num processo de transformação produção produz não só um objeto para o cultural que não se inicia nem surge através sujeito, mas também um sujeito para o obje- deles, mas no qual eles passarão a desempe- to”. (MARX apud MORIN, 1981, p. 45) nhar um papel importante a partir de um certo momento – os anos 1920. (Martín-Barbero, E para alcançar e sensibilizar o maior 2008, p. 197) número de pessoas, a indústria cultural pre- cisa empreender uma homogeneização dos O campo daquilo que Martín-Barbero conteúdos na procura de um denominador denomina de mediações é constituído pelos comum: os gostos e desgostos do homem dispositivos através dos quais a hegemonia médio ideal. transforma por dentro o sentido do trabalho Sabemos que todos os jornalistas do e da vida da comunidade. Assim sendo, para planeta trabalhando todas as horas do dia esse autor, a relação entre cultura e meios não poderiam testemunhar e reportar todos de comunicação que surgiu depois da Pri- os acontecimentos no mundo. Mesmo as- meira Guerra nos Estados Unidos deve ser sim, devido a uma rotina padronizada de abordada através da articulação de dois pla- captação de notícias, o alcance de assuntos nos: o estilo de vida peculiar que os meios que os repórteres conseguem cobrir é muito reproduzem e a gramática de produção grande em comparação ao do homem co- com que os meios universalizam um modo mum. Por isso, a imprensa, seja ela impres- de viver. O massivo, na nova configuração sa ou eletrônica – assumiu a função de tra- social, não é um mecanismo isolável, ou zer as notícias distantes ao cidadão privado. um aspecto particular, mas uma nova forma Nas palavras de Lippmann, a imprensa de sociabilidade. Basta verificar que o siste- é como um raio de holofote que se move sem ma educativo, as formas de representação descanso, trazendo um episódio e depois o ou- e participação política, a organização das tro fora da escuridão à visão. Os homens não po- dem fazer o trabalho do mundo através desta luz práticas religiosas, os modelos de consumo somente. Eles não podem governar a sociedade e os de uso do espaço são todos massivos. por episódios, incidentes e erupções. Só quando (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 311) eles trabalham com a ajuda de uma luz firme, que a imprensa, quando foca sobre eles, revela Nesse contexto, a produção industrial uma situação inteligível o suficiente para uma de conteúdos simbólicos da cultura de decisão popular. (Lippmann, 2008, p. 308) 78

Mas não são as notícias políticas e so- metalinguagem comunicacional para além ciais que sustentam a circulação. O jornal das palavras. Há uma hierarquização da trata de uma variedade de outros temas notícia codificada pelas tipologias usadas, destinados a manter um corpo de leitores o corpo das manchetes, a disposição da juntos que, no que diz respeito às grandes informação dentro do território da página. notícias, são incapazes de serem críticos. Criou-se um formato novo para uma nova Para Lippmann (2008, p. 285), os ser- concepção de informação que consagrou viços de imprensa padronizaram os princi- o valor de intercâmbio da notícia, ao mes- pais eventos e somente de vez em quando mo tempo tomada como mercadoria e co- um grande furo jornalístico é produzido. municação civil, horizontal frente a qual- Para se diferenciarem e reunirem um pú- quer autoritarismo. Convertida em produ- blico fiel, a maioria dos jornais teve que to, a notícia adquiriu o direito de penetrar ir além do campo das notícias gerais e em qualquer esfera e ampliou progressiva- optar pela segmentação: esportes, entre- mente o público receptor, absorvendo e tenimento, páginas femininas, moda, de- atenuando as diferenças e contradições de coração etc. Isso porque os proprietários classe. Essa metalinguagem comunicacio- de jornais e editores precisam encontrar nal tem o objetivo de assegurar a atenção um caminho para manter um conjunto de do leitor. Para tanto, o discurso gráfico e leitores que se interesse pelo conteúdo de textual deve sensibilizar o homem médio suas publicações. ideal e induzi-lo a sentir uma sensação de As notícias não são a simples recupe- identificação pessoal com aquilo que ele ração de fatos óbvios, nem tampouco um está lendo. Lippmann lembra que espelho das condições sociais. Trata-se, na a audiência precisa participar nas notícias, da verdade, do relato de um aspecto que se im- mesma forma como participa no drama, por pôs pelas mãos dos editores, é objeto de es- identificação pessoal. Assim como todo mundo fica sem ar quando a heroína está em perigo, colha e opinião. Todo jornal, quando alcan- da mesma forma o leitor entra notícia adentro. ça o leitor, é o resultado de várias seleções Para conseguir entrar ele precisa encontrar um sobre os itens que devem ser publicados. gancho familiar na estória, e isso lhe é forneci- Baseando-se em certas convenções, estabe- do pelo uso de estereótipos. É na combinação destes elementos que o poder de criar opinião lece-se a posição e o espaço que cada histó- reside. (LIPPMANN, 2008, p. 302) ria deve ocupar, e qual ênfase deve ter. Martín-Barbero (2008, p. 200) aponta Com o desenvolvimento do mercado para o foto de que foi desenvolvida uma de bens culturais e com a evolução técni- 79

ca, cada vez mais pessoas tiveram a opor- As mídias aumentaram o rol de intermedi- tunidade de adquirir informação sobre os ários entre instituições do Estado e as pes- soas, processam a inconformidade da cida- acontecimentos do mundo. dania, sensibilizam a sociedade em relação Jorge Pedro Sousa, em seu livro Elemen- às intervenções estatais em certas situações tos de Teoria e Pesquisa da Comunicação e e chegam, até mesmo, a ser fatores determi- nantes da governabilidade local ou nacional. dos Media, lembra que, com o advento da Tudo isso está acompanhado de funções que Primeira e da Segunda Guerra Mundial, por as mídias foram encontrando para si e que são força das circunstâncias excepcionais que indicativas das transformações políticas e cultu- rais que ocorrem na sociedade. A ideia de que o mundo atravessou, o jornalismo ociden- as mídias fundamentalmente “representam” o tal assumiu uma tendência para o descri- social cedeu diante de sua ascensão como ato- tivo, apostando na separação entre “fatos” res sociais, diante de sua legitimidade como sujeitos que intervêm ativamente na realidade. e “comentários” e se apoiando nas decla- O controle político e a fiscalização são funções rações/citações. A partir dos anos 1960, o básicas que se atribuem às mídias em socieda- jornalismo, particularmente o jornalismo des nas quais os poderes se acrescentaram e definitivamente se diversificaram. (Barbero; de referência, evoluiu para um novo mo- Rey, 2001, pp. 74-75), delo com a erupção de movimentos como o segundo movimento de Novo Jornalismo, Nas palavras de Michel Maffesoli que teve duas forças motrizes principais: a (2003, p. 14), “a comunicação, antes de ascensão da subjetividade nos relatos sobre tudo, remete ao estar-junto, à informação, o mundo; e a retomada do jornalismo de ao utilitário”. E se algumas fórmulas se dis- investigação em profundidade, que revelou seminam no tecido social é porque encon- ao mundo escândalos como o do Waterga- tram substância no existente. Nesse senti- te. Hoje ainda há quem o defenda “sob a do, nunca são neutras, porque exprimem o forma de um jornalismo narrativo, capaz de desejo de estar com outro, desejo de par- tornar histórias cinzentas mais atraentes.” ticipação, de interação e de troca. E essa (SOUSA, 2006, p. 159) interação precisa de um lugar no tempo e Junto com sua capacidade de represen- no espaço para efetivar-se – no nosso caso tar o social e construir a atualidade, as mí- de estudo, trata-se do período de 1957 a dias mantêm sua função socializadora. 1968 na Cidade de São Paulo. 80 Capítulo 3 O grande palco: a cidade de São Paulo 81

Nas eleições ocorridas em 3 de outu- O simpático animal, na verdade, era fê- bro de 1958, 540 candidatos concorreram mea e tinha dois chifres. Veio por emprés- a 45 cadeiras da Câmara Municipal de São timo do Rio de Janeiro para participar da Paulo. Neil Ferreira (1958) testemunha que inauguração do Zoológico de São Paulo em somente um aspirante – correndo por fora 16 de março de 1958 e cativou os paulista- – conseguiu empolgar, de maneira espeta- nos. A princípio, a passagem do rinoceronte cularmente inédita, o eleitorado paulistano: pela capital paulista seria breve, mas ele foi o candidato lançado por Itaboraí Martins, ficando. Quando os cariocas pediram seu jornalista de O Estado de S. Paulo. conterrâneo de volta, houve resistência à Sem prometer nada e com o slogan polí- sua devolução. tico “O candidato que vale o quanto pesa”, Com a presença de Cacareco na mídia teve um desempenho arrasador: “eleito” exatamente no período eleitoral, bastou o com um número recorde de votos nas elei- jornalista Itaboraí Martins lançar sua can- ções municipais de São Paulo – cerca de didatura para surgirem centenas de cabos 100 mil –, superou todos os pleiteantes ao eleitorais fazendo campanha voluntária cargo do partido mais lembrado, que, jun- para o rinoceronte. Na época, o eleitor po- tos, não atingiram a soma de 95 mil votos – dia escrever o nome do candidato na cédu- o candidato com maior votação não passou la eleitoral e depositá-la em uma urna – o de 11 mil. Era Diceros bicornis – da família que permitia fazer protestos na cédula de Rhinocerotidae; Perissodactyla; Mammalia; votação, escrevendo nomes fictícios ou en- Chordata; Animália –, um carioca da gema viando mensagens. e dotado de grande carisma, que assim que Neil Ferreira (1958) lembra do desfe- chegou a São Paulo virou notícia: cho extralegal e antidemocrático para essa Rinoceronte Cacareco chega a São Paulo candidatura: O rinoceronte Cacareco, quatro anos, encontra- se desde ontem em São Paulo, hóspede do Zoo- [...] as “forças ocultas” conseguiram que o can- lógico da Água Funda, que deve ser inaugurado didato popular fosse “exilado”, dois dias antes em poucos dias. O animal, de 900 kg, pertence da eleição, para o Rio de Janeiro. O “golpe” ao Jardim Zoológico do Rio de Janeiro e deve consumou-se na calada da noite, mas a coi- ficar na cidade durante três meses. A viagem de sa não foi tão calada assim: sem mais aquela, Cacareco durou 48 horas e foi acompanhada enfiaram-no num caminhão. Aí, sim, ele se da- pelo tratador do animal, Pacífico Soares, que é nou. Ficou perigoso. Não só para o regime, mas também grande amigo do bicho. O rinoceronte (e principalmente) para quem estava por perto. é o primeiro espécime nascido no Brasil, filho Mas o “Povo” e as “Classes Oprimidas” foram de Terezinha e Britador, e irmão de Patachoca. magnificamente à forra e concederam, aproxi- (Folha da Manhã, 16/02/1958) madamente, cem mil votos a Cacareco. Esse 82

movimento original surgiu, agora se sabe, num do povo paulistano. Contudo, absoluta- bairro dos mais populosos de S. Paulo: Osasco. mente, não foi a única. Caminhemos pela Esse bairro crescera e desejava agora a sua au- tonomia. Um típico caso de gigantismo. Houve História. um legítimo movimento em prol da emancipa- ção de Osasco. Com a proximidade das elei- ções paulistas, já subiam a 300 os candidatos 3.1 A história de São Paulo do famoso bairro. Acontece que o Supremo Para Nicolau Sevcenko, Tribunal repudiou as pretensões dos cidadãos de Osasco. Daí a reação original: 100 mil cé- São Paulo se compôs de um modo inverossí- dulas foram impressas e todas com o nome do mil, a partir da soma de circunstâncias impon- popular “Cacareco”, como candidato. Afirma- deráveis que foram confluindo numa sequência se agora que o movimento da gente de Osasco contínua de impossibilidades. A grande surpre- atingiu outras ruas e outros bairros. Virou can- sa foi que São Paulo viesse a existir, não que didatura nacional. (FERREIRA, 1958) ela fosse virtualmente inviável. A aldeia jesuíti- ca original, da qual ela derivaria, foi criteriosa- A história do rinoceronte Cacareco atra- mente calculada para ocupar um nicho defensi- vessou nossas fronteiras e ganhou destaque vo inexpugnável, pelo seu isolamento, sua po- sição inóspita e acesso precário. (SEVCENKO, na revista Times, que publicou a justificati- 1992, pp. 106-107) va de um dos votantes: “É melhor eleger um rinoceronte do que um asno”. São Paulo de Piratininga estabeleceu- O famoso paquiderme inspirou tam- se entre os rios Anhangabaú e Tamandu- bém o humorista Jacques Ferron a criar, em ateí, em 25 de janeiro de 1554 – dia em 1963, o Rhinoceros Party of Canada – um que a Igreja Católica celebra a conversão partido que prometia, acima de tudo, “não do apóstolo Paulo de Tarso. Situada numa manter nenhuma promessa”. colina alta e plana, do ponto de vista da se- Em média, um rinoceronte negro afri- gurança, a localização topográfica de São cano – como Cacareco – vive 45 anos se Paulo facilitava a defesa contra ataques de mantido em seu hábitat. Porém, o “quase- índios hostis. Nesse lugar, na forma de um vereador” morreu alguns anos depois de ter barracão, os padres Manuel da Nóbrega e alcançado o estrelato sem ter sequer com- José de Anchieta, fundaram um colégio je- pletado dez anos de vida. Cacareco saiu da suíta, ao redor do qual se iniciou a constru- vida para entrar na história como um dos ção das primeiras casas de taipa, que da- mais famosos casos de voto nulo em massa riam origem ao povoado de São Paulo de da política brasileira. Piratininga. Essa foi, com certeza, a manifestação Seis anos depois, por ordem do Gover- da opinião pública mais bem-humorada nador-geral da colônia, Mem de Sá, a popu- 83

lação da vila de Santo André da Borda do A descoberta de ouro em Minas Gerais Campo foi transferida para o povoado dos e depois a fixação da Corte portuguesa no jesuítas e São Paulo ganhou foros de vila. Rio de Janeiro acrescentaram uma dimen- Durante os três primeiros séculos de são de entreposto à cidade, dando origem a colonização, o número de índios e mame- algumas das suas primeiras fortunas. lucos superou em muito o de europeus. Porém, só a partir de 1860, foi impul- Até meados do século XVIII, predominava sionado o crescimento econômico do Esta- entre a população uma “língua geral” de do de São Paulo, com a implantação da la- base tupi-guarani, sendo a mais falada em voura cafeeira. A acumulação de capital só toda a região. A vila de São Paulo se man- foi possível na região porque a economia se tinha por meio de lavouras de subsistência baseou na grande propriedade – nos países e permanecia pobre e isolada do centro de em que o café foi cultivado por pequenos gravidade da colônia. À procura de rique- agricultores, a acumulação não chegou à zas surgiram os bandeirantes – responsá- escala que se deu em São Paulo. veis pela ampliação do território brasileiro Um marco do desenvolvimento do Es- a sul e a sudoeste, para além da linha de tado foi a ferrovia São Paulo Railway, de Tordesilhas. Santos a Jundiaí, criada em 1867 para a ex- Em 1681, São Paulo foi alçada ao pos- portação da produção agrícola. Com o pro- to de cabeça da Capitania, que incluía en- longamento da ferrovia através da Paulista tão um território muito mais vasto que o do e da Mogiana e a abertura da Sorocabana, atual Estado. Em 1711, a vila foi elevada à as fazendas ficaram mais perto da Capital. categoria de cidade. Em meados de 1860, a cidade de São Ao longo de todo o século XVIII, São Paulo já era bem diferente da antiga cidade Paulo foi apenas o quartel-general de onde colonial. As ruas já eram iluminadas pelos partiam as “bandeiras”. Disso tudo resultou primeiros lampiões à base de óleo de ma- a proverbial pobreza da província de São mona ou de baleia e a população já conta- Paulo na época colonial, carente de uma va com o Jardim da Luz, um parque público atividade econômica lucrativa como a do que passou por extensas reformas no final do cultivo da cana-de-açúcar, no Nordeste, século. Nesse período, a cidade se expandia contando sobretudo com a mão-de-obra do em todas as direções, ao mesmo tempo que indígena e desfalcada de seus homens váli- consolidava também um núcleo urbano mo- dos, que partiam para o sertão a redesenhar derno, em torno do qual instalaram-se bair- as fronteiras do Brasil. ros residenciais de elite – como os Campos 84

Elíseos –, com seus bulevares ao estilo pari- Para José de Souza Martins (2004, p. siense, como a avenida Tiradentes. 184), “a libertação dos escravos foi funda- A implantação das estradas de ferro mental para libertar os próprios fazendei- propiciou também o surgimento de novos ros da escravidão”. A abolição eliminou, bairros populares ao lado da Estação da São de uma vez por todas, a agricultura de Paulo Railway, como o Bom Retiro e o Brás exportação e permitiu a incorporação dos – cujo povoamento foi reforçado pela insta- procedimentos próprios da reprodução ca- lação, nas proximidades, da Hospedaria dos pitalista. Em curto tempo, a cidade de São Imigrantes. O crescimento da cidade podia Paulo observou uma revolução urbana, que ser percebido também pela profusão de transformou senhores de escravos em com- edifícios públicos, tais como a assembleia, petentes empresários que, definitivamente, a câmara, o fórum, várias escolas, quartéis, migraram do interior para a Capital. O mu- cadeias e abrigos para crianças desampa- nicípio abandonou sua condição de entre- radas. Como nos tempos coloniais, deze- posto para se tornar uma cidade nuclear. nas de igrejas, conventos e mosteiros ainda Segundo alguns autores, em 1887 surgiu continuavam a alastrar-se por toda parte. um movimento separatista em São Paulo. Na área cultural, artistas de circo, atores Márcia Mansor d’Alessio, no artigo “Estado- de teatro, poetas e cantores começaram a nação e construções identitárias”, reproduz consolidar seu lugar na cidade, junto com o as palavras de Fernando Barros, publicadas primeiro jornal periódico. (GOVERNO DO no jornal A Província de São Paulo: ESTADO DE SÃO PAULO) Como não será bonito quando São Paulo puder O sistema escravocrata existente na mandar annunciar no Times ou no New York He- rald e outros jornaes do antigo e do novo mun- lavoura cafeeira descontentava alguns hu- do, o seguinte: A província de São Paulo, tendo manistas. Em 1870, o poeta Luiz Gama pro- liquidado os seus negócios com a antiga firma moveu uma intensa campanha abolicio- Brasil Bragantino, Corrupção e Cia, declara que nista na imprensa, além de conseguir nos constitue-se em Nação Independente com a sua firma individual. Promette, em suas relações com tribunais, inúmeras manumissões. Conco- outras nações, manter a boa fé em seus negócios, mitantemente, na igreja de Nossa Senhora rectidão, altivez e dignidade, em vez de duplici- dos Remédios, no largo de São Gonçalo, dade, velhacarias e covardias da antiga firma... (BARROS apud D’ALESSIO, 2002, p. 164) Antonio Bento liderava um movimento de apoio a insurreições nas fazendas e de aju- No texto apresentado podemos verificar da na fuga de escravos e implantação de uma característica: as elites separatistas de quilombos. São Paulo não reconheciam a instância es- 85

tatal como o lugar de gestão da coisa públi- Para Raquel Rolnik (2003, p. 18), por ca. Na verdade, suas firmas é que detinham meio da constituição dos bairros proletários, essa função. Firma e nação, assim, confun- dos loteamentos burgueses, da apropriação diam-se, eliminando a mediação entre Es- e reforma do centro urbano pelas novas tado e sociedade, faltando aos paulistas o elites dominantes e da ação discriminató- sentimento de pertencimento nacional. ria dos investimentos públicos e regulação O autor constrói um “nós”, formado por uma “co- urbanística, foram se delineando territórios munidade imaginada” de paulistas que se contra- específicos e separados para cada atividade põe ao que seria estranho: o brasileiro e o exterior, e para cada grupo social. Esta configuração ou seja, o Brasil. (D’ALESSIO, 2002, 162) de uma segregação espacial mais clara foi a Até a proclamação da República, a ci- causa da grande transformação ocorrida na dade de São Paulo era provinciana e sem cidade do café. atrativos. Não havia atividades econômicas Segundo José de Souza Martins (2004, p. especiais que motivassem a fixação no lo- 186), a cidade de São Paulo apresentava as cal. Os empregos eram públicos, a ativida- condições necessárias para que a elite cafe- de industrial era relativamente reduzida e o eira pudesse edificar uma ordem política de comércio ainda não se diferenciava de ou- classes que, ao mesmo tempo, era também tras cidades que exerciam funções de entre- uma ordem espacial segmentadora, apoiada posto. O mais característico forasteiro era em confinamentos invisíveis e ideológicos. o estudante da Faculdade de Direito, que Com o ajuntamento das famílias de fazendeiros vinha de outras províncias e do interior. na Capital, a diversificação das funções urbanas, a chegada de forasteiros (estrangeiros ou não), a José de Souza Martins (2004, p. 153) criação de espaços públicos, as referências cul- lembra que, na virada do século XX, os turais foram diversificadas. Os traços culturais paulistas da elite não faziam distinção en- caipiras foram substituídos por aqueles que a nova cultura da aparência, do gosto e dos mo- tre paulistas e paulistanos. Na mentalidade dos europeus definia como compatíveis com o dos paulistas de então, a Província e a sua decoro próprio dos que tinham dinheiro e po- Capital eram uma coisa só. Isso se explica der. O velho decoro caipira da casa-grande sofre desdobramentos e substituições. O núcleo rígi- porque os antigos fazendeiros alternavam de do da conduta dos antigos cede um bom espaço residências ao longo do ano agrícola – ora para as preocupações com a forma e a aparên- viviam na cidade, ora na fazenda. cia, com o propriamente teatral da vida social. (MARTINS et al., 2004, p.191) O café dinamizou vigorosamente as funções urbanas promovendo o crescimen- A cultura cafeeira atraiu gente de todos os to da população e do comércio. lados: desde o início do século XIX, aumen- 86

tou continuamente a quantidade de escravos denação democrática dos espaços de circu- negros que ali trabalhavam e, com o aboli- lação e de convivência das classes sociais: cionismo, trouxe a imigração estrangeira. uma demarcação daquilo que não é priva- A imigração europeia, notadamente a tivo nem de ricos nem de pobres, mas um italiana, teve papel de destaque no aumen- espaço de todos. to da população: um ano depois de pro- Suely Robles Reis de Queiroz, no artigo clamada a República, ou seja, em 1890, o “Política e poder público na Cidade de São Estado contava com 1,4 milhão de habitan- Paulo: 1889-1954”, revela que tes, dos quais 64.934 fixados na Capital – o a Capital acompanhava o crescimento estadual primeiro ponto no planalto a partir do porto nos mais diversos níveis com igual rapidez, le- vando os contemporâneos a encararem como de Santos, a cidade de São Paulo era o local longínqua e suspeita a opinião dos estudan- de conexão entre as regiões produtoras de tes de Direito que, em meados do século XIX, café, o porto e a Capital do país. queixavam-se da Cidade, onde, para eles “a Em 1893, os estrangeiros já formavam a pasmaceira multiplicava o tédio”. (QUEIROZ et al., 2004, p. 17). maioria da população na Capital, 54,6%, e sua predominância provavelmente cresceu Apesar das semelhanças culturais en- por mais alguns anos. Na virada do século, tre os imigrantes e a população brasileira, a cidade tinha 241.935 moradores – dentre que iam do catolicismo comum até as lín- eles, um grande número de imigrantes italia- guas neolatinas, os atritos nativistas às ve- nos, espanhóis, portugueses, sírios e outros. zes atingiam dimensões consideráveis. Em As ruas, até a época da abolição, não 1892, por exemplo, ocorreram manifesta- eram tidas como lugar de gente decente na ções por parte dos brasileiros, com gritos de definição da mentalidade dominante. Nes- “morram os italianos”, passeatas e alguns se momento, as ruas passaram a ser con- conflitos graves. cebidas como espaço da ordem e da con- Michael Hall (HALL, 2004, p. 125) cita vivência regulamentada das classes e das o relato de Rosalbino Sandoro, presiden- diferenças de classes. te da Societá Italiana de Beneficenza, em Empreendeu-se uma nova distinção en- que, durante uma apresentação no Teatro tre público e privado por parte de uma eli- São José em benefício do Hospital Italiano, te que estava se constituindo como classe em 1896, um grupo de nativistas invadiu nesse momento e que precisava caminhar o teatro e um deles gritou: “Se há algum e circular pela cidade em busca de merca- brasileiro aqui, saia! Queremos acabar com dorias e serviços. Essa distinção foi uma or- esta canalha de carcamanos!”. Outros gri- 87

taram “Morte à Itália” e provocaram “uma de de São Paulo, as fiações e tecelagens – verdadeira batalha” no teatro. operadas em boa parte por estrangeiros que Seguiram-se três dias de luta nas ruas, não se fixaram na zona rural. numa “caça aos italianos”, segundo o Côn- Outro fator determinante para a in- sul, Conde Compans de Brichanteau. “Na dustrialização de São Paulo foi a Primeira sua interpretação, havia uma aliança do go- Grande Guerra – com o colapso das linhas verno com ‘o partido nativista e a ralé em de comércio internacional, a cidade assistiu geral’, que agia em conluio com os estu- ao crescimento industrial devido à necessi- dantes da Faculdade de Direito nos ataque dade de substituição de importações. saos italianos”. (HALL, 2004, p. 125). Entretanto, os italianos se faziam assi- 3.2 As greves milar em São Paulo com uma rapidez que impressionou a todos os observadores. A Nesse processo de crescimento da in- ascensão social era relativamente fácil em dustrialização, a São Paulo enfrentou as São Paulo e a importância dos italianos em primeiras grandes greves, decorrentes de certos ramos era impressionante. Em 1915, condições de trabalho e remuneração ex- sete das 41 fábricas de tecidos de algodão tremamente desfavoráveis para os traba- do Estado eram de italianos e representa- lhadores. Os operários viviam inteiramen- vam um quarto do capital no setor. O mais te desprotegidos: jornadas de dez horas famoso dos italianos foi Francisco Mata- de trabalho ou mais, durante seis dias da razzo, que chegou ao Brasil com recursos semana; poucas indústrias dispunham de para instalar-se como negociante e se apro- instalações adequadas e condições higiê- veitou do apoio de banqueiros ingleses para nicas de trabalho. virar um rico e poderoso industrial. As greves foram utilizadas para pressio- Ao contrário da indústria europeia que nar o poder público e os empregadores para surgiu em oposição à produção agrícola, a que surgissem normas e melhores condições indústria paulista estabeleceu-se como re- de trabalho. Entre os anos de 1903 e 1906, sultado da riqueza produzida no campo. greves de menor expressão tomavam conta O capital excedente das atividades agrárias dos grandes centros industriais. Dez anos foi, inicialmente, investido na fabricação depois, ocorreu um movimento que entrou de produtos utilizáveis na lavoura de café, para a história: a Greve Geral de 1917. como sacos de juta para acondicionamento Tudo começou em maio daquele ano, dos grãos. Implantaram-se, assim, na cida- quando os trabalhadores do Cotonifício 88

Crespi, diante da decisão da empresa de Foi assim que uma multidão – cal- prolongar o trabalho noturno, paralisaram culada em dez mil pessoas – pôs-se em o trabalho pedindo 25% de aumento. No movimento da Rua Caetano Pinto, onde dia 15 de junho, os operários realizaram residia o sapateiro, até o Cemitério do uma passeata pelas ruas do Brás, que foi Araçá. A morte do jovem causou como- dispersada pela polícia e acarretou várias ção no operariado e o número de grevis- prisões. tas chegou a cinquenta mil nos dias que Em 3 de julho, na capital paulista, há se seguiram. Dentre as reivindicações do uma manifestação com a participação de comitê de greve estava o aumento de 33% um grande número de mulheres e menores para os salários mais baixos, a proibição operários. A polícia interveio novamente, do trabalho para menores de 14 anos, a dissolvendo a manifestação com espanca- abolição do trabalho noturno de mulheres mentos e prisões. Quatro dias depois, cer- e menores de 18 anos, a jornada de oito ca de mil operários da cervejaria Antarctica horas, o respeito ao direito de associação, aderiram à greve. As manifestações pulula- o congelamento dos preços dos alimentos vam pelo Brás e pela Mooca e a população e a redução de 50% nos aluguéis. se aglomerava nas ruas. Premidos pela polícia, os operários se Numa greve às portas da Tecelagem amotinaram e assumiram o controle do es- Mariângela, no dia 9 de junho de 1917, foi paço público. Barricadas foram erguidas e morto José Ineguez Martinez, um jovem sa- houve a ocorrência de diversos tiroteios, sa- pateiro espanhol de 21 anos. À noite, o de- ques a casas comerciais, piquetes, comícios legado Tirso Martins fechou todas as sedes e ataques a autoridades. das ligas e uniões operárias de São Paulo. Frente aos constantes casos de insu- O enterro do jovem sapateiro foi trans- bordinação da Força Pública e da guarda formado em uma grande manifestação po- cívica, que se recusavam a reprimir os gre- pular de repúdio à violência policial. Através vistas, foram solicitadas tropas do interior. da imprensa, no dia 11, o Comitê de Defesa Houve também o envio de navios de guer- Proletária convidou os trabalhadores a par- ra para a cidade de Santos e marinheiros ticipar do cortejo com o seguinte manifesto foram destacados para reprimir populares aos soldados: “Não deveis perseguir os vos- que saqueavam os armazéns do porto. Tro- sos irmãos de miséria. Vós também perten- pas de Infantaria e a Cavalaria percorriam ceis à grande massa. A fome reina em nossos as ruas dispersando aglomerações. E o mo- lares, e os nossos filhos nos pedem pão”. vimento que começou como uma greve por 89

aumento salarial e melhoria de condições rios aprisionados, de forma que seus familiares de trabalho transformou-se numa verdadei- ou as associações não os pudessem localizar, sendo eles assim mantidos sob as mais drásticas ra insurreição operária. condições de encarceramento e violência, in- Diante do impasse nas negociações comunicáveis, por várias semanas. Alguns são entre operários e patrões, foi formada uma exilados na surdina para outras cidades, sempre sob custódia policial. Outros são exilados para comissão de jornalistas de diversas publi- o exterior do país. O pretexto para essa tempes- cações da capital paulista para mediar o tade repressiva seria uma suposta conspiração conflito. O resultado dessas negociações para deflagrar nova greve geral na cidade. (SE- VCENKO, 1992, p. 143) foi uma proposta de aumento de 20%, sem dispensa dos grevistas. O acordo efetuado A brutalidade da repressão da polícia em 15 de julho de 1917 pôs fim à greve que paulista causou indignação no operariado parou a cidade de São Paulo durante uma do Rio de Janeiro, que denunciou o abuso semana. pelos jornais e enviou comissões de obser- Em 1º de maio de 1919, o mesmo tipo vadores à capital paulista. de situação prevaleceu e retomou o seu Era notório que a autoridade pública teor explosivo. Uma enorme multidão de paulista mantinha um exército de policiais, mais de 10 mil pessoas – concentrada na à paisana ou de uniforme, com liberdade Praça da Sé erguendo flâmulas, estandartes plena para deter, extorquir, espancar e en- e “um enorme dístico do Partido Comunista carcerar indefinidamente quaisquer pessoas, Brasileiro” – decidiu marchar em passeata sem explicações, sem motivos e sem ter que pelas ruas do centro cantando os versos da responder pelos seus atos, conforme denún- Internacional e depois se dispersou pacifi- cias em cartas, reportagens e editoriais infla- camente. No dia seguinte, porém, a polícia mados publicados no jornal O Estado de S. tomou a cena e a cidade tornou-se palco Paulo. de uma batalha desigual: o comício previa- Os anos 1920 também foram difíceis mente autorizado e assegurado pela polícia para os trabalhadores das fábricas. Alegan- termina em pancadaria generalizada e com do que o movimento operário era artificial- prisões em massa. mente controlado por lideranças estran-

Pelos dias seguintes as detenções indiscrimina- geiras radicais que iludiam o trabalhador das prosseguem, associações operárias são sa- nacional, em 1921, o Congresso aprovou queadas e fechadas e se multiplicam as batidas a Lei de Expulsão de Estrangeiros, que per- policiais pelas ruas, bares e estabelecimentos comerciais do Brás. A polícia usa a técnica de mitia, entre outras coisas, o fechamento de ir trocando continuamente de cárcere os operá- organizações operárias e a deportação su- 90

mária de lideranças envolvidas em distúr- bratórias da novidade da industrialização”. bios da ordem. O principal alvo dessa lei (PAOLI e DUARTE, 2004, p. 55). eram os anarquistas. As ideias do anarquismo, difundidas 3.3 A mudança do cenário por meio de congressos e por uma impren- No início dos anos 1920, os habitantes sa própria, pelas condições de vida e tra- de São Paulo tiveram dificuldade em reco- balho encontradas, teve rápida expansão nhecer a identidade da cidade. O passado nas primeiras décadas do século XX entre escravista ainda recente – que se manifesta- uma parcela significativa do contingente de va nos tratos sociais e na atitude brutal das trabalhadores. Suas propostas de supressão autoridades – mesclava-se ao processo de do Estado e de todas as formas de repressão metropolização. encontraram grande receptividade entre os trabalhadores. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de Em 1922, foi oficializada a fundação negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem ameri- do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ao cana, nem europeia, nem nativa; nem era indus- contrário dos anarquistas, que viam o Es- trial, apesar do volume crescente das fábricas, tado como um mal em si, os comunistas nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropi- o viam como um espaço a ser ocupado e cal; não era ainda moderna, mas já não tinha transformado. passado. Essa cidade que brotou súbita e inexpli- Todos esses esforços não foram sufi- cavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios ha- cientes para produzir uma mudança signifi- bitantes, perplexos, tentando entendê-lo como cativa na vida material do conjunto da clas- podiam, enquanto lutavam para não serem de- se trabalhadora. Apesar disso, não se pode vorados. (SEVCENKO, 2003, p. 31) deixar de reconhecer que, nesse período, o A nova sociedade em formação tem movimento operário brasileiro ganhou le- uma disposição cultural que lhe é peculiar gitimidade entre os próprios trabalhadores, e estranha às sociedades ditas “históricas”. que assumiram o papel de atores políticos. Foi um momento no qual a classe trabalha- A emergência das grandes metrópoles e seu vórtice de efeitos desorientadores, suas múl- dora ganhou visibilidade e sua existência tiplas faces incongruentes, seus ritmos desco- real foi percebida como classe. O apare- nexos, sua escala extra-humana e seu tempo cimento dos trabalhadores inaugurou “o e espaço fragmentários, sua concentração de tensões, dissiparam as bases de uma cultura de significado de uma presença cujo impacto referências estáveis e contínuas. (SEVCENKO, ia muito além das versões acríticas e cele- 2003, p. 32) 91

A imprensa paulista da época suscitava adquiriu conotações simbólicas que, sobre- e repercutia a imagem de São Paulo como postas em camadas sucessivas e cumulati- uma das grandes metrópoles do mundo, vas, iam do mágico ao revolucionário. Tais com um prodigioso crescimento e um fu- conotações davam à modernidade uma turo cheio de possibilidades. Surgiu aqui o força expressiva ímpar, muito intensificada início de uma tomada de consciência tanto pela revolução tecnológica, a passagem do de um sentido de identidade quanto de uma século e o pós-guerra. Era contudo no âm- manifestação sobre os destinos da cidade. bito das artes – particularmente a música e Para Elias Thomé Saliba, as artes cênicas, vindo depois as artes plás- A São Paulo com feições de metrópole nasceu, ticas, poesia, literatura de ficção e ensaísmo assim, como uma incógnita, eliminando o seu – que a questão da modernidade adquiria a passado ou retirando dele apenas o que inte- sua máxima consistência simbólica. ressava para reforçar a tese do progresso em si mesmo. No ano em que o país comemorava o [...] O progresso de esquecimento deixou uma primeiro centenário da Independência, en- espécie de vazio de tempo social, que começou tre 11 e 18 de fevereiro, no Teatro Municipal a ser preenchido pela cultura ou, mais particu- de São Paulo, realizou-se a Semana de Arte larmente, pela invenção de um passado para a Cidade que, particularmente naquelas décadas, Moderna com a participação de escritores, passava por uma profunda ruptura e desenrai- artistas plásticos, arquitetos e músicos. zamento temporal. (SALIBA, 2004, p. 570) A São Paulo dos anos 20 era o cenário perfeito para a realização do evento: uma 3.3.1 O ano de 1922 próspera cidade, que recebia grande núme- ro de imigrantes europeus e modernizava-se O Estado de S. Paulo, de 28 de janeiro rapidamente, com a implantação de indús- de 1922, anunciava um tremor de terra no trias e reurbanização. território paulista. O abalo sísmico de gran- Como informava o Correio Paulistano a de intensidade, que havia ocorrido às 4 ho- 29 de janeiro de 1922, o objetivo era reno- ras da manhã, fez ecoar pela cidade um ru- var o ambiente artístico e cultural da cida- ído ensurdecedor, causou forte trepidação de demonstrando o que havia em escultura, do solo e das paredes e deixou a cidade em arquitetura, música e literatura. polvorosa – ainda mais porque era recente Graça Aranha, sob aplausos e vaias o trauma provocado pela Primeira Guerra. abriu o evento, com sua conferência inau- Nessa época, segundo Nicolau Se- gural “A Emoção Estética na Arte Moder- vcenko (2003, p. 228), a palavra “moderno” na”, no dia 13 de fevereiro de 1922. 92

Seguiram-se três festivais apresentan- aconteceu com Os sapos, de Manuel Ban- do as novas ideias artísticas: a nova poe- deira, que criticava o Parnasianismo. Sob sia através da declamação; a nova música um coro de relinchos e miados, gente latin- por meio de concertos; a nova arte plástica do como cachorro ou cantando como galo, exibida em telas, esculturas e maquetes de Sérgio Milliet nem conseguiu falar. arquitetura. O adjetivo “novo”, marcando Aparentemente, a Semana de Arte Mo- todas essas manifestações, propunha algo a derna não teve na ocasião o alcance e am- ser recebido com curiosidade ou interesse. plitude que posteriormente lhe foram atri- No catálogo da mostra, constavam os buídos. A exposição de arte, por exemplo, seguintes artistas: Anita Malfatti, Di Caval- não foi coberta pela imprensa da época. canti, Zina Aita, Vicente do Rego Monteiro, Só saíram notas publicadas em jornais nos Ferrignac (Inácio da Costa Ferreira), Yan de quais trabalhavam participantes da Sema- Almeida Prado, John Graz, Alberto Martins na, como Mário de Andrade, Menotti del Ribeiro e Oswaldo Goeldi – com pinturas Picchia e Graça Aranha. e desenhos; Victor Brecheret, Hildegardo Para Waldemar Belisário,

Leão Velloso e Wilhelm Haarberg – com A Semana de Arte Moderna de 22 foi feita pela esculturas; Antonio Garcia Moya e Georg turma que tinha dinheiro. Nós, os pintores de Przyrembel – com projetos de arquitetura; arrabalde, os pintores de domingo, não pude- mos participar desse movimento. Ficamos de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, fora. Organizamos e fizemos, porém, o I Salão Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Plínio Paulista de Artes Plásticas, no Palácio das In- Salgado, Ronald de Carvalho, Álvaro Mo- dústrias. Foi a maneira que encontramos para participar da renovação artística de então e à reira, Renato de Almeida, Ribeiro Couto e qual muitos de nós se conservam fiéis até hoje.” Guilherme de Almeida – representando a (FOLHA DE S. PAULO, 29 de junho de 1975) literatura; Villa-Lobos, Guiomar Novais, Ernani Braga e Frutuoso Viana – represen- Mesmo sob essas críticas, a Semana de tando a música. Arte Moderna foi uma tentativa pioneira Na principal noite da semana, enquan- de se estabelecer uma arte brasileira, livre to Menotti del Picchia expunha as linhas e da mera repetição de fórmulas europeias. objetivos do movimento e Mário de Andra- Esse marco do Modernismo no Brasil inau- de recitava sua Pauliceia desvairada e Ode gurou uma nova fase na história cultural ao burguês, a vaia era tão grande que não do país, rompendo com o convencionalis- se ouvia, do palco, o que Paulo Prado gri- mo então vigente no campo das artes e da tava da primeira fila da plateia. O mesmo literatura. 93

Realmente, os temas prediletos do modernis- 3.4.1 Revolução Esquecida mo de 22 estão ligados ao fluxo da vida mo- derna, à intensidade da mesma, à importância Em 5 de julho de 1922, no Rio de Ja- do tempo material. Por isso a Cidade, em ace- lerado processo de urbanização e industriali- neiro, deu-se a primeira revolta tenentista: zação, criou a atmosfera para impulsioná-lo. Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. Nela estarão presentes o motor, o asfalto, o ci- O presidente Arthur Bernardes negou a nema, o tumulto, o rumor, as grandes massas, os elementos “modernos”, que irão influenciar anistia aos amotinados e exigiu o julga- intensamente os artistas. (QUEIROZ et al., mento que culminou com a condenação 2004, pp. 38-39). dos rebeldes, a perda de suas patentes e a expulsão do Exército. Diante do panorama Em 1922, além da introdução do Mo- político e militar instaurado, num clima de dernismo, a cidade também presenciou tensão e boataria em torno de um provável uma série de movimentos de rebelião mili- novo golpe, a eclosão de um movimento tar. É o que veremos a seguir. armado em 1924 não foi surpresa para ninguém. A “Revolta Paulista”, também chamada 3.4 Os movimentos armados de “Revolução Esquecida”, foi deflagrada Desde seu início, os rumos tomados pela na capital paulista na data do segundo ani- política republicana provocavam manifes- versário do levante do Forte de Copacaba- tações de desencanto. O desvirtuamento na. Comandada pelo general reformado Isi- das práticas eleitorais – imposto pelos che- doro Dias Lopes, numa série de movimen- fes políticos que almejavam a perpetuação tos ágeis, os revoltosos ocuparam pontos do poder –, somado ao descontentamento estratégicos e grande parte da área urbana, dos militares, deu origem ao “tenentismo”, dando origem ao maior conflito bélico já a série de movimentos sociais de caráter ocorrido na cidade de São Paulo. A capital político-militar que ocorreu no Brasil nas foi escolhida por contar com forte oposição décadas de 1920 e 1930, e que contou, ao situacionismo estadual e federal. José principalmente, com a participação de jo- Eduardo de Macedo Soares ressalta que vens tenentes do Exército. a ideia de escolher São Paulo como ponto Como decorrência do tenentismo, a inicial da revolução partiu de Joaquim Távo- cidade de São Paulo foi palco de três mo- ra [...], sob o argumento de que “o que saís- se de São Paulo sairia grande”. Aqui – dizia vimentos armados na primeira metade do ele – tinham sido feitas as proclamações da século XX: 1924, 1930, 1932. Independência, da Abolição e da República. 94

E daqui deveria partir a “guerra da Redenção”, As forças legais reocuparam a cida- que não seria contra São Paulo e sim contra o de com imensa brutalidade. Sem poderio governo federal. (SOARES apud BORGES; CO- HEN, 2004, p. 296) militar equivalente – artilharia ou aviação – para enfrentar as tropas legalistas, os Cinco ou seis dias após o início da su- rebeldes vencidos retiraram-se da capital blevação, o governo republicano passou a paulista e marcharam, rumo ao sul do Bra- usar indiscriminadamente a artilharia con- sil, onde – na cidade de Foz do Iguaçu, no tra militares e civis. A cidade de São Pau- Paraná – uniram-se aos oficiais gaúchos lo foi sistematicamente bombardeada por comandados por Luís Carlos Prestes e for- aviões do governo federal, principalmente maram a Coluna Prestes. visando os bairros operários e populosos. Todas as tentativas efetuadas pelos mo- Foram atingidos hospitais, escolas e igrejas. vimentos tenentistas não obtiveram o su- Prédios ruíram, os incêndios se alastraram cesso desejado, porém mantiveram viva a e a quantidade de mortos aumentava com revolta contra o poder das oligarquias, re- o crescente número de vítimas civis. presentada pela política do “Café-com-lei- O Exército legalista, leal ao presidente te”, e prepararam o caminho para a Revo- Arthur Bernardes, utilizou-se do chamado lução de 1930, que alterou definitivamente “bombardeio terrificante”, que durou 29 as estruturas de poder no país. dias e 29 noites, atingindo vários pontos da cidade, em especial bairros operários como a Mooca e o Brás, e de classe mé- 3.4.2 A Revolução de 30 dia, como Perdizes (distrito de São Paulo). O estopim para a ocorrência do movi- Cadáveres se acumulavam nas ruas sem mento militar que se convencionou chamar que pudessem ser removidos. Os comba- de “Revolução de 30” foi a insistência do tes foram se sucedendo em ruas e bairros, presidente paulista Washington Luís em fa- levando o pânico à população. Ao final zer seu sucessor um outro paulista – Júlio desses 29 dias, Prestes –, contrariando o esquema de suces-

o general Isidoro Dias, comandante dos rebel- são presidencial, dominado por São Paulo des, solicitou uma trégua no bombardeio para e Minas Gerais – a política do “Café-com- preservar a população civil das baixas que se leite”. Descontentes, os políticos de Minas multiplicavam. A resposta do presidente do estado foi categórica: ou rendição incondicio- Gerais romperam com o Partido Republi- nal ou a cidade seria reduzida a cinzas. (SE- cano Paulista (PRP) e firmaram o apoio à VCENKO, 2003, p. 304) candidatura de Antônio Carlos Ribeiro de 95

Andrada. Receosos de uma derrota, os mi- bou assim “o império dos fazendeiros”, que neiros procuraram aliar-se a outros estados, nunca mais foi reconstituído. principalmente ao Rio Grande do Sul, e, Intensamente disputada e sob denún- em 17 de junho de 1929, Antônio Carlos cias de fraudes, a eleição de março de 1930 cedeu sua candidatura à chapa do gaúcho teve Júlio Prestes como o ganhador. Três Getúlio Vargas e do pernambucano João meses depois, motivado por conflitos pes- Pessoa, apoiados também pelo Partido De- soais na Paraíba, ocorreu o assassinato de mocrático Paulista – fundado por dissiden- João Pessoa, que acirrou ainda mais os âni- tes do Partido Republicano Paulista (PRP). mos oposicionistas. Em outubro, instalou-se Em agosto, os oposicionistas formalizaram um movimento revolucionário que depôs a Aliança Liberal (AL), cuja plataforma pre- Washington Luís e levou Getúlio Vargas ao via o voto secreto, a independência do Ju- Catete para assumir o seu posto. diciário, a anistia para os tenentes envol- vidos nas diversas rebeliões ao longo dos Sob os aplausos dos oposicionistas, Getúlio Vargas assumiu o poder provisoriamente, ou anos 1920, a proteção à exportação do café seja, até que uma nova Constituição ditasse e reformas sociais. os rumos do país, e colocou interventores nas Além do revanchismo de outros esta- unidades federadas. Não duraria muito, entre- tanto, a união entre estados e governo central. dos, a forte união gaúcha sob o comando Aos poucos foi se esgarçando e, em São Paulo, de Getúlio Vargas e a organização de um fixou-se o maior foco da reação. (QUEIROZ et partido de oposição em São Paulo, outra al., 2004, pp. 33-34). causa também contribuiu para esse evento: a crise mundial de 1929. Com a quebra da Getúlio Vargas chegou ao poder com Bolsa de Valores de Nova York e a desvalo- um discurso nacionalista ideológico que rização vertiginosa das ações, as vendas re- ocultava diferenças e conflitos. Para impe- traíram e, consequentemente, ocorreu uma dir a falência do setor exportador, ao assu- queda brutal nos preços do café. Os gran- mir o governo, Getúlio Vargas desvalorizou des agricultores paulistas se encontraram, a moeda, elevando o preço dos produtos então, em uma terrível situação: perderam importados e diminuindo a concorrência subitamente os empréstimos bancários para estrangeira. Vargas também manteve os custeio das lavouras e o governo federal – estoques de café e assegurou o nível de contrário à moratória e às emissões do Te- emprego, sustentando a demanda e esti- souro para a compra de estoques – propi- mulando o mercado interno. As diretrizes ciou um quadro de insolvência geral. Desa- monetárias, fiscais e cambiais adotadas na 96

década de 30 propiciaram um efetivo estí- aviões sobrevoando a cidade. Desta vez, mulo ao desenvolvimento industrial. Era o o bombardeio era de papel: boletins eram fim da República Velha. jogados para anunciar a formação da Le- A forma de Estado preconizada por Var- gião Revolucionária de São Paulo, entidade gas tinha como projeto político neutralizar criada por Miguel Costa para ser o “braço os poderes locais que impediam uma orien- civil” da Revolução de 30. Em oposição à tação unificada na condução do país. Para Legião, os estudantes da Capital empenha- tanto, naquele momento, era necessária a ram-se em empreender comícios, manifes- aplicação de uma concepção altamente tações e passeatas, buscando, em primeiro centralizada de poder que, fortalecido, po- lugar, convencer os renitentes de São Paulo deria enfrentar a reação dos poderosíssimos a partir para a ação contra o “Ditador” e, chefes locais. em segundo plano, mostrar ao governo fe- Para exercer maior controle político, deral o apoio popular que teria uma revo- Vargas nomeou João Alberto como inter- lução paulista. ventor do Estado de São Paulo. A presença Segundo Borges e Cohen (2004, pp. de um representante do governo provisório 313-314), desde março de 1931, articula- provocava a ira dos políticos e va-se em São Paulo um movimento arma- acendia a chama do regionalismo, como do contra o governo Vargas. Os paulistas mostra, por exemplo, a fala de Júlio Mesquita: tinham a percepção do rumo centralizador “Embora seja grande a distância entre a caa- tinga e os pampas, e aparentemente diversa a que tomava o governo Vargas e acredita- formação social de ambos, são grandes as afi- vam que somente uma nova Constituição nidades entre Getúlio e João Alberto. O laço seria capaz de garantir a liberdade indivi- e o gibão os aproximam”. (BORGES; COHEN, 2004, p. 313) dual e estabelecer a lei.

A insatisfação dos paulistas podia ser 3.4.3 A Revolução de 32 vista nos jornais, em panfletos e músi- cas que ilustravam os sentimentos contra Em fevereiro de 1932, a situação se o “não-paulista”. Aconselhava-se o boi- agravou. O Partido Democrático Paulista cote aos produtos não-paulistas e exigia- rompeu com Vargas e aproximou-se dos se a nomeação de um “interventor civil e antigos adversários do Partido Republicano paulista”. Paulista, formando a Frente Única Paulis- Em 12 de novembro do mesmo ano, a ta (FUP), que passou a articular, junto aos população da Capital foi surpreendida por meios militares e a algumas das principais 97

entidades de classe do patronato paulista, a A população da cidade, acompanhada preparação de um movimento armado con- pelo resto do estado, mobilizou-se de uma tra o Governo Provisório. forma nunca vista – seja como militante no A partir de um comício promovido na Exército Constitucionalista, seja na militân- Praça do Patriarca pelos estudantes de Di- cia cívica. A revolução, que durou quase reito, no dia 23 de maio de 1932, deu-se três meses, foi chamada, décadas mais tar- o primeiro confronto sangrento entre as de, de “a revolução do improviso”. forças paulistas. Uma multidão se dirigiu O rádio, que ensaiava seus primeiros à sede da Legião Revolucionária de São passos, desempenhou papel fundamental Paulo, na Rua Barão de Itapetininga, onde na Revolução Constitucionalista. Instala- foi travado um combate que varou a ma- ram-se alto-falantes por todo o centro da drugada e que resultou nas mortes de Má- Cidade e transmitiam-se notícias, boletins rio Martins de Almeida, Euclides Miragaia, e mensagens oficiais. Mas os paulistas su- Antonio Américo de Camargo Andrade e cumbiram diante do governo central. Dráusio Marcondes de Sousa – os mártires Devido à forma com que os meios de comu- do movimento, cujas iniciais (MMDC) ba- nicação apresentaram a luta, a derrota foi um tizaram a primeira milícia civil organizada choque para muitos. Esgotados os últimos para dar o suporte à preparação da guerra. recursos, restavam os mortos a contar e os escombros de um sistema político que forço- Em crônica datada de 29 de maio de 1932, samente deveria mudar. (BORGES; COHEN, Mário de Andrade dizia que 2004, p. 332)

o mais importante é verificar que agora a gente paulista já sabe se reunir em multidão, isto é, ad- Findado o conflito, com perspicácia, quiriu enfim consciência cívica, e o seu direito Getúlio Vargas agiu para se aproximar de de erigir em vontade os seus anseios pela coisa pública. (ANDRADE apud BORGES; COHEN, facções mais dispostas a estabelecer um 2004, p. 320) canal de diálogo. O presidente convocou eleições para a Constituinte, concedendo A agitação dos habitantes da cidade uma “vitória moral” às lideranças políti- de São Paulo só fez aumentar até julho cas paulistas e, em 21 de agosto de 1933, de 1932. A “Campanha pela Autonomia e após negociações com os liberais da Fren- Constitucionalização” entrou para a histó- te Única Paulista, nomeou como inter- ria sob o nome de “Revolução Constitu- ventor do Estado o paulista Armando de cionalista”, o conflito que eclodiu em São Salles Oliveira – membro da elite paulista Paulo no dia 9 de julho de 1932. ilustrada, que agregava empresários cultu- 98

rais, educadores e escritores em torno do estratos sociais em processo de ascensão jornal O Estado de S. Paulo. Meses depois, em uma cidade que vivenciava um cresci- em 25 de janeiro de 1934, foi fundada a mento demográfico vertiginoso. Segundo Universidade de São Paulo, uma institui- Michael Hall (2004, p. 121), em 1934, o ção almejada havia algum tempo por Jú- recenseamento revelou um dado impres- lio de Mesquita Filho, que, desde 1920, sionante: os imigrantes formavam 28% incitava São Paulo a tornar-se o principal da população total e 67% dos paulistanos centro científico da América do Sul. Sér- eram estrangeiros ou filhos de estrangeiros. gio Milliet, na época, disse: “De São Paulo Outro dado incrível é que, no período de não sairão mais guerras civis anárquicas, e 62 anos, de 1872 a 1934, sim ‘uma revolução intelectual e científica’ São Paulo configurou uma prodigiosa taxa de suscetível de mudar as concepções econô- crescimento populacional da ordem de 5.690%, ou posto de outra forma, cresceu numa escala micas e sociais dos brasileiros”. (MILLIET de 6,77% ao ano. Esses números pareciam jus- apud GARCIA, 2002, p. 43) tificar plenamente o refrão ufanista de que “São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo”. Em São Paulo, a camada da burguesia urbana (SEVCENKO, 1992, p. 109) esclarecida, após a derrocada das ações polí- ticas que visavam à proeminência dos ideais Lúcia Helena Gama (1998, p. 45) ressal- “paulistas” na política nacional, via-se às voltas com a tentativa de criar instituições de ensino ta que, no final da década de 1930, “alguns que possibilitassem o surgimento de um pen- falaram até numa refundação da cidade, ta- samento nacional na defesa tanto dos interes- manha remodelação se deu na região do vale ses locais (Faculdade de Filosofia, Escola de Sociologia e Política, Pontifícia Universidade do Anhangabaú, no período”. Canalizou-se Católica) quanto na capacitação de uma mão- o rio, abriu-se a Avenida 9 de Julho, alarga- de-obra (Senai e Senac) que atendesse aos in- ram-se as ruas centrais e das proximidades e teresses da nascente industrialização. (GAMA, 1998, p.176) também canalizou-se um extenso trecho do Rio Tietê. Maria Arminda do Nascimento Arruda Na década de 1940, com a ocorrência (2001, p. 194) salienta que, sendo São Pau- da Segunda Guerra Mundial, o empresaria- lo a vanguarda da modernização brasileira, do industrial ganhou importância e, conco- a universidade pôde ali encontrar as con- mitantemente, cresceu também o contin- dições necessárias para se consolidar e se gente de operários. desenvolver. Em São Paulo, a organização Do período que vai do final da escra- universitária foi desde o início estadualiza- vidão até o começo do segundo governo da e surgiu como resposta às demandas de Vargas, a cidade de São Paulo foi uma es- 99

pécie de laboratório social de invenção da Entre 1937 e 1945, o número de fábri- nacionalidade para os que, nas diferentes cas de médio porte (de quinhentos a dois classes sociais, aqui chegaram e ficaram. O mil operários) triplicou. O volume de cons- cidadão que resultaria desse encontro seria truções também não parava de crescer e o brasileiro dos tempos modernos, do trabalho o centro novo da cidade verticalizava-se. livre e do capital livre, livres ambos da escravi- Mas foi a partir de 1945, com o término do dão, falando uma mescla de sotaques, mistu- Estado Novo e o fim do longo período getu- rando costumes. Na Cidade nascia Macunaíma e nascia a modernidade do nenhum caráter, lista de autoritarismo, que a capital paulista das identidades imprecisas. passou a ter peso político nos cenários es- [...] na Paulicéia a nacionalidade era refabrica- tadual e nacional. da, o Brasil era reinventado. A Europa sofistica- da não era copiada, propriamente, mas possu- À medida que o Sudeste prosperava, ída, adotada como referência de uma naciona- inicialmente com o café e depois com a lidade contraposta ao provinciano lusitanismo indústria, áreas que não experimentaram caboclizado que nos opusera a Portugal na tentativa de edificar a brasilidade. (MARTINS, esse processo empobreciam, acentuando 2004, pp. 156 -157) as desigualdades regionais e estimulando a migração, especialmente para São Paulo. Para Lúcia Helena Gama (1998, p. 17) Todas essas mudanças sociais e econômi- de centro comercial fino, São Paulo foi se cas, enfim, fizeram da cidade de São Paulo transformando aos poucos num local que um lugar de acumulação de atrativos para agregava uma massa de estudantes, produ- as populações nacionais de diferentes clas- tores e participantes (consumidores ou não) ses sociais. das atividades culturais. Em 1950, viviam em território paulista De 1932 a 1954, as palavras “bandeirante” e mais de um milhão de brasileiros proceden- “paulista” se associam, agora de forma tácita. Perdem seu caráter discriminador e ampliam o tes de outros estados, a maior parte moran- seu significado para todo aquele que trabalha do na Capital. O crescimento demográfico em São Paulo, para o seu “engrandecimento” da cidade continuava e, consequentemen- e para a sua hegemonia dentro da nação. A ex- periência desse período, marcado pelo Estado te, expandiu-se também a mancha urbana. Novo, que obnubilou o poder de São Paulo ante A década de 50 também foi o marco da os outros estados brasileiros, só fez acentuar a implantação no país da indústria automo- ampliação do caráter agregador do termo “pau- lista”. O bandeirante ou o “paulista” autêntico bilística, em parte ligada à política econô- não era somente o descendente dos heróis de mica adotada pelo presidente Juscelino Ku- outrora, mas todos aqueles que, construindo o bitscheck de Oliveira, eleito para o período futuro através do trabalho, mostravam-se dig- nos dos ancestrais. (SALIBA, 2004, p. 584) de 1956-1961, pregando o desenvolvimen- 100

tismo fundamentado na industrialização. A urbano de vida, “ligado a um universo va- relevância econômica paulista ampliou-se lorativo de ordem diversa, respaldado na ainda mais e, nessa época, o setor indus- ideia de progresso inelutável”. E tal afirma- trial constituiu o principal gerador de renda ção do progresso é que delineou a matriz bruta do Estado de São Paulo, participando cultural que veio a se formar na cidade. com 33,2% da economia. O processo de transformação da Ca- 3.5 A cultura paulista pital em metrópole ampliou-se e, com a mudança do status da cidade de São Pau- Desde a primeira década do século XX, lo, mudou também a composição social da a urbanização da cidade de São Paulo foi burguesia e do proletariado. A estrutura so- definida por um processo de privatização cial se diversificou e cresceram as camadas da vida pública, segundo o modelo de vida médias urbanas. e de lazer das elites. A sociedade tornou-se mais complexa e diver- Até os anos 20, a “sociedade do café” inves- sificada, bastante diferente daquela vista nos tiu na redefinição do espaço público, onde im- tempos coloniais, mas continuou preconceitu- perasse a respeitabilidade burguesa e em que osa. O índio foi esquecido e o imigrante assi- os padrões “civilizados” de comportamento e milado, pois é preciso lembrar que este último, sociabilidade, progressivamente adotados no principalmente o italiano, por ser mais numero- universo patriarcal da elite cafeicultora e dos so, foi altamente discriminado pela aristocracia industriais emergentes, fossem exportados para agrária, cujos membros orgulhavam-se de uma toda a Cidade”. (RAGO, 2004, p. 434) ascendência que, segundo eles, remontava aos tempos coloniais. Daí a expressão “paulista de Para agradar a essa “sociedade do café”, quatrocentos anos”, alardeada como um brasão de nobreza, mas considerada um mito pelo bra- em 1911, com 1.816 lugares, foi inaugura- silianista Joseph Love, para quem poucas famí- do o Teatro Municipal de São Paulo, maior lias paulistas teriam raízes anteriores ao século e mais imponente que o da capital federal XIX. (QUEIROZ, 2004, pp. 47-48) – implantado dois anos antes. Esse edifício A perpetuação do mito do “paulista monumental, um ponto crucial na remode- quatrocentão” teve a função de aumentar lação arquitetônica promovida pelo prefeito a distância social, mantendo intocado um Antônio Prado, dominava com sua presen- núcleo restrito de integrantes privilegia- ça todo o Vale do Anhangabaú a partir do dos. Maria Arminda do Nascimento Arruda topo da colina do Chá. Motivado pela nova (2001, p.31) ressalta que a cidade burguesa sala de espetáculos, em 1912, um grupo de que emergiu nos fins do século XIX, após amadores entusiastas criou a Sociedade de cinquenta anos, atingiu um genuíno estilo Cultura Artística e introduziu uma série de 101

concertos populares. As companhias tea- fissional em São Paulo se alimentava dos trais da época se dividiam entre a nova casa espetáculos trazidos do Rio de Janeiro e das de espetáculos e os demais teatros, entre os temporadas sul-americanas dos conjuntos quais o Boa Vista, o Politeama, o Santana, europeus”. o São José e o Colombo – o favorito da co- No campo econômico, nas décadas de munidade italiana. 1940 e 1950, com a adoção do modelo ca- Desde seu início, a riqueza paulista pitalista de desenvolvimento econômico, atraía o melhor da ópera clássica e o me- difundiu-se pelos meios de comunicação lhor do circuito cosmopolita para o Muni- de massa e pelo cinema o American Way cipal: Isadora Duncan (em 1916), Nijinski of Life – fato que acarretou uma grande rup- (em 1917 e 1918), Ana Pavlova (em 1918 e tura com os modos de sociabilidade vigen- 1919), Arthur Rubinstein (em 1920 e 1922), tes. Gradativamente, foi sendo substituído Luba d’Alexanrowska (1921). Como já foi o hábito de se prosear nos finais de tarde visto, o Teatro Municipal também foi pal- pela prática do recolhimento na intimidade co da Semana de Arte Moderna de 1922 do lar e da família. Para muitos, contudo, as – um acontecimento marcado pela busca vias públicas continuavam sendo os princi- da renovação de linguagem, da experimen- pais lugares de debate político. Nas pala- tação, da liberdade criadora e da ruptura vras de Maurício Tragtenberg, com o passado. era no meio da rua que se formavam centros de Todos esses eventos deixaram um lega- debates políticos. Na praça da Sé também tinha outros grupos que se formavam para discussão. do na cidade. Em São Paulo, no decorrer Em geral, esta era a forma de lazer do pessoal, dos anos 30, o movimento artístico encon- depois do trabalho, aos sábados e domingos. trava-se bastante organizado. Havia a So- [...] Então, tinha o bairro, e, no bairro, tinha a praça que era um ponto de encontro, um centro ciedade Pró-Arte Moderna (SPAM), o Clube de informações; a praça era realmente usada dos Artistas Modernos (CAM), nascidos no nesse sentido, para comício político e sem pre- final de 1932, e a Família Artística Paulista, cisar de autorização anterior à polícia ou coi- sa que o valha. (TRAGTENBERG apud RAGO, que emergiu cinco depois. Progressivamen- 2004, p. 433). te, ampliou-se o número de galerias e de locais de exposição artística. Data de 1938 O país estava em franco desenvolvi- a constituição do Sindicato dos Artistas mento e, incrementada pelo crescimento Plásticos. Quanto ao teatro, até 1942, nas econômico e demográfico, a esfera cultu- palavras de Sabato Magaldi (2008, pp.91), ral da capital paulista floresceu. David José “com exceção de Nino Nello, o teatro pro- Lessa Mattos observa que, em São Paulo, 102

novas gerações de estudantes e professo- teriormente, prevaleciam espetáculos com res universitários, de artistas e intelectuais apenas um ator principal, muito valorizado vieram se juntar às antigas lideranças inte- por sua habilidade e capacidade de impro- lectuais e culturais de pensamento liberal- visação diante do público, e que, normal- democrático: mente, era o dono de sua própria compa-

Pouco a pouco, após o ingresso na universi- nhia – assim como Procópio Ferreira, Dul- dade, setores consideráveis das classes médias cina de Morais e Jaime Costa. Outro gênero passam a integrar o grande círculo de relações teatral que predominava nesse período era das elites intelectuais e culturais paulistas, par- ticipando de uma série de iniciativas de valori- o teatro de revista, originado da Companhia zação da arte e da cultura que, nessa época, co- de Teatro de Vaudeville (França). De gran- meçaram a ser colocadas em prática, sobretudo de aceitação popular, no teatro de revista por particulares. (Mattos, 2002, p. 236) eram encenados esquetes que satirizavam personalidades de destaque da vida públi- Em maio de 1941, alunos recém-forma- ca e números musicais, com dançarinas de dos da Faculdade de Filosofia, Ciências e pouca roupa. Com o passar dos anos, os Letras da USP criaram a Clima, uma revis- espetáculos foram ficando mais ousados e ta cultural que marcou a crítica paulistana o gênero chegou a ser chamado de “teatro e circulou até novembro de 1944, com 16 rebolado”. números publicados. Paulo Emílio Salles O GTE, na contramão do teatro comer- Gomes, Décio de Almeida Prado, Anto- cial, em seu repertório, buscava a drama- nio Candido, Rui Coelho, Gilda de Mello turgia moderna e autores contemporâneos e Souza e Lourival Gomes Machado brilha- consagrados internacionalmente – Piran- ram no meio universitário e no círculo mais dello e Tennessee Williams –, alternando-a amplo da intelectualidade brasileira como com clássicos – Molière, Shakespeare, professores, ensaístas e críticos. A esse gru- Aristófanes, Marivaux. A principal caracte- po veio se juntar Alfredo Mesquita, dono rística do grupo era a preocupação com a da Livraria Jaraguá – ponto de encontro de formação cultural e técnica do ator. Com o artistas e intelectuais da época. aprimoramento de seus intérpretes, o GTE Foi na própria Livraria Jaraguá que, em teve um grande crescimento artístico e seu 1942, Alfredo Mesquita fundou o Grupo de espírito de modernização cênica contagiou Teatro Experimental (GTE) – iniciativa pau- e promoveu o surgimento de outros grupos tada por preocupações artísticas modernas, amadores, como o Grupo Universitário de inéditas até então no teatro da cidade. An- Teatro, de Décio de Almeida Prado. 103

Fundado em 1943, com o patrocínio do técnico, marcando o fim da era dominada Fundo Universitário de Pesquisa, ligado à por Alfredo Mesquita. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Maria Arminda do Nascimento Arruda Universidade de São Paulo (USP), o GUT (2001, p. 110) enfatiza que – baseada em trazia, preferencialmente, em seu repertório princípios sistemáticos da produção do saber, peças escritas em língua portuguesa. Desde da criação de uma crítica da cultura de cunho sua fundação, em 1943, até 1948, quando acadêmico e da introdução de novos proce- encerrou suas atividades no palco do TBC, o dimentos em relação às questões intelectuais Grupo Universitário de Teatro teve diversos – a nova sociabilidade acadêmica renovou os estudantes e jovens intelectuais gravitando padrões de expressão intelectual. Nesse novo à sua volta, “alguns possuidores de autên- território urbano, a academia promoveu o ticas vocações teatrais, outros interessados amadurecimento da cultura e o surgimento apenas em participar da convivência alegre de um leque amplo de iniciativas. e intelectualmente estimulante proporcio- Depois da fundação da universidade nada pelos ensaios ou leituras das peças”. nos anos 1930, outro evento mexeu com (MATTOS, 2002, p. 206) a cidade na década seguinte: os prepara- Outros dois grupos amadores se destaca- tivos para a comemoração do IV Centená- vam: o Teatro-Escola, de Osmar Rodrigues rio converteram São Paulo em cenário dos Cruz – fundado em 1945 no Centro Acadê- mais importantes e diversificados empreen- mico Horácio Berlinck –, e o Grupo de Artis- dimentos. Em todos os campos da atmosfera tas Amadores, criado em 1947 por Madalena de metropolização da capital paulista, uma Nicol e o jovem advogado Paulo Autran. conjunção de fatores emergentes propiciou Em 1948, sob a coordenação de Alfre- a criação dos museus de São Paulo e, do Mesquita, foi fundada a Escola de Arte uma vez construídas, essas instituições torna- Dramática – EAD, uma escola de teatro ali- ram-se vetores cruciais da vida cultural da ci- dade. Como em todos os empreendimentos de cerçada segundo um modelo ideológico e porte, desenvolvidos na primeira metade do sé- artístico comprometido com o modernismo culo, a associação entre personalidades locais, cênico, marcada por estrita disciplina in- estrangeiras e de fora de São Paulo repetia-se em favor de um projeto civilizatório no cam- terna e pelos estudos teóricos apoiando a po da cultura, revelador das ações particulares prática. A EAD, ao completar 20 anos de que se projetavam em cena pública. (ARRUDA, atividades, foi incorporada à Escola de Co- 2001, p. 381) municações e Artes da Universidade de São O Museu de Arte de São Paulo foi idea- Paulo – ECA/USP, na condição de colégio lizado por Assis Chateaubriand, empresário 104

e jornalista, e Pietro Maria Bardi, jornalista e vo ainda incipiente em sede provisória, na crítico de arte italiano. A princípio, na época Rua Caetano Pinto, endereço da Metalúrgi- de sua inauguração, em outubro de 1947, o ca Matarazzo. Na coleção, havia telas de museu foi instalado em quatro andares do Anita Malfatti, Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, prédio dos Diários Associados – situado à Emiliano Di Cavalcanti, José Antonio da Sil- Rua 7 de Abril, no centro da cidade –, impé- va, Juan Miró, Marc Chagall, Mário Zanini, rio de Chateaubriand que chegou a contar Pablo Picasso e Raoul Dufy, entre outros. A com uma editora, 34 jornais, 36 emissoras maioria pertencera à coleção particular de de rádio, 18 estações de televisão e a re- Ciccillo e esposa, Yolanda Penteado. vista O Cruzeiro. Chatô, como era chama- Os estatutos gerais do MAM previam a do, usava seu prestígio político-empresarial constituição de uma entidade dedicada ao entre os grandes empresários da época para incentivo do gosto artístico do público no arrecadar os recursos para a aquisição das campo das artes plásticas, da música, da li- obras, selecionadas pessoalmente por P. M. teratura e da arte em geral. Compunham o Bardi na Europa do pós-guerra. conselho de administração, entre outros, os A nova sede do MASP, situada na Ave- arquitetos Villanova Artigas e Luís Saia e os nida Paulista e projetada por Lina Bo Bar- críticos Sérgio Milliet e Antonio Candido de di, foi inaugurada em 1968. Ao longo de Mello e Souza. sua história, o museu foi ponto de partida Desde o início, a instituição passou de outras iniciativas, como a ESPM – Esco- por intermitentes crises provocadas por la Superior de Propaganda e Marketing, a desavenças entre seu fundador e os rumos Escola de Artes da Fundação Armando Ál- desejados pelos diretores e conselheiros vares Penteado e a Mostra Internacional de artísticos. A situação se agravou nos anos Cinema. 1950 com a criação das Bienais do Museu Paralelamente ao MASP, em 1948, no de Arte Moderna. Inspiradas nas Bienais mesmo edifício dos Diários Associados, o in- de Veneza, a primeira delas ocorreu em dustrial ítalo-brasileiro Francisco “Ciccillo” 1951 e contou com o apoio governamen- Matarazzo Sobrinho criou o Museu de Arte tal e a participação decisiva de Yolanda Moderna de São Paulo, baseado no mode- Penteado, mulher de Ciccillo Matarazzo lo museográfico do Museum of Modern Art – foi ela, por exemplo, que junto ao Mu- (MoMA) de Nova York. seu de Arte Moderna de Nova York, con- Antes mesmo da inauguração oficial, seguiu trazer Guernica, de Pablo Picasso, no ano seguinte, o MAM expunha seu acer- para o evento. Na I Bienal, foram exibidas 105

1.800 obras entre pintura, escultura, de- de São Paulo, para a criação do Museu de senho e gravura, além de uma Exposição Arte Contemporânea. Cinco anos depois, Internacional de Arquitetura e um Festival o MAM ganhou nova sede, sob a marquise Internacional de Cinema. Às vésperas do do Ibirapuera, obra projetada pelo arqui- IV Centenário de São Paulo, foi inaugu- teto Oscar Niemeyer, entre 1953 e 1954. rada a segunda Bienal, em 12 de dezem- bro de 1953, instalada no Pavilhão das Nações e Pavilhão dos Estados – parte do 3.5.1 O mecenato e a dramaturgia conjunto arquitetônico de 110 mil metros Como se vê, a constituição da cultura quadrados no Parque do Ibirapuera, assi- na sociedade paulista neste período deu-se nado por Oscar Niemeyer. Ao todo, fo- pelas mãos de um grupo de mecenas. A di- ram expostas 3.374 obras de 712 artistas, versificação das elites propiciou a organi- representando 33 países (FUNDAÇÃO zação de instituições de natureza pública BIENAL DE SÃO PAULO, 2011). e a implantação de projetos institucionais Gradativamente, o MAM passou a de “feitio civilizatório”. E foi também pelo funcionar à sombra da Bienal e ficou apoio financeiro fornecido por um grupo restrito à sua organização. Em 1958, o de figuras das elites econômicas paulistas museu mudou-se para o Parque do Ibira- que surgiu o Teatro Brasileiro de Comédia, puera, ocupando o espaço do Museu da o TBC, inaugurado em 11 de outubro de Aeronáutica. Quatro anos depois, Ciccillo 1948. Era um grupo de empresários, ban- Matarazzo instituiu a Fundação Bienal queiros, homens ligados à indústria, ao co- de São Paulo com o objetivo de promo- mércio e às finanças, todos reunidos pelo ver e patrocinar eventos artísticos e cul- engenheiro e administrador de empresas turais, especificamente as exposições de Franco Zampari e seu amigo e padrinho de artes plásticas e as Bienais. Na ocasião, o casamento o industrial Francisco “Ciccillo” MAM passou a ocupar o terceiro piso do Matarazzo. (MATTOS, 2002, p. 48) Pavilhão Armando Arruda Pereira. A con- Franco Zampari que nutria uma paixão centração de energia e dinheiro de seu verdadeira pelo teatro, juntou-se a Ciccillo presidente na realização das Bienais e os para criar um grupo profissional gerido com problemas entre ele e seus colaboradores espírito empresarial. Para tanto, Zampari fizeram com que Matarazzo decretasse, contratou diretores e técnicos estrangeiros, em janeiro de 1963, a extinção do museu, alugou um edifício na rua Major Diogo, no e doasse todo seu acervo à Universidade bairro da Bela Vista, e o transformou em 106

um luxuoso teatro – oferecendo uma sala Entre os encenadores que, de certa forma, de espetáculos de 365 lugares, equipada se alternavam nas montagens da compa- com 18 camarins, modernos equipamentos nhia estavam Adolfo Celi, Luciano Salce, de luz, duas salas de ensaio, uma sala de Ruggero Jacobbi e Zbigniew Ziembinski. leitura, oficina de carpintaria e marcenaria Antunes Filho foi um dos únicos brasileiros e almoxarifados para cenografia e figurino. dessa equipe, ao lado de Flávio Rangel. O novo espaço teatral promoveu a fusão A criação do TBC impulsionou o surgi- dos grupos amadores paulistas mais im- mento do espetáculo de diretor, em detri- portantes – Grupo Universitário de Teatro mento do espetáculo de primeiros-atores (Décio de Almeida Prado), Artistas Amado- e primeiros-diretores. E, em seus quinze res (Madalena Nicol) e o grupo de Alfredo anos de existência, o TBC também esti- Mesquita. Estava fundado o Teatro Brasilei- mulou o surgimento de uma dramaturgia ro de Comédia. nacional abrindo espaço para os autores A criação do TBC ilustra claramente a passa- nacionais, tais como Millôr Fernandes, Lú- gem de uma fase experimental e amadorística cia Benedetti, Lourival Gomes Machado, do teatro para um projeto profissional de gran- de porte, exigindo vultosos investimentos nas Edgar da Rocha Miranda e Abílio Pereira áreas administrativas, técnica e artística. O pré- de Almeida. dio do TBC contava com oficinas de carpintaria A primeira polêmica envolvendo a cen- e marcenaria, locais para a fabricação de cená- rios, salas de ensaio, ateliês de figurinos, além sura e o TBC foi a obra Entre Quatro Pare- de uma sala principal de apresentações[…] O des, de Jean-Paul Sartre, dirigida por Adolfo próprio trabalho de criação artística alterou-se Celi em 1950. A versão brasileira foi trazida a partir desse modelo. Surgem funções especia- lizadas de cenógrafo, iluminador, sonoplasta, a São Paulo seis anos após a montagem do figurinista. O diretor passa a desempenhar um texto em Paris e, nesse período, o existen- papel fundamental na concepção do espetácu- cialismo ilustrado por Sartre na peça ainda lo. (ARRUDA, 2001, p. 118) não tinha chegado ao Brasil, o que provo- Subiram ao palco do TBC nomes como cou algumas reações negativas à monta- Cacilda Becker, , Tô- gem. Numa união improvável, o Partido nia Carrero, Cleyde Yáconis, Nathalia Tim- Comunista e a Igreja Católica, em unísso- berg, Paulo Autran, Sérgio Cardoso, Fernan- no, condenaram o espetáculo no qual três da Montenegro e muitos outros. Quanto ao personagens, entregues às suas angústias, repertório, Sófocles, Bernard Shaw, Luigi permaneciam trancadas em uma sala – uma Pirandello, Tennessee Williams e Arthur alegoria do inferno na acepção sartriana. Miller tiveram suas peças encenadas ali. Ocasionalmente, em cena, ocorria a visita 107

de um criado que advertia os espectadores A riqueza de São Paulo permitia a de- de que, apesar de ali não haver máquinas dicação às atividades intelectuais e artís- de tortura ou labaredas incessantes, o sofri- ticas. Pasquale Petrone (apud QUEIROZ, mento não teria fim. Diante das reclama- 2004, p. 50) menciona que, nos anos 50, ções e de uma nota da Igreja proibindo os 203 revistas e 91 jornais circulavam em cristãos de a assistirem, a Censura interdi- várias línguas, aos quais se somavam 45 tou o espetáculo às vésperas da estreia. A casas editoras e 106 livrarias. Na Grande situação só se resolveu após alguns debates São Paulo outra atividade da dupla Zam- com intelectuais e a obtenção, pelos atores, pari-Ciccillo também causava sensação: de uma autorização expressa de seus con- a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, fessores pessoais. fundada em 1949 – considerada o primei- Além do TBC, outras produções mais ro estúdio em moldes profissionais do país baratas e populares – o teatro de revista e que, durante seus quatro anos de existên- espetáculos de variedades – faziam sucesso cia, realizou 22 filmes de longa-metragem. na cidade: Seus estúdios em São Bernardo do Campo, O humor ingênuo, a crítica política e as sutis que ocupavam o local de uma antiga gran- insinuações “sensuais” presentes nessas “revis- ja da família Matarazzo, tinham mais de tas” populares de produção e textos nacionais, que tiveram seu período áureo no Rio de Janei- 100.000 m² e abrigavam material técnico ro na década anterior e início desta, chegam de vanguarda e profissionais do exterior. O a São Paulo nesta época com público cativo. primeiro filme de ficção da Vera Cruz foi (GAMA, 1998, p.174) Caiçara (1950), dirigido por Adolfo Celi – o Esse movimento teatral exerceu gran- primeiro diretor artístico do TBC. Já a pro- de influência nas iniciativas posteriores e dução mais importante da companhia cine- teve imediata repercussão sobre o público, matográfica foi O Cangaceiro (1953), pelí- cuja constância e crescente frequência aos cula premiada no Festival de Cannes como espetáculos intensificaram a função cultu- melhor filme de aventura e como melhor ral da cidade de São Paulo. Num período trilha sonora, com a música Olê muié ren- curto de tempo surgiram várias casas de deira, interpretada pela atriz Vanja Orico. espetáculos, dentre elas: o Teatro Cultura Foi também na Vera Cruz que surgiu uma Artística, na Rua Nestor Pestana, Centro das mais importantes personalidades do ci- (1950); o Teatro João Caetano, na Vila Ma- nema brasileiro: Amácio Mazzaropi, indis- riana (1952); o Teatro Arthur Azevedo, na cutível campeão de bilheteria até a década Mooca (1952). de 1970. Apesar de só ter durado alguns 108

anos, a Vera Cruz formou uma geração de podiam ser sentidas também no âmbito do cineastas e profissionais de cinema. comportamento urbano e não apenas na Paulo Emílio Salles Gomes salienta que convivência possível entre a elite e os se- a iniciativa de se implantar a Vera Cruz al- tores ligados às artes, mas numa maior di- terou radicalmente o setor cinematográfico versidade de espaços para a classe média, de São Paulo: nos quais as mulheres também ganharam Em 1949 e 1950, cinco companhias cinemato- direito à noite. (GAMA, 1998, p. 234) gráficas são criadas e, nos próximos três anos, a Com medo desse novo comportamento quantidade de produtoras ultrapassa a casa das duas dezenas. Para compreender o surgimento e em nome de uma luta contra a prostitui- dessa indústria cinematográfica em São Paulo, ção, em 12 de maio de 1955, por meio do é necessário examinar a relação entre a burgue- Decreto nº. 24.548, o então Governador sia paulista, o mecenato cultural e a cultura ci- nematográfica que se desenvolvia na capital. A Jânio Quadros criou o Corpo de Policia- chamada “indústria cinematográfica” paulista mento Especial Feminino – o primeiro con- surge num momento de intensa atividade cul- tingente de policiais femininos na América tural em São Paulo. (Gomes apud ARRUDA, 2001, p. 123-124) Latina. Nos primeiros anos de sua atuação, as policiais eram destacadas para o setor Iniciativas como o TBC e a Vera Cruz de menores e de mulheres com o intuito de promoveram, na década de 1950, a migra- empreender a prevenção de crimes e con- ção de atores do Rio de Janeiro para São travenções. Nessa época, toda e qualquer Paulo em busca de melhores condições ar- senhora que saísse sozinha depois das dez tísticas e financeiras. Um exemplo é Nicette horas da noite – caso precisasse ir a uma Bruno, que, em 1951, aos 17 anos, criou farmácia ou comprar alguma coisa – estava em São Paulo o Teatro de Alumínio, na Pra- sujeita a ser flagrada por uma patrulha, ser ça das Bandeiras – edifício que mais tarde presa e considerada uma vadia, e só seria abrigaria a sede do Teatro Íntimo Nicette liberada caso apresentasse um documento Bruno, TINB. Outro grupo originado no Rio que demonstrasse o contrário. foi o Teatro Popular de Arte, TPA (1948), de Maria Della Costa e Sandro Poloni, que se estabeleceu em São Paulo em 1949 e, em 3.5.2 Depois dos mecenas 1955, transformou-se na companhia Teatro A compreensão das diversas institui- Maria Della Costa – TMDC. ções criadas no pós-guerra em São Paulo As mudanças e expansões dos meios de deve ser efetuada sob a ótica do fenômeno comunicação acarretaram alterações que imigratório, num tempo em que herdeiros 109

das famílias de estrangeiros já elevadas so- Segundo Sábato Magaldi e Maria The- cialmente adentraram o universo da cultu- reza Vargas (2000, p. 246-247), o TBC ra e estabeleceram a relação entre riqueza adotou a estética adotada, em grande par- e mecenato (ARRUDA, 2001, p. 131). Com te, pelos melhores conjuntos italianos, a concentração das iniciativas culturais franceses e ingleses da época: “Não repre- nas mãos de um grupo fechado de mece- senta desprestígio nenhum afirmar que os nas, os projetos não resistiram por muito grandes espetáculos do TBC, como o das tempo. Em 1954, a Companhia Vera Cruz companhias nascidas dele e que adotaram entrou em declínio, vítima da ausência de a mesma estética, podiam comparar-se às um sistema próprio de distribuição e da di- montagens semelhantes europeias e norte- ficuldade de colocar os filmes brasileiros americanas”. O TBC constituiu um padrão, no competitivo mercado internacional. E, que os mais jovens procuravam igualar, entre 1953 e 1955, devido à necessidade conseguiu consolidar o hábito de frequen- de pesados investimentos para manter a tar teatro e educou um público que procu- estrutura de seu teatro, Franco Zampari co- rava o espetáculo, familiarizado com a re- meçou a lutar contra grandes dificuldades gularidade do nível das produções. financeiras. Três anos depois da fundação do Teatro Como decorrência, alguns dos princi- Brasileiro de Comédia, em 1951, um grupo pais nomes do TBC saíram para fundar suas de alunos da Escola de Arte Dramática de próprias companhias. Em 1950, Madalena São Paulo lançou uma nova proposta de es- Nicol e Ruggero Jacobbi foram os primeiros paço cênico – um teatro de arena, cuja es- ex-integrantes a montar o seu próprio gru- tética contrariava os processos habituais de po. A eles se seguiram o casal Nydia Lícia produção dentro do teatro brasileiro, apoia- e Sérgio Cardoso que, em 1954, constituiu do basicamente sobre o trabalho do ator no sua própria companhia, locada no antigo espaço do palco italiano. Nessa nova esté- Teatro Bela Vista. Em 1956, foi a vez de Tô- tica, o espaço de representação era transfe- nia Carrero, Paulo Autran e o diretor Adolfo rido para o centro da casa de espetáculos, Celi fazerem o mesmo, estreando a Com- avançando em direção ao público e colo- panhia Tônia-Celi-Autran (CTCA). Cacilda cando a cena no mesmo nível de altura do Becker desligou-se do TBC em 1957 e, um espectador, no mesmo foco de um olhar ano depois, com Walmor Chagas, Ziem- “normal”. Para Mariângela Alves de Lima binski, Cleyde Yáconis e Fredi Kleemann, (2004), dificilmente se pode afirmar que fundou o Teatro Cacilda Becker – TCB. José Renato Pécora – o aluno que dirigiu O 110

Demorado Adeus, de Tennessee Williams, tempo, eram textos que traziam inovações como exercício de aprendizagem – tenha de linguagem na utilização dos símbolos captado imediatamente as possibilidades e e na exploração dos conflitos psicológicos as implicações em longo prazo dessa utili- (LIMA, 2004). zação de espaço. Para um grupo com poucos recursos Dessa primeira encenação consolidou- financeiros, o palco em arena deixava o se a ideia do palco em arena como um custo de produção consideravelmente mais recurso interessante pela sua própria ori- barato, por se tratar de um espaço cênico ginalidade. Em 1953, saindo da EAD, José que poderia ser “construído” em qualquer Renato reuniu um grupo de jovens atores lugar, dispensando a mobilização perpen- ainda desligados do mercado de trabalho e dicular de cenários ilusionistas. se propôs a organizar uma companhia per- Segundo o artigo “Teatro de Arena manente de teatro de arena. Embora o pla- como solução do problema da falta de te- no original fosse de autoria de José Renato, atro no Brasil” – assinado por Décio de Al- a nova companhia foi projetada com uma meida Prado, José Renato Pécora e Geraldo divisão de trabalho em partes iguais, na Matheus Torloni –, uma montagem no te- qual todos os integrantes eram responsá- atro de arena pode ser realizada com até veis pela organização e pelo levantamento 10% do valor de uma produção em teatro dos recursos econômicos necessários. O regular, utilizando apenas luz e o desempe- Arena introduziu uma experiência de co- nho dos atores. Essa economia de recursos operativa que foi sofrendo modificações e tornava o teatro de arena acessível para um adequações com o passar do tempo. Nos público até então ausente do circuito tra- moldes do TBC, o grupo formou uma com- dicional. Sob muitos aspectos, a ideia era panhia de elenco estável, com um repertó- extremamente oportuna. rio e uma unidade de realização artística. A estreia da Companhia Teatro de Are- Quanto ao repertório, o Teatro de Arena na aconteceu no dia 11 de abril de 1953, tinha como proposta implícita introduzir numa sala emprestada pelo Museu de Arte experiências inovadoras da dramaturgia Moderna de São Paulo, ainda na Rua Sete mundial. As primeiras produções manti- de Abril – entidade presidida por Ciccillo nham uma afinidade com peças contem- Matarazzo. Economicamente, os primeiros porâneas de estilo marcadamente intimis- espetáculos no museu não acrescentaram ta, que exigiam uma execução cuidadosa nem subtraíram nada ao precário capital da dos detalhes das personagens. Ao mesmo companhia. 111

De 1953 a 1957, dirigido por José Rena- sica, ao mesmo tempo em que o circo, as to, o Teatro de Arena montou textos de au- peças teatrais e as obras literárias entravam tores estrangeiros – como Marcel Archand, na programação televisiva. Luigi Pirandello, Tennessee Williams, Sean Em 1956, foi lançado o Suplemento O’Casey – e nacionais – Silveira Sampaio, Literário de Estado de S. Paulo, criado por , José Renato. Nessa época, Antonio Candido e dirigido por Décio de o grupo lançou profissionalmente atores Almeida Prado, até 1966. O Suplemen- como Eva Wilma, John Herbert, Gianfran- to, que se constituiu como espaço para cesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho – divulgação da cultura e do pensamento esses dois últimos provindos do Teatro Pau- brasileiro, saía aos sábados e foi algo sem lista do Estudante (TPE), formado em 1954 precedentes na imprensa brasileira, pela e absorvido pelo Arena em 1956. assiduidade de sua publicação e pela va- Paralelamente, São Paulo vivenciava riedade de artistas e escritores que ali co- um processo de urbanização que estava laboravam. Contudo, a compreensão da transformando a cidade numa metrópole. cultura paulistana nesse período, necessa- Anos antes, em 18 de setembro de 1950, riamente, deve ser também contemplada São Paulo fora palco de outra grande no- pelas lentes de uma nova dramaturgia que vidade: a primeira transmissão de televisão estava surgindo. no Brasil pela TV Tupi-Difusora, fundada Em 1954, Jorge Andrade, filho de fa- por Assis Chateaubriand e instalada no zendeiros, havia concluído sua formação bairro do Sumaré. No ano seguinte, a emis- como dramaturgo na Escola de Arte Dramá- sora transmitiu a primeira novela brasileira, tica (EAD). Andrade trouxe para os palcos Sua Vida me Pertence. Em breve surgiram o universo rural presente em sua memória, novas emissoras: a TV Paulista (1952) e a especialmente a derrocada da aristocracia TV Record (1953). do café e a adaptação ao meio urbano – Para Lúcia Helena Gama (1998, p.233), conflitos que atravessam a maior parte de a televisão criou uma nova dinâmica que suas obras, como A Moratória, espetáculo culminou em um processo de inter-relação que lançou Fernanda Montenegro, encena- entre os profissionais do cinema, teatro, do por Gianni Ratto, em 1955, pela compa- música, rádio, jornal, televisão, literatura, nhia de Maria Della Costa. circo etc. A literatura nacional e a sátira Jorge exprimiu os dilemas de uma sociedade de costumes, por exemplo, ganharam nova em franca transformação, indicativos do surgi- linguagem na boca dos radialistas e na mú- mento de sensibilidades propiciadoras das no- 112

vas linguagens. Construindo, a partir do amplo manecendo mais de um ano em cartaz em complexo espectro da memória, o dramaturgo São Paulo e salvando financeiramente o Te- encena conflitos e talha criaturas cinzeladas na decadência social, em convívio nada ameno atro de Arena. com as formas emergentes de sociabilidade. No mesmo ano de 1958, foi criado no (ARRUDA, 2001, p. 137) Centro Acadêmico 11 de Agosto, por um grupo de alunos da Faculdade de Direito Algumas de suas peças foram levadas da USP, o movimento A Oficina, com a in- ao palco pelo Teatro Brasileiro de Comé- tenção de fazer um novo teatro, distante do dia (TBC), tais como Pedreira das Almas “aburguesamento” do Teatro Brasileiro de (1958), A Escada (1961), Os Ossos do Ba- Comédia – TBC e do nacionalismo do Te- rão (1963), Vereda da Salvação (1964). Ao atro de Arena. Inspirado pelas ideias exis- longo de sua carreira, o trabalho de Jorge tencialistas de Sartre e Camus, a partir de de Andrade foi reconhecido em várias pre- 1959, o grupo montou diversas peças em miações: Prêmio Saci de Melhor Autor – A regime amador, procurando manter o ca- Moratória, em 1955, e Os Ossos do Barão, ráter de laboratório. Participam dessa fase em 1963; Prêmio da Associação Paulista José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi, de Críticos Teatrais – APCT, de Melhor Au- Carlos Queiroz Telles, Amir Haddad, Cae- tor – Pedreira das Almas, em 1958, A Es- tano Zamma, entre outros. cada, em 1961; e Vereda da Salvação, em Em 1961, com a aquisição do Teatro 1964; Prêmio do Serviço Nacional de Te- Novos Comediantes, na Rua Jaceguai, o atro – SNT de Melhor Autor – Rasto Atrás, Oficina se torna uma companhia profissio- em 1985; Troféu Molière – Marta, A Árvore nal. Destacam-se nessa época as monta- e O Relógio, em 1970, livro que contém gens de Pequenos Burgueses (1963); O Rei parte de sua obra. da Vela (1967) – espetáculo-manifesto tor- Outro destaque dentre os jovens auto- nado emblema do movimento tropicalista res foi Gianfrancesco Guarnieri, que, em que trouxe grande notoriedade ao grupo 1958, apresentou pela primeira vez na dra- – e Na Selva das Cidades (1969), obra de maturgia brasileira a classe operária como Bertolt Brecht que trata da profunda crise protagonista em Eles Não Usam Black-Tie. que atravessava o país e a equipe artística. A montagem – que trazia no elenco, além Dentre os atores que passaram pelo Teatro do autor, Lélia Abramo, Flávio Migliaccio, Oficina destacam-se Célia Helena, Raul Milton Gonçalves e Chico de Assis, entre Cortez, Ítala Nandi, Etty Frazer, Eugênio outros – foi um sucesso de bilheteria, per- Kusnet, Cláudio Correia e Castro, Fauzi 113

Arap, Beatriz Segall, Fernando Peixoto e dade, e algumas movimentações a favor da Mauro Mendonça. não-divulgação de determinadas obras de Em depoimento a Sérgio Roveri, Gian- arte, no cinema e no teatro, tiveram como francesco Guarnieri falou sobre o final da mentores esses grupos católicos. década de 1950: E a esquerda reagia. A militância polí- tica e o engajamento cultural andavam de Foi o nascimento do que a gente chamava de o teatro novo. […] não tenho notícias de um mãos dadas e os temas do debate político outro período que tenha sido tão decisivo para ecoavam diretamente nas produções artísti- a consolidação de um teatro brasileiro. co-culturais. Em artigo publicado na Revis- Foram aqueles grupos que deram uma cara para o teatro que estava sendo feito no Brasil. O Are- ta Brasiliense, principal veículo da esquer- na nasceu por força da fusão do pensamento de da brasileira durante as décadas de 50 e 60, esquerda com a pesquisa de uma nova drama- Gianfrancesco Guarnieri afirmou: turgia nacional. Esta preocupação em revelar novos autores que pudessem fazer um retrato Não vejo outro caminho para uma dramatur- do Brasil no palco já era tão evidente que, ain- gia voltada para os problemas de nossa gen- da durante a temporada de Black-tie, o Arena te, refletindo uma realidade objetiva, do que criou os famosos Seminários de Dramaturgia. uma definição clara ao lado do proletariado, (GUARNIERI apud ROVERI, 2004, p. 101) das massas exploradas. Para analisarmos com acerto a realidade, para movimentarmos nossos No campo político, a esquerda estava personagens em um ambiente concreto e não de sonho, o único caminho será o aberto pela muito ativa. No rádio, o Partido Comunista análise dialético-marxista dos fenômenos, par- era muito atuante e havia muitas reuniões tindo do materialismo filosófico (GUARNIERI, que contavam com a participação de ato- 1959, p. 124). res. A partir de meados da década de 50, extinguiu-se a possibilidade de sentaram-se Em 1962, Augusto Boal tomou a dire- à mesma mesa pessoas que tinham posições ção artística do Arena e as adaptações de políticas diversas – a polarização entre es- clássicos passaram a dominar o repertório. querda e direita foi decididamente estabe- Depois do Golpe de 64, inaugurou-se uma lecida. O acirramento dos conflitos entre as fase que conciliou a releitura de momen- forças políticas de esquerda e o posiciona- tos da história brasileira (Zumbi, Tiraden- mento da Igreja Católica adquiriram um ca- tes) com a efervescente música popular. Aí ráter mais amplo na sociedade. Lúcia Hele- surgiram nomes como Edu Lobo, Caetano na Gama (1998, p. 317) ressalta que havia Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethâ- uma “onda” moralizante, que se estendia à nia. Nessa fase, passaram pelo grupo atores própria vida pública e administrativa da ci- como Paulo José, Juca de Oliveira, Lima 114

Duarte, , Fauzi Arap e Yara Ama- histórica foi comprada pelo Serviço Nacio- ral, entre outros. nal de Teatro – SNT e renomeada como Te- Eram os tempos do Teatro Épico de atro Experimental Eugênio Kusnet. Brecht, uma forma de composição teatral Em 21 de abril de 1974, a polícia inva- que polemiza com as unidades e procura diu o e José Celso Martinez despertar o espectador como um ser social Corrêa foi preso e torturado. Num estrata- por meio de uma linguagem cênica subs- gema mirabolante para obter sua soltura, tancialmente organizada, a partir de textos Glauber Rocha enviou um telegrama “assi- que abordam os conflitos sociais sob uma nado” por Marlon Brando, Sartre, Marcuse, leitura marxista, encenados pelo método Lévi-Strauss, Orson Welles, Fellini, Sophia do Distanciamento. Dentre os recursos téc- Loren, John Lennon, Elizabeth Taylor, Jane nicos mais utilizados por esse gênero tea- Fonda, Beckett, Borges e García Márquez. tral estão a comunicação direta entre ator O golpe funcionou, mas, em liberdade vi- e público, a música como comentário da giada e sem condições de trabalho no Bra- ação, a ruptura de tempo-espaço entre as sil, José Celso saiu clandestinamente do cenas, a exposição do urdimento, das co- país e exilou-se em Portugal, de onde vol- xias e do aparato cenotécnico, o posiciona- tou em 1979. Em 1982, o antigo edifício do mento do ator como um crítico das ações Oficina foi ao chão para dar lugar ao proje- da personagem que interpreta e como um to de Lina Bo Bardi, que transformou-o em agente da história. Tais ingredientes estive- um teatro-pista, com parede de vidro e teto ram presentes em algumas das montagens retrátil. do Arena e do Oficina nos anos 60 e foram Para a escritora e jornalista Helena sendo extirpados depois do Ato Institucio- Silveira, nal no 5, em 1968, e do aumento da censu- num sentido mais extenso, o Arena e o Ofici- ra e da repressão. na, parecem-me, a distância, quando lembro seus espetáculos, muito mais importantes que Augusto Boal foi detido em 1971, du- o TBC, restrito a uma elite. No Arena nasceria, rante os ensaios de Arena Conta Bolivar, e mais tarde, o teatro-coringa, os artistas se trans- em seguida partiu para o exílio. O Arena formando em diversos personagens. Em 57, pre- cisamente no mês de julho, eu iria ao Arena ver passou às mãos do administrador Luiz Car- Juno e o Pavão, de Sean O’Casey, ilustremente los Arutin e do Núcleo, grupo remanescente traduzido por Manuel Bandeira. Os artistas me do espetáculo Teatro Jornal, mas não resis- pareciam todos crianças sérias e dramáticas, cheias de idealismo, ligadas à cidade, lá fora, tiu muito tempo – o fechamento do teatro por uma espécie de cordão umbilical, uma vez se deu no ano seguinte e, em 1977, a sala que eram resultantes de geografia e de tempo, 115

de todo um aglomerado de situações que o nos- teatro – a cooperativa, a repartição demo- so gigante planaltino possibilitou. Agora, penso crática das funções artísticas, a ausência de que, dez anos antes desse 57, seria impossível a São Paulo dar aquela equipe que dignificou hierarquias entre os criadores, diluição dos os meios teatrais. poderes –, os jovens artistas independentes O traço fundamental que caracterizou o Are- recuperam a possibilidade de escolher pro- na, desde seu início, foi a morte do estrelismo. As vozes deixaram de ser impostadas, e os ges- jetos, criar textos cênicos de autoria comum, tos, por serem próximos, tornavam-se naturais abandonar os “cânones teatrais” e fazer tea- (Silveira,1983, p. 202). tro contemporâneo. Décio de Almeida Prado (2007, p. 125) Dessas experiências coletivas destaca- em 1988, acreditava que o teatro brasileiro va-se, no Rio de Janeiro, o grupo Asdrúbal ainda permanecia preso ao passado, hipno- Trouxe o Trombone, criado pelos atores tizado pelos acontecimentos de 1968, “um Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães clímax histórico em que tudo se fez e se de- em 1974, cujo trabalho definia-se pela des- fez”. Para o crítico teatral, a herança deixa- construção da dramaturgia, a interpretação da pelo TBC, pelo Arena e pelo Oficina ain- despojada, a criação coletiva desenvolvida da se fazia presente. Do TBC sobreviveu o no processo de improvisações e jogos cole- teatro resolutamente empresarial, de peças tivos. Vários grupos no Rio de Janeiro, até bem feitas e montagens ricas e caprichadas. início dos anos 80, foram seus seguidores, Do Arena e do Oficina, com a abertura dos entre eles, a Companhia Tragicômica Jaz- anos 80, ressurgiu intacta em seus métodos o-Coração; Banduendes Por Acaso Estrela- e objetivos, a dramaturgia política. dos; Beijo na Boca; Diz-Ritmia. Na verdade, na década de 1970, sur- Em São Paulo, em 1971, no porão do giram no Brasil, de forma mais intensa em Teatro Oficina, surgiu o Pão e Circo, um São Paulo e no Rio de Janeiro, equipes te- grupo que misturava diversas linguagens – atrais que faziam do projeto coletivo um teatro de revista, comédia musical, desenho modo novo de posicionar-se na cultura, na animado, histórias em quadrinhos, comédia sociedade, na política e na arte. Para Silvia pastelão, programa humorístico de TV, me- Fernandes (FERNANDES, S. Grupos de tea- lodrama, contos de fadas, pornochanchada, tro nos anos 70, 2009. Disponível em URL: protesto e teatro do absurdo. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/ Havia também em São Paulo o Pod Mi- pdf/teatro%20de%20grupo/textosilviafer- noga – um grupo experimental de teatro, nandes.pdf. Acesso: 03 nov. 2011), a apro- dirigido por Naum Alves de Souza, que se priação conjunta dos meios de produção do caracterizava por uma linguagem de hu- 116

mor nonsense, com forte senso plástico – e apoio ao anteprojeto de abolição total da o Teatro Orgânico Aldebarã, criado na dé- censura. cada de 1970, que tinha como característi- A presença desses grupos nos anos 80 cas a produção cooperativada, a pesquisa significou contribuições importantes para de linguagens e a criação coletiva de seus a construção de um novo modelo de orga- espetáculos. nização teatral. A referência ao teatro de Constituído por Luiz Roberto Galízia, grupo, movimento que surgiu no processo Cacá Rosset e Maria Alice Vergueiro, to- de democratização do final do século XX, dos da ECA/USP, em 1977 foi criado o Te- criou o que hoje podemos chamar um cam- atro do Ornitorrinco, grupo de teatro que po específico dentro do fazer teatral nacio- encenava textos clássicos e de vanguar- nal, que tem paralelos com movimentos da com enorme liberdade e irreverência. similares na América Latina. Ubu, Folias Physicas, Pataphisicas e Mu- Nesse breve passeio pela história da sicaes, de 1985, baseada no clássico Ubu capital paulista, procuramos relatar os prin- Rei, de Alfred Jarry, uma comédia satírica cipais eventos ligados à opinião pública, à utilizando-se de várias linguagens – como cultura e ao teatro ocorridos na cidade. O circo, dança, teatro e música – atraiu os intuito era de estabelecer uma contextua- jovens e teve suas sessões lotadas por lização histórica e social da esfera pública mais de dois anos. Em 1987, às vésperas em São Paulo para melhor compreender os da estreia, a nova peça do Ornitorrinco, fenômenos de opinião pública ligados aos Teledeum, de Albert Boadella, foi interdi- processos de censura das três peças analisa- tada pelo Serviço de Censura e Diversões das: Perdoa-me Por Me Traíres, de Nelson Públicas da Polícia Federal de São Paulo, Rodrigues (1957), A Semente, de Gianfran- que a considerou ofensiva à religião. Com cesco Guarnieri (1961), e Roda Viva, de a liderança de Cacá Rosset, foi lançada a Chico Buarque de Hollanda (1968). Passe- campanha das “trinta mil assinaturas”, em mos então ao corpus dessa pesquisa. 117 Capítulo 4 Os três atos da sociedade paulista 118

4.1 Primeiro Ato 4.1.1A obra de Nelson Rodrigues

Filho do combativo jornalista Mário der A Manhã e, em menos de dois meses, Leite Rodrigues, Nelson Falcão Rodrigues lançou um novo jornal: Crítica – uma publi- nasceu no Recife, Pernambuco, em 23 de cação polêmica e de sucesso estrondoso. agosto de 1912. Mas viveu pouco tempo na No final de 1929, aos 17 anos, Nelson “Veneza brasileira”. Devido a perseguições presenciou a primeira cena de violência de políticas sofridas pelo patriarca, a família sua vida: o assassinato de seu irmão Rober- Rodrigues teve que se estabelecer na então to por Sylvia Seraphim – uma escritora que capital federal em julho de 1916. se sentiu difamada pelo jornal e que foi à No Rio de Janeiro, a verve contestatória redação de Crítica para matar o diretor Má- de Mário Rodrigues continuou a se manifes- rio Rodrigues. Não o encontrando, atirou tar. Em 1924, foi processado e condenado em Roberto, que veio a falecer dois dias por um artigo que não escreveu e que fora depois. Para Ruy Castro, autor de O Anjo publicado no jornal Correio da Manhã – pe- Pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues, riódico no qual ocupava o cargo de edito- “ninguém conseguirá penetrar no teatro de rialista. Em agosto, o pai de Nelson foi preso Nelson Rodrigues sem entender a tragédia e o Correio da Manhã, retirado das ruas, vol- provocada pela morte de Roberto” (CAS- tando a circular somente oito meses depois. TRO, 1992, p. 94). Na visão de Nelson, a Ao sair da prisão, Mário Rodrigues decidiu morte de Roberto tinha um forte compo- ter o seu próprio jornal – A Manhã –, lança- nente de vingança irracional, sublinhando do dia 29 de dezembro de 1925. o absurdo da existência. Esse episódio traz Aos treze anos de idade, Nelson con- a lembrança da fatalidade presente nas tra- venceu seu pai a deixá-lo trabalhar como gédias gregas, nas quais as culpas dos pais repórter de polícia na redação. A certa altu- recaem sobre os filhos, no encadeamento ra, todos os jovens Rodrigues faziam parte inexorável da maldição familiar. dos quadros de A Manhã. Milton era o se- O destino, aos olhos da família Rodri- cretário do jornal, Roberto, ilustrador e Má- gues, foi ainda mais cruel, pois o crime fi- rio Filho assumiu a página de esportes. cou impune: por cinco votos a dois, a as- Afundado em dívidas, em outubro de sassina do irmão de Nelson foi absolvida 1928, Mário Rodrigues foi obrigado a ven- pelo tribunal do júri. 119

Sylvia Seraphim, contudo, não escapou indivíduo, superando a capacidade de conter de um final trágico – suicidou-se aos trinta a conduta pelo raciocínio disciplinador. (MA- GALDI, 1987, pp. 30 e 31) e três anos, ingerindo um vidro inteiro de sonífero. Aliás, o desfecho trágico presente E a fatalidade continuou a se abater so- nesse drama da vida pessoal do dramaturgo bre a família Rodrigues naquele período. é comum em quinze das dezessete peças Apenas 77 dias após o assassinato de Rober- que Nelson veio a escrever (A Mulher Sem to, Mário Rodrigues morreu, aos 44 anos, de Pecado; Vestido de Noiva; Álbum de Fa- encefalite aguda e hemorragia. mília; Anjo Negro; Senhora dos Afogados; Nas ruas, o país vivia a Revolução de Doroteia; Valsa nº. 6; A Falecida; Perdoa- 1930. As redações e oficinas gráficas fo- Me Por Me Traíres; Os Sete Gatinhos; Boca ram invadidas e empasteladas e todas as de Ouro; Beijo no Asfalto; Bonitinha, Mas máquinas de Crítica foram destruídas. Mil- Ordinária; Toda Nudez Será Castigada; A ton, Mário Filho e Nelson tiveram que sair Serpente) – mortes violentas, crimes e suicí- à procura de emprego e não obtiveram su- dios são desfechos constantes dos persona- cesso. Só em maio de 1931, quando Ro- gens rodriguianos. berto Marinho assumiu a direção do jornal Sábato Magaldi comenta essa vocação O Globo, é que os filhos do polêmico Má- para o trágico na obra rodriguiana: rio Rodrigues encontraram trabalho. Como A maioria dos protagonistas de Nelson suporta jornalista, durante os dez anos que se se- uma carga de aniquilação que os aproxima do herói expressionista. Na tragédia grega, pesa guiram, Nelson, já casado e estagnado pro- sobre o indivíduo uma fatalidade, que o faz fissionalmente, não gozava de estabilidade passar de um estado bom inicial a um estado financeira. Foi o acaso que lhe apontou mau final. Abate-se sobre ele o Destino, brin- cando ironicamente com as ilusões da aventura um novo caminho. Ao passar pela porta terrestre. Até seu último dia de vida, nenhum do Teatro Rival, na Cinelândia, deparou-se herói trágico pode acreditar que a vida tenha com uma enorme fila para ver Jayme Costa sido feliz. [...] O herói expressionista tem com o trágico em A família Lerolero, de R. Magalhães Jr. o parentesco da fatalidade, que o abate irre- Nelson ouviu alguém comentar que aque- mediavelmente. Apenas, a fatalidade vem do la chanchada estava rendendo “os tubos”. íntimo, força avassaladora que o arrasta para o abismo. O homem carrega dentro de si de- E, segundo Ruy Castro (1992, p. 189), se mônios que, se liberados, o perdem para sem- perguntou: “Por que não escrever teatro?”. pre. A vida arrasta-se em equilíbrio instável, até Afinal, era uma tarefa mais rápida que es- que, ao ser acionada a fera que habita nele, do- crever um romance. Foi então que Nelson mina-o a vertigem do aniquilamento. Esse é o instante da liberação das reservas irracionais do resolveu tentar. 120

Sua primeira peça, A Mulher Sem Pe- A proibição de Álbum de Família foi cado, escrita em meados de 1941 e ence- um dos primeiros atos do governo de Eurico nada em 1942, deu-lhe os primeiros sinais Gaspar Dutra. Muitos intelectuais indigna- de prestígio dentro do cenário teatral. O ram-se, pois viram esse ato da censura como sucesso mesmo veio com Vestido de Noi- um perigoso precedente. Outras pessoas in- va, que trazia, em matéria de teatro, uma fluentes na sociedade carioca acharam que renovação nunca vista em nossos palcos Álbum de Família realmente passava dos limi- – um texto fragmentado e ousado sobre as tes – que sua liberação seria um escracho con- tra a família brasileira. Se fosse liberada, pais e lembranças e delírios de uma mulher que filhos seguiriam o exemplo daqueles persona- agoniza durante uma cirurgia. gens alucinados e sairiam copulando alegre- Sábato Magaldi (1987, p. 12) defende que mente pelos lares. E houve ainda outros, como o espetáculo Vestido de Noiva, encenado o episcopal Álvaro Lins, que, mantendo a pos- tura superior de condenar a interdição da peça, pelo grupo Os Comediantes no Teatro Mu- arrasou-a como teatro. (CASTRO, 1992, p. 196) nicipal do Rio, em 28 de dezembro de 1943, renovou o palco brasileiro moderno – quer Esse ataque de Álvaro Lins desencadeou pelo texto, quer pela direção de Ziembinski. uma grande polêmica em toda a imprensa O autor conheceu uma fulminante celebri- da capital federal. O Diário de Notícias de- dade e, desde então, passou a ser referência fendia, dizendo não entender o motivo da obrigatória na dramaturgia brasileira. “excomunhão” de Nelson. Em O Globo, Em sua próxima peça, Álbum de Famí- Pompeu de Souza também se posicionou lia, escrita em 1945, Nelson Rodrigues co- a favor da liberação e Álvaro Lins, que rea- meçou a ser Nelson Rodrigues. A peça foi firmou o direito de representação, reivindi- interditada em 17 de março de 1946 e libe- cou também o seu próprio direito de dizer rada somente em 3 de dezembro de 1965. que a obra era ruim. O Cruzeiro estranhou Nas palavras de Ruy Castro, a interdição da peça e vários de seus ar-

bastou uma leitura em diagonal para que os cen- ticulistas opinaram pela liberação. Manuel sores ficassem de cabelo em pé. Eles nunca ti- Bandeira foi mais longe e proclamou Nel- nham visto nada tão “indecente” ou “doentio” – son Rodrigues o maior poeta dramático que e olhe que alguns desses censores, já macróbios, tinham décadas de convívio diário com toda já apareceu em nossa literatura. espécie de perversão e atrocidade. A represen- Só duas pessoas defenderam a interdi- tação da peça foi proibida sob a alegação deque ção de Álbum de Família: Jaime Costa e “preconizava o incesto” e “incitava” ao crime. Alceu de Amoroso Lima, para quem a peça Nenhuma referência ao lesbianismo – o que a peça também tinha. (CASTRO, 1992, p. 196) não passava da mais vulgar subliteratura. 121

A visão moralista saiu-se vencedora e, desagradável”, “peças desagradáveis”. No gêne- a partir daí, os antigos admiradores de Ves- ro destas, incluí, desde logo, Álbum de Família, Anjo Negro e a recente Senhora dos Afogados. E tido de Noiva passaram a ver o nome do por que “peças desagradáveis”? Segundo já dis- dramaturgo como sinônimo de obsceno e se, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, tarado. Anjo Negro, feita em 1946, trouxe por si sós, de produzir tifo e a malária na plateia. (RODRIGUES apud MAGALDI, 1987, p. 12) a segunda interdição para o autor, em ja- neiro de 1948. Nelson Rodrigues desta vez Em 1949, Nelson escreveu a “farsa ir- apelou para a Igreja Católica, conseguindo responsável” Doroteia, que subiu à cena um parecer favorável à peça do padre Leo- em 7 de março de 1950, no Teatro Fênix nel Franca, teólogo jesuíta e consultor dos do Rio. A peça ficou apenas treze dias em bispos brasileiros. Com esse parecer, Nel- cartaz. Nelson diria: “Doroteia é o maior son conseguiu liberar Anjo Negro, que foi à fracasso do Ocidente. Nem minha mãe gos- cena em 2 de abril, no Teatro Fênix do Rio. tou” (RODRIGUES apud CASTRO, 1992, p. Em 1948, Senhora dos Afogados foi a 219). terceira interdição do autor. A peça só es- Em 1951, Nelson foi convidado por Sa- treou seis anos depois, em 1º de junho de muel Wainer para trabalhar em um jornal 1954, no Teatro Municipal do Rio, monta- que iria lançar em 12 de junho: o Última da pela Companhia Dramática Nacional, Hora. Lá, Nelson passou a escrever uma do Serviço Nacional de Teatro, dirigida por coluna diária: A Vida Como Ela É... – um Bibi Ferreira. misto de conto e crônica, na qual Nelson Em depoimento publicado em outubro experimentava situações e personagens de 1949, sob o título de “Teatro Desagra- que desenvolveria mais tarde em suas dável”, Nelson Rodrigues rememora sua peças. Segundo Sábato Magaldi (1987, trajetória: p. 17), a audácia dos contos popularizou

Com Vestido de Noiva, conheci o sucesso: com mais que nunca o nome de Nelson Rodri- as peças seguintes, perdi-o para sempre. Não há gues e, nos transportes coletivos do Rio, nesta observação nenhum amargor, nenhuma era comum ver numerosos passageiros na dramaticidade. Há, simplesmente, o reconheci- mento de um fato e sua aceitação. Pois a partir leitura do Última Hora. O amplo contato de Álbum de Família – drama que se seguiu a com a população viria repercutir na obra Vestido de Noiva – enveredei por um caminho teatral: o filão das tragédias cariocas, for- que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: de um mado por oito peças que exploravam sem- teatro que se poderia chamar assim – “desagra- pre um conflito amargo do cotidiano do dável”. Numa palavra, estou fazendo um “teatro Rio, teve sua origem nessa coluna. 122

A Falecida (1953) inaugurou esse ci- Imaginem vocês um centauro que fosse a me- clo. Seguiram-se Perdoa-me Por Me Traíres tade cavalo e a outra metade também. Era esta a minha imagem para gregos e troianos. De- (1957), Os Sete Gatinhos (1958), Boca de testado por uns, tarado para outros, mal-ama- Ouro (1959), O Beijo no Asfalto (1960), Bo- do por todos. Dirão vocês que exagero. Mas nitinha, Mas Ordinária (1962), Toda Nudez creiam que, durante vinte anos, fui eu o único autor obsceno do teatro brasileiro. Na estreia Será Castigada (1965) e A Serpente (1980). da minha peça Anjo Negro, o Diário da Noite Duas de suas peças quebram o ciclo das me chamou de tarado, no alto da página, em tragédias cariocas: Viúva, Porém Honesta oito colunas. Nunca me esqueço de uma pie- dosa dama que, num sarau de grã-finos, disse (1957) – satirizava a crítica teatral – e Anti- esbugalhada: – “O Nelson Rodrigues é o quê?”. Nelson Rodrigues (1973) – uma abordagem Veio a resposta: – “Necrófilo!”. narcisista do universo do autor. Mas há pior e, repito, há pior. Em outro sarau, um sujeito explica que “Nelson Rodrigues fazia Para Sábato Magaldi, a dramaturgia ro- a sesta num caixão de defunto”. Pensando bem, driguiana constitui o mais amplo painel tea- eu não era bem um autor controvertido. Havia tral da sociedade urbana brasileira. Nas pa- em torno de minha pessoa, textos e atos, uma sólida e crudelíssima unanimidade (RODRI- lavras do crítico teatral, a obra de Nelson é GUES, 1995, p.180). uma desmascaradora sondagem da criatura hu- mana, na obra do trágico. Por meio da lingua- Mesmo com tantas agruras durante sua gem, límpida, sucinta, vibrátil, e da capacidade carreira, o fato é que o nome de Nelson fi- de expor os desvãos menos confessáveis de suas personagens, Nelson abriu caminho para todos cou vinculado não só à história da recente os dramaturgos surgidos nas últimas décadas. dramaturgia, mas também à da encenação (MAGALDI, 1987, p. 18). brasileira contemporânea. A dramaturgia Entretanto, boa parte da sociedade de Nelson Rodrigues rompeu tabus, criou brasileira nos anos 50 não pensava assim. nova linguagem, instituiu uma estrutura Carlos Lacerda, por exemplo, constante- não convencional, propôs uma corporeida- mente chamava-o de “O Tarado Nelson de cênica a partir de uma grande economia Rodrigues” nos microfones da Rádio Glo- de meios. Em suas dezessete peças, número bo. Apesar de saber que Nelson Rodrigues alcançado por poucos outros autores brasi- era absolutamente anticomunista, Lacerda leiros de projeção, nunca deixou o espec- alardeava que o dramaturgo era um dos tador indiferente: provocava, instigava, fus- instrumentos do plano comunista do Últi- tigava por meio de personagens capazes de ma Hora para destruir a família brasileira. estabelecer um contraste perturbador com Em crônica escrita em 1970, Nelson a nossa pacata conduta social e as nossas fala de sua imagem pública: crenças superficiais. Nelson gostava de 123

causar o espanto, a reação e até o repúdio tudo em francês. Nelson, definitivamente, não do público, trazendo a plateia para a dis- era ”bem”. Eles o achavam “marrom”, ligado a jornais de escândalos. Digamos, grosso (CAS- cussão de problemas essenciais dos rela- TRO, 1992, p. 251). cionamentos. Diante dessas considerações, Sábato Magaldi acredita que é forçoso con- Outro motivo elencado foi o de que não cluir que Nelson Rodrigues é o maior autor havia clima para Nelson Rodrigues em São da história do teatro brasileiro. Paulo no começo dos anos 50. Poucos anos Em 21 de dezembro de 1980, aos 68 depois, em 1957, quando a Companhia de anos, Nelson Rodrigues morreu de trombo- Jayme Costa tentou encenar Nelson Rodri- se e insuficiência cardíaca em um hospital gues novamente em São Paulo, essa alegação em Laranjeiras. parecia verdadeira. Tratava-se de Perdoa-me Por Me Traíres, uma obra peculiar por vários motivos. Comecemos pelo enredo. 4.1.2 Sem Perdão – a peça O primeiro ato de Perdoa-me Por Me Perdoa-me Por Me Traíres Traíres começa com a cena de Nair e Glo- A primeira tentativa de encenar Nelson rinha, duas adolescentes em uniforme de Rodrigues em São Paulo deu-se em meados escola, chegando à casa de Madame Luba, de 1953, quando Ziembinski propôs Se- mulher que agencia meninas de família para nhora dos Afogados para o TBC. A peça foi deputados. Apesar de reticente e chorosa, aceita e, por duas semanas, deu-se a leitura Glorinha aceita prostituir-se com o deputado do texto com os atores. Porém, o espetá- Jubileu de Almeida, um “velho, velhíssimo”. culo nunca chegou à fase dos ensaios e foi Quando ficam a sós, Dr. Jubileu mostra uma cancelado porque não passou pela censu- faceta peculiar – só sente prazer ao decla- ra. Na época, nem o próprio Nelson soube mar um ponto de ciências naturais: dessa deliberação em São Paulo e muito se DR. JUBILEU (NO AUGE) Os Elétrons, os Pró- cogitou sobre a questão. Em seu livro, Ruy tons, as Partículas, o Núcleo! (FINALMENTE, O DR. JUBILEU CAI DE JOELHOS, PORQUE Castro colheu alguns depoimentos de vete- ALCANÇA O MÁXIMO DE TENSÃO. ASSIM ranos do TBC, alguns sinalizando os prová- DE JOELHOS, MERGULHA O ROSTO NAS veis motivos do cancelamento de Senhora DUAS MÃOS. É UM SOLUÇO INTERMINÁVEL, GROSSO COMO UM MUGIDO). (Proc. 4469 dos Afogados. in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA)

O TBC era o xodó da alta classe média de São Paulo. Era esnobíssimo, o governador do Esta- A cena é longa e pode-se imaginar que do ia às estreias. Se pudesse, o TBC encenaria o conteúdo era bem forte para a época: o 124

ator que interpreta o deputado simulando depois da morte de sua mãe, Judith – de- no palco uma masturbação, num bordel, talhes do passado de sua família: Gilberto, inspirado por uma menor de idade de clas- seu pai e irmão de Raul, desconfiava que se média, vestida com a roupa de colégio. a mulher o traía. Como consequência de Na sequência da ação, ao saírem da casa seus ciúmes, batia e ofendia Judith com tal de Madame Luba, Nair confessa a Glorinha intensidade que, um dia, ele próprio pediu que está grávida e pede que a amiga se sui- para ser internado em uma casa de saúde. cide junto com ela. Com a recusa da propos- Lá passou seis meses. Ao voltar para casa, ta, Nair pede que Glorinha, pelo menos, vá Gilberto encontra Judith indiferente e é acompanhá-la ao ginecologista, para consu- surpreendido por uma revelação de Raul: mar um aborto. um investigador, que fora contratado para A seguir, na sala de cirurgia como ce- acompanhar os passos de Judith, desco- nário, um médico – que aparece chupando briu todos os detalhes íntimos de um caso tangerina e expelindo os caroços – atende amoroso. Ao invés do costumeiro acesso Nair. Algo dá errado, a menina tem forte de fúria, Gilberto, num soluço imenso e hemorragia e se desespera. O médico lhe agarrado a Judith, diz à mulher: “perdoa- diz: “Você não pode morrer no meu consul- me por me traíres”. Raul não acredita no tório. Imagine: - eu me sujar por causa de que vê e incita Judith a pedir uma nova uma prostitutazinha. Se houver escândalo, internação de Gilberto. com que cara vou aparecer diante da besta A sogra de Judith, que também presen- do meu sogro, que é metido a Caxias?”. E, ciou a cena, com ódio no olhar, dizia da esbravejando, continua: nora: “Como é limpa, como é cheirosa! Imagina tu que ela própria me disse que faz Essa bestalhona não para de gemer! (PARA A ENFERMEIRA) Põe gaze, entope isso de gaze! E a higiene íntima três vezes por dia, se tem vá escutando: - se me denunciares, já sabes: - cabimento! Tanto asseio não havia de ser eu direi que tu és uma fazedora de anjo muito para o marido, duvido!”. ordinária, direi que já mataste vários! Tenho tua ficha, não te esqueças! (Proc. 4469 in ARQUI- Depois, a sós com Judith, Raul obriga a VO MIROEL SILVEIRA) cunhada a confessar todas as suas infideli- dades e a força a tomar veneno. O pano do O primeiro ato termina com o desespe- segundo ato abaixa quando Tio Raul sen- ro do médico diante de uma tragédia imi- tencia: “Ela não trairá nunca mais”. nente. Começa o segundo ato e Glorinha, O terceiro e último ato traz um longo já em casa, ouve de Raul – o tio que a criou diálogo entre Raul e Glorinha. 125

Depois de vangloriar-se de ser o assas- de uma vez só, e Glorinha atira-lhe no rosto sino de Judith, Tio Raul passa também a o conteúdo do seu. Enquanto vê o tio ago- confrontar Glorinha com seus atos: acusa- nizar, telefona para a casa de Madame Luba dor, diz que recebeu o telefonema de um confirmando sua presença em outro encon- ginecologista e foi ao seu consultório. Lá, tro com o deputado. A peça termina com viu Nair agonizar durante toda a noite com Raul morto no colo de sua mulher – uma uma forte hemorragia. Antes de morrer, po- personagem menor, que sempre aparece rém, Nair contou-lhe tudo o que se passara como um fantasma falando coisas sem sen- na casa de Madame Luba. tido. Essa trama conturbada causou tanto Tio Raul, ameaçando a sobrinha de furor quanto transtornos desde sua primeira morte, pergunta-lhe: “E compreendes, ago- montagem no Rio de Janeiro. ra, por que eu contei a história de tua mãe? Nelson Rodrigues sempre foi um tor- Porque vocês se parecem como duas cha- mento na vida da Censura carioca, instala- mas e vão ter o mesmo destino, Glória.”. da no antigo Necrotério Municipal da Praça Suplicando por sua vida, Glorinha tenta Quinze. “Quando os jornais anunciavam seduzir Raul e pede um beijo ao tio antes que uma nova peça do ‘tarado’ desponta- de morrer. Um beijo de língua. O tio cede va no horizonte, alguns censores sentiam aos encantos da sobrinha e dá-lhe o beijo. A inveja dos cadáveres que haviam habitado menina, então, aproveita para pedir clemên- aquelas salas. Sabiam que tinham encrenca cia por sua vida. Raul enlouquece de raiva pela frente”. (CASTRO, 1992, p. 269) e Glorinha faz, então, seu último apelo: “Já Cada peça de Nelson tornava-se um di- que eu devo morrer, não quero morrer so- lema para a Censura: se, por um lado, uma zinha como Nair, que morreu tão só. Mor- parcela da sociedade não aceitava certas re comigo, junto comigo! (SOLUÇANDO) coisas que ele escrevia, de outro, achavam Juro, que não teria medo de morrer conti- que a proibição ou a imposição de cortes go!”. Raul confessa-lhe que amava Judith à peça era o que Nelson mais queria para e que a beijou enquanto a via morrer: “Oh se promover. Afinal, segundo Ruy Castro Judith, possuída por muitos, só amada por (1992, p. 269), em represália aos atos da mim!”. E diz a Glorinha: “eu te criei para Censura, Nelson mobilizava amigos e de- mim. Dia e noite, eu te criei para mim! Mor- sencadeava uma campanha nos jornais que re pensando que eu te criei para mim!”. azucrinava até os altos escalões do poder. Os dois levam os copos com veneno O Ministro da Justiça ao ser incomodado, aos lábios, ao mesmo tempo. Tio Raul bebe dava um sabão no Diretor da Divisão de Di- 126

versões Públicas, que, por sua vez, ia para terpretando tio Raul – personagem crucial cima do funcionário que examinou a obra. na trama. Como foi dito, na cena final, tio Depois, a peça acabava sendo liberada e Raul tem de beber um copo de veneno, es- o censor ficava numa situação constran- trebuchar, rolar três ou quatro degraus de gedora junto aos seus pares. Sendo assim, escada e morrer espetacularmente no pal- nenhum censor queria assumir sozinho o co do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. parecer das peças de Nelson. Durante a temporada de dez dias, período Ruy Castro (1992, p. 270) apontou que reservado ao espetáculo, Nelson encarnou o argumento de Perdoa-me Por Me Traíres- seu papel e dizia: “Um Laurence Olivier, surgiu num episódio que Nelson presen- quando morre no palco, morre como Lau- ciara na infância: um ourives de profissão rence Olivier. Mas na vida real, ninguém que, quanto mais traído pela mulher, mais morre como Laurence Olivier. Morre como amava a infiel. Um dia, a adúltera se ma- um canastrão. Portanto, só o canastrão é tou e, segundo as vizinhas, induzida pelo capaz de estrebuchar no palco com o máxi- próprio marido a beber veneno. No velório, mo de realismo”. (CASTRO, 1992, p. 271) o marido gritava para o caixão: “Canalha! Na sua estreia, em 19 de junho de Canalha!”. Mas, ao invés de estar ofenden- 1957, a violenta reação da plateia, no dizer do a falecida, gritava para si próprio, num do autor, deveu-se a um “pavoroso” fluxo autoflagelo por ter chamado a adúltera de de consciência. Nelson narra o que foi a adúltera e a levado a morrer. primeira noite de Perdoa-me: Para o chefe da Censura em 1957, Hil- Embora sendo o pior ator do mundo, represen- don Rocha, apesar de Perdoa-me Por Me tei, imaginem, eu representei. Era a maneira de unir minha sorte à de uma peça que me parecia Traíres ter as perversões e depravações cos- polêmica. Muito bem. Os dois primeiros atos tumeiras da obra de Nelson, uma cena não foram aplaudidos. Nos bastidores, imaginei: – poderia ser encenada: o aborto – a Igreja “Sucesso”. Mas ao abaixar o pano, no terceiro ato, o teatro veio abaixo. Explodiu uma vaia Católica ia surtar se aquilo fosse ao palco. jamais concebida. Senhoras grã-finérrimas su- Contudo, o diretor da peça, Léo Júsi, con- biam nas cadeiras, assoviavam como apaches. seguiu impedir que a cena fosse cortada Meu texto não tinha um mísero palavrão. Quem dizia os palavrões era a plateia. No camarote, o alegando que a intenção do autor era justa- então vereador Wilson Leite Passos puxou um mente condenar aquela prática. revólver. E como Tom Mix, queria, de certo, fu- Outra das peculiaridades da peça foi zilar o meu texto. Em suma: – eu, simples autor dramático, fui tratado como no filme de ban- trazer na montagem carioca, pela primeira gue-bangue se trata ladrão de cavalos. A plateia e única vez, o próprio Nelson em cena, in- só faltou me enforcar num galho de árvore. 127

E continua: Raul. Apesar do sucesso de público, decor- Lembro-me de uma santa senhora, trepada na rente da polêmica em torno da estreia, pou- cadeira, a esganiçar-se: “Tarado! Tarado”. E, cas das peças de Nelson Rodrigues foram então, comecei a ver tudo maravilhosamente claro. Ali, não se tratava de gostar ou não gos- tão desancadas pela crítica. Paulo Francis, tar. Quem não gosta, simplesmente não gosta, jornalista que gostava do dramaturgo, ata- vai para casa mais cedo, sai no primeiro inter- cou Perdoa-me Por Me Traíres nas páginas valo. Mas se as damas subiam pelas paredes como lagartixas profissionais; se outras sapate- do próprio Última Hora – jornal onde am- avam como bailarinas espanholas; se cavalhei- bos trabalhavam. ros queriam invadir a cena – aquilo tinha de Toda essa confusão em torno da primei- ser algo de mais profundo, inexorável e vital. Perdoa-me Por Me Traíres forçara na plateia ra montagem trouxe consequências para a um pavoroso fluxo de consciência. E eu posso apresentação em São Paulo – com estreia dizer, sem nenhuma pose, que, para a minha prevista para 4 de setembro de 1957. Ape- sensibilidade autoral, a verdadeira apoteose é a sar de liberada no Rio de Janeiro, a Divisão vaia. (RODRIGUES, 1995. pp.148 - 149). de Diversões Públicas (DDP) do Departa- No dia seguinte, a Censura proibiu mento de Investigações da Secretaria de Perdoa-me Por Me Traíress por pressão do Estado dos Negócios da Segurança Pública vereador Wilson Leite Passos – que mais à interditou a peça na capital paulista no dia noite foi ao programa de Gilson Amado, na 16 de agosto de 1957: TV Tupi, para garantir que não deu nem um À vista do relatório do censor designado, do tiro sequer no Teatro Municipal. qual o interessado tomou conhecimento, de- nego a expedição de certificado de aprovação, Em busca da liberação, Léo Júsi, o dire- impugnando a representação da presente peça, tor, procurou imediatamente o então bispo em todo o território do Estado. auxiliar do Rio de Janeiro, dom Helder Câ- Joaquim Büller Souto – Diretor (Proc. 4469 in mara, que foi bem receptivo e prometeu fa- ARQUIVO MIROEL SILVEIRA) lar com dom Jaime de Barros Câmara. Com o aval da Igreja, Perdoa-me Por Me Traíres Os trâmites censórios foi encenada naquela mesma noite sem Como lhe era peculiar, Nelson Rodri- qualquer incidente, com o Municipal lota- gues começou usar de sua influência para do. O sucesso fez com que a temporada de obter uma revisão do processo nº 4469 da dez dias fosse ampliada por mais dois me- DDP – hoje presente no acervo do Arquivo ses no Teatro Carlos Gomes. Só que, desta Miroel Silveira. Conseguiu, na ocasião, que vez, com a aposentadoria de Nelson como fosse instituída uma comissão para reava- ator, um substituto assumiu o papel de Tio liar o caso. 128

Em 22 de agosto de 1957, o Presidente força de situações. A peça, artisticamente, da Comissão Estadual de Teatro, Francisco impunha-se como intriga, como desenho Luiz de Almeida Salles, foi chamado a dar de situações e teria indiscutível qualidade seu parecer sobre Perdoa-me Por Me Traíres. cênica no segundo ato – quando a circuns- Como homem de teatro, celebrou a liber- tância presente se serve da reconstituição dade de manifestação do pensamento con- paralela de circunstâncias do passado para sagrada no artigo 141, §5 da Constituição se radicar e se esclarecer. Brasileira, ressaltando que a única exceção Na visão do Presidente da CET, a não a essa liberdade na época dizia respeito à aprovação da peça poderia ser explicada censura a espetáculos e diversões públicas. apenas pelo tema escolhido: a perversão E, justamente por ser uma exceção, o poder de adolescentes, a tara sexual de adultos, de censura sempre deveria ser exercido com a imoralidade das personagens e as cenas extrema cautela, por se tratar de uma restri- macabras, como as do 1º ato, no prostíbulo ção parcial a um direito individual assegu- e no consultório médico. Porém, esses te- rado pelo regime vigente. Assim sendo, esse mas a tornariam verdadeiramente danosa, poder de censura só poderia ser acionado como efeito moral, apenas sobre um públi- caso fossem esgotadas todas as possibilida- co não adulto, não formado. des de manifestação, sem ônus moral e so- Assim sendo, Almeida Salles sugeriu a cial ao espetáculo. delimitação rigorosa da faixa etária da au- No caso da interdição da peça Perdoa- diência, restringindo-se o público a maiores me Por Me Traíres, Almeida Salles postulou de 21 anos. A seu ver, a única forma legíti- que havia de se considerar dois aspectos ma de censura, e que deveria, preferencial- em relação ao processo: a categoria do mente, sempre ser a escolhida pelo Estado escritor e o esforço de se empregar outros em casos como este. meios que não a interdição total do espetá- Em 23 de agosto de 1957, Nelson da culo. Afinal, desde o seu Vestido de Noiva, Veiga, delegado auxiliar da 2ª. Divisão Po- Nelson Rodrigues seria um autor dramático licial, e um certo professor Hilário Veiga de de inegáveis méritos. Carvalho subscreveram outro parecer pela Apesar de considerar Perdoa-me Por manutenção da impugnação da Censura. Me Traíres inferior às obras anteriores do Ressaltaram que a peça nada oferecia autor, Almeida Salles ressaltou a intensi- de artístico, tinha linguagem de baixo calão dade dramática do espetáculo teatral, o es- e trazia situações de uma pervertida visão boço de tipos, a problemática humana, a que, certamente, não eram uma reprodução 129

fiel da vida carioca, nem mesmo do seu lado quim Büller Souto, Diretor da Divisão de mais marginal. “Aliás, denominar a peça de Diversões Públicas –, em nova carta, desta ‘tragédia carioca’, e pretender ligá-la a fatos vez endereçada ao Governador do Estado da vida da capital do país, é uma afronta de São Paulo, Jânio Quadros, reiterou seu à população daquela culta cidade.” (Proc. ponto de vista em favor da liberação do tex- 4469 in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA). to de Perdoa-me Por Me Traíres evocando o Além disso, a patologia de Gilberto princípio da liberdade de criação artística não encontrava ressonância na verdade e livre expressão do pensamento garantida científica e as cenas artificialmente arqui- pela Constituição Brasileira. Almeida Sal- tetadas eram ignóbeis, investindo perversa- les ressaltou novamente a posição do autor mente contra valores sociais indiscutíveis. no teatro brasileiro, um dos principais res- Fazendo uso da ironia, sinalizaram que o ponsáveis pelo movimento de renovação autor bem que poderia aproveitar melhor teatral no país. seus rasgos de talento para fazer teatro. Foi mantida a proibição à peça e, em 23 de setembro, a classe teatral de São Paulo, evocando o princípio de liberdade de criação artística consagrado pela Constituição Brasi- leira, enviou um abaixo-assinado ao Gover- nador do Estado de São Paulo, Jânio Qua- dros, solicitando a reforma da decisão que proibiu a montagem de Perdoa-me Por Me Traíres. O documento assinado por Sérgio Cardoso, Augusto Boal, Décio de Almeida Prado, entre outros, lembrava que a referida obra teatral já havia sido encenada no Rio de Janeiro, em teatro oficial, com o beneplácito do Distrito Federal, que elogiou o autor. Em 3 de outubro de 1957, Almeida Sal- les – após reexame juntamente com Joa-

Carta da classe teatral com data de 23 de setembro. 130

Entretanto, com o objetivo de evitar co- Essa missiva trouxe também o apoio de moções públicas prejudiciais à salvaguarda cinco intelectuais do meio teatral. Dentre da ordem, a fim de não chocar o público as assinaturas podemos reconhecer os no- com cenas e expressões menos usuais, Al- mes de Décio de Almeida Prado e Sábato meida Salles recomendou como medida Magaldi. acauteladora a revisão do texto, e sugere os Em despacho ao Diretor da Divisão de seguintes cortes: Diversões Públicas, datado de 4 de outu-

a) a cena do aborto, representada integralmente bro, o censor Raul Fernandes Cruz atestou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, passar- que, acatando ordens superiores, procedeu se-ia no escuro, mantendo-se apenas os rostos à revisão da peça Perdoa-me Por Me Traíres, iluminados; tendo em vista os cortes propostos pela Co- b) supressão da fala: “Põe gaze, entope de gaze!” (página 22); missão Estadual de Teatro, nomeada pelo c) supressão da fala: “Te lembras de quando eu Governador do Estado. te pedia para por tua saliva na minha boca? (No Dizendo não querer entrar no mérito do ouvido da mulher) Eu quero beber na tua boca” parecer da Comissão, o censor reafirmou (página 40); d) supressão da fala: “O verdadeiro defloramento que os cortes propostos não alteram, na for- é o primeiro beijo na boca” (página 43); ma e no fundo, o conteúdo do script, perma- e) supressão da fala: “Imagina tu que ela própria necendo, o assunto, com o mesmo caráter. me disse que fazia higiene íntima três vezes por Todavia, o censor acreditava que a ele- dia, se tem cabimento!” (página 50); vação do limite de idade para 21 anos, por f) supressão da fala: “Beijo de língua?” (página 66). certo, seria capaz de evitar males maiores à mocidade. Raul Fernandes Cruz lembra que Com esses cortes, a CET acredita que sua função de censor não permite estabele- a peça se despojaria de excessos eventual- cer essa limitação. mente inaceitáveis para a plateia, sem preju- Sendo assim, em 5 de outubro, o Dire- ízo de sua integridade artística e do caráter tor da Divisão de Diversões Públicas, Joa- de denúncia que o autor quis imprimir-lhe. quim Büller Souto, escreveu ao Secretário Em face das características do texto e de Segurança Pública pedindo sua inter- em virtude do alarde publicitário já levanta- venção junto ao Juizado de Menores para do, recomenda também que seria oportuno limitar a audiência da peça Perdoa-me Por restringir a audiência, com a proibição do Me Traíres para menores de 21 anos. espetáculo para menores de 21 anos (Proc. Uma semana depois, o censor Raul 4469 in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA). Fernandes Cruz, dirigindo-se outra vez ao 131

Diretor da Divisão de Diversões Públicas, avise o Deputado, porque para lá ela (a so- reportou que o processo da peça Perdoa- brinha, encenada como menor, de 16 anos) me Por Me Traíres retornara a suas mãos. se dirigirá imediatamente... Acatando o despacho do Governa- Houve concordância, positiva, portan- dor do Estado, datado de 30 de setembro, to, em que, no fundo e na forma, mesmo que pedia que o assunto fosse novamente com os cortes, a peça não havia sofrido submetido à Censura, teve a oportunidade modificação alguma. E que “a moral da de rever o script juntamente com Almeida peça”, no final, era bem estranha, como Salles e pôde, mais uma vez, fundamentar moral. (Proc. 4469 in ARQUIVO MIROEL as razões que o levaram a impugnar a re- SILVEIRA) presentação da peça, baseando seus argu- No mesmo dia, Almeida Salles tam- mentos no disposto como crime no Código bém escreveu ao Secretário de Segurança Penal. Na ocasião, o censor lembrou ao Pública enviando seu relatório. Relata que Presidente da Comissão Estadual de Teatro a CET efetuou a revisão da peça e propôs que, mesmo com os cortes propostos pela cortes de frases, a alteração na encenação Comissão, o assunto continuaria com os e sugeriu a delimitação da audiência para mesmos inconvenientes, pois espectadores acima de 21 anos, a ser fixada pelo Juiz de menores. O Governador teria não desapareceria o aliciamento de menor para frequência a rendez-vous; continuaria a per- acatado o parecer da CET e despachou no manência de um pederasta passivo, em cena, sentido de liberar a peça, fixando a audiên- segurando a menor para que um Deputado a cia para maiores de 21 anos. pudesse “possuir” com as mãos...; continuaria uma Mme. Luba garantindo que sua casa de Em 14 de outubro, o Diretor da Divisão prostituição e de favorecimento ao lenocínio de Diversões Públicas, Joaquim Büller Sou- “não oferece perigo de polícia” porque é fre- to também escreveu ao Secretário de Segu- quentada somente por Deputados; continuaria, ainda, um aborto em cena aberta (embora com rança Pública para informar que o reexame os rostos, apenas, iluminados). da peça Perdoa-me Por Me Traíres foi feito em comum acordo com a Comissão Esta- Também houve concordância em que dual de Teatro. o incesto entre tio e sobrinha é revelado em Carlos E. Bittencourt Fonseca, o Se- cena, culminando com a sobrinha levando cretário da Segurança Pública, em 16 de o tio ao suicídio, induzindo-o a essa práti- outubro, enviou um despacho ao Gover- ca, para, depois, e imediatamente, telefo- nador, confirmando que tomou ciência da nar à mesma Mme. Luba, pedindo-lhe que revisão da peça pela CET. Cabia, porém, à 132

Secretaria de Segurança Pública informar ao caráter altamente indecoroso e destrutivo da que as alterações propostas não retiravam referida peça teatral. Apelando para o espírito de justiça e para o o caráter profundamente imoral e obsceno simples espírito de decência de Vossa Excelên- da peça e, por isso, gostaria de submeter o cia, esperamos que tal protesto seja levado em caso, novamente, à consideração de Jânio consideração. Trata-se de evitar a apresentação de um espetáculo que ofenderia frontalmente Quadros. Escrito à mão, nesse documento, a dignidade do nosso povo, fazendo apologia encontra-se o despacho da CET corrobo- desmascarada e cínica do mal que é apresen- rando que a condenação deveria permane- tado como bem, ridicularizando os bons cos- cer caso não fossem acatadas as recomen- tumes, desmoralizando nossas instituições, ofendendo o brio da classe médica, aceitando dações sugeridas. a prostituição de jovens estudantes, a perversão Dois dias depois, um despacho do Go- sexual, o adultério, o aborto criminoso, o assas- vernador Jânio Quadros autorizava a ence- sínio, o suicídio e o amor incestuoso, tudo isso em linguagem grosseira e obscena. nação da peça, com os cortes propostos e a Esperando merecer a atenção de Vossa Exce- limitação rigorosa de audiência. lência, subscrevemo-nos. (Proc. 4469 in AR- Nessas condições, autorizo a apresentação, QUIVO MIROEL SILVEIRA) deferindo-se, à risca, sob pena de interdição imediata, as recomendações mencionadas, às O interessante ao analisarmos o con- fls. 88 e 89, em cada uma das suas letras. 18.X.57 - Jânio Quadros. teúdo dessa carta é notar que as senhoras da Ação Católica de São Paulo, mesmo Mas essa deliberação do chefe do Exe- sem acesso aos originais ou à montagem cutivo não foi suficiente para garantir a en- em São Paulo, já conheciam a temática da cenação de Perdoa-me Por Me Traíres. Mes- peça: sabiam do médico, da prostituição de mo depois da autorização do Governador, jovens estudantes, do adultério, do aborto o caso sofreu uma reviravolta. Jânio rece- criminoso, do assassínio, do suicídio e do beu diversos abaixo-assinados – com subs- amor incestuoso. Não há como comprovar crições colhidas a partir do dia 9 de outu- quais foram os canais que conduziram es- bro –, como o encabeçado pelas senhoras sas informações até elas. Sabe-se ao certo da Ação Católica de São Paulo, pedindo a que o canal não foi a imprensa paulista – proibição do espetáculo. que, como veremos a seguir, não divulgou As senhoras da Ação Católica de São Paulo, o conteúdo da peça. São três as hipóteses: tendo conhecimento da liberação da peça “Per- a mais forte delas é de que houve acesso à doa-me Por Me Traíres” de autoria de Nelson polêmica instaurada na imprensa carioca; Rodrigues, vem apresentar a Vossa Excelência o seu protesto contra essa liberação, atendendo outra possibilidade é que a informação veio 133

de alguém que assistiu à peça no Rio de da complexidade da trama social encontra- Janeiro; a última possibilidade a ser consi- mos múltiplos mecanismos de proliferação derada é que a informação vazou por meio de informação capazes de influenciar as de alguém que teve acesso ao processo em opiniões. São Paulo. De qualquer modo, os detalhes Além da Ação Católica, temos o Padre sobre o conteúdo da peça foram espalha- Benedito – vigário do Jardim Paulista –, que dos de boca em boca e o que se pode in- também mobilizou a sua paróquia e conse- ferir, a partir desse episódio, é que dentro guiu enviar, em 13 de outubro, mais assina-

Algumas das três mil assinaturas recolhidas por entidades católicas 134

turas ao governador em prol de sua cruzada RANDA PRORSUS: sobre a cinematografia, a moral. rádio e a televisão. Site: A Santa Sé. Vaticano. Disponível em: . de se dirigir a Vossa Excelência, a fim de solici- Disponível em 22/05/2008) tar a proibição de “Perdoa-me Por Me Traíres”, de Nelson Rodrigues, nos teatros de São Pau- Baseando-se na autoridade papal, o lo, já programada para o dia 24 do corrente, vigário do Jardim Paulista defendeu que pela Companhia Jaime Costa que, através da não se deve privilegiar a liberdade de pen- imprensa, vem fazendo grande alarde sobre a sua liberação. samento individual nos episódios em que Ocioso qualquer comentário sobre essa peça toda a sociedade pode ser posta em risco nefasta, já impugnada pela Censura, pela imo- – nesses casos, para o bem comum, é um ralidade de suas cenas, que afrontam a dignida- de da família cristã. dever do Estado exercer a plenitude de sua A vigilância do Estado, como afirma o Santo tutela. Esse raciocínio presente na encíclica Padre, na encíclica “MIRANDA PRORSUS”, do Papa Pio XII, historicamente, vem sendo “não pode ser considerada como uma indébita opressão da liberdade individual, dado que se usado para embasar a tese de que algum refere não só às pessoas, mas, antes de tudo, à tipo de censura é necessário para a susten- Sociedade”. tação dos preceitos que unem o Estado. E, Assim, Vossa Excelência, não só como Chefe de Estado, mas, e principalmente, como chefe da dessa vez, esse argumento também não foi família exemplar, compreenderá perfeitamente desprezado. quão oportuno é este apelo, na defesa da moral Diante da pressão de mais de três mil e dos bons costumes. assinaturas, em 19 de outubro, o Governa- Na encíclica citada pelo Padre Benedi- dor decidiu constituir uma nova Comissão to, datada de 8 de setembro de1957, o Papa para opinar sobre a peça. Foram nomeados Pio XII ordenava que a Igreja não podia o professor Lourival Gomes Machado – da permitir atentados contra os valores que or- Faculdade de Filosofia –, o jornalista Her- denam o homem para Deus, seu fim último. culano Pires – Presidente do Sindicato dos Ninguém se deve, portanto, admirar se, mes- Jornalistas Profissionais – e Francisco Silva mo nesta matéria, Ela toma atitude de vigilân- Júnior – da Sociedade Amigos da Cidade. cia, em conformidade com a recomendação do Apóstolo: “Experimentai tudo: o que é bom, Em seu parecer, datado de 21 de ou- conservai-o. Abstende-vos de toda a aparên- tubro, Lourival Gomes Machado foi mui- cia de mal” [...] Semelhante tarefa toca a todas to cauteloso com as palavras e enalteceu as Associações Católicas que hão-de procurar defender eficazmente os interesses dos fiéis a decisão de Jânio de liberar Perdoa-me neste campo”. (PIO XII, Carta Encíclica MI- Por Me Traíres. Afinal, o governador havia 135

dado seu despacho definitivo só depois de sua decisão, o Estado afetaria os preceitos tomar providências acauteladoras, libe- da liberdade de criação, “quando, por sua rando a peça com restrição etária e com própria natureza e função, deve manter-se à os devidos cortes. Lourival Gomes Macha- margem de ajuizamentos estéticos, matéria do indagou, então, se diante da atitude de impossível aferição objetiva”. Não era do Estado – que “já demonstrou de forma o caso, portanto, de não atender à petição insofismável quanto é cioso no exercício da Confederação das Famílias Cristãs, que, da tutela moral que lhe compete relativa- por certo, mereciam toda a consideração mente aos menores”–, seria conveniente do Governo do Estado, mas sim de deixar ao interesse público a reconsideração dos claro que, despachos governamentais baseando-se em seu âmbito específico e com propósitos pa- num único elemento novo: a petição da ralelos àqueles, a ação governamental já se fez Federação das Famílias Cristãs? sentir com toda a eficiência e extremo zelo. Em suma: reafirmando sua anterior decisão, o Cabe, inicialmente, sublinhar que a dita petição, Senhor Governador terá feito, em sua alçada e datada de 8 de outubro e sendo acompanhada em concordância com os interesses públicos, o de longas listas de assinaturas que não se pode- máximo e melhor que, no caso, poderia fazer. ria colher em poucos dias, reflete um protesto e significa um pedido que só podem ser conside- rados no momento em que foram formulados, Já o parecer de outro membro da Co- isto é, quando a expectativa da opinião pública missão, o jornalista Herculano Pires, diri- relativamente ao caso em questão só conhecia giu-se para outra direção. Apesar de não a alternativa entre os extremos da liberação ou da proibição total, desconhecendo os peticio- concordar com a intervenção em assuntos nários a sabedoria e o rigor com que o Governo dessa natureza, por entender “que as ma- do Estado haveria de pronunciar-se na questão, nifestações artísticas devem estar acima de cumprindo o direito, preservando a moral e evi- tando desafios à criação artística. De fato, tanto critérios convencionais, determinados por os termos da citada petição, quanto os cabeça- esta ou aquela seita religiosa”, Herculano lhos das listas de assinaturas, deixam bem claro Pires apoiou a atitude inicial da Censura que se temia a liberação pura e simples, não se prevendo as sábias cautelas que inspirariam os em determinar a proibição da peça. despachos do Senhor Governador. Para o jornalista, Perdoa-me Por Me Tra- íres era uma peça desprovida de qualidade Por isso, Lourival Machado não via van- artística e de senso moral. Além disso, as per- tagens, naquele momento, em modificar a sonagens anormais levadas à cena tinham decisão do Governo Estadual para estabele- como único objetivo a exploração sensacio- cer-se a proibição total. Se viesse a reformar nalista de temas sexuais. 136

Segundo Herculano Pires, não se pode- ainda mais ácido no sentido de proibir Per- ria evocar o critério puramente estético num doa-me Por Me Traíres, peça que chamou caso de espetáculo teatral, tendo em vista de pseudodrama. a função social do teatro. E a restrição da Francisco Silva Júnior, da Sociedade audiência, proposta pela CET, seria apenas Amigos da Cidade, esclarecia que não era uma medida simplista, incapaz de suprir a um católico praticante e, por isso, não se necessidade de defesa da função social. deixava impressionar pelo volumoso abai- O jornalista prosseguiu declarando que xo-assinado da agremiação religiosa que a proibição desse espetáculo não poderia soube condenar a referida peça teatral. Silva ser considerada como um atentado à li- Júnior declarou também não conhecer ou- berdade de manifestação do pensamento, tras obras do mesmo autor – e que, portan- pois esta liberdade encontrava-se limitada to, não se deixava seduzir pela sua fama. ao interesse público segundo os princípios A sua opinião – de pessoa “viajada”, da Constituição da República vigente. E, no “relativamente evoluída”, “capaz de dis- final das contas, nem o valor estético, nem tinguir o próprio do impróprio, o limpo do o interesse público, militavam a favor da sujo, o primário do requintado” – estaria peça “do senhor Nelson Rodrigues”. isenta de qualquer outra influência, sendo Outro ponto questionado em sua opi- guiada apenas pelo senso comum, alheia nião: a liberação da peça, no Rio, não jus- ao “carneirismo intelectual” acobertado tificava medida semelhante em São Paulo, pelos defensores do falso “modernismo”, “porque um erro não justifica outro, nem do “realismo” chocante e de “tantas outras pode servir de motivo para que consciente- aberrações”. Afinal, Francisco Silva Júnior mente se pratique outro”. A liberação desta não tinha dúvidas sobre a existência de de- peça, como a tolerância em relação a ou- terminados grupos de doutrinadores que tras da mesma espécie, constituiria incen- visavam “a desmoralização generalizada, a tivo ao desvirtuamento do teatro para fins destruição de preceitos sociais, a indiscipli- exclusivamente comerciais. “Nessas condi- na social, a condenação das tradições de ções, opinamos pela revogação da libera- família”. As peças teatrais, os esquetes da ção condicional, e pelo restabelecimento TV e do rádio, as novelas traduzidas – tudo da proibição total, de acordo com o justo estaria a serviço de uma propaganda velada critério adotado pela censura.” para semear o desrespeito no lar, o desres- O parecer do terceiro membro da Co- peito às tradições religiosas e a desmorali- missão constituída por Jânio Quadros foi zação do sistema político. 137

Lido o texto, assim a frio, sem o agravamento apontada por um mensário americano como “a das cenas ao vivo (no palco, com as inflexões, cidade mais devassa do mundo”. as entonações maliciosas e os gestos condená- […] tenha-se em mente os recentes conflitos veis), tenho a impressão de haver tocado numa e incidentes provocados por filmes aprovados cloaca; pela Censura Federal, mas aqui repelidos não só pelas nossas autoridades como pelas famílias [...] largo as 70 páginas datilografadas como bem formadas. se afasta das mãos algo repulsivo e asqueroso. Não aceitemos, pois, essa colcha de retalhos Tem-se a impressão de que o autor resolveu pornográficos como “Cena da Vida Carioca”; escrever algo – algo chocante, imundo, sem e se desgraçadamente o fosse, deveríamos im- preocupações com linguagem ou com precei- pedir a sua apresentação ao nosso povo – quer tos rudimentares de respeito à sensibilidade como crítica social, quer como exemplo a ser alheia. É de se lamentar que um trabalho assim imitado. concebido haja chegado à ribalta, na capital do nosso País, e com o beneplácito das autorida- Para Francisco Silva Júnior, os cortes e des federais, para agora nos roubar tempo tão valioso para assuntos de mais valor. E nem nos a restrição da faixa etária da audiência não é possível permanecer em nível elevado de lin- atenuariam o mal contido num texto que guagem nestas apreciações, visto que se torna “dificilmente poderia ser qualificável como difícil descer à cloaca com luvas de pelica. obra teatral, dentro dos padrões de qual- Segundo Francisco Silva Júnior, a peça quer escola dramática”. teria a única preocupação de apresentar E encerrou sua missiva lamentando que quadros “fortes”, desde a primeira cena, uma questão desta espécie estivesse a tomar sem qualquer propósito de uma lição mo- tanto tempo de nossa autoridade suprema, ral ou construtiva. A sua finalidade era tempo que seria mais valioso na solução apenas “de explorar o erotismo através de dos grandes problemas de São Paulo. situações escabrosas, de frases chulas, de Em meio a tanta polêmica – de um lado, diálogos sem imaginação, num linguajar de a Classe Teatral paulista e uma peça que já porta de botequim”. havia sido permitida pela Censura do Rio O representante da Sociedade Amigos de Janeiro; de outro, a fúria de grande parte da Cidade também não aceitava o argumen- dos eleitores paulistas –, Jânio Quadros de- to de a peça ter sido aprovada, apresentada cidiu ler pessoalmente os originais da peça e aplaudida na Capital Federal, com sub- e, em 22 de outubro de 1957, tomou sua venção do Ministério da Educação: decisão definitiva: Já é tempo de nós, em São Paulo, reagirmos Reformo o despacho anterior para proibir, contra a avalanche de imoralidade produzida, como proibido tenho, a representação da peça licenciada e aprovada na faustosa cidade de “Perdoa-me Por Me Traíres”, mantendo, assim, São Sebastião do Rio de Janeiro, recentemente a primitiva decisão da Censura. 138

Ao reformar decisão anterior, procuro acertar. Não me constrange rever as próprias decisões, modificando-as, quando erradas. Alertado pela representação de fls., de senho- ras da Ação Católica, li o trabalho na íntegra, e desejando conferir meu julgamento, subme- ti o mesmo trabalho à idônea Comissão, que condenou no pronunciamento de dois de seus ilustres integrantes. Não vai nessa proibição nenhum demérito para a ilustre Comissão Estadual do Teatro, que se limitou a aparar os excessos mais escandalosos da peça em apreço, e o fez a meu pedido, ten- do em vista o intuito do Governo de ensejar, se possível, a liberação da mesma. Não obstante, ainda com os cortes propostos, essa represen- tação é impossível, sem graves danos à socie- dade. Cumpra-se J. Quadros 22.10.57

O processo censório de nº. 4469 do Setor de Órgãos Auxiliares Policiais da Di- visão de Diversões Públicas de São Paulo, vinculada à Secretaria de Estado dos Ne- gócios da Segurança Pública, encerrou-se aqui. Dois anos depois, houve outra tentativa de encenação da peça Perdoa-me Por Me Traíres no Estado de São Paulo. Agora, sob Despacho do governador Jânio Quadros que proibiu a encenação de o processo nº. 10.680/59, em 4 de junho de Perdoa-me Por Me Traíres (Proc. 4469 1959, continha o despacho do novo Gover- in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA) nador do Estado, Carlos Alberto A. de Car- valho Pinto, que mantinha a decisão de seu tar que os órgãos legalmente competentes antecessor, alegando não haver nenhum continuavam opinando pelo indeferimen- fato novo que viesse a modificar a situação to, reforçou a tese usada pelos seguidores anterior. Carvalho Pinto, além de ressal- de Pio XII de que tal proibição não consti- 139

tuiria quebra do princípio de liberdade de Não houve, portanto, estardalhaço nem expressão artística, porque o Estado, além alvoroço na imprensa. Fora do agenda set- de tutelar esse direito, tinha a obrigação de ting da mídia, a encenação tardia não se zelar pela moral pública – moral que es- transformou em acontecimento, nem em es- taria comprometida, caso o pedido dos re- cândalo na temporada paulista. A socieda- querentes fosse atendido. de também já era outra, menos permeável Tal deliberação veio perdurar por mais aos graves danos aludidos por Jânio. de vinte anos. Perdoa-me Por Me Traíres só Toda essa polêmica fez com que qua- foi encenada em São Paulo em novembro se todas as peças de Nelson demorassem de 1978, no Teatro Abertura. Pela fria aco- anos para serem encenadas em São Pau- lhida da crítica, o espetáculo não chegou a lo. No Rio de Janeiro, a “farsa irresponsá- marcar a paisagem artística. Lúcia Capuani, vel em três atos” Viúva, Porém Honesta atriz e diretora teatral que interpretou Glo- estreou em 13 de setembro de 1957. Já a rinha nessa montagem, conta que, quando versão paulista da peça só foi aos palcos produziu essa peça, não tinha o menor co- no dia 6 de maio de 1968, no Teatro de nhecimento da imensa polêmica ocorrida Arte do TBC. Os Sete Gatinhos teve duas nos anos 50 em torno da obra. montagens no Rio (1958 e 1967) antes de vir para São Paulo sob o título de A últi- Decidi fazer Perdoa-me Por Me Traíres por motivos pessoais. Estava superando alguns ma virgem, em 30 de dezembro de 1968. conflitos no casamento e, eu e meu marido, Boca de Ouro, peça escrita em 1959, para decidimos montar uma obra de Nelson Rodri- estreia em 13 de outubro de 1960 no Rio, gues para expurgar a crise. Como éramos um elenco de ilustres desco- foi encenada em São Paulo somente em nhecidos, para viabilizar a montagem, pedi- janeiro de 1974, no Teatro Treze de Maio. mos a Sábato Magaldi que intercedesse junto O Beijo no Asfalto estreou no Rio em 7 de ao Nelson para liberar a encenação sem o pagamento de royalties – seria repassada ao julho de 1961 e, em São Paulo, foi apre- autor uma porcentagem da bilheteria. Nelson sentada em janeiro de 1970, no Teatro aceitou. Oficina. Bonitinha, Mas Ordinária, lança- Houve, como de costume, um ensaio geral para a Censura, que não se manifestou, não se da no Rio dia 28 de novembro de 1962, só opôs e não fez questionamentos. Nessa época, foi vista em São Paulo 12 anos depois. a Censura estava mais branda e, normalmente, as peças eram encenadas na íntegra. Sobre a temática da peça, notávamos que o 1 Informação fornecida por Lúcia Capuani em entre- público ficava impressionado, mas não se vista concedida em São Paulo, em 15 de setembro manifestava. (Informação pessoal)1 de 2008. 140

Toda Nudez Será Castigada é a exce- geiro e a classe média brasileira aderiu ao ção que confirma a regra: estreou no dia American Way of Life (estilo de vida ame- 21 de junho de 1965 e, finda a temporada ricano), consumindo intensamente encera- carioca, foi transferida para o Teatro Brasi- deiras, rádios, televisores, batedeiras elé- leiro de Comédia de São Paulo. tricas, aspiradores de pó, toca-discos, au- Nelson fala de suas agruras com a tomóveis e milhares de produtos expostos censura: nas gôndolas dos recém-chegados super- mercados. Kubitschek, democraticamente [...] Nem todos se lembram de que não há um autor, em toda a história dramática brasileira, eleito, foi o primeiro presidente civil desde que tenha sido tão censurado quanto eu. Sofri Artur Bernardes a cumprir integralmente sete interdições. seu mandato. Contudo, mesmo nesses tem- [...] Não tive ninguém por mim. Os intelectuais pos auspiciosos, a censura teatral continu- ou não se manifestavam ou me achavam tam- bém um “caso de polícia”. As esquerdas não ava agindo. exalaram um suspiro. Nem o centro, nem a di- A primeira notícia escrita sobre Perdoa- reita. me Por Me Traíres na capital paulista é “A [...] As senhoras me diziam: – “Eu queria que Peça Proibida”, de 1º de setembro de 1957, seus personagens fossem como todo mundo”. publicada no Correio Paulistano. Nesse E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são “como todo mundo”: – e daí a texto, assinado por Hermilo Borba Filho, resposta que provocavam. “Todo mundo” não era informado que gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções. De nada valeram os protestos de críticos e in- telectuais, o presidente da Comissão Estadual Portanto, fui durante vinte anos o único autor de Teatro como membro de uma comissão obsceno do teatro brasileiro. (RODRIGUES, nomeada pelo senhor secretário de Segurança 1995, pp. 169 e 170) Pública; restando agora o apelo que, em última instância administrativa, irá fazer a Comissão Estadual de Teatro, solicitando ao governador a liberação da peça. 4.1.3 Quase toda notícia será publicada O autor do artigo critica o que chama de “texto legal absurdo” inserido na própria O Brasil vivia a expectativa de crescer Constituição, que prevê a censura para es- 50 anos em cinco sob a batuta de Juscelino petáculos de diversão pública, estando o te- Kubitschek de Oliveira, o “Presidente Bossa atro – “uma arte tão séria e tão nobre como Nova”. Nos chamados “Anos Dourados”, o qualquer outra” – rotulado sob esse termo país abriu suas portas para o capital estran- vago e inexpressivo. 141

Sem entrar no mérito da obra, Hermi- tar de alguns assuntos com Jânio Quadros. lo Borba Filho diz que gostaria de ver uma Dentre esses assuntos encontra-se a libera- peça de Nelson Rodrigues finalmente ence- ção da peça de Nelson Rodrigues, Perdoa- nada em São Paulo, “afinal de contas, a re- me Por Me Traíres, que “a censura absurda- novação da arte dramática brasileira partiu mente proibiu”, prejudicando enormemen- de uma peça sua, Vestido de Noiva”. Por- te a Cia. Jaime Costa, que teve que adiar tanto, Nelson era um dramaturgo respeitá- sine die sua estreia. vel no meio teatral. A Censura estaria agin- No mesmo dia, no 3º caderno, sob o do drasticamente ao cercear a liberdade de título de “Outra da Censura”, encontramos expressão artística, quando se poderia valer uma nota apócrifa criticando Joaquim Bül- de outro poder de censura – e mais rigorosa ler Souto, o Diretor da Divisão de Diver- até –, como o de proibir a peça para meno- sões Públicas: res de vinte e um anos: Nosso bom amigo Büller Souto precisa tomar Embora tudo isso resulte improfícuo, e tantas cuidado: a Censura está se tornando rapida- entidades e pessoas idôneas pediram a mesma mente impopular... coisa, fazemos um apelo para que o senhor Depois do caso ultrassingular de “Perdoa-me secretário de segurança, em última instância Por Me Traíres”, proibida após ter sido repre- o senhor governador, reconsidere a proibição, sentada com beneplácito governamental no valendo-se do poder de proibir Perdoa-me Por Teatro Municipal do Rio, surge agora o caso Me Traíres para menores de 21 anos. do ator Nino Nello. Durante cerca de 20 anos, uma peça de sua autoria, “A Caixeirinha da Rua No dia seguinte, na coluna “Pano de Direita”, foi representada no Brasil inteiro, com mais de mil espetáculos, no total. Pois não é Boca” do jornal Última Hora, José Fischer que a Censura, agora, resolveu apor-lhe uma Jr. avisa que Nelson Rodrigues iria, pesso- proibição até 18 anos, quando durante todo almente, solicitar ao governador Jânio Qua- esse tempo a comédia sempre teve representa- ção livre? dros a liberação de sua peça Perdoa-me Por Ou a Censura está desorientada, ou a Moral está Me Traíres, que “a censura teima em proi- andando para trás, como caranguejo, tornando- bir”. O presidente da Comissão Estadual de se cada vez mais reacionária, em vez de evoluir Teatro também planejava se reunir com o para a compreensão e o entendimento… Governador para expor-lhe o absurdo da Aliás, o Última Hora – jornal que pu- medida e tentar liberar a peça. blicava diariamente as crônicas de Nelson No dia 5 de setembro, o Última Hora Rodrigues – foi o veículo de comunicação fala novamente da intenção de Francisco mais engajado na luta pela liberação da Luis de Almeida, Presidente da Comissão peça. Em sua capa, no dia 4 de outubro, Estadual de Teatro, de ir pessoalmente tra- traz a seguinte chamada: 142

Edição do Última Hora de 4 de outubro de 1957 143

O SR. NELSON RODRIGUES FALOU À RE- pal. Segundo o dramaturgo, Perdoa-me Por PORTAGEM DE “ÚLTIMA HORA”: SERÁ Me Traíres devia ser considerada, antes de APRESENTADA EM S.PAULO “PERDOA-ME POR ME TRAÍRES”! qualquer coisa, por dois aspectos: pela sua O governador liberou a (discutida) peça do Sr. condição de obra de arte e por “seu nítido, Nelson Rodrigues – O autor de “Vestido de transparente e incontestável fundo moral”. Noiva” ao repórter: “De fato São Paulo é digno da Bienal” – Uma arrecadação que lembrou um O objetivo da peça seria colocar em termos jogo de futebol... – “Nítido, transparente e in- dramáticos a corrupção da juventude, um contestável fundo moral” – “Eu não cometeria problema social e humano causado muitas a infâmia de atirar num palco um tema dessa grandeza com a frívola e obscena superficiali- vezes pela ausência constatada da família, dade de ‘vaudeville’ francês”. da sociedade e de cada um de nós. Nel- son afiançava que era procurado por “todas Na página 3 dessa edição, o repórter as figuras da constelação familiar”, que vi- Dorian Jorge Freire confirma que a discu- nham dizer-lhe: “Toda mãe, todo pai devia tida peça, dentro de mais alguns dias, seria assistir essa peça”. apresentada ao público de São Paulo pela O autor assumia que Perdoa-me… era Companhia do ator Jaime Costa, no Teatro uma peça violenta, mas que a violência Maria Della Costa. era indispensável ao tratamento dramático. “Eu não cometeria a infâmia de atirar num Para tanto, determinou o chefe do executivo Estadual fosse reexaminada a decisão da cen- palco um tema dessa grandeza com frívola sura que havia proibido a encenação entre nós e obscena superficialidade de ‘vaudeville da peça que, apresentada no Rio de Janeiro, francês’”. Sua intenção, na verdade, era le- no Teatro Municipal, constituiu um dos mais empolgantes acontecimentos artísticos do ano. var qualquer espectador a fazer uma revi- O senhor Nelson Rodrigues desde há alguns são nos valores da vida individual, social dias se encontrava nesta Capital, onde teve a e familiar depois de assistir Perdoa-me Por oportunidade de avistar-se por duas vezes com o governador do Estado e, momentos antes de Me Traíres. embarcar para a Capital do País, prestou à nos- Referindo-se à liberação determinada sa reportagem algumas declarações. pelo Governador do Estado, Nelson Rodri- gues elogiou Jânio Quadros: Em sua entrevista ao Última Hora de São O governador leva a sério o teatro e respeita o au- Paulo, Nelson Rodrigues dizia que a inter- tor, o diretor, o artista, a peça. [...] O governador dição foi um tremendo equívoco artístico e do Estado me recebeu duas vezes com a mais fra- ternal simpatia e, finalmente, ontem deu o despa- cultural. No Rio, a peça tinha registrado um cho definitivo sobre “Perdoa-me Por Me Traíres”, êxito inédito na história do Teatro Munici- com a limitação de idade até 21 anos. Parto para 144

o Rio com a certeza de que o último despacho do POR TRÁS DA CENSURA governador é realmente a liberação. Confirmaram-se integralmente os rumores de que a Censura em São Paulo é movimentada, Para encerrar, Nelson Rodrigues tam- qual boneco de engonço, por cordões puxados bém agradece ao esforço da Comissão Esta- por mão invisível. Só que desta vez, no caso da peça de Nelson Rodrigues, “Perdoa-me Por dual de Teatro – segundo ele, um órgão ati- Me Traíres”, a habilidade dos manejadores dei- vo, militante e criador, integrado por gran- xou muito a desejar. Resultado: todos puderam des figuras: Almeida Sales, Sábato Magaldi, ver que a Ação Católica está afeta à tarefa de decidir, em última instância, sobre o que lhe Décio de Almeida Prado, Miroel Silveira, convém ou não que seja exibido. Hermilo Borba Filho, Nino Nelo, Coelho Fácil é compreender os fatos. Após uma série Neto, Clovis Garcia e outros. longa de trâmites, comissões e pareceres sobre aquele original de Rodrigues, o impasse resul- No dia 5 de outubro, em sua coluna no tante da primeira proibição parecia ter-se resol- Última Hora, Jorge Fischer Jr. achou oportu- vido com a atitude do governador do Estado, no transcrever, na íntegra, os termos do pare- liberando a representação da peça, após alguns cer da CET em que se baseou o Governador “cortes” e a interdição para menores de 21 anos. No entanto, eis que a última palavra não do Estado para despachar favoravelmente à tinha sido pronunciada, para surpresa geral. liberação de Perdoa-me Por Me Traíres. Faltava a opinião de um grupo de senhoras per- Novamente, o Última Hora reserva um tencentes àquela organização, as quais se diri- giram de dedo em riste ao chefe do Executivo. espaço na capa (edição de 23 de outubro Imediatamente o Sr. Jânio Quadros providen- de 1957) para anunciar: ciou a formação de novo elenco julgador. Por dois votos contra um (Lourival Gomes Macha- Depois de Marchas e Contramarchas, Recua o do discordou dos pareceres dos Srs. Francisco Governador: da Silva Jr. e Herculano Pires) a Comissão eleita Proibida “Perdoa-me Por Me Traíres...”. pelo governador achou por bem vergar-se ante A peça já havia sido liberada, com alguns à vontade estranha. M.A. cortes – Pedido das Senhoras da Ação Católi- ca provocou reexame e reforma do despacho governamental sobre o assunto. (de MACIEL Em 26 de outubro, com o título de COUTINHO, em “Dia do Governador”) “FORCA 1957”, o Última Hora apresenta No dia 24 de outubro, o Última Hora críticas ainda mais veementes. se pronuncia mais uma vez sobre o caso. Seria de exultar se a população da Capital do Estado de São Paulo pudesse contar com a ação O texto, de teor muito duro, declara que o vigilante e ativa da Comissão de senhoras que órgão de Censura em São Paulo não passa vem de obter a interdição da peça de Nelson de uma marionete nas mãos de um grupo Rodrigues, para depurar a sociedade dos males reais e tangíveis que a afligem. de senhoras capazes de erguer o dedo em [...] Infelizmente a vigilância da Comissão de riste ao Governador do Estado. senhoras paulistas não é exercida sobre os sis- 145

temas políticos, sociais e educacionais que nos proporcionariam, para repousar, o berço dos bons sonhos... E por isso ela se volta contra a liberdade de criação artística, condenando uma obra teatral, em odioso sistema de “justiça a prio- ri”. Somos dos que aplaudem a censura exerci- da regionalmente, mesmo contra os dispositivos que a tornam de validade para toda a União. Isso porque acreditamos que a Capital da República permite usufruir certas tolerâncias que não são aconselháveis onde ainda há reservas de moral. Mas daí a cortar, a cercear o direito que só ao pú- blico cabe, de consagrar ou condenar, vai uma grande distância. Nelson Rodrigues, que pode ser analisado, criticado e até repudiado como criador artístico, enquanto não for condenado, dentro do Código Penal, por premeditadamen- te pornográfico ou retratador mentiroso, deveria ter, liminarmente assegurado, o direito de se ex- por ao veredicto livre e aberto do povo, quando mais não fosse, porque não é um autor primário ou aventureiro (embora o seduza aventurar-se a ser diferente, no Brasil) e porque trouxe ao tea- tro brasileiro dinheiro, trabalho e uma irmã, que nele se fez profissional honesta! De inevitável perplexidade se deve achar preso o governador paulista. Estará perguntando-se se de maneira tão simples se pode salvaguardar a moral pública, apenas mantendo um autor te- atral... A esta altura, o espírito lúcido e a inte- ligência alerta de Jânio já devem ter achado a resposta: Não! Felizes e ilustres senhoras que vivem sob a utó- pica ilusão do dever cumprido, do julgar que, espremendo o furúnculo, extirparam o câncer... NELSON RODRIGUES não precisou manifestar- se sobre a interdição definitiva de sua peça, em São Paulo. Por ele protestou com veemência a unanimidade da crítica teatral paulista, além de grande número de intelectuais. Foi um brado Matéria do de alarme em uníssono contra os atentados à Última Hora, liberdade de criação artística. (Última Hora, 26 26 de outubro de outubro dfe 1957, Segundo Caderno, p. 4) de 1957 146

O texto continua dizendo que o presi- sentidos produzidos são consequências de dente do Sindicato dos Jornalistas Profissio- sua presença. nais do Estado de São Paulo está na berlinda Retomando Lippmann (2008, p. 293), e mereceu a reprovação inclusive de com- todas as notícias envolvem informação. Se panheiros do jornal em que presta sua cola- a informação ficar oculta é porque alguém boração. Esse jornalista teria arrancado de deliberou que o seu registro não era im- toda a classe teatral de São Paulo um “ó” de portante. Patrick Charaudeau, em Discur- decepção, ao ajudar na manobra “de umas so das Mídias, afirma que todo e qualquer quantas senhoras, empenhadas na batalha ato de linguagem é ordenado em função pela salvação moral do bandeirante”. A “su- de um objetivo, todo ato de linguagem tem percensura” existente foi capaz de fazer um uma finalidade: seja ela prescritiva – que- governador voltar atrás sobre suas próprias rer levar o outro a agir de uma determina- palavras, “a fim de não ferir pudicícias pos- da maneira –, seja ela informativa – querer sivelmente em menopausa”. transmitir um saber a quem se presume não O Última Hora informa que Lourival o possuir –, seja iniciativa – querer levar o Gomes Machado votou a favor da liberda- outro a pensar que o que está dito é verdadei- de de criação artística. O Sr. Francisco Silva ro –, seja ela associada ao pathos – provocar Jr., um desconhecido nos meios intelectu- no outro um estado emocional agradável ou ais, votou contra a apresentação da peça desagradável. (CHARAUDEAU, 2006, p. 69) de Nelson Rodrigues. “Mas foi o voto do No caso da peça Perdoa-me Por Me Sr. Herculano Pires, pelo que dele era lícito Traíres, os jornalistas de O Estado de S. esperar-se, é que deu-se a decepção maiús- Paulo e da Folha de S. Paulo poderiam, na cula, nesta história”. época: não ter interesse em mudar a ação Enquanto a discussão pegava fogo no da censura; não dar importância ao valor Última Hora, não foi encontrada nem uma informativo da questão; não ter a pretensão menção sequer à peça Perdoa-me Por Me de entabular uma tese a favor ou contra a Traíres nos jornais O Estado de S. Paulo e liberdade de expressão, nem ter a intenção Folha de S. Paulo. Podemos interpretar o de ofender as senhoras da Ação Católica ou silêncio desses veículos de comunicação o Governador do Estado. Não buscariam, como parte do tempo lógico do discur- portanto, a conquista de um espaço de lo- so das mídias, pois esse silêncio também cução sem terem um motivo para justifi- é dotado de valor distinto: traz em si uma car a ação de tomar a palavra. Por isso, o dimensão de significante, uma vez que os silêncio. 147

Em meio a tanta polêmica na mídia, moral e dos bons costumes, não passava as senhoras “pudicícias possivelmente em pela cabeça dessas pessoas boicotarem a menopausa” acabaram por não aceitar os peça, simplesmente, não indo ao teatro. argumentos expostos a favor da liberdade Afinal, como lembra Arnold Hauser (1998) de expressão e não enxergaram que Nelson em História Social da Arte e da Literatura, manifestava um desde a Grécia Antiga, os festivais de te- atro eram o mais valioso instrumento de raciocínio de inequívoca origem cristã, conce- propaganda da pólis, e certamente não dendo ao homem ponto de partida moral, ca- paz de resgatá-lo, em qualquer tempo. A mais se pensaria em permitir que um poeta fi- torpe das criaturas teria a possibilidade de arre- zesse o que bem lhe aprouvesse. E, tal e pender-se, salvando-se em consequência e dar qual os governantes gregos, que não per- testemunho sobre o transcendente. (MAGALDI, 1987, p. 34) mitiam a encenação de peças contrárias à sua política ou aos interesses das classes Por isso, nem a tragédia presente no dominantes, o Governador de São Paulo destino dos personagens foi capaz de apa- não poderia permitir a encenação de um ziguar os ânimos. Pois, como pôde Gil- espetáculo que ofenderia “frontalmente a berto – irmão de Raul e marido de Judite dignidade de nosso povo” e ridiculariza – ao invés de recriminar a mulher que o ria os bons costumes. Tudo isso em lin- traía, pedir o seu perdão por não conseguir guagem que diziam ser grosseira e obsce- satisfazê-la? Isso se caracteriza em apolo- na. Pena que ninguém ouviu e não soube gia do adultério, que era crime em 1957. dizer que tipo de obscenidades poderia Como aceitar que a adolescente Glorinha ter sido dito. pudesse sentir atração pelo bordel no qual A peça de Nelson Rodrigues, mesmo conhece o deputado Dr. Jubileu de Almei- sem ir ao palco, teve grande ressonância da – um cliente que chega ao clímax do na vida cotidiana do paulistano, que veio prazer solitário enunciando um ponto de a se manifestar com veemência. O autor, Física para a menina? Outra apologia ao ao levar para dentro da erudição teatral o crime, desta vez prostituição de menores. imaginário urbano – muitas vezes retratado O final trágico também não seria ca- em suas colunas no jornal Última Hora –, paz de aplacar o imaginário daqueles que mexeu com as dinâmicas urbanas de sua se dirigiram ao Governador para solicitar época e não foi perdoado. Mas isso pouco a proibição de uma peça que eles nunca importava. Sem Nelson, agora, a sociedade viram encenada. Apelando para defesa da paulista podia dormir tranquila. 148

4.2 Segundo Ato 4.2.1A obra de Gianfrancesco Guarnieri

Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Mar- Em entrevista ao programa “Roda Viva”, tinenghi de Guarnieri nasceu em Milão, da TV Cultura de São Paulo (Programa ao em 6 de agosto de 1934, sob o governo do vivo), em 5 de agosto de 1991, Guarnie- Primeiro-Ministro da Itália, Benito Musso- ri disse que o ambiente familiar foi muito lini, líder fascista que costumava usar suas importante para a sua formação – aquilo milícias – os camisas negras (camicie nere) que era discutido, aquilo que era falado e – para instigar o terror e combater aberta- as histórias que se ouvia contar influencia- mente os socialistas. Em 1936, sob o título ram profundamente a sua perspectiva de oficial de “Sua Excelência Benito Mussoli- mundo. ni, Chefe de Governo, Duce do Fascismo e Dois anos depois da nossa chegada, eu deveria Fundador do Império”, assinou, com Adolf ter uns quatro anos […] o que eu me lembro, é Hitler e o Japão, o Pacto Tripartite – uma de ouvir um violino de um lado e um violino do outro. […] Então, eu desde a chamada mais ten- aliança político-militar que conduziu à ra idade estou habituado com esse som. E essa eclosão da Segunda Guerra Mundial. coisa que eu adorava que era entrar no teatro, Em meio a esse panorama conturbado que era o Teatro Municipal. em seu país, a harpista Elsa Martinenghi […] Eu não podia ficar na plateia, era proibido, Guarnieri – mãe de Gianfrancesco – foi porque eu era ainda muito pequeno. Então, de fato, eu ficava no fosso da orquestra, de pé, em convidada a tocar na Orquestra Sinfônica cima da caixa onde era guardado o instrumen- Brasileira. Instalada no Rio de Janeiro, Elsa to[...] (RODA VIVA, 1991) conseguiu um convite formal para que seu marido, o maestro Edoardo Guarnieri, vies- Em entrevista ao jornalista Sérgio Ro- se reger uma orquestra. A saída da Itália foi veri, Guarnieri lembrou que, com menos providencial para Edoardo – um convicto de dez anos, foi levado por sua mãe pela homem de esquerda. E foi nos braços de primeira vez a assistir uma representação seu pai, aos dois anos e meio de idade, que teatral. Depois, um pouco maior, aprendeu Gianfrancesco chegou ao Brasil. o caminho e ia sozinho, matando as aulas 149

no colégio: “Nem sei quantas aulas eu dei- Na época, o PC [Partido Comunista] era o úni- xei de assistir para ver o Jaime Costa nas co partido representativo, de fato, da maioria explorada e tal. Quer dizer, era aquele que, matinês do Teatro Glória. Eu me divertia através do seu discurso e de sua prática polí- horrores.” (GUARNIERI apud ROVERI, p. tica, de fato, defendia e procurava expressar 23). Contudo, nessa época, Gianfrancesco as necessidades e conquistar espaços que essa maioria não possuía, não havia muita alterna- ainda não tinha a noção de que esta seria tiva. (RODA VIVA, 1991) a sua carreira no futuro. Na verdade, isso nem lhe passava pela cabeça e a sua pas- Aos 15 anos, Guarnieri fez supletivo e sagem de espectador para autor teatral foi voltou a estudar, agora no Colégio Franco- bem gradual. Brasileiro, cursando o primeiro ano do Cur- Começou fazendo teatro na escola, so Normal. Em 1950, seus pais se mudaram no ginásio do Colégio Santo Antônio. Lá, para São Paulo. Edoardo veio assumir a re- entrou no grupo teatral de Maria Zacarias gência de alguns concertos no Teatro Mu- exercendo a função de ponto – cuja tare- nicipal de São Paulo e também dos “Con- fa era socorrer os atores que viessem a es- certos Dominicais” da Rádio Gazeta. Gian- quecer do texto. Um dia faltou um rapaz e francesco decidiu ficar sozinho no Rio, mas Guarnieri assumiu o papel que lhe deu di- por lá permaneceu por pouco tempo – no reito até a um pequeno monólogo. A peça início de 1953, mudou-se para São Paulo se chamava Honrarás pai e mãe. também. Sempre militante, Gianfrancesco Guar- Lá mesmo, naquela ocasião mesmo eu me en- tusiasmei e escrevi uma peça. Cometi uma peça nieri falou da primeira vez que participou chamada A sombra do passado, onde – essa de uma manifestação política na capital minha velha mania –, eu queria criticar o vice- paulista. Era 25 de agosto de 1954, o dia diretor da escola que, para mim, era um fascis- ta. Então, eu aproveitei a peça para criticar. E seguinte ao suicídio de Getúlio Vargas: eu critiquei. Todo mundo entendeu, apesar das metáforas. E eu fui gentilmente convidado a sair Havia uma multidão carregando velas e fotos da escola. (RODA VIVA, 1991) do Getúlio, até as crianças estavam chorando. Corri até a região do Palácio das Indústrias, no Parque Dom Pedro, acompanhando aquela ro- Logo depois de ser expulso do colégio, maria. Daí chegou o pessoal do Exército, que aos 14 anos, Gianfrancesco já estava no queria dispersar a manifestação. Eles estavam movimento estudantil, inscrito nos quadros jogando bombas de efeito moral e eu me vi da União da Juventude Comunista e cola- encurralado pelos soldados. E eu gritava que não iríamos embora, que não iríamos recuar borando no jornal Novos Rumos – ligado de jeito nenhum, porque tínhamos o direito de ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). estar ali. 150

[…] Eu não estava participando da passeata outra atividade teatral fora da escola. Sen- porque nutrisse alguma simpatia pelo governo do assim, a bolsa foi gentilmente recusada de Getúlio Vargas. Eu estava ali para marcar minha posição, pois eu era contra a renúncia porque Gianfrancesco encontrava-se vivi- do Getúlio. Eu achava que a renúncia poderia damente comprometido com o TPE e não representar o primeiro passo para um golpe. queria largar o grupo. […] Nós fomos às ruas para manifestar nossa posição e ver até onde ia a culpa do imperialis- Na mesma época, porém, Guarnieri co- mo norte-americano no negócio todo. Já estava meçou a flertar com o Teatro de Arena, que tudo armado para que o Getúlio fosse preso, e havia sido fundado dois anos antes, numa ele jamais iria permitir isso. Esse episódio serviu para reforçar o caráter pequena garagem na Rua Teodoro Baima, anti-imperialista da minha atuação política no no centro de São Paulo – a mesma rua do Movimento Estudantil. (GUARNIERI apud RO- TPE. O Arena era integrado por um grupo de VERI, p. 61-63) jovens que alimentava a ideia de formar um Pouco tempo depois da chegada a São espaço para facilitar as encenações. Assim Paulo, Gianfrancesco Guarnieri ligou-se ao surgiu a concepção do teatro circular – com TPE, o Teatro Paulista do Estudante, e foi a Zé Renato, um ex-aluno brilhante da Escola partir desse núcleo que sua ligação com o de Arte Dramática, como mentor. teatro se tornou definitiva: […] Logo após a abertura do Arena, o Zé Re- nato convidou a mim e ao Vianinha para que No TPE eu comecei a trabalhar como ator, não nos juntássemos ao grupo. Aquele convite me escrevia ainda. A primeira peça montada pelo causou uma enorme crise de consciência: eu grupo foi Rua da Igreja, de Lennox Robinson, deveria aceitá-lo ou não? A minha situação e em 1955, que marcou também a estreia de a do Vianinha era delicada, porque nós não Vianinha como ator. Logo em seguida, come- poderíamos simplesmente chegar para o gru- çamos a preparar Está lá fora um inspetor, de po do TPE e falar tchau, estamos indo embora. J.B. Priestley, que me rendeu o Troféu Arlequim Nós ficamos com aquilo preso na garganta, o de Melhor Ator no Festival de Teatro Amador Vianinha não conseguia sequer dormir. Podia de São Paulo. Eu ainda não desconfiava, mas parecer traição. este prêmio, logo pelo meu primeiro trabalho, A saída encontrada foi um acordo com o chefe ia mudar minha vida profissional. de elenco do Arena: nós iríamos para lá, mas o Arena se comprometeria a oferecer suporte téc- O prêmio chamou a atenção de Alfredo nico para os futuros trabalhos do TPE, inclusive atores. Acordo feito, nós dois respondemos que Mesquita, que lhe ofereceu, logo depois, sim e fomos contratados. Mais tarde, o acordo uma bolsa de estudos na recém-criada Esco- resultou na fusão entre os dois grupos. (GUAR- la de Arte Dramática de São Paulo. Por uma NIERI apud ROVERI, pp. 66-67). questão metodológica, a EAD não permitia A estreia profissional de Guarnieri como que seus alunos participassem de qualquer ator se deu no palco do Arena, ainda em 151

1955. No ano seguinte, Augusto Boal, que meti para mim mesmo que aquele seria o meu veio a se tornar um dos grandes parceiros caminho e que eu jamais trairia a causa daquele povo proletário que eu havia descrito na peça. de Gianfrancesco, chegou dos Estados Uni- (GUARNIERI apud ROVERI, p. 78). dos, onde foi cursar PhD em Engenharia Química. Lá, também estudou dramaturgia A primeira temporada de Eles não usam na School of Dramatics Arts, com John Gas- black-tie teve uma enorme repercussão. sner, professor de Tennessee Williams e Ar- Com a direção de Zé Renato, o elenco con- thur Miller. Em seu regresso ao Brasil, Boal tou com grandes talentos que começavam passou a integrar o Teatro de Arena de São a despontar no teatro brasileiro: o próprio Paulo, dividindo a direção artística com Zé Guarnieri (no papel de Tião), Lelia Abramo Renato. A primeira peça dirigida por Boal, (Romana), Miriam Mehler (Maria), Flavio Ratos e Homens, de John Steinbeck, ence- Migliaccio (Chiquinho), Eugênio Kusnet nada em 1957, rendeu a Guarnieri o prê- (Otávio), Francisco de Assis (Jesuíno), Hen- mio de Ator Revelação. rique César (João), Celeste Lima (Teresi- Eu comecei a escrever para teatro após a chega- nha), Riva Nimtz (Dalva) e Milton Gonçal- da do Augusto Boal ao Arena. Eu estava muito ves (Bráulio). entusiasmado com esta descoberta e este estudo Não havia nada naquela peça que tivesse sido da dramaturgia brasileira. Nós só discutíamos tomado emprestado de outro autor, de outra si- isso no Arena, vivíamos para este fim. Eu sentia tuação, era tudo por demais integrado à reali- que precisava fazer alguma coisa para colaborar dade brasileira. com aquele processo, então decidi escrever. Es- crevia à noite, de madrugada, quando chegava […] Eu disse para a companhia: nós precisa- em casa. Escrever me dava uma alegria imensa, mos estrear até para salvar o Teatro de Arena da uma sensação que eu não sentia havia muito falência. E seja o que Deus quiser. Então veio tempo. (GUARNIERI apud ROVERI, p. 76). a estreia, que correspondeu exatamente às mi- nhas expectativas. Eu fiquei eufórico porque houve uma aceitação Foi assim que nasceu a peça Eles não geral. Uma aceitação do outro, ou dos outros. A usam black-tie, em 1956. receptividade da crítica foi estupenda. (GUAR- NIERI apud ROVERI, p. 89). Quando Black-tie estreou, em 1958, me bateu uma responsabilidade terrível. Eu não tinha a Programada para encerrar o trabalho do mínima ideia do que poderia acontecer com a peça. Ao ver o sucesso da montagem, fiquei grupo, que vivia uma crise financeira, Eles assustado. Na minha cabeça, eu havia apenas não usam black-tie alcançou sucesso imen- colocado algumas coisas para fora, em tom de so, sendo um dos marcos da renovação do protesto mesmo. Eu dizia para mim: vou escre- ver para botar para fora tudo o que eu sinto. teatro brasileiro da época. A peça, o autor Mas quando eu vi o resultado daquilo eu pro- e o elenco foram premiados pelo então 152

Governador de São Paulo, Jânio Quadros, ma de musical, focava-se na realidade dos e salvou o Arena de uma crise tremenda – morros cariocas e foi levada em excursão durante muito tempo, sempre que precisa- pela Europa. va de uma temporada de sucesso, o grupo Em 1961, teve outra peça levada à cena, sacava a obra do colete. desta vez pelo TBC, também com direção de Flávio Rangel: A Semente – obra de cunho Na época, a crítica se referia a mim como um abertamente político e inteiramente fora dos moleque talentoso, ou um “molecote talento- so”, como alguém chegou a publicar. A maio- padrões do Teatro Brasileiro de Comédia, ria deles, ou ao menos os mais importantes, que abordava de forma contundente a mi- como Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado litância comunista. Embora fosse uma mon- e Delmiro Gouveia, parecia torcer muito por mim, para que eu continuasse a exibir o mesmo tagem grandiosa e contasse com o aval da vigor que eu havia demonstrado em Black-tie. crítica, a peça teve problemas com a Cen- (GUARNIERI apud ROVERI, p. 105). sura, o que acabou esfriando o interesse dos frequentadores do então chamado “Templo Gianfrancesco Guarnieri orgulhava- Burguês do Teatro Paulista”. A peça ficou se de ter trazido, em Black-tie, o operário em cartaz de 28 de abril a 1º de agosto. como protagonista de uma peça teatral Nesse mesmo ano, ainda no TBC, brasileira. Antes, segundo o dramaturgo, o Guarnieri participou de duas montagens de ponto de vista era sempre o da classe domi- Flávio Rangel: Almas Mortas, de Gogol, e a nante, da burguesia. primeira montagem de A Escada, de Jorge Eu acho que o Black-tie tem isso e encara esta Andrade. problemática, que até hoje está aí na hora do De volta ao Arena, em 1962, como só- dia. Por isso que o Black-tie permanece, eu cio proprietário – juntamente com Augusto acho que é só por isso. Não é tanto pela sua dramaturgia, não. Não pela sua feitura. É pela Boal, Paulo José, Juca de Oliveira e Flávio problemática que ele levanta, é a questão do in- Império –, participou de vários espetáculos, dividual e do coletivo [...] (RODA VIVA, 1991) como A Mandrágora, de Maquiavel, em Atento ao sucesso de Eles não usam 1962, e O Melhor Juiz, o Rei, de Lope de black-tie, o diretor Sandro Polloni enco- Vega, em 1963. mendou uma peça a Guarnieri para ser Em 1964, Guarnieri escreveu três peças, encenada pela companhia de Maria Della O Filho do Cão, O Cimento e História de um Costa. Em 1959, veio Gimba, Presiden- Soldado. O Filho do Cão – cujo cenário era te dos Valentes – sob a direção de Flávio o Nordeste – estreou em fevereiro do mesmo Rangel. A temática neste momento, em for- ano. A peça falava de superstição, de medo, 153

dos mitos regionais e da miséria da popula- do. O dramaturgo afirmou que A Semente ção. Na noite de 31 de março, O Filho do era a temática que lhe interessava, porém Cão foi encenada normalmente e, depois já não era mais possível utilizá-la. Aquele da apresentação, houve um debate com es- estilo teatral não permitia subterfúgios ou tudantes na USP da Rua Maria Antônia. No metáforas e, naquele momento, deveria-se meio do debate entrou um homem correndo usar de abstrações para não ser entendido e disse: “Foi dado o golpe, é a revolução, é a pela Censura. revolução”. No dia seguinte, antecipando o […] mas afinal de contas eles obrigaram a gente que estava por vir, os próprios membros do a trabalhar com outros meios expressivos que Arena decidiram fechar o teatro. a gente não estava habituado e isso foi bom. Perto de casa, à noite, Gianfrancesco E eu acho que a gente dá a volta por cima e acaba, mesmo nas piores condições, extraindo viu muitos soldados fazendo ronda pela re- algo positivo. gião e pensou: “Eles estão atrás de mim” É o caso da gente ser obrigado ao uso da metá- (GUARNIERI apud ROVERI, p. 122). Junta- fora, ao uso da alegoria, da abstração e procu- mente com Juca de Oliveira, Guarnieri re- rar dominar isso para ser entendido. E aí que é solveu fugir para a Bolívia, onde permane- o grande problema: de usar isso tudo e que as pessoas saquem o que a gente quer comunicar. ceu por três meses. (RODA VIVA, 1991)

Um dia, eu e o Juca nos sentamos numa mesa e dissemos: quer saber, nós vamos voltar. Pren- No campo da linguagem metafórica e dam ou não prendam, matem ou não matem, alegórica, em coautoria com Augusto Boal, nós vamos voltar. Aqui é que a gente não fica Guarnieri dedicou-se intensamente à mon- mais. Porque o que a gente estava tendo lá tam- bém não era vida. (GUARNIERI apud ROVERI, tagem de musicais: Arena Conta Zumbi p. 130). (1965) – com música de Edu Lobo – foi o primeiro deles. Felizmente, de volta a São Paulo, nada Com o êxito de Zumbi – o teatro tinha a de mais grave aconteceu. Guarnieri come- plateia sempre lotada –, o regime começou çou, então, um movimento para a reabertu- a mostrar seu lado mais terrível: as indire- ra do Arena. A peça escolhida foi Tartufo, tas verbais da polícia deram lugar às ame- de Molière, que permaneceu em cartaz até aças de bomba. No meio da temporada de o final de 64. Zumbi, o Arena recebeu vários telefonemas Contudo, devido às circunstâncias po- dizendo que o teatro iria pelos ares, que líticas, Gianfrancesco viu-se, como autor, bombas tinham sido colocadas no prédio. obrigado a abandonar o tema do proletaria- Mais adiante, durante os espetáculos, havia 154

a presença constante de homens ostensiva- trazia uma vila da Idade Média como ale- mente armados, com revólveres à mostra, goria para contar a morte do jornalista Vla- no meio do público. Essa pressão estimulou dimir Herzog –; Que País é Esse, Que Zor- a produção seguinte do grupo, Arena Conta ra! (1979); e Crônica de um Cidadão Sem Tiradentes, de 1967. Contudo, o Arena não Nenhuma Importância (1979). resistiu por muito tempo após o golpe mili- Quando a ditadura militar acabou, de início tar de 1964. fiquei em tempo de espera, aquilatando os es- O regime não apenas torturava ou tirava as pes- tragos feitos em nossa cultura. Seria necessário soas de circulação, ele fechava todas as possi- um grande trabalho para retomarmos o fio da bilidades de trabalho para o teatro. Eles impe- meada. Foram longos os anos anteriores, pe- diam que a gente tivesse qualquer patrocínio. sados, atemorizantes, destruidores de mentes, Eles secaram o grupo, estrangularam o Arena. almas e corpos. Seria necessária uma “ardente Fazer parte do Arena passou a representar um paciência” para reativar o processo interrompi- perigo à nossa integridade física. Não faltaram do. (GUARNIERI apud ROVERI, p. 165) ameaças. O grupo não poderia sobreviver na- quelas condições. Como o tempo se encarre- gou de provar, não sobreviveu mesmo. (GUAR- Sua carreira como autor teatral traz ain- NIERI apud ROVERI, p. 73) da Pegando Fogo… Lá Fora (1988); Que Fazer Leonel? (1994); A Canastra de Ma- No ano de 1968, Guarnieri participou cário (1995); Anjo na Contramão, em par- da Feira Paulista de Opinião e, em parce- ceria com o filho Cláudio (1998); e A Luta ria com Edu Lobo, escreveu também Marta Secreta de Maria da Encarnação (2001). Saré – uma encomenda de Fernanda Mon- tenegro que inaugurou o Teatro São Pedro, O principal assunto da minha dramaturgia é a preocupação com o ser humano. Para ser mais na Barra Funda. exato, com as condições em que as pessoas Depois do AI-5, Gianfrancesco fez seu vivem, as desigualdades sociais, as injustiças, último trabalho no Arena: A Resistível As- as lutas de classe. Eu sempre fui marcado por esta preocupação, e não só no palco, mas na censão de Arturo Ui, de Bertolt Brecht, tam- existência. bém dirigido por Augusto Boal. O teatro […] Minha opção política sempre foi um retrato acabou por fechar as portas no início dos da necessidade que eu tinha de fazer alguma coisa, de contribuir com algo construtivo, e anos 70. nunca arredei pé disso. (GUARNIERI apud RO- Na década de 1970, Guarnieri escre- VERI, pp. 55-56) veu Castro Alves Pede Passagem (1971); Botequim (1972); Basta! (1972) – interdita- Sua última atuação nos palcos deu-se no da pela Censura Federal; Um Grito Parado dia 15 de agosto de 2005, no Teatro Maria no Ar (1972); Ponto de Partida (1976) – que Della Costa, na peça Você Tem Medo do Ri- 155

dículo, Clark Gable?, de Analy Alvarez, com nas três meses após sua fundação, o PCB direção de Roberto Lage. já foi colocado na ilegalidade pelo então Gianfrancesco Guarnieri morreu em 22 presidente Epitácio Pessoa. A reconquista de julho de 2006, aos 71 anos, devido a da legalidade só foi obtida cinco anos de- complicações geradas por insuficiência re- pois, em janeiro de 1927, quando o PCB nal crônica. Deixou como legado 22 peças conseguiu eleger Azevedo Lima para a Câ- de sua autoria e uma longa lista de obras mara dos Deputados. Mas, outra vez, em em que participou como ator: são 27 espe- pouco tempo, o partido teve que voltar às táculos teatrais, 39 novelas de televisão e sombras: em agosto do mesmo ano, acabou nove longas-metragens – inclusive em Eles por perder todos os seus privilégios. Não Usam Black-Tie (1981), a versão de Em 1935, o Partido Comunista Brasilei- sua peça dirigida por Leon Hirszman. ro mobilizou-se em nome da Aliança Na- cional Libertadora e promoveu a Intentona Comunista, também conhecida como Re- 4.2.2 Semeando a Discórdia – volta Vermelha de 35 – uma tentativa de a peça A Semente golpe contra o governo de Getúlio Vargas, Para entender o contexto de A Semen- corporificada por Luís Carlos Prestes, capi- te – peça que trazia como temática a or- tão do Exército Brasileiro e líder tenentista, ganização do Partido Comunista e o modo que dirigiu o levante. pelo qual uma de suas células se articulava Prestes foi preso em 1936 e, com a ins- durante uma greve operária –, é preciso re- tauração da ditadura do Estado Novo em visar a história do PCB, que foi, durante um 1937, a maioria dos dirigentes do partido bom tempo, muito turbulenta. Afinal, a di- também foi detida. Só em 1945, com a anis- reita brasileira sempre caracterizou o movi- tia concedida a Prestes e a outros membros mento comunista brasileiro como possuidor da cúpula, o PCB retornou à legalidade e de um caráter antinacional, composto por conseguiu seu registro eleitoral. Dois anos militantes que sempre agiam como simples depois, no governo do marechal Eurico Gas- fantoches do comunismo internacional. par Dutra, o Tribunal Superior Eleitoral can- Fundado em Niterói, a 25 de março de celou novamente o registro e, em 1948, to- 1922, com o nome de “Partido Comunista dos os seus parlamentares foram cassados. do Brasil”, era chamado por seus militantes, Após anos de clandestinidade, em se- indistintamente, de Partido Comunista Bra- tembro de 1960, o partido decidiu instituir sileiro e Partido Comunista do Brasil. Ape- uma campanha para a conquista da legali- 156

dade com uma adequação jurídica: man- A Semente foi escrita e encenada em tendo a sigla PCB, promoveu a alteração de 1961, um dos períodos nos quais o partido sua denominação de “Partido Comunista encontrava-se na ilegalidade. Em entrevista do Brasil” para “Partido Comunista Brasilei- publicada no jornal O Estado de S. Paulo, ro”. Nesse processo, advogando pela ma- em 23 de abril de 1961, o próprio Gianfran- nutenção da ortodoxia stalinista, formou-se cesco Guarnieri falou do contexto da peça: no interior do partido um grupo de descon- Para movimentar minhas personagens dentro tentes em relação à nova linha adotada – a de conflitos mais definidos, escolhi a época que chamada Ala Vermelha, que, em 1962, foi segue os anos da ditadura [Vargas]. Não me preocupei em caracterizá-las. Serviu-me apenas expulsa por formação de tendência e que, como ponto de partida para o trabalho. Real- mais tarde, fundou o PC do B. mente, os problemas tratados independem de O regime militar, instituído em abril de décadas. Não é o fato de existir maior ou menor repressão policial, lutas mais ou menos intensas, 1964, impôs ao PCB mais um longo período não é o que importa. Interessam-me a vida, os de clandestinidade e a repressão que se se- problemas, os conflitos em geral – sejam indivi- guiu ao golpe afetou o conjunto das forças duais, familiares ou coletivos desse proletariado, daí falar em ambição. (O Estado de S. Pau- democráticas, atingindo fortemente o PCB. lo, 23 de abril de 1961, p. 23) Nos anos seguintes – principalmente a partir do Ato Institucional Nº 5, de 13 de Ao divulgar a estreia de sua obra, no dezembro de 1968 –, intensificou-se a per- TBC, Gianfrancesco Guarnieri atestou que seguição. Entre 1973 e 1975, um terço do A Semente era mais ambiciosa que Eles não Comitê Central foi assassinado e centenas usam black-tie e Gimba: de militantes submetidos à tortura, alguns Nas peças anteriores, via o proletariado como até a morte, dentre os quais se destacam o um todo: consciências estabelecidas; unidade jornalista Vladimir Herzog, o operário Ma- de ação total. Esquecia-me das massas perple- xas, ainda não definidas dentro de um conteúdo nuel Fiel Filho e o dirigente da Juventude, de classe. Esquecia-me das solicitações de uma José Montenegro. ideologia estranha a esse proletariado, a qual o Com a conquista da anistia em setembro amarra, dificulta a sua luta, instaura a indecisão de 1979, os dirigentes e militantes que es- e por vezes o cinde. Se nossos trabalhadores tivessem a consciência de suas próprias neces- tavam no exterior voltaram ao Brasil. E, em sidades – da forma que eu lhes impunha, enca- 1985, com o fim da ditadura militar e o iní- rando o proletário vacilante e perplexo como cio da Nova República, tanto o PCB como o exceção –, de há muito estariam resolvidos to- dos os problemas. PC do B voltaram a funcionar como partidos […] A Semente pretende apontar essa conjuntu- políticos legais. ra. Nela se movimentam as massas trabalhado- 157

ras – o proletariado protagonista – e se debatem os problemas da vanguarda política, das indeci- sões, de perplexidade. Os acontecimentos im- pulsionam, empurram, carregam a massa cada vez mais atenta, cada vez mais preocupada, a caminho da consciência exata de sua situação – nesse movimento evolutivo extraordinário e lindo, que garante o homem a satisfação de suas necessidades – sua felicidade. (O Estado de S. Paulo, 23 de abril de 1961, p. 23)

Sobre a estrutura do espetáculo, Guar- nieri relatou: Flávio Rangel, o diretor, olhava-me com pro- funda irritação e dizia: “Mas não é uma peça, é um filme!”. De fato, as dificuldades que tiveram que ser vencidas pelo cenógrafo e pelo diretor foram muitas. Mas do resultado alcançado po- de-se depreender que “não é um filme, é uma Matéria de O Estado de S. Paulo, peça”. (Idem) 23 de abril de 1961

As personagens de A Semente são pois de revistarem a casa, levam Rosa deti- operários, líderes proletários, mulheres do da para a delegacia. povo, donos de indústria, gerentes, religio- A peça é tecnicamente dificílima do sos, delegados, mendigos. Para interpretá- ponto de vista da encenação – são 22 pe- los, o elenco da montagem de 1961 conta- quenas sequências espalhadas por 10 cená- va com Cleyde Yáconis, Nathalia Timberg, rios que vão e voltam. Sempre com muita Leonardo Vilar, Amélia Bitencourt, Juca de gente em cena. Oliveira, Stênio Garcia, Flávio Migliaccio, O próximo cenário é o depósito de lixo entre outros. da cidade, onde um grupo de molecotes brin- O protagonista de A Semente é Agileu, ca em meio a detritos e a urubus. um ferrenho militante do Partido Comunis- Agileu surge ao fundo, a esperar por al- ta que passou os últimos vinte anos promo- guém e, em vão, procura não ser percebi- vendo movimentos nas portas das fábricas. do pelos mendigos que remexem o lixo em Na primeira cena da peça, sua mulher, busca de comida. Um dos miseráveis que Rosa, está em casa e chegam dois homens lá vivem o vê e pede-lhe um cigarro, um à procura de Agileu: são policiais que, de- trocado, qualquer coisa. Agileu desconver- 158

sa e nega-lhe ajuda. Surge em cena Cipria- Respondendo pelo DOPS, Benjamin no, companheiro de partido, que veio avi- Raymundo da Silva escreveu que sar sobre a prisão de Rosa. Cipriano conta Gianfrancesco Guarnieri, em sua peça A Se- também que o filho de Américo, um menor mente, inicia o enredo como quem vai caus- que perdeu um braço trabalhando na fábri- ticar a situação social com realismo profundo, ca, está para morrer. quando descreve cenas chocantes de crianças e Obliterado pela causa que defende, adultos procurando alimentos em um depósito de lixo. Agileu entusiasma-se com a possibilidade desse óbito, pois a morte do menino seria capaz de provocar um levante de toda a classe operária. Esse raciocínio choca até seu colega de militância, que fica surpreso com a frieza de Agileu, que lhe responde: “Não é chorando que se faz revolução!...”. Aqui, surgem os primeiros diálogos que in- comodaram os censores. O assunto era delicado aos olhos do po- der e no processo de A Semente encontra-se um procedimento atípico na metodologia de censura: a existência de dois pareceres emitidos por órgãos distintos – o tradicional parecer da Comissão de Censura da Divisão de Diversões Públicas de São Paulo, do dia 19 de abril de 1961, e um segundo anterior, datado de 17 de abril de 1961, emitido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) – ambos vinculados ao Governo do Estado. A existência dessas duas avaliações indica uma forte preocupação com o teor da obra por parte do poder Executivo do Es- À frente, o parecer emitido pelo Departamento tado de São Paulo – cujo governador era o de Ordem Política e Social (DOPS). Ao fundo, advogado Carlos Alberto Alves de Carvalho o parecer da Comissão de Censura da Divisão Pinto, no cargo de 1959 a 1963. de Diversões Públicas de São Paulo 159

Depois, como que a seguir passos bem delinea- Na época, essa manifestação de cari- dos, envereda para o lado político, historiando nho não era vista com bons olhos e foi su- a vida de um grupo de operários, com destaque para Agileu, homem cujo ânimo e inteligência primida. Era íntima demais. Se essa moral só compreendiam a luta de classes se feita pela pudica dos anos 50/60 nos parece distante, violência, com desprezo aos mais sublimes ins- podemos recordar que, em 1981, em Soro- tantes da vida doméstica. Essa orientação é uma constante na peça. caba, o beijo público chegou a ser proibido por uma portaria do juiz Manuel Moraes. […] Para ele (o que significa dizer, para os co- munistas) a situação de milhares de homens, E não só o beijo. Foram também proibidas abstratamente considerados, sobrepõe-se a de “as apalpadelas, apertões, abraços indeco- cada homem, cada família, cada grupo. (Proc. rosos, beijos prolongados ou qualquer ato 5157 in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA) libidinoso, quando praticado em locais pú- Outra passagem da peça incomodou os blicos”. Foi preciso organizar uma manifes- avaliadores – desta vez, uma comissão de tação com cinco mil pessoas em passeata e censores que assistiu à íntegra do espetá- a ocorrência de um grande confronto entre culo na véspera da estreia. Gianfrancesco participantes e a polícia para derrubar a tal Guarnieri (apud ROVERI, p. 113) contou portaria. que, na ocasião, os censores exigiram que Mas o foco dos censores de A Semen- fosse cortada a sequência em que o marido te ia para além da moral e bons costumes. coloca a cabeça na barriga da mulher grá- Outro ponto delicado da trama apontado vida para ouvir o nenê chutando. pelo funcionário do DOPS foi o tratamento JOÃO (RINDO, AJOELHA-SE PROCURANDO dado a Rosa, mulher de Agileu, no Depar- ENCOSTAR O OUVIDO NO VENTRE DE ALI- tamento de Polícia: Rosa, intimidada pelo CE): Deixa eu ouvi um pouco o meu filho! ALICE: Faz cócega, João! Ai! Não, não, não! delegado, teve que assinar três folhas em JOÃO (OUVIDO COLADO AO branco para ser liberada pela polícia. Ben- VENTRE DE ALICE) Péra aí, num faz jamin Raymundo da Silva disse que barulho! ALICE: Num ouve nada, não! […] aqui está a parte mais negativa da peça. JOÃO: Tá muito quieto mesmo. Será que ele É desaprimorosa a maneira como é tratada a está bom? polícia, na pessoa de agentes que entram em ALICE: Tá mais do que bom. Levanta, vai, cena para o desempenho dos papéis desleais, João! antipáticos e violentos. Assim é que se atribui a JOÃO: Péra aí, péra aí! Pulô… pulô! Você sente um Delegado de Polícia o haver feito a mulher ele mexê? de Agileu assinar uma declaração em branco ALICE: Claro, ué! que, preenchida a seu bel prazer constituía um JOÃO: Danadão! Ói como pula! Fica quieto, libelo contra a pessoa do marido que a polícia sô! Quieto! Olha aí, nem respeita o pai! tinha interesse em prejudicar. 160

Outro detalhe inadmissível: A cena que, na visão dos censores, sus- [...] a autoridade confessa que o mundo teve o citaria os protestos da Igreja se passa no ve- ensejo de escolher, no último conflito mundial, o lório de Toniquinho, o menino que morreu caminho certo – o integralismo – e preferiu a es- em decorrência de um acidente numa má- trada oposta. Em última análise, pela palavra de uma autoridade, a polícia era FASCISTA. (Proc. quina da fábrica. Agileu, ao tentar conven- 5157 in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA) cer Américo a vingar a morte de seu filho, inicia uma discussão com um padre. Avalia Encontramos no texto mais terreno pan- Benjamin Raymundo da Silva, do DOPS: tanoso: na quinta cena do primeiro ato, há uma reunião do partido na qual, entre ou- Quando o padre que ali rezava procurou inter- ferir para que o agitador não amargurasse mais tras coisas, é dito que “a transição do socia- o coração daquele pai, voltou-se contra o ecle- lismo transcorrerá aí em meio a uma agu- siástico, com o rancor próprio que os comunis- da luta revolucionária de classes…”. Para tas voltam às coisas religiosas, para estertorar: “E o Cristo não morreu por isso e não é usado os censores Nestório Lips, Dalva Janeiro e como bandeira e bandeira por todos vocês ava- Willy de Paula Teixeira, que assinaram o calhada, seus grandíssimos filhos da puta?”. parecer da Comissão de Censura, Não temos provas no processo ou nas A Semente é, ora implícita ora explicitamente, uma obra claramente subversiva; desobediente páginas de jornal de que esse trecho da aos preceitos legais do país, com intenção de peça tenha chegado ao conhecimento da demolir o regime democrático brasileiro, cuja Igreja. Mas o fato é, como veremos a se- estrutura é solidamente definida. Considerando que a peça do ilustre teatrólogo – guir, que a maioria das cartas, telegramas e cujos ideais políticos e sociais ignoramos – faz abaixo-assinados enviados contra a libera- do palco veículo, direto ou indireto, como dis- ção da obra teve sua origem em entidades semos, para a propaganda de caráter subversi- vo, contrariando a organização política e social católicas. do Brasil e a índole da população brasileira, E, na visão da equipe censória, A Se- fomos forçados, no árduo exercício de nossas mente não atacava apenas à Igreja. Para delicadas funções, a opinar pela proibição de sua representação nos teatros do Estado de São Benjamin Raymundo da Silva, a peça pro- Paulo, em cujo território se acha circunscrita a curava “pôr em desagrado a classe patro- nossa autoridade. nal, pintando-a como se composta fosse Além do mais, há na peça do Sr. Gianfrancesco de criaturas que somente visam o lucro Guarnieri, autor de tantas peças de real suces- so, cenas que são flagrantes desrespeito aos sa- imediato, sem um olhar de carinho e de cerdotes, o que, consentida a representação de solidariedade para com o operário, sempre A Semente, daria margem a justos protestos do sofredor”. A peça também colocaria em clero. (Proc. 5157 in ARQUIVO MIROEL SIL- VEIRA) destaque, demagogicamente, o interesse 161

pela vida da coletividade, com desprezo pôde ser encontrada nos quadros do PCB, constante pelo bem individual: nos patrões, na polícia, nem nos operários. […] diante de um operário que estava com a Para Guarnieri, “o povo está sempre dispos- mulher grávida e se recusava a participar de to a se ajudar. Meu desafio como autor foi qualquer agitação, porque a família dele pre- sempre o de retratar este povo, procurando cisava, Agileu desenvolve a teoria comunista, como autêntico dialético, procurando conven- identificar a consciência do que ele repre- cer o homem ora chamando-o de medroso, ora senta como povo”. (GUARNIERI apud RO- de ignorante, ora de defibrado. VERI, p. 55) Tanto o acovardou que conseguiu levá-lo a uma passeata, com a mulher grávida, e esta acabou Depois de analisar os dois pareceres morrendo num tiroteio havido com a polícia. que recebeu, em 25 de abril de 1961, o Di- retor substituto da Divisão de Diversões Pú- Nessa passeata, Agileu é preso. E mais blicas, Aloysio Oliveira Ribeiro, proibiu a uma vez, nas palavras do homem do DOPS, encenação de A Semente no Estado de São a polícia foi apresentada como desleal na Paulo, em despacho publicado no Diário figura do delegado, que decidiu soltar Agi- Oficial do dia 26 e transcrito a seguir: leu para que fosse apontado como traidor pelos próprios companheiros. Proibição de peça teatral A Divisão de Diversões Públicas, para efeito de A trama foi preparada pela autoridade policial, esclarecimento da coletividade paulista, trans- em cuja equipe figuram homens falsos e vio- creve no Expediente da Secretaria da Seguran- lentos. ça Pública a íntegra do despacho denegatório É sabido que, para os comunistas, a instituição à exibição da peça “A Semente” de autoria do que deve ser combatida com veemência e in- teatrólogo Gianfrancesco Guarnieri, de onde transigência é o policial porque constitui a ação depreendem os reais e superiores motivos que coercitiva que impede a propagação do ideal a levaram a esta atitude. vermelho. Isso o autor consegue com maestria. Parece um Lenine redivivo. Divisão de Diversão Pública Despacho do Diretor substituto, Execrado por seus pares, sem família, de 25 do corrente sem amigos e sem partido, Agileu vai viver Registro e expediente – Despacho: Tendo em no depósito de lixo. Faminto, reencontra os vista os pareceres emitidos pela Comissão de mendigos que, sem restrições, se dispõem a Censura desta Divisão e pelo Departamento de Ordem Política e Social, após serena e de- dividir com ele o pouco que têm. Com esse sapaixonada apreciação da peça “A Semente”, final, Guarnieri quis demonstrar sua tese de de autoria de Gianfrancesco Guarnieri, forçoso que a solidariedade está muito mais presente é concluir que seu texto, invariavelmente, cons- titui claro e audacioso incitamento à subversão entre aqueles que não têm quase nada. Soli- da ordem pública, objetivando solapar em suas dariedade, que, na trama de A Semente, não bases a estrutura do regime vigente no país. 162

É de se ressaltar, também, as circunstâncias do peça. Madre Valéria, a Diretora do Ginásio aspecto moral, pela disseminação no texto da Boni Consilii, mandou uma carta a Aloysio peça de diálogos desenvolvidos em linguagem do mais rasteiro calão. Oliveira Ribeiro para Além de tais considerações, que são de meridia- apresentar-lhe calorosas felicitações por sua na clareza, a exibição do espetáculo em causa desassombrada e patriótica atitude no desem- fere frontalmente o disposto no artigo 188 do penho de sua elevada função, manifestada, so- Regulamento Policial que impede, por inter- bretudo, através do louvável despacho publica- médio da censura de diversões públicas, a re- do recentemente no Diário Oficial, proibindo a presentação de peça teatral quando nela haja encenação da peça teatral intitulada “A Semen- alusões deprimentes às autoridades públicas e te”, de autoria de Gianfrancesco Guarnieri. religiosas e que propaguem ideias subversivas de ordem e da organização atual da sociedade. Acreditando que a louvável decisão mantenha- Por outro lado, a fase de ampla reconstrução se irrevogável, mesmo ante a pressão insana moral, social e econômica que o país atraves- de elementos incitadores da subversão e da or- sa, e em que vivamente se empenha o Chefe dem pública, como são todos os interessados da Nação, torna perigosa e desaconselhável a para que a aludida peça seja levada em cena, utilização de quaisquer fórmulas ou meios de antecipo-lhe os mais calorosos e entusiásticos incentivação à inquietude, ao pessimismo e ao encômios pela firmeza de seus princípios e re- desalento, que devem ser intransigentemente tidão de sua atitude, exprimindo o mais nobre banidas do campo das relações humanas. e elevado sentimento de são patriotismo. (Proc. Daí esperamos, ainda, do espírito culto e da 5157 in ARQUIVO MIROEL SILVEIRA) inteligência do autor de “A Semente” – ao con- trário do que ora o faz – a produção de obras Em 28 de abril de 1961, o Diretor Subs- teatrais que proporcionem ao espectador a tituto da Divisão de Diversões Públicas rece- apreciação das contingências da vida, através de um ambiente despido de falsos otimismos, beu um documento com 62 assinaturas, em mas, ao mesmo tempo, escoimado da inquietu- nome das famílias do Sumaré, manifestan- de contagiante e destrutiva com que procurou do solidariedade e apoio, ”pelo alto grau de vestir a alma de seus personagens. Considerando, pois, sob todos esses aspectos, civismo e coragem, manifestado ao vedar a inteiramente contrários aos superiores interes- exibição, na íntegra, de A Semente, peça re- ses da ordem e do sossego públicos a exibição conhecidamente prejudicial às consciências da peça “A Semente”, acatando o parecer emi- tido pelos senhores Censores e a manifestação em formação da juventude de nossa Pátria”. expressa pelo DOPS, consignamos aqui nosso As professoras do Curso Primário do Co- indeferimento ao pleiteado nestes autos, deter- légio Assunção e da Escola Madre Maria Eu- minando, consequentemente, a proibição do espetáculo. gênia também enviaram um abaixo-assina- Registre-se, publique-se e cumpra-se. (Diário do contendo 32 subscrições, no qual diziam Oficial, 26 de abril de 1961) aplaudir “o gesto altamente patriótico” de Essa publicação rendeu uma série de proibir a apresentação da peça A Semente, manifestações felicitando o veto total à que “atenta contra a ordem social e moral”. 163

Frei Clemente Costa Neves, Diretor do Colégio Santo Alberto dos Padres Carmeli- tas, escreveu para enaltecer a têmpera e o caráter do Diretor Substituto da Divisão de Diversões Públicas, um homem capaz de se opor “à onda de anarquia e de rebelião, que avassala o mundo civilizado”. Além dessas cartas e abaixo-assinados, Aloysio Oliveira Ribeiro mandou anexar também ao processo de A Semente uma sé- rie de 16 telegramas de apoio à sua decisão de censurar a peça. Os telegramas foram enviados pelo Padre Fernando Pedreira de Castro, Vice-presidente da Associação de Cavaleiros de São Paulo; pela Diretoria do Colégio São José; pela Diretoria e Corpo Docente do Colégio São Luís; pela Presi- dente da Federação Mariana Feminina, Ma- ria Conceição Figueiredo – uma entidade que reunia doze mil moças de São Paulo; pela Diretoria e Corpo Docente do Colégio do Rosário; pela Diretoria do Colégio San- to Américo; pela Diretora e Corpo Docente do Colégio Sacré-Coeur de Marie; pela Di- retoria do Colégio Santo Agostinho; e por outras cidadãs comuns, como Maria Car- lota Manfredi Dias de Carvalho, aluna do terceiro ano clássico do Colégio São José; Maici Giusti; Maria Inês; Wilza Aparecida de Moraes; Taicilia Maria Ginnoti e Maria Aparecida Fernandes. Diário Oficial, no 91, 26 de Ao lembrar-se da proibição de A Se- abril de 1961 mente, Guarnieri disse que, juntamente 164

com Flávio Rangel e Roberto Freire, pro- plomática: a encenação da peça foi permi- curou o Secretário de Segurança Pública tida, mas somente no Teatro Brasileiro de de São Paulo, Virgílio Lopes da Silva – um Comédia. E nada além disso. Para todos os homem corajoso que lhes ofereceu cober- efeitos, A Semente estava proibida em todo tura, garantindo que o veredicto sobre o o território do Estado de São Paulo. espetáculo seria dado pela sociedade. Foi, Eu passei a conhecer melhor o que era a cen- então, designada uma comissão de intelec- sura a partir da peça A Semente, de 1961. […] Eu conheci a censura promovida por alguns se- tuais para deliberar sobre o caso – comissão tores da sociedade, que fizeram pressão para que não se opôs à montagem nem ao texto. que a peça fosse proibida, já que ela tratava de Para garantir a vontade da sociedade sem um tema que, para muita gente, era espinhoso: a organização do Partido Comunista e como desrespeitar a opinião dos censores, Virgí- uma de suas células se articulava durante uma lio Lopes da Silva encontrou uma saída di- greve operária. Estes setores da sociedade que

Alguns telegramas incluídos no processo de A Semente na DDP-SP 165

queriam proibir a peça eram formados por uma Wilson Moreira da Costa, empresário bem- gente muito conservadora, uma direita ferre- sucedido e corretor de fundos públicos, as- nha. Eles apareciam com paus e pedras, sempre querendo quebrar tudo. Para nossa sorte, eram sistiu a A Semente, no TBC, e ficou muito uma minoria e não contavam com o mínimo impressionado. Sendo anticomunista, deci- apreço do resto da sociedade. […] Aquelas pessoas que não entendiam de diu encomendar a Fernando Jorge – que já nada, não eram autores, não eram nada na havia sido seu ghost writer em outras duas vida, para ser bem sincero, tentaram responder ocasiões – uma resposta à peça de Guar- ao sucesso da minha peça com uma provoca- ção. Eles fizeram uma peça chamada O Caroço, nieri. O empresário deu apenas a seguinte apresentada como uma paródia de A Semente. orientação: “Você pode exagerar, fazer o (GUARNIERI apud ROVERI, p. 111-112). que você quiser, o diabo! Eu quero é im- Depois de quase 50 anos, em depoi- pressionar!”. (FERNANDO JORGE apud mento ao historiador Bernardo Schmidt, SCHMIDT, 2010) Fernando Jorge – jornalista e escritor – fi- Fernando Jorge pediu, então, para anali- nalmente revelou detalhes sobre O Caroço. sar os originais de A Semente – uma vez que 166

não havia assistido à montagem. A solicita- O Caroço, segundo Fernando Jorge, era ção foi atendida, porém não se sabe como “uma peça enorme, de cinco ou seis atos”, Moreira da Costa conseguiu o texto da uns 100 personagens e quase cinco horas peça. Pode-se aventar três possibilidades: o de duração. A paródia defendia a tese de texto foi obtido com o próprio Guarnieri – que os operários precisavam da elite para pouco provável –; com alguém do TBC; ou progredir e que o comunismo é, de fato, com alguém de dentro da própria Censura. “o caroço” que fica engasgado na gargan- Aqui, como foi visto no caso de Perdoa-me ta do proletariado. Moreira da Costa tinha a Por Me Traíres, encontramos mais um va- pretensão megalomaníaca de encená-la na zamento inexplicável de informações que Broadway: “ele fez várias viagens aos Esta- dizem respeito ao conteúdo das peças. dos Unidos para tentar montar a peça, mas 167

levava sempre um não dos produtores ame- No mesmo dia, o jornal O Estado de S. ricanos, que certamente o consideravam um Paulo publica artigo intitulado “O Secre- doido”. (FERNANDO JORGE apud SCHMI- tário de Segurança nomeia uma comissão DT, 2010). Sendo assim, O Caroço nunca para ver A Semente”, elucidando o que es- subiu aos palcos e, como não havia intenção tava acontecendo com o processo de cen- de encená-la em São Paulo, não há registro sura da peça. desse texto no Arquivo Miroel Siveira. Aos primeiros minutos de hoje, reuniu-se no Teatro Brasileiro de Comédia, uma comissão Dentre os papéis incluídos no processo de intelectuais, especialmente designada pelo nº. 5157, de A Semente, não se encontram Sr. Virgílio Lopes da Silva, secretário da Segu- o parecer da Comissão nem o despacho rança do Estado, para opinar sobre a interdição de “A Semente”, de Gianfrancesco Guarnieri, do Secretário de Segurança Pública de São cuja estreia estava anunciada para hoje, naque- Paulo, nem tão pouco o certificado de libe- la casa de espetáculos. A comissão compõe-se ração. Na verdade, os detalhes dos trâmites dos seguintes membros: a vereadora Dulce Sal- les Cunha; Alfredo Mesquita, diretor da Escola censórios só podem ser compreendidos de de Arte Dramática de São Paulo; Décio de Al- fato, em sua totalidade, a partir do depoi- meida Prado, presidente da Associação Paulista mento de Guarnieri e das páginas dos jor- dos Críticos Teatrais; Ernesto Leme, represen- nais da época – que deram ampla cobertura tante da Academia Paulista de Letras; Vicente Melillo, da Confederação das Famílias Cristãs; ao caso. o escritor Carlos Pinto Alves e o pintor e crítico Quirino da Silva. (O Estado de S. Paulo, 27 de abril de 1961, p. 12) 4.2.3 Os frutos na imprensa O jornal também relata que a comissão No dia 27 de abril, sem dar conta do des- foi constituída pelo Diretor Titular da pas- pacho do Diretor Substituto da Divisão de ta da Segurança em atenção ao pedido de Diversões Públicas que proibia a peça, Car- Roberto Freire – diretor superintendente do los de Moura fala da estreia de A Semente na TBC – do próprio Gianfrancesco Guarnieri e coluna “Teatro”, da Folha de S. Paulo: de Flávio Rangel – diretor da peça. Em favor do espetáculo, os responsáveis pela monta- ESTREIA HOJE, NO TBC, “A SEMENTE”, DE GUARNIERI gem teriam argumentado que o texto se limi- A ocorrência de uma temática brasileira, retratan- tava a fixar aspectos da realidade brasileira. do as contradições e conflitos em que se debatem Além disso, o TBC já havia comunicado o proletariado e as cidades, é a característica mór a um dos censores que o texto havia sido de “A Semente”, espetáculo com que o TBC res- surge, após grave crise que o golpeou. (Folha alterado no decorrer dos ensaios, com o de S. Paulo, 27 de abril de 1961, p. 3). corte de cenas e de palavras mais duras em 168

virtude de exigências artísticas, reconheci- ciar sobre a peça teatral A Semente, de Gian- das pelo próprio autor. Portanto, a lingua- francesco Guarnieri, que estrearia hoje no TBC, após reunião que varou a madrugada, decidiu gem “do mais rasteiro calão” mencionada permitir a representação, anteriormente proibi- no despacho da Divisão não seria mais en- da pelo DDP e pelo DOPS. Assim, a discutida contrada no ensaio geral. Guarnieri estava peça estreará amanhã. Segundo a proibição, a peça se constitui em “claro incitamento à sub- tão seguro da liberação da peça que pediu versão da ordem política, objetivando solapar ao Secretário de Segurança Pública de São em suas bases a estrutura do regime no País”. Paulo que comparecesse ao ensaio geral Nela se conta a história de um líder operário comunista em luta para incutir nos seus cole- pessoalmente para decidir sobre o caso. gas de trabalho, a consciência de pugnar por Em respeito a Guarnieri – jovem drama- melhores condições de vida. Os intelectuais turgo consagrado pela crítica internacional, consideram a obra apenas como reveladora de um problema, tremendamente humano na sua no Festival do Teatro das Nações, em Paris, grandiosidade. No 1º de maio, em homena- e laureado com o “Prêmio Governador do gem ao Dia do Trabalho, haverá um espetáculo Estado” e o “Saci” –, Virgílio Lopes da Silva gratuito, para o qual são convidados políticos, intelectuais, líderes sindicais e estudantis. Na decidiu nomear uma comissão de intelec- foto, cena do ensaio da peça. tuais para revisar a peça. Com a compreensão do Secretário da Seguran- No dia 28 de abril de 1961, O Estado ça e de seus auxiliares imediatos, voltava o cli- ma de otimismo às últimas horas de ontem, no de S. Paulo volta a falar sobre o caso e re- Teatro Brasileiro de Comédia. A fim de apurar a vela novos detalhes. Por maioria – 5 votos a montagem, um ensaio foi realizado, antes mes- 2 –, a comissão de intelectuais, reunida até mo da visita da comissão. as 4 horas da madrugada do dia 28, resol- ADIAMENTO veu recomendar a liberação de A Semente, Em virtude de motivos técnicos, já que não pu- deram ser providenciados na tarde de ontem considerando, entre outros motivos, que o alguns acessórios, decidiu a direção do TBC autor havia, no decorrer dos ensaios, altera- transferir de qualquer forma para amanhã, às do o original e retirado do texto palavras e 21 horas, a estreia de “A Semente”, mesmo que a comissão liberasse o espetáculo, após a reu- cenas julgadas artisticamente dispensáveis. nião desta madrugada. (O Estado de S. Pau- Ao receber o parecer, o Virgílio Lopes da lo, 27 de abril de 1961, p. 12) Silva pediu ao TBC que enviasse à Divisão de Diversões Públicas, para o reexame do caso, O Última Hora, no dia 27 de abril de uma cópia do texto apresentado no ensaio 1961, publica na capa da segunda edição geral. Três censores foram incumbidos de que foi “Liberada A Semente”. A Comissão de intelectuais designada pelo Se- proferir novo parecer, em face das alterações cretário de Segurança Pública para se pronun- espontaneamente feitas pelo dramaturgo. 169

Capa de Última Hora, 27 de abril de 1961 170

O artigo de O Estado de S. Paulo traz miado da nova geração de dramaturgos bra- ainda uma entrevista com Flávio Rangel, o sileiros”. O texto esclarece às leitoras que a diretor da peça, discorrendo sobre a obra: trama de A Semente mostra, de um lado, a Penso que esta é a melhor das três peças de politização das massas e suas reivindicações Gianfrancesco Guarnieri. Vinda depois de “Eles por uma vida melhor e, de outro lado, a vida não usam black-tie” e “Gimba”, parece ser a completação de um ciclo. As qualidades conhe- familiar particular dos indivíduos que se mis- cidas de Guarnieri estão aqui presentes: a gene- tura à vida coletiva do proletariado. rosidade, a preocupação e o amor pelos humil- Também no dia 28 de abril, em nota na des, a consciência social e política e, do ponto de vista formal, o ritmo ágil, o diálogo fluente e coluna “UH no Teatro” (p. 14), o Última o equilíbrio entre emoção e inteligência. A peça Hora informa que a estreia de A Semente é, porém, mais madura e analisa francamente foi adiada para aquele dia, por necessida- a situação de toda uma classe. Uma classe que está caminhando quase independente de lide- de de maior apuro na montagem. rança, e que apresenta enormes contradições Outra dificuldade foi haver a Censura interdi- intrínsecas. O texto é um retrato vivo do Brasil. tado a representação de A Semente e ter dado A extraordinária humanidade que flui do texto, aliada aos dons de observação, lirismo e hu- mor, fazem da peça uma das mais significativas de toda dramaturgia do País. A forma também possui suas peculiaridades, dir-se-ia que é uma transposição de todo o ímpeto, o vigor e a ju- ventude que sacodem atualmente a Nação. Se os românticos alemães tinham razão quando ad- vogavam a “criação formal nacional”, Guarnieri é provavelmente o autor que mais está contri- buindo nesse sentido, entre nós. (O Estado de S. Paulo, 28 de abril de 1961, p. 10)

No mesmo dia 28 de abril, a capa do “Su- plemento Feminino” de O Estado de S. Paulo traz a chamada: “O TBC reabre suas portas com peça de autor brasileiro”. O texto informa que o TBC volta à cena paulista com uma montagem do “autor, in- dubitavelmente, mais festejado e mais pre-

Capa do “Suplemento Feminino” de O Estado de S. Paulo, 28 de abril de 1961 171

conhecimento dessa sua atitude somente na nós. (Correio Paulistano, 30 de abril de véspera da estreia da referida peça. A Censura 1961, Segundo Caderno, p. 6). julgou A Semente obra subversiva. Procurando contornar o incidente, o secretário da Seguran- Miroel Silveira falou dos temores que ça do Estado nomeou uma comissão de intelec- rondaram o TBC depois da proibição à tuais, cujo parecer, por cinco votos contra dois, peça às vésperas da estreia. Ressaltou a vi- liberou a peça. são inteligente do Secretário de Segurança, Na coluna “Teatro”, da Folha de S. Virgílio Lopes da Silva, que acatou o pare- Paulo, Carlos de Moura também falou da cer de uma comissão especial e solicitou a liberação de A Semente: “Afastados todos revisão da decisão da Censura. os empecilhos legais que ameaçavam im- Miroel reclama de que, a todo mo- possibilitar sua representação, estreia hoje, mento, “estavam” atribuindo às peças as no Teatro Brasileiro de Comédia, a peça de mais sérias intenções pornográficas ou Gianfrancesco Guarnieri”. (Folha de S. subversivas quando, na verdade, os dra- Paulo, 28 de abril, p. 3). maturgos estão “simplesmente procurando No dia seguinte, a colunista social de transformar em forma artística o material Última Hora, Alik Kostakis, publica uma bruto da vida, com todos os seus conflitos nota sobre a estreia do espetáculo no TBC. que transitam livremente pelas ruas e pela NO TBC APÓS A TEMPESTADE – Chega a imprensa escrita e falada”. (Correio Paulis- bonança para o TBC, depois de grave crise a tano, 30 de abril de 1961, Segundo Cader- que atravessou. Foi ontem, à noite, a primeira no, p. 6). Cabe ressaltar que o uso de su- estreia de gala com A Semente, de Guarnieri, música de Caetano Zamma. O teatro da Ma- jeito oculto nessa frase não foi por acaso. jor Diogo parece reencontrar seus dias áureos. Aqui não se trata só de uma referência aos É o que deseja a sociedade paulistana que o censores ou ao Diretor substituto da Di- tem procurado. (Última Hora, 29 de abril, Segundo Caderno, p. 2) visão de Diversões Públicas – sujeitos que podem ser nomeados –, mas de uma crítica Em 30 de abril, Miroel Silveira também ao conservadorismo de uma parcela da so- assina uma crítica no Correio Paulistano: ciedade que se posiciona contra o teatro e a Uma equipe jovem, idealista e talentosa co- favor da censura. manda agora o Teatro Brasileiro de Comédia, imprimindo-lhe rumos bem mais simpáticos No caso de A Semente, Miroel Silveira que os primitivos, construídos inicialmente em relembra que foi atribuída a Gianfrancesco torno de esquemas desejados pelo público grã- Guarnieri a intenção de promover a subver- fino. A obra de Franco Zampari, dessa forma, alcança uma destinação mais alta e vem juntar são da ordem e a derrocada do regime. méritos novos aos já acumulados na caminhada Custando o ingresso no TBC aproximadamen- para a fixação de um teatro de alto nível entre te 200 cruzeiros, é um pouco difícil acredi- 172

tar que possa fazer proselitismo entre a mas- isenção ao seu discurso junto àqueles que sa operária, na peça retratada fielmente por pretende convencer. Gianfrancesco Guarnieri, um espetáculo que se limita a colocar honestamente o problema Outro modo de referendar o ethos em- do comunismo e da luta por melhores condi- pregado nesse texto é por meio da análise ções de vida, mostrando inclusive o reverso crítica da peça. A palavra vem de alguém da questão – a necessidade afetiva de algumas personagens, suas indecisões, seus medos. que, por meio dessa palavra, demonstra De qualquer modo, não deixa de ser um tanto possuir grande conhecimento da técnica singular e estranho que ainda se possa discutir teatral. a validade da empostação desses problemas no palco, quando eles são livremente debatidos, Realmente, a experiência que faz agora Gian- em consequência de direitos constitucionais, francesco Guarnieri é nova, desbravando ter- tanto na praça pública quanto nas associações reno virgem, e os enganos são inevitáveis. Por e nos sindicatos, tanto em livros quanto em isso, ao lado das qualidades inegáveis do autor rádio e televisão. Precisamos, por isso, procla- como criador de tipos e das situações, encon- mar desde já nossa recusa total a qualquer po- trando bons diálogos ocasionalmente, deve-se sição que visa cercear esses direitos superiores não esconder certas deficiências da constru- ainda aos da livre expressão artística, já que a ção. justiça social é uma imposição de nosso tem- […] a verdade do quadro que se procura retra- po, para o qual já parecem suficientemente tar é às vezes prejudicada pela falsidade indefi- demorados os 1961 anos que esperamos para nível de certas passagens. […] Em “A Semente” ver concretizados os ideais e as palavras de essa desconfortadora impressão de pouca au- Cristo. (Correio Paulistano, 30 de abril tenticidade talvez resulte de um contato incom- de 1961, Segundo Caderno, p. 6) pleto com o nosso operariado e das próprias contradições e inseguranças ideológicas do au- Cristo foi colocado no texto para refe- tor – bastante naturais em sua idade e relativa rendar o ethos – o caráter que o enunciador inexperiência. (Correio Paulistano, 30 de abril de 1961, Segundo Caderno, p. 6) pretende mostrar ao leitor. Segundo Domi- nique Maingueneau, “a eficácia do ethos se Para Miroel, a direção de Flávio Ran- deve ao fato de que ele envolve de algu- gel – sempre apaixonada, comunicativa e ma forma a enunciação, sem estar explícito ardente – não conseguiu resolver algumas no enunciado”. (MAINGUENEAU, 2008, das desconexões do texto. Ao tentar o hi- p.98). Miroel Silveira fala dos ideais de Cris- bridismo total de estilos e tendências, em to para dar garantias de que ele, o enuncia- tese aceitável, foi pouco feliz na concreti- dor, não é um comunista ateu, para, assim, zação cênica: “Foram reunidas as tendên- conquistar credibilidade junto à comunida- cias as mais opostas e menos aconselhá- de católica que se opunha à liberação da veis de serem agrupadas no mesmo palco: peça. Desse modo, Miroel Silveira pode dar realismo, expressionismo, brechtianismo 173

e outros ismos”. O elenco, contudo, pela HISTÓRIA sua homogeneidade, merecia aplausos A Semente é, antes de tudo, a história humana e real de um líder, Agileu Carraro, o persona- especiais. gem central, com uma força dramática que o Em 2 de maio, Alik Kostakis, a colunista situa ao nível das melhores criações de Arthur social de Última Hora, volta a dar uma nota Miller, é um militante do Partido Comunista, sobre o TBC. convicto de sua ideologia e obstinadamente empenhado na realização de sua missão his- O TBC ESTREOU MESMO – Nossa notícia sobre tórica. Operário de uma fábrica, desespera-se estreia de A Semente, de Gianfrancesco Guar- para incutir nos seus companheiros a consci- nieri, foi mesmo exata. Com grande sucesso a ência de uma luta bem maior que aquela moti- casa da Major Diogo reabriu suas portas numa vada pelos interesses e conveniências pessoais noite de gala como muitas que já teve. O que de cada um. A visão ampla que possui da vida houve pode ser resumido no seguinte: a estreia choca-se a todo instante com a mesquinhez e deveria ter sido quinta-feira, mas teve que ser a ingenuidade de seus colegas, e mesmo com adiada ante a proibição imposta pelo DOPS e a burocracia sedimentada de seus camaradas DDP. de partido. É, de uma certa forma, o tema da […] A estreia houve mesmo e, como dissemos, “conspiração contra o herói”, reformulan- foi um sucesso. (Última Hora, 29 de abril, do uma nova consciência. Em torno da linha p. 10) principal, giram dramas secundários, como o de João e Alice, operários recém-casados, em permanente e singela lua-de-mel, dando à No mesmo dia, o Última Hora publica obra extraordinária movimentação e varieda- também um artigo assinado por Marco An- de de situações. (Última Hora, 29 de abril, tônio (não há sobrenome) falando sobre a Segundo Caderno, p. 4). peça: “A Semente: História humana de um A partir das teorias de Charaudeau, líder no palco do TBC!”. analisando a finalidade deste ato de lingua- Estreou, no Teatro Brasileiro de Comédia, a peça gem, podemos notar que o texto é prescri- A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de Flávio Rangel. A dupla (autor e dire- tivo: querer levar o leitor a tomar consci- tor), criadora do fabuloso Gimba, retorna agora ência “de uma luta bem maior que aquela aos palcos paulistas com uma obra bem mais motivada pelos interesses e conveniências profunda e amadurecida, cuja grandiosidade de personagens e tema provoca indescritível im- pessoais de cada um”. O texto tem também pacto mesmo no espectador desavisado e alheio uma finalidade iniciativa, querer levar o a teatro. leitor a pensar que A Semente é uma obra […] Sai-se da sala com a certeza plena de que “profunda e amadurecida, cuja grandiosi- a dupla Guarnieri-Rangel atingiu uma etapa su- dade de personagens e tema provoca in- perior no teatro brasileiro, oferecendo-nos algo descritível impacto mesmo no espectador prenhe de perspectivas na sua dramaticidade, e na consciência que revela a realidade brasileira. desavisado e alheio a teatro”. 174

Marco Antônio também deixa claro onde prosseguir na sua pregação redentora, ele seu caráter como enunciador. O ethos in- vai procurar no submundo, entre mendigos, de- mentes e criaturas mutiladas, novos adeptos do dica alguém engajado com o movimento seu credo. É o martírio, o fim dele mesmo. Mas comunista. Agileu acredita que “A Semente” ficou. Dia 5 de maio, Gastão Barroso assina Gianfrancesco Guarnieri pretende, com sua peça, investigar as causas da difícil convivência o artigo “A Semente”, na coluna “UH no entre operários e patrões. Os erros que ocorrem Teatro”, do Última Hora: tanto de um lado como do outro são apontados, sem prejuízo da tese que é pela defesa do traba- O diretor Flávio Rangel participa bastante do su- lho espoliado em muitos dos seus direitos. cesso que “A Semente”, de Guarnieri, vem ob- Censurada como obra subversiva, proibida pela tendo no palco do TBC. A técnica pela qual se nossa moral ainda provinciana, posteriormente desenvolve espetáculo deve ter exigido trabalho logrou “A Semente” que lhe fosse aberto sinal intenso, dentro e fora do texto, a quem o dirigiu. verde para sua caminhada em demanda do Pode-se mesmo dizer que há em “A Semente” grande público. Esperamos estar equivocados, dois espetáculos: o drama e a sua moldura, am- mas para nós a Semente foi plantada em palco bos com donos distintos. Intelectualmente iden- errado. (Última Hora, 5 de maio, Segundo tificados, autor e diretor ganharam com “A Se- Caderno, “UH no Teatro”, p. 12). mente” uma batalha de duradoura significação para o teatro de arte no Brasil. Gastão Barroso aqui faz crítica direta à Não cabe nesta coluna a análise devida à obra encenação de A Semente no TBC. A peça de Guarnieri. “A Semente”, no caso, é o líder teve encenação liberada apenas para o que operário Agileu Carraro. Em sua dedicação à Barroso chamou de “palco errado”, sendo causa da classe a que pertence, Agileu quer vi- tória em curto prazo: levando os operários às proibida para o restante dos palcos do Es- ruas (“queremos pão, arroz e feijão”) e depois tado de São Paulo. Na verdade, a decisão à greve. Ele insiste em que se dê à luta método do Secretário de Segurança foi muito hábil: correspondente à violência com que se pretende sufocar os direitos do homem-mão-de-obra. Ha- encenada apenas no chamado “templo bur- verá quem discorde desse método – e muitos de guês”, A Semente não encontraria solo fértil seus próprios comandados discordaram – mas para germinar. E não germinou. A peça não não há que duvidar da patética sinceridade com fez sucesso junto ao público e ficou pouco que Agileu se entrega de alma e corpo ao ideal da sua luta. Ele renuncia a tudo, até mesmo ao tempo em cartaz. amor da esposa. Os ardis da força oposta a Agi- No dia 13 de maio, Gastão Barroso es- leu conseguem apresentá-lo como líder traidor. creve pela última vez no Última Hora sobre Muitas prisões de operários são apontadas o caso de A Semente, no artigo “Censura como consequência de denúncias de Agileu. Companheiros de véspera espancam-no e o en- Censurada”. xotam. Mas Agileu não desiste. Sua fé torna-se O Sr. Virgílio Lopes da Silva, Secretário da Se- fanatismo. Sem lar, sem amigos e sem oficinas gurança do Estado, recebeu do Sindicato dos 175

O curioso é notar que este texto não pos- tula a extinção do exa- me prévio das obras te- atrais, mas sim propõe Última Hora, Segundo Caderno, “UH no uma alçada fora da polícia para fazê-lo. É Teatro”, 13 de maio de 1961 intrigante perceber que, até aqueles que aparentam ser mais liberais, não ousam re- Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo futar o ato censório plenamente – apenas telegrama felicitando-o pela sua esclarecida ati- solicitam a existência de outra instância tude, tomada no caso da peça “A Semente”. Não há negar que a referida autoridade agiu serena- mais qualificada. Isso num período de go- mente, buscando encontrar, como encontrou, a verno democrático, na presidência de Jânio melhor solução entre partes discordantes. Mas Quadros. uma dessas partes era precisamente o departa- A presença desse pensamento cristali- mento de censura às diversões públicas, que está sob a autoridade do titular da Secretaria da zado em torno das práticas censórias pode Segurança. A Censura proibiu a apresentação ser explicada pelo conceito de habitus de de “A Semente” por julgá-la fora das regras que Bourdieu. Afinal, segundo este autor, cada o critério policial dá aos espetáculos. A parte prejudicada reagiu apelando para a grupo social estrutura seu próprio sistema autoridade superior, que, no caso, era o Secre- de disposições para a ação baseando-se no tário da Segurança. Este, que é mais diplomata acúmulo histórico de experiências de êxito do que policial, sugeriu a nomeação de uma comissão de intelectuais para, em definitivo, e de fracasso. Os habitus são configurações solucionar a prebenda. E a comissão, como se sistemáticas criadas para organizar as prá- sabe, deu o parecer que liberou “A Semente”. ticas e a percepção do mundo social. Fun- A nosso ver, alguma coisa ficou sobrando e faltando nessa história. Sem dúvida, mais uma cionam como estilos de vida, como uma vez, sobrou a Censura e mais uma vez ficou força conservadora que mantém a divisão evidente a falta de um lugar certo – fora da em classes sociais. E essas configurações polícia – para o exame elevado dos espetácu- los que trazem arte. (Última Hora, 13 de maio, sistemáticas do pensamento não são fáceis Segundo Caderno, “UH no Teatro”, p. 12) de mudar. 176

4.3 Terceiro Ato 4.3.1 A Obra de Chico Buarque

Francisco Buarque de Hollanda, nasci- colega me disse que eu não tinha um mínimo do no Rio de Janeiro, em 19 de junho de de formação brasileira. Mergulhei em Macuna- íma, Graciliano, Guimarães Rosa, Drummond, 1944, é o quarto dos sete filhos do historia- Bandeira. (BUARQUE DE HOLLANDA apud RI- dor e sociólogo Sérgio Buarque de Hollan- BEIRO, 1972) da e da pianista amadora Maria Amélia Ce- sário Alvim. Por influência de um professor do colé- Em 1946, quando o pai foi nomea- gio, em 1958 ingressou em um movimento do diretor do Museu do Ipiranga, a família religioso chamado “Ultramontanos”, pre- mudou-se para São Paulo, onde permane- cursor da organização ultraconservadora ceu por cinco anos. Em fevereiro de 1953, TFP – Tradição, Família e Propriedade. O Chico, sua mãe e vários irmãos foram en- próprio Chico fala sobre esse período: contrar-se com Sérgio, que trabalhava já há O garoto para de jogar futebol, começa a ficar alguns meses como professor visitante de Es- lendo uma porção de coisa e comungando to- tudos Brasileiros na Universidade de Roma. dos os dias e tal. Isso aconteceu até que os pais Na Itália, a casa dos Buarque de Hollanda foram achando estranho, porque gostam que o filho seja bom aluno, seja comportado, mas não era frequentada por personalidades da cul- tanto, não é? Aí desconfiam e tal. Isso durou al- tura brasileira, dentre eles Vinicius de Mora- guns meses, até fui mandado pra Cataguases, em es – que ocupava o cargo de diplomata na Minas, de castigo. cidade. […] Aí, foi isso. Fui pro colégio interno e tal e Por volta de 1956, já em São Paulo, passou. Agora, isso de dizer que foi TFP é um Chico começou a compor algumas opere- pouquinho puxado. E se tivesse sido, também, não teria me preocupado em negar, entende? tas e iniciou sua paixão pela literatura – no (BUARQUE DE HOLLANDA apud CASTRO, Colégio Santa Cruz, sempre era visto com 1977) um livro na mão. Depois de passar um semestre no in- E eu achava genial ler em francês. Li quase todos os clássicos franceses e a tradução francesa dos ternato, de volta a São Paulo, o rapaz in- russos. Cheguei até Céline, achando-me o des- gressou novamente em outro movimento cobridor de Voyage au Bout de la Nuit. Aí um religioso: 177

Participei de uma coisa chamada Organização rou ao lado: “Flagrante, não sei o quê”! Toma- de Auxílio Fraterno. Há algum tempo contei mos porrada pra burro. Mas porrada pra valer. isso numa entrevista, e recebi uma carta dizen- Não tinha documento nem nada. “Menor de do que a organização ainda existe e que eu não idade que nada! Quê isso! Vamos levar pro DI”. devia ter falado nela, porque é secreta... Bom, Veio a gente no banco de trás, algemado, eu e fui umas quatro ou cinco vezes levar cobertor ele. (BUARQUE DE HOLLANDA apud LESSA para os mendigos na Estação da Luz, visitava et al., in Pasquim, 1975). presídios etc. Quem orientava era um padre do Colégio Santa Cruz. A experiência somou mui- A aventura acabou com uma noite na to na minha vida. cadeia e com a proibição de sair sozinho […] Acho que se eu não tivesse tido esse conta- à noite até completar 18 anos, deliberada to com a miséria eu seria um alienado, tudo me empurrava pra isso. (BUARQUE DE HOLLAN- pelo Juiz da Vara de Menores. DA in Playboy, fev. 1979) Dois anos depois, Chico ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Enquanto isso, João Gilberto gravava seu da Universidade de São Paulo. Sobre seu primeiro disco, Chega de Saudade – faixa- interesse por Arquitetura, o compositor título, composta por Tom e Vinicius – que declarou: fez enorme sucesso no Brasil e na vitrola de […] internaram-me num ginásio em Catagua- Chico. O menino ouviu tantas vezes o dis- ses, projeto do Oscar [Niemeyer]. Vivi seis me- co que, nem mesmo sua irmã Miúcha – que ses naquele casarão do Oscar, achei pouco, decidi-me a ser Oscar eu mesmo. Regressei a mais tarde se casou com João Gilberto –, São Paulo, estudei geometria descritiva, passei aguentava ouvir repetidamente o mesmo no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas som. Seu sonho, na época, “era cantar como ao professor de topografia, que me reprovou no exame oral, respondi calado: lá em casa tenho João Gilberto, fazer música como Tom Jo- um canudo com a casa do Oscar. bim e letra como Vinicius de Moraes”. Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Em 1961, aos 17 anos, Chico fez sua Tom Jobim. Quando a minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Músi- primeira aparição na grande imprensa – a ca do Tom, na minha cabeça, é a casa do Os- manchete pouco lisonjeira destacava: “Pi- car. (BUARQUE DE HOLLANDA, 2000) vetes furtaram um carro: presos”. Abaixo E foi como aprendiz de Tom Jobim que, desse título, a foto de dois rapazes com os em 1965 , Chico inscreveu-se no I Festival olhos cobertos por tarjas pretas. Chico e seu de Música Popular Brasileira, da TV Excel- amigo tinham “puxado” um carro para dar sior, com Sonho de Carnaval. Zuza Homem umas voltas pela madrugada paulista. de Mello conta: Tinha roubado carro. Chegou aquele carro da Chico ainda era estudante de Arquitetura, mas radiopatrulha, parou a gente no Pacaembu. Pa- já circulava no meio musical universitário, par- 178

ticipando dos primeiros shows musicais produ- mais de cem mil cópias vendidas em uma zidos pelo radialista Walter Silva, que se tor- semana. A banda foi traduzida para vários naram muito populares na época. Quando sua música foi selecionada para a primeira elimi- idiomas e, desde 1978, integra o repertório natória, soube que seria defendida por Geraldo da Band of Irish Guards, uma das corpora- Vandré, que já era um cantor profissional nos ções musicais que se apresentam durante a shows universitários e no Juão Sebastião Bar, e que ele conhecia vagamente através de sua irmã troca de guarda do Palácio de Buckingham, Miúcha. O arranjo seria do Erlon Chaves. Chi- na Inglaterra. co combinou assistir à eliminatória com alguns Famoso, lançou seu primeiro LP, Chico amigos de Arquitetura, indo para o Guarujá no Fusca de sua irmã. Antes da apresentação, Van- Buarque de Hollanda, e produziu o show dré havia se queixado de que o tom era muito Meu refrão. Seu primeiro caso com a Censu- baixo, mas mesmo assim classificou a música ra deu-se com a música Tamandaré, inclu- para a final. O acontecimento foi comemorado com um grande porre de Chico e sua patota. ída no repertório do show, que foi proibida (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 63-64). por conter frases consideradas ofensivas ao patrono da Marinha. Nesse período, Chico Na grande final do festival, contudo, o mudou-se para o Rio de Janeiro, onde co- primeiro lugar foi para Arrastão, de Edu Lobo nheceu a atriz Lins, apre- e Vinicius de Moraes, interpretada por Elis sentada por Hugo Carvana. Regina. Porém, com a projeção do evento, O ano de 1967 foi muito produtivo Chico pôde gravar seu primeiro compacto. para Chico Buarque. Mesmo morando em Ainda em 1965, a pedido do escritor paragens cariocas, manteve vínculos em Roberto Freire – diretor do Teatro da Pon- São Paulo e colaborava com um programa tifícia Universidade Católica de São Paulo diário na Rádio Jovem Pan. Na capital pau- (TUCA) –, Chico Buarque musicou o poe- lista, também gravou dois programas: Pra ma Morte e Vida Severina, de João Cabral ver a banda passar, com Nara Leão, e Esta de Melo Neto. A montagem ganhou os prê- noite se improvisa, ambos da TV Record. mios de Crítica e Público no IV Festival de Em 1967, também participou de dois Teatro Universitário de Nancy, na França. festivais com músicas distintas: Carolina, No ano seguinte, Chico participou do II terceiro lugar no II Festival Internacional da Festival de Música Popular Brasileira da TV Canção (FIC), da Rede Globo, e Roda Viva, Record e sua canção – A banda – dividiu o terceiro lugar no III Festival da MPB, da TV primeiro lugar com Disparada, de Théo de Record. Barros e Geraldo Vandré. A composição Interpretando a si mesmo, estreou como foi sucesso imediato, atingindo a marca de ator no filme Garota de Ipanema, de Leon 179

Hirszman, ao lado de Tom Jobim, Vinicius […] chegou a vez de Chico falar: sério, com de Moraes, Nara Leão e Ronnie Von. Nes- aquele seu jeito tímido, gaguejando um pouco, o papel tremendo nas mãos, ele olhou para o se ano, Chico também fez inúmeros shows pai, sentado logo na primeira fila, e falou. pelo Brasil e gravou seu segundo LP, Chico […] contou que esse amor por São Paulo lhe foi Buarque de Hollanda, volume 2. Em meio ensinado pelo pai, “um paulista convicto”, que a tantas atividades, ainda encontrou tempo lhe mostrou as histórias de Antônio de Alcânta- ra Machado, que lhe apresentou o índio Macu- para escrever a peça Roda Viva – cuja mon- naíma, de Mário de Andrade, e o Gaetaninho tagem foi levada aos palcos em 1968. “que amazzou o bonde”. Nas palavras de Millôr Fernandes, Chi- […] “Quando entrei na faculdade de arquite- tura, São Paulo novamente se transfigurou aos co era, na ocasião, “a única unanimidade meus olhos. As Universidades, a Rua Maria An- nacional” – o tímido rapaz de olhos azuis tônia, os sonhos políticos, as frustrações, a pro- (apesar de muitos acreditarem que são fissão. O tijolo, o pedreiro, o engenheiro, São verdes) transformou-se no queridinho do Paulo vista de dentro. As longas noites paulistas e o violão entrando em cena. E foi que encon- Brasil. trei a fonte do meu samba urbano, cheirando a chaminé e a asfalto. É, portanto, sem receio Inteligente, agrada aos intelectuais e aos uni- que confesso que Pedro pedreiro espera o trem versitários; bonito, sem ser bonitinho, excita as num subúrbio paulista, Juca é cidadão relapso mulheres e a meninada; brioso e atuante, sen- do Brás, Carolina é senhorita de janela para a sibiliza a juventude; cantor de voz agradável Bela Vista e a Banda passou, por incrível que e ajustada às músicas, compõe um espetáculo pareça, no viaduto do Chá, em clara direção ao bom de ver e de ouvir, e com uma vantagem coração de São Paulo.” (Jornal da Tarde - adicional: seu público não é específico; gente 29 dez. 1967) de todas as idades e condições gosta dele. (RI- BEIRO, 1972) Para a história, 1968, o ano que esta- va prestes a começar, seria extremamente A popularidade era tanta que, em de- movimentado e cheio de acontecimentos zembro, Chico foi agraciado pela Câmara importantes. Martin Luther King e Robert de Vereadores de São Paulo com o título de Kennedy foram assassinados e inúmeras Cidadão Paulistano, como relata o Jornal manifestações populares se alastraram por da Tarde: todo o mundo. Gente para ouvir é que não faltava: em todo o plenário, na sacada de fora, no salão de entra- Foi também o ano da “Primavera de da, nas escadas, nos corredores, nas calçadas Praga” – uma tentativa de liberalização po- e no meio da rua Líbero Badaró, em toda parte lítica na Checoslováquia durante sua domi- havia gente – mocinhas, meninas, senhoras jo- vens e não muito jovens; rapazes cabeludos e nação pela União Soviética, após a Segun- senhores de capa e guarda-chuva. da Guerra Mundial –, e o ano das grandes 180

manifestações estudantis – só no primeiro se teatral deflagrou uma greve da “Cultura trimestre, estudantes ocuparam o Consula- contra a Censura”. A revista Cruzeiro, de do Americano na Alemanha, a Embaixada 2 de março, publicou seis páginas sobre o Americana em Londres e invadiram univer- assunto: sidades na Espanha e na Itália. Em abril, na […] atores e atrizes, grandes ídolos da massa ma- Universidade de Columbia, em Nova York, nifestaram, em praça pública, seu repúdio contra jovens americanos promoveram protestos as arbitrariedades da Censura Federal, que visa, segundo opinião da unanimidade, amordaçar o contra a Guerra do Vietnã. teatro. O movimento foi marcado por frases de Em maio, eclodiu uma greve geral na espírito proferidas por grandes nomes da nossa França que, rapidamente, adquiriu propor- cultura. Sem dúvida, a que mais agradou foi a do próprio ministro da Justiça, que proclamou: ções revolucionárias. No dia 2, iniciou-se o “O teatro é livre!”. Sob os aplausos dos repre- chamado “Maio de 1968”. Estudantes, bus- sentantes, em seu gabinete, o ministro Gama e cando mudar o status quo, ergueram barri- Silva acrescentou: “A Censura não os molestará mais!”. Ao que o teatrólogo Nelson Rodrigues cadas nas ruas e travaram confrontos com pontificou: “Ministro, este é um momento histó- a polícia; no dia seguinte, a Universidade rico”. (SOARES, O Cruzeiro, 1968, p. 33) de Paris (Sorbonne) foi fechada pelas auto- ridades. Dia 5, na tentativa de ocupar a Sor- O repórter Afrânio Brasil Soares, que bonne, estudantes enfrentaram novamente colheu mais de 200 depoimentos entre os a polícia num conflito que deixou 487 fe- participantes da greve reunidos na Cande- ridos. Cinco dias depois, bancários, comer- lária, assinou a matéria “O que eles pensam ciantes, funcionários públicos, jornaleiros, sobre a censura”. Para Fernanda Montene- professores e sindicalistas aderiram à causa gro, era necessário dizer um basta. estudantil que contestava o regime de Char- Precisamos lutar contra esse estado de coisas, les de Gaulle, então presidente francês. No pois são várias gerações de brasileiros que têm dado tudo a este País sem receber nada em tro- dia 30, De Gaulle lançou sua contraofensi- ca. Fui a primeira a retirar minha peça de cartaz va, dissolveu a Assembleia Nacional e con- em sinal de protesto contra a censura e o farei vocou eleições para o mês de junho. Diante sempre que ela voltar a atentar contra a liber- dessas medidas, o Partido Comunista retirou dade no teatro em nosso País. (MONTENEGRO apud SOARES, O Cruzeiro, 1968, p. 34) o apoio às manifestações e os sindicatos ne- gociaram o fim de suas greves. Tônia Carrero lembrou que os brasilei- O Brasil não ficou de fora desse pano- ros estavam ameaçados de ficar mais amor- rama conturbado. Em fevereiro de 1968, daçados que os portugueses, numa referên- no Rio de Janeiro e em São Paulo, a clas- cia à ditadura salazarista. Para Mário Lago, 181

O Cruzeiro, 2 de março de 1968, pp. 32-38

cil”. Outros também se mani- festaram sobre o baixo nível intelectual das avaliações dos censores: Walmor Chagas afir- a Censura representava “uma peça da má- mou que o pior da Censura é quina de repressão à liberdade, instalada “que ela é burra” e Nelson Rodrigues soli- contra o povo brasileiro desde abril de 64”. citou a extinção sumária da Censura por se Já Procópio Ferreira expôs que a Censura, tratar da pior forma de loucura – “a loucura “geralmente, quando não é injusta, é imbe- analfabeta”. 182

O depoimento de Norma Benguell de- manter a censura, que, pelo menos, a en- monstrava que a imprensa no início de 68 tregue a pessoas capazes e decentes”. Esse ainda tinha liberdade para publicar todo também foi o argumento de Cacá Diegues: tipo de opinião: “Espero que este movimen- “A censura é um absurdo em qualquer de to a favor da cultura e contra a censura dê suas formas. Mas se ela tem que existir, que certo. E vai, porque nós faremos tudo con- ao menos seja inteligente… Não é o caso tra esses imbecis que querem proibir peças da nossa!”. para diminuir a cultura do povo. Abaixo a Dias Gomes se posicionou contra toda censura medíocre!”. Outro exemplo da to- e qualquer censura. Policial ou não, pois lerância do regime com a imprensa foi a a obra de arte é incensurável e “os crité- fala de Glauber Rocha, tripudiando o golpe rios de julgamento a que está sujeita são de 64: “Onde está a democracia, em nome transcendentais, escapam de muito às pos- da qual o Brasil caiu num 1º. de abril? Do sibilidades intelectuais de um funcionário jeito que a censura vai, a única solução é do Ministério da Justiça”. O dramaturgo só uma revolução para estabelecer a verdadei- admitia a aplicação do critério de impro- ra democracia”. priedade para determinadas faixas etárias Maria Della Costa declarou que “como – exceção também aceita por Tereza Ra- boa democrata”, não podia deixar de ser con- chel e Betty Faria. tra a Censura. “Acho que o povo brasileiro Chico Buarque de Hollanda, que tam- é suficientemente culto e responsável para bém participou da manifestação na Cande- escolher o que pode ver” – essa posição tam- lária, disse na ocasião: “Espero apenas que bém foi defendida por Carlos Eduardo Dola- se cumpram as palavras do Ministro Gama bella e Eva Tudor. e Silva, ou seja, que a censura não nos in- Outros manifestantes protestavam ape- comode mais”. nas contra o fato de a Censura ser exerci- Vale ressaltar também o profético depoi- da por pessoas não qualificadas. Essa era a mento da atriz Helena Ignez: “As coisas es- opinião de Cacilda Becker – “Que a cen- tão cada vez piores. E não é para desanimar. sura seja inteligente, é isso que reivindica- Tendem ainda a piorar. Em nome da família, mos” – e de Dulcina de Moraes – “A censu- honra, pátria etc, teremos alguma coisa ain- ra deve ser de um órgão cultural. No caso, da não censurável para montarmos, firmar- o Ministério da Educação. Só se julga cultu- mos, representarmos?”. (SOARES, O Cruzei- ra com cultura”. Para Paulo Autran, “se, in- ro, 1968, p. 34). Ela estava certa. As coisas felizmente, o governo julgar indispensável realmente vieram a piorar. 183

No dia 28 de março, no centro do Rio geral do Rio de Janeiro, dom Castro Pinto, de Janeiro, estudantes reclamavam no res- celebrou a missa para 600 pessoas. A igreja taurante Calabouço contra a péssima co- foi cercada por dois mil soldados e, na sa- mida servida e contra o aumento do preço ída, a cavalaria repressiva sitiou as pessoas do bandejão, inserindo nos protestos as tra- pelas ruas da Candelária, deixando vários dicionais palavras de ordem contra a dita- feridos. dura. A manifestação foi interrompida pela No dia 5 de abril, o Presidente Costa e chegada da Polícia Militar com cassetetes Silva mandou apreender vários livros e jor- nas mãos. Os estudantes arremessaram pe- nais tidos como subversivos pelo regime. dras e paus sobre os policiais, que revida- Duas semanas depois, um decreto do go- ram com balas. O aspirante da PM Aloísio verno declarou como zonas de segurança Raposo atingiu com um tiro no peito o se- nacional todas as capitais de Estados brasi- cundarista Edson Luís de Lima Souto, de 17 leiros e alguns municípios. Com a perda da anos, que morreu antes de chegar ao hospi- autonomia política, 68 cidades não pode- tal. Essa morte comoveu todo o Brasil e no riam mais eleger seus prefeitos, que, a partir velório de Edson Luís, na Assembleia Legis- daquele momento, seriam nomeados pelo lativa, puderam ser ouvidos vários discursos governo central. Ainda nesse tumultuado de estudantes, políticos e intelectuais. No mês de abril, um atentado a bomba destruiu dia 29, o cortejo até o Cemitério São João a entrada do jornal O Estado de S. Paulo. Batista contava com mais de 50 mil pesso- No início de junho de 1968, o movi- as. Em meio à multidão que acompanhava mento estudantil passou a organizar um o caixão, liam-se faixas de protesto – uma número cada vez maior de manifestações delas dizia: “Os velhos no poder, os novos públicas. no caixão”. Já caía a noite e, por ordem das Muitos consideraram a música Bom autoridades, não foram acesas as luzes das tempo, de Chico Buarque – que ficou em ruas. O rapaz foi enterrado à luz de velas e segundo lugar na I Bienal do Samba, da TV ao som do Hino Nacional. No dia seguinte, Record – um descompasso com o clima po- o ministro da Justiça determinou que as pas- lítico da época. Logo, o próprio Chico veio seatas estudantis deveriam ser reprimidas. a sentir os efeitos da atmosfera adversa: no Uma missa em homenagem a Edson dia 17 de junho de 1968, jovens ligados ao Luís, a realizar-se em 2 de abril, na Igreja Comando de Caça aos Comunistas (CCC) da Candelária, foi proibida pelo governo invadiram o Teatro Galpão (Teatro Ruth militar. Desacatando a proibição, o vigário- Escobar), em São Paulo, para destruir os 184

cenários e espancar os atores de sua peça ficaram feridas e quatro morreram – dentre Roda Viva. elas, um policial atingido por um tijolo. Mais Enquanto isso, no Rio de Janeiro, no de mil pessoas foram presas. dia 19 de junho, uma assembleia estudantil Na manhã seguinte, no Salão Nobre do na Faculdade de Economia da Universida- Palácio Guanabara, o psicanalista e escri- de Federal do Rio de Janeiro foi encerrada tor Hélio Pellegrino, à frente de 300 inte- pela polícia e os 400 participantes ali pre- lectuais, solicitou ao Governador Negrão sentes foram levados ao campo do Botafo- de Lima a autorização oficial para realizar go, onde receberam tratamento aviltante. uma passeata pacífica, no centro do Rio, No dia seguinte, a polícia invadiu a UFRJ e, sem a presença dos policiais na rua. De- usando da truculência habitual, humilhou pois de três dias de tensas negociações com os estudantes. autoridades municipais e federais, o Gover- Indignados, no dia 21, sexta-feira, es- nador concordou em liberar a passeata. tudantes marcharam para o Ministério da Na quarta-feira, 26 de junho de 1968, Educação para serem recebidos pelo então o Rio de Janeiro assistiu a uma das maiores ministro, Tarso Dutra. Lá encontraram o edi- manifestações populares de sua história: a fício cercado pela polícia. Por volta das 13 “Passeata dos Cem Mil” – que saiu às ruas horas, no centro do Rio de Janeiro, começou para protestar contra a ditadura militar. A uma verdadeira batalha campal que entrou manifestação começou às 10 horas e esten- para a história como a “Sexta-Feira Sangren- deu-se até as 17h45. Dentre os artistas pre- ta”. Pouco a pouco, a cavalaria e o batalhão sentes, estavam Paulo Autran, Tônia Carre- de choque ocuparam a Avenida Rio Branco. ro, Marília Pera, Caetano Veloso, Gilberto Bancários, funcionários públicos e comerci- Gil, Nara Leão, Milton Nascimento e Chico ários aderiram ao protesto dos estudantes e, Buarque. À noite, foi criada uma comissão do alto dos edifícios, atiravam garrafas, cin- que levaria reivindicações ao governo – ne- zeiros, cubos de gelo, cadeiras, máquinas de nhuma delas foi aceita e todas as manifes- escrever, vasos contra o batalhão de choque. tações públicas foram proibidas a partir de No confronto corpo a corpo nas ruas, para se 17 de julho. protegerem de tiros, cassetetes e chutes, os O povo não podia mais se reunir. En- manifestantes ergueram barricadas com ma- tretanto, em 3 de setembro, representando terial de construção e, munidos de pedras e seus eleitores, Márcio Moreira Alves – jor- paus, travaram uma luta com a polícia que nalista e deputado do MDB carioca – fez um durou quase dez horas. Centenas de pessoas discurso no Congresso para protestar contra 185

a invasão da Universidade de Brasília, no / Que há lugar na minha dança / Pode ser que qual chamou os quartéis de “covis de tor- você venha morar por aqui, ou venha pra se despedir / Não faz mal, pode vir até mentindo / tura”. Essa preleção marcou o princípio de Ah, benvinda, benvinda, benvinda. uma crise que terminaria meses depois com a promulgação do AI-5 e o fechamento do Parte do público vaiou a premiação por Congresso. não aceitar a vitória de um samba tão oti- Com o passar dos meses, gradualmente, mista naqueles tempos difíceis. E foi tam- a repressão foi aumentando e, no dia 12 de bém sob as vaias do Maracanãzinho que outubro, em Ibiúna, São Paulo, o sítio onde Chico Buarque venceu o Festival Inter- seria realizado o 30º Congresso da UNE foi nacional da Canção, com Sabiá – música invadido por três destacamentos da Força composta em parceria com Tom Jobim. A Pública – dois dirigidos pelo DOPS e outro plateia achou que havia sido injustiçada a pelo comandante do 7º Batalhão da Força, canção defendida por Geraldo Vandré, Pra de Sorocaba. Em minutos, 920 estudantes, Não Dizer Que Não Falei das Fores – que sem oferecer resistência alguma, entrega- se tornou o hino contra a ditadura militar. ram-se aos soldados. Coincidentemente, Em dezembro, o Última Hora de São no momento em que era preso o pessoal da Paulo publicou o artigo intitulado “Nem UNE, o capitão americano Charles Rodney toda loucura é genial, nem toda lucidez é Chandler – um ex-combatente do Vietnã – velha”, no qual Chico respondia às críticas era metralhado à porta da sua casa, no bair- que lhe eram feitas por seu apego ao samba ro do Sumaré, na capital paulista. A morte de tradicional. Chandler, o marco do início da luta armada […] É certo que se deve romper com as estru- no Brasil, foi promovida por uma ação con- turas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos junta do então “Grupo Marighela” – futura de renovação. Não se trata de defender a tradi- Aliança Libertadora Nacional (ALN) – e da ção, família ou propriedade de ninguém. Mas Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). foi com o samba que João Gilberto rompeu as Nesse panorama político conturbado, estruturas da nossa canção. E se o rompimento não foi universal, a culpa é do brasileiro, que Chico Buarque venceu o IV Festival da MPB não tem vocação pra exportar coisa alguma. da TV Record com a canção Benvinda, cuja (BUARQUE DE HOLLANDA, in Última Hora, letra dizia 9 de dezembro de 1968). Poucos dias depois, em 13 de dezem- Que o luar está chamando, que os jardins es- tão florindo / Que eu estou sozinho / Cheio de bro, o Presidente Costa e Silva decretou o anseio e de esperança, comunico a toda gente Ato Institucional número 5, dando início ao 186

período mais fechado e violento da ditadu- Dezembro de 68 foi um marco, não é? Um ra militar. marco muito claro para mim, porque eu estava posto em sossego e um dia me tiraram da cama Durante dez anos, o AI-5 deu plenos po- para ir ao Exército. Não estava envolvido em deres ao Presidente da República. O chefe nada, estava um pouco descrente daquela coi- do governo federal, legalmente, tinha a fa- sa pré-Ato 5, e naquela jogada pente fino me pegaram. Me pegaram e me marcaram muito. culdade de decretar o recesso do Congres- (BUARQUE DE HOLLANDA, in Playboy, fev. so Nacional e a intervenção nos Estados e 1979). municípios. “Sem as limitações previstas na Quando fui lá, fiquei com aquele negócio de Constituição” e isento de qualquer aprecia- prisão domiciliar. Mas afinal, tudo bem, “você é um bom rapaz”. Eu tinha simplesmente que ção judicial, o Presidente da República po- avisar toda vez que saísse do Rio. Nessa hora dia também suspender os direitos políticos mesmo coloquei que estava com a passagem de quaisquer cidadãos e cassar mandatos comprada, pra daí a 10 ou 15 dias. Tudo bem. (BUARQUE DE HOLLANDA apud LESSA et al., eletivos federais, estaduais e municipais. in Pasquim, 1975). Os cidadãos cassados passariam a viver em liberdade vigiada, proibidos de frequentar Em janeiro de 1969, Chico deixou o determinados lugares e obrigados a ter do- Brasil para se apresentar na grande Feira da micílio determinado. Indústria Fonográfica, em Cannes, França. O AI-5 também suspendeu a garantia de Aproveitou a ocasião para se autoexilar na habeas corpus nos casos de crimes contra a Itália e só retornou no ano seguinte. Por segurança nacional, a ordem econômica e recomendação de Vinicius de Moraes, foi social e a economia popular. O Executivo organizado um grande “barulho” para a sua também tinha o poder de estabelecer “ou- volta, com muita gente à sua espera no ae- tras restrições ou proibições ao exercício de roporto. À sua chegada, seguiram-se mani- quaisquer outros direitos públicos ou priva- festações de amigos, entrevistas à impren- dos”, determinação que possibilitou o recru- sa e um show para lançar seu quarto LP. descimento da censura prévia estendida à É desse ano o samba Apesar de você, uma imprensa, à música, ao teatro e ao cinema. resposta crítica ao regime ditatorial no qual Dias depois do decreto do AI-5, Chico o país estava imerso. Surpreendentemen- Buarque foi detido em sua própria casa e te, a música passou incólume pela censura levado ao Ministério do Exército para pres- prévia. Só depois de vender cerca de 100 tar depoimento sobre a sua participação na mil cópias, a canção foi censurada, o disco “Passeata dos Cem Mil” e sobre cenas de sua retirado das lojas e a fábrica da gravadora peça Roda Viva, considerada subversiva. fechada. O público percebeu que o “você” 187

da música era uma referência ao General haver uma festa bacana e tal... mas que o resto Emílio Garrastazu Médici, Presidente da do ano inteiro tínhamos sofrido uma porção de cortes. República. A partir deste episódio, iniciou- […] Eu tinha várias [músicas censuradas]. A se uma marcação cerrada às composições proporção estava realmente de duas censura- de Chico Buarque, que, com dificuldades das em três. Cada três músicas, duas censu- radas. Tava assim, nessa base. (Bondinho, em mostrar seu trabalho nos meios de co- dez. 1971) municação, voltou a participar do Circuito Universitário, em shows promovidos por No ano seguinte, Chico traduziu, com centros acadêmicos. Ruy Guerra, o musical O homem de la Ao lado de intelectuais publicamente mancha, e compôs quase todas as músi- comprometidos com a luta contra a dita- cas do filme do filme Quando o carnaval dura – dentre eles, o arquiteto Oscar Nie- chegar, de Cacá Diegues, no qual viveu o meyer e seu pai, Sérgio Buarque de Hollan- protagonista. Em novembro, fez o histórico da –, Chico integrou o Conselho do Centro show com Caetano Veloso no Teatro Castro Brasil Democrático (Cebrade). Essa aproxi- Alves, em Salvador. mação com o Cebrade lhe valeu, durante Em 1973, Chico voltou a se aventurar bom tempo, o rótulo de membro da “linha pelo teatro e, em nova parceria com Ruy auxiliar” do PCB, pró-Moscou. Guerra, escreveu a peça Calabar, ou O elo- Em 1971, Chico e outros participantes gio da traição. Depois da primeira libera- cancelaram suas inscrições no VI Festival ção do texto e de toda a montagem pronta, Internacional da Canção como sinal de pro- às vésperas da estreia, deu-se o ensaio geral testo contra a Censura e contra a tentativa para a censura. O general Antônio Bandei- de colocar o festival a serviço da propagan- da da ditadura. Em entrevista a Hamilton 2 A primeira edição de Bondinho foi publicada em Almeida e Milton Severiano, publicada na outubro de 1970, e inicialmente era um guia de in- formações sobre a cidade de São Paulo, distribuído 2 revista Bondinho , em dezembro de 1971, pela rede de supermercados Pão de Açúcar. Após Chico Buarque falou sobre esse episódio: um ano circulando nessas condições, a revista se tornou independente e passou a circular em ban- […] a gente saiu, se recusou a participar de- cas de jornal, com distribuição em outras cidades pois de ter aceitado o convite da imprensa, em e mudanças em sua linha editorial. Não era fácil protesto. O documento é muito claro. Protesto manter uma publicação cultural naquele início dos contra as atitudes da censura esse ano todo; a anos 70. Mesmo assim, a Bondinho, como outros gente viu que ia se realizar um festival e talvez veículos da chamada “imprensa nanica”, conseguiu até nesse festival, durante o festival, as músicas sobreviver, chegando a publicar 13 números como não fossem tão severamente censuradas, face aí publicação independente. 188

ra, da Polícia Federal, sem motivo aparente, (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. Com proibiu a peça, proibiu o nome “Calabar” e o fim do AI-5, em 1978, Calabar foi final- proibiu que a proibição fosse divulgada. O mente liberada pela Censura e pôde ser en- prejuízo foi enorme: cerca de 30 mil dóla- cenada em São Paulo, em 1980. res, uma das mais caras produções da épo- No âmbito teatral, em 1983, em par- ca. E essa não foi a única proibição do ano ceria com Edu Lobo, compôs as canções de 1973: a música Cálice, feita em parceria para o balé O Grande Circo Místico, inspi- com Gilberto Gil, foi impedida de ser toca- rado no poema homônimo do modernista da pela própria gravadora. Jorge de Lima. O espetáculo foi um gran- Para driblar a Censura, em 1974, Chico de sucesso de público e, durante os dois criou o personagem Julinho da Adelaide, anos seguintes, passou viajando o país. É que assinava a autoria das canções Acorda, também de 1983 a composição da música amor, Jorge maravilha e Milagre brasileiro. Mil perdões, criada para ser tema do filme A estratégia deu certo e as músicas foram li- Perdoa-me por me traíres, de Braz Chediak beradas sem grandes problemas. O público – película baseada na obra teatral de Nel- só veio a tomar conhecimento do heterôni- son Rodrigues. mo por meio de uma reportagem publicada Em 45 anos de carreira, Chico Buarque no ano seguinte, pelo Jornal do Brasil. tem mais de 40 discos, distribuídos em dis- Em parceria com Paulo Pontes, Chi- cos solo, gravações ao vivo e coletâneas. co escreveu em 1975 a tragédia “greco- Seu currículo traz também cinco peças tea- carioca” Gota d’água, uma adaptação de trais – Roda Viva (1967/68); Calabar (1973); Medeia, de Eurípedes, em forma de poema Gota d’Água (1975); Ópera do Malandro com mais de quatro mil versos. O espetá- (1978); O Grande Circo Místico (1983) – e culo se tornou um dos maiores sucessos de quatro filmes: Quando o carnaval chegar crítica e público e conquistou para Chico (coautor) (1972); Para Viver um Grande Buarque o Prêmio Molière de Melhor Autor Amor (coautor) (1983); Ópera do Malandro Teatral do Ano. (1985); O Mandarim (ator) (1995). Em 1977, Chico voltou aos teatros com Com o tempo, Chico Buarque passou a tradução e adaptação do musical infantil a dedicar-se mais aos livros. Sua obra lite- Os Saltimbancos. Também escreveu o texto rária é composta por sete títulos – Fazen- e as canções da peça Ópera do Malandro, da Modelo (1974); Chapeuzinho Amarelo baseada na Ópera dos Mendigos (1728), (1979); A Bordo do Rui Barbosa (1981); Es- de John Gay, e na Ópera de Três Vinténs torvo (1992); Benjamim (1995); Budapeste 189

(2004); Leite Derramado (2010) – três deles via sido liberada na encenação carioca, ori- ganhadores do Prêmio Jabuti: Estorvo na ginalmente, para maiores de 14 anos. categoria Melhor Romance e, tanto Buda- “A Censura descobriu mais quatro anos peste quanto Leite Derramado, na categoria de pecado na minha peça”, afirmou Chico Livro do Ano – todavia, sem terem venci- Buarque de Hollanda à Folha de S. Paulo do a categoria Melhor Romance. Em 2010, (5 de fevereiro de 1968, Ilustrada, p. 2), de- essa premiação causou um grande debate pois que a Censura trocou a restrição etária nas mídias e uma petição on-line que re- para Roda Viva de 14 para 18 anos. colheu milhares de assinaturas pedia: “Chi- A mudança foi uma decorrência das co, devolve o Jabuti!”. Chico não devolveu, modificações efetuadas pela direção de José mas toda essa polêmica foi capaz de alterar Celso Martinez Corrêa ao texto original da o regulamento do Jabuti a partir de 2011. peça – fato admitido pelo próprio Chico em várias oportunidades. O que era apresenta- do no palco não correspondia ao conteúdo 4.3.2 A Reviravolta – a peça aprovado pela Censura. Roda Viva O crítico Marco Antônio de Menezes (1968), que assistiu à montagem no Rio de Anexado ao processo de número 6116 Janeiro, já havia sinalizado no Jornal da Tar- do Arquivo Miroel Silveira, encontra-se o de que “a censura de 14 anos parecia mui- Certificado de censura da peça Roda Viva to pouco severa” para um espetáculo com emitido pelo Serviço de Diversões Públi- tantos palavrões e com tanta agressividade cas do Departamento Federal de Seguran- para com a plateia. Pelo desenrolar dos fa- ça Pública, órgão do Ministério da Justiça tos, os censores federais compartilhavam e Negócios Interiores. O certificado, datado dessa mesma opinião e decidiram mudar o de 26 de janeiro de 1968, liberava a repre- limite etário da peça já em cartaz. sentação da obra em todo o território nacio- Além dessa modificação, no processo nal, por um ano, para maiores de 18 anos de Roda Viva presente no Arquivo Miroel e sem cortes. O curioso é que a estreia de Silveira, pode-se verificar outra mudança na Roda Viva no Rio deu-se em 15 de janei- metodologia da censura teatral no país. Após ro de 1968. Como, então, o Certificado de o golpe de 64, ainda era obrigatório o envio Censura poderia ser posterior à estreia, uma dos originais à Divisão de Diversões Públicas vez que a peça não poderia ir a público sem dos Estados da união, porém, aos poucos, a autorização prévia? Na verdade, a peça ha- Censura teatral foi centralizada pelo gover- 190

no central. Por isso, o que se observa no re- maquiagem de palhaço de circo – uma ale- querimento à DDP-SP não é, por parte dos goria para a figura do empresário artístico. produtores, o pedido de avaliação da peça, É esse personagem quem vai promover a mas sim a solicitação para que se fizesse, em transformação do cantor desconhecido em âmbito estadual, o registro do Certificado de ídolo das multidões, num processo que se Censura Federal nº. 008/68. Sob essas novas inicia com Benedito sendo despido de tudo regras, em 1º de julho de 1968, a DDP-SP o que é seu, até de seu nome. O novo ídolo obedeceu à deliberação federal e permitiu a agora se chama Ben Silver e é carregado encenação de Roda Viva “de acordo com o para o palco “num grotesco andor feito de original censurado pelo DPF – proibido para long-plays e fotos de cantores, conduzido menores de 18 anos, sem cortes”. por grotescas caricaturas das ‘macacas de A primeira peça de Chico Buarque é auditório’, que no fim do primeiro ato o uma comédia musical, dividida em dois levam embora, deitado sobre uma cruz de atos, que narra a ascensão e a queda de Be- madeira, nu, cansado sob o peso do pró- nedito Silva – um cantor popular frente ao prio sucesso”. (MENEZES, 1968) mundo da fama criado pela indústria tele- Durante o espetáculo, para fora dos visiva. O argumento da peça teve origem limites do palco, os atores que formam o no repúdio de Chico Buarque à televisão – Coro dirigem-se agressivamente à plateia, para ele, nesse meio de comunicação tudo fazendo perguntas, pedindo assinaturas era artificial. Este pensamento já se encontra em manifestos, sacudindo e encarando os presente no início do primeiro ato de Roda espectadores. Viva, quando Benedito entra em cena e Em Roda Viva, Chico Buarque procurou fazer um paralelo entre a mistificação religio- quebrando a relação entre palco e plateia, se dirige ao público com bastante naturalidade ex- sa e a mistificação promovida pela mídia em plicando as convenções do espetáculo e o seu torno dos artistas populares. E foi dentro des- lugar no enredo, o de personagem principal. sa concepção, quando se pretende mostrar As rubricas criam a ilusão da não-realidade, o mundo da televisão é um mundo de ficção. Co- o esgotamento causado pela fama, que José existem dois mundos: o mundo real, o da pla- Celso concebeu Benedito nu e coroado de teia, e o mundo fictício, da criação televisiva. É espinhos, como Cristo. Seguindo o mesmo a ficção televisiva dialogando, em diversos ní- veis, com a ficção teatral. (CARVALHO, 2004) apelo religioso, quando Ben Silver vai procu- rar o consolo em sua vida privada, sua mu- Surge, então, o Anjo da Guarda de asas lher, Juliana, entra em cena como uma visão negras, cassetete de policial na cintura e de Nossa Senhora. Logo a seguir, a televisão, 191

onipresente, rompe a intimidade do casal Pereio encarnava essa figura marginal, que, e anuncia: “Estamos apresentando o sensa- frequentemente, fazia várias intervenções, cional programa ‘O Artista na Intimidade’”. falando palavrões e xingando a plateia. Enquanto isso, o Capeta, uma representação Há uma cena em que os amigos con- metafórica da imprensa, grita: “Extra! Extra! versam sobre o passado, relembrando os Ben Silver é casado”. Para salvar a imagem tempos em que participavam do movimen- de Benedito junto às suas fãs, o Anjo suborna to estudantil. Os dois falam dos diversos o Capeta, que desmente o casamento. amigos que estão presos ou mortos. De No espetáculo, sempre posicionado no passagem, são mencionados os tempos da mesmo lugar no palco, há outro persona- faculdade de Arquitetura – uma clara refe- gem marcante: Mané, antigo parceiro de rência autobiográfica de Chico. E Mané diz Benedito. Diferentemente de todos os ou- que Benedito era um mau comunista. Os tros personagens que usam maquiagem pe- dois bebem cerveja até ficarem embriaga- sada e ilustrativa, Mané tem roupas realistas dos, fato que é amplamente alardeado pelo e apresenta-se de cara limpa. Paulo Cesar Capeta. Novamente, surge o Anjo para aba-

No cenário fixo de Roda Viva destacavam-se três elementos: 1. Rampa que descia do palco para a plateia; 2. Praticável mais elevado à esquerda do palco, onde era o “cantinho do Mané”; 3. Plataforma de vidro pendurada com cabos de aço, onde ficavam os músicos.

Fonte: BORELLI, R. Mensagem recebida por [email protected] em 5 nov. 2008. 192

far o caso e, por meio de propina, consegue seu prestígio. Depois de sua morte, Julia- a publicação de outra manchete: “Extra! na, vestida à moda hippie, assume o posto Extra! O ídolo Ben Silver, que não é bêba- diante dos holofotes da mídia e torna-se a do, promete doar 160% de seus bens para mais nova sensação. fins caritativos”. Porém, essa manchete não No programa da montagem paulista, seria suficiente para remediar os danos à José Celso fala de sua concepção da peça: imagem do cantor. […] no Brasil, onde existe todo um esquema Para reconquistar a opinião pública, de necessidade de revolução social e política, a seria necessário empreender uma outra re- TV como se estrutura hoje é um ópio do povo. modelação. Sai Ben Silver – alcoólatra alie- É neste sentido que ela aparece em “Roda Viva” – e ela passa a canalizar para seu universo de nado – e entra Benedito Lampião, cantor de conformismo todas as revoltas latentes. Assim, músicas de protesto e legítimo representan- no primeiro ato, todo o sentido religioso da TV te da cultura brasileira. fornecendo meios de satisfazer misticamente todo o anseio de consumo do povo que não A tentativa de salvar o ídolo em decadência é poderá consumir: Ben Silver – o ídolo de prata. encenada como uma procissão, liderada pelo O ídolo é devorado e idolatrado enquanto re- Capeta (seria a peça toda uma Missa Negra?) – presenta aquele membro da comunidade que que satiriza o jornalista marrom – usando como consome mais que todos. No segundo ato, a cruz o conhecido “X” de lâmpadas empregado fossa do ídolo, o drama do ídolo vendido ali- pelos fotógrafos. (MENEZES, 1968) menta toda a “fossinha nacional”. Finalmente, sua revolta política é logo canalizada para a Depois da salvação, Benedito Lam- festividade, para a bossa. “Poder Jovem”, para pião sai em turnê pelos Estados Unidos. O a grandiloquência de sê-lo comemorativo à Anjo, cheio de empáfia, esnoba a impren- TV, capitaliza e vende a imagem bossinha e sa brasileira e a retaliação não tarda a ser esquerdinha do ídolo, até vender a sua morte. O espetáculo termina com mais mistificação. publicada: O “hippie” apalhaçado, importado, o culto da Extra! Extra! Regressa hoje ao Brasil o Judas, margarida, e terminado o espetáculo – progra- Benedito Lampião, cantor que entre outras ma de TV, tudo volta ao seu lugar, nada se pas- coisas é bêbado, casado, entreguista e… e… e sa – a banda passa – e tudo continua na mesma, homossexual! Vamos todos receber com nossas muito barulho por nada. (CORRÊA, 1968) melhores vaias aquele que vendeu nossa mú- sica mais autêntica para as mãos sujas do im- Depois da estreia de Roda Viva no Rio, perialismo ianque! (Proc. 6116, in ARQUIVO em 15 de janeiro de 1968, o crítico teatral MIROEL SILVEIRA) do Jornal do Brasil Yan Michalski afirmou Mais uma vez, há que se remediar a nunca ter visto um público mais desorienta- situação e o Anjo só enxerga uma saída: do e perdido do que o fã-clube adolescente Benedito tem que suicidar-se para manter de Chico Buarque, que lotava o Teatro Prin- 193

cesa Isabel. Afinal, segundo Michalski, as [...] tudo é caricatura do religioso no espetácu- menininhas que foram assistir a uma peça lo, que, como atividade religiosa, se desenvol- ve em todo teatro, palco, galerias, plateia. [...] musical de Chico acabaram assistindo a um Elementos cristãos, aliás, são misturados com espetáculo de José Celso Martinez: rituais pagãos (o fígado de Prometeu, as orgias de Dionísio), até com rituais políticos (a foice- Será difícil, aliás, encontrar uma plateia que e-martelo no chapéu do nordestino de Benedito possua reais afinidades com este happening, Lampião). (MENEZES, 1968) este ritual pagão que José Celso criou, com uma ousadia suicida, com um talento admirável, mas também com uma selvageria que desta vez Em 1975, em entrevista ao Pasquim me pareceu decididamente exagerada. para Ivan Lessa, Ziraldo, Jaguar e Tárik de […] Roda Viva se transforma cada vez mais Souza, Chico comentou sobre a interferên- numa frenética sessão de exibicionismo histó- rico e, como tal, deixa aos poucos de atrair o cia de Zé Celso e sobre o “tratamento de interesse do espectador. É claro que este é sub- choques” em Roda Viva: metido, do início até o fim, a um violentíssimo Chico - “Roda Viva” texto, não era nada. tratamento de choques; mas se esse tratamento, Ziraldo - O espetáculo não era o que você tinha tão importante e saudável no teatro contempo- proposto na sua cuca. Zé Celso entrou no meio râneo, é perfeitamente legítimo quando se quer do caminho. Botou aquela loucura na peça. Ela chocar em nome de alguma coisa, ele me pare- tinha aquela loucura proposta? ce altamente discutível quando – como aconte- Chico - Não, mas eu acompanhei a loucura. ce aqui: existe apenas a vontade de chocar em Jaguar - Avalizou. nome do próprio choque. Não vejo, sinceramen- Chico - Entrei mesmo e assumi. Tava presente te, que tipo de enriquecimento uma tal realiza- durante a montagem toda. Fiz música, durante ção pode trazer ao espectador. E não sei se no os ensaios. estágio atual do teatro brasileiro temos o direito Ziraldo - Você mudou o final. de convidar os espectadores, com tanta falta de Chico - Fui burilando. cerimônia, a nunca mais voltar ao teatro. Ziraldo - Você queria levar a peça de qualquer É por causa disso que Roda Viva me pareceu jeito ou foi porque o que o Zé Celso propôs se ser, surpreendentemente, um dos espetáculos aproximava mais da sua intenção? mais alienantes e alienados dos últimos tempos. Chico - Porque a peça, assim que ficou pronta, E Chico Buarque, coitado, que compôs para era muito vazia. Não tinha nada. Roda Viva várias músicas de sua inconfundível Ivan - Dê um resumo. lavra, não tem culpa nenhuma dessa alienação. (MICHALSKI, 1968) Chico - Negócio de empresário, público, de IBOPE, de televisão. Em crítica no Jornal da Tarde, Marco Ivan - Era simplesmente sobre a máquina e a Antônio de Menezes ressaltou que engrenagem. Ziraldo - Não tinha o teor político que passou [...] a plateia sai do teatro evitando sujar os sal- a ter. tos dos sapatos Chanel nos restos do fígado de Ivan - Tudo é político. Benedito Silva que o Coro das fãs devora no Chico - Não sei se ficou mais política. Ficou mais final. polêmica, mais forte, brutal. 194

Tárik - Ficou política no sentido visceral, das que as palavras sejam aquelas. Roda Viva não vísceras. existia. Foi um ensaiozinho de quem nunca ti- Ziraldo - Isso, tava no estômago do problema nha feito teatro. Agora, porra, sou 10 anos mais do país. velho. Tenho mais experiência e confiança no Chico - Apareceu o Zé Celso pra montar. Eu co- que tô fazendo. Se você falar que a peça é uma nhecia O Rei da Vela. Na hora pensei: “Vai ser merda, vou discutir contigo. Vou brigar. Roda uma barra”. Topei a barra, inclusive me anulan- Viva, antes que você fale, digo: “É uma merda”. do como autor. O espetáculo montado é prati- (LESSA et al., in Pasquim, 1975) camente dele. Só ele teria imaginado aquilo a partir do texto escrito. Como se vê, a montagem da peça era Tárik - A “carpintaria teatral” foi dele. virulenta até para os jornalistas do Pasquim Chico - Eu tava lá. Não fui traído. Reconheci, conscientemente, que a peça era fraca, e que só e para o próprio Chico Buarque. Depois da o trabalho dele daria uma dimensão melhor. temporada no Rio, a estreia deu-se em São Ivan - A agressividade direta... Vou eu com meu Paulo no dia 17 de maio. As diferenças en- pai ver Roda Viva. Antes vejo o Pereio na por- ta, bato papo, “Oi, tudo bem?”. Tem uma parte tre o palco do Teatro Princesa Isabel e do que o Pereio fica sentado do lado, e dependen- Galpão – uma sala do Teatro Ruth Escobar do de quem tá na plateia ele dá uma agressão. – obrigaram José Celso Martinez Corrêa a in- Como fez com Flávio Rangel e Paulo Francis “Ei, Flávio Rangel é boneca!”. troduzir novas marcações e procurar novas Jaguar - Comigo também. soluções. Chico - Comigo também. O Galpão tinha forma de semiarena, Ivan - Com todo mundo. Ziraldo - Você queria essa agressividade? onde o palco ficava ao nível do chão e a Chico - Ficou combinado que aquele persona- plateia, disposta em blocos, separados por gem, do Pereio [Mané], ficaria por conta dele. corredores em forma de rampas. Em São Tinha liberdade pra xingar quem quisesse, como me xingou todas as vezes que fui assistir. Paulo, o Coro foi jogado definitivamente Não me livrou a cara. Era a participação do Pe- para a plateia e os músicos ocupavam um reio dentro do negócio. espaço no teatro um pouco mais elevado. Ivan - Perfeito. Dava ódio: “Aquele é mau ca- Mané permanecia junto deles durante todo ráter. Bom caráter é o pai dele, o Orígenes”. Fiquei puto da vida. Agora que sei que é coisa o espetáculo, interagindo e improvisando. do Pereio, acho ótimo. A montagem paulistana dividiu o públi- Ziraldo - Se a gente pegar toda a sua obra, […] co e os críticos: a Roda Viva era um pé na cara. Isso não te vio- lentou? O espetáculo gerava uma relação de amor e Chico - Na hora que dei o espetáculo pra ele ódio. A peça era comentada em todos os jor- montar, tava sabendo que ia ser um espetáculo nais. De um lado, tinha pessoas que frequen- do Zé Celso. É um criador genial. Agora, não tavam assiduamente, enquanto que alguns, in- tem texto. Essa peça, Gota d’água, não entre- clusive críticos, nem se deram ao trabalho de garia não! É uma peça que prezo, faço questão assisti-la, para evitar aborrecimentos. 195

Alvo fácil das críticas, que achavam inconce- os agressores espancaram os atores, destru- bível uma pessoa pagar para ser agredida, por íram cenário, figurinos, camarins, bancos, brincarem com estruturas catolicistas, músicas com partes significativas de uma missa, posi- refletores, instrumentos musicais e equipa- ções de reza, um andor revestido de produtos mentos elétricos. do iê-iê-iê e uma procissão, os signos em vários Marília Pera, a protagonista, foi agredi- planos contra uma instituição tradicional e fa- miliar. (MOSTAÇO; SEIDLER Jr., 2005) da a cassetete no camarim e arrastada para a rua; Jura Otero, assistente de coreografia, A mistificação e a presença de pala- teve lesões pulmonares; e Rodrigo Santia- vrões e de xingamentos à plateia incomo- go, que interpretava Benedito, torceu o pé daram muita gente. Segundo o jornalista esquerdo na fuga. Também foram agredi- Sérgio Augusto (1993), o deputado Wadih das as atrizes Margot Baird, Eudóxia Acunã Helu apresentou moção na Assembleia Le- e Walkiria Mamberti. gislativa pedindo mais rigor para a Censura, No dia seguinte, o teatro estava lotado de pois Roda Viva era uma verdadeira afronta jovens estudantes, artistas e militantes de es- à sociedade e à família paulista. Outro de- querda que, segurando paus e porretes, fize- putado enviou ofício ao Governador Abreu ram um cordão de segurança para o elenco. Sodré solicitando a suspensão de subven- O espetáculo, porém, continuava a receber ções aos teatros que vinham expondo imo- ameaças, o que motivou Joe Kantor, produ- ralidades. O Vice-Presidente da Assembleia, Aurélio Campos, atestou que aquilo que ele tinha visto e ouvido em Roda Viva não po- deria ser chamado de arte em parte alguma do mundo: “Aquilo é ofensa, aquilo é des- pudor, aquilo é destruir uma família em sua moral, amolecer uma nação. Aquilo que está lá é um bordel, não um palco”. Críticas negativas à peça puderam ser ouvidas tam- bém na TV Record e na rádio Jovem Pan. Em meio a essa polêmica toda, depois de dois meses em cartaz, em 18 de julho, Camarim da Sala Galpão do Teatro cerca de 20 homens ligados ao Comando Ruth Escobar destruído após a invasão do CCC no final da encenação da peça de Caça aos Comunistas (CCC) depreda- Roda Viva, de Chico Buarque (Folha ram o Teatro Galpão. Durante a invasão, de S. Paulo, 19 de julho de 1968) 196

tor da peça, a contratar um professor de artes diram voltar mais cedo ao Hotel Rishon. Lá marciais para dar aulas de defesa pessoal aos encontraram cerca de 40 agressores, arma- atores. Logo depois, a peça saiu de cartaz em dos de cassetetes de madeira, à sua espera. São Paulo e começou uma turnê que preten- Marcelo e Amilton, apesar de apanharem, dia visitar as principais capitais do Brasil. A conseguiram correr para o lobby, mas Ro- primeira delas foi Porto Alegre, que, no dia mário foi cercado e espancado com chu- 2 de outubro, assistiu à estreia de Roda Vida tes no rosto e no estômago. Protegendo-se – com Elisabeth Gasper substituindo Marília como podia dos golpes – um dos porretes Pera e João Marcos Fuentes no lugar de An- espatifou-se contra seu antebraço –, ouviu: tônio Pedro, que fazia o papel do Capeta. “É o pianista! Quebra a mão dele!”. (MAR- Depois da apresentação, foram distri- SIGLIA, 2008) buídos pela cidade panfletos que avisavam: Por milagre, suas mãos não foram des- “Hoje poupamos a integridade física dos truídas, mas Romário sofreu hemorragia in- atores e espectadores, amanhã, não”. Ro- terna. “Escapei com vida por absoluto mila- mário José Borelli, músico da montagem gre e também porque tinha 25 anos, 1,80m gaúcha, relata e praticava muito esporte na juventude”. O Zé Celso assistiu à estreia em Porto Alegre e (informação pessoal)4 se mandou. Viu o teatro todo pichado, viu os Enquanto ocorria a agressão no hotel, panfletos que foram distribuídos na estreia, viu Elisabeth Gasper e o músico Zelão foram movimentos da censura para proibir a peça... Viu que não poderíamos representar já na se- raptados por algumas horas e levados a lu- gunda noite e, já à tarde, se mandou. Não quis gares distantes, onde receberam ameaças saber de nada. Pegou um avião e foi embora. de morte. Disse que tinha que fazer um filme em São Paulo. (informação pessoal)3 Toda essa barbárie chamou a atenção do regime e, em 4 de outubro, a peça foi Na matéria “O pianista rodou”, de Ivan interditada pela Portaria número 2468, as- Marsiglia, publicada no O Estado de S. sinada pelo General Aloysio Muthentaler:

Paulo, em 14 de dezembro de 2008, há o A direção-geral do Departamento de Polícia Fe- relato do que aconteceu na noite do dia 3 deral, com o intuito de esclarecer a opinião pú- de outubro de 1968 – depois da segunda blica sobre os verdadeiros motivos da suspensão da encenação pública da peça teatral Roda Viva, apresentação de Roda Viva no Teatro Leo- poldina, em Porto Alegre. 3 BORELLI, R. Mensagem recebida por Romário Borelli, o ator Amilton Mon- [email protected] em 5 nov. 2008. teiro e o iluminador Marcelo Bueno deci- 4 Idem. 197

informa que a liberação do referido espetáculo eleiçao do senador oposicionista Tancredo ocorreu sem qualquer anormalidade, pois que o Neves – como o primeiro presidente civil script e o ensaio geral apresentados ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) para em 20 anos – pôs fim ao regime militar. exame prévio não continham qualquer atentado Sem o peso dos coturnos, iniciou-se um contra os dispositivos do decreto nº 20.493, de processo de reflexão sobre os últimos vinte 24 de janeiro de 1946 [...] anos da cultura brasileira. No âmbito tea- Os artistas não respeitaram as marcações iniciais, tral, em 1985, o Núcleo Hamlet organizou aprovadas pelo SCDP, promovendo improvisa- o projeto “Balanço Geral”, voltado para um ções – cujas sandices estiveram fora de qualquer limitação etária. [...] Em cada espetáculo levado público composto, predominantemente, de ao público, o script era modificado escandalosa- jovens entre 20 e 30 anos, no qual realiza- mente. A peça Roda Viva transformou-se, assim, ram-se 32 leituras cênicas ou encenações, em autêntico show depravado, numa constan- te sucessão de cenas atentatórias à moral e aos seguidas de debate. Roda Viva foi uma de- bons costumes. Toda a gama de atos libidinosos las. A Folha de S. Paulo cobriu o evento em e de mímica pornográfica era apresentada no 21 de novembro. palco, culminando com um indiscutível ato se- xual. (Brasília, 04/10/1968. (MARSIGLIA, 2008) Na matéria “Roda Viva prova que ainda é transgressiva”, a Folha apontou a Segundo MOSTAÇO e SEIDLER Jr. existência do temor de um novo ataque (2005), após a proibição, “o elenco tentou do CCC. Preventivamente, por quatro ve- impetrar um mandado de segurança, mas zes, a polícia esteve presente nos ensaios nenhum dos cinco juízes consultados con- da peça. Felizmente, a agressividade ficou cedeu a liminar”. Pouco tempo depois, em limitada ao debate que ocorreu após a 13 de dezembro de 1968, foi baixado o AI-5 apresentação – no qual foi possível cons- e a luta acabou. Começaram os “anos de tatar que, mesmo 17 depois, o teatro de Zé chumbo”, o período mais duro e repressivo Celso ainda era capaz de manter o mesmo da ditadura militar, no qual prevaleceu uma nível de provocação. severa política de censura a jornais, revistas, Ninguém imaginava que Roda Viva conseguiria livros, peças de teatro, filmes, músicas e ou- ainda chocar burgueses escandalizáveis após todos esses anos. Ou lotar um teatro como o tras formas de expressão artística. Maria Della Costa, tomado de assalto por de- O término do AI-5 se deu em 1978. A zessete atores jovens e um grupo de quatro mú- partir daí, vieram as greves do ABC, foi san- sicos. Quase seiscentas pessoas (a lotação do teatro é de 420 lugares) disputaram, sem medo, cionada a Lei da Anistia, milhões de brasi- um espaço para assistir à peça. leiros foram às ruas pedindo Diretas Já e a Pela reação do público e a ira demonstrada por participantes do debate promovido após a apre- 198

sentação de Roda Viva, pode se afirmar que, E, sobre sua imagem, Chico acentuou: até mesmo através de uma peça datada, […] Zé “Quem assistiu à peça pode saber que não Celso mantém sem mácula seu discurso trans- gressivo, a favor de um teatro batizado por ele estou muito preocupado com a opinião do como a própria “tragicomédia-orgia”. Quem público sobre minha pessoa. Quem quiser duvidava tremeu diante do fígado de Ben Sil- um bom menino em casa que desligue a ver, ou Benedito Silva – o cantor transformado em mito, na peça –, atirado à plateia como num televisão e vá criar um filho”. ritual sangrento que não poupa sequer a roupa Segundo José Celso, a obra introduzia limpa dos espectadores. (Folha de S. Pau- uma nova visão na biografia do Chico: “Eu lo, 21 nov. 1985) até sugeri que o cartaz da peça fosse o Chico Essa foi a última vez que Roda Viva foi num açougue. Ou os olhos verdes do Chi- aos palcos. co boiando como dois ovos numa posta de fígado cru. Foi assim que eu vi o Chico do 4.3.3 Giram as rotativas Roda Viva”. (Folha de S. Paulo, 17 mai. 1968) A primeira referência sobre Roda Viva Durante os dois meses seguintes, nada encontrada nos jornais paulistanos data de foi encontrado na mídia paulistana e a peça 11 de janeiro de 1968, na Folha de S. Pau- só voltou a ser notícia nas páginas dos jor- lo. Trata-se de uma nota sobre a primeira nais depois do ataque do Comando de Caça encenação no palco do Teatro Santa Isabel, aos Comunistas. no Rio de Janeiro. O mesmo jornal anun- No dia 19 de julho, O Estado de S. Pau- ciou a estreia paulistana em 17 de maio. lo, sob o título “Depredado o Roda Viva”, Na ocasião, o produtor do espetáculo, Joe reportou que, faltando poucos minutos Kantor, previa que, por ser um musical de para a meia-noite, cerca de 30 elementos grande vigor, a obra seria capaz de provo- não identificados invadiram o Teatro Gal- car muita discussão, aplausos e até vaias. pão portando armas de fogo, socos-ingleses No mesmo texto, Chico Buarque falou e cassetetes. sobre as mudanças introduzidas por José Celso: Vários artistas foram agredidos. Algumas atrizes O diretor criou em cima do texto, dando-lhe da peça Roda Viva, que está sendo levada no uma dimensão maior que assumo integralmen- “Galpão”, ficaram com fortes hematomas no te. Todos os palavrões ali são necessários. Aliás, rosto e escoriações no corpo. Nenhum artis- se alguma coisa choca na peça não é o empre- ta ficou ferido em estado grave; não foi dado go de palavrões, que ficam até muito naturais nenhum tiro. Mas a violência das agressões foi na boca do bêbado. (Folha de S. Paulo, 17 tanta que um dos cassetetes estava quebrado ao mai. 1968) meio, no palco. 199

Um investigador do DOPS, que se encontrava marins internos, foram agredidas, os homens ar- dentro do teatro, presume que o cassetete seja rancaram suas roupas. Walkiria Mamberti, outra privativo das Forças Armadas. Dois elementos atriz da peça, também foi despida e espancada, foram presos, segundo o investigador. Esse tam- apesar de avisar, aos gritos, que estava grávida. bém foi agredido pelo grupo e teve que rolar (Jornal da Tarde, 19 jul. 1968) no chão com um dos elementos para prendê- lo. Esse elemento foi entregue a uma viatura da Força Pública que se encontrava no local. (O Na verdade, Walkiria não estava grávida Estado de S. Paulo, 19 jul. 1968) nem foi espancada. Em depoimento a Luís Antônio Giron em 1993, Cláudio Mamber- O jornal relatou que os cenários foram ti, marido da atriz na época, disse que ela arrancados e pisoteados; as poltronas do te- mentiu para escapar das agressões. O estra- atro, viradas e quebradas; os instrumentos tagema funcionou e Walkiria saiu ilesa. musicais, um amplificador e um projetor de Margot Baird contou ao JT que os ho- slides estavam inutilizados. Informava tam- mens, enquanto arrancavam e rasgavam as bém que, havia duas semanas, os artistas roupas das atrizes, gritavam: “Isso é que é do Teatro Galpão foram avisados de que revolução, isso é revolução”. um grupo depredaria a casa. Algumas pessoas da equipe técnica No mesmo dia também, o Jornal da também apanharam muito – um deles teve Tarde, veículo pertencente ao grupo Esta- a bacia quebrada ao ser arremessado contra do, reportou o incidente. as cadeiras da plateia. Muita gente rolava […] Muita gente nem tinha-se levantado das pelas escadas e, no meio da confusão gene- cadeiras, quando mais de vinte rapazes, arma- ralizada, a multidão, que tentava sair a qual- dos de cassetetes e revólveres, deram um grito, quer custo, obstruiu a entrada da polícia. e começaram a depredar tudo dentro do Teatro Galpão. Não deu tempo para nada: os guardas O agente do DOPS designado para tra- de três radiopatrulhas que estavam na porta, em balhar na porta do teatro, Modesto Ramone frente do número 209 da Rua dos Ingleses, cor- Junior, disse que naquele tumulto não po- reram, mas não puderam entrar. Foram impedi- dos por mais de 100 pessoas que queriam sair dia fazer muito coisa. Declarou ter prendi- daquela confusão. do dois homens. Um deles – portando um Lá dentro, continuava o quebra-quebra. Primei- cassetete branco quebrado ao meio e um ro foram os espelhos dos camarins externos, que ficam bem perto do palco. Depois foi a vez dos martelo fino – identificou-se como 2º. Te- projetores de slides e dos microfones. Os instru- nente do Exército, carteira de identidade do mentos dos músicos também foram quebrados Ministério do Exército, número 56.203. a pontapés e pauladas. Todos corriam, ninguém sabia o que acontecia. Marília Pera, a atriz prin- Enquanto isso, as pessoas continuavam cipal da peça, e Margot Baird, dentro dos ca- saindo do teatro e, dentre elas, aproveitan- 200

do-se da situação para fugir, os agressores de da classe teatral: o Teatro Oficina cedeu mesclavam-se à multidão. um gravador e outros teatros emprestaram Pouco depois da meia-noite, os atores refletores. Para viabilizar a apresentação, foram até à delegacia para fazer o exame também foi necessário refazer o figurino – de corpo de delito. Depois, voltaram à para tanto, foram mobilizadas várias costu- frente do Teatro Ruth Escobar, para uma reiras. O Jornal da Tarde terminava dizendo assembleia. que “à noite, após a apresentação da peça, Nem o DOPS e nem a 4ª Delegacia, onde es- será formada outra comissão, que vai a Bra- tão presos, aceitaram a queixa de Ruth Escobar, sília falar com o Presidente Costa e Silva”. dona do Teatro. O delegado Serra da 4ª Dele- (Jornal da Tarde, 19 jul. 1968). gacia, não aceitou também o requerimento do advogado do teatro, não quis autuar os presos A edição vespertina da Folha de S. Pau- em flagrante e nem deixou os artistas identifica- lo foi o veículo que deu maior destaque rem-nos. Ruth Escobar telefonou para a casa do à invasão do Teatro Galpão. No dia 19, a Secretário da Segurança Hélio Lopes Meireles, tentando resolver alguma coisa. O Secretário principal manchete da capa era: “Depois mandou dizer que aquilo não era com ele, que de Roda Viva – Artistas agredidos e Teatro era “matéria de teatro” e que recorressem à Justi- depredado”. Além da chamada, o jornal ça. (Jornal da Tarde, 19 jul. 1968). estampava três fotos grandes: duas mos- Frente à recusa das autoridades policiais trando os estragos causados e uma de Ruth perante o caso, vários membros da classe Escobar, a dona do teatro, à frente de uma teatral foram à casa do Governador Abreu comissão de artistas. Internamente, a Folha Sodré, às 2h45. Não foram recebidos, mas, dedicou boa parte da página 12 ao assunto: às 4h15, foram informados de que o Secre- “Invadido e depredado o Teatro Galpão”. tário da Segurança do Estado de São Pau- Além dos detalhes da invasão presentes nos lo dispunha-se a recebê-los em comissão outros jornais, a reportagem da Folha infor- às 8h30 da manhã. Durante essa reunião, mou que, após a depredação e a violência, prometendo policiamento nos teatros, o Se- os agressores fugiram numa perua Kombi e cretário telefonou para todas as delegacias num sedã Volkswagen bege-claro, mas al- e para o DOPS, sem conseguir localizar os guns atores conseguiram deter três desses dois homens presos. elementos: um deles foi entregue à polícia O JT também relatou que, apesar de o da Rádio Patrulha, que o deixou escapar. teatro estar inteiramente destruído, a peça Os outros dois foram levados pessoalmente Roda Viva seria encenada naquela noite, no pelos atores ao DOPS. Essas informações próprio Ruth Escobar, graças à solidarieda- foram colhidas na assembleia realizada de- 201

pois do incidente, no Teatro Ruth Escobar. Na mesma assembleia, o ator princi- Pode-se notar que, nessa passagem, a ver- pal de Roda Viva, Rodrigo Santiago – de são da Folha diverge da versão dada pelos pé enfaixado –, foi convocado por Cacilda outros jornais que atribuíram a prisão a um Becker a subir ao palco naquela noite: “O agente do DOPS. público tem que te ver assim, mancando. No dia 20, o Jornal da Tarde trouxe Mas sem fazer drama, sem tragédia, com outra matéria sobre o assunto. Sob o título dignidade. O espetáculo tem que sair, nem “Proteção do teatro à Roda Viva”, dizia que que seja simbólico”. Augusto Boal, presidente da assembleia Segundo o JT, Ruth Escobar havia re- da classe teatral realizada no dia anterior, cebido um telefonema com mais ameaças: conclamava todo o elenco a se defender “O que aconteceu ontem não foi nada. através de armas, posto que não se podia Vocês vão ver hoje e amanhã”. Para dar esperar muito da polícia. garantias aos atores, foram espalhados 14

Folha de S. Paulo, 19 de julho de 1968: capa e página 12 202

homens da polícia federal pela frente do A Gazeta também publicou a versão teatro. Mesmo assim, o próprio pessoal de Claudinei sobre os fatos. O rapaz disse do teatro decidiu montar seu esquema de que foi ao Teatro Ruth Escobar para assis- segurança. tir à peça. Quando o espetáculo acabou e Chico Buarque de Hollanda, ao saber do começou a confusão, foi confundido com que havia acontecido, veio do Rio para dar um dos desordeiros: ”Gosto de teatro, não início ao espetáculo daquela noite. O autor tenho nada com o que aconteceu. A peça é agradeceu a presença da plateia, que com- comum, só que pornográfica”. pareceu em grande número, mesmo saben- Ainda no dia 20, a Folha de S. Paulo do que a montagem da peça estaria preju- deu novo destaque ao assunto. Ao contrá- dicada. No público, encontrava-se também rio de A Gazeta, que foi à delegacia entre- seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, e sua vistar Claudinei, a Folha continuou cobrin- mãe, que vieram prestar sua solidariedade. do as assembleias promovidas pela classe O Jornal da Tarde ainda relatou que, ao teatral. final da apresentação, os atores e atrizes es- Numa dessas assembleias, Ruth Escobar tavam felizes e aplaudiram o público. Para ressaltou a importância de informar ao pú- todos, essa era a maior resposta que se po- blico de São Paulo: “Nós capturamos dois dia dar aos invasores. criminosos e a polícia sumiu com eles”. In- O jornal A Gazeta também cobriu os dignada, a atriz continuou dizendo: “Acho eventos dessa noite. Além dos detalhes já que estamos encurralados. Esses homens encontrados no JT, A Gazeta revelou que fazem parte de uma organização que se- Claudinei Braz, detido na frente do Teatro vicia atrizes. Danificaram o nosso teatro. Galpão, poderia ser liberado naquele mes- Portanto, é hora de tomarmos as nossas mo dia pela polícia, pois algumas testemu- providências”. nhas não o reconheceram como um dos Segundo a Folha, todos os presentes na envolvidos no “quebra-quebra”. Somente a assembleia tinham a firme crença de que os atriz Marília Pera garantiu ter visto Claudi- homens que atacaram o teatro pertenciam nei entre os depredadores, mas o reconhe- aos quadros policiais. cimento foi invalidado porque o advogado Sobre a apresentação da noite anterior, a de Ruth Escobar, que assistia aos depoi- Folha relatou que Chico Buarque de Hollan- mentos, abandonou a sala onde estava o da e o diretor José Celso Martinez Corrêa suspeito e entrou em contato com os atores apareceram no palco, momentos antes de em outro lugar. começar a encenação, e foram aplaudidos, 203

de pé, por um público que lotava completa- o local onde se encontrava preso. Às 13 ho- mente o teatro. ras, uma perua da chefia da Zona Policial do Centro retirou o preso da 2ª delegacia. A par- No dia 22 de julho, o jornal A Gazeta tir deste momento ninguém mais soube dizer informou novamente que o terrorista deti- onde Claudinei se encontrava preso ou se já do e desaparecido desde a noite da invasão fora libertado. (Jornal da Tarde, 22 de ju- lho de1968) foi localizado no DOPS. Lá, o delegado de plantão tentou justificar por que não aceitou Foi assim que terminou a cobertura da o reconhecimento do suspeito por parte dos invasão do Teatro Galpão nos jornais de atores. A Gazeta ressaltou que Marília Pera, São Paulo. Em 9 de novembro de 1968, a ao ser chamada para voltar à delegacia, revista O Cruzeiro, dedicou cinco páginas apontou com decisão e rapidez o agressor. à reportagem de Pedro Medeiros, intitula- Esse também foi o tema principal da da “CCC ou comando do terror”, na qual matéria publicada pelo Jornal da Tarde no o jornalista divulgou todo o material que mesmo dia. Esse jornal frisou que somente recolheu após várias semanas de contato Marília Pera, atriz principal da peça Roda com membros do Comando de Caça aos Viva, foi capaz de reconhecer Claudinei Comunistas. Medeiros revelou fotos, no- Braz, o estudante preso durante a depre- mes, endereços, profissões, faculdades dos dação do Teatro Galpão, como um de seus componentes do CCC de São Paulo. Um agressores. Contudo, a confusão criada pelo deles era o futuro jornalista Boris Casoy, na advogado dos atores levou o delegado a le- época estudante de direito. É evidente que, vantar suspeição contra o reconhecimento se um repórter conseguiu ter acesso a essas feito pelos artistas agredidos e nem mesmo informações, a polícia também teria todas o testemunho de Marília Pera foi considera- as condições de obtê-las. Uma das fotogra- do válido. O JT também reportou que fias publicadas indica que pelo menos um depois do reconhecimento, que terminou às 5 dos rapazes, apontado como membro da horas de sábado, Claudinei tornou a desapare- organização, passou pelo DOPS e foi iden- cer. Desta vez, nem mesmo seus parentes sa- tificado como membro do CCC. biam onde ele se encontrava. Por ordem direta do delegado Emygdio Álvares de Brito, Claudi- O caso voltou às páginas da Folha de S. nei foi levado para a 2ª Delegacia, onde ficou Paulo 25 anos depois, em 1993. O jornal preso até às 13 horas de sábado, enquanto seus publicou em 2 de maio um caderno espe- familiares procuravam, sem êxito, notícias de seu paradeiro. Algumas pessoas, intitulando-se cial sobre 1968, no qual constava o artigo “Militares”, também telefonaram à procura do “CCC reuniu 110 e agride 19 atores”, de estudante, mas a ninguém foi informado sobre Luís Antônio Giron, oferecendo mais dados 204

sobre a invasão do Teatro Galpão:

O espectador chegava e ganhava um bilhete: ”Bur- guês, tire a sua bunda da cadeira e vá fazer a revo- lução!”. Os 19 atores provoca- vam com pan- fletos, rebolados eróticos e um fí- gado de boi, que respingava. Era o teatro de participa- ção de José Celso Martinez Corrêa. Os conservadores tre- miam. De ódio. (GI- RON, 2 mai.1993)

Ruth Escobar contou a Giron que, duas sema- O Cruzeiro, 9 de novembro de nas antes da depredação, foi avisada por 1968, pp. 20-23 Boris Casoy de que algo iria acontecer em seu teatro. Perguntado sobre o caso, Casoy deu outra versão. Disse que Cacilda Becker, de quem era amigo, havia recebido um te- lefonema de alguém que se dizia presidente do CCC. Essa pessoa teria dado garantia de que Roda Viva não seria atacada. Casoy dis- se a Giron conhecer os alunos do Mackenzie ligados ao CCC, onde “agiam como cafajes- tes”, e decidiu avisar Cacilda de que o CCC Foto de membro não tinha presidente, tratava-se de um grupo do CCC publicada em O Cruzeiro, terrorista. A atriz teria ficado inquieta e deci- 9 de novembro de diu avisar o elenco. 1968, p. 20 205

Logo depois desse artigo ser publicado, co e, segundo Flaquer, teve como grande Luís Antônio Giron foi procurado pelo ad- aliado o professor Luís Antônio da Gama e vogado João Marcos Monteiro Flaquer, líder Silva, ministro da Justiça na época do ata- da organização e responsável pelo planeja- que ao Teatro Galpão. Provavelmente, por mento e comando da ação no Teatro Gal- isso, a polícia manifestou pouco interesse pão. Flaquer, cujo nome também constava em resolver o caso e os agressores perma- na lista divulgada em 1968 pelo repórter de neceram na impunidade. O Cruzeiro, queria esclarecer o que cha- Com a radicalização das posições a mava de “equívocos históricos” e contar partir de 67, os membros do CCC passaram “a história da injustiçada direita brasileira”. a ser procurados por membros de outras Para o comandante do CCC, o ataque foi universidades que pretendiam montar nú- um “ato patriótico” que obteve tanto êxito cleos semelhantes. No primeiro semestre quanto a peça: “Foi um gesto cultural. An- de 68, depois de uma depredação na Facul- tecipou o AI-5 e cortou a via subversiva que o teatro estava seguindo”. (FLAQUER apud GIRON, 17 jul. 1993, p. 1) Na visão do líder do CCC, a organiza- ção, fundada em 1963, na Faculdade de Direito da USP, originou-se de um movimento idea- lista da juventude universitária que pretendia dar voz e segurança à “direita li- beral”. O nome veio de uma brincadeira com a sigla “CCCP” – da União das Repúblicas Socialis- tas Soviéticas.

O CCC atuava no âm- Folha de S. Paulo, 19 de bito do Largo São Francis- julho de 1993, Ilustrada 206

dade de Direito da USP, Flaquer procurou O ator Antônio Pedro declarou a Giron refúgio no cassino dos oficiais do Exército. que, no meio da apresentação, “um sujei- Lá encontrou um general que disse que o to gritou: ‘desce daí que eu vou te dar uma conhecia de nome e, a partir daí, o CCC porrada!’. Eu senti a coisa pesando”. Foi o transformou-se em um comando paramili- líder do CCC que impediu um de seus com- tar, treinado pelo Exército e pela FAB para panheiros de agredir os atores em cena: ajudar a combater a luta armada – o gru- “Nosso pessoal estava irritado. As atrizes po que atacou o Roda Viva, por exemplo, avançavam nos homens, convidando-os a recebeu treinamento em Cotia. A organi- fazer a revolução na cama. Isso deixou mui- zação chegou a contar com 500 homens, tos companheiros nervosos”. (FLAQUER distribuídos em cinco ordenações. Flaquer apud GIRON, 1993) era o coordenador-geral. Com o decreto do Ao final do espetáculo, com duração AI-5, o CCC se desmobilizou. de duas horas e meia, os homens do CCC João Marcos Monteiro Flaquer morreu vestiram luvas na mão esquerda para po- em 24 de abril de 1999, vítima de um infarto derem identificar-se entre si. Esperaram o fulminante, aos 55 anos. Seu “grande feito”, público sair e receberam a ordem do co- porém, continua uma mácula na história do mandante para iniciar o quebra-quebra: teatro brasileiro. Nas palavras do advogado: cinco atiradores ficaram ao fundo, cinco A peça era uma droga. Só gente feia. O elen- destruíram o equipamento do auditório – co agredia o público. Um general foi ofendi- cadeiras, extintores, os cenários – enquan- do quando se retirou da peça. […] Mas fazia to outros foram para os camarins agredir o sucesso e isso nos interessava. O CCC estudou por cinco semanas o espaço do teatro. Preci- elenco. sávamos garantir a integridade do público. Os atores receberiam apenas um susto. (FLAQUER Flaquer subiu aos camarins, para, segundo ele, apud GIRON, 1993) evitar abusos. “Um companheiro quis estuprar uma atriz, mas eu impedi.” Foi o último a sair. Flaquer contou que, na noite do dia Consultou o relógio: a ação havia durado três 18 de julho de 1968, 110 homens estavam minutos. Naquela madrugada, os participantes da operação se reuniram num terreno perto da preparados – 70 civis e 40 militares –, to- Paulista para fazerem a avaliação. “Atingimos dos armados com cassetetes, revólveres e nossa meta”, comemorou o comandante. “Não metralhadoras. À frente do teatro ficaram houve feridos graves e fizemos barulho.” O orgulho continua hoje: “Foi a ação maior do 20 deles e mais dez na Rua dos Ingleses. O CCC”. José Celso reconhece: “O CCC venceu. restante se posicionou na Rua 13 de Maio, Uma geração inteira do teatro foi tragada”. (GI- para facilitar a fuga. RON, 1993) 207

Ao ler as diversas narrativas da mídia encontrar respostas, por mais paradoxal sobre a invasão de Roda Viva, encontramos que isto seja, para o mesmo problema: a a locução de várias vozes dissonantes: dos preservação do sistema sociopolítico bra- artistas teatrais, dos críticos, dos homens do sileiro – uns queriam protegê-lo da esquer- CCC e dos jornalistas que cobriram o caso da, outros queriam protegê-lo da direita. – profissionais que, desde o momento da Retomando Patrick Charaudeau (2006, p. escolha de suas fontes, decidiram qual tipo 69), todos os grupos tinham a intenção de de discurso deveria ser reportado de acordo convencer e de provar que o que havia com suas crenças. sido reportado era verdadeiro. Isso porque, como no caso das outras Na época, o caso repercutiu até no Rio duas peças analisadas, um certo número de Janeiro, onde foi publicada uma crôni- de pessoas detectou a existência de um ca de Nelson Rodrigues, no dia 23 de julho problema coletivo e decidiu se posicio- de 1968. Nela, o dramaturgo, que sempre nar frente a ele. Trata-se aqui de uma tí- esteve às voltas com a Censura, prenun- pica manifestação do “ethos de classe” de ciava um sentimento que seria comum a Bourdieu (1983, p. 143). Em Roda Viva uma boa parte da nação: “De repente, co- fica evidente como cada grupo desenvol- meçamos a sentir que o Brasil deixou de veu seu próprio sistema de valores implí- ser o Brasil”. (RODRIGUES apud GIRON, citos, a partir do qual foram capazes de 1993) 208 Capítulo 5 Aquilo de que não se fala, não existe 209

Censura/Exame Prévio foi uma organização policial criminosa encarregada de atirar a matar contra todas as construções sintáticas que desviassem da gramáti- ca do regime, um regime de ricos mentais e atrasados mentais CÉSAR PRÍNCIPE (1999, p.4)

5.1 O cenário português pal “Cum ad nihil magis”, de 23 de maio de 1536. Quinze anos depois, Portugal pu- A história da censura institucionalizada blica seu primeiro índice de livros proibi- e da perseguição às liberdades individu- dos – na época, o mais volumoso, o mais ais em Portugal remete ao século XV. Luís minucioso e o menos liberal dos catálogos Humberto Marcos, autor do livro Imprensa, de livros proibidos editados em países ca- Censura e Liberdade – 5 séculos de Histó- tólicos. Consta nesse índice a proibição de ria, apresenta os seguintes dados: sete autos de Gil Vicente – considerado o No seu conjunto, foram quase 450 anos (437) de censura em cerca de 500 anos de imprensa primeiro grande dramaturgo português. em Portugal. Ou seja, quase 90% do tempo de O peso da censura cai até sobre Luís de produção intelectual portuguesa, entre a apli- Camões. Em 1572, a primeira edição de Os cação da arte de Gutenberg e 1974, foi mar- Lusíadas é publicada sem cortes, porém, 12 cado pelo policiamento dos censores. Isto, se tivermos presente, do ponto de vista histórico, anos mais tarde, a obra tem sua segunda que a primeira determinação de censura prévia edição impressa com várias passagens cen- documentada data de 1537, privilégio de im- suradas, principalmente aquelas que dizem pressão outorgado a Baltazar Dias por D. João III”. (MARCOS, 1999, p.11) respeito à Ilha dos Amores e às passagens mitológicas. Data de 1451, um alvará de D. Afonso No campo das artes cênicas, em 1739, V que manda queimar “livros falsos e heré- depois de um processo conturbado, outro ticos”. Ainda no século XV, entre os anos dramaturgo, António José da Silva – conhe- de 1496 a 1498, os judeus, chamados "infi- cido como “o Judeu” e apontado por mui- éis", têm que se converter à força em "cris- tos como o melhor comediógrafo depois tãos novos". de Gil Vicente – é condenado a morrer por Após vários pedidos da Coroa, a Inqui- garrote, aos 34 anos, num auto de fé reali- sição portuguesa é instituída pela bula pa- zado em Lisboa. 210

A Inquisição portuguesa, com duração tória: “Este número foi visado pela Comis- de quase três séculos, é formalmente extin- são de Censura” – frase que permanece na ta um ano depois da Revolução Liberal de mídia impressa até junho de 1972, quando 1820. A Censura, porém, não acaba junto é substituída pela terminologia eufemísti- com ela – pelo contrário, estrutura-se em ca do governo de Marcello Caetano: “Este outras instâncias e continua a existir reves- jornal foi sujeito a exame prévio”. tida de diversas roupagens. Mas, nos seus primeiros anos, a Dita- Durante o século XX, Portugal é palco dura Nacional não é capaz de estabilizar de várias mudanças políticas e golpes de a situação econômico-financeira em Portu- estado. O primeiro deles se dá em de 5 de gal. Em 1928, em busca de uma solução outubro de 1910 e põe termo à monarquia administrativa, é convidado um professor constitucional com a proclamação da Re- de Coimbra, António de Oliveira Salazar, pública Portuguesa. A Primeira República, para assumir as funções de Ministro das vigente entre 1910 e 1926, devido a diver- Finanças. gências internas entre os republicanos que Salazar obtém equilíbrio nas finanças tomaram o poder, mostrou-se um sistema públicas e a estabilidade do escudo por- político instável a ponto de, num período tuguês e, gradualmente, vai ganhando do- de 16 anos, ter constituído sete Parlamen- mínio sobre as estruturas do Estado. Seu tos, oito Presidentes da República e 45 prestígio é consolidado em 1932, com sua governos. nomeação como Presidente do Conselho Essa instabilidade política tem como re- de Ministros (Primeiro-Ministro). Neste sultado o Golpe de 28 de maio de 1926, mesmo ano, em entrevista ao jornalista An- movimento militar nacionalista e antipar- tónio Ferro, Salazar diz com todas as letras lamentar que, sob o comando do general que “autoridade e liberdade são dois con- Gomes da Costa, acaba com a Primeira Re- ceitos incompatíveis… Onde existe uma pública Portuguesa, levando à implantação não pode existir a outra” (SALAZAR, 1933, da autodenominada Ditadura Nacional. apud FORTE, 2000, p. 23). Dentre as primeiras medidas do novo E é por desejo voluntário da popula- regime está a dissolução do Parlamen- ção, por meio de um plebiscito nacional, to e a suspensão das liberdades políticas realizado dia 19 de março de 1933, que e individuais. A partir de 24 de junho de o regime consegue a implantação de uma 1926, todos os jornais à venda passam a nova Constituição em Portugal. O governo apresentar a seguinte informação obriga- português liderado por Salazar, dentro da 211

legalidade, instaura mediante o voto uma recusar, em assuntos de interesse nacional, a das ditaduras mais longas da Europa. inserção de notas oficiosas de dimensões co- muns que lhe sejam enviadas pelo governo. A Constituição de 1933 – sancionada (REPÚBLICA PORTUGUESA, 1933, p. 9) dia 11 de abril – marca o início do perío- do histórico conhecido como Estado Novo, Desta forma, a opinião pública passa regime que se mantém no poder em Portu- então a ser considerada, formal e institu- gal até a Revolução dos Cravos, de 25 de cionalmente, como uma questão de Estado. abril de 1974. Em seu texto, a Carta Magna Está assim instituída constitucionalmente a Portuguesa garante “a liberdade de expres- censura à imprensa em Portugal. são do pensamento sob qualquer forma” (REPÚBLICA PORTUGUESA, 1933, p. 5). Essa é também a primeira constituição por- 5.2 A Censura no Estado Novo tuguesa a dar o direito de voto às mulheres O Secretariado da Propaganda Nacio- e a assegurar determinadas regalias para as nal (SPN) foi criado em 25 de setembro de chamadas classes operárias. Mas, apesar do 1933, diretamente subordinado ao Presi- texto aparentemente liberal, o § 2.º, artigo dente do Conselho – Salazar – e extinto 8.º, Título II traz o seguinte aviso: em 1944 para ser integrado ao recém-cria- Leis especiais regularão o exercício da liberda- do Secretariado Nacional de Informação, de de expressão do pensamento, de ensino, de Cultura Popular e Turismo (SNI). O SPN, reunião e de associação, devendo, quanto à pri- concebido para “integrar os portugueses meira, impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de no pensamento moral que deve dirigir a força social, e salvaguardar a integridade moral Nação”, tinha duas funções primordiais: dos cidadãos […]. (REPÚBLICA PORTUGUESA, 1) ser o aparelho central de fiscalização e 1933, p. 6) censura de todas as formas de expressão Para mostrar a relevância da opinião pública, independentemente da sua natu- pública para o regime, o texto da Constitui- reza: jornalística, literária ou artística; 2) ção de 1933 dedica-lhe mais dois artigos: coordenação e dinamização da propagan- Art. 20. º A opinião pública é elemento fun- da do regime, internamente e no exterior, damental da política e administração do País, divulgando os valores políticos, ideológi- incumbindo ao Estado defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a cos e culturais do Estado Novo. (AZEVE- justiça, a boa administração e o bem comum. DO, 1999, p. 155)

Art. 21. º A imprensa exerce uma função de ca- […] os governos para os quais, como entre ráter público, por virtude da qual não poderá nós, à opinião é atribuída constitucionalmente 212

uma função de força social, têm de evitar a Por lei, a imprensa devidamente autoriza- sua perversão. E têm também de defender o da – jornais, revistas, ilustrações, magazines interesse nacional. O direito reconhecido ao jornalista ou ao escritor não pode aspirar ao e publicações semelhantes – independente- absoluto e tem de ser enquadrado naquelas mente da periodicidade, estava sujeita à cen- duas necessidades essenciais. O problema é sura prévia exercida por um corpo de funcio- extraordinariamente difícil e não se lhes en- controu em parte alguma solução satisfatória, nários do Estado, de um modo geral, oficiais porque, além de um aspecto subjetivo que não de baixa patente e sargentos do Exército. se pode eliminar – a minha verdade, a tua ver- De tão lavados pela Censura, os jornais chega- dade – há interesses econômicos e interesses vam às mãos dos portugueses como se viessem políticos vastíssimos e perturbadores na for- de um país em que não acontecia nada, e daí mulação e venda da informação e da doutrina, que se parecessem uns com os outros, a ponto distribuídas depois ao domicílio, e de que os de podermos dizer que, na monotonia, todos países têm por vezes de acautelar-se, se qui- eram iguais, porque todos publicavam apenas serem salvar a alma e sobreviver.” (SALAZAR, o que lhes era consentido pela Censura e pela 1958, apud AZEVEDO, 1999, p. 340 e 341) Secretaria de Estado da Presidência do Conse- lho [...]. (AZEVEDO, 1999, p. 70) É curioso notar que Salazar confiou a responsabilidade de organizar e de dirigir o Pela via da coação administrativa e do SPN, órgão central dos serviços de propa- constrangimento econômico, o regime pro- ganda do regime, a António Ferro – jornalis- curava impor uma autocensura de raiz aos ta, político e escritor, considerado por seus jornalistas. As empresas editoras de jornais contemporâneos como um homem de ação e revistas, para além das pesadas multas em e de talento. Com a perspectiva educativa que podiam incorrer, estavam sujeitas a ver de reforçar a ideia de um Estado forte, uno, o confisco, pela Censura, das respectivas corporativo, cristão, imperial, nacionalista, publicações. Os prejuízos não só punham sem diversidades partidárias, António Ferro em causa a viabilidade econômico-finan- implantou o projeto Teatro do Povo – um ceira das empresas, mas também funcio- “teatro ambulante” que, inserido na “Polí- navam como meio suplementar de pressão tica do Espírito” do SPN de 1936 a 1955, sobre os escritores, jornalistas, chefias de serviu à propaganda do regime. redação e empresas, reforçando os respec- A Censura em Portugal teve uma área tivos reflexos de autocensura. de atuação vastíssima e abarcava, pratica- Em entrevista ao jornal Diário de Notí- mente, todas as formas de manifestação in- cias em 1945, Salazar justificava a Censura telectual: cultural, social, política, religiosa com o seguinte argumento: “Não é legítimo, e filosófica. por exemplo, que se deturpem os fatos, por 213

ignorância ou por má fé, para fundamentar contou que, no âmbito do funcionamento ataques injustificados à obra dum Governo, da censura à imprensa, a regra era: “Aquilo com prejuízo para os interesses do País. Se- de que não se fala, não existe”. ria o mesmo que reconhecer o direito à ca- Durante quarenta e oito anos, o regime baseou lúnia”. (SALAZAR, 1945, apud AZEVEDO, o seu poder na ignorância de determinadas coi- sas, fossem acontecimentos, situações, críticas, 1999, p. 336). E complementa explicando ideias, impedindo assim a polêmica e a discor- por que prefere a Censura à existência de dância. E não havia nenhum jornalista em Por- uma lei de imprensa: “Há males necessários tugal dessa época que tivesse hipótese de fugir […] Uma boa lei de imprensa pode reprimir do esquema de aprender a censurar o seu pró- prio pensamento e a sua própria necessidade certos abusos, mas não os evita […] (SALA- de expressão. ZAR, 1933, apud AZEVEDO, 1999, p. 338). Em outra entrevista, anos depois, o próprio Outro jornalista, José Carlos de Vascon- ditador reconhece que décadas de censura celos, que também deu o seu depoimento a sobre a imprensa deixaram suas marcas: Cândido de Azevedo (1999, p. 482), afirmou O Governo conseguiu disciplinar a imprensa, que a Censura procurava a todo custo impe- torná-la elemento construtivo e não uma força dir aos cidadãos conhecer a efetiva realidade deletéria, demolidora. Hoje, os nossos jornalis- do país. E, sobre a autocensura, disse que tas não precisam de censura, porque atuam não apenas nos termos da lei, mas segundo uma éti- mais importante era o que a Censura nem che- ca de comedimento, de equilíbrio, como con- gava a precisar de cortar, porque já não se es- vém ao interesse nacional. Dentro dessa linha, crevia, não valia a pena escrevê-lo, só acarre- todos os problemas e atos do Governo são li- taria mais prejuízos e levaria a mais cortes nou- vremente criticados. Não vejo nenhuma razão tras matérias. Assim, não se escrevia, porque para certos povos ou países se orgulharem de não se podia escrever, sobre quase nada o que alguns de seus órgãos de imprensa que se ex- tinha a ver com a realidade mais profunda do cedem na linguagem, que desrespeitam a figura País, sobre a forma como as pessoas viviam os do Presidente da República, injuriam as autori- problemas que tinham. dades constituídas comprometendo o prestígio dos governos dentro e fora do País. O jornalista César Príncipe, em entre- […]. Sabe-se que a censura é extraordinaria- mente benigna e que a maior parte das suas in- vista concedida dia 29 de junho de 2010, tervenções podia ser substituída pela demons- relata como era a metodologia da Censura tração da inconveniência da matéria a publicar à imprensa. O material internacional – os […] (SALAZAR, 1961, apud AZEVEDO, 1999, p. 341 e 342) telexes que vinham das agências interna- cionais – era todo censurado em Lisboa, Em depoimento a Cândido de Azevedo que distribuía o que fosse conveniente ao (1999, p. 364), o jornalista Mário Ventura regime para todo o país. Os periódicos na- 214

cionais mandavam as provas ao Serviço da César Príncipe publicou também um Censura através de um contínuo. Ao fim livro com as determinações dos censores de certo período, no mesmo dia, buscava- que colecionou, por anos, ao trabalhar no se o material que vinha com um carimbo Jornal de Notícias, do Porto. Num misto de de “proibido”, “livre” ou “suspenso”. A raiva e indignação, o jornalista exemplifica suspensão indicava a presença de material os assuntos normalmente censurados: suspeito, sobre o qual deveria haver maior A Censura era um preservativo do “velho regi- reflexão. Muitas vezes utilizavam a sus- me”. Os sintomatólogos oficiais relatorizavam o país como bacteriamente puro, radicalmente pensão para castigar o jornal: já que en- esterilizado, profilaticamente imunizado. viaram um material duvidoso, o qual já sa- “Não havia” EXAME PRÉVIO. Nem presos políti- biam que não se pode publicar, sofreriam cos. Nem suicídios. Nem barracas. Nem cólera. a sanção de ter que esperar pela Censura Nem aumentos de preços. Nem abortos. Nem guerra. Nem hippies. Nem crises. Nem mas- para fazer o fechamento. A interrupção no sacres. Nem nudismo. Nem inundações. Nem fluxo de edição do jornal podia acarretar febre amarela. Nem imperialismo. Nem fome. prejuízos imensos na produção, distribui- Nem violações. Nem poluição. Nem descarri- lamentos. Nem tifo. Nem Partido Comunista. ção e venda do veículo de comunicação Nem fraudes. Nem poisos extraconjugais. Nem afetado. Portanto, para além dos cortes, racismo. havia uma espécie de chantagem econô- [...] Era o país-ficção contra a evidência do país- mica, que pode ser considerada outro tipo real. Tudo era observado e classificado no mun- doscópio da CENSURA. (PRÍNCIPE, 1999, p.12) de censura. Os censores também tinham outros métodos de atuação. Nas palavras A pesquisadora Ana Cabrera lembra de César Príncipe, as instruções não fica- também que a imprensa, pela sua visibili- vam restritas à temática da proibição. Os dade estava exposta a muitas outras medi- censores também das cautelares:

davam instruções técnicas de jornalismo. Isto Os diretores dos jornais tinham que ser pessoas só pode sair nesta página, num canto, tantas do agrado do regime e a sua nomeação, embo- linhas. Chegavam a dizer as linhas com que ti- ra proposta pelas empresas, tinha que ter a ho- nha de sair. Diziam o número de toques que mologação dos serviços do ministério da tutela. deveria ter um título sobre tal tema. Diziam até Quando um novo título era lançado, impunha- a página em que deveria ser colocado – para se uma autorização e uma caução. (CABRERA, dar pouco relevo ao assunto. Davam instruções 2008) de técnicas de colocação do material, invadiam a organização interna e eram editores também. 5 Informação fornecida por César Príncipe, em en- Não eram só censores. Eram censores e edito- trevista concedida em Matosinhos, Portugal, dia 29 res. (informação verbal)5 de junho de 2010. 215

Hoje, temos um problema muito sério a censura salazarista continuou a agir para para estudar a Censura em Portugal. Isso além do 25 de abril de 1974: o decreto-lei se dá porque as provas documentais são 77, publicado em abril de 1981, autorizava escassas e as fontes do regime, em parte, o acesso aos arquivos de Salazar apenas em desapareceram. José Carlos de Vasconcelos 1995, ou seja, 25 anos após a sua morte. E relata: não foi só nesse terreno que o fantasma de Infelizmente, os próprios arquivos da Censura Salazar continuou a assombrar a realidade foram destruídos (assistimos a parte disso, im- portuguesa. potentes, da varanda do República, no dia 27 A pesquisadora Graça dos Santos acredi- de abril de 1974) ou desapareceram, os órgãos de comunicação social também não os tinham ta que a capacidade de interiorização do sa- organizados ou perderam-nos; não se pode fa- lazarismo e a sua forma de dominar corpos zer uma história relativamente completa das e almas acabou sufocando a personalidade, suas tropelias e malfeitorias. (in AZEVEDO, 1999, p. 488) de tal modo, que suas marcas perduram até os dias de hoje. (SANTOS, 2004, p.34) Citando Foucault, a história é o que transforma os documentos em monumen- tos e que, onde se decifravam traços deixados 5.3 O teatro português e a censura pelos homens, onde se tentava reconhecer no A censura prévia ao teatro funcionou recorte do vazio aquilo que os homens haviam sido, desdobra uma massa de elementos que se durante todo o Estado Novo e, mesmo su- trata de isolar, de agrupar, de tornar pertinentes, bordinada a outro órgão, foi tão incisiva de pôr em relação, de constituir em conjuntos. quanto a censura à imprensa. (FOUCAULT, 2005, p. 33) A censura aos teatros era feita pela Ins- E é muito difícil procurar reconstituir peção Geral dos Teatros e foi instituída em os monumentos do passado recente de um 1927, ligada ao Ministério do Interior, com país que viveu sob um regime ditatorial por poderes para suspender espetáculos e para quase 50 anos – essa tarefa torna-se ainda fiscalizar, à luz da “moral e dos bons cos- mais árdua pela proximidade dos fatos e tumes”, todos os recintos que abrigassem pela sua duração. espetáculos ou divertimentos públicos. Em O condicionamento imposto ao povo 1936, a Inspeção Geral dos Espetáculos português pela aplicação de uma censura passou para a supervisão do Ministério da multitentacular acarretou danos irreparáveis Educação Nacional. à memória cultural desse período. Em ter- Atuando de modo idêntico à legislação mos de investigação científica do período, vigente no Brasil, a metodologia censória 216

em Portugal, para qualquer atividade cul- indicações que recebiam do novo Secretá- tural ou de lazer público, também obriga- rio Nacional do SNI, Eurico Simões Serra, va os interessados, após o pagamento de antigo censor. diversas taxas, a efetuar um requerimen- Nesse período, a ação sobre o teatro to para submeter os originais e receber tornou-se mais dura e houve um aumento o visto de aprovação da censura teatral. do número de peças proibidas, dos cortes Os censores podiam aprovar totalmente, e, principalmente, da intervenção dos cen- aprovar com cortes ou interditar. As peças sores sobre as peças em cena. Ana Cabre- interditadas ficavam proibidas de ser re- ra ressalta que nesse momento “o rigor dos presentadas em todo o território nacional. censores recrudesce em relação aos aspec- Depois da aprovação do texto, os censo- tos de natureza moral e de natureza políti- res compareciam ao ensaio geral para uma ca, tanto mais que a candidatura de Hum- verificação dos cenários, dos adereços e berto Delgado6 à Presidência da República figurinos e, obviamente, se os cortes foram estava a provocar um ‘terremoto político’”. respeitados. (CABRERA, 2009, p. 29) Ainda assim, o inspetor-geral dos teatros e os funcionários seus delegados tinham livre aces- 6 Humberto da Silva Delgado (1906-1965) foi um so a qualquer espetáculo, mediante a apresen- militar português da Força Aérea que corporizou o tação do seu cartão de identidade. Esses fun- principal movimento de tentativa de derrubada da cionários tinham direito ao uso e porte de arma ditadura salazarista através de eleições em 1958. quando em serviço de fiscalização. Para além Foi derrotado nas urnas num processo eleitoral da intimidação que resultava do uso e porte fraudulento que deu a vitória ao candidato do re- de arma, a fiscalização aos espetáculos era, de gime ditatorial vigente, Américo Tomás. Depois fato, permanente e ia muito para além do en- das eleições, o Governo suspende-o do serviço saio geral, porque em qualquer altura os censo- ativo em janeiro de 1959 e, perante a perspectiva res podiam estar presentes ao espetáculo e usar de ser preso, refugia-se na Embaixada do Brasil. os seus poderes. (CABRERA, 2008, p. 36) em 1963 deixou o Brasil e seguiu para a Argélia, onde assumiu a chefia da Junta Revolucionária Em 1957, as Comissões de Censura fo- Portuguesa, entidade criada para congregar os ram transferidas para a Comissão de Exame vários ideários no exílio. Foi assassinado com a e Classificação de Espetáculos. Dois anos sua secretária Arajaryr Campos, em fevereiro de 1965, nas proximidades de Olivença (município depois, a Inspeção Geral dos Espetáculos em zona fronteiriça entre Portugal e Espanha), por (Decreto-Lei n. 42663, de 1959) foi integra- um grupo de agentes da PIDE, atraído por uma da ao Secretariado Nacional de Informação suposta reunião com militares portugueses. 7 Informação fornecida por Vicente Batalha em en- como organismo autônomo. As práticas dos trevista concedida em Santarém, Portugal, em 12 censores passaram a ser orientadas pelas de agosto de 2010. 217

A Comissão orientou-se, então, para to mais força do que pegar um livro… Muitas uma supervisão sistemática aos espetácu- vezes, a pessoa lê um texto e não se entusias- ma. Mas ao ver o mesmo texto representado los, tanto por parte dos censores como por consegue perceber a sua verdadeira dimensão. parte da Inspeção aos Espetáculos. Afinal, o texto teatral nasceu para ser represen- tado, não para estar num livro, não é impresso O teatro português é reduzido a uma arte me- que ele cumpre a sua função. O texto teatral nor, ‘um teatro castrado’. É antes do mais um só se cumpre inteiramente quando vai à cena. teatro obrigado a fugir à realidade, na medida (informação verbal)7 em que a Censura não autoriza nada que ponha em causa o sistema. (SANTOS, 2004, p. 29) Sob a ação do Estado Novo, até a dé- cada de 40, a atividade teatral portuguesa Uma prática muito comum em Portu- concentrou-se exclusivamente na capital e gal era publicar em livro o texto das peças todo o resto do país permanecia no vazio e depois submeter o material impresso à cultural. E o Teatro do Povo do governo Censura quando a peça fosse ser encenada. salazarista, Tanto é que, nos processos de censura do propondo-se levar o espetáculo teatral às mais SNI, encontramos livros impressos como os remotas zonas do país, correspondia a uma ne- originais teatrais a serem examinados. Para cessidade séria, porém desvirtuada pela seleção limitativa do repertório que, salvo em raros ca- Bernardo Santareno, como o teatro é ação sos, se caracterizou por um moralismo primário por excelência e provoca uma reação viva e por um folclorismo medíocre, quando não da parte dos espectadores, é que por um didatismo de baixo nível. (SANTOS, 2004, p. 172-173) em países de certa estrutura política, o teatro é a mais perseguida e censurada de todas as Em Lisboa, as companhias ou empresas artes: a peça publicada em livro… ainda vá lá! mas não a representação. O teatro é realmente privadas de teatro, pouco preocupadas com a mais viva, a mais reativa, logo a mais desmi- o valor artístico, preferiam montar espetácu- tificadora e perigosa de todas as artes. O que los com potencialidade para encher as sa- o dramaturgo tem para comunicar, gosta de o dizer cara a cara, olhos nos olhos, mãos nas las. De uma forma geral, sob o Estado Novo, mãos. (SANTARENO, 1963, p. 11) as condições não eram as mais favoráveis ao teatro. No que toca à representação, o E Vicente Batalha – ator, encenador e teatro português era dominado pela com- presidente do Instituto Bernardo Santare- panhia Reis Colaço-Robles Monteiro, que no – complementa: Não é por acaso que o teatro foi, desde sempre, 7 Informação fornecida por Vicente Batalha em en- o inimigo número um dos ditadores. O dizer trevista concedida em Santarém, Portugal, em 12 a coisa olhos nos olhos, cara a cara, tem mui- de agosto de 2010. 218

seguia uma linha clássica. Para além deste Na década de 50, com o objetivo de e do teatro de revista, havia poucas possi- estimular a formação de agrupamentos ar- bilidades de pôr em cena teatro de tendên- tísticos homogêneos e, consequentemente, cias alternativas. Além disso, a forte ação o renascimento do gosto do público pelos censória também colaborava para tornar a espetáculos teatrais de bom nível, o regime arte dramática portuguesa inexpressiva. Fer- adotou uma nova política teatral: a criação nando Gusmão (1919-2002), ator e diretor do Fundo de Teatro, em 1950, e a extinção teatral português, contou em 1948, em seu do Teatro do Povo, em 1955. livro de memórias: O Fundo de Teatro, presidido pelo Se- O nosso teatro era um teatro velho e de velhos, cretário Nacional da Informação, funcionou salvo uma ou outra exceção que apenas eram nas instalações do SNI. Tratava-se de um fogachos no meio de tanta mediocridade. É claro que tudo isso era devido, em parte, a um apoio financeiro que foi se concretizando público pouco esclarecido, a quem os empre- muito lentamente, condicionado por uma sários, cujo único interesse era o lucro, “bom- regulamentação, muitas vezes, impeditiva. bardeavam” com espetáculos que somente fi- zessem “cócegas na barriga”, mas cuja culpa Na verdade, foi a criação da Fundação maior ia inteira para o Estado Novo que, com a Calouste Gulbenkian em 1956 que abriu bota de ferro da Censura, desejava que continu- novos horizontes ao teatro português, em asse dessa maneira. Nos palcos, os espetáculos eram desoladores e particular com os subsídios concedidos ao atingiam até a inverossimilhança e o ridículo, teatro experimental e ao teatro universitário. ao verem-se atores velhos de sessenta anos a Surgiram, então, vários grupos, como o Tea- interpretarem personagens de jovens galãs de tro Experimental do Porto (1953, dirigido por vinte anos que as peças exigiam. (GUSMÃO, 1993, p. 77-78) António Pedro), Teatro Experimental de Cas- cais (1965), Teatro-Estúdio de Lisboa (1964), Júlio Gago, ator, diretor teatral, presi- Os Bonecreiros (1971), Comuna (1971), Cor- dente e diretor artístico do Teatro Experi- nucópia (1973) e Seiva Trupe (1973). Estas mental do Porto (TEP), relata que, por conta companhias (algumas existem até hoje) in- da Censura, troduziram uma nova linguagem teatral no O teatro que se fazia em Portugal era extrema- mente fraco. E não eram só os contemporâneos que estavam proibidos. Havia até alguns autores 8 De fato, esta peça de teatro foi escrita por Manuel portugueses nomeadamente do século XIX com Teixeira Gomes em 1905. proibição absoluta. Caso, por exemplo, da Sa- bina Freire8 e outros textos que, de certa forma, 9 informação fornecida por Júlio Gago em entrevis- são lapidares e que estavam também proibidos. ta concedida em Vila Nova de Gaia, em 24 de (informação verbal)9 agosto de 2010. 219

universo português. Graça dos Santos acre- sentava junto com seus primos e primas. A dita que o fato de a reinvenção da prática te- ausência do pai por longos períodos de tem- atral ter sido lançada e formulada pelo teatro po gerava uma forte instabilidade econômi- amador é um reflexo do desgaste das estrutu- ca na família Rosário. Como esteio, o rapaz ras que então sustentavam o teatro em Portu- tinha a seu lado a figura materna, uma mu- gal. Era necessário encontrar outras fórmulas lher simples e de formação católica. E foi diferentes das companhias profissionais para por influência da mãe que Santareno tor- reformular o cenário artístico do país. (SAN- nou-se profundamente religioso. Houve até TOS, 2004, p. 341) um momento em sua vida que, com a aju- E foi nesse contexto que surgiu A Pro- da de sua madrinha, entrou num seminário. messa, de Bernardo Santareno. A peça, Logo que soube da notícia ao ser libertado encenada pelo Teatro Experimental do da prisão de Tarrafal, seu pai foi, armado Porto com apoio da Fundação Calouste de pistola, tirar o filho do seminário, contra Gulbenkian10, foi “uma pedrada no charco a vontade dos padres. Porém, as excentrici- para o teatro português, que estava comple- dades do Sr. Joaquim não paravam por aí. tamente estagnado”. (informação verbal)11 Junto com mais três ou quatro amigos, foi ao Santuário de Fátima arrancar a azinheira na qual dizia-se que havia aparecido Nossa 5.4 Bernardo Santareno Senhora. O grupo trouxe a árvore cortada Bernardo Santareno é o pseudônimo de de Fátima até Santarém e, no principal lar- António Martinho do Rosário, nascido em go da cidade, andaram com a azinheira em Santarém, em 1920, filho de Maria Ven- cortejo e cortaram-na na frente de todos. tura Lavareda e de Joaquim Martinho do Foi um escândalo na cidade e Martinho do Rosário. Rosário tornou-se um anátema. O menino António teve a infância e a adolescência atribuladas pelas convicções 10 A Fundação Calouste Gulbenkian é uma institui- políticas de seu pai, Joaquim Martinho do ção portuguesa de direito privado e utilidade pú- Rosário, um republicano, grande oposicio- blica, com sede em Lisboa, cujos fins estatutários nista do regime e visceralmente anticleri- são a Arte, a Beneficência, a Ciência e a Educação. Criada por disposição testamentária de Calouste cal, que foi preso por várias vezes. Porém, Sarkis Gulbenkian, os seus estatutos foram aprova- desde muito cedo, manifestou uma grande dos pelo Estado Português a 18 de julho de 1956. inclinação para o teatro – por volta dos 12 11 C f. Vicente Batalha, Santarém, em 12 de agosto de anos escrevia embriões de peças que repre- 2010. 220

Por toda a vida, Santareno viu-se divi- gava-se na sua fé para não colidir com o marido. dido entre a revolucionária figura paterna e Era uma mulher que passou a vida de anulação e de dependência perante aquela personalidade a doce figura materna, um conflito perma- fortíssima que era o pai. (informação verbal)13 nente entre o masculino e o feminino, entre o anticlerical e a religião. Em meio a essas contradições, surgiu Em Santarém, estudou até 1939 no Liceu uma outra personalidade para além do Nacional de Sá da Bandeira, onde organi- médico: a do escritor e dramaturgo, sob o zava récitas com os textos que escrevia. Es- pseudônimo de Bernardo Santareno. Para tas foram suas primeiras peças apresentadas Vicente Batalha, Bernardo é uma homena- em público. Apesar de sempre ter desejado gem à grande devoção a São Bernardo na fazer o curso de Letras e ser escritor, San- terra de seus avós – onde ele deu os primei- tareno frequentou os cursos preparatórios ros passos no teatro – e Santareno homena- para a Faculdade de Medicina, na Univer- geia à cidade de Santarém. sidade de Lisboa, por vontade do pai. Em Podemos também inferir uma outra 1945, transferiu-se para a Universidade de interpretação possível sobre a origem do Coimbra, na qual se licenciou em medicina pseudônimo. Bernardo de Sá Nogueira de psiquiátrica em 1950. Vicente Batalha que, Figueiredo, nascido em Santarém (1795 - quando jovem, costumava sentar-se junto a 1876), foi o primeiro barão (1833), o primei- Santareno numa pastelaria, para ouvir algu- ro visconde (1834) e o primeiro marquês de mas de suas histórias que ficaram por contar, Sá da Bandeira (1854) – título que dá nome acredita que a Psiquiatria não foi uma esco- ao Liceu Nacional de Sá da Bandeira, lo- lha aleatória do Dr. António Martinho do cal onde António Martinho do Rosário es- Rosário. Santareno era homossexual e teve tudou na juventude. Trata-se de um militar grandes problemas com a sua sexualidade12. e político, líder do Movimento Setembrista Sua orientação sexual foi determinante na em Portugal, que perdeu o braço direito no primeira fase de sua obra e está presente em

O pecado de João Agonia e A Promessa. 12 Importante lembrar que, até 1973, a orientação A Psiquiatria veio suprir a necessidade sexual não-heterossexual constava na lista de do- que Santareno tinha de estudar os compor- enças mentais nos Estados Unidos e só foi remo- vida da Revista de Classificação Internacional de tamentos, de aprofundar os mecanismos Doenças, editada pela Organização Mundial da humanos e suas contradições. Saúde (OMS), em 1993.

Ele era um católico fervoroso com um pai mili- 13 C f. Vicente Batalha, Santarém, em 12 de agosto de tante anticlerical, uma mãe subserviente que apa- 2010. 221

Alto da Bandeira, em 1832, durante o Cer- dois ciclos. O primeiro insere-se em um co do Porto nas Guerras Liberais. Uma vez naturalismo poético, apoiado numa lin- que o Marquês de Sá da Bandeira tinha Ber- guagem coloquial e estruturado sobre uma nardo como primeiro nome e era natural de problemática sexual – com temas como o Santarém, é razoável pressupor que Bernar- adultério, a virgindade, o papel da mulher do Santareno possa ser uma homenagem a no casamento e a moral religiosa – e cuja essa figura libertária, um verdadeiro expo- ação tende a finais trágicos. Fazem parte ente de sua cidade natal. desse ciclo: A Promessa, O Bailarino, A Ex- Como escritor, Bernardo Santareno co- comungada – publicadas no mesmo livro meçou por publicar poesia (Morte na Raiz (1957); O Lugre, O Crime de Aldeia Velha em 1954, Romances do Mar em 1955 e (1959); António Marinheiro ou o Édipo de Os Olhos da Víbora em 1957). O próprio Alfama (1960); Os Anjos e o Sangue, O Santareno, contudo, tinha a consciência Duelo, O Pecado de João Agonia (1961); e de que não era bom poeta e parou por aí. Anunciação (1962). Data de 1957 a sua primeira peça tea- A partir de 1966, inspirado em Brecht, o tral: A Promessa, inspirada pelo universo trabalho do dramaturgo passa a ser molda- dos pescadores da Praia da Nazaré, dis- do pelo teatro épico adaptado ao seu estilo trito de Leiria. Naquela altura, a profissão próprio, tendo como temática os processos de médico não corria muito bem. Depois sociais turbulentos. Este ciclo é inaugurado de formado em Coimbra, abriu seu pró- com a peça O Judeu, um retrato do calvá- prio consultório, mas teve muita dificul- rio do dramaturgo setecentista António José dade em estabelecer-se. Para se manter, da Silva, executado pelo Santo Ofício. As conseguiu empregar-se como médico nas outras peças são O Inferno (1967), A Trai- viagens de pesca ao bacalhau. Esse foi um ção do Padre Martinho (1969) e Português, período muito produtivo para o dramatur- Escritor, 45 Anos de Idade (1974) – drama go, que, mais uma vez, incorporou o mar autobiográfico e primeiro original teatral e o universo dos pescadores em algumas português a estrear depois de restaurada a de suas obras. A pesca do bacalhau foi te- ordem democrática no país. Em 1979, pu- mática para Lugre, peça teatral, e para seu blicou o livro Os Marginais e a Revolução, único livro de crônicas, Nos Mares do Fim uma compilação de quatro peças – Restos, do Mundo. A Confissão, Monsanto e Vida Breve em Segundo Vicente Batalha, a obra de Três Fotografias. Há ainda a peça O Pu- Bernardo Santareno pode ser dividida em nho, publicada em livro postumamente em 222

1987 – Bernardo Santareno faleceu em 29 natural e monstruoso. Nunca foi, nem pode ser de agosto de 1980. outra coisa. (SANTARENO, 1967, p. 633) Santareno teve muitas dificuldades com a Censura. Desiludido, em carta ao pai, Coerente com esse pensamento, Santa- escreve: reno sempre escreveu de acordo com esta definição e, assim sendo, teve poucas de […] aos quarenta anos, vou aguentar tudo, des- suas peças representadas no período do Es- conforto, solidão, incompreensão de quase to- dos, falta de dinheiro, tudo o mais que vier, mas tado Novo. O teatro que não estivesse em hei de realizar as minhas obras. conformidade com as regras estabelecidas Sei que tenho força suficiente para isso. Não era classificado no gênero “literatura dra- sou nem nunca serei um burguês (comer, dor- mir, ganhar dinheiro), um animal de capoeira. mática” e nunca chegaria a ser espetáculo. Não tenho inveja nenhuma dos colegas que E justamente por acreditar que o autor conseguiram essas coisas na vida. teatral deve escrever os seus dramas, que Sou e serei sempre cada vez mais fiel a mim deve tentar superar a falta da experiência próprio, custe o que custar, ainda que rebente. Proibiram-me O Duelo, proibiram-me O Peca- única e insubstituível que o palco lhe da- do de João Agonia e estão quase a proibir-me ria, é que Santareno sentia-se minimizado Os Anjos e o Sangue, não importa… (SANTA- artisticamente por escrever para a “gave- RENO, 1961)14 ta”. Vicente Batalha acredita que talvez O Pecado de João Agonia e O Duelo, a sua obra não tivesse tido, na época, a publicadas em 1961, só foram representa- expressão que merecia pelo cerceamento das dez anos depois. O Judeu, escrita em da Censura. E, mesmo assim, “para grande 1966, só estreou em janeiro de 1981, al- parte dos especialistas, Bernardo Santare- guns meses depois da morte de Santareno. no é o melhor dramaturgo português do Santareno foi um dos perseguidos pela século XX. Não temos uma obra tão sólida Censura e costumava queixar-se de que o como a sua. Ele é um expoente da drama- grande crime da prática censória era, preci- turgia”. (informação verbal)15 samente, impedi-lo de ver as suas criações representadas, pois só com a encenação um dramaturgo pode aperfeiçoar a sua técnica. 14 Informação obtida na exposição Bernardo Santa- Na revista O Tempo e o Modo, escreveu: reno, pseudônimo de António Martinho do Rosá- rio – vida e obra, na Biblioteca António Botto, em E agora cheguei onde queria chegar, falar da Abrantes, 12 de agosto de 2010. Censura. O que eu queria dizer aqui, era apenas isto: uma peça de teatro tem de ser conflito – 15 C f. Vicente Batalha, Santarém, em 12 de agosto de claro e escuro, belo e feio, verdade e mentira, 2010. 223

Deniz Jacinto, teatrólogo e um dos fun- em que a paixão e a imaginação possam arder dadores do Teatro dos Estudantes da Univer- livremente, até o fim, sem as limitações do co- tidiano: e assim, nesta ilha de luz, no Teatro, o sidade de Coimbra (TEUC), escreveu que homem, cada um de nós, pode ver-se realiza- ao primeiro contato, o teatro de Santareno dá do, cumprido integralmente, pode aferir a sua uma ideia de força e plenitude dramáticas rara- real potencialidade de paixão, saber de quanto mente atingidas entre nós. Meia dúzia de frases, amor e ódio, de quanto bem e mal é capaz; o e o público – leitor ou espectador – sente-se ar- Teatro dá-nos o desenho completo de nós mes- rastado na ação e adere ao conflito. (JACINTO, mos, a tragédia ou a comédia totais das nossas 1961, apud PORTO, 1997, p. 83) vidas prisioneiras. (SANTARENO, 1967, p. 10)

E foi trilhando o caminho da tragédia O reconhecimento público de seu ta- que Bernardo Santareno estreou nos palcos lento veio a partir de 1962, quando Santa- com A Promessa. reno foi distinguido com o Prêmio Imprensa por três anos consecutivos. Enquanto isso, António Martinho do Rosário, em 11 de ju- 5.5 A Promessa nho de 1963, começou a trabalhar como Às vésperas da estreia de A Promessa, o terapeuta de deficientes visuais na Funda- diretor da peça António Pedro16, em release ção Sain – primeiro centro de reabilitação para a imprensa local, escreve: de cegos adultos na Europa –, local em que trabalhou até sua morte. Vicente Ba- Se aferisse pelo meu entusiasmo por ela, o valor de uma peça, raras estariam colocadas talha lembra que há depoimentos de an- nessa tabela acima desta e, com certeza, ne- tigos pacientes contando que o Dr. Rosá- nhuma outra em Portugal. É que aqui, o que rio, costumeiramente, levava-os ao teatro é da poesia e o que é do teatro deram-se as mãos admiravelmente numa realização a que e transmitia-lhes o seu grande amor pela arte dramática. O teatro era algo visceral para o psiquiatra/dramaturgo, cuja crença 16 António Pedro (1909-1966) foi um importante di- era que retor teatral, escritor e artista plástico português, empenhado na criação de grupos de teatro, uni- cada homem, limitado e condicionado pela versitários e profissionais, e na divulgação teatral. estrutura ético-social, pelas contingências indi- Foi também um dos principais introdutores do Sur- viduais, como que vive uma vida incompleta, realismo e do teatro moderno em Portugal. medíocre, em relação à que ele secretamente operou uma revolução estética do teatro portu- aspira – a vida de cada um de nós é como uma guês do século XX, ao introduzir a encenação no tragédia truncada, ou uma comédia apenas es- teatro português, ou seja, estava a integrar no tea- boçada… E daí a profunda necessidade de, ao tro português um personagem que, embora surgi- lado da vida, existir um centro, um lugar, uma do no século XIX tinha já capital importância, que ilha de luz isolada no meio da cidade noturna, é o diretor de cena. 224

falta pouquíssimo para ser uma obra-prima. A jovem casal – Maria do Mar e José – faz poesia, o teatro e um conhecimento humano para que o pai do rapaz voltasse vivo de dessa gente humilde e honrada da borda de água que faz com que cada personagem seja, uma tempestade em alto-mar. Trata-se de a um tempo, paradigmática e individualizada, um drama no qual a principal personagem num equilíbrio de composição que deixa atô- feminina não aguenta mais reprimir seus nito quem sabe ser esta peça, senão a primeira, uma das primeiras do autor. desejos e sente-se rejeitada pela obstinação É pois com alegria de revelar o que suponho ser religiosa do marido. Eis que entra em cena o maior dramaturgo português, que o Teatro Ex- António Labareda, um jovem forasteiro que perimental do Porto inicia a sua atividade dessa época […]. 17 (PEDRO, 1957) foi encontrado ferido à bala. Muito bonito, sensual e irônico, Labareda tenta seduzir Júlio Gago comenta o entusiasmo com Maria do Mar e suscita a desconfiança do que António Pedro recebeu os originais de marido da jovem. Certo da traição, numa A Promessa, chegando mesmo ao exagero fúria de ciúme, José “cortou-lhe, primeiro, de considerar Bernardo Santareno como o as partes vergonhosas… E depois, acabou mais importante autor português de todos os de o matar, com três tiros no peito”. (SAN- tempos. Afinal, “não poderíamos jamais es- TARENO, 1991) Antes de ser preso, volta quecer personalidades anteriores como Gil para casa para contar à mulher o que fez Vicente, António José da Silva – o Judeu –, e, finalmente, quebrar a promessa de uma Almeida Garrett etc.”. (informação verbal)18 maneira feroz. Só aí José constata que Maria A Promessa, uma peça de três atos, foi do Mar era ainda virgem. Vicente Batalha, encenada pela primeira vez em 23 de no- ao comentar A Promessa, destaca que, para vembro de 1957, no Teatro Sá da Bandeira, muitos especialistas, Maria do Mar é a gran- no Porto. Surgiu com o peso dessa compa- de personagem feminina de Santareno. ração e foi logo reconhecida por todo o pú- A Maria do Mar é toda revolta, é instinto, é se- blico da época. Além de marcar a estreia xualidade, é um grito de libertação. É a mulher inquieta que acaba por vencer redimida como nos palcos de Bernardo Santareno, A Pro- uma santa, embora ainda continue a imperar messa era também a primeira apresentação a mentalidade retrógrada e tradicionalista das profissional do Teatro Experimental do Por- to – o TEP foi criado como grupo amador 17 Informação obtida na exposição Bernardo Santa- em 1955 e transformou-se em companhia reno, pseudônimo de António Martinho do Rosá- profissional em outubro de 1957. rio – vida e obra, na Biblioteca António Botto, em Abrantes, 12 de agosto de 2010. O enredo central da peça gira em tor- 18 Cf. Júlio Gago, Vila Nova de Gaia, Portugal, em 24 no de uma promessa de castidade que um de agosto de 2010. 225

velhas da aldeia, que no final da peça lhe ba- assunto nos ônibus, nos cafés, em toda a tem à porta para fazer imprecações e bruxarias. parte. A peça despertou grande interesse e (informação verbal)19 as pessoas punham-se a falar dela como se Cabe ressaltar o nome dos personagens discutissem um acontecimento futebolísti- escolhidos por Santareno: Maria é a prota- co qualquer ou um caso demasiado forte. gonista, José é o marido, Jesus é o cunhado Mesmo com grande afluxo de público, cego e Salvador é o sogro. E que a polêmica A Promessa teve apenas oito apresentações central de A Promessa é se Maria era vir- no Teatro Sá da Bandeira (em novembro, gem ou não. dias 23, 24, 25, 27, 28, 29 e 30; em de- Imediatamente após a estreia, surgiu zembro, dia 1º). Foram 7.500 espectadores uma fortíssima controvérsia nos órgãos da em oito dias num teatro cuja lotação era de comunicação social decorrente da proble- 1.043 lugares. Algumas fontes menciona- mática abordada na peça. Os protestos vi- ram que a Censura retirou a peça de cartaz. nham, sobretudo, a partir da Rádio Renas- Já Vicente Batalha é categórico ao afirmar cença – ainda hoje, emissora católica por- que não foi a Censura, mas sim a Igreja que tuguesa –, que proclamava os valores mais forçou a interdição da obra. conservadores da religião católica. No processo de A Promessa nos arqui- Segundo Vicente Batalha, foi um escân- vos do SNI, na Torre do Tombo, encontra- dalo terrível na época, depois que um pa- mos os seguintes documentos: dois ofícios dre encabeçou uma campanha de maneira do Círculo de Cultura Teatral datados de feroz na rádio pedindo a intervenção da 2 de novembro de 1957 – um deles, assi- Censura. Só que, ao contrário de suas pre- nado pelo diretor de cena António Pedro, tensões, o escândalo acabou por contribuir informava que a peça estava pronta para enormemente para o êxito do espetáculo. ser representada e o outro, assinado pelo Deniz Jacinto declara que, logo na es- presidente do CCT, solicitava o compare- treia, a peça “chocou o público e perturbou cimento do Subinspetor da Censura para a crítica, pouco habituada ao contato com a apreciação do ensaio geral, oferecendo verdadeiras forças da natureza”. (JACINTO, duas datas para a apresentação (dia 6 e dia 1961, apud PORTO, 1997, p. 83) 8 – o censor escolhe o dia 7) –; a Licença No Teatro Sá da Bandeira, no Porto, de Representação para maiores de 17 anos as pessoas faziam fila pela rua. Júlio Gago (neste documento a peça foi classificada no conta que há referências em diversos textos da época, de que A Promessa do TEP era 19 Cf. Vicente Batalha, Santarém, Portugal, 2010. 226

gênero comédia); o parecer do censor Álva- ro Saraiva; o livro da peça (texto a ser ana- lisado pela Comissão de Censura); e um curioso documento com o títu- lo de “Informação” as- sinado pelo “Inspetor”. As folhas timbradas com o parecer do censor traziam os seguintes cam- pos a serem preenchidos na análise do ensaio geral da peça: “Ação”; “Valor literá- rio”; “Valor dramático”; “Va- lor moral”; “Decisão que se propõe”. No caso do processo de A Promessa, foi preenchido à mão apenas o campo “Deci- são que se propõe”, texto que também é apresentado em cópia datilogra- fada (foi mantida a grafia original de todo o texto):

Parecer Exmo. Sr. Dr. Alvaro Saraiva, acerca da peça “A Promessa”, de Bernardo Santareno

No dia 7 do corrente, desloquei-me ao Porto a fim de assistir ao ensaio geral da peça de Ber- nardo Santareno, “A Promessa”, levada á cena pela Companhia de Teatro Experimental, de António Pedro. Não havia lido a peça, anteriormente, tendo sido informado apenas pelo telefone, que a mesma se encontrava aprovada para Adultos, sem cortes, por um membro da Comissão an- terior. 227

A impressão que colhi, durante o ensaio, foi a os subsídios do Secretariado Nacional de de que se trata de uma obra com real valor dra- Informação (SNI), as companhias teatrais mático e literário, como poucas vezes se terá visto em palcos portugueses, servida por um tinham que cumprir um calendário que desempenho da maior dignidade profissional. exigia um ritmo verdadeiramente alucinan- O tema é, sem dúvida, bastante ousado e há te de trabalho. Assim que passou a compa- cenas e expressões de certa crueza, mas julgo que, interpretadas devidamente dentro do clima nhia profissional com apoio do Fundo de geral da peça, não podem ser reputadas como Teatro, o TEP viveu uma temporada frenéti- ofensivas à moral. ca: em 23 de novembro de 1957 estreou A Parece-me difícil pôr a hipótese de introdução de cortes, dado o risco de se comprometer por essa forma, o equilíbrio da peça e prejudicar a intensidade dramática e o realismo de algumas cenas fundamentais. Lisboa, 11/11/1957 a) A. Saraiva

Note-se que, nessa época, o censor vi- nha designado de Lisboa ao Porto. Esse é também mais um reflexo da concentração da atividade teatral na capital portuguesa. Pode-se perceber que o Sr. Álvaro Sarai- va gostou muito do ensaio a que assistiu e atribuiu grande valor dramático e literário, além de coesão estrutural à obra. Portanto, o parecer da Censura foi muito favorável à peça e liberou-a sem cortes. O processo ainda contém um texto da- tilografado, emitido pelo Inspetor do Servi- ço Nacional de Informação, do qual trata- remos mais tarde. Mas, então, se não foi a Censura, por que A Promessa, uma peça que teve a casa cheia, ficou apenas oito dias em cartaz no Teatro Sá da Bandeira? Segundo o diretor artístico do TEP, Julio Gago, para receber Licença de Representação de A Promessa 228

Promessa. Já a 4 de Janeiro de 1958 subiu fissional no final de 1957, a direção apostou aos palcos com Jornada para à Noite, de num teatro de maior envergadura. Júlio Gago Eugene O'Neill. Vinte dias depois, estreou relata que A Bilha Quebrada, de Heinrich Von Kleist. o Teatro Sá da Bandeira era explorado por A 25 de Fevereiro era a vez de É Urgente o uma empresa mais vocacionada para o teatro Amor, de Luiz Francisco Rebello. E a 28 de comercial. E, de uma maneira geral, o TEP só Março, reapresentou A Morte de um Cai- pôde apresentar-se lá nos períodos entre duas produções comerciais. Portanto, não é possível xeiro Viajante, de Arthur Miller, obra que confirmar se a temporada de A Promessa esta- já havia sido montada pelo TEP em 1954. va planejada para apenas oito apresentações. Em 11 de Abril, no Teatro Sá da Bandei- Mas direi que, provavelmente, foram marcadas aquelas apresentações iniciais para lá e depois, ra, a companhia estreou no mesmo dia três se houvesse possibilidade, prolongava-se. (in- peças: Reginaldo, de António Pedro; Tudo formação verbal)21 Pode Acontecer, de Correia Alves e O Prín- cipe Feliz, de Oscar Wilde. Temos a evidência de que a peça não saiu de cartaz por determinação da Censura Isto é o que era imposto. Ora essa situação ab- surdamente alucinada acontece na mesma altura no anúncio publicado no Jornal de Notícias, em que o António Pedro, enquanto diretor artísti- dia 29 de novembro de 1957. No texto lê-se co do TEP, queria levar A Promessa a Lisboa. So- que “Rocha Brito conseguiu mais 3 únicos mente o ritmo das encenações, o ritmo de traba- lho já seria impeditivo de qualquer deslocamento dias de representações com a peça em 3 para fora do Porto. (informação verbal)20 actos e 3 quadros de Bernardo Santareno”.

No contexto dos espetáculos apresentados na época, de uma maneira geral, muitas montagens em Portugal caiam após a estreia. E poderiam cair por pressões, por cortes posteriores à estreia por parte da Censura e, muitas vezes, por fal- ta de público. Os produtores nunca tinham uma noção muito clara do que poderia ocorrer. O TEP, no período de teatro 20 amador, arrendou o Teatro de Bolso de 134 Cf. Júlio Gago em Vila Nova de Gaia, 2010. lugares. Quando se tornou companhia pro- 21 idem. 229

Ou seja, o anúncio informa que a tem- 5.6 A Promessa na imprensa porada foi, na verdade, estendida por mais Saíram apenas quatro artigos sobre três dias além do previsto. Quanto ao fato a peça na imprensa do Porto, no ano de da peça não ter ido em turnê para outras 1957: três no Jornal de Notícias, um em O cidades, Júlio Gago prossegue dizendo: Primeiro de Janeiro, nenhum no Comércio Eu não posso afirmar categoricamente que a Censura impediria o espetáculo de prosseguir do Porto – os três jornais diários de maior em outros locais, mas sabemos que a polêmica circulação da cidade. em torno de A Promessa mexeu ferozmente com Na véspera da estreia de A Promessa, o status, digamos, e poderia mesmo vir a ser im- pedida em outros locais. (informação verbal)22 no artigo intitulado “Uma peça portugue- sa”, Ramos de Almeida relata no Jornal de A autocensura era uma realidade tam- Notícias que bém ao teatro português. A Censura oficial “uma bicha interminável”, abeirava-se lenta- em Portugal não deixava muitos rastros, não mente da porta do “Teatro da Algibeira”, ali na gostava de deixar documentação. Os auto- Travessa de Passos Manuel. Eram os sócios do Teatro Experimental que iam buscar os seus bi- res e as companhias teatrais, na maioria das lhetes para o espetáculo de sábado com o qual vezes, não sabiam a razão pela qual as suas se inaugura a Temporada Teatral de 57/58. peças haviam sido interditadas. “Muitas Tanto demonstra só por si, sem mais argumen- tos, que existe um entusiasmo vivo e sempre vezes a resposta era ‘não’, está proibida e novo pela obra do “Círculo de Cultura Teatral” mais nada, sem qualquer explicação.” (in- e que essa obra é antes de mais nada realização formação verbal)23 colectiva da parte mais culta e mais civiliza- Por medo de prejuízos financeiros, da da nossa cidade. Essa “bicha interminável” assim o demonstrava, pois era composta, na quando havia a noção de que o texto pode- sua maioria, por escritores, artistas, jornalistas, ria ter problemas, muitas vezes avançava-se professores, médicos, advogados, engenheiros, para a autocensura. Júlio Gago recorda-se, estudantes, isto é, todo um escol intelectual in- satisfeito e ansioso. por exemplo, do caso do Canto do Espan- […] Bernardo Santareno surge no momento pró- talho Lusitano, de Peter Weiss, cujo texto prio. O Teatro Experimental vai lançar o Novo chegou a Portugal e ninguém o submeteu à e vai fazê-lo diante do exigente público do Por- Censura – simplesmente, porque o “espanta- to. Felicidades! É o que desejamos na certeza de que o espetáculo será pelo menos elevado e lho lusitano” era o regime salazarista e todos digno, como todos os outros. (RAMOS DE AL- sabiam que a peça não ia ser aprovada de MEIDA, 22 de novembro de 1957, p. 7). forma nenhuma. A autocensura então pode 22 ter desencorajado António Pedro a prosse- Cf. Júlio Gago em Vila Nova de Gaia, 2010. guir com a peça por outras cidades. 23 idem. 230

Os sócios aos quais Ramos de Almeida tro de dias no “Teatro da Algibeira” do CCT. se refere estão ligados ao Círculo de Cultu- Ora uma peça com responsabilidades de aber- tura, apontará pelo dedo de António Pedro… ra Teatral, uma associação que dirige o Te- necessariamente suscitava e concitava burburi- atro Experimental do Porto (TEP). E, como nho em volta. E foi como se viu… informava o anúncio do Jornal de Notícias, Esse “primeiro tema” é A Promessa – três actos e três quadros, de Bernardo Santareno. Quem a apresentação de estreia de A Promessa, é?! Quase ninguém sabia. Antes de a peça o no dia 23 de novembro, foi feita exclusi- ter apresentado, apresentava-o António Pedro vamente para os associados que, na épo- no intróitozinho do programa. E com que entu- siasmo, com que espanto, com que irregateável ca, contavam-se em torno de três mil. Eis convicção! o motivo de haver uma fila (“bicha”) “in- Na verdade, Bernardo Santareno é um jovem terminável” no dia anterior para pegar os dramaturgo que surge com autoridade surpre- ingressos. endente, na sua primeira peça, por assim dizer. Não queremos – nem podemos, neste momento A seguir, a íntegra dos textos publica- e neste sítio – deter-nos a discutir o tema, na sua dos nos jornais da época. essência. Não queremos discuti-lo, precisamente porque ele é… discutível, sob diferentes aspec- tos, desde o religioso (católico) até ao natural, ao Noites de estreia humano, ao moral e ao fisiológico. Sá da Bandeira Abstraindo, porém, da essência, a peça, na sua “A Promessa” – peça em três tessitura, no desenho e na análise das persona- actos de Bernardo Santareno gens, na densidade do clima, na humanidade das situações, na poesia que desborda, da dig- Foi um acontecimento a noite de ontem no “Sá nidade e no equilíbrio da acção, no carácter da da Bandeira”. Um acontecimento raro, de ex- linguagem – a peça é, indubitavelmente, um pectativa, de alvoroço, de casa repleta, onde modelo! se pode dizer que não caberia nem mais uma É evidente que, para o seu êxito, tinham de palheira. concorrer, de maneira decisiva, a encenação O Círculo de Cultura Teatral apresentava, em e o desempenho. E concorreram! António Pe- começo de temporada, a Companhia do Teatro dro e Augusto Gomes confirmaram-se naquela; Experimental do Porto – essa admirável plêiade e neste também confirmaram-se Ruy Furtado, artística que António Pedro cultiva, como só ele Dalila Rocha, João Guedes, Cândida Maria, sabe, e que já é e será cada vez mais, um dos Alexandre Vieira, José Pina, Fernanda Gonçal- títulos que ao Porto dão honra e carácter. ves, Cândida Lacerda, Alda Rodrigues, Vasco Daí, essencialmente o motivo do alvoroço, da de Lima Couto e Baptista Fernandes, a que vá- expectativa, da sala a transbordar. É fenómeno rios figurantes deram valiosa achega. Haveria que já decorre da própria aura do Teatro Expe- nomes a destacar? Sem dúvida. Mas o equilí- rimental. brio e o êxito promanam do conjunto. E foi ao Depois havia o natural interesse da peça anun- conjunto que a plateia aplaudiu com vigor – e ciada – da peça era o primeiro tema da série de com justiça. (Jornal de Notícias, 24 de no- debates sobre “Teatro”, que vai iniciar-se den- vembro de 1957, p. 5) 231

Primeiras representações permitem pôr em confronto o pensar da gente SÁ DA BANDEIRA – A peça “A Promessa”, ori- moça e da idosa e em que as velhas, coscuvi- ginal de Bernardo Santareno, pela Companhia lheiras, se mostram, por vezes, lascivas – para do Teatro Experimental do Porto – As primeiras mais prolongar a acção em que se joga com palavras de louvor merece-as o Círculo de Cul- o amor e o ciúme. Essas personagens, porém, tura Teatral, por haver dado a conhecer um novo prejudicam a cena final da peça, ainda que as dramaturgo português. E, mais e melhor, um dra- olhemos como o coro da tragédia grega. Que maturgo que, procurando temas ousados, revela bem desceria o pano com entrada de “Salva- grandes qualidades como escritor teatral. dor, Maia e Rosa” para a casa e com a cena Ainda que três peças da sua autoria estejam já fortemente iluminada – o despertar de um reunidas em volume e nelas o desejo – posse novo dia para Maria do Mar! venha sempre em primeiro plano, o certo é que O autor traçou com firmeza a história realista, nenhum empresário parece ter tomado conhe- trágica, não se preocupando com os escolhos. cimento com a obra de Bernardo Santareno, ou, Levou-a como se fosse o próprio mar encapela- visto que o seu verdadeiro nome já foi tornado do, nem se importou com susceptibilidades de conhecido, o dr. Martinho do Rosário. qualquer natureza, até onde a sua imaginação havia pousado. Calculou bem a duração dos Mais uma vez, pois, a Medicina a entrar no Te- actos e preparou, inteligentemente, o fecho dos atro e daí a facilidade com que aquele autor mesmos. Despertando logo na primeira cena o escalpeliza a alma dos personagens das suas interesse, criou igualmente espectáculo. Não tra- peças, em que “A Promessa”, dentro da sua ou- tou, porém, com o mesmo cuidado a linguagem sadia… é ainda menos ousada. das personagens e talvez tenha reunido figuras O drama da gente do mar, com as suas cren- doentias a mais. Um aleijado e um cego – este ças, superstições e adoração por aquele que a lembrar-nos personagens de outros autores – “é leal, não intruja a gente… mesmo quando ainda que sejam eles o homem que se salvou de- mata” – como diz uma das personagens de vido “A Promessa” – um casamento sem posse! – “A Promessa” – tem prendido já a atenção de e o que nasceu sem vista, por haverem faltado a muitos escritores portugueses e estrangeiros. outra promessa. Se, como escrevemos, as “falas” No original de Bernardo Santareno, o drama, nem sempre nos pareceu condizer com as perso- porém, poder-se-ia ter passado até bem longe nagens, a verdade é que o diálogo é, de uma ma- do mar, porque o perigo surge também em ter- neira geral, fluente mas não lhe faltam também ra e não falta quem por essas aldeias prometa laivos de poesia, ou o autor não fosse poeta. E diante do altar o que se nos afigura até contra a propósito de “falas”, achamos estranho que o a própria religião. “A Promessa” não é, pois, “Padre” conhecedor da promessa apontasse o um drama em que o mar está presente. Longe lar de Maria e de José como o primeiro de todos der ser o efeito, ele foi a causa da promessa. a ter direito à paz e à alegria. Isso, porém, pouco interessa porque o drama O que não há dúvida é que o autor soube pren- existe e logo, num bom primeiro acto, ele se der e interessar o público, levá-lo até a supor advinha em toda a sua força. Mas, digamos as- que se dera a desonra, para, depois, nos mos- sim, o drama – grande no que tem de trágico trar toda a intensidade da paixão de “Maria”, como vingança e belo no que nos dá de fervor aquela que era clara como a espuma do mar. amoroso – não chega para preencher os três A maneira como o faz vem demonstrar-nos que actos e igual número de quadros da peça. Daí estamos em presença dum autor com quem o a entrada de personagens secundárias – que nosso Teatro pode contar para o engrandecer. 232

As personagens principais estão bem observa- tão aleijado como dizia. Cândida Maria, talvez das, são humanas, e se a história, além de ousa- repetindo em excesso o bater de suas mãos nas da, pode parecer pesada, o certo é que a peça, coxas, mas segura do seu trabalho. Vasco de como espectáculo, o não é!... E depois o nosso Lima do Couto compôs com felicidade a figu- público parece ter voltado atrás meio século e ra do “Padre” e disse bem as suas falas, repre- sentir-se atraído – o cinema e a rádio têm con- sentando com acerto e naturalidade. Fernanda corrido para isso – para o trágico, procurando Gonçalves, Cândida Lacerda e Alda Rodrigues, no drama dos outros, esquecer, talvez, o seu nas três velhas, nem sempre nos deram a im- próprio drama. pressão de o ser, mas com José de Pina, Baptista António Pedro apaixonou-se pela peça e deu- Fernandes e os amadores do T.E.P.: José Ruiz, lhe todo o seu carinho e todo seu bem conhe- Carlos Cabral, Julieta Furtado, Maria de Jesus, cido sentido artístico. Quanto à nós valorizou José Gonzalez, Alves Rigor, José Guilherme, até o espectáculo e isto se verificou com a cena José Augusto, Pedro Ferreira e Almeida Teixeira final da peça, fazendo repetir em coro, entre concorreram para que os associados do Círculo cenas, algumas das frases das três velhas. A es- de Cultura Teatral dispensassem a todos os lar- plêndida colocação final. Referência especial à gos aplausos. marcação ainda no 2º acto, na cena da visita Muito feliz o cenário de António Pedro e Augus- pascal. to Gomes – que resolveu várias dificuldades – o A peça necessitava de um bom grupo de intér- primeiro foi ainda director de cena. Fernando pretes e o conjunto profissional do Teatro ex- Teixeira, como técnico; Joubert de Carvalho, perimental do Porto, cujas responsabilidades como contra-regra; Jorge Piedade, como ponto; são cada vez maiores, saiu-se briosamente das Maria Adelaide Monteiro e Amélia Varejão – dificuldades. Certo o ritmo, mas por vezes bai- que confeccionaram o guarda-roupa – não po- xos na representação. Duas cenas merecem, dem também ser esquecidas. porém, referência especial: a 1º quadro do 3º No final, e com justiça, o Dr. Martinho do Ro- acto entre “Jesus” e “Maria do Mar” e a do 2º sário, António Pedro e restantes colaboradores quadro do mesmo acto entre “Maria do Mar” e vieram ao palco e ao lado dos intérpretes ou- “José”, das mais difíceis. viram grandes aplausos. Iniciou-se bem a tem- Dalila Rocha, se nem sempre nos deu a amar- porada do Teatro Experimental do Porto. – P. gurada, teve a devida ternura, paixão e rancor – Hoje, às 21.45, e para associados nova re- na sua “Maria do Mar”, personagem dificílima, apresentação de “A Promessa”. (O Primeiro marcou mais um passo na sua prometedora de Janeiro, 24 de novembro de 1957, p. 5) carreira. Alexandre Vieira, jovem actor saído recentemente do Conservatório, teve a seu car- go a personagem que vai mais facilmente de No dia seguinte à estreia, o Jornal de encontro à sensibilidade do público, o cego Notícias apresenta Bernardo Santareno “Jesus”. Marcou bem todo o seu trabalho e deu- como um jovem dramaturgo que escreveu lhe a devida ternura. João Guedes, dos melho- res elementos do T.E.P., teve as melhores cenas uma peça densa, com equilíbrio da ação do último acto, mas já o distinguimos na sua e que transborda poesia. Ressalta, porém, primeira cena do 2º. Rui Furtado (que pertence que se deve abstrair da essência da peça, aos Companheiros do Pátio das Comédias de Lisboa), é actor. Sabe o que quer e compôs bem capaz de provocar polêmicas sob o aspecto a figura. Só por vezes não nos pareceu, ainda, religioso (católico), moral e fisiológico. 233

O Primeiro de Janeiro louva a iniciativa Lázaro e pô-lo a caminhar entre os demais. E do Círculo de Cultura Teatral de encenar aíestá a dar os primeiros passos depois do “mi- lagre” da Ressurreição. um novo dramaturgo português com gran- […] Ninguém de boa fé, de bom senso, boa des qualidades. vontade, de consciência e inteligência esclare- No artigo “Primeiras representações”, cidas, poderá discordar do que escrevi, mas es- tou certo que acrescentará que algo de mais im- lê-se que A Promessa foi anteriormente pu- portante se passou na nossa Invicta e Leal cida- blicada em um volume com mais duas ou- de, ali no palco do Sá da Bandeira. Em Lisboa, tras peças de Santareno, e que todas elas o Teatro ainda veio de Shakespeare e de Miller; no Porto, a peça que empolgou a parte culta da trazem em evidência a questão do desejo cidade – que pelo menos a discutiu entusiasma- com ousadia. E que, dentro deste univer- da – pertence a um jovem autor português. so, A Promessa é ainda a menos ousada das Não me interessa – nem a mim, nem a ninguém – saber se Bernardo Santareno é ou não o maior três. dramaturgo português de todos os tempos ou Trata-se de uma crítica que envereda mesmo o maior dramaturgo português da actu- pelo lado técnico, ressaltando os vários as- alidade. O que digo é que estamos em face de pectos da encenação, como a duração dos um caso extraordinário, que António Pedro teve o talento e a coragem necessários para colocar atos, a construção das personagens, o cená- em pé de igualdade com os maiores nomes que rio, a marcação de cena, a interpretação, a já preencheram o repertório do “Experimental”, direção de António Pedro. precisamente Shakespeare e Miller. A questão de saber se é o maior de sempre ou de hoje, é O Primeiro de Janeiro ressalta que a mera bizantinice, espécie de “Guerra do Ale- história pode até ser ousada e parecer pe- crim e Manjerona”, expedida para encher alea- sada, mas a peça em si não o é. E informa tórias conversas de café. A coisa é outra e essa não posso deixar passar que a plateia aplaudiu muito ao término do em branco. Bernardo Santareno concebeu e re- espetáculo. alizou uma “Peça”, cujo miolo foi arrancá-lo ao Cinco dias depois da estreia, Ramos de mais íntimo do Povo Português, muito particular- mente à gente da beira-mar: à sua alma supers- Almeida volta a escrever no Jornal de Notí- ticiosa, que não raciocina nem pensa, que não cias o texto transcrito a seguir. conhece os argumentos da razão e da natureza, embora, como é óbvio, acabe por ser aniquilada por eles, mas continua imperturbável, entregue Ainda, depois e sempre: à maldição de sua ignorância. A Promessa é a o Teatro Português prova mais concludente dessa religião-supersti- O “Teatro” atravessa em Portugal, no presen- ção. Bernardo Santareno levou-a até as suas úl- te momento, uma hora prenhe de promessas e timas consequências e soube fazê-lo com mão de perspectivas. Alguma coisa valeu a “campa- de mestre. Não teve medo de nada e foi com nha” que tantos fizeram – entre os quais sempre seriedade até o fim, não só nos episódios essen- estive – no sentido de fazer ressuscitar o pobre ciais, mas no próprio sentido vivo e humanístico 234

da peça. Estamos diante de Alguém muito sério, que não raciocina nem pensa, (…) entregue que é necessário respeitar e não perturbar com à maldição de sua ignorância”. Aqui, cabe as pomposas asneiras consuetudinárias, em que cada qual se capricha ainda mais para mostrar notar o pensamento salazarista permeando que sabe muito da poda. o discurso de Ramos de Almeida. António Pedro foi o encenador de sempre: Para Salazar, o português comum era consciencioso, probo, talentoso. Pode-se dis- cutir um ou outro pormenor da sua encenação, classificado como uma pessoa “não-violen- mas deu-nos um magnífico espectáculo. O ta” mas também incapaz de pensar pela sua grupo dos intérpretes apareceu desta vez mais própria cabeça. Ingênuos, na perspectiva equilibrado do que nunca, mas, se é lícito des- do chefe do Estado Novo, os portugueses tacar alguém, é, ainda, e mais uma vez: Dalila Rocha, já uma grande actriz, e Cândida Maria eram influenciáveis por correntes de oposi- pelo que progrediu, pelo que representou. ção e por isso, constantemente, deviam ser Bem haja, o público do Porto, pela maneira educados e controlados politicamente. A como aplaudiu, compreendeu e discutiu esta “peça”, que marcará um surto renovador do propaganda e a censura, então, foram “os Teatro Português. (RAMOS DE ALMEIDA, 29 meios utilizados pelo regime para concre- de novembro de 1957, p. 6). tizar os objetivos essenciais, no sentido de garantir a perenidade do salazarismo; por- Neste segundo texto para o Jornal de que politicamente só existe o que o público Notícias, Ramos de Almeida exalta a “res- sabe que existe”. (SANTOS, 2004, p.55) surreição” do teatro em Portugal com a en- Ramos de Almeida vê o povo português cenação de uma peça de um jovem autor com ressalvas e proclama uma elite “de boa português que “empolgou a parte culta da fé, de bom senso, de boa vontade, de consci- cidade”. Menciona também as conversas ência e inteligência esclarecidas” e A Promes- de café e as discussões entusiasmadas so- sa “é antes de mais nada realização colectiva bre A Promessa. da parte mais culta e mais civilizada da nossa Sem querer entrar no mérito se Bernar- cidade”. E, segundo Ramos de Almeida, essa do Santareno era mesmo o maior dramatur- parte mais culta – desejosa do renascimento go português da época, Ramos de Almeida do teatro português – era “composta, na sua acredita que surgiu um autor muito sério, o maioria, por escritores, artistas, jornalistas, qual deve ser respeitado. Em seu artigo “Ain- professores, médicos, advogados, engenhei- da, depois e sempre: o Teatro Português” ros, estudantes, isto é, todo um escol intelec- elogia mais uma vez a peça que, no seu en- tual insatisfeito e ansioso”. tendimento, conseguiu expressar o íntimo Para explicar a existência de discur- do povo português: a “alma supersticiosa, sos de uma origem secreta, situada em um 235

ponto historicamente indefinido, Foucault Assim não senhores do Teatro! afirma que “o discurso manifesto não seria Má hora em que o “Teatro Experimental do Porto” resolveu levar à cena uma peça indigna mais, afinal de contas, que a presença re- de plateias cristãs. Indigna pelo indecoroso de pressiva daquilo que não diz; e esse não- certas situações e pela falsidade da tese. dito seria um vazio escavado que mina do – Um espetáculo sério, que é alguma coisa de interior tudo o que se diz”. (FOUCAULT, novo no Teatro português… – Tudo, menos sério! Não é séria a “promessa”, não é séria a 2005, p. 53) figura do padre que diz o que não deve dizer e Assim, a narrativa de todo discurso ma- faz o que não deve fazer, não é sério o género nifesto estaria ligada a um “Nunca dito”, de catolicismo que se tenta interpretar, não é séria a desenvoltura com que se ofende o pu- “um discurso sem corpo, uma voz tão silen- dor público. Se algo de novo há na peça, é a ciosa como um sopro, uma escuta que não desvergonha. é senão o vazio escavado do seu próprio – Subsidiado pelo Fundo do Teatro e pela Fundação Caloust Gulbenkian: eram dignos traço”. (FOUCAULT, 2005, p. 53) de melhor sorte esses subsídios que, positiva- Em Portugal, além desse “Não dito” mente, não foram concedidos para se falsear a presente nos discursos manifestos, temos Doutrina Católica e para se especular com os instintos sexuais. também o interdito, o “Não dito” imposto – Impressionante e discutidíssima peça… pela Censura que também deixou traços. A E disparatíssima, se fazem o favor! repressão da Censura foi tão intensa que o – Um dos mais audaciosos originais que se têm representado em Portugal… fato de A Promessa ter saído de cartaz no E, por isso mesmo, digno de ser retirado da apogeu de seu sucesso fez com que algu- “circulação”, como o foram as duas primeiras mas pessoas viessem a acreditar que a peça peças do autor. – … que todo o público deve apreciar. fora censurada. O que não ocorreu. Temos a distinguir: os devassos, os amorais e A polêmica criada por um padre na Rá- os imorais, os inconscientes, todos esses que dio Renascença, contudo, não passou sem gostam e saboreiam, como é natural; as pesso- deixar suas marcas. Se, diretamente, não as ainda não corrompidas, os pais que têm a noção das suas responsabilidades, esses eno- provocou a interdição da Censura, pode ter jam-se e queixam-se amargamente da audácia desencorajado a encenação em outras lo- de uns e da inércia de outros. calidades e estimulou o desligamento de al- E quanto ao “Teatro Experimental”, a quem o Porto deve outros trabalhos de real valor, só guns sócios do Círculo Cultural de Teatro. diremos que, desta vez, a “experiência” foi su- O semanário católico A Voz do Pas- mamente infeliz… Parece que o “Descarrila- tor publicou dois textos que nos indicam mento” já tinha principiado quando “Um deus dormiu lá em casa…”. É que esse deus era pa- o teor das crônicas veiculadas pela Rádio gão… (A Voz do Pastor, 7 de dezembro Renascença: de 1957, p. 1). 236

Livros e Autores cumprir a promessa. Maria não tem forças para A Promessa, a cumprir, não se considera verdadeiramente de Bernardo Santareno mulher e não é feliz. José persiste nessa pro- messa, anda pela igreja, comunga, fala com o 1) ideologia. Um fundo de espiritualismo vago prior e os santos. Um dia surge um outro ho- prende as atenções das mentalidades hoje vol- mem, cria-se um interesse amoroso entre Maria tadas para um renascimento religioso. A religio- e ele, José desconfia e uma noite, que chega a sidade de A Promessa, como a da outra peça do casa da igreja e não vê a esposa, sai com uma mesmo autor, A Excomungada, é de sabor cató- espingarda a vingar a sua honra: mata o rival lico, nem outra seria aceite pelo nosso público. com requintes de sadismo. Regressando, conta Mas essa religiosidade anda muito deformada violentamente a Maria o que fizera e demons- pela inspiração freudiana: a religião surge ao tra-lhe que é Homem, usando do seu direito lado do instinto sexual, é uma sublimação deste matrimonial em cena: – relações a meia luz, na ou opõe-se à livre e legítima expansão dessa for- escuridão, com gestos e ruídos elucidativos. ça humana: o problema religioso põe o proble- Reconhece que a esposa lhe fora fiel, defende-a ma sexual; a promessa dos noivos, de sentido perante as vozes que a acusam e entrega-se à religioso, inibe-os de serem perfeitamente ho- prisão. mens; o marido cumpre a promessa porque se 4) a promessa. A promessa podia valer, embo- faz sacristão, comunga e varre a igreja, ao passo ra as circunstâncias aflitivas que a ocasionaram que a esposa a não quer cumprir porque não vai sejam mais um argumento para a sua dispensa. à igreja: se fosse lá, cumpri-la-ia, é opinião do Tratar-se-ia de um bem possível? Talvez não, e, marido, do sogro e do prior; o marido um dia então, seria nula. Supondo-a válida: o matrimó- liberta-se desse complexo religioso, atira pela nio era válido uma vez que expressamente se janela afora com a religião, personificada na não desejava evitar um dos fins primários desse imagem religiosa, torna-se “homem”, vinga-se sacramento: a geração dos filhos; os cônjuges do rival, torna-se Homem viril e senhor seu (no- deram-se direito sobre os seus corpos para a tar que o autor nesta altura considera o marido geração, embora não o usassem (caso do ca- José, como Homem com H). A esta conclusão samento entre Nossa Senhora e S. José – deve também se chega da análise da Excomungada, ser a isto que o autor se quer referir, até pela es- o que nos faz concluir que é um propósito do colha dos nomes dos dois cônjuges); o mesmo autor: deformar o catolicismo para que este seja não aconteceria se expressamente se propuses- arrumado como um complexo inibitório. sem não ter filhos. Após o casamento, a pro- 2) a espiritualidade da peça anda ali como um messa podia ser irritada, isto é, podia desapare- cenário, como pano de fundo e não como re- cer por iniciativa dos dois: a esposa pode pedir alidade fundamental. É mais uma preocupação ao marido o fim dessa promessa e depois, livre trágica do homem do que um valor em si, ou dela pelo marido, pode irritar, ou suspender a uma vida humana em Deus. promessa do marido, sem ser preciso recorrer a dispensas ou comutações; o marido não tem o 3) enredo. Durante um temporal marítimo, direito de se calar perante o pedido da esposa e José e Maria do Mar, noivos, fazem a promessa vice-versa. a Deus de se conservarem virgens no seu matri- Qualquer padre tem a obrigação de saber isso. mónio se o pai de José, que anda no mar, che- Quando o prior da peça diz que os dois são o gar salvo à terra. Ele salva-se, casam e tentam melhor casal da paróquia, fala falsamente, dá 237

como que a aprovação da Igreja a uma mentira. mas como isso não interessava à história, essa O autor não conhece então a moral católica, promessa continua teimosamente, contra o pen- ou vê esta como um emaranhado de complexos sar de todos, contra a moral católica, inventan- que impedem o desenvolvimento natural e legí- do-se um padre, que fala como tal e em nome timo do homem e de suas forças naturais. da Igreja, que a justifique.

5) Como o tema é escabroso, as insinuações, 7) se a peça fosse apresentada por uma com- ou as falas abertas, de sentido duvidoso, api- panhia profissional de teatro ou de cinema, mentam a peça: ela anda em torno de tudo isso talvez passasse desapercebida. Porém, o facto e não se compreende sem esse palavreado. Al- de ser apresentada por um agrupamento ama- gumas cenas são imorais, abertamente: as rela- dor de sentido cultural ou formativo espanta: ções sexuais em cena, preparadas, demoradas e a arte da peça não justifica em si, nem justifi- mencionadas pelo seu nome, o ambiente eróti- caria se existisse, a sua apresentação quando co de todo o diálogo, os gestos, o ambiente de o fundo é imoral artisticamente: não está de religiosidade erótica. acordo com a realidade e atinge os valores sé- rios e a ter em conta da moral. Ainda que o va- 6) Valor artístico. Em si mesmo, o valor artísti- lor artístico fosse real e não apenas conferido co da peça não é grande. É até diminuto. Se ex- pela representação, esta não poderia justificar- ceptuarmos o movimento, o colorido e o apai- se, uma vez que o valor moral é alguma coisa xonante, nada mais se aproveita: o diálogo é impróprio ao meio, as falas ultrapassam o nível que anda sempre ligado à arte. Negar isto é de quem as pronuncia, as personagens andam não entender o homem, é supor que este se ali com uma convicção de que são tipos ou pode dividir, deixar a moral em casa e ir ao modelos e não figuras reais. O recurso daque- teatro ou à vida apenas com o sentimento ar- la espécie de coro final tipo grego é apenas de tístico. Um erro imperdoável de inconsciência efeito que não resultou na prática, como efeito humana e mais imperdoável de inconsciência ou cordelinhos em teatro são as cenas violentas católica. O catolicismo é uma doutrina verda- ou escabrosas. Estas personagens são pesca- deira em si e não verdadeira segundo as nossas dores, como podiam ser outra coisa qualquer: conveniências ou situações. Um acto é imoral são-no porque o autor assim quis e não por sua em si, tenha ou não arte a envolvê-lo, como psicologia; de pescadores apenas têm as roupas é mentiroso ou desonesto em si próprio e não e algumas imagens vulgares e taxativas. segundo as nossas insinuações ou palavras. E A observação dos pormenores está mal feita, porque será que todos se propõem fazer mo- havendo erros imperdoáveis: onde se viu um ral católica e discutir o que os especialistas, padre de casula branca e cruz na mão a fazer os teólogos afirmam, quando não discutem as visita pascal? Dir-se-á: pormenor sem impor- afirmações científicas dos especialistas mas as tância. Porém, em arte vale muito e também o aceitam como tais? Por que se não toma um dito: quem não é honesto no pormenor facil- veneno encerrado num frasco artístico? Por- mente observável não tem honestidade no tema que a arte não corrige o que é mal em si. de fundo. Lida, A Promessa pode não ser muito perigosa, a Essas personagens não são reais, não se movi- não ser que se possua uma grande imaginação de mentam normalmente, mas andam forçadas teatro (o perigo viria mais das ideias expostas em pela orientação que o autor lhes dá: natural- 1). Porém, representada em teatro, A Promessa é mente, todas iam para a quebra da promessa; sumamente nociva: a arte actuará como agente 238

de catálise para maior assimilação do erro e do cristãs. Uma verdadeira desvergonha que mal, tornando-os aceitáveis, convenientes e até especula com os instintos sexuais, desti- verdadeiros. Pelo mesmo motivo se têm de condenar muitos nada só aos devassos, amorais, imorais e filmes e outras peças de teatro? Fora de dúvida. inconscientes. Mas por que há mal generalizado, vai-se justi- No dia 7 de dezembro de 1957, o texto ficar outro mal? Esta peça ensina o que? A tomar a religião como estampado na capa dizia que A Promessa um entrave à legítima expansão das forças hu- deveria ser retirada de “circulação”, como manas? A viver ao modo das personagens da o foram as duas primeiras peças do autor. peça? Lindo ensinamento! E se ensinasse, não se podem colher os mesmos frutos sem o peri- Trata-se de um dado impreciso do jornal ca- go da perda de pudor, de fé, sem deformação? tólico, pois, como já foi dito anteriormente, Não é difícil demonstrar que há uma finalidade trata-se da estreia de Bernardo Santareno doentia e suja debaixo das frases: convém agi- nos palcos. Não se pode precisar se foi um tar o meio, é preciso escandalizar a burguesia nacional. equívoco de quem escreveu ou se foi artifí- cio de convencimento aos leitores. O fato é 8) Por que acorreu o público? Pela propaganda feita. Pelo apimentado do assunto e seu escân- que essa informação está errada. dalo. Porque este público pretende justificar-se Uma semana depois, outro texto na com outros exemplos do que vai fazendo pela capa de A Voz do Pastor é publicado com calada (a sua afluência é a prova real da situa- ção presente: podres debaixo do verniz). Pela o intuito de analisar A Promessa sob vários inconsistência católica: dada a projecção da aspectos. Do ponto de vista ideológico, por peça e o seu carácter escandaloso, será difícil exemplo, Santareno teria a pretensão de eximir de falta de moral a qualquer assistente propositado, uma vez que se expôs a situação deformar o catolicismo, transformando-o próxima de pecado, de perda de fé, de pureza e num complexo inibitório da sexualidade de verdade, e motivou um escândalo até entre humana. não-católicos. Poderiam dizer-nos que, presentemente, não va- Ao narrar a peça, o autor do artigo (Z. leria a pena agitar mais a questão, deixá-la mor- O.) relata que na encenação ocorreram “re- rer de podre. Porém, não se esqueça que outras lações a meia luz, na escuridão, com gestos ocasiões análogas vão surgir. Que ao menos se não diga que faltou coragem e a hombridade de e ruídos elucidativos”. esclarecer uma situação. Z.O. (A Voz do Pas- O texto prossegue com o questiona- tor, 14 de dezembro de 1957, p. 1 e 3) mento da validade da promessa sob os pre- ceitos da fé católica. Mesmo que fosse váli- Para o semanário católico, o Teatro Ex- da, a jura poderia ser extinta por iniciativa e perimental do Porto resolveu levar à cena acordo entre os cônjuges, sem ter que haver uma peça indecorosa e indigna de plateias dispensas por parte da Igreja. Uma das coi- 239

sas que mais incomodam Z. O. é a atitude Na verdade, o TEP transformou-se em com- do Padre na peça, que dá a aprovação da panhia profissional um mês antes da estreia Igreja a uma mentira. O autor do artigo re- de A Promessa e este foi seu primeiro espe- força, em outra parte do texto, a existência táculo encenado fora do circuito amador. de relações sexuais na peça – cenas imorais Posto que para Z.O. o valor moral an- e demoradas, num ambiente de “religiosi- daria sempre ligado à arte, não se pode dade erótica”. Na verdade, só há uma única “deixar a moral em casa e ir ao teatro ou menção no livro de A Promessa. A cena tem à vida apenas com o sentimento artístico” a seguinte indicação: – ou seja, sob essa argumentação, não há

JOSÉ: […] E eu gostava de ti, maldita! Não via distinção entre a postura moral a ser ado- mais ninguém neste mundo… mais ninguém… tada diante de uma obra teatral ou da vida Tu era bonita, a mais bonita de todas! Tu és cotidiana. Não há diferenciação no campo linda, Maria do Mar! (Beija-a, furiosamente, na boca. Desejo raivoso: posse-luta. No decorrer da representação entre ficção e realidade. desta, a candeia cai e apaga-se: obscuridade E, assim sendo, os espectadores que vão ao completa. Maria do Mar e José rolam pelo chão. teatro assistir a uma peça dessas são todos Durante momentos, só ruídos animais, ferozes). “podres debaixo do verniz”, vivendo em (SANTARENO, 1991, p. 67) “situação próxima de pecado”. Sobre o modo como a montagem efe- E por que, então, o espetáculo teve tuada pelo TEP deu vida a esta ação, temos imenso público? A primeira explicação de o parecer do censor Álvaro Saraiva de que Z. O. é a propaganda. Essa hipótese tam- a interpretação foi “servida por um desem- bém não se sustenta. Afinal, os anúncios penho da maior dignidade profissional”24. de A Promessa eram pequenos (duas colu- Não temos dados suficientes para tentar nas X 10 cm) e só traziam informações bá- compreender o que Z.O. identifica como sicas como hora, data, local, elenco e res- “religiosidade erótica”. Parece-nos outro trição de idade. Na verdade, a projeção da artifício de retórica para convencer os lei- peça se deu pelo escândalo causado pelos tores de A Voz do Pastor. Neste sentido, o veículos de comunicação católica, princi- artigo também desqualifica o valor artístico palmente a Rádio Renascença. Trata-se de da peça para depreciar a obra. Outra afirmação equivocada é a se- 24 guinte: “Se a peça fosse apresentada por Processo nº 5492 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo referenciados em: Secretariado Nacio- uma companhia profissional de teatro ou nal de Informação, Direcção Geral dos Serviços de de cinema, talvez passasse desapercebida”. Espectáculos (PT-TT-SNI/DGE) 240

um fenômeno semelhante ao que ocorreu (AOS), que reúne os diários do antigo Presi- com a peça Oh Calcutá, em São Paulo, na dente do Conselho, num conjunto de 72 vo- década de 80: o grande estardalhaço de lumes que abarca o período de 1º de janeiro facções da sociedade na defesa do decoro de 1933 a 6 de setembro de 1968. A seguir, social motivou a ida de 160 mil pessoas lê-se a transcrição desses telegramas. ao espetáculo de bailarinos nus. (BARREI- como membro da sociedade ROS, 2005, p. 123) portuguesa impossível reter No contexto português não havia espaço marcada impressão foco para manifestações públicas – quase sempre repugnante influência social em actuação palcos teatro Sá da impedidas por medo do regime. Sendo as- Bandeira peça promessa porto sim, além dos artigos publicados no sema- Áurea Soares - professora do Liceu nário católico, podemos encontrar registros Lisboa, 30 nov. 1957 de repúdio apenas em telegra- mas dirigidos ao Presidente do Conselho ou em cartas ende- reçadas ao Círculo Cultural de Teatro/TEP. Os telegramas de pro- testo enviados a Salazar contra A Promessa não se encontram anexados ao processo de censura da peça. Na verdade, sob a referência ANTT- AOS-D-M-35-5-9, esses documentos pertencem a outra parte do acervo do Arquivo Nacional Torre do Tombo. Trata-se do Arquivo Oliveira Salazar

Os telegramas de protesto enviados a Salazar contra A Promessa, sob a referência ANTT-AOS-D-M-35-5-9, no acervo do Arquivo Nacional Torre do Tombo. 241

Afirmo meu rasgado protesto onde não houve encenação da peça. Como peça teatral Promessa Porto no caso de A Semente, de Gianfrancesco incrível atentado a moral 25- pública peço providências. Guarnieri, alguns professores do Liceu Carneiro da Frada - advogado assumiram o papel de zeladores da moral Lisboa, 30 nov. 1957 portuguesa diante de uma peça da qual Como mulher e educadora só conheciam por meio de rumores. Sen- Profundamente revoltada do assim, no mesmo dia 30 de novembro, arrojo apresentarem amadores peça promessa teatro Sá da decidiram enviar telegramas a Salazar com Bandeira porto tema alta moral a intenção de pressionar para promover a degradante como pretensa interdição da peça. cultura teatral servindo se incauta confiança depositada Um documento do Serviço Nacional de Arlette Portugal - professora do Liceu Informação (SNI), datado de 2 de dezembro Lisboa, 30 nov. 1957 de 1957, indica que Salazar pediu a averi- Enérgicos protestos guação do caso: apresentação em público peça promessa teatro Sá da Bandeira Falei imediatamente para o Porto. O Governa- porto dor Civil não estava, mas pude trocar impres- Maria de Lourdes Carneiro - professora do sões sobre o assunto dos telegramas de protesto Liceu pela representação da peça “PROMESSA”, com Lisboa, 30 nov. 1957 o seu substituto. 1 – Desconhece todos os nomes que subscre- Pela manifesta revolta vem os telegramas. provocada peça promessa teatro Sá da Bandeira porto afirmo 2 – Não lhe consta que nos meios responsáveis protestos veemente desacordo haja qualquer movimento de protesto. Antonio Magalhães - professor do Liceu Lisboa, 30 nov. 1957 3 – Tem tido informações que a peça em ques- tão é arrojada mas de muito bom nível na in- Alarmado rumores resultantes terpretação. exibição escandalosa peça promessa teatro Sá da Bandeira porto rogo providências Maria Augusta Varcia - professora ensino 25 Escola Secundária de Camões, conhecida por Liceu técnico Camões e fundada em 1902. É uma das maiores e Lisboa, 30 nov. 1957 mais prestigiadas escolas secundárias de Lisboa. Por ela passaram importantes figuras da sociedade portuguesa, tais como Marcello Caetano e Pedro Curiosamente, os telegramas foram Santana Lopes (Primeiro-ministro de Portugal entre todos emitidos da cidade de Lisboa, local 2004 e 2005). 242

No dia seguinte, 3 de dezembro, Sa- lazar recebe outra missiva do SNI, desta vez reportando sobre uma pequena confu- são ocorrida no processo de censura de A Promessa.

INFORMAÇÃO

O Teatro Experimental do Porto – Círculo de Cul- tura Teatral –, tendo início no seu repertório a peça “A Promessa” de Bernardo Santareno, re- meteu um exemplar para efeito de visto porquan- to, tendo inquirido junto à inspecção se a peça estava aprovada obtivera do funcionário, que substituiu o encarregado do serviço de peças, au- sente por doença, a informação afirmativa. Devolvida a peça para o Porto e solicitado pelo Director do Teatro Experimental, em 2 de No- vembro último, a assistência ao ensaio geral, de um vogal da Comissão foi para tal no- meado o Dr. Álvaro Saraiva, que em 7 de Novembro assis- tiu à representação da peça, apresentando o relatório que se junta, e no qual exprime a opinião de que a peça não pode ser reputada como ofensiva à moral. Pedido agora o processo e o Re- latório do Censor, apura-se: 1º - Que existindo no arquivo a peça “A PROMESSA” registada sob o número 2152 original de Ly- gia, aprovada em 28/IX/35 pelo Dr. Madeira Pinto e novamente lida em

Cartas do SNI para o Presidente do Conselho, sob a referência ANTT- AOS-D-M-35-5-9, do Arquivo Oliveira Salazar (AOS), no Arquivo Nacional da Torre do Tombo 243

23/III/52 pelo Dr. Lobo de Oliveira, para efeitos O engano que ocorrera entre o proces- de classificação, o inconsciente funcionário, so número 5492 de A Promessa, de Santa- (agente da P.S.P.) em serviço nesta Inspecção e auxiliar do que está incumbido do registo e reno, com o processo número 2152 de A arquivo das peças) não reparando no autor, Promessa, de Lygia, fundamentou a classifi- prestou a errada informação de que a peça “A cação da peça de Santareno como comédia PROMESSA” de Bernardo Santareno estava aprovada e classificada para adultos pois fora e também custou o afastamento imediato esta a decisão da Comissão relativa à peça, cuja do distraído policial. ficha, existente consultou. Se em Lisboa o repúdio à temática de A O relatório do primeiro censor que, normal- mente, é o que assiste ao ensaio, não se en- Promessa era feito diretamente a Salazar, na contra portanto no processo pelo inconsciente cidade do Porto os protestos davam-se por equívoco do funcionário, elemento que houve meio de cartas de demissão de sócios, ende- de lançar mão, pela carência do quadro dos que hajam de atender à multiplicidade de ser- reçadas ao Círculo Cultural de Teatro/TEP: viços atribuídos a esta Inspecção. Exmo. etc. 10/12/1957 Um tal caso, pela primeira vez verificado, não Vimos por este meio comunicar a V. Excª. que mais se repetirá pois o referido agente foi ime- pedimos a demissão de sócias do TEP em virtu- diatamente afastado de auxiliar de serviço da de da última peça apresentada “A Promessa”, censura. de Bernardo Santareno, não estar de acordo Inspecção de Espectáculos, 3 de Dezembro de com a nossa moral de católicas. 1957. Assinam: Maria Fernanda de Magalhães Ferrei- O INSPETOR ra e Sousa (sócia nº. 866), Perpétua Pompeia Pinto (sócia nº. 865). ______Esse documento, endereçado a Salazar, Exmo. Sr., etc. 12/12/1957 presta esclarecimentos sobre a razão pela Por este meio desejamos comunicar a V. Excª. qual o inspetor lisboeta não pôde ler o texto que pedimos a demissão de sócias desse orga- nismo cultural, em virtude da peça “A Promes- antes de assistir ao ensaio geral. Tratava-se sa”, de Bernardo Santareno, não se coadunar da falha de um “inconsciente” funcioná- com os nossos princípios morais. rio, agente da Polícia de Segurança Pública Assinam: Dina Eulália Santana Pinto Trindade (PSP)25 designado para substituir um fun- (sócia nº. 2684) e Maria Augusta Monteiro (só- cia nº. 2683) cionário da Censura que estava em licença ______médica. O “Inspetor” justifica que precisou Exmo. Sr. etc. 23/12/1957 lançar mão de uma pessoa pouco apta para Não tive ocasião de ver “A Promessa”. a função pela carência do quadro de cen- Todavia, pelas referências que li à peça em jor- nais não confessionais (v.g. como O Primeiro sores e pela multiplicidade de serviços atri- de Janeiro) convenci-me da irreligiosidade da buídos à Inspeção de Censura. mesma. 244

E, como católicos e membros da Acção Católi- cartas enviadas à direção vieram de vários ca, minha mulher e eu não podemos continuar quadrantes da sociedade mas, em termos a ser sócios do Círculo de Cultura Teatral. Eis porque sinto ter de dizer a V. Excª. que nos ideológicos, os associados do TEP eram per- demitimos de sócios tencentes ao extrato menos conservador do Assina: José Gualberto de Sá Carneiro (advogado) regime. Só que se, na época, o Círculo Cul- ______tural de Teatro/TEP perdeu 300 associados, Exmo. Srs. etc. 5/3/1958 pôde contar com a adesão de muitos mais. Dada a orientação imprimida à apresentação de peças desse agrupamento a partir de “A Saíram trezentos e tal mas logo a seguir entra- Promessa”, cujo argumento se afigurou, não só ram mil e tal. O TEP em 1958 chegou a ultra- ultra-realista como imoral, lamento ter de pedir passar os cinco mil sócios, era uma força em a minha demissão como sócio nº. 1478, bem termos de número de associados. Repare que como a de minha filha, Ana Maria Pinto de Mi- o Futebol Clube do Porto, que já na época era randa, nº. 1479. o clube de futebol mais conhecido do norte, 27 Não pretendo com isto modificar o caminho tinha 6 mil sócios . (informação verbal) ultimamente traçado por essa Direcção, muito embora tenha de lamentar o sucedido. Carlos Porto, no livro O TEP e o teatro Assina: Raul Miranda. em Portugal – histórias e imagens, salienta ______que, com a repercussão que teve a ence- Exmo. Srs. Etc. 23/5/1958 nação de A Promessa, no Porto, Bernardo Venho pedir o favor de eliminarem da lista de sócios do Círculo de Cultura Teatral o nome de Santareno tornou-se rapidamente uma figu- minha mulher Hilda Rumsey Nicolau de Almei- ra nacional. E Vicente Batalha complemen- da Corrêa de Barros (sócio nº. 2591) e o meu ta essa proposição dizendo que a persegui- Manuel Corrêa de Barros (sócio nº. 2590). ção da Igreja teve o efeito contrário: todas O muito apreço que me merecem o esforço re- alizado e os resultados já obtidos por V. Excas. as pessoas queriam ver aquela peça. Obriga-me a que justifique esta resolução: a es- Dez anos mais tarde, a Companhia de colha da peça de Santareno, “A Promessa”, que Vasco Morgado apresentou A Promessa no vi há dois dias convence-me de que não posso confiar no critério da Direcção do Círculo para Teatro Monumental, em Lisboa. No Arqui- manter os espetáculos dentro dos limites daqui- vo Nacional Torre do Tombo, encontra-se lo a que, sem me envergonhar possa assistir em também o processo censório de nº 8414 companhia de minha Mulher.” Assina: Manuel Corrêa de Barros (PORTO, para essa encenação, datado de 1967. Di- 1997, p. 264-265) ferentemente da primeira versão, desta vez os originais continham três cortes. Júlio Gago26 estima que foram cerca de três centenas os sócios que pediram a de- 26 Cf. Júlio Gago em Vila Nova de Gaia, 2010. missão pelo TEP apresentar A Promessa. As 27 Idem. 245

Trechos censurados de A Promessa em 1967. Primeiro Ato – Cena V – página 15; Primeiro Ato – Cena V – página 16; e Terceiro Ato – Cena I – página 79

Os trechos cortados demonstram a ar- aprovada sem cortes exatos dez anos antes. bitrariedade dos censores na avaliação das Tanto na imprensa como no teatro, os crité- obras que lhes eram apresentadas, uma vez rios de avaliação dos censores eram, muitas que a primeira versão de A Promessa foi das vezes, subjetivos. 246

É natural que houvesse alguma subjetividade no os campos, para as fábricas.” (SANTOS, exercício da função. Eles não eram totalmente 2004, p. 345) Depois de um longo silêncio, neutros no aspecto de cumprirem minimamen- te ordens. Poderia haver uma propensão, uma voltou a ser ouvido e a exercer o seu papel sensibilidade para um caso ou outro. Admito no cenário cultural português. E a primeira que sim. voz que se escutou foi a de Bernardo Santa- Algum acento próprio, alguma preferência per- reno: Português, Escritor, 45 Anos de Idade secutória devido a motivações de formação (1974), uma peça autobiográfica, é o pri- pessoal, se um é mais moralista que o outro... Uns eram até mais corteses e chegavam a pedir meiro espetáculo representado sem censu- desculpas: “eu compreendo a vossa missão, e ra depois da Revolução do Cravos. tal, mas sabe como é...”. Outros não, eram mais A obra, escrita ainda no governo de secos, mais brutais, mais mecânicos.28 Marcello Caetano, narra os 50 anos da his- De uma maneira geral, em Portugal, a tória de Portugal sob o Estado Novo: atra- equipe de censura que se deslocava aos te- vessa as grandes guerras, a ascensão do co- atros para verificar os ensaios era presidida lonialismo português, a censura, as prisões, por um coronel do Exército – normalmente as deportações, as mortes, as eleições de 58 aposentado e extremamente conservador. E e as guerras coloniais. Na cena final, o pro- os artistas teatrais portugueses viviam àmer- tagonista, desiludido, diz: “Deus é deles. A cê da deliberação desses senhores, sem di- pátria é deles. Tudo é deles. Eles venceram”. reito a recurso ou questionamento. Para não terminar nesse anticlímax, Santa- Felizmente, nas palavras de Graça dos reno faz uso de uma técnica de Brecht, na Santos, “após ter sido empurrado para uma qual os atores despem-se dos personagens situação de autismo”, o teatro português e perguntam ao público: “Querem lutar? começou a vivenciar o reaprendizado da Vamos lutar!”. Era a premonição do que liberdade depois do 25 de abril de 1974. estava por vir. E foi justamente aquilo que “De repente, o teatro estava em todo o Santareno acreditava ser o seu testamento lado; já não se contentava com os locais artístico que acabou por se tornar o grito de que lhe eram destinados, ia para a rua, para libertação de um país inteiro.

28 Cf. César Príncipe, em Matosinhos, 2010. 247

Considerações finais 248

Nas palavras de Charaudeau (2006, p. e constituídos a partir de esquemas de pen- 131), “não há captura da realidade empí- samento normatizados. A opinião pública rica que não passe pelo filtro de um ponto de setores da sociedade, quando exibida de vista particular, o qual constrói um ob- diante de sua própria coletividade, propicia jeto particular que é dado como fragmento a visibilidade e constrói marcas de identi- do real”, posto que a realidade empírica dade mediante o compartimento das carac- sempre está atrelada a um real construído, terísticas comportamentais que diferenciam e não à própria realidade. Afinal, o mundo um grupo do outro. não pode ser abarcado em sua totalidade Cabe lembrar que o sistema de avalia- por uma única pessoa. Antes, para ser com- ção sobre o qual se baseia a opinião pú- preendido, esse mundo deve ser explorado, blica não é universal, pois está atrelado a relatado e imaginado pelo indivíduo, que um modelo de comportamento social pelo vai codificar o ambiente em que vive por viés de um sistema de normas, que é sem- meio de representações ou ficções. pre relativo a um contexto sociocultural. Do mesmo modo que, individualmen- Na complexidade da sociedade de massas, te, cada ser humano constrói imagens em os diversos grupos sociais tendem a perse- sua cabeça – a imagem de si próprio, dos guir interesses muito diferentes – algumas outros, de suas necessidades, propósitos e vezes, até divergentes –, o que torna difícil relacionamentos –, os grupos de pessoas, ou impossível a obtenção de um consenso coletivamente, também constroem imagens que resulte do debate livre e racional dos sobre o que pensam de si próprios e sobre temas de interesse público. Logo, a opinião os contextos sociais nos quais estão inse- pública só pode comportar uma seleção ridos. Essas imagens criadas coletivamente contingente de temas que é, de certo modo, é o que Lippmann (2008, p. 40) chama de orientada para a resolução de problemas Opinião Pública, que, numa sociedade de pontuais. Isto posto, o espaço público tam- massas, normalmente, é edificada sobre bém não é único nem universal, mas sim os alicerces da imprensa, um instrumen- plural e em movimento – resultado da in- to de publicidade dessa opinião. A noção teração dialética das práticas sociais e das de opinião pública, no decorrer da histó- representações, dependente das especifici- ria, assumiu “um espaço de representação” dades culturais de cada grupo social. tomado, essencialmente, como o discurso Tais especificidades puderam ser detec- manifesto de uma organização coletiva de tadas ao longo desta pesquisa. Em nenhum sistemas de valores – próprios a um grupo dos casos observados, houve consenso em 249

torno de uma única opinião. Isso porque os de de expressão consagrada na Constitui- membros de uma comunidade se reconhe- ção Brasileira vigente. cem, segundo Charaudeau (2006, p. 123), Nelson Rodrigues, com sua fama e pres- por meio dos diversos “discursos circulan- tígio como dramaturgo, tinha força para tes” na sociedade – a soma empírica de mobilizar a imprensa e desencadear cam- enunciados sobre ontologia, atitudes, acon- panhas a favor da liberação. Porém, mesmo tecimentos, comportamentos e julgamen- os defensores de Nelson apontavam para a tos. Há sempre quem se identifique com o existência de um conteúdo na peça que discurso do poder político e de tudo o que afrontava os valores éticos estabelecidos na aparece sob a figura do Estado, inclusive a sociedade paulista de 1957. existência da Censura. E há também quem Pela análise de alguns dos discursos se reconheça alinhado aos discursos contra- manifestos na época, a censura não era poder, isto é, discursos de reivindicação, de caracterizada como instrumento de um contestação da ordem imposta, cuja força regime totalitário, mas sim como uma en- depende ao mesmo tempo da organização tidade capaz de zelar pela moral e pelos do grupo que os produz, de suas possibili- bons costumes. Um exemplo é o parecer dades de mobilização e dos valores éticos do Presidente da Comissão Estadual de emblematizados. Teatro, que, para defender a liberação de O caso de Perdoa-me Por Me Traíres, Perdoa-me Por Me Traíres, sugeriu alguns de Nelson Rodrigues, demonstra muito cortes e a supressão de algumas falas com bem a existência desses vários discursos. o intuito de despojar a peça de “excessos A peça sofreu interdição total na cidade eventualmente inaceitáveis para a plateia”. de São Paulo em um período democrático, Não era discutida, portanto, a validade da durante o governo do Presidente Juscelino existência de uma instituição pública desig- Kubitschek de Oliveira. A Censura impri- nada para salvaguardar a moral, mas sim a miu uma restrição parcial a um direito in- restrição completa da obra – algo que po- dividual assegurado pelo regime vigente e deria ser evitado pela delimitação rigorosa por isso instaurou um dilema social: por um da faixa etária da audiência, restringindo-se lado, uma parcela da sociedade invocava a o público a maiores de 21 anos. censura como forma de salvaguardar suas Num primeiro momento, o Governa- características comportamentais, de outro, dor do Estado de São Paulo, Jânio Qua- havia uma parcela que repudiava a censura dros, cedeu à pressão da classe teatral e por cercear a liberdade artística e a liberda- dos jornalistas e liberou a peça com os cor- 250

tes propostos. Quinze dias depois, diante subversiva, que desobedecia aos preceitos de três mil assinaturas solicitando a proi- legais do país, com intenção de demolir o bição do espetáculo, o governador cedeu regime democrático brasileiro, cuja estrutu- novamente à pressão e interditou a peça. ra é solidamente definida”. O desfecho do Evidenciou-se aqui que a capacidade de trâmite na Censura, contudo, foi diferente organização das senhoras da Ação Católi- de Perdoa-me Por Me Traíres. ca de São Paulo e sua grande capacidade Juntamente com membros da classe te- de mobilização tiveram mais força política atral, o autor – um jovem dramaturgo acla- para interferir na decisão de Jânio e fize- mado pela crítica e pelo público por Eles ram imperar o seu discurso regulador do não usam black-tie – recorreu contra a deli- cotidiano social. beração da Censura. O Secretário de Segu- Não é à toa que o processo n º 4451, de rança assumiu o caso e acatou o parecer de Perdoa-me Por Me Traíres, é o maior dentre uma comissão especial, liberando a peça os processos do Arquivo Miroel Silveira. Em com encenação restrita ao TBC – o “templo um regime democrático, os funcionários da burguês” –, mas proibindo-a para o restante Censura, que executavam o exame prévio dos palcos do Estado de São Paulo. de obras teatrais e que proibiram integral- No caso de A Semente, vê-se que as mente a encenação de uma peça escrita por forças que atuavam a favor e contra a proi- um dramaturgo de grande projeção, tinham bição da peça tinham igual intensidade. que se resguardar. Era necessário preservar Assim sendo, a decisão do Secretário de o maior número de documentos capazes de Segurança procurou contemplar as duas atestar que a interdição total fora decidida reivindicações, buscando um meio-termo depois de muita reflexão, no sentido de sal- entre as partes discordantes. O saldo da dis- vaguardar os anseios da sociedade civil. O puta terminou com uma reflexão estampa- mesmo aconteceu em 1961, no processo da no jornal Última Hora, pleiteando que a de A Semente, de Gianfrancesco Guarnieri, Censura fosse feita por intelectuais, fora das quando o Diretor Substituto da Divisão de esferas policiais. Novamente, mesmo sob Diversões Públicas procurou reunir os te- um regime democrático, percebe-se que legramas e abaixo-assinados enviados por não existe dentre os discursos circulantes o pessoas ligadas à Igreja Católica, que se questionamento sobre a existência do exa- mobilizaram para dar apoio à proibição in- me prévio das obras teatrais, mas, sim, há tegral da peça. A Semente era considerada a proposta de instauração de uma equipe pelos censores como “uma obra claramente mais qualificada para fazê-lo. 251

A imprensa, sendo “o principal meio de salvaguarda da moral e dos bons costumes contato com o ambiente invisível” (LIPP- que existia numa sociedade democrática – MANN, 2008, p. 275), detém a capacidade havia cessado. Agora, toda a questão dizia de propagar os discursos circulantes, geran- respeito à Segurança Nacional e ponto fi- do assim uma discussão cotidiana a respei- nal. Acabaram-se o diálogo e qualquer ou- to de determinados casos que não seriam tro tipo de consideração. visíveis para a maioria dos indivíduos. Com A motivação para que o Departamento o afastamento do caso do Diretor Substitu- de Polícia Federal suspendesse a encena- to da Divisão de Diversões Públicas, o pro- ção pública de Roda Viva adveio de uma cesso n º 5157 deixou de ser alimentado e manifestação popular de desagrado a uma alguns detalhes sobre a liberação da peça obra teatral que passou longe de abaixo- só puderam ser compreendidos em sua to- assinados e de telegramas de repúdio. Era talidade a partir das páginas dos jornais da um tempo de truculência e truculento foi o época – que deram ampla cobertura ao de- ataque empreendido pelo grupo paramilitar senrolar dos acontecimentos. A imprensa Comando de Caça aos Comunistas (CCC), também foi decisiva na divulgação do que que havia invadido e depredado o Teatro aconteceu com Roda Viva (1968), de Chi- Galpão em 18 de julho de 1968. No racio- co Buarque, em cujo processo n º 6116 só cínio tortuoso desses membros da direita, são encontrados os originais da peça e o se os atores podiam agredir a plateia, a pla- seu Certificado de Liberação em todo o ter- teia também podia agredir os atores. Logo ritório nacional, para maiores de 18 anos depois veio o AI-5 e todos sabemos o resto e sem cortes, emitido em 26 de janeiro de da história: quanto menor a liberdade, me- 1968, pelo Serviço de Diversões Públicas nor também é a participação da imprensa do Departamento Federal de Segurança e a circulação de discursos – uma vez que Pública – órgão do Ministério da Justiça e são sufocados os discursos contrapoder. Negócios Interiores. A causa da inexistên- Portugal no período salazarista é a grande cia de documentação que ateste a interdi- prova disso. ção da peça, em 4 de outubro de 1968, era César Príncipe conta que a imprensa o cenário político do país. O Brasil vivia portuguesa estava tão condicionada a te- sob o regime militar e a Censura migrara mer o regime que, no próprio 25 de abril da esfera estadual para a esfera federal, e o de 1974, dia em que o movimento militar dilema social provocado pela Censura – a pôs fim ao Estado Novo em Portugal, os escolha entre a liberdade de expressão e a jornais ainda mandaram provas de granel 252

à Censura e lá não encontraram ninguém. informação midiática é apenas uma parte Numa dessas ironias da história, os censo- desses mecanismos uma vez que é um uni- res já haviam percebido antes mesmo dos verso construído. Para Charaudeau (2006, jornalistas que os anos de ditadura tinham p. 188), chegado ao fim. existe um espaço público próprio às mídias que Quer dizer, o jornal ainda estava mais obedien- não deve ser tomado pela totalidade do espa- te que o censor. O censor apercebeu-se que já ço público; um espaço público midiático que tinha passado a hora dele, o censurado ainda provoca o acontecimento, daí porque se possa estava com medo. Isto é de fato interessante e, dizer que existe um modo discursivo do “acon- ao mesmo tempo, revelador da interiorização tecimento provocado”. da obediência e do risco, do medo de infringir. (informação verbal)29 A hipótese central que se apresentou no início deste trabalho é a de que a opinião Uma outra coisa chamou atenção no pública seria capaz de alterar o veredito decorrer desta investigação. Além da par- da censura, tanto no sentido de proibição ticipação da imprensa, no caso de três das como no sentido de liberação. A análise le- peças estudadas, pode-se notar que existiu vou a concluir que sim. Em todos os casos, a circulação de informação em outros ca- as manifestações públicas ocasionaram uma nais informais: as senhoras da Ação Cató- mudança nas decisões sobre as peças. Per- lica de São Paulo, mesmo sem acesso aos doa-me Por Me Traíres foi totalmente inter- originais ou à montagem na capital paulis- ditada; A Semente foi liberada com encena- ta, já conheciam a temática de Perdoa-me ção restrita ao TBC; Roda Viva foi proibida Por Me Traíres – cujo conteúdo não havia depois dos atos de vandalismo; A Promessa sido publicado pelos jornais; as “famílias levou dez anos para ser reencenada. do Sumaré” também sabiam do teor de A Outra conjectura aventada é a de que, Semente; alguns membros da sociedade de alguma forma, há o envolvimento da im- lisboeta também se opunham ao conteú- prensa nos casos em que ocorreram mani- do de A Promessa sem tê-la vista encenada festações – seja divulgando as peças, seja em sua cidade. Como já foi visto anterior- na divulgação dos autores, ou até mesmo mente, dentro da complexidade da trama fomentando a opinião pública. Tal con- social encontram-se múltiplos mecanis- jectura também se justifica, na medida em mos de proliferação de informação capa- que a instância midiática impõe ao cidadão zes de influenciar as opiniões individuais ou as opiniões de grupos – o universo da 29 Cf. César Príncipe, em Matosinhos, 2010. 253

uma visão de mundo previamente articula- seus opositores tinham representativida- da, construída pelos critérios de seleção de de no corpo social. A polêmica já estava fatos, pela escolha dos atores, pelos modos instaurada. de visibilidade determinados. A grande po- Tomemos como exemplo outro proces- lêmica em torno das peças pesquisadas diz so de interdição total presente no Arquivo respeito aos atores sociais envolvidos nos Miroel Silveira, no qual os autores da peça relatos dos jornais. não se encaixavam em nenhum desses cri- Segundo Charaudeau (2006, pp. 145- térios. Registrados na pasta sob o nº. 04169, 146), as mídias adotam quatro critérios para de 7 de maio de 1951, encontram-se os ori- selecionar seus personagens: 1) notorieda- ginais e o parecer da censora Liz Montei- de – deve-se dar destaque aos atores do ro sobre a peça Tarados de Vila Ema, de espaço público que estejam mais em foco, autoria de Mario Miola e Tito Vilari – dois o que dificulta o acesso às mídias para os autores completamente desconhecidos de anônimos e os grupos minoritários; 2) repre- um grupo de teatro amador da periferia de sentatividade – evidenciam-se atores que São Paulo. Para a funcionária da DDP en- pertençam a grupos reconhecidos como carregada de fazer o exame prévio, a obra detentores de poder ou contrapoder (pesso- – além de não ter o menor conteúdo teatral, as do governo, da oposição, dos sindicatos, artístico ou dramático – era “mal escrita e das coordenações, dos diferentes corpos verdadeiramente obscena”. A pretensão do profissionais ou de diferentes associações); autor em submeter tal “monstruosidade à 3) expressão – escolhem-se pessoas que sai- Censura” feria qualquer formação, pois se bam falar com clareza e simplicidade, que tratava de uma peça “calamitosa”, sujeita saibam fazer-se entender pelas massas; 4) às penalidades dispostas no Código Penal polêmica – organizam-se confrontos entre Brasileiro. Tarados de Vila Ema sofreu im- pessoas que tenham posições antagônicas pugnação integral – nenhuma bandeira foi e que saibam polemizar. levantada a seu favor e nenhuma linha foi Perdoa-me Por Me Traíres, A Semente publicada sobre o fato. Não havia notorie- e Roda Viva ocuparam as páginas dos jor- dade, nem representatividade, nem domí- nais brasileiros e o caso de A Promessa é nio da língua portuguesa, nem polêmica. lembrado até hoje em Portugal porque seus Vê-se que o acesso às mídias não é algo autores ou encenadores atendiam a todos simples e que a representação simbólica da esses critérios: tinham notoriedade, sabiam democracia tem suas próprias exigências, se expressar e tanto seus defensores como que devem ser satisfeitas. Normalmente, co- 254

locam-se em cena apenas “personalidades determinada sociedade e as representações cuja palavra, por sua função institucional, que seus membros têm dela própria. tem poder de decisão, pondo em evidência Hoje, em tese, não temos mais censu- o jogo de um espaço político, no qual re- ra no Brasil, mas, de vez em quando, nos gras e convenções constituem atos destina- deparamos com situações curiosas e preo- dos a atingir, idealmente, um objetivo éti- cupantes. É o caso ocorrido recentemente co: o bem-estar coletivo” (CHARAUDEAU, com A Serbian Film – Terror sem Limites, 2006, p. 196). Os anônimos também têm película que circulou por festivais interna- o direito de opinar em nome da igualdade cionais e depois enfrentou problemas sérios entre cidadãos, mas nem sempre isso acon- ao chegar ao circuito comercial em vários tece, pois, pela ótica da agenda midiática, lugares do mundo: foi proibido na Espanha, o mundo é apresentado através de uma vi- banido da Noruega e só pôde ser exibido são espacial e temporal fragmentada. nos cinemas britânicos depois de sofrer 49

O que acreditamos ser o visível do mundo é cortes – a maior censura feita em um filme apenas um invisível, intocável, construído em no país em quase 20 anos. Por isso, para visível pelo efeito do conjunto da espetaculari- ganhar o circuito comercial, o longa-me- zação e da projeção de nossa memória sobre o espetáculo. (CHARAUDEAU, 2006, p. 269) tragem tem sido lançado diretamente em DVD na maior parte das vezes. Esta pesquisa procurou detectar as mani- No Brasil, A Serbian Film foi exibido festações públicas reportadas pela imprensa em meados de julho de 2011 no VII Fes- no Brasil de 1957 a 1968 frente à censura tival de Cinema Fantástico de Porto Alegre teatral, visando à compreensão de algumas (Fantaspoa) e no Festival Lume de Cinema, das vozes que se fizeram ouvir. Com o ob- de São Luís. Porém, no dia 23 do mesmo jetivo de delinear as relações de poder que mês, a Caixa Cultural – centro cultural da estruturaram a prática censória dentro da Caixa Econômica Federal – suspendeu a estrutura simbólica da língua portuguesa, exibição da película no Festival Fantástico empreendeu-se também um estudo de caso do Rio (RIOFAN), em sua sede, na cidade em Portugal. Cabe ressaltar a importância do Rio de Janeiro. A Caixa Econômica Fe- de se investigar a Censura em um determi- deral tomou essa decisão depois de receber nado período, pois, além da possibilidade diversos telefonemas de clientes do banco de recuperação da história cultural e inte- que ameaçavam cancelar suas contas caso lectual, esse campo de estudo permite tam- o longa-metragem de terror fosse mantido bém trazer à luz alguns aspectos de uma na programação do festival. O superinten- 255

dente de comunicação e marketing da Cai- E a controvérsia não parou por aí. Em xa, Clauir Luiz Santos, ao ser informado dos 28 de julho, atendendo à Procuradoria da possíveis prejuízos à imagem da instituição República em Minas Gerais, o Ministério financeira, prontamente determinou o can- da Justiça suspendeu os trâmites para se celamento da exibição. Em nota oficial, a estabelecer a classificação indicativa defi- Caixa justificou sua atitude afirmando que nitiva para A Serbian Film. Porém, em 5 de “a arte deve ter o limite da imaginação do agosto, o Ministério classificou o longa-me- artista, porém nem todo produto criativo tragem como “não recomendado para me- cabe de forma irrestrita em qualquer supor- nores de 18 anos”. Na ocasião, a Consulto- te ou lugar”. Já a organização do RIOFAN ria Jurídica do Ministério da Justiça afirmou se posicionou radicalmente contra qual- não ter competência de aferir a ocorrência quer forma de censura e repudiou a retirada de crime, em tese, em obra cinematográfi- do filme da programação. Contudo, o po- ca, nem tão pouco ter o poder de proibir der econômico foi mais forte e a decisão da a sua veiculação antes que se conclua um Caixa Cultural foi mantida. inquérito civil ou policial, ou que haja uma O incidente ganhou as páginas dos jor- decisão judicial. nais e, ainda em julho, sem terem assistido Quatro dias depois, uma liminar proi- ao filme, o ex-prefeito do Rio, Cesar Maia, e biu a exibição do filme em todo o territó- seu filho, o deputado federal Rodrigo Maia, rio nacional por determinação da Justiça em nome de seu partido – Democratas Federal em Belo Horizonte, que atendeu (DEM) –, acionaram uma equipe de advo- ao pedido feito pelo Ministério Público Fe- gados para que fosse movida uma ação civil deral em ação cautelar. De acordo com o pública na Justiça do Rio de Janeiro para im- MPF/MG, o longa-metragem faz apologia à pedir a exibição da fita numa sessão espe- prática de pedofilia, pois contém cenas que cial, no Cine Odeon. A juíza Katerine Jatahy simulam um menor de idade sendo abu- Nygaard acatou a solicitação e assinou uma sado sexualmente, além de cenas de sexo liminar determinando a suspensão da obra explícito, pornografia, crueldade, elogio e e seu recolhimento para análise judicial. A banalização da violência. O filme carrega ação, que corre em segredo de justiça na ainda cenas de necrofilia, tortura, suicídio, 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Ido- mutilação e agressão no ambiente familiar. so, não tem prazo para terminar. Enquanto A Igreja Batista da Lagoinha (MG), em isso, o filme fica proibido de ser exibido sob artigo intitulado “A Serbian Film – Intragá- pena de multa diária de R$ 100 mil. vel e nojento”, publicado em seu site, con- 256

clamava uma campanha evangélica contra bernaculodasnacoes.com.br, entre outros. a liberação do filme dizendo: Como se vê, o discurso propagado pelos grupos evangélicos tem alto grau de proxi- O veto a não exibição do filme ainda é parcial. Ele pode ser alterado a qualquer momento e a midade com o discurso emitido pelas comu- pressão contra a censura e em prol da veicula- nidades católicas em 1957, contra as peças ção do filme é intensa em todo território nacio- Perdoa-me Por Me Traíres e A Promessa. nal. Muitos estão a favor da veiculação de A Serbian Film sob a alegação de que o ato fere Em contrapartida, há também na inter- a Liberdade de Expressão, ainda que isso fira o net outra manifestação pública no sentido Estatuto da Criança e do Adolescente (nº 8069 de se obter a liberação do filme. No site de 13 de julho de 1990), e ainda faça apologia à violência em outros âmbitos, o que vai total- www.peticaopublica.com.br, está posta- mente contra à moral e os bons costumes. do um abaixo-assinado manifesto do Con- […] “Um pouco de fermento leveda toda a gresso Brasileiro de Cinema (CBC) contra a massa. Confio de vós, no Senhor, que não ali- censura que, até 30 de novembro de 2011, mentareis nenhum outro sentimento; mas aque- le que vos perturba, seja ele quem for, sofrerá a havia coletado 1.354 assinaturas pleitean- condenação.” (Gálatas 5.9-10 - ARA). do a liberdade de expressão, o respeito à Frente a essa realidade é estritamente necessá- Constituição Federal e o direito de pleno ria a mobilização do meio evangélico a fim de acesso à informação e à cultura. A partir de pressionar os poderes, Executivo, Legislativo, e Judiciário em prol da proibição definitiva e setembro, contudo, o assunto saiu do agen- total de distribuição e veiculação do filme em da setting das mídias e esfriou. E apesar dos questão. Em países como Espanha, França, Itá- recursos da distribuidora do longa-metra- lia, Noruega e Reino Unido, isso já é uma re- alidade, mesmo sob a cultura de liberalidade gem – todos negados –, por hora, a liminar desses lugares. que proíbe a exibição do filme continua vá- Não podemos permitir que o nosso país se en- lida. A polêmica em torno da suspensão de tregue a esse tipo de “manifestação cultural”, A Serbian film - Terror sem limites, porém, nome dado pela crítica cinematográfica. (Igre- ja Batista da Lagoinha. Belo Horizonte, teve um efeito imediato: a obra foi muito 08 ago. 2011. Disponível em: . Acesso: 30 nov. 2011). Não se pretende aqui discutir o conte- údo do filme, nem tão pouco o seu valor A campanha da Lagoinha espalhou-se artístico. O fato é que A Serbian Film é um por diversos sites e blogs de evangélicos, caso emblemático para comprovar que as tais como www.diantedotrono.com, http:// questões abordadas neste trabalho continu- oamordedeusvive.dihitt.com.br e http://ta- am atuais. Passados 60 anos, ainda não foi 257

equacionado o dilema social que envolve a O próprio Conar recebeu 42 reclama- Censura em regimes democráticos – a liber- ções de consumidoras e consumidores de dade de expressão em oposição à preser- todo o país contra a campanha em TV de vação dos valores éticos emblematizados. fabricante de lingerie Hope. Todas conside- Infelizmente, a proibição do filme também raram a campanha sexista e desrespeitosa iniciou um precedente perigoso: qualquer para com a condição feminina. A relatora grupo que se sinta ofendido pode entrar na da Representação nº 225/11, Conselheira justiça e obter a proibição de uma obra por Nelcina Tropardi, considerou a campanha meio de uma liminar. Isso seria desastroso. caricatural, pautada pelo bom humor e que A polêmica em torno de A Serbian Film brinca com estereótipos – o da mulher ob- não foi a única ocorrida em 2011. No fi- jeto e o do homem paspalho, facilmente nal de setembro, depois de ter recebido seis manipulável por uma mulher sensual. Po- reclamações por meio de sua ouvidoria, a rém esses clichês – ou a forma como foram Secretaria de Políticas para Mulheres do retratados – não destoam do que o brasilei- governo federal pediu ao Conar (Conselho ro rotineiramente vê na mídia em geral. O Nacional de Autorregulamentação Publi- fato de o espectador gostar ou não entraria citária) a suspensão da campanha publici- no terreno de outra discussão, e uma peça tária “Hope ensina”, que trazia a modelo publicitária não deve ser suspensa por seu Gisele Bündchen mostrando a “melhor ma- eventual mau gosto, “sob pena de tal deci- neira” de contar más notícias ao marido. O são revestir-se de viés autoritário, qual seja, comercial insinua, com humor, que se uma o da imposição da opinião ou do gosto de mulher tem que dar uma notícia ruim para o uns sobre o dos outros” (CONAR. São Paulo. seu parceiro, é melhor fazê-lo de lingerie. Disponível em: . Aces- Segundo a Secretaria, as queixas eram so: 01 dez. 2012). O Conselho Nacional de no sentido de que a propaganda reforçava Autorregulamentação Publicitária, por una- o estereótipo da mulher como objeto sexu- nimidade, acatou o parecer da relatora ,que al e ignorava as conquistas da sociedade sugeria o arquivamento da representação, e contra o sexismo (discriminação baseada a campanha continuou a ser veiculada. no sexo). Por isso, o comercial da Hope es- A dicotomia sempre presente entre li- taria infringindo os artigos 1o e 5o da Cons- berdade de expressão e a manutenção dos tituição Federal que tratam da dignidade da valores éticos da sociedade tem sua origem pessoa humana e da igualdade perante a no conceito filosófico de liberdade, que, lei, respectivamente. geralmente, é dado pela negação: trata-se 258

da ausência de submissão, de servidão e de e, uma vez estabelecidos os vínculos con- determinação. Segundo Thomas Hobbes tratuais, os homens ficam obrigados a cum- (1588 – 1679), pensador de grande influên- pri-los por medo das consequências resul- cia na filosofia do direito e na concepção tantes da ruptura deste acordo social tácito. do Estado Moderno, a liberdade é definida Dentro da lógica hobbesiana, um indivíduo pela ausência de impedimentos externos que transfere ou renuncia a seu direito de que poderiam tirar parte do poder que cada liberdade e aceita o contrato do Estado, age indivíduo tem de fazer o que quiser. Trata- de forma voluntária, pensando no bem co- se de um direito natural do homem usar a mum. É esse conceito de bem comum que liberdade individual que possui para fazer procura justificar a ocorrência de discursos tudo aquilo que seu próprio julgamento e a favor da censura de ideias. razão indiquem como meios adequados Há outros autores, contudo, que con- para a preservação da vida. sideram o conceito filosófico de liberdade Na perspectiva hobbesiana, no estado em uma perspectiva positiva, definindo-o de natureza, todo homem tem direito a to- como a autonomia de um sujeito racional. das as coisas, incluindo os corpos dos ou- Alinhado a esse pensamento, Jean-Paul Sar- tros, pois onde não há poder comum não tre (1905 – 1980) acredita que o homem, há lei, e onde não há lei não há injustiça. por sua própria natureza, é livre e responsá- Sem a proteção do Estado e sem a institui- vel por seu passado, seu presente e seu futu- ção de leis, nenhum homem pode garantir ro, pois é um indivíduo dotado de discerni- sua existência e evitar uma morte violenta. mento e capaz de fazer suas escolhas. Afas- É necessário, então, tado de uma ética baseada em princípios que um homem concorde, quando outros tam- divinos, Sartre defende que o nada habita bém o façam, e na medida em que tal conside- o homem e que este homem só experimen- re necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as tará uma existência autêntica se vislumbrar coisas, contentando-se, em relação aos outros o nada de seu ser como uma possibilidade homens, com a mesma liberdade que aos ou- total e plena de se constituir. tros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu di- O Ser da consciência, enquanto consciência, reito de fazer tudo quanto queira todos os ho- consiste em existir à distância de si como pre- mens se encontrarão numa condição de guerra. sença a si, e essa distância nula que o ser traz (HOBBES, 2007, p. 48) em seu ser é o Nada. (SARTRE, 1997, p. 127).

A transferência mútua de direitos, para O homem seria, então, pura potencia- Hobbes, é aquilo a que se chama contrato lidade: pode ser tudo o que quiser ser e os 259

valores morais não se impõem como limi- al da autonomia imaginada por Sartre, esse tes para a liberdade. Pois, no pensamento indivíduo ainda tem a liberdade em potên- sartriano, é o nada que permite ao sujeito a cia, ou seja, a liberdade de seu pensamen- condição intrínseca de ser livre. Tal postula- to. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman do é a negação total do determinismo, pois (2005, p. 141) dá-nos fundamentos para reafirma o indivíduo como produto de suas esse postulado: próprias escolhas e não um ser imutável. Nós, seres humanos, somos e não podemos Para conciliar o pensamento anti-deter- deixar de ser animais “transgressores” e “trans- minista de Sartre e o pensamento de Hob- cendentes”. Vivemos à frente do presente. bes, no qual, em respeito ao contrato social, Nossas representações podem ser destacadas dos sentidos e correr na frente deles. O mundo dentro do Estado não há liberdade plena, em que vivemos está sempre a um passo, ou tomamos emprestado o conceito filosófico quilômetro, ou um ano-luz à frente do mundo de Infinito em Aristóteles – conceito que, que vivenciamos. A essa parte do mundo que se estende à frente da experiência vivida da- como a liberdade, usualmente também é mos o nome de “ideais”. A missão dos ideais é tomado pela definição negativa, diz respei- conduzir-nos a um território ainda inexplorado to àquilo que não é finito. Podemos, assim, e não-mapeado. imaginar a existência de dois tipos de liber- dade: a liberdade em ato e a liberdade em E é por isso que precisamos nos desem- potência. baraçar das amarras da Censura e preser- Se considerarmos que o indivíduo, para var a liberdade. Só assim, potencialmente se manter em sociedade e garantir a sua livres, podemos contar as narrativas do sobrevivência, teve que abdicar de toda a mundo que vivemos dentro do mundo que sua liberdade – abrindo mão de poder agir vivenciamos. E apenas com a manutenção como e quando bem entender, acatando as da publicidade e da livre circulação da in- convenções sociais nas quais se insere –, formação é que a população pode aprender esse indivíduo abriu mão somente da sua li- a lidar com sua liberdade e buscar a recons- berdade em ato. Porém, para realizar o ide- trução de suas representações do presente. 260

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Periódicos

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Entrevistas

César Príncipe, jornalista, em entrevista concedida em Matosinhos, Portugal, dia 29 de junho de 2010.

Vicente Batalha, presidente do Instituto Bernardo Santareno, em entrevista concedida em Santarém, Portugal, em 12 de agosto de 2010.

Júlio Gago, presidente e diretor artístico do Teatro Experimental do Porto (TEP), em entrevista concedida em Vila Nova de Gaia, Portugal, em 24 de agosto de 2010.