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 UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Engenharia

   

Versão final após defesa

Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Arquitetura (Ciclo de estudos integrado)

Covilhã, de 2018 ii

Ao Mauris e à Carminha, meus pais, e à Gisela e ao Afonso.                         

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AGRADECIMENTOS

 Antes de mais, um enorme agradecimento aos meus pais e irmã, pelo amor e carinho, apoio, motivação e confiança em todos os momentos deste percurso. Ao meu sobrinho pelas saudades, macacadas e entreténs.

Aos amigos: À Rita, ao Lipe, à Jane, ao Pedro e ao Rafa, pela vossa amizade, pelos nossos momentos cá e lá, pelas escapatórias de trégua e pelas nossas guiças frescas. Ao Hélio e ao Pedro pela casa e pela alegria e euforia. Ao grande Semilhas pela boa insânia. À Ana e ao Juanje pelas palavras e energia. À Rita Açoriana pelas conversas e ao Fábio e ao Gonçalo pela mão. Ao João pela força e companhia. À Cláudia, ao Quiqui, ao Fábio, ao Rosita, ao Arnaut e ao Mário. E finalmente, às amigas e compinchas académicas, Açores e Joana, por tanto. Pelos desvairos, e alegrias, e cabeçadas, e por todos aqueles dias e noites que já foram. Agradeço-vos a amizade e a força e tudo mais.

Um especial agradecimento à Rasha, Mariam e Arwa por toda a disponibilidade, atenção e ajuda, e aos professores Renato Bocchi e Fernanda di Maio pelo interesse, dispobilidade, colaboração e livros presenteados.

E por fim, à minha orientadora Rita Ochoa pela imprescindível ajuda, paciência e dedicação, e ao meu co-orientador Jorge Jular pela inspiração, sugestões e por toda a colaboração.

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RESUMO |

A presente dissertação consiste no estudo da evolução das cidades, da arquitetura e do papel do arquiteto ao longo dos tempos, face às transformações provocadas pelas guerras. O trabalho tem como ponto de partida a investigação das atuações e pensamentos gerados pelos arquitetos desde a Primeira Guerra e a forma como as estratégias e procedimentos arquitetónicos e urbanísticos se foram modificando. Num primeiro momento, este estudo incide nas relações entre a guerra e a arquitetura, enunciando pontos como a destruição das cidades, seu património e memória, e a forma como estas mesmas cidades se recuperaram após a destruição por conflito. Para este efeito, foram analisados alguns casos de estudo em países como Polónia, Inglaterra e Alemanha, mais especificamente as cidades de Varsóvia, Londres e Berlim, para um entendimento da reconstrução do cenário de destruição após a Segunda Guerra Mundial. Adicionalmente, foi estudada a reconstrução da cidade de Beirute, num cenário mais recente, destruída após a Guerra do Líbano (1975-90). Finalmente e num segundo momento, é apresentada uma proposta de um módulo habitacional em contexto pós-guerra, para o concurso de ideias internacional Syria: Post-war Housing, realizado em 2016. Esta proposta é acompanhada de uma contextualização sobre a questão síria que enfrenta, ainda hoje, uma extensa e dolorosa guerra, e que se alega ser uma das maiores crises humanitárias desde a Segunda Guerra Mundial. Desde o início desta guerra, em 2011, cerca de 5,4 milhões de pessoas fugiram da Síria, e hoje as cidades deste país estão em grande parte destruídas e sem condições para os que querem retornar.

Palavras chave: papel do arquiteto, guerras, pós-guerras, reconstrução, concurso de ideias, Síria.

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| ABSTRACT

The present dissertation consists of the study about the evolution of cities, architecture and the role of the architect over time, when confronted with the transformations caused by wars. This work has as it is starting point the investigation of the actions and thoughts generated by the architects since the First War, and the way in which the architectural and urbanistic strategies and procedures have been modified since then. At first, the study focuses on the relations between war and architecture, stating points such as the destruction of cities, their heritage and memory, and the way in which theses same cities have recovered after the destruction by conflict. To this point, some case studies were analysed in countries such as Poland, England and Germany, specifically the cities of Warsaw, and Berlin, for an understanding of the reconstruction of the scenario of destruction after World War II. In addition, the reconstruction of the city Beirut was studied, in a more recent scenario, destroyed after the Lebanese Civil War (1975-90). Finally, a proposal for a housing module in a post-war context is presented for the international Syria: Post-war Housing Competition in 2016. This proposal is followed by the Syrian background, which faces, still today, an extensive and painful war, and is claimed to be one of the greatest humanitarian crises since World War II. Since the beginning of this war, in 2011, about 5,4 million people have fled from Syria, and today, the cities of this country are largely destroyed and without conditions for those who want to return.

Keywords: role of the architect, wars, post-wars, reconstruction, idea contest, Syria. 

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 viii ÍNDICE |

Agradecimentos ...... v Resumo ...... vi Abstract ...... vii Índice de Figuras ...... x Lista de Acrónimos ...... xx

1. INTRODUÇÃO ...... 1 Objetivos ...... 5 Metodologia ...... 6 Estrutura da dissertação ...... 10

PARTE I:

2. O ARQUITETO ENTRE GUERRAS ...... 15 A arquitetura e o arquiteto em (r)evolução entre guerras ...... 17 Arquitetos modernos – construtores sociais? ...... 20 Dos CIAM até à Segunda Guerra ...... 25 Re-humanização após a Segunda Guerra ...... 35 Pensamentos e ideias projetadas durante a guerra ...... 37 Humanização da Arquitetura ...... 47 O cenário pós-guerra: Tabula rasa ou Fac-símile? ...... 55 Os CIAM no cenário pós-guerra ...... 63 Re-definidores da arquitetura – Team 10, Archigram e os Metabolistas ...... 85 O papel dos Team 10 ...... 87 Utopias e manifestos pós-guerra – Archigram e os Metabolistas ...... 98

3. A RECONSTRUÇÃO E ARQUITETURAS EM CENÁRIOS PÓS-GUERRA ...... 111 A Guerra e a Arquitetura ...... 113 A guerra e as cidades dos seus habitantes ...... 115 Destruição da memória ...... 117 Terrorismo e as cidades ...... 121 Um breve olhar sobre a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra ...... 123 Em memória da arrasada Varsóvia – O centro histórico ...... 131 A brutal Inglaterra pós-guerra ...... 137 A Alemanha arruinada pós-guerra ...... 175 Outra guerra, outra cidade – a reconstrução de Beirute, Líbano ...... 233 A Beirute oportuna pós-guerra ...... 239

PARTE II:

4. A SÍRIA – UM PROJETO PARA CONCURSO SYRIA: POST-WAR HOUSING ...... 277 A Síria, um país destruído ...... 279 Memória descritiva do projeto para concurso SYRIA: Post-war Housing ...... 291

5. CONCLUSÃO ...... 319 Bibliografia ...... 326 Anexos ...... 337

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LISTA DE FIGURAS |                          

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00. Fotografia de um canal e arquitetura de Veneza. Fotografia da autora, 2017……………………… 8 01. Fotografia na Aula Magna, em Tolentini, antes das conferências. Fotografia da autora, 2017. …. 8 02. Fotografia na biblioteca da IUAV em Tolentini, Veneza. Fotografia da autora, 2017. ……………. 8 03. Martha Rosler, Housing is a Human Right, Time Square Spectacolor animation detail, 1989. ….. 13 www.e-flux.com/announcements/7265/martha-rosler-housing-is-a-human-right/  04. Detroit Army Arsenal (1940), foi a primeira fábrica construída para a produção em massa de tanques nos EUA. Projetado por Albert Kahn, é um exemplo de como o arquiteto e a arquitetura se adapta consoante as necessidades impostas e pela época. …………….…………….……………….. 16 https://canadianart.ca/must-sees/architecture_in_uniform/ 05. Robert Owen, Perspectiva do New Harmony, 1825. Fotografia de 18 Grange……………………….... www.fineartamerica.com/featured/new-harmony-1824-granger.html 06. Charles Fourier, Perspectiva do Le Phalanstère (O Falanestério), 1829. ………………………...... 18 www.lagship_visions/index.php/utopia/337-the-phalanstery-charles-fourier

07. Paul Klee, The Twittering Machine (A Máquina de Falar), 1922. ………………………...... 22 www.paulklee.net/twittering-machine.jsp

08. Fotografia de grupo do primeiro congresso CIAM, em La Sarraz. (1928) ……………...... 24 www.arquiteturacidadeprojeto.blogspot.pt/2015_04_09_archive.htm

09. Publicidade ao Mercedes-Benz Classic em Sttutgart, Alemanha. (1929) Cenário: Casas 14 e 15 da exposição Weissenhofsiedlung Sttutgart de e Pierre Jeanneret, 1927. …………….. 26 www.archello.com/en/project/weissenhof-museum/2686225 4 10. Fotografia do terraço do Siedlung em Frankfurt, de Ernst May, 1930. ……………………………… 28 www.ernst-may-gesellschaft.de/das-neue-frankfurt/wohnsiedlungen/siedlung bruchfeldstrasse.html 4 11. Protesto sob o formato de colagem, de Sigfried Giedon para Estaline, em 1932, a propósito do concurso para o Palácio dos Sovietes. Ao centro está a proposta vencedora de Hector Hamilton comparada com uma “pseudo-arquitetura moderna de armazém e igreja.” …………………………… 30 (MUMFORD, 2000) 4 12. Boeing B-29A-45-BN – Missão em Osaka, Japão. Fotografia do Exército da Força Aérea dos Estados Unidos, junho de 1945. Créditos da foto fornecidos por USAFHRA. ………………………….. 34 https://en.wikipedia.org/wiki/File:Boeing_B-29A-45-BN_Superfortress_44- 61784_6_BG_24_BS__Incendiary_Journey.jpg. 4 13. Berlim devastado pela forças Aliadas, em 1945. ……………………………………………………… 38 www.spiegel.de/fotostrecke/photo-gallery-a-century-long-project-fotostrecke-56372.html 4 14. Bombardeamento pelas forças Aliadas da cidade medieval Caen, em Normandia, França. Data: 7 de Julho de 1944. www.battlefieldhistorian.com/bhc001092_caen_after_allied_bombing_june_july.asp …… 40 4 15. Uma exibição do plano de Londres com a presença do Rei George VI e a Rainha Elizabeth, e o planeador e professor Patrick Abercrombie e o arquiteto-chefe do plano, JH Forshaw. Data entre Julho e Agosto de 1943. https://manuscriptsandmore.liverpool.ac.uk/?tag=patrick-abercrombie …………….. 42 4 16a. Linha temporal de ações e ideias dos arquitetos durante o decurso da Segunda Guerra. Desenho da autora. ……………………………………………………………………………………………… 43 4 16b. Linha temporal de ações e ideias dos arquitetos durante o decurso da Segunda Guerra. Desenho da autora. ……………………………………………………………………………………………… 45 4 17. Maquete de reconstrução da vila de Sarrebruck, 1947, por Georges-Henri Pingusson. …………. 44 http://institut-aktuelle-kunst.de/kunstlexikon/aspects-les-urbanistes-francais-en-sarre-de-1945-a-1947-1 4 18. Esquema de distribuição das densidades e das articulações das zonas verdes do centro de Vällingby, em Estocolmo. Criado por Sven Markelius. ……………………………………………………. 44 http://urban-networks.blogspot.pt/2015/12/la-solucion-nordica-nuevas-ciudades-en.html 4 19. Modelo do Roosevelt Memorial, 1974. Fotografia de George Pohl. Arquivos arquitetónicos da Universidade da Pensilvânia. http://archweb.cooper.edu/exhibitions/kahn/essays_02.html…………………. 46 4 20. Esboço do planeamento urbano para Saint-Dié, em França, 1945. Composto por oito unidades de habitação (a mesma construída em Marselha), o plano foi rejeitado e não construído. Desenho de Le Corbusier. www.fondationlecorbusier.fr …………………………………………………….…………... 50

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21. Esboço da futura praça pública de Saint-Dié, o centro cívico, com a igreja barroca em segundo plano. Desenho de Le Corbusier. www.fondationlecorbusier.fr/ ……………….…………...……………….. 50 4 22. Salk Institute (1965) de Louis Kahn, na Califórnia. Fotografia de Scott Davenport. ..……………... 52 www.scottdavenportphoto.com/blog/a-visit-to-the-salk-institute 4 23. Cidade de Roterdão, na Holanda, depois da Segunda Guerra, na espera por uma reconstrução. 54 https://relativelyrelatives.wordpress.com/2015/04/25/war/ 4 24. Artigo publicitário para a reconstrução pós-guerra na revista Architectural Forum, 1943. ……….. 56 http://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/serial?id=architecturalforum 4 25. Praça do mercado de Varsóvia, depois da sua reconstrução, em 1953. ………..………..………... 58 www.arttattler.com/architecturereconstructions 4 26. Parte da maquete preparada para o plano de reconstrução do centro da cidade de Coventry, bombardeado pela guerra, por Donald Gibson. www.iwm.org.uk/collections/item/object/205211390………. 58 4 27. Maquete da cidade ideal Le Havre, de Perret, em 1946. Fotografia da Biblioteca Municipal de Havre. ………..………..………...………..………..………...………..………..………...………..………..… 60 http://unesco.lehavre.fr/en/understand/the-ideal-city-of-1946 4 28. Vista da cidade Le Havre de Auguste Perret. Créditos: Gilles Targat. ………..………..………...... 60 www.franceculture.fr/histoire/le-havre-par-auguste-perret-comme-disait-de-gaulle-faire-du-nouveau-et-du- raisonnable 4 29. Fotografia de alguns dos membros no sexto congresso dos CIAM, na cidade de Bridgwater, em Inglaterra (1947). Créditos: RIBA Collections. ………..………..………...………..………..………...…… 64 www.ribaj.com/culture/exhibition-congres-international-d-architecture-moderne-bridgwater-somerset 4 30. Fotografia de alguns participantes do CIAM em momento descontraído, no congresso de 1949, na cidade de Bérgamo, em Itália. Créditos: RIBA Collections. ………..………..………...………..……. 68 www.architecture.com/image-library/ribapix/image-information/poster/participants-at-the-ciam-7-conference- bergamo-relaxing/posterid/RIBA53633.html 4 31. Kolo , em Varsóvia, de Szymon e Helena Syrkus. Fotografia da obra Warsaw 1960, por Edmund Kupiecki…………..………..…….………..………...………..………..………...………. 70 http://smilingfacessometimesbutonlysometimes.blogspot.pt/2012/08/warszawa-1960-6.html/ 4 32. Distrito experimental QT 8, Milão, em 1949. De BBPR e outros. .………..………..………...……… 70 www.hestetika.it/la-storia-del-qt8-di-milano-in-un-libro/ 4 33. Unidade de Habitação de Marselha, França. 1952, Le Corbusier. .………..………..………...... 72 www.fondationlecorbusier.fr/ 4 34. Sotteville-lès-Rouen, em França, de Marcel Lods. …..………...... …..………...... …..………. 74 https://sottevilleaufildutemps.wordpress.com/2017/05/04/construction-de-limmeuble-anjou-le-premier-de-la- zone-verte/ 4 35. Vila de Nagele, na Holanda, pelo grupo De 8. …..………...... …..………...... …..……………. 74 www.theberlage.nl/galleries/projects/details/noordoostpolder 4 36. Vista aérea do distrito de Pendrecht em Roterdão. …..………...... …..………...... …..………. 76 www.architectureguide.nl/project/list_projects_of_architect/arc_id/12/prj_id/291 4 37. Edifício habitacional do distrito de Pendrecht. Foto de 2006. …..………...... …..………...... 76 www.architectureguide.nl/project/list_projects_of_architect/arc_id/12/prj_id/291 4 38. Colagem do projeto Golden Lane numa área bombardeada de Inglaterra...... …..………...... 80 http://volumeproject.org/total-recall-a-lecture-by-dirk-van-den-heuvel/4 4 39. Hallfield State Bloco A Norte, em Paddington...... …..………...... …..………...... 80 www.architectsjournal.co.uk/aj-buildings-library-hallfield-estate-1955/8617800.article 40. Vista aérea de Churcill Gardens em Pimlico. www.ispreview.co.uk/index.php/2017/10/churchill- gardens-named-largest-ftth-broadband-estate-central-london.html………...... …..………...... 81 4  41. Vista aérea de em . ………...... …..………...... 81 www.wandsworthguardian.co.uk/news/14319889.Time_to_bid__Wandsworth_Council_launches_tendering_proc ess_on_Alton_estate/ 4

 xii 42. Habitação social Pruitt-Igoe (1950-56), em St. Louis, Missouri, nos EUA. ………...... 82 www.pruitt-igoe.com/urban-history/ 4 43. Demolição de Pruitt-Igoe (1972). ………...... …..………...... 82 www.huduser.gov/portal/pdredge/pdr_edge_featd_article_110314.html 4 44. Tees Pudding de Alison e Peter Smithson (1977). Pasto artificial plantado com o filtro da máquina de secar a roupa. ………...... …..………...... 84 SMITHSON, Alison – How to recognize and read Mat-Building – Mainstream architecture as it has developed towards the mat-building. Architectural Design. (Setembro de 1974). 4 45. Fotografia da conferência da Team 10 em Otterlo, onde participaram Aldo van Eyck, Jaap Bakema, Ernesto Rogers, Kurokawa, Alison and Peter Smithson, Geroge Gandilis, Herman Haan e Giancarlo de Carlo. 1959. ………...... …..………...... 86 www.schatkamer.nai.nl/en/projects/correspondentie-toespraak-en-manifest-congres-team-10 4 46. Fotografia da Torre Velasca erguida no centro de Milão, em Itália...... 90 www.schiavispa.it/blog/design/torre-velasca/ 4  47. Cobertura abobadada do Orfanato de Amesterdão, de Aldo van Eyck. Créditos de CCA Mellon Lectures. ………...... …..………...... 92 www.archdaily.com/151566/ad-classics-amsterdam-orphanage-aldo-van-eyck 4  48. Vista aérea do Orfanato de Amesterdão, de Aldo van Eyck. Créditos de CCA Mellon Lectures. .. 92 www.archdaily.com/151566/ad-classics-amsterdam-orphanage-aldo-van-eyck 4 49. Free University de Berlim, por Candilis-Josic-Woods, 1963...... 94 http://commonthejournal.com/staedte-als-produzenten-von-geschichten/die-stadt-als-intelligente-maschine-zum- eigenleben-einer-metapher/ 4  50. Proposta para reconstrução de Frankfurt-Römerberg, de Candilis-Josic-Woods 1963...... 94 https://exportabel.wordpress.com/2009/02/16/neuer-umgang-mit-stadt-das-romerberg-projekt-von-19 4 51. Vista do complexo habitacional Le Mirail, perto da cidade de Toulouse, em França...... 94 www.ladepeche.fr/article/2008/12/10/505756-le-reve-envole-du-mirail.html 4 52. Esquema da estrutura de Golden Lane, de Alison e Peter Smithson (1952)...... 96 http://thesis.arch.hku.hk/2015/2015/11/10/the-space-between-spaces-2/ 4 53. Vista do completo habitacional , em Poplar...... 96 https://archpaper.com/2015/06/richard-rogers-calls-on-the-architecture-community-to-save-the-robin-hood- gardens/ 4 54. Projeto de Plug-In City de Peter Cook: Seção da área de pressão máxima, 1964; a tinta e grafite, exposto no MoMA. Donativo da Fundação The Howard Gilman...... 100 www.moma.org/collection/works/796 4 55. Projeto Tokyo Bay, 1960, de Kenzo Tange...... 104 http://archeyes.com/plan-tokyo-1960-kenzo-tange/ 4 56. Nakagin Capsule Tower, em Shimbashi, Tóquio. De Kisho Kurokawa...... 106 https://worldarchitecture.org/articles/cgegv/nakagin_capsule_tower_living_in_a_long_forgotten_future.html 4 57. Re- ruined Hiroshima project. De Arata Isozaki (1968) ...... 108 www.jesfernie.com/index.php/project/creation_from_catastrophe 4 58. Tóquio devastado após a Segunda Guerra Mundial...... 112 www.kmine.sakura.ne.jp/kusyu/kuusyu.html/ 4 59. A cidade Sirte, na Líbia, abandonada e destruída durante Guerra Civil da Líbia, iniciada em 2014...... 114 www.dailymail.co.uk/news/article-2049108/Libya-wars-stand-Sirte-Pictures-city-shelled-smithereens.html 4 60. A ponte Stari Most antes da guerra; depois quando destruída; e depois da sua reconstrução…... 118 www.bridgesdb.com/bridge-list/stari-most-old-bridge/ 4 4

61. Projeto de segurança de Wall Street, em Nova Yorque. Da equipa ROGERS PARTNERS Architects + Urban Designers...... 120 www.rogersarchitects.com/new-york-stock-exchange-financial-district-streetscapes-security/ 4 62. Dresden em ruínas em 1945, após a Segunda Guerra...... 122 www.euronews.com/2015/05/05/how-world-war-ii-shaped-modern-germany 4 63. Complexo habitacional pós-guerra em , em 1965...... 126 https://municipaldreams.wordpress.com/2015/06/02/post-war-high-rise-in-birmingham-iii-the-blocks-come-down/ 4 64. City Hof, em Hamburgo, construído na década de 50. Projeto de Rudolf Klopaus...... 126 www.abendblatt.de/hamburg/hamburg-mitte/article208733843/Libeskind-entwirft-Hamburgs-neuen-City-Hof.html 4

 xiii 65. Cidade de Dresden, na Alemanha, agora reconstruída sob a estratégia fac-símile...... 128 www.kim-juedenhof-dresden.de/bildergalerie-bautagebuch.html 4 66. Fotografia atual da cidade de Roterdão, na Holanda, agora reconstruída e sob a estratégia tabula rasa. www.gettyimages.pt/license/3240452...... 128 https://en.rotterdam.info/about-rotterdam/architecture/  4 67. Varsóvia em ruínas em 1944. Imagem do filme City of Ruins...... 130 http://battlegroundhobbies.blogspot.pt/2012/09/warsaw-city-of-ruins-and-warlords-new.html 4  68. Bairro com as propriedades ...... 132 www.vanupied.com/varsovie/quartier-varsovie/powisle-et-mariensztat-quartier-surprenant-et-meconnu.html 4 69. Marketplace do centro histórico de Varsóvia, depois de bombardeado na Segunda Guerra (acima), e depois de reconstruído (abaixo)...... 134 www.artinsociety.com/bernardo-bellotto-and-the-reconstruction-of-warsaw.html  4  70. Fotografia de Londres depois da Segunda Guerra...... 136 https://commons.wikimedia.org/wiki/File:LondonBombedWWII_full.jpg#file 4 71. Fotografia de The Stow, uma zona de comércio em Harlow New Town, em 1956.  Fotografia de Harry Todd...... 138 4 72. Maquetes de vários modelos habitacionais para a reconstrução da área Shoreditch, em Londres, propostos por Erno Goldfinguer em 1944. Créditos: RIBA Collections...... 140 www.architecture.com/image-library/ribapix/image-information/poster/models-showing-a-proposed-housing- development-to-be-built-on-land-bombed-during-world-war-ii-shoredi/posterid/RIBA36099.html 4 73. Plano para a cidade de Londres, proposto pela equipa MARS. (1942). Créditos: RIBA Collections...... 142 www.architecture.com/image-library/ribapix/image-information/poster/master-plan-for-london-based-on- research-carried-out-by-the-town-planning-committee-of-the-mars-grou/posterid/RIBA54127.html 4 74. Plano para a cidade de Londres, proposto por Abercrombie e Forshaw. (1943) ...... 142 https://julesbirch.com/2012/06/07/the-cameron-connection/ 4 75. Frame do documentário The Proud City (1946), de Paul Keene, quando Abercrombie apresenta um esquema do plano idealizado para a cidade de Stepney...... 144 www.theguardian.com/uknews/davehillblog/2014/mar/22/london-county-plan-abercrombie-forshaw 4 76. Frame do documentário The Proud City (1946), de Paul Keene, com indicação de Abercrombie para o centro cívico projetado em maquete...... 144 www.theguardian.com/uknews/davehillblog/2014/mar/22/london-county-plan-abercrombie-forshaw 4 77.Vista aérea da cidade de Plymouth destruída em e com algumas área já niveladas 1948. Créditos: RIBA Collections...... 146 www.architecture.com/image-library/ribapix/image-information/poster/plymouth-city-centre-with-the-blitzed- buildings-cleared-sites-levelled-and-the-first-line-of-the-abe/posterid/RIBA48167.html 4 78. Vista aérea da cidade de Plymouth depois de reconstruída, em 1952. Créditos: RIBA Collections...... 146 www.architecture.com/image-library/ribapix/image-information/poster/plymouth-city-centre-after-postwar- reconstruction/posterid/RIBA48168.html 4 79. Plano para o centro da cidade de Plymouth de Abercrombie e Watson. (1943) ...... 148 https://www.ucl.ac.uk/bartlett/sites/bartlett/files/patrick-abercrombie-county-london-plan-1943.jpeg 4 80. Fotografia aérea da praça Queen Square, em Bristol, em 1983...... 150 www.flickr.com/photos/brizzlebornandbred/2060946602/in/album-72157603269247760/ 4 81. Complexo habitacional Lansbury, em Poplar. Fotografia de Michael Mulcahy...... 152 https://thelondoncolumn.com/tag/mike-seaborne/ 4 82. Complexo habitacional Loughborough, em Brixton. Fotografia de Frith and Co. www.ideal- homes.org.uk/lambeth/lambeth-assets/galleries/brixton/loughborough-est...... 153 4 83. , em 1960...... 154 www.dailymail.co.uk/news/article-1061037/Saved-nation-South-London-prefab-estate-built-German-Italian- PoWs.html 4 84. Royal Hall Festival, em 1951, durante o Festival of Britain...... 156 https://hyphenpress.co.uk/journal/article/signs_royal_festival_hall 4

 xiv 85. Proposta vencedora para o concurso Golden Lane de 1951, de Chamberlin, Powel & Bon. 158 ...... www.pinterest.co.uk/pin/437834395009832028/?autologin=true 4 86. , de Chamberlin, Powel & Bon...... 158 http://talesfromthefifteenthfloor.blogspot.com/2011/04/i-live-here-so-i-thought-i-should-blog.html 4 87. Torre Lawn, em Harlow...... 160 https://heritagecalling.com/2017/08/18/7-extraordinary-listed-post-war-housing-estates/ 4 88. Churchill Gardens Estate, em Pimlico...... 161 www.flickr.com/photos/willfaichneyphotography/10007278436 4 89. Park Hill, em . 161 ...... www.dailymail.co.uk/news/article-5134535/Britains-ten-historic-places-revealed.html 4 90. Centro cívico da Stevenage New Town...... 162 www.fabians.org.uk/labours-new-towns-back-to-the-numbers-game/ 4 91. Habitações da Runcorn New Town, de James Stirling...... 162 http://photobucket.com/gallery/user/kermitfgreenfrog/media/bWVkaWFJZDo1NjYyNDkxNA==/?ref= 4 92. Alexandra Road, em Londres. Fotografia de Martin Charles, 1979. 164 ...... www.architecture.com/image-library/SiteData/Root/Image/Features/MartinCharles-Banner_2column.jpg

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 xvii 160. Rua Allenby recuperada após a guerra. www.beirutreport.com/2013/03/when-downtown-beirut-was- busy.html...... 247 4 161. Vista aérea do centro de Beirute ampliado (extensão da costa) e nivelado, com a conservação de algumas áreas. http://projectivecities.aaschool.ac.uk/wp-content/uploads/2012/04/Yas-img01.jpg...... 248 4 162. Souks de Beirute em 1973. www.plan-bey.com/posters/souks-de-beyrouth-73-76/...... 250 163. Organização dos souks na zona norte da área comercial. Souks de Rafael Moneo a cinza escuro, e os Jewelry Souks de Kevin Dash e Rafik El Khoury a cinza claro. (imagem manipulada) https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/thumb/7/76/Beirut_South_Souks.png/729px-Beirut_South_Souks.png 252 164. Obra Beirut Souks de Rafael Moneo. www.culturedivine.com/beirutsouks.html...... 254

165. Um dos espaços interior/exterior da obra Beirut Souks de Rafael Moneo. www.solidere.com/city- center/solidere-developments/real-estate/beirut-souks...... 254 166. Render da obra Department Store, de Architects & Samir Khairallah & Partners…. 255 www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1912791 4 167. Fotografia da construção da obra Department Store na área sul de Beirut Souks...... 255 https://scontent-ort2-2.cdninstagram.com/t51.2885- 15/s640x640/sh0.08/e35/25012232_1739209942820184_1445804550110838784_n.jpg 4 168. A Place des Martyrs de Beirute, nos anos 60...... 256 http://irresistible.alrifai.com/2016/05/05/beirut-the-golden-age-in-pictures/ 4 169. A Place des Martyrs de Beirute, ainda por reconstruir, com nova vista e conexão com a zona da costa. www.solidere.com/sites/default/files/4324_14.jpg...... 258 170. Proposta da reconstrução para a Place des Martyrs de Beirute pela equipa Noukakis, em 2005. http://public.bidoun.org/images/2015/3/09_174_feature.jpg...... 259 171. Homem armado no hotel Holiday Inn, em Beirute. Fotografia de Don McCullin, 1976...... 260 www.tate.org.uk/art/artworks/mccullin-christian-phalange-gunmen-in-the-holiday-inn-hotel-beirut-ar01206 4 172. O Hotel Holiday Inn após a guerra, em Beirute. www.vagabondpix.com/Portfolio/i-qGbZT...... 262 173. O Hotel St Georges danificado e com manifesto contra a SOLIDERE...... 262 https://1.bp.blogspot.com/_SR_u830rETw/TSMysMIjatI/AAAAAAAAABA/ErxGVALPSvQ/s1600/Solidere2.JPG 4 174. 3 Beirut, de Foster + Partners...... 263 https://images.adsttc.com/media/images/5a28/8f2c/b22e/3819/db00/0040/large_jpg/1766_FP633495.jpg?15126 07493 4 175. Beirut Terraces, de Herzog & de Meuron. https://static.dezeen.com/uploads/2017/04/beirut-terraces- herzog-de-meuron-architecture-residential-lebanon_dezeen_2364_col_1-852x568.jpg...... 263 176. Edifício antigo na rua de Jeanne d’Arc em Janeiro de 2017 (acima). O mesmo edifício em demolição em Setembro de 2017 (abaixo)...... 264 www.beirutreport.com/2017/09/one-of-beiruts-oldest-blocks-demolished.html 4 177. A Grande Brasserie du Levant em demolição...... 266 www.lebanoninapicture.com/Prv/Images/Pages/Page_101810/this-is-the-end-beautiful-laziza-laziza-grande--3- 26-2017-1-14-06-pm-l.jpg 4 178. A casa Belt Kassar. Fotografia de Colombe Clier...... 267 http://blogbaladi.com/akk-architects-are-renovating-a-19th-century-ottoman-mansion-in-beirut/ 4 179. Yellow House ou casa Barakat agora reabilitada. Fotografia de Geraldine Bruneel. 268 https://cdn.static-economist.com/sites/default/files/images/print-edition/20170812_BKP003_0.jpg 4 180. Red House de Beirute...... 268 https://edition.cnn.com/style/article/saving-beiruts-crumbling-heritage-ime/index.html 4 181. The Egg incompleto em Place des Martyrs, Beirute...... 270 https://weburbanist.com/2016/02/25/using-bullet-holes-in-beiruts-brutalist-egg-as-camera-obscuras/ 4 182. Proposta para inclusão da obra The Egg em Place des Martyrs, por Bernard Khoury e Christian de Portzamparc...... 271 www.failedarchitecture.com/wp-content/uploads/2013/12/project-portzamparc-cropped-865x382.png 4 183. Vista da cidade de Beirute pós-guerra, no Líbano. 272 ...... www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=142405235 4 184. Cidade de Daraa, no sul da Síria, após um ataque aéreo. Fotografia de Mohamad Abazeed, 2017.www.nbcnews.com/storyline/isis-terror/syria-cease-fire-begins-without-mechanisms-enforce-uneasy-calm- n781131 ...... 278 4

 xviii 185. Protesto na Síria em 2011...... 280 www.aljazeera.com/news/middleeast/2011/11/20111111113440490791.html 4 186. Refugiados num acampamento do porto de Mytilini, em Lesbos, Grécia. Fotografia de Paolo Pellegrini, 2015. www.nytimes.com/interactive/2016/08/11/magazine/isis-middle-east-arab-spring-fractured- 282 187. Aleppo em maio de 2009, antes da guerra. Fotografia de John Higgins...... 284 www.huffingtonpost.ca/2016/12/14/aleppo-before-war_n_13634762.html 4 188. O Arch of Triumph na cidade de Palmyra em 2001, antes de destruído (acima). Depois de destruído em 2015 (abaixo)…...... 286 https://i.amz.mshcdn.com/1804DedKKNZ4VJha0kJ7GsBuOgA=/950x534/filters:quality(90)/2015%2F10%2F05 %2F55%2FGettyImages.c867c.jpg https://cdn.cnn.com/cnnnext/dam/assets/160331101652-restricted-04- palmyra-ruins-super-169.jpg 4 189. Rua da cidade de Aleppo em ruínas...... 288 https://markmeynell.files.wordpress.com/2014/01/aleppo-ruined-street-2012.jpg 4 190. Fotograma do filme documentário Children on the Frontline, 2014.(Mettelsiefen e Wonke, 2014).... 290 4 191. A cidade devastada de Kobani, no norte da Síria. Fotografia de Bulent Kilic, 292 2015...... www.nytimes.com/2016/09/19/world/middleeast/syria-civil-war-bashar-al-assad-refugees-islamic-state 192. Os pilares entre as ruínas. Desenho da autora...... 294 4 193. Permanência dos pilares. Desenho da autora...... 296 4 194. Nova cidade sobre o espaço em memória do existente. Desenho da autora...... 296 4 195. Das ruínas à cidade. Sequência do processo conceptual do projeto. Desenho da autora. 298 ...... 196. Conexão ente o céu e a terra. Desenho da autora...... 300 4 197. Adopção da função comercial de alguns dos edifícios/pilares. Desenho da autora...... 302 198. Pilares subterrâneos para comércio. Desenho da autora. 302 ...... 199. Pilares semienterrados para comércio. Desenho da autora...... 302 4 200. Esquema cheio/vazio. Desenho da autora...... 304 4 201. Organização das funções da casa. Desenho da autora...... 304 202. Ilustração de um mercado árabe (souk). Da artista Hyunsu Cha...... 308 https://moksheep.artstation.com/projects/ELYBn 4 203. Espaços comerciais de cada família. Desenho da autora...... 310 4 204. Desenho dos vãos e do processo de encerramento da fachada. Desenho da autora...... 312 4 205. Vista do conjunto. Desenho da autora...... 314 4 206. Painel para o concurso Syria: Post-War Housing...... 316 4 

 xix

LISTA DE ACRÓNIMOS |                 

 xx

AAA American Abstract Artists ASCORAL Assemblée de constructeurs pour une rénovation architecturale AKK Annabel Karim Kassar APUR L’atelier Parisien D’Urbanisme ASPA American Society for Architects and Planners ATBAT Atelier Des Batisseurs BCD Beirut Central District BOS Biuro Odbudowy Stolicy CEO Chefe Executivo de Ofício CIAM Congrès Internationaux d’Architeture Moderne CIRPAC Comité international pour la résolution des problèmes de l’architecture Contemporaine ERP European Recovery Program EUA Estados Unidos da América IBA Internationale Bauaustellung ICRC International Committee of the Red Cross IUAV Instituto Universitario di Architettura di Venezia MARS Modern Architectural Research Group NHLE National Heritage List for England ONG Organização Não Governamental PAR Plataforma de Apoio aos Refugiados RDA República Democrática Alemã RFA República Federal Alemã RIBA Royal Institute of British Architects SFOS Fundo Social da Reconstrução da Capital SOLIDERE Société libanaise pour le développement et la reconstruction de Beyrouth TAC The Architects Collaborative UN United Nations / Nações Unidas UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNHCR United Nations High Commissioner for Refugees UNRRA United Nations Relief and Rehabilitation Administration URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

 xxi             



1.| Introdução

1 

2 

Introdução A guerra, além de, na sua génese, ser uma atrocidade e crueldade contra a vida humana, é também atualmente um crime contra a arquitetura. Desde a Segunda Guerra que as guerras reservam lugar nas cidades e não nos campos de batalha. Estes crimes contra a humanidade também passam pela destruição das casas, das escolas e hospitais, das cidades. É neste contexto que esta investigação aborda a relação entre a guerra e a arquitetura e em como a destruição afeta as cidades e os seus habitantes, e a memória dos espaços e às obras que ali foram erguidas. Atualmente, há 30 conflitos ativos no mundo (Council on Foreign Relations, 2017). Torna-se assim premente pensar o futuro das cidades que vivem a guerra e veêm as suas paisagens urbanas e memórias a ser destruídas numa ação deliberada e cruel realizada pelo Homem. Várias questões se colocam: Qual o futuro destas cidades? Que estratégias aplicar? Devemos reconstruir com base em réplicas ou radicalizar o passado destruído? E os monumentos? Que fazer com o património arruinado? Os arquitetos têm um papel importante a desempenhar na procura de respostas para ações de emergência social. Ao longo dos anos, as ações e a evolução do pensamento arquitetónico orientaram as soluções que observamos agora em cidades completamente remodeladas, como Roterdão, Berlim, Dresden ou Beirute. O papel e reflexão dos arquitetos têm vindo a transformar- se desde o final do século XIX, mas é no século XX que incorpora diversas ações e ideias nesse sentido. O século XX foi um período de ações e transformações no campo sociológico, arquitetónico e urbanístico. Coloca-se assim, como objetivo inicial, o estudo da evolução dos pensamentos e procedimentos dos arquitetos e a sua influência nas resoluções aplicadas em cenários pós- guerra. O Modernismo e as ideias de Le Corbusier e do influente grupo CIAM imperaram como doutrina nas resoluções urbanísticas e foram uma importante contribuição para o que observamos hoje em muitas das cidades que foram devastadas na Segunda Guerra Mundial. Como se verá, muitas cidades foram alvo da “fantasia de criação” do pensamento tabula rasa alimentado pelas ideias de Le Corbusier, com obras que depois caíram no insucesso, enquanto outras adoptaram a reconstrução através de “réplicas” do passado. No entanto, a evolução do pensamento e a transformação das ideologias de cada época, influenciaram a diversidade de atuações e formatos em contextos pós-guerra. 3  As variedades de estratégias aplicadas foram enquadradas nesta investigação num estudo particular de algumas cidades afetadas pela Segunda Guerra, nomeadamente as cidades de Varsóvia, Londres e Berlim. Complementarmente, foi ainda estudada a cidade de Beirute, devastada pela guerra do Líbano, entre 1975 e 1990. Com estes objetos de estudo, pretende-se uma dupla análise crítica das ações aplicadas para a reconstrução e construção urbana, em épocas e contextos políticos e culturais diferentes. Paralelamente, foi delineada uma abordagem experimental para um país que sofre atualmente de uma dura e extensa guerra interna, a Síria, “the biggest humanitarian and refugee crisis of our time” 1 (UNHCR, 2018: s/p), através da realização de um projeto para o concurso de ideias internacional Syria: Post-war Housing. A realização deste concurso teve uma particularidade: a sua entrega ocorreu em 14 de maio de 2016, pelo que, metodologicamente, subverteu-se a ordem habitual deste tipo de trabalhos: primeiro realizou-se o projeto e só depois a abordagem teórica. Esta sucessão de abordagens foi assumida desde o início e procurou-se tirar partido dela, descomplexadamente. Desta forma, foi possível desenvolver uma abordagem projetual sem influências da componente teórica, a qual só se desenvolveu depois. A abordagem teórica procurou ampliar a componente prática antes desenvolvida e corroborar (ou não) as estratégias definidas previamente no projeto. Entre a atualidade e o passado, esta investigação corporiza assim o conhecimento do pensamento, ações e modelos empregados em cenários de pós-guerra e entender as benfeitorias, mas também os equívocos resultantes dessas ações, a nível social e arquitetónico.

 1 “a maior crise humanitária e de refugiados da nossa era” (tradução livre)

4  Objetivos De acordo com a temática antes definida, esta investigação colocou desde logo dois objetivos fundamentais, acompanhados por alguns outros propósitos específicos.

1. Primeiramente, no âmbito do contexto prático e parte inaugural desta dissertação, o objetivo de trabalho passou pela realização de um projeto, como já se referiu, ainda com desconhecimento da matéria estudada à posteriori. Este ensaio prático consistiu num projeto de habitação para o concurso internacional Syria: Post-war Housing que objetivava:

- A aproximação e contacto real com o tema estudado; - O desafio da capacidade de atuação, de forma pessoal e autêntica, relativo ao tema de investigação; - A realização de um projeto de habitação como resposta às necessidades prementes em vigor e de inserção no contexto em questão. - Uma contribuição e participação ativa na problemática atual da Síria.

2. Posteriormente, pretendeu-se entender e estudar o pensamento e as atuações dos arquitetos em cenários depois da guerra a partir do século XX. Pretende-se ainda observar criticamente algumas operações de reconstrução de cidades que sofreram danos nefastos na sua composição urbana. Neste âmbito, foram objeto de análise os seguintes aspetos:

- O papel e o pensamento dos arquitetos antes, durante e depois da Segunda Guerra; - A influência das guerras na arquitetura e nas cidades; - As estratégias aplicadas nas cidades que sofreram danos relativos à guerra.

Desta forma, os objetivos desta investigação visaram o entendimento e associação entre o pensamento e ações do arquiteto durante século XX e as reconstruções e transformações aplicadas a algumas cidades depois da guerra, de forma a entender qual a matriz de princípios e fatores a ter em conta para a reconstrução de cidades devastadas pela guerra. De uma outra perspetiva, o outro objetivo passou pelo desejo de intervenção e desafio de participação, de forma aproximada, no tema e na realidade atual, e o concurso consentiu essa oportunidade.

5  Metodologia Para concretizar os objetivos antes definidos, foram definidos um conjunto de procedimentos que passaram por investigação bibliográfica, pesquisa, recolha de testemunhos reais, visualização de documentários diversos sobre a crise social da Síria, e ainda foi realizada uma participação em conferências ao vivo e online sobre a temática e os problemas a ela associados. O conjunto de procedimentos acima elencados, foram sintetizados em diversas fases, procurando a melhor articulação dos dados recolhidos com o desenvolvimento do trabalho.

Primeira fase: Metodologia do Projeto

A concretização da componente prática deste trabalho foi o primeiro procedimento. A matéria planeada para investigação, assumiu uma forma e uma causa através do concurso de ideias internacional Syria: Post-War Housing, que solicitava ideias de habitação para a reconstrução da Síria depois da guerra. Esta oportunidade foi abraçada como aproximação às temáticas de estudo e, como já se disse, a data de entrega em 14 de maio de 2016, aquando do início da investigação, possibilitou uma abordagem mais genuína. Dentro do objeto de investigação, já havia um interesse pelas utopias japonesas dos Metabolistas nos anos 60, um tema que havia sido estudado ao abrigo de um artigo científico de contexto académico (Martins, 2016). Desta forma, este ensaio prático foi influenciado, em parte, pela crítica e imaginação japonesa realizada nos anos pós-guerra. A ideia passava pela criação de uma parte prática livre de influências. No entanto, uma pesquisa e um estudo sobre a Síria eram necessários e importantes para a concretização de um projeto para o concurso. Como será depois detalhado, o projeto iniciou-se pela pesquisa, pelo estudo e contacto com as pessoas provenientes da Síria. Este contato revelou-se muito importante para um entendimento dos contextos de intervenção. Foi realizado um estudo preliminar sobre a arquitetura local, tanto tradicional como contemporânea, através de autores como Ibrahim (2012) e Chibli (2004), e sobre arquitetura árabe e novos tipos de habitação através das conferências em vídeo Jean Nouvel on Arabic Architecture, Context and Culture (2014) e How to reivent the building de Moshe Safdie (2014). Para um melhor entendimento do caso da migração massiva atual dos refugiados sírios, recorreu-se às referências de Magalhães (2016) e da UNHCR (2016) e aos documentários Return to Homs (2013), Children on the frontline (2014) e Salam Neighbor (2015). Além desta investigação, este projeto, de componente social relevante, exigia um contacto mais aprofundado com a questão síria para uma abordagem com mais propriedade. Contactaram-se então algumas instituições destinadas ao acolhimento e inserção das famílias refugiadas em Portugal, como as PAR Famílias, através revista “Refugiados” (Marques, 2016). No entanto,

6  nenhuma delas havia ainda recebido ninguém àquela data e prosseguiu-se com uma reunião e entrevistas com três estudantes oriundas da Síria que se encontravam em Portugal. Após a recolha de dados considerada suficiente, prosseguiu-se então com a realização da do projeto de habitação futura para a reconstrução da Síria depois da guerra. A metodologia de projeto aplicada não previu nenhum trabalho de campo uma vez que era irrealizável a visita ao país em questão. Além disso, assumidamente, não se focou em nenhuma cidade específica do país. O projeto pretendia a representação hipotética de uma cidade temporária em qualquer cidade e em qualquer extensão. Num país que ainda hoje enfrenta uma guerra e uma luta pela estabilidade, a ideia projetada tencionava criar uma relação entre a arquitetura e a imaginação, idealizando um espaço de habitação temporário de recepção aos primeiros vindouros que ambicionam a reconstruir a sua cidade, onde se estabeleceriam até ao seu reerguer. Após estabilizada a cidade e com uma organização urbana construída, a “cidade temporária” projetada adquiria novas funções necessárias à plenitude da cidade reconstruída. Este projeto foi assim construído sem visita ao local e através do contacto com alguns dos seus antigos habitantes. Foi importante a visualização de imagens de algumas cidades sírias antes e depois da guerra. Foi gerado um pensamento conceptual e imaginário, integrado, não só, no estudo antecedente das utopias dos metabolistas japoneses, como também no fato fulcral de se assumir uma crítica à própria solicitação do concurso: é questionável a elaboração de um projeto definitivo para país que não conhecemos e que no presente luta pela sua pacificidade e liberdade.

Segunda fase: A teoria

Para a realização de um estudo teórico sobre “arquiteturas em cenários pós-guerra”, as estratégias de investigação aplicadas foram direcionadas ao uso de fontes bibliográficas secundárias. Foram também visualizadas diversas conferências ao vivo e digital e conversas informais com pessoas relacionadas com o estudo. Por fim, para uma melhor compreensão e integração das matérias em estudo, foi realizado um workshop na cidade de Veneza, W.A.Ve. 2017 Syria – The Making of the Future, organizado pela Universidade IUAV, Instituto Universitario di Architettura di Venezia e realizado de 26 de Junho a 14 de Julho de 2017 (Fig.00). Esta ação realizada em Itália, além de um workshop de projeto com diversos arquitetos como os italianos TAMassociati, Paredes e Pedrosa (Espanha), Gaeta Springall Architects (México), os portugueses João Ventura Trindade e Ricardo Carvalho, entre muitos outros, também proporcionou aliciantes conferências com tema (Fig.01). Neste âmbito, as palestras consideradas mais relevantes foram as seguintes:

7  

00. Fotografia de um canal e arquitetura de Veneza. Fotografia da autora, 2017 01. Fotografia na Aula Magna, em Tolentini, antes das conferências. Fotografia da autora, 2017. 02. Fotografia na biblioteca da IUAV em Tolentini, Veneza. Fotografia da autora, 2017.

8  1. Abdulaziz Hallaj, arquiteto e antigo CEO da ONG Syria Trust of Development, que apresentou um debate sobre Syrian Cities and The Challenges of Reconstruction;

2. Kilian Kleinschmidt, antigo funcionário da UNHCR e diretor do campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, que abordou o tema Cities in Exile – Cities of the Future;

3. Bernard Khoury, arquiteto libanês, com o tema Local Heroes.

4. Kengo Kuma, arquiteto japonês e professor na Universidade de Tóquio, sobre o terramoto e tsunami denominado de 3.11, em 2001 – After 3.11:

No decorrer deste workshop foi facilitado o contacto com uma extensa biblioteca de arquitetura (Fig.03), em Tolentini, que possibilitou a consulta de inúmeras fontes que não se encontravam acessíveis em Portugal, como a obra de Moravánskzy e Hopfengartner (2017), Avermaete (2005), entre outras. Além de uma extensa consulta bibliográfica, recorreu-se a conversas e direções sobre a temática com os professores da IUAV Fernanda De Maio e Renato Bocchi, os quais propuseram também algumas referências bibliográficas. Para uma melhor abordagem e realização desta investigação, foi imperiosa a consulta de algumas obras de Le Corbusier (1931, 1973), Gropius (1965), Aalto (1982), Giedion (1944, 1946, 1958, 1979), Smithson (1970, 1991) entre outras. Foram também consultadas outras fontes secundarias, nomeadamente dissertações e teses de doutoramento, bem como artigos em revistas impressas e online. A memória descritiva do projeto realizado no âmbito do concurso (quarto capítulo da presente dissertação), integra uma contextualização introdutória sobre a Síria e a respetiva arquitetura. Com poucos resultados de pesquisa disponíveis, a bibliografia de Al-Sabouni (2016) e conferências e vídeos realizada pela mesmo (2016b, 2017) foram importantes recursos uma vez que foi escrito sob a perspetiva e o apelo de uma jovem arquiteta síria na atualidade. Desta forma, esta parte da investigação aborda apenas sumariamente a história da Síria, uma vez que o cerne da matéria se concentra no estudo das ações e reconstruções pós-guerra passadas. Como abordagem presente e futura, esta introdução à Síria e respetiva visão segundo Al-Sabouni (2016a, 2016b, 2017), são filtradas na memória descritiva do projeto sob uma perspetiva crítica.

9  Estrutura da dissertação Face ao exposto, a presente dissertação divide-se em duas componentes principais: a primeira parte de domínio prático e a segunda parte que trata a parte teórica do tema.

A parte I desta investigação assume o quarto capítulo da dissertação:

- A Síria: Proposta de um módulo habitacional no âmbito do concurso de ideias internacional Syria: Post-war Housing, apresenta uma abreviada contextualização sobre a Síria e a sua situação atual, como introdução ao projeto de habitação desenvolvido para o futuro pós-guerra do país, seguido de uma memória descritiva e justificativa do desenvolvimento prático. O painel para concurso é apresentado na íntegra e procedeu-se à adição e adaptação de dados desenhados para o contexto desta dissertação de MI em arquitetura da UBI.

A parte II divide-se em dois capítulos:

- Introdução

- Capítulo O arquiteto entre guerras, que analisa a evolução do pensamento e das ações realizadas durante o século XX, a aspiração humanista dos arquitetos após a Segunda Guerra Mundial, e a reformulação e crítica dos princípios da arquitetura moderna estipulados pelos CIAM, através da equipa Team 10, Archigram e os Metabolistas.

- Capítulo A reconstrução e planeamentos em cenários pós-guerra, que examina a evolução da guerra e a consequente destruição da arquitetura e cidades, e define os princípios, resoluções e aplicação de estratégias para algumas cidades e países destruídos após a Segunda Guerra. Sob um outro prisma, é analisada a reconstrução de uma outra cidade, Beirute, no Líbano, de forma a explanar as direções e as diferentes ou coincidentes estratégias aplicadas num outro contexto.

- Conclusão

   

10 

PARTE I

                     11        

12 

03. Martha Rosler, Housing is a Human Right, Times Square Spectacolor animation detail, 1989.

13 

“Article 25: Everyone has a right to adequate housing.

Everyone has the right to a standard of living adequate for the health and well-being of himself and of his family, including food, clothing, housing and medical care and necessary social services, and the right to security in the event of unemployment, sickness, disability, widowhood, old age or other lack of livelihood in circumstances beyond his control.” 2 (Universal Declaration of Human Rights, 1948: s/p)

 2 “Artigo 25: Todos têm direito a uma casa adequada. Todos têm o direito a um nível de vida adequado à saúde e bem-estar de si mesmo e da sua família, incluindo comida, roupa, alojamento e cuidado médico e serviços sociais necessários, e o direito à seguraça no caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, idade avançada ou outra falta de subsistência fora do seu controlo.” (tradução livre) 14 

2.| O arquiteto entre guerras

15 

04. Detroit Army Arsenal (1940), foi a primeira fábrica construída para a produção em massa de tanques nos EUA. Projetado por Albert Kahn, é um exemplo de como o arquiteto e a arquitetura se adaptam consoante as necessidades impostas e pela época.

16  | A arquitetura e o arquiteto em (r)evolução entre guerras

“A arquitetura abrange o exame de todo o ambiente físico que circunda a vida humana; não podemos subtrair-nos a ela, até que façamos parte da sociedade urbana, porque a arquitetura é o conjunto das modificações e das alterações introduzidas sobre a superfície terrestre, em vista das necessidades humanas, exceptuando somente o puro deserto.”

(Morris, 1947 in Benovolo, 2001: 12)

Numa conferência em Londres The prospects of Architeture in Civilization no London Institution, William Morris retrata a arquitetura no seu “significado mais amplo possível”, um conceito que se “transforma a todo momento sob os nossos olhos” (Benevolo, 2001: 12). E na verdade, a arquitetura é uma arte mutável que se modifica e renova consoante a época em que se situa. As práticas arquitectónicas são inevitavelmente alvos de mudança ao longo dos tempos. As alterações políticas/sociais, os novos paradigmas artísticos e científicos, as evoluções tecnológicas, entre outros agentes, contribuem para a transformação do pensamento, desenvolvimento e produção arquitectónica. No século XIX, com a consolidação da Revolução Industrial, o sentido e o contexto da arquitetura da época foram alterados pelo crescimento do sistema produtivo, científico e tecnológico, bem como o rápido crescimento demográfico. Este veloz desenvolvimento reverteu numa crise social resultante do sobrepovoamento dos centros urbanos, invocando resoluções de planeamento urbano eficazes. O nascimento desta nova sociedade industrial resultou num novo modo de estar e de viver, reformando pensamentos desde o campo filosófico, científico e artístico, refletindo-se no último num confronto crescente entre os cânones clássicos das academias e a procura por novas formas artísticas resultante de uma nova sociedade e um novo modo de vida (Teles do Carvalhal, 2010). Da Revolução Industrial à Revolução de Russa de 1917, o método de produção transformou as condições associadas a novas formas de viver, resultantes de todo o progresso tecnológico e científico. Geraram-se teorias de orientação socialista e as avant-gardes, inseridas e atentas à reflexão dos problemas resultantes da cidade industrial, alertando para a centralização do poder e riqueza numa fração minoritária da sociedade e consequente desigualdade das camadas sociais. Neste contexto, aclamou-se por consciência social e solicitou-se por uma transformação da sociedade onde os arquitetos possuíam essa competência – uma arquitetura que abrangesse o maior número de indivíduos possível.

17 

05. Robert Owen, Perspectiva da New Harmony, 1825 06. Charles Fourier, Perspectiva do Le Phalanstère (O Falanestério), 1829.

18  Como exemplo do papel social da avant-garde surge a visão de Henry de Saint-Simon, que na sua obra L’Artist, Le Savant et L’Industriel (1824) idealizou uma nova sociedade utópica, governada por elementos ligados à ciência, artes e indústria. Nesta sociedade, enaltecia a correlação entre o avanço tecnológico e as formas arquitectónicas inovadoras, avançando para uma reforma progressista ao encargo dos artistas. Esta simbiose entre a arte e a tecnologia num contexto visionário, integrante de um contexto social em prol do avanço e da humanização, foi um marco de influência das avant-garde, incluindo os CIAM, quase um século depois (Mumford, 2000). Várias foram as propostas para o “reequilíbrio” da sociedade e para a resolução dos problemas da classe operária, divergindo entre a criação de uma sociedade socialista e abolição do sistema capitalista, considerados por Karl Marx e Friedrich Engels, e uma “transformação progressiva da sociedade em pequenas comunidades colectivistas e autossuficientes” (Teles de Carvalhal, 2010: 28). Esta forma de pensar influenciou os Socialistas Utópicos3 como Robert Owen e Charles Fourier, criadores respetivamente dos modelos New Harmony, em 18254 (Fig. 05) e o Falanstério, em 18295 (Fig.06). Estes modelos tinham como objetivo incutir uma consciência de comunidade e uma nova raiz de valores de justiça e igualdade, e desta forma fomentar o desenvolvimento dos habitantes. No entanto, a aplicação prática destes modelos arquitetónicos não alcançou o desígnio previsto, entrando em ruptura tanto económica como social, anos após a sua inauguração. No entanto, o seu conceito intrínseco viria a ser fundamental na criação de uma nova arquitetura. Esta procura ansiosa por uma nova arquitetura para uma nova sociedade, iniciada no século XIX, foi, segundo Montaner (2001), alcançada com plenitude no Movimento Moderno. Um século depois, este novo movimento arquitetónico ilustrou o objeto central dos modelos utópicos passados - a preocupação consciente dos problemas sociais por inadaptação e industrialização, e a procura de respostas aos problemas das massas, influenciada pelo conceito onde a envolvente urbana influi no comportamento humano (Teles do Carvalhal, 2010). Esta necessidade de encontrar uma nova arquitetura capaz de gerar uma nova cidade e de resolver problemas tanto sociais como formais, surge em contraposto à linguagem Beaux-arts, considerada inapta à adaptação dos problemas da época – nasce uma “arquitetura com

 3 O socialismo, como proposta teórica revolucionária, divide-se em dois campos: o socialismo científico e o socialismo utópico. O primeiro, liderado por Karl Marx e Engels, tinha como base a análise crítica e científica do capitalismo onde a revolução proletária seria o método de alcance para melhores condições de vida e de trabalho. O segundo, liderado por Charles Fourier, Robert Owen e também Saint-Simon, acreditava na imposição gradual e pacífica de uma sociedade ideal crendo numa boa-vontade e consciência social das classes dominantes. 4 Modelo Idealizado por Robert Owen, para concretizar a ideia de um novo mundo que visava a liberdade futura da raça humana. Procurou colocar o modelo em prática com a compra do terreno para a criação desta nova comunidade. Mas em 1928 o insucesso deste sistema era evidente. 5 Modelo de organização comunitária autónoma, criado por Charles Fourier em Le Nouveau Monde Industriel (1829), no qual se propõe que cada edifício reunisse todas as infraestruturas essenciais à educação, produção, saúde, lazer. Poderia albergar 1600 indivíduos destinadas a viver em comunidade e em prol do bem comum (Teles de Carvalho, 2010). 19  tendência à abstração Esta que era formalmente pura e plasticamente transparente, e resolvida de maneira pulcra, tecnicamente avançada, sem ornamentos e adornos desnecessários” (Montaner, 2001: 7).

Arquitetos modernos – construtores sociais?

“The war has shaken us all up! Contractors have bought new plant, ingenious, patient and rapid. Will the yard soon be a factory? There is talk of houses made in a mould by pouring in liquid concrete from above, completed in one day as if you would fill a bottle”6 (Le Corbusier, 1931: 233)

Diversos pareces, debates e estudos meditados entre os mais variados arquitetos, foram lançados acerca de quando se iniciou o Movimento Moderno. Pode-se afirmar que, o contexto do após Grande Guerra a nível social, económico e político, permitiu o aparecimento de uma ideologia moderna onde os países atingidos pela guerra proclamavam por uma vida melhor (Kopp, 1990). Tal como afirma Le Corbusier, também Gropious declara que a Primeira Guerra Mundial afetou o formato da sua ação enquanto arquiteto:

“The full consciousness of my responsibility in advancing ideas based on my own reflections only came home to me as a result of the war, in which these theoretical premises first took definite shape. After that violent interruption, (…) every thinking man felt necessity for an intellectual change of front. Each in his own particular sphere of activity aspired to help in bridging the disastrous gulf between reality and idealism.” 7 (Gropius, 1965: 48)

A Primeira Grande Guerra implicou uma necessidade urgente de reconstrução mesmo não apresentando danos tão significativos como a Segunda Guerra Mundial. A interrupção da atividade produtiva e os problemas associados à habitação antes do período bélico, considerados depois como agudos nos anos posteriores ao tempo de guerra devido aos estragos e ao ressurgimento do crescimento demográfico, obrigaram a um imenso conjunto de tarefas de carácter urgente para a recuperação da economia europeia que só a mão do poder político tinha a capacidade de desempenhar. Então, esta nova arquitetura encara mais encargos públicos,  6 “A guerra abalou-nos a todos! Os empreiteiros compraram novas instalações, engenhosas, pacientes e rápidas. Irá o jardim ser uma fábrica? Fala-se de casas feitas através de um molde, despejando um cimento líquido desde cima, completo num dia como se preenchesse uma garrafa.” (tradução livre) 7 “A plena consciência da minha responsabilidade no avanço de ideias baseadas nas minhas próprias reflexões, apenas foi lembrada como um resultado da guerra, durante a qual as minhas premissas teóricas tomaram forma definitiva pela primeira vez. Após a violenta interrupção, (...) todos os seres pensantes sentiram a necessidade por uma mudança de frente intelectual. Cada um na sua própria esfera particular de atividade aspirou por dar a sua contribuição para superar o desastroso abismo entre a realidade e o idealismo.” (tradução livre) 20  “menos casas isoladas e mais bairros e arranjos de conjunto. A importância urbanística cresce rapidamente” (Benovolo, 2010: 390). O mesmo defendia Giedion (1946: 25) que afirmava que “architects today are perfectly aware that the future of architecture is inseparably bound up with town planning. (…) Everything depends on the unified organization of life. (…) Conscious planning is demanded.” 8 Com o progresso e desenvolvimento dos processos técnicos fortalecidos pela própria guerra, como o uso do betão armado, a manufactura do metal e a melhoria dos transportes, o aperfeiçoamento da cidade torna-se crucial. Mas coloca-se a questão? Para quem construir? A quem pertence o mundo? 9 E a quem irá pertencer? Para Kopp (1990) os arquitetos que se podem considerar modernos, são aqueles que transcendiam o seu pensamento e prática para além das questões técnicas e formais através da incorporação da reflexão e responsabilidade social, reservando o mundo aos laboriosos e à maioria. Alguns dos arquitetos pioneiros desta nova arquitetura, bem como os artistas de vanguarda dos anos vinte, imbuídos e influenciados pelas correntes socialistas da época, acreditavam na arte e na composição urbana como um “instrumento privilegiado” (Kopp, 1990: 20) na reconstrução da sociedade e não como um reflexo da existente. Alguns exemplos importantes compreendidos neste contexto próprio da combinação social e política das esquerdas europeias que irrompeu no período entre guerras são as atividades e argumentos de Hannes Meyer, as críticas ao formalismo de Le Corbusier por Karel Teige, a crítica à cidade capitalista de Ludwig Hulberseimer, ou a condução da política da vivenda social dirigido por Ernst May, em Frankfurt, onde há uma preocupação pela recuperação e desenvolvimento da cidade (Montaner e Múxi, 2011). Esta preocupação pelo progresso e pela melhoria surgiu na Alemanha uma vez que as “condições de vida dos operários, pequenos empregados e funcionários eram pavorosas na Alemanha antes da guerra (...) o deficit de habitações acumulado durante a guerra era perto de um milhão de alojamentos” (Kopp, 1990: 29). Foi neste contexto político social-democrata da República de Weimar que se determinou a resolução destes problemas da habitação desta camada através dos Neues Baue, arquitetos de uma nova arquitetura, que dentro deste contexto fizeram com que o “moderno não fosse um estilo mas sim uma causa” (Kopp, 1990: 26).

 8 “os arquitetos hoje estão perfeitamente conscientes que o futuro da arquitetura está inseparavelmente ligado ao planeamento urbano. (...) Tudo depende de uma organização de vida unificada. (...) Uma planificação consciente é obrigatória (tradução livre) 8 A quem pertence o mundo, ou Wem Gehort die Welt é o nome de um catálogo da exibição em Berlim de 1977 a propósito das confrontações entre a esquerda e a direita, o avant-garde e as reformas arquitectónicas e de planeamento urbano no período entre guerras (Kopp, 1990) 21 

07. Paul Klee, The Twittering Machine (A Máquina de Falar), 1922.

22  “Os arquitetos da nova arquitetura unem-se, sem distinção de nacionalidade, por sua compaixão pelas pessoas necessitadas; não podemos imaginá-los sem consciência social e podemos mesmo dizer que eles estão resolvidos a colocar as considerações sociais em primeiro plano na nova arquitetura. (...) Eles lutam para que a sorte do mais pobre dos pobres seja melhorada” (Ernst May, 1928 in Kopp, 1990: 46)

Tanto Ernst May como Walter Gropius investiam numa nova arquitetura cuja missão alterava o papel do arquiteto na sociedade. No entanto, Hannes Meyer, sucessor de Gropius na direção da Bauhaus, destacou-se neste sentido uma vez que adoptava uma posição política definida, levando a arquitetura a um campo marxista, onde o arquiteto era um cientista da construção. Para Meyer (1980), “o edifício socialista não é belo nem feio; ele é completo ou incompleto, válido ou não válido. O resultado de um processo organizacional não depende de um julgamento estético” (in Kopp, 1990: 47) Assim, introduziu as ciências sociais em torno da política no ensino da Bauhaus, tentando recuperar o “arquiteto-engenheiro” existente antes do século XIX, conectando-o com o sector económico e produção, desligando-se dos problemas artísticos. Esta posição estritamente funcionalista e radical pressupunha o “desaparecimento da aura” do objeto arquitetónico, algo que era para Le Corbusier, um alvo de rejeição bem como os códigos das Beaux-Arts, em consequência da sua confiança na conexão entre conceitos como “criatividade e razão” ou “beleza e função” (Teles do Carvalhal, 2010: 60). Le Corbusier acreditava numa arquitetura que, mesmo contextualizada num novo método de produção e novos aspectos formais, e naturalmente condicionada, seria possível reassumir o espírito próprio da obra de arquitetura.

“A great epoch has begun. There exists a new spirit. There exists a mass of work conceived in the new spirit; it is to be met with particularly in industrial production. (...) Our own epoch is determining, day by day, its own style.” 10

(Le Corbusier, 1931: 86)

 10 “Uma grande época começou. Existe um novo espírito. Existe uma massa de trabalho concebida no novo espírito. É para ser alcançada particularmente na produção industrial. (...) A nossa própria época vai determinando, dia após dia, o seu próprio estilo.” (tradução livre) 23 

08. Fotografia de grupo do primeiro congresso CIAM, em La Sarraz. (1928)

24  A produção em série e a industrialização da construção são agora um dos cernes da nova arquitetura - a consideração da redução de custos surge mediante a questão de “fabricar habitações como se fabrica automóveis” (Kopp, 1990: 50) que nos orienta para o conceito da “máquina de habitar”. Este conceito torna-se um tanto popularizado e difunde-se entre as diferentes especialidades de vários autores (Fig.07). A propagação desta metáfora assinalava o pensamento artístico revolucionário de toda a comunidade europeia em torno de uma nova ordem social, impulsionando um soberbo período no que se trata de movimentos. Le Corbusier pertence a um quadro de visão apoiante de uma imagem tradicional e elitista do arquiteto como criador de uma sociedade liberal, autor de um produto que resume os novos modos de vida e uma nova estrutura cultural, ao contrário da visão de Ernst May, Hannes Meyer e Walter Gropius, que se cruzam no percurso intelectual dos construtivista e urbanistas russos, adeptos de uma cenário cujo arquiteto serve como um modelo de construtor e técnico servente da sociedade, produtor em série e de trabalho colectivo. A coexistência destas duas visões nasce do movimento moderno e das suas derivantes como a Bauhaus e os CIAM, assinalando o debate arquitetónico das décadas seguintes (Montaner e Múxi, 2011).

Dos CIAM até à Segunda Guerra

“Great cities sprawling open to the sky, their congested areas at the mercy of bombs hurtling down out of space, are invitations to destruction. They are practically indefensible as now constituted, and it is becoming clear that the best means of defending them is by the construction, on the one hand, of great vertical concentrations which offer a minimum surface to the bomber and, on the other hand, by the laying out of extensive, free, open spaces.” 11 (Giedion, 1946: 543)

Os CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna) foram “a major force in creating a unified sense of what is now usually known as the Modern Movement in architecture” 12 (Mumford, 2000: 2), como resultado de diversos pensamentos e diferenças ideológicas de vários arquitetos europeus, mas todos comprometidos com a criação de uma nova arquitetura, inovadora e adaptada a um novo espírito. Esta força de ação uniu 24 arquitetos

 11 “Grandes cidades abertas para o céu, e as suas áreas à mercê de bombas caídas violentamente do espaço, são convites para a destruição. Elas [cidades] são praticamente indefensáveis como são agora constituídas, e torna-se claro que a melhor forma de as defender é através da construção; por um lado, através das grandes concentrações verticais que oferecem uma superfície mínima ao bombardeiro, e por outro lado, através da disposição de espaços abertos extensos e livres” (tradução livre). 12 “uma força maior na criação de um sentido unificado daquilo que é conhecido hoje como Movimento Moderno em arquitetura” (tradução livre) 25 

09. Publicidade ao Mercedes-Benz Classic em Sttutgart, Alemanha. (1929) Cenário: Casas 14 e 15 da exposição Weissenhofsiedlung Sttutgart, de Le Corbusier e Pierre Jeanneret, 1927. 26  de oito países da Europa (Fig.08), em La Sarraz na Suiça, em junho de 1928, a convite de Hélène de Mandrot 13 após ter assistido à exposição de Stuttgart (Weissenhofsiedlun) 14 (Fig.09), fundando o Congrès Internationaux d’Architeture Moderne (CIAM), com o intuito de empregar a arquitetura e o planeamento urbano como veículo para um programa de transformação social e sumariar as estratégias implícitas – desde técnicas e formais ao método de propaganda para aliciar clientes como o estado, governos municipais ou instituições internacionais como a Liga das Nações15 (Mumford, 2000). As vozes mais sonantes no primeiro congresso dos CIAM foram os franceses Le Corbusier e André Luçart e Ernst May, Mart Stam, Hans Schmidt, Hannes Meyer, vozes que refletiam visões e ideologias diferentes, traçando uma expressão não consensual na fase inicial dos CIAM, um tanto visível na Declaração de La Sarraz, o primeiro manifesto resultante do congresso, que visava a criação de um grupo de elite de vanguarda de uma nova arquitetura. Segundo Mumford (2000), esta relação antagónica refletia sobre o papel do arquiteto na sociedade moderna, dirigindo opiniões divergentes no manifesto sob o formato das duas línguas: o texto na sua versão francesa interpreta um arquiteto como técnico que afasta a tradição académica pela associação à indústria enquanto que a versão alemã aborda como inserir o arquiteto no processo produtivo e construtivo. Assim, enquanto o duo francês defendia uma nova arquitetura ajustada ao capitalismo industrial e acreditava no seu poder como transformador social, o outro grupo, com tendências marxistas, objetivavam uma arquitetura como os grupos políticos a entendiam – uma ferramenta da mudança política e social. A coexistência de uma desarmonia de opiniões relativamente ao sexto ponto proposto por Le Corbusier16 – a realização: a Arquitetura e o Estado – e de uma concordância geral em outros pontos e de um sentimento de compromisso sublinhava a estrutura da organização como uma ocasião de encontro para debates dos ensaios realizados, cuja primeira conferência, apesar das discordâncias, estava imbuída de optimismo. Citando Gropius17, “a coisa mais importante foi o facto de que, num mundo pleno de confusões, de esforços fragmentários, um pequeno grupo

 13 Hélène de Mandrot (1867-1948) foi uma artista e animadora suíça, criadora da casa de artistas de La Sarraz e responsável por dois eventos históricos – primeiro congresso internacional dos CIAM em 1928, e primeira conferencia internacional do cinema independente, em 1929. 14 Organizada a 1927 pela Wekbund alemã, esta exposição expõe ao público, pela primeira vez, o “panorama unitário do movimento moderno” e as diferenças e convergências provenientes de várias nações. Foram apresentados vários edifícios diferentes como protótipos a serem reproduzidos em série, colocados um ao lado do outro, “como amostras de bairros correspondentes” e como uma “representação alusiva da cidade moderna”. Sob o comando de Mies Van der Rohe, contou com a participação de vários arquitetos como Taut, Gropius, Behrens, Le Corbusier, Mies, entre outros (Benovolo, 2010). 15 A Liga das Nações foi uma oganização internacional criada em 1919 após a Primeira Guerra, com o objetivo de unir as nações e manter a paz. Foi autodissolvida em 1946. 16 Programa de trabalho com seis questões, propostas por Le Corbusier no primeiro congresso dos CIAM: 1. Expressão da arquitetura moderna; 2. Padronização; 3. Higiene; 4. Urbanismo; 5. Educação primária; 6. A realização: A Arquitetura e o Estado (Mumford, 2000). 17 Gropius está ausente na primeira reunião porque estava encarregado da transferência de Dessau a Berlim (Benovolo, 2010). 27 

10. Fotografia do terraço do Siedlung em Frankfrut, de Ernst May, 1930

28  internacional de arquitetos sentiu a necessidade de reunir-se, numa tentativa de ver, como um todo unitário, os problemas multifacetados que os confrontavam” (in Benovolo, 2010: 478). A segunda reunião dos CIAM, denominada por Existenzminimum e realizada em Frankfurt em 1929, veio a propósito do desenvolvimento e aplicação dos novos princípios de organização urbana e doméstica – a habitação mínima e um novo modo de viver. Foram os arquitetos alemães, juntamente com Le Corbusier, que abordaram o tema da racionalização da habitação e respetiva reforma da sua projeção, de modo a racionalizar o comportamento dos habitantes dentro das residências; os valores da habitação mínima não se subjugavam apenas “à sua área, composição ou preço de aluguer” (Kopp, 1990: 53), mas evocavam que se vivesse “de outra maneira”. Ao contrário das antigas habitações burguesas, a “nova cultura de habitação” desaprovava “a divisão entre os espaços de serviço e os espaços de vida”, apelando à sua fusão (Kopp, 1990: 53). Ernst May foi o orientador do segundo CIAM e também o arquiteto nomeado para o programa de construção dos Siedlung (Fig.10), complexos de habitação responsáveis pelo realojamento de 9% da população de Frankfurt, sugerida como “cidade com exponencial desenvolvimento industrial no pós-guerra, um tubo de ensaio perfeito” (Teles do Carvalhal, 2010: 74), foi eleita devido às realizações e projeções dentro do contexto de debate. Os problemas de construção associados à habitação mínima discutida no segundo congresso, dirige-nos aos CIAM III, em 1930 na cidade de Bruxelas, envolvido em questões de escala maior – os problemas do bairro – e foi quando Le Corbusier discursou sobre a necessidade de permanecer arquiteto e urbanista, e esquecer os fatores sociológicos e políticos que são demasiado complexos para serem discutidos no congresso (Benovolo, 2010). O contexto político e ideológico começou a transformar-se, e algumas forças políticas começaram a enfraquecer, enquanto outras emergiam e não facilitavam a relação com os arquitetos da época. De facto, arquitetos como Hannes Meyer, May, Bruno Taut, entre outros, dirigiram-se para a Rússia para trabalhar na construção das cidades socialistas, as Sotsgorod, e mais tarde estes tornaram-se alvo de perseguição política e foram acusados de fazerem arquitetura bolchevique. Isto era uma evidência de câmbio ideológico devido à agitação e transformação política da época. Outra demonstração de mudança a adicionar, refletiu-se no favoritismo pelas propostas neoclássicas ao invés da proposta de Le Corbusier, no âmbito do concurso para os Palácio dos Sovietes em 1932, causando revolta aos artistas de vanguarda. Aliado a este alvoroço político, assomou-se um outro acontecimento que ocorreu a 24 de outubro de 1929 que, curiosamente, tem data coincidente com o início do segundo congresso dos CIAM: a famosa quinta-feira negra, o crash de Wall Street. A aliança destas conjunturas trouxe repercussões a nível mundial: no caso da Alemanha, sucedeu-se o

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11. Protesto sob o formato de colagem, de Sigfried Giedion para Estaline, em 1932, a propósito do concurso para o Palácio dos Sovietes. Ao centro está a proposta vencedora de Hector Hamilton comparada com uma “pseudo- arquitetura moderna de armazém e igreja” (Mumford, 2000). 30  encerramento da Bauhaus em 1932 e a suspensão do programa dos Siedlungen em 1930 (Mumford, 2000). Todavia, é por volta desta altura que o movimento moderno se empenha em resolver os problemas de origem urbanística, uma vez que nos anos após a primeira Guerra, os mestres do movimento demoraram a avançar no campo da urbanística e no desenvolvimento das respetivas implicações. Contudo, a crise económica de 1929 e o amadurecimento da “involução política” resultou no enfraquecimento da produção da construção civil e dos ideais estabelecidos na época por uma nova arquitetura e, por conseguinte, um hiato no fortalecimento da urbanística aquando do ânimo e esforço pelo seu desenlace (Benovolo, 2010). Todo este conjunto de fatores e esta forte manifestação de alteração ideológica comprometeu a fundamento da união e inspiração dos CIAM, e Giedion, ciente da situação política da URSS e da resistência contra a arquitetura moderna (Fig.11), escreveu a Le Corbusier e apelou por um novo congresso como grupo de resistência, o que os dirige ao CIAM IV, a Cidade Funcional – agora dirigido por Le Corbusier e com maior incidência no campo urbanístico. Primeiramente planeada a sua concretização em Moscovo18, o quarto congresso acabou por ser realizado a bordo de um cruzeiro entre Marselha e Atenas a 1933, agora sem os arquitetos mais radicais que se encontravam a trabalhar para a União Soviética. Juntamente com o recém- formado grupo MARS19, estabeleceu-se neste debate uma ponte entre os movimentos sociais e políticos e a essência estritamente técnica do CIAM, de modo a formular regulamentos e padrões urbanos mais igualitários para a reconfiguração das cidades tanto na Europa, como nos Estados Unidos e na URSS, independentemente do sistema político e económico (Mumford, 2000). Centrados em mais de trinta cidades de todo o mundo, os CIAM propuseram “um código de princípios gerais que parecem abstratos e quase irónicos num mundo conturbado, onde se estão pondo em dúvida as próprias regras da convivência humana” (Benovolo, 2010: 512) que foi apenas publicado dez anos depois do quarto congresso, em 1943, não havendo qualquer relato oficial na data do acontecimento – a Carta de Atenas, “o documento mais olímpico, retórico e essencialmente destrutivo que já surgiu dos CIAM” (Frampton, 1997: 328). Este documento citava a visão de um urbanismo racionalista dedicado à melhoria da organização e das funções urbanas. Aspetos como a necessidade de planeamento e a industrialização das construções foram discutidos e foram expostas declarações sobre as condições das cidades e um conjunto de categorias para a sua eventual correção - Moradia, Lazer, Trabalho, e Transporte – implantadas através da sectorização de forma a impedir a incompatibilização de usos. Também um dos aspetos propostos foi a verticalização dos edifícios em amplas áreas verdes para um aumento da densidade populacional por hectare e para uma preservação e contacto com as

 18 As mudanças políticas na URSS impediram a realização do quarto congresso dos CIAM na cidade de Moscovo (Mumford, 2000)- 19 Fundado em 1933 em Inglaterra, MARS (Modern Architectural Research Group), foi um grupo de jovens arquitetos modernos importantes em Inglaterra e atuantes no pós-guerra (Bullock, 2002). 31  zonas jardinadas, algo que, ao longo dos anos, tinha vindo a ser substituído por mais construções ou estruturas urbanas (Mumford, 2000). No entanto, as mudanças políticas e sociais na Europa Central e na URSS causaram reação na arquitetura moderna e o foco desta primeira etapa20 dos CIAM, pode-se dizer, que termina na época da realização do quarto congresso dando início a uma outra “mais racional e científica” (Montaner, 2001: 29) na forma de tratar a arquitetura, que viria a ser alvo de reflexão e questionamento anos mais tarde.

Em suma, o progresso e as transformações derivadas da Revolução Industrial e do interlúdio durante a Primeira Guerra foram o cerne da criação de um novo pensamento e de uma nova arquitetura. Tanto a expansão tecnológica como o crescimento demográfico foram aliados no nascimento de uma nova sociedade e na evolução do conceito social e da sua corporização através de uma nova ideologia. As avant-grades às visões socialistas idealizadas foram poderosas influências na nova arquitetura que se moldou em prol da sociedade e da igualdade e na procura da resolução dos problemas das massas sociais numa era industrializada. Com o nascimento do Movimento Moderno, as opiniões adoptaram diversas ramificações que alternavam entre as áreas da política, elitista ou industrial, lideradas por diversos arquitetos e conjuntos, nomeadamente os CIAM. Os CIAM retratam exatamente essas diferenças que se uniam pela vontade da criação de uma nova arquitetura para uma nova sociedade. Os vários congressos realizados desde 1928 abordaram formas inovadoras de pensamento e atuação na arquitetura, particularmente os problemas urbanos que não haviam sido resolvidos nos primeiros anos após a Primeira Guerra. No entanto, este esforço e procura estiveram próximos do esmorecimento com o avanço da instabilidade política e económica desses anos, e é quando os CIAM avançam para a criação da Carta de Atenas em 1933, visando a resolução dos problemas urbanísticos e cuja será uma forte influência nas próximas décadas, principalmente nos anos pós-guerra.

 20 Kenneth Frampton dividiu os dez congressos dos CIAM em três etapas no seu livro História Crítica da Arquitetura Moderna.

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“How serious the dangers of war will prove in the future there is, of course, no way of knowing. It is quite possible that there are many countries and cities, which will never be threatened from the air. We may well hope so. However, that may be, the city today still is profoundly menaced in all countries and without exception – not by any outside danger, but from within, by an evil shaping within itself. This is the evil of the machine. Because of the confusion of its different functions, its growing mechanization, the omnipresence and anarchy of the motorcar, the city is at the mercy of industrial machines. If it is to be saved, its structure must change. This change, which will be forced by machinery just as in other days it was brought about by implements of war, is inevitable, whether it comes through insight or through catastrophe. The city must be changed or it will perish, and our civilization with it.” 21 (Giedion, 1946: 544)

       21 “É claro que não há como saber quão sérios serão os perigos da guerra no futuro. É bem possível que haja muitos países e cidades que nunca serão ameaçadas pelo ar. Esperemos que assim seja. No entanto, a cidade de hoje ainda este profundamente ameaçada em todos os países sem exceção – não por qualquer perigo extrno, mas por dentro, por uma modelagem do mal dentro de si. Este é o mal da máquina. Devido à confusão das suas diferentes funções, a sua crescente mecanização, a omnipresença e a anarquia do automóvel, a cidade está à mercê das máquinas industriais. Para ser salva, a sua estrutura deve ser alterada. Esta mudança, que será forçada pela maquinaria tal como em outros dias foi provocada por implementos de guerra, é inevitável, seja através de uma visão ou de uma catástrofe. A cidade deve ser mudada ou perecerá, e a nossa civilização com ela.” (tradução livre)

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12. Boeing B-29A-45-BN – Missão em Osaka, Japão. Fotografia do Exército da Força Aérea dos Estados Unidos, junho de 1945.

34  | Re-humanização após a Segunda Guerra

“What does it mean to ‘humanize’ architecture? The notion of re-humanization has been a vehicle to connect a series of debates and discussions from around the middle of the twentieth century which employ the term in relation to architecture and urban planning. The conspicuous frequency of this usage clearly indicates a perception of crisis, while the term itself is hardly defined and the claim of humanization bears so many positive/affirmative associations/connotations it is also seldom to be rejected. Indeed, the possible meanings behind the phrase of (re-) humanization bear an undeniable kindship and usually trigger associations of sensitivity to (human) scale, experience and perception; to human needs and dignity; also fragility; and they often come with an ethical allusion.” 22

(Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 13)

Após a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de uma intervenção e a humanização da arquitetura foi notável. A devastação originada por este acontecimento apelou a uma reconstrução das cidades, à concentração das necessidades básicas e uma restauração a um nível social, moral e físico. A dimensão desta tarefa humanitária transportou questões fundamentais: como construir de novo e como construir sociedades melhores – sintetizando: “how to build for them?” 23 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 14) Numa Europa dividida pela “cortina de ferro” entre estados ocidentais, soviéticos e neutrais, embora divergentes nas ambições políticas e com relações competitivas, cooperavam pela ânsia de melhorar e “humanizar” as condições de vida da população, e foi nesta altura que emergiu mais uma vez a necessidade de debate na arquitetura. As questões sociais, formais e éticas e a relação entre elas foram o cerne e a origem dos debates deste período, levantando questões sobre as estratégias do passado e sobre a necessidade de compor uma sociedade.

 22 “O que significa ‘humanizar’ arquitetura? A noção de re-humanização tem vindo a ser um veículo para conectar um conjunto de debates e discussões desde meados do século XX que empregou o termo em relação à arquitetura e planeamento urbano. A evidente frequência deste uso claramente indica a percepção de crise, enquanto o termo em si é difícil de definir e o pedido de humanização carrega tantos positivos/afirmativos associações/conotações, é também raramente rejeitado. De facto, os possíveis significados por trás da frase (re-)humanização carrega uma inegável afinidade e normalmente estimula associações de sensibilidade para a (humana) escala, experiência e percepção; para as necessidades humanas e dignidade; também fragilidade; e eles frequentemente vêm com alusão ética.” (tradução livre) 23 “como construir para eles?” (tradução livre)

35  Tal como refere Ernesto Nathan Rogers24 (1993: 79), “no problem is solved if it does not at once respond to utility, morals and aesthetics. (…) It is a matter of forming a style, a technique, a morality as terms of a single function. It is a matter of building a society. 25 É necessária a revisão das condições da arquitetura moderna na conexão entre a vida e a comunidade. Este entendimento teve um significado particular na cultura pós-guerra italiana. Para além da necessidade da reconstrução e da providenciar habitação como primeiro problema, a questão de realojar uma população num clima pós-guerra, vai além das contendas pragmáticas (Hopfena- grtner e Moravánszky, 2017). De facto, algumas críticas começam a surgir às estratégias arquitectónicas e urbanísticas do movimento moderno. Embora o período da guerra tenha forçado a paragem completa dos CIAM, Sigfried Giedion e Joseph Luís Sert tentaram propagar a atividade do grupo nos EUA, através da publicação Can Our Cities Survive? (Sert, 1942) que englobava o discurso e debate do CIAM IV. Divulgado um ano após os Estados Unidos entrarem para a guerra, a potencialidade dos ideais propostos pelo grupo encontrava-se num novo cenário, e Lewis Mumford (1940) escreve a Sert:

“The four functions of the city do not seem to me adequately to cover the ground of city planning: dwelling, work, recreation, and transportation are all important. But what of the political, educational, and cultural functions of the city: what of the part played by the disposition and plan of the buildings concerned with these functions in the whole evolution of the city design. (...) The organs of political and cultural associations are, from my standpoint, the distinguishing marks of the city: without them, there is only an urban mass.” 26 (in Mumford, 2000; 133)

Em 1943, Lewis Mumford regressou com uma opinião mais positiva no seu livro The New Republic, em comparação com o que havia escrito em privado a Sert. Lewis acrescentou apenas mais um ponto aos quatro enumerados para uma cidade funcional: o papel cívico e cultural da cidade (Mumford, 2000).

 24 Ernesto Nathan Rogers foi uma das figuras mais ativas no cenário italiano da arquitetura durante os anos pós-guerra. Foi membro do grupo BBPR, Banfi, Belgiojoso, Peressuti e Rogers, formado em 1932, e diretor da revista Domus (Ockaman, 1993). 25 “nenhum problema é resolvido se não responder de uma vez à utilidade, moral e estética. (...) É uma questão de formar um estilo, uma técnica, uma moralidades como termos de uma única função. É a questão de construir uma sociedade.” (tradução livre) 26 “As quatro funções da cidade da cidade não me parecem a mim adequadas à abordagem do planeamento da cidade: habitação, trabalho, lazer e transportes são todos importantes. Mas e as funções políticas, educacionais, e culturais da cidade: mas onde está a parte desempenhada pela disposição e planta dos edifícios responsáveis por essas funções na evolução do design de toda a cidade. (...) Os órgãos políticos e as associações culturais são, desde o meu ponto de vista, marcas indistinguíveis da cidade: sem eles, é apenas massa urbana.” (tradução livre)

36  Foi a partir desta data que irrompeu uma nova consideração pelo espírito cívico e respetivo debate que irá ocupar os CIAM nos anos seguintes, depois da guerra.

Pensamentos e ideias projetadas durante a guerra

Uma revisão do pensamento e da doutrina do pré-guerra surgiu em 1943, ano que, segundo Le Corbusier (1946), se encontrava “situated perhaps at the point of inflection between the sum of the errors made and the dawn of a new start” 27 (in Ockman, 1993: 13). É também neste ano, num cenário global de cataclismo, que vários arquitetos começam a debater e a esboçar planos de reconstrução para o final da Segunda Guerra, visando não só a emergência de realojamento e edificação, mas também a projeção do ponto de vista de uma sociedade pós-guerra (Ockman, 1993). Em 1943, as forças Aliadas da Segunda Guerra28, também conhecidas como Nações Unidas, estabeleceram o grupo United Nations Relief and Rehabilitation Administration29 (UNRRA) para “restore the devastated areas of Europe as they were liberated” 30 (Mumford, 2000: 145). Já perto do término desta guerra, as cidades alemãs eram constantemente bombardeadas pelas forças aliadas (Fig. 13), transfigurando-se em “áreas em branco” para os membros do CIAM; “never before had so many cleared urban sites been available for reconstruction” 31 (Mumford, 2000: 145). O grupo UNRRA e esta determinação em torno da reconstrução resultou na criação do New York CIAM Chapter for Relief and Postwar Planning 32 em 1943. A primeira reunião do novo grupo CIAM33 ocorreu umas semanas antes do Dia D, em 1944, na New School for Social Research in New York. De acordo com Mumford (2000), os arquivos existentes expressam incoerência e algumas divergências desta convenção. Segundo as atas existentes e uma carta de Harris, tanto Holm como Weissman duvidavam da continuação do padrão antigo dos CIAM e Breuer achava que o auge dos CIAM já tinha acontecido e que não valia a pena revivê-lo. Já Gropius, Neutra, Sert e Giedon acreditavam no ressurgir dos CIAM e

 27 “situado no ponto de inflexão entre a soma dos erros feitos e a aurora de um novo começo” (tradução livre) 28 As forças Aliadas foram uma aliança entre países, liderada pela Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética, que lutaram contra a Alemanha, a Itália e o Japão. 29 A UNNRA, conhecida em português como a Administração das Nações Unidas para Assistência e Reabilitação, foi criada em novembro de 1943 e reunia 47 países para ajudar os refugiados que escapavam dos caos cometido pelas forças fascistas. 30 “restaurar as áreas da Europa devastadas assim que fossem libertadas” (tradução livre) 31 “nunca antes houveram tantos espaços urbanos limpos disponíveis para reconstrução” (tradução livre) 32 Capítulo CIAM de Nova Yorque para Ajuda e Planeamento Pós-guerra (tradução livre) 33 Na primeira reunião encontravam-se presentes: H.H. Harris, Gropius, Giedion, Sert, Richard Neutra, Lonberg-Holm, Weissmann, Marcel Breuer, Pierre Chareau, Serge Chermayeff, A. Lawrence Kocher, László Moholy-Nagy, Paul Nelson, Oscar Nitzchke, Norman Rice e Oscar Stonorov.

37 

13. Berlim devastado pelas forças Aliadas, em 1945. 38  nos seus propósitos passados. Segundo Mumford (2000: 146), os arquivos dos CIAM registavam que Gropius propôs “to reconnect the threads of activity broken by the war” 34 e Sert surgiu na convenção com uma revisão dos Aims of the CIAM Chapter for Relief and Postwar Planning 35:

“1. To make the pas work of the CIAM (1928-1939), its organization and aims known to the authorities who will have a say in relief shelter and postwar planning. 2. To formulate general principles of how this relief planning work should be carried out, and to make these statements known that deal with these matters.” 36 (Mumford, 2000: 146)

Os restantes objetivos seriam estabelecidos nas oito reuniões do congresso com o intento de:

“1. Attempt to address issues of research on relief planning and postwar planning; 2. Address the creation of new types of structures; 3. Establish a steady flow of information among CIAM groups; 4. Establish close relations among CIAM groups in unoccupied nations, ‘such as those existing in Britain, North Africa, Sweden, and Switzerland’, and reestablish contacts with the Soviet Union; 5. Include members of different professions related to relief and postwar planning in the group; 6. Establish a finance and sponsorship committee; 7. Organize a permanent secretariat; 8. Establish contacts in the USA and Latin America with other groups working on these

problems.37 (Mumford, 2000: 146)

 34 “restabelecer a ligação das linhas de atividade danificada pela guerra” (tradução livre) 35 Objetivos do Capítulo CIAM de Nova Yorque para Ajuda e Planeamento Pós-guerra (tradução livre) 36 “1. Fazer do trabalho passado dos CIAM (1928-1939), sua organização e objetivos, conhecidos das autoridades que terão uma palavra na assistência no abrigo e no planeamento pós-guerra. 2. Formular princípios gerais de como este trabalho de assistência de planeamento deve ser realizado, e fazer dessas declarações conhecidas das autoridades que lidam com essas matérias” (tradução livre) 37 “1. Abordar questões de pesquisa sobre o planeamento de assistência e de pós-guerra; 2. Abordar a criação de novos tipos de estruturas; 3. Estabelecer um fluxo constante de informações entre os grupos CIAM; 4. Estabelecer relações próximas entre os grupos CIAM em nações desocupadas, ‘tais algumas existentes em Inglaterra, Norte de África, Suécia e Suíça’, e restabelecer contactos com a União Soviética; 5. Incluir membros de diferentes profissões relacionadas com ajuda e planeamento pós-guerra no grupo; 6. Estabelecer um comitê de finanças e patrocínio; 7. Organizar um permanente secretariado; 8. Estabelecer contatos nos EUA e na América Latina com outros grupos que trabalham para estes problemas” (tradução livre) 39 

14. Bombardeamento pelas forças Aliadas da cidade medieval Caen, em Normandia, França. Data: 7 de julho de 1944

40  Este grupo temporário dos CIAM e a sua função e continuação foi alvo de opiniões díspares dos seus elementos, o que se veio a acentuar com o aparecimento do grupo americano ASPA (American Society for Architects and Planners) na mesma época. No entanto, as reuniões continuaram ao longo do ano de 1944 e o jornal New York Times publicou, em novembro do mesmo ano, um artigo louvando um conhecido grupo de designers e arquitetos (CIAM) que haviam começado a empenhar-se na reconstrução pós-guerra e a aplicar novas técnicas nas áreas devastadas pela guerra 38 (Mumford, 2000). Enquanto os CIAM em Nova Yorque atuavam em conjunto (americanos e europeus) em prol da reconstrução da Europa, Le Corbusier já havia embarcado em 1939 num programa de reconstrução pós-guerra, proposto ao Ministro Francês da Informação, Jean Giraudoux. Após a queda, Le Corbusier passou a trabalhar para o governo de Vichy39 e na construção “semi- clandestina” de um grupo CIAM francês em Paris, o ASCORAL (Assemblée de constructeurs pour une rénovation architecturale) que funcionou até à libertação de Paris em agosto de 1944. O arquiteto, a trabalhar então em colaboração com o regime Nazi e na comissão de reconstrução do governo, aplicou e expôs uma nova versão e pessoal da Carta de Atenas em 1941, com medo de antagonizar os fascistas de Vichy. Antes elaborada pelo CIAM IV e com respetivo desconhecimento, Le Corbusier (1973: xix) anunciou “the threshold of this new age” 40 e que um dos pontos positivos da guerra seria o fim da economia francesa antes estagnada. Esta intimidação e demonstrações políticas parciais também se podem rever na sua publicação Sur les quatre routes quando afirma que

“the war itself has bequeathed to the country a working plant. A quantity of the elements of housing can be produced in factories: dry assembly; the prefabricated house. Provision of housing will become the largest, the most urgent, the most fruitful item of the industrial program.” 41 (Le Corbusier 1947 in Ockman, 1993: 14)

A publicação Sur les quatre routes foi uma das obras e condutas de divulgação como “guia pós- guerra.” Entre esta, vários foram os arquitetos e as conferências e atuações a influir neste período antes do fim da Segunda Guerra, e podem ser observadas algumas das ações na linha temporal que se segue.

 38 Em novembro de 1944, o jornal New York Times publica sobre o CIAM de Nova Yorque com o título de: Architects form for World Project: New Group to Help Replan and Rebuild War Torn Cities Along Modern Lines (Mumford, 2000). 39 Estabelecido pelas forças alemãs na França ocupada, o governo Vichy, cujo nome pertence à cidade onde foi estabelecido, durou de 1940 a 1944. 40 “o limiar dessa nova era” (tradução livre) 41 “a própria guerra legou ao país uma fábrica de trabalho. Uma quantidade de elementos de habitação pode ser produzida em fábricas, montagem seca, a casa pré-fabricada. A provisão de habitação se tornará o item maior, mais urgente e mais frutífero do programa industrial” (tradução livre) 41  15. Uma exibição do plano de Londres com a presença do Rei George VI e a Rainha Elizabeth, e o planeador e professor Patrick Abercrombie e o arquiteto- chefe do plano, JH Forshaw. Data: Entre julho e agosto de 1943.

42 

Em abril, na Suiça, Alvar Aalto discutiu sobre os seus planos para a reconstrução da Europa, o que influenciou os arquitetos suíços a organizarem-se para programar tarefas de reconstrução, e Alfred Roth publica CIVITAS com a colaboração de Le Corbusier (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017).

Le Corbusier publicou La maison des hommes, que tratava o resultado de uma renovação da proposta de reconstrução realizada antes da ocupação em França, em 1939, em conjunto com Pierrefeu e Giradoux (Mumford, 2000).

Criação do grupo New York CIAM Chapter for Relief and Postwar Planning e primeira reunião do grupo semi-clandestino ASCORAL (Mumford, 2000).

Plano para Londres, por Patrick Abercombrie e John Henry Forshaw (Hopfena- grtner e Moravánszky, 2017) (Fig.15).

Packaged House System, por Walter Gropius e Konrad Wachsmann. Emigrados nos EUA durante a guerra, os arquitetos desenvolveram um exemplo de sistema de construção modular pré-fabricado. Como um novo conceito explorado no campo da arquitetura, este sistema de pré-fabricação, auxiliaria o desenvolvimento rápido de abrigos para tropas e equipamentos, necessários ao tempo de guerra, e para o seu eventual final, visando o realojamento da população, veteranos e famílias (Imperiale, 2012).

Em julho: Convenção dos CIAM New York. Apresentaram Shelter, Relief, Rehabilitation of Housing, Rural and Urban Development. Segundo Mumford (2000), esta assistência de emergência foi preocupante para os CIAM uma vez que a construção temporária poderia tornar-se uma construção permanente. Esta preocupação levou à discussão sobre o que os CIAM podem fazer que as agências não estão habilitadas a cumprir a nível de planeamento da Europa. 

16a. Linha temporal de ações e ideias dos arquitetos durante o decurso da Segunda Guerra. Desenho da autora

43 

17. Maquete de reconstrução da vila de Sarrebruck, 1947, por Georges- Henri Pingusson. 18. Esquema de distribuição das densidades e das articulações das zonas verdes do centro de Vällingby, em Estocolmo. Criado por Sven Markelius.

44 

Le Corbusier informou Raul Dautry da existência de ASCORAL e dos seus planos de reconstrução (Mumford, 2000).

Em Dezembro, Le Corbusier era o orador de uma reunião denominada The Battle of Reconstruction, e alegou que o equipamento habitacional deve ser harmonizar a civilização e expressar o espírito do tempo (Mumford, 2000).

Atribuição da reconstrução de Le Havre, em França, a Auguste Perret.

Após o fim da guerra, Neutra encontra-se na primeira conferência das Nações Unidas em São Francisco para descrever a história do CIAM e o novo capítulo relativo à reconstrução do pós-guerra (Mumford, 2000).

Emery estava envolvido na reconstrução da Tunísia.

CIAM Belga estava empenhado na reconstrução da Bélgica, e segundo Mumford, quase todos os importantes cargos na reconstrução do país estavam ocupados pelos membros dos CIAM (Mumford, 2000).

De Koninck estava envolvido na área da pré-fabricação e Eggericx e Herbosch desenhavam casas temporárias (Mumford, 2000).

Em julho, o grupo CIAM iniciado em La Sarraz, encontra-se pela primeira vez para a primeira reunião pós-guerra (Mumford, 2000).

Jean Prouvé recomenda a criação da Equipe des Urbanistes para replanear as cidades alemãs destruídas em Sarre. Mais tarde, foram expostas as análises e explicação de alguns planos de reconstrução como Saarbrūcken (Fig.17), Saarloius e Neunkirchen (Mumford, 2000).

A Le Corbusier, foram dados três projetos: a reedificação do porto de La Rochelle-La Pallice, o plano de reconstrução para Saint-Dié, ambos não realizados, e uma estrutura habitacional, a famosa Unidade de Habitação de Marselha (Mumford, 2000).

Planificação para Estocolmo por Sven Markelius (1945-1952). O crescimento das cidades era inevitável, mas os centros culturais tinham de ser preservados. O arquiteto sugeriu a criação de cidades satélite, e uma das primeiras ser projetada foi Vällingby (1950-54) (Cervero, 1998). (Fig.18)

16b. Linha temporal de ações e ideias dos arquitetos durante o decurso da Segunda Guerra. Desenho da autora 45 

19. Modelo do Roosevelt Memorial, 1974. De Louis Kahn. Fotografia de George Pohl. Arquivos arquitetónicos da Universidade da Pensilvânia. 46  Humanização da Arquitetura

“6. A new step lies ahead. Postwar changes in the whole economic structure of nations may bring with them the organization of community life in the city which has been practically neglected up to date. 7. The people want the buildings that represent their social and community life to give more than functional fulfilment. They want their aspiration for monumentality, joy, pride, and excitement to be satisfied.” 42 (Giedion, Sert, Léger, 1993: 29)

O debate sobre a arquitetura moderna durante e depois da Segunda Guerra surgiu de uma nova consciência e um novo espírito que nasceu neste período. Um cuidado e um pensamento em torno do Humanismo, um conceito “that places the human being in the center of the universe” 43 e que “was embraced by all sides during the Second World War and in the years of reconstruction. (...) Humanism entails a wide range of ideas regarding the individual and society throughout history” 44 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 23). Prestou, nos anos pós-guerra, “an ideal common ground for liberal and socialist positions” 45 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 23), colocando-se de forma apolítica e acreditando na possível aliança em nome do humanismo e na sua amplitude, que de facto, abrangeu locais que não haviam sofrido com o enorme trauma da guerra, como Nova Yorque e a Suiça, mas que partilhavam o desejo de uma comunidade (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017). Em consonância com esta reflexão humanística e em conjunto com o racionalismo do pensamento moderno, surgiu em 1943 um importante documento de Giedion, Sert e Léger, os Nine Points on Monumentality. A par desta divulgação, assomou-se a publicação de Paul Zucker, New Architecture and City Planning (1944), que contava com importantes excertos sobre a monumentalidade como Monumentality de Louis Kahn, cujo idealizou vários projetos relacionados (Fig.19), e de Giedion, The Need for a New Monumentality, um texto que reivindicava “a stronger relationship between society and architectural form” 46 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 26) em torno do centro cívico e da cidade:

 42 “6. Uma nova etapa espera-nos. As mudanças pós-guerra em toda a estrutura económica das nações talvez causem a organização da vida da comunidade na cidade que tem vindo a ser praticamente negligenciada até agora. 7. As pessoas querem edifícios que representem a sua vida social e pública para lhes conceder mais do que a responsabilidade funcional. Eles desejam monumentalidade, alegria, orgulho, e emoção para ficarem satisfeitos.” (tradução livre) 43 “situa o ser humano no centro do universo” (tradução livre) 44 “incorporado por todos durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos de reconstrução (...) e implica uma ampla gama de ideias relativas ao ser individual e à sociedade ao longo da história” (tradução livre) 45 “uma ideia base comum para as posições liberais e socialistas” (tradução livre) 46 “uma relação mais forte entre a sociedade e a forma arquitetónica” (tradução livre)

47  “Emotional training is necessary today. For whom? First of all for those who govern and administer the people. (…) Civic centers will originate when cities are not regarded as mere agglomerations of jobs and traffic lights. They will arise when men became aware of the isolation in which they live (…). 47 (Giedion, 1944: 549-565)

Os excertos dos documentos anteriores, Nine Points on Monumentality e The Need for a New Monumentality cingem-se em torno dos novos valores humanos, da questão da nova monumentalidade e do campo cívico, e podem considerar-se uma resposta à crítica feita aos CIAM por Lewis Mumford pela falta de atenção pelo campo cívico. Além do comentário realizado por Mumford, é clara a influência da sugestão do autor na sua publicação de 1943 quando aborda pela primeira vez o tema do papel cívico e cultural da cidade, juntamente com outras obras precedentes que podem ter influenciado a origem destes dois documentos (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017). Alvar Aalto, em 1940 surgiu com A Humanização da Arquitetura, que em contexto semelhante afirma que esta nova etapa da arquitetura necessita de um âmbito psicológico para a sua humanização, assumindo o valor humano como a máxima para a formação da arquitetura, anulando a arquitetura estritamente funcional:

“La fase presente de la Arquitectura Moderna es, sin duda, una nueva fase movida por el interés especial de resolver los problemas en el campo psicológico. (…) Hacer más humana la arquitectura significa hacer mejor arquitectura y conseguir un funcionalismo mucho más amplio que el puramente técnico. (…) Ese es el único método de humanizar la arquitectura.” 48 (Aalto, 1982: 27-32)

Também Paul Zucker (1942) publicou The Humanistic Approach to Modern Architecture onde expressa também a antinomia entre o funcionalismo e a questão humanística:

“modern architecture becomes a subject of humanism. (...) Based in the expression of rational conditions and functional needs, it became as independent, free, and even

 47 “O treino emocional é necessário hoje. Para quem? Primeiro de tudo, aqueles que governam e administram pessoas.” (...) Os centros cívicos surgirão quando as cidades deixarem de ser vistas como meras aglomerações de trabalhos e luzes de trânsito. Eles surgirão quando os homens tomarem noção da isolação em que vivem (...)” (tradução livre) 48 “A fase presente da Arquitetura Moderna é, sem dúvida, uma nova fase movida pelo interesse especial em resolver os problemas do campo psicológico e humanitário. Este novo período não está em contradição com a primeira etapa de racionalização técnica (...) Fazer da arquitetura mais humana significa fazer melhor arquitetura e conseguir um funcionalismo muito mais amplo que o puramente técnico. (...) Esta é a única forma de humanizar a arquitetura” (tradução livre)

48  emotional as any work ever created by man – therefore approachable from the humanistic point of view.” 49 (in Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 32)

De outro modo e posteriormente, Gropius aborda também a questão em Rebuilding Our Communities, em 1945, relativamente ao equilíbrio entre a comunidade, a humanização e o impacto da máquina, afirmando que “the key for a successful rebuilding of our postwar communities (...) is our determination to let human element become the dominant factor” 50 (Gropius 1945 in Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 29). Para Gropius, existia um conjunto de ingredientes para humanizar uma comunidade desde a padronização de novas técnicas construtivas, a racionalização da casa e elementos associados e a aplicação da escala humana nas estruturas orgânicas com consequência no tamanho nas unidades de habitação e nos edifícios destinados a questões cívicas e culturais (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017). Este conceito de humanismo como programa para a arquitetura do pós-guerra refletiu-se também fora do grupo CIAM. Joseph Hudnut, fundador da Harvard Graduate School of Design, acreditava na “tradição humanista” como apoio da arquitetura e da sua respetiva educação, contrariando a posição da linha estritamente funcional, intitulada por Hudnut (2007) de “the Bauhaus tradition” 51(in Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 33). A sua alegação em como o New Humanism abraçava a teoria moderna foi bem-vinda na Europa que procurava os princípios básicos para o urbanismo do pós-guerra. Em Architecture and the Spirit of Man, no capítulo The Post-Modern House, Hudnut (1949) escreveu,

“Space structure, texture, light – these are less the elements of a technology that the elements of art. They are the colours of the painter, the tones of the musician, the images out of which poets build their invisible architectures. Like color, tone, and image they are the most serviceable when they are so used to make known the grace and dignity of the spirit of man.” 52 (in Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 34)

 49 “a arquitetura moderna tornou-se matéria do humanismo. (...) Baseada na expressão das condições racionais e requisitos funcionais, tornou-se tão independente, livre e até emocional como qualquer outro trabalho criado pelo homem – portanto abordável do ponto de vista humanístico” (tradução livre) 50 “a chave para uma reconstrução de sucesso das nossas comunidades pós-guerra (...) é a nossa determinação em deixar o elemento humano ser o fator dominante” (tradução livre) 51 “a tradição Bauhaus” (tradução livre) 52 “espaço, estrutura, textura, luz – estes são menos elementos tecnológicos do que elementos da arte. Eles são as cores do pintor, os tons do músico, as imagens das quais poetas constroem as suas arquiteturas invisíveis. Como cores, tons e imagem, eles são os mais úteis quando são usadas para fazer conhecer a graça e a dignidade do espírito do homem” (tradução livre)

49 

20. Esboço do planeamento urbano para Saint-Dié, em França, 1945. Composto por oito unidades de habitação (a mesma construída em Marselha), o plano foi rejeitado e não construído. Desenho de Le Corbusier 21. Esboço da futura praça pública de Saint-Dié, o centro cívico, com a igreja barroca em segundo plano. Desenho de Le Corbusier.

50  Estes discursos em torno da humanização das cidades e da arquitetura pós-guerra, foram definidos pelo cunho de cada autor, mas sempre em torno de uma arquitetura humana, criada para o homem, e da criação de espaços culturais e cívicos, humanizando assim as cidades. Nas publicações Nine Points on Monumentality e The Need for a New Monumentality, os autores destas publicações concordavam na evolução histórica do modernismo e na necessidade de adaptação ao período do pós-guerra. Enquanto a etapa anterior do modernismo consistia nos problemas da habitação e urbanismo de um ponto de vista material e transitório, a nova tarefa da arquitetura no período pós-bélico seria, através da colaboração de arquitetos, planeadores urbanos e artistas, a criação do espetáculo público, conjuntos de monumentos e a reorganização da vida comunitária através do planeamento e design dos centros cívicos. Segundo Giedion em The Need for a New Monumentality,

“Periods of real cultural life had always the capacity to project creatively their own image of society. They were able to build up their community centers (agora, forum, medieval square) to fulfil this purpose. Our period, up to now, has proved itself incapable of creating anything to be compared with these institutions. There are monuments, many monuments, but where are the community centers?” 53 (Giedion, 1944: 556)

Desta forma, Giedion (1944) estimulou uma nova criação de carácter público. Criados os pontos e a resolução para uma nova monumentalidade, seguia a dificuldade de como criar uma forma com expressão de grande escala livre de associações a ideologias opressivas do passado. Com base neste novo foco em torno da comunidade e do centro cívico, Sert publica um artigo relacionando o urbanismo e a nova monumentalidade, The Human Scale in City Planning, enquanto o mesmo e Wiener preparavam o projeto da Cidade dos Motores para o Brasil, uma importante referência urbanística ao quinto ponto aclamado outrora por Lewis Mumford.

 53 “os períodos de vida cultural real sempre tiveram a capacidade de projetar criativamente a imagem própria da sociedade. Eles eram capazes de construir os seus centros comunitários (ágora, fórum, praças medievais) para preencher esse propósito. O nosso período, até agora, provou ser incapaz de criar tal comparado com essas instituições. Há monumentos, muitos monumentos, mas onde estão os centros comunitários?” (tradução livre) 51 

22. Salk Institute (1965) de Louis Kahn, na Califórnia. Fotografia de Scott Davenport

52  De uma outra forma e considerado pelos CIAM como uma melhor abordagem do conceito da Nova Monumentalidade e do centro cívico, o plano para a reconstrução da cidade francesa Saint- Dié (Fig.20) após a sua destruição pelas forças alemãs no fim da guerra, é também um marco na representação da importância do espaço público. Projetado por Le Corbusier em 1945, o centro cívico (Fig.21) foi definido mais tarde por Giedion (1958: 162) como “a long stride from the enclosed Reinaissence piazza.” 54 Era constituído por uma plataforma ao ar livre, contrariamente ao da Cidade dos Motores, com edifícios independentes destinados a espaços públicos, “placed in such a way that each emanates its own social atmosphere” 55 (Giedion, 1958: 162). Também por construir, o planeamento de Saint-Dié foi exposto em 1945 no Rockefeller Center em Nova Yorque e pode-se considerar uma ilustração da aplicação da Carta de Atenas e da versão CIAM do centro cívico (Mumford, 2000). Orientados para distintas partes do mundo e apenas erguidos sob papel, tanto a Cidade dos Motores como o projeto para Saint Dié, “set the stage for part of the postwar work of CIAM, providing the conceptual basis for its uncertain efforts to remain an avant-garde movement in the immediate postwar years” 56 (Mumford, 2000: 152). O carácter industrial e funcional do Movimento Moderno parecia anular a ideia de monumentalidade e da antiga linguagem simbólica, tal como afirma Lewis Mumford (1937) que “the very notion of a modern monument is a contradiction in terms: if it is a monument, it cannot be modern, and if it is modern it cannot be a monument” 57(in Mumford, 2000: 150). Além deste “paradoxo”, depois da guerra e dos sistemas opressivos, “o clima ideológico geral do Ocidente era hostil a qualquer espécie de monumentalidade” (Frampton, 1997: 269). No entanto, a ânsia sentida pelos arquitetos da época em torno dos debates do humanismo e da centralização do homem e das suas necessidades culturais, levaram à concepção e à urgência da ideia da nova monumentalidade presente nas cidades modernas, uma vez que os monumentos eram considerados como “human landmarks which men have created as symbols for their ideals, for their aims, and for their actions. (…) Monuments are the expression of man’s highest cultural needs” 58 (Giedion, Sert, Léger, 1993: 29). A arquitetura moderna racionalista aliou-se à re-humanização e ao apelo pelo humanismo, protagonizando conceitos como a monumentalidade e o simbolismo (Fig.22).

 54 “um largo passo desde a cercada Reinaissance piazza” (tradução livre) 55 “posicionados de tal forma que emanavam a sua própria atmosfera social” (tradução livre) 56 “preparam o caminho para parte do trabalho pós-guerra dos CIAM, providenciando uma base conceptual para as apostas incertas na permanência de um movimento avant-garde nos anos imediatos à guerra” (tradução livre) 57 “o próprio conceito de monumento moderno é contraditório: se é um monumento, não pode ser moderno, e se é moderno não pode ser um monumento” (tradução livre) 58 “marcos humanos que os homens criararam como símbolos dos seus ideais, dos seus objetivos, e das suas ações. (...) Monumentos são a expressão das mais altas necessidades culturais do homem” (tradução livre)

53 

23. Cidade de Roterdão, na Holanda, depois da Segunda Guerra, na espera por uma reconstrução.

54  O cenário pós-guerra: Tabula rasa ou Fac-símile?

“After many decades of functionalist preaching, this century is today producing functionally designed objects for the first time on a tremendous scale. In other words, in an extreme emergency we turn unquestioning to functional design. It is important to note that these products of ingenuity, economy, and utmost exploitation of limited materials have quite unconsciously become the most satisfying designs of our machine civilization.”59 (Architectural Forum September 1943 in Ockman 1993: 14)

Neste excerto do artigo Design for War (1943), dos editores da revista Architectural Forum, é percebida a afirmação de como a guerra provou a potência do planeamento funcional coordenado e da produção industrializada. No entanto, a era da máquina e a destruição genérica em massa levou a uma ambiguidade e a um alerta de “how to convert the vast war machine to the needs of peace” 60 (Ockman, 1993: 14) Este veloz progresso do impulso técnico confluente com o traumatismo brutal marcado pelo fim da guerra, levou ao questionamento por parte dos arquitetos acerca da reflexão racionalista, constituindo um interregno entre o modernismo e o pós-modernismo, tornando a arquitetura modernista “dominant while being subjected to increasingly intense questioning” 61 (Ockman, 1993: 13) O período depois da Segunda Guerra Mundial pode ser considerado então segundo dois aspetos: um intervalo entre a ascensão do CIAM e o colapso das teorias modernistas e o crescimento do pós-modernismo, e uma crise produtiva que levou à emergência de várias respostas baseadas numa “critical re-evaluation of modernism” 62 (Pendlebury, Erten e Larkham, 2015: 5).

 59 “Após muitas décadas de pregação funcionalista, este século produz hoje objetos funcionalmente projetados pela primeira vez em grande escala. Em outras palavras, numa emergência extrema, ficamos inquestionáveis para o design funcional. É importante notar que esses produtos de engenhosidade, economia e maior exploração de materiais limitados se tornaram inconscientemente os projetos mais satisfatórios de nossa civilização de máquinas” (tradução livre) 60 “como converter a máquina de guerra às necessidades da paz” (tradução livre) 61 “dominante enquanto estava sujeita a questionamentos cada vez mais intensos” (tradução livre) 62 “crítica reavaliação do modernismo” (tradução livre) 55 

24. Artigo publicitário para a reconstrução pós-guerra na revista Architectural Forum, 1943.

56  Num contexto de pós-guerra e de reconstrução, desenvolvimento tecnológico e planeamento sob um espírito positivo, o pensamento racionalista começou a ser revisto em vários aspetos. Estas foram as novas diretrizes a serem consideradas:

“1. a reconciliation and integration of functionalism with more humanistic concerns: symbolic representation, organicism, aesthetic expressiveness, contextual relationships, and social, anthropological, and psychological subject matter; 2. a recovery of premodernist and antimodernist themes – above all, history, and with it, monumentality, the picturesque, popular culture, regional traditions, antirationalist tendencies, decoration, etc. – within a perspective of ‘evolution’; 3. a replacement of functionalism by other theories like structuralism, semiology, and sociology as new bases for a ‘scientific’ determination of form; 4. neo-avant-gardism: a reassertion of the critical or radical side of modernism, but in a more ironic and dystopian context; 5. an outright rejection of modernist ideology as fatally linked to the ills of urban development and modernization, and recourse to politics or (conversely) aestheticism and autonomy; ” 63 (Ockman, 1993: 13)

Alinhados com a ideologia da era da industrialização, os arquitetos modernistas do início do século XX, depararam-se com a tarefa de reconstruir “an intellectually bankrupt and war- devasted culture” 64 (Woods, 1997: 15). Os sentimentos surgidos pela atmosfera do próprio tempo vão centrar duas abordagens em torno do debate da reconstrução do pós-guerra de 1945: manifestava-se uma vontade pela permanência e pelo reaver do que havia sido perdido e, em simultâneo, uma aspiração em criar algo novo e radical, na procura de uma transformação positiva e viável do planeamento urbano.

 63 “1. A reconciliação e integração do funcionalismo com preocupações mais humanistas: representação simbólica, organicismo, expressividade estética, relações contextuais e questões sociais, antropológicas e psicológicas; 2. A retomada de temas pré-modernistas e anti-modernos – sobretudo história, e com ela, monumentalidade, cultura pitoresca e popular, tradições regionais, tendências anti-racionalistas, decoração, etc, tudo considerado numa perspetiva de ‘evolução’; 3. A substituição do funcionalismo por outras teorias como estruturalismo, semiologia e sociologia como novas bases ‘científicas’ para a determinação da forma; 4. Neo-avant-gardism: uma afirmação do lado crítico ou radical do modernismo, mas num contexto mais irónico e distópico; 5. Uma rejeição completa da ideologia modernista como fatalmente ligada aos males do desenvolvimento urbano e modernização, e do recurso à política (ou o inverso) ou à estética e autonomia” (tradução livre) 64 “uma falência intelectual e uma cultura devastada pela guerra” (tradução livre) 57 

25. Praça do mercado de Varsóvia, depois da sua reconstrução, em 1953. 26. Parte da maquete preparada para o plano de reconstrução do centro da cidade de Coventry, bombardeado pela guerra, por Donald Gibson.

58 

“It is natural to want to replace something important lost to the destruction of war. Ideologies count on this desire among people, and thus make restoration (or the promise of it) their first principle of reconstruction. They believe that the phoenix can rise again from its own ashes. (…) However, such restorations inevitably reaffirm a past social order that ended in war.” 65 (Woods, 1997: 15)

Este desejo pela restituição do que outrora existira, insinua o método fac-símile 66 que significa a reprodução exata, e é considerado por Woods (1997: 15) “a folly (…) the complexity of buildings, streets, and cities, build up over time and across the span of innumerable lives, can never be replaced. (…) it ends as parody, worthy only of the admiration of tourists.” 67 De uma outra perspetiva, Ladd (1997: 131) sugere que todos os episódios de reconstrução implicam “selective remembrance and selective forgetting” 68 e então, o método fac-símile aplicado na reconstrução das cidades de Varsóvia (Fig.25) na Polónia e Dresden na Alemanha depois de 1945, pode ser visto como uma oportunidade para “reconnect with local architectural traditions” 69 e pode atuar como “a restorative medicine to heal traumatized societies and return life to normal” 70 (Charlesworth, 2006: 27). Contrariamente à abordagem fac-símile, uma forma de reivindicação do passado, manifesta-se o espírito de reconstrução através de transformações radicais da arquitetura e do planeamento urbano de forma a reivindicar o futuro e “to erase the memories of tragedy and loss” 71 através da substituição do “fabric of the city that has been degraded by violence an entirely new tissue, and a better one” 72 (Woods, 1997: 15). Para além do propósito da eliminação da tragédia, os arquitetos e planeadores encararam os decorridos eventos catastróficos como oportunidades de instalar tecidos urbanos radicais, inspirados nos planeamentos utópicos dos anos 20 de Le Corbusier – o Plano Voisin e a

 65 “é natural querer substituir algo importante perdido na destruição da guerra. Ideologias contam com este desejo entre as pessoas, e desta maneira fazer restauro (ou a promessa disso), o primeiro princípio da reconstrução. Eles acreditam que a fénix pode nascer outra vez das cinzas. (...) no entanto, tais restauros, reafirmam inevitavelmente a ordem social passada que terminou com a guerra.” (tradução livre) 66 De acordo com o dicionário infopédia da Porto Editora. Fac-símile: nome masculino; Do latim facsimile, “faz coisa semelhante”. 1. Reprodução exata de uma assinatura. 2. Cópia 3. Imitação; 67 “uma loucura (...) a complexidade dos edifícios, ruas e cidades construído com o passar do tempo e através de diversas vidas, nunca poderá ser restituído. (...) terminará como paródia e digno apenas de admiração para turistas” (tradução livre) 68 “lembrança seletiva e esquecimento seletivo” (tradução livre) 69 “reconexão com as tradições arquitectónicas locais” (tradução livre) 70 “uma medicina reparadora para curar as sociedades traumatizadas e como um retorno à vida normal” (tradução livre) 71 “apagar as memórias da tragédia e da perda” (tradução livre) 72 “tecido urbano da cidade que foi degradado pela violência por um tecido novo e melhor” (tradução livre) 59 

27. Maquete da cidade ideal Le Havre, de Perret, em 1946. Fotografia da Biblioteca Municipal de Havre. 28. Vista da cidade Le Havre de Auguste Perret. Créditos: Gilles Targat.

60  cidade para 3 milhões de habitantes. Esta abordagem denominada Tabula Rasa73 tomou forma em cidades profundamente devastadas pela guerra como Berlim, Roterdão, Hiroshima e Coventry (Fig.26) em Inglaterra (Cohen, 1998). Donald Gibson, o arquiteto chefe responsável pelo plano de reconstrução de Coventry em 1941, comenta que

“now is the opportunity, which may never recur; to build a city designed for the future health, amenity and convenience of the citizens. The city is being made a test case, and its solutions will form a guide to the other cities, which have been similarly devastated.”74 (in Diefendorf, 1990: 98)

Esta dualidade no pensamento originou uma batalha entre os discursos historicistas e modernistas, que se pode dizer evidente nos anos imediatos ao fim da guerra em França através da consequente resistência a propostas como as de Le Corbusier e Auguste Perret e arquitetos que rejeitavam o método fac-símile, resultando na origem de alguns projetos e obras adoptadas por outros arquitetos mais conservadores. No que se refere a esta dificuldade na missão do arquiteto no pós-guerra francês, Baudoui (1990: 43) sugeriu que “the task of the reconstruction architect was defined in terms of reconciliation between traditionalism and modernism and a rejection of all ‘architecture without racial roots’ and ‘trite and superficial copies.’” 75 Atribuída a Auguste Perret, em 1945, a reconstrução de Le Havre (Fig.27), é um dos exemplos que balança entre os termos modernistas e históricos e respetiva oposição. O projeto de Perret foi muito discutido porque o arquiteto ambicionava criar uma cidade sobre uma plataforma com todos os fluídos a correr sob a mesma, mas isso implicava o usar quase todo o cimento que havia sido providenciado para a reconstrução, e por isso, a ideia original não seguiu em frente (Charlesworht, 2006). Claramente, a reconstrução desta coleção de cidades destruídas depois da Segunda Guerra não era uma tarefa banal e de fácil resolução. A redução a ruínas dos monumentos culturais, do grande volume de conjuntos habitacionais, escolas, hospitais e outras instalações, eram notadas com desespero e como matéria de reflexão. Desde o financiamento da reconstrução e

 73 De acordo com o dicionário Priberam Tábula rasa: Superfície pronta para receber escrita, desenho, pintura, etc.; Mente vazia, sem ideias ou conhecimentos. “Fazer tábula rasa:” começar como se não houvesse ideias ou conhecimentos anteriores; ignorar ou desprezar; 74 “agora é a oportunidade que pode nunca mais voltar a repetir-se; construir uma cidade desenhada para a saúde, amenidade e conforto futuro dos habitantes. A cidade é agora um caso de teste, e as suas soluções vão formar um guia para outras cidades que têm vindo a ser devastadas de forma semelhante” (tradução livre) 75 “a tarefa de reconstrução de um arquiteto é definida em termos de reconciliação entre tradicionalismo e modernismo e a rejeição de toda a arquitetura sem raízes raciais e cópias banais e superficiais” (tradução livre)

61  limpeza dos destroços à tomada de decisões, imperavam também meditações sobre a reorganização da cidade, o questionamento da recaptura do carácter tradicional das cidades históricas e a dualidade entre a necessidade de imediatismo na construção versus a necessidade e tempo para a reflexão e projeção de uma cidade segundo os parâmetros modernos para uma sociedade pós-guerra (Diefendorf, 1990). Contudo, para além das demandas e adversidades sequentes da época, tal como refere Woods, “war, disaster gives us the capacity to rethink architecture. Things, buildings will fall apart” 76(1997: 1). A destruição das cidades revelava uma oportunidade para além da reconstrução e manifestava a oportunidade de mudança e de reflexão. Não se resumia à reedificação do que existira outrora, mas sim a uma conjugação entre o existente e o futuro sob um formato simbólico entre o pensamento positivo e negativo inerentes à realidade da guerra – a luta e o desgosto pelo fracasso, e a luta pelo alcance de algo novo e positivo – não se tratando de construir “a ‘nobler’ new world” 77 mas sim de combinar a oportunidade de recriar o que estava “worn out and inadequate” 78 aliado a um desejo “to return to what was familiar, to the happier images of a pre- war world” 79 (Bullock, 2002: 6). Esta complexidade derivada de uma extensa indagação de como atuar neste período de grande história, conduziu à dubiedade das práticas adoptadas pelos profissionais responsáveis pela reconstrução, como arquitetos e planeadores, vinculados à ideologia moderna das primeiras décadas do século XX, e defrontados agora com um nova era e com a ânsia de programar as novas cidades como mais humanas. Estes tanto eram vistos como especialistas, como viam as suas práticas aplicadas a ser alvos de críticas públicas e oposições, o que originou um conjunto de visões e estratégias alternativas no pós-guerra (Pendelbury et al., 2015). Desde o conceito de tabula rasa sob a influência de Le Corbusier, ao conceito de fac-símile persistente em determinados países que insistiram no trabalhoso restauro do dano provocado pela guerra, a era da reconstrução pós Segunda Guerra pode assumir-se como uma época confusa, tanto para os profissionais da área como para o público, com os inúmeros planos para inúmeros locais a serem realizados ao mesmo tempo, como “a jungle of planning on paper” 80 (Larkham e Lilley, 2015: 108).

 76 “a guerra e o desastre dão-nos a capacidade de repensar a arquitetura. Coisas, edifícios irão desmoronar-se” (tradução livre) 77 “um novo ‘nobre’ mundo” (tradução livre) 78 “desgastado e inadequado” (tradução livre) 79 “de voltar ao que era familiar, às imagens felizes do antes da guerra” (tradução livre) 80 “uma selva de planeamentos no papel” (tradução livre) 62  Os CIAM no cenário pós-guerra

“Architecture is a spiritual order, realized through building. Architecture – an idea built into infinite space, manifesting man’s spiritual energy and power, the material form and expression of his destiny, of his life. (…) To build is a basic human need. It is first manifested not in the putting up of protective roofs, but in the erection of sacred structures, in the indication of focal points of human activity – the beginning of the city. All building is religious.” 81 (Hollein, 1970: 181)

Depois da segunda guerra, os CIAM introduziram um novo termo como foco do planeamento urbano e pensamento funcionalista, o termo “espiritual”. Esta definição, que se remete automaticamente para o mundo espiritual e para as edificações religiosas, está longe desse domínio. A religião, nesta situação, referia nada do mais que o compromisso com o espírito humano e com a sua habilidade para derrotar o terror daquele tempo (Harries, 2000). Os arquitetos modernos queriam satisfazer a “intangible need” 82 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 44), um acesso pleno às necessidades humanas, tanto físicas como espirituais, e identificar “the fullness of human reality beyond the physical field” 83 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 44). Esta nova essência dos CIAM foi discutida no CIAM VI (Fig.29), na cidade inglesa Bridgwater, em 1947. Considerado como o primeiro congresso oficial pós-guerra dos CIAM, o novo conceito de “espiritual” introduzido, operou neste debate como uma forma de combater, a “disheartening lack of soul/spirit that the mechanized society was suffering (…) misfortune, indescribable ugliness, defeat of grace, of smile, the avoidance of happiness” 84 resultante do “disaster (…) chaos (…) of moral, scientific and spiritual achievements.” 85 Era necessário satisfazer as “man’s emotional and material needs simulating the growth of his spirit” 86 (Le Corbusier in Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 45)  81 “Arquitetura é uma ordem espiritual, realizada através do edifício. Arquitetura – uma ideia construída no espaço infinito, manifestando o poder e energia espiritual do homem, a forma material e expressão do seu destino, da sua vida. (...) Construir é uma necessidade humana. Primeiro manifesta-se não nos telhados protetores, mas na criação de estruturas sagradas, na indicação dos pontos focais da atividade humana – o início da cidade. Todos os edifícios são religiosos.” (tradução livre) 82 “necessidade intangível” (tradução livre) 83 “a plenitude da realidade humana para além do campo físico” (tradução livre) 84 “desanimadora falta de alma/espírito que a sociedade mecanizada estava a sofrer (...) a desgraça, a indescritível fealdade, a derrota da graça, dos sorrisos, a evasão da felicidade” (tradução livre) 85 “desastre (...) caos (...)” das “conquistas morais, científicas e espirituais.” (tradução livre) 86 “necessidades emocionais e materiais do homem, simulando o crescimento do seu espírito.” (tradução livre)

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29. Fotografia de alguns dos membros no sexto congresso dos CIAM, na cidade Bridgwater, em Inglaterra (1947). Créditos: RiBA Collections

64  Esta nova direção dos CIAM afastou-se dos congressos anteriores e em particular do CIAM IV, A Cidade Funcional. Assim, as demandas espirituais e emocionais enunciadas neste congresso aliaram-se aos temos de “habitar” e “centro”, levando à organização da cidade em torno dos princípios antes criados no CIAM IV, antes da guerra. Os princípios habitação, transporte, trabalho e lazer, juntam-se agora aos conceitos de “aesthetics, art, poetry, historical continuity, identity, pertinence, community and collective life, local character, integration, relationships (…)”87 (Hopfenagrtner e Moravánszky, 2017: 51) Esta aliança entre as necessidades humanas e o funcionalismo dirige-nos de novo para a noção de centro cívico e para A Nova Monumentalidade de Giedion, agora promovido no sexto congresso dos CIAM, devido à necessidade de entender e à pressão das novas aspirações populares da sociedade que brotavam neste período pós-guerra. Também indiciado por Gropius, este refere que é necessário replanear a sociedade e enaltece que a construção de centros comunitários conectados com escolas era mais urgente na reconstrução do que a parte habitacional (Mumford, 2000). No CIAM VI, também J.M Richards, líder do grupo MARS, surgiu com a ideia do Common Man, e em como os ideias dos CIAM expressvam um idioma que não é percebido pelo homem comum e que estava em vias de se tornar uma arte para entendedores: “we have to face the fact that the CIAM ideals express themselves in an idiom which is by no means accepted or understood by the man in the street” 88(Richards, 1979: 33). Richards pretendia que houvesse uma participação por parte do indivíduo de forma a criar significado e apreciação da arquitetura por parte Common Man, e questionou se os arquitetos poderiam desenvolver um idioma numa direção mais humana.

“Existing towns have personalities and traditions of their own, by which their inhabitants naturally set great store. As well as being a way of earning the allegiance of the man in the street, it is clearly the duty of every town planner to make a point of preserving and even intensifying local character rather than destroying it. Can he not do this by a technique of urban landscaping which incorporates modern buildings with existing buildings and existing topographical features in one consciously designed picture?” 89 (J.M. Richards, 1979: 34)

 87 “estética, arte, poesia, continuidade histórica, identidade, pertinência, vida comunitária e coletiva, carácter local, integração, relacionamentos (...)” (tradução livre) 88 “temos que enfrentar o facto deque que os ideais dos CIAM expressam-se a si mesmos num idioma que não é aceite nem compreendido pelo homem na rua.” (tradução livre) 89 “As cidades existentes têm personalidades e tradições próprias, pelas quais os seus habitantes naturalmente dão grande importância. Tal como ser uma forma de ganhar a fidelidade do man-in-the-street, é claro que é dever do planeador da cidade marcar uma posição na preservação e até na intensificação do carácter do local ao invés de destruí-lo. Não pode ele fazer isto através de uma técnica de paisagismo urbano que incorpore edifícios modernos – eles mesmo desenhados num espírito moderno – com edifícios existentes e características topográficas existentes numa imagem conscientemente desenhada.” (tradução livre)

65  Este discurso e pensamento levoou o Richards a uma apreciação e entendimento do modelo sueco, denominando-o de New Empiricism (1947), como uma harmonização entre o funcionalismo e a humanização que contraria a monumentalidade moderna e ao uso de “materiais heroicos” que vão ao encontro da ideologia de Le Corbusier. A arquitetura pós-guerra na Suécia adoptou a influência e o caminho das inspirações da Cidade-Jardim e de Frankfurt de 1930, na óptica de restruturar a sociedade sueca com o apoio de novos programas sociais. Ahren argumentou, em 1945, que “planned, village-like communities encouraged the formation of socially minded individuals able to work together effectively” 90 (Mumford, 2000: 167). Esta trajetória contrária aos altos edifícios paralelos de Corbusier, encaminhou a arquitetura sueca depois da guerra para um misto de altura dos edificados e com enfatização no “picturesqueness and variation, with the frequent use of brick and wood” 91 (Mumford, 2000: 167). Esta versão da arquitetura sueca moderna pós-bélica foram um fator influente no pós-guerra britânico. O Reino Unido viu parte das suas cidades totalmente arrasadas pelos bombardeamentos alemães e era necessária uma reconstrução imediata. Numa tentativa do governo trabalhista de criar um welfare state 92, uma das iniciativas foi o planeamento similar ao da Suécia, o que fez nascer o programa New Towns Act 93 em 1946 (Mumford, 2000). O CIAM VI realizado em 1947 em Inglaterra, ficou marcado pela comparência de CIAM dos vários países, da equipa MARS, e também de jovens arquitetos como é caso de Alison e Peter Smithson como delegados do grupo MARS, que se mostraram críticos ao processo das New Towns:

“the actual achievements in architecture and town-rebuilding in England have been so feeble that for ordinary person it was not possible to feel that any attempt the dreamed- of post-war world was being made. In the comprehensive areas in London (…) it was the same old piecemeal tinkering of between the wars. (…) The ‘New Towns’ – by then several hundred thousand houses on the ground – were routine places built to a common pattern.

 90 “planeamento de comunidades tipo-vila encorajavam a formação de indivíduos preocupados socialmente aptos para trabalhar em conjunto eficazmente.” (tradução livre) 91 “pitoresco e variável, com o uso frequente de tijolo e madeira.” (tradução livre) 92 De acordo com a definição do livro de Briggs, The Welfare State in Historical Prespective, o “Estado de bem-estar é um estado em que o poder organizado é deliberadamente usado (através da política e da administração) num esforço de modificar o funcionamento das forças do mercado em pelo menos três direções: 1. garantindo aos indivíduos e às famílias um rendimento mínimo independente do valor de mercado da sua propriedade; 2. diminuindo a extensão da insegurança permitindo aos indivíduos e famílias fazerem face a contingências sociais (por exemplo, doença, velhice e desemprego) que levarão, de outro modo, a crises individuais e sociais; 3. assegurando que a todos os cidadãos, sem distinção de status ou classe, seja oferecido um certo tipo de serviços sociais, aos melhores padrões disponíveis.” 93 O programa New Towns Act foi estabelecido em 1946 para a criação de novas localidades e comunidades após a Segunda Guerra Mundial, na Grã-Bretanha. Stevenage foi a primeira new town, estabelecida em Hertforsdshire, e criaram-se mais dez até à data de 1955.

66  Not a single experimental housing area had been established, and no architect of our generation was given even six houses to do.” 94 (Smithson’s, 1970: 9)

O congresso do CIAM VI, o primeiro congresso oficializado depois da Segunda Guerra, foi segundo Mark Thomas (1979: 10),

“was a very moving experience. (…) Those who were meeting again after ten years separation and vicissitude – several had endured the worst of the Nazi concentration camps – were frankly overjoyed to see old faces again. Members came from both sides of both imaginary curtains (the iron and the dollar) without showing a sign that they were supposed to inhabit different worlds.” 95

Os vários constituintes do sexo congresso encontraram-se num ambiente heterógeno e concordavam na necessidade de introduzir uma aproximação às necessidades humanas. De acordo com isto, do CIAM VI não resultou qualquer publicação. Foi, no entanto, esboçada a Reafirmação dos Objetivos, onde ficou declarado que este seria um congresso preparatório para o CIAM VII:

“Having members in so many countries, CIAM is in a strong position to put the experience gained in one part of the world at the disposal of another. (…) An urgent task for CIAM is to ensure that the highest human and technical standards are attained in community planning of whatever scale, from the region to the single dwelling. (…) a sense of human values.” 96 (Giedion, 1979: 17)

 94 “Os atuais conquistas em arquitetura e na reconstrução das cidades em Inglaterra têm sido tão débeis que para uma pessoa comum não é possível sentir que alguma tentativa de um mundo pós-guerra de sonho tenha sido feita. Nas áreas renovadas gerais de Londres (...) foi a mesmo velho remendo fragmentado entre as guerras. (...) As New Towns – muitas centenas de casas no solo – eram espaços de rotina construídos para um comportamento comum. Nem uma área de habitações experimentais foi estabelecida, e nenhum arquiteto da nossa geração teve sequer seis casas para fazer.” (tradução livre) 95 “uma experiência muito profunda. (...) Aqueles que se encontravam outra vez dez anos depois da separação e vicissitude – muitos sofreram o pior dos campos de concentração Nazi – estavam sinceramente felizes por ver antigas caras outra vez. Membros vieram dos ambos lados das ambas cortinas imaginárias (o ferro e o dólar) sem mostrar qualquer sinal de que supostamente habitavam mundos diferentes.” (tradução livre) 96 “Tendo membros em tantos países, os CIAM estão numa forte posição para por a experiência adquirida numa parte do mundo à disposição da outra. (...) Uma tarefa urgente dos CIAM é assegurar que as maiores condições humanas e técnicas são cumpridas no planeamento da comunidade de qualquer escala, desde a região à simples habitação. (...) o sentido dos valores humanos.” (tradução livre)

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30. Fotografia de alguns participantes do CIAM no congresso de 1949, na cidade de Bérgamo, em Itália. Créditos: RIBA Collections 68  Este procedimento reflete a importância dos CIAM na modelação do mundo pós-guerra e deste congresso como sua preparação, “men around the table will direct rebuilding of dozen cities, play new physical patterns of whole nations.” 97 (Mumford, 2000: 171)

O segundo congresso CIAM pós-guerra - CIAM VII

Numa reunião em Paris realizada em março de 1948, o novo comité dos CIAM, antigo CIRPAC, reuniu-se naquele que configurou o segundo congresso pós-guerra dos CIAM, o CIAM VII, que se concretizou em Itália, na cidade de Bérgamo a 1949 (Fig.30). Contou com a presença de vários arquitetos que trabalhavam na reconstrução de algumas cidades como o casal polaco Helena e Szymon Syrkus que planeavam a cidade de Varsóvia praticamente destruída na sua totalidade pela guerra, cujos realizaram o projeto da Socialist Warsaw (1945) e o Kolo Housing Estate (1947-56), e também o grupo italiano BBPR com planos para Milão, com o AR Plan (1944) e o distrito QT8 (1946-53). Além destes planos concebidos de acordo com a época e os países em questão, o Congresso incidiu no tema do habitat, tema que irá ocupar os CIAM até ao ano de 1956. Assim, para além dos planos antes referidos, outras ideias foram apresentadas como a Unidade de Habitação de Marselha por Le Corbusier (1947-52); o projeto para Sottevile-les-Rouen (1945- 56) por Marcel Lods; a Vila de Nagele (1947-57) pelo grupo holandês De 8; e o plano para o bairro de Pendrecht (1949-53) por Lotte Stam-Beese e pelo grupo Opbouw de Roterdão (Mumford, 2000).

Socialist Warsaw (1945) e Kolo Housing Estate (1947-56), de Szymon e Helena Syrkus

Para Szymon e Helena Skyrus, a arquitetura e a cidade moderna eram instrumentos eficazes na reforma social necessária no pós-guerra da Polónia. O pensamento dos arquitetos polacos gerava-se em torno do modernismo e da reforma social por uma nova Varsóvia dos trabalhadores. Szymon e Helena acreditavam que a réplica exata dos monumentos era imperativa de forma a rejeitar de forma absoluta a tentativa dos nazis de erradicar a cultura polaca. Assim, o plano para a Varsóvia Socialista apresentado no CIAM VII, abordava a zona funcional e as rotas de circulação já propostas pelo anterior planeamento pré-guerra, o denominado Functional Warsaw98, e a reconstrução do centro histórico da cidade, contando com mais de 800 edifícios.

 97 “homens ao redor de uma messa irão dirigir a reconstrução de dúzias de cidades, planear novos modelos físicos para nações inteiras.” (tradução livre) 98 O plano Functional Warsaw foi desenvolvido antes da Segunda Guerra, em 1934, e apresentado em 1937 no CIAM V. Foi desenvolvido por Szymon Syrkus e Jan Chmielewski. Este projeto de planeamento é um exemplo da tendência do pensamento urbano polaco e demonstra uma tentativa de responder às exigências da Carta de Atenas (Mumford, 2000).

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31. Kolo Housing Estate, em Varsóvia, de Szymon e Helena Syrkus. Fotografia da obra Warsaw 1960, de Edmund Kupiecki. 32. Distrito experimental QT 8, Milão, em 1949. De BBPR e outros.

70  Em 1947, o casal iniciou também um projeto de habitação denominado Kolo Housing Estate (Fig.31), que tem algumas influências do trabalho organicista e humanista de Alvar Aalto. Em 1949, algumas partes do complexo habitacional foram desenvolvidas numa direção mais socialista (Mumford, 2000).

Plano AR (1945) e o distrito QT 8 (1945-57), do Grupo BBPR e outros

O plano AR, desenvolvido pelo grupo BBPR em conjunto com outros arquitetos, pretendia a descentralização através da distribuição das quatro funções estipuladas pela Carta de Atenas, novos distritos residenciais e novas autoestradas enquanto o centro antigo era restaurado. Este plano assumiu um papel importante na situação pós-guerra de Itália, uma vez que os CIAM nunca tinham rejeitado esta estratégia no contexto do replaneamento global.99 O distrito QT 8 (Fig.32), foi projetado para a Trienal de Milão de 1947 e focou-se no tema do habitar, dadas as graves condições habitacionais da cidade. Este projeto pretendia ser um distrito urbano com quatro unidades de vizinhança para albergar 3300 pessoas. Foram desenvolvidos diversos tipos de habitação como casas geminadas e casas de campo para os veteranos da guerra, edifícios pré-fabricados de apartamentos de 2 a 4 pisos e edifícios multifuncionais de 6 a 10 pisos. No seu centro foi providenciado o centro cívico com uma igreja, cinema e uma creche.

Unidade de Habitação de Marselha (1947-52), de Le Corbusier e associados

William Curtis (1983: 270) destaca Le Corbusier como arquiteto “who managed the difficult transition after 1945 most resplendently” 100 e enaltece os seus últimos anos de vida como uma produção de obras de arte: “like the aging Michelangelo, Le Corbusier entered an increasingly private an mystical world of poetry in his last years” 101 (Curtis, 1983: 271). A ambição do “poeta da era da máquina” era aplicar os seus grandes modelos na reconstrução de França. No ano de 1945, viu essa oportunidade surgir quando Raul Dautry, Ministro da Reconstrução e Urbanismo de França, o convocou para a realização de uma estrutura de habitação com base nas suas ideias urbanísticas (Mumford, 2000). Na cidade de Marselha, num local de 35.000 metros quadrados e numa situação pós-catástrofe de uma carência habitacional e de uma necessidade de realojar a população, Le Corbusier

 99 Pode ter influenciado as várias reações contra os CIAM que surgiram por volta de 1960, tal como se observa no trabalho de Aldo Rossi, um estudante de Ernesto Rogers (Mumford, 2000). 100 “o que lidou com a difícil transição depois de 1945 de forma mais resplandecente” (tradução livre) 101 “tal como o antigo Michelangelo, Le Corbusier inseriu um crescente privado e místico mundo de poesia nos seus últimos anos.” (tradução livre)

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33. Unidade de Habitação de Marselha, França. 1952, Le Corbusier.

72  projetou a Unidade de Habitação de Marselha que se traduz pela “its heroic scale, (..) its originalities in sectional organisation, (…) its sociological pretensions.” 102 (Braham, 1966: 16) Esta megaestrutura (Fig.33) com 165 metros de comprimento, 24 de largura, e 56 metros de altura, tinha como objetivo albergar 1600 habitantes e criar condições de uma vida comunitária para os mesmos, focando as ações sociais de lazer e socialização, e assim transportar a ideia de uma cidade vertical para uma estrutura de grandes dimensões. Sustentada por pilotis, esta megaestrutura com 18 pisos contém 337 apartamentos de 23 tipos, que são distribuídos em pares a cada três andares. Estreitados e com a adição de duplo pé direito, permitiu o encaixe dos volumes de habitação tipo, e consequentemente de mais apartamentos em toda a megaestrutura para albergar um maior número de pessoas. O 7º e 8º andar ficaram encarregues de abrigar lojas comerciais, farmácia, correios, serviço de lavandaria e de limpeza, um restaurante e também um hotel. No 17º encontrava-se o jardim de infância, berçário, e um acesso ao terraço com uma pequena piscina, pista para corrida, um solário, acompanhados de um ginásio e de um jardim (FLC/ADAGP, 2017). Esta obra decorrente do esforço de Le Corbusier e da sua equipa de associados, André Wogenscky e Vladimir Bodiansky, foi uma das mais influentes e das mais prestigiosas no período pós-guerra (Mumford, 2000).

Sotteville-lès-Rouen (1945-56), de Marcel Lods

Esta experiência de planeamento (Fig.34) serve de testemunho sobre a expectativa europeia de a arquitetura moderna assumir um papel na reconstrução pós-guerra, ao invés do retorno às tradições. De acordo com os princípios da Carta de Atenas, este conjunto segregava as quatros funções enunciadas, tais como o trabalhar, viver, circular, e lazer e separava a rede de circulações da disposição dos edifícios, que assumiam um caráter independente. Este novo discurso urbanista verificou-se noutras obras como na reconstrução de Maubeuge por Lurçat e na reconstrução de Sarre, em França, por Roux e Pinguisson (Mumford, 2000).

Vila de Nagele (1947-57) na Holanda – Grupo De 8

A vila de Nagele, localizada na Holanda, foi uma vila projetada para no período de reconstrução (Fig.35). A Holanda enfrentou um problema de escassez de habitação e de carência de condições no período de construção pós-guerra, pelo que uma das soluções foi o projeto de oito aldeias para os trabalhadores. Nagele era uma aldeia cujas casas foram projetadas para trabalhadores agrícolas e pessoas de meia idade com a sua família, e não possuem mais que dois andares. Apesar de parecerem

 102 “sua escala heroica, (...) pela sua originalidade na sua organização seccional, (...) pelas suas pretensões sociológicas” (tradução livre) 73 

34. Sotteville-lès-Rouen, em França, de Marcel Lods. 35. Vila de Nagele, na Holanda, pelo grupo De 8.

74  semelhantes, há muitas variações devido aos planos de habitação experimental. Os espaços verdes assumiam uma grande importância e foram sofrendo alterações e novos planos ao longo dos anos, até ao século XXI. Nagele é constituída com cerca de 270 habitações, quatro igrejas, três escolas, e outras funções como ginásio, zonas de restauração e comércio, cemitério, entre outras. Discutida mais que uma vez pelos CIAM até 1956, esta vila resultou de diversos esboços e é considerada um dos poucos frutos resultantes dos princípios dos CIAM encontrados na Holanda (Nagele, 2017), tal como acontece no caso seguinte.

Bairro de Pendrecht (1949-53) em Roterdão – Lotte Stam-Beese e Grupo Opbouw

Este bairro foi construído durante a reconstrução do pós-guerra e visava inicialmente acolher os trabalhadores das docas vizinhas. Apesar da Agência de Desenvolvimento Urbano e Reconstrução e de Lotte Stam-Beese ter elaborado várias configurações para Pendrecht, foi o grupo de funcionalista Opbouw que teve uma influência maior na forma final do projeto (Fig.36 e 37). Ao invés dos edifícios independentes como se observa na obra de Marcel Lods, foi estabelecido um cluster103 de forma a criar um vínculo espacial e social entre a habitação e a vizinhança. Cada cluster convidava a diversidades sociais, o que se reflete nas alturas dos edifícios independentes, mas organizados em torno de um espaço verde comum. Ao longo dos edifícios mais altos surgem as ruas do bairro e uma estrada de acesso central circula de este-oeste e une o distrito à cidade. As escolas localizam-se centralmente e numa zona verde, enquanto as lojas distribuem-se por todo o distrito. O distrito de Pendrecht influenciou muito as respostas de planeamento urbano para a grande demanda da habitação pós-guerra durante a década de 1950 (Groenendijk e Vollaard, 2017). Voltando ao CIAM VII e ao o tema do Habitat, é de salientar a apresentação de um sistema de organização e informação sobre projetos de planeamento urbano através de uma grelha, a CIAM Grid. Apresentada por Le Corbusier e o grupo ASCORAL, era constituída por temas e funções e organizada por cores, e explanava os princípios da Carta de Atenas, mas agora com a permuta entre o tópico de Lazer pela Cultivação do corpo e espírito.104 Também Giedion e Sert voltaram a reintroduzir o tema do centro cívico, que irá ser aprofundado no próximo congresso. Neste congresso do CIAM VII, no qual predominaram os preceitos de Le Corbusier e o seu grupo ASCORAL, esta conferência foi considerada um insucesso, não só pelos conflitos internos, mas também pela crítica de Bruno Zevi, publicada no jornal Metron, em 1949, cuja  103 O termo cluster foi um termo mais tarde discutido pelos Team 10. A sua definição é tomada a partir de dos diversos elementos do projeto: “unidades habitacionais agregadas em conjunto através de um sistema livre de circulação., reunidas em blocos arituclados e com um forte símbolo de territorialidade, o núcleo central” (Barone, 2002: 144). 104 A CIAM GRID dispunha tópicos em diferentes cores: Verde = habitação; Vermelho = trabalho; Azul = cultivação do corpo e da mente; Amarelo = circulação; (Mumford, 2000). 75 

36. Vista aérea do distrito de Pendrecht em Roterdão. 37. Edifício habitacional do distrito de Pendrecht. Foto de Rook & Nagelkerke, 2006.

76  censurava o enfoque do debate em torno do pensamento moderno de Le Corbusier, Gropius e Giedion, e observava que “modern architecture has lost a major battle in the postwar period” 105 (Zevi 1949 in Mumford, 2000: 199):

“The other branch of modern architecture, that which is no longer rationalistic, the movement which is called organiz, or of human architecture, or of the New Empiricism, doesn’t have adequate representation in the CIAM (…) all the adherents of the Wright school, have been more or less excluded. Why? The Congress of Bergamo must face this problem. 106 (Zevi 1949 in Mumford, 2000: 199)

A crítica de Bruno Zevi à falta do pensamento modernista em torno das outras correntes e da despreocupação na discussão dos temas históricos, não pareceu ser alvo de atenção dos CIAM. No entanto, o tema escolhido do próximo congresso pareceu refletir um reconhecimento mais positivo acerca do passado pela primeira vez. Tanto o CIAM VI como o CIAM VII não trouxeram nenhum consenso na criação de uma direção dos CIAM para o período pós-guerra. Para Mumford (2000: 215) o oitavo congresso do grupo “was the most significant of the postwar congresses, one of the earliest efforts to discuss the issue of urban public space in the transformed circumstances of modern architecture after the war.” 107

O CIAM VIII

O CIAM VIII, realizado a 1951 em Hoddesdon, em Inglaterra, foi o primeiro congresso depois do início da Gerra Fria, e sustentava o tema The Heart of the City (O coração da cidade). Com novas presenças como Philip C. Johnson e Kenzo Tange, a temática centrava-se no objeto Centros da Vida Comunitária e do Capítulo de Habitar, afastando o tema da Carta de Atenas e concentrando os debates na palavra The Core (O Núcleo), retomando ao tema da comunidade e evitando o ainda rígido modelo da cidade funcional (Mumford, 2000). Como resultado da combinação entre o foco nos centros históricos e os novos centros monumentais, este congresso reflete o esforço pós-guerra dos CIAM na criação de novas bases para uma arquitetura de coletividade social, lançando a sugestão: “a basis for modern

 105 “a arquitetura moderna perdeu uma grande batalha no período pós-guerra” (tradução livre) 106 “O outro ramo da arquitetura moderna, que não é mais racionalista, o movimento que é chamado de orgânico, ou de arquitetura humana, ou de New Empiricism, não teve a representação adequada no CIAM (...) todos os aderentes da escola de Wright têm vindo a ser mais ou menos excluídos. Porquê? O Congresso de Bérgamo deve enfrentar este problema.” (tradução livre) 107 “foi o mais significativo dos Congressos pós-guerra, um dos esforços iniciais para discutir o tema do espaço público urbano nas circunstâncias transformadas da arquitetura moderna depois da guerra.” (tradução livre)

77  architecture going beyond the design of social housing, one that looked both backward to the classical tradition and forward to a later generation’s interest in reconstituting urbanity in late- twentieth-century cities” 108 (Mumford, 2000: 215). Neste congresso foram delegadas tours a novas construções do pós-guerra pelas escolas pré- fabricadas em Hert-fordshire, desenvolvidas por Charles H. Aslin; ao Festival do Reino Unido109; e à New Town de Harlow, desenhada por Frederick Gibberd (Mumford, 2000). Desde o sexto congresso dos CIAM, era prática habitual os estudantes de arquitetura, principalmente provindos de Inglaterra, juntarem-se ao CIAM, e é a partir do CIAM VIII que os grupos individuais de cada país criaram uma secção para os mais novos, com a intuito de rejuvenescer o grupo CIAM que se encontrava ao ativo desde a primeira reunião em La Sarraz, 1927 (Risselada e Heuvel, 2005). Alguns dos elementos desta nova geração tinham como objetivo lidar com os grandes mestres e adquirir padrões contrários aos tradicionais que retomavam ao pitoresco e ao convencional que se alargava em Inglaterra. Dois anos mais tarde, realizou-se o congresso IX em Aix-en-Provence em França, cidade que “was almost overwhelmed by the crush of students and young architects” 110 (Banham, 1966: 70).

Do CIAM IX aos Team 10

O CIAM IX foi realizado em julho de 1953, na cidade francesa Aix-en-Provence e organizado em torno do título La Charte de l’Habitat 111 (A Carta do Habitat). Este nono congresso foi marcante pela sua magnitude e diversidade, com novos participantes, novos grupos nacionais, e novos jovens arquitetos que refutavam os métodos criados da velha guarda do CIAM desde a Segunda Guerra. A nova geração como Aldo Van Eyck, Jaap Bakema, Georges Candilis e Shadrach Woods, apresentavam uma ampla variedade de soluções arquitectónicas e um desejo de criação de ambientes que despertassem as relações entre os habitantes e o ambiente, e respondessem às necessidades culturais do homem.

 108 “a base da arquitetura moderna vai além do desenho da habitação social, uma base que olhou para trás para a tradição clássica e futuramente para um interesse da geração tardia na reconstituição da urbanidade nas cidades do fim do século XX.” (tradução livre) 109 Realizado em Londres, o Festival Britânico foi uma série de celebrações e exposições nacionais que ocorreram desde maio a setembro de 1951, e que tiveram como objetivo dar um ânimo às pessoas britânicas depois da guerra, e também para demostrar a rápida reconstrução do país depois da destruição causada pela guerra. O seu planeamento foi iniciado em 1947 (Pendlebury et al., 2015). 110 “foi quase inundada pelo esmagamento de estudantes e novos arquitetos.” (tradução livre) 111 Em torno do tema Habitat e não considerado congresso oficial, decorreu a 1952 na Suécia, em Sigtuna, um congresso com um número considerável de novos arquitetos e estudantes e realizada com a ausência dos membros executivos: Le Corbusier, Sert, Gropius e Giedion. Este foi na verdade o primeiro congresso realizado predominantemente pela nova geração. O foco foi em torno do tema habitat, e apesar de diversas associações, a generalidade concordou com um ambiente que pode acomodar o harmonioso, espírito, intelectual, e físico preenchimento dos seus habitantes (Risselada e Heuvel, 2005).

78  Apesar das diversas apresentações, Alison e Peter Smithson destacaram-se com o diagrama Hierarchy of Association e com a Urban Re-Identification Grid que substituía as funções hierárquicas criadas por Le Corbusier e ASCORAL por unidades de escalas como casa, rua, distrito e cidade (Risselada e Heuvel, 2005). Outros projetos foram apresentados para a cidade de Londres pelos membros da equipa MARS como o projeto Golden Lane (1952) para Londres (Fig.38), de Alison e Peter Smithson; o Hallfield State (1951-58), em Paddington (Fig.39) de Drake e Lasdun; o Churchil Gardens (1946-72) em Pimlico (Fig.40) de Philip Powel e Hidalgo Moya; e o Alton Estate (1951-55), em Londres (Fig.41), de uma equipa Leslie Martin, William Howel e John Killick (Mumford, 2000).

O nono congresso foi assinalado pela maioria como uma confusão de diversas opiniões, apesar de ter distinguido algumas similaridades de intento, e pelo fracasso na produção de um esquema para o Carta do Habitat. A decepção dos mais novos pelo grupo CIAM gerada nesta nona reunião, aliada à tentativa do grupo antigo de revigorar o espírito da equipa, resultou num conflito e no domínio dos debates por parte da jovem geração que, desta forma, segundo Risselada e Heuvel (2005) estimulou um processo de entrega do controlo da organização do CIAM à geração mais nova. Em 1956, na cidade de Dubrovnik, foi organizado o décimo congresso, o CIAM X, agora pela nova geração intitulada de Team 10. Foi neste episódio que ocorreu a última tentativa de reviver os CIAM após a Segunda Guerra. Em 1959 deu-se o CIAM XI na cidade de Otterlo, e foi neste momento que a “legendary organization” (Risselada e Heuvel, 2005: 11)112, os CIAM, viram o seu fim.

A influência dos CIAM foi mais complexa no período pós-guerra, não só porque a Carta de Atenas competia com a Carta de Habitat como um potencial tema de investigação, mas também porque o próprio conceito de Habitat, por CIAM e Team 10, nunca foi definido como foi no passado quando baseado em quatro funções. É possível observar que alguns trabalhos internacionais realizados nestes anos, como os dos Metabolistas Japoneses, estavam conectados com as direções do CIAM pós-guerra e dos Team 10 (Isozaki, 2010), enquanto outros, por volta de 1960, adoptavam uma postura anti-CIAM. Esta propagação rápida de diversos discursos nos anos 60, criou, segundo Mumford (2000), um paradoxo onde uma das mais notáveis heranças imediatas do CIAM era a situação que circunscrevia o CIAM como símbolo negativo dos insucessos da arquitetura moderna.

 112 ”organização legendária” (tradução livre) 79 

38. Colagem do projeto Golden Lane numa área bombardeada de Inglaterra. 39. Hallfield Estate, Bloco A Norte, em Paddington.

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40. Vista aérea de Churcill Gardens em Pimlico. 41. Vista aérea de Alton Estate em Roehampton.

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42. Habitação social Pruitt-Igoe (1950-56), em St. Louis, Missouri, nos EUA. 43. Demolição de Pruitt-Igoe (1972). 82  O plano Marshal, financiado pelos EUA para a reconstrução económica da Europa após a Segunda Guerra, permitiu aos arquitetos e aos planeadores testarem muitas das hipóteses formuladas desde 1900 relacionadas sobre a estrutura das cidades, propostas que estavam ”doomed to failure” 113 (Cohen, 1998: 252). Muitos dos conjuntos habitacionais em massa, criados depois da Segunda Guerra e que visavam os princípios passados estabelecidos, surgiram em vários países de todo o mundo e foram criticados em várias obras dos anos sessenta, tais como A Arquitetura da Cidade de Aldo Rossi, a Complexidade e Contradição de Robert Venturi, e A Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas de . Segundo Mumford (2000), qualquer esforço para analisar esta divergente e antagónica direção em relação ao CIAM neste período antes da sua dissolução (1959 em Otterlo), foi complicado pela emergência dos novos discursos de 1960 que rejeitavam os métodos dos CIAM e idealizavam métodos menos racionais. Embora diversificados, estas direções antecipadas tomaram rumo pelos membros como Van Eyck, os Smithsons, Ernesto Rogers, os Situacionistas, Aldo Rossi, Venturi, e também grupo inglês Archigram e os japoneses Metabolistas. Este conjunto influenciou as gerações seguintes, tornando os CIAM como um”anti-urban urbanism producer” 114 (Mumford, 2000: 269), e levou à famosa e simbólica demolição do complexo habitacional Pruitt-Igoe115, em St. Louis, em 1975, como uma metáfora do fim da era moderna.

 113 “destinadas ao fracasso” (tradução livre) 114 “produtor de urbanismo anti-urbano” (tradução livre) 115 Pruitt-Igoe foi um projeto habitacional construído em St.Louis, Missouri, nos EUA, projetado por Minoru Yamasaki. Iniciado em 1950 e em pleno auge do urbanismo, esta construção foi influenciada pelos conceitos da Ville Radieuse e Unidade de Habitação de Le Corbusier, e agiu como uma resposta ao crescimento das populações urbanas após a Segunda Guerra Mundial. Esta obra entrou em declínio em 1970 e a atmosfera do complexo mostrou instabilidade social e algumas atividades criminosas. Em 1972, iniciou-se a sua demolição, que para Charles Jencks significou a morte da arquitetura moderna (Friederer, 2017).

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44. Tees Pudding de Alison e Peter Smithson (1977). Pasto artificial plantado com o filtro da máquina de secar a roupa.

84  | Re-definidores da Arquitetura Team 10, Archigram e os Metabolistas

“Psicológicamente, el espíritu de reconstrucción surge del profundo instinto del ser humano como una protesta realista y como símbolo de su voluntad de vivir.” 116 (Aalto, 1978: 19)

“In the spaces voided by destruction, new structures can be injected. Complete in themselves, they do not fit exactly into de voids, but exist as spaces within spaces, making no attempt to reconcile the gaps between what is new and old, between two radically different systems of spatial order and of thought. These gaps can only be filled in time. The new structures (…) the forms of which do not invite occupation with the old paraphernalia of living, the old ways of living and thinking. They are, in fact, difficult to occupy, and require inventiveness in order to became habitable. 117 (Woods, 1997: 16)

Nas palavras de Lebbeus Woods (1997), o objetivo dos arquitetos modernos de tentar melhorar as cidades sofridas do pós-guerra foi difícil de alcançar, uma vez que a arquitetura modernista dificilmente abandonaria os seus alicerces ligados ao processo de causa e efeito subjugado às obras da máquina para assumir o espírito conturbado da nova era. Tal como vimos, esta perseverança e fidelidade pelos princípios anteriormente estabelecidos pela arquitetura moderna refletiu-se nas reuniões do grupo CIAM no período pós-guerra. A geração antiga do grupo acreditava na ideologia como estabelecida para o futuro, alternando e discordando apenas em torno de pequenas variações e melhorias, enquanto que a nova geração, conforme afirma Boyer (2006), consideravam que uma nova vida da arquitetura moderna os levava de volta a uma reconstituição radical da linguagem, mais pura e livre da sua conduta original, mas que emergia da emoção da observação da era da máquina, da produção em massa e das grandes cidades.

 116 “Psicologicamente, o espírito de reconstrução surge do profundo instinto do ser humano como um protesto realista e como símbolo da sua vontade de viver.” (tradução livre) 117 “Nos espaços anulados por destruição, novas estruturas podem ser injetadas. Completam em si mesmos, não se encaixam exatamente nos vazios, mas existem como espaços dentro dos espaços, sem tentar conciliar as lacunas entre o que é novo e antigo, entre dois sistemas radicalmente diferentes de ordem espacial e de pensamento. Essas lacunas podem ser preenchidas no tempo. As novas estruturas (...) as formas das quais não convidam à ocupação com a antiga parafernália do viver, as velhas formas de viver e pensar. De fato, são difíceis de ocupar e exigem inventividade para se tornarem habitáveis.” (tradução livre)

85  Esta transformação apoiava-se numa vontade de manter a linguagem da arquitetura moderna viva, mas sem as contrariedades criadas pela geração antiga, apesar de, para Charles Jencks (1985), ambas as linhagens partilharem a mesma convicção: que o homem protótipo podia ser transformado culturalmente e socialmente através da arquitetura. A dissolução dos CIAM foi um “symbolic and critical event” 118 (Lin, 2010: 8). Assinala uma transição entre um período dominado por um unido paradigma na arquitetura e urbanismo, para uma nova era caracterizada por múltiplas visões e ideologias competitivas que abrem um leque de possibilidades e oportunidades para o urbanismo. Após a Segunda Guerra Mundial, no âmbito da dinâmica de reconstrução e face à destruição das cidades europeias, deu-se um momento abrangente a nível de pensamento, tanto radical como experimental, o que resultou num deslumbramento de novas formas urbanas. Nesta nova fase pós CIAM, que narrou uma era de transformação sociopolítica e de transição entre o modernismo e o pós-modernismo, floresceram novas arquiteturas experimentais provindas de arquitetos visionários como Louis l. Kahn, Yona Friedman, os Situacionistas Internacionais, e os Team 10, Archigram, e os Metabolistas, numa tentativa de revolucionar o urbanismo tradicional e de fazer acompanhar a nova sociedade do pós-guerra, que eclodiu em massa e originou um boom demográfico, e crescia ao lado do progresso tecnológico, do consumo de massa e de uma significativa melhoria de vida. Desta forma, o conceito de utopia voltou mais uma vez ao mundo da arquitetura no final dos anos 50 e anos 60, como a era do conceito de utopia internacional. Os debates do urbanismo utópico lançaram uma “new light on the inherent complexity of postwar architectural culture that arose from various visions of the modern society” 119 (Lin, 2010: 9). Primeiramente, será apresentada uma abordagem que concentrará de que forma as novas questões relacionadas com o modernismo e com o contínuo processo de modernização na era da reconstrução das cidades europeias pós-guerra, da criação do Estado social e da ascensão de uma sociedade de consumo, tomaram forma pela Team 10.

 118 “evento crítico e simbólico” (tradução livre) 119 “uma nova luz sobre a complexidade inerente da cultura arquitectónica do pós-guerra que surgiu das várias visões da sociedade moderna” (tradução livre) 86 

O papel dos TEAM 10

“The task of our generation is plain – we Must re-identify man with his house His comunity His city” 120 (Smithson, 1970: 18)

Podendo ser apelidado de grupo fundador de uma nova geração de arquitetos, os CIAM fizeram nascer o grupo Team 10, um grupo influente no pensamento arquitetónico do século XX. O seu núcleo ativo era composto por Jacob Bakema, Georges Candilis, Giancarlo De Carlo, Aldo van Eyck, Shadrach Woods e Alison e Peter Smithson, que se destacaram entre os outros jovens como os mais expansivos e eloquentes. Originários da segunda geração dos grupos mais ativos e dominantes do CIAM como a Inglaterra, França, Itália, Holanda e Suíça 121 , todos compartilhavam, segundo Risselada e Heuvel (2005), uma significativa resistência pela fase burocrática do antigo CIAM. Este descontentamento pelas práticas tradicionais e pelo caráter universal da Cidade Funcional criados pelo CIAM, dirigiu o Team 10 à redefinição das premissas da arquitetura moderna, visando a sua continuação e transformação, o que significa uma outra visão do relacionamento entre o individual e o todo, uma deslocação das soluções universais para específicas e locais, e uma mudança do panorama urbano dirigido por racionalismo tecnológico para um inspirado pela sociedade e pela cultura (Risselada e Heuvel, 2005). Este grupo de arquitetos foi um encontro de uma procura recíproca e de ajuda necessária para desenvolver o trabalho individual de cada um. Para além de unidos pela percepção mútua das adversidades da herança do movimento moderna, os Team 10 aclamam como mais importante a facto de cada um ter percebido que o outro já havia encontrado um caminho para um novo começo que dizem basear-se na

“inducing (…) into the blood stream of the architect an understanding and feeling for the patterns, the aspirations, the artifacts, the tools, the modes of transportation and

 120 “a tarefa da nossa geração é simples – nós Devemos re-identificar o homem na sua casa. Na sua comunidade. Na sua cidade” (tradução livre) 121 A falta de representantes da Alemanha deve-se à emigração dos nativos para a Inglaterra e EUA devido à Segunda Guerra Mundial. (Risselada e Heuvel, 2005: 12)

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45. Fotografia da conferência da Team 10 em Otterlo, onde participaram Aldo van Eyck, Jaap Bakema, Ernesto Rogers, Kurokawa, Alison and Peter Smithson, Geroge Gandilis, Herman Haan e Giancarlo de Carlo. 1959 88  communications of present-day society, so that he can, as a natural thing, build towards society’s realization-of-itself. 122 (Smithson, 1991: 8)

E é neste contexto que denominam o próprio grupo como “Utópico”,

“but Utopian about the present. Thus, their aim is not to theorize but to build, for only through construction can a Utopia of the present be realized. (…) Team 10 is of the opinion that only in such way may meaningful groupings extension come into being, where each building is a live thing and a natural extension of the others; together they will make places where a man can realize what he wishes to be. 123 (Smithson, 1991: 8)

Este manifesto da Team 10 em torno do utopismo está muito provavelmente relacionado com as suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial e com o rumo “rational and technocratic”124 (Risselada e Heuvel, 2005: 13) da arquitetura moderna que foi tomado na reconstrução das cidades europeias bombardeadas. A legendária equipa Team 10 preocupava-se com o regionalismo, o estabelecimento de uma nova e mais democrática relação entre o arquiteto e o habitante e com questões acerca do significado e identidade da arquitetura – elementos centrais do discurso pós-guerra da arquitetura moderna – e a Team 10 agiu como um dos principais elementos de dinamização destes conceitos (Risselada e Heuvel, 2005). Num reaver das temporadas das conferências antes da queda dos CIAM, depois do décimo congresso em 1956, o arquiteto holandês Jaap Bakema organizou uma reunião a 1959 na cidade de Otterlo (Fig.45) na Holanda. Intitulada por Group for the Research of Social and Visual Inter- relationships (Grupo para a Investigação das Inter-relações Sociais e Visuais), esta reunião é possivelmente, segundo Avermaete (2005), a maior contribuição para a arquitetura pós-guerra feita pelo núcleo de arquitetos da Team 10. Este debate dirigiu uma combinação de apresentações tanto de edifícios construídos como contribuições mais teóricas como a exibição de conceitos de planeamento de associação, cluster e mobilidade por parte de Alison e Peter Smithson.

 122 “indução (...) na circulação sanguínea do arquiteto de uma compreensão e um sentimento por padrões, pelas aspirações, pelos artefactos, ferramentas, meios de transporte e comunicações da sociedade atual, para que ele possa, como algo natural, construir para a própria realização da sociedade.” (tradução livre) 123 “mas Utópico sobre o presente. Assim, o seu objetivo não é teorizar mas construir, pois só através da construção se pode realizar uma Utopia do presente” (...) A Team 10 é da opinião que só dessa forma, surgirão agrupamentos significativos de edifícios, onde cada edifício é uma coisa viva e uma extensão natural dos outros; juntos farão lugares onde um homem pode perceber o que deseja ser.” (tradução livre) 124 “racional e tecnocrático” (tradução livre)

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46. Fotografia da Torre Velasca erguida no centro de Milão, em Itália.

90  A reunião concretizada na Holanda (1959), teve como objetivo demonstrar a debilidade do CIAM pós-guerra e a reunião de novos participantes para a confrontação de opiniões para a situação presente da arquitetura. Contou com quarenta convidados e representantes destas tendências como os Metabolistas Japoneses, com Kiyonori Kikutake e Kenzo Tange; o grupo Italiano da revista Casabella, com Ernesto Nathan Rogers, Ignazio Gardella e Giancarlo de Carlo; e com Oskar Hansen e Louis Kahn (Avermaete, 2005). Um dos maiores debates deste evento foi entre Ernesto Rogers e o casal Smithson acerca da tendência historicista da Torre Velasca (1950-57) em Milão (Fig.46). Projetada pela firma BBPR, esta torre com unidades residenciais de luxo e espaços comerciais é considerada um exemplo poderoso do trabalho dos arquitetos italianos do pós-guerra. Em linha com o Internacional Style das torres corporativas dos EUA, a torre com 99 metros de altura, apresentava para Peter Smithson um revivalismo histórico não admitido pelos arquitetos da obra, enquanto que para Rogers, a torre pretendia estabelecer uma relação formal com as estruturas circundantes pertencentes ao passado, sob um formato dissemelhante e não plagiado (Mumford, 2000). Desta forma, pode-se assumir que os arquitetos italianos do pós-guerra, com esta obra, pretenderam estabelecer uma crítica expressiva ao sonho modernista da tabula rasa. (Eisenchmidt e Mekinda, 2004).

Um outro discurso relevante desta reunião em Otterlo é de Aldo van Eyck que questionava Is Architecture Going to Reconcile Basic Values? (Irá a Arquitetura Conciliar os Valores Básicos?), onde apresentou quatro obras que havia projetado, das quais uma é o Orfanato de Amesterdão (1955-60) (Fig.47). Aldo van Eyck foi um arquiteto identificado como proprietário de um papel importante no desenvolvimento do pensamento arquitetónico pós-guerra. Após a sua participação na construção de centenas de parques infantis em Amesterdão, em 1954 foi-lhe atribuído o encargo da projeção do Orfanato de Amesterdão, uma manifesto pós-guerra erguido da sua sensibilidade arquitectónica, das suas ideias, e com uma radical reinterpretação do espaço e técnica. Projetado segundo uma grelha e com pequenos módulos à escala de uma criança iluminados por cúpulas (Fig.48), foram organizados segundo uma repetição para criação de toda a instituição. Para Van Eyck, esta ideia partiu de tornar a “casa das crianças” tanto como uma casa ou como uma cidade, criada através de rua internas e do uso da alvenaria na parte exterior ao módulo. Esta obra ilustra a ideia de mat-building 125, um tema que irá ser um tanto discutido pela Team 10 e observado em diversos projetos como a premiada e não construída proposta para

 125 Segundo Alison Smithson, num artigo da Architetural Design de 1974, mat-building, (mat = tapete + building = edifício) pode dizer-se que simboliza um “anónimo coletivo”; onde as funções enriquecem o tecido construído, e onde o indivíduo ganha uma nova liberdade de ação através de uma nova ordem simplificada baseada em interconexão, num padrão de união coeso, e nas possibilidades de crescimento, diminuição e mudança (Smithson, 1974).

91 

47. Vista aérea do Orfanato de Amesterdão, de Aldo van Eyck. Créditos de CCA Mellon Lectures 48. Cobertura abobadada do Orfanato de Amesterdão, de Aldo van Eyck. Créditos de CCA Mellon Lectures.

92  Frankfurt-Römerberg a 1963, por Candilis-Josic-Woods, e também observado na Universidade Berlim Free (Jones e Canniffe, 2007).

O trabalho do trio composto por Georges Candilis, Alexis Josic e Shadrach Woods, foi vivamente proclamado nos debates da Team 10. Para além de influenciado pelo conflito generalizado que existia em torno do campo da arquitetura e do tema habitar na época, o maior agente na direção dos trabalhos desta equipa foi a viragem radical cultural, política e económica que a Segunda Guerra Mundial havia provocado em França - um período optimista de expansão económica e de prosperidade, em parte devido ao plano Marshall, conhecidos como les trente glorieues (os trinta gloriosos anos) (Avermaete, 2005). Juntos desde 1955 e até 1986, Candilis, Josic e Woods criticavam a alta densidade dos complexos habitacionais modernos criados no pós-guerra, como os banlieus em França, alegando-os como anuladores do caráter urbano, “and if there are no more cities, we return to savagery” 126 (Woods 1967 in Avermaete, 2005: 14). No entanto, dada à cultura subjacente ao período pós-guerra, acreditavam na produção em massa mas não em modos de vidas padronizados. No âmbito do pós-guerra, foram criadores do premiado projeto Free University de Berlim (1963) (Fig.49), e do não construído projeto para Frankfurt-Römerberg (1963) (Fig.50), que apelava para a reconstrução do centro histórico da cidade alemã. O concurso para a reconstrução do centro de Frankfurt-Römerberg, realizado em 1963, apelava por um novo distrito urbano numa área totalmente destruída e demarcada pelo rio Main, pela Catedral Dom e pela câmara municipal. Para apresentação da proposta, a equipa meditou sobre o desenvolvimento urbano e sobre a possibilidade de reconstrução contra a nova realidade urbana como a circulação de carros. Não realizado, o projeto visou o empilhamento de plataformas a uma altura de três pisos para enquadramento no tecido urbano vizinho, onde seria aplicada uma grelha para circulação pedonal num regresso às ruas tradicionais. Estas plataformas seriam perfuradas para a criação de um padrão de aberturas, e assim reduzir a área construída (Avermaete, 2005). A proposta de Candilis-Josic-Woods apresentou um entrelaçar e uma continuidade entre o espaço privado e o público e uma oportunidade para o desenvolvimento autónomo onde, dentro desta trama, os cidadãos poderiam viver e construir, e assim imaginar a cidade (Risselada e Heuvel, 2005). Outras obras distintas de Candilis-Josic-Woods de grande escala devem ser referenciadas como Le Mirail (1962-77) (Fig. 51) em Toulouse, que visava responder a um plano criado para urbanizar certas zonas de França e aliviar o boom demográfico da cidade depois da guerra. No âmbito da produção me massa e de caráter social, o Le Mirail derivou de uma competição para a criação de um distrito no sudoeste da cidade de Toulouse que alojasse 100.000  126 “e se não há mais cidades, voltamos à selvajaria.” (tradução livre) 93 

49. Free University de Berlim, de Candilis-Josic-Woods, 1963. 50. Proposta para reconstrução de Frankfurt-Römerberg, de Candilis- Josic-Woods 1963 51. Vista do complexo habitacional Le Mirail, de Candilis-Josic-Woods.

94  residentes. Tornou-se um dos mais relevantes projetos de Candilis-Josic-Woods, dada a sua escala, método e o amplo criticismo que se seguiu após a sua construção. O método aplicado partiu da criação da elaboração de uma avenida contínua e pedestre que conectava todas as diferentes funções, que se ramificava, e em alguns casos, se tornava um bloco de dois andares acima do nível da rua para o alojamento de diferentes funções. Este sistema de organização denominado stem, parecia originar um novo sistema de urbanização orgânico, que poderia continuamente desenvolvido ou modificado, e cuja circulação de carros era restrita apenas à periferia do local. Nos altos blocos habitacionais, o espaço público organizava-se nos corredores exteriores, através das streets-in-the-air, conceito observado também no Golden Lane de Alison e Peter Smithson (Avermaete, 2005). Originalmente planeado com 25.000 habitações, onde 75% das mesmas eram de caráter social, iniciou a sua construção em 1964, e só uma parte do projeto foi realizada (Risselada e Heuvel, 2005) Em torno dos conceitos de humanismo e regionalismo, a equipa Candilis-Josic-Woods acreditava que a habitação podia decorrer entre a passado e o futuro, entre o moderno e o tradicional, e focar o homem e os seus hábitos de vida enquanto consente a expressão geográfica do local – as ruas e as suas relações coletivas.

Também altamente dominantes nos debates da Team 10, foram as vozes de Alison e Peter Smithson.

“City is a living organism. You can feed it with something new and it will renew and reorient itself accordingly.127 (Smithson, 1970: 24)

Indicados como uns dos maiores protagonistas do Brutalismo, Alison e Peter Smithson, são responsáveis pela obra, que Reyner Baham (1966) alega ser, o primeiro edifício brutalista, a Miesian School em Hunstanton, concluído no ano de 1954. Contra a primeira grande decisão tomada pelo governo inglês, na situação de um país destruído pela guerra, da criação das New Towns, e contra o estilo adoptado baseado no racionalismo adoptado na reconstrução das cidades europeias, os Smithsons acreditavam na ligação da arquitetura com as necessidades humanas:

 127 “A cidade é um organismo vivo. Pode-se alimentá-lo com algo novo e irá renovar-se e reorientar-se em conformidade.” (tradução livre) 95 

52. Esquema da estrutura de Golden Lane, de Alison e Peter Smithson (1952). 53. Vista do completo habitacional Robin Hood Gardens, em Poplar.

96  “This is the basic step of the ecological approach to the problem of habitat: the house is a particular house in a particular place, part of an existing community, and it should try to extend the laws and disciplines of that community.” 128 (Smithson, 1970: 112)

Em 1952, os Smithson participaram numa competição que se focava no realojamento em Golden Lane, na área Bunhill Fields, que se localiza no centro de Londres. Este espaço havia sido dizimado pelos bombardeamentos originários da Segunda Guerra, e o concurso aclamava por vários tipos de habitação e tantos os que possível, alojando 500 pessoas por cada hectare. Assim, Alison e Peter Smithson criaram um projeto de acordo com os princípios do ensaio Urban Re-identification – casa, rua, bairro, e cidade - mas viram a sua proposta rejeitada. O projeto Golden Lane consistia em três níveis de streets-in-the-air (ruas no ar), e cada andar, intitulado de deck pelos seus autores, albergava cerca de 90 famílias (Smithson, 1970). Já no CIAM IX, o projeto Golden Lane tinha sido apresentado como um novo padrão urbano para a associação humana – o bloco habitacional era agora o elemento base que podia ser multiplicado para criar uma superestrutura (Fig.52), e o conceito de street-in-the-air como espaçosas galerias de acesso às habitações, um ingrediente crucial para a fusão humana. Desta forma, é possível observar como Alison e Peter Smithson tentaram criar, segundo Risselada e Heuvel (2005), um conjunto de associações humanas em reposição da antiga cidade bombardeada, e como as causalidades do quotidiano estão expostas através das street-in-the- air nas fachadas, que desta forma, “provide a new urban decoration that celebrates the urban street life” 129 (Risselada e Heuvel, 2005: 30). Realizado apenas em papel, o projeto Golden Lane serviu de base para o projeto Robin Hood Gardens (Fig.53), construído em 1972, em Poplar, Ingalterra. Aplicada a ideia das streets-in-the-air, diferentemente do Golden Lane, o Robin Hood Gardens consistiu em dois edifícios independentes articulados que abraçam um grande centro público. A posição dos edifícios é justificada pelo contexto em que se insere, uma zona dominada pelo trânsito e ruído. O centro púbico, coletivo, foi derivado de um pensamento imediato para responder ao caos lá fora, e para o casal Smithson como uma referência aos tradicionais jardins públicos de Londres. A composição e o material usado, elementos pré-fabricados de betão, atraiu uma generalizada crítica tanto dentro da Team 10 como fora (Risselada e Heuvel, 2005). Esta obra construída nos anos 70, não foi primada de manutenção e a taxa de criminalidade na área aumentou. Desde então, segundo Singh (2017), tem vindo a ser considerada por muitos como uma experiência fracassada e de mau design.

 128 “Este é o primeiro passo de um método ecológico para o problema do habitat: a casa é uma casa particular num espaço particular, parte de uma comunidade existente, e deve tentar aumentar as leis e as disciplinas de uma comunidade.” (tradução livre) 129 “providenciam uma nova decoração urbana que festeja a vida da rua urbana.” (tradução livre)

97  A demolição da obra iniciou-se em Agosto de 2017, e a V&A conseguiu adquirir um fragmento de três andares do edifício, com 8,8 metros de altura, 5,5 metros de largura e 8 metros de profundidade, para exibição de uma obra de arquitetura brutalista de importância nacional e internacionalmente reconhecida (Singh, 2017).

Nascidos do CIAM, os Team 10 foram uma equipa de jovens arquitetos influentes no pensamento que se seguiu aos princípios gerados pela antiga geração, que agiu como crítica e reação a muitas das estratégias adoptadas, como a universalidade dos princípios da Carta de Atenas, no período imediato depois da Segunda Guerra. Em prol da transformação da arquitetura moderna, o objetivo dos membros da Team 10 passou pela conversão da racionalidade por uma aspiração social e cultural, perspetivando o princípio e realização de uma arquitetura mais íntima entre o criador, o usuário e o local, e desta forma atribuir-lhe uma nova identidade e significado.

Utopias e Manifestos no pós-guerra Archigram e os Metabolistas

“Corbu’s machines were poetic machines: and Archigram’s machines are equally poetic. ‘What about the human factor?’ Well, I cannot think of a more humanistic language than the language of poetry: and whether they like it or not, the Archigram gang is a gang of wild-eyes poets. 130 (Blake, 1999: 7)

Após a Segunda Guerra Mundial, tal como as cidades, também uma nova sociedade nasceu e desenvolveu-se auxiliada pelo progresso tecnológico, acompanhada pela publicidade e pelo consumo em massa, que se propagou pela Europa e se generalizou na busca do prazer com a difusão da publicidade, da moda e dos mass-media, e do estímulo de gastar através da criação do crédito (Feliciano, 2014). Esta significativa transformação da sociedade que veio acompanhada pelo seu aumento considerável, o boom demográfico, criou considerações sobre o modo de habitar e da monopolização do espaço, levando à contenda:

 130 “As máquinas de Corbu [Le Corbusier] eram máquinas poéticas; e as máquinas dos Archigram são igualmente poéticas. ‘E o fator humano?’ Bem, eu não consigo pensar numa linguagem mais humana que a linguagem da poesia; e quer eles gostem ou não [os críticos], o gangue Archigram é um gangue de poetas visionários.” (tradução livre)

98  “se as curvas demográficas continuarem o seu crescimento delirante, em 2030 (data que não se encontra assim tão longínqua) restar-nos-á somente um metro quadrado de terra por habitante no Planeta (...) A única solução será a migração celeste e a conquista das estrelas (...)” (Marc de Smedt 1977 in Feliciano, 2014 :103)

Como uma alternativa válida ao futuro da sociedade, o desencadear de novas formas urbanas que legitimam a evolução tecnológica e o “sentimento de euforia e confiança positiva no progresso científico” (Feliciano, 2014: 104) levaram ao questionamento das formas e composições urbanas e dos seus limites. Segundo Feliciano (2014), o obstáculo da extensão populacional levantou questões relativas à compactação dos espaços, e a abordagem dirigiu a noção de aglomeração urbana à ideia de organismo vivo, um conceito já partilhado por Alison e Peter Smithson. Estas necessidade de compactação e definição, dirige-nos ao conceito de Megaestrutura, definido em 1968, por Ralph Wilcoxon:

“não é só uma estrutura de grandes dimensões mas (...) também uma estrutura que é frequentemente: 1. construída com unidades modulares; 2. passível de grande ou ‘ilimitada’ expansão; 3. Um todo estrutural no qual pequenas unidades estruturais (por exemplo compartimentos, habitações ou pequenos edifícios) podem ser construídas – ou mesmo penduradas, acopladas (plugged-in, clipped-on), depois de serem pré- fabricadas algures; 4. um todo estrutural passível de ter uma vida útil superior às das pequenas unidades estruturais que suporta” (in Feliciano: 109)

Ao encontro dos princípios e de uma reflexão relativa ao conceito de Megaestrutura, o projeto não construído Plug-In City (1962-66), dos Archigram, é um exemplo da tentativa de compreensão do homem do pós-guerra e das suas ostentações e da respetiva reflexão das exigências necessárias para a construção e formatação do seu novo habitat. O grupo Archigram, inicialmente composto por Peter Cook, David Greene e Mike Webb131, iniciaram a sua atividade no final de 1960 e realizaram reuniões para criticar projetos, preparar cartas para os media, e para participar em algumas competições. Nutridos ainda com a polémica e entusiasmo da escola de arquitetura, tentaram participar nas revistas britânicas e estas não atenderam o pedido. Com isto, sob um formato ainda mais reativo, a primeira publicação dos Archigram, cujo nome nasce do telegram ou aerograma (Archi(tecture)-gram) (Cook, 1999).

 131 Ao grupo Archigram, juntaram-se mais tarde os elementos Ron Herron, Warren Chalk e Dennis Crompton.

99 

54. Projeto de Plug-In City de Peter Cook: Secção da área de pressão máxima, 1964. A tinta e grafite, exposto no MoMA.

100  Com colagens de projetos diversos e variados, tanto dos elementos do grupo como de estudantes de Arquitetura, a publicação assemelhava-se, aos folhetos publicitários que anunciavam as promoções do mês. Inspirada num poema de David Greene, apresentava ideias que refletiam conceitos como infinidade, receptividade, mobilidade, consumo, descartável e evolutivo (Feliciano, 2014). Entre 1961 e 1974 surgiram nove publicações visionárias do grupo Archigram, cada uma dedicada a um tópico específico e à investigação do papel da tecnologia na sociedade contemporânea, que foram difundidas por todo o mundo. Numa extensão da crítica aos planos de reconstrução de várias cidades europeias durante o pós-guerra e das suas consequências de indiferenciação e de caráter inflexível associados à arquitetura moderna, os Archigram apareceram com uma ideia de estrutura urbana que coliga o conceito de megaestrutura e da obra como um organismo vivo. Estes conceitos já haviam sido tentados, em teoria no projeto de Le Corbusier para a Algéria (1931) e na megasestrutura Unidade de Habitação. Segundo Simon Sadler (2005), elementos destes projetos referidos, entre outros da era moderna, como coletividade, habitações intercambiáveis, e rede rápida de transportes, foram combinados na cidade Plug-In City (Fig.54). Esta “cidade metáfora”, que apresenta uma estética incompleta mais evidente do que nas megaestruturas modernas mencionadas, “may have derived from the construction sites of building boom that followed the economic reconstruction of Europe” 132 (Sadler, 2005: 14). O projeto Plug-In City foi desenvolvido durante o período entre 1962 e 1966, e consistiu, provavelmente, no trabalho mais reconhecido do grupo. Resultou das combinações de ideias desenvolvidas entre 1962 e 1964, e centrou qualidades relativas ao movimento, à comunicação, à inter-conectividade e ao processo metabólico de um organismo vivo:

“Definition: The Plug-In City is set up applying a large scale network structure, containing access ways and essential services, to any terrain. Into this network are placed units which cater for all needs. These units are planned for obsolescence. The units are served and maneuvered by means of cranes operations from railways at the apex of the structure. 133 (Cook, 1999: 38)

 132 “pode ter derivado das construções resultantes do boom da construção no seguimento da reconstrução económica da Europa.” (tradução livre) 133 “A Plug-In City é gerada através de uma estrutura em rede desenhada a larga escala, estrutura esta que proporciona as vias de acesso e as redes de serviços essenciais a qualquer ponto do terreno. No interior desta rede encontram-se localizadas as unidades para resolver todas as necessidades. Estas unidades estão previstas para durar um tempo limitado. Elas são alimentadas e manipuladas através de gruas que operam a partir de rails situados na cumeeira ou nível superior da estrutura.” (tradução livre)

101  No seu interior, as diversas máquinas e instalações estavam destinadas à substituição das funções de trabalho atuais e cada elemento tinha um tempo de vida ou de utilização estabelecido:

“Bathroom, kitchen, living room floor: 3-year obsolescence. Living rooms, bedrooms: 5-8 years obsolescence. Location of house unit: 15 years duration. Immediate-use sales space in shops: 6 months Shopping location: 3-6 years. Workplaces, computers, etc: 4 years. Car silos and roads: 20 years. Main megastructure: 40 years.” 134 (Cook, 1999: 38)

O projeto da Plug-In City consistia em vários desenhos e modelos que brindam ao vislumbre e ao visionário, oferecendo uma cidade que parece do futuro. Em várias escalas, todos os desenhos apresentam uma aglomeração complexa de estruturas dos esqueletos, onde cada uma suporta cápsulas de serviço, tal como elevadas torres cilíndricas, estradas em ziguezague e linhas ferroviárias. Acima de todos estes elementos, concentra-se a génese do fim da vida do “organismo” – gruas encarregadas pela permuta dos elementos no fim da sua vida utilitária (Eisenschmidt e Mekinda, 2004). Nesta cidade futurista, os seus habitantes circulariam de forma livre e eficiente, num novo formato de vida. Numa ambição comum dos anos 60, o trabalho repetitivo das instalações fabris, entre outras, seria ocupado pela automação, livrando postos de trabalhos agrupados aos centros de entretenimentos e de comércio, gerando lazer/atividade ao habitante. O caminho até ao local de trabalho seria curto, realizado por tubos à prova de água e intempéries. A ideia não era fazer uma arquitetura melhorada, mas uma arquitetura que mudasse vidas, onde o quotidiano é moldado pela construção, tal como nas primeiras vanguardas (Sadler, 2005). Os Archigram acreditavam que a arquitetura não devia criar volumes fixos que esperassem ser habitados, mas sim providenciar espaços “to ‘live’, to ‘be’” 135 (Sadler, 2005: 95). Na analogia com o organismo e com o seu ciclo natural da vida, a Plug-In City, transporta a agitação febril da metrópole e uma reflexão sobre os problemas do período imediato ao pós-guerra no contexto britânico – a transformação cultural e tecnológica e o tema da pré-fabricação e da estandardização, intimamente ligados à produção em massa, “introduziram no universo da

 134 “Instalação sanitária, Cozinha, Pavimento da Sala de Estar: 3 anos de obsolescência. Sala de Estar, Quarto: 5 a 8 anos de obsolescência. Localização da unidade de habitação: 15 anos de duração. Zonas de venda nos espaços comerciais: 6 meses. Localização dos espaços comerciais: 3 a 6 anos. Locais de trabalho, computadores, etc.: 4 anos. Parques de estacionamento e vias: 20 anos. Megaestrutura principal: 40 anos.” (tradução livre) 135 “para ‘viver’, para ‘ser’.” (tradução livre)

102  fabricação de artefactos um novo sentido de produção e de repetição ‘até ao infinito’” (Feliciano, 2014: 182), o que promoveu o desenvolvimento e a aproximação da obsolescência das partes da megaestrutura à realidade do pós-guerra – o esforço da reconstrução e da sua necessidade urgente que recorre ao domínio da pré-fabricação, inspira o ideia da produção repetitiva e infinita, levando à consolidação de novas experiências e ideias de cidade, como um “organismo vivo” em transformação (Feliciano, 2014).

Todo o trabalho dos Archigram, em geral, ofereceu uma oportunidade para explorar alguns aspetos da cultura arquitectónica pós-guerra, embora a natureza ambígua do ambiente urbano da Plug-In City se destaque – através de imagens, revistas e até ficção científica, este projeto “vividly illustrates the tensions present in post-war society regarding new technologies of mass- communication and industrial production” 136 (Eisenchmidt e Mekinda, 2004: 446). A visão utópica dos Archigram ostenta uma ilustração das tensões dentro da cultura pós-guerra, a sequente crítica ao modernismo e uma nostalgia de um novo ambiente, desligado dos traumas, com uma visão esperançosa do futuro.

O Movimento Metabolista

O Movimento Metabolista, iniciado no Japão como manifesto futurista, inserido num momento histórico de transformação social pós-guerra e de reorientação cultural. Tal como os Archigram, os Metabolistas também nasceram nos anos fantasiosos e optimistas, no início da década de 60, e foram dissolvidos pelo pós-modernismo no início da década de 70. Apesar das similaridades nos traçados futuristas, das estratégias formais combinando megaestruturas e células, e das representações do imaginário arquitectónico, os propósitos da arquitetura e urbanismo de cada movimento eram diferentes. Apesar da base no organismo vivo, os Archigram começaram por desenhar as suas ideias através de uma metáfora mais mecanicista, caminhando para uma experiência urbana e desenvolvimento de novos temas, suportados pelos media, enquanto que o Movimento Metabolista inspirou-se no crescimento e desenvolvimento biológico, uma ideia de expansão orgânica baseada no movimento cíclico da morte e renascimento (Lin, 2010). A Conferência de Design Mundial, realizada na cidade de Tóquio, no Japão, em maio de 1960, conquistou um importante papel na história pós-guerra do Japão, referido por

 136 “ilustra vividamente as tensões presentes na sociedade pós-guerra em relação às novas tecnologias dos mass-media e da produção industrial.” (tradução livre) 103 

55. Projeto Tokyo Bay, 1960, de Kenzo Tange.

104  Louis Kahn (1984) como “the most ambitious event of its kind ever staged in Japan” 137 (in Lin, 2010: 16). Aqui foi apresentado um grupo de jovens arquitetos que se intitulavam de “Metabolistas.” O grupo japonês desenvolveu-se em estreito intercâmbio com as reflexões do CIAM e da Team 10, construindo uma doutrina para a formulação dos seus conceitos urbanos, influenciados pela redefinição da identidade cultural do Japão e pelas condições urbanas no período pós-guerra (Lin, 2010). Tal como o casal Smithson, que procurava a promoção de estratégias em torno das necessidades do homem e da restruturação da sociedade, também os Metabolistas procuravam estruturas para a soluções para a sociedade pós-industrial (Feliciano, 2014). O nome do grupo derivou do conceito aprofundado do organismo vivo e do processo metabólico das megaestruturas, mas num formato diferente – a cidade passou de uma entidade estática a um processo orgânico; um metabolismo natural de um organismo, com capacidade de desenvolvimento e de autorrenovação numa analogia com uma cidade flexível, com diferentes ritmos de mudança entre edifício e cidade, onde certas estruturas permanecem imutáveis enquanto outras se degeneram e regeneram (Kurokawa, 1997). Distintamente, o templo Ise Shrine celebra a noção de transformação e regeneração uma vez que se realiza a reconstrução do templo a cada 20 anos, e assim tornou-se um protótipo para os conceitos urbanos dos Metabolistas. Como resposta ao crescimento e transformações económicas e sociais do Japão depois da Segunda Guerra, foi proposto por Kenzo Tange em 1960, a extensão de Tóquio - a Tokyo Bay (Fig.55) - um dos emblemáticos projetos da era do Metabolismo e exemplo da utopia urbana japonesa. A extensão era obtida através da baía de Tóquio, onde seria construído uma espinha central projetada para carros, mantendo afastadas as vias pedestres, através de uma hierarquia. Um plano concebido como uma megaestrutura com um programa de circulação hierarquizado. Como solução residencial, foram projetadas grandes unidades ao longo da baía, à semelhança da arquitetura tradicional japonesa, onde os residentes podiam construir no seu interior as suas próprias casas. Contrariamente ao grupo Archigram, o grupo utópico japonês realizou uma única publicação, um manifesto intitulado de Metabolism: Proposals for New Urbanism (Metabolismo: Propostas de um Novo Urbanismo). Dividido em quatro artigos com a Ocean City de Kikutake, Material and Man de Kawazoe, Towards the Group Form de Otaka e Maki e Space City de Kurokawa, a sua divulgação atribuiu ao grupo rápida reputação internacional - Maki e Kurokawa foram convidados para a reunião dos Team 10 de 1962 como os vanguardistas da arquitetura pós-guerra do Japão (Lin, 2010). Entre as utopias metabólicas, um projeto considerado uma obra-prima da arquitetura moderna pós-guerra do Japão, ergueu-se em Shimbashi, na cidade de Tóquio, e intitula-se de Nakagin Capsule Tower (1970-72) (Fig.56).  137 “o mais ambicioso evento deste tipo desde sempre apresentado no Japão.” (tradução livre) 105 

56. Nakagin Capsule Tower, em Shimbashi, Tóquio. De Kisho Kurokawa

106  Os temas de “impermanência” e “mobilidade”, intrínsecos à teoria do Metabolismo Urbano, influenciaram Kisho Kurokawa no desenvolvimento da Nakagin Capsule Tower. De acordo com os ciclos metabólicos, o edifício foi limitado a dois componentes principais: a megaestrutura (dois eixos de betão conectados com pontes a cada três pisos) e as cápsulas (144 unidades habitacionais individuais). A Nakagin Tower foi o primeiro edifício construído a por em prática a ideia de cápsula, um conceito já explorado na cidade Plug-In dos Archigram, e a seguir os princípios do organismo vivo: as torres durariam 60 anos, enquanto as cápsulas necessitariam de substituição após 25/35 anos de vida. Kurokawa argumentou que o tempo de vida das cápsulas não era mecânico, mas social. Era uma metáfora do dinamismo das necessidades humanas e as relações sociais, que necessitavam deste período de reposição (Lin, 2010). Tal como no projeto de Kikutake, a Tower-shaped City, cuja se regenera e autorrenova a cada 50 anos, ou a Marine City, uma ilha flutuante que deriva pelo oceano como um organismo, até se auto-afundar no centro do oceano quando já não fosse mais apropriada para ser vivida, a Nakagin Tower também sofreria dessa analogia entre o desenvolvimento biológico de um ser vivo e a arquitetura, e consequente conceito de “fim de vida”:

“Should it be demolished (…) would join a few other Metabolists’ works in a long list of modern buildings demolished in recent years.” 138 (Lin, 2010: 233)

As obras construídas Sony Tower de Kurokawa e a torre Sofitel Tokyo de Kikutake foram demolidas nos anos de 2006 e 2007 respetivamente. Segundo Lin, estas demolições

“raised several issues particularly related to Metabolism: the ideas of adaptability and replaceability (…) the relevance of Metabolist theory to the contemporary practice of architecture and urbanism, and (…) the historical evaluation of the Metabolist movement” 139 (Lin, 2010: 234)

Estas estruturas utópicas e “metabólicas”, nascidas deste movimento tornado manifesto, visaram responder às crises urbanas e culturais no pós-guerra do Japão, aclamando por uma radical reconfiguração da cidade. Através da introdução deste novo urbanismo e arquitetura utópica, os Metabolistas pretenderam responder à rápida dinamização e transformação do país

 138 “Deve ser demolida (...) irá unir-se outros trabalhos dos Metabolistas na longa lista de edifícios modernos demolidos nos anos recentes.” (tradução livre) 139 “levantaram questões particularmente relacionadas com o Metabolismo: as ideias de adaptabilidade e reposição (...) a relevância da teoria Metabolista para a prática contemporânea de arquitetura e urbanismo, e (...) a evolução histórica do movimento.” (tradução livre)

107 

57. Re-ruined Hiroshima project. De Arata Isozaki (1968)

108  que ocorria desde 1950, e enfatizar as transições políticas e culturais depois da Segunda Guerra.

Tantos os Metabolistas, como os Archigram, como os Team 10, podem ser caracterizados como re-definidores da arquitetura. As ideologias e pensamentos inerentes aos grupos evidenciados demonstram uma transformação e radicalização da arquitetura evoluídas e alimentada pelos CIAM, principiando um novo campo e uma nova visão da arquitetura. Numa passagem entre o modernismo e o pós-modernismo, a experimentação tornou-se um conceito em voga, e o tradicional aplicado até então, foi abafado por um conjunto de ações que procuravam a ideia, a melhoria, a revolução – uma arquitetura melhorada para a sociedade. Claro que condicionada pelos diversos fatores da época, tal como o Modernismo tinha sido influenciado pela máquina, esta arquitetura assumiu novas formas, novas intenções e pensamentos interligados com a tecnologia, o capitalismo, a moda, e de uma forma geral, com a vida da sociedade da atualidade da altura. Desta forma, debruça-se uma outra orientação no período pós-guerra que concorreu com as adoções racionais e universais aplicadas na reconstrução de algumas cidades.

109                             “As I write, highly civilized human beings are flying overhead, trying to kill me.” 140 (Orwell, 1940: s/p)

 140 “Tal como eu escrevi, seres humanos altamente civilizados estão a sobrevoar, tentando abater-me.” (tradução livre) 110 

3.| A reconstrução e arquiteturas em

cenários pós-guerra

111  

58. Tóquio devastado após a Segunda Guerra Mundial.

112  | A Guerra e a Arquitetura

“Dictionary of war (…) war is a ‘constitutive form of a new order’ that no longer knows an inside or outside, that not only destroys but also produces life. In this new world order there is no difference between war and non-war: war is perpetual and everywhere.” 141 (Bush et al., 2007: s/p)

“GUERRA s. f.; do frâncico *werra, “peleja”. Conflito armado entre grupos ou estados que envolve mortes e destruição; luta; Conflito entre estados ou no interior de um estado que se caracteriza por coação política, económica, psicológica ou militar; Conjuntos de operações militares entre nações ou grupos; campanha: [Figurado] Situação de hostilidade entre duas pessoas ou grupos políticos; oposição declarada; [Figurado] Desentendimento e zanga entre pessoas, que normalmente começa por manifestar ataques verbais, orais ou escritos, mas pode atingir níveis de agressão física e dano de bens materiais; [Economia] Competição entre empresas ou entre grupo económicos que exercem a mesma atividade; concorrência; (Infopédia, 2017: s/p)

O mundo e a sociedade vivem assombrados pela palavra “guerra”, um conceito que tal como a sua própria definição indica, assume um papel de conflito e confrontação, de antagonismo, resistência e brutalidade. Tratando-se de um conflito humano, coloca-se a questão da sua origem: a guerra sempre existiu como um potencial da natureza humana ou é um produto do desenvolvimento da sociedade? (Otto, Thrane e Vandkilde, 2006) De facto, a tendência evolutiva para o conflito parece ajustar-se com o desenvolvimento da sociedade, e após a Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1988 emergiram vários conflitos civis, sendo que 80% das perdas humanas foram causadas entre membros da mesma nacionalidade. De acordo com Charlesworth (2006), um grande número de conflitos concentrou- se nas últimas décadas, e tornou-se histórico nas últimas três: desde o início dos anos 80 até 2003, o número de conflitos civis rondou entre os 40 e os 50, e atualmente verificam-se cerca de 30 conflitos ativos no mundo (Council on Foreign Relations, 2017). Muitos destes confrontos são fundados por questões relacionadas com a disputa de direitos e com a ameaça de identidades coletivas seguindo divisões étnicas e religiosas, uma questão de

 141 “A guerra é uma ‘forma integrante de uma nova ordem’ que já não compreende dentro ou fora, que não só destrói mas também produz vida. Neste novo mundo não há diferença entre guerra e não-guerra: a guerra é perpétua e em todos os lugares.” (tradução livre)

113 

59. A cidade Sirte, na Líbia, abandonada e destruída durante Guerra Civil da Líbia, iniciada em 2014.

114  política interna cuja comunidade internacional nunca interveio antes da queda do Muro de Berlim e do término da Guerra Fria (Barakat, 1998). Já Trey (2002) argumenta que esta prevalência da guerra interna é um resultado da acumulação de conflitos pós-coloniais prolongados desde a década de 50, e segundo a sua análise, existe uma tendência baseada na descolonização que criou um sistema dominado numericamente por estados mais enfraquecidos. Com base em dados das guerras civis de 1945 a 1999, Trey (2002) assume que os países com diversidade étnica ou religiosa não têm mais probabilidade de sofrer um conflito civil que os países fracos demarcados pela pobreza e pela instabilidade, condições estas que favorecem a insurgência e uma consequente guerra civil. Estes conflitos civis que urgem desde a Segunda Guerra resultaram em danos colossais para a sociedade, mais que no período passado falando de uma forma genérica com base nas percentagens de perda: enquanto a perda de civis na Segunda Guerra foi de 59%, a percentagem relativa às guerras desde então rondam os 74%.142 Isto traduz a proliferação progressiva da intensidade e da escala do trauma psicológico das populações civis sofridas, associado às cidades e aos espaços destruídos agora cenários de “overwhelming loss, dislocation and prolonged anxiety” 143 (Charlesworth 2006: 9).

A guerra e a cidades dos seus habitantes

“Where and how war is waged has changed, and with it our understanding of how to heal society after conflict. Today, wars are fought not in trenches and fields, but in living rooms, schools and supermarkets. How can the international community improve its responses to this new theater of urban conflict?” 144 (Barakat, 1998: 11)

As cidades tornaram-se os campos de batalha e os seus habitantes parte dos seus combatentes. Com a invenção das bombas aéreas de longo alcance no século XX, as cidades tornaram-se alvos desejáveis para ataques militares – um formato que usa a população e o seu espaço de vivência como objetos estratégicos dentro do conflito (Charlesworth 2006). Peter Maurer145 (2017), numa conferência sediada na Suíça em novembro de 2017, falou da transmutação do espaço de batalha e exaltou como a sociedade é afetada quando as guerras são travadas em cidades (Fig.59). Todo o contexto urbano é afetado como as infraestruturas  142 Existem várias e diferentes estatísticas sobres as perdas humanas na guerra. As estatísticas aqui apresentadas constam do Estatísticas de Matthew White, no Atlas Histórico do Século Vinte. 143 “imensa perda, deslocação e de longa ansiedade” (tradução livre) 144 “Onde e como a guerra é conduzida mudou, e com isso, também o nosso entendimento de entender como curar uma sociedade depois do conflito. Hoje, as guerras não são travadas em trincheiras ou campos, mas em salas de estar, escolas e supermercados. Como é que a comunidade internacional pode melhorar as suas respostas a este novo palco do conflito urbano?” (tradução livre) 145 Peter Maurer é o presidente do International Committee of the Red Cross (ICRC). 115  básicas, saúde, água, rede sanitária e educação, e Peter Maurer considerou que todo o impacto acumulado é de grande preocupação. No entanto, alegou que o impacto indireto é um fator de maior apreensão do que o impacto direto e individual, como é caso da destruição de um hospital – a sua perda acaba por afetar toda a população na sua generalidade. A acentuação da destruição nas áreas urbanas tornou-se cada vez mais frequente, e isso é visível em algumas cidades após a Guerra Fria devido às disputas relativas aos câmbios culturais, conflitos étnicos, políticos e religiosos, exploração de recursos entre outras lutas geopolíticas. Esta batalha de conceitos converteu-se em violência, e a consequente guerra converteu-se no quotidiano da população (Graham, 2010). A destruição intencional dos espaços e da vida urbana parece ser crescente e o objetivo da guerra nas cidades parece centrar-se tanto na destruição dos edifícios e estruturas, como na cultura e na memória dos seus habitantes (Charlesworth, 2006). Hoje, existem cerca de 50 milhões de pessoas afetadas pelas suas cidades tornadas em áreas de confronto, tal como sucede em Alepo na Síria, ou Donestsk na Ucrânia, entre outras. Esta conjuntura força a privação da educação da futura geração, o trauma psicológico da sociedade e a ditada migração, obrigando a um prolongado deslocamento do seu país (Maurer, 2017). As comunidades afetadas pelos marcos profundos da guerra anseiam por voltar a viver as suas cidades em paz, e a reconstrução das mesmas é um processo de extrema complexidade por isso mesmo. A consolidação da paz e a cura de lesões da sociedade não é uma responsabilidade apenas política – os arquitetos e os planeadores urbanos têm um papel importante a desempenhar. Para proceder a uma ”reconstruction as healing” 146 (Barakat, 1998: 12) é necessário abordar uma vasta gama de fatores como a destruição física, a recuperação económica e social e a construção da paz, principalmente nos casos em que os conflitos se concentram dentro do mesmo país. A reconstrução pós-conflito, tornada ainda mais complicada devido ao fragilizado tecido social depois dos confrontos, é, segundo Barakat (1998), definida como uma integrada gama de atividades inter-relacionadas pensadas para reativar o desenvolvimento e reajustamento social, económico e psicológico, e ao mesmo tempo criar um ambiente de paz de forma a prevenir a reincidência da violência. Assim, a reconstrução não se concentra em reproduzir para o “status quo ante bellum” 147 (Barakat e Narang-Suri, 2009: 105) e sim em envolver escolhas estratégicas para a criação de um estável e melhor futuro. Para Barakat (1998), existem três conceitos primordiais na construção da paz: esperança, cura e reconciliação. E estes conceitos devem ser considerados pelos arquitetos e pelos urbanistas. Expressar esperança através de projetos concretos de reabilitação, reconstrução e de ajuda, como é caso das realizações das Nações Unidas e outras agências, acompanhadas pelas

 146 “reconstrução como cura” (tradução livre) 147 A expressão status quo ante bellum é uma expressão latina que significa ‘o estado em que as coisas estavam antes’. 116  vítimas das guerras, devem ser estabelecidos em harmonia com o respeito e a participação das pessoas afetadas. Já a estratégia denominada por Barakat (1998: 12) como “healing and reconciliation” 148 é realizada a longo prazo e através de estratégias multifacetadas para terminar a violência e regenerar coletividades, de forma a criar uma resolução de conflito, abordando o passado e focando no futuro, através de medidas estruturais e iniciativas de reconstrução. Deste modo, pode-se assumir, tal como refere Woods (1993: 19), que os destroços decorrentes da guerra são o início de uma “new ways of thinking, living, and shaping space, arising from individuality and invention” 149, e deste começo, uma nova comunidade pode ser formada, uma sociedade que impeça a base da organização de violência e da guerra.

Destruição da memória

“The erasure of architecture is a crazed and dusty reflection of the fortunes of people at the hands of destroyers.” 150 (Bevan, 2006: 7)

“The struggle of man against power (…) is the struggle of memory against forgetting.”151

(Milan Kundera 1979 in Bevan, 2006: 22)

Com a cidade como alvo estratégico de guerra, também o seu património e memória se tornam objetos de perda e ruína. A destruição de bens culturais da nação inimiga é uma forma de “dominating, terrorizing, diving and eradicating it altogether” 152 (Bevan, 2006: 6). Esta “limpeza cultural” através da arquitetura é um género de repressão cultural que tem vindo a ser debatido por diversos teóricos que estudam a conexão entre a guerra e a arquitetura. Wigley e Daniel Liebskind (2002) descrevem o processo de destruir edifícios icónicos e monumentos como uma forma de usar a nostalgia como uma arma, enquanto o filósofo Tanaskovic (2000) sugere que a guerra não é suficiente para destruir a vida biológica, é necessário destruir a memória também (in Charlesworth, 2006). Robert Bevan (2006), afirma que os edifícios culturais atacados não são agredidos por acaso durante a trajetória do objetivo bélico, mas que eles são, na verdade, o objetivo. Ao destruir uma biblioteca ou uma galeria de arte, um local repleto de memórias históricas de um local, eliminam-se evidências de uma

 148 “cura e reconciliação” (tradução livre) 149 “nova forma de pensar, viver, e de modelar o espaço, resultante da individualidade e da invenção” (tradução livre) 150 “A supressão da arquitetura é um reflexo louco e árido das fortunas das pessoas nas mãos dos destruidores.” (tradução livre) 151 “A luta do homem contra o poder (...) é a luta da memória contra o esquecimento.” (tradução livre) 152 “dominar, aterrorizar, dividir ou erradicar totalmente todo o conjunto” (tradução livre) 117 

60. A ponte Stari Most antes da guerra; depois quando destruída; e depois da sua reconstrução.

118  comunidade com passado e presente, impedindo a sua projeção no futuro. O mesmo acontece com outras obras e monumentos que caracterizam e marcam uma nação e a sua história. Estes ataques a este tipo de edifícios são muitas vezes propositados quando o objetivo do conflito é eliminar as memórias, a história e a identidade da arquitetura e do local, de forma a forçar o seu esquecimento. Dois exemplos de destruição da identidade através da memória e da arquitetura foi o ataque nazi às sinagogas alemãs em Kristallnacht, no ano de 1938, de forma a negar o passado e o futuro da população judaica e, num cenário mais recente, a destruição da ponte histórica Stari Most, em Mostar, a 1993, durante a Guerra da Bósnia.

O caso da ponte Stari Most, Mostar, Bósnia

Durante 427 anos, a ponte Otomana Stari Most em Mostar, do século XVI, permaneceu firme. No dia 9 de novembro de 1993 afundou-se nas águas do rio Neretva após o seu duro bombardeamento com cerca de 60 bombas. O nome da cidade Mostar deriva de Mostari que significa bridge-keeper, ou em português, “guarda da ponte”, e albergava a estrutura Stari Most que unia a antiga área Otomana na zona Este com o Oeste mais heterodoxo. Isto expressa o carregado simbolismo que a ponte compreendia e o seu valor histórico e identitário relativo à cidade e à sua população. A cidade Mostar, antes da guerra conhecida como uma das mais cosmopolitas e com o maior número de casamentos mistos (entre croatas, sérvios ou muçulmanos), viu o seu ícone simbólico de laços e união ser destruído, e foi, para muitos, a representação do sofrimento físico final (Bevan, 2006). A ponte da cidade, desenhada pelo arquiteto otomano Mimar Hajruddin, era tanto um símbolo da cidade como um espaço vivo onde os habitantes se reuniam, e o seu ataque, foi um ataque ao conceito multiétnico, à junção das comunidades, e aos habitantes da cidade. Através do contributo da UNESCO, a ponte Stari Most foi reconstruída em 2004 bem como muitos edifícios da antiga cidade. A sua reconstrução simboliza a reconciliação e a paz, a colaboração internacional e a pluralidade dos variados grupos culturais, étnicos e religiosos (UNESCO, 2017a).

Além da ponte de Mostar, também a mesquita principal de Saravejo foi um dos milhares monumentos Otomanos destruídos pela Guerra da Bósnia, bem como outros edifícios culturais e religiosos como bibliotecas, museus, escolas islâmicas, fontes, entre outros. No caso da Segunda Guerra Mundial, inúmeros edifícios foram destruídos ou danificados, mas a destruição deliberada de inúmeras sinagogas na Alemanha e pela Europa é um símbolo da ganância nazi na anulação da identidade e cultura judaica. Também como resultado da Segunda Guerra foi a destruição da histórica Igreja da Nossa Senhora em Dresden, cuja ruína

119 

61. Projeto de segurança de Wall Street, em Nova Yorque. (2017) Da equipa ROGERS PARTNERS Architects + Urban Designers.

120  serviu, posteriormente, como um memorial anti-guerra na Alemanha Oriental comunista, inaugurado em 2005 (Bevan, 2006). Um símbolo mais recente alvo de destruição foram os minaretes da Grande Mesquita de Alepo, na Síria, bem como uma grande parte da parte histórica da cidade, na guerra civil em abril de 2013. A sua reconstrução não está ainda prevista (Birkenstock, 2014). Esta destruição deliberada das cidades, dos seus edifícios e de todas as suas formas de vida, foi tardiamente identificada como crime contra a humanidade, apenas a partir de 1990, com o caso das cidades de Kosovo, Saravejo e Dubrovnik (Bevan, 2006; Bold, Larkham e Pickard, 2017).

Terrorismo e as cidades

A maioria das guerras desde 1900 até aos dias de hoje, focaram-se em torno de temas nacionalistas e também étnicos no caso das primeiras guerras, ideologistas no caso da Guerra Fria e religiosos no caso das guerras Indo-Paquistãs e do terrorismo islâmico, assumindo que a contínua guerra, é um resultado de um choque de culturas (Sullivan, 2017). Mais recentemente, o terrorismo tornou-se um frequente, através de atos violentos com a intenção de provocar medo. Os implacáveis e cruéis impactos da guerra atingem tantos as pessoas como as cidades. A guerra caminha lado a lado com conceitos como cidade, reconstrução e planeamento urbano. Esta relação é abordada por Lewis Mumford, em 1961, que alega que as guerras moldam a forma física e a estrutura institucional da cidade, o que se reflete tanto nas intervenções urbanas que pretendem atenuar os efeitos bélicos, como nos planeamentos de reconstrução de cidades depois dos rescaldos. Inversamente, também a natureza da guerra mudou com as cidades, visando uma maior destruição e agressão com o tempo (Barakat e Narang-Suri, 2009). Assim, as cidades e os seus habitantes passaram a fazer parte de um sistema logístico integrado na cultura da guerra, alterando a lógica da vida na cidade, o que acabou por se integrar nas práticas dos arquitetos e planeadores urbanos (Boyd e Linehan, 2013). A autoridade do impacto bélico nos espaços citadinos continua em curso e a sua assinatura espacial está a ser reescrevida afetando a mobilidade da população e a disposição da arquitetura. Esta omnipresença da guerra e do terror atinge para além dos contextos físicos e estimulam novos métodos e memórias, despertando novas formas de pensar sobre as implicações que a guerra têm na arquitetura e no ambiente construído. Hoje, o design das cidades, através de novos elementos urbanos, instalações de arte, entre outras estratégias de planeamento, podem prevenir de alguma forma, ataques terroristas, especialmente quando realizados com veículos motorizados. (Fig.61) Desta forma, a intervenção da arquitetura nas cidades e do aprimoramento de certos espaços, age como dupla função: enquanto reformula e melhora espaços pedestres e as cidades, transmite e pode garantir alguma segurança à população.

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62. Dresden em ruínas em 1945, após a Segunda Guerra.

122 

| Um breve olhar sobre a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra

“The sign of our times is the ruins. They surround our lives. They line the streets of our cities. They are our reality. In their burned-out facades there blooms not the blue flower of romanticism but the daemonic spirit of destruction, decay, and the apocalypse. (…) The ruins live in us as we in them. They are our new reality which is asking to be reshaped.” 153 (Richter, 1947 in Diefendorf, 1993: 13)

Após a Segunda Guerra Mundial, o ano de 1945 suportou a imagem das ruínas das várias cidades dos países participantes na guerra, principalmente da Alemanha, país que viu os seus centros urbanos a serem bombardeados durante mais de três anos pelas forças aliadas. A destruição em grande massa de património secular, de serviços e de grande massa habitacional, originou uma enorme devastação, designada por observadores contemporâneos como uma “biblical annihilation” 154 e que levaria gerações para a sua regeneração (Diefendorf, 1990: 1). A enorme complexidade da reconstrução urbana foi considerada como “one of the greatest tasks ever faced by town planners, town authorities (…) architects and workers” 155 (Diefendorf, 1990: 1), marcando este período pela ascensão de urbanistas e arquitetos e pela importância do planeamento e de um esforço de recuperação nacional em vários países da Europa. A dubiez que pairava em torno das respostas necessárias dirigiu-se ao financiamento, à produção dos materiais de construção e respetiva localização, à tomada de decisões, à urgência de execução, e entre muitas outras premissas, ao planeamento da cidade. Embora algumas cidades históricas já se tinham candidatado a uma renovação urbana extensiva devido ao seu não regulamentado crescimento na era da industrialização e expansão urbana, era necessário entender se era possível envolver essa renovação na era de reconstrução. E se sim, como abordariam as novas cidades? Com novas ruas? Com novos espaços sociais? (Diefendorf, 1990). A destruição das cidades depois da guerra pode ser vista como uma oportunidade para abordar as falhas que existiam outrora e assim planear melhorias (Barakat e Narang-Suri, 2009). Tal foi  153 “O símbolo dos nossos tempos são as ruínas. Elas rodeiam as nossas vidas. Elas traçam as ruas das nossas cidades. Elas são a nossa realidade. Nas suas fachadas queimadas floresce não a flor azul do romantismo, mas o espírito demoníaco da destruição, degradação e apocalipse. (...) As ruínas vivem em nós como nós vivemos nelas. Elas são a nossa nova realidade que pede para ser remodelada.” (tradução livre) 154 “aniquilação bíblica” (tradução livre) 155 “uma das maiores tarefas de sempre enfrentada por planeadores, autoridades (...) arquitetos e trabalhadores” (tradução livre)

123  feito ainda durante o período da guerra, sendo que vários planos foram esboçados em vários países do Norte e Oeste da Europa ainda durante o conflito e depois continuados após o fim da Segunda Guerra. Por outro lado, a rapidez da reconstrução de algumas cidades explica bem alguns dos insucessos da arquitetura pós-guerra (Diefendorf, 1990). A recuperação nacional depois da Segunda Guerra foi auxiliada pelo plano Marshall ou European Recovery Program 156, e teve como parte integrante de grande importância, o planeamento da cidades completamente ou parcialmente devastadas, providenciando o espaço, tanto físico como político, para reconstruir em grande escala, o que resultou na reforma do sistema de planeamento nacional, local e até internacional, originando novas ideias de zoneamento, controlo de densidade e centros pedestres de cidades (Barakat e Narang-Suri, 2009). A “fantasy of the total ‘liberation’ of land, cherished by the Modern Movement” 157 (Cohen, 1998: 252), uma vontade dos países aliados num continente que se contemplava como livre, estava apta à sua projeção na tabula rasa criada pelos bombardeamentos. No entanto, o potencial para introduzir transformações radicais urbanas é bastante sobrestimado e a oportunidade de aplicar estes esquemas utópicos pode ser bastante limitado devido a diversos fatores, entre eles os investimentos anteriores e a complexidade dos modelos de propriedade dos espaços. No entanto, durante e depois da Segunda Guerra, alguns países europeus adoptaram a ideia de reconstrução radical, enquanto outros seguiram outras abordagens, persistindo na continuidade de um formato não muito distinto ao do passado (Barakat e Narang-Suri, 2009). Vários países diferiram nas estratégias aplicadas e o plano European Recovery Program (ERP), financiado pelos EUA, permitiu aos planeadores e arquitetos o ensaio de várias hipóteses manifestadas ao longo do século XX. Isto resultou em muitas propostas urbanas que não foram bem-sucedidas, como é caso do projeto de reconstrução de Londres em 1942, e Berlim em 1946, pelo grupo MARS e Hans Scharoun respetivamente (Cohen, 1998). De outra forma, outras propostas perderam-se num pluralismo urbano como é caso da situação de Berlim e de França – a divisão política e física de Berlim admitiu um antagonismo na sua generalidade, e em França debateu-se entre a reconstrução inspirada na ordem clássica, tal como se apresenta Le Havre, e a crua justaposição de edifícios paralelos pré-fabricados, como foi o caso da reconstrução de Sotteville de Marcel Lods (Cohen, 1998).

Muitas ideias, particularmente provenientes dos CIAM, foram usadas na reconstrução de cidades ocidentais, tais como Londres e Roterdão. Como já foi referido, muitos dos membros propagaram o estilo moderno, como Le Corbusier e Mies van der Rohe, e edifícios como a Sede das Nações  156 O Plano Marshall ou o ERP (European Recovery Program), foi um programa de auxílio à reconstrução das economias devastadas dos países da Europa pós-guerra. Com uma franquia de 13 biliões de dólares e ao ativo entre 1948 e 1952, o plano Marshall deve o seu nome ao secretário de estado dos EUA, George C. Marshall, um dos principais desenvolvedores do programa. O ERP foi adoptado também como uma medida preventiva da expansão do comunismo na Europa de Este, uma vez que os democratas acreditavam que a devastação era “solo fértil” para a expansão soviética (Sullivan, 2017). 157 “fantasia da ‘liberação’ total da terra, acarinhada pelo Movimento Moderno” (tradução livre)

124  Unidas de Nova Yorque (1947-50) serviram como base para diversas cidades, como Berlim (Pugh, 2014). Esta popularização das ideias concebidas pelos arquitetos radicais modernos de 1920, como os distritos modernistas definidos por edifícios longitudinais ou verticais massivos, baseados nos princípios de Le Corbusier, surgiram como solução à reconstrução pós-guerra e à sucedida etapa de expansão massiva. Desenvolvidos em simultâneo com comunidades planeadas nos subúrbios, a criação de novos complexos habitacionais na periferia da cidade propunha a migração dos seus habitantes para os arredores, e assim possibilitava o redesenhar dos centros das cidades para outros grupos sociais e atividades. Em alguns casos, a criação dos grandes conjuntos verticais nos subúrbios, não diferiu de alguns projetos arquitetónicos aplicados nos centros das cidades uma vez que a industrialização era considerada o único método para a redução dos custos de construção (Cohen, 1998). Para Peter Adam (1986), foi nos anos 60 que arquitetura de todo o mundo atingiu a sua pior fase da história. É também por esta altura que o modernismo utópico começa a ser criticado por arquitetos da nova geração, como Alison e Peter Smithson, entre outros membros da Team 10, ou como por Aldo Rossi, na obra Architecture of the City, de 1966. No entanto, devido à “bureaucratic inertia and the corruption of the city officials” 158 (Cohen, 1998: 257), os ideais modernistas e rigorosamente funcionalistas continuaram a ser adotados. Estes “blocos/cidades” verticais fizeram brotar o pensamento da criação de novas cidades na Europa, muitas delas dedicadas a uma camada reduzida de funções sociais. O caso de Vällingby159 na Suécia, foi uma cidade satélite adaptada à paisagem suburbana, enquanto outras entraram em conflito com a paisagem envolvente como nos subúrbios de Berlim. Num outro formato, surgiram as New Towns, promulgadas pelo Estado-Social da Grã-Bretanha, formando comunidades autónomas e albergando um elevado número de pessoas. Além das sugestões da habitação em massa e da verticalidade, a Carta de Atenas também propunha o princípio de zonamento. Os urbanistas, imbuídos pelo desejo de modernizar as cidades, ambicionaram uma reconstrução urbana em torno das zonas funcionais160 distintas propostas pelo documento. Este pensamento, influenciado pelo planeamento urbano moderno, tomou parte da Europa durante a guerra, tanto nos países fascistas como nos democráticos (Diefendorf, 1990). No entanto, a enorme variedade de situações políticas nos vários países após a segunda Guerra, tornou difícil a aceitação universal dos seus princípios (Avermaete, 2005) e os

 158 “inércia burocrática e à corrupção dos oficiais da cidade” (tradução livre) 159 A cidade satélite Vällingby é um projeto de Sven Markelius. 160 As zonas funcionais propostas pela Carta de Atenas podem ser encontradas no capítulo Arquiteto entre Guerras, em A arquitetura e o arquiteto em (r)evolução entre guerras, página 31.

125 

63. Complexo habitacional pós-guerra em Birmingham, em 1965. 64. City Hof, em Hamburgo, construído na década de 50. Projeto de Rudolf Klopaus.

126  componentes radicais do CIAM viram-se alvo de críticas já nos primeiros anos pós-guerra, mas é a partir de 1960, como já foi referido, que as críticas aos métodos modernos aplicados no pós- guerra surgem. Segundo Avermaete (2005), para equipa Candilis-Josic-Woods, a negativa evolução dos desenvolvimentos urbanos na Europa pós-guerra não estavam conectados com a censura dos projetos desenvolvidos dentro do CIAM. George Candilis, acerca da revisão dos desenvolvimentos imediatos urbanos pós-guerra, afirmou que o período de reconstrução em toda a Europa revelou “a need for a doctrine: The ‘served’ as a ‘lifeline’ “ 161 (in Avermaete, 2005: 214). A aplicação da Carta de Atenas por pessoas que, apenas observaram a fórmula e não o espírito, impulsionou a confusão e a desordem dos planos urbanos atuais, e assim criaram-se coleções de complexos habitacionais invariáveis, isolados, sem conexão entre eles e de “depressing aspect” 162 (Candilis in Avermaete, 2005: 215) que podem ser encontrados em vários países da Europa (Fig.63 e 64). Assim, the pre-war academicism made way for a poor ‘modernism’, soulless and without substance” 163 (Candilis in Avermaete, 2005: 215). A reconstrução europeia sofreu de diversas restrições, tanto na Europa Ocidental como no Bloco Soviético. Os urbanistas não podiam seguir os seus desejos de planeamento devido a uma generalizada escassez de capital, de mão de obra qualificada e de materiais de construção, e era necessário reaproveitar os investimentos anteriores que sobreviveram à batalha, como algumas ruas existentes e serviços. Acompanhado destes fatores semelhantes inerentes aos vários países destruídos, também a carência de habitação e a urgência prioritária na sua construção era comum aos vários estados divididos, o que significou na maior parte das vezes propriedade pública ou habitação subsidiada relativa a modelos padrão, que segundo Dienfendorf acabaram por ser, na melhor das hipóteses, ”boring” 164 ou, na pior das hipóteses, ”inadequate” 165 (1990: 11). Para Diefendorf, as restrições deste período foram positivas dentro do trabalho da reconstrução, impedindo uma “autorização modernista radical de limpeza” de “entirely centuries of urban life”166 (1990: 12). E questionou: “was European reconstruction a success or a failure?” 167 (1990: 12). Apesar das falhas ocorridas, a verdade é que é notório o quanto foi conquistado e realizado nos 15 anos depois da guerra, mas relativamente ao sucesso ou insucesso, de um ponto de vista pragmático, dada a escassez de recursos e dada a magnitude da tarefa, especialmente na área

 161 “a necessidade por uma doutrina: a Carta de Atenas ‘serviu’ como uma ‘corda de segurança’.” (tradução livre) 162 “aspecto depressivo” (tradução livre) 163 “o academicismo pré-guerra abriu espaço para um ‘modernismo’ pobre, sem alma e sem substância.” (tradução livre) 164 “aborrecidos” (tradução livre) 165 “inadequados” (tradução livre) 166 “séculos inteiros de vida urbana.” (tradução livre) 167 “A reconstrução Europeia terá sido um sucesso ou um fracasso?” (tradução livre) 127 

65. Cidade de Dresden, na Alemanha, agora reconstruída sob a estratégia fac-símile. 66. Fotografia atual da cidade de Roterdão, na Holanda, agora reconstruída e sob a estratégia tabula rasa.

128  de habitação, a consecução “calls for applause” 168 (Diefendorf, 1990: 12), apesar de muitas vezes pouco imaginativa ou atrativa. De um ponto mais sensível aos aspectos estéticos, Diefendorf (1990: 12) afirma que, “might deplore the instances where damaged buildings were demolished to make way for wider streets or paroking lots or modern skyscrapers.” 169 Não obstante, a reconstrução após Segunda Guerra ofusca os aspetos negativos do pensamento urbano relativo ao período pré-guerra, como a divisão de classes no caso da remodelação de Paris por Hausmann e as ambições Nazi através de esquemas urbanos e políticas sociais e habitação (Barakat e Narang-Suri, 2009). Antes como um instrumento de oposição e divisão, o urbanismo após 1945 afirmava-se como uma ferramenta de recuperação económica, de reforma social, e de proteção das cidades e dos seus habitantes. Em suma, de acordo com Bold (2017) e Charlesworth (2006), as estratégias que se revêm aplicadas no pós-guerra europeu resumiram-se a dois formatos de atuação: o método tabula rasa e o método fac-símile.170 Apesar desta estratégias, a força e a rapidez com que algumas cidades retomaram a sua rotina urbana como Berlim, Frankfurt, Dresden (Fig.65), Roterdão (Fig.66), Hiroshima, Tóquio, Genoa e Londres, que ficaram praticamente arruinadas, confirma, segundo Powel (2000), a capacidade e o poder inerente a cada uma. No entanto, só décadas mais tarde é que foram “reparadas” na sua totalidade.

 168 “pede por um aplauso” (tradução livre) 169 “talvez se lamente as instâncias onde edifícios danificados foram demolidos para abrir espaço para avenidas ou parques de estacionamentos ou arranha-céus modernos.” (tradução livre) 170 A definição destes conceitos pode ser encontrada no capítulo Arquiteto entre Guerras, em Re- Humanização após a Segunda Guerra, página 55.

129 

67. Varsóvia em ruínas em 1944. Imagem do filme City of Ruins.

130  Em memória da arrasada Varsóvia – O centro histórico

“In Warsaw, the reconstruction of the centre of the historic city (…) was regarded as a national, political and psychological necessity. (…) It was an assertion of identity, and a demonstration that an attempt deliberately to eradicate a culture could not be allowed to succeed.” 171 (Bold et al., 2017: 28)   A cidade de Varsóvia sucumbiu a ruínas no ano de 1944 (Fig.67), um desfecho da resistência da Polónia à intenção nazi de extinguir a sua cultura. Com cerca de 85% do seu tecido urbano arruinado, 90% das infraestruturas industriais e dos monumentos históricos foram destruídos e 72% das habitações também devastadas (Gliński, 2015). No inicio de 1945, colocaram-se hipóteses de reconstrução de Varsóvia, diferentes da solução final. Inclusivamente, as novas autoridades comunistas pensaram consagrar a cidade de Łodź como capital e manter Varsóvia em ruinas, como um memorial de guerra. No entanto a cidade histórica de Varsóvia acabou por ser reconstruída como fac-símile devido à determinação de todo o país e dos seus habitantes e da força de assegurar a sobrevivência do que havia sido alvo de uma tentativa de eliminação e como impugnação contra um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade (Gliński, 2015). A reconstrução da capital também foi importante a nível político. A 14 de fevereiro de 1945, foi formado o Escritório de Reconstrução da Capital, o Biuro Odbudowy Stolicy (BOS) e iniciou-se a reconstrução em grande escala de uma cidade devastada e dos seus monumentos. Esta manifestação patriótica em torno da reconstrução da identidade através dos monumentos culturais não foi partilhada por todos os membros da equipa BOS. Jan Zachwatowicz, chefe do departamento da Arquitetura Monumental da BOS àquela data, acreditava na reconstrução fiel, ou seja, apelava ao formato “réplica”, o que despontou um conflito entre este pensamento e o do dos defensores do modernismo. E por essa razão, as propostas iniciais de Zachwatowicz foram em parte limitadas, mas a determinação dos defensores da reprodução fac-símile alcançou a fidelidade da reconstrução de partes da cidades(Gliński, 2015). Segundo a UNESCO (2017b), a reconstrução incluiu a recriação do plano urbano integral, em conjunto com a Old Town Market (Mercado do Centro Histórico), algumas habitações, o circuito das muralhas da cidade, o Castelo Real e importantes edifícios religiosos.

 171 “Em Varsóvia, a reconstrução do centro da cidade histórica (...) foi considerada como uma necessidade nacional, política e psicológica. (...) Foi uma afirmação de identidade, e uma demonstração de que uma tentativa deliberada de erradicar uma cultura não poderia ter sucesso.” (tradução livre)

131 

68. Bairro com as propriedades

132  O projeto de reconstrução da zona antiga de Varsóvia utilizou a malha das ruas antigas, praças existentes e a praça principal do Mercado do centro, bem como todas as estruturas construídas entre os séculos XIV e XVIII que haviam escapado aos danos da guerra. O objetivo passava por recriar a aparência da cidade histórica do século XVIII através dos documentos fiáveis da época disponíveis (UNESCO, 2017b). Assim, a reconstrução iniciou-se na cidade arruinada de Varsóvia e alguns projetos de grande escala foram concluídos nos anos imediatos ao período da guerra, como a construção do Trasa WZ (Rota Este-Oeste), uma via rodoviária de grande conquista a nível de engenharia (1949), e a urbanização de Mariensztat (1948-1949) (fig.68), o primeiro conjunto habitacional pós-guerra de Varsóvia, com habitações estilizadas típicas do século XVII. Uma das características destes anos imediatos do pós-guerra na Polónia, era a liberdade dos arquitetos, até à imposição de um estilo oficial do regime: o designado Realismo Social, em 1949. Um dos projetos habitacionais que manifesta essa autonomia foi o projeto modernista de Helena e Szymon Syrkus, o Kolo Housing Estate (1947-56)172, que contrasta com as propriedades de Muranów (1948-1953), que já apelam ao estilo oficial introduzido. Também o cinema Moskwa, inaugurado em 1950, traduz essa liberdade da arquitetura, contrariamente ao Palácio da Cultura e da Ciência (1953-1956) de Varsóvia. O período de reconstrução continuou até meados de 1960, adaptando os novos edifícios às necessidades e exigências da época, mas o processo foi finalizado com a reconstrução do Castelo Real, que foi completada apenas no ano de 1974.

A reconstrução do centro histórico

Polónia, um país altamente devastado pela guerra, devido à sua ocupação e controlo soviético, não foi um dos países beneficiários do apoio do Plano Marshall A sua única fonte de financiamento foram as doações feitas pela população para o Fundo Social da Reconstrução da Capital (SFOS), a única organização estatal encarregada do financiamento do esforço da reconstrução, e a cidade de Varsóvia foi um espaço de esforço de toda uma nação, desde as doações ao trabalho voluntário. Muitos trabalhadores, provenientes de toda a Polónia, embarcaram nesta cooperação social de um projeto de reconstrução do seu país, uma vez que, após a Segunda Guerra, podiam ser participantes da vida urbana sem qualquer exclusão (Gliński, 2015). O processo de reconstrução do centro histórico adoptou algumas medidas em prol da persistência e do abandono de alguns traços da imagem urbana da cidade de Varsóvia. Houve um desejo para acentuar o panorama e as muralhas da cidade e para tal, foi necessário desistir de algumas obras, e esquecer a reconstrução de alguns edifícios. A malha urbana foi preservada

 172 Uma explicação da obra Kolo Housing Estate pode ser encontrada no capítulo Arquiteto entre Guerras, em Re-Humanização após a Segunda Guerra, página 69. 133 

69. Marketplace, no centro histórico de Varsóvia, depois de bombardeado na Segunda Guerra (acima), e depois de reconstruído (abaixo).

134  juntamente com as fachadas das ruas históricas, agora divididas em quarteirões que, antes da guerra tinham habitações no seu interior, e durante o seu período de reconstrução foi optado por deixar o seu interior livre, com áreas públicas abertas para os residentes. Relativamente à organização interior destas habitações, esta foi revista para atender às necessidades e padrões da época. Já as plantas e o interior de espaços históricos públicos foram recriados no seu desenho e formato e no espaço exterior foram realizadas intervenções artísticas, a cargo de artistas conceituados, utilizando técnicas tradicionais, como o sgraffito. A reconstrução da Cidade Antiga de Varsóvia resultou de um programa de conservação, com combinação das características antigas com as novas adaptações e modificações, resultando, segundo a UNESCO (2017b), num espaço urbano único em termos de dimensão material, funcional e simbólico. Este princípio de reconstrução histórica não foi apenas aplicado na zona histórica - os edifícios da New Town (Cidade Nova) e da Royal Route (Rota Real) também admitiram essa integridade e assim, criou-se um senso de continuidade histórica e espacial dentro de um contexto urbano. O Centro Histórico de Varsóvia, uma propriedade considerada Património Mundial pela UNESCO, preza pela autenticidade devido ao englobamento das características do pré-guerra e ao uso de documentos históricos para a sua reconstrução. Hoje, é uma área submetida a proteção e conservação pelo governo local. (Fig.69)

A reconstrução do Centro Histórico de Varsóvia foi um contributo importante, não só para as cidades europeias depois da Segunda Guerra Mundial, como para a História do pós-guerra. Configurou-se assim como um fator de mudança nas doutrinas relacionadas com a urbanização e preservação das cidades europeias após a guerra e ilustra um caso relevante, em termos de ações de conservação.

135 

70. Fotografia de Londres depois da Segunda Guerra.

136  A brutal Inglaterra pós-guerra

“regard this war as a chapter in a tremendous history, the history of a changing world, the breakdown of one vast system and the building of a new and better one … There’s nothing that really worked that we can go back to. But we can go forward … and really plan and build a nobler world in which ordinary, decent folk can not only find justice and security but also beauty and delight.” 173 (Bullock, 2002: 6)

Durante a Segunda Guerra Mundial, Inglaterra esteve sob ataque e Londres (Fig.70), a cidade maior do Reino Unido, foi a cidade mais devastada pela ação bélica, arruinando tanto a arquitetura como a vida dos seus habitantes. O reconhecimento público do sofrimento e das dificuldades das pessoas desalojadas pela guerra acelerou o debate da reconstrução e com ele a vontade de uma mudança radical. O sentimento do país acerca da guerra pairava em torno de esperança e de um olhar sobre este episódio histórico como uma mudança em busca de um mundo melhor, não esquecendo, no entanto, o passado e o sentido de continuação (Bullock, 2002). Na Grã-Bretanha, diversos projetos começaram a ser desenvolvidos antes e durante a guerra, e houve um progresso considerável na sua implementação ainda nos anos ativos do período bélico. Houve também um surto de interesse no planeamento urbano devido à rapidez da propaganda mediática logo após um bombardeamento e, exemplos como o Plano Voisin de Le Corbusier para a reconstrução de Paris (1925), surgiram em programas de rádio (Bullock, 2002). Impregnados pelo positivismo e pela construção de um mundo melhor, surgiram ousadas e radicais abordagens na reconstrução segundo uma visão de um novo e sustentável futuro, e um consenso na necessidade de melhorar a circulação, de abrir espaços, e na melhoria de um ambiente residencial igualitário (Barakat e Narang-Suri, 2009). Apesar do governo parecer concordar com a reconstrução radical, as restrições relativas ao contexto económico e político e à alteração da opinião dos decisores e da comunidade abalaram as poderosas visões que os urbanistas tinham projetado para a reedificação das cidades e em pouco tempo, ainda antes da guerra terminar, o governo retrocedeu no seu apoio a qualquer tipo de esforço radical, fosse ele político ou relativo aos planos de reconstrução. Alguns autores como Barakat e Narang-Suri (2009) concluem que, a verdadeira essência da criação de ideias desta fase, foi simplesmente para promover o ânimo e a motivação dos seus habitantes. E de facto, é

 173 “recordar esta guerra como um capítulo numa enorme história, a história de um mundo em mudança, a quebra de um vasto sistema e a construção de um novo e melhorado ... Não há nada que realmente tenha funcionado que nos faça retornar. Mas podemos ir em frente ... e realmente planear e construir um mundo mais nobre onde o povo comum e decente não irá apenas encontrar justiça e segurança, mas também beleza e prazer.” (tradução livre)

137 

71. Fotografia de The Stow, uma zona de comércio em Harlow New Town, em 1956. Fotografia de Harry Todd.

138  interessante observar como em Inglaterra houve uma comunicação entre os planeadores e as pessoas da cidade. Para Peter Larkham (2015), a reconstrução ambiciosa e de grande escala, objetivada pelos arquitetos e urbanistas ingleses, só poderia triunfar se fosse apoiada pela população. Isso só poderia acontecer se as pessoas fossem informadas do crescimento dos planos, se sentissem que eram parte participativa dos trabalhos e não apenas recebê-los de forma impingida. A questão do envolvimento das pessoas, apesar de óbvia e pertinente, foi muitas vezes esquecida. Em Inglaterra, várias maquetes e painéis de apresentação com os planos para a reconstrução das cidades foram exibidos em diversas exposições para o contacto e apresentação às comunidades envolvidas. No entanto, na prática, não se verificou grande discussão sobre o ponto de vista da população relativamente à reconstrução das suas próprias cidades (Larkham, 2015). Foram feitos centenas de planos para Inglaterra (Barakat e Narang-Suri, 2009). Pelo menos mais de 250 entre os anos de 1940 e 1952, na procura de uma resposta a esta crise pós-bélica. A reconstrução tornava-se assim uma problemática dividida entre os programas radicais e os de recuperação do existente, e o entusiasmo público assinalou-se, levando ao questionamento da verdadeira necessidade do planeamento. A reparação e a provisão de habitações pareciam ser a prioridade principal, e assim o “planning slowly became synonymous with housing” 174 (Barakat e Narang-Suri, 2009: 113). Em suma, o período pós-guerra deu um enorme avanço ao planeamento de Inglaterra, fornecendo direções para o seu desenvolvimento e crescimento futuro, e assim contribuindo para uma contínua reinvenção do planeamento pós-guerra em Inglaterra. Uma das suas particulares inovações foram as New Towns (Fig.71), a formação de comunidades autónomas confinadas à indústria e ao alojamento. A construção de dez New Towns, centrada no período entre 1945 e 1951, permitiu o albergue de cerca de 30.000 a 40.000 habitantes. No final dos anos 70, existiam cerca de 32 New Towns para uma população de 2.2 milhões de habitantes (Cohen, 1998). Algumas mudanças tinham já inclusivamente sido pensadas antes da guerra devido ao rápido crescimento das cidades após a Revolução Industrial175. Desta forma, a guerra não foi origem do replaneamento, mas significou uma oportunidade (Peter Larkham, 2015).

 174 “moroso planeamento tornou-se sinónimo de alojamento.” (tradução livre) 175 No ano de 1937 iniciou-se um movimento em direção ao planeamento urbano moderno de Londres, que aclamava pela descentralização e redução do congestionamento.

139 

72. Maquetes de vários modelos habitacionais para a reconstrução da área Shoreditch, em Londres, propostos por Erno Goldfinguer em 1944. Créditos: RIBA Collections

140  Replanear Inglaterra

“A new opportunity: The destruction by bombing in London and in so many other cities provide the opportunity for relanning. This opportunity must have considered. But planning cannot be limited to just the devastated areas. The need for planning exists even without the bombing and all cities should have theis growth controlled. 176

(Tubbs in Bullock, 2015: s/p)

De setembro de 1940 a maio de 1941, Inglaterra sofreu vários bombardeamentos pela aviação alemã, a Luftwaffe. este ataque, batizado como Blitz177, destruiu várias cidades de Inglaterra, embora Londres tenha sido o alvo principal, resultando numa vasta devastação da capital. Mas retomando a cidade de Londres pré-guerra, que cresceu sem qualquer plano ou ordem e figura, esta era um conjunto desordenado de arquitetura tanto feia como bonita, com uma drástica discrepância entre lugares de espaços abertos e verdes. Após a sua destruição massiva resultante da Segunda Guerra Mundial, passou a ser vista pelos seus habitantes e pelo conselho regional como uma oportunidade de melhorar as suas condições e de criar uma nova Londres, melhor e mais ordenada que a antiga. Para tal, foi necessário conhecer tudo acerca da sua história, geografia, os seus habitantes e a forma como vivem, para iniciar a reconstrução e reformulação, não só dos edifícios bombardeados, mas também das obras e espaços obsoletos (Keene 1946). O ataque de 15 de outubro de 1940 provocou uma média de 25.000 pessoas desalojadas, levando à necessidade de ação primária antes de um plano de reconstrução: a providência de abrigo em rest centres àqueles que ficaram sem residência. A zona mais afectada, East End, contava com 40% de habitações destruídas no distrito de Stepney no início de novembro, originando uma fração alarmante de pessoas desalojadas e consequentemente uma sensação de impotência na resolução desta crise (Bullock, 2002). E assim, em 1941, era necessário resolver a crise urbana após a Segunda Guerra. Novos planos foram pedidos ao urbanistas e arquitetos da cidade, originando uma ampla gama de projetos tanto formais como informais, de uma escala regional até à escala mais reduzida. Entre um grande número de operações de planeamento para a reconstrução de Londres, destacam-se quatro planos: o plano desenvolvido pelo grupo MARS; dois projetos desenvolvidos pela  176 “A nova oportunidade: A destruição através do bombardeamento em Londres e em tantas outras cidades, proporciona a oportunidade de replaneamento. Esta oportunidade deve ter considerada. Mas o planeamento não pode ser limitado apenas às áreas devastadas. A necessidade de planeamento existe mesmo sem o bombardeamento e todas as cidades devem ter o seu crescimento controlado.” (tradução livre) 177 Blitz foi um bombardeamento aéreo pelos alemães nazis contra a Grã-Bretanha, desde setembro de 1940 até maio de 1941.

141 

73. Plano para a cidade de Londres, proposto pela equipa MARS. (1942). Créditos: RIBA Collections 74. Plano para a cidade de Londres, proposto por Abercrombie e Forshaw. (1943)

142  Royal Academy; o Conselho da Reconstrução Regional de Londres elaborado pelo Royal Insitute of British Architects (RIBA); e o Plano do Condado de Londres, de Patrick Abercrombie John Henry Forshaw. O projeto ideal para a reconstrução, teria que cumprir seis critérios:

1. Adaptar-se a um padrão de reconstrução regional e nacional; 2. Preservar e desenvolver o caráter individual de cada cidade; 3. Estabelecer um padrão orgânico para desenvolvimento; 4. Propiciar uma vida privada ao habitante; 5. Suprir as necessidades coletivas da comunidade; 6. Ser praticável (Larkham e Adams, 2011).

De acordo com os critérios referidos, foi o Plano do Condado de Londres de Abercrombie (1943) que melhor respondia aos princípios estabelecidos, e por isso, foi o plano que atuou com maior destaque e que agiu como uma influência para outros (Larkham e Adams, 2011).

O projeto da equipa MARS (1942) (Fig.73) apelava por uma restruturação radical. (Larkham e Adams, 2011). O projeto idealizava a permanência do centro histórico da cidade e das suas funções, com a adição de uma “dorsal spine” 178 (Larkham e Adams, 2011: 16), prolongada de este a oeste com extensões laterais destinadas a cidades lineares de pequena escala, para o total de uma população de dez milhões de habitantes. Este planeamento priorizava o sistema de transporte ferroviário, a reorganização das zonas industriais, e sugeria a hierarquização das unidades sociais. Segundo Larkham e Adams (2011), o plano da equipa de MARS focava-se meramente no movimento e na comunicação, deixando para trás as complexidades da estrutura e do design da forma urbana. No entanto, é interessante observar a relação da equipa de radicais com os planos emergentes. No ano de 1944, numa reunião do grupo MARS, o Plano do Condado do Londres foi bemrecebido pelo grupo que apelava por respostas bastante diferentes, e afirmaram que era o primeiro plano adequado e compreensível para a cidade (Larkham e Adams, 2011). Resultante deste imenso debate de ideias sobre a reconstrução, o Plano do Condado de Londres (Fig.74) de Abercrombie e John Henry Forshaw, surgiu como uma visão de uma ilustração de mudanças a nível regional, uma demonstração irregular de uma mistura do idealismo e do realismo pragmático deste período pós-guerra, e provou ser uma enorme influência como um modelo para as propostas de reconstrução que estavam a ser preparadas para as outras cidades de Inglaterra ou outras mais longínquas (Bullock, 2002).

 178 “espinha dorsal” (tradução livre) 143 

75. Frame do documentário The Proud City (1946), de Paul Keene, quando Abercrombie apresenta um esquema do plano para a cidade de Stepney 76. Frame do documentário The Proud City (1946), de Paul Keene, com indicação de Abercrombie para o centro cívico projetado em maquete.

144  Este plano para a cidade de Londres não era um modelo rigoroso e agia mais como uma ideia, “a project for something that is alive, for something borning” 179(Keene, 1946: s/p). Com base no conceito de cidade e no ideal do homem em viver nesse formato, este projeto baseou-se na ideia de viver em comunidade e no espírito, na lealdade e na vizinhança das antigas comunidades de Londres que parecia permanecer intocável. E assim, a reconstrução de Londres deveria manter o que de bom tem a cidade. O projeto começou por atuar nas áreas com maior urgência de reconstrução como algumas zonas da cidade de Londres, como Stepney na zona de East End, sofrido de um crescimento drástico no século XIX para o albergue de um grande número de habitantes, desde trabalhadores imigrantes a pessoas desabrigadas da cidade de Londres. Após o Blit, ficou severamente danificada e assim nasceu a palavra de ordem para a sua reconstrução e melhoria. Após uma análise da sua dispersa e baralhada organização, com indústria e comércio espalhados por toda a localidade, intersectados por escolas e com carência de espaços verdes, os urbanistas e arquitetos começaram por avaliar as ruas existentes estreitas e sinuosas, propondo uma reformulação proporcionada de uma ou duas ruas principais amplas e diretas, auxiliadas por pequenas ruas laterais. Relativamente ao tecido urbano restante, as fábricas e indústrias localizar-se-iam em grupos organizados perto das ruas principais, enquanto o espaço interior da cidade seria dividido em três bairros, cada um com capacidade para albergar entre 6.000 a 10.000 pessoas, e assim ocasionar um número considerável de crianças para uma escola para cada bairro, que seria o cerne do conjunto social (Fig.75) (Keene, 1946). Nestes quarteirões, com a escola no seu centro, seriam organizados conjuntos habitacionais distribuídos por ruas ou largos de moradias geminadas com jardins independentes, ou em blocos de apartamentos, complementados com zonas comerciais e espaços abertos para o lazer e convívio. A zona empresarial/comercial era recomendada perto da fronteira da área e seria dedicada aos espaços de trabalho. A conexão entre os vários bairros habitacionais era realizada através de três amplas estradas em direção ao centro deste conjunto de bairros, onde se encontra o centro cívico180 (Fig.76), rodeado pelas várias infraestruturas públicas, de lazer e de educação, criando assim uma comunidade mais humana. A área de Stepney foi planeada segundo princípios que deveriam ser comuns a todas as outras, e da mesma forma que existe uma conexão entre os elementos dentro da localidade, também deveria existir uma ligação entre todas as áreas de Londres e o seu centro. Assim, a ideia seria criar nove artérias de comunicação para um rápido fluxo, conectadas por uma

 179 “um projeto para algo que está vivo, algo que está a crescer.” (tradução livre) 180 O conceito do centro cívico foi um tema discutido e implementado pelos CIAM nos anos em torno da criação de cidades mais humanas. A sua discussão foi oficial no congresso 8, O Coração da Cidade. Uma explicação pode ser encontrada no capítulo Arquiteto entre Guerras, em Re-Humanização após a Segunda Gueraa, página 36.

145 

77. Vista aérea da cidade de Plymouth destruída em e com algumas áreas já niveladas 1948. Créditos: RIBA Collections 78. Vista aérea da cidade de Plymouth depois de reconstruída, em 1952. Créditos: RIBA Collections 146  circunvalação principal, e, portanto, eliminar o tráfego área central auxiliada por duas estradas principais para a sua travessia (Ralph Keene, 1946). Em suma, o Plano do Condado de Londres181 condensava, de forma detalhada, a visão de cada localidade e da cidade de Londres como a aglomeração de todas as comunidades, todas elas com as suas diferenças. Dirigiu-se à programação de estradas e vias para o fim do congestionamento, e um dos seus maiores focos baseou-se no zoneamento programado, separando a indústria da zona habitacional, o que obviamente implicava a destruição do que a guerra havia deixado a salvo. Verificou-se assim um imenso esforço para o planeamento urbano de Londres através de numerosos projetos, com focos e formas diversas, e das suas respectivas comparações de forma a entender qual deles seria o mais praticável (Larkham, 2015), e ao facto de alguns dos planos oficiais representarem investimentos consideráveis de tempo, dinheiro e recursos. (Larkham e Adams, 2011). Apesar do pragmatismo destas soluções, a carência de recursos impossibilitou a sua implementação nos anos imediatos ao conflito, e dada a realidade política e económica, quase nenhum plano da era da reconstrução foi implementado como previsto (Larkham e Adams, 2011). Apesar dos diversos planos para diversas cidades projetados por Abercrombie, apenas um foi realizado nesses anos contíguos à guerra: a reconstrução da cidade destruída de Plymouth (Fig.77 e 78) que hoje ilustra a ambição que foi sonhada a meados da Segunda Guerra Mundial por urbanistas e arquitetos (Thurley, 2013).

“Planning is not merely the plotting of the streets of a town; its fundamental essence is the conscious co-relation of the various uses of the land t the best advantage of all inhabitants. Good planning, therefore, presupposes a knowledge and understanding of the people, their relationship to their work, their play, and to each other, so that in the shaping of the urban pattern, the uses to which the land is put are so arranged as to secure an efficient, well-balanced and harmonious whole. 182 (Teachers Pack, 2013: 13)

 181 Contrariamente ao Plano do Condado de Londres, um planeamento determinado a uma escala mais reduzida, Abercrombie também é responsável pelo Plan publicado no ano de 1945, um planeamento de grande escala baseado também no zoneamento e na transferência de mais de um milhão de pessoas da sobrelotada cidade para oito cidades satélite (as New Towns) a ser construídas depois do Green Belt. As principais preocupações deste projeto centravam-se no controlo do crescimento da cidade de Londres, na descentralização, e na introdução do controlo do desenvolvimento da habitação, indústria e comunicações (Larkham e Adams, 2011). 182 “O planeamento é apenas a delineação das ruas de uma cidade. A sua essência fundamental é a correlação consciente dos vários usos do espaço para o melhor benefício de todos os habitantes. Um bom planeamento, portanto, pressupõe um conhecimento e uma compreensão das pessoas, do seu relacionamento com o seu trabalho, com o seu papel, e com os outros, de modo a que, na modelação do tecido urbano, os usos dos espaços aplicados estão dispostos de forma a garantir um todo eficiente, bem equilibrado e harmonioso.” (tradução livre)

147 

79. Plano para o centro da cidade de Plymouth de Abercrombie e Watson. (1943)

148 

Outra cidade também reconstruída foi Plymouth, e em 1943, James Watson e Patrick Abercrombie, prepararam um plano para a cidade (Fg.79), detalhando as mudanças de todo o centro da cidade, das áreas de habitação antigas e a proposta de novas zonas tanto habitacionais como de diferente caráter. Esta cidade foi magnificente no seu planeamento e na sua execução, e representa uma clara visão do que os arquitetos e urbanistas daquele tempo tentava alcançar (Thurley, 2013). Plymouth foi moldada segundo três fatores: em resposta ao congestionamento e à falta das condições anteriores; em resposta a uma nova organização de sociedade resultante da mudança política após a guerra; e por último, em torno de um planeamento e uma arquitetura representante de uma sociedade igualitária e democrática (Gould, 2013). A cidade Plymouth era, após o confronto bélico, uma “clean slate” 183 (Gould, 2013: 1) e o seu planeamento por Abercrombie caraterizou-se pela proposta mais radical de todas as que o arquiteto apresentou ao longo dos anos de reconstrução. Esta cidade criada foi uma representação da cidade do Estado-social – “new, clean, fresh and regular and, above all, optimistic” 184 (Gould, 2013: 1). À semelhança da proposta para Stepney, os subúrbios de Plymouth dividiram-se em centros de comunidades ou unidade de vizinhança, cada um com um centro com diversas funções como escola, igreja, biblioteca, entre outros – tudo reunindo um recinto central. Já o centro da cidade, foi dividido em vários recintos com funções individuais como shopping, escritórios, teatros, locais recreativos e culturais, e o centro cívico. Ao redor do centro, imperava uma circunvalação dupla com rotas conectadas aos subúrbios (Gould, 2013). No ano de 1947, Plymouth iniciava a sua reconstrução, destacando-se como a primeira cidade britânica estreante neste espírito de reedificação (Gould, 2013) com grandes blocos dedicados grandes hipermercados e com amplas vias dedicadas grande fluxo do automóvel. O Ministério dos Transportes mudou algumas ruas no seu tamanho e alinhamento e as áreas comerciais foram simplificadas, mas o planeamento sugerido por Abercrombie, de certa forma, sobreviveu (Gould, 2013). A forma geral dos edifícios foi planeada antecipadamente nos escritórios do Conselho e cada parcela foi construída separadamente. Abercrombie evitou qualquer discussão acerca do estilo arquitetónico, mas sempre favoreceu a modernidade contra qualquer pseudo-historicismo. A pedra de Portland foi um material bastante usado, mas também são encontrados edifícios em alvenaria (Gould, 2013).

 183 “lousa limpa” (tradução livre) 184 “nova, limpa, fresca e regular, e acima de tudo, optimista.” (tradução livre) 149 

80. Fotografia aérea da praça Queen Square, em Bristol, em 1983.

150  Abercombrie demitiu-se a 1947 e a direção do projeto foi assumida por James Watson. No entanto, o novo arquiteto chefe nomeado a 1950, HJW Stirling, teve um papel importante na visão do centro cívico da cidade, mas o seu trabalho também pode ser observado em vários locais da cidade e na respetiva habitação (Gould, 2013). A conclusão do centro cívico e a abertura da ponte Tamar sinalizaram o fim da reconstrução em Plymouth (Teachers Pack, 2013).

A reconstrução da cidade de Plymouth foi acompanhada pela reconstrução de muitas outras após os meados dos anos 50, quando se dá o boom da reconstrução. Esta ânsia de construção e a disponibilidade material resultou numa extrema confiança dos urbanista e arquitetos ingleses. Um exemplo deste entusiasmo foi a intervenção na praça georgiana Queen Square, em Bristol, onde foi inserida em 1954 uma rodovia diagonalmente à sua composição (Fig. 80) (Thurley, 2013). Em 2013, a via foi retirada e a praça voltou ao seu formato original. Assim, para além da cidade de Plymouth, muitas outras emergiram e influenciaram alguns dos modelos aplicados na cidade de Londres pós-guerra, como o Green Belt (1947) e as New Towns (1946) ao seu redor, e os complexos habitacionais de Lansbury (1949-82) em Poplar (Fig.81) e Loughborough (1952-56) em Brixton (Fig.82). Abercrombie foi um forte motivador da construção de edifícios altos como solução para a crescente população em Londres. Na década de 60, mais de meio milhão de blocos de apartamentos foram construídos, muitos deles em forma de torre.

151 

81. Complexo habitacional Lansbury, em Poplar. Fotografia de Michael Mulcahy

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82. Complexo habitacional Loughborough, em Brixton. Fotografia de Frith and Co. 153 

83. Excalibur Estate, em 1960. 154  Arquiteturas pós-guerra em Inglaterra

A Segunda Guerra Mundial reunificou a sociedade inglesa. Cada aspecto da vida nacional foi controlado pelo Estado Social e com as novas ferramentas da arquitetura, o estado criaria um mundo novo e melhor para a população da Grã-Bretanha (Thurley, 2013). Verifica-se assim como que uma nacionalização da arquitetura e o modernismo aplicado nem sempre foi visto como algo positivo (Thurley, 2013). Numa Inglaterra onde a arquitetura ainda era associada a conceitos tradicionais, a necessidade de urgência de construção depois da Segunda Guerra obrigou ao solucionamento eficaz e a métodos construtivos mais rápidos. Neste sentido, a arquitetura moderna constituía uma resposta lógica (Barone, 2002). Em 1940, 1647 casas já tinham sido destruídas em Londres. Em 1944, foram aplicadas 150 milhões de libras para a construção de habitações temporárias, e num ápice, 150 mil bungalows planos pré-fabricados foram construídos em todo o país por prisioneiros de guerra alemães e italianos - o Excalibur Estate (Fig.83), num exemplo único de “urbanismo pré-fabricado” de grande escala e a maior propriedade deste tipo erguida em Inglaterra. Esta foi a primeira ação urbanística de alojamento no período pós-guerra. Os anos imediatos ao período da guerra em Inglaterra foram anos de crise económica e de racionamento como já foi falado. Muitos dos locais bombardeados foram transformados em parques de estacionamento (Peter Watts, 2015) e os edifícios tinham de ser económicos e optimizados – a construção concentrava-se na criação das estruturas mais fortes com o menor uso possível de materiais, erguendo torres de apartamentos, blocos maciços e outras obras de caráter moderno e experimental. É exemplo a obra de Alison e Peter Smithson Hunstanton School (1949-54), listado em Inglaterra como um edifício de Grau II* 185. Este edifício clássico moderno, resultante de um concurso de âmbito académico, tinha cada “centímetro” de aço justificado pela dupla Smithson, traduzindo-se por uma obra que expressa tanto o próprio estilo como a crise económica da época. A escola Hunstanton é um exemplo de edifício de carácter experimental devido à sua escassez de engenharia – a contínua estrutura de aço soldado, construída e exposta num lugar bastante ensolarado, contraiu e expandiu, o que resultou na quebra de todo o vidro presente do edifício.

 185 Esta listagem refere-se à National Heritage List for England (NHLE) que originou a listagem de proteção de edifícios logo após a Segunda Guerra Mundial. Uma explicação da NHLE está no capítulo Reconstrução e Planeamentos em cenários pós-guerra, em A brutal Inglaterra, página 173.

155 

84. Royal Hall Festival, em 1951, durante o Festival of Britain.

156  Contrariamente, muitos outros edifícios modernos pertencentes ao período ao pós-guerra foram bem-sucedidos e melhor integrados, como o Royal Festival Hall (Fig.84) em Londres. Esta obra foi projetada pelos arquitetos do departamento de Arquitetura do Condado da Cidade de Londres186, 1951. A sua fachada foi alterada em 1964, por se considerar que a fachada original não transmitia os ideias do modernismo. Este edifício foi “exposto” no Festival Britânico de 1951, em conjunto com outras obras de arquitetura e de urbanismo, indiciaram uma reação contra as práticas adoptadas até então pela nova geração de arquitetos da época, re-definidores da arquitetura e criadores de um estilo revolucionário denominado por Brutalismo.187 Os pioneiros brutalistas ingleses188, Alison e Peter Smithson, foram responsáveis por variados projetos construídos e não construídos em Inglaterra, dos quais se destaca, no último grupo, o projeto Golden Lane. 189 Neste concurso para realojamento dos habitantes em Bunhill Fields, uma área totalmente destruída na cidade de Londres, os Smithsons tentaram provar, face à crise económica da época, que era possível viver em altas densidades e ter um modo de vida satisfatório (Smithson, 1970). No entanto, este projeto não foi vencedor, e deu lugar à construção da obra de Chamberlin, Powel & Bon (Fig.85), uma equipa com um papel importante nas obras pós-guerra de Inglaterra. O projeto vencedor, o Golden Lane Estate (1951-57) (Fig. 86) consistia em nove blocos divididos em pátios interrelacionados na área bombardeada, com um recinto de circulação pedestre no piso térreo. Alguns pátios mais isolados foram escavados até ao nível de um piso subterrâneo. Os blocos contrastam entre si, tanto em tamanho como em caráter. O bloco de 16 andares, enfatizava a verticalidade no centro do projeto e contém cerca de 120 apartamentos em todos os andares, à exceção do piso térreo que se dedica a escritórios, lavandarias e salas de lazer. O centro comunitário encontra-se enterrado e contém uma biblioteca, salão de jogos, entrou outras atividades de lazer para os habitantes do complexo (Klettner, 2014).

 186 Os arquitetos Robert Matthew, Leslie Martin e Peter Moro foram os responsáveis pelo Royal Festival Hall. 187 O movimento brutalista foi uma tentativa de integração de valores do movimento moderno na arquitetura inglesa durante a década de 50. Como reação aos feitos modernos, houve uma necessidade de sintonização da produção britânica com as propostas desenvolvidas internacionalmente, e assim, o brutalismo assumiu um papel de meio de valorização e difusão em Inglaterra dos valores defendidos na arquitetura moderna. A Unidade de Marselha de Le Corbusier e o Instituto de Tecnologia de Ilinois de Mies van der Rohe são referidos por Ana Barone (2002) como influentes na inspiração do brutalismo inglês. 188 Reyner Banham (1966) que considera Alison e Peter Smithson como os responsáveis pela primeira obra de brutalismo em Inglaterra, a Escola de Hunstanton. 189 Uma explicação pode ser encontrada no capítulo Arquiteto entre Guerras, em Re-definidores da Arquitetura, página 97.

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85. Proposta vencedora para o concurso Golden Lane de 1951, de Chamberlin, Powel & Bon. 86. Golden Lane Estate, de Chamberlin, Powel & Bon. 158  Através desta obra em Golden Lane, é possível observar o declínio dos edifícios tradicionais ingleses e o aumento da construção de blocos de apartamentos para um realojamento mais eficaz depois da guerra. Esta transformação após a Segunda Guerra, foi testemunhada por Inglaterra a partir de 1950 com as novas construções, que numa fase posterior, passaram a crescer em altura (Bullock, 2002). A tendência pós-guerra da época parecia variar e assumir diferentes direções no desenvolvimento de projetos habitacionais. São exemplo a torre Lawn (Fig.87), o Churchill Gardens Estate (Fig.88), e o Park Hill Estate (Fig.89). A torre Lawn (1951) foi um bloco habitacional isolado de nove andares projetado para Harlow New Town, pelo arquiteto Frederick Gibberd, e foi considerado como a primeira torre pós-guerra projetada em Inglaterra. Apresentada no Festival of Britain de 1951, esta torre revestida por tijolos avermelhados, era peça principal de Harlow, e foi desenhada por Gibberd como um ponto focal da cidade e como uma espécie de “viewing tower” 190 (Pendlebury et al., 2015: 85) da cidade de Harlow. Numa diferente estratégia e num formato mais massivo, outra obra pós-guerra foi o complexo habitacional Churchill Gardens (1946-62), dos arquitetos Powel e Moya, numa área destruída em Pimlico, onde outrora existiam casas geminadas do estilo vitoriano. Este complexo foi desenvolvido sob o plano de Abercrombie e proponha 1600 casas em 32 blocos habitacionais que diferiam no seu número de pisos. Os edifícios mais altos, com 9 a 11 andares, são rodeados pelos edifícios mais baixos com sete andares ou pelos blocos de apartamentos dúplex. Um dos elementos característicos da obra é a sua torre de acumulação hoje em desuso. Na altura, a torre forneceu água e aquecimento a todo o complexo habitacional. Este complexo habitacional foi uma forte influência nos anos seguintes. O conjunto Churchill Gardens e a respetiva torre foram listados como Grade II (Booth, 2017). O último em análise destes três géneros de habitação dos anos 50, é obra Park Hill, em Sheffield (1957-61), projetado por Jack Lynn e Ivor Smith. Esta obra de ordem brutalista espelha o triunfo do realojamento dos habitantes e a solução para os seus desejos e necessidade. O edifício inspirado pela Unidade de Habitação de Le Corbusier e pelo projeto dos Smithson, na sua massiva estrutura com as street-in-the-air, as conhecidas galerias, é considerado por Thurley (2013) como um dos mais controversos edifícios em Inglaterra. Estas street-in-the-air, um conceito revolucionário na altura, caracterizou o edifício. Largos corredores davam acesso às 958 habitações e acesso direto ao piso térreo. O local incorporava um recinto para compras e uma escola primária. Adoptado segundo um esquema radical para o realojamento da comunidade de Park Hill, a construção ergueu-se como uma estrutura de betão exposta com fachadas-cortina de tijolos

 190 “torre de observação” (tradução livre) 159 

87. Torre Lawn, em Harlow.

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88. Churchill Gardens Estate, em Pimlico. 89. Park Hill, em Sheffield

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90. Centro cívico da Stevenage New Town. 91. Habitações da Runcorn New Town, de James Stirling.

162  amarelos, vermelhos e laranja. No entanto, como resultado do tempo, as cores desvaneceram e o edifício parece inteiramente de betão (From Here to Modernity team, 2016). Tal como a obra pós-guerra Robin Hood Gardens191 (1960-72), de Alison e Peter Smithson, o Park Hill foi caraterizado pelo seu fracasso devido à sua decadência social e mau trato. Em vias de demolição192, a propriedade foi salva em 1998 quando o Património Inglês a classificou como obra de Grau II, e assim deu lugar a uma oportunidade morosa de regeneração da obra brutalista liderada pela construtora Urban Splash (Dobraszczyk, 2015).

De uma outra forma e como já foi referido, uma das estratégias foram a criação das New Towns. Os Smithsons acreditavam na conexão humana/arquitetura, pelo que agiam contra as decisões tomadas pelo governo inglês, tanto pelo racionalismo excessivo adoptado na generalidade na reconstrução das cidades europeias, como na criação das New Towns. As New Towns, criadas entre 1946 e 1976, foram resultado de um programa ambicioso do governo pós-guerra em Inglaterra, o New Towns Act iniciado em 1946, que objetivava a promoção do progresso económico e social após a Segunda Guerra, e uma forma de aliviar a urgência da habitação e o alojamento da população. Baseadas na visão do movimento da Cidade-Jardim de Ebenezer Howard (1898), novos métodos de design e planeamento foram aplicados, em ruptura com a forma tradicional das cidades britânicas. Algumas mais bem- sucedidas que outras, sofreram renovações ao longo dos anos e hoje albergam cerca de 2 milhões de pessoas (Alexander, 2009). Em 1946, Stevenage foi a área escolhida de Londres para a primeira New Town. O plano elaborado para esta nova cidade, Stevenage New Town (1946-80), organizava a zona habitacional a este, e a zona industrial a oeste. Com seis bairros com 10 mil habitações e um centro comunitário, o centro cívico da cidade (Fig.90), esta cidade seria a primeira a ter um centro completamente pedestre (Stevenage Borough Council, 2017). Outra New Town popular construída após o Blitz localiza-se em Cheshire e foi desenhada por James Stirling em 1967. A Runcorn New Town (1975-77) e aclamada, segundo Watts (1986), como um novo passo na habitação social. Stirling produziu um radical complexo habitacional, estipulado com praças e ruas formais que refletiam os padrões da cidade Georgiana de Bath. As fachadas das habitações eram compostas por listas de cores brilhantes e janelas circulares (Fig.91), o que era extremamente caro para manter. Assim, este conjunto habitacional foi demolido em 1990 e substituído por habitações tradicionais (Alexander, 2009).

 191 Uma explicação sobre a obra Robin Hood Gardens pode ser encontrada no capítulo Arquiteto entre Guerras, em Re-definidores da Arquitetura, página 97. 192 As habitações sociais consideradas como brutalistas na Grã-Bretanha do século XXI, são vistas de forma pejorativa e servem como “ruínas arquetípicas contemporâneas” (Dobraszczyk: 2015: s/p). Muitas destas obras de betão pré-fabricado foram demolidas e outras foram reclassificadas como projetos incompletos ou com necessidade de reatualização.

163 

92. Alexandra Road, em Londres. Fotografia de Martin Charles, 1979. 93. Barbican Estate, em Londres. Fotografia de Anton Rodriguez.

164  Dois outros exemplos de construções pós-guerra são a e o Barbican Center. Construído em Londres, o conjunto habitacional Alexandra Road (1972-79) (Fig.92) foi uma tentativa de contrariar a habitação massiva em altura que se haviam erguido nos outros anos pós-guerra. Projetada por Neave Brown, a forma do bloco habitacional Alexandra Road foi influída pela sua localização perto da linha ferroviária, levando o arquiteto a estender o bloco habitacional numa linha contínua horizontal com um espaço interno longe do barulho e da poluição, alojando cerca de 1400 pessoas. Este edifício carrega um longo terraço e, devido à sua extensão, com ele carrega também o sentimento que os longos corredores provocam. As longas passagens, a brutalidade do material, a escala, e a grande densidade, produziram anonimidade e monotonia, e provou mais uma vez a desconexão entre os habitantes e a arquitetura massiva moderna/brutalista (Watts, 1986). A Alexandra Road Estate foi o primeiro edifício habitacional pós-guerra a entrar para a lista de Grau II*, a 18 de agosto de 1993 (Historical England, 2017b). Como utopia ideal de uma cidade com vida interna e como um dos melhores exemplos brutalistas do pós-guerra, o Barbican Estate (Fig.93) é descrito pela Rainha Isabel como uma das maravilhas modernas do mundo (Bryant-Mole, 2016). Num local completamento arrasado pelo ataque aéreo de Luftwaffe a 1940, reconhecido como Barbicandevido à presença pré-guerra de uma muralha romana, ergueu-se um edifício Barbican Estate (1959-83), desenhado pela firma Chamberlin, Powel & Bon em 1950. Esta obra, com três torres e outros diferentes tipos de habitação, oferecia uma nova visão de como os blocos habitacionais de alta densidade se poderiam ambientar e incorporar com escolas, espaços comerciais, restaurantes e destinos culturais. Foi um exemplo de favorecimento da condição pedestre e não da classe motora, e ainda uma distinção explícita entre os domínios públicos, privados e comunitários (Bryant-Mole, 2016). Com o projeto finalizado à data de 1959, esta megaestrutura viu a sua construção finalizada no ano de 1983. Dentro da propriedade, foram mantidos fragmentos da antiga muralha romana e ainda a igreja de St.Giles que sobreviveu à guerra (Bryant-Mole, 2016). O Barbican Estate em Londres é um exemplo do discordante sentimento da população inglesa relativamente à arquitetura moderna aplicada nos anos pós-guerra. Para Thurley (2013) significa um modelo de desentendimento entre a assertividade e a reticência representado nas diversas partes do edifício. E a arquitetura moderna transmitia isso mesmo à população. A população esperava edifícios que se encaixassem no meio, com materiais tradicionais, cor, e ornamento, e após a Segunda Guerra, tal providência era impossível. “The architects failed with

165 

94. Fotografia da Catedral Saint Paul durante o ataque Luftwaffe, em 1940.

166  the population” 193 e a guerra causou “an aesthetic divorce between the architecture and the public” 194 (Thurley, 2013: s/p). Em suma, o racionamento de materiais e a crise económica forçou um moroso processo de reconstrução das cidades. Só no final dos anos 50 é que a população viu drásticas e rápidas mudanças, nomeadamente demolições de alguns edifícios sobreviventes à guerra e reconstrução (Larkham, 2015). E foi devido à desnecessária demolição de edifícios superficialmente destruídos pela guerra que os membros da RIBA avançaram com listas de proteção em 1943, numa tentativa de proteger algumas construções pré-guerra. Este processo de listagem conta hoje com diversas obras dignas de proteção desde o século XVIII, e uma grande parte inclui edifícios pós-guerra. No entanto, após 75 anos do término da Segunda Grande Guerra, a reconstrução de Londres ainda não está completa.

Destruição e permanência da memória em Inglaterra

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra sofreu perdas históricas, mas foi também palco de algumas sobrevivências, como é caso da Catedral Saint Paul 195 (Fig.94). No entanto, muitas outras obras sofreram bombardeamentos e a abordagem pós-guerra para cada uma delas foi variável: algumas foram destruídas, outras reconstruídas, outras permaneceram como ruínas e outras foram vendidas para fins comerciais. O destino dos edifícios religiosos danificados pela guerra foi conduzido pelas decisões políticas da Igreja de Inglaterra e do Bispo de Londres, responsáveis pelas decisões de quais instituições deveriam ser mantidas ou não. E de facto, muitas igrejas que se alegavam como completamente destruídas, dispunham ainda de uma grande parte da estrutura original e a sua reconstrução poderia ter sido levada a cabo pelos arquitetos. No entanto, campanhas para deixar as ruínas religiosas como espaços de memória emergiram através da propaganda como na revista Architetural Review, entre outras opiniões sobre qual o futuro das igrejas de Inglaterra. Um exemplo de uma obra religiosa que sofreu grande danos e acabou por ser reconstruída foi a igreja All-Hallows Barking by the Tower, a igreja mais antiga da cidade de Londres, fundada em 675 d.C. Primeiramente devastada, serviu depois temporariamente como um jardim e serviços ao ar livre e em 1957 foi reconstruída. A sua cobertura foi construída em cimento e

 193 “os arquitetos falharam com a população” (tradução livre) 194 “um divórcio estético entre a arquitetura e o público.” (tradução livre) 195 A Catedral Saint Paul foi protagonista de uma célebre fotografia durante o Blitz, entre um espetáculo de fogo e bombardeios. Numa tentativa de redução a cinzas de uma zona histórica da cidade de Londres pelas forças alemãs, apesar de um grande número de escombros ao seu redor, a Catedral St. Paul escapou quase ilesa devido às brigadas civis de defesa como a St.Paul’s Fire Watch, que protegiam a estrutura do fogo.

167 

95. Ruína da igreja St Alban depois da Segunda Guerra (esquerda) e torre da igreja St Alban restaurada (direita). 96. Ruína da Christ Church depois da Segunda Guerra (esquerda) e ruína da Christ Church restaurada com jardim memorial (direita).

168  desenhada para se assemelhar à antiga cobertura de madeira que, devido à carência de materiais na altura, não pode ser reproduzida. Outro exemplo de instituição religiosa que ficou altamente danificada foi a igreja St Alban (Fig.95), em Wood Street, em Londres. O formato da sua permanência gerou diversas opiniões, desde a permanência da sua totalidade como ruína ou, tal como propôs o Ministro do Transporte de Inglaterra, manter apenas a torre numa rotunda. A última opção acabou por ser a decisão final e recuperação e a atribuição de uma nova função deu-se apenas na década de 80. A torre passou a servir os dois primeiros pisos para escritórios e um apartamento nos pisos restantes. A ideia dos espaços religiosos bombardeados como memoriais também foi uma das decisões levadas avante, e algumas ruínas religiosas conquistaram essa função, como a Christ Church (Fig.96), em New Gate, que se converteu num jardim memorial em 1989 (Larkam, 2015). Já outras enfrentaram o desaparecimento, como o caso da igreja St Mary Aldermanbury. A estrutura sobrevivente foi enviada para os EUA para a reconstrução da igreja na cidade de Fulton, Missouri, como um memorial a Winston Churchill (Larkam, 2015). Fora de Londres e localizando a cidade de Coventry, a estratégia adotada para a Catedral St Michael gerou alguma controvérsia. Esta igreja gótica do século XIV foi praticamente destruída na sua totalidade pelos bombardeamentos da Segunda Guerra, e o dano excessivo impedia a sua reconstrução (Fig.97). A decisão adotada foi a reconstrução de uma nova catedral (1956- 62) e a preservação das ruínas como um memorial do conflito e da necessidade de reconciliação e procura pela paz. A nova versão foi construída adjacente à ruína memorial (Fig.98), um espaço aberto e enquadrado pela torre, abside e paredes externas medievais, que se consagra como local de encontro e reflexão (World Monuments Fund, 2017). Desviando da permanência ou destruição das instituições religiosas, também outros edifícios de caráter histórico e simbólico sofreram danos e a sua consequente substituição ou esquecimento. O caso do ringue de boxe, The Ring (Fig.99), em Blackfriars Bridge Road, Southwark, destruído por uma bomba em 25 de outubro de 1940, foi eliminado e esquecido, mantendo apenas uma analogia ao seu nome na construção futura. Originalmente construído como uma capela georgiana a 1763 e fechado a 1881, foi tornado um palco de boxe a 1910 até ser destruído a 1940 durante o Blitz. O dano foi colossal, e assim, seguiu-se a demolição do restante. No lugar vazio onde perdurava apenas a memória do que outrora existira e vivera por quase 200 anos, ergueu-se um bloco de escritórios numa torre rígida construída na década de 60, a Orbit House (Fig. 100) desenhada por Richard Seifert. Após 30 anos, incapaz de responder aos requisitos em mudança, a torre foi demolida para dar lugar ao edifício envidraçado Palestra (2004-06) (Fig.100), de Will Alsop, que viria a cumprir a mesma função. O seu nome, Palestra, vem da palavra grega antiga que significa um espaço público para treino e exercício de luta livre, em memória do edifício que ali sobrevivia antes da guerra (Watts, 2015).

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97. Ruína da Catedral St Michael, em 1940. 98. Ruína da Catedral St Michael com nova construção adjacente.

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99. The Ring em Southwark, em 1929. 100. Edificio Orbit House (1960s) (esquerda) e o edifício Palestra (2006) (direita). 171 

101. Columbia Market, em Bethnal Green, Londres. Fotografia de York and Son. 102. Dorset Estate (esquerda) e Sivill House (direita). 172 

Outro exemplo foi o desaparecimento do edifício Columbia Market (Fig.101), fundado a 1869 por Angela Burdett-Coutts, em Bethnal Green na cidade de Londres. Era um espaço vitoriano que combinava mercado e habitação social e que remetia para um estilo neogótico dramático. Atingida pelos bombardeamentos do Blitz, o dano era reparável. No entanto, a decisão foi a demolição a 1960 deste edifício histórico e arquitetonicamente significativo, e o espaço deu lugar a uma torre moderna, a Sivill House (1963-66) (Fig.102), um edifício moderno e lúgubre para habitação, e a um conjunto habitacional, o Dorset Estate (1950-57) (Watts, 2015). Foi a demolição de edifícios históricos como o Columbia Market que levou à medida de conservacionismo adoptada nos anos após a guerra, a National Heritage List for England.

“the idea of heritage and listing buildings only really started after the war, when things were demolished so rapidly we don’t know exactly what was demolished and what was valuable. (…) We now have 10,000 conservation areas and half a million listed buildings.”196 (Larkham in Watts, 2015: s/p)

Estas medidas de proteção chegaram tarde para alguns edifícios, como foi o caso da obra Columbia Market. A listagem de edifícios de interesse arquitetónico ou histórico foi estabelecida pelo Town and Country Planning Acts de 1944 a 1947, tendo como base primária a pesquisa dos edifícios danificados pela guerra, e quais seriam dignos de salvamento da demolição, segundo critérios específicos e um sistema de classificação. Ao longo dos anos, os critérios tornaram-se mais amplos e diferentes consoante o interesse púbico – inicialmente listando apenas igrejas medievais e edifícios anteriores a 1750, hoje a lista aceita edifícios ou estruturas importantes com menos de 30 anos que estejam sob ameaça (, 2017b). Curiosamente, os edifícios históricos danificados pela guerra, que foram demolidos e dignos de presença nesta lista, hoje dão lugar a algumas construções pós-guerra que ganharam o seu lugar na National Heritage List for England. 

 196 “a ideia de património e a listagem de edifícios só começaram realmente após a guerra, quando as coisas foram demolidas tão rapidamente que não sabemos exatamente o que foi demolido e o que foi valioso. (...) Temos agora 10.000 áreas de conservação e meio milhão de edifícios listados.” (tradução livre)

173  

103. Berlim a julho de 1945 com a presença das tropas russas.

174  A Alemanha arruinada pós-guerra   “Second World War left the centers of the majority of German cities largely or all but entirely destroyed. What was to be done with them? Take the destruction as an opportunity or even as manifest destiny and build new cities for new people, or rather reconstruct what had been destroyed.” 197 (Engleberg-Dočal e Meier, 2017: 29)   Após a Segunda Guerra, a Alemanha era um espaço de destroços. Contavam-se cerca de 400 milhões de metros cúbicos198 de despojos só na área ocidental alemã (Leick, Schreiber e Stoldt, 2010). Cerca de 80% dos edifícios históricos foram atingidos e cerca de 19 cidades ficaram devastadas, como Berlim, Dresden, Munique, Kiel, Frankfurt, entre outras, levando a um país inteiro a enfrentar uma colossal reconstrução – a maior parte dos edifícios que se encontram hoje na Alemanha foram erguidos depois de 1948 (Leick et al., 2010). Verificaram-se duas fases de reconstrução: a fase de reconstrução imediata à guerra que durou até à década de 80; e a fase de construção que se iniciou após a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha. E ainda hoje, este país sustenta um processo de auto-renovação constante e debate sobre a reconstrução sucedida. A fase imediata ao período da guerra era caótica e a necessidade de recuperação era fundamental. Era requerida a limpeza dos destroços acumulados e o abrigo dos desalojados. Isto resultou num planeamento urbano urgente e volvido numa ânsia pela modernização, o que não foi muito bem-sucedido devido à demanda imediata. No entanto, o debate dividiu-se entre a disputa entre uma reconstrução radical e a reprodução do formato antigo existente – uns acreditavam que a reconstrução fac-símile era ignorar o acontecimento bélico, enquanto outros eram fiéis às essências históricas e até ideias como abandonar as ruínas e construir nas proximidades foram consideradas (Leick, et al., 2010). Em suma, em toda a Alemanha, houve um grande número de propostas, tanto radicais e utópicas, como pragmáticas e de fiel reprodução. A expressão fac-símile liderou em algumas

 197 “A Segunda Guerra Mundial deixou os centros da maioria das cidades em grande parte ou totalmente inteiramente destruídas. O que fazer com elas? Aceitar a destruição como uma oportunidade ou mesmo como um destino manifesto e construir novas cidades para novas pessoas, ou antes reconstruir o que foi destruído?” (tradução livre) 198 Com a imensidão de escombros na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, foram criadas colinas artificiais nas cidades Alemãs, feitas com os restos das cidades e da arquitetura destruída. Em Leipzig foi criado o Fockeberg; em Frankfurt a colina de nome italiano Monte Scherbelino; em Estugarda a Grüner Heiner; e em Berlim, a Teufelsber, ou Montanha do Diabo, que conta com 115 metros de altura, o segundo ponto mais alto da capital alemã. Durante a Guerra Fria, a Montanha do Diabo soterrou uma escola militar nazi impossível de implodir, e deu lugar aos dispositivos de escuta do exército dos EUA, para transmissões e espionagem. Hoje, é um local turístico e de práticas desportivas radicais (Leick et al., 2010).

175 

104. Área de Berlim da Alemanha Ocidental, em 1965.

105. Área de Berlim da Alemanha Oriental, em 1970.

176  cidades, como Freiburg, Freudenstadt, Münster e Dresden, apesar da arquitetura modernista ter sido dominante na maioria das cidades pós-guerra da Alemanha (Leick et al., 2010), como é o caso de Munique, Bonn, Frankfurt e Kiel, na Alemanha Ocidental, que aproveitaram os bombardeamentos para se modernizarem (Barakat e Narang-Suri, 2009). Segundo Barakat e Narang-Suri (2009) e Sullivan (2017), nesta Alemanha pós-guerra dividida, é na zona Ocidental que se verifica uma melhor reconstrução em comparação com a Alemanha Comunista Oriental.

Depois de quase totalmente destruída devido ao seu papel principal durante a guerra, em 1945 reuniram-se os líderes dos EUA, da União Soviética e da Grã-Bretanha para planear e dividir uma Alemanha pós-guerra. Esta três potências, juntamente com a França, dividiram a Alemanha em quatro zonas de ocupação, bem como a capital Nazi – a cidade de Berlim que se encontrava na Alemanha Oriental, lançando o país para um novo conflito, a Guerra Fria. Os EUA e a USRR, reunidos durante a Segunda Guerra, separam-se numa luta estratégica e indireta de ordem política, tecnológica, social, económica e ideológica. As duas superpotências tinham conceitos díspares de como reconstruir. Os EUA pretendiam uma linha democrática e capitalista enquanto a USRR queria enveredar por um caminho marxista. De forma a evitar a expansão das ideologias políticas adversárias em simultâneo com a manifestação do poder singular, as duas forças tomaram medidas nesse sentido – as forças soviéticas ergueram o Muro de Berlim a 1961, e os americanos criaram o plano Marshal ou o Programa de Recuperação Europeia (1948-1951), um programa de ajuda à Europa depois da guerra, de forma a reconstruir as economias devastadas das cidades destruídas. Com um segundo sentido, tinha o objetivo de evitar a expansão comunista na Europa Oriental uma vez que as democracias ocidentais acreditavam que a devastação era “solo fértil” para a extensão soviética. Como resultado, a reconstrução da Alemanha Ocidental (Fig.104) foi mais bem- sucedida que na Alemanha Oriental (Fig. 105) (Sullivan, 2017). No entanto, ambas não escaparam ao adiamento de muitos projetos de reconstrução, por vezes durante décadas, devido à carência financeira, apesar de isso ser mais evidente nas cidades da República Democrática Alemã (Engleberg-Dočal e Meier, 2017). Num formato mais acelerado, a Alemanha Ocidental, após 1945, devido à restruturação económica auxiliada pelo Plano Marshall, desenvolveu-se a uma velocidade considerável dada a necessidade e devastação. Construíram-se novas estradas, centros hospitalares, escolas e complexos habitacionais, e na década de 60, anualmente erguiam-se em média 700 mil habitações, e em 1973, a média rondava as 850 mil, o que resultou em cerca de 5,3 milhões de habitações construídas nos primeiros 15 anos de guerra. A reconstrução das cidades ocidentais, liderada pelos EUA, focou-se na reconstrução tanto física como económica, e a criação de uma Alemanha Ocidental capitalista e próspera, iria ajudar na “desnazificação”, e assim iniciar uma nova Alemanha, iniciada de novo – a chamada hora zero, ou stunde null (Pugh, 2014).

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106. Fritz Heckert, em Chemnitz, na Alemanha Oriental. (1974-) 107. Neckarhhochhaeuser em Mannheim, na Alemanha Ocidental. (1960-1982)

178  No entanto, a área Ocidental foi profundamente influenciada pela experiência nazista. Tanto Diefendorf (1993) como Barakat e Narang-Suri (2009) afirmam que houveram fortes coincidências entre as ideias do período Nazi e o período pós-guerra. O neoclassicismo e os edifícios monumentais eram abraçados pelo regime, mas também o planeamento moderno era valorizado e sustentado. O governo apoiava o planeamento e dava o apoio legal e financeiro, e assim, ainda durante o período de pré-guerra, durante o Terceiro Reich, foram desenvolvidas atividades como programas de renovação urbana, criação de bairros residenciais e novas cidades industriais, planos urbanos regionais, e também a remodelação de 23 cidades199, o que viria a ajudar a reconstrução no pós-guerra (Barakat e Narang-Suri, 2009). Estas ideias incubadas durante o período nazi, refletiram-se no período após a guerra através de arquitetos como Konstanty Gutschow, sediado em Hamburgo e conhecido por ligações nazis, que acreditava numa futura paisagem urbana estruturada e dispersa, algo que era visionado pelos planeadores nazis uma vez que assim as cidades se tornariam menos susceptíveis a danos por bombardeamento, ao invés das cidades antigas mais agrupadas. Apesar de várias tentativas de evitar qualquer tipo de eleição destes arquitetos com ligações ao governo anterior para as construções futuras, muitos conseguiram cargos em vários lugares da Alemanha e trabalharam na imagem da Alemanha pós-guerra (Leick, et al., 2010). Já na Alemanha Oriental, os sistemas de urbanização depois de 1945 foram amplamente moldados pelo sistema soviético, com uma enfatização na centralização, no desenvolvimento económico e com foco nas questões sectoriais, mais do que no planeamento físico, especialmente nos anos imediatos à guerra. O planeamento urbano era visto apenas como uma ferramenta técnica de auxílio aos objetivos dos planos económicos e como um método de garantir uma distribuição racional dos recursos e das atividades económicas de formar a promover um desenvolvimento igualitário. Em comparação com rápida urbanização na Alemanha Ocidental, a Alemanha Comunista produziu apenas cerca de 100 mil habitações por ano a partir do ano de 1974 e os edifícios produzidos em massa construídos foram pouco impressionantes e de qualidade inferior aos do Ocidente (Barakat e Narang-Suri, 2009). Como já referido anteriormente, a reconstrução imediata pós-guerra não foi bem-sucedida devido à sua própria urgência. Em 1965, o psicólogo social Alexander Mitscherlich, contestou as “cidades inóspitas” da Alemanha (Leick, et al., 2010) – para além dos blocos pré-fabricados produzidos em série na Alemanha Oriental (Fig.106), as áreas recém-construídas da Alemanha Ocidental eram idênticas (Fig.107), sem qualquer distinção de caráter ou identidade própria, e eram preenchidas por blocos de apartamentos de dimensão descomedida e por um censurável

 199 O programa de reformulação de cidades durante o Regime Nazi, Neugestaltung, foi um programa a nível nacional que abrangia 23 cidades grandes. Para a implementação deste programa era necessária a aquisição de grandes áreas de terra e de uma demolição de grande escala e limpeza das áreas. Este programa, após a Segunda Guerra, foi um trunfo de enorme valor que facilitou a reconstrução pós-guerra (Barakat e Narang-Suri, 2009),

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108. Town Hall antes da Segunda Guerra, em Estugarda. 109.Town Hall depois da Segunda Guerra, em Estugarda.

180  desenvolvimento, e isto foi-se proliferando a partir de 1950. Os urbanistas haviam adoptado os princípios estabelecidos pela Carta de Atenas e seguido a divisão sectária urbana em prol de cidades funcionais – habitação, trabalho, lazer e circulação. No entanto, esta doutrina não traduziu uma melhoria da qualidade de vida e motivou sentimentos de isolamento e melancolia (Leick, et al., 2010). Apesar de, na generalidade, a reconstrução pós-guerra das cidades alemãs ser associada ao fracasso, nem tudo foi um insucesso – muitos monumentos históricos danificados foram restaurados e reconstruídos.

Destruição e permanência da memória na Alemanha

Os bombardeamentos da Alemanha foram descomunais e a destruição foi imensa. As cidades e as suas respetivas ruas e edifícios tornaram-se destroços, e assim, a antiga imagem das cidades tornou-se nada mais do que uma “memória.” A cidade gótica de Frankfurt viu uma grande parte do seu centro histórico destruído e a cidade barroca de Dresden sofreu uma enorme devastação – 85% da cidade foi destruída e 90% do centro histórico desapareceu. No caso de Berlim, uma das cidades que sofreu uma intensa luta, viu 80% do seu centro histórico reduzido a escombros (Mourby, 2015). No entanto, foi a cidade de Jülich a mais destruída de todas as cidades alemãs em número de edifícios. Considerado como um dos principais obstáculos para os Aliados por questões estratégicas de ocupação, a 1944, a cidade foi bombardeada e 97% do seu conteúdo foi destruído, e os restantes 3% acabaram por se desfazer em lutas decorridas no ano de 1945. Esta foi uma das cidades que levaram os urbanistas e arquitetos a considerar o abandono do local e a permanência das ruínas como memorial, e assim construir uma nova cidade nas proximidades. Mas tal não foi avante – a reconstrução da cidade iniciou-se em 1949 com base num planeamento elaborado na década de 1930, modificando a imagem renascentista original. Hoje, a cidade apresenta-se sem qualquer dano relativo à guerra, com exceção de algumas crateras deliberadamente mantidas em alguns locais da cidade e nas zonas verdes periféricas (Mourby, 2015). Muitas das cidades bombardeadas presenciaram, obviamente, alguns dos seus edifícios históricos a desmoronarem pelos atos cruéis cometidos para com a arquitetura da cidade e das pessoas. Apesar de muitas recuperações de edifícios históricos no pós-guerra alemão, também houve uma destruição massiva de alguns – cerca de 30% de arquitetura histórica foi extinta e deu lugar a novas edificações (Leick, et al., 2010). O caso do edifício municipal da cidade de Estugarda, ou Stuttgart Town Hall, uma obra de estilo gótico flamengo (Fig.108), foi completamente destruída no ano de conflito bélico de 1944 e substituído. Algumas tentativas de reprodução da fachada principal surgiram em debate, mas a 1952, o Conselho da Cidade decidiu por um novo edifício de caráter moderno que representasse

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110. Ruína do Zerbst Castle, em Alta-Saxónia. 111. Ruína da Igreja de St. Alban com a escultura The Grieving Parents, em Colónia.

182  a cidade e a nova democracia (Fig.109). Em 1956, ergueu-se uma construção de pedra branca assimétrica, com grandes vãos quadrados, com uma torre crua em substituição da antiga, com algumas das suas funções como o relógio solar, um Glockenspiel 200 e um alpendre acima da entrada principal. Este novo edifício de fachada regular em memória do antigo era, segundo Diefendorf (2013), uma expressão daquele tempo e do desejo de esconder o choque passado da era nazi e da guerra. Enquanto algumas ruínas foram apagadas para dar lugar a novos edifícios, outras resistiram no local, não dando azo a desmoronamentos e reposições. O Zerbst Castle (Fig.110), projetado no século XVII, permanece na Alta-Saxónia, na Alemanha, e foi um dos mais importantes edifícios barrocos no centro da Alemanha. A 1945, este palácio não escapou aos bombardeamentos, e foi queimado quase na sua totalidade. A sua reconstrução foi debatida, mas recusada devido a razões políticas. Hoje, a sua reconstrução é ainda um objetivo, mas por enquanto, as ruínas permanecem isoladas em memória da história ali vivida. Como ruína memorial, também no centro cidade de Colónia permanece a memória da Igreja de St. Alban românica (Fig.111), que remonta para o ano de 1172. A sua ruína opera hoje como um memorial para os que perderam a sua vida na guerra. No seu interior existe uma cópia da escultura instalada em 1954, The Grieving Parents, ou Os Pais Entristecidos, uma obra de Käthe Kollwitz. A Igreja St. Nicholas, em Hamburgo, é um outro caso em que as ruínas permanecem e agem em memória do passado. As origens desta igreja datam o ano de 1195, mas um incêndio em 1842 destruiu a estrutura, dando origem a uma nova igreja de estilo neogótico completada em 1874, tornando a sua torre, na altura, a mais alta do mundo, com 147 metros. Mas após 1943, toda a igreja sentiu de novo a destruição, e só a sua torre permaneceu. As ruínas da nave foram demolidas e a reconstrução da igreja não se sucedeu. Atualmente, a torre de St. Nicholas é dedicada às vítimas da guerra (Krämer, 2015). A destruição de imensos edifícios simbólicos e importantes levantou inúmeras questões e dirigiu vários debates em torno da sua permanência ou demolição como foi exposto nos casos anteriores. Mas no caso da reconstrução fac-símile, a contenda debatia-se entre desconsiderar o passado recente marcado pelo conflito e a perseverança dos traços históricos. Tal como afirmava Lebbeus Woods (1993: 10), “it is natural to want to replace something important lost to the destruction of war with itself” 201 e este foi um debate em tanto, visto que muita da arquitetura histórica havia sido destruída. Um exemplo dessa retórica pós-guerra foi a discussão em 1947 sobre a reconstrução do local de nascimento do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, em Frankfurt. A casa do século XVIII, que adquiriu a função de museu desde o século XIX, foi  200 A palavra alemã Glockenspiel significa jogo de sinos em português. Refere-se a um instrumentos musical idiofone de percussão do género do xilofone. 201 “é natural querer repor algo importante perdido na destruição da guerra com a reprodução do mesmo” (tradução livre) 183 

112. Casa e museu Goethe reconstruída sob o método fac-símile. Fotografia de Thomas Robbin.

184  bombardeada durante a guerra, resultando no seu colapso meses mais tarde. Vozes como Ernst Butler 202 e outras personalidades intelectuais alemãs apelavam à reconstrução do museu tal como Hermann Hesse, prémio Nobel da Literatura em 1946. Já outros artistas e arquitetos, seguidores dos princípios modernistas, opuseram-se à reconstrução, tal como afirma o historiador de arte Richard Hamann, que “facsimiles of precious relics can never replace an original” 203 (in Leick et al., 2010: s/p) ou o crítico Walter Dirks que argumenta:

“If the land of thinkers and poets – and, with it, the rest of Europe – hadn’t turned away from Goethe’s spirit of moderation and humanity, it wouldn’t have embarked upon this war or provoked the destruction of this house. (…) This demise is correct, which is why it should be accepted.” 204 (in Leick, et al., 2010: s/p)

Independentemente das opiniões divergentes, a reconstrução da casa de Goethe foi concluída no ano de 1951 (Fig.112). E Lebbeus Woods (1993: 10) concordava: “important civic and cultural monuments no doubt should be restored to their undamaged condition, as tokens of past coherence (…) never as reaffirmations of a past social order that ended in war.” 205 E a reconstrução recente do símbolo de Dresden traduz isto mesmo. Depois da queda do Muro de Berlim e da reunificação da Alemanha, projetos de reconstrução “em espera” foram iniciados, principalmente nas cidades da Alemanha Socialista. Dresden, com pouco do seu centro histórico reconstruído, e com edifícios de caráter comunista a invadir os seus subúrbios (Fuchs, 2012), reclamou a oportunidade de reconstruir o seu mais emblemático monumento completamente destruído pela guerra, a Catedral Frauenkirche (Fig.113). A reconstrução desta ruína, considerada monumento de guerra em 1966, era um desejo por parte dos habitantes da cidade e por isso, uma prioridade imediata. Apesar da controvérsia da reprodução fac-símile desconsiderada por muitos, a reconstrução do monumento iniciou-se em 1994 e terminou no ano de 2005 (Fig.114). Esta reprodução magnifica foi celebrada na sua finalização como “a symbol of reconciliation and thus also of German reunification” 206 (Engleberg-Dočal e Meier, 2017: 41).  202 Ernst Butler era um estudioso literário e também curador do museu de Goethe. Em 1947, dois anos antes do 200º aniversário de Goethe, Ernst pressionou a elite intelectual para a reconstrução do museu (Leick et al., 2010). 203 “fac-símiles de relíquias preciosas nunca podem substituir um original” (tradução livre) 204 “Se a terra dos pensadores e dos poetas – e com ela, o resto da Europa – não se afastasse da humanidade e do espírito de temperança, não teria embarcado nesta guerra nem provocado a destruição desta casa. (...) Esta morte está correta, e é por isso que deve ser aceite.” (tradução livre) 205 “não há dúvida que importantes monumentos cívicos e culturais devem ser restaurados para a sua condição inicial incólume, como símbolo da consistência do passado (...) nunca como reafirmação de uma ordem social passada que terminou em guerra.” (tradução livre) 206 “um símbolo de reconciliação e também da reunificação germânica” (tradução livre) 185 

113. Catedral Frauenkirche completamente destruída após a Segunda Guerra Mundial, acompanhada pela estátua memorial de Martin Luther. Fotografia de Giso Löwe, 1958. 114. Catedral Frauenkirche reerguida em 2005.

186  Este debate em torno preservação histórica também abordou o destino dos edifícios erguidos ou utilizados pelos Nazis e a discussão sobre a criação de monumentos ou museus para a memoração dos acontecimentos relativos ao período de guerra (Rosenfeld e Jaskot, 2008). Numa propriedade destinada à construção de uma igreja, as forças fascistas ergueram, entre 1941 e 1943, um bunker de betão armado com quatro andares, para a proteção de 2.300 pessoas dos bombardeamentos das forças Aliadas. O bunker de Düsserldorf, com 35 metros de comprimentos, 20 de largura e 9 de altura, assumiu o formato de uma igreja por motivos de camuflagem. Após a queda do governo nazista, em 1947, Carl Klinkhammer, um pastor resistente às forças fascistas, lutou pela transformação do objeto militar na ideia original adoptada para o local, uma igreja como objeto de paz, o Bunkerkirche Sankt Sakrament (Fig.115). Juntamente com o arquiteto Willy Weyres, três dos quatro tectos do bunker foram destruídos e cinco vãos foram recortados nas paredes exteriores, e esta estrutura de ordem bélica tornou-se numa instituição religiosa simbólica. Desde 2007, existem campanhas pela paz, concertos, peças de teatros, leituras, exposições e passeios na igreja-bunker, uma iniciativa de Um Lugar de Paz em Bunkerkirche, ou Friedensort Bunkerkirche (Klinkhammer, 2016). Outro modelo de aproveitamento dos bunkers erguidos na Alemanha, é a obra Energiebunker, em Hamburgo (Fig.116), um reaproveitamento e restauro de um bunker construído na Segunda Guerra Mundial. Construído com 42 metros de altura, este megamonumento de guerra não podia ser destruído sem por em perigo os arredores, e desta forma, só o seu interior foi demolido, permanecendo a memória em formato de ruína. Em 2006, iniciou-se um plano para a sua conversão numa central de energias renováveis para fornecimento de calor e eletricidade aos bairros adjacentes, e a IBA207 Hamburg ficou encarregue da seu restauro e ampliação.

Esta permanência da memória de alguns edifícios históricos erguidos pelo regime, a sua resiliência assume um novo formato de contestação em prol do bem futuro e da paz. Já a restante e imensa memória física narrada pelas várias cidades da Alemanha no período pré- guerra, foi devastada pela Segunda Guerra Mundial. No entanto, o cenário pós-guerra trouxe conquistas na genialidade da permanência das ruínas que contam a história que a arquitetura viveu, assumindo o seu fim e a sua presença na história, e na arte da reconstrução dos edifícios históricos - o ponto mais alto do debate em torno da reconstrução tomado por diversos intelectuais e urbanistas: se era admissível reconstruir monumentos destruídos através da

 207 A IBA é uma exposição internacional de edifícios que tem vindo a atuar em diversos anos no desenvolvimento da Alemanha. Além de exposições, estes eventos agem como instrumentos visionários de desenvolvimento urbano. A IBA Hamburg realizou-se entre 2006 e 2013.

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115. Bunkerkirche Sankt Sakrament, em Düsserldorf. Fotografia de Hiepler, Brunier, 1949.

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116. Energiebunker em Hamburgo. Fotografia de IBA Hamburg, 2013.

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117. Construção do Muro de Berlim em 1961.

190  recriação do formato original, como importante elemento da identidade local (Engleberg-Dočal e Meier, 2017), como foi o caso do museu Goethe e da reconstrução da Catedral de Dresden. A questão da reconstrução na Alemanha desenvolveu assim uma dimensão moral pronunciada que continua a ser sentida ainda na atualidade.

A Cidade de Berlim

“Todos usaram Berlim como palco principal e deixaram vestígios em forma de arquitetura.” (Siegert e Zareh, 2008: 34)

A cidade de Berlim, hoje unificada, foi no passado um cenário histórico de antagonismos e de uma divisão ideológica e material. Foi a maior cidade industrial do continente, com 2,7 milhões de habitantes no final do século XIX. Após a Primeira Guerra Mundial, a capital considerava-se cultural e entusiástica e dava lugar à República de Weimar, para depois se tornar a Berlim do Terceiro Reich e, após a Segunda Guerra Mundial, foi um palco de destroços e angústia e vítima de uma nova monopolização e disputa pelas forças Aliadas. Esta apropriação da cidade de Berlim sob diferentes influências políticas deu “várias caras a Berlim” (Siegert e Zareh, 2008: 34), impedindo-a de uma identidade exata. A sua última prestação como cenário de divisão e confrontação aconteceu a 8 de maio de 1945, quando a capital foi tomada e seccionada em quatro áreas pelas forças Aliadas. Tal como a Alemanha havia sido dividida, também Berlim foi submetida ao mesmo procedimento. Localizada na Alemanha Oriental, a zona dominada pela URSS, originaram-se atritos entres as potências estabelecidas e, as forças soviéticas numa tentativa de banir as forças inimigas (EUA, França e Inglaterra), bloquearam as ligações entres as secções de Berlim – cortaram a eletricidade e impediram abastecimento de alimentos – deixando os 2,5 milhões habitantes da zona Oeste de Berlim isolados. Como medida de solução, deu-se o Berlin Airlift: voos aliados aterram em Berlim para descarregar toneladas de mantimentos. Esta ação fez com que os soviéticos terminassem o bloqueio, e como ação mais drástica, fecharam as passagens entre Berlim Oriental e Berlim Ocidental, a 13 de agosto de 1961, e iniciam a construção do Muro de Berlim (Fig.117). Conhecido mais tarde como a Faixa da Morte, o Muro atingiu os 155 km de comprimento e 3,60 de altura, até 9 de novembro de 1989, a noite em que o muro desabou e a Alemanha se reuniu (Barreto, 2008). A queda do Muro de Berlim foi a primeira das demolições de muitas que decorreram nos anos posteriores à reunificação da Alemanha na procura de uma nova imagem. Em simultâneo, foi lançada a preocupação pelo futuro da cidade e concursos de projetos coerentes para as áreas

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118. Berlin the green archipelague, 1976 192  “desconstruídas” de Berlim, de forma a criar uma cidade dividida por realidades opostas, numa cidade unida e identitária (Siegert e Zareh, 2008). Esta busca de identidade desorientou-se durante o período de 1945 a 1989, e Berlim teve um desenvolvimento demorado em relação às outras cidades alemãs. A capital arruinada após a guerra e “partida” pelo muro da uma outra, viu o seu tecido urbano danificado e ruínas abandonadas serem ignoradas pelos urbanistas, e viu um urbanismo pós-guerra como outra ferramenta de destruição, tanto na zona Ocidental como na Oriental. Berlim estava “suspensa no seu próprio tempo existencial (...) com um tecido urbano ferido de morte e que, durante décadas, não pareceu interessar a quase ninguém” (Vázquez, 2008: 46). No entanto, apesar de muitos espaços ignorados e esquecidos, durante este período arquiteturas desenvolveram-se segundo as ideologias inerentes a cada lado, atribuindo diferentes identidades a uma só cidade. Berlim, “uma montra de arquitetura internacional” (Baía, 2008: 150), viu uma variedade de arquitetos, tanto nacionais como internacionais, a erguer a sua assinatura, tanto entre 1945 e 1990, como após esta data. Assim, traduz um palco de arquiteturas de diferentes estilos e atitudes perante cada época.

A reconstrução pós-guerra de Berlim antes de 1989. 

“O mais fascinante em Berlim, é que nas décadas de 60 e 70, era o protótipo da cidade do futuro. Penso que é uma pena Berlim não ter aceite o papel que podia ter desempenhado (...) Berlim tinha esta qualidade. Não foi bem aproveitada.”

(Koolhaas 1999 in Siegert, 2008: 147) 

Numa entrevista a Rem Koolhaas realizada por Hubertus Siegert, em Roterdão a 1999, o arquiteto afirma que a cidade de Berlim “podia ter sido aproveitada em força” (2008: 147) como um modelo futuro urbano. Koolhas, com Ungers, trabalhou num projeto que suportava essas qualidades, o Berlin the green archipelague (Fig.118), proposto por volta de 1976, e que consistia em usar a cidade com alternâncias entre espaços densos e vazios sistemáticos, como se todas as zonas das cidades fossem interpretadas como “ilhas num oceano de vazios” (Koolhaas in Siegert, 2008: 147). Esta proposta futurista refletia, em parte, o pensamento que imperava no limiar do período pós- guerra – uma ânsia pela rejeição das memórias passadas e pela experimentação de novos modelos de arquitetura e urbanismo, aliada ao desejo pela criação de uma nova identidade. Assim, numa cidade dividida, as ideologias políticas que imperavam em ambos os lados de Berlim, visavam a implementação das suas visões e identidade, e a arquitetura foi o meio de corporização estes valores.

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119. Stalinallee, em Berlim Oriental. Fotografia de Hans-Gunter, 1955. 194  Dominada pela URSS, em Berlim Oriental foi seguida uma arquitetura que refletia a visão soviética criada já nos anos 30, consistente na sua rejeição pela tradição modernista e adepta de um neoclassicismo stalinista. Como resistência e oposição às práticas adotadas no lado Este, a Berlim Ocidental reagiu com uma arquitetura modernista e adepta da transparência que, segundo Stern (2008), para os ocidentais, correspondia a processos políticos abertos e participativos, o que contrastava com o formato classicista, uma metáfora de processos políticos associados ao poder absolutista.

“Architecture and urban planning were particularly effective weapons in the Cold War, first because of the pressing need to make war-torn German cities once again habitable. (...) Second, the practical necessity for buildings was enhanced by the fact that the literal reconstruction of Berlin and of Germany was seen as symbolic of the reformation and renewal of the ‘damaged’ psyche of the German people.” 208 (Pugh, 2014: 31)

Este antagonismo arquitetónico reflete-se ainda antes da construção do Muro. O primeiro grande projeto de reconstrução foi em Berlim Leste, o Stalinallee, hoje denominado Karl-Marx-Alleee, que foi construído segundo a rejeição pelo modernismo e pela tradição da Bauhaus e da Neues Bauen (Stern, 2008). O objetivo passava então por criar uma versão especificamente alemã do padrão soviético do Realismo Socialista, criando um património histórico comum. Liderada por Hermann Henselmann, esta rua socialista projetou um conjunto de fachadas de edifícios alinhados caracterizados pela sua monumentalidade e pelo impacto na visão urbana – Palácios para o Proletariado, conforme a citação de Lenine (Baía, 2008). Esta abordagem refletiu os Dezasseis Princípios para a Restruturação da Cidade, lançados em 1950 pela República Democrática Alemã (RDA), como proposta de planeamento urbano (Eisenchmidt e Mekinda, 2004). Esta abordagem, que adoptava os princípios urbanos do CIAM, trocava o princípio urbano da circulação pelo princípio da cultura, insistindo na distinção do espírito urbano e rejeitando a desagregação do centro da cidade, favorecendo uma estrutura unitária integrante de todas as funções urbanas e respeitando as dimensões históricas da cidade (Sadler, 1999). Também a favor de praças, edifícios notáveis e formas arquitectónicas de grande escala, de forma a gerar uma estrita ligação entra a arquitetura e o urbanismo, ergueu-se a avenida Stalinallee (Fig.119). Iniciada a sua construção em 1952, a avenida com 94 metros de largura atravessou a cidade e cortou e restruturou muitas ruas existentes, agindo propositadamente contra o contexto urbano  208 “Arquitetura e o planeamento urbano foram especialmente armas efetivas na Guerra Fria, primeiro devido à necessidade urgente de fazer as cidades alemãs devastadas novamente habitáveis. (...) Segundo, a necessidade prática para as construções era melhorada pelo facto de que a reconstrução literal da Berlim e da Alemanha era vista como simbólica na reformação e renovação da psique ‘danificada’ da população alemã.” (tradução livre)

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120. Vista de Karl-Marx-Allee, em Berlim Oriental, depois de 1960.

196  pré-existente e invocando um novo começo e uma nova identidade. Este conjunto de edifícios monumentais de classicismo socialista albergava funções de habitação para os trabalhadores entre outras direcionadas ao comércio e ao lazer, e serviu como paradigma arquitetónico à futura reconstrução da cidade de Berlim. Uma nova parte da rua foi construída na década de 60 e foi quando renomeada de Karl-Marx- Allee (Fig.120). Esta nova arquitetura compreendia uma abordagem mais funcionalista. Em 1954, Nikita Khrushchov, alterou nos Dezasseis Princípios devido à procura de sistemas de construção económicos. Assim, o novo urbanismo da Karl-Marx-Allee, reuniam blocos de alojamento mais simples e independentes junto a uma avenida com 102 metros de largura, descontinuando o alinhamento de Stalinallee e criando um campo de contraste na área (Eisenchmidt e Mekinda, 2004). Esta transformação confirma a variedade de fases em Berlim Leste. Segundo Baía (2008), existiram as seguintes quatro fases:

1ª fase: de 1945 a 1950, com uma recriação do modernismo da década de 20, com arquitetos como Hans Scharoun a trabalhar para o futuro depois da guerra de Berlim ainda unificado. 2º fase: De 1950 a 1954, quando se instalam os Dezasseis Princípios para a Restruturação da Cidade, e como reflexo a obra de Stalinallee e a arquitetura comunista. 3º fase: Anos 60 e 70, fase de reformulação desses princípios e de industrialização e da pré- fabricação de edifícios, o que resultou na construção de grande percentagem de áreas residenciais, como é caso da Karl-Marx-Allee. 4º fase: Até 1989, quando a arquitetura começou a centrar-se nas estruturas edificadas e na arquitetura emblemática e decorativa nalguns locais do centro da cidade.

Esta terceira fase, dominada pelos anos 60 e 70, viveu dois períodos. O inicio da década de 60, assinalado pelo inicio de uma das maiores construções pós-guerra, o Muro de Berlim, ficou também marcado por uma ascensão da arquitetura experimental e ressurgimento económico. Isto levou a construção de edifícios impressionantes e de grande dimensão, uma forma de ostentação de poder e superioridade para com o Ocidente da cidade, agora dividido. No caso das obras de âmbito político, o edifício Staatsratsgebäuder der DDR (Edifício da Câmara Municipal da RDA) (Fig.121), do arquiteto Roland Korn, é um exemplo de uma arquitetura de manifestação de poder. Construído entre 1962 e 1964, esta obra incluí uma notável parte central – a reconstrução do antigo Portal IV do Palácio de Berlim, cuja varanda era o local onde Karl Liebknecht aclamou por uma república socialista livre da Alemanha no ano de 1918. Desde 2006, este edifício suporta a função de Escola Europeia de Gestão e Tecnologia (Boyn, 2011). Outro exemplo, e dos mais relevantes exemplos de construções é o Palácio da República (Fig.122), de Heiz Graffunder e sua equipa, foi construído de 1973 a 1976 como uma criação

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121. Staatsratsgebäuder der DDR, em Berlim Oriental. Fotografia de Alex Mauruszat. 198 

122. Palácio da República, em Berlim Oriental. Fotografia de Istavan, 1977.

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123. Café Moskau, em Berlim Oriental. 124. Haus des Lehrers, na Alexanderplatz, em Berlim Oriental. Fotografia de Gisele Dutshmann, 1965.

200  monumental e significativa, um símbolo de sucesso e para a persuasão pública. No entanto, esta obra nasceu do ato cruel da RDA, ao demolir o icónico Castelo de Berlim Stadtschloss construído em 1443. Construído com uma grande estrutura de aço, oito torres de betão armados e um revestimento de vidro espelhado, o Palácio da República albergava funções políticas e também culturais e lazer – continha uma grande sala de espetáculos, de exposições, e cafés e restaurantes. Desde 2009 destruído, hoje dá lugar à construção da prevista réplica do antigo castelo (Carvalho e Gänshirt, 2008). O cinema Kino Internacional (1961-63) e o Hotel Berolina (1961-63), desenhados por Josef Keiser, e a torre televisiva Berliner Fernsehturm (1965-69), e a Casa dos Professores ou Haus des Lehrers (1962-64), ambos de Hermann Henselmann, são obras exemplares desta arquitetura que deu corpo à ambição política (Pugh, 2014). A obra Haus des Lehrers revelou o verdadeiro interesse de Hermann Henselmann pela Neues Bauen, um interesse renunciado pelo arquiteto aquando da projeção do edifício Weberwiese em Stalinallee, e outras obras ficaram marcadas como exemplos modernistas no centro de Berlim Leste, como o Café Moskau (1961- 64) (Fig.123) de Josef Kaiser, Horst Bauer e equipa (Pugh, 2014). O edifício Haus des Lehrers (Fig.124), construído entre 1961 e 1964 na praça Alexanderplatz, foi o primeiro arranha-céus da praça Alexanderplatz. Com 54 metros de altura e 125 de comprimento, foi-lhe adicionado entre o terceiro e o quarto andar um painel de dois metros de altura com 800.000 mosaicos, uma obra do artista Walter Womacka, que representava as alegorias da vida socialista. Esta obra arquitectónica é um exemplo do estilo de arquitetura moderna, com estruturas de aço e paredes-janela, o que influenciou outras obras futuras erguidas na Alexanderplatz (Boyn, 2011). Este período de experimentação, iniciado na década de 60, teve uma existência resumida. Durante o resto da década, instaurou-se a construção rápida e económica de forma a combater a falta de habitação nacional e a solucionar o problema para as projeções feitas sobre o futuro de Berlim. Iniciou-se então o programa de construção Wohnungsbauprogram, que objetivava a construção de milhões de habitações, e para isso, era necessária uma redução no preço das construções e uma maior eficácia em tempo de realização. Esta necessidade abriu lugar aos projetos massivos de habitação, os chamados na Alemanha de Plattenbauten. Em prol da periferia e gradualmente detentores de uma grande escala, o maior de todos os complexos habitacionais sociais, localizou-se em Berlim Leste. Iniciado no final da década de 70, o complexo Marzahn (Fig.125), era composto por milhares de apartamentos (Pugh, 2014; Baía, 2008). Localizada numa área que, durante o período de 1936 a 1943, serviu como campo de concentração romano sob o domínio Nazi, uma zona periférica na fronteira a nordeste de Berlim, ergueu-se a urbanização de Marzahn, uma cidade satélite onde foi aplicado o sistema WBS 70 para a construção de habitações para cerca de 142 mil habitantes, o maior

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125. Urbanização Marzahn, em Berlim Oriental. 202  desenvolvimento construtivo da RDA. Assim fundou-se uma localidade de contraste com as áreas rurais envolventes na periferia da cidade de Berlim, desenvolvida simultaneamente com um centro industrial, que no ano de 1987, viria a oferecem 21 mil empregos. No entanto, as conexões ao centro de Berlim foram incrementadas, e em cerca de 30 minutos a deslocação era realizada. Esta área criada com milhares de apartamentos divididos por blocos habitacionais foi um dos desenvolvimentos plattenbau entre muitos outros erguidos. Estes tipo de desenvolvimentos foram concebidos como habitação social de igualdade, e por isso, repetem-se um padrão de complexos habitacionais uniformes, de construção independente do contexto urbano. E desta forma surgiu de novo a ocorrência deste tipo de construção sem escala humana e de caráter monótono (Moriarty, 2009). Este tipo de urbanismo em massa realizado na periferia de Berlim Oriental também se pode observar na sua zona Ocidental. Ironicamente, o Muro, na sua essência, um símbolo de divisão e de supremacia política, acabou por reduzir a necessidade que cada lado (Este e Oeste) tinha de expressar uma arquitetura como corpo da manifestação ideológica, e assim, o Muro acabou por agir como uma permissão para a harmonia entre a arquitetura de Este e Oeste (Stern, 2008). No entanto, nos anos imediatos à Segunda Guerra, a relação antagónica era óbvia e é necessário expor qual a obra pós-guerra que demarcou como a arquitetura foi desenvolvida e usada na esfera política de Berlim Oeste, tal como Stalinallee materializou a ideologia de Berlim Oriental. Esse projeto foi a Interbau, na primeira Internationale Bauaustellung (IBA), ou exposição internacional de edifícios, realizada na Alemanha.

Contrariamente a Berlim Leste, o período pós-guerra da República Federal Alemã (RFA) foi caracterizado por uma recuperação económica mais rápida, devido ao Plano Marshall, e com um grande sentido de identidade nacional apoiado pela maioria dos seus habitantes. Berlim Ocidental desenvolveu-se em torno do avanço económico, da tecnologia e do mundo industrial, num apela à novidade e ao futuro, e apresentou ideias, através de exibições e campanhas de publicidade, baseadas na estética modernista dos CIAM e ilustrando conceitos como lazer, elegância e abundância individual. E a Interbau foi a concretização mais significativa dessas ideias (Pugh, 2014). A exposição Interbau (Fig.126) realizada a 6 de julho de 1957, liderada por Otto Bartning, foi baseada numa estratégia de reconstrução total e na tabula rasa. O bairro oitocentista em Hansaviertel foi quase totalmente destruído pelos bombardeios e, com a demolição das suas ruínas, o espaço deu abrigo a uma “visão modernista de torres e pavilhões envidraçados no parque” (Stern, 2008: 120), ou seja, a uma arquitetura transparente já desenvolvida na

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126. Interbau, em Hansaviertel, Berlim Ocidental. 204  Alemanha dos anos 20, e uma ação similar à exposição Weissenhof Siedlung, em Stuttgart, em 1927. Esta exposição como resistência à Stalinallee e como manifestação da cultura e política da nova Alemanha democrática a oeste, acabou por atingir custos elevados devido a esta competição contra a monumentalidade do lado oriental. as ruínas foram demolidas, as infraestruturas não foram aproveitadas e novas vias foram construídas. Na preparação para a exposição, foi lançado um concurso para a organização urbana dos edifícios, e Willy Kreuer e Gerhard Jobst foram os vencedores com a criação de um espaço de organização mais independente e informal tal como o pretendido. Não se ansiava por densos quarteirões, mas sim áreas ajardinadas e livres de grande densidade populacional. O plano sofreu algumas modificações de forma a configurar um cenário amplamente moderno a nível habitacional – inserção de torres, blocos horizontais e conjuntos de casas-pátio – e em 1955, o plano urbano passou a ser desenvolvido por Otto Bartning. Com os edifícios antes organizados segundo uma composição não ortogonal, por sugestão de Jacob Bakema, realizou- se uma reorganização espacial dos edifícios agora segundo a ortogonalidade. Assim, na última conferência assistida entre Otto Bartning e os arquitetos participantes, foi apresentada uma maquete final com uma sequência de torres, dois conjuntos de habitações unifamiliares, o fortalecimento da articulação ortogonal entre as faixas de habitação horizontais, e uma malha viária baseada na antiga malha do bairro, apesar do tecido histórico ser praticamente irreconhecível. Este plano urbano com 177 hectares de área bruta e 22 hectares de ruas pública, contém cerca de 1.300 unidades habitacionais de grande diversidade, acompanhados de áreas verdes, contrariamente ao bairro denso pré-guerra. Com a torre de Siegmann, que se pode afirmar como anunciante da entrada do complexo, a oeste dessa obra localiza-se o conjunto dos blocos horizontais de quatro andares, que acompanham um viaduto, o S.Bahn. Conta com projetos de Hans Christian Müller, Günther Gottwald, Wassili Luckhardt e Hubert Hoffmann, e Paul Schneider-Esleben. A Este deste conjunto, um largo triangular com dois blocos mais altos erguidos nos seus catetos – um projeto de Walter Gropius (Fig.127) e outro de Pierra Vago. Estes blocos com cerca de oito a dez andares, são acompanhados por outros blocos deslocados e organizados ortogonalmente ao logo do contexto, desenhados por Egon Fiermann, Werner Düttmann, Oscar Niemeyer, Alvar Aalto (Fig.128), e Fritz Jaenecke e Sten Samuelson. Estas duas últimas obras juntamente com o edifício de Vago, guardam três grupos de casas térreas – um dos projetos alberga casas de Günther Hönow, Sergius Ruegenberg e Wolff von Möllendorf e Sep Ruf; outro conjunto com projeto de Joahannes Krahn, Alois Giefer e Herman Mäckler, Gerhard Weber e Arne Jacobsen; e por último, um com o projeto de Eduard Ludwing. Em frente a este conjunto de habitações térreas, ergueu-se uma igreja dentro de um parque público, que se conecta por uma via pedestre que atravessa os dois primeiros conjuntos, até ao

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127. Edifício em destaque de Walter Gropius, na Interbau, 1956.

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128. Edifício de Alvar Aalto, na Interbau, 1957.

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129. Edifício de J.B. Bakema e J.H van den Vroek, na Interbau. Fotografia de Malte Brandenburg. 130. Edifício de Gustav Hassenpflug, na Interbau. Fotografia de Malte Brandenburg.

208  largo delimitado pelos edifícios de Aalto e da dupla Jaenecke e Samuelson. Este largo abriga a estação de metro e a biblioteca, de Werner Düttmann. Do outro lado, ergueram-se edifícios de Oscar Niemeyer, o único em Berlim do arquiteto, e de Egon Eiermann. Noutras partes desta organização urbana, encontramos a Eternit Haus, com um edifício de três andares com sete habitações contíguas, um projeto de Paul Baumgarten, quatro edifícios de três andares, projetos de Otto H. Senn, Kay Fisker, Max Taut e Franz Schuster, a Akademie der Künste, mais uma obra de Düttmann. A norte deste conjunto urbano, está o conjunto de cinco torres, com quinze a dezasseis andares, todas elas distintas. Estes são projetos dos arquitetos Luciano Baldessari, J.H van den Broek e J.B Bakema (Fig.129), Gustav Hassenpflug (Fig.130), Raymond Lopez e Eugène Beaudoin, e Hans Schwippert. Uma Unidade de Habitação de Le Corbusier foi construída para a exposição de Berlim Ocidental, mas foi construída numa área mais afastada, junto ao Estádio Olímpico e à floresta de Grünewald. Esta cidade, criada em tabula rasa, foi uma oportunidade para os vários participantes aplicaram muitas das propostas da Carta de Atenas. Adaptada às necessidades rodoviárias, a cidade organizava-se em zonas de habitação, serviços, trabalho, lazer e atividades culturais (Gutierrez, 1999). Além da habitação, foram inseridos parque públicos, uma igreja, e no seu centro, locais de comércio, restaurantes, biblioteca e cinema, jardins de infância e ainda duas estações de metro, numa composição inteligente que utiliza a variedade com a simetria – diversos tipos de edificados em diversos tipos de espaços, desde praças, a largos fechado e a ruas sem saída (Eskinazi, 2011). Esta complexa e variada organização urbana modernista, com registo de diferentes autores, ergueu-se como uma ideia de oposição contra os edifícios monumentais de Stalinallee, a primeira obra de reconstrução soviética. Mas outras obras modernas construídas dispuseram do mesmo intuito, como mensagem competitiva e de manifestação cultural e política da Alemanha Ocidental – a Sala de Congressos (1955-58) (Fig.131) de Hugh Stubbins, e a Biblioteca Memorial Americana (1951-55) (Fig.132), de Fritz Bornemann e Willy Freuer. Estas obras realizadas na primeira década depois da Segunda Guerra, de 1950 a inícios de 1960, centraram-se perto do grande parque Tiergarten no centro da cidade, como a maioria das construções realizadas durante aquele período de tempo (Pugh, 2014). No entanto, tal como a área de Hansaviertel, também o complexo Bikini-Haus (1955-57), antes denominado de Zentrum am Zoo, ergueram- se longe do centro. A obra Bikini-Haus (Fig.133), desenhado por Paul Schwebes, um importante arquiteto no desenvolvimento pós-guerra de Berlim, e Hans Schoszberger, localizava-se numa praça desenvolvida em frente ao Jardim Zoológico de Berlim. Este projeto, financiado pelo plano Marshall, foi outro meio de comunicação da arquitetura moderna e de contraste propositado dada a sua localização perto da Igreja Kaiser Wilhelm (Jaeger, 2015).

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131. Sala de Congressos, em Berlim Ocidental. Fotografia de Berthold Werner, 2011

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132. Biblioteca Memorial Americana, em Berlim Ocidental.

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133. Bikini-Haus, em Berlim Ocidental, em 1956. 134. Neue National Gallery, em Berlim Ocidental.

212  Outros edifícios icónicos, realizados durante este período e localizados já na área central são a Filarmónica de Berlim (1961-63) de Hans Scharoun, e a Neue National Gallery (1965-68) (Fig.134), de Mies van der Rohe. Esta obras culturais, ergueram-se na área conhecida por Kulturforum, ou Fórum da Cultura, criada a sul do parque público Tiergarten em Berlim Oeste, para substituir os centros culturais históricos, pertencentes a Berlim Este após construção do Muro, como é o caso do Museum Island e Postdam (Pugh, 2014). Em 1961, com a construção do Muro de Berlim, as construções deslocaram-se do centro para as periferias, uma vez que o coração da cidade deixara de ser encantador agora com um obstáculo de denegação. Tal como em Berlim Este, em Oeste os subúrbios passaram a ser alvos ideais para a criação de novas cidades satélite. Com preferência pela extensão da cidade ao invés da sua renovação ou preservação, edifícios pré-guerra, fora do centro da cidade, foram eliminados para dar lugar a grandes desenvolvimentos de torres modernistas para habitação (Pugh, 2014). A cidade satélite Gropiusstadt (Fig. 135) foi realizada pelo arquiteto Walter Gropius com a empresa de arquitetura TAC (The Architects Collaborative) e resultou da demolição de uma comunidade densa, na procura de mais luminosidade e espaços verdes. A ideia desenvolvida em 1958 abrangia mais terreno e extensão térrea, mas com a construção do Muro, impossibilitou-se essa expansão, e o planeamento cresceu em altura, seguindo um diferente rumo aos planos de Walter Gropius. Os planos foram alterados pelas diversas empresas envolvidas, e o conceito de Gropius não foi implementado. Com 14.500 apartamentos originalmente planeados, foram construídas 18 mil unidades para mais de 50.000 habitantes e os edifícios, com uma altura imposta por Gropius até 14 andares, atingiu o seu máximo de 30 em muitos do complexo urbanístico. No entanto, apesar das diversas modificações, a cidade tem traços de Gropius na quantidade de verde envolvente, na ideia semicircular e no estilo moderno aplicado (Ungethüm, 2017). Iniciado em 1962, a sua construção terminou em 1975, e hoje conta com cerca de 35.500 habitantes. O exemplo da cidade Gropiusstadt é semelhante à cidade, também criada, de Märkisches Viertel em Wittenau, com 17 mil habitações, e iniciada em 1963. Estas duas cidades satélite da zona Ocidental, erguidas após a construção do Muro, não diferem significativamente das da zona Oriental:

“a separação e o isolamento impostos minoraram a necessidade de uma expressão explícita de concorrência ideológica [...] existem poucas diferenças essenciais entre as urbanizações de Gropiusstadt e Märkisches Viertel na parte ocidental e as de Marzahn e Hellerdsdorf na parte oriental.” (Stern, 2008: 121)

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135. Gropiusstadt nos subúrbios de Berlim Ocidental. Fotografia de Lukas Fisher.

214  Berlim é a capital europeia que marca a modernidade nos anos 60. Os esforços de renovação e de expansão urbana foram tomados em consideração pelos arquitetos, tanto a este como a oeste de Berlim, de forma a proporcionar ao cidadão melhores ambientes de vida, de trabalho e de lazer, e melhores condições urbanas através do melhoramento habitacional e da malha de circulação. No entanto, a localização de Berlim Oeste na Alemanha Oriental não foi conveniente para a tarefa de construção. Como já foi referido, durante a década de 60, enquanto algumas localidades se erguiam, outras eram deixadas de parte, devido aos custos elevados dos materiais, estes importados, em relação ao resto da Alemanha Ocidental. A construção foi desvanecendo, e algumas localidades perto do centro, em parte desmoronadas, foram ignoradas e deixadas ao abandono (Pugh, 2014). Passado esta época dedicada à construção nos subúrbios de Berlim e afastada do Muro, no final dos anos 70, a atenção voltou-se de novo para o centro da cidade. Os arquitetos, agora com uma visão pós-modernista, condenavam a “atomização e fragmentação social, engendradas pela insistência do modernismo na eficiência tecnológica e na separação de funções” e passaram a negar o modernismo, por incapacidade da promoção da identidade cultural e pelo “fracasso na criação de moralidade e virtudes cívicas” 209 (Stern 2008: 121) Na procura de uma “ideia de antecedente histórico e contexto urbano, o pós-modernismo entregou-se com frequência a um ecletismo estilístico desenfreado, ao mesmo tempo que conservava os objetivos sociais profundamente normativos da utopia modernista” (Stern, 2008: 121) e este pensamento deu origem, de 1979 a 1987, a um nova Exposição Internacional de Construção (IBA), que se regeu segundo dois prismas:

1. a IBA Altbau de renovação urbana, liderada por Hardt-Waltherr Hämer e centrada na renovação urbana de Kreuzberg, onde foram abordadas as falhas no desenvolvimento do centro urbano, que resultou na destruição de mais de 7000 apartamentos, no desalojamento crítico dos habitantes e nas casas ocupadas ilegalmente. Este projeto impediu várias demolições do centro urbano. 2. A IBA Neubau, em torno da nova construção urbana, liderada por Josepf Paul Kleiheus, e centrando-se na criação de projetos de construção de altura reduzida no centro urbano, de forma a “reparar e a ‘densificar’ o tecido urbano” (Stern, 2008: 123).

Desenvolveram-se vários projetos, com foco nas áreas vazias e esquecidas, contemplando desde abordagens pitorescos a inovadoras, e uma nova filosofia a favor de uma densa  209 Segundo Avermaete (2005) e Stern (2008), um exemplo de uma contribuição no debate da condição urbana pós-guerra, é a obra de Aldo Rossi, Arquitetura da Cidade de 1966. Rossi esboçou uma atenção da autonomia da arquitetura dentro do campo urbano, e considerou que esse campo, devia ser material cultural, uma coleção de arquitetura resultante de vária prática individuais através do tempo. A forma do campo urbano, uma realidade contemporânea que é composta de fatos históricos, assegura a sua continuidade – é “longue durée”. Rossi afirma que deve existir uma conexão entre a nova arquitetura urbana e a existente e desconsidera as lógicas e práticas moderna pós-guerra dissimilares dentro da forma da cidade histórica. 215 

136. Bonjour Tristesse em Kreuzberg, Berlim Ocidental. Fotografia de George Slickers. 137. Centro de Ciências Sociais de Berlim, em Berlim Ocidental.

216  estrutura dos quarteirões contrária às livres cidades modernistas com as funções segregadas (Siegert e Zareh, 2008). Estes projetos pós-modernistas internacionais, tanto se podem considerar, segundo Stern (2008: 122), “no seu melhor” quando ampliaram o programa de habitação social implementado, e “no seu pior” no momento em que agiram como “um jogo elitista de citações históricas descontextualizadas”, quando houve uma intenção de permanência dos valores modernos mesclados com valores históricos.

“O programa IBA lançado no final dos anos 70 conduz-nos já a outro tempo, tentando refazer a cidade com pequenos gestos: o ‘edifício contextual’ é a negação de qualquer heroicidade, moderna ou nacionalista, em nome de um cerzimento do território, uma espécie de normalidade.” (Figueira, 2008: 42)

Uma das obras da exposição que se considera o “monumento mais eloquente dessa tentativa de apaziguamento” (Figueira, 2008: 43) é a obra de Álvaro Siza, Bonjour Tristesse (Fig.136). Realizada em conjunto com Peter Brinkert, a obra Bonjour Tristesse foi um projeto de habitação social destinado à área de Kreuzberg em Berlim, com foco na renovação urbana. O edifício pré- guerra original foi destruído durante os bombardeamentos, dando lugar a um espaço vazio, que durante o período pós-guerra, hospedou algumas lojas térreas, incompatíveis em escala com a paisagem urbana circundante, cuja demolição ocorreu no ano de 1980. Construído em 1984 com sete andares, este projeto pós-guerra, apresenta uma fachada curva contínua e uma cobertura que cresce delicadamente, e interpreta uma obra marcante que atribui identidade à cidade Kreuzberg. O seu nome Bonjour Tristesse, resultou de um graffitti que surgiu na parte superior da fachada que aí permaneceu devido à impossibilidade financeira de repintar a fachada (Pascucci, 2014). Outro edifício projetado no âmbito da exposição, agora da IBA Neubau, foi o Centro de Ciências Sociais de Berlim (Fig.137), o maior complexo não residencial do programa IBA. Projetado por James Stirling e Michael Wilford, o espaço foi construído em 1988, num espaço onde já existia desde 1894, o Imperial Insurance Office, de August Busse. Projetado com um desenho “seltsamsten, einen eklektischen“ 210 (Sack, 2012: s/p), o complexo de edifícios envolvia o antigo com quatros estruturas diferentes que, através de formas abstratas, se aproximavam, para Stirling, de formas aproximadas ao passado, como os pórticos gregos e as basílicas romanas. Numa tentativa de aproximação ao historicismo da cidade de Berlim numa pequena escala, este edifício de traço eclético pós-moderno era acompanhado de um pátio exterior pitoresco revestido pelas fachadas com faixas de cores alternadas entre terracota e azul, com janelas revestidas a arenito vermelho. No seu interior, também uma vasta gama de cores colore o trajeto pelo edifício, desde verdes escuros a laranjas pálidos.  210 “mais estranho e eclético” (tradução livre) 217 

138. Neue Wache reconstruído em Berlim Oriental. 139. Ruína da Igreja Kaiser Wilhelm e Kaiser Wilhelm Memorial Church, em Berlim Ocidental.

218  Esta obra localiza-se a sul do parque Tiergarten e ao lado da Neue National Galley, de Mies, na zona Kulturforum (Sack, 2012). Esta exposição reuniu diversas obras pós-modernas e estilos de construção, com a participação de arquitetos como Álvaro Siza, Arata Isozaki, Peter Eisenman, OM Ungers, Rem Khoolhas, Aldo Rossi, e James Stirling, entre outros. Realizadas a título da exposição IBA, não conseguiram gerar “identidades culturais específicas” (Stern, 2008: 122) ao tentar integrar as inspirações modernistas com a insipidez da mistura eclética arquitectónica historicista.

Assim, a cidade de Berlim transformou-se numa cidade tela de várias arquiteturas e expressões, sem identidade. Um cunho identitário era urgente e isso vai ser repensado após a queda do Muro e da reunificação de Berlim, juntamente com a preocupação e desejo pelo retorno ao passado, na procura da memória da cidade. Não obstante, a persistência da memória em Berlim, apesar de mais rarefeita e descurada devido à situação política da cidade divida do que após a sua reunificação, existiu em ambos os lados da cidade. O Neue Wache em Berlim Este (Fig.138), e a Kaiser Wilhelm Memorial Church a Oeste (Fig.139), são dois exemplos da permanência da memória passada entre as destruições.

O Neue Wache é um dos edifícios clássicos do século XIX mais importantes da Alemanha. Construído entre 1816 e 1818 por Karl Friedrich Schinkel, foi utilizado ao logo dos anos para diversas funções definidas pelos respetivos governantes. Depois de 1930, serviu como um memorial para os soldados que perderam a vida na Primeira Guerra Mundial, até à sua destruição, provocada pela Segunda. Permaneceu em ruínas até 1957, e apesar de algumas forças terem torcido pela demolição, a sua reparação venceu, e foi transformado num memorial para as vítimas do fascismo (Tkalec, 2017). A Oeste, a ruína “escultórica” da Igreja Kaiser Wilhelm ali permanece como um símbolo de paz. Em memória do primeiro imperador alemão, Kaiser Wilhelm, a igreja neo-românica ergueu-se entre 1891 e 1895, e foi destruída em 1943 durante a Segunda Guerra Mundial, permanecendo até aos dias de hoje junto de duas estruturas em sua memória – o projeto vencedor moderno de Egon Eiermann. Erguido entre 1957 e 1963, a nova torre religiosa, de estrutura hexagonal assente numa estrutura octogonal, destaca-se pela constituição vitral e pela sua luminosidade, tanto externa como interna. As paredes internas foram distanciadas dois metros da estrutura externa, e com iluminação entre estas e mais de 20 mil painéis vitrais, a igreja distingue-se pelo seu “brilho azul.” A outra estrutura, um foyer e capela, também são usados para outros fins religiosos e comerciais. Esta combinação ambivalente entre a ruína e o memorial cristalino representa um símbolo da perseverança da cidade na Guerra Fria. Para Stanislaus von Moos (2015), a combinação entre o novo e o antigo não parece ainda ter uma explicação concreta, e parece divergir entre uma

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140. Estudantes de Berlim Oriental sentados no topo do Muro de Berlim em frente aos guardas da fronteira, em novembro de 1989, assinalando o fim de uma Alemanha dividida. Fotografia do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Minnesota.

220  forma de procura de paz e lamentação pela responsabilidade alemã na guerra, e uma nostalgia pela antiga glória nacional, romantizada através da estética das ruínas. As complicações envolvidas são bastantes e há dificuldade em alcançar um compromisso quando exposto ao público agora em democracia. Esta conjuntura faz da igreja memorial “built paragon of the ‘New Monumentality’ ” 211 (Moos, 2015: 29). Esta procura e persistência pela memória e pelo passado torna-se mais evidente após a queda do Muro de Berlim. A vontade pelo retorno às características do século XIX, juntamente com a ambição de um futuro e de uma cidade europeia, nascem com a urgência de atribuir um caráter identitário e único à cidade de Berlim. Os intentos pós-modernistas resultantes da IBA foram postos de partes, mas a Reconstrução Crítica volta a ser falada como o slogan para a criação de projetos a partir do ano de 1991, por uma Berlim homogénea, coerente e histórica.

Reconstrução, Destruição e a Memória de Berlim depois de 1989

“A primeira impressão da cidade [Berlim] foi deprimente. Edifícios antigos eram pretos de fuligem e mantinham, na generalidade, as marcas da 2º guerra como se tivesse sido ontem: inúmeras perfurações (...) alguns abandonados em ruínas desde os bombardeamentos dos anos 40. (...) registavam-se bairros inteiros residenciais (...) em lógicas urbanas, digamos que modernas, de prédios pré-fabricados e logradouros carecas.” (Mateus, 2008: 68)

Esta imagem obscura descrita por Nuno Mateus historiza a sua primeira viagem à zona este de Berlim no ano de 1979. Doze anos depois, já após a queda do muro de Berlim, o arquiteto retorna à cidade que ainda parecia dividida – “passava-se de uma cidade consolidada, viva e colorida [oeste], para outra monocromática, em ruína [este]. Era um violento salto no espaço-tempo, com duas lógicas de vida urbana (...) ainda muito longe de uma cidade unificada” (Mateus, 2008: 70). A 9 de novembro de 1989, o Muro de Berlim caiu, e a reunificação da cidade deu-se a 3 de outubro de 1990. Mas esta reunificação era marcada ainda pelo antagonismo da cidade dividida e pelas construções ideológicas que nasceram em cada posição e lhe atribuíam uma identidade (Schoen e Luther, 2008). Era necessária uma imagem clara da nova cidade, mas “como poderia Berlim tornar-se uma cidade unida quando as suas partes representavam ainda dois sistemas antagónicos?” (Siegert e Zareh, 2008: 34) Para a reunificação também da arquitetura da cidade, com o título de Reconstrução Crítica, foram lançados concursos em 1991 para a criação de espaços lógicos e coerentes e para dar

 211 “um paradigma construído da Nova Monumentalidade” (tradução livre) 221 

141. Quartier 205 de Mathias Lunger. 142. Quartier 206 de Pei Cobb Freed & Partners. 143. Quartier 207 de Jean Nouvel.

222  vida aos espaços abandonados durante a Guerra Fria. Uma procura de inventar e restaurar uma identidade urbana perdida ao longo das últimas décadas dedicadas à guerra. Estes concursos, chefiados pelo Diretor de Obras Pública de Berlim, Hans Stimmann, e o arquiteto berlinense Joseph Paul Kleihues, adequaram-se segundo um plano de reconstrução segundo três modelos:

1. Nas periferias, a inspiração seriam os bairros históricos berlinenses do século XIX, de densidade média e com abundância verde; 2. Para as áreas abandonadas existentes, como a Postdamer Platz, Alexander Platz, e a Leipziger Platz, entre outros, seria aplicado o modelo da cidade europeia aliado aos materiais e urbanismo compacto e denso burguês do século XIX. 3. Nas zonas emblemáticas, apelava-se também a um retorno histórico e ao antigo traçado da cidade e a uma reconstrução do tecido e das formas à escala do passado adaptada à arquitetura contemporânea (Vázquez, 2008) – a estrutura dos quarteirões de Berlim devia ser restaurada, com edifícios de uma média de 22 metros de altura, com pátio interno, e as fachadas no centro deviam apresentar mais pedra do que vidro (Siegert e Zareh, 2008; Sheffi, 2011). Os edifícios simbólicos destruídos deviam ser restaurados à configuração pré-guerra.

Com a Reconstrução Crítica, pretendia-se uma Berlim ilustrada de uma nova arquitetura, com as fendas e vazios reparados, sem o rasto de destruição, tanto resultante da guerra como do pós-guerra, e assim normalizar a capital, tal como todas as outras europeias (Vázquez, 2008: 49). Mas estes objetivos e estas novas imposições urbanas não se adequavam à arquitetura projetada no passado e “com a reconstrução começou também a demolição” (Siegert e Zareh, 2008: 34) das marcas, dos edifícios e escombros, e da História de uma Berlim dividida. Ainda assim, reconstruções de património sucederam e a “terra de ninguém” de 160 km junto ao Muro foi espaço para muitos projetos peculiares. Havia um desejo da ressuscitação do coração da cidade, e o esforço foi direcionado principalmente para o centro da cidade (Sheffi, 2011). O caso da localidade de Mitte no centro de Berlim, que pertencia à zona este, mas dada a sua proximidade da faixa divisória, manteve apenas alguns pontos de controle. Após a queda, Mitte radicalizou-se. Localizada no centro, a sua zona Friedrichstraβe, quase totalmente destruída pela Guerra e deteriorada durante a Guerra Fria, deu abrigo ao Checkpoint Charlie, um posto de controle militar localizado entre Berlim Ocidental e Berlim Oriental destinado à passagem de estrangeiros e membros das forças aliadas. Hoje é um espaço comercial e um dos pontos mais turísticos de Berlim sem vestígios da oposição ali passada. Alguns dos seus edifícios pós-guerra foram demolidos e monumentos restaurados, e novas arquiteturas ergueram-se como o desenvolvimento de três blocos, o Quartier 205 de Mathias Ungers (Fig.141), o Quartier 206 de Pei Cobb Freed & Partners (Fig.142), e o Quartier 207 de Jean Nouvel (Fig.143), conectados por uma passagem subterrânea e dedicados ao comércio luxuoso, um conceito 223  144. Postdamer Platz abandonada e dividida pelo Muro de Berlim em 1970. 145. Vista aérea da Postdamer Platz em junho de 2017.

224  contemporâneo e que também remonta à tradição berlinense do século XIX. De acordo com os princípios da Reconstrução Crítica, são multifuncionais (habitação, escritórios e comércio), cumprem a altura tradicional pretendida, e todo fazem referência ao pátio tradicional, tradicional do bairro barroco pré-guerra no local, de formas distintas – um átrio, uma área central com claraboia, e um cone de luz. Também os materiais utilizados atendem aos requisitos estipulados, com cores neutras e alguns elementos pedra (no caso do Quatier 206), excepto o edifício Jean Nouvel com a sua fachada translúcida. Estes edifícios foram marcantes como nova arquitetura urbana e seguiram uma alusão às técnicas e princípios tradicionais impostos pela Reconstrução crítica, orientados para o futuro e para a arquitetura contemporânea. Tal como Friedrichstraβe, a Postdamer Platz era um centro de atenção para a reconstrução e tornou-se um dos cernes culturais e económicos de Berlim, e foi um desafio urbano debatido para o futuro da cidade. A Postdamer Platz foi totalmente devastada depois da Segunda Guerra e reduzida a ruínas, o seu papel nas décadas seguintes foi suportar o Muro de Berlim que a dividia, e esperar pela reconstrução para se tornar um dos símbolos mais importantes da cidade de Berlim (Fig.144). Inicialmente vista como uma oportunidade para recriar o tecido histórico da cidade, com edifícios baixo, organizados em ruas tradicionais, as empresas de investimento e os visionários competiram por uma abordagem moderna e futurista por uma cidade. O estado de Berlim vendeu as terras à antiga Daimler Benz AG, e a Postdamer Platz tornou-se o maior local de construção urbana na década de 1990 (Fig.145). Como um aglomerado de arranha-céus e obras impressionantes, destacam-se a Atrium Tower (106 metros) (Fig.146) construído entre 1993 e 1997, um projeto de Renzo Piano e Cristoph Kohlbecker, e a Bahntower (103 metros) (Fig.146), construído entre 1998 e 2000, um projeto do arquiteto alemão Helmut Jahn. O último, faz parte de um outro impressionante edifício, o Sony Center, concluído também na data de 2000. Também de Jahn Helmut, nasceu no lugar do antigo e destruído pela guerra Grand Hotel Esplanade, e integrou partes sobreviventes desta ruína a pedido da cidade de Berlim. O arquiteto e a equipa pretenderam criar não só um edifício, mas também uma parte da cidade no seu interior, criando espaços similares ao tradicional e ao urbano e um contexto social e de vivência. De acordo com a demanda, incluiu várias funções, desde escritórios, restaurantes, espaços comerciais, e zonas públicos e sociais, abrigadas por uma cobertura magnificente e imponente que permite a iluminação do edifício durante o dia e uma variação de cores durante a noite, um projeto implementado por um artista de iluminação parisiense, Yann Kersalé (Sheffi, 2011). Estas obras, mais distantes dos propósitos da Reconstrução Crítica, acabaram por representar de alguma forma alguns princípios como a mistura de funções e o uso de pedra e vidro na Atrium Tower. A acrescentar, a persistência das ruínas do Grand Hotel Esplanade incorporadas no Sony Center (Fig.147) e a permanência e integração da Weinhaus Huth (Fig.147), um

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146. Vista da Postdamer Platz. Da esquerda para a direita: Atrium Tower, Kollhoff Tower, Bahntower e Beisheim Center.

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147. Integração das ruínas do Grand Esplanade Hotel no Sonic Center. 148. Integração do sobrevivente Weinhaus Huth na composição da Postdamer Platz. 227 

149. Ahornblatt, em Berlim Oriental.

228  edifício isolado sobrevivente na Postdamer Platz, expressam a desejo do retorno histórico e da conservação da memória. Outras obras fazem parte do cenário arquitetónico deste local como a Kollhoff Tower (Fig.146), de Hans Kollhoff, a Daimler Chrysler de , ambas construídas no ano de 1999, e o edifício Beisheim Center (Fig.146), de David Chipperfield, concluído em 2006.

“desapareceu a Berlim do Muro, dos quarteirões desventrados, dos edifícios mutilados (...) a Berlim das paredes-meias, dos escombros, das ruínas (...) fruto da cadeia de destruição que a atingiu no século XX. Foram ignoradas as importantíssimas marcas que essas histórias alternativas deixaram no seu maltratado tecido urbano, marcas incómodas pois falavam das ‘vergonhas’ de Berlim” (Vázquez, 2008: 49)

Com o crescimento de uma nova imagem de Berlim, a antiga enfraquece. As provas da Guerra Fria e da Berlim histórica e formada nesses anos foram removidas, e o motivo não se resume apenas ao contexto representativo ou à falta adequabilidade – a fraca qualidade da construção e o uso de materiais inferiores eram um fator de eliminação. Os vários agentes em prol de uma nova Berlim e da demolição resultaram na destruição de alguns edifícios como o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Leste, o grande centro comercial na Alexanderplatz, o Centrum, e o maior restaurante de Berlim Oriental, o Ahornblatt (Fig.149). Este restaurante da zona este, foi um dos edifícios mais experimentais realizados pela RDA. Desenhado por Ulrich Muether, a obra fazia uma analogia com uma folha de seis pontas. Em 2000, seguiu-se com a sua demolição, apesar de estar sob preservação histórica. Também a oeste, já sob “risco de extinção” (Barreto, 2008: 35) há uma década, o edifício Schimmel-Pfenning Haus (1957-60) de Sobotka e Gustav Müller, junto à Igreja Memorial, foi demolido por partes no ano 2009 e 2013, para dar lugar ao Upper West, um novo arranha-céus, concluído no ano de 2017. Outros importantes vestígios da Guerra Fria foram eliminados. O Palácio da República (1973- 76), de Heiz Graffunder e sua equipa, uma criação monumental e significativa, um símbolo de sucesso e para a persuasão pública, também desapareceu para dar lugar a uma nova obra que, na verdade, remonta para o passado histórico – o castelo prussiano Stadtschloss, que em 1950 fora demolido pela RDA para dar lugar ao Palácio da República, agora ergue-se das cinzas, de retorno ao seu lugar e à sua história na cidade de Berlim. A demolição iniciou-se em 2006, bem como a reconstrução do castelo com a réplica das suas fachadas, mas interior moderno iniciou-se em 2013, agendando a data prevista de conclusão para o ano de 2018, com abertura em 2019 (Chase, 2017).

229  150. Cúpula do Reichstag, por Norman Foster. 151. Grande escadaria do Neues Museum, por David Chipperfield Architects.

230  Esta agenda de reconstrução e recuperação de alguns dos edifícios simbólicos danificados pela Segunda Guerra iniciou-se principalmente após a reunificação da cidade de Berlim. É o caso do Reichstag de Berlim, uma emblemática obra transformada por Norman Foster em 1999. Projetado por Paul Wallot, foi iniciada a sua construção em 1882, e em 1945 foi bombardeado. Localizado na linha da frente da Guerra Fria, o edifício permaneceu em espera e em ruínas. Com a intervenção do arquiteto britânico Norman Foster, o edifício ganhou uma nova cúpula de vidro acessível ao público (Fig.150), tornando-o uma das obras de contraste entre o antigo e o novo, e uma das mais marcantes de Berlim como símbolo político, histórico e arquitetónico (Bartlick, 2006). Também o Neues Museum, localizado na Ilha dos Museus em Berlim, sofreu grande bombardeamentos durante a Segunda Guerra Mundial, e poucas tentativas de recuperação depois da guerra foram iniciadas. Construído entre 1841 e 1859, e projetado originalmente por Friedrich August Stüller, foi recuperado pelos vencedores da competição internacional, a equipa David Chipperfield em colaboração com Julian Harrap. O grande objetivo era completar as partes sobreviventes aos bombardeios, respeitando a estrutura histórica, e projetar novos elementos representantes do passado, sem “fac-similar” (Fig.151). Depois de mais de sessenta anos em ruína, o Neues Museum abriu ao público em 2009 (Chipperfield Architects Ltd., 2015). Para além da reconstrução e renovação de algumas das obras importantes de Berlim, outras excessivamente danificadas, permaneceram em ruínas e foram reaproveitados para novas funções, como é o caso da Igreja Franziskaner-Klosterkirsche. Localizada em Mitte, foi fundada em 1250 e destruída em 1945. Após a remoção dos destroços, as ruínas ali permaneceram até ao ano de 2004, quando foram restauradas e utilizadas para exposições, apresentações teatrais e concertos (Krämer, 2015).

Após quatro décadas de divisão e guerra política e arquitectónica, a cidade de Berlim mudou. Muitas construções, reconstruções e demolições de alguns edifícios agiram como um retorno e permanência do passado e da história de Berlim, mas também como fuga ao conflito da Guerra Fria e em prol de uma nova Berlim reunificada. Berlim é assim uma “tela branca” de arquiteturas que se construíram confrontadas com a destruição, uma cidade europeia “com o peso da memória de vários conflitos; uma cidade que viveu e continua a viver num eterno confronto com a dimensão trágica do tempo” (Baía, 2008: 11). Hoje, Berlim é uma cidade em mudança e em continua reconstrução.

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152. Cenário de destruição em Beirute durante a Guerra Civil do Líbano.

232  | A reconstrução de Beirute no Líbano, uma cidade sem memória

“[Beirut] has undergone a vast metamorphosis. Beirut’s ullet-ridden and mortar-infested buildings, its crippled road system, and its severely damaged electricity and water systems are being demolished, renovated and restored. In addiction, people are rebuilding their lives. Despite the protracted debate between the proponents of modernization and those who feel a strong need to preserve Lebanon’s past there is a feeling among Beirutis to bury the past and start again. 212 (Farah, 1998: 16)

A cidade costeira de Beirute desempenhou um papel comercial e económico importante no Levante por cerca de 2 mil anos, mas foi como cidade do Grande Líbano que angariou mais prestígio durante a governação otomana, entre 1840 e 1920. Dada a sua localização marítima, foi cenário de um crescimento económico e populacional durante o século XIX e expandiu-se para dar lugar a imigrantes e refugiados de guerras vizinhas, criando uma Beirute heterogénea. Após a Primeira Guerra Mundial, a derrota do Império Otomano pelas tropas britânicas e árabes, deixou o Líbano e a Síria sob controle da França, até ao ano de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. Durante este período, a cidade de Beirute foi crescendo. Depois da ocupação, o Líbano independente absorveu uma onda de imigrantes, desde arménios, curdos e palestinos que fugiam do novo estado de Israel, desequilibrando assim a “balança religiosa” do país. Estima-se que Beirute tinha cerca de 1,2 milhões de habitantes (45% da população do país), sendo que 350 mil dos seus habitantes eram palestinos. Na década antecedente ao início da guerra que se iniciou em 1975, Beirute ficou conhecido como “Paris do Médio-Oriente” dada a sua prosperidade económica e cultural, o que escondeu o desequilíbrio político e religioso em movimento. No verão de 1975 iniciou-se a guerra civil do Líbano, um conflito armado com diversas disputas entre várias forças religiosas aliadas213, marcadamente entre cristãos maronitas e muçulmanos, que durou até ao ano de 1990 (Fig.152).

 212 “[Beirute] tem sofrido uma imensa metamorfose. Os edifícios de Beirute crivados de balas e de argamassa infestada, o seu arruinado sistema rodoviário, e os seus sistemas de água e de eletricidade severamente danificados, estão a ser demolidos, renovados e restaurados. Em adição, as pessoas estão a reconstruir as suas vidas. Apesar do moroso debate entre os defensores da modernização e aqueles que sentem grande necessidade de preservar o passado do Líbano, existe um sentimento entre os Beirutis para queimar o passado e começar de novo.” (tradução livre) 213 Para um melhor entendimento da Guerra Civil do Líbano, uma descrição e um estudo mais profundo é encontrado no artigo (Stewart, 1996) e no livro (Charlesworth, 2006).

233 

153. Divisão de Beirute pela Green Line, no Líbano, em 1983. 234  Na altura, num país com cerca de 3 milhões de habitantes, as baixas foram imensas – 150 mil pessoas perderam a vida, 300 mil ficaram feridas e à data de 1990, cerca de um terço da população havia deixado o seu país. A violência da guerra causou um enorme dano nas cidades libanesas, especialmente nos primeiros dois anos durante a invasão israelita, e reverteu-se sobretudo na destruição de uma grande parte do núcleo urbano da sua capital, Beirute. Em 1992, a população de Beirute havia decaído para cerca de 300 mil habitantes (Stewart, 1996). Tal como Berlim, Beirute foi dividido durante a Guerra Civil Libanesa em dois lados – este e oeste – pela denominada Green Line.214 (Fig.153). Esta “enormous psychological and demographic barrier” 215 (Charlesworth, 2006: 61) repartiu a cidade de Beirute em zonas predominantemente muçulmanas (oeste) e cristãs (este), separando as principais milícias em guerra, como os Maronitas, as Falanges Libanesas, e os grupos Sunitas e Xiitas. Em 1975, cerca de 40% e 35% da população muçulmana e cristã respetivamente, estavam a viver nos lados opostos. Com a fragmentação da cidade, os habitantes descolaram-se para as vizinhanças homogéneas, e em 1989, a percentagem de ocupação da religião distinta havia baixado para 5% (Charlesworth, 2006). Esta mudança é um aspeto particular e importante na estimulação da segregação religiosa e social que também se refletiu com a destruição e divisão do centro histórico da cidade, ou Beirut Central District (BCD), a área mais afetada desta Guerra Civil. O BCD era a zona mais heterogénea a nível religioso da cidade que albergava as vibrantes souks, um lugar partilhado antes da guerra pelos membros da comunidade de todas a religiões. Mas estas seções comerciais foram igualmente alvos de destruição bélica, e assim, também potencializaram a deslocação dos residentes para subúrbios uniformes e a fragmentação dos laços sociais que antes se conectavam no mercado souk (Charlesworth, 2006; Stewart, 1996). Com a praça Martyrs’ Square como coração do centro da cidade, agora era o ponto de partida para a demarcação da Green Line, “a life-less voided square haunted only by the ghosts of war” 216 (Hindi, 2015: 80). E assim se tornaram muitos dos espaços públicos, devastados e destruídos na sua forma e função. A guerra civil e a Green Line instauraram o medo e apropriaram-se dos espaços e da cidade dos habitantes, suprimindo a vida social e pública em toda a cidade. A Corniche, a calçada à beira- mar de Beirute, “is the only form of public space which persisted during wartime, outside

 214 O nome arábico para esta linha da frente é Khutout at tammas que significa linhas de confrontação. Este termo é original da divisão da capital do Chipre, Nicósia, ocorrida em 1963. A terminologia refere-se também às faixas de vegetação que nascem entre as ruínas deixadas ao abandono durante os anos de guerra (Charlesworth, 2006). 215 “enorme barreira psicológica e demográfica” (tradução livre) 216 “uma praça vazia sem vida assombrada apenas pelos fantasmas da guerra.” (tradução livre)

235 

154. Fotografia em Taif, em setembro de 1989 para assinar o Acordo de Taif e assim terminar a guerra no Líbano.

236  the city centre boundaries” 217 (Hindi 2015: 80). Sendo um espaço de passagem e não de reunião pública, não constituía ameaça. Esta guerra civil configurou uma guerra urbana sediada nas ruas da cidade repartida que sequestrou os lugares e a vida cosmopolita que ali se verificava. “The war changed the function of everyday life in Beirut. Citizens either involved themselves in violence or came in direct contact with it on a daily basis” 218 (Lowrey, 2015: 44). Destruiu aproximadamente 360 mil habitações e desalojou cerca de 500 mil pessoas para se tornar um campo de batalha na maioria dos quinze anos de tempo desta guerra civil (Stewart, 1996). Os espaços públicos foram tomados pelos grupos de milícias e a cidade formatada segundo uma nova configuração envolvida na violência e residente da guerra até ao seu fim. O conflito terminou com o estabelecimento do exército Sírio na zona este Cristã e no Monte Líbano em 1990, delegando o poder político às fações religiosas muçulmanas sunitas, conforme o Acordo de Taif (Fig.154). 219 Com o fim da guerra, o Líbano enfrentava uma transição entre um período de conflito, fragmentação e ruptura, para um pressuposto de reconciliação. As tarefas de reconstrução do país encaravam a dualidade da reparação das infraestruturas e dos conflitos religiosos que perduraram durante anos na sociedade libanesa, numa economia altamente enfraquecida pelos danos ocorridos (Charlesworth, 2006). Os danos na cidade de Beirute estimaram-se em pelo menos 20 biliões de euros (Stewart (1996). De um modo geral, o desafio da reconstrução de Beirute e do Líbano focou-se na recuperação da estabilidade financeira e numa estratégia de reconstrução pensada nas contendas de uma sociedade com cerca de 17 afiliações religiosas em conflito durante 15 anos, de forma a conectar e a construir um vínculo e uma reconciliação da comunidade libanesa. No entanto, os efeitos do conflito na sociedade pós-guerra não desapareceriam facilmente (Lowrey, 2015). Os costumes e as rotinas desenvolvidas para lidar com conflito afetaram todo o processo da reconstrução moral e física da cidade.

 217 “era a única forma de espaço público que persistiu durante a guerra, fora dos limites do centro da cidade” (tradução livre) 218 “A guerra mudou a função da vida quotidiana em Beirute. Os cidadãos envolviam-se a eles mesmos na violência ou entravam em contato direto com ela diariamente” (tradução livre) 219 Em setembro de 1989, 62 membros da Assembleia Nacional do Líbano, encontraram-se em Taif, na Arábia Saudita, para assinar o Acordo de Taif, ou Carta Nacional de Reconciliação, cujo objetivo era por fim à guerra civil do Líbano (UN, 2014).

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155. Centro de Beirute antes (esquerda) e depois da Guerra do Líbano (direita). 238  A Beirute oportuna após a guerra

“Beirut is the world’s largest laboratory for post-war reconstruction have been marketed through the metaphor of rebuilding the city’s heart, as a way of validating the ‘urban surgery’ being performed” 220 (Charlesworth, 2006: 54)

A guerra civil libanesa afetou a vida, as cidades, e os espaços das pessoas. Afetou maioritariamente a cidade de Beirute, cujo centro após a guerra terminar, era uma “ghost town”221 (Farah, 1998: 16). A cidade estava vazia e a maioria das suas ruas, ainda com minas espalhadas, estavam fechadas pelas forças armadas. No entanto, com o objetivo de uma reconstrução estrutural e psicológica seguida de uma guerra divisória, o impulso primário do esforço de reconstrução concentrou-se precisamente na área do centro (Fig.155), o símbolo de relações sociais. Assim, “the downtown became a dream of what communal relations used to be and what they could become in the future when the space was rebuilt” 222 (Lorwey, 2015: 45). Lowrey (2015) identifica três maneiras de olhar para os objetivos da reconstrução de Beirute depois da guerra. A primeira é perceber a reconstrução como uma tentativa de ultrapassar a guerra; a segunda é entender a reconstrução como um meio de união do país após os conflitos sectários, aproveitando a área central para o renascimento das conexões; a terceira é perceber o processo como um desejo de alcançar a estabilidade e o reconhecimento público, tanto local como internacional. A terceira visão aplica-se à implementação prática dos projetos de reconstrução, mas ilustra os dois primeiros objetivos. E é neste contexto, que os investidores locais, o FMI e o Banco Mundial, entendem as guerras como oportunidades para recriar uma potência económica global, acelerando o processo de reconstrução de uma cidade para que seja estável no futuro. Esta pensamento da guerra como uma oportunidade definiu o futuro da cidade de Beirute. Rafiq Hariri, nomeado Primeiro Ministro do Líbano após a guerra, acreditava na cidade pós-guerra como uma oportunidade política e usou a reconstrução de Beirute como “a symbol to re-

 220 “Beirute é o maior laboratório mundial para a reconstrução pós-guerra ser comercializada através da metáfora da reconstituição do coração da cidade, como uma forma de validar a ‘cirurgia urbana’ a ser realizada.” (tradução livre) 221 “cidade fantasma” (tradução livre) 222 “o centro da cidade tornou-se um sonho do que as relações comunitárias costumavam ser e do que elas se poderiam tornar no futuro quando o espaço fosse reconstruído” (tradução livre)

239  identify Lebanon as a dominant political force in the Middle East (…) a future model par excellence” 223 (Charlesworth, 2006: 10). Deste modo, em maio de 1994, o centro de Beirute preparava-se para enfrentar um destino de rápida transformação, sendo a empresa designada para este processo a Solidere (Société libanaise pour le développement et la reconstruction de Beyrouth). A estratégia proposta era originalmente parte do projeto Horizon 2000, um projeto nacional da recuperação económica libanesa que ambicionava uma reconstrução e recuperação completa até ao ano de 2000. Tanto Hariri como a Solidere ambicionavam uma recuperação e reconstrução rápida e assim assinalar a estabilidade do país após a guerra. Sem fundos suficientes, o plano prolongou-se após o início do novo século e vários investidores apoiaram na reconstrução 224 (Lorwey, 2015). Como oportunidade de reconstrução, esta aliança entre a arquitetura, a política e a economia, assinalaram o desígnio do centro da cidade. Segundo o economista e antigo ministro libanês Dr.

Elias Saba, o centro de Beirute tornou-se “marketable” 225 (Farah, 1998: 17). A Solidere era uma empresa público-privada, com acionistas de todo o mundo, e por isso, o destino do centro da cidade estava traçado segundo interesses políticos e económicos e não pensado para os seus habitantes (Farah, 1998). Também a visão do Primeiro Ministro Hariri não ajudava o futuro do centro, uma vez que ambicionava por um desenvolvimento semelhante ao do Dubai com torres envidraçadas e marinas privadas, com um discurso reconstrutivo baseado na riqueza e não no modo de vida dos habitantes (Charlesworth, 2006). Em 1991, o primeiro plano radical estabelecido pela Solidere visava a total demolição de todo o tecido urbano danificado do centro urbano, erguendo uma nova marca urbana na cidade devastada. Esta proposta em tabula rasa foi criticada por muitos autores que argumentaram que o plano da Solidere “would cause more damage to downtown Beirut than the two previous decades of civil war” 226 (Charlsworth, 2006: 68). Contrariamente a este plano, o Conselho de Desenvolvimento e Reconstrução em parceria com a empresa francesa L’atelier Parisien D’Urbanisme (APUR) desenvolveram após os dois primeiros anos intensos de guerra, em 1977, um primeiro plano visando um retorno ao tradicional e ao restauro do centro antigo, mantendo o tecido urbano na sua condição original e conservando a memória da cidade viva. A estratégia foi aprovada em 1978, mas a invasão israelita destruiu a esperança de uma reedificação e a o plano foi adiado (Charlesworth, 2006).

 223 “um símbolo para reidentificar o Líbano como uma força dominante política no Médio Oriente (...) um futuro modelo por excelência” (tradução livre) 224 Uma grande parte do financiamento da reconstrução do centro urbano pela Solidere foi financiada pelo próprio Primeiro Ministro Rafiq Hariri, detentor de uma fortuna estimada em cerca de 3 biliões de euros. Hariri foi um filantropo na sociedade libanesa (Stewart, 1996). 225 “negociável” (tradução livre) 226 “ia causar mais dano ao centro de Beirute que as duas décadas anteriores de guerra civil” (tradução livre)

240  Estas duas abordagens transportam a cidade de Beirute para o centro de debate da reconstrução: escolher entre o fac-símile e a tabula rasa. E Beirute elegeu o último.

A (des)construção Beirute

O Conselho para a Reconstrução e Desenvolvimento, criado em 1977, foi responsável por toda a reconstrução fora do Beirut Central District (Stewart, 1996). Por sua vez, o Elyssar 227 ocupou- se com a remodelação e reconstrução dos subúrbios a sudoeste de Beirute, especialmente a zona de Ouzai. A empresa Solidere ocupava-se do centro (Lorwey, 2015). Assim, a ghost town de Beirute, assumiu o plano da Solidere que se repartiu em duas fases: a fase um (1994-2004) e a fase dois (2004-2024).

Como já foi referido, um primeiro plano da Solidere foi criado, influenciado por um esboço criado em 1991 no imediato pós-guerra pelo arquiteto libanês-francês Henri Eddeh e pela companhia Dar al-Handasah Shair and Partners, uma empresa de planeamento urbano do Médio Oriente. O plano concentrava-se meramente no centro antigo e na sua total demolição para a criação de um novo centro financeiro, modernista e de comércio internacional. Alvo de grandes críticas por muitos arquitetos, urbanistas e jornalistas que se opuseram a esta estratégia radical para a cidade, a preocupação ia além dos altos preços das propriedades de gama alta que inviabilizava o poder de compra do consumidor e habitante comum. A maior preocupação concentrava-se na falta de elementos culturais nas propostas urbanas para o centro da cidade (Charlesworth, 2006; Lorwey, 2015). A Solidere elaborou então um novo plano, liderado pelo arquiteto libanês Jad Taber. Com base no plano de 1991, este visava optimizar o uso dos bens à beira-mar (Fig.156) e tirar partido do património da cidade segundo uma perspetiva modernista. No entanto, este plano propunha a recuperação da função simbólica do centro, e assim promover a diversidade social:

“The BCD planners indicate and assert that the intention behind the new spatial configuration of the plan is to create a city center where all Lebanese may meet once again. They argue that by packing a sizeable amount of public, private, cultural, and leisure (…) the BCD will unify the city and its society.” 228 (Kabbani 1992: 53)

 227 O Elyssar foi um projeto de desenvolvimento iniciado em 1995 para a reconstrução do Sudoeste de Beirute. 228 “Os planeadores da BCD indicam e afirmam que a intenção por trás da nova configuração espacial do plano é criar um centro da cidade onde todos os libaneses se possam encontrar novamente. Eles argumentam que, ao empacotar uma quantidade considerável de usos públicos, privados, culturais e de lazer (...) a BCD unificará a cidade e a sua sociedade.” (tradução livre)

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156. A frente de água de Beirute antes da guerra.

242  No entanto, esta estratégia perdeu-se na sua concepção prática. O novo plano da Solidere baseava-se no desejo de recriar uma cidade antiga para o futuro, com espaços que visavam o retorno dos trabalhadores de classe média ao seu trabalho. O plano proposto teve como principal foco o plano de ordenamento para uma nova cidade com a preservação da memória histórica do antigo centro. Mas a ambição pela prosperidade financeira da cidade acabou por dominar a capital, e os espaços foram formulados para os grandes investidores. O BCD tornou-se palco de demolições de centenas de referências históricas, de zonas privadas, de alto custo, e marcado pela criação de novos hotéis e centros comerciais, e o conceito de vida social parecia ter-se dissipado (Lorwey, 2015). O plano de reconstrução organizou-se em três fases: a primeira abrangia o boom privado e a preparação de projetos (1991-94); a segunda centrava-se na desaceleração económica e na implementação dos projetos públicos (1995-98); e a terceira, como a era final da reconstrução pós-guerra (1999-04). Esta era final da reconstrução era a confirmação do boom reconstrutivo pós-guerra e uma extensão e afirmação das tendências dos anos anteriores (Nasr e Verdeil, 2008). Não obstante, as primeiras tarefas de reconstrução concentravam-se nos problemas urgentes do período imediato após a guerra, nomeadamente:

1. Um tecido urbano praticamente destruído. 2. Uma cidade sem infraestruturas e serviços.229 3. Os refugiados habitavam ilegalmente os edifícios em ruína.

Como atuação urgente, as operações de reposição e reparação das infraestruturas e serviços básicos da cidade, como o saneamento, eletricidade e vias de comunicação, foram concluídas no ano de 1997. Quanto à situação da apropriação ilegal, os refugiados foram ajudados financeiramente para se deslocarem das ruinas ocupadas (Stewart, 1996). Enquanto o foco se mantinha nas questões de emergência de uma cidade pós-guerra, planos para a projeção de uma nova Beirute eram realizados em paralelo de forma silenciosa e muitas opções de reconstrução foram pensadas sem qualquer tipo de planeamento (Nasr e Verdeil, 2008). Na segunda fase, muitos projetos começaram a ser aplicados em prática e pode-se assumir que se deu o “peak of the reconstruction era” 230 (Nasr e Verdeil, 2008: 1130) no pós-guerra de Beirute, que é quando realmente se inicia a fase da aplicação dos planos da Solidere.

 229 Após a guerra havia falhas nos serviços essenciais. Até ao ano de 1995, a cidade tinha eletricidade apenas por 12 horas por dia e as ruas não eram iluminadas (Stewart, 1996). 230 “pico da era da reconstrução” (tradução livre)

243 

157. Plano de reconstrução proposto para o centro de Beirute pela Solidere.

244  O projeto de reconstrução

O projeto urbano de recuperação e reconstrução proposto pela Solidere visava uma cidade cosmopolita, moderna e turística, mas com a permanência dos traços históricos do passado segundo o slogan Beirut: Ancient city of the future (Hindi, 2015). O projeto abrangeu 191 hectares, dos quais 118 correspondiam ao centro da cidade e 73 eram relativos à extensão da frente de água. Para o espaço público foram destinados 98 hectares, 59 para as vias de circulação e 39 para espaços públicos ao ar livre. Para novos desenvolvimentos foram dedicados 71 hectares e 22 dedicaram-se à preservação e manutenção das infraestruturas religiosas e públicas (Fig.157) (Solidere, 2017). Nesta fase (1994), que se pode assumir como a primeira fase real de reconstrução pela Solidere, o sentimento pairava entre a conservação e a tradição, mesclado com uma nova cidade que balançava entre o antigo e o novo e que reaparecia de diversas formas. Para além deste apelo entre o novo e o antigo, havia necessidade de resolver o aterro denominado Normandy, composto da acumulação de resíduos durante a guerra civil à beira-mar, a menos de um quilómetro do famoso hotel St. George Yacht Club. Isto anulava a perspetiva da construção de um grande centro económico e financeiro, e, portanto, o plano para a extensão da zona marítima foi iniciado. Foram acrescentadas as toneladas de ruínas existentes do centro de Beirute, formando uma ilha de 54 hectares, conectada ao continente, dedicada a novas construções, e aproveitada para a extensão da zona turística à beira-mar (Stewart, 1996). Segundo a Solidere (2017), este projeto prevê a sua conclusão em 2030. O importante tópico relativo à conservação, que se destaca neste período, emergiu com vista no centro histórico e nos antigos souks. Concentrou-se, primeiramente, nas zonas do centro como a Etoile (Fig.158) e Serail, onde 12% do tecido urbano foi protegido. Cerca de 290 edifícios foram eleitos para a conservação, como o caso da Saifi Village (Fig.159). As ruas Foch e Allenby (Fig.160), também foram eleitos para reabilitação e preservação da arquitetura otomana (Chami, 2013). Enquanto este esforço em torno da preservação era praticado, as novas construções privadas ocupavam espaços dentro do centro urbano. Com cerca de 80% do tecido destruído e demolido, novas edificações ergueram-se de escala dissemelhante ao tecido existente. Mas segundo Nasr e Verdeil (2008), as demolições realizadas não eram suficientes para dar espaços às novas obras e mais demolições foram feitas, inclusive de edifícios listados para preservação. E quanto a essas novas edificações, “if one were to compare the urban structure of the pre-war centre and the new master plan, it would become obvious that the real generator of urban form in the current on was private capital” 231 (El Chami, 2013: 63).

 231 “se alguém fosse comparar a estrutura urbana do centro pré-guerra e o novo plano geral, seria óbvio que o verdadeiro gerador da forma urbana atual foi o capital privado” (tradução livre) 245 

158. Praça Etoile e arredores reconstruídos em fac-símile.

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159. Saifi Village reabilitada após a guerra. 160. Rua Allenby recuperada após a guerra.

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161. Vista aérea do centro de Beirute ampliado (extensão da costa) e nivelado, com a conservação de algumas áreas.

248  Estas novas construções surgiram na segunda fase de reconstrução da Solidere - a modernização. Para Charlesworth (2006), o processo de reconstrução da cidade pela companhia privada dividiu-se em três fases: a primeira centrou-se na preservação; a segunda na modernização do centro; e a terceira dedicou-se ao desenvolvimento e melhoria da rede viária. Mas para tal desenvolvimento moderno após a fase da conservação, a Solidere procedeu à nivelação do restante centro (Fig.161), dividindo-o em áreas maiores e preparando-o para uma nova organização urbana (Chami, 2013).

A nova organização urbana

Com a maior parte do BCD destruído, a Solidere aproveitou para a criação de uma nova distribuição urbana, dividida em lotes de maior dimensão. No entanto, este procedimento tinha consequências: implicava uma transformação correspondente da escala do tecido urbano, e alterava a organização das ruas originais que sempre foram um dos espaços essenciais da vida pública antes da guerra. Esta nova fragmentação da malha urbana criou duas escalas de circulação automóvel: as vias pequenas no centro e autoestradas maiores ao redor do centro (Chami, 2013). O transporte público foi planeado, mas era escasso, uma vez que se assumiu que a deslocação no centro seria feita por veículos privados (Charlesworth, 2006). Quanto às zonas pedestres pareciam estar por identificar, assumindo espaço controlados e reduzidos rodeados por novas infraestruturas não convidativas, impedindo-as de agir como espaço público de criação de relações sociais. Para Charlesworth (2006) estava evidente a qualidade de enclave do desenvolvimento e para Chami (2013), a justificação desta ação percebe-se pelo facto de o centro da cidade estar focado num programa capitalista, de zoneamentos privados, e não no domicílio, vivência e ligações sociais dos Beirutis. Evidentemente, este método aplicado refletia-se também no número de espaços urbanos de convívio público, que na verdade, em muitos casos eram privados. No caso dos privados, estes eram protegidos por forças de seguranças e complementados com sinalização e pouco trabalhados. Não promoviam a vida pública ou social. Existiam apenas, novamente num centro dedicado ao poder de compra. No entanto, alguns destes espaços continham vestígios arqueológicos e fizeram parte do programa de preservação. Entre os vários espaços históricos ao longo da cidade, a calçada Shoreline 232 também era um espaço público importante que foi interrompido pela extensão marítima criada pela Solidere. Com ruas e espaços transformados, o planeamento e perspetivas futuras da Solidere para o centro de Beirute, ao invés de corroborar os laços sociais e o acolhimento dos residentes após a guerra, parecia acentuar as discrepâncias sociais e o

 232 A calçada Shoreline de Beirute é um passeio de jardins lineares desenhados quando o porto otomano foi construído (Chami, 2015).

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162. Souks de Beirute em 1973.

250  deslocamento e desalojamento dos habitantes originais do centro da cidade. A cidade transformou-se e o seu objetivo deixara de ser os seus habitantes. Com a apropriação do centro para investidores e domínios privados, muitos libaneses foram forçados a abdicar das suas propriedades, em troca de ações na Solidere ou do valor correspondente. Caso optassem por ficar com a propriedade, as condições propostas pela empresa custariam muito mais que o valor do espaço. O centro de Beirute estava entregue às mãos do poder económico. Tal como afirma o arquiteto Assem Salaam numa entrevista233 com Esther Charlesworth (2006: 75), o centro de Beirute era um “paradise for the rich that you need to enter with a credit card through the Solidere stage design.” 234 O espírito da cidade parece hoje destruído. Mas coloca-se a questão: “can buildings, landscape projects and re-created souks help war-destroyed urban centres recover their spirit?” 235 (Charlesworth, 2006: 77)

Os souks

No centro histórico, a norte da Place d’ Etoile, o espaço dos antigos souks, devastados com a guerra, deram lugar a um novo espaço. Os antigos souks de Beirute (Fig.162) eram espaços de mercado tradicional desenvolvidos no centro da cidade e cresceram de forma gradual. Eram espaços de comércio tradicional onde os preços eram negociados entre o comerciante e o comprador. Configuravam um espaço ao ar livre que não se resumia apenas à função da troca económica, representavam também um local de encontro e de contatos sociais para todos os Beirutis, independentemente da religião (Humphreys, 2015). De acordo com a teoria de Rossi (2001) em L’Architettura de la Città, a cidade é construída ao longo do tempo, através dos seus elementos urbanos que constituem uma memória e uma identidade. Neste sentido, a cidade de Beirute e os seus souks, eram espaços orgânicos formados pelo tempo e pela sociedade que os frequentava. Eram espaços de memória e nostalgia dos habitantes e da cidade a que pertenciam. Mas o destino dos antigos souks ficou traçado pelo plano da Solidere. Aqueles que haviam sobrevivido à guerra, não tinham sobrevivido à demolição deliberada pela empresa e nem os direitos dos proprietários escaparam ilesos (Humphreys, 2015). E assim, a Solidere quebrou a

 233 Numa entrevista a Assem Salaam, realizada por Charlesworth, em Beirut, a junho de 2000. 234 “paraíso para os ricos que tu precisas de entrar com um cartão de crédito através da fase de projeto da Solidere” (tradução livre) 235 “Podem os edifícios, os projetos paisagísticos, e os souks recriados, ajudar os centros urbanos destruídos pela guerra a recuperar o seu espírito?” (tradução livre)

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163. Organização dos souks na zona norte da área comercial. Souks de Rafael Moneo a cinza escuro, e os Jewelry Souks de Kevin Dash e Rafik El Khoury a cinza claro.

252  atmosfera da cidade do passado, na procura da modernização e do veloz desenvolvimento económico. Em tabula rasa, foi lançado o concurso internacional para os novos souks de Beirute pós-guerra. O objetivo era criar uma nova arquitetura, com características da prática comercial moderna, mas que remetesse para as tradições e elementos do mercado árabe antigo. A proposta vencedora foi a do arquiteto Rafael Moneo, em 1994 e foi inaugurada em 2009, juntamente com os Jewelry Souks de Kevin Dash e Rafik El Khoury, uma outra obra na zona norte da área antiga dos souks (Fig.163). A projeto do arquiteto espanhol Rafael Moneo (Fig.164) fazia algumas abordagens ao passado, conciliando a antiga malha das ruas gregas e incorporando ruínas descobertas pela guerra. No entanto, o novo modelo concentrava-se na inovação e não nas características dos antigos souks (Ilyès, 2015), e foi pensado para os libaneses e turistas de classe alta e não para os trabalhadores e cidadãos comuns que frequentavam os souks pré-guerra (Humphreys, 2015). Por esse motivo, foi alvo de diversas críticas como um elemento de ruptura material e social e de perda de identidade da cidade. Como argumento, a Solidere fundamentou que “the notion of the souks has transformed during the war and demands have changed. After the conflit there was no need for a traditional marketplace” 236 (Ilyès, 2015: 18). De alto consumo e investimento, este novo centro comercial é composto por espaços contínuos de interior/exterior (Fig.165), com ruas tecidas e ladeadas por traços altos e elegantes, com uma reinterpretação de alguns elementos tradicionais (Chami, 2013). Outra obra na área do complexo comercial, mas na zona sul e ainda em construção, é o Department Store (Fig. 166) de cinco andares da equipa Zaha Hadid Architects & Samir Khairallah & Partners, cuja data de conclusão ainda não está prevista (Fig.167) (Solidere, 2017).

Os novos souks de Beirute ilustram a visão da Solidere para a nova cidade libanesa, na medida em que propõem uma nova e luxuosa arquitetura que age como uma atração turística e económica. No entanto, esta nova arquitetura induz ao sentimento de exclusão dos Beirutis, pela perda da memória do local e pela impossibilidade económica de atuar neste mercado. No lugar que outrora se regateava e se estabeleciam laços, agora quebravam-se os vínculos sociais para instituir as práticas consumistas.

 236 “a noção dos souks transformou-se durante a guerra e as demandas haviam mudado. Depois do conflito não havia necessidade de um mercado tradicional.” (tradução livre)

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164. Obra Beirut Souks de Rafael Moneo. 165. Um dos espaços interior/exterior da obra Beirut Souks de Rafael Moneo.

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