UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

ROSANA MAURO

A construção discursiva televisual da mulher popular na : um estudo sobre as personagens de Avenida Brasil e

São Paulo 2019

ROSANA MAURO

A construção discursiva televisual da mulher popular na telenovela: um estudo sobre as personagens de Avenida Brasil e A Regra do Jogo

Tese apresentada junto ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Ciências da Comunicação.

Área de Concentração: Teoria e Pesquisa em Comunicação Linha de Pesquisa: Linguagens e Estéticas da Comunicação Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Palma Mungioli.

São Paulo 2019

Nome: MAURO, Rosana Título: A construção discursiva televisual da mulher popular na telenovela: um estudo sobre as personagens de Avenida Brasil e A Regra do Jogo

Tese apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Ciências da Comunicação.

Aprovada em: ______

Banca Examinadora

Prof (a). Dr(a):______Instituição:______Julgamento: ______Assinatura:______

Prof (a). Dr(a):______Instituição:______Julgamento: ______Assinatura:______

Prof (a). Dr(a):______Instituição:______Julgamento: ______Assinatura:______

Prof (a). Dr(a):______Instituição:______Julgamento: ______Assinatura:______

Prof (a). Dr(a):______Instituição:______Julgamento: ______Assinatura:______

À minha companheira Lívia Silva de Souza, que desperta o melhor em mim a cada dia. Obrigada por fazer parte da minha vida.

AGRADECIMENTOS

À minha família Djanira, Renato, Luciana, Eliza e Lívia, pelo apoio incondicional, amizade e amor. E à minha gata de estimação que me fez companhia durante a escrita da tese.

À minha orientadora professora Dra. Maria Cristina Palma Mungioli, que acompanha o meu trabalho desde o mestrado, antes mesmo de ser minha orientadora. Seus ensinamentos e conselhos foram imprescindíveis para a minha entrada no doutorado e durante todo o processo de pesquisa. Pude aprender muito com os estágios em docência, as orientações e as escritas em conjunto.

Ao professor Dr. Eneus Trindade Barreto Filho, meu orientador no mestrado, base e guia da minha formação acadêmica. Suas contribuições foram valiosas no Exame de Qualificação para a concretização desta tese.

À professora doutora Rosana Soares, cuja disciplina cursada foi fundamental para a construção desta tese, assim como as contribuições no Exame de Qualificação.

À coordenadora do PPGCOM, professora Dra. Roseli Figaro, cujos ensinamentos também me acompanham desde o mestrado e com quem tive a oportunidade de escrever, fazer estágio docente e aprender muito sobre a docência.

A todos os colegas do grupo de estudos GELiDiS, pela troca acadêmica, discussões e amizade.

À comissão de bolsas da ECA/CNPq pelo financiamento desta pesquisa.

RESUMO

Esta tese estuda personagens femininas consideradas populares em duas de João Emanuel Carneiro, dirigidas por , Avenida Brasil (2012) e A Regra do Jogo (2015/2016). Ambas foram exibidas na Rede Globo no horário das 21 horas. Consideramos como populares as personagens que representam mulheres da classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2001), ou seja, que vendem seu trabalho de forma direta ou indireta, e que apresentam o habitus e o capital cultural (BOURDIEU, 2007) da classe popular. O objetivo foi analisar como essas personagens são construídas em termos discursivos e televisuais, face a um discurso circulante (CHARAUDEAU, 2012) a respeito da mulher popular no Brasil. Frente a esse objetivo, o trabalho organizou-se sobre dois grandes eixos: (1) a história e a formação de um discurso sobre a mulher pobre e urbana no país (SOIHET, 2015; FONSECA; 2015; RAGO, 2015), apoiando-nos também no conceito de representação de Hall (2016); (2) a construção da personagem de ficção televisiva, as particularidades das personagens de telenovela e a realização de uma tipologia da personagem feminina popular nas tramas estudadas. As análises consistiram no levantamento das principais características físicas, psicológica e sociais das personagens, na realização de tipologias e no estudo de cada uma delas, 28 no total, com base no plano do conteúdo e no plano da expressão e suas respectivas formas e substâncias, de acordo com a teoria de Hjelmslev (GREIMAS, 1973; FONTANILLE, 2008; VOLLI, 2007). O foco da análise recaiu sobre a construção de um discurso televisual o qual se corporifica por meio de questões formativas e estéticas não apenas do meio televisivo, mas também de matrizes culturais e formatos industriais que compõem a tecnicidade do mapa das mediações de Martín- Barbero (2009) e parte da midiatização. A metodologia empregou ferramentas da análise do discurso, dos estudos de linguagem de Bakhtin (1999; 2003; 2010) e da semiótica para abarcar a complexidade da construção de personagens nessas telenovelas como forma e produto cultural. Ao longo da análise, observou-se que a caracterização espaço-temporal das personagens mostrava-se como elemento-chave para sua construção e, recorrendo ao conceito de cronotopo (Bakhtin, 2010), foram encontrados nas personagens quatro tipos: o cronotopo de aventura, o idílico, o da terceira na vida privada e o trivial. As personagens foram divididas em trabalhadoras e emergentes sociais e nas seguintes tipologias: matriarca, mantenedora, periguete, femme fatale arrivista, melhores amigas, mentoras, camaleão, nêmesis, vilãs, heroína, mulher valente, mocinha melodramática e religiosas. Uma mesma personagem ocupou mais de uma classificação.

Palavras-chave: telenovela, personagem, mulher popular, classe social.

ABSTRACT

This thesis studies female characters considered popular in two telenovelas by João Emanuel Carneiro, directed by Amora Mautner, Avenida Brasil (2012) and A Regra do Jogo (2015/2016). Both were shown on Rede Globo at 9 pm. We consider as popular the characters that represent women of the working class (ANTUNES, 2001), that is, that sell their work directly or indirectly, and that present the habitus and the cultural capital (BOURDIEU, 2007) of the popular class. The objective was to analyze how these characters are constructed in discursive and televisual terms, in the face of a circulating discourse (CHARAUDEAU, 2012) regarding popular women in . In the face of this objective, the work was organized on two main axes: (1) the history and the formation of a discourse on poor and urban women in the country (SOIHET, 2015, FONSECA, 2015, RAGO, 2015) also in Hall's concept of representation (2016); (2) the construction of the character of television fiction, the particularities of telenovela characters and the realization of a typology of the popular female character in the plots studied. The analyzes consisted in the survey of the main physical, psychological and social characteristics of the characters, in the accomplishment of typologies and in the study of each of them, 28 in total, based on the content plane and the plane of expression and their respective forms and substances, according to the theory of Hjelmslev (GREIMAS, 1973; FONTANILLE, 2008; VOLLI, 2007). The focus of the analysis was on the construction of a televisual discourse which is embodied through formative and aesthetic questions not only of the television medium, but also of cultural matrices and industrial formats that compose the technicality of Martín-Barbero's mediation map (2009) and part of the mediatization. The methodology employed tools of discourse analysis, Bakhtin's language studies (1999; 2003; 2010) and semiotics to encompass the complexity of character building in these telenovelas as a form and cultural product. Throughout the analysis, it was observed that the space-time characterization of the characters was shown as a key element for its construction and, using the concept of chronotope (Bakhtin, 2010), were found four types in the characters: the adventure chronotope, the idyllic, the third in private life and the trivial. The characters were divided into workers and emerging social and in the following typologies: matriarch, maintainer, periguete, femme fatale upstart, best friends, mentors, chameleon, nemesis, villains, heroine, brave woman, melodramatic and religious girl. The same character held more than one classification.

Keywords: telenovela, character, popular woman, social class.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mapa das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16) ...... 77 Figura 2 – Frame do primeiro capítulo de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4434047/...... 147 Figura 3 – Frame do capítulo 136 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4788969/...... 150 Figura 4 – Frame do primeiro capítulo de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1875660/...... 156 Figura 5 – Frame do capítulo 13 de Avenida Brasil disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1896316/...... 160 Figura 6 – Frame do primeiro capítulo de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4434047/...... 167 Figura 7 – Frame do primeiro capítulo de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4434047/...... 169 Figura 8 – Frame do capítulo 46 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4557820/>...... 174 Figura 9 – Frame do capítulo 46 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4557820/...... 177 Figura 10 – Frame do capítulo 12 de A Regra do Jogo. disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4463782/...... 179 Figura 11 – Frame do capítulo 130 de A Regra do Jogo. disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4771670/ ...... 181 Figura 12 - Frame do primeiro capítulo de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1875660/...... 185 Figura 13 - Frame do primeiro capítulo 8 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1887900/...... 187 Figura 14 - Frame do primeiro capítulo 12 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1894065/...... 196 Figura 15 - Frame do primeiro capítulo 12 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1894065/...... 198 Figura 16 - Frame do primeiro capítulo 13 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1896316/...... 200 Figura 17 - Frame do primeiro capítulo 5 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1882766/...... 202 Figura 18 - Frame do primeiro capítulo de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4434047...... 205 Figura 19 – Frame do capítulo 13 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4467144/...... 207 Figura 20 – Frame do capítulo 14 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4461870/...... 210 Figura 21 – Frame do capítulo 13 de Avenida Brasil disponível em globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1896316/...... 215 Figura 22 – Frame do capítulo 55 de Avenida Brasil disponível em globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1968067/...... 217 Figura 23 – Frame do capítulo 74 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4631905/...... 220

Figura 24 – Frame do capítulo 74 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4631905/...... 221 Figura 25 - Frame do primeiro capítulo 13 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1896316/...... 224 Figura 26 - Frame do primeiro capítulo 10 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1891462/...... 226 Figura 27 – Frame do capítulo 3 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4442652/...... 228 Figura 28 – Frame do capítulo 74 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4631905/...... 229 Figura 29 – Frame do capítulo 7 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4450401/...... 234 Figura 30 – Frame do capítulo 9 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4456009/...... 236 Figura 31 – Frame do capítulo 9 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4456009/...... 237 Figura 32 - Frame do primeiro capítulo de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1875660/...... 240 Figura 33 - Frame do capítulo 8 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1887900/...... 242 Figura 34 - Frame do capítulo 7 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1886075/...... 245 Figura 35 - Frame do capítulo 10 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1891462/...... 247 Figura 36 - Frame do primeiro capítulo de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1875660/...... 249 Figura 37 - Frame do capítulo 11 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1892914/...... 250 Figura 38 - Frame do capítulo 11 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1892914/...... 254 Figura 39 - Frame do capítulo 44 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1949207/...... 255 Figura 40 – Frame do capítulo 9 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4456009/...... 259 Figura 41 – Frame do capítulo 5 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4445492/...... 263 Figura 42 - Frame do capítulo 2 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4436828/...... 267 Figura 43 - Frame do capítulo 73 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4629375/...... 270 Figura 44 - Frame do capítulo 9 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1889464/...... 274 Figura 45 - Frame do capítulo 9 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1889464/...... 277 Figura 46 - Frame do capítulo 10 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1891462/...... 279 Figura 47 - Frame do capítulo 6 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4447442/...... 281

Figura 48 - Frame do capítulo 6 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4447442/...... 286 Figura 49 - Frame do capítulo 136 de A Regra do Jogo disponível no globoplay. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/4788969...... 287 Figura 50 - Frame do capítulo 54 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1965898/...... 290 Figura 51 - Frame do capítulo 164 de Avenida Brasil disponível no globoplay Fonte: https://globoplay.globo.com/v/2169005/...... 292

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - Lista de personagens Avenida Brasil e suas descrições...... 39 TABELA 2 – Lista de personagens A Regra do Jogo e suas descrições...... 42 TABELA 3 – Protocolo metodológico geral...... 103 TABELA 4 - Personagens do melodrama com base em Martín-Barbero (2009) ...... 119 TABELA 5 –Personagens de acordo com classificação de Vogler (2006) no livro a Jornada do Escritor...... 122 TABELA 6- Protótipos femininos do melodrama cinematográfico da América Latina, segundo Oroz (1992) ...... 123 TABELA 7 - Arquétipos femininos em romances, de acordo com Schmidt (2012) ...... 124 TABELA 8 - Algumas das personagens de apoio levantadas por Schmidt (2001) ...... 128 TABELA 9 - Lista de personagens baseada em Bakhtin (2010) ...... 140 TABELA 10 - Classificação cronotópica realizada a partir do corpus analisado...... 144

SUMÁRIO

Introdução ...... 14

1. Mulher popular brasileira: história, discurso e representação ...... 30

1.1. Objeto de pesquisa: corpus, contexto e hipóteses...... 30

1.2. Breve história da mulher urbana e pobre no Brasil ...... 48

1.3. Representação, diferença e poder ...... 58

1.4. Discursos midiáticos...... 65

2. O eixo do olhar na telenovela...... 76

2.1. Matriz cultural, gênero melodramático e tecnicidade...... 76

2.2. Midiatização, televisão e telenovela...... 82

2.3. Expressão e conteúdo ...... 93

2.4. metodologia de análise e sua fundamentação...... 98

2.5. Primeiras classificações e peculiaridades da telenovela...... 105

3. A forma do discurso da personagem popular ...... 111

3.1.Personagens: pessoa ou texto? ...... 111

3.2. Tipologias...... 118

3.3. Temporalidades da personagem popular...... 131

3.4. Cronotopo da aventura...... 147

3.5. Cronotopo idílico...... 196

3.6. Cronotopo da terceira na vida privida...... 215

3.7. Cronotopo trivial...... 234

Considerações Finais...... 300

Referências Bibliográficas ...... 307

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INTRODUÇÃO

Esta tese é o desenvolvimento de uma pesquisa que teve início no mestrado em 2012, cuja dissertação discorreu sobre a representação do que ficou conhecida na mídia jornalística como a “nova classe C” brasileira, em Avenida Brasil (escrita por João Emanuel Carneiro, exibida em 2012 na Rede Globo, às 21 horas) e (de Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, exibida em 2012 na Rede Globo, às 19 horas). Como enfatizado na época, na introdução da dissertação, o meu objeto de pesquisa – a telenovela – apresenta forte presença em minha vida. Cresci assistindo a telenovelas e, hoje, reassistindo a produções antigas, relembro etapas de minha própria vida e momentos que nem sequer vivi, como aqueles relatados pela minha mãe, em frente à TV, quando relaciona suas experiências passadas com cenas de novelas. Quando penso no , me vêm à mente o Leblon e as personagens das tramas de Manuel Carlos. O bairro Madureira para mim é como o fictício Divino de Tufão e família de Avenida Brasil, bem como seus moradores e moradoras da ficção. O também fictício Morro da Macaca (de A Regra do Jogo, do mesmo autor) é um exemplo de favela carioca para mim, entre tantos outros exemplos que poderia citar, que constroem um imaginário midiatizado. Pode-se dizer que - embora saibamos da premissa de que o pesquisador deve reservar certa distância de seu objeto -, estou inserida em minha pesquisa, sou um exemplo (ou prova?) prático da potencialidade de sentido da telenovela para o conhecimento e imaginário social. Talvez, de forma inconsciente, eu não teria partido para tal pesquisa se assim não fosse. No mestrado, a pesquisa limitou-se à análise discursiva dos diálogos de algumas cenas de ambas as tramas no que diz respeito à produção de sentido de consumo e classe social, levantando poucos aspectos da estrutura melodramática e da estética audiovisual. Observou-se, de forma superficial, maior inovação na telenovela Avenida Brasil, no que tange à representação dos gêneros discursivos primários – formados nas condições de comunicação mais imediatas, por exemplo as réplicas de diálogos, relatos cotidianos, fala informal, de acordo com Bakhtin (2003) - como forma de caracterização do núcleo popular. O conceito de midiatização foi trabalhado teoricamente, supondo-se que as representações estudadas contribuem para a construção de um conhecimento social a respeito de classe.

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A presente tese aprofunda e amplia os temas trabalhados anteriormente, porém a partir de outra chave. Com o objetivo de discutir as personagens sob diversos aspectos, demos na pesquisa de doutorado maior atenção à estrutura da telenovela, à narrativa e à linguagem televisual; considerando, além dos diálogos, o cenário, o figurino, enquadramento, planos e ângulos da câmera, e outras implicações da materialidade e linguagem teleficcional. O recorte para este trabalho se deu nas telenovelas de João Emanuel Carneiro Avenida Brasil (2012) e A Regra do Jogo (2015/2016). A primeira esteve em evidência na imprensa nacional e foi apontada por Lopes e Mungioli (2013) como um grande destaque de 2012, um “fenômeno midiático”, um dos grandes acontecimentos da indústria televisiva brasileira em 2012, um marco na teledramaturgia e uma “narrativa da nação” (LOPES; MUNGIOLI, 2013, p.129). Desse modo, optamos por prosseguir estudando essa trama com maior profundidade e incluir a novela do mesmo autor, transmitida em 2015 e 2016, A Regra do Jogo, para continuar a trabalhar com núcleos dramáticos ligados ao imaginário do popular e de suas representações. Ambas as tramas foram dirigidas por Amora Mautner, fato que também influenciou a escolha. As duas telenovelas ressaltaram, de algum modo, a representação popular em personagens femininas, e demonstraram uma preocupação com a construção estética, o que se mostrava pouco comum às telenovelas. Em A Regra do Jogo, a diretora empregou a proposta de caixa cênica, com a utilização de oito câmeras (as telenovelas comumente usam quatro), algumas destas escondidas (atrás de espelhos e quadros), reproduzindo o ambiente de reality show. Esta tese considera a telenovela, como toda a produção humana e obra artística, em seu contexto socio-histórico. Ao mesmo tempo em que os homens e suas obras apresentam aspectos determinados de acordo com o contexto de produção, também são agentes de novas possibilidades. Desse modo, corroboramos o materialismo histórico e a dialética marxistas (MARX; ENGELS, 1845-1846, 2007), assim como as teorias da linguagem baseadas nesta filosofia, por exemplo as de Bakhtin (1999, 2003; 2010) e Volóchinov (2017). Mas, do mesmo modo, dialogamos com autores que propõem novas abordagens, ultrapassando certos ideais marxistas, sem com isso negar a inserção histórica e social de suas pesquisas. Para localizar nosso objeto em um âmbito comunicacional amplo, utilizamos os mapas das mediações de Martín-Barbero (2004;2009), sobre os quais trataremos com mais profundidade no decorrer da tese. Nossa pesquisa se concentra no polo da produção

16 e nas lógicas midiáticas. Desse modo, nos dedicamos às articulações dos mapas das mediações que dizem respeito aos formatos industriais. O aspecto diacrônico que conecta as matrizes culturais aos formatos nos é dado teoricamente pela história do melodrama e seus formatos. É na relação sincrônica da tecnicidade – que relaciona as lógicas de produção e os formatos industrias – que se localiza nossa pesquisa. A tecnicidade, conceito que abrange os formatos industriais e seus modos de produção e recepção, conforme abordamos neste trabalho, diz respeito ao formato e às materialidades da telenovela, que perpassam a mídia televisiva e suas implicações no processo de midiatização. Pretendemos trabalhar a midiatização como propõe Barros (2012), considerando-a compatível com os Estudos Culturais e complementar ao conceito de mediação de Martín-Barbero, principalmente após a sua reformulação do mapa das mediações em Ofício de Cartógrafo (2004), que vai das mediações culturais da comunicação às mediações comunicativas da cultura. Essa segunda visão corrobora a concepção da centralidade comunicacional e midiática na cultura contemporânea. É pertinente salientar que os temas classe social e questões de gênero1 apresentam relevância social e devem ser abordados, pois se configuram como elementos-chave no que diz respeito às desigualdades sociais no país, juntamente com a questão racial que não será tratada nesta tese. Além disso, o feminino e o popular são elementos intrínsecos à telenovela, presentes em suas raízes melodramáticas. Abordamos o popular de acordo com seu tensionamento político e também cultural, conforme trata Martín-Barbero (2009), que o articula com o conceito de massa e ao contexto urbano capitalista. Interessa-nos tratar da mulher popular como um conceito construído socialmente a partir de um senso comum, compartilhado midiaticamente. Trata-se da produção de sentido construída a partir das condições históricas da moradora da periferia ou subúrbio, que vive socialmente em desvantagem - em relação à sociedade como um todo e também dentro de sua própria classe social em relação ao homem – e que sempre precisou do trabalho fora do ambiente doméstico para sobreviver, cujas raízes se encontram no final do século XIX e início do século XX nas grandes cidades brasileiras

1 Como a tese versa sobre o gênero feminino e o gênero televisivo telenovela, para não gerar confusão, optou-se por utilizar a expressão “questões de gênero” – quando a palavra “gênero” não vier acompanhada de uma explicação ou palavra que a qualifique, como “feminino” - para abordar as construções sociais de gêneros para seres humanos calcadas nas diferenciações sexuais.

17 em formação. Também é popular no sentido de não compartilhar de uma mesma cultura (ou nos mesmos moldes) da classe dominante. (SOIHET, 2015) (FONSECA, 2015). Observa-se tanto na telenovela, como nas falas dos entrevistados em estudos de recepção da teleficção (RONSINI et al., 2006; RONSINI, 2017; DEPEXE, 2014; TONDATO;VILAÇA, 2017), um discurso comum pelo viés da classe dominante, que encontra fundamento nas teorias sociais e históricas a respeito da mulher urbana e pobre no Brasil. É plausível argumentar que a telenovela trabalha com um senso comum do conhecimento cotidiano (BERGER; LUCKMANN, 2014) por meio de personagens baseadas em construções sociais hegemônicas, reproduzindo saberes e crenças que já povoam o senso comum brasileiro, retrabalhando-as à sua maneira. Os estereótipos, que fazem parte desse senso comum (LIPPMANN, 1980), são ultrageneralizações necessárias à vida diária (HELLER, 2004), por um lado, mas que podem gerar estigmas sociais ao fixar representações reducionistas e substituir o todo pela parte (HALL, 2016). Assim, pretende-se analisar as especificidades da produção de sentido da mulher popular na telenovela por meio do discurso verbo-visual. Temos como eixo norteador de nossa pesquisa a seguinte pergunta: de que forma os discursos das telenovelas Avenida Brasil e A Regra do Jogo produzem sentido sobre a mulher popular por meio de suas personagens? Para responder a essa pergunta a pesquisa teve entre seus objetivos: ● Discutir as características da telenovela brasileira com a finalidade de analisar os discursos das personagens afeitas ao que se denomina mulher popular brasileira. ● Investigar a forma, estética e materialidade presentes na construção de sentidos da mulher popular em duas telenovelas de João Emanuel Carneiro, por meio da análise discursiva, narrativa e da estética televisual de personagens femininas. ● Contribuir para o aprofundamento das discussões em torno da telenovela a partir da construção discursiva e estética de personagens femininas populares. ● Oferecer diretrizes de classificação e tipologias de personagens de teleficção. ● Contribuir para uma metodologia nos estudos sobre teleficção com foco na materialidade dos discursos televisuais. De modo geral, sobre a tecnicidade, sabemos que, segundo Sadek (2008), as telenovelas adotam, normalmente, o modelo clássico de decupagem, dominante no cinema. De acordo com Xavier (2005), a decupagem clássica mantém a atenção do espectador no drama, na narrativa e personagens, o que apaga a presença do aparato e a

18 descontinuidade visual de montagem. Essa técnica - que também opera esteticamente e produz sentidos diversos como veremos posteriormente - possibilita maior identificação dos espectadores com a história e as personagens. Como demonstram pesquisas de recepção da telenovela (RONSINI et al., 2006), os telespectadores tendem a identificar as personagens com pessoas da vida real, sem se atentar ao dispositivo audiovisual. Para explorar esse modus operandi da tecnicidade, especificamente no caso da representação da mulher popular, entendemos que a telenovela brasileira trabalha suas personagens de modo específico com base em três elementos que se se retroalimentam, a saber: narrativa popular (melodramática e realista), enunciação televisual e cotidianidade. Para esse levantamento, inspiramo-nos nas discussões de Jost (2007) sobre as três formas de fruir a teleficção: atualidade (referência a assunto tratados recentemente no “mundo real”), universalidade (temáticas universais a todo o ser humano, como relações familiares, mortes e nascimentos) e enunciação televisual (a técnicas de montagem, uso de câmeras, entre outros aspectos da materialidade televisiva). Nossa hipótese é de que há um modo específico de construir o discurso sobre a mulher popular na telenovela que pode ser observado em termos de estrutura e estética das cenas. Acreditamos que haja um trabalho específico com elementos relacionados ao popular, em diálogo com a estética do excesso (RANCIÈRE, 2010), com a paródia, com o realismo grotesco e a carnavalização discutidos por Bakhtin (1999; 2010). O adensamento dessas características, em nosso entendimento, caracteriza e tensiona a temporalidade narrativa nas telenovelas estudadas. Temos como exemplos as cenas de alvoroço familiar, contendo assuntos banais, que provocam riso, da família de Tufão em Avenida Brasil e da família do Feliciano de A Regra do Jogo. Percebe-se, assim, uma estética popular nas falas, gestos e trajes das personagens, em consonância com o que o sociólogo Bourdieu (2007) discute sobre o gosto de classe. Para tanto, a tese abarca em sua discussão teórica o conceito de mulher popular brasileira, de acordo com teorias que abordam a alteridade do gênero feminino, questões de classe social, o conceito de popular e a história da mulher popular brasileira. O levantamento teórico contempla estudos sobre a formação de estereótipos e representações recorrentes sobre o que se entende por mulher popular do Brasil. A partir dessa pesquisa e discussão, realizamos um mapeamento das personagens que consideramos populares.

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Um segundo momento teórico requer localizar nosso objeto no contexto das pesquisas em comunicação, no mapa das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2009; 2004), a partir do qual se pretende discutir o gênero melodramático como matriz da telenovela, e a tecnicidade como elemento mediador complexo. A metodologia divide-se em três etapas. A primeira consistiu em realizar uma classificação das personagens, de acordo com as reincidências de características a fim de construir uma tipologia que abarcasse as personagens femininas populares em ambas as tramas. As classificações foram refinadas conforme emergiram novas reflexões no decorrer do trabalho. Na segunda parte do trabalho, realizamos uma análise dividida em plano da expressão, plano do conteúdo e suas respectivas formas e substâncias, de acordo com as teorias de Hjelmslev retomadas por Greimas (1973) e Fontanille (2008). E a terceira etapa relacionou todos os resultados ao contexto socio-histórico com uma análise discursiva. É pertinente pontuar como diferencial da presente pesquisa a contribuição acadêmica diante da escassez de estudos sobre televisão e telenovela no que tange à materialidade estética imagética dos gêneros televisuais tensionada com abordagens culturais e sociais. São poucas as pesquisas que conseguem unir ambas as perspectivas nos estudos de televisão, como argumenta Gomes (2011). A autora acredita que uma das razões para a ausência de estudos de formato no escopo dos estudos culturais sejam as análises vindas dos estudos de cinema e literários, ligados ao estruturalismo, trazendo o gênero como elemento cultural formal, longe de seus vínculos com a cultura, política e sociedade. Por outro lado, quando se dedicam a analisar gêneros, abordagens vindas dos estudos culturais parecem tomar o gênero apenas como um pretexto para chegar à análise das relações de poder e da constituição de identidades e a ignorar a materialidade das obras, suas marcas expressivas e poéticas, em prol da consideração dos contextos de produção e recepção (GOMES, 2011, p 112).

A partir desses apontamentos, passamos para o estado da arte recente – de teses e dissertações - para situar o trabalho aqui pretendido. Realizamos um levantamento na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações de pesquisas concluídas a partir de 2011 até fim de 2017 sobre telenovela brasileira, questões de gênero feminino e classe social. Foram encontrados vinte e cinco trabalhos, entre teses e dissertações, que tratam da telenovela e representação feminina,

20 e/ou classe social. Dezessete dessas pesquisas têm foco na linguagem da telenovela, ou seja, na produção, que é o centro desta tese, e oito são pesquisas de recepção. Antes de abordar os trabalhos levantados, é pertinente destacar três trabalhos que tratam de merchandising social na telenovela , de Glória Perez, transmitida em 2012 e 2013, na Rede Globo no horário das 21 horas. São elas: A dissertação “Função educativa da telenovela brasileira: do merchandising social à ação socioeducativa em Salve Jorge” (JESUS, 2013), defendida na USP em Comunicação; a tese também em Comunicação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “Interesse público e o poder da telenovela: merchandising social e repercussão do tráfico de pessoas em Salve Jorge” (ALVES, 2015); e a dissertação em Psicologia defendida na Universidade de Brasília “Metacontingências na novela Salve Jorge: A mídia televisiva no enfrentamento do tráfico de pessoas” (DO VALE, 2016). Apesar de o tema central da trama de Glória Perez ser o tráfico de mulheres para outros países e sua prostituição forçada, os trabalhos encontrados não destacam a temática feminina no título e nem no resumo, por isso não foram considerados neste levantamento. Além disso, é relevante discorrer a respeito dos trabalhos encontrados que se dedicam a questões de gênero no que diz respeito à orientação sexual, sem enfoque na construção do feminino. Um deles se ocupa da representação do metrossexual, “Masculinidades em cena: o modo de ser e de pensar o metrossexual” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2012), é uma dissertação de mestrado na área de Antropologia da Universidade Federal do Pará. Outras sete abordam as questões de gênero na telenovela a partir da representação LGBT. Dessas, três delimitam o universo masculino logo no título: a dissertação em Comunicação na ESPM “Vilania e homossexualidade: o personagem Félix Khoury da telenovela Amor à vida nas leituras da Comunidade LGBT na cidade de São Paulo” (CRETAZ, 2015); “Bicha (nem tão) má: representações da homossexualidade na telenovela Amor à Vida” (SILVA, 2015), também em Comunicação, na PUC do Rio Grande do Sul; e “A construção da heteronormatividade em personagens gays na telenovela” (SANCHEZ, 2013), considerando a nomenclatura gay como referência a homossexuais masculinos (no resumo, o autor deixa mais claro o foco em homossexuais homens). Entre as outras quatro, a tese de doutorado em Comunicação defendida na Universidade de Brasília, “O discurso sobre a homossexualidade em Insensato Coração: ressonância nos comentários - fragmentos discursivos - de internautas em websites”

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(DESIDÉRIO, 2013) trata do merchandising social contra a homofobia em uma telenovela que continha seis personagens homossexuais, das quais havia apenas uma mulher, Aracy, vivida por Cristiana Oliveira. Era uma presidiária vilã que dura pouco na trama e não se insere na ação de merchandising social da telenovela. A tese “A construção discursiva e a recepção da homoafetividade na teledramaturgia brasileira: consumo, representação e identidade homossexual” (OLIVEIRA, 2014), defendida na Universidade Metodista de São Paulo, em Comunicação, não deixa claro se a pesquisa se concentra em homossexuais de forma em geral, ou apenas masculinos. No resumo, o termo “gays” indica que o autor discorre sobre a representação de personagens homossexuais homens. Por sua vez, a dissertação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará “O sujeito no armário em face do “abjeto” objeto de desejo: a dinâmica do outing na “narrativa de revelação” de uma telenovela global” (NETO, 2017) esclarece no resumo que discorrerá sobre o relacionamento entre duas personagens homens na telenovela Babilônia, transmitida em 2015 na Rede Globo. Curiosamente, havia em destaque nessa trama um casal de mulheres lésbicas da terceira idade que causou bastante polêmica entre o público. Apenas a dissertação de mestrado “A representação das identidades homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: uma leitura dos personagens protagonistas no período da censura militar à televisão” (FERNANDES, 2012) defendida na área de Comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora destaca no resumo personagens que viveram experiências lésbicas, das tramas e , na década de 1970. Isto posto, no universo das pesquisas que discorrem sobre o tema de interesse, levantamos oito trabalhos que se filiam ao que se convencionou chamar estudos de recepção. Sete deles fazem parte da área de Comunicação e um é de Antropologia. São eles: a dissertação “Retratos do brasileiro no imaginário equatoriano: um estudo de recepção da telenovela Avenida Brasil em Guayaquil” (NOVAES, 2014), defendida na ESPM (apesar de o título não enfatizar a questão de gênero e classe social, a autora entrevista mulheres de diferentes classes sociais e aborda o imaginário a respeito das brasileiras); a tese “Mundos possíveis e telenovela: memórias e narrativas melodramáticas de mulheres encarceradas” (JOHN, 2004), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; a tese “´Todo mundo fala mal, mas todo mundo vê´: estudo comparativo do consumo de telenovela por mulheres de diferentes classes” (SIFUENTES, 2014) realizada na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul;

22 a dissertação “Feminino velado: a recepção da telenovela por mães e filhas das classes populares” (SILVA, 2011) defendida na Universidade Federal de Santa Maria; a tese de doutorado “Distinção em 140 caracteres: classe social, telenovela e twitter” (DEPEXE, 2014), da Universidade Federal de Santa Maria; a dissertação da ESPM “Consumo de moda e representações nas telenovelas: : a construção da identidade da mulher plus size” (ANKERKRONE,2015); a dissertação de Mourão (2013) “Espelho mágico: empregadas domésticas, consumo e mídia”, desenvolvida no departamento de Antropologia, na Universidade de São Paulo; e a pesquisa de mestrado em Comunicação defendida na ESPM “A realidade que se vê e a realidade que se vive: uma pesquisa de recepção sobre as representações sociais da favela e suas práticas de consumo na ficção televisiva brasileira” (ALVES, 2017). Esses trabalhos trazem resultados importantes para a presente tese no que diz respeito ao papel da telenovela no imaginário brasileiro, além de contribuírem com a discussão sobre questões de gênero e classe social. Quanto às 17 pesquisas que tratam do chamado polo da produção, há a dissertação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina “Infância, gênero e consumo na telenovela Carrossel” (ALVES, 2014), que analisou cenas da trama transmitida pelo SBT em 2012 e 2013. De acordo com a autora, a metodologia utilizada foi a etnografia de tela, além de autores que tratam de crítica cinematográfica e televisiva. O resultado explicitado pela autora é que a trama mantém os estereótipos de gênero, estimula o consumo e não delimita claramente a fronteira entre adultos e crianças. É pertinente destacar que, conforme explicação de Alves, os estereótipos são reforçados pelo roteiro, câmera, sonoplastia e figurino. Ou seja, o trabalho apresenta o diferencial de versar sobre a materialidade da produção televisual. A dissertação de mestrado em Comunicação na Universidade Federal de Goiás “Violência contra mulher a gente vê por aqui!: a representação da violência doméstica em telenovelas brasileiras” (SANTOS, 2014) trabalha com duas telenovelas transmitidas na Rede Globo – e . A autora utiliza a Teoria da Representação Social e Análise de Conteúdo. A estudiosa destaca no resumo que a análise apontou o diálogo das tramas com fatos reais. A dissertação em História na Universidade Federal de Sergipe “A prostituição televisionada em "Gabriela": tempo presente, história e política no audiovisual brasileiro de 1975” (MARTINS, 2014) analisa a representação da prostituição na primeira versão da teleficção Gabriela, exibida na Rede Globo, em 1974. Além da análise interna da

23 trama, a pesquisadora recorreu a fontes jornalísticas para averiguar a repercussão de Gabriela na época. A autora entende a produção estudada como um tipo de documento histórico, reveladora de certa realidade. Na dissertação de mestrado em Educação na Universidade Federal de Pernambuco “Trabalho e maternidade: regularidades enunciativas do discurso da feminilidade no currículo da EJA e no currículo cultural da telenovela” (SANTOS, 2011), a autora faz um cruzamento entre o discurso da feminilidade da telenovela e o conteúdo curricular da Educação para Jovens e Adultos (EJA). A metodologia foi composta pelos Estudos Culturais, Pedagogia Cultural e teorias de Foucault. A dissertação de mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora “A Condessa de Monte Cristo: a representação da identidade da mulher presa na telenovela Insensato Coração” (GONÇALVES, 2015) analisa a personagem Norma (Glória Pires) de Insensato Coração à luz do romance “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas. Assim como a personagem principal do romance francês, Norma é presa injustamente e prepara uma vingança, ainda na cela, contra aqueles que a prejudicaram. A metodologia utilizada pelo autor da dissertação é a Análise de Conteúdo. Em “"Cheias de Charme": abrindo espaço para a nova classe média? Estudo dos conflitos de classe na teledramaturgia nacional” (LUZ, 2015) - dissertação defendida na Universidade Federal da Bahia, no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – a autora analisa as relações entre diferentes classes sociais. A análise considerou o diálogo entre texto e contexto (condições de produção), aproximando-se, assim, da análise discursiva. O trabalho de mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, no programa de Sociologia, “As assimetrias de gênero nas representações de extraconjugalidades na telenovela Avenida Brasil” (ALBANO, 2014) enfoca a representação de gênero, homens e mulheres, em Avenida Brasil, nos casos de extraconjugalidade. Além da aplicação da Análise de Conteúdo, a pesquisadora realizou uma pesquisa de campo (transeuntes e universitários de ambos os sexos) para investigar a percepção das pessoas sobre essas representações. O resultado obtido foi que a telenovela, apesar de trazer diversas representações femininas, não tratam das assimetrias de gênero e reproduzem as diferenças calcadas no âmbito sexual. A pesquisa de campo demonstrou posicionamento semelhante ao da telenovela.

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A dissertação “Envelhecer com Passione: a telenovela na vida de idosas das classes populares” defendida na Universidade Federal de Santa Maria em Comunicação (WOTTRICH, 2011) aborda tanto a questão de gênero como de classe. Trata-se de uma pesquisa que abarca a representação na telenovela Passione, polo da produção, e a opinião de seis mulheres idosas das classes populares, recepção. A pesquisadora baseou-se nos Estudos Culturais, nas reflexões latino-americanas e em estudos específicos sobre velhice e mídia. A metodologia consistiu no modelo de Stuart Hall, de codificação e decodificação, e o modelo das Mediações Comunicativas da Cultura de Martín-Barbero. Dentre os resultados, a autora identificou que Passione reproduz representações dominantes, mas proporciona também espaços para a negociação de codificações diferentes. Constatou-se que a classe social proporciona uma vivência do gênero feminino mais opressora, influenciando o modo como as entrevistadas entendem a velhice, mas, ao mesmo tempo, a velhice modifica a sua visão tradicional sobre gênero feminino. A autora identificou uma recepção negociada, embora em geral exista o endosso das codificações dominantes. Na dissertação “Moda de novela: os conteúdos de Salve Jorge divulgados em revistas femininas e as estrelas como padrões-modelo de estilo e beleza” em Comunicação na PUCRS (LOPES, 2014), a autora analisa revistas femininas para averiguar a influência das atrizes de telenovelas nas tendências de consumo, durante a novela Salve Jorge. A metodologia considerou o conceito de Star System, de Edgar Morin, e teorias sobre a pós-modernidade. A pesquisadora apontou que existe um fator potencializador das telenovelas no estímulo ao consumo. A dissertação defendida na PUC do Rio de Janeiro em Comunicação “Periguetes, transgressão e representação: um estudo sobre comunicação, gênero e desvio na cultura contemporânea” (MENDES, 2016) aborda a representação social das periguetes. O trabalho realiza revisão bibliográfica com foco nos estudos do gênero feminino, corpo e padrões de beleza. O trabalho apresenta análises de conteúdo referente a duas personagens de telenovela consideradas periguetes e traz pesquisa de campo mediante entrevistas sobre o tema com 24 jovens adultos cariocas. Os resultados demonstram que as roupas curtas e chamativas têm bastante relevância na identificação do que se entende por periguetes. Estas sofrem certa estigmatização e são excessivamente preocupadas com a própria beleza.

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A dissertação em Comunicação defendida na PUC do Rio de Janeiro “Dia de Empreguete, Véspera de Madame: A mudança na representação ficcional das empregadas domésticas a partir da PEC 66/2012” (PINTO, 2017) estuda a representação das empregadas domésticas em Cheias de Charme, em um contexto de mudanças trabalhistas para a categoria. Relações de classe, sexo e raça são entrelaçadas na pesquisa. A análise se fixa no conteúdo, mediante conceitos de Bakhtin e análise crítica do discurso. Dentre os resultados, a autora destaca um discurso que revela a ascensão das empregadas economicamente, compatível com o contexto do Brasil no momento. Aponta também à permanência de uma narrativa clássica na trama, da valorização do casamento e amor romântico. Em Ciências Sociais, a tese defendida na PUC de São Paulo “Representações das relações entre classes sociais em duas telenovelas brasileiras: Cheias de Charme e Avenida Brasil” (PIQUEIRA, 2017) trata das tramas no contexto social e político brasileiro marcado pelo aumento de renda das classes trabalhadoras naquele momento. O autor faz uma revisão bibliográfica e realiza análise de cenas por metodologia proposta por Eduardo Morettin. Os resultados apontados são a representação do mandonismo e conciliação de classes em Cheias de Charme, na qual a representação do trabalho doméstico trouxe contradições, ora valorizado e ora desvalorizado. Avenida Brasil apontou para a falta de um projeto estrutural de desenvolvimento social e econômico no país. Mas, o autor ressalta o caráter folhetinesco e de espetáculo das tramas. A tese em Comunicação defendida na PUC do Rio Grande do Sul “Má! Maravilhosa!: lindas, louras e poderosas, o embelezamento da vilania na telenovela brasileira” (ROCHA, 2016) trata da imagem da maldade associada à beleza e a um feminino forte, por meio de uma galeria de vilãs do ano 1970 a 2015. Seis personagens são selecionadas para análise atenta às transformações no melodrama, narrativa e visão sobre a beleza e o corpo. A metodologia de análise não é definida pela autora que lança um olhar socio-histórico ao objeto. Os resultados indicam a complexificação das narrativas e o embelezamento da maldade ao longo do tempo. As seis personagens se assemelham em determinados aspectos e se diferenciam devido a transformações históricas e dramatúrgicas. Poder econômico, beleza e maternidade são temas presentes em todas. A maternidade principalmente se mostrou um tema central. A dissertação em Comunicação na PUC de São Paulo ““Classe C” na TV: imagens de uma mitologia brasileira” (IKEDA, 2016) trata da representação da “Classe C” em

26 programas de televisão, mais especificamente a Rede Globo, dentre os quais a telenovela Cheias de Charme. A análise do conteúdo é baseada em Barthes e revela que os pobres são representados como cordiais, alegres e flexíveis; que as protagonistas são novas ricas e não classe média; o fortalecimento da imagem da mulher; e uma ideia evolutiva do pobre para o rico em personagens jovens com acesso à educação, cujos costumes se diferem dos demais dos núcleos da “classe C”. O trabalho de mestrado “A mulher negra na primeira pessoa: uma construção de raça e gênero nas novelas protagonizadas por Taís Araújo” (OLIVEIRA, 2016), defendido na Universidade Federal de Sergipe em Comunicação, discorre sobre a representação da mulher negra como tensionamento entre gênero feminino e raça. O procedimento metodológico contempla a Análise de Imagens em Movimento, mediante a qual o trabalho tange alguns aspectos materiais da teleficção. A pesquisa aponta para a relevância da atriz Taís Araújo ter sido a primeira mulher negra a ocupar o lugar de protagonista em uma telenovela. As temáticas centrais levantadas foram racismo, xenofobia, trabalho doméstico, violência contra a mulher, assédio no trabalho, desemprego, aborto e outros. A autora destaca que os temas são tratados de forma superficial e sem crítica, apesar de sua importância. Também houve aspectos de estereotipia da mulher negra, como a exaltação da sensualidade, a linguagem incorreta e o temperamento “barraqueiro”. O trabalho não traz a problemática da classe social. A tese em Comunicação defendida na PUC do Rio Grande do Sul “A representação da mobilidade social como estratégia de persuasão na telenovela Avenida Brasil” (SANTOS, 2016) apresenta o diferencial de tratar aspectos materiais da trama, mais especificamente, sobre o papel do cenário na representação de classe. A tese trata da representação da mobilidade social em Avenida Brasil a partir das mudanças econômicas e sociais do país. A metodologia se baseou em categorias de retórica, análise de conteúdo e técnicas de estranhamento, entranhamento e desentranhamento. O trabalho aponta para o entrelaçamento entre ficção e realidade em Avenida Brasil, a ascensão de uma nova classe média como construção retórica, com elementos clássicos do folhetim e inovações técnicas, narrativas e dramáticas na trama. Por fim, a tese de Ramos (2016) “Entre Gêneros: representações do feminino na teledramaturgia brasileira” defendida na Universidade de São Paulo, em Comunicação, oferece um mapeamento temático em 15 programas de protagonismo exclusivo feminino. Foram levantados 51 temas distribuídos em 6 eixos temáticos. O aspecto quantitativo

27 levantado e a metodologia se destacam na tese. A metodologia consistiu em construção de banco de dados com a tecnologia Microsoft SQL Express e um sistema desenvolvido exclusivamente para a tese; e Análise do Discurso Francesa em uma outra etapa. Em um panorama geral, os temas mais recorrentes foram em ordem de importância: 1. relações amorosas e familiares; 2. corpo e comportamento; 3. sexo e sexualidade; 4. trabalho, carreira e sustento; 5. violências contra a mulher; 6. cidadania, políticas públicas e problemas sociais. Observa-se que a maioria dessas pesquisas corrobora a visão geral dessa tese, de que a telenovela dialoga com o cotidiano dos brasileiros na construção de conhecimentos e realidades, sobretudo no que diz respeito à concepção de classe social e gênero. Verificou-se que nove pesquisas, das 25, tratam do tema gênero feminino e classe social de forma entrelaçada. Dessas, seis estudam a recepção - Novaes (2014), Mourão (2013), JOHN (2004), (SIFUENTES, 2014), SILVA (2011) e DEPEXE (2014) – todas da área de Comunicação, exceto Mourão (2013) pertencente à área de Antropologia. E três dedicam-se ao polo da produção, todas da área de Comunicação: Wottrich (2011), Pinto (2017) e Ikeda (2016). Considerando um total de 17 pesquisas no polo da produção sobre o tema, poucas delas se debruçam sobre as duas temáticas juntas. Observou-se que as tramas Cheias de Charme e Avenida Brasil foram bastante exploradas em relação ao assunto classe e questões de gênero (não necessariamente em conjunto), totalizando nove pesquisas, sete delas dedicadas ao estudo da produção teleficcional, sendo apenas quatro da área de Comunicação: Mendes (2016), Pinto (2017), Ikeda (2016) e Santos (2016). Ou seja, a telenovela, no que diz respeito às tramas e recorte supracitados, tem sido explorada em áreas diversas do conhecimento em humanidades, o que demonstra a relevância e abrangência da teleficção ao suscitar perguntas de pesquisa. Das dezessete pesquisas que se dedicaram ao estudo do polo da produção, as únicas a ressaltarem, de algum modo, já no resumo, a linguagem televisual ou o interesse nela foram: Alves (2014) da área de Psicologia, Santos (2016) e Oliveira (2016), ambas de Comunicação. Se voltarmos o olhar para o interesse desta tese não há pesquisa recente sobre telenovela que trate classe e mulher conjuntamente com enfoque para a estética e forma da telenovela. O trabalho de Oliveira (2016) é o que mais se aproxima da proposta por estudar a representação da mulher negra e tangenciar, mesmo que sem enfoque, alguns aspectos de classe, mediante metodologia que considera as imagens em movimento.

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É possível averiguar, historicamente, a ausência de uma tradição de estudos que exploram a linguagem audiovisual na telenovela e um foco maior nos estudos de recepção e de conteúdo, o que ocorre de modo contrário nos estudos sobre cinema. Acreditamos que os tipos de estudo são complementares, e, no caso desta tese, as pesquisas em recepção, as análises de conteúdo e discurso trarão luz a muitas questões aqui tratadas. Desse modo, a presente tese é uma contribuição para os estudos acadêmicos sobre televisão e, em especial sobre a telenovela brasileira, a partir do cruzamento conceitual entre classe social e gênero feminino, com foco, entre outros aspectos, na construção discursiva e estética da linguagem teleficcional. Tendo em conta o quadro acima traçado, a seguir apresentamos os capítulos que compõem a presente pesquisa, bem como as autoras e autores que embasaram nossas discussões. O primeiro capítulo versa sobre o conceito de mulher popular brasileira. Estudamos as concepções de mulher e classe como alteridade, com base em Beauvoir (1970), Scott (1995) e as lógicas de poder entre “outsiders e estabelecidos” (ELIAS; SCOTSON, 2000), além de teóricos que tratam de classe social. Tratamos o popular também por um prisma cultural (BAKHTIN, 1999, 2010) e seu aspecto massivo na contemporaneidade (MARTÍN-BARBERO, 2009). A partir disso, considerada a mulher popular como o “outro” em duplo sentido, discorremos a seu respeito no Brasil a partir do século XIX, mediante um viés histórico (DEL PRIORE, 2015; SOIHET, 2015; FONSECA, 2015). Em seguida, tratamos da apreensão do senso comum sobre essa mulher, a partir da construção social da realidade por meio da linguagem (BERGER; LUCKMANN, 2014), representações e discursos recorrentes. O segundo capítulo retoma a construção social da realidade a respeito do que se entende por mulher popular, com foco no papel midiático em um processo entendido como midiatização. Para tanto, recorremos primeiramente ao mapa das mediações de Martín-Barbero (2009), a fim de localizar a pesquisa em um processo comunicacional amplo, cultural e social. A tecnicidade, que se relaciona com o processo de midiatização em nossa concepção, é explorada juntamente com o conceito de forma e materialidade para explicarmos, assim, o que se espera das análises posteriores. Para isso, abordamos também as matrizes culturais do melodrama em seu sentido histórico e social (MARTÍN- BARBERO, 2009; BROOKS, 1995; MEYER, 1996) para levantar as características do gênero telenovela e suas implicações nas representações. A televisão também é explorada

29 nesse capítulo com o intuito de percorrer a mídia suporte da telenovela enquanto conformadora de um formato. Nos basearemos em Williams (2016) e Jost (2007;2012) e estudiosos da linguagem televisual de uma forma mais ampla. Esse capítulo também detalha a metodologia. No terceiro capítulo, aprofundamos os estudos sobre personagens, com apoio de Smith (2004), Brait (2017), Candido (2014) entre outros. Realizamos diferentes classificações das personagens selecionadas para explorar similaridades, repetições e diferenças. Baseamo-nos em perfis de classe social e teóricos que abordam tipologias narrativas recorrentes entre os quais destacamos Vogler (2006) e Schmidt (2012). Levantamos o percurso sintagmático das narrativas de cada uma aprofundando a análise inicial com a formulação dos níveis fundamentais narrativos explanados pela teoria greimasiana (BARROS, 2011). A partir disso, um novo agrupamento nos permite explorar o conceito de cronotopo (BAKHTIN, 2010) de modo amplo e selecionar as personagens mais significativas para a etapa seguinte de análise aprofundada, paradigmática, em cenas selecionadas, mediante protocolo metodológico fundamentado em Vanoye e Goliot-Lété (2012) e Chion (1998). Posteriormente, amarramos os achados com a análise do discurso francesa. É apropriado apontar que, conforme Shohat e Stam (2006) defendem, no discurso hegemônico dos meios de comunicação, todo o papel subalterno é como uma sinédoque, ou seja, uma parte que representa um todo social bem maior, dada a escassez de sua representação. O contrário não acontece com os grupos dominantes, “[...] pois mesmo imagens ocasionalmente negativas fazem parte de um amplo repertório de representações” (SHOHAT; STAM, 2006, p.269). Assim, entendemos que antes de realizar um juízo de valor das representações, interessa-nos investigar quais os elementos que compõem os estereótipos recorrentes da mulher, como eles são trabalhados na materialidade midiática da telenovela e o que dizem sobre a nossa sociedade. Ao mesmo tempo, é preciso olhar para as possíveis mudanças que essas representações indicam, tanto sociais como para o gênero telenovela.

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1. Mulher popular brasileira: história, discurso e representação

“Meu conhecimento da vida cotidiana tem a qualidade de um instrumento que abre caminho através de uma floresta enquanto faz isso projeta um estreito cone de luz sobre aquilo que está situado logo adiante e imediatamente ao redor, enquanto em todos os lados do caminho continua a haver escuridão”. (BERGER; LUCKMANN, 2014, p. 64)

Este capítulo apresenta e contextualiza o objeto estudado – personagens femininas consideradas populares nas telenovelas Avenida Brasil e A Regra do Jogo - e discute a existência de um discurso comum, sobretudo midiático, a respeito da mulher popular brasileira, calcado em reducionismos baseados em percepções históricas sobre a mulher pobre no Brasil. Estudos de recepção e de produção televisiva apontam para uma forma estereotipada de lidar com as mulheres populares, tanto por parte da mídia quanto do público. Para tratar desse assunto, além de pesquisas em comunicação, trazemos estudos que se inserem no quadro da história social e em autoras e autores que abordam as relações de poder, representação e estereótipo. Partimos do pressuposto de que a telenovela é uma obra localizada social e historicamente e por isso dialoga com o seu tempo, assim faz-se pertinente tratar suas representações em dialogia com o que se considera real, por exemplo a história da mulher pobre no Brasil. Desse modo, os elementos do senso comum levantados neste capítulo estão presentes também nas personagens da telenovela, nas diferentes instâncias que formam o seu discurso – percurso narrativo, estética e expressão no geral.

1.1. Objeto de pesquisa: corpus, contexto e hipóteses A telenovela Avenida Brasil, escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Amora Mautner, foi exibida na Rede Globo do dia 26 de março de 2012 ao dia 19 de outubro de 2012, às 21 horas. Ao todo foram 179 capítulos. A telenovela tem duas fases temporalmente localizadas, a primeira compreende o período entre o ano de 1999 e o ano 2000 e dura poucos capítulos, a segunda se passa em 2012 e dura todo o resto da telenovela. O plot principal da trama se apresenta em torno da vingança de Rita/Nina (Débora Falabella) contra a ex-madrasta Carminha (Adriana Esteves), que a abandonou no lixão quando criança após aplicar um golpe no pai dela, Genésio (), e provocar indiretamente a sua morte. No lixão, Rita é criada por mãe Lucinda (Vera Holtz)

31 junto de outras crianças. Depois de algum tempo, ela é adotada por uma família da Argentina e passa a se chamar Nina. A vilã Carminha também consegue enganar o jogador de futebol Tufão (Murilo Benício). Devido ao sentimento de culpa pelo atropelamento e morte de Genésio, o jogador se sente na obrigação de cuidar de Carminha e, assim, vê seu relacionamento com Monalisa (Heloisa Périssé) ir por água abaixo. Tufão e Carminha se casam. No bairro do Divino, o casal mora em uma mansão junto com os pais de Tufão e sua irmã Ivana (Letícia Isnard) que é casada com Max (), amante e comparsa de Carminha desde o tempo e que ela era casada com Genésio. Nina cresce na Argentina, torna-se chefe de cozinha e retorna para o Rio de Janeiro. Com o pretexto de ser cozinheira na mansão, consegue se infiltrar na vida da família de Tufão para arquitetar o seu plano. Mas, a moça descobre que Batata, o seu namorado de infância do lixão, agora Jorginho (Cauã Reymond), é filho adotivo de Carminha e Tufão. A maioria das personagens mora no bairro suburbano Divino. O lixão, em outro bairro, também concentra parte importante da história. Há apenas um núcleo ambientando em um bairro nobre do Rio de Janeiro, cuja história não interfere na trama principal. É pertinente abordar o contexto brasileiro na época da transmissão de Avenida Brasil. O país vivenciava a ascensão de uma nova classe consumidora, conhecida como “nova classe C” 2. De acordo com o projeto Vozes da Classe Média (2012) tratava-se de um movimento iniciado no ano de 2002. Essa ascensão teve reflexo na mídia como um todo e nas teleficções em especial. Foram muitas as reportagens que relacionaram as personagens de Avenida Brasil com a classe emergente, assim como ocorreu com a novela Cheias de Charme (2012), de Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, transmitida às 19 horas na mesma emissora, (MAURO, 2014). Lopes e Mungioli (2013) apontam o destaque de Avenida Brasil em 2012, que, além da significativa audiência, contou com o engajamento do público na internet. Avenida Brasil foi pauta na imprensa nacional e também internacional. A telenovela foi considerada por Lopes e Mungioli (2013) como um divisor de águas na teledramaturgia, como ocorreu com Beto Rockfeller (1968), ao trazer uma nova forma de narrar e representar o Brasil.

2 De acordo com Souza (2012), não se tratava de uma nova classe média e sim de uma nova classe trabalhadora.

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[...] Avenida Brasil abordou temas e problemas já vistos em outras telenovelas, mas o fez incorporando e traduzindo de maneira magistral o esprit du temps de um país no qual ocorrem grandes mudanças sociais que criam espaços simbólicos nos quais reverberam os discursos de novos protagonistas. Entre as mudanças sociais está a ascensão de milhões de brasileiros à “nova classe C”. (LOPES; MUNGIOLI, 2013, p. 156-157).

Como comentado na introdução, Avenida Brasil trouxe uma nova forma de caracterizar os núcleos populares, com mais improvisação, conversas em voz alta e simultâneas, e uma estética peculiar no cenário da casa de Tufão para reforçar a mistura de estilos e o gosto, ou a falta dele, no cotidiano e hábitos dos “novos ricos”. Mauro (2014) identificou a mudança nos diálogos como uma inovação na forma de representar os gêneros primários do discurso, que são aqueles mais simples, formados nas condições mais imediatas de diálogo, como explica Bakhtin (2003, p. 262-264). As telenovelas normalmente eram marcadas pelo turno de fala de cada personagem, o que não ocorreu em Avenida Brasil e A Regra do Jogo. O alto tom de voz das conversas também chamou a atenção, principalmente das personagens femininas, como demonstrou uma reportagem da época da Revista Veja intitulada “Será o apocalipse?” aborda a fala alta e estridente das personagens de Avenida Brasil, fazendo referências a uma representação mais popular, evidente no subtítulo “GOGÓS SUBURBANOS” (MARTHE, 2012). Foram recorrentes cenas ao redor da mesa, retratando refeições, que mostravam o cotidiano e as relações entre as personagens, mas que pouco faziam a engrenagem da história avançar. Ações geralmente ligadas às necessidades básicas do ser humano e cômicas, o que se relaciona com a nossa hipótese do diálogo com a paródia, com o realismo grotesco e a carnavalização discutidos por Bakhtin (1999; 2010). A telenovela A Regra do Jogo, por sua vez, também escrita por João Emanuel Carneiro e dirigida por Amora Mautner, foi transmitida na Rede Globo do dia 31 de agosto de 2015 ao dia 11 de março de 2016, às 21 horas. Ao todo foram 167 capítulos. O protagonista da história é Romero Rômulo (), um ex-vereador conhecido por ser uma espécie de herói do povo, por atuar na reabilitação de criminosos condenados. Todos acreditam em sua honestidade e humildade – inclusive o seu filho adotivo, o policial Dante (Marcos Pigossi). Na verdade, Romero leva uma vida dupla. A

33 personagem esconde de todos a cobertura onde mora de fato e um carro caro, produtos de seu envolvimento com uma facção criminosa. A facção foi responsável pelo assalto ao ônibus de Seropédica há anos antes. Crime esse que envolve outras personagens, por diferentes motivos, como Tóia (Vanessa Giácomo), Djanira (Cássia Kis), Juliano (Cauã Reymond) e Zé Maria (Tony Ramos). Tóia, e Juliano, filhos adotivos de Djanira, se amam e vão se casar, mas enfrentam diversos obstáculos até conseguirem ficar juntos, inclusive a prisão injusta do rapaz. Zé Maria (Tony Ramos), companheiro de Djanira e pai de Juliano, é foragido da polícia devido ao assalto em Seropédica, porém jura inocência. Tóia, Djanira e Juliano vivem no

Morro da Macaca, no Rio de Janeiro, assim como a maioria das personagens da trama. Adisabeba (Suzana Vieira), chefe de Tóia na boate Caverna da Macaca, é praticamente dona do morro, onde, além da boate, possui diversos barracos e um hostel. Atena (), por sua vez, é estelionatária. E a vilã que se apaixona por Romero e, após algum tempo, se instala na cobertura dele. Outros dois ambientes se sobressaem na trama. Um deles é a mansão dos Stuart, onde residem o magnata Gibson (José de Abreu) e sua família. No fim da trama, descobre- se que Gibson é o grande chefe da facção. ambiente é a cobertura de Feliciano (), um milionário falido que mora junto com sua família e agregados. Apesar da falta constante de dinheiro, a maioria dos familiares se recusa a trabalhar e tenta manter as aparências. O tema central de A Regra do Jogo gira em torno de questões éticas e os limites entre o certo e errado. A música de abertura da trama Juízo Final de Alcione ressalta esse propósito ao antagonizar o bem e o mal em sua letra, assim como as imagens de um jogo de xadrez que simbolizam os dois lados e ao mesmo tempo a competição entre eles. Além das inovações técnicas comentadas na introdução - como o emprego do conceito de caixa cênica e as câmeras escondidas, com a finalidade de atuações mais naturais e a aproximação com a estética de reality show -, a telenovela trouxe a novidade dos títulos que resumem a essência de cada capítulo. O título era exibido no início dos episódios com letras brancas em fundo preto.

Capítulo 1 - A outra face Capítulo 4 - Quem é você? Capítulo 2 - Bandido podre Capítulo 5 - O injustiçado Capítulo 3 - Samambaia Capítulo 6 - Amor de mãe

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Capítulo 7 - O peso de uma dúvida Capítulo 48 - Adivinha quem voltou? Capítulo 8 - Infiltrado Capítulo 49 - Amor bandido Capítulo 9 - Queima de arquivo Capítulo 50 - Filho meu Capítulo 10 - Muito prazer Capítulo 51 - Pai herói Capítulo 11 - Lobo no galinheiro Capítulo 52 - o assalto Capítulo 12 - Saudade é pros fracos Capítulo 53 - Genivaldo capítulo 13 – A isca Capítulo 54 - Um homem bom Capítulo 14 - Cem anos de perdão Capítulo 55 - Inimigo próximo Capítulo 15 - Eu gosto do perigo Capítulo 56 – Pai bandido Capítulo 16 - Francineide Capítulo 57 – Eu errei Capítulo 17 - Telhado de vidro Capítulo 58 – Batom na cueca Capítulo 18 - O travesseiro Capítulo 59 – Festa de arromba Capítulo 19 - Pé de coelho Capítulo 60 – Até tu? Capítulo 20 - Pobres otários Capítulo 61 – E agora Romero? Capítulo 21 - Vai me matar ou posso Capítulo 62 – Campo minado pedir um drink? Capítulo 63 – Metade da laranja Capítulo 22 - Vaca maldita Capítulo 64 – Pedra no rim Capítulo 23 - Convidada da mamãe Capítulo 65 – Da minha natureza Capítulo 24 - Volte uma casa Capítulo 66 – Encruzilhada Capítulo 25 - A invasora Capítulo 67 – Humilhação Capítulo 26 - Namoradinha Capítulo 68 - RR Capítulo 27 - Duro golpe Capítulo 69 – Calcanhar de Aquiles Capítulo 28 - Jogada ensaiada Capítulo 70 – Território sitiado Capítulo 29 - Um velho irmão Capítulo 71 – Santo expedito Capítulo 30 - A casa do pai Capítulo 72 – Deu ruim Capítulo 31 - Sem chão Capítulo 73 – Menina de ouro Capítulo 32 - Encarando o diabo Capítulo 74 – Parabéns pra você Capítulo 33 - O canto da sereia Capítulo 75 – Linha de tiro Capítulo 34 - Migalhas Capítulo 76 – Desvio de rota Capítulo 35 - Moreninha Capítulo 77 – Entre o bem e o mal Capítulo 36 - Mar aberto Capítulo 78 – Até que a morte nos separe Capítulo 37 - Eurídice Capítulo 79 – Comida de peixe Capítulo 38 - Viver pra te ver de novo Capítulo 80 – A hora da virada Capítulo 39 - Filho pródigo Capítulo 81 – Língua de serpente Capítulo 40 - Sofia Capítulo 82 – Vara curta Capítulo 41 - O começo do fim Capítulo 83 – Com quem será? Capítulo 42 - Bodas de sangue Capítulo 84 – Teste de fidelidade Capítulo 43 - Cristal partido Capítulo 85 – Quebra de parceria Capítulo 44 - Na toca do lobo Capítulo 86 – Fim de jogo Capítulo 45 - A escolha Capítulo 87 – Eu te amo Capítulo 46 – Nem tão mau assim Capítulo 88 – Sombras do passado Capítulo 47 - Um beijo antes de morrer Capítulo 89 – O grande segredo

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Capítulo 90 – Olhando pela fechadura Capítulo 130 – Abraço partido Capítulo 91 – Abre a porta pra mim Capítulo 131 – Perto da verdade Capítulo 92 – Colega de quarto Capítulo 132 – Escambo Capítulo 93 – Em nome do pai Capítulo 133 – Sangue meu Capítulo 94 – Tarde demais Capítulo 134 – Em carne viva Capítulo 95 – A cativa que me mantém Capítulo 135 – Dormindo com o inimigo cativo Capítulo 136 – Me perdoa Capítulo 96 – Falso marido Capítulo 137 – A queda Capítulo 97 – Ubiraci Capítulo 138 – Acerto de contas Capítulo 98 – O pai da noiva Capítulo 139 – Acabou Romerito Capítulo 99 – A hora do sim Capítulo 140 - Marcado para morrer Capítulo 100 – Virando a mesa Capítulo 141 – Emboscada Capítulo 101 – Ho ho ho! Capítulo 142 – O penetra Capítulo 102 – Volta pra mim Capítulo 143 – Cão infiel Capítulo 103 – Caixa de bombom Capítulo 144 – Lua de fel Capítulo 104 – Flagrante delito Capítulo 145 – Meu filho, meu tesouro Capítulo 105 – Hora da verdade Capítulo 146 – Bomba caseira Capítulo 106 – Lama no pescoço Capítulo 147 – Ventre livre Capítulo 107 – Bode expiatório Capítulo 148 – Um é pouco, dois é bom, Capítulo 108 – Na mira três é demais Capítulo 109 – Última ceia Capítulo 149 – A fraqueza do carrasco Capítulo 110 – Feliz ano novo Capítulo 150 – Pacto sinistro Capítulo 111 – É pegar ou largar Capítulo 151 – Quem risca o fósforo? Capítulo 112 – Gata borralheira Capítulo 152 – Culpada Capítulo 113 – Herança maldita Capítulo 153 – Golpe baixo Capítulo 114 – Eu digo sim Capítulo 154 – Sociedade anônima Capítulo 115 – Volta ao lar Capítulo 155 – Vitória na guerra Capítulo 116 – Um grito de liberdade Capítulo 156 – Crime e castigo Capítulo 117 – Recaída Capítulo 157 – Lázaro Capítulo 118 – O tremor de uma suspeita Capítulo 158 – Terrível verdade Capítulo 119 – Filho meu Capítulo 159 – O último a cair Capítulo 120 – Asilo diplomático Capítulo 160 – Prova viva Capítulo 121 – A nova chacina Capítulo 161 – Novos aliados Capitulo 122 – Cova rasa Capítulo 162 – Ratoeira Capítulo 123 – Elo perdido Capítulo 163 – Crime na mansão Capítulo 124 – Chá de panela Capítulo 164 – rei morto, rei posto Capítulo 125 – Na cova dos leões Capítulo 165 – Na teia da aranha Capítulo 126 – Álbum de família Capítulo 166 – Xeque-mate Capítulo 127 – Aqui se faz, aqui se paga Capítulo 167 – Juízo final Capítulo 128 – As irmãs Capítulo 129 – O inferno de Dante

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De acordo com Lopes e Greco (2016, p.173), o ano de 2015 assistiu a uma temporada de experimentações estéticas na ficção televisiva. A Regra do Jogo foi uma delas. O emprego dos títulos nos capítulos, segundo as estudiosas, dialoga com uma aposta na narrativa episódica, próxima das séries. Apesar das inovações, A Regra do Jogo não obteve o sucesso esperado. Havia grande pressão para que a obra alavancasse a audiência, já bastante ruim com a produção anterior Babilônia (de Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga), além da expectativa criada devido à grande audiência da telenovela anterior do autor, Avenida Brasil. A Regra do Jogo sofreu forte concorrência da novela bíblica Os Dez Mandamentos transmitida no mesmo horário na Record, que, inclusive, chegou a superar a audiência da primeira em alguns episódios3. Lopes e Greco (2016, p.166 e 167) apontam para uma reação do público, de perfil mais tradicional, contra as telenovelas da emissora devido a um beijo lésbico entre duas personagens idosas na trama Babilônia. Além disso, as teóricas destacam o desgaste da temática urbana que já vinha se repetindo havia algum tempo nas produções das 21 horas. Assim como em Avenida Brasil, A Regra do Jogo trouxe a improvisação e as conversas simultâneas em cenas da família de Feliciano, na mansão/hostel de Adisabeba e nas atuações das funkeiras Ninfa e Alisson, por exemplo. Mauro (2016) sugere que na parceria entre João Emanuel Carneiro e Amora Mautner haja uma “marca” estética na representação do popular “[...] cuja abordagem requer um olhar voltado às especificidades da televisão, além do conteúdo.” (MAURO, 2016, p. 217). O intuito de alcançar o efeito de atuações mais naturais, e talvez mais “reais”, com estratégias de gravação ou como os diálogos sobrepostos de Avenida Brasil, supõe-se, atualiza a representação do cotidiano na telenovela e aproxima-se mais de uma estética popular. A palavra “atualiza” é empregada para expor que a representação do cotidiano sempre existiu na telenovela, mas que essas duas tramas proporcionam novos aspectos a ela. (MAURO, 2016, p. 222).

Essas características fazem parte da temporalidade da narrativa. Conforme Eco (1994) explica, o tempo da história e o tempo do discurso são diferentes nas ficções.

3 Fonte: https://www.kantaribopemedia.com/ranking-semanal-15-mercados-09112015-a-15112015/. Acesso em 30 de janeiro de 2019.

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O primeiro faz parte do conteúdo, quantos anos dentro da história se passam por exemplo, o segundo se refere ao modo de contar, uma história que se passa em mil anos, pode ser contada rapidamente, e uma que se desenrola em um dia pode ser narrada bem lentamente, por exemplo. “Em geral, cita-se o diálogo como maior exemplo de perfeita congruência entre o tempo da história e o tempo do discurso” (ECO, 1994, p. 68). Temos como hipótese que nas personagens populares que estudamos o tempo do diálogo é mais recorrente, ou seja, existe maior coincidência entre o tempo da história e do discurso. Tudo isso a nosso ver dialoga com o efeito de realidade e o excesso discutidos por Rancière. (2010). O autor opõe o efeito de realidade do romance realista com a lógica clássica de representação. No primeiro, há o detalhe “inútil”, o excesso como democracia do sensível, marca do ócio e do real pelo real. Há nessa relação uma questão política, argumenta o autor, de uma estrutura que opõe a elite ao popular. No romance realista há a ruptura da lógica da verossimilhança, expõe Rancière, e oposição à ação, que perde a importância em meio a imagens desordenadas. O enredo não apresenta a mesma lógica estrutural na qual tudo se subordina ao todo. Assim, o excesso realista não tem nada a ver com a ostentação burguesa da riqueza e da confiança no reino da Burguesia que alguns autores ali detectaram. O que está no seu coração é muito mais a confusão introduzida quando o excesso de paixão e o vazio do devaneio são apropriados pelas almas das classes baixas. (RANCIÈRE, 2010, p. 87).

Pretendemos analisar os elementos do excesso, inter-relacionando-os ao grotesco e paródico em certos momentos, nas personagens femininas populares, que foram selecionadas mediante o conceito de classe social. De acordo com Max (1867, 2013), a divisão de classes baseia-se na exploração do trabalho dentro da lógica capitalista que reproduz as diferenças entre os detentores dos bens e os proletários assalariados. Marx e Engels (1848, 1999) argumentam que a história das sociedades de todos os tempos ancora-se na luta de classes e que a sociedade moderna burguesa é caracterizada pelo antagonismo crescente entre a burguesia e o proletariado. A concepção marxista é atualizada por Antunes (2001) que traz o conceito de classe-que-vive-do trabalho, ou seja, como a classe na qual todos aqueles que vendem o seu trabalho fazem parte. Estão inclusos os trabalhadores que produzem diretamente mais-valia e os trabalhadores improdutivos que a produzem de forma indireta, ou seja,

38 aqueles que trabalham por conta própria, mas não são grandes proprietários nem vivem de juros. Desse modo, identificamos a classe popular com a classe-que-vive-do-trabalho. Mas, também entendemos a necessidade de atribuir aspectos simbólicos ao conceito de classe, de acordo com Bourdieu (2007). O autor argumenta que uma classe social é definida pela estrutura das relações entres suas propriedades, o que produz valores e influências nas práticas sociais. Além do capital econômico, Bourdieu aponta o capital cultural e o capital social na constituição dos grupos sociais. Ao longo do texto, o ator aborda três grandes classes - as superiores, as médias e as classes populares - no interior das quais há subdivisões por ocupação profissional. Os conceitos de habitus e capital cultural explorados por Bourdieu são importantes para esta tese pois possibilitam um parâmetro para classificar as personagens. [...] o habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras c1assificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida. (BOURDIEU, 2007, p.162).

Ou seja, o habitus sistematiza o conjunto de práticas de determinada condição social, mas nem sempre de maneira óbvia. O capital cultural, por exemplo, pode ser diferente do econômico, o que resulta em um determinado habitus diverso ao de uma pessoa que possui os dois capitais em patamares similares. Desse modo, pessoas que enriquecem depois de adultas podem reproduzir o capital cultural condizente à sua condição econômica anterior. Isso demonstra que classe social é um conceito que extrapola o contexto econômico em si. Nas telenovelas estudadas, muitas das personagens analisadas fazem parte de uma representação de novos ricos, porém não deixam de ser populares. Por isso, consideramos populares as personagens que enriqueceram depois de adultas e que mantêm os gostos de origem. De acordo com a página oficial de Avenida Brasil4, a telenovela contou com 43 personagens (sem contar as que interpretaram Jorgino e Nina quando crianças). Desses, 22 são mulheres e 21 homens. 14 personagens femininas podem ser consideradas das

4 Fonte: . Acesso em: 9 de dezembro de 2015.

39 classes populares e 18 masculinas. No total, são 32 personagens dos núcleos populares, ou seja, a maioria. No caso de Jorginho e Ágata, embora tenham crescido em um ambiente de riqueza material (a mansão de Tufão), compartilham os costumes dos familiares novos ricos e também vivem no bairro Divino. Nina não foi considerada da classe popular por ter sido criada por uma família rica, fora do ambiente popular, na Argentina. Apesar de ser empregada doméstica, ela só aceitou tal ocupação para realizar uma vingança, ou seja, como um ardil, diferentemente de Zezé e Janaina. O foco do nosso estudo são mulheres das classes populares, por isso no mapeamento não consideramos Ágata, que é criança.

Tabela 1. Lista de personagens Avenida Brasil e suas descrições. Personagens Características Carminha (Adriana Esteves) Carminha é uma mulher amoral, que aplica golpes junto com seu amante Max para conseguir dinheiro. Ela foi prostituta no passado. Genésio, o seu primeiro marido, morre atropelado pouco depois de descobrir o verdadeiro caráter da mulher. Carminha abandona a enteada no lixão, onde ela própria cresceu. O jogador de futebol Tufão é o homem que atropelou Genésio e, desconhecendo o verdadeiro caráter de Carminha, com sentimento de culpa se aproxima da vilã. Os dois se casam, ela vai morar na mansão do jogador e trama para Max se casar com Ivana, irmã de Tufão. Rita, sua ex- enteada, já adulta, reaparece usando o nome de Nina, se infiltra na casa e se vinga de Carminha. No fim, a vilã é presa e retorna ao lixão após a soltura. Monalisa (Heloísa Périssé) Monalisa é paraibana, cabelereira, trabalha em um salão de beleza no bairro Divino, Rio de Janeiro, com sua melhor amiga Olenka. É noiva de Tufão, que, ao enriquecer como jogador de futebol, compra para ela um salão de beleza. Os dois se separam com a chegada de Carminha na vida do jogador. Monalisa adota sozinha um menino e prospera em seu negócio que vira uma rede de cabelereiros. Ela namora Silas, mas nunca

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esqueceu Tufão, com quem se casa no final. Muricy (Eliane Giardini) Muricy é a mãe de Tufão e Ivana. Foi empregada doméstica no passado e também camelô. Com a fama do filho, a família toda se muda para uma mansão. Ela não gosta da primeira noiva do filho, Monalisa e fica feliz com a separação dos dois e o casamento de Tufão e Carminha. É casada com Leleco. Eles se separam e ela começa a se relacionar com um homem mais novo. No final, ela se reconcilia com Leleco. Mãe Lucinda (Vera Holtz) Mãe Lucinda é a mãe do lixão, que abriga algumas crianças abandonadas no local. Ela criou Rita e Juliano, protagonistas da história. Ela guarda segredos sobre o seu passado que envolvem Carminha e Max, seu filho. Ela acredita ser a autora do assassinato da mãe de Carminha. Mas, no final, tudo se resolve e ela descobre que é inocente. Suelen (Isis Valverde) Suelen trabalha na loja de roupa de Diógenes como balconista. Mas, além de faltar, faz muito mal o seu trabalho. Ela não é mandada embora porque chantageia o seu patrão com o vídeo dos dois juntos. Ela seduz os homens para conseguir o que quer. O seu desejo é ser famosa e ter dinheiro. No final termina em um triângulo amoroso com Leandro e Roni. Olenka (Fabíula Nascimento) Olenka é cabeleireira no salão de beleza de sua melhor amiga, Monalisa, e também mora na casa dela. Em determinado momento, Olenka trai a confiança da amiga ao se envolver com o seu ex- namorado, Silas. Mas, tudo se resolve no final. As duas voltam a ser amigas e Olenka termina a trama em um relacionamento com Adauto. Dolores Neiva () Dolores, ex-mulher de Diógenes, abandonou o filho pequeno para ser atriz erótica, mas se torna evangélica e regressa ao Divino a fim de se aproximar do filho, inclusive reata o romance com Diógenes. Mas, a sua natureza fala mais alto e no fim ela abandona os dois novamente para

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continuar com a sua carreira como Soninha Catatau. Tessália (Débora Nascimento) Tessália veio do interior do Rio de Janeiro ao bairro Divino para participar do concurso Garota Chapinha, o qual ela vence, apesar de não ter a intenção de seguir carreira de modelo. A moça começa a trabalhar no salão de Monalisa e se relaciona com Leleco, homem bem mais velho. No fim, a personagem engata um romance om Darkson. Ivana (Letícia Isnard) Ivana, irmã de Tufão, cuida das finanças da família, é econômica e tem visão para os negócios. Ela é casada com Max, por quem é traída. No fim, ela descobre a verdade e começa a se relacionar com Silas. Betânia (Bianca Comparato) A frentista de posto de gasolina, Betânia, ajuda a melhor amiga, Rita/Nina, a se vingar de Carminha e até termina o seu relacionamento pela amiga. Beverly (Luana Martau) Beverly trabalha no salão de Monalisa no Divino. Ela vive procurando um namorado, mas não costuma ser bem- sucedida. Janaína (Cláudia Missura) Janaina é empregada doméstica na mansão de Tufão e tem um filho mau caráter que se envolve com vilões, e patrões de Janaina, Carminha e Max. Depois de algumas reviravoltas, a empregada se demite do emprego e consegue salvar o filho. Zezé (Cacau Potásio) Zezé é uma empregada doméstica fiel à patroa, Carminha. Ela se sente ameaçada com a chegada de Nina como cozinheira, mas continua trabalhando na mansão no fim da trama e faz as pazes com Nina.

De acordo com a página oficial de A Regra do Jogo5, a telenovela conta com 56 personagens (uma delas, Dinorah, só aparece na página mediante busca), 29 mulheres e 27 homens. Das mulheres, 14 podem ser consideradas pertencentes a núcleos de classes populares, e 13 dos homens. No total, são 27 personagens da classe estudada, homens e mulheres.

5 Fonte: . Acesso em: 13 de março de 2018.

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Os ricos falidos da família de Feliciano, embora tenham problemas financeiros e apresentem um “tom” popular, não foram incluídos devido à proveniência abastada. Dessa família, apenas os que são de origem pobre foram adicionados à lista da classe popular. Assim, temos as seguintes personagens femininas:

Tabela 2. Lista de personagens A Regra do Jogo e suas descrições PERSONAGENS DESCRIÇÃO Atena (Giovanna Antonelli) Atena (cujo nome verdadeiro é Francineide) é uma estelionatária, que seduz os homens para conseguir auferir lucro. É de origem pobre, mas deseja uma vida de luxo. Apaixona-se de verdade por Romero, que também é bandido, integrante de uma facção criminosa. Romero morre e ela continua aplicando golpes na Itália, para onde leva o bebê que teve com Romero. Tóia (Vanessa Giácomo) Maria Vitória Noronha é o nome completo da personagem Tóia, que mora Morro da Macaca e é gerente de boate. Ela enfrenta dificuldades em seu romance com Juliano e descobre que é herdeira de grande fortuna. No final, ela se casa com Juliano e inaugura um hospital no morro. Alisson (Letícia Lima) Alisson mora no Morro da Macaca. É dançarina de um trio musical de funk e disputa o amor de Merlô, vocalista do grupo, principalmente com Ninfa. No final da trama, ela aceita dividi-lo com outras mulheres. Adisabeba (Suzana Vieira) Adisabeba é praticamente a dona do Morro da Macaca, onde possui vários barracos, um hostel e uma boate. Foi prostituta no passado, por 24 anos. Mora com seu filho adulto Merlô, a quem superprotege e quer manter ao seu lado como um bebê. No final, ela aceita suas noras, e todos vão morar em sua casa. Ela se casa com Feliciano, que descobre ser pai de Merlô. Djanira (Cassia Kis) Djanira é a mãe adotiva de Tóia. É professora infantil no Morro da Macaca e também dona de casa. Ela guarda segredos de seu passado, esconde ser mãe de Romero e não revela toda a verdade sobre

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a adoção de Tóia. Ela se relaciona com Zé Maria, um bandido, que ela acredita ser inocente. Ela descobre toda a verdade, mas é morta com um tiro no casamento de sua filha. Ninfa () Genivalda de Moraes é o nome verdadeiro da personagem Ninfa, que mora no Morro da Macaca. Ela é dançarina em um trio musical de funk e disputa o amor de Merlô, vocalista, principalmente com Alisson. No final, ela aceita dividi-lo com outras. Lara () Lara é uma garçonete que vem do interior para a capital carioca à procura de seu marido desaparecido. Na cidade, descobre que seu marido não é quem ela pensava que fosse. Lara se apaixona por Dante. Apesar do amor dos dois sofrer ameaças, os dois ficam juntos no final. Domingas (Maeva Jinkings) Domingas é moradora do Morro da Macaca e vendedora na loja de Indira. A moça faz parte de um relacionamento abusivo. Seu marido a agride fisicamente e moralmente. Em determinado momento, ela manda o marido para fora de casa, abre um restaurante no morro e começa a se relacionar com outro homem, com quem tem um filho. Mel (Fernanda Souza) Mel é amante de Vavá. Em certo momento, ela vai morar com ele na cobertura da família, mas engana a todos com o seu suposto meio irmão, que, na verdade, é seu amante. Ela faz de tudo para ser famosa, diz ser modelo. No final, ela acaba sendo desprezada. Indira (Cris Vianna) Indira é estilista e tem uma loja de roupas bem-sucedida no Morro da Macaca. Ela é evangélica e faz resguardo sexual à revelia de seu marido. Em determinado momento o seu casamento sofre uma reviravolta com o aparecimento de um novo casal no morro. Os dois casais mudam de personalidade em certa altura na trama. Indira passa a ser mais sofisticada, como Tina. Andressa Turbinada (Thaíssa Carvalho) Andressa é uma cantora de funk que já teve seu auge. Ela aparece no Morro da Macaca para cantar com MC Merlô na

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boate Caverna da Macaca. Ela começa a se relacionar com ele e inventa uma gravidez para aparecer na mídia e conseguir fama novamente. Janete (Suzana Pires) Janete é manicure e a mulher traída de Vavá. Na cobertura do sogro, onde vários integrantes da família moram, Janete é a única que trabalha e cuida da casa. Ela se separa do marido, vive outros relacionamentos, vai morar no Morro da Macaca, mas não encontra o homem trabalhador e fiel que deseja. Ela vira sócia de Domingas em um restaurante e reata com Vavá no final da trama. Conceição (Séfora Rangel) Conceição é empregada doméstica na mansão dos Stuart. Ela é casada com o motorista da mansão, Nonato, de quem perdoou uma grande traição no passado, com a filha de sua patroa, Nelita. Mesmo assim, ela ajuda a moça em um momento difícil, enfrenta Gibson, dono da casa, e deixa o emprego. Em sua casa, no Morro da Macaca, ela recebe bem os filhos que o marido teve com a outra. Dinorah (Carla Cristina Cardoso) Dinorah é empregada doméstica na cobertura do viúvo Feliciano. Ela não recebe o seu salário há anos, mas continua na casa por apreço ao patrão. Mesmo após receber o seu dinheiro, ela continua no local e só deixa o emprego quando Feliciano se casa novamente.

Embora não tratemos da mulher popular real, consideramos a telenovela como um produto social situado historicamente e, portanto, em diálogo com o contexto real, assim como Bakhtin (2003; 2010) e Volóchinov (2017) consideram toda obra de arte. Nesse sentido, pesquisadoras que estudam a telenovela realçam o seu caráter de narrativa da nação (LOPES, 2004) e seu diálogo com o cotidiano brasileiro (MOTTER, 2003). Desse modo, as personagens se relacionam com a mulher brasileira real de algum modo e contribuem para a construção social do conhecimento do senso comum em um processo de midiatização, no qual a mídia tem papel privilegiado, como discutiremos mais adiante. Mungioli (2014) aponta para a função social da telenovela como um sistema simbólico na construção de uma imagem do Brasil e dos brasileiros.

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Inclusive pesquisas de recepção da telenovela mostram que os telespectadores tendem a enxergar as personagens como pessoas reais. O estudo desenvolvido por Ronsini (2017) sobre a recepção da telenovela por mulheres da classe trabalhadora expõe o paralelismo entre novela e experiência das entrevistadas, quando identificam semelhanças entre sua vida e das personagens. Há uma galeria de personagens populares que “[...] povoa nossa memória com modelos de ação tidos como populares”. (RONSINI, 2017, p. 10). A pesquisa explica que as entrevistadas evocam a ideia de respeitabilidade em resposta a perguntas sobre diversos temas. Foram usados os vocabulários “trabalhadora”, “guerreira”, “batalhadora” para falar das próprias experiências e das personagens da telenovela. De acordo com Ronsini o sofrimento trazido pelo trabalho a essas mulheres é transformado em heroísmo e modelo em algumas personagens melodramáticas, como Griselda (Fina Estampa), Lucinda e Monalisa (Avenida Brasil) e Maria do Carmo (,), “[...] que superam os obstáculos e triunfam.” (RONSINI, 2017, p.12). A autora identifica a noção de respeitabilidade como capital simbólico nas classes trabalhadoras no sentido sexual/aparência e trabalho. A adoção dessa representação é uma forma de se opor à da mulher vulgar. Há reconhecimento da classe trabalhadora por valores morais e idealização dos padrões da feminilidade da mulher da classe média ou alta como ideal. As mulheres entrevistadas tentam seguir esses padrões de alguma maneira, aponta a estudiosa. O capital simbólico das mulheres trabalhadoras é resultado da vergonha de ser pobre e da vergonha de ser a mulher que não segue os padrões corporais aceitos pela sociedade da imagem. Resta-lhes incorporar as representações da mulher trabalhadora, refúgio seguro para preservar a autoestima e o reconhecimento social, mas que significa igualmente não questionar as dificuldades na conciliação do trabalho doméstico e fora do lar. E as telenovelas vão fornecer os modelos da beleza feminina e da mulher trabalhadora com os quais podem negociar suas identidades com ideais de feminilidade que subordinam as mulheres a padrões de aceitação dependentes do quanto elas são capazes de agradar ou servir aos Outros. (RONSINI, 2017, p. 13 e 14)

Essas conclusões de pesquisa nos remetem à história da mulher pobre no Brasil que discutiremos no próximo item, suas necessidades, preconceitos sofridos e estereotipia a que são submetidas há tempos.

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Em entrevistas a mulheres das classes dominantes, Ronsini et al. (2016) expõem que há rejeição da personagem perua fútil e identificação com a personagem da mulher moderna. Esta última é definida como independente economicamente e detentora de liberdade sexual e emocional, conquistas que dependem da classe social. Almeida (2007) também trata dessa personagem moderna das classes média e alta, principalmente do Rio de Janeiro. A estudiosa caracteriza essas heroínas como mulheres com profissão, independentes, ativas economicamente e com vida sexual satisfatória, “[...] relacionam amor a prazer e realização sexual, como o tipo moderno definido pelos publicitários.” (ALMEIDA, 2007, p. 183). Mas ao mesmo tempo, “[...] mantêm também coerência com valores ditos tradicionais como ser boa mãe e dedicar-se à família.” (ALMEIDA, 2007, p. 183). No entanto, esse tipo feminino de várias novelas costuma ser uma mulher de classe média ou alta, que no mais das vezes dá conta do recado de ser boa mãe e profissional porque resolveu o dilema típico do feminismo de classe média – conciliar trabalho e maternidade. Muitas, como no exemplo das Helenas das narrativas escritas por Manoel Carlos, o resolvem porque têm uma empregada doméstica maravilhosa [...] (ALMEIDA, 2007, p. 183).

A autora expõe que em sua pesquisa realizada em Montes Claros, esse tipo de personagem apareceu como um modelo de feminilidade. Essa personagem, pontua Almeida (2007) apresenta características do moderno e do tradicional que também são explorados na publicidade e nos anúncios. O objetivo da mídia, nesse sentido, de acordo a pesquisadora, é agradar ao maior público possível e também condizer com os valores do consumo. A teórica também identifica nessa mesma personagem a característica de batalhadora que veio à tona com o sucesso de Malu Mulher nos anos 70. Mas outras características de Malu não se identificam com as da batalhadora popular da qual tratamos, embora com ela tenha semelhanças sobretudo em termos de estrutura melodramática. As mulheres da classe alta da ficção foram consideradas pelas entrevistadas de Ronsini como bem vestidas, arrumadas e chiques, mesmo aquelas que elas identificam como mau caráter, por exemplo Tereza Cristina (Fina Estampa) e Carminha (Avenida Brasil). A desaprovação passa pelo fato de elas não desempenharem bem o papel feminino na família. Se, socialmente, os atributos corporais, as práticas de embelezamento (vestuário, maquiagem, cuidados com o corpo, cabelos e unhas) o

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comportamento amoroso são cruciais para a preservação da noção tradicional de respeitabilidade feminina, a encenação de estilos de vida femininos nas telenovelas tanto serve para a reprodução deste modelo, como também apresenta um retrato das mudanças operadas na condição da mulher no espaço privado e no espaço público, servindo de inspiração para atingir o ideal da mulher moderna que é protagonizado pelas tramas em grandes centros urbanos do país. (RONSINI et al., 2016, p. 5).

Quando as entrevistadas são perguntadas sobre as personagens femininas da classe popular, há acentuação de mulheres honestas e trabalhadoras pela maioria, com a utilização dos adjetivos “batalhadora” e “lutadora” explica Ronsini et al. (2016). Novamente, as personagens mais citadas foram Lucinda (Avenida Brasil) e Griselda (Fina Estampa). Ou seja, duas personagens são vistas de forma positiva, a mulher moderna da classe dominante, que tem sua carreira, mas também tem a responsabilidade com o lar e os filhos e a batalhadora humilde pobre. Como frisam os pesquisadores todas as entrevistadas vivem a perspectiva sexista de que a vida privada, doméstica, é responsabilidade da mulher, mesmo as que trabalham fora, há uma ideia de um dom natural feminino de cuidar do lar, uma ideia de natureza feminina no discurso das entrevistadas. Assim: “Os mecanismos de identificação com a heroína da dramaturgia televisiva, moderna, da classe alta ou batalhadora da classe popular, operam no reforço do sexismo.” (RONSINI, et al. 2016, p.17). As condutas sexuais das personagens vilãs de classe alta são questionadas e tidas como comportamentos individuais desviantes que não estão associados ao padrão esperado para as elites. Por contraste, as práticas sexuais das personagens de classe popular consideradas indecorosas são vistas como atributos das mulheres de origem humilde, assim como o desleixo na aparência das honestas e trabalhadoras (RONSINI et al., 2016, p. 17).

É pertinente ressaltar que a vilã Carminha, parte do corpus de nossa pesquisa, faz uma paródia/sátira desse modelo burguês, pois ela subverte esses valores ao usar justamente dessa respeitabilidade burguesa para enganar as pessoas em sua volta (ainda mais se consideramos que ela é uma personagem vinda da classe popular, (traço presente em muitos vilões do Romantismo). Inclusive, em seu falso moralismo, Carminha critica o tempo todo a personagem Monalisa, por não ser portadora de tal respeitabilidade, ser mãe solteira de um filho adotado, por ser livre, independente e namorar.

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Quanto às personagens da classe popular identificadas como indecorosas na pesquisa citada, como se fosse um comportamento natural às classes humildes, temos o exemplo das chamadas periguetes, o que corrobora as teorias sobre os mecanismos de estereotipia (HALL, 2016) que trataremos posteriormente neste capítulo. O estudo de Depexe (2015), que analisou mensagens no Twitter sobre o vestido usado por uma personagem na novela Salve Jorge, demonstra o repertório da recepção a respeito do que seria a periguete e revela que o público, ao identificar tais personagens como representantes de pessoas reais, reproduz o preconceito de classe e a ideia do corpo da mulher pobre objetificado. O público reconhece a distinção pelo gosto de classe, por meio da caracterização e peripécias das personagens. Os tweeteiros demonstraram em seus comentários desaprovação ao fato de uma personagem do núcleo rico usar uma roupa de periguete. No caso, a personagem Aisha, criada por uma família rica, usa o vestido dado por sua mãe biológica que é pobre. Parte dos receptores aceita e se diverte com a capacidade de se identificar com o outro, mesmo que de modo temporário. Parte deixa nítido o preconceito de classe, ainda que seja na leitura da telenovela, aludindo que visibilidade do corpo e uma suposta vulgaridade estão para o popular e não devem, jamais, se vincular ou macular a aparência de uma “respeitável” moça da elite. O funcionamento do conflito e da distinção entre as classes pode ser opaco e, simbolicamente, revelado em um vestido. (DEPEXE, 2015, p.14).

É importante salientar desses estudos de recepção para a nossa pesquisa a identificação que os telespectadores fazem entre personagens e pessoas da vida real, a proximidade de suas próprias vidas com os modelos transmitidos e a existência de um discurso circulante (CHARAUDEAU, 2012) sobre como é a mulher popular na realidade, presente na fala das pessoas e nas representações. Há uma permeabilidade grande entre a ficção e a cultura fora da tela. Sem dúvida, os mecanismos de identificação dos tipos femininos passam pelo figurino, pelo cenário, pelos modos da personagem falar, bem como pela construção televisual da narrativa. Para entender essa identificação, buscamos na história da mulher pobre no Brasil as referências que originaram tais representações e concepções discursivas que permeiam a nossa cultura para em seguida tratar do conceito de representação

1.2.Breve história da mulher urbana e pobre no Brasil

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Para abordarmos o tema da mulher popular, é preciso considerar as relações de poder e o conceito de hegemonia social. Sabemos que o gênero feminino, assim como o masculino, é uma construção social – ideia consagrada pela frase de Beauvoir “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (p.9, 1967) - e que a mulher sofre com a hegemonia masculina desde os primórdios da humanidade. De acordo com Gramsci (GRAMSCI, 2014; CANCLINI, 1984), a hegemonia é como uma direção política e ideológica na qual uma classe ou setor goza de uma posição preferencial ao se apropriar das instâncias de poder em alianças com outras classes - no caso da supremacia masculina, há a aliança das próprias mulheres, segundo Beauvoir (1970). Na hegemonia há espaços para os grupos subalternos desenvolverem suas práticas que nem sempre são funcionais para a reprodução do sistema, por isso o sistema de forças é diferente da dominação. Do mesmo modo, as classes populares são subordinadas e tudo o que é considerado popular culturalmente é rejeitado pelas classes sociais média e alta – hegemônicas, como expõe Martín-Barbero (2009). A imposição masculina, conforme explicam Beauvoir (1970)6 e Scott (1995), é mais antiga que a ascensão da burguesia e até mesmo que o capitalismo e a estratificação social em classes. Porém, teorias aclaram que a ascensão burguesa, a industrialização, a urbanização e a modernização trouxeram importantes desdobramentos para o gênero feminino e para as classes subalternas. É nesse período que o popular em seu aspecto cultural se mescla ao conceito de massa, segundo Martín- Barbero (2009), e os dois termos de nosso interesse – mulher e popular – são unidos no recorte de nosso interesse, ou seja, o recorte da mulher popular urbana. Martín-Barbero (2009) explica que a concepção de popular esteve dissolvida no conceito de classe social, principalmente nas correntes de esquerda. Mas Gramsci, aponta o estudioso, conseguiu relacionar o popular à subalternidade de forma complexa, trazendo a questão cultural para o marxismo. O teórico italiano estudou os produtos culturais

6 Beauvoir concorda em partes com as teorias vindas da biologia, do materialismo histórico e da psicanálise, mas encontra a resposta para o início da dominação masculina em uma perspectiva existencial. De acordo com a teórica, o desejo humano de transcender a vida com novas conquistas permitiu que o homem subjugasse a mulher no momento em que ela estava presa à espécie, com as limitações que a procriação impõe ao seu corpo. A autora afirma que as circunstancias poderiam ter sido diferentes, mas por ventura a necessidade de expandir a agricultura exigia força e disponibilidade que a mulher não possuía na ocasião. Ainda assim, embora Beauvoir concorde que o surgimento da agricultura tornou evidente a dominação masculina, o desejo pela transcendência sempre existiu e desse modo não é possível atribuir à propriedade privada os motivos da supremacia masculina como faz Engels em A origem da família. Scott (1995) também acredita na importância de focar no sujeito individual, nas questões sociais e articulá-los. Nesse sentido, a estudiosa define gênero com base em duas proposições principais: 1) as diferenças de gênero, que são sociais, se baseiam nas percepções das diferenças entre os sexos; 2) o gênero é uma construção primária que dá forma a outras questões de poder.

50 populares, como o folhetim, que ele opõe à literatura realizada na Itália por intelectuais, que não se aproximava do povo. Gramsci (2014) define povo como o conjunto das classes ou grupos sociais subalternos, embora ele use o termo como sinônimo de nação em algumas passagens de sua obra. Martín-Barbero (2009) trata do processo histórico de enculturação do popular desde a Idade Média, quando o popular se constituía em cultura, por meio do realismo grotesco, do carnaval, do riso, da máscara e da praça como lugar do cotidiano. Trata-se de um realismo que se situa nos antípodas daquilo que um racionalismo dissimulado frequentemente atribuiu ao popular: o modo grotesco funciona por exageração e degradação e não por cópia. Assim, aquilo que por meio dessas operações se resgata não é uma mera afirmação do real, mas uma topografia que afirma como realidade última e essencial o corpo-mundo e o mundo do corpo, isto é “a transferência ao plano material e corporal do elevado, espiritual, ideal e abstrato. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.102).

Bakhtin (1999) ao tratar da obra de Rabelais, debruça-se sobre a cultura popular na Idade Média - baseada no folclore e na antiguidade - em oposição ao popular do Renascimento, na Idade Moderna. O corpo grotesco, em Rabelais, explica o autor, não está separado do resto do mundo, tudo é rebaixado ao nível corpóreo e terreno. Elementos impensáveis são unidos e há o aumento, exagero, de números e formas do corpo. Bakhtin (1999, 2010) explica que na Antiguidade havia um cronotopo folclórico, no qual o tempo cotidiano e histórico não eram separados, eram um só. O corporal e o espiritual formavam uma unidade. Essa realidade começa a mudar com o avanço da estratificação e a verticalização social na Idade Média. Mas, o popular se manteve em manifestações culturais, como o carnaval, no qual tinha lugar a fuga da vida oficial com a abolição das relações hierárquicas. Segundo Martín-Barbero (2009), a partir do século XVII, há a repressão e a enculturação do popular. Isso ocorre devido à configuração do Estado Moderno, a unificação do mercado e a centralização do poder. As diferenças culturais começam a ser consideradas ameaças ao poder central e à unificação do idioma. As superstições são condenadas, as festas são extintas e tem lugar a caça às bruxas. O tempo cíclico popular dá lugar ao tempo linear do Capital. Outro espaço de enculturação tratado pelo autor, além do tempo, é a transmissão do saber. O conhecimento horizontal popular era aquele ambivalente, possuído e transmitido quase exclusivamente por mulheres. No Brasil colônia, por exemplo, Del Priore (2015)

51 conta que as mulheres que sabiam curar as doenças femininas - muitas vezes, por meio de curandeiras, benzedeiras, saberes indígenas e africanos – também eram condenadas. Havia desconhecimento, desconfiança e misoginia acerca do corpo da mulher. Eram as mulheres que presidiam as vigílias, as reuniões das comunidades, aldeãs ao cair da tarde, nas quais se conservaram alguns modos tradicionais de transmissão cultural. Vigílias em que, junto ao relato de contos de terror e de bandidos, faz-se a crônica do sucesso das aldeias, transmite-se uma moral de provérbios e partilham-se receitas medicinais que reúnem um saber sobre as plantas e o ciclo dos astros. A bruxa representa, junto com os levantes, segundo Michelet, um dos modos de expressão fundamentais da consciência popular. (MARTIN- BARBERO, 2009, p. 139)

O saber horizontal é verticalizado e substituído pelo oficial da escola. Ocorre a desvalorização da cultura popular e se instaura um sentimento de vergonha entre as classes populares. Bakhtin (2010) explica que nesse momento a vida cotidiana é separada da vida social e histórica. Faz-se a dicotomia entre o vulgar (comida, bebida, ato sexual, por exemplo) e o elevado. A Revolução Francesa foi um marco nesse sentido. Nesse período, o popular se opôs ao culto em consonância com o pensamento iluminista que exalta a razão. Apesar de lutar contra a tirania e a favor da vontade do povo, a razão exclui a cultura popular em nome de uma sabedoria racional (MARTÍN-BARBERO, 2009). A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que essa invocação articula sua exclusão da cultura. E é nesse movimento que se geram as categorias “do culto” e “do popular”. isto é, do popular como inculto, do popular designado, no momento de sua constituição em conceito, um modo específico de relação com a totalidade do social: a da negação, a de uma identidade reflexa, a daquele que se constitui não pelo que é, mas pelo que lhe falta. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 35).

Martín-Barbero (2009) explica que o sentimento de encultura do popular só se instaura de fato quando a cultura burguesa ocupa o posto de cultura universal, legitimando o poder burguês e sua hegemonia. Contraditoriamente, com essa ascensão burguesa, tem origem o romantismo, que, por sua vez, contestará a razão. Nele, o povo adquire um status cultural por meio da exaltação do nacionalismo e da tradição. Há a mistura entre a concepção de povo e nação. No mesmo período, conta Martín-Barbero, o espaço urbano se desenvolve, há a ascensão das multidões, o movimento de democratização e o surgimento do conceito de massa, devido à uniformização decorrente do rompimento das

52 relações hierarquizadas. “O desenvolvimento do capitalismo e a industrialização afetam a vida das classes populares, as massas e o proletariado se confundem. A burguesia, por sua vez, se vê ameaçada diante da uniformização cultural.” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 56). A nova sociedade assiste ao fim das antigas instituições, ao exacerbamento individualização e à grande circulação cultural nos meios de comunicação de massa. Estes últimos passam a desempenhar a função mediadora na sociedade. Surge o conceito de indústria cultural com a Escola de Frankfurt. Seus teóricos, a maioria, assume uma postura crítica em relação aos produtos dessa indústria, considerados degradantes, em prol de uma arte elevada. A cultura erudita e a cultura de massa se opõem. Diante disso, o autor argumenta que o popular só pode ser entendido na contemporaneidade na mescla com a cultura massiva urbana. Ele argumenta inclusive que o massivo é uma forma de existência de popular. É nesse contexto que tratamos da mulher popular urbana no Brasil. De acordo com D´Incao (2015), o Brasil sofreu uma série de mudanças durante o século XIX: consolidação do capitalismo, ascensão da burguesia, modernização e urbanização das cidades de acordo com o modelo francês. Uma nova mentalidade se instaurou e reorganizou as atividades femininas, cada vez mais voltadas para a vida doméstica, educação dos filhos e dedicação ao marido. O controle à vida sexual feminina passou a ser parte dos interesses burgueses, uma vez que a virgindade e o posterior casamento poderiam garantir a passagem da propriedade privada pela herança. Havia o ideal católico calcado na figura da Virgem Maria, com a supervalorização da virgindade e da maternidade. O papel da mulher como mãe, esposa e dona de casa era reforçado pelos meios médicos, educativos e pela imprensa, que tinham o objetivo de “educar” a mulher e direcioná-la a “[...] um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera da família “burguesa e higienizada”. (2015, p. 229). Nos anos 20 e 30, a figura da “mãe cívica” passa a ser exaltada como exemplo daquela que preparava física, intelectual e moralmente o futuro cidadão da pátria, contribuindo de forma decisiva para o engrandecimento da nação. A imagem de Santa Maria foi fortemente valorizada, enquanto nas artes a figura da “mulher fatal”, poderosa, ameaçadora e demoníaca, como Salomé, invadia o palco e fazia grande sucesso. Quase todas as atrizes desse período, Theda Bara e Louise Brooks no cinema, interpretavam Cleópatra, Laís, Circe, Eva, Dalila ou Salomé, esta que, com a dança voluptuosa dos sete véus, conseguira a cabeça de João Batista”. (RAGO, 2015, p. 592).

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Scott (1985) e Beauvoir (1970) realçam a importância das representações simbólicas de gênero, como Eva e Maria, na dominação masculina. Scott (1995) afirma, inclusive, que as interpretações desses símbolos permitem a formulação de conceitos normativos Enquanto o espaço privado era enaltecido como lócus do confinamento feminino, o espaço público era controlado pelas elites e medidas higiênicas do governo. Inclusive, o interior das residências tornou-se mais aconchegante, o que definiu ainda mais “[...]os limites do convívio e as distâncias sociais entre a nova classe e o povo, permitindo um processo de privatização da família marcado pela valorização da intimidade (D´INCAO, 2015, p.228). A pobreza não era mais tolerada nos centros das cidades, havia campanhas com o objetivo de eliminá-la da região. A influência da Escola Positivista Italiana, liderada pelo médico italiano Lombroso, contribuiu para esse propósito, pois seu teor evolucionista justificava as desigualdades, principalmente raciais, ao relacionar o crime a características físicas. Essas teorias serviam à criminologia e às medidas eugenistas. Desse modo, as classes populares, as mulheres, e principalmente a mulher popular, sofreram muito com a modernização das cidades brasileiras. De acordo com Soihet (2015), houve um movimento das populações pobres para as capitais e sua concentração nas regiões centrais, em habitações coletivas, casas de cômodos ou cortiços, nos quais a privacidade era facilmente rompida pela vigilância policial. Os dirigentes consideravam as moradias populares focos de epidemias, corrupção moral e atraso. As mulheres pobres do Rio de Janeiro e São Paulo, sujeitos da pesquisa de Soihet – por meio de documentos judiciários e policiais - , entre outras profissões, trabalhavam de lavadeiras, engomadeiras, doceiras, bordadeiras, floristas, cartomantes, ou se prostituíam e tinham a rua e praças como espaço de lazer, trânsito e comunicação para o dia a dia de trabalho. Elas representavam o contrário do que pregava a nova ordem a respeito do resguardo feminino. Essas trabalhadoras apresentavam em seus costumes a realidade concreta a que eram submetidas. Por exemplo, segundo a pesquisa, elas não eram formalmente casadas, brigavam na rua e falavam palavrões, explica Soihet (2015). Havia também mais liberdade sexual entre elas, revelando que o controle sobre a sexualidade feminina tinha forte vínculo com o regime de propriedade privada; embora as mulheres pobres, negras e

54 mestiças estivessem mais sujeitas à exploração sexual. Além disso, o estereótipo do marido dominador não se aplicava totalmente nas classes populares, pois muitas mulheres reagiam à violência7, enquanto outras se negavam a suportar humilhações e abriam mão do casamento (SOHIET, 2015). Mesmo assim, elas não estavam livres dos ideais impostos às mulheres da elite. Mantinham, por exemplo, a aspiração ao casamento formal, sentindo- se inferiorizadas quando não casavam; embora muitas vezes reagissem, aceitavam o predomínio masculino; acreditavam ser de sua total responsabilidade as tarefas domésticas, ainda que tivessem que dividir com o homem o ganho cotidiano. (SOIHET, 2015, p. 367)

O casamento formal não era comum na esfera das classes populares por uma série de motivos, como o desinteresse em formalizar a união por conta da ausência de propriedades, questões burocráticas, dificuldade de o homem garantir o sustento da casa e o desejo das próprias mulheres continuarem autônomas e trabalhando. Soihet destaca que o poder jurídico estava favor das opressões sociais da época. Por exemplo, o homem que matava para “lavar sua honra” em caso de traição era justificado de certa forma pela justiça, o mesmo caso não servia às mulheres. Elas só eram “compreendidas” em caso de violência e morte para defenderem a sua honra no sentido da castidade, pureza, contra homens que tentavam violar sua sexualidade. Também de acordo com o Código Penal de 1890, no Brasil, só a mulher era castigada pelo adultério, geralmente com a morte. “Os motivos da punição eram óbvios, já que o adultério representava os riscos da participação de um bastardo na partilha dos bens e na gestão dos capitais” (SOIHET, 2015, p. 381). Observa-se que não havia muita alternativa à mulher. Aquelas que não se encaixavam no modelo de dedicação ao lar e ao marido sofriam preconceitos, eram consideradas perdidas, indignas e perigosas, mesmo em casos de abuso masculino e separação por parte do homem. E, assim, mulheres abandonadas expunham suas vidas em práticas abortivas toscas e apressadas, outras se desfaziam do recém-nascido nas situações mais trágicas. Transformavam-se em monstros, numa cultura alimentada pelo estereótipo do amor de mãe como instintivo [...] (SOIHET, 2015, p. 390).

7 Soihet (2015) explica que a violência doméstica era comum nas camadas populares, pois os homens se sentiam diminuídos diante do trabalho de suas companheiras, uma vez que as normas sociais delegavam a eles o total sustento da casa. Ele descontava suas frustrações na mulher, que, inclusive, poderia ganhar mais do que ele.

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Fonseca (2015) faz constatações semelhantes em pesquisa realizada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, também com base em documentos judiciais. A autora aborda a maternidade e a pobreza nas primeiras décadas do século XX, em um contexto peculiar na região fronteiriça com o Uruguai, quando questões separatistas, guerras, a instabilidade do emprego e a mobilização geográfica masculina deixavam as mulheres constantemente em estado de abandono. Mesmo sozinhas, elas não contavam com nenhum respaldo legal para viver com outro homem. Nessa conjuntura, as mulheres precisavam trabalhar e mesmo quando viviam com o companheiro procuravam fontes extras de renda. Mas, a realidade vivenciada não condizia com a moralidade imposta, demonstra a pesquisa de Fonseca. A mulher pobre estava sempre “[..] entre a cruz e a espada. [...] a dona de casa, que tentava escapar à miséria por seu próprio trabalho, arriscava sofrer o pejo da ‘mulher pública’” (FONSECA, 2015, p. 516). Além disso, eram acusadas de mães relapsas. A virgindade - assunto público e patrimônio familiar - nem sempre era suficiente ou propícia para a integração de uma moça pobre. Muitas vezes, conta Fonseca, a mulher pobre só encontrava saída na prostituição, já que era vista como imoral desde sempre. Inclusive, a prostituição era comum nos documentos estudados pela autora. “O que consta, em todo caso, é que as meretrizes não constituíam uma população à parte. Eram casadas, amasiadas, vivendo nos cortiços e hotéis, com ‘mulheres honestas’ e operárias” (FONSECA, 2015, p. 534). Assim como Soihet, Fonseca expõe que as mulheres também reagiam em algumas situações. Por exemplo, como a lei dava prioridade ao pai na guarda da criança – pátrio poder – em caso de separação (mesmo se o casamento não fosse oficial). Por essa razão, algumas mães não revelavam a paternidade do filho para continuarem com ele. Porém, em casos de separação, elas também enfrentavam o problema da moradia, pois era sempre a mulher que deveria encontrar outro lugar para morar e pagar aluguel. Se o homem decidisse sumir, toda a responsabilidade recaía sobre ela. Raramente a mulher expulsava o homem de casa. Se era concubina, não tinha nenhum direito à propriedade de seu companheiro; se era casada, dependia da autorização de seu marido para a prática de qualquer ato legal. A mulher “abandonada” recomeçava a vida com bem mais desvantagens do que o homem em situação semelhante. (FONSECA, 2015, p. 524).

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A teórica pontua que o casamento representava a minoria das uniões no Brasil, principalmente no século XIX “[...] eram os matrimônios, e não a concubinagem, que se realizavam num círculo limitado.” (FONSECA, 2015, p. 528). As famílias nucleares, patriarcais, eram apenas uma parte da história brasileira e correspondia a um valor moral burguês. Rago (2015), por sua vez, trata das questões trabalhistas em torno da mulher do fim do século XIX e início do século XX. A autora explica que as mulheres negras, depois da abolição da escravidão, continuaram trabalhando nos setores mais desqualificados, como lavadeiras, cozinheiras, doceiras, vendedoras de rua ou prostituas. E não apareciam em fotos nos jornais de grande circulação, como os de Rio e São Paulo, já as imigrantes europeias sim. Ou seja, havia um interesse em torná-las invisíveis, apoiado nas teorias eugenistas que desejavam incluir os imigrantes europeus para o embranquecimento da raça. “Normalmente, as mulheres negras são apresentadas na documentação disponível, como figuras extremamente rudes, bárbaras e promiscuas, destituídas, portanto, de qualquer direito de cidadania”. (RAGO, 2015, p. 582). Pinsky (2013, p.498) destaca também os preconceitos de classe e de raça na representação das empregadas domésticas, que eram qualificadas como “sapeca”, “promíscua”, “debochada”, “burra” e “boçal”. No período retratado por Rago (2015), não havia legislação que protegesse o trabalho feminino. Assim, as reclamações das operárias que enfrentavam condições ruins de trabalho, assédio e falta de higiene nas fábricas passaram a ocupar lugar na imprensa operária. Porém, esses jornais, ao vitimizar a mulher, reproduziam o discurso médico típico da época, segundo o qual o trabalho feminino fora de casa iria degradar a família. A fábrica era tida como um bordel e um antro de perdição. As esferas sociais e os jornais concordavam com a volta da mulher para o ambiente privado. Por outro lado, a exploração do trabalho das mulheres mais pobres era justificada de acordo com as mesmas teorias eugenistas. Homens de elite acreditavam que as mulheres das camadas mais carentes (ou por questão física ou falta de formação moral) eram inferiores em relação às mulheres da elite e mais propensas ao vício. As trabalhadoras pobres eram consideradas profundamente ignorantes, irresponsáveis e incapazes, tidas como mais irracionais que as mulheres das camadas médias e altas, as quais, por sua vez, eram consideradas menos racionais que os homens. No imaginário das elites, o trabalho braçal, antes realizado em sua maior parte pelos escravos, era associado à incapacidade pessoal para desenvolver qualquer habilidade intelectual ou artística e à degeneração moral. (RAGO, 2015, p.589).

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As “feministas liberais” se preocupavam com as dificuldades das mulheres de classe alta no ingresso ao mundo do trabalho e seu discurso não afetava as mulheres pobres. Inclusive, consideravam essas últimas como inferiores. Por outro lado, as mulheres que escreviam para a imprensa anarquista, socialista e comunista, muitas vezes, consideravam a questão feminina secundária em relação às das classes sociais. Feministas liberais pediam o direito ao voto. Ao contrário, as anarquistas julgavam a votação um campo já muito atravessado pelas questões de poder, diferente das comunistas e socialistas, se negavam a formar partido. Rago (2015) salienta a importância das femininas anarquistas. Elas defendiam o divórcio, as uniões livres e, bem diferente das teorias eugenistas, acreditavam que a prostituição se dava em decorrência do capitalismo e sua exploração do trabalho. Assim, reivindicavam o fim da valorização da virgindade, considerada uma concepção burguesa, e exaltavam o poder da educação para as mulheres. (RAGO, 2015). Rago (2015) denuncia a falta de aproximação entre feministas de classe média da época e as mulheres operárias. As primeiras também não se aproximavam das discussões realizadas nos movimentos anarquistas. Davis (2016) aborda questão semelhante ao tratar da distância entre as feministas brancas de classe média e as mulheres negras em meados do século XIX nos Estados Unidos. Essa falta de integração fez com que o feminismo em sua maioria fosse pouco significativo para as mulheres negras e as pobres. Este fato demonstra que não é possível avaliar as conquistas das mulheres ricas, das pobres e das negras, por exemplo, com a mesma régua. Nesse sentido, Fonseca (2015) faz uma relevante reflexão ao tratar do recente aumento de mulheres chefes de família. [...]é bem possível que o recente aumento do número de famílias chefiadas por mulheres esteja ligado entre as camadas médias, ao movimento feminista e à nova autonomia da mulher. Projetar essa mesma explicação sobre grupos pobres, cuja alta taxa de mulheres chefes de família tem sido historicamente ligada à pobreza, seria um engano. (FONSECA, 2015, p. 546).

Ou seja, as mulheres pobres já ocupavam posição de chefes de família em decorrência da necessidade, o que não se relaciona com sua emancipação necessariamente. Já para a mulher de classe média, reclusa no ambiente doméstico, a realidade é outra. É preciso considerar essas colocações para o nosso corpus, uma vez que muitas das personagens tratadas nesta tese são chefes de família.

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De acordo com Nepomuceno (2013), a condição da mulher chefe de família começou a ter visibilidade no Brasil a partir da década de 2000, mas para as mulheres negras essa realidade já é antiga, aponta a estudiosa. “Desde o pós-Abolição, em função da exclusão do homem negro do mercado formal de trabalho, a mulher negra viu-se premida a assumir o papel de mantenedora da família” (NEPOMUCENO, 2013, p. 396). É possível considerar que a mulher pobre de hoje é a herdeira da mulher sobre a qual discutimos. E falar a respeito de sua representação é abordar também a visão reducionista ofertada pela ótica hegemônica, ou seja, é preciso tratar das relações de poder.

1.3.Representação, diferença e poder De acordo com Hall (2016) o conceito de representação possui duas definições principais, uma delas é constituída pelo ato de retratar algo, por descrição e imaginação, por exemplo. A outra diz respeito à representação como ato de simbolizar algo, como amostra ou substituto. Hall (2016) explica que o poder também envolve as representações sociais. O autor concorda com a concepção de hegemonia de Gramsci (2014) de que o poder não é só coerção, é também simbólico. Hall explica que existe uma circularidade do poder que envolve os dominados além dos dominadores. De acordo com Elias e Scotson (2000), quanto maior o desequilíbrio de poder entre os grupos, mais acentuado é o aspecto econômico e quando as diferenças são mais suaves outros elementos dos conflitos se tornam evidentes. Nesse sentido, eles afirmam que Marx desvendou uma meia verdade quando apontou a distribuição desigual dos meios de produção como o fator principal dos conflitos entre grupos poderosos e oprimidos. Elias e Scotson (2000) discorrem sobre o desenvolvimento das formas de poder a partir de um estudo realizado em uma pequena cidade da Inglaterra chamada Winston Parva. O objetivo era entender a relação entre o que eles chamaram de estabelecidos (moradores antigos, tradicionais) e outsiders (moradores recentes) na região. Ambos os grupos pertenciam à classe trabalhadora, porém os outsiders desempenhavam, em sua maioria, trabalhos considerados braçais, além de não gozarem da coesão social, dos cargos de poder e da boa fama dos estabelecidos. Havia a crença na superioridade humana destes últimos.

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[...] nessa pequena comunidade, deparava-se com o que parece ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa [praise gossip], no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas [blame gossip] contra os suspeitos de transgressão. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 20)

O grupo de estabelecidos atribuía aos outsiders características ruins, com base em sua minoria anômica. Enquanto para falar deles mesmos, os estabelecidos consideravam o seu setor modelar, nômica - a minoria dos melhores. Gerava-se, assim, uma socio- dinâmica de estigmatização, que difere do preconceito por depender de uma posição de poder para ocorrer, ou seja, “Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder dos quais o grupo estigmatizado é excluído.” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 23). A estigmatização é uma forma dos grupos fortes (em maioria numérica ou não), que se sentem ameaçados, manterem-se poderosos. A coesão e a integração entre os membros dos estabelecidos demonstraram ser um diferencial em Winston Parva, de forma que estes tendiam a fofocar mais, o que reforçava a coesão já existente. Os outsiders não conseguiam revidar por não disporem da mesma consciência de grupo. A estigmatização por meio da fofoca, explicam os estudiosos, apoia-se fortemente em um âmbito imagético. Há um processo de materialização da inferioridade que se quer imputar, ou seja, começam-se a explorar diferenças físicas para justificar o poder. A sujeira, por exemplo, pode ser relacionada com a anomia (outsiders são sujos nessa visão) e passa a manifestar um valor simbólico. Explora-se também a cor da pele, características inatas e biológicas. Relações semelhantes são encontradas nas crenças sobre do corpo feminino ao longo da história. No Brasil colônia, por exemplo, a medicina portuguesa (liderada obviamente por homens) subestimava o corpo da mulher. Este era relacionado a elementos sobrenaturais e pecaminosos e qualificado como moralmente inferior; o sangue menstrual era considerado infeccioso. (DEL PRIORE, 2015, p. 98). Para Elias e Scotson, a centralidade das relações entre estabelecidos e outsiders está sempre no poder. As outras questões, como as étnicas (entendemos também as de gênero), são apenas reforços utilizados para a manutenção desse poder.

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Não há nada de acidental em se descobrirem aspectos semelhantes nas relações estabelecidos-outsiders que não estão vinculadas a diferenças raciais ou étnicas e naquelas ligadas a essas diferenças. Os indícios sugerem que, também neste último caso, tais aspectos não se devem às diferenças raciais ou étnicas em si, mas ao fato de um dos grupos ser estabelecido, dotado de recursos superiores de poder, enquanto o outro é um grupo outsider, imensamente inferior em termos do seu diferencial de poder e contra o qual o grupo estabelecido pode cerrar fileiras. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 31).

Os teóricos também observaram que, além de ocuparem os melhores cargos sociais, a comunidade mais unida contava com acesso aos canais de transmissão de notícias. Os jornais locais reforçavam o estereótipo existente em relação aos outsiders, endossando a opinião dos estabelecidos. Estes se interessavam apenas pelas notícias que se encaixassem em sua crença predeterminada. Além disso, os autores expõem que estruturalmente a fofoca depreciativa (sobre os outsiders) era inseparável da elogiosa (sobre os estabelecidos) e que os boatos negativos pareciam sempre mais saborosos. A pesquisa de Elias e Scotson (2000) ressalta a força da imagem como uma representação simplificada de realidades sociais e a relevância da identificação com o grupo. Há uma dialética entre indivíduo e sociedade e uma relação íntima e não racional entre a visão de grupo e do próprio eu. Desse modo, o grupo outsider pode começar a corresponder aos estigmas em um processo de internalização, expõem os autores. Além disso, as crenças coletivas podem “[...] persistir com grande intensidade, mesmo que, num nível mais racional, o indivíduo chegue à conclusão de que ela é falsa e venha a rejeitá-la.”. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p 128). Os estabelecidos estudados também costumavam acessar sentimentos imediatos para falar dos outsiders e deles mesmos, assim como a memória seletiva. É possível relacionar as análises de Elias e Scotson (2000) com a abordagem sobre representação trazida por Hall (2006), baseada em uma concepção construtivista da realidade, conforme as teorias de Berger e Luckmann (2014) sobre o conhecimento como realidade, principalmente o conhecimento do senso comum. A linguagem tem papel essencial na construção social da realidade expõem Berger e Luckmann (2014). Ela torna possível o compartilhamento de um acervo social do conhecimento por gerações. Assim, quando nascemos, a realidade cotidiana já nos aparece objetificada. A linguagem também permite que novas experiências sejam objetificadas e incorporadas nesse estoque. (BERGER E LUCKMANN, 2014).

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Ainda de acordo com Berger e Luckmann (2014), nem todos os setores do cotidiano são apreendidos na rotina vivida, na interação face a face, pois a vida diária consiste em questões imediatas e fenômenos não presentes no aqui e agora, apreendidos pelo conhecimento compartilhado e possível pela linguagem que torna presente objetos que estão longe temporal e espacialmente. Assim, a vida e o outro são captados por meio de tipificações. A realidade social da vida cotidiana é, portanto, apreendida num contínuo de tipificações, que se vão tornando progressivamente anônimas à medida que se distancia do “aqui e agora” da situação face a face. Em um polo contínuo estão aqueles outros com os quais frequente e intensamente entro em ação recíproca em situações face a face, meu “círculo interior”, por assim dizer. No outro polo estão abstrações inteiramente anônimas, que por sua própria natureza não podem nunca ser achadas em uma interação face a face. A estrutura social é a soma dessas tipificações e dos padrões recorrentes de interação estabelecidos por meio delas. Assim sendo, a estrutura social é um elemento essencial da realidade da vida cotidiana. (BERGER; LUCKMANN, 2014, p. 51.)

Hall (2016) afirma que a linguagem é um sistema representacional. Ele considera a linguagem de modo amplo, linguística ou a visual, por exemplo. Por meio da cultura e da linguagem, explica o teórico, se dá a circulação e elaboração de significados. Desse modo, os sentidos não estão nas coisas, e sim são construídos por nós, na relação entre um signo e um conceito. Essa visão de representação, cremos, abarca o ser real e o ficcional, no caso de personagens. Em parte, nós damos significados a objetos, pessoas e eventos por meio de paradigmas de interpretação que levamos a eles. Em parte, damos sentido às coisas pelo modo como as utilizamos ou as integramos em nossas práticas cotidianas [...] Em outra parte ainda, nós concedemos sentido às coisas pela maneira como as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas, as histórias que narramos a seu respeito as imagens que delas criamos, as emoções que associamos a elas, as maneiras como as classificamos e conceituamos, enfim, os valores que nela embutimos. (HALL, 2016, p. 21).

O teórico discute a geração de significado na diferença e exemplifica com a representação do negro nos Estados Unidos. Como a linguagem trata de classificações culturais, o que não se encaixa nos lugares comuns já constituídos é visto como diferente. Nessa lógica, Hall realça duas formas principais de retratar o negro durante a escravidão nos Estados Unidos: de acordo com um status subordinado, como um preguiçoso inato; e segundo um primitivismo inato, o negro como ausência de civilidade. A fixação da

62 diferença é naturalizada, explica o teórico. Depois, com o surgimento de novos discursos, conta, a escravidão passou a ser romantizada e surgiu a representação idealizada do bom escravo. A estereotipagem racial da época da escravidão nunca desapareceu por completo no cinema americano, aponta Hall. Na década de 30, por exemplo, os atores negros apareciam em papéis de “bobos da corte”, simplórios, servos fiéis e empregados, assim como vemos hoje na telenovela nas empregadas domésticas negras. Sobre a diferença, Berger e Luckmann (2014) chamam a atenção aos mecanismos da terapêutica que mantêm o universo social vigente e visam a assimilar o ser “dissidente”, que ameaça dada realidade social, com técnicas que pretendem ajustá-lo. “Seus dispositivos institucionais específicos, do exorcismo à psicanálise, da assistência pastoral aos programas de aconselhamento pessoal, pertencem naturalmente à categoria do controle social”. (BERGER; LUCKMANN, 2014, p. 147). Há também o procedimento de aniquilação que liquida conceitualmente tudo o que não faz parte do instituído. Nesse caso: “A ameaça às definições sociais da realidade é neutralizada atribuindo-lhe um status ontológico inferior, e, com isso um status cognoscitivo que não deve ser levado a sério [...]” (2014, p.149). Vimos que a mulher popular no início das grandes cidades no Brasil foi tratada como inferior com respaldo e legitimação da ciência. Beauvoir (1970) menciona as formas de justificar a “inferioridade” feminina e a “superioridade” masculina, com o intuito de manutenção de poder por meio da religião, da psicologia, da filosofia, da biologia e outras áreas do conhecimento dominadas pelos homens. Esse processo de justificação, afirma Beauvoir, se repete em outros tipos de desigualdades. “[...] quer se trate de uma raça, de uma casta, de uma classe, de um sexo reduzidos a uma condição inferior, o processo de justificação é o mesmo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 17). Beauvoir, inclusive, identifica analogias entre a condição feminina e a dos negros, no estabelecimento de falsas igualdades que promovem mais segregação. Essas instituições e áreas do conhecimento que respaldam a dominação vigente são legitimadoras. Berger e Luckmann (2014) explicam que com a objetificação do conhecimento, há a reificação, explicam os estudiosos, ocorre a legitimação, que sobrevive a gerações e adquire um caráter histórico. Eles abordam quatro níveis da legitimação. A primeira é simples, consiste na transmissão das objetivações linguísticas da experiência humana; o segundo nível traz algumas propostas teóricas rudimentares,

63 como as lendas e mitos; o terceiro passa pelas teorias que legitimam as instituições; e o último são os universos simbólicos que tratam de realidades que transcendem a vida cotidiana, mas legitimam seus papéis. Esses universos unificam todos os processos institucionais, exemplos deles são a Mitologia, Teologia, Filosofia, Ciência, entre outros. Ainda sobre a legitimação da “inferioridade” feminina, Perrot (2017) conta que o filósofo grego Aristóteles foi um propagador radical de teorias sobre a superioridade masculina. De acordo com o filósofo, a mulher era como um homem incompleto, passiva, encontrava-se entre o humano e o animal e representava uma ameaça à vida harmônica em coletividade. “O pensamento de Aristóteles modela por muito tempo o pensamento da diferença entre os sexos, sendo retomado com modulações pela medicina grega de Galeno. E na Idade Média, pelo teólogo Tomás de Aquino”. (PERROT, 2017, p. 23). O saber feminino era proibido pela Igreja. As mulheres que desejassem estudar e fugir do matrimônio encontravam alternativa na entrega religiosa, tornavam-se freiras e viviam enclausuradas. Na Idade Média, por exemplo, as mulheres que questionavam os poderes dos clérigos e usavam da sabedoria popular para a cura de moléstias, como o uso de ervas medicinais, eram consideradas heréticas, feiticeiras e condenadas pela Inquisição. A repressão se acentua entre os séculos XVI e XVII, ironicamente na época do Renascimento. (PERROT, 2017). Havia uma carga erótica ligada a essas mulheres, que eram relacionadas com o diabo. Elas manifestam uma sexualidade desenfreada: têm a “vagina insaciável”, segundo Le Marteau des soccières. Praticam uma sexualidade subversiva. Subversão das idades: muitas feiticeiras velhas fazem sexo numa idade em que não se faz mais, após a menopausa. Subversão de gestos: fazem sexo por trás, ou cavalgam os homens, invertendo a posição que a Igreja considerava a única possível: a mulher deitada, o homem sobre ela. Colocando-se do lado de Lilith, a primeira mulher de Adão, que o deixou porque este a recusava a deixar-se montar. (PERROT, 2017, p. 89).

Voltando à representação, Hall (2016) aborda duas formas importantes de representar o outro, os tipos e a estereotipagem. A tipificação é um regime geral de classificação para o que entendemos como mundo. Já a estereotipia consiste em um conjunto de práticas representativas reducionistas que são naturalizadas. O autor afirma que representação, diferença e poder estão conectados na estereotipagem. Os estereótipos se apropriam de poucas características sobre uma pessoa e tudo sobre ela é reduzido a esses traços que passam a ser exagerados e simplificados. A estereotipia fixa a diferença

64 e realiza uma espécie de cisão entre o que é considerado normal e o que deve ser excluído por ser diferente. Os estereótipos são mais rígidos que os tipos sociais, explica Hall, e trabalham para a manutenção da ordem social e simbólica, na facilitação à inclusão de uns e exclusão de outros, e tendem a agir onde existem desigualdades de poder. “Esta substituição do todo pela parte, de um sujeito por uma coisa – um objeto, um órgão, uma parte do corpo – é o efeito de uma prática representacional muito importante, o fetichismo.” (HALL, 2016, p. 205). Lippmann (1980), por sua vez, argumenta que é impossível o ser humano conhecer tudo intimamente e, por isso, usamos estereótipos o tempo todo em nosso cotidiano. Na perspectiva do autor, o estereótipo não é negativo em si e tem a sua utilidade. Essa concepção de estereótipo se assemelha ao conceito de senso comum de Berger e Luckmann (2014). As formas estereotipadas estão em todos os lugares, explica Lippmann (1980), na arte, na política, nos negócios, na sociedade como um todo. Na maior parte das vezes não vemos primeiro para depois definir, mas definimos e depois vemos. [...] colhemos o que nossa cultura já definiu para nós, e tendemos a perceber o que colhemos na forma estereotipada para nós, pela nossa cultura. (LIPPMANN, 1980, p. 151)

Nesse sentido, Heller (2004) apresenta visão semelhante. Segundo a estudiosa, na vida cotidiana precisamos de juízos provisórios e ultrageneralizações para agir de forma rápida nas mais variadas situações. O problema, aponta Heller, está na formação dos preconceitos, que se baseiam em fixações afetivas como a fé. Para a autora, o preconceito se dá quando a ultrageneralização não mais se baseia na vida cotidiana, mas sim em uma atitude individual. Entendemos, assim, que o estereótipo da forma tratada por Hall (2016) é análogo ao conceito de estigmatização tratado por Elias e Scotson (2000) por estarem embasados em grupos sociais, nos quais estão implicadas as relações de poder. Além disso, ambos tratam da parte pelo todo, ou seja, das concepções reducionistas utilizadas para rotular todo um grupo. É pertinente pontuar que as mídias têm papel fundamental atualmente na reprodução, disseminação e reelaboração de representações e estereótipos. Sobretudo se as considerarmos como instituições reificadas de legitimação, nos moldes explicados por Berger e Luckmann (2014). Nesse sentido, existem muitos exemplos de representações midiáticas das mulheres das classes populares que convergem com o sentido de

65 inadequação a elas reservado historicamente, tanto em programas estilo reality show, como nas produções teleficcionais, e também na criação de personas midiáticas. É possível apontar para a existência de um discurso circulante (CHARAUDEAU, 2012) como trataremos a seguir.

1.4.Discursos midiáticos

As personas midiáticas são formas de apresentação de si recorrentes na arte comercial de hoje, cujos “personagens” e suas “máscaras” configuram-se por meio de uma articulação [...] entre a imagem púbica produzida em torno de determinados artistas e sua respectiva trajetória social, sua vida mais privada, aquilo que vai além da imagem que é fruto de seu trabalho na TV. (SANTOS, 2016, p. 80).

Essa citação de Santos (2016), que realiza uma pesquisa antropológica com ex- chacretes, dialoga com a construção dos espaços público e privado pelas mídias, sobretudo pela televisão (CHARAUDEAU, 2012). De acordo com Charaudeau a definição do que é o espaço público e o privado depende do contexto cultural. A mídia costuma redimensionar a fronteira entre esses dois espaços, explica o autor que relaciona a noção de espaço público com o conceito de discurso circulante. O discurso circulante é uma soma empírica de enunciados com visada definicional sobre o que são os seres, as ações, os acontecimentos, suas características, seus comportamentos e os julgamentos a eles ligados. Esses enunciados tomam uma forma discursiva que, por vezes, se fixa em fragmentos textuais (provérbios, ditados, máximas e frases feitas), por vezes varia em maneiras de falar com fraseologia variável que se constituem em socioletos. É através desses enunciados que os membros de uma comunidade se reconhecem. Pode-se atribuir ao discurso circulante ao menos três funções, que nos remetem, em parte, às das representações [...]. (CHARAUDEAU, 2012, p. 118).

O teórico atribui três funções aos discursos circulantes. São elas: a instituição do poder/contrapoder; a regulação do cotidiano social; e a função de dramatização, com histórias, ficções, mitos e outros discursos que registram o destino humano. O entrecruzamento dessas funções constrói um espaço público de caráter heterogêneo, publicizado pela mídia. No passado, esse espaço já foi publicizado pela Igreja, pela monarquia, pela festa e o bufão na Idade Média, explica Charaudeau (2012).

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É importante considerar nesse contexto o caráter responsivo e dialógico dos enunciados (BAKHTIN, 2003). Os discursos se relacionam uns com outros e não são homogêneos. Ou seja, todo discurso tem natureza interdiscursiva (MAINGUENEAU, 1989). É possível considerar um discurso circulante sobre a mulher popular tanto em produtos de ficção, como nos não ficcionais e, inclusive, na construção de personas midiática como foram as chacretes8, dançarinas nos programas do apresentador Chacrinha, por volta de 1967 a 1988 A pesquisa de Santos (2016) demonstra que as ex-chacretes, agora idosas, são mulheres cujas narrativas de vida se inserem no imaginário da mulher popular brasileira. Além disso, essas dançarinas adquiriram notoriedade para a compreensão da linguagem audiovisual no contexto da TV popular no país. A própria vida das chacretes se assemelha à história da mulher pobre no Brasil. As chacretes viam na profissão de dançarina uma oportunidade para uma vida melhor, já que a maioria provinha das classes populares. Algumas dessas artistas recorriam à prostituição durante a atividade ou até mesmo depois, revelando a falta de oportunidades e expectativa na carreira de chacrete. O casamento também era uma opção diante das baixas condição de trabalho. Elas faziam parte, expõe Santos (2016), de um típico movimento do trabalho das mulheres populares dos anos 1970, no qual a atuação profissional ocorria antes dos 25, e depois dedicavam-se à casa e filhos. As dançarinas eram frequentemente estereotipadas na imprensa, reduzidas a determinadas características corporais. As revistas da época usavam os adjetivos “carnudas” e “boazudas”, e publicavam as suas medidas. Elas eram vistas como peruas, alegres, extravagantes na maquiagem e roupas, sensuais, de feminilidade “selvagem” e um pouco vulgar (SANTOS, 2016). As chacretes realizavam uma performance de “superfêmea”, analisa o pesquisador, na qual a feminilidade ressaltada não era natural e sim aprendida para a exposição na mídia. Inclusive, Santos conta que a ex-chacrete Rita Cadillac se inspirava na famosa travesti brasileira Rogéria. Além disso, muitas usavam de artifícios, como peruca. Esses

8 De acordo com Santos (2016), chacretes é uma variação do nome vedetes, as dançarinas do teatro de revista no Brasil, na primeira metade do século XX. Na televisão, o autor também aponta para a existência das silvetes, flavetes e boletes, dançarinas dos apresentadores Silvio Santos, Flávio Cavalcanti e Bolinha. Mas, estas não obtiveram o mesmo sucesso das chacretes.

67 dados corroboram a ideia de os gêneros serem construções sociais e não atributos naturais dos seres humanos. Os marcadores de distinção, segundo Santos (2016), existiam na seleção das chacretes, mas eram silenciados. Idade e cor da pele contavam. Havia maior espaço para as loiras e “mulatas”9. Mulheres brancas de pele com cabelos escuros e as negras não tinham destaque. A discriminação também era visível nos solos das garotas, pois os rostos das “mulatas” não eram focalizados ao contrário das loiras. Além disso, havia o estereótipo que relacionava a exuberância do corpo com a falta de conteúdo intelectual. Observa-se, nesse sentido, a separação discutida anteriormente entre popular e culto e entre feminino (não racional) e masculino (racional) como forma de legitimação das diferenças e a manutenção do poder. O estilo de beleza das chacretes não tinha espaço em outros setores da televisão como a telenovela. Nos anos 1970, expõe Santos (2016), a Rede Globo tinha como meta afastar tudo o que remetia à cultura popular por questões comerciais, para conquistar o público de classe média, por isso as formas carnudas das chacretes não eram aceitas em todos os programas. Algumas participavam de programas humorísticos, nos quais havia a associação da mulher “boazuda” com o humor. Também trabalhavam em fotonovelas, mas nunca interpretavam as heroínas clássicas, românticas e bondosas, por exemplo. As pornochanchadas, por sua vez, eram a oportunidade de elas aparecerem nas grandes telas, mas se tratava de produções que não tinham prestígio de arte, assim como os programas de humor e auditório. Tom humorístico semelhante está presente em muitas personagens femininas e populares das telenovelas, que não são protagonistas, e são marcadas em termos de classe social na forma de se vestir e falar. Já as chacretes da segunda geração, na década de 1980, experimentaram um outro tratamento por advirem das camadas sociais médias. Além de serem mais velhas, tinham

9 Djamila Ribeiro explica que o termo “mulata” indica mistura imprópria e, portanto, é pejorativo. “Trata- se de uma palavra de origem espanhola que vem de “mula” ou “mulo”, fazendo referência àquilo que é híbrido em relação ao cruzamento de espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. [...] Utilizado desde o período colonial, essa palavra era empregada para designar pessoas negras de pele mais clara, frutos dos estupros sistemáticos de mulheres escravizadas pelos senhores de engenho.” Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o- teu-discurso-nao-nega-racista>. Acesso em: 05 de agosto de 2018. Além disso, “[...] no âmbito das classificações de gênero, ao encarnar de maneira tão explícita o desejo do Masculino Branco, a mulata também revela a rejeição que essa encarnação esconde: a rejeição à negra preta”. (CORRÊA, 1996).

68 seus sobrenomes mencionados no programa do Chacrinha, e os apelidos – com os quais o apresentador costumava rotular as dançarinas – eram postos em segundo plano.10 Também a inteligência era valorizada e não só o corpo. A distinção também se dava, conta Santos (2016), entre cariocas e as paulistas. As últimas eram consideradas mais “certinhas” e de maior capital cultural. Vemos que as mulheres pobres ocupavam posição mais objetificada e sexualizada, o que parece ser uma constante em produções midiáticas no geral. Percebe-se também uma estigmatização maior em relação à mulher carioca nesse aspecto. A falta de sororidade se fez presente nas entrevistas realizadas por Santos (2016). Algumas falas revelaram um discurso de desconfiança em relação a outras mulheres (vistas como falsas) e a competição entre elas em torno de um homem, inclusive com as mais novas, chamadas de “garotinhas”. É possível argumentar que a raiva entre as mulheres é fruto de uma cultura machista, na qual os valores giram em torno de um ideal feminino recatado e jovem, o que alimenta a supremacia masculina e a competição. Enquanto os homens gozam do poder e da vantagem de escolher e julgar as mulheres sem compartilhar das mesmas limitações e críticas sexuais e morais ao longo da vida. A dificuldade de união entre as mulheres também é observada no discurso sobre a periguete, como veremos adiante, e nas personagens de nosso corpus. Muricy, por exemplo, de Avenida Brasil, chama a namorada de seu ex-marido, uma mulher bem mais jovem, de “paquita erótica”11. Atena, de A Regra do Jogo, revela não confiar em mulheres; e Ninfa e Alisson, também de A Regra do Jogo, dizem que geralmente não se dão bem com outras mulheres. Outro ponto pertinente levantado pela pesquisa de Santos (2016) é o uso da tecnologia televisiva na construção da persona midiática das chacretes. A edição e as tomadas da câmera ressaltavam partes do corpo, como as nádegas, nas quais faziam closes. Os travellings começavam nos pés e paravam na cintura. A própria dança era articulada com a tecnologia televisiva, principalmente para as de segunda geração que já conheciam mais a tecnologia audiovisual, devido ao advento do videoteipe. Ou seja, a

10 Soihet (2015) chama a atenção para o peso do sobrenome na vida das mulheres. A autora conta que as moças brancas pobres no início do século XX, sem dote e sem casamento, abandonavam seu sobrenome para viver em concubinato de forma anônima. 11 As paquitas eram um grupo formado pelas assistentes de palco da apresentadora Xuxa (Maria da Graça “Xuxa” Meneghel), conhecida como a rainha dos baixinhos, durante sua parceria com a empesaria Marlene Mattos entre os anos de 1984 e 2002, na Rede Globo.

69 construção da persona chacrete passava pelas técnicas, pela linguagem televisual, como observamos nas personagens de telenovelas. Vale destacar que as ex-chacretes também foram representadas em telenovela recentemente. Na trama Amor à Vida (2013-2014), de Walcyr Carrasco, transmitida na Rede Globo às 21 horas, havia a personagem Márcia, interpretada por Elisabeth Savalla, uma ex-chacrete conhecida pelos tempos de dançarina como Tetê Para-Choque e Para- Lama. Anteriormente, a personagem Ivete Chiclete, também ex-chacrete, interpretada por Zezé Polessa, fez parte da trama (2008), de Andréa Maltarolli, transmitida na Rede Globo no horário das 19 horas. Mais recentemente, um outro tipo de mulher popular emergiu no discurso circulante. Trata-se da periguete. De certa forma, essa figura reserva semelhanças com a persona midiática da chacrete. “Periguete” ou “piriguete” é um neologismo que tem sido usado no Brasil para classificar mulheres, principalmente jovens, independentes e liberais, em especial no que se refere ao relacionamento sexual-afetivo.” (TONDATO; VILAÇA, 2017, p. 96). O termo, presente no dicionário informal da internet, foi adicionado ao dicionário Aurélio Junior recentemente, no qual periguete significa “[...] “moça ou mulher que, não tendo namorado, demonstra interesse por qualquer um”, enquanto “tuitar” é definido como “postar ou acompanhar algo postado no Twitter”. (MENEGHINI,2011). As características que chamam a atenção em uma periguete são o corpo, as roupas chamativas e curtas e alguns traços comportamentais. São mulheres de até 30 anos, que cuidam do corpo em academias de ginástica e tem o desejo de se transformar em celebridades, contam as estudiosas que identificam em todas as definições de periguete um senso comum de sentido negativo da palavra. É possível observar que as periguetes têm pontos em comum com as chacretes principalmente pelo fato de buscarem novas alternativas de ascensão, como a fama e atividades como a dança. De acordo com Tondato e Vilaça (2017), a mídia tem papel importante na propagação do termo periguete e das características a ele atreladas. As músicas e as novelas se destacam nesse sentido. As pesquisadoras realizam um levantamento da presença da personagem periguete nas telenovelas brasileiras a partir dos anos 2000, período que, explicam, marca o início da disseminação do perfil na sociedade. Foram levantadas 24 produções, das quais 22 são da Rede Globo, com um total de 26

70 personagens. Dentre elas, estão Suelen de Avenida Brasil, Ninfa e Alisson de A Regra do Jogo. Independente das motivações, o elemento comum na caracterização de todas estas personagens são as roupas justas, o cabelo “estilo crina” [22], o gosto por acessórios chamativos, e, logicamente, um corpo “escultural”. Já no aspecto “moral”, por assim dizer, nem todas têm como objetivo “o dinheiro fácil”, “subir na vida” ou “se dar bem”. Algumas, como Solange (Carol Macedo, “Fina Estampa”, 2012), almejavam uma carreira artística de sucesso para “ganhar seu próprio dinheiro”. Outras eram românticas e, embora à procura de um homem rico, queriam alguém que lhes despertasse um sentimento de amor. (TONDATO; VILAÇA, 2017, p. 105)

O estudo faz uma diferenciação entre o perfil de personagem dos anos 1980 e 1990 que se assemelha à periguete e a periguete de fato nas personagens a partir dos anos 2000. As antigas não chamavam tanto a atenção pela estética e eram mais perigosas, sem escrúpulos, no sentido de sempre terem a intenção de dar um golpe. A periguete atual se destaca pela vestimenta e não chega a ser maldosa, às vezes só querem curtir a vida e não pretendem dar um golpe nos homens. É pertinente notar que a forma como as autoras descrevem essa personagem das décadas de 1980 e 1990 é mais próxima das vilãs do nosso corpus, Atena A Regra do Jogo e Carminha Avenida Brasil, que tendem mais à femme fatale do que para periguete O estudo de campo com grupo focal realizado por Tondato e Vilaça (2017) demonstra que a opinião dos jovens não é diferente do observado na mídia. Os entrevistados afirmam que as periguetes gostam de funk, usam roupas atraentes para competir com outra mulher e não para um homem; são mulheres que gostam de aparecer e se vestem para se destacar do comum. Além disso, as periguetes foram relacionadas às mulheres pobres, com a alegação de que as ricas não precisam desse recurso para terem destaque. Essa concepção revela um preconceito “[...] que extrapola aspectos econômico-materiais, abarcando comportamentos, diferenciando o pertencimento a grupos socioeconômicos com base em valores morais.” (TONDATO; VILAÇA, 2017, p. 109). Outro dado pertinente levantado pelas autoras é o comportamento ambíguo apresentado pelas periguetes entre submissão e resistência à hegemonia masculina. Dado esse perceptível em algumas das personagens de nosso corpus.

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Além das personas das ex-chacretes e das periguetes, é pertinente abordar alguns estudos que tratam da representação popular nos reality shows, pois demonstram uma forma comum de retratar as pessoas das classes populares, sobretudo a mulher. Serelle (2014), por exemplo, trata de uma sobreposição entre a guinada midiática popular e a ascensão de uma nova classe trabalhadora no Brasil. O pesquisador evidencia a aproximação da Rede Globo com o “pentecostalismo e neopentecostalismo”, como parte desse movimento popular. No caso do objeto aqui estudado, contamos com duas personagens evangélicas: Dolores de Avenida Brasil e Indira de A Regra do Jogo. Em perspectiva mais cosmopolita, a guinada popular midiática nem mesmo diz respeito somente ao Brasil, pois ela é também sensível em outras sociedades midiatizadas, como as dos Estados Unidos e da Austrália. Graeme Turner (2010) denomina-a demotic turn – literalmente “virada demótica”, que se refere às pessoas comuns, ordinárias, do povo, que passaram a protagonizar narrativas da cultura midiática global, numa relação em que os discursos dos comuns parecem ser reproduzidos, segundo o autor, de forma mais direta. Para Turner (2010, p.33), ‘em termos da natureza do conteúdo que essa mudança produziu, parece inegável que, por meio desses formatos [notadamente os dos reality shows], pessoas ordinárias ganharam um acesso sem precedentes à representação na mídia’ (tradução nossa) (SERELLE, 2014, p. 5).

Como exemplo, ele menciona o reality show The Voice 2013, transmitido na Globo, e os programas de transformação. Esses últimos, segundo o autor, dão visibilidade a pessoas de classes populares, mas exigem, de certa forma, que elas assumam um mau gosto para se transformarem ou transformarem seus ambientes no caso de programas de decoração, como o Decora da GNT. O autor aponta para a contradição das representações populares, pois ao mesmo tempo em que podem dar visibilidade, trazendo ares de democratização, operam dentro de uma lógica hegemônica de consumo que legitima os gostos já dominantes. Skeggs (2009) e Escosteguy (2014) apresentam argumentos semelhantes. Skeggs (2009, apesar de não tratar do contexto brasileiro, traz apontamentos que se relacionam com o ponto aqui discutido. A autora demonstra que nos reality shows de autotransformação as pessoas das classes populares são avaliadas como inadequadas. Há a predominância do discurso do individualismo e da subjetividade em detrimento das questões de classe, aponta a estudiosa. Skeggs (2014) assinala como predominante nesses programas de autotransformação a apresentação de mulheres da classe trabalhadora como objeto. Ao

72 contrário, as mulheres de classe média alta são usadas como padrão a ser seguido. Diferentes técnicas psicológicas são empregadas nesse sentido, dentre elas: ● Incitação da vergonha e culpa. Exemplos de programas: Honey we´re killing the kids, Supernanny e What not to wear; ● Colocação de regras e conselhos a serem seguidos; ● Apresentação da mobilidade social por meio da autoperformance; ● Medição de corpos em valores quantificáveis em programas destinados para pessoas acima do peso emagrecerem. De acordo com Skeggs (2014), esses programas demonstram o quanto as habilidades dessas pessoas não são suficientes. Não interessa o quanto de trabalho empenham, elas sempre comentem erros. Estes, por sua vez, geram humor, argumenta a autora, uma técnica dramática já usada em filmes como Pretty Woman e My Fair Lady. A representação da mulher popular com viés humorístico é bastante comum na telenovela também, por exemplo as personagens novas ricas que demonstram inabilidade em lidar com o universo da elite. Skeggs (2014) argumenta que os reality shows objetificam a classe trabalhadora separando as pessoas de seu conjunto de relações e colocando-as em um contexto diferente. A objetificação ocorre por meio das tecnologias - ângulos de câmera, iluminação, encenação, música, entre outras -, performance e falas direto para a câmera. Tudo isso confere valor à pessoa que está sendo representada. A autora também menciona a diferença entre os programas que recrutam pessoas da classe trabalhadora e aqueles que recrutam pessoas da classe média. Uma delas é que ao invés do participante das classes médias ser confrontado com uma tomada de câmera de julgamento, ele fala diretamente para a câmera para fazer suas reflexões. Por meio dessas técnicas de humilhação, avaliação, deslocamento, reificação, objetificação e quantificação que metonimicamente atribuem valores às pessoas através da avaliação da performance emocional, disposicional e corporal, a classe trabalhadora parece se expor e dramatizar-se como inadequada, precisando de investimento em si mesma. Ela é mostrada não apenas como se tivesse déficit cultural, mas também como se tivesse déficit de subjetividade. SKEGGS, 2014, p. 638)12

12 As traduções das citações são nossas. Reproduzimos o texto original em notas de rodapé. “By these techniques of humiliation, evaluation, dislocation, reification, objectification and quantification which metonymically attach value to people through the evaluation of the emotional, dispositional and bodily performance, the working-class appear to display and dramatize themselves as inadequate, in need of self-investment. They are shown to have not just deficit culture, but also deficit subjectivity.” (SKEGGS, 2014, p. 638)

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Escosteguy (2014), por sua vez, analisa o quadro Manda quem pode, obedece quem tem juízo, transmitido no programa Fantástico da Rede Globo, em 2009. Também se trata de um reality show de transformação de estilo de vida. Nesse quadro, a rotina financeira de uma família é televisionada de forma crítica, como exemplo do que não deve ser seguido e que deve ser transformado. A autora explica que há a exploração de um tom bem-humorado e uma representação diferente entre o gênero feminino e o masculino dentro da família. A mulheres (mãe e filhas) são consideradas consumistas, embora a pessoa responsável pelas dívidas seja o pai. A mãe é representada como a mais resistente e tem o comportamento mais julgado no programa. “É a ela também que as críticas se voltam com mais frequência, principalmente, as proferidas pelo Sr. Dinheiro, que tem na personagem um representante da desordem doméstica a que ele vem “consertar””. (ESCOSTEGUY, 2014, p.13). Ao contrário, como veremos mais adiante nesta tese, determinadas personagens de Avenida Brasil e a Regra do Jogo possuem habilidades econômicas e assumem a liderança na organização financeira em suas casas e negócios. No programa analisado por Escosteguy, o pai tem a voz ativa para reconduzir a vida financeira da família. Embora uma das filhas também se torne uma espécie de porta-voz do economista Sr. Dinheiro. A estudiosa chama a atenção para o fato de as jovens filhas passarem o tempo fazendo compras e não terem outras formas de diversão, o que não é abordado no programa. No final, Escosteguy explica que tudo se resolve, a mulher aceita as regras de economia do Sr. Dinheiro, e de forma surpreendente o chefe da família consegue vender o carro, o que ajuda a família a cumprir o desafio financeiro. A pesquisadora chama a atenção para a forma como o quadro é construído televisivamente. “Os enredos costumam alternar-se entre um polo considerado mais “negativo” e outro mais “positivo””. (2014, p. 11). A mãe da família parece estar realizando uma “atuação”. Há uma espécie de novelização da narrativa, como um enredo de novela. As peripécias seguem para o caminho pretendido com o desfecho ideal. Assim como Skeggs (2014), a pesquisadora pontua que as questões macrossociais são ignoradas, as problemáticas são voltadas à ordem do privado e a atitudes individuais. Escosteguy reforça, ainda, que o reality show reproduz e trabalha a serviço do

74 neoliberalismo, de seus valores individualistas e meritocráticos. Os estudos de Ronsini (2012) sobre a telenovela apontam igualmente para o apagamento de classe e para a naturalização meritocrática. “A narrativa da telenovela opera com base na ideologia do desempenho, tornando opaca/oculta a desigualdade ao explicar a mobilidade social ascendente como exclusivamente decorrente do investimento e esforço do trabalho e da competência.” (RONSINI, 2012, p. 185). Identificamos no corpus desta tese muitos pontos de contato com as representações midiáticas comentadas. Interessante notar que A Regra do Jogo teve influência da estética dos reality shows, com a direção de Amora Mautner que “escondeu as câmeras” o que aproxima a produção, de certa forma, dos programas citados. Dessa forma, é possível identificar um discurso circulante (CHARAUDEAU, 2012) carregado de estereótipos sobre a mulher popular. Obviamente, cada representação apresenta suas peculiaridades e nuanças, inclusive em relação ao suporte midiático. Também é preciso considerar a heterogeneidade discursiva. Nesse sentido, Maingueneau (1989), com base no trabalho desenvolvido por Authier-Revuz (1982) e, posteriormente, por Courtine (2009), demonstra que uma formação discursiva é aberta, instável e heterogênea. O discurso, assim, não é constituído como uma unidade fechada, mas se dá justamente nas relações com outros discursos, no interdiscurso. “De fato, uma formação discursiva13 não deve ser concebida como um bloco compacto que se oporia a outros [...] mas como uma realidade ‘heterogênea por si mesma’ [...]” (MAINGUENEAU, 1989, p 112). O autor acredita em um enunciado como pertencente a uma rede abrangente, na qual cada um deles estabelece elos com seu contexto imediato e também relações com outros enunciados pertencentes à mesma formação discursiva, encontrando-se em uma rede interdiscursiva. Nas pesquisas citadas sobre as representações populares também chama a atenção o modo como a materialidade televisiva contribui para a construção das representações, com o jogo de câmeras, edição, montagem, iluminação e outros aspectos. Justamente os elementos que compõem o interesse desta pesquisa.

13 Formação discursiva é um termo definido por Foucault, explica Maingueneau (1989). O termo define o que pode e deve ser dito em determinada posição e contexto, mediante uma articulação que pode ser um programa, uma exposição, um panfleto ou outras formas.

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Nesse âmbito, apesar de tratarem do cinema, Shohat e Stam (2006) propõem perguntas pertinentes, que podem ser transpostas para o caso televisual e para o nosso corpus. Para falar da “imagem” de um grupo social, precisamos formular perguntas específicas sobre as imagens. Quanto espaço eles ocupam dentro do quadro? Eles são vistos em close-up ou apenas em tomadas de longe? Com que frequência eles aparecem em comparação com os personagens euro-americanos e por quanto tempo? Eles são personagens ativos ou meramente decorativos? O espectador é encorajado a se identificar com o olhar de um ou outro tipo de personagem? Quais olhares são correspondidos, quais são ignorados? Como os posicionamentos dos personagens comunicam distância social ou diferença em status? Quem está na frente e no centro? Como a linguagem corporal, a postura e a expressão facial comunicam hierarquias sociais, arrogância, servidão, ressentimento, orgulho? Qual comunidade é sentimentalizada? Há uma segregação estética através da qual um grupo é idealizado ou demonizado? A temporalidade e a subjetivação transmitem hierarquias sutis? Que homologias informam as representações artísticas e étnicas/políticas? (SHOHAT; STAM, 2006, p 302 e 303).

Logo, nos interessa tratar da organização material, em dialética com o conteúdo, nas telenovelas a Regra do Jogo e Avenida Brasil para a representação da mulher popular. Como as personagens são construídas? Qual o figurino e o cenário principal das personagens? Qual o modo de falar e a postura da personagem? Há trilha sonora? Quais os ângulos, enquadramentos e movimentos de câmera principais nas primeiras cenas de cada personagem? Qual a narrativa básica de cada uma e sua e distribuição ao longo dos capítulos? Antes de trazer o protocolo metodológico para a análise, vamos abordar o conceito de tecnicidade e as especificidades do suporte televisivo e do gênero melodramático na telenovela.

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2. O eixo do olhar na telenovela No capítulo anterior tratamos do universo que circunda o conceito de mulher popular, sua representação e discursos midiáticos recorrentes. Por ora, vamos inserir o objeto estudado em uma perspectiva ampla da comunicação, baseando-nos em Martín- Barbero, para adentrarmos na materialidade que desejamos discutir. Martín-Barbero trouxe contribuições fundamentais para o campo da comunicação no contexto latino-americano. O seu olhar da área pelo prisma cultural e sua formulação do mapa das mediações nos permitem refletir de forma complexa sobre nossa pesquisa e olhá-la em conjunto com outros estudos sobre a telenovela que abordam o tema por perspectivas diversas. Ressaltamos a relação entre técnica e cultura, sobretudo como os gêneros se transformam historicamente em virtude dos formatos, ambos como instâncias culturais. O conceito de midiatização é localizado no mapa das mediações, na parte que se refere à a tecnicidade. Nossa proposta metodológica de análise considera que a tecnicidade é constituída por um plano da expressão e plano do conteúdo, de acordo com a concepção de Hjelmslev (GREIMAS, 1973; FONTANILLE, 2008; VOLLI, 2007). A forma e a substância estão presentes tanto no conteúdo quanto na expressão. Como veremos, esses conceitos não são operacionais e podem se mover de acordo com o ponto de vista e objetivos de análise.

2.1. Matriz cultural, gênero melodramático e tecnicidade No prefácio de 1998, do livro Dos meios às mediações, Martín-Barbero (2009) traz importantes complementos à obra publicada originalmente em 1997. Ele trata da centralidade social das mídias, das mudanças técnicas e identitárias na comunicação, e menciona as propostas recebidas para inverter o título da obra para Das mediações aos meios. De acordo com o teórico, o meio “[...] começou a constituir uma cena fundamental da vida pública” (2009, p. 14), a comunicação assumiu um lugar estratégico para pensar a sociedade, a política, a economia e a cultura. Ele cita, por exemplo, o papel da televisão na política. Se a televisão exige da política negociar as formas de sua mediação é porque, como nenhum outro, esse meio lhe dá acesso ao eixo do olhar, a partir do qual a política pode não só invadir o espaço doméstico como também reintroduzir em seu discurso a corporeidade, a gestualidade,

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isto é, a materialidade significante de que se constitui a interação social cotidiana. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 14).

Do mesmo modo, o eixo do olhar oferecido pela telenovela está carregado de discursos impressos na materialidade significante de suas personagens, presentes não só em seus corpos e gestos, mas também no universo que as circundam e completa o sentido de sua materialidade. Universo este composto por processos técnicos que passam despercebidos para a maior parte dos telespectadores, que tende a captar o conjunto da obra e não suas partes significantes. Ainda no prefácio da obra editada no Brasil em 2009, Martín-Barbero traz o seu novo mapa das mediações, apresentado primeiramente em Ofício de Cartógrafo (2004). No centro do mapa localiza-se a comunicação, cultura e política que é cortada por dois eixos, um diacrônico, que liga as matrizes culturais aos formatos industriais, e outro sincrônico, entre as lógicas de produção e as competências de recepção. Entre essas instâncias há as mediações institucionalidade, socialidade, tecnicidade e ritualidade, distribuídas conforme a imagem abaixo.

Figura 1. Mapa das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16)

As mediações permitem pensar a comunicação pelo aspecto cultural, de forma articulada com diferentes instâncias sociais e em consonância com uma visão

78 transdisciplinar. O novo mapa trata a comunicação não só como meio, mas também como fim e contempla a imbricação entre produção e circulação. É pertinente expor que o autor recusa olhares reducionistas na comunicação, como o comunicacionalismo que prolifera a visão de uma sociedade da informação, na qual a mudança equivaleria a mudar os modelos de produção e circulação da informação; o midiacentrismo que identifica a comunicação com as mídias; e o marginalismo do alternativo que ao marginalizar-se (defendendo a posição à margem da cultura comercial e industrial) dá espaço para a visão hegemônica estar sempre no centro. Gomes (2011) corrobora a visão do autor e defende uma concepção de gênero televisivo como categoria cultural. A autora aborda a escassez de pesquisas sobre gênero nos estudos culturais e acredita que uma das razões seja as análises vindas do cinema e da literatura, ligadas ao estruturalismo, que trazem o gênero como elemento cultural formal, longe de seus vínculos com a cultura, política e sociedade. Por outro lado, a estudiosa ressalta que as abordagens dos estudos culturais ignoram a materialidade das obras e estudam os gêneros “[...] como um pretexto para chegar à análise das relações de poder e da constituição de identidades [...] (GOMES, 2011, p. 112). Assim, a autora deseja um conceito de gênero que abarque esses dois lados e, para isso, o conceito não deve ser concebido como algo fixo. O gênero, como categoria cultural, se deixa ver na articulação dos dois eixos do mapa das mediações, o diacrônico, que diz dos modos como as matrizes culturais se relacionam com a constituição de formatos industriais (nos termos de Martín-Barbero, como matrizes populares se fazem presentes na configuração de produtos massivos), e o sincrônico, entre as lógicas de produção e competências de recepção ou consumo (nos termos de Martín-Barbero, o modo como as lógicas do sistema produtivo, ou seja, sua estrutura e suas dinâmicas se articulam com as competências culturais dos diversos grupos sociais). (GOMES, 2011, p. 125)

Gomes discorre sobre os gêneros televisivos nas mediações, que permitem a articulação entre as lógicas de produção e competências de recepção. Ela ressalta a historicidade levantada por Martín-Barbero (2009) na passagem das matrizes culturais para os formatos industriais, especificamente o caso do melodrama, que, segundo o autor, medeia o folclore das feiras e o espetáculo popular-urbano (massivo).

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O massivo é uma forma de existência do popular, explica Martín-Barbero (2009), na qual as classes populares experenciam as novas condições sociais urbanas, que oprimem e promovem a hegemonia cultural, mas também trazem aspirações democráticas. A massificação também significa a integração das classes pobres à sociedade e a aceitação dos direitos das massas. De acordo com o autor, o melodrama, que foi influenciado pelos espetáculos das feira e narrativas orais, teve início em 1790 no teatro francês e inglês. O pesquisador destaca que a performance física e a música sempre foram importantes nesse gênero, pois desde 1680 os diálogos eram proibidos nos teatros populares. Nesse sentido, havia a correspondência entre fisionomia, tipo físico e caráter moral das personagens. “Produz-se aí uma estilização metonímica que traduz a moral em termos de traços físicos sobrecarregando a aparência, a parte visível do personagem, de valores e contravalores éticos.” (2009, p. 166). Essas características são importantes para pensar a materialidade melodramática ainda hoje nas telenovelas. Brooks (1995) também realça a personificação do bem e do mal por meio de personagens que normalmente não dispõem de complexidade psicológica no melodrama, mas que são muito caracterizadas. Por exemplo, o vilão envolto em uma capa, voz profunda, ar sombrio e punhal escondido. Brooks (1995) se concentra no melodrama enquanto forma e expressão. Ele trata de uma imaginação melodramática originada em um contexto pós-revolução francesa e de ascensão do Iluminismo, com o enfraquecimento do sagrado tradicional e suas instituições (Monarquia e Igreja). A reação a esse cenário, na época, contou com novas sacralizações e resultou na imaginação melodramática, uma forma de demonstrar um universo moral pós-era sagrada. Trata-se de um gênero pré-romântico, assim como o romance gótico, no qual a separação entre heróis e vilões simboliza a experiência entre dois mundos, um sublime acima da vida cotidiana e outro abaixo, o demoníaco. (MARTÍN-BARBERO, 2009). O melodrama, explica Brooks (1995), possibilita acesso democrático a questões morais. A virtude é liberada de sua repressão e mostrada ao público como vencedora no fim da história. O reconhecimento dessa virtude pode se dar de várias formas, como a mocinha que descobre sua real identidade de herdeira, ou um filho que é reconhecido pelo pai.

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Dentre outros aspectos expressivos do gênero, temos a linguagem hiperbólica, o vocabulário claro e simples e o uso de grandes antíteses, como o bem contra o mal. Há uma retórica de excesso que traz a sensação de exagero, por exemplo na autodenominação que as personagens fazem o tempo todo (BROOKS, 1995). Os cenários também carregam expressão. Inclusive, o melodrama, afirma Brooks (1995), transformou a tradição dos cenários. Por exemplo, com a reprodução de tempestades de neve, fogo, pontes elevadas, portões de castelo, entre outros elementos. Chama a atenção o que Brooks denomina de lugar da inocência, um espaço que se preserva das maldades do mundo, que abriga bons sentimentos e personagens, como um jardim cercado. Na telenovela, esses lugares são recorrentes, como a casa de Lucinda de Avenida Brasil, que se diferencia do restante do lixão. Os aspectos levantados, da expressão melodramática no teatro, podem se relacionar com a tecnicidade no mapa das mediações de Martín-Barbero (2004; 2009), por trazerem um tipo específico de organização, uma forma de narrar, um formato que conduz a determinado olhar. Pieniz (2014) relaciona a tecnicidade com a midiatização, o que nos parece frutífero, uma vez que o termo permite discutir as especificidades midiáticas no contexto da centralidade dos meios de comunicação na sociedade. É possível identificar a tecnicidade nos vestígios da estrutura produção– competitividade industrial, ideologias profissionais, rotinas de produção, estratégias de comercialização, entre outros – e também na forma como a indústria traz as demandas do público para seus produtos, como Martín-Barbero (2009) demonstra no caso do folhetim, fruto do melodrama, o primeiro tipo de texto escrito em formato popular de massa, segundo o autor. De acordo com Martin-Barbero, as condições de produção do folhetim envolvem a relação assalariada presente no modo de escrever e no ritmo, pois entre escritor e texto há a mediação institucional com o mercado. Muitas vezes, o autor ditava para o seu ajudante o texto, o que ressalta a oralidade do produto. Percebe-se características semelhantes com a telenovela de hoje em dia. Trata-se de uma narrativa de gênero em oposição a uma narrativa de autor, aclara o estudioso. Sobre a dialética entre escritura e leitura, Martín-Barbero (2009) trata de quatro níveis de dispositivos de enunciação que permitem ao folhetim incorporar elementos da memória narrativa popular ao imaginário urbano-massivo. O primeiro nível é o dos dispositivos de composição tipográfica, caracterizada por letras grandes, claras e

81 espacejadas; em decorrência de leitores que não estão habituados à leitura e/ou que não dispõem de iluminação adequada para fazê-la O segundo nível apresenta os dispositivos de fragmentação da leitura. As frases são fragmentadas, bem como o parágrafo e também os episódios são divididos em partes, capítulos e subcapítulos. Essa fragmentação torna a leitura leve e espaçada por dias ou semanas. No terceiro nível estão os dispositivos de sedução, divididos em duração e suspense. A duração do folhetim é como a duração da vida. O leitor tem tempo para identificar-se com as personagens durante o tempo que dura a história. A duração do folhetim confunde- se com a duração da própria vida. Já o suspense é buscado no fim de cada episódio e instiga a curiosidade do leitor. No quarto nível, se situam os dispositivos de reconhecimento, que produzem a identificação do mundo do leitor popular com o mundo narrado. Neste nível, a personagem tem papel importante, por meio de uma estética popular em continuidade com a ética, na qual ator e personagem se fundem de alguma maneira no caso do audiovisual. É esta instância da personagem que nos interessa na telenovela. Para tanto, é preciso tratar da mídia televisiva primeiramente e do conceito de midiatização. Martín-Barbero, como explicitado anteriormente, reconhece a centralidade dos meios de comunicação na sociedade contemporânea. Mais que isso, ele aborda a mediação estratégica da tecnicidade que está inserida atualmente no cenário da globalização. Isso não só no espaço das redes informáticas mas na conexão das mídias – televisão e telefone – com o computador, rearranjando aceleradamente a relação dos discursos públicos e dos relatos (gêneros) midiáticos com os formatos industriais e os textos virtuais. As perguntas abertas pela tecnicidade apontam então para o novo estatuto social da técnica, para o rearranjo do sentido do discurso e da praxe política, para o novo estatuto da cultura e para os caminhos da estética.” (MARTÍN- BARBERO, 2004, p. 236).

Inclusive, o autor argumenta que há dois planos na relação entre cultura e meios de comunicação, um da ordem da reprodução de um estilo de vida, e outro que corresponde a “[...] uma gramática de produção com que os meios universalizam um modo de viver.” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.199). Essas colocações nos remetem ao conceito de midiatização em consonância com a tecnicidade conforme propomos.

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2.2. Midiatização, televisão e telenovela De acordo com Couldry e Hepp (2013), existem duas correntes de estudo sobre a midiatização: a institucionalista e a tradição social-construtivista. A primeira, advinda principalmente dos estudos do jornalismo e da comunicação política, enxerga a mídia como uma instituição mais ou menos independente, detentora de uma lógica própria. A vertente social-construtivista, por sua vez, entende o conceito como um processo de construção comunicativa da realidade social e cultural. Embora, este trabalho se identifique de antemão com a posição sócio construtivista, compartilhamos da constatação de Couldry e Hepp (2013) de que as duas vertentes coexistem e estão se tornando cada vez mais convergentes. Acreditamos que a midiatização no caso da telenovela se assemelha ao que Hjarvard (2012), autor da tradição institucionalista, chama de midiatização indireta, referente à influência social cada vez maior da mídia, porém de forma sutil e subjetiva, sem interferência direta em tarefas práticas. Podem se encaixar nessa perspectiva os conhecimentos sociais construídos por meio dos processos midiáticos a respeito dos mais diversos assuntos. Um exemplo mais complicado de midiatização indireta é o desenvolvimento do discurso intertextual entre os meios de comunicação e outras instituições da sociedade. Por exemplo, o conhecimento dos brasileiros sobre os EUA também se deve às narrativas dos meios de comunicação (fato ou ficção) sobre o país; como consequência, as discussões políticas brasileiras sobre os EUA também estão entrelaçadas com representações midiáticas da cultura, dos costumes e da história norte-americanos. (HJARVARD, 2012, p. 67). As mídias passaram a apresentar maior centralidade na sociedade no momento em que adquiriram autonomia em relação às demais instituições sociais, conforme argumenta Hjavard (2014), e passaram a funcionar de acordo com lógicas próprias. De acordo com Verón (2014), a midiatização é fruto de um processo de longa duração e universal. Trata-se do resultado de uma dimensão central de nossa espécie biológica - a capacidade de semiose. Segundo o estudioso, essa habilidade semiótica se expressa em fenômenos midiáticos que, por sua vez, produzem a descontextualizarão, a quebra de espaço e tempo proporcionada pelos dispositivos técnicos. O pesquisador argumenta que os fenômenos midiáticos materializam as rupturas e distorções já presentes na comunicação face a face, que não é linear na opinião dele, apesar dos participantes do discurso dividirem o mesmo espaço e tempo .“Neste contexto, a

83 midiatização é apenas o nome para a longa sequência histórica de fenômenos midiáticos sendo institucionalizados em sociedades humanas e suas múltiplas consequências.” (VERÓN, 2014, p.15). É possível relacionar a perspectiva da midiatização de Verón com a construção social da realidade teorizada por Berger e Luckmann, (2014), segundo a qual a linguagem tem papel fundamental na realidade da vida cotidiana e é capaz de ultrapassar a barreira do aqui e agora, compondo campos semânticos que formam conhecimento. Se os fenômenos midiáticos materializam as rupturas já permitidas pela linguagem, como expõe Verón (2014), é possível sustentar que as mídias, em diferentes escalas, com suas lógicas e linguagens, reproduzem os acervos sociais de conhecimento já existentes e refratam novos, na mesma dinâmica dialética. Elas fazem uso de representações de pessoas, lugares, situações, entre outros, que estão longe temporal e espacialmente, em alguma medida. A institucionalização e consequente autonomia das mídias ao longo do século XX (HJAVARD, 2014) expandiram a atividade midiática na construção social de realidades, no endosso de posições já existentes, na releitura de saberes sociais com linguagem própria e ao trazer novas possibilidades de significados. Nesse sentido, os meios de comunicação denominados de massa, como a televisão, dispõem de grande alcance. Os conceitos trabalhados por Hepp (2014) são valiosos também para esta tese. O autor defende a especificidade de cada mídia no processo de midiatização, por meio do conceito “forças de moldagem”, “Essa metáfora é usada para indicar que não podemos presumir um efeito geral ou livre de contexto da mídia específica; entretanto, diferentes mídias moldam a comunicação de formas diversas” (HEPP, 2014, p. 51). Pieniz (2014), inclusive, relaciona esse conceito com a tecnicidade. O conceito também é usado pelo autor como forma de relacionar as duas tradições dos estudos de midiatização, a socio-construtivista e a institucionalista. O termo abarca o caráter institucionalizado da mídia e sua reificação, ou seja, a capacidade de ela materializar atos humanos. Considerando a peculiaridade de cada mídia, é preciso tratar da televisão e sua linguagem para falarmos da tecnicidade da telenovela. O livro Televisão de Raymond Williams (2016), publicado originalmente em 1974, mantém-se atual em muitos aspectos e dialoga com os autores aqui tratados. Inclusive, o pesquisador já dá indícios da

84 midiatização promovida pela televisão naquela época, quando aborda acontecimentos que começam a se moldar em virtude dela, como os eventos esportivos e políticos. [...] a televisão como sistema tem se tornado o campo mais evidente de condução do debate político. Entrevistadores e comentaristas televisivos se tornaram, em certo sentido, figuras políticas em seu próprio direito, e existe tensão evidente entre eles e os (normalmente eleitos) líderes políticos ortodoxos. Mas, pelo grau em que lideres dependem (ou acreditam que dependem) da cobertura televisiva, essa tensão não impede que eles se submetam a um questionamento público e mais aberto de suas políticas do que em qualquer outro sistema de comunicação com o qual se possa comparar. Tudo isso é, pelo menos, um ganho claro. (WILLIAMS, 2016, p.134).

O autor trata a televisão como tecnologia e forma cultural e aborda como as estruturas tecnológicas agem sobre o texto. Ao mesmo tempo, ele refuta um determinismo tecnológico e, assim como Martín-Barbero (2004;2009), argumenta que a tecnologia não é capaz de agir sozinha. De acordo com W1illiams (2016), o surgimento da televisão se deu em virtude de necessidades sociais, econômicas e políticas. Para o autor todos os sistemas de comunicação foram previstos, nenhum se deu por acaso. Jost (2007) compartilha da mesma opinião e acrescenta que “[...] uma invenção técnica somente se torna mídia a partir do momento em que ela é apropriada pelos usos mais ou menos específicos do meio” (2007, p. 40) Porém, é preciso tomar o cuidado com o contrário, alerta Williams, tratar a tecnologia como determinada e não determinante. Pois, os usos e práticas não são sempre previsíveis. Há usos diversos em diferentes grupos, locais e tempos. Uma característica particular dos sistemas de comunicação é que todos foram previstos – não de um modo utópico, mas tecnicamente – antes que os componentes essenciais do sistema desenvolvidos tivessem sido descobertos e aprimorados. De forma nenhuma, porém, essa é uma história de sistemas de comunicação que criaram uma nova sociedade ou novas condições sociais. A transformação decisiva e anterior de produção industrial e suas novas formas sociais, que tinham crescido a partir de uma longa história de acumulação de capital e de trabalho de melhorias tecnológicas, criaram novas necessidades, mas também novas possiblidades, e os sistemas de comunicação, incluindo a televisão, foram seu resultado intrínseco. (WILLIAMS, 2016, p. 31 e 32)

Williams (2016), Jost (2007) e Machado (2005) argumentam que a televisão, apesar da propagação de imagens, possui mais pontos em comum com o rádio do que com o cinema. Diferente do cinema, cujo investimento inicial foi na produção, no rádio e na

85 televisão o investimento principal destinou-se à distribuição. Na televisão a fala é fundamental como no rádio. Cinema e televisão também lidam de formas diferentes com o tempo do espectador O primeiro suspende o tempo social e a segunda estrutura a temporalidade justamente de acordo com a vida do telespectador. A televisão se adapta aos dias da semana e horários, atenta aos momentos nos quais o telespectador pode estar mais disperso ou não para a emissão de determinados programas. Além disso, a televisão conta com transmissões diretas, traz um sentido de autenticidade, a sensação de imediatismo e intimidade. Também há um aspecto tátil “[...] contrariamente à imagem cinematográfica, que prolonga a vista, ela põe o mundo na mão do telespectador e, como tal, depende sobretudo do toque.” (JOST, 2007, p. 45 e 46.) Williams (2016) destaca, ainda, como peculiaridades televisivas: a programação em fluxo (uma sequência de programas com linguagem similar, que incorpora as propagandas de forma orgânica); a capacidade da televisão entrar no campo das ações públicas e privadas como nenhuma outra tecnologia; a educação pela visão, pois além dos programas educativos a televisão nos mostra lugares que nunca fomos, e com os quais podemos aprender novas geografias, por exemplo; e também, curiosamente, o autor ressalta a própria televisão como diferencial e a experiência visual que ela proporciona com técnicas diversas, contraste, ângulo, variação de foco, entre outras. Williams (2016) explica que o rádio e a televisão foram criados para a transmissão em casas individuais, que dependiam de fontes externas para a sua manutenção. “Essa relação criou tanto a necessidade como a forma de um novo tipo de “comunicação”: notícias vindas “de fora”, de fontes até então inacessíveis”. (2016, p. 39). Nesse sentido, destacamos que enquanto aparelho físico a televisão teve implicação na relação entre os gêneros feminino e masculino. De acordo com Howard-Williams e Katz (2003), a televisão mudou a dinâmica doméstica quando foi inserida nas casas americanas, após a Segunda Guerra Mundial, favorecendo o empoderamento feminino em diferentes aspectos. Ela possibilitava uma conexão com a vida pública a partir do ambiente privado, em um momento ambíguo para o gênero feminino, pois haviam forças que a incentivavam a trabalhar fora enquanto outras reforçavam a importância de sua permanência em casa. A introdução de um novo meio no lar, independentemente do seu conteúdo, tem o potencial de perturbar e alterar padrões e rotinas domésticas. Esse é particularmente o caso da televisão, que exige mais atenção do público do que o rádio. Vários estudos conduzidos no

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momento da introdução da televisão focaram em que medida a visualização deslocou outras atividades de lazer (por exemplo, Coffin 1948; Coffin 1955; Riley et al. 1949; Robinson 1972). Embora o uso do rádio e de revistas tenha diminuído um pouco, a televisão era vista com mais frequência e não no lugar de outras formas de mídia. Em quase todos os casos, o tempo gasto na frente da tela foi significativo, independentemente do conteúdo mostrado (Briggs 1995) - há um eco aqui do ponto de Williams (1974) de que os meios de transmissão foram desenvolvidos antes do conteúdo, o que sugere que tanto para os produtores quanto para o público, o meio era mais importante do que a mensagem. (HOWARD-WILLIAMS; Katz, 2003, p. 12) 14

Hamburger (2007), por sua vez, faz um levantamento de estudos que relacionam mídia e gênero feminino com foco na oposição entre espaço privado (feminino) e espaço público (masculino). Ela cita trabalhos sobre mídias audiovisuais e representações de gênero que problematizam essa oposição, como as pesquisas das teóricas Laura Mulvey, Tania Modleski, Nancy Fraser e Miriam Hansen. Hamburger afirma que trabalhos feministas recentes enfatizam que a cultura de massa e o melodrama televisivo contribuíram para dissolução das fronteiras entre privado e público ao trazer questões definidas como públicas para o ambiente privado, doméstico e feminino. No Brasil, a autora expõe que a consolidação televisiva, com programação centrada na novela, coincide com a entrada da mulher na força de trabalho, a redução do número médio de filhos por família, aumento do número de divórcios e a aceleração da urbanização. O fato de o foco ter sido a distribuição no início da televisão, obrigou a nova mídia a emprestar conteúdos e formatos de outras fontes, como do rádio e do teatro. No Brasil, desde a instauração da televisão em 1950, assim como o próprio meio televisivo, as telenovelas dependiam de outros formatos como a radionovela e adaptação de romances (REIMÃO, 2004). Até 1970, Reimão (2004) explica, a literatura brasileira forneceu

14 The introduction of a new medium into the household, quite apart from its content, has the potential to disrupt and alter domestic patterns and routines. This is particularly the case with television, which demands more of the audience’s attention than does radio. Several studies conducted at the time of television’s introduction focused on the extent to which viewing displaced other leisure activities (e.g. Coffin 1948; Coffin 1955; Riley et al. 1949; Robinson 1972). Though radio and magazine use did decrease somewhat, television was more often viewed in addition to rather than instead of other forms of media. In almost all cases, time spent in front of the screen was significant irrespective of the content being shown (Briggs 1995) – there is an echo here of Williams’s point (1974) that the means of broadcasting were developed before the content, which hints that for both producers and audiences medium was more important than message. (HOWARD-WILLIAMS; Katz, 2003, p. 12).

87 narrativas e modelos para as telenovelas e também emprestou o seu prestígio cultural. Depois, as telenovelas se firmaram como produto com linguagem própria. No início, as telenovelas não eram diárias e passavam de duas a três vezes por semana, porque eram ao vivo. A telenovela diária começou com o advento do videoteipe que permitiu as gravações e sua circulação entre filiais. Antes do videoteipe a televisão era regional e local explica Reimão (2004). Ainda assim, a televisão com alcance nacional foi possível apenas em 1969 com a instalação da rede de micro-ondas da Embratel, em plena ditadura, com o objetivo de o governo unificar o país. O grande apelo do rádio e da televisão, explica Williams, consiste em uma representação que não expõe sua preparação, a sensação de não mediação, ou seja, no apagamento do aparato. Xavier (2005) aborda o apagamento do aparato e da ação humana nos produtos cinematográficos, que conferem a sensação de transparência e naturalidade. Iremos abordar novamente esse autor mais adiante. Do mesmo modo, Jost (2007) trata da não objetividade da mídia televisiva e refuta a ideia de que ela seria uma janela para o mundo. Ele argumenta que o primeiro sentido da televisão é a possibilidade de visão à distância, como o espelho mágico do romance de Lucien Samosate (125 dC. – 192, dC.). “A invenção da televisão apenas concretizou, como se viu, as aspirações ancestrais do homem (estar onde ele não estava, ver a distância)”. (JOST, 2007, p. 58). Jost (2007) descreve três mundos possíveis na televisão, o real, o fictício (com regras próprias, coerência) e o lúdico (intermediário, entre real e ficcional, como um jogo). O mundo fictício é o qual nos interessa, o qual é acessado, explica o teórico pela atualidade, universalidade e enunciação televisual. O primeiro tipo de acesso consiste em temáticas que se relacionem com assuntos atuais na vida do telespectador; o segundo diz respeito a temas comuns a todos os seres humanos, como amor, família, comportamento, entre outros; e o último aborda as especificidades televisuais. O autor se refere a essa última instância como midiatização em outra obra (2012) sobre as séries americanas. Trata-se, segundo ele, da força da imagem por intermédio da qual a televisão se comunica conosco. Sobre a relação da televisão com a ficção em âmbito mundial, Williams trata do drama que se popularizou com a chegada da TV. “Na maior parte do mundo, desde a propagação da televisão, houve um aumento de escala e intensidade da representação dramática sem precedentes na história da cultura humana”. (WILLIAMS, 2016, p. 69).

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Williams pontua que as técnicas televisivas favoreceram a apresentação do teatro ortodoxo, o drama do quarto fechado. “As possibilidades técnicas comumente usadas correspondiam a essa estrutura de sentimento: a atmosfera interna fechada: o conflito interpessoal local; a possibilidade em relação ao sentimento privado.” (WILLIAMS, 2016, p.67). Ele também discorre sobre as séries, seriados, telefilmes e os programas de variedades que tiveram influência dos teatros de variedades e dos music halls. Uma questão importante sobre o início da ficção televisiva, da qual trata Esquenazi (2011), é a divisão entre feminino e masculino. Essa clivagem foi herdada, segundo o autor, da ficção popular escrita, que, a partir de 186015, com o desenvolvimento econômico e a ascensão burguesa, passou a refletir a diferença social entre público e privado, que correspondiam, respectivamente ao masculino e feminino. De um lado, havia as aventuras da esfera pública e de outro as desventuras sentimentais restritas ao ambiente privado, cisão essa que irá se agravar a partir de 1880. O gênero aventuroso fragmenta-se: história de aventuras, história policial ou história de espionagem correspondem, respectivamente, ao espaço natural, à vida urbana e ao confronto entre Estados. O melodrama privado tende a centrar-se na casa e na família: o lar constitui rapidamente o ponto focal do gênero. (ESQUENAZI, 2011, p. 84).

Na televisão havia a separação entre programas em prime-time (público masculino) e day-time (público feminino), aponta o autor. Além disso, os gêneros dedicados ao público masculino eram culturalmente valorizados e os para o público feminino eram depreciados. O quadro irá mudar no final dos anos 1970 e início dos 1980, segundo o autor que trata da realidade estadunidense. É interessante notar que o melodrama tem em sua gênese a mulher (o feminino) e o popular, assim como a própria televisão. Aliás, a novelização é uma característica que se faz presente em muitas séries, atualmente, explica Jost (2012). Questões que esse autor levanta a respeito das séries americanas também estão presentes na telenovela brasileira, como o realismo16, cujo discurso tem a necessidade de “[...] ser o mais transparente possível, ou seja, de apagar,

15 Antes disso, Esquenazi (2011) explica que o melodrama teatral do século XIX misturava conflitos do espaço privado e público, e que foi a ideologia burguesa que marcou essa cisão posteriormente. 16 Vale pontuar que a telenovela brasileira emprega mais realismo se comparada a produções de outros países da América Latina, além de promover um diálogo com o cotidiano do Brasil. Ver Balogh (2002) Hamburger (1998), Motter (2003) e Mungioli (2010).

89 tanto quanto possível, o rastro do autor para causar a sensação de que o relato é uma janela que se abre sobre a realidade [...]” (JOST, 2012, p. 43). A telenovela segue essa lógica que pretende mostrar realismo, como na maioria dos filmes norte-americanos que utilizam a decupagem clássica. Xavier (2005) define decupagem como “[...] o processo de decomposição do filme (e portanto das sequências e cenas) em planos”. (XAVIER, 2005, p. 27). A decupagem clássica tem como características o ilusionismo, trata-se de um sistema elaborado que tira proveito de efeitos de montagem para torná-los invisíveis, e também conta com a naturalidade da intepretação dos atores. A identificação é assim mais forte quanto maior é a manipulação no produto e quando a intenção humana é “apagada”, explica o autor. Xavier faz um paralelo entre cinema e literatura realista, no que diz respeito aos procedimentos narrativos que provocam a ruptura espaço-tempo. O fato de um ser realizado através da mobilização de material linguístico e de outro ser concretizado em um tipo específico de imagem introduz todas as diferenças que separam a literatura do cinema. Diferenças que, em geral, são associadas ao suposto contraste entre o “realismo” da imagem e a flagrante convencionalidade da palavra escrita. O que tal comparação esconde é a natureza particular das convenções que presidem um determinado método de montagem, pois a hipótese “realista” implica na admissão de que há um modo normal, ou natural, de se combinar as imagens (justamente aquele apto a não destruir a “impressão de realidade”). (XAVIER, 2005, p. 33).

O teórico afirma que o método clássico é uma forma de discurso que se insere no contexto de uma estética dominante, que corresponde aos interesses de uma classe dominante, dos valores burgueses, da produção industrial para exportação internacional de filme, como a produção hollywoodiana e a Companhia Vera Cruz no Brasil. Segundo Xavier, esse tipo de montagem faz parte da narração, uma convenção que dissolve a descontinuidade visual, que utiliza, dentre outras técnicas, a montagem paralela e a mudança de ponto de vista em uma única cena, justaposição de imagens e corte de imagens. A manipulação humana, que traz a separação do espaço e tempo, não é percebia pelo público e passa a ser natural como uma convenção de representação que traz uma lógica de continuidade. O aparato assume um status de neutralidade, há um efeito de janela, como se víssemos a realidade, ou seja, sua mimese. O momento de glória de tal retórica, afirma Xavier, encontra-se no melodrama convencional “[...] com suas fatalidades e seu maniqueísmo, que se apresentam como autêntica ‘imitação da vida’”.

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(XAVIER, 2005, p. 42). O movimento que acabou por consolidar o cinema clássico tem muito a ver com esta possibilidade de manter a atenção concentrada no encadeamento dramático, nas ações e reações, de modo a prender o espectador neste nível da experiência tornando seletiva, interessada a percepção da imagem, de modo a eliminar os seus “excessos” (o que não é funcional). [...] No clássico, os procedimentos e os olhares se subordinam ao drama; é um cinema “orientado para a personagem” (expressão de David Bordwell) que procura prender o olhar a motivos que têm o drama [...]”. (XAVIER, 2005, p. 194).

Martín-Barbero observa que assim como o western que trouxe a linguagem direta, a narração paralela e o plano geral “[...] o melodrama cinematográfico traz o tratamento expressivo da montagem e o uso dramático do primeiro plano.” (2009, p. 206). Ele argumenta que o primeiro plano é um dispositivo que possibilitou a aproximação entre o espectador e o ator e a popularização de seus rostos, que também se faziam presentes na imprensa em pautas de comportamento e cotidiano. Antes do cinema clássico, o espaço teatral era visto apenas de um ângulo, era bidimensional. Com a decupagem clássica, o espaço passa a ser mais elaborado. Vários ângulos a várias distâncias podem ser observados, com a tridimensionalidade. “Pensando bem, olhando bem, é um espaço ainda melhor que o real, porque, além de tridimensional, faculta maior variedade de olhares do que uma pessoa tem na vida cotidiana”. (SADEK, 2008, p. 141). O espectador pode ver por meio do ponto de vista da personagem, há o campo e contracampo e a construção cinematográfica do espaço. Sadek (2008) menciona o método desenvolvido para que o espectador se sinta na cena, sem se desnortear e com a sensação de tridimensionalidade. Trata-se de uma linha paralela à quarta parede do cenário de um teatro italiano, onde se localiza a plateia e a câmera no caso do cinema. A posição da câmera nunca pode apontá-la para essa linha. “Isso permite à câmera cobrir um ângulo de 180 graus, deslocar-se para trás e para frente e olhar de um lado para o outro.”. (2008, p. 115). De acordo com Sadek (2008), as telenovelas adotaram o modelo clássico de decupagem, mesmo sem ter esse objetivo claro, facilitadas pelas várias câmeras dispostas nos estúdios. O autor afirma que a estrutura da telenovela é mais complexa do que parece e pouco se parece com o cinema. Apesar disso, Sadek a compara com o cinema brasileiro mais contemporâneo como Carandiru e Cidade de Deus, que usam uma estrutura semelhante, com várias tramas paralelas, como um mosaico.

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Nas telenovelas, a decupagem conta com o conhecimento do espectador para diminuir os planos gerais “[...] restringindo-os apenas a mostrar a posição relativa dos personagens em cada cena, sem se preocupar em descrever o espaço já conhecido de capítulos ou cenas anteriores.” (SADEK, 2008, p. 121). Além disso, há a predominância de closes e planos médios, que valoriza a interpretação dos atores e não o espaço. Sadek (2008) expõe que muitas mudanças e adaptações ocorreram até as telenovelas chegarem no formato atual, que ele chama de mosaico foi aprofundado, que dispõe de maior variedade de dramas. [...] a rigidez dos esquemas e as ritualizações são penetradas por imaginários de classe e território, de gênero e de geração, ao mesmo tempo que se exploram possibilidades expressivas abertas pelo cinema, pela publicidade e pelo videoclipe. Os personagens se libertam, em alguma medida, do peso do destino e, afastando-se dos grandes símbolos, se aproximam das rotinas cotidianas e das ambiguidades da história, da diversidade das falas e dos costumes. (MARTÍN- BARBERO; REY, 2001, p. 121). Sadek (2008) destaca que as produções mais recentes são mais compatíveis com o voyeurismo do espectador e as cenas mudam mais rapidamente e de forma mais mesclada A esse respeito destaca-se a direção de Amora Mautner em Avenida Brasil e A Regra do Jogo. Nesta última, como comentado anteriormente, a diretora empregou o conceito de caixa cênica, com a utilização de oito câmeras (as telenovelas comumente usam quatro), algumas destas escondidas (atrás de espelhos e quadros), reproduzindo o ambiente de reality show. Assim, os atores puderam interpretar livremente e a câmera ia atrás deles. Estruturalmente, devido à organização em plot principal e subplots, na telenovela, cada parte da trama interna possui uma lógica que não depende ou influencia o todo, necessariamente. O núcleo dramático é constituído por um feixe de tramas que podem ser desenvolvidas paralelamente. Cada linha desse feixe tem características próprias, ou seja, possui trama independente. Um grupo de linhas com traços comuns constitui um núcleo. As linhas podem se tocar, assim como os núcleos que podem se relacionar. Sadek afirma que quanto mais as linhas dramáticas se tocam na telenovela, mais a telenovela é coesa. Nas telenovelas de João Emanuel Carneiro é comum haver núcleos que não se relacionam com outros, e ficam soltos durante a trama, por exemplo a trama de Cadinho em Avenida Brasil e de Indira em A Regra do Jogo. A telenovela também se diferencia pela concepção de capítulo, que não traz uma unidade dramática como outros dramas encenados, nos quais cada capítulo dá andamento à história. De acordo com Martín-Barbero e Rey (2001), a telenovela faz parte da

92 experiência antiga no mercado de usar a estrutura repetitiva da série para conversar com a vida cotidiana, conectando com as novas questões populares narrativas midiáticas já usadas. Fatores externos interferem na duração dos capítulos (definidos na edição) e não só dramáticos, por exemplo a grade de programação da emissora, com exceção do último capítulo que costuma ser estendido. Do mesmo modo, questões extradiegéticas e a grande quantidade de capítulos dificultam que todo episódio tenha um gancho impactante. A telenovela acaba tendo que inovar a sintaxe e criar formas específicas de abertura e fechamento de capítulos. A telenovela pode abusar mais das coincidências e acidentes já que a relação de causa e efeito é mais frouxa, diferente dos filmes. Para que essa relação exista é preciso haver bastante repetição. “A extensão da história, cujos detalhes não são retidos, e a repetição permitem que se efetuem mudanças sem que o espectador se dê conta”. (SADEK, 2008, p. 76 e 77). Apesar da ação ser fundamental para os dramas encenados, nem sempre na telenovela há ação dramática de fato. Algumas movimentações sem ação dramática têm função secundária, como reforçar alguma característica de uma personagem, outras não possuem nenhuma função. Em Avenida Brasil, as cenas da família de Tufão ao redor da mesa tinham essa característica, a falta de função clara. Ainda assim, mesmo sem evolução, as tramas mantêm o interesse devido às ações que chamam a atenção e seriam dispensadas em outros tipos de drama. “[...] a evolução da trama é menos importante que a movimentação dos personagens, mesmo que ela traga fatos pouco relevantes. A “avalanche de fatos” característica das telenovelas é mais importante que a qualidade dramática dele.”. (SADEK, 2008, p. 78 e 79.) O autor identifica a avalanche de fatos com as narrativas mais modernas. Inclusive, para Sadek, as cenas sem compromisso são uma inovação da telenovela ao drama. Nessa sucessão de fatos, o tempo é pouco trabalhado na trama, ressalta o estudioso. Na soap-opera americana há característica semelhante, afirma Esquenazi (2011), de suspensão da ação. Pois, o gênero multiplica as intrigas e passa de uma para a outra, o que possibilita a repetição, as réplicas e a história pode não avançar. Ele diz que a soap-opera é uma narrativa de segundo grau. Isto posto, retomando a midiatização, temos que a ficção televisiva usa de elementos técnicos capazes de conferir um efeito de realidade e aproximar os

93 telespectadores das personagens que passam a ser vistas como pessoas da vida real. Esse processo se incorpora ao acervo do nosso conhecimento comum sobre a realidade (BERGER; LUCKMANN, 2014). Esses elementos fazem parte da tecnicidade comentada. Em termos de formato e organização da produção na tecnicidade, a constituição da telenovela em núcleos dramáticos facilita a tarefa de produção industrializada, portanto, parcelada, que conta com muitos profissionais envolvidos, de acordo com a prática de criação industrializada e o movimento dialético entre padronização e criação discutida por Morin (2005). Smith (2004) argumenta que o engajamento com a ficção é uma espécie de atividade imaginativa, não no sentido tradicional, mas em dois sentidos mais complexos. 1. Ao compreender, interpretar e apreciar as narrativas ficcionais, fazemos inferências, formulamos hipóteses, categorizamos representações e usamos outras habilidades cognitivas. 2. A ficção enriquece a nossa quase-experiência “[...] isto é, nosso esforço para compreender, através de hipóteses mentais, situações, pessoas e valores que nos são alheios”. (SMITH, 2004, p. 74). 17 Desse modo, acredita-se que o melodrama teleficcional com sua decupagem clássica, que confere realidade à narrativa, mistura-se a uma nova forma de trazer o efeito de realidade às personagens populares, focada em cenas cotidianas que trazem uma temporalidade específica. Seria o que Xavier (2005) chamou de “efeito de presença”, em oposição ao mimético no cinema, que também confere um “efeito do real”. Para analisar esses elementos nas personagens é preciso considerar um plano da expressão da telenovela.

2.3. Expressão e conteúdo

Consideramos metodologicamente que a tecnicidade de dado produto midiático se divide em plano da expressão e plano do conteúdo, de acordo com as teorias de Hjelmslev. Pois, a tecnicidade trata, além daquilo que é da ordem do instrumento, de práticas e constituição de saberes. Superando a cisão que no pensamento ocidental opõe o interior ao exterior e a verdade a sua manifestação, a antropologia vê na técnica um organizador perceptivo: aquilo que nas práticas articula a

17 “[...] that is, our effort to grasp, through mental hypotheses, situations, persons, ans values which are alien to us”. (SMITH, 2004, p. 74).

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transformação material à inovação discursiva. Com isso, a tecnicidade, mais que aos aparelhos, nos remete ao desenho de novas práticas, e mais que destreza a tecnicidade é competência na linguagem. Confundir a comunicação com as técnicas ou as mídias é tão deformante quanto pensar que eles são exteriores e acessórios à (verdade da) comunicação, o que equivale a desconhecer a materialidade histórica das mediações discursivas nas quais ela se produz. As materialidades do discurso remetem à constituição – ao longo dos processos históricos – de gramáticas discursivas originadas em formatos de sedimentação de saberes narrativos, hábitos e técnicas expressivas. (MARTÍN- BARBERO, 2004, p. 235 e 236)

Bakhtin (2010) argumenta também a favor da ruptura entre o “formalismo” e o “ideologismo”. Por isso, afirma que a forma e o conteúdo estão unidos no discurso literário. Para ele, o campo de estudos da estética, inclusive, tem a tarefa de entender a forma e o conteúdo inter-relacionados, a forma como forma do conteúdo e este como conteúdo da forma. A forma, expõe o filósofo da linguagem, une o campo cognitivo e o ético, trata-se de um conceito correlativo ao conteúdo. Depois de termos definido o momento do conteúdo e determinado corretamente o lugar do material na obra de arte, possuiremos a abordagem correta da forma e saberemos compreender como a forma é, por um lado, efetivamente material, inteiramente realizada no material e a ele ligada, e como, por outro lado, ela, enquanto valor, nos coloca além dos limites da obra como material organizado, como coisa [...]. (BAKHTIN, 2010, p. 27 e 28).

Bakhtin argumenta que a forma precisa ser estudada de duas maneiras, a partir do interior do objeto estético voltado para o conteúdo, e também no interior do todo composicional e material da obra, a que ele se refere como estudo da técnica da forma. Enquanto a forma pode ser vista pelo prisma simplesmente estético em relação ao conteúdo, o trabalho técnico não é visível no objeto final da obra, “[...] tudo isso desaparece no momento da percepção artística, como desaparecem os andaimes quando o prédio é concluído”. (BAKHTIN, 2010, p. 48 e 49). O elemento técnico é indispensável para a criação da obra, mas não é um componente do todo artístico. Desse modo, embora possamos considerar a tecnicidade separada em termos metodológicos para a tese, ela faz parte do todo e não é algo mecânico. O material, por sua vez, é para o teórico também primordial para a construção estética como momento técnico, mas não faz parte do objeto estético. Na literatura, por exemplo, o material é vocabular, explica. No audiovisual, podemos considerar que o

95 material é heterogêneo, mistura de sonoridades, linguagem verbal, imagens, cenário, figurino, material gravado, entre outros. Por meio das afirmações de Bakhtin (2010), temos um conceito de forma que se aplica tanto ao conteúdo quanto ao material, como teorizou o linguista dinamarquês Hjelmslev (GREIMAS, 1973, p. 37), segundo o qual a linguagem se divide entre plano da expressão (correspondente ao significante) e plano do conteúdo (correspondente ao significado), e cada um dos planos é composto por uma forma e uma substância, que são conceitos elásticos dependentes de um ponto de vista em relação ao objeto analisado. Eco (2007), por sua vez, trata da forma e da estrutura como geradores de significado. Para ele, o modo como vemos o mundo está presente na forma da arte. Há nesse sentido, uma alienação com o prolongamento do ser humano no objeto. Essa alienação nos leva a dois comportamentos: a posição que destrói o objeto, negativa; e a positiva que se integra com ele. Eco menciona a alienação do artista no interior dos sistemas formais, como na rima que após ser convencionada aliena o poeta nela. A superação do material na obra de arte da qual fala Bakhtin (2010) pode equivaler a essa alienação. No caso da literatura ou poesia, há a superação da palavra. “A superação imanente é a definição formal da relação com o material não só na poesia, mas em todas as artes.”. (BAKHTIN, 2010, p. 50). No audiovisual, há o apagamento do aparato, do trabalho de decupagem, principalmente nas montagens clássicas já mencionadas. Eco afirma que o discurso primeiro da arte se faz no modo de formar. A arte fala do homem no modo em que se estrutura. “O verdadeiro conteúdo da obra torna-se seu modo de ver o mundo e de julgá-lo, traduzido em modo de formar”. (ECO, 2007, p. 258). O progressismo da obra encontra-se, segundo o teórico, quando a forma inicia um novo modo de ver o mundo. Eco aplica esse pensamento às estruturas narrativas, cuja forma pressupõe a crença em determinada ordem dos acontecimentos.

[...] a maneira pela qual a aceitação de determinada estrutura narrativa pressupõe determinada concepção da ordem do mundo, refletida na linguagem que eu uso, nas modalidades segundo as quais a coordeno, e nas próprias relações de tempo expressas nela”. (ECO, 2007, p. 258).

De acordo com o teórico italiano, uma obra de arte pode remeter a tendências formais presentes em toda uma cultura e período. A forma, para ele, pressupõe uma ação

96 consciente humana sobre um material. A arte que procurar dar forma a alguma desordem revela um exercício humano de “[...] reduzir as coisas à clareza discursiva; e quando seu discurso parece obscuro, é porque as próprias coisas, e nossas relações com elas, são ainda muito obscuras.” (ECO, 2007, p. 276). No caso específico da televisão, Eco aborda a disposição das câmeras que, apesar das possibilidades técnicas, passa por um processo de escolha humana. Essa montagem acaba por formar uma composição narrativa e unidade discursiva. Para ele, a narrativa contemporânea tem rumado à dissolução do enredo. Porém, mesmo para um profissional que aplica as novas técnicas, quando está em alguma situação imediata, ele a enfrenta de acordo com a “[...] noção comum de causalidade, justamente porque esses nexos ainda são [...] os mais cômodos para a nossa movimentação dentro da vida cotidiana”. (ECO, 2007, p. 198 e 199). Diante disso, temos que a tecnicidade enquanto organizador perceptivo diz respeito à linguagem teleficcional no nosso caso, em seu conjunto expressivo e de conteúdo, de modo dialético, considerando as influências técnicas no gênero discursivo e vice-versa, como mostra a história cultural do melodrama e seus diferentes formatos (MARTIN- BARBERO, 2009). Fiorin (2008) explica que a manifestação é a união entre um plano de expressão e um plano do conteúdo. O conteúdo é afetado pelo meio de sua expressão, argumenta Fiorin, devido aos efeitos estilísticos da expressão e também pelas coerções do material. A organização dessa manifestação, a linguagem que a subjaz é a tecnicidade a nosso ver. Cabe à nossa pesquisa entender esse mecanismo, o que requer a separação entre expressão e conteúdo, forma e substância, mesmo sabendo que não se trata de uma divisão absoluta, exata. Fontanille (2008) utiliza o conceito de interpretante do filósofo Charles Sanders Peirce para evocar esse ponto de vista. Trata-se do corpo perceptivo, nas palavras de Fontanille, que estabelece os limites do que seria da ordem da expressão e do conteúdo. O autor discorre sobre a aplicação semiótica no discurso, de acordo com a substituição das faces do signo (significado e significante) pelos dois planos da linguagem, expressão e conteúdo, formulados pelo teórico Hjelmslev. Fontanille esclarece que o plano da expressão corresponde ao mundo exterior e o do conteúdo ao interior, mundos esses mediados por uma fronteira instável, assim como a fronteira entre forma e substância no interior de cada plano.

97

A substância é sensível – percebida, sentida, pressentida -; a forma é inteligível – compreendida, significante. A substância é lugar das tensões intencionais, dos afetos e das variações da extensão e da quantidade; a forma é o lugar dos sistemas de valores e das posições interdefinidas. (FONTANILLE, 2008, p. 48).

É possível relacionar a forma com um eixo sintagmático (extensivo) e a substância a um eixo paradigmático (intensivo). A partir dessa relação consegue-se também chegar ao isomorfismo necessário à análise, ou seja, que o plano da expressão e do conteúdo devem apresentar as mesmas categorias. Volli (2007) explica que o sintagma é o eixo do processo e o paradigma é o eixo do sistema e que ambos estão presentes no plano da expressão e no plano do conteúdo. O teórico também expõe que a relação entre os dois planos pode ser apreendida pelo ponto de vista do semi-simbolismo, da relação simbólica entre os elementos da expressão e do conteúdo. De acordo com Tatit (2001, p. 11), Hjelmslev acreditava que a linguística seguia um pensamento sub-lógico, e não totalmente lógico. Tatit também realça a importância dos conceitos de tensão e extensão de Hjelmslev que se conectam, cremos, com o eixo paradigmático e sintagmático, respectivamente. Além disso, o estudioso chama a atenção para o estudo da forma na semiótica. “Hjelmslev diz que cabe à linguística – e nós podemos acrescentar à semiótica – o estudo da forma. [...] E isso é a ‘glossemática’: a tentativa de montar uma forma tanto do conteúdo quanto da expressão” (TATIT, 2001, p. 5). Desse modo, para nossa pesquisa interessa tanto a forma do conteúdo quanto da expressão e suas respectivas substâncias para que possamos abordar a tecnicidade na representação da mulher popular. Temos consciência que expressão e conteúdo, assim como forma e substância, não são termos exatos, mas são valiosos em termos metodológicos para a análise. É pertinente observar que consideramos a análise semiótica e a Análise do Discurso de vertente francesa como complementares. Volli (2015) explica que a semiótica se preocupa com as condições de geração de sentido e não com o texto enquanto produto. A AD, ao contrário, ocupa-se do texto acabado, com o produto comunicativo, e busca analisar os índices enunciativos presentes na superfície do texto. Hall (2016), por sua vez, argumenta que tanto a semiótica quanto a AD fazem parte de uma visão construtivista. Hall explica que na semiótica o sujeito não está no centro da história, por isso entendemos

98 que, embora a semiótica seja frutífera para o que buscamos em termos de expressão, é preciso recorrer a AD em uma etapa final de análise.

2.4. Metodologia de análise e sua fundamentação A pesquisa proposta se baseia em um estudo de caso, das 28 personagens selecionadas das duas tramas de João Emanuel Carneiro, Avenida Brasil e A Regra do Jogo. Utilizamos diversas sugestões de análise com o intuito de explorar mais pontos de vista e analisar as personagens por diferentes aspectos. Acreditamos na riqueza teórica que a união de perspectivas pode trazer e na validade da experimentação metodológica, de modo a construir novas propostas e olhares. Além disso, durante o processo percebemos que uma única vertente não era suficiente para responder às nossas perguntas. Primeiramente, percebemos a necessidade de realizar uma classificação para separar as personagens em categorias gerais para, assim, selecionar aquelas que seriam analisadas em profundidade. Porém, a etapa classificatória demonstrou-se mais complexa que o suposto inicialmente. Esbarramos em peculiaridades da personagem de telenovela, assim como com a variedade de possibilidades de categorização. Descobrimos a importância da temporalidade e espacialidade das personagens e formulamos grupos com base no conceito de cronotopo (junção do espaço e tempo construídos socialmente) de Bakhtin (2010). Também utilizamos outros critérios com base em estudos que propõem tipologias de personagens. Em virtude da complexidade das classificações, questionamentos surgidos durante o percurso e objetivos de nossa pesquisa, optamos por analisar as 28 personagens, considerando as hierarquias de protagonismo. Esse processo possibilitou encontrar similaridades, diferenças e repetições entre as personagens e obter, assim, uma visão do conjunto das duas obras. A análise foi separada em plano expressão e do conteúdo para cada personagem. Consideramos como forma do conteúdo as tipologias das personagens, um resumo das principais características (trabalho da personagem, moradia, relacionamentos amorosos, familiares, amizades importantes e consumo/vida material) e o percurso narrativo geral, seu nível fundamental e respectivo quadrado semiótico. De acordo com Vanoye e Goliot-Lété (2012), a narrativa é o lugar de encontro entre o plano da expressão e do conteúdo, pois ela permite que uma história tome forma. A narrativa também diz respeito às ligações entre o enunciado e a enunciação, ou seja, entre

99 o texto e seu contexto de produção mais imediato - a cena da enunciação (MAINGUENEAU, 2008). É possível extrair a narrativa básica de cada personagem e seus níveis fundamentais, de acordo com a concepção greimasiana da oposição semântica primária (BARROS, 2011). Para isso, é necessário, por um instante, abstrair a narrativa de sua superfície de expressão que, conforme explica Volli (2015), encontra-se no nível do significante, o que para nós é a forma da expressão. O entrelaçamento é a maneira como dada história é contata na obra, e a fábula é a história em seu desencadeamento cronológico (independentemente de como ela é contada), ambas são da ordem do conteúdo. Coletamos os principais acontecimentos de cada personagem de nossa amostra, com base nas descrições das cenas no site oficial da emissora Gshow e episódios reassistidos na plataforma de vídeo on demand Globoplay. É possível observar nas narrativas a questão do reconhecimento presente no melodrama clássico, do qual fala Brooks (1995) e Martín-Barbero (2009). Trata-se do movimento que vai do desconhecimento ao conhecimento de uma identidade, por exemplo, quando a mocinha descobre que é uma herdeira rica, ou o reconhecimento do verdadeiro caráter do vilão, da inocência de alguma personagem, entre outras descobertas. Em um âmbito amplo, trata-se do reconhecimento da virtude. Nesse sentido, o quadrado semiótico da veracidade proposto por Greimas cumpre papel similar. É comum personagens parecerem serem algo que não são (mentira) e serem desmascaradas no fim da trama, ou que não parecem ser o que são (segredo), como uma filha perdida, uma herdeira, alguém que desconhece sua própria identidade. Esse quadrado pertence à trajetória do destinador-julgador (BARROS, 2011), na qual a sanção final da história é cognitiva ou de interpretação, quando os estados são julgados como falsos (não parecem e não são), mentirosos (parecem, mas não são), verdadeiros (parecem e são) ou secretos (não parecem, mas são). A personagem pode ser o objeto ou o sujeito da descoberta, ou seja, pode estar na posição de julgamento ou ser julgada. Pudemos observar que esse movimento da veracidade e/ou reconhecimento faz parte de muitas personagens na telenovela, muitas vezes, de forma subjacente a outra oposição semântica. Além do percurso narrativo do destinador-julgado, Greimas identificou o percurso do sujeito (competência: programa de uso, sujeito de estado e de fazer são diferentes; e performance: programa de base, sujeito de estado e de fazer são o mesmo). E o percurso

100 narrativo do destinador-manipulador, quatro tipos de manipulação (tentação, sedução, intimidação e provocação) (BARROS, 2011). Para Greimas, existem três categorias actanciais: sujeito e objeto; remetente e destinatário; auxiliar e oponente. Um actante pode desempenhar mais de um papel, também vários actantes podem atuar no mesmo papel. Considerando essas teorias, com base na narrativa geral das personagens, levantamos o nível fundamental de cada uma, o respectivo quadrado semiótico, a marcação tímica (euforia e disforia) e o movimento linear. Para isso, consideramos cada personagem como sujeito de sua história. A forma da expressão foi observada segundo a apresentação da personagem durantes os capítulos, tipo de corpo, idade, figurino, cenário que a caracteriza (seu quarto, por exemplo), se há mudança de visual durante a trama, trilha sonora, linguajar e elementos da atuação. Para isso, consideramos os dez capítulos iniciais a partir do episódio de apresentação da personagem, os intermediários e finais, segundo a duração da telenovela, e os pontos de virada da história de cada personagem. Para compor a substância da expressão, escolhemos a primeira cena em que a personagem é apresentada e realizamos um resumo dos principais componentes técnicos com base em Vanoye e Goliot-Lété (2012) e Chion (1998). De acordo com Sadek (2008), a abertura das novelas não segue a mesma lógica dramática dos outros dramas encenados, devido à longa duração da telenovela e sua abertura a novas possibilidades. Os primeiros capítulos são bem produzidos, tem ritmo mais acelerado, menos paradas e traz alguns dramas possíveis, mas sem sinalizar para um final. Assim, o início estabelece dramas fortes e bons suspenses com continuação previsível para os próximos capítulos, para que o espectador fique bastante interessado. Meses depois, o interesse poderá ter mudado de objeto e o drama inicial poderá ter perdido importância. Os capítulos iniciais das telenovelas são exemplares sem similar nos demais dramas encenados. (SADEK, 2008, p. 71).

Smith (2004, p. 118), por sua vez, destaca um fenômeno conhecido como “efeito de primazia”, segundo o qual o espectador baseia suas estratégias de visualizações e expectativas nas aberturas dos textos narrativos, por isso a importância dos momentos iniciais de uma personagem. Consideramos a quantidade de vezes (medida pelos cortes, montagem) que a personagem aparece em seu capítulo de estreia, os tipos de sequência, e detalhamos o

101 primeiro trecho apresentado. Apesar de uma cena ser uma unidade narrativa que corresponde a uma sequência, optamos por seguir a decupagem realizada no episódio, ou seja, limitamos o trecho selecionado aos cortes realizados (mesmo que a cena continue por intercalação) e, ao contrário, unimos ao trecho outras cenas da personagem caso estas venham logo em seguida. Realizamos um resumo dos acontecimentos, os planos e ângulos predominantes ou que chamam a atenção, duração, elementos icônicos e plásticos de destaque, como o espaço é mostrado, descrição dos sons e a instância narradora (câmera subjetiva ou objetiva, por exemplo). Vanoye e Goliot-Lété (2012) destacam seis diferentes tipos de sequência: quando o tempo narrativo é igual ao tempo da sequência, por exemplo, em um diálogo; sequência com elipses, de forma cronológica; alternada (ações simultâneas); paralela (ações que servem para comparação, mas não são simultâneas); por episódios; e em colchetes.18 É pertinente, segundo os autores, atentar para o elo, a forma da passagem entre uma parte e outra, se o ritmo é rápido ou lento, se há alguma sonoridade ou música, algum efeito visual como o escurecimento, entre outros aspectos. Nas telenovelas, muitas vezes, as sequências são separadas por uma música animada acompanhada de imagem das praias do Rio de Janeiro em ângulo alto. Os autores também tratam do narrador fundamental e dos narradores delegados. Este último tipo é dividido em: extradiegético (uma voz off por exemplo); à beira da diegese (fora da ação, mas faz parte do universo da história, um vizinho, por exemplo); diegético, a personagem como narradora (focalização mental, auditiva, focalização visual e focalização audiovisual). É apropriado atentar para uma interpretação simbólica. Os autores explicam que as imagens podem gerar um efeito metafórico, quando ultrapassam um sentido literal. “É a associação, mais ou menos, estreita, de imagens que rompem o estrito continuum narrativo que cria uma configuração metafórica (mais do que uma metáfora “pura”)”. (VANOYE; GOLIOT-LETE, 2012, p. 61). Metáforas e redes metafóricas são detectáveis por intermédio de repetição, de formas de insistência (primeiros planos, planos longos, ângulos insólitos) ou de ampliação (deformações visuais, aumentos, efeitos sonoros, etc.), do grau maior ou menor de incongruência desta ou daquela imagem com relação à norma narrativo-realista (da imagem

18 Por exemplo, os autores atribuem aos planos-flash, com muitos cortes, uma forma de adensar e dilatar o tempo, o espaço e o acontecimento. Para ilustrar, eles citam a passagem ataque de pássaros no filme Os pássaros de Hitchcock.

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deliberadamente não diegética à figura diegetizada, isto é, plenamente integrada no mundo representado). (VANOYE; GOLIOT-LETE, 2012, p. 61).

Vanoye e Goliot-lété apresentam alguns exemplos práticos, dentre eles uma análise do filme Rebeca de Hitchcock. Os estudiosos destacam que a organização do espaço, a mansão onde se passa a maior parte do filme, tem destaque nessa obra de gênero gótico. Eles chamam a atenção para o espaço representado, o não representado e o semi- representado, ou seja, os espaços da casa que vemos, aqueles que vemos em partes e outros que imaginamos. Sobre o papel do cenário, os autores citam um plano de conjunto, quando a personagem principal entra no palacete e conhece os criados. A câmera está distante da situação, como um observador que não gostaria de ser visto. Os criados estão imóveis e parecem parte do cenário. Esses aspectos podem ser observados nas residências das personagens das duas telenovelas que serão analisadas, como a mansão onde reside Carminha, na qual, em alguns momentos, os empregados assumem papel similar, mas em tom paródico. No que diz respeito ao som, Chion (1993) destaca o conceito de ponto de escuta. De acordo com o teórico, existem vários sons que devem ser levados em consideração em um produto audiovisual, como as palavras, os ruídos e as músicas. Há o som cuja fonte é visível na tela e aquele que não vemos a origem; há o som diegético mesmo fora de campo; existe também o som extradiegético que se situa em outro espaço-tempo daquilo que é mostrado, como trilhas sonoras. Chion afirma que há uma ilusão no audiovisual, que diz respeito a uma percepção de total sintonia entre imagem e som. O estudioso argumenta que assistir a um filme sem som e ouvir o mesmo filme sem imagem são experiências totalmente diferentes. O autor acredita que a televisão, sem tom pejorativo ele salienta, é como um rádio ilustrado. Ou seja, na televisão o áudio apresenta papel central. Dizer da televisão - sem intenção pejorativa, é claro - que é uma rádio ilustrada [...] é lembrar que o som, principalmente o som da palavra, é sempre a primeira coisa, que nunca está fora do campo e que está sempre lá, em seu lugar, sem a necessidade da imagem para localizar- se. (CHION, 1993, p. 123).19

19 Decir de la televisión —sin intención peyorativa, por supuesto— que es una radio ilustrada […] es recordar que el sonido, principalmente el sonido de la palabra, es en ella siempre lo primero, que nunca es fuera de campo y que está siempre ahí, en su lugar, sin necesidad de la imagen para localizarse. (CHION, 1993, p.123).

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Chion sugere alguns procedimentos de análise do som, dentre os quais, ouvir determinada cena sem imagem e vê-la sem som, para depois assisti-la e ouvi-la simultaneamente. O autor também propõe os seguintes questionamentos: perguntar se na cena analisada há palavras, se há ruídos, se há música, de onde vêm os sons, qual som predomina, o que se ouve do que é visto e o que se vê do que se ouve, entre outras questões. Apesar da importância do verbal na televisão e na telenovela, optamos por não transcrever as falas das personagens, para poder enfocar os elementos técnicos e imagéticos de interesse e captar o todo desejado. Questões importantes a respeito do linguajar das personagens foram inseridas na forma da expressão. Conteúdos relevantes proferidos pelas personagens foram captados de forma mais geral e contemplados na forma do conteúdo. Nesse sentido, é pertinente enfatizar as dificuldades materiais em análises de audiovisual. Vanoye e Goliot-lété (2012) mencionam a heterogeneidade dos produtos fílmicos – e acrescentamos os televisivos – e destacam a importância de um dispositivo de observação que se limite aos eixos de análise que, por sua vez, servem às hipóteses e objetivos da pesquisa. Assim fizemos. A substância do conteúdo segue uma proposta semi-simbólica, podemos afirmar, na tentativa de conectar o plano do conteúdo ao plano da expressão (VOLLI, 2015). A semântica discursiva serve ao propósito com os conceitos de tema e figuras (BARROS, 2011; FIORIN, 2008). As figuras dão forma aos temas que são mais abstratos. É possível observar a isotopia dos temas e das figuras e encontrar relações metafóricas e metonímicas.

Tabela 3. Protocolo metodológico geral PLANO DA EXPRESSÃO PLANO DO CONTEÚDO

Expressão da personagem. Classificações da personagem. FORMA Figurino, cenário recorrente, trilha informações importantes. sonora, linguagem, entre outros Descrição narrativa. elementos. levantamento do nível fundamental (quadrado semiótico) Descrição da primeira cena da Análise do conjunto. SUBSTÂNCIA personagem. Principais acontecimentos. Duração. Planos e ângulos mais relevantes ou

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predominantes. Elementos icônicos e plásticos (cores) de destaque. Como o espaço é mostrado. Descrição dos sons. Instância narradora (câmera subjetiva ou objetiva, por exemplo).

Finalizamos a pesquisa com uma análise discursiva com o objetivo de relacionar os resultados encontrados na análise dos planos de expressão e de conteúdo ao contexto socio-histórico e às discussões do primeiro capítulo. Utilizamos os conceitos de interdiscursividade, enunciação e discurso circulante (MAINGUENEAU, 1989; CHARAUDEAU, 2012). Também recorremos a Bakhtin, com as noções de enunciado, dialogia e polifonia. Os dois últimos termos se relacionam com a ideia de interdiscursividade e estão ligados entre si. A concepção de base é a construção sócio histórica da linguagem. De acordo com Volóchinov (2017), todo signo é ideológico, na medida em que está inserido em determinado contexto social. A noção de dialogia insere-se nessa concepção sócio histórica. Uma vez que os discursos estão socialmente situados, eles reproduzem, reelaboram, interpõem e refratam outros discursos existentes. Bakhtin (2003, p. 299) afirma que cada enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e gera atitudes responsivas. Por mais monológico que seja o enunciado (por exemplo, uma obra científica ou filosófica), por mais concentrado que esteja no seu objeto, não pode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido uma nítida expressão externa [...] (BAKHTIN, 2003, p. 298).

Já a polifonia pressupõe a existência de diferentes vozes em um dado enunciado. O autor discorre sobre tal noção na prosa-romance (2010), caracterizada por ele como um fenômeno “pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” (BAKHTIN, 2010, p. 75). De acordo com Bakhtin, o prosador romancista incorpora perspectivas sócio ideológicas exteriores à sua obra para expressar a sua própria posição. Desta maneira, a semiótica nos possibilitou percorrer o processo gerador de sentido e tratar de uma organização formal, no conteúdo e na expressão. A análise discursiva, por sua vez, ancorou os resultados semióticos com as discussões macrossociais. Assim

105 pudemos abordar certas especificidades das duas telenovelas ao trabalhar com o discurso circulante (CHARAUDEAU, 2012) sobre a mulher popular brasileira.

2.5. Primeiras classificações e peculiaridades da telenovela

Em um primeiro movimento de análise, realizamos uma classificação tipológica baseada nas características físicas, psicológicas e sociais que mais chamam a atenção nas personagens. As tipologias que foram surgindo a partir das correntes teóricas acerca das personagens e de sua construção foram: emergentes (Muricy, Ivana e Adisabeba); periguetes (Suelen, Olenka, Beverly, Alisson, Ninfa, Mel e Andressa Turbinada); mocinhas (Monalisa, Tessália, Tóia, Janete, Domingas e Lara); vilãs (Carminha e Atena); mentoras (Lucinda, Betânia e Djanira), evangélicas (Dolores e Indira) e empregadas domésticas (Zezé, Janaina, Conceição e Dinorah). As tipologias mocinhas, vilãs e mentoras são mais generalistas na nomenclatura, mas abrangem especificidades no que diz respeito à mulher popular, como veremos na descrição a seguir. Vale explicar que essas categorias não são estáticas e se mesclam em determinados momentos. As emergentes e as periguetes são bastante semelhantes. Abarcam personagens menos elaboradas, estereotipadas, com viés cômico. São exageradas em seu modo de se vestir e falar (falam alto, não apresentam as boas maneiras das personagens dos núcleos ricos, se vestem de forma exuberante, com cores chamativas e brilhos) e são retratadas como possuidoras de gosto duvidoso. Ambas são marcadas por cenas que mostram as necessidades mais básicas do corpo humano, como a alimentação. Esses elementos indicam semelhanças com o tratamento de inadequação dispensado à mulher popular na “TV realidade” (SKEGGS, 2009) (ESCOSTEGUY, 2014). Ao contrário das periguetes, as emergentes residem com seus familiares e são mais mostradas em suas casas, como Adisabeba (A Regra do Jogo), Muricy (Avenida Brasil) e Ivana (Avenida Brasil). Também são de idade mais avançada em comparação com as periguetes. Estas, por sua vez, possuem maior apelo sexual, com ênfase no corpo jovem que é mostrado em trajes extravagantes e exíguos. Em sua maioria, não possuem relações familiares e não são retratadas no ambiente doméstico. Algumas dessas personagens são arrivistas, ou seja, procuram obter ascensão econômica por meio de relações amorosas, como Suelen (Avenida Brasil). Observa-se também nessas personagens um discurso

106 traçado pela ótica da classe média e classe alta que se veem como exemplos para as classes populares. As mulheres populares têm determinados traços de sua vivência de classe deturbados e exacerbados nesses estereótipos, reproduzindo um preconceito histórico conforme expõe a pesquisa de Soihet (2015), e Fonseca (2015). No caso das vilãs, temos as mulheres que buscam uma vida de luxo, querem se dar bem na vida com pouco esforço e a qualquer custo, cometem crimes, aproveitam-se da aparência física e usam os relacionamentos para obter o que desejam. Elas não aparecem em nenhum momento em situação de trabalho e renegam suas raízes pobres. De certa forma, elas dialogam, é possível inferir, com aspectos da mulher popular discutidos por Soihet (2015) no âmbito das poucas oportunidades, da origem pobre, e da dependência dos relacionamentos para obterem status social, embora elas revelem um lado obscuro específico das personagens vilãs. Carminha (Avenida Brasil) apresenta maior complexidade em relação a Atena (A Regra do Jogo), pois além de demonstrar sentimentos dúbios e de se redimir no final da trama, a personagem manifesta um tom paródico de sátira ao comportamento das mulheres burguesas de telenovela, por exemplo, em seu falso moralismo e discurso religioso, na vestimenta sóbria e características que a relacionam com a figura da matriarca. As vilãs podem ser comparadas com a figura lendária da bruxa que, segundo Robles (2006), assumiu seu aspecto demoníaco com a ascensão do Cristianismo no ocidente, em substituição às deusas pagãs de personalidade dúbia. Diversas formas lhe foram dadas, a maioria a retrata velha e com ênfase em sua fealdade. Robles indica que hoje a representação de mulheres corrompidas pela sociedade capitalista poderia ser uma releitura da figura da bruxa. A senhora Barford, em História da Lua Morta, é uma das últimas reminiscências druídicas que se aparenta com certa deusa primitiva da natureza. Esta, por sua vez, assume em nossos dias aspectos tão diferentes que pode igualmente se revelar disfarçada de uma Celestina de sujos ofícios, na literatura picaresca espanhola, ou transmutada em mulheres comuns da vida contemporânea, à maneira das norte- americanas ambiciosas que, representadas como verdadeiros monstros nas novelas de Truman Capote, exemplificam as típicas criaturas geradas por nosso sistema social. (ROBLES, 2006, p. 252 e 253).

De modo similar, muitas vezes, as periguetes também estão relacionadas à ambição material e ao uso do corpo. Nesse sentido, não seriam elas uma variação da vilã? O estudo de Tondato e Vilaça (2017) demonstra uma variação nesse sentido de personagens com

107 esse perfil em telenovelas dos anos 1980 até os anos 2000. De todo modo, esse é um assunto a ser explorado posteriormente. Voltando à nossa classificação, temos também as mentoras, para a quais utilizamos a classificação de Vogler (2006), que relaciona o mentor à figura dos pais. O autor explica que existem diferentes tipos de mentores, como os obscuros, os mentores cômicos e o xamã (curandeiro, culturas tribais). No caso das personagens em análise, as mentoras são personagens densas, com forte carga dramática, mas que não sofrem grandes transformações de estado durante a trama. Elas não ascendem financeiramente, e nem possuem apelo para o amor romântico, mas são importantes para os protagonistas da história, pois simbolizam seu lugar de origem. Lucinda (Avenida Brasil) desempenha o papel de mãe adotiva dos protagonistas Nina e Jorginho. A aparência descuidada da personagem, a moradia isolada no lixão e a ambiguidade de seu caráter remetem à figura das bruxas, como Baba Yaga dos contos russos que, de acordo com Vogler (2006), exerce a função de mentora e sombra em determinados momentos. Betânia é uma amiga de infância de Nina também do lixão, que trabalha como frentista em um posto de gasolina e leva uma vida difícil. Já Djanira (A Regra do Jogo) é a mãe adotiva de Tóia, moradora do morro da Macaca e, assim como Lucinda, guarda segredos importantes sobre o seu passado. As empregadas domésticas têm como maior caracterização a sua profissão. Algumas tiveram o seu espaço pessoal mais explorado, ampliando, de certa forma, a personagem da empegada doméstica que sempre fora retratada como um ser praticamente invisível nas telenovelas. Este é o caso de Janaina (Avenida Brasil) e Conceição (A Regra do Jogo). Cabe enfatizar, no entanto que as duas personagens negras Zezé (Avenida Brasil) e Dinorah (A Regra do Jogo) foram personagens menos exploradas em relação à sua intimidade. Geralmente, as empregadas domésticas negras são historicamente relacionadas em suas representações a adjetivos pejorativos como atrevidas e fofoqueiras, conforme levantado no primeiro capítulo. A classificação das evangélicas se deu pela importância da religião nas personagens Dolores (Avenida Brasil) e Indira (A Regra do Jogo). Dolores tinha a religião e o medo do pecado como características fortes, inclusive em tom satírico. A religião também está presente na caracterização de Indira, que inclusive faz abstinência sexual para não ter mais filhos, visto que sua crença não permite o uso de preservativo e pílula anticoncepcional. Conforme levantado no primeiro capítulo, o pentecostalismo e o

108 neopentecostalismo têm forte apelo nas classes populares (SERELLE, 2014; SOUZA, 2012). Ou seja, trata-se de uma questão importante de ser analisada. As mocinhas são assim denominadas não só pelo protagonismo na trama, mas por características peculiares, como o paradigma romântico da Cinderela ou do Romeu e Julieta (ALMEIDA, 2007). São personagens que ascendem financeiramente ou amorosamente durante a trama. São batalhadoras, honestas, de personalidade afável e, muitas vezes, injustiçadas. Geralmente passam por uma série de provações até conquistarem o que desejam no final. Dentro dessa categoria, temos as mocinhas que se destacam por sua determinação, independência e caracterização popular. Este é o caso de Monalisa (Avenida Brasil), migrante nordestina, que conquista sociedade em um salão de beleza e adota sozinha uma criança; e Janete (A Regra do Jogo), que, por um tempo, sustenta a família falida de seu marido como manicure. As outras mocinhas, como Tóia (protagonista de A Regra do jogo), apesar da origem humilde, exibem características mais condizentes com os valores das classes média e alta, o que se constitui um padrão no melodrama. A história de Domingas (A Regra do Jogo), por sua vez, se sobressai pela exposição da violência contra a mulher como apontam Baccega e Abraão (2016). Apesar disso, a figura da salvação masculina em sua vida (uma personagem que aparece repentinamente em sua casa e melhora a sua autoestima) não torna o seu enredo empoderador para as mulheres. Como é possível observar essa primeira classificação não segue um padrão uniforme. Algumas personagens foram qualificadas de acordo com uma função narrativa (vilãs, mocinhas e mentoras) e outras por características de classe, religião ou profissão. Esse fato já se revela curioso para a análise, pois expõe a dificuldade em estabelecer uma tipologia das personagens em telenovela com base em funções narrativas. É preciso rever certas classificações ou dividi-las em novas. A telenovela apresenta muitos núcleos e histórias paralelas que nem sempre se encontram, o protagonismo é elástico (SADEK,2008). Ainda mais no nosso caso, em que selecionamos determinadas personagens, a tarefa de classificar de acordo com a narrativa se torna ainda mais difícil, visto que algumas delas têm narrativas importantes na trama e outras aparecem muito pouco. Há as que se relacionam entre si e as que não, por exemplo.

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De acordo com Sadek (2008), na novela, ao contrário do princípio tradicional das histórias, várias personagens levam a trama. Cada núcleo tem uma personagem principal e assim podem ser várias as protagonistas. “Por motivos promocionais, as telenovelas apontam um protagonista ou uma dupla deles, mas, ao desenrolar das várias tramas, os personagens principais se alternam, à medida que a audiência prefere uns ou outros”. (SADEK, 2008, p. 93). Ao contrário, no cinema clássico sempre há uma personagem que afeta todas as outras de alguma forma. Algo similar ocorria nas novelas mais antigas, lembra Sadek, como, por exemplo, em O bem-amado (1973), de Dias Gomes, com a centralidade de Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo). O autor também aponta um exemplo mais recente, a telenovela Belíssima (2005, 2006) de Silvio de Abreu, na qual a personagem Bia Falcão (Fernanda Montenegro) tinha influência nas demais tramas. É comum, ainda, a existência de protagonistas que aparecem no final da telenovela. Além disso, o tempo na tela, a quantidade de aparições, de falas e closes indicam protagonismo, fato que se torna relativo diante da flexibilidade do protagonismo durante toda a história. Outros pontos são ressaltados por Sadek (2008), como a possiblidade de estereotipia e falta de transformação nas próprias protagonistas. Nas telenovelas, a sutiliza dos personagens tende a ser massacrada pela superexposição, e alguns protagonistas (e personagens secundários) sofrem por terem de falar sempre as mesmas coisas, pela obrigação de não deixarem nada subentendido, de se revelar sempre e de mostrar constantemente seu caráter tipificado, exatamente como Brooks (1995, p. 4) explica com relação ao melodrama. (SADEK, 2008, p. 96).

Geralmente, a protagonista apresenta tendência a mudar, enquanto outras personagens com função específica na trama são pouco desenvolvidas “São personagens que operacionalmente servem para que os demais atuem. Eles amparam as ações dos demais.” (SADEK, 2008, p.101). Todas essas peculiaridades da telenovela, Sadek expõe, contribuem para que o objetivo das personagens e o desenrolar das tramas não sejam tão importantes quanto a avalanche de fatos. “Assim, as telenovelas romperam o paradigma clássico e seguiram por outro caminho, característico do meio eletrônico e adaptado a ele e à difusão diária por longos períodos.” (SADEK, 2008, p. 111). Além das peculiaridades da telenovela, na primeira classificação realizada não havíamos considerado a personagem Sueli (Paula Burlamaqui) de A Regra do Jogo, pois

110 seu nome não consta no site da trama. Assistindo novamente aos episódios para a análise, verificamos a importância dessa personagem para o corpus. Ela não se classifica em nenhuma das tipologias levantadas acima. Sueli é amiga da vilã Atena, dona da pensão onde esta última mora. Ela não é má, também não tem status de mocinha com história própria. É uma mulher pobre, que não se configura como periguete, nem emergente. Iremos discorrer sobre Sueli no decorrer da tese. Assim sendo, vamos recorrer à teoria das personagens e às tipologias já teorizadas por estudiosos, de modo a pensar novas formas de classificação e especificidades do nosso caso.

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3. A forma do discurso da personagem popular

“É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária”. (ROSENFELD 2014 p.23).

É importante recobrar as teorias sobre personagens para além do audiovisual. Juntamente com o embasamento teórico, os estudos vindos da literatura nos ajudarão a enxergar com mais clareza as particularidades da personagem de televisão. Ademais, o percurso teórico nos levará a autores que abordam a personagem no audiovisual. Em um segundo momento, tratamos de pesquisas que trabalham com tipologias de personagens por diferentes recortes. Realizamos comparações entre elas e as adaptamos ao contexto de nosso objeto para a construção de tipologia própria. Discorreremos sobre os conceitos de função de personagem, temporalidade e espacialidade. Abordamos também pesquisas que exploram diferentes atributos de personagens no audiovisual que podem se aplicar ao nosso caso. Os vários níveis de protagonismo são outra variável a ser levada em consideração na triagem. Do mesmo modo, o levantamento narrativo básico de cada personagem e seus respectivos quadrados semióticos, enquanto forma do conteúdo, adicionados à forma e substância da expressão nos trouxeram novos achados para a seleção.

3.1. Personagem: pessoas ou texto? De acordo com Smith (2004), as discussões contemporâneas sobre as personagens, em meio aos teóricos que seguiram as críticas estruturalistas20, dividem-se entre aqueles que veem a personagem como uma pessoa e os que a consideram um elemento textual. Para Smith, trata-se de uma falsa antítese, pois a personagem enquanto texto não exclui sua analogia com um ser humano e vice-versa. Na verdade, essa dicotomia tem raízes antigas. Por muito tempo, imperou em nossa sociedade uma visão ético-antropomórfica da personagem, cujas bases encontram-se nos

20 De acordo com Todorov (2006), o método estrutural foi desenvolvido pela primeira vez na linguística, sendo o Círculo Linguístico de Praga uma das primeiras escolas da linguística estrutural. Os estruturalistas, afirma o autor, foram influenciados pelo formalismo russo, corrente de estudos literários formado entre os anos 1915 e 1930.

112 ideais miméticos do filósofo Aristóteles e, posteriormente, de Horácio21, mais precisamente, em uma interpretação errônea da mimesis aristotélica. (BRAIT, 2017; SEGOLIN, 1978). Pois, diferente do entendimento comum, Aristóteles também se preocupava com a forma da obra e não apenas com o que era imitado e refletido nela. Para Aristóteles, portanto, o conceito de personagem não se esgota na representatividade desta, mas afirma também a necessidade de considerá-la enquanto “distribuição” e “elocução”, ou seja, enquanto produto dos meios e modos utilizados pelo poeta para a elaboração da obra. (SEGOLIN, 1978, p.15).

O conceito de mimesis também abarca, além da verossimilhança externa, uma verossimilhança interna, “[...] responsável pela criação de um universo que, embora contíguo do real, só pode existir como produto da manipulação dos componentes da obra em função de leis que lhe sejam inerentes”. (1978, p 16). Desse modo, Brait (2017) chama a atenção para a necessidade de reler Aristóteles de modo a resgatar o conceito de verossimilhança interna “[...] muito mais importante que imitação do real, mal-entendido que marcou uma longa tradição crítica e que até hoje assombra os estudos da personagem.” (2017, p.30). De acordo com a autora, predominante na Idade Média e no Renascimento, o legado de Aristóteles e Horácio entra em declínio no século XVIII e é substituído por um ponto de vista psicologizante, que considera a personagem a representação psicológica de seu criador. É a época da ascensão de um público burguês, do romantismo (e suas duas vertentes: realismo e naturalismo) e das sátiras sociais. Porém, apesar da aparente mudança, a concepção da personagem continua sendo antropomórfica, sem maiores preocupações com sua linguagem específica (BRAIT, 2017). A percepção mimética em seu sentido simplista só será afetada com novas teorias surgidas no século XX. A obra Aspects of the Novel de E.M. Forster publicada em 1927 foi emblemática, assim como The structure of the novel de Edwin Muir de 1928 Forster (2005) retoma classificações históricas do romance para distinguir as personagens entre planas e esféricas. Nesse contexto, o teórico compara em sua obra as personagens de ficção com as pessoas da vida real, mas o faz de forma crítica. Então, em que sentido se distinguem os filhos da ficção daqueles que nascem sobre a terra? Não podemos fazer generalização sobre eles, já que nada têm em comum do ponto de vista científico; não precisam de

21 Filósofo latino (65 a 8 a.c.), divulgador das ideias aristotélicas. Atribuía um caráter pedagógico à arte e qualificava as personagens moralmente, como seres que deviam ser seguidos.

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glândulas, por exemplo, enquanto todos os seres humanos têm várias. Contudo, apesar de não serem passíveis de uma definição mais estrita, tendem a se comportar segundo o mesmo molde. (FORSTER, 2005, p. 11).

De acordo Forster, as personagens planas, também chamadas de tipos e caricaturas, são construídas em torno de uma ideia ou qualidade simples; são reconhecidas facilmente pelo leitor e lembradas do mesmo modo. Essas personagens, segundo o teórico, têm tendência à comédia. “Um personagem sério ou trágico que seja plano tende a ser um tédio. Cada vez que surge e grita ´Vingança!` ou ´Meu coração sangra pela humanidade!`, ou seja qual for a sua fórmula, nosso ânimo afunda”. (FORSTER, 2005, p. 10 e 11). O estudioso crê que somente as personagens redondas são capazes de atuar tragicamente sem limite de tempo. Forster ensina uma forma de saber se uma personagem é redonda. É preciso averiguar se ela tem a capacidade de nos surpreender convincentemente. De acordo com Candido (2014), a construção de um romance e suas personagens requer simplificações. Estas podem se manifestar nos gestos e frases da personagem, para que o leitor a marque e a identifique como portadora de determinada personalidade e características. Assim, a personagem de romance é mais fixa e lógica, o que, na visão do teórico, não se refere à falta de profundidade “[...], mas que a sua profundidade é um universo cujos dados estão todos à mostra [...]” (2014, p.59). De acordo com Brait (2017) e Segolin (1978), os autores que irão modificar de vez a relação da personagem com o ser humano real são os formalistas russos que, embora sejam contemporâneos de Forster e Muir, só serão conhecidos no Ocidente em torno de 1955. Os formalistas partem de uma ideia dinâmica de forma, extrapolam a dicotomia forma-conteúdo, para enxergar a obra literária como um sistema de signos. Nesse âmbito, a personagem é apenas um dos componentes da narrativa e se constitui na trama. “[...] isto é, os seres narrativos não se explicam mais em função de suas relações de semelhança com um modelo humano, mas em decorrência do tipo de relação que mantêm com os demais componentes da obra-sistema”. (SEGOLIN, 1978, p. 32). Vladimir Propp (2001) foi um teórico importante dessa corrente. Por meio da análise de um corpus de 449 contos populares russos, o estudioso encontrou 31 funções que se repetiam na maioria dos enredos e sete personagens constantes: agressor ou

114 malfeitor; doador ou provedor; auxiliar; pessoa procurada e seu pai; mandante ou remetente; herói; falso herói. De acordo com Segolin (1978), as ações das personagens são os únicos elementos que possibilitaram tal tipificação, visto que características específicas são variáveis e impedem a formulação de um conceito genérico. Além disso, o tempo também é importante para a personagem proppiana, ou seja, a temporalização linear. Alheio ao fato de que a noção de tempo se prende não a um dado real, mas a uma maneira específica de encarar a realidade, o leitor não opõe dificuldades à aceitação da personagem temporalizada, vendo nesse ordenamento intrínseco de seu feixe de funções a expressão de uma verdade acerca do homem. (SEGOLIN, 1978, p. 41.).

Algirdas Julien Greimas foi outro teórico proeminente que seguiu uma proposta estrutural da narrativa. Este autor abstrai ainda mais a personagem de seu referente humano, substituindo a palavra personagem por actante e identificando três pares de actantes nas narrativas: sujeito e objeto; remetente e destinatário; auxiliar e oponente. Greimas também chama a atenção para o “sincretismo dos actantes”, quando uma personagem desempenha papel duplo ou múltiplo; e para a personagem dispersa, que consiste em várias personagens preenchendo uma única função. A semiótica greimasiana nos foi útil para uma análise mais abstrata da narrativa que será apresentada posteriormente. Apesar das grandes contribuições dos formalistas e seus sucessores que expandiram e repensaram seus ensinamentos, suas teorias acerca das personagens tendem a se afastar muito do referente humano e social, atingindo um nível de abstração que, para Smith (2004), gera dois problemas principais. O primeiro deles é a crença de que os espectadores captam as personagens na relação com o resto do texto, ou seja, por diferenciação. O segundo é igualar a agência humana à agência não humana. Smith expõe que os espectadores usam modelos culturais e estereótipos para interpretar as personagens e preencher as informações do texto, ou seja, não utilizam apenas a diferenciação. O autor também crê que o agente humano é central na narrativa e não pode ser igualado aos agentes não humanos. Smith (2004) argumenta que há uma confusão nas discussões do formalismo e estruturalismo entre natural-convencional e mimético-abstrato (não mimético), na qual a mimese é associada com o natural, como se ela não fosse uma representação. Mas, na realidade, algo pode ser imitativo e obedecer a uma lógica própria, ou seja, ter

115 convenções. “Meu ponto é que esse 'efeito-realidade' é [...] gerado por um ato mimético, mesmo que o objeto da imitação seja mutável - isto é, que a noção do real seja, de certa forma, historicamente definida” (SMITH, 2004, p.33) 22 Nesse sentido, o contexto histórico nos ajuda a entender o caráter convencional do mimético. Afinal, o que é considerado imitação do “real” em determinada época, pode não ser em outra. Smith (2004) aborda um movimento histórico que parte das representações alegóricas e relatos universais, para as representações de pessoas e histórias particulares. Antigamente, a novela, por exemplo, não nomeava as personagens. Estas eram alegorias. Enfatizando esse caráter dinâmico, o autor firma que as técnicas de ilusão visual também mudaram as convenções da narrativa realista. Brait (2017) apresenta posição similar, intermediária entre personagem texto e pessoa, ao argumentar que as personagens, no caso da literatura, são formadas linguisticamente, mas que, ao mesmo tempo, representam pessoas dentro da lógica ficcional. Para entender a personagem, argumenta a estudiosa, é preciso encarar a construção textual, a maneira como o autor dá forma à sua criação, de acordo com a atividade reprodução e invenção, e, em seguida, partir para a relação com o mundo exterior. Brait (2017) propõe as seguintes perguntas para uma análise: como o escritor passa da realidade para o universo da construção da personagem? O que requer esse processo de reproduzir e inventar seres que se confundem com os seres humanos? Tais perguntas, adaptadas ao meio audiovisual, são de grande valor para abordar as especificidades das telenovelas Avenida Brasil e A Regra do Jogo na construção das mulheres populares. Candido (2014), por exemplo, argumenta que há afinidades e diferenças entre os seres vivos e os seres da ficção. O autor explica que quando a ficção representa o ser humano de forma fragmentária, ele está retomando o modo incompleto como nós percebemos nossos semelhantes na vida real. Conforme demonstrado anteriormente, captamos as pessoas e o mundo por meio de tipificações (BERGER; LUCKMANN, 2014). Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-ser. No romance, o escritor estabelece algo

22 “My point is that this ‘reality-effect’ is [...] generated by a mimetic act, even if the object of the imitation is a moving target – that is, that the notion of the real are, in certain ways, historically defined.” (SMITH, 2004, p.33).

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mais coeso, menos variável, que é a lógica do personagem. (CANDIDO, 2014, p. 58).

Há uma analogia entre a forma da personagem e a forma como vemos o mundo e nossa realidade. As personagens tipos são o resultado da maneira como concebemos as pessoas. Segolin (1978), nesse sentido, fala da personagem como uma “metáfora epistemológica” do homem e do mundo, já que o ser fictício é um ser semelhante ao universo apreendido a partir de um dado comportamento cognitivo. “Não é a linguagem que nos aponta para o mundo, mas é o mundo que se faz linguagem”. (SEGOLIN, 1978, p. 126). Nesse âmbito, se a personagem é linguagem, o é igualmente o mundo para nós. Assim são as personagens típicas do melodrama, reflexos de um ideal de sociedade no momento de seu surgimento, ou melhor de uma imaginação melodramática da época. (BROOKS, 1995). Segolin (1978, p. 120) chama a atenção para o modo de formar, para a forma dos significantes que compõem a obra “[...] e que só em decorrência desse específico movimento formador é que os significados se criam, impregnando-se do finalismo presente na forma que os instaura”. Ou seja, os significantes não são apenas suporte dos significados. [..] qualquer linguagem embora possa manter (é o caso de uma linguagem de caráter icônico) ou não relação analógico-representativa com o mundo, mantém necessariamente com o mesmo uma relação analógico-funcional. Ou seja, é nossa maneira especifica de manipular- articular os componentes de um código que determina e/ou reflete o modo como funcionalizamos e sistematizamos os componentes da realidade. É aqui que reside o verdadeiro contacto entre a arte e o mundo e não na referencialidade representativa de seus signos. (SEGOLIN, 1978, p. 120 e 121).

Mesmo que uma obra não esteja a priori comprometida com uma ideologia, o discurso artístico abarca um modo de organização de seus componentes que revela a presença de uma ideologia, como demonstra Bakhtin (2010). Há uma equivalência formal entre um discurso artístico e determinada visão de mundo, e é nessa analogia que se encontra a faceta ideológica da arte, segundo Segolin (1978). A personagem é, então, “[...] palco onde se exerce específico modo de formar, modo este que, ao mesmo tempo que dá vida à personagem, confirma ou rejeita determinada visão de mundo”. (SEGOLIN, 1978, p.125).

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Se na literatura a personagem é formada linguisticamente, no audiovisual o corpo assume papel especial. O corpo no audiovisual, afirma Smith (2004), é como o nome próprio na ficção escrita para individualizar as personagens. Ambos propiciam o esquema de pessoa, o que não exclui a construção textual da personagem. “[...] construções formadas com base em um esquema perceptivo e explicativo (o esquema de pessoa) que as torna perceptíveis e as dotam de certas capacidades básicas.” (SMITH, 2004, p. 31).23 Smith (2004) recorre a algumas teorias sobre pessoa para fomentar sua tese das personagens. Ele levanta sete categorias que a agência humana, e correlativamente a personagem, deve contemplar no contexto ocidental. São elas: um corpo humano individualizado e contínuo através do tempo e do espaço; atividade perceptiva, incluindo autoconsciência; estados intencionais, como crenças e desejos; emoções; capacidade de usar e entender uma linguagem natural; capacidade de ações para auto interpretação e auto impulsão; potencial para traços, ou atributos persistentes. De acordo com Smith (2004), o público entra em contato com as personagens no audiovisual por meio de três processos consecutivos e inter-relacionados que compõem uma estrutura de simpatia: reconhecimento, alinhamento e aliança. Na etapa do reconhecimento, a individualização e a continuidade são importantes na interpretação dos seres ficcionais. Apesar se posicionar contra os tipos fixos, o teórico afirma que ao individualizar uma personagem podemos colocá-la em certas classificações, como idade, sexo, raça, classe social, entre outras. Do mesmo modo, o estudioso argumenta que o nome próprio desempenha a capacidade de individualizar e tipificar esses seres. É pela corporificação - corpo, face e voz – que a personagem de fato se individualiza no audiovisual. Gomes (2014), por sua vez, faz um paralelo entre a personagem de teatro e de cinema. O autor aborda o fato de que no audiovisual o espectador cria maior intimidade com as personagens que no teatro. De um certo ângulo, a intimidade que adquirimos com a personagem é maior no cinema que no teatro. Neste último a relação se estabelece dentro de um distanciamento que não se altera fundamentalmente. Temos sempre as personagens da cabeça aos pés, diferentemente do que ocorre na realidade, onde vemos ora o conjunto do corpo, ora o busto, ora só a cabeça, a boca, os olhos, ou um olho só. Como no cinema. (GOMES, 2014, p. 112).

23 “Characters are constructs, as the structuralist argues, but they are constructs formed on the basis of a perceptual and explanatory schema (the person schema) which makes them salient and endows them with certain basic capacities” (SMITH, 2004, p. 31).

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Trata-se do tipo de decupagem clássico, comentado no capítulo anterior, adotado também pela telenovela, que nos traz a sensação de realidade, somente possível pela tecnologia do audiovisual. Desse modo, o esquema de pessoa para tratar das personagens e o argumento de que elas são captadas pelos espectadores por meio de estereótipos e modelos culturais (SMITH, 2004)) corroboram a pertinência do nosso propósito classificatório a seguir. De modo amplo, seguimos um caminho transdisciplinar.

3.2. Tipologias Primeiramente, é importante retomarmos a classe social de cada personagem. Reduzimos as categorias para trabalhadora e emergente social. As trabalhadoras derivam da mulher brasileira das classes populares analisadas nas pesquisas de Soihet (2015), Fonseca (2015), Rago (2015) e também no estudo de recepção de telenovela de Ronsini (et. al, 2016; 2017). A emergente social é a mulher das classes populares que enriqueceu depois de adulta e que mantém em algum grau o habitus e o capital cultural da classe de origem (BOURDIEU, 2007). As periguetes que tomamos como uma condição social anteriormente foram inseridas na classe trabalhadora. Consideramos a individualização e a continuidade para realizar as tipologias das personagens de ambas as tramas. A apresentação da personagem em seu conjunto e a repetição de suas características – pelo corpo, voz, linguajar, comportamento, entre outros aspectos - torna possível a tarefa de reunir figuras similares e classificá-las em grupos. Como comentado, recorremos a diferentes tipologias para construir uma própria. Começamos com o melodrama. Sabe-se que o melodrama é famoso por personagens planas, maniqueístas, como Brooks (1995) expõe. A fórmula de personagens bastante tipificadas se propagou nas diversas formas melodramáticas, como no folhetim chamado de terceira fase (entre 1871 e 1914) mais próximo da nossa telenovela (MEYER, 1996). Não vamos nos alongar, porque já tratamos do melodrama no segundo capítulo, partiremos para as tipologias. Martín-Barbero (2009) elenca quatro personagens do melodrama, correspondentes ao medo, entusiasmo, dor e riso. São elas: o traidor (ou perseguidor, ou agressor), é como um mago ou sedutor, simboliza o vício e personifica o terror como no romance gótico do século XVIII; o justiceiro ou protetor que, no último momento, salva a vítima e castiga o

119 traidor; a vítima, a heroína, quase sempre mulher, portadora da inocência e da virtude; e o bobo que carrega comicidade. A figura do bobo remete: [...] ao plebeu, o anti-herói torto e até grotesco, com sua linguagem anti- sublime e grosseira, rindo-se da correção e da retórica dos protagonistas, introduzindo a ironia de sua aparente torpeza física, sendo como é um equilibrista, e sua fala cheia de refrões e de jogos de palavras. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 170).

Tabela 4. Personagens do melodrama com base em Martín-Barbero (2009) Vítima Dor Heroína, quase sempre mulher, portadora da inocência e da virtude; Traidor, Medo Mago ou sedutor, simboliza o vício e perseguidor ou personifica o terror agressor Justiceiro ou Entusiasmo Salva a vítima e castiga o traidor. protetor Bobo Riso Plebeu, anti-herói, torto, grotesco, linguagem anti-sublime

A figura da vítima, ainda hoje, está presente nas telenovelas, com algumas modificações. É a heroína principal melodramática das telenovelas que normalmente passam por muitas provações até receberem a e o reconhecimento merecido no final. Brooks (1995), assim como Martín-Barbero (2009), também aponta como característica no melodrama teatral aa figura da garota pobre e injustiçada que descobre uma herança ou sua verdadeira identidade rica e alcança a justiça no fim da história. No mesmo sentido, o autor destaca em relação ao vilão: “[...] Se a estrutura social do melodrama muitas vezes parece inerentemente feudal [...] também é notavelmente igualitária, e qualquer um que insista em privilégios feudais está fadado a ser um vilão.” (BROOKS, 1995, p. 44).24 Nesse sentido, em um primeiro olhar, a mocinha protagonista das telenovelas pouco mudou. Nas duas tramas de João Emanuel Carneiro ela permanece nesses moldes, como Tóia em A Regra do Jogo. Mauro (2017) aponta para a existência de uma narrativa de ascensão social padrão nas mocinhas principais de telenovelas, com o exemplo da

24 “[...]If the social structure of melodrama often appears inherently feudal [...] it is also remarkably egalitarian, and anyone who insists upon feudal privileges is bound to be a villain”. (BROOKS, 1995, p.44)

120 personagem Cristina (Leandra Leal) da telenovela Império (2014, 2015) de Aguinaldo Silva. Já a figura do bobo pode se relacionar com as periguetes e as personagens que trazem o riso, como as emergentes. Os sentimentos relacionados às personagens, da forma trazida por Martín-Barbero (2009), são particularmente interessantes para tratarmos do tom das personagens, se são mais melodramáticas ou cômicas, por exemplo. Adaptando os sentimentos para o nosso corpus - visto que as vilãs analisadas não são exatamente a corporificação do medo e que algumas personagens são mistas - temos a seguinte divisão. Dor: Tóia, Lara, Domingas, Lucinda, Djanira. Entusiasmo: Betânia, Sueli, Janaina, Conceição. Riso: Olenka, Beverly, Ivana, Muricy, Zezé, Dinorah, Adisabeba, Ninfa, Suelen, Alisson, Mel, Andressa, Indira. Dor e riso: Atena, Janete, Monalisa, Tessália, Dolores. Medo, riso e dor: Carminha. Retomando o folhetim de terceira fase, predecessor da telenovela, abordado por Meyer (1996), temos que a heroína vítima tem as tramas centradas, geralmente, no erro judiciário e sedução. Questões femininas pelo viés tradicional e machista estavam em voga também nessas histórias, como a mulher rica de “sexualidade estrangulada”, que desempenha a figura de boa mãe, esposa e educadora dos filhos, assim como a figura da mulher adúltera que “mancha” o nome da família. (MEYER, 1996, p. 232). De acordo com Meyer (1996), há duas representações femininas principais nessa fase do folhetim. A mulher da classe média ou rica, que não tem profissão, nem instrução e se integra socialmente apenas pelo casamento. E a mulher pobre, cuja única opção é ser costureira ou prostitua. A estudiosa também menciona as personagens “arrivistas do amor”. “Livres, depravadas, gananciosas, sem escrúpulos, vingativas, são também as únicas que sabem viver grandes paixões.” (MEYER, 1996, p. 261). [...] em torno do ‘mistério’, ‘crime’, ‘rapto’, ‘sedução’, inicial que dá a partida à história, as diferentes subtramas que dela decorrem, as gavetas todas que permitem uma narrativa aberta durante o tempo em que o autor e o público tiverem fôlego, organizam-se completamente no epílogo. Tudo entra nos eixos, os erros judiciários são corrigidos, os malvados punidos, a moça virtuosa mas pecadora reencontra seu lugar, o bastardo é reconhecido [...] As páginas finais, como o fim da telenovela, tranquilizam o leitor, dando um destino a todos os personagens cujas vidas acompanhou tanto tempo. (MEYER, 1996, p.162)

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Das personagens femininas trazidas por Meyer (1996), nos interessam as duas últimas, a mulher pobre e a arrivista do amor. A primeira corresponde à heroína principal já comentada e a arrivista que, a nosso ver, poderia ser subdividida em vilã e periguete. A telenovela seguiu caminho semelhante ao folhetim, principalmente na contraposição entre heróis e vilões. Motter (2004) explica que o herói de telenovela deve ser alguém de qualidades diferenciadas, ou excepcionais, e o vilão é seu antagonista, a personagem que faz o mal, muitas vezes, estimulada pela vingança. O vilão também pode ser a figura que impulsiona a narrativa, responsável pelas ações. Porém, tais concepções variam com o tempo, e de obra para obra, podendo essas personagens serem mais complexas. Motter (2004) fez um estudo sobre as telenovelas (2003, 2004) e (2004) da Rede Globo e constatou nessas produções um retorno ao modelo clássico melodramático, com personagens mais maniqueístas, com vilões sem densidade psicológica e conflitos, e determinados cegamente em seus objetivos. Nessas obras, ela afirma haver heróis mais planos que “Quando conseguem se livrar da cegueira e começam a reagir, a história já está se aproximando do final, e eles ganham mais feição de personagem redonda, como ocorre em Celebridade”. (MOTTER, 2004, p. 69). É possível observar características similares nas personagens estudadas nesta tese. Não há dúvida que Carminha de Avenida Brasil e Atena de A Regra do Jogo são vilãs, e as heroínas são Nina (a qual não faz parte da tese), Tóia e outras com protagonismo menor. Lembrando que Carminha é uma vilã mais complexa, como indicam os três sentimentos a ela atrelados anteriormente. Além disso, apesar de transformações óbvias em relação ao folhetim, as mulheres dos núcleos ricos raramente são representadas em situação de trabalho. Isto posto, para expandir as classificações propostas até agora, recorremos a Vogler (2006). Sabe-se que a jornada do escritor do autor foi baseada nas obras do mitólogo Joseph Campbell, cujo pensamento tem fundamento nas ideias do psicólogo Carl Jung, que estudou, entre outras questões, os arquétipos presentes nos mitos e na mente humana. A jornada em si não é o que nos interessa, mas sim as tipologias levantadas. Em um primeiro momento, o tipo “mentora” descrito por Vogler (2006) nos foi útil para classificar Djanira, mãe Lucinda e Betânia, conforme demonstrado anteriormente. Porém, é preciso ir mais fundo na investigação para melhor classificá-las. Vogler propõem as seguintes tipologias.

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Tabela 5. Personagens de acordo com classificação de Vogler (2006) no livro a Jornada do Escritor Herói É como o ego, o ser que vai passar por percalços e transformações. Sombra O vilão, antagonista, pode ser também uma característica interna ruim do herói, como aquilo que o sujeito não reconhece em si e ignora (JUNG, 2008) Mentor Corresponde ao sábio junguiano (2008). Uma espécie de velho ou velha sábia, comumente relacionada à imagem dos pais. Trata-se de um arquétipo flexível, que pode ser bom ou mau. Por exemplo, a personagem dos contos russos Baba Yaga que às vezes assume o papel de sombra, e outras de mentora. Guardião do Limiar É um tipo de vilão, que também pode ser ajudante. Ele testa o herói. Arauto Personagem que chama o herói para a aventura, indica a necessidade de mudança, por exemplo a figura de Hermes na mitologia. Pícaro Personagens com lado cômico, que diminuem egos muito grandes. Podem trabalhar para o herói ou para a sombra. Camaleão Pode ser um aliado do herói, ou se colocar contra ele em determinados momentos. É um dos arquétipos mais flexíveis. Pode desempenhar a função de anima (parte feminina inconsciente no homem) ou animus (parte inconsciente masculina na mulher) (JUNG, 2008).

O pícaro, assim como o bobo e a arrivista do amor, pode ser relacionado com as periguetes, que, muitas vezes, agem de forma ardilosa e engraçada e também às vilãs, em alguns momentos. Não utilizaremos essa classificação, pois o termo periguete já pressupõe um tanto de picardia, além do sentimento riso indicar tal compreensão. O camaleão pode servir para classificar as personagens que atuam como coringas na narrativa. Porém, Jung, Campbell e Vogler tratam das personagens por uma perspectiva masculina. Eles consideram as personagens femininas como o objeto a ser conquistado.

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Desse modo, vale a pena adotar autoras que trazem uma perspectiva feminina às tipologias de personagens. No melodrama cinematográfico da América Latina, por exemplo, Oroz (1992) identificou seis protótipos femininos.

Tabela 6. Protótipos femininos do melodrama cinematográfico da América Latina, segundo Oroz (1992)

Mãe Figura mítica da sociedade judaico-cristã. Tem Virgem Maria como símbolo. Representa a segurança, o abrigo e também o sufocamento no caso da mãe que sufoca seu genitor, o devora e castra. Irmã É uma continuação da mãe. Quando é a irmã mais velha, desempenha o papel da mãe, faz o trabalho na ausência desta, como uma empregada. Namorada É parecida com a irmã, mas mais sexualizada (um erotismo reservado para o futuro). Muito paciente e passiva. Esposa Continuação da mãe, assexuada, cuida da casa e dos filhos. Respeita a autoridade do marido. É a guardiã do lar. É dependente econômica em relação ao marido. Traz a ideia de família do século XVIII, do sentimental/privado. Má e/ou prostituta A mulher fora do espaço privado e dos padrões machistas. Introduz drama e ação à narrativa. Amada Representa a realização do amor carnal e romantismo sem contradição. Desequilibra a estrutura dramática e traz a promessa de felicidade eterna para o homem por ela apaixonado.

De acordo com a autora, o melodrama é um retrato das relações patriarcais, no qual a esfera pública é destinada ao masculino e a instância privada, ao feminino. Oroz fala de uma perspectiva em que o cinema latino era mais machista do que é atualmente, na qual o homem exercia a figura do herói e a mulher era sempre coadjuvante. É possível perceber tal relação na passividade das nomenclaturas dos protótipos, como “a amada”, tratada por ela como o equivalente à heroína. Não sabemos se tal visão se deve ao contexto machista ou também a um posicionamento (consciente ou não) da própria autora, visto que muitos

124 dos filmes por ela citados parecem, em seus títulos, serem protagonizados por mulheres, por exemplo La mujer sin alma, La mujer del puerto, Doña Barbra, entre outros. Independente disso, é útil para a nossa pesquisa, particularmente, o protótipo da má e/ou prostituta Este é um protótipo do temido tanto pelos homens quanto pelas mulheres. É considerado inferior e constitui um mau exemplo. É também algo perigoso, pois, se for provocado vingar-se-á. Sua relação com o prazer sexual liga-se à bruxaria/heresia. Por isto, frequentemente se diz que o personagem que encarna o protótipo “tem o diabo no corpo”. A má e/ou prostituta representa uma força de rebeldia feminina dentro dos padrões patriarcais. (OROZ, 1992, p. 66 e 67).

Mais uma vez essa figura está para as vilãs e periguetes, em partes. Além dela, a mãe pode servir ao nosso caso. Por outro lado, as outras figuras levantadas pela autora não se aplicam ao perfil das personagens que tratamos, mais modernas e independentes. Ainda assim, para ampliar o olhar feminino, trouxemos outras autoras que abordam tipologias femininas na ficção. Maureen Murdock e Victoria Lynn Schmidt trouxeram importantes contribuições nessa perspectiva. A primeira formulou uma jornada da heroína, e a segunda, posteriormente, completou o arco da heroína da primeira.25 Desse modo, selecionamos a autora mais recente. Schmidt (2012), baseada nas tipologias junguianas do ser humano, apresenta alguns arquétipos femininos presentes em romances. A autora os dois tipos junguianos: extrovertido e introvertido; e as quatro funções do autor: sensação, pensamento, intuição e sentimento para caracterizá-los. Sua proposta dialoga com o esquema de pessoa trazido por Smith (2004), pois atribui qualidades humanas às personagens de modo mais direto, além de trazer a relação com séries televisivas. Ademais, cada arquétipo por ela pontuado pode se apresentar como heroína ou vilã. Ou seja, há maior flexibilidade. São oito no total. Tabela 7. Arquétipos femininos em romances, de acordo com Schmidt (2012). Musa sedutora a musa sedutora: é o centro das atenções, inteligente e criativa. Gosta de sexo, amor, seu corpo e sentimentos profundos. Por exemplo, a figura histórica Cleópatra. Como vilã pode ser uma femme fatale. É

25 Informações disponíveis no blog de Renato Prelorentzou do Estadão. Fonte: . Acesso em: 10 de abril de 2018.

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extrovertida e a sua principal função é a sensação. Amazona 26 ama a natureza, animais e valoriza o sexo feminino. É determinada, autossuficiente e luta pelo que quer. Por exemplo, a personagem Xena da série Xena: Worrior Princess. Como vilã ela se assemelha ao ser mitológico Górgona. É extrovertida e apresenta as funções sentimento e intuição. Filha do pai ama a cidade, prefere amizade com homens e faz tudo pela equipe. É confiante e intelectual. Exemplo: a personagem Kathryn Janeway da série americana Star Trek. Como vilã pode ser uma traidora. É extrovertida e tem as funções pensamento e sensação.

Mantenedora ajuda as pessoas, como crianças, estudantes ou pacientes. Exemplos: a personagem Carol Brady do sitcom americano Brady Bunch. Como vilã é a mãe supercontroladora. É extrovertida e apresenta a função sentimento. A autora pontua que esse arquétipo pode ser mãe, professora de crianças, trabalhadora voluntária ou assistente social. Matriarca ama estar com a família, gosta de se divertir, é comprometida com o casamento e pode comandar um negócio da família. Exemplo: Roseanne Conner do sitcom americano Roseanne. Vilã: mulher desprezada, agressiva e que precisa estar no controle. É extrovertida e tem as funções sensação e sentimento. Mística adora estar sozinha, tenta manter a paz, presta atenção em detalhes e é espiritualizada. Exemplo: Phoebe do sitcom americano Friends. Como vilã é a traidora que usa uma persona falsa para enganar os outros. É introvertida e suas funções são a sentimento e a intuição. Messias Feminina se preocupa mais com os outros do que consigo mesma. Possui um sistema de

26 “No tempo da Conquista da América, século XVI, muitos pensaram que a terra das amazonas ficasse fisicamente ao sul do rio Amazonas (num território que hoje pertence ao Brasil), pois a expedição espanhola que o explorou no ano de 1541 relatou ter encontrado uma tribo de mulheres guerreiras que lideravam com grande coragem os índios da região na luta contra os espanhóis. Foi assim que o rio ganhou seu nome.” (WOLFF, 2013, p.424).

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crenças forte, acredita na imortalidade. Exemplo: a figura histórica Joana d´Arc. Como vilã pode ser uma destruidora. É introvertida e intuitiva. Donzela gosta de ir em festas e de novas sensações. Precisa de proteção e talvez seja próxima de sua mãe. Exemplo: Lucy do sitcom americano I love Lucy. Vilã: adolescente problema autocentrada, fora de controle e irresponsável. É introvertida e tem a sensação como função.

A musa sedutora pode ser relacionada com a vilã e/ou prostituta de Oroz (1992), com a arrivista do amor do folhetim (MEYER,1996), com o pícaro de Vogler (2006), o bobo de Martín-Barbero (2009) e, por conseguinte, com a periguete da telenovela e as vilãs Carminha e Atena. Como apontado, para o nosso caso, é possível tratar de duas variações, a musa sedutora periguete e a femme fatale. A periguete seria uma variação da vilã. Ressaltamos que nem sempre a periguete é uma arrivista (TONDATO; VILAÇA, 2017). Muitas vezes, as características principais estão na vestimenta e no fato de serem namoradeiras, como Beverly e Olenka, ou na profissão e busca por fama como Alisson e Ninfa. É possível relacionar a donzela à mocinha melodramática, que ascende socialmente durante a trama, muitas vezes por meio do amor, correspondendo ao que Almeida (2003, p.188) chama de “atitude de Cinderela batalhadora”, à vítima de Martín-Barbero (2009) e à mulher pobre e humilde de Meyer (1996), como Tóia, Tessália e Lara. Na categoria amazona, podemos encaixar as personagens que são uma variação da mocinha melodramática. São mulheres um pouco mais velhas que essas últimas, têm vida amorosa ativa ou um parceiro com quem se reconciliam no final, são autossuficientes, de personalidade forte, que trabalham, vivem sozinhas (ou são chefes de família) e ajudam as mulheres próximas, como Monalisa (que acolhe Tessália, Olenka e defende sua amiga Ivana), Janete e Indira. Também Domingas pode entrar nessa classificação, já que se torna independente emocionalmente e se fortalece depois de tempos sofrendo maus-tratos do marido. Inclusive, Janete e Domingas passam a trabalhar juntas em determinado momento da trama e defendem uma à outra. No lugar de amazona se aplica melhor ao

127 corpus estudado a nomenclatura “mulher valente” que tomamos emprestado de Fonseca (2000). 27 Encontramos similaridades entre a mantenedora e as personagens Djanira de A Regra do Jogo, que é professora de crianças, e mãe Lucinda de Avenida Brasil que trabalha no lixão e acolhe as crianças que ali estão. A classificação matriarca, equivalente à mãe de Oroz (1992), corresponde às personagens Muricy de Avenida Brasil, Adisabeba de A Regra do Jogo, Monalisa de Avenida Brasil e Janaina de Avenida Brasil. Carminha também pode ser considerada uma matriarca enquanto vive na mansão de Tufão, fingindo ser quem não é. Atribuímos a categoria messias feminina para as evangélicas Dolores e Indira, dadas as devidas diferenças, inclusive o fato de Indira não ser introvertida. A nomenclatura “religiosas” se aplica ao caso e abarca Carminha, que finge ser muito católica. Em outra obra, Schmidt (2001) faz uma relação entre esses arquétipos e seres mitológicos, além de trazer algumas tipologias para as personagens de apoio. A musa sedutora ela relaciona com a deusa grega do amor Afrodite. A Amazona seria como Ártemis, deusa grega ligada à vida selvagem. A filha do pai se assemelha a Atena28, deusa da sabedoria e da arte. O símbolo das colheitas e da fertilidade, Demeter, mãe de Core, é a mantenedora. Hera, esposa traída de Zeus, é a matriarca. Héstia, a deusa do fogo, está para a mística. A messias feminina encontra similaridade com Isis, a deusa egípcia que guia o oculto do pensamento à luz. E, por fim, a donzela identifica-se com Perséfone, antiga Core filha de Deméter que é raptada por Hades. Embora não seja nossa intenção utilizar a fundo os arquétipos na pesquisa, é pertinente abordá-los uma vez que se relacionam com outras personagens comuns na literatura, no melodrama e a na telenovela, revelando, assim, de algum modo um imaginário humano bastante rico. Scott (1995) e Beauvoir (1970) destacaram a importância dos símbolos atribuídos às mulheres na reafirmação do domínio masculino.

27 Fonseca (200) aborda da imagem a mulher valente evocada nas narrativas de mulheres populares entrevistadas na Vila São João, bairro de Porto Alegre (RGS), a respeito de suas próprias reações à infidelidade do marido. A imagem de valentia está calcada, de certa forma, em características tidas culturalmente como masculinas, relacionadas a questões práticas, ação, atitude e liderança. 28 A vilã Atena de A Regra do Jogo, assim como a figura da filha do pai que Schmidt (2001) relacionada à deusa grega Atena, prefere amizades masculinas. Esse dado é explicitado no capítulo 10, quando ela conhece Romero. Mais que isso, a personagem demonstra falta de sororidade nesse episódio. Ela própria relaciona o seu nome escolhido, Atena, com a deusa grega no capítulo 14 e rejeita o seu verdadeiro nome que é Francineide.

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Schmidt (2001) aborda também as personagens de apoio que são usadas para desenvolver o conflito na história. Elas podem criar obstáculos para as heroínas ultrapassarem ou ajudá-las. A autora classifica essas personagens em três categorias: amigas, rivais e símbolos. Nos interessam as categorias amigas e rivais. A primeira, a autora decompõe nas subcategorias maga, mentora, melhor amiga e amante. A maga seria equivalente a uma sábia, que não apresenta tanta vontade de ajudar a heroína, é solitária como uma ermitã; a mentora é mais próxima da heroína, quer se envolver em seus problemas, mas pode exibir um aspecto negativo; a melhor amiga é a confidente que é capaz de atrapalhar a heroína sem intenção; já o/a amante pode ser um animal de estimação, ou um amor com o qual o heroína se envolve e desabafa. Diante disso, percebe-se que Djanira e mãe Lucinda são mentoras de Tóia e Nina, respectivamente. Adisabeba também desempenha o papel de mentora para Juliano e Tóia em alguns momentos. Já, Betânia é a melhor amiga de Nina e Olenka de Monalisa. Sueli, a personagem que não havia sido considerada antes, também pode ser classificada como a melhor amiga da vilã Atena. Na categoria rivais, a autora elenca o brincalhão, o bobo da corte, a nêmesis, o investigador, pessimista e o psicopata. O brincalhão equivale ao pícaro (VOGLER, 2006). Apesar das periguetes se assemelharem a esse tipo, não é possível encaixá-las nessa classificação em relação a uma protagonista, como personagem de apoio, pois elas têm suas próprias histórias. O bobo da corte é o bobo da Idade Média (BAKHTIN, 2010). Nêmesis é uma deusa da mitologia grega que traz a vingança divina. Na ficção pode ser uma personagem ciumenta, que desdenha e odeia a heroína. Por exemplo, Zezé desempenha a função de nêmesis em relação a Nina em Avenida Brasil, assim como Muricy assume papel parecido contra Monalisa.

Tabela 8. Algumas das personagens de apoio levantadas por Schmidt (2001). PERSONAGENS DE APOIO AMIGAS RIVAIS Maga Brincalhão Mentora Bobo da corte Melhor amiga Nêmesis Amante Investigador

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Pessimista Psicopata

Na classificação de personagens de apoio proposta por Schmidt (2001) não há o camaleão tratado por Vogler (2006), o qual utilizamos para classificar personagens como Ivana, Janaina e Conceição. Ivana tem um papel de apoio importante na trama principal de Avenida Brasil, mas que não se encaixa em um perfil exato a não ser o de camaleão. Sem casar-se com Ivana, Max, amante de Carminha, não poderia residir na mansão de Tufão. Janaina, a empregada de Tufão, ajuda-o a desmascarar Carminha no final. Conceição, empregada da mansão dos Stuart, tenta salvar Nelita e chama a polícia em um momento fundamental da trama. Acrescentamos a classificação empregada doméstica por tratar-se de uma figura clássica nas telenovelas. Temos a seguinte divisão. Mocinha melodramática: Tóia, Lara e Tessália. Mulher valente: Monalisa, Domingas, Indira e Janete. Musa sedutora femme fatale arrivista: Carminha e Atena. Musa sedutora periguete: Suelen, Ninfa, Alisson, Mel, Andressa, Beverly e Olenka Religiosa: Indira, Dolores e Carminha. Matriarca: Monalisa, Carminha, Muricy, Janaina e Adisabeba. Empregada doméstica: Zezé, Conceição, Dinorah e Janaina. Mantenedora: Djanira e Lucinda. Nêmesis (apoio): Muricy e Zezé. Camaleão (apoio): Janaina, Conceição e Ivana. Melhor amiga (apoio): Olenka, Sueli e Betânia. Mentora (apoio): Djanira, Lucinda e Adisabeba. Observa-se que estão unidas personagens que possuem diferentes níveis de protagonismo. É preciso diferenciá-las. De acordo com Sepulchre (2011), que se baseia no teórico Philippe Hamon, as personagens principais de uma trama são identificadas por um processo de diferenciação em relação às outras. São seis os procedimentos diferenciais para hierarquizá-las. Qualificação diferencial: as protagonistas exibem mais atributos e tem suas qualidades mais trabalhadas; distribuição diferencial: as personagens principais aparecem mais vezes e nos momentos mais importante da trama; autonomia diferencial: elas atuam sozinhas e também são capazes de se associar com muitas personagens; funcionalidade diferencial: a elas é reservada a ação determinante da história, dispõem de opositores na narrativa e precisam superar os problemas postos no início da trama;

130 predeterminação convencional: “Os heróis são portanto as personagens que reúnem os cânones do gênero” (SEPULCHRE, 2011, p. 119)29; e comentário explícito: as protagonistas são alvo de comentários das outras personagens, e até do narrador, que expõem seu modo de ser e agir, trazendo à tona uma função metalinguística. Diante disso, sabemos que Tóia é a heroína principal de A Regra do Jogo e que Atena (A Regra do Jogo) e Carminha (Avenida Brasil) têm status de personagens principais porque são as vilãs das tramas. As mentoras e mantenedoras Lucinda e Djanira têm destaque pois são fundamentais para a história principal. Como mentora Adisabeba é realçada. Monalisa, tem protagonismo no começo e no final da novela. Percebe-se nelas certas convenções do gênero, como propõe Sepulchre (2011), que permitem logo identificá-las, assim como as auxiliares de apoio. Mas, há aquelas que não se enquadram como protagonistas e nem auxiliares e também as auxiliares que têm suas próprias histórias paralelas. Como vimos na seção anterior, é difícil tratar de funções precisas em personagens de telenovela, devido à sua estrutura peculiar. As classificações de Martín-Barbero e Vogler (2006) sugerem funções claras porque tratam de contextos específicos, o primeiro considera um percurso melodramático padrão e o segundo um universo que gira em torno de um único herói. Vemos que a função da personagem nessa perspectiva só faz sentido em um conjunto, é depreendida na relação entre as personagens em dada narrativa, como propõem os estudos de Greimas e Propp. Trata-se da posição da personagem. Em Schmidt (2001; 2012), por outro lado, com exceção das personagens de apoio, vemos uma tipologia realizada por atributos, na qual todas estão no mesmo nível. Podemos tratar no nosso caso de personagem autônomas e dependentes. Ou seja, aquelas que têm uma história própria e as que não. Sem contar as protagonistas e de destaque já comentadas, temos como autônomas Adisabeba, Janete, Domingas, Indira, Olenka (também apoio), Lara, Suelen, Muricy (também apoio), Ninfa, Alisson, Andressa, Mel, Tessália, Janaina (também apoio), Conceição (também apoio) e Dolores As dependentes são: Zezé (apoio), Dinorah, Beverly, Ivana (apoio), Sueli (apoio) e Betânia (apoio). Dinorah e Beverly não são consideradas apoio e não têm histórias próprias. Dinorah, de A Regra do Jogo, possui mais visibilidade, apresenta mais falas, mas só existe no universo da cobertura de Feliciano, não tem família e amiga, nem par romântico e

29 Le héros est donc le personnage qui rencontre les canons du genre”. (SEPULCHRE, 2011, p. 119).

131 relacionamentos. O apartamento de Feliciano exerce um papel peculiar nesse sentido, quase como um teatro à parte do restante da novela. Beverly, por sua vez, aparece menos que Dinorah e vive alguns relacionamentos esporádicos no bairro Divino, e como a primeira não chega a ter uma história própria, motivação ou conflito. Há outra questão importante, a temporalidade. Por exemplo, na classificação mulher valente, há personagens que se enquadram claramente em uma variação da mocinha melodramática, como Domingas e Monalisa. Ambas passam por provações, por sofrimentos e no final encontram a felicidade no amor, além das características de força, autossuficiência e de idade mais elevada em relação às mocinhas comuns. Por outro lado, temos Indira, que apenas apresenta os atributos da mulher valente, mas não passa pelas mesmas provações e transformações. Indira é mais caracterizada por seus atributos e vincula-se ao humor. Há outras em situação parecida que não têm motivação específica e dispõem de poucas peripécias, apesar de apresentarem uma existência autônoma, como Muricy, Adisabeba, Olenka, Janete, Ninfa, Alisson, Mel, Andressa, Tessália e Suelen. Também existem nuanças, Monalisa, por exemplo, tem duas temporalidades diferentes. A personagem passa por momentos importantes no início e no fim da novela. No meio da trama, ela se apresenta de forma mais estável. Atena, por sua vez, enfrenta muitos acontecimentos, mas não se transforma, termina e começa a trama praticamente igual. Desse modo, cabe discutirmos o conceito de temporalidade na ficção. Apesar de recorrermos a autores que abordam o tema na literatura, acreditamos na possibilidade de transpor suas teorias para o caso televisivo.

3.3.Temporalidades da personagem popular [...] a personagem, na sua diacronia, é ideologicamente um ser utópico, embora sincronicamente não consiga esconder sua analogia estrutural, quer com posturas ideológicas existentes, quer com ideologias em formação, ainda não instauradas, mas passiveis de existência futura. (SEGOLIN, 1978, p. 127).

De acordo com Segolin (1978), as personagens literárias podem ser identificadas pelos seus diferentes graus de funcionalidade dentro de uma narrativa, podendo, em seus extremos, ser fortemente caracterizadas por suas funções ou por seus atributos. Essas propriedades interferem na temporalidade narrativa desses seres fictícios, proporcionando a sensação de um tempo linear, sintagmático, ou simultâneo, paradigmático. O autor compreende que há um percurso evolutivo histórico da personagem literária, que se inicia

132 com a personagem-função dos contos analisados por Propp à anti-personagem presente na literatura moderna. Propp (1978) denomina como personagem-função aquela marcada pelo desencadeamento de ações sucessivas, que culminam em uma transformação de estado. Propp também identifica, em contraposição, a personagem-estado, ser fictício desfuncionalizado (em diferentes graus), cujos atributos se sobressaem às suas ações e a intriga é gerada por alguma qualidade específica, sem transformações de estado evidentes. Porém, não é sempre que há uma divisão clara, pois, as personagens podem ser ambíguas, ou seja, portar o comportamento tanto funcional como de estado. Quanto mais desprovida de uma função, mais a personagem aponta para o seu “fazer-se verbal”, à organização textual. Em um aspecto mais desenvolvido, explica o autor, tem-se a personagem-texto, que atende a um processo maior de desreferencialização e anulação da intriga. Geralmente, o leitor é levado a ignorar o texto e a guiar-se pelas ações da personagem, o que não ocorre com a personagem-texto. Trata- se de um sincretismo actancial que visa a “[...] submeter os vários atores da obra à funcionalidade básica de um texto-actante, ocupado em compor a trama e a história de seu fazer textual”. (SEGOLIN, 1978, p. 85). Os atores estão, desse modo, funcionalmente descaracterizados na simultaneidade do texto, mas, ainda pode haver referência ao ser humano. Segolin aborda a anti-personagem, que só se identifica com o texto em sua disfunção, enquanto a personagem-texto é um produto de transferência entre a funcionalidade da personagem e a funcionalidade do texto. Pode-se dizer que se trata de uma personagem que aponta para o próprio texto, em um processo de metalinguagem. “A morte, porém, só se dá, quando a narrativa remanipula os predicados funcionais e/ou atributivos das personagens, com o intuito específico de pôr a nu a ilusão de sua referencialidade”. (SEGOLIN, 1978, p. 99). Segolin argumenta ainda que a personagem-função pode ser caracterizada como um “legi-signo”, no sentido de assumir uma espécie de lei, de tipo geral nas narrativas “[...] lei que a faz não só modelo inconfundível e único do que se costuma chamar de personagem, mas também o índice de uma postura ideológica consagrada, falsamente identificada com a realidade do homem e do próprio mundo”. (SEGOLIN, 1978, p. 125). Por outro lado, as personagens-estado se apresentam como um “quali-signo”, “[..] alheios a qualquer construção formativa definida e unívoca, que não apenas se opõem à

133 personagem-função, mas também denotam uma formação-abertura denunciadora de novas visões de mundo.” (SEGOLIN, 1978, p. 125). Segolin (1978) observa que a personagem-estado traz uma visão de mundo diferente da lógica causal, como contestação desta. A narrativa moderna, na visão do estudioso, ao trazer a metalinguagem e a textualização da personagem modifica o modo tradicional de formar a narrativa, conectando o texto com as propostas da ciência moderna, sobre um mundo sem certezas. Embora trate a personagem-estado como um ser mais complexo, que tenta subverter a ordem narrativa tradicional, é possível apropriarmo-nos da expressão com referência a determinadas personagens na telenovela que não vivenciam grandes acontecimentos na trama. São personagens que tendem a ser menos complexas, que chamam mais a atenção por suas características, e em seu fazer-se audiovisual apresentam menos dinamicidade e mais simultaneidade, com cenas com a duração de diálogos, assuntos cotidianos, falas mais espontâneas e naturais. Porém, uma mesma personagem pode vivenciar tempos diferentes dentro na narrativa, momentos de linearidade ou estáticos. O que vai marcar essas mudanças também é o espaço. Por isso, a noção de cronotopo, união de tempo e espaço, é importante para a questão. Bakhtin (2010) se baseou na teoria da relatividade do físico Albert Einstein para tratar do cronotopo. Nesse conceito o tempo é visto como a quarta dimensão do espaço. “Os índices do tempo transparecem no espaço e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo”. (BAKHTIN, 2011, p. 211). O cronotopo condensa uma visão de mundo, tem caráter conteudístico-formal e apresenta sentido figurativo ou temático, além de ser o centro organizador dos principais acontecimentos da história. De acordo com Bakhtin (2010), alguns motivos cronotópicos podem ser encontrados em vários gêneros e romances, como, por exemplo, o encontro (personagens se cruzam na mesma hora e no mesmo lugar em um momento decisivo), a despedida, a separação, a perda, a obtenção, as buscas, a descoberta, os reconhecimentos, o cronotopo da estrada (encontros e aventuras pelo caminho), entre outros. Bakhtin (2010) retoma a história do romance para abordar o cronotopo e possibilita que apreendamos a construção do herói ficcional de acordo com a noção de temporalidade e espacialidade. O autor explica que na antiguidade, no romance grego de aventuras e provações, o homem era passivo e imutável. Geralmente, o herói e a heroína passavam por diversas provações até se encontrarem novamente no final. Entre um ponto de partida

134 e um ponto de chegada, tinha-se a sensação de que o tempo não havia passado. O acaso e forças não humanas se faziam presentes em uma história ambientada em diferentes espaços geográficos (espaço abstrato), na qual o tempo biográfico não era referência. Bakhtin argumenta que o homem nesse romance era solitário, não fazia parte de um todo social. Trata-se de um cronotopo de aventura, “assim, o cronotopo de aventuras caracteriza-se pela ligação técnica e abstrata do espaço e do tempo, pela reversibilidade dos momentos da série temporal e pela sua possibilidade de transferência no espaço”. (BAKHTIN, 2010, p. 225). No romance antigo de aventuras e costumes, por sua vez, havia a união entre o tempo de aventura e o de costumes. O herói passava por transformações que permitiam a ele estar no cotidiano, tido como inferior, como um observador, um terceiro. Em sua forma normal, ou evoluída, o herói vivia acontecimentos exclusivos, as aventuras fora do dia a dia comum. Bakhtin (2010) cita como exemplo a obra Asno de ouro, de Lúcio Apuleio, O teórico russo menciona também as transformações de papéis, como do mendigo ao rico. O trapaceiro e o aventureiro se enquadram nesse tipo de herói, pois são aqueles, explica Bakhtin, que começam a vida por baixo, em contato com os universos mais ordinários, até conseguirem atingir o topo da vida privada. Outras figuras desse romance assumem a posição de testemunha da vida privada inteiramente, são elas: o servidor/criado (que muda de patrão muitas vezes), a prostituta, a cortesã e a alcoviteira. Há nesse romance uma “[...] contradição entre o aspecto público da própria forma literária e o espaço privado do seu conteúdo.”. (BAKHTIN 2010, p. 244). O autor explica que a vida cotidiana no romance antigo de aventuras e costumes não é cíclico, pois está isolado da natureza, o tempo não tem unidade e integridade. Bakhtin compara esse tipo de romance com as obras de alguns realistas franceses, nas quais o aventureiro e o parvenu (arrivista) assumem os papéis principais; e em segundo plano estão os “terceiros” da vida privada, como cortesãs, prostitutas, alcoviteiras, criados, médicos e tabeliães. O terceiro romance antigo estudado por Bakhtin (2010) é o biográfico e autobiográfico, que se divide em dois tipos: o retórico e o platônico, no qual o tempo biográfico real dissolve-se em um tempo ideal de transformação humana. Ambos eram realizados em praça pública, conectados com os acontecimentos políticos e submetidos ao controle público-estatal. Nesses romances, uma transformação do espaço público ao privado tem início quando as formas autobiográficas começam a manifestar desagregação

135 com o espaço exterior público e a exprimir certa consciência privada. A representação satírico-irônica, as cartas de Cícero a Atticus e o estilo estoico de biografia influenciam esse movimento. Porém, mesmo assim ainda não há o homem solitário, que surgirá apenas na Idade Média. Ao tratar da Idade Média, Bakhtin (2010) discute o romance de cavalaria, o romance da Baixa Idade Média e as formas folclóricas satírico-paródicas. Nesse período, ressalta a ocorrência de uma inversão histórica do folclore antigo – marcado pela plenitude do tempo - que já estava em desagregação nos romances antigos devido à estratificação social. “Porém essas formas de plenitude folclórica de tempo, apesar de tudo ainda atuavam no romance antigo”. (BAKHTIN, 2010, p, 265). A inversão histórica se dá no momento em que o pensamento mitológico é colocado no passado, como uma idade de ouro localizada em algum ponto distante do mundo, quando, na verdade, no folclore antigo trata-se de um tempo voltado para o futuro para o qual se planta e colhe. É um tempo produtivo, fecundo, uno e cíclico, no qual a vida coletiva do trabalho agrícola predomina. A vida humana e a natureza apresentam aqui as mesmas categorias de percepção, pois o dia a dia desse homem está ligado à terra e à natureza, seus objetivos são práticos e o tempo bastante espacial e concreto. Não havia separação entre vida cotidiana e vida histórica do homem, tudo estava relacionado ao trabalho social “[...] a comida, a bebida, a copulação, o nascimento e a morte não eram momentos da vida privada, mas um problema comum, eram “históricos” [...]”. (BAKHTIN, 2010, p. 319). Nas superestruturas da Idade Média, por sua vez, o tempo folclórico antigo dá lugar ao atemporal e ao eterno “[...] como se eles já existissem, como se fossem contemporâneos. Cada uma dessas formas esvazia e rarefaz o futuro a seu modo, deixa-o exangue.” (BAKHIN, 2010, p. 265). Outra forma de inversão do folclore popular é a escatologia. Trata-se de uma relação mitológica e literária com o futuro que é trazido para um presente bem material. Aqui, o homem do folclore insere-se totalmente no espaço e no tempo. A grandeza e a força aparecem relacionadas com as dimensões temporais e espaciais. Por exemplo, um homem grandioso em sua personalidade o será também em seu corpo e passos. Voltando aos romances da Idade Média, nos romances de cavalaria, Bakhtin (2010) destaca que o herói é individual e representativo, ou seja, ele é único, diferente do romance grego no qual os heróis se pareciam uns com os outros. Ao mesmo tempo, cada

136 herói de cavalaria rende vários romances. São heróis de ciclos. Assemelha-se ao protagonista épico. Esse mundo é muito simbólico e se aproxima da fábula oriental. Um exemplo citado pelo teórico é Tristão e Isolda. O cronotopo no romance de cavalarias é um mundo maravilhoso em um tempo de aventuras. O tempo é subjetivo e distorcido, como nos sonhos. Nos romances antigos, a medida de tempo era clara, como um dia ser um dia e uma hora ser uma hora. Na Baixa Idade Média, Bakhtin distingue o romance marcado pela vertical medieval, no qual todo mundo se une no mesmo espaço-tempo em uma interpretação simbólica, de modo a destacar as contradições da época. Pessoas de todas as classes sociais se misturam em um ato. Por exemplo, o inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri. “A lógica temporal desse mundo é a pura simultaneidade de tudo (ou a “coexistência de tudo na eternidade”).” (BAKHTIN, 2010, p. 273). Apesar da atemporalidade e simultaneidade, a imagem das pessoas que fazem parte desse mundo é histórica, há sinais do tempo e traços de época. Porém, essas diferentes pessoas são obrigadas a permanecer em um mesmo lugar eterno e imóvel da vertical atemporal. De acordo com Bakhtin, depois de Dante, a tentativa mais satisfatória nesse gênero foi a do escritor russo Dostoiévski. Já as formas folclóricas satírica-paródicas coexistiram com a grande literatura da Baixa Idade Média. O autor destaca o romance picaresco. Nessa literatura, são marcantes as figuras do bobo, bufão e trapaceiro que, posteriormente, vão influenciar o romance europeu. Essas personagens possuem um significado que não é literal e sim figurativo, afirma Bakhtin (2010). São figuras provindas do teatro e da praça pública para o romance. Elas são como estrangeiras nesse mundo, não se solidarizam a nenhuma situação e apontam sempre o avesso e o falso de tudo. O estudioso salienta que essas personagens podem ser uma espécie de máscara do autor, que trazem a sua forma e posição de ver a vida. O cronotopo é o da praça pública e dos palcos de teatro. Há nessas três figuras uma denúncia dos convencionalismos feudais. O bufão é inteligente e pode se apresentar como um vilão, um aprendiz, um jovem clérigo ou um vagabundo. O bufão faz zombarias paródicas, enquanto o bobo contraria as convenções feudais com sua ingenuidade e incompreensão. Já o trapaceiro se assemelha ao herói do romance antigo de aventura e costumes, diferente dos dois primeiros, tem ligação com a realidade. Posteriormente, no Renascimento, o autor conta que:

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[...] as formas de romance que mencionamos destruíram aquela vertical do além, que tinha decomposto as formas do mundo espaço-temporal e o seu conteúdo qualitativo e vivo. Elas prepararam o restabelecimento da entidade material e espaço-temporal do mundo num estágio novo de desenvolvimento, mais aprofundado e complicado. Elas prepararam a assimilação pelo romance de um mundo onde, na mesma época, descobria-se a América, o caminho marítimo para as índias, um mundo que se abria às novas ciências naturais e à nova matemática. Preparava- se uma visão e uma representação do tempo totalmente nova do romance. (BAKHTIN, 2010, p. 281).

A esse período pertence Gargantua e Pantagruel de Rabelais, autor fundamental para o construto teórico Bakhtin. A escatologia está presente em Rabelais, com ampliações espaço-temporais, por exemplo. Tudo o que é positivo qualitativamente apresenta essa importância espaço-temporalmente. E o contrário também, o negativo é comprimido, aniquilado. São imagens que se opõem à visão da Igreja feudal, que enxergava a realidade espaço-temporal como “[...] um princípio fútil, frágil, pecaminoso, onde o grande é simbolizado pelo pequeno, o forte pelo fraco e pelo impotente, o eterno pelo instante que passa.” (BAKHTIN, 2010, p. 283). Rabelais, em oposição à visão do além da vertical medieval e com base no folclore antigo, cria um novo espaço-tempo, reconstituindo o mundo real para um homem novo e inteiro (corporal e espiritual). Desse modo, por meio de um realismo fantástico, Rabelais utiliza vizinhanças e ligações inesperadas, com a destruição do velho e elaboração positiva do novo. O riso rabelaisiano também é marcante e está relacionado aos gêneros medievais, onde há o bufão, o bobo e o trapaceiro. “Mas o riso de Rabelais não rompe apenas os laços tradicionais e elimina as camadas intermediárias ideais, ele revela a proximidade rude e direta daquilo que as pessoas separam por meio da mentira e do farisaísmo”. (BAKHTIN, 2010, p. 284). Bakhtin analisa as séries de Rabelais do corpo humano, da indumentária, da nutrição, da bebida, as séries sexuais, da morte e dos excrementos. O carnal do homem se opõe à visão ascética do além, devolvendo ao corpo a sua materialidade. A série comida e bebida, segundo Bakhtin, passa por quase todos os temas do romance. A estrutura fisiológica é como uma personagem, afirma Bakhtin (2010). O grotesco se encontra na precisão anatômica e fisiológica e também há a abordagem bufa. O fantástico está presente nas analogias.

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A morte também é retratada de forma bufa, próxima ao nascimento e ao riso. Em outros momentos a morte é exibida não grotescamente, mas como o fantástico heroificante. O problema de Rabelais é reunir o mundo que se desagrega (como resultado da decomposição da visão do mundo medieval) sobre uma nova base material. A entidade e o caráter acabado do mundo medieval (como eles ainda estavam vivos na obra sintética de Dante) estão destruídos. Também está destruída a concepção histórica da Idade Média (a criação do mundo, o pecado original, o primeiro avento de Cristo, a redenção, o segundo advento, o juízo final), concepção onde o tempo real era desvalorizado e dissolvido em categorias atemporais. Nesta visão, do mundo, o tempo era um princípio que apenas destruía, aniquilava e nada criava. O novo mundo não tinha nada que ver com essa percepção de tempo. Era preciso encontrar uma nova forma de tempo e uma nova relação entre o tempo e o espaço, o novo espaço terrestre (“Os quadros do velho orbis terrarum estavam quebrados; em suma, era apenas então que a terra era descoberta...”). Precisava-se de um novo cronotopo que permitisse ligar a vida real (a História) com a terra real. Era preciso contrapor ao escatologismo um tempo produtivamente fértil, um tempo medido pela construção, pelo crescimento, e não pela destruição. Os fundamentos deste tempo construtivo aparecem delineados nas imagens e nos temas do folclore. (BAKHTIN, 2010, p. 316).

Conforme a sociedade se divide em classes e as relações monetárias avançam, a esfera do consumo se separa da vida social, demonstra Bakhtin (2010). A comida, bebida, ato sexual e morte acabam sendo incluídos na vida cotidiana, já individualizada e isolada da história, como realidades vulgares do dia a dia. Também há o desenvolvimento de uma sublimação das questões diárias, por exemplo a bebida e a comida na poesia. O motivo básico da série individual e privada passa a ser o amor – a sublimação do sexo e da fecundação. A morte adquire o sentido de um fim absoluto do ponto de vista individual e privado. A natureza se torna o lugar de ação do homem, em paisagem e fragmenta-se em metáforas, servindo para sublimar as questões individuais que não se relacionam mais com a natureza. Surge também a série do tempo histórico, com foco na vida de nação e do Estado. Tem-se a vida individual em contraposição ao tempo histórico. (BAKHTIN, 2010). Assim, forma-se o romance idílico (três formas: amoroso, familiar e do trabalho agrícola ou regional), no qual a vida e os acontecimentos estão atrelados a um lugar, como o país de origem e sua natureza. Os limites do tempo são determinados por essa unidade de lugar. Há um caráter rítmico cíclico e temáticas circunscritas a motivos básicos da

139 vida, como amor, nascimento, morte, casamento, trabalho, comida, bebida e idades de forma sublimada. A vida humana se funde com a vida da natureza no cronotopo idílico. O tempo folclórico é apresentado pelo prisma da evolução da consciência da sociedade, como condição ideal e perdida da vida humana. Bakhtin explana que a mesma questão aparece de outra forma em autores realistas do século XIX: Stendhal, Balzac, Flaubert e Gontcharóv. Em suas obras, há a ruina da concepção idílica, que não se encaixa no novo mundo capitalista que, por sua vez, se revela inumano, desprovido de princípios morais e das relações sociais antigas que agora estão contaminadas pela relação monetária. “[...] o homem positivo do mundo idílico torna-se cômico, lamentável e supérfluo, ou ele perece, ou transforma-se num abutre egoísta.” (BAKHTIN, 2010, p. 341). É pertinente ressaltar a oposição entre sublime e ordinário, cotidiano e aventura na constituição do cronotopo no romance e de seus heróis. Percebe-se na história do romance a tensão entre espaço público e privado como reflexo social. O homem ordinário tido como o “terceiro” da vida privada no romance de aventuras e costumes - presente também nas figuras medievais do bufão, trapaceiro e bobo, no Renascimento em Rabelais e posteriormente nos romances realistas - é o contrário do herói clássico grego e do sublime romântico. Seria um anti-herói. Há nessa relação a oposição entre o culto e o popular comentada no primeiro capítulo. É possível transpor um pouco dessa lógica ao melodrama e à telenovela, por conseguinte. “[...] os fragmentos temporais dos episódios da vida cotidiana estão dispostos como que perpendicularmente à série principal que sustenta o romance: culpa-castigo-redenção-purificação-beatitude (precisamente, no momento do castigo e da redenção). O tempo da vida corrente não é paralelo à série principal e não se entrelaça com ela, entretanto, cada fragmento seu (nos quais esse tempo se decompõe) é perpendicular à série principal, cruzando com ela em ângulo reto”. (BAKHTIN, 2010, p. 248).

Nesta citação, Bakhtin se refere ao romance antigo de aventuras e de costumes, mas podemos considerá-la para o nosso caso em que heroínas melodramáticas se contrapõem a personagens cujas narrativas são estáticas e baseadas em situações triviais. Inclusive, convém para refletir sobre as representações de classe social no caso da mulher popular. Desse modo, realizamos a seguinte classificação a partir de Bakhtin.

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Tabela 9. Lista de personagens baseada em Bakhtin (2010) PERSONAGEM CARACTERÍSTICAS Herói Enfrenta provações e adversidades. Está acima do cotidiano. Sublimação. Bobo/anti-herói Ser simbólico, tido como um estrangeiro da vida. Ingênuo e simplório. Bufão /anti-herói Ser simbólico, tido como um estrangeiro da vida. Inteligente. Pode ser um vilão, um aprendiz, um vagabundo. Faz zombarias paródicas Trapaceiro/anti-herói Ao contrário do bobo e do bufão, tem mais relação com a realidade. Pode ser um arrivista ou malandro. Terceiros da vida privada Criados, alcoviteiras, cortesãs, prostitutas, médicos, tabeliães, entre outros que assumem a posição de observador da vida privada.

É possível relacionar o terceiro da vida privada com a figura da empregada doméstica nas telenovelas, e o trapaceiro com as periguetes e as vilãs. A paródia realizada pelo bufão está presente na sátira religiosa que o autor João Emanuel Carneiro faz por meio das personagens Carminha e Dolores. A primeira que é vilã carrega aspectos paródicos e irônicos em sua caracterização. Mas, as personagens Nilo (José de Abreu) de Avenida Brasil e Ascânio () de A Regra do Jogo se aproximam mais do bufão. O terceiro na vida privada são personagens que estão inseridas, de alguma forma, na intimidade alheia. Já as trapaceiras tentam se apropriar de uma vida privada que não é a delas, fazem de tudo para se dar bem, desse modo, às vezes elas assumem a posição de terceiras. Nas periguetes analisadas, há o humor nessa abordagem e, como veremos, a temática da moradia é uma constante em suas histórias. É pertinente destacar que em A Regra do Jogo algumas personagens são postas como terceiras na vida privada logo nos primeiros capítulos, como Domingas e Indira que aparecem muito pouco, quando cumprimentam a personagem principal Tóia ou ajudam Djanira que passa mal na rua, sem serem apresentadas. Mas, depois essas mesmas

141 personagens têm suas intimidades apresentadas. Nesse caso, o telespectador se torna o terceiro da vida privada quando é conduzido às suas casas após os primeiros capítulos. Ademais, essa telenovela com a técnica da caixa cênica e câmeras escondidas oferece a sensação de estarmos espiando o outro, quando a personagem passa por detrás de objetos e a captamos por frestas, por exemplo. A teoria de Bakhtin sobre a vida pública, privada, cotidiano e aventura no romance de aventuras e costumes não pode ser aplicada totalmente na telenovela, pois esta está fundamentada no cotidiano (MOTTER, 2003). O que diferencia as personagens nesse sentido é a forma como esse cotidiano é tratado. Há gradações entre aventura e cotidiano. O riso assume um papel importante nesse aspecto. O cotidiano não é ruim a priori e não significa um castigo como no caso do romance de aventuras e costumes. Também nas telenovelas estudadas o espaço geográfico não é abstrato ou maravilhoso e sim concreto, no Rio de Janeiro, e o tempo é contemporâneo. Nesse sentido, observa-se nas personagens Tóia e Djanira o reforço de atividades cotidianas de forma naturalizada, sem recorrer ao riso. Djanira lava as calcinhas de sua filha adotiva Tóia no primeiro capítulo e, em outra ocasião, depila as axilas em frente ao espelho, por exemplo. A permanência em um mesmo local (casa e bairro), o deslocamento das personagens por diferentes espaços (externo, interno, casa, trabalho, cadeia, viagens, entre outros), a temática explorada, os acontecimentos e a construção estética audiovisual – montagem, ritmo, música, por exemplo – são os responsáveis por conferir a sensação de diferentes temporalidades, de linearidade ou simultaneidade. Desse modo, mantemos a nomenclatura cronotopo de aventuras para tratar das personagens que vivem acontecimentos excepcionais. E ao invés de costume ou cotidiano, adotaremos o termo cronotopo trivial, relacionado às que vivenciam assuntos corriqueiros. Neste último cronotopo, encontram-se personagens que dialogam com o grotesco e o realismo fantástico comentados por Bakhtin (2010). Percebe-se um outo tipo de cronotopo nas mentoras e mantenedoras. Djanira e Lucinda estão bastante localizadas em seus espaços, mas vivem ou viveram (quando a trama remete a ocorrências importantes do passado) problemas pouco comuns, relevantes para a história principal. Essas personagens são como um elo entre o passado e o presente das protagonistas, elas simbolizam o lugar de origem da heroína e, no caso de Lucinda, também da vilã. Djanira ainda passa por mais percalços no tempo presente, como a doença inesperada, o aparecimento do amante fugitivo e do filho que ela esconde.

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Podemos comparar a temporalidade e espacialidade de ambas com o cronotopo idílico teorizado por Bakhtin (2010), marcado pela unidade de lugar e a sublimação do cotidiano. Estritamente falando, o idílico não conhece o quotidiano. Tudo o que parece quotidiano em relação aos acontecimentos biográficos e históricos, essenciais e irrepetíveis, apresenta-se aqui, justamente como o mais importante na vida. Porém, todos esses fatos principais da vida não aparecem no idílico sob um aspecto puramente realista (como um Petrônio), mas de forma atenuada e até certo ponto elevada. Assim, a esfera sexual quase sempre entra no idílico somente de forma sublimada. (BAKHTIN, 2010, p. 334).

É pertinente apontar na citação acima a referência que Bakhtin faz a Petrônio em oposição ao idílico. Este autor era um satirista romano do primeiro século da era cristã. É possível argumentar que o apelo ao riso presente nas sátiras se opõe ao idílico sublime independente da temática representada. O riso, explica Bakhtin (2010), é o único elemento do complexo antigo que nunca foi sublimado. A ligação de Djanira e Lucinda com crianças e a proteção que elas simbolizam demonstram um espaço e tempo idealizados. Seus segredos e problemas do passado vêm à tona quando começam a interferir na vida das protagonistas. Betânia e Sueli apresentam semelhanças com as mentoras, pois se vinculam a um único lugar, o local de origem de suas amigas. Betânia veio do lixão e continua com uma vida bem simples, frentista de posto de gasolina; Sueli é proprietária da pensão onde Atena reside no início da trama, em um lugar pobre do subúrbio carioca, e é a pessoa que melhor conhece a origem da vilã. As duas são introspectivas, tentam alertar as amigas e se arriscam por elas, Sueli inclusive morre por se envolver nas falcatruas de Atena. Diante do exposto, levantamos quatro tipos de classificação: por atributos (são vários, o que inclui a classe social), por níveis de protagonismo/posição narrativa, cronotopo e sentimento (dor, riso, medo e entusiasmo). É importante lembrar que essas classificações não são estaques e existem variações ou personagens que poderiam se encaixar em mais de uma classificação. Ademais, Bakhtin (2010) também aborda outras possibilidades de cronotopo, o que nos dá liberdade de adaptação para o corpus desta tese. O autor comenta sobre o papel do castelo no desenrolar de acontecimentos romanescos no romance gótico inglês do final do século XVIII. Em Balzac e Stendhal, Bakhtin destaca o salão-sala, onde ocorrem os encontros e peripécias. Em Madame Bovary de Flaubert, ele aponta a cidadezinha provinciana. O estudioso menciona ainda o cronotopo da soleira, com sentido metafórico,

143 que condiz a um momento de crise e mudança de vida. Em Dostoiévski, há o limiar, os cronotopos da escada, da antessala, do corredor e da praça. Além disso, Bakhtin (2010) esclarece que cada um dos cronotopos comentados pode possuir seus pequenos cronotopos, ilimitadamente, que podem coexistir e se mesclar. Nas duas telenovelas estudadas, destacam-se em Avenida Brasil, o lixão, a mansão de Tufão, o bairro Divino, o salão de beleza de Monalisa, a casa de Monalisa, o bar do Silas e p clube do Divino; em A Regra do jogo, o Morro da Macaca, a mansão/hostel de Adisabeba, sua boate Caverna da Macaca e a casa de Djanira. Em ambas as novelas, a cadeia é um espaço recorrente, onde os bons provam altruísmo e honestidade ao se entregarem ou levar a culpa no lugar de outra pessoa. Além da residência de Adisabeba, no Morro da Macaca as casas de Indira e Domingas são peculiares. A primeira como ambiente que testemunha acontecimentos triviais, assim como a loja de Indira, e a segunda como palco do sofrimento e transformação de Domingas. A mansão de Tufão e a mansão/hostel de Adisabeba são similares em termos de decoração que remete a uma classe social emergente, por meio de um gosto extravagante expressado em peças, cores, brilhos e combinações exageradas. É possível relacionar com as vizinhanças inesperadas do realismo fantástico rabelaisiano (BAKHTIN, 2010), no caso vemos a mistura em termos de gosto material de classe. As duas residências servem como local de encontro, assim como a Caverna da Macaca onde a trama começa e termina com parte das personagens do morro. São espaços onde o cronotopo da aventura e trivial se encontram, no tempo da simultaneidade. O salão de Monalisa no bairro Divino é um espaço estratégico onde funcionárias e clientes conversam sobre outras personagens, e onde algumas delas (Tessália e Dolores) vindas de outra cidade começam a trabalhar junto de Monalisa, Olenka e Beverly. O bar do Silas e o clube do bairro desempenham papel semelhante. O lixão em Avenida Brasil, é uma localidade à parte, não se encontra no Divino. É o lugar de origem e destino da vilã Carminha. Onde Nina, Jorginho e Betânia cresceram. O lixão tem duas casas importantes, a de Nilo e a de Lucinda. Nesta última há uma aura de conto de fadas, lá as crianças são felizes e bem cuidadas por Lucinda. Podemos relacionar o lixão com o espaço da inocência no melodrama, discutido por Brooks (1995). Igualmente a casa de Djanira em A Regra do Jogo simboliza a inocência, algo que deve morrer para a protagonista Tóia progredir e descobrir a verdade. Tanto é que com a morte

144 de Djanira, Tóia se desfaz da casa. A pensão de Sueli, embora tenha papel secundário, também é um ambiente separado, que remete à origem humilde de Atena. Percebe-se também que algumas personagens passam por muitos lugares diferentes. Carminha e Tóia, por exemplo, são presas e mudam de residência mais de uma vez durante a trama. A mudança de ambiente constante está associada ao cronotopo da aventura já explicado. Porém, há exceções, como Domingas, que muda pouco de espaço, está sempre no Morro da Macaca, mas vive situações inusitadas manipuladas pelo acaso, como o aparecimento de um homem misterioso em sua cama. Aparição que não parece suscitar estranheza da parte dela. Desse modo, considerando que o cronotopo condensa uma visão de mundo, tem caráter conteudístico-formal e sentido figurativo ou temático, elaboramos a seguinte classificação com base no corpus estudado. Tabela 10. Classificação cronotópica realizada a partir do corpus analisado CRONOTOPO TEMPO ESPAÇO SENTIDOS PERSONAGENS FIGURATIVOS OU TEMÁTICOS

Aventura Acelerado Várias casas. Injustiça Tóia Prisão. Segredos Carminha Viagens. Descobertas Atena Crimes Domingas Provações Lara Monalisa Trivial Dia a dia Morro da Costumes do dia Muricy Macaca a dia (comida, Ivana Bairro Divino bebida, sexo, Tessália Casa de convivência, vida Suelen Monalisa dos outros, Beverly Salão de consumo) Olenka beleza de Adisabeba Monalisa Indira

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Loja de Indira Figurativização Andressa Casa de Indira das classes Mel Mansão de populares. Ninfa Tufão Alisson Cobertura de Dolores Feliciano Janete Mansão/hostel de Adisabeba Terceiro na vida Dia a dia Dualidade Elo entre o Dinorah privada espacial: casa público e o Zezé dos patrões e privado. Janaina espaço Obtenção e Conceição público ou circulação de casa dos informações patrões e casa importantes. própria. Trabalho doméstico. Idílico Parado Lixão, casa de Contos de fadas Djanira Passado Lucinda Inocência Lucinda Casa de Lealdade Sueli Djanira Segredos do Betânia Pensão de passado Sueli Acolhimento Origem Encontro Simultaneidade Mansão de Encontro entre o Tufão trivial e a Mansão/hostel aventura. Onde de Adisabeba tudo acontece ao Caverna da mesmo tempo. Macaca

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A seguir, separamos as personagens nos grupos cronotópicos e fizemos uma análise de acordo com a forma da expressão, a forma do conteúdo, a substância da expressão e a substância do conteúdo, seguindo a metodologia explicada anteriormente. As classificações realizadas até aqui se encontram na forma do conteúdo, junto de informações importantes mencionadas na metodologia (consumo/vida material, trabalho, relacionamentos amorosos, família, amizades importantes, moradia, consumo e vida material), do levantamento narrativo e do quadrado semiótico. A forma da expressão considera a idade, características físicas da atriz e da personagem, se houve mudanças de visual durante a trama, roupas, acessórios, maquiagem, linguajar, cabelo, cenário característico, música e atuação. Para tanto, considerou-se as primeiras cenas da personagem, cenas intermediárias e finais, e/ou os pontos de virada dramáticos. Também observamos os dez primeiros capítulos a partir do capítulo de apresentação da personagem. Para analisar o linguajar das personagens tomamos como base predominante as variedades socioculturais da língua (diastráticas) discutidas por Preti (2000), que dizem respeito às variações verticais da linguagem, dentre as quais destaca-se a posição social. Usamos as categorias dialeto culto, dileto comum e dialeto popular, cujos limites se sobrepõem, explica Preti (2000). Aplicamos a divisão de acordo com a predominância de um ou de outro. Também chamam a atenção em alguns casos as variedades geográficas, ou diatópicas, comentadas pelo autor. Preti (2000) explica que o dialeto social culto está mais de acordo com as regras da gramática normativa e o dialeto social popular está mais aberto às transformações da linguagem oral. O dialeto social comum, por sua vez, é como um meio-termo entre os outros dois. Também existem as variações de fala que ocorrem em um mesmo falante, de acordo com a situação vivenciada (mais ou menos formal), são elas os níveis formal, coloquial e comum. Como estamos tratando da caracterização das personagens em termos sociais, nos interessa realizar a diferenciação pelo dialeto - culto, popular ou comum – mais presente na personagem como um todo. A substância da expressão traz um resumo dos principais elementos técnicos da primeira cena de apresentação da personagem – vezes que a personagem aparece no capítulo, duração, tipo de sequência, plano e ângulo que se destacam ou predominam, elementos plásticos e icônicos dignos de nota, como o espaço é mostrado, descrição dos

147 sons e instância narradora. Como demonstrado, as primeiras cenas têm papel importante na construção da personagem. É importante pontuar que no audiovisual os atributos corporais implicam em traços psicológicos e que é difícil separar os dois - o corpo do psicológico (SMITH, 2004). Verificamos tal dificuldade na tentativa de tratar objetivamente da atuação das atrizes e, de um modo geral, ao separar o conteúdo da expressão. Smith (2004) chama a atenção, ainda, para o conjunto de modelos de personagens fornecidos pelo star system no cinema, fato relevante também no âmbito das telenovelas da Rede Globo e seu rol de atores bastante famosos no país. Ademais, o estudioso considera a importância da performance dos atores e da música para a subjetividade das personagens, como veremos, além do papel do nome próprio para individualizar e tipificar as personagens, sobretudo em termos de classe social.

3.4. Cronotopo da aventura

Tóia (Apelido de Maria Vitória Noronha)

Figura 2 – Tóia em sua casa no Morro da Macaca no primeiro capítulo.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4434047/>

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. mocinha melodramática Protagonismo/posição: heroína principal, protagonista. Cronotopo: aventura Sentimento principal: dor Trabalho: gerente de boate, depois que enriquece abre uma creche e um hospital infantil. Relacionamentos amorosos: Juliano e Romero

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Família/amigos: mãe Djanira, amiga e chefe Adisabeba Casa: muda várias vezes de casa, mora com a mãe, sozinha, com Romero e depois Juliano. Consumo/vida material: Tóia apresenta desprendimento material e, ao mesmo tempo, poupa dinheiro para comprar parte da boate. Ela gasta suas economias para pagar a cirurgia da mãe. Depois de rica, os seus gastos são destinados à comunidade - construção de creche e maternidade/hospital infantil. Resumo da narrativa: Já no primeiro capítulo, após sofrer um golpe, Tóia se vê obrigada a roubar o dinheiro guardado no caixa da boate para salvar a mãe adotiva que precisa de uma cirurgia cara. Tóia se entrega à polícia. Inclusive, o seu amado, Juliano que fora preso injustamente, é solto no primeiro capítulo. Romero Rômulo, um bandido disfarçado que cultiva a imagem pública de herói dos pobres, consegue soltar a moça e a partir daí os dois se aproximam. As relações de Tóia com a mãe, Djanira e com seu namorado Juliano começa a desandar, pois Romero a coloca contra os dois. Tóia descobre seu verdadeiro nome, Sofia Mendes Albuquerque, e que é sobrevivente da chacina que matou o seu pai, um cientista importante que descobriu a fórmula de um medicamento. No dia do seu casamento com Juliano, Tóia briga com Djanira, sua mãe adotiva, pois esta lhe havia mentido e desfaz o casamento na frente de todos os convidados. Na festa, Djanira é morta durante um tiroteio por uma bala perdida. Tóia deixa o Morro da Macaca. Depois de um tempo, a moça se casa com Romero. Ela toma posse de sua herança e constrói uma creche. Romero desvia o dinheiro do estabelecimento para a facção criminosa à qual pertence. Quando Tóia descobre que o marido é um bandido (por meio do policial Dante), o desmascara publicamente no dia da inauguração de sua maternidade e hospital para crianças, chamado Djanira da Silva. A jovem reata com Juliano, com quem se casa. Porém, durante a lua de mel, a moça é sequestrada por Romero que a mantém prisioneira e isolada em um casarão. Além de Romero, apenas a golpista Atena tem acesso à casa. Manipulada por Atena, Tóia mata Romero, ateando fogo na casa. Ela confessa o crime e vai para a cadeia novamente. No entanto, Romero aparece vivo (tudo era uma armação dele com Atena). Tóia é finalmente libertada. Ela volta para Juliano, com quem tem mais dois filhos (a primeira é filha biológica de Romero). Romero morre de fato. Tóia inaugura o hospital infantil, mas muda o nome do estabelecimento para Romero Rômulo, pois decide ficar com as coisas boas de Romero (a filha e a vida de Juliano que Romero salvou

149 antes de morrer). Ironicamente, Atena, com a falsa identidade de uma italiana, e ainda na vida do crime, arca com 10% da obra do hospital. Nível fundamental: É possível ver no nível fundamental o movimento do reconhecimento e da veracidade. Tóia é tanto uma julgadora, quando faz descobertas sobre Djanira, Romero e Juliano, como também é objeto de julgamento. Neste último caso, ela é descoberta a verdadeira herdeira, ela é também revelada inocente, solta da cadeia e julgada como merecedora de um final feliz. Nestes instantes, é possível atribuir a função de julgador a uma instância maior e abstrata, como a própria justiça, não a justiça enquanto instituição, mas sim enquanto força maior e moral da humanidade. Também a personagem é manipulada por outros que a desviam de seu verdadeiro caminho (percurso do destinador-manipulador). Tóia tem uma narrativa completa, passa pelos três percursos (do sujeito, do destinador-manipulador e do destinador-julgador). A oposição maior na narrativa de Tóia enquanto sujeito é da justiça versus injustiça. O fato dela julgar mal e ser mal julgada (mentira), assim como a ocultação de sua identidade (segredo) e a manipulação sofrida fazem parte das injustiças às quais ela é submetida. Podemos sugerir o seguinte quadrado semiótico da justiça (eufórico) e injustiça (disfórico).

Justiça Injustiça (ignorância, segredos, e (reconhecimento da não recompensa das virtudes) verdade e recompensa das virtudes)

Não injustiça Não justiça (conhecimento de (engano, falsa recompensa) meias verdades, meias recompensas)

Trajetória linear: injustiça – não injustiça – não justiça – justiça.

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Vanessa Giácomo. É uma jovem adulta, morena, olhos escuros, magra e de estatura baixa. O status de personagem principal se expressa pela quantidade de cenas, superior à de outras personagens e mais peripécias.

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Mudança de aparência: Sim, ela muda quando descobre que foi enganada por Romero no capítulo 136. No último capítulo há uma leve mudança, devido a uma passagem de tempo de três anos. Roupas: calça jeans, blusinhas despojadas (camisetas, blusas de um ombro só, largas), vestidos e macaquinhos estampados e coloridos, vestidos e blusas de alcinha, sandálias baixas e altas (estilo plataforma) e tênis baixo. Suas roupas são de verão. Depois de descobrir a verdade sobre Romero: roupas com menos cores e blusas lisas, calça jeans e camisa branca, cor vermelha. Acessórios, maquiagem: bracelete, brincos e pulseiras em estilo artesanal. Unhas pintadas em tons laranjas. Usa pouca maquiagem. Quando se arruma mais, ela usa batom vermelho. Cabelo: castanho-escuros, levemente ondulado pelo corte e comprido. Ela também usa o cabelo preso. Quando descobre a verdade sobre Romero, a moça corta o seu próprio cabelo. Usa um chanel com pontas desfiadas. Figura 3 – Tóia depois da transformação visual no capítulo 136

. Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4788969/>

Linguajar: dialeto culto. O tom da voz é normal, nem baixo, nem alto. Cenário de caracterização: o quarto de Tóia, na casa da mãe, passa a impressão de ambiente inacabado, há tijolos à mostra e cortinas em volta da cama. Roupas penduradas no quarto. Cores claras predominam, não há muitos objetos. Música: Tema com Romero: “Coração Selvagem”, Ana Carolina. Tema com Juliano: “Dia Clarear” da Banda do Mar; “Don´t Wait” de Mapei. Atuação: postura reta, olha direto nos olhos das pessoas. Abraça bastante sua mãe e seu namorado. Quando briga com alguém, coloca o dedo em riste. Não costuma hesitar quando fala.

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Substância da expressão No primeiro capítulo, Tóia aparece oito vezes. Quando o capítulo começa, a câmera focaliza uma mesa de delegacia, com uma cadeira. Tóia entra segurando sua mochila preta meio abraçada ao corpo. Ela usa uma camiseta branca com um desenho colorido à frente. Um policial, de quem só aparece parte do corpo a coloca sentada na cadeira. Ela está de frente para o telespectador em primeiro plano. Há uma trilha sonora instrumental de suspense. Está escuro e uma luz vinda do lado de fora entra na sala. Tóia confessa o seu crime, diz, ofegante, mas firme e sem abaixar a cabeça, que não precisa de advogado e que agindo sozinha roubou 28.600 reais da boate onde trabalha. Enquanto ela fala a câmera se aproxima de seu rosto. Em seguida, o tempo volta dez dias – transição com os dizeres (letras brancas em fundo preto) “Dez dias atrás...”. Essa parte tem duração de 25 segundos aproximadamente. Elipse. Boate Caverna da Macaca, de noite, música diegética e ruídos diegéticos. Tóia trabalha, pega uma garrafa de vinho na adega e anda apressada para atender os clientes. A moça usa vestido florido. Adisabeba, dona do estabelecimento, pede para Tóia atender o jogador de futebol Neymar que acabou de chegar. Cena do alto, do lado exterior da boate. Uma área descoberta está cheia de gente, vemos parte da rua da comunidade e o mar ao fundo. Tóia atende o rapaz. Chegam Atena e sua “amiga” Sumara na boate. Há a apresentação de funk de Merlô e das dançarinas Ninfa e Alisson. Atena anda com Sumara pela boate, conversando. Atena mente que conhece Neymar e as duas vão falar com o jogador. Adisabeba e Tóia dançam na plateia. Pequena elipse. Tóia atende a mesa das duas mulheres que querem champanhe. Como não há no momento a bebida, Tóia pede favor a Iraque (moto-táxi) por celular. Elipse. Tóia e Iraque correm com o champanhe no balde. Tóia traz a bebida para as duas. Atena e Sumara são servidas por Abner. Atena rouba cartão de Sumara. Elipse. Essa parte dura em 7 minutos e 50 segundos aproximadamente. Sala de Adisabeba, sem música, Tóia recebe o seu dinheiro. Está faltando uma parte, repara a moça. Adisabeba completa. Tóia diz que está juntando dinheiro para virar sócia de Adisabeba. As duas fazem um cumprimento com a mão. O trecho dura em 45 segundos aproximadamente. Cena de transição com imagem do morro e o Sol nascendo. Tóia retorna para casa, cena externa, dia ensolarado. Música extradiegética “Ser humano” de Zeca Pagodinho. A moça cumprimenta as pessoas na rua, chamando-as pelo nome. Compra pão e cumprimenta o vendedor “seu João”. Ela passa por trás de objetos que se encontram entre

152 a personagem e a câmera. Às vezes, a vemos mais longe. Pequena aparição de Djanira estendendo roupa no varal. Tóia para na porta de sua casa e avisa a um rapaz, que está abaixado manejando fios elétricos, que depois irá na casa dele tomar um café com sua mãe. Ela aparece de corpo inteiro. Entra em casa. A música começa a abaixar de volume. Ela encontra sua mãe, Djanira, lavando roupa no tanque, a abraça e amigavelmente reprova o fato da mãe estar lavando as suas calcinhas “de novo”. Tóia sobe as escadas do quintal, pergunta se sua mãe está bem. Mas a mulher diz que não, que teve dor durante a noite. A filha se preocupa e entra na cozinha. Djanira pergunta se ela quer dormir antes de ir para a penitenciária (no começo da pergunta sua voz está fora de campo). Vemos o rosto de Tóia na janela de frente para o quintal, ela responde que não. Djanira entra na cozinha também. Imagem das duas por uma porta interna da casa. Elas tomam café e conversam sobre a soltura de Juliano, namorado de Tóia. Djanira diz estar preocupada com os dois. Mais para o fim da cena há uma trilha sonora instrumental. Essa parte dura 2 minutos e 40 segundos aproximadamente. Depois dessas cenas seguidas, Tóia aparece mais sete vezes: andando na rua com a mãe, de corpo inteiro, bem rapidamente cumprimentam Adisabeba e Merlô; na cadeia buscando Juliano junto de Djanira (trilha sonora instrumental), elipse, em casa novamente, elipse, cena no quarto com o namorado, cortina em volta da cama (trilha sonora tema do casal “Don´t Wait”, de Mapei)”; na rua descendo escada com a mãe, elipse, no hospital (trilha sonora instrumental), elipse, em casa (trilha sonora instrumental), elipse, no banco (pegar dinheiro para a cirurgia da mãe – trilha sonora instrumental), elipse, no hospital (trilha sonora instrumental); hospital (descobre que sofreu um golpe – trilha sonora instrumental); boate (rouba dinheiro para salvar a mãe – trilha sonora instrumental); hospital (trilha sonora instrumental) ela reza em frente a uma imagem de Jesus Cristo na cruz e recebe a notícia de que a cirurgia foi realizada com sucesso; boate (confessa o crime para Adisabeba e se entrega para os policiais que estão no local – trilha sonora instrumental).

Substância do conteúdo A atuação de Vanessa Giácomo atribui uma personalidade forte e determinada a Tóia. O fato dela trabalhar em uma boate, ambiente noturno, a distingue das heroínas melodramáticas comuns. Porém, a personagem reserva muitas semelhanças com a

153 mocinha tradicional. Tóia tem como sentimento predominante a dor. O quadrado semiótico da personagem se insere no reconhecimento da virtude e da justiça, movimento básico do melodrama, como explicam Brooks (1995) e Martín-Barbero (2009). Quando Tóia é injustiçada, necessita de forças exteriores, como outras personagens, para agir sobre ela, lhe dizer a verdade ou tirá-la da cadeia. Quando ela comete injustiças, ela mesma repara, entregando-se à polícia. Percebe-se nesse fato o altruísmo da personagem, certa passividade e inocência. O golpe aumenta o sofrimento da mocinha, reforça os motivos para o roubo e o merecimento de perdão. A justiça é a maior destinadora-julgadora na história, ou de forma abstrata ou concreta na figura de Dante, e das prisões, por exemplo. Inclusive, o espaço da prisão serve tanto para a justiça quanto para a injustiça. É pertinente notar que, apesar do golpe financeiro que a moça sofre, ela não demonstra de forma substancial o desejo por dinheiro, a não ser para questões necessárias, como a saúde de sua mãe. Quando se descobre rica, a moça hesita em ficar com o dinheiro e quando aceita o destina a atividades nobres, como a construção de creche e hospital infantil. Percebe-se então o antagonismo entre o desejo pelo dinheiro e a honestidade da personagem que se mostra digna, humilde e merecedora do dinheiro. Trata-se da característica moral típica do melodrama clássico. As roupas floridas e os cabelos longos da personagem representam o seu momento de inocência, assim como as roupas de cores lisas e o cabelo mais curto relacionam-se com o seu despertar. A própria figura da mãe Djanira pode ser interpretada como o símbolo da ingenuidade que deveria morrer para que a moça se descobrisse de fato. Lembramos que a própria personagem corta seus cabelos, o que, dentre as várias conotações que o cabelo tem para a mulher culturalmente (PERROT, 2017), pode ser interpretado como uma atitude ativa de Tóia em relação à vida e a libertação com o desvendamento da verdade. A personagem tem movimento narrativo, ela passa por muitas mudanças de casa e também visual. No primeiro capítulo, é possível perceber essa dinamicidade na quantia de acontecimentos condensados no episódio, que conta a história passada em dez dias: Juliano é solto, Djanira adoece, Tóia resgata suas economias para pagar cirurgia da mãe, a moça sofre um golpe, Tóia rouba a boate, a operação é realizada com sucesso e ela se entrega à polícia. Geralmente, o primeiro capítulo é marcado por maior quantidade de fatos. Vemos também a variedade de espaços percorridos: boate (trabalho), rua, casa,

154 prisão, banco e hospital. O primeiro capítulo demonstra o conflito que a personagem terá com a justiça durante a trama, mesmo diante de sua honestidade. A personagem conta com cenas seguidas no decorrer dos capítulos, o que indica seu protagonismo. temos a sensação de temporalidade acelerada, devido às elipses, quantidade de ambientes percorridos e acontecimentos. As imagens de transição dinamizam as cenas e marcam as passagens de tempo. As músicas também assumem papel semelhante no sentido de mudança de ambiente e clima. Na primeira cena do primeiro capítulo, não temos uma visão ampla do cenário da delegacia, vemos apenas o suficiente para identificação do local, uma parte do policial e o foco todo está em Tóia, que é colocada em frente a um feixe de luz que entra pela janela, em um espaço escuro. A iluminação remete à estética noir30 e a luz em Tóia anuncia a verdade, o esclarecimento que está por vir de seu depoimento. O ambiente aumenta a dramaticidade da cena. O telespectador está de frente para a personagem como se pudesse julgá-la. O movimento da câmera e a falta de profundidade de campo nos aproximam da aflição de Tóia. Em seguida, há uma transição com o escurecimento da imagem e os dizeres (letras brancas em fundo preto) “Dez dias atrás...”. Trata-se de um narrador extradiegético que concede um tom impessoal e imparcial aos fatos que o telespectador acompanha a seguir. Na boate, a próxima imagem de Tóia na adega escura não faz uma quebra forte com o clima da cena anterior. Ela trabalha na boate onde há o cronotopo do encontro, da simultaneidade, várias personagens estão presentes e tudo acontece, a diversão, a música no palco, o golpe de Atena e até a presença de uma celebridade. Há uma elipse e vemos a imagem da contagem do dinheiro no momento do pagamento de Tóia. Depois disso, a imagem do morro amanhecendo marca outra transição. Ainda no primeiro capítulo, a cena de dia, de Tóia andando pela rua e cumprimentando as pessoas, envolve a personagem no sentimento de comunidade existente do morro, onde todos se conhecem, e ao espaço público, historicamente atrelado às mulheres populares. Também o trecho mostra a alegria de Tóia e que ela é querida no

30 “O cinema noir trata-se de um conjunto de filmes realizados a partir dos anos 40 em Hollywood, que consistia do casamento entre o drama criminal, então em voga, e a adoção do estilo visual que marcou o cinema expressionista dos anos 20 na Alemanha. A iluminação produzida para os filmes expressionistas tornou-se uma especialidade dos estúdios alemães e foi reconhecida mundialmente como a grande contribuição daquele cinema.” (LIRA, 2015).

155 bairro. O samba, considerado um ritmo popular bastante brasileiro, é contrastante ao som de suspense que acompanha Tóia em outros momentos do capítulo. A câmera que a capta por entre espaços pequenos quando há objetos e obstáculos à sua frente confere subjetividade à cena, o espectador tem a sensação de estar a espiando. Observa-se naturalidade no trecho em que Tóia entra em casa e encontra sua mãe lavando suas calcinhas. O momento simula uma situação corriqueira do dia a dia. As calcinhas, itens da vestimenta íntima, lavadas pela mãe simbolizam a falta de privacidade no ambiente. Inclusive, Tóia entra pelo quintal, dando continuidade ao sentido de espaço externo até o momento. A voz de Djanira fora de campo também se relaciona com a naturalidade cotidiana de uma conversa informal dentro de casa. Já a imagem entre a porta interna se assemelha àquela que a capta por frestas na rua. Temos a sensação de estar dentro da casa, observando-as. As cortinas presentes no quarto e casa de Tóia dialogam também com a falta de privacidade das casas do morro e a interface com o público. Ainda assim, quando ela está no quarto com namorado o ato sexual é sublimado com a música alta tema do casal e a sugestão não vulgar. A última cena da personagem completa o ciclo de Tóia no capítulo. Ela assume a culpa e se entrega à polícia. O que acontece depois já se sabe desde o início do episódio. O dialeto culto de Tóia não a torna diferenciada em relação às personagens do núcleo rico. Uma das músicas dela é americana o que a neutraliza também nos mesmos termos em comparação às personagens periguetes, por exemplo, nas quais o funk e forró predominam. O samba, que acompanha Tóia andando na rua, faz parte do seu tom comunitário, mas não é a música oficial da personagem. O quarto dela, apesar de humilde, também confere certa neutralidade pelas cores e objetos que não chamam a atenção. Vale destacar a religiosidade da personagem quando reza para a sua mãe no hospital em frente à imagem de Jesus Cristo na cruz. É possível resumir a relação entre conteúdo e expressão da seguinte forma: Justiça: roupas de cores lisas, calça jeans, cabelos mais curtos, residência com Juliano. herança. Prisão. Construção de creche e hospital. Injustiça: residência com a mãe, residência com Romero. Doença da mãe, hospital. Estampas floridas, vestidos e peças leves de verão. Prisão. Trabalhadora: boate, noite, movimento, atendimento ao cliente. Dor: esse sentimento é reforçado pela música e linguajar que trazem seriedade à personagem. Música internacional, MPB, linguajar culto. Música instrumental.

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Cronotopo da aventura: muitos locais e acontecimentos. Elipses, cenas seguidas uma da outra. A expressão da personagem enquanto mocinha melodramática é a união das outras classificações e suas expressões: a transição da injustiça (residência com a mãe, residência com Romero. Doença da mãe, hospital. Estampas floridas, vestidos e peças leves de verão. Prisão) para a justiça (roupas de cores lisas, calça jeans, cabelos mais curtos, residência com Juliano. herança. Prisão. Construção de creche e hospital), a classificação trabalhadora (boate, noite, movimento, atendimento ao cliente), o sentimento dor (Música internacional, MPB, linguajar culto. Música instrumental) e o cronotopo da aventura (muitos locais e acontecimentos). Temas e figuras predominantes da primeira cena: crime (delegacia, estética noir, hospital, boate, policiais, música instrumental de suspense), trabalho (noite, movimento, boate, dinheiro, bebida, música diegética - funk), espaço público (dia, alegria, rua, morro, socialização, padaria, janela, quintal, samba), amor (Juliano, prisão, casa, cama, cortinas, música internacional) relação com a mãe/ambiente doméstico (casa, trabalho doméstico, cozinha, café, doença, hospital, música instrumental). Resumo técnico: simultaneidade na boate. contraste dia e noite. Estética noir. Cena andando na rua. Músicas extradiegéticas. Muitos lugares, sequências seguidas uma da outra e imagens de transição.

Carminha, apelido de Carmem Lúcia (Avenida Brasil) Figura 4 - Carminha conversa com seu primeiro marido Genésio no primeiro capítulo.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1875660/>

Forma do conteúdo Atributos: emergente social. Musa sedutora femme fatale, matriarca e religiosa.

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Protagonismo/posição: vilã principal, protagonista Cronotopo: aventura Sentimento principal: medo, riso e dor. Trabalho: Não trabalha. Foi prostituta no passado. Há menção a um trabalho que ela realizou como modelo fotográfica no passado. Relacionamentos amorosos: Max é seu amante o tempo todo. Casa-se com Genésio e depois com Tufão para aplicar um golpe. Tem um caso com Lúcio. Família/amigos: Genésio, ex-marido que morreu. Rita/Nina ex-enteada que ela largou no lixão. Tufão é seu marido a maior parte da trama. É mãe de Jorginho e Ágata. Nora de Muricy e cunhada de Ivana. Seu pai que só aparece no fim da trama é Santiago. Casa: Morou em diferentes casas, com Genésio e enteada, sozinha em um apartamento de Tufão, na mansão com Tufão e família (maior parte da trama). Mantinha um outro lugar, um “cafofo” onde se encontrava com Max. Terminou no lixão com Lucinda. Consumo/vida material: o gosto material de Carminha se destaca. A decoração da casa com Tufão é kitsch31. Gosta de fazer compras. Roupa sofisticada. Comida sofisticada. No seu falso sequestro: “Esse lençol horroroso aqui. O Max sabe que eu só durmo em lençol de algodão egípcio”, “Eu pedi queijo brie, isso aqui é queijo estepe”, “Eu tô me sentindo uma favelada, preciso dos meus tranquilizantes, borrifador de água termal, tampão de ouvido e meus cremes”. Na companhia de Max, ela aparece tomando cerveja no gargalo. Resumo da narrativa: A personagem Carminha, que cresceu em um lixão, inicia a trama casada com Genésio, a quem pretende aplicar um golpe com a ajuda de seu amante Max. Porém, sua enteada, uma criança chamada Rita, descobre o plano e avisa o pai, que faz uma cilada para Carminha. Em um primeiro momento, Carminha é desmascarada por Genésio, mas este morre atropelado por Tufão. Carminha consegue resgatar o dinheiro que ia roubar e, ainda, abandona Rita no lixão. Tufão, um jogador de futebol recém- milionário casa-se com Carminha seduzido pela vilã que percebe sua culpa. Com Tufão, Carminha vive como uma madame em uma mansão no bairro popular Divino, e leva uma vida dupla com Max, que se casa com a irmã de Tufão, Ivana, e muda-se para mesma mansão da família. Dissimulada, a vilã finge o tempo todo ser uma mulher muito religiosa

31 De acordo com José (2002), o kitsch é uma releitura de algum elemento da classe dominante. trata-se de um objeto vendido em massa, uma diluição artística, uma mercadoria barata.

158 e tradicional. Quando casou com Tufão, ela já estava grávida de uma menina, que Tufão trata como se fosse dele. O casal também adota o garoto apelidado de Batata, do lixão. Mas ninguém desconfia que o menino é filho verdadeiro de Carminha. Depois de alguns anos, Rita, que fora adotada por uma família argentina, retorna com o nome de Nina para se vingar da ex-madrasta. Desconhecendo sua real identidade, Carminha contrata Nina como cozinheira, mantendo com ela uma relação próxima de amizade. Quando Nina consegue as provas que procurava, ela arquiteta o seu plano e começa a chantagear Carminha. A vilã é obrigada a fazer tudo o que a ex-enteada quer. Nina conduz a situação para que Carminha pareça louca. Após idas e vindas, Tufão descobre toda a verdade e expulsa Carminha de casa. Em dado momento, Santiago, pai de Carminha, a induz a arquitetar o sequestro da família de Tufão. Mas, arrependida, Carminha salva Tufão e Nina do sequestro planejado. Ela se entrega à polícia pela morte de Max. No final, o tempo passa, Carminha é solta e volta a morar no lixão, arrependida. Nina a perdoa. Nível fundamental: Há nessa narrativa aspectos parecidos com a de Tóia, mas do ponto de vista da vilã. Há a justiça, injustiça e o reconhecimento da verdade. Mas o reconhecimento é por parte dos outros, porque a personagem é quem engana, manipula (percurso do destinador-manipulador) e também julga e é julgada (trajetória do destinador-manipulador). A oposição justiça versus injustiça do ponto de vista da personagem tem o primeiro conceito como eufórico e o outro disfórico.

Justiça (reabilitação, Injustiça (crimes, recompensa por provocação de danos, danos e impenitência) arrependimento)

Não justiça (impunidade e Não injustiça (verdade, punição) mentira)

Trajetória linear: Injustiça – não justiça – não injustiça – justiça.

Forma da expressão

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A personagem é expressada pela atriz Adriana Esteves, que é loira e magra. Mudança de aparência: Carminha passa por mais de uma mudança de visual. No início quando se casa com Tufão e ascende financeiramente; depois quando Nina começa a chantageá-la e corta o seu cabelo; mais para o fim, depois de ser expulsa da casa de Tufão; e quando sai da prisão e vai morar no lixão. Roupa: Carminha usa tons claros (muito branco) e roupas mais sóbrias. Quando estava casada com Genésio, bem no início da trama, ela usava bermuda jeans, saia jeans, pochete, sandália, blusa simples, às vezes com o sutiã à mostra. Com a morte de Genésio, usou um pouco de preto. Casada com Tufão, Carminha começou a usar roupas sofisticadas, calça e bermuda de alfaiataria, salto alto, camisas de seda e renda, bolsas de grife e aparece usando robes de seda ou cetim que combinam com a camisola. Cores claras, às vezes metalizadas. Suas roupas são discretas, nada de decote ou roupas justas e curtas. Mais para o fim da trama sua vestimenta volta a ser mais simples e ela usa cores escuras, depois de ser expulsa da casa de Tufão e no último capítulo, no lixão. Acessórios, maquiagem: Casada com Genésio, usava poucos acessórios, como brincos pequenos, relógio simples e pochete. Casada com Tufão, Carminha usa marcas de grife, bolsa dourada pulseira e relógio. Usa corrente no pescoço com T de Tufão e outra corrente com um pingente que é a imagem de Nossa Senhora das Graças. Ela não aparece usando maquiagem no início, com Tufão ela usa maquiagem sóbria, leve. Cabelo: no início, Carminha usa sempre o cabelo preso, com coque (presilha piranha) ou rabo de cavalo, de um jeito simples O cabelo parece ter comprimento médio. Depois, casada com Tufão (é bom lembrar que houve passagem de tempo de 12 anos), ela usa os cabelos soltos, compridos, mais loiros e arrumados. Quando Nina começa a se vingar da vilã, ela corta os cabelos de Carminha e os escurece. No final da trama, quando Carminha é expulsa da casa de Tufão, ela volta a usar os cabelos presos, assim como quando vai presa e volta para o lixão. Linguajar: dialeto popular com Max, seu amante. Com as pessoas que ela engana ela usa dialeto culto. Cenário: Na mansão com Tufão, objetos de decoração kitsch. Quarto com pretensão elegante, cores escuras. Destaca-se a imagem de Nossa Senhora no quarto.

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Figura 5 - Carminha presenteia Verônica no capítulo 13.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1896316/>

Música: música “Infiltrado”, Bajofondo, que geralmente toca quando ela está se dando bem. Atuação: Ela muda o tom de voz e a expressão facial de acordo com o interesse da personagem. Com a enteada criança, por exemplo, ela faz cara feia e grita. Com o marido Genésio, ela fala com a voz doce e a expressão facial diferente, franze as sobrancelhas para demonstrar fragilidade, inclusive chora. Ela fala sozinha ou para xingar as pessoas ou para se expressar alegria quando está se dando bem. Porém, quando está casada com Tufão, ela se apresenta mais estável no sentido de não mudar muito a forma de falar, ela grita mais na frente de todos, com as empregadas por exemplo. Tem uma postura mais arrogante. É importante destacar que Carminha participa do cronotopo da Mansão de Tufão, no seu aspecto trivial, nas refeições ao redor da mesa, por exemplo.

Substância da expressão Carminha aparece 7 vezes no primeiro capítulo. As últimas vezes são a mesma cena entrecortada por outras com outras personagens. Na primeira cena, Rita brinca com um carrinho e uma boneca, simula o som de uma sirene com a boca e diz “alguém me ajuda, minha casa tá pegando fogo”. A televisão está ligada ao fundo do cenário. Em seguida, vemos a silhueta de Carminha de corpo inteiro caminhando em um corredor escuro. Ela entra do lado esquerdo e aparece novamente no corredor carregando uma caixa. Entra em algum cômodo do lado direito do corredor. Ela anda com firmeza. Depois, ao fundo do corredor, perto de uma janela, por onde entra luz,

161 a vemos de longe. Rita vai até o corredor brincar, em primeiro plano, sentada no chão, simulando o barulho de sirene novamente. Foco no rosto de Carminha que grita olhando para a criança, câmera em ângulo baixo, como se a víssemos pelos olhos da menina, “para de gritar, peste!”. Começa a tocar uma trilha sonora de suspense. Contracampo, vemos a menina, encarando a vilã, em ângulo alto como se a víssemos pelo olhar de Carminha. A câmera volta para Carminha que fala com uma voz nervosa, um pouco presa na garganta, “não sabe brincar quieta”. Carminha anda e a criança no chão continua a brincadeira, vai atrás da mulher que passa pelo corredor e sai à direita. Carminha está com os cabelos presos, usa blusa branca e bermuda jeans. Plano aberto da sala, Carminha ao fundo. Agora a posição da câmera está do lado da TV. Na mesa em primeiro plano, há objetos encaixotados. Rita começa a tirar as coisas da caixa e jogar no chão. Carminha se aproxima e berra “o que tá fazendo, garota? Você não tá vendo que eu tô encaixotando tudo?”, passa rápido e pega a caixa. A menina cai no sofá e afirma que eles não vão se mudar. Carminha a contraria. Ela está agora de costas (sutiã à mostra), perto da janela arrumando as caixas, meio primeiro plano, alega, brava, que já falou mil vezes da mudança e que a casa está sendo vendida. Rita argumenta que ninguém pode vender a casa, pois pertence à sua mãe. Carminha manda a menina botar o uniforme para ir ao colégio. A menina se recusa. A vilã, aos berros vai em direção à enteada “você vai me obedecer, garota” e pega a menina pelo braço. “Eu tô te avisando. Vai ser melhor para você!”. Rita protesta, responde que Carminha não é sua mãe nem nada dela. Carminha: “sua mãe morreu, tá morta enterrada, Tá embaixo da terra e as minhoca já comeram todo o corpo dela. Você ouviu isso?”, Carminha faz mímicas com a mão “as minhoquinha toda comendo o corpinho da mamãe?”. Ela exige que a menina a obedeça, mas Rita começa a quebrar as coisas. Então, Carminha pega a boneca que a mãe da menina havia dado a Rita e a rasga. A vilã puxa a criança e a empurra para longe. Ela cai no chão, levanta, pega uma tigela de mingau que estava em cima da mesa e joga o conteúdo no rosto de Carminha. Furiosa, a mulher alerta “agora você vai apanhar”. A vilã puxa os cabelos da menina e diz que Genésio não vai ficar sabendo porque irá surrá-la de toalha molhada. Genésio chega. Rita corre para o pai. Carminha muda de feição e se faz de vítima. Ela mente, diz que quer ser aceita pela enteada, que se entristece com a atitude da menina e faz de tudo para agradá-la. O homem acredita. A menina dá um tapa na cara da vilã e corre para o quarto. Os dois sentam no sofá e conversam. Ele a acalma, mas estranha que

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Carminha já está encaixotando as coisas da casa. Ela diz que está adiantando e pergunta se ele assina a escritura naquele dia. A cena dura 4 minutos e 13 segundos mais ou menos. Na segunda vez, é uma cena que transcorre no mesmo dia, ainda claro. Sem som. Plano de conjunto, Genésio sentado à mesa, Carminha se aproxima com uma jarra de suco e senta. Ela pergunta se ele está triste. A câmera se aproxima. O homem responde que está se despedindo da casa, pois viveu muitas coisas lá. A casa é da família da primeira mulher dele, Marta, que adoeceu e morreu no local. Inclusive, antes de morrer, ela o fez prometer que nunca venderia o imóvel. Calma, fingindo ser amorosa, Carminha diz que eles precisam de vida nova, que Marta iria querer vê-lo feliz, que a casa é muito grande, entre outros argumentos. Ele concorda com a esposa e eles se beijam. Close em seus rostos, ao fundo entre os dois aparece Rita. Uma trilha de suspense começa a tocar. Rita se despede do pai para ir à escola. Ele pede para a menina se despedir de Carminha também. A vilã com uma feição sínica inclina o rosto como se esperasse por um beijo, mas a garota ignora e sai. A música para de tocar. Carminha lembra Genésio que está na hora do serviço. Ela levanta para pegar o terno do marido. Os dois andam em direção ao quarto e Carminha pergunta se do trabalho ele vai direto ao banco e se o comprador vai pagá-lo em espécie. Enquanto caminham para o quarto, eles param no corredor da casa, contraluz da janela, vemos apenas suas silhuetas. Genésio pergunta se ela não acha perigoso ele sair do banco carregando o dinheiro. No quarto, Carminha o convence a levar a quantia em uma mochila. Ele aceita e sai. Na sequência, do lado de fora, Rita não entra na perua escolar e volta para casa. Carminha está agora ao telefone, no quarto. A menina entra em casa e começa a tocar uma trilha de suspense. Carminha não percebe que a garota voltou e a espia. Ela fala com Max sobre o golpe que darão em Genésio. “Vem cá, e esse teu colega que tu descolou é de confiança, né?”. “Tô só esperando um sinal teu para rapar fora dessa casa”. Ela desliga e vai verificar se não tem ninguém em casa mesmo, encontra a porta aberta e fecha. Desconfiada ela procura por alguém na casa, mas toca o telefone. Rita foge. Na terceira vez, Genésio volta para casa. Ele já sabe do golpe e conseguiu escapar. O homem mente que foi assaltado. Quando ele faz esse anúncio, uma música de suspense começa a tocar. Carminha finge surpresa. Close nos dois, campo e contracampo. Ela o consola. O plano abre quando entra Rita. Ele finge que vai dar uma bronca na menina e vai para o quarto atrás da filha.

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Na quarta vez é de noite. Sem música. Dentro da casa, plano aberto, Carminha traz café para Genésio que está sentando no sofá e pergunta se ele tem certeza que não quer um “macarrãozinho”. Eles assistem à final do campeonato. Carminha recebe o telefonema de Max e finge que é uma tia. Ela senta novamente no sofá, abraça e beija Genésio. Na quinta vez, eles ainda estão sentados assistindo ao jogo. Sem música. Carminha inventa que está com vontade de tomar cerveja e sai para comprar na padaria. Na verdade, ela vai se encontrar com Max. Genésio a segue. Música de suspense, um pouco mais agitada que as outras. Vemos a vilã andando na rua, passando por trás de veículos e grades. Ela entra em uma casa. Ângulo alto na personagem subindo as escadas da entrada e depois as escadas até uma laje. Lá em cima, ela encontra Max. Em alguns momentos, vemos os dois como se fosse pelo olhar de Genésio que, escondido, acompanha toda a conversa. Eles discutem porque o dinheiro sumiu. Quando Max vai embora, Genésio aparece atrás de Carminha, desfocado, ouvimos a sua voz. Há um intervalo comercial e a cena continua. Carminha e Genésio discutem. Ela dá uma joelhada no homem e sai correndo. Ele corre atrás dela. Na beira da escada, Genésio a segura, mas a vilã dá uma cotovelada em Genésio, que cai da escada e permanece deitado no chão. Ângulo baixo em Carminha descendo as escadas. Ela pisa em cima dele e o manda ir para o inferno. Começa a chover em cima de Genésio. Na sexta vez, Carminha vai atrás de Max na mesma noite. Música de suspense. Ela entra na casa dele, molhada de chuva. Carminha conta tudo para o amante e decide voltar para a casa de Genésio, pois deduz que o dinheiro está escondido na residência. Na sétima vez. Música de suspense. Mesma noite. Carminha e Max chegam de carro à casa de Genésio. Rita colocou tranca na porta. Carminha pede para Max forçar a entrada.

Substância do conteúdo A atuação da atriz indica a dubiedade da personagem, a sua falsidade. As expressões faciais marcantes, assim como o fato de falar sozinha e a música, um tango eletrônico, que realça o êxito da personagem, remetem ao vilão clássico do melodrama, bastante caracterizado fisicamente. Do mesmo modo o seu quadrado semiótico relaciona-se ao movimento melodramático comum. Mas, há outras dubiedades na personagem além do fingimento típico da vilã. A questão do gosto, por exemplo. Ao mesmo tempo em que ela tem preferência sofisticada para comida e roupas, para a decoração da casa o kitsch revela certa “inadequação” de nova rica. O materialismo da personagem realça o seu arrivismo,

164 vilania. As boas maneiras da personagem e o gosto recatado também fazem parte de sua farsa e dialoga com uma sátira ao estilo burguês. Pois, enquanto vilã, é irônico que ela use corrente com o pingente de Nossa Senhora, blusas fechadas e a cor branca (símbolo de pureza em nossa cultura ocidental). Também é irônico a corrente com o T de Tufão, já que ela o engana. Essa é a sua faceta de matriarca que, apesar da falsidade, revela o amor verdadeiro que ela sente pelo filho Jorginho. No linguajar de Carminha, percebe-se a associação do dialeto popular à sua faceta ruim (ela usa gírias, expressões vulgares e coloquialidade) e do dialeto culto à sua faceta boa fingida. A cor preta associa-se ao final ruim, na prisão e lixão, à iluminação (noir), no primeiro capítulo, ao seu caráter maldoso. O branco é a pureza fingida de Carminha, relaciona-se ao seu período rica na mansão. Os cabelos de Carminha simbolizam o seu poder. Loiros, longos e soltos eles estão quando a personagem se encontra no auge, rica, casada com Tufão, enganando a todos. Por isso é tão simbólica a cena em que Nina, no curso de sua vingança, corta os cabelos da vilã. É como se ela podasse sua autoconfiança e potencial de sedução. Perrot (2017) aborda a representação dos cabelos, símbolo de feminilidade, na pintura e literatura como arma de sedução e força da mulher, principalmente os loiros. A pesquisadora explica que o ato de tosquiar cabelos era imposição a escravos e vencidos, na antiguidade e Idade Média. E no caso feminino, era um castigo imposto a “feiticeiras”, como se o cabelo fosse maléfico. “A tosquia é um rito expiatório de purificação. Uma medida higiênica de asseio, de desinfecção e de erradicação do mal”. (PERROT, 2017, p. 62). No primeiro capítulo, vemos algumas vezes apenas a silhueta de Carminha contra a luz, em consonância com a estética noir que, por sua vez, relaciona-se aos motivos noturnos e conotações culturais de mistério, suspense e medo (LIRA, 2015). A própria noite, quando a personagem vai ao encontro de Max enquanto é seguida por Genésio, insere-se em simbologia similar. Assim como a chuva que começa a cair em cima do homem caído no pé da escada. Os closes no rosto da personagem quando briga com a enteada aumenta a expressividade da cena e a atmosfera de medo, bem como a música de suspense. Em alguns momentos o ângulo baixo da câmera coloca o espectador no lugar da personagem que observa Carminha, pelo olhar da enteada criança e de Genésio no chão. Nesses momentos, Carminha é maior, poderosa e amedrontadora. Também estamos na posição dos dois, espiando a vilã, quando a vemos por frestas, no quarto ao telefone e na laje

165 conversando com Max. A escada faz parte da estética noir, segundo Lira (2015). No sentido descendente, como aparece quando Carminha desce em direção ao homem no chão, “[...] sua conotação é negativa, estando em estreita sintonia com os símbolos nictomórficos ou noturnos porque é lugar privilegiado do nefasto, da decaída, da morte [...]” (LIRA, 2015, p. 25). Carminha andando na rua remete à questão da mulher popular mais próxima à instância pública, assim como a laje onde a vilã se encontra com Max. No episódio, chamam a atenção, ainda, os serviços domésticos que Carminha realiza ao fingir ser boa. Ela serve Genésio com café, suco, pega o seu paletó e se oferece para fazer um “macarrãozinho”. Ela não trabalha fora de casa e finge se esforçar para ser uma boa mãe a Rita. Trata-se de uma concepção conservadora de um ideal feminino como boa dona de casa, boa mãe e boa esposa; da mulher circunscrita ao ambiente privado. Os extremos são acentuados. A bondade no caso é a submissão, passividade e conservadorismo. E a maldade é muito má, não gosta de crianças, de brincadeiras infantis, rasga a boneca da menina e fala sobre morte com Rita. Há referência ao imaginário da madrasta malvada muito presente nos contos de fadas, nos quais as famílias, na maioria das vezes, são representadas como unidades instáveis e pais adotivos e biológicos são negligentes ao ponto do assassinato (CARTER, 2011). A recorrência da madrasta nesses contos se relaciona com o contexto histórico de seu surgimento, quando a taxa de mortalidade das mães era muito alta e uma criança poderia ter várias madrastas durante a vida, além da crueldade atribuída à madrasta simbolizar a ambivalência da figura materna, de um modo geral, em termos psicológicos (CARTER, 2011). 32 Com Tufão, Carminha finge conservadorismo no falso moralismo e religiosidade, mas não representa submissão e não finge gostar de crianças. O maniqueísmo do primeiro episódio é suavizado durante a trama. A personagem apresenta movimento e transformação pelos vários lugares onde passa, situações vividas e mudanças visuais durante a trama. Mas, no primeiro capítulo, ela não tem grande movimento, aparece na casa de Genésio, na rua, laje onde encontra Max, na casa de Max e na casa de Genésio novamente. O tempo não é acelerado como no primeiro episódio de A Regra do Jogo que

32 Carter (2011) destaca que o conto de fadas como narrativa tem mais a ver com as formas populares dos romances ditos “femininos” do que com as formas burguesas de romances e com os longa-metragem. Outro dado interessante apontado pela autora é a trajetória da personagem feminina nos contos de fadas. “[...] entre as características que essas histórias recomendam para a sobrevivência e prosperidade das mulheres nunca está a subordinação passiva. Em várias delas, pode-se ver de que maneira as mulheres lutaram para abrir o próprio caminho.” (CARTER, 2011, p. 18).

166 simula acontecimentos de dez dias. O primeiro capítulo de Avenida Brasil representa a temporalidade de um dia. Os acontecimentos mostrados têm como eixo a partida de futebol. As personagens “se unem” em diferentes espaços ao assistirem a transmissão televisiva do jogo. Porém, ao contrário das outras personagens do episódio, Carminha não presta atenção ao jogo, a transmissão é um conector de passagem da cena anterior à casa de Genésio onde se encontra a vilã. Para Carminha, a partida não é um tema relevante em si e sim um marcador espaço-temporal do bairro Divino que irá se interseccionar com a vilã a partir do atropelamento de Genésio por Tufão no fim do capítulo. O capítulo mostra o caráter de Carminha e o conflito com Rita que a acompanhará o restante da novela. Os sentimentos dor e riso também estão presentes em Carminha, além do medo. Ela sofre e provoca riso com sua ironia na mansão de Tufão, onde vizinhanças inesperadas em termos de classe social remetem ao realismo grotesco bakhtiniano. A religião é parodiada, na medida em que se expressa por meio da vilã. Religião, valores morais, roupas recatadas entram em oposição ao seu verdadeiro caráter. De acordo com Mauro e Trindade (2012), Carminha apresenta quatro identidades diferentes, a da individualidade patológica, a de uma classe emergente arrogante, a da tradição e moral fingida e uma última identidade vaidosa e um pouco inocente, que demonstra apreço por Nina e amor pelo filho Jorginho. Ou seja, trata-se de uma personagem complexa, com várias camadas. A relação entre conteúdo e expressão pode ser resumida da seguinte maneira: Injustiça: casa de Genésio, casa de Tufão. Roupas claras, sofisticadas e recatadas. Marcas de grife. Cabelos longos, loiros e soltos. Falsa religiosidade. Faceta de matriarca. Justiça: lixão, prisão, cores escuras, cabelos presos e escuros, roupas simples. Emergente social: decoração kitsch, roupas sofisticadas, empregada doméstica, mansão de Tufão. Religiosa: pingente de Nossa Senhora, falas que remetem à religião, falso moralismo, imagem de Nossa Senhora no quarto, falsas atividades beneficentes. Matriarca: faceta religiosa, de emergente social, Jorginho, mansão. Dor, riso e medo: atuação que remete aos três sentimentos. Estética noir, dois tipos de linguajar, música quando está se dando bem, falsa religiosidade, estética kitsch, justiça e injustiça. Cronotopo da aventura: os vários lugares pelos quais ela passa durante a trama e os acontecimentos vividos.

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Musa sedutora femme fatale arrivista: gostos caros e todos as outras classificações e respectivas expressões remetem ao eu arrivismo. Temas e figuras predominantes da primeira cena: Falsidade/bondade (serviços domésticos, mesa de jantar, comida, terno do marido, figura maternal, esposa amorosa), Verdade/golpe (estética noir, laje, escada, linguajar popular, amante, madrasta má, rasgar boneca). Resumo técnico: transmissão televisiva como organizadora temporal. estética noir. Cores escuras. plano de Carminha andando. Câmera subjetiva. Trilha de suspense extradiegética.

Atena, nome fictício de Francineide (A Regra do Jogo). Figura 6 – Atena se hospeda em hotel com cartão roubado, no primeiro capítulo.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4434047/>

Forma do conteúdo Atributos: emergente social. Sedutora femme fatale. Protagonismo/posição: vilã principal. Protagonista Cronotopo: aventura Sentimento principal: riso Trabalho: não trabalha, vive de golpes. Relacionamentos amorosos: Romero Família/amigos: Não tem nenhum familiar, tem amizade com Sueli e Ascânio. Casa: ela mora na pensão de Sueli no começo, depois se muda para a cobertura de Romero. Consumo/vida material: o gosto material de Atena tem destaque. Ela apresenta gostos caros que se revelam em roupas e comidas. Ela pede champanhe na boate Caverna da

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Macaca. Compra queijos caros e pede para a amiga Sueli fazer ovos Benedict para ela. Porém, quando está na pensão de Sueli, mais relaxada, ela toma cerveja de latinha. Resumo da narrativa: Atena (cujo nome verdadeiro é Francineide) é uma estelionatária que finge ser rica. Logo no início da trama ela aplica um golpe em Sumara, de quem finge ser amiga. Atena conhece o ex-vereador Romero, também um bandido, a quem ela planeja aplicar golpes. No dia em que os dois se encontram, a personagem o vê terminando um relacionamento de forma grosseira em um bar. Quando eles se aproximam, a vilã o apoia, diz não gostar de mulheres e se dar bem com homens. A estelionatária o rouba, mas é desmascarada. Em posse de uma gravação comprometedora de Romero com a facção, Atena chantageia o ex-vereador e se muda para sua cobertura, onde convive com Ascânio, pai de Romero, bandido que ganha dinheiro em troca de informações e chantagens. Atena acaba se apaixonando de verdade por Romero e tenta ser sua parceira nos crimes. Mas, Romero a despreza por causa de Tóia. Os bandidos da facção começam a perseguir Atena devido ao vídeo comprometedor que ela possui. Mas, ela consegue se safar e começa a fazer parte do grupo. O ponto fraco da vilã é seu amor não correspondido por Romero. Atena costuma trair a confiança dos membros da facção e por alguns momentos corre o risco de ser morta. Ela também se arrisca por Romero e corre atrás dele. Quando Romero sequestra Tóia, a loira persuade a moça a ajudá-la a matar o bandido, colocando sonífero na bebida dele e ateando fogo na casa. Mas, na verdade, trata-se de uma armadilha. Atena aposta com Romero que a moça é capaz de matá-lo e pede em troca amor e lealdade. Elas executam o crime. Tóia é resgatada. Atena foge e depois chantageia a moça pelo assassinato. Tóia, então, passa todas as suas ações para Atena, mas depois se entrega à polícia. Atena foge novamente e encontra Romero, que não morreu. Ascânio se junta aos dois. Romero e Atena se casam. Mas, são encontrados pela facção. Romero morre. Atena foge para Veneza, com Ascânio. No último capítulo, vemos que a vilã teve um filho de Romero. Junto de Ascânio, ela continua aplicando golpes com a falsa fundação beneficente Chiara Vitorino. Nível fundamental: Atena é extremamente egoísta ao aplicar seus golpes, ela mente e é desmascarada rapidamente, mas consegue sempre se safar. Ela seduz as pessoas para roubá-las (percurso do destinador-manipulador) e é julgada (percurso do destinador- julgador). Ela só é verdadeira com Romero porque o ama de fato. A moça deixa de se dar bem totalmente quando se rende ao amor pelo homem e começa a agir para o bem dele. Inclusive, Atena o perdoa quando ele a entrega a seus inimigos. Do relacionamento com

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Romero nasce um filho que ela leva consigo para Veneza, onde continua aplicando golpes. A vilã só demonstra sentir culpa e remorso em relação a Romero. O quadrado sugerido para a narrativa de Atena é egocentrismo (eufórico) e abnegação (disfórico).

Egocentrismo Abnegação (se prejudica pelo (sociopatia, outro, amor, humilhação) arrogância, individualismo)

Não abnegação (atitude em favor de si própria novamente, Não egocentrismo continuidade dos (amor verdadeiro golpes mesmo por Romero) com um filho)

Trajetória linear: egocentrismo – não egocentrismo – abnegação – não abnegação.

Forma da expressão A personagem se expressa pela atriz Giovana Antonelli. Ela é loira, esbelta e usa marcas de grife. Figura 7 – Atena fingindo ser Sumara no primeiro capítulo.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4434047/> Mudança de aparência: não. Roupas: Atena veste roupas sensuais, sofisticadas e tons escuros (bastante preto). Ela usa saias com fendas, saia lápis, calças de cintura alta, roupas com cortes assimétricos, bodies, jeans e vestido de couro. Às vezes, deixa a lingerie à mostra.

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Acessórios, maquiagem: Atena usa acessórios dourados, muitos anéis de uma vez, pulseira de mão, maquiagem que ressalta mais os olhos e batom claro. Unhas pintadas geralmente com formas geométricas pretas que deixam partes da unha sem tinta. Bolsas luxuosas. Ela utiliza um colar que parece uma “coleira” dourada com o nome Romero. Cabelo: Atena usa os cabelos longos, ondulados e volumosos. Na maioria das vezes, estão soltos. Linguajar: dialeto comum e popular. Mistura os pronomes “você” e “tu”. Usa algumas expressões específicas, que marcam a personagem: “nuuunca pensei” e “nem sei”. Cenário: No quarto da vilã na pensão, no começo da trama, destaca-se a quantidade de roupas, bolsas, cintos, sacolas de compras (marca Dior) no cômodo e os recortes de revistas e jornais com imagens de bolsas e acessórios colados no espelho do banheiro, onde há também uma imagem de santo afixada. Música: A trilha de Atena é composta pelas músicas “Always Alright”, Alabama Shakes e duas que são tema com Romero: “Photograph”, Ed Sheeran e “Eu te Amo”, Roberto Carlos. Atuação: Ela tem uma risada bastante expressiva. Faz piadas constantemente. Fala rápido. Tem movimentos ágeis. Às vezes ela dá um gritinho, acompanhado de um movimento com a mão, no meio da conversa e dá risada alta abrindo bastante a boca quando faz uma brincadeira.

Substância da expressão Atena aparece duas vezes no primeiro capítulo. Na primeira cena, está na boate Caverna da Macaca, de noite, música diegética, Tóia passa por Atena e Sumara (que será uma de suas vítimas de roubo) para atender Neymar. Quase não é possível ver quem são as duas mulheres pelas quais a gerente passa. A duas entram na boate. Primeiríssimo plano da lateral do rosto de Atena contra a luz. Primeiro plano, na outra lateral, da vilã conversando com Sumara. Atena usa uma saia assimétrica e dores escuras. Atena diz não se importar com a presença de Neymar, e mente que já o conhece. Nesse instante, ela dá de ombros e chacoalha os seus cabelos. Ela alega chamar-se Atena Torre Molino, dona de meia Mato Grosso. O cantor de funk Merlô se apresenta com as dançarinas Alisson e Ninfa no palco da boate. Tóia e Adisabeba dançam. Depois, Atena e Sumara andam pela boate em plano americano e meio primeiro plano. Atena conversa sobre como o lugar é exótico. Elas chegam em um ambiente ao ar livre. Atena gesticula as mãos e chacoalha

171 os cabelos com as mãos novamente. A câmera acompanha as duas andando, que passam atrás de vigas e pessoas na boate. Atena é bastante expressiva, aponta o dedo quando conversa, arregala os olhos, mexe os cabelos, por exemplo. Ela “apresenta” Neymar para Sumara. Quando as duas andam até ele a câmera abre, plano de conjunto, vemos o corpo inteiro de Atena. Enquanto conversam com o jogador, as personagens estão em primeiro plano. Atena não gosta que Sumara tire foto em que ela apareça. A vilã paquera Neymar, coloca a mão no queixo dele, segura seus ombros, dá risada, disfarça e sai. Atena diz à amiga que Neymar a paquerou. As duas sobem as escadas, plano americano vemos as pernas de Atena que usa uma saia assimétrica, com fenda do lado. Elas sentam em uma mesa e pegam o cardápio. Merlô e as dançarinas terminam o show no palco. Pequena elipse. Tóia se aproxima da mesa de Atena e Sumara e pergunta se elas queriam champanhe. Atena quer um champanhe que não tem no cardápio, ela diz que só tem porcaria lá. Ela ri exageradamente. Tóia dá um jeito de conseguir. Elipse. Abner serve o champanhe para as duas. Atena diz que se satisfaz facilmente com o melhor. Elipse. Câmera alta, Atena e Sumara dançam na pista. Atena pula, vai até o chão. As duas conversam, meio primeiro plano, com taça na mão. Atena dá um tapa no bumbum de um moço que passa ao lado. Elas andam para a mesa, andam por trás de outras pessoas, plano de conjunto. É possível ver as pernas de Atena. As duas sentam, plano americano. Atena incentiva Sumara a arrumar um amante jovem. Atena pede a conta, ela fala rápido e repete as palavras - “conta, conta, conta”. Plano de conjunto. Atena não encontra o seu cartão. Sumara decide pagar a conta. Plano detalhe Sumara digitando a senha na máquina. Atena derruba bebida de propósito no colo da amiga, começa a tocar uma trilha sonora não diegética instrumental (baseada em “Mi ultimo tango en Atenas” de Apurimac). Enquanto Sumara de distrai com o garçom que a ajuda a se secar, a vilã troca seu cartão com o dela, plano de detalhe nos cartões. Atena sorri e agradece Sumara pela noite. A sequência dura em média 7 minutos e 15 segundos. Depois de outras cenas, Atena aparece mais uma vez. Ela se hospeda em um hotel com o cartão de Sumara, toca a música tema da personagem, “Always alright” de Alabama Shakes. Elipse. Piscina, com música tema. Elipse. Faz massagem, com música tema. Elipse. A música cessa. O recepcionista liga para o quarto de Atena informando que o seu cartão está sendo recusado. Atena, que no momento faz compras pela internet, percebe o problema, começa a tocar novamente a música instrumental (baseada em “Mi ultimo tango en Atenas” de Apurimac). Ela se arruma para ir embora. Elipse elevador. A

172 música para. Ela se nega a falar com o recepcionista, diz que está indo a um almoço beneficente para as crianças da Namíbia. Ela sai, a música volta. Atena pega um táxi e liga para Sumara. A vilã vai até a casa da “amiga” Sem música. Atena entra na casa de Sumara. As duas conversam. Atena embebeda a mulher. Trilha sonora branca, Atena faz uma marca da chave da casa para copiá-la. Ela acorda Sumara, bate em seu rosto com o pé. Elipse. Atena pega um táxi. Elipse. Outro dia de manhã, Atena volta para a mansão depois de Sumara viajar, toca a música tema da personagem (“Always alright” de Alabama Shakes). A vilã destrói tudo na casa. Ela grita quando acha as roupas de Sumara cafona. Rouba joias. Elipse. Ainda toca a música tema da personagem. Dia ensolarado. Atena confere a caixa de correio do lado de fora da casa, cumprimenta uma vizinha como se fosse a proprietária da casa.

Substância do conteúdo Como demonstrado por Mungioli e Mauro (2016), diferente da vilã Carminha, a dissimulação de Atena não está relacionada ao tradicional e aos bons costumes. Ela finge ser uma mulher rica para aplicar seus golpes e apresenta sensualidade e bom humor. A estética da personagem, roupas e cabelo, remete mais ao arquétipo da femme fatale do que Carminha. A comicidade está em sua atuação, respostas rápidas, deboches e forma dissimulada de aplicar golpes. Atena deseja aproveitar a vida e isso é transmitido também pelo ritmo e letra de sua música tema “Always Alright” de Alabama Shakes, que toca normalmente quando ela está desfrutando de alguma situação vantajosa. A personagem é dúbia em relação ao empoderamento feminino, apesar se se mostrar independente. Ao se vincular amorosamente com Romero, ela se submete a situações humilhantes para conquistar o amor do anti-herói e explicita seu ideal de amor romântico. No final, inclusive, o casamento entre os dois se concretiza. O seu nome verdadeiro, Francineide, é símbolo de um passado pobre que ela rejeita. As roupas, esmalte e acessórios de Atena demonstram o seu lado consumista e também se relacionam com o fato de a personagem ser interpretada por Giovana Antonelli, uma atriz que costuma ter êxito em vendas de estilo por meio de seus papéis. O materialismo da personagem dialoga com o arrivismo e a vilania. Se compararmos a vilã com a mocinha da história, Tóia, percebemos que o bom caráter, personificado pela última, está atrelado às cores alegres, estampas, roupas leves e de verão, à simplicidade e desapego material; e que o mau caráter é figurativizado pelas roupas escuras, sensuais, couro,

173 sofisticação, grife e consumo. O quarto da vilã na pensão também demonstra o materialismo e consumismos de Atena. Há alusão à religiosidade na imagem de santo no espelho do quarto, o que não se confirma em outros momentos da personagem. As músicas românticas que a acompanham nas cenas com Romero compõem o traço abnegado da personagem, assim como o seu colar com o nome do vilão. É importante destacar que no início ela mora em uma pensão e não numa residência fixa, dialogando com a problemática da moradia das mulheres populares. No primeiro episódio, quando ela entra na boate, sua imagem contra a luz destaca a personagem. A técnica de câmeras escondidas utilizada pela diretora Amora Mautner é evidenciada nas imagens captadas por trás de objetos e no momento em que Tóia passa por Atena e Sumara. Há a sugestão de naturalidade, realidade, movimento. E o telespectador tem a impressão de ter um olhar privilegiado Acompanhamos Atena andando pela boate. O champanhe simboliza os hábitos de luxo da personagem. Nas outras cenas do capítulo, observa-se um ritmo acelerado, por exemplo quando ela está no hotel, aproveitando massagem e piscina. A música e as elipses dinamizam a cena. O ritmo faz parte da construção de Atena. Do mesmo modo, quando ela está na casa de Sumara, as elipses e os vários acontecimentos no local têm ritmo acelerado. O primeiro capítulo mostra o mau-caratismo de Atena, o golpe aplicado e o seu desejo por diversão e consumo. Mas, não é explicitado o principal conflito da personagem, que no caso seria o seu envolvimento com Romero. Ainda assim, verifica- se que esse conflito não implica mudanças à personagem ou obstáculos dramáticos significativos como em Carminha. No final da trama, Atena não se redime e continua aplicando golpes. Trata-se de uma personagem mais previsível se comparada com a vilã Carminha e, portanto, mais plana e estável em termos narrativos. Tal fato é evidente também na ausência de construção familiar da personagem. Temos apenas vagos indícios de um passado pobre. Além disso, ela não passa por mudança de visual, o que reflete a sua estabilidade, apesar de viver aventuras. É pertinente apontar que as músicas e roupas de Atena não remetem ao popular. Egocentrismo: trilha sonora baseada em “Mi ultimo tango en Atenas” de Apurimac. Música tema “Always Alright”, de Alabama Shakes. Consumo e vida material. Facção. Casa de Sumara.

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Abnegação: músicas tema com Romero, “Photograph”, Ed Sheeran e “Eu te Amo”, Roberto Carlos. Colar com o nome “Romero”. Filho com Romero. Emergente social: cobertura de Romero, roupas e bens materiais. Musa sedutora femme fatale arrivista: vestimenta sensual, cor preta, unhas pintadas. Cabelos longos loiros e soltos. Gosto material extravagante para alimentos, roupas, acessórios e diversão. Riso: atuação cômica. Cronotopo da aventura: os vários lugares por onde ela passa e os acontecimentos inusitados. Temas e figuras da primeira cena: golpe (falsa amizade, boate, cartão de crédito, identidade falsa, casa de Sumara, bebida, trilha sonora baseada em “Mi ultimo tango en Atenas” de Apurimac) diversão (champanhe, falsa identidade, boate, dançar, massagem, piscina, compras, hotel, música tema “Always Alright”, de Alabama Shakes). Resumo técnico: simultaneidade da boate, elipses na cena dela se divertindo, música extradiegéticas.

Lara (A Regra do Jogo)

Figura 8– Lara reconhece Orlando em imagem no jornal, no capítulo 46.

Fonte: Globoplay

Forma do conteúdo Atributos: Trabalhadora. mocinha melodramática Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: aventura Sentimento principal: dor Trabalho: garçonete, mas não aparece trabalhando no Rio de Janeiro. Relacionamentos amorosos: Orlando e Dante.

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Família/amigos: não tem familiares que apareçam, nem amizades importantes. Casa: mora na mansão dos Stuart, depois em uma casa no Morro da Macaca, alugada de Adisabeba. Consumo/vida material: Lara é simples, não há destaque a hábitos de consumo ou cultura material na personagem. Resumo da narrativa: Lara vem do interior para a capital carioca, à casa dos Stewart à procura de seu marido, Orlando, cujo verdadeiro nome é Ubiraci e está sumido há 10 anos. Ela não sabia, até então, que seu marido havia virado um bandido. Lara quer fazê- lo desistir da vida no Rio de Janeiro. Mas, o bandido se recusa e, apesar de gostar da moça, maltrata-a para que ela não fale nada sobre a facção. Ele dá um susto nela, colocando-a em um porta-malas como se fosse matá-la, por exemplo. Desiludida com Orlando, Lara começa a se envolver com o policial Dante, neto de Gibson. Para despistar Orlando, ela finge que volta para o interior, mas aluga uma casa no Morro da Macaca. Quando Dante descobre que Ubiraci é Orlando, o rapaz se sente enganado e termina com a moça, acreditando que ela veio para o Rio de Janeiro chantagear o bandido. Depois, ele percebe que estava errado. Orlando morre. Gibson, um homem poderoso, também interfere no relacionamento do neto com Lara. O homem obriga a moça a ir embora e deixar uma carta para Dante. Depois de um tempo, o policial a encontra no bar onde trabalha como garçonete no interior do Rio. Eles ficam juntos. Lara conta a verdade sobre Gibson, que foi ameaçada de morte. No final, Gibson é morto. Lara e Dante ficam noivos. Nível fundamental: As idas e vindas com Dante se dá porque ele não acredita nela, ou porque ela tem que se afastar e não pode dizer a verdade. Ou seja, há a oposição entre segredo (disfórico) e revelação (eufórico). Durante a trama, Lara é manipulada, julgada e julga (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador).

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Segredo Verdade

Não verdade (mentira) Não segredo (revelação)

Trajetória linear: Segredo – não segredo (revelação) – não verdade (mentira) - verdade.

Forma da expressão A personagem se expressa pela atriz Carolina Dieckmann. Ela é branca, loira, olhos claros e magra. Mudança de aparência: não. Roupas: usa calça jeans, saia jeans, jaqueta jeans, vestido jeans, blusas de alça, bolsa tira colo tipo carteiro, cores claras, estampas miúdas, vestidos. Sapato baixo. Acessórios, maquiagem: não usa maquiagem. Usa brincos, relógio, anéis, corrente com pingente de coração. Cabelo: cabelo um palmo mais ou menos abaixo dos ombros, levemente ondulado e loiro. Linguajar: dialeto culto. Cenário: sua casa no morro. Simples, mas que apresenta o mesmo ar romântico da personagem. Música: “O que se quer”, Marisa Monte. Atuação: a atuação da atriz indica fragilidade, doçura e um pouco de timidez. Por exemplo, o jeito que ela segura as mãos na mansão dos Stuart no capítulo 62.

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Figura 9 – Lara trabalhando no capítulo 46

Fonte: Globoplay

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 46. Câmera alta, plano geral, de noite, pequena cidade no meio de montanhas. Música tema da personagem, “O que se quer” de Marisa Monte. Lara de costas, arruma os cabelos, meio primeiro plano, do lado esquerdo há um obstáculo, parece uma porta, do lado direito é possível ver uma máquina registradora antiga. Plano detalhe do cabelo da moça, de suas mãos fazendo uma trança. Plano detalhe de Lara colocando uma correntinha no pescoço, de suas mãos. Lateral de seu rosto. Às vezes, a imagem está do lado direito, às vezes do esquerdo. Plano detalhe do pingente no colo de Lara e pedaço do avental. Plano detalhe dela amarrando o avental, pescoço, colo e cintura. O plano abre, ela está de costas, vemos a moça por uma janela grande, pegando algo em umas prateleiras de mantimentos. As cores são vivas. Do lado de fora do armazém, há clientes sentados em mesas, imagem desfocada. Lara se direciona para o lado de fora, anda perto da caixa registradora, sai pela porta do bar, imagem dela de costas, em direção aos clientes, com uma bandeja nas mãos e um guardanapo de pano nos ombros. Dá para ver muito rapidamente que a moça usa saia jeans. Do lado de fora, há algumas poucas mesas ocupadas com homens mais velhos, em uma rua pacata, de frente a uma praça com árvores. Ela toca no ombro de um cliente sentado, passa, vai à mesa ao fundo onde o cliente acabou de sair. A música abaixa. A moça agradece, limpa a mesa, em cima da qual um jornal lhe chama a atenção. Detalhe na mesa e no jornal. Vemos suas mãos, e parte do avental, pegando o jornal. A música é substituída por uma trilha branca de suspense. As mãos levam o jornal para perto do rosto. A câmera vai subindo aos poucos até o seu rosto. Foco no jornal, campo e contracampo, no rosto e no jornal. Outra garçonete vem atrás dela e chama a sua atenção. Lara, assustada, aponta para a foto do Bira no jornal. A

178 mulher lê o nome Orlando e não acredita na moça. De novo, vemos o rosto aflito de Lara. A moça respira ofegante, a música de suspense cresce. A cena dura cerca de 1 minuto e 30 segundos.

Substância do conteúdo Toda a atmosfera que envolve Lara confere um ar romântico à personagem, desde a o plano descritivo do alto de uma cidade do interior, até a música tema, roupas e percurso narrativo. O quadrado semiótico da personagem indica uma mocinha melodramática tradicional, calcada no amor romântico e nos obstáculos que enfrenta para estar com o seu amado. Percebe-se as roupas claras e estampas que se repetem nas personagens femininas boas e inocentes. Ela aparece pela primeira vez no capítulo 46, não é uma personagem de destaque na trama. Mas, sua primeira cena chama a atenção pelo trabalho técnico. Ao contrário do comumente visto na direção de Amora Mautner – personagens que são captadas andando, que passam atrás de objetos, de forma realista e improvisada – percebe-se uma cena mais parada, com menos movimento ao redor e mais poética. Os planos detalhes nos cabelos da moça fazendo trança, amarrando o avental, e colocando a correntinha expressam simplicidade e romantismo. É um ritual de alguém que se prepara calmamente para trabalhar. Tem-se a sensação de temporalidade dilatada. A música, junto da imagem da caixa registradora antiga e todo o cenário que remete a um armazém antigo de interior conferem romantismo à cena, um ar bucólico de tranquilidade. O fato de não vermos o todo do cenário no interior do ambiente reforça a expressão poética. Sua figura de longe entre uma grande janela pegando algo na prateleira de mantimentos compõe uma imagem pitoresca. A tranquilidade é interrompida quando a moça vê a fotografia de Bira no jornal. O plano de detalhe no objeto confere suspense à cena. O próprio jornal, em tempos de redes digitais e informação multiplataforma, representa o antigo romantizado do interior. Tudo isso faz parte da personalidade de Lara, cuja forma de falar não se diferencia de personagens do núcleo rico, nem mesmo seus gostos e vida material têm destaque. Ela também não apresenta mudança de visual significativa. O cenário da casa de Lara no Morro da Macaca é simples e transmite a mesma sensação romântica. É importante observar que o seu local de trabalho é aberto para a rua, o que remete ao espaço público, mas nesse caso do interior, um local bucólico.

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A primeira cena mostra logo o conflito que a motivará a mudar de cidade, mas não há ação inicial. Trata-se de uma personagem plana, previsível e não marcada em termos de classe social. Segredo: Orlando, cidade do interior, bar onde trabalha, mansão dos Stuart. Verdade: Dante, Rio de Janeiro, Morro da Macaca. Trabalhadora: bar, noite, atendimento ao cliente. Mocinha melodramática: vestimenta simples, estampas florais, bolsa estilo carteiro, trança nos cabelos. Atuação. Música “O que se quer”, Marisa Monte. Percurso romântico. Dor: atuação, música e linguajar culto que conferem seriedade a ela. Cronotopo da aventura: a mudança de cidade, os apuros que ela passa com Orlando e as reviravoltas para ficar com Dante. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (noite, cidade do interior, bar, caixa registradora, colocar correntinha no pescoço, amarrar avental, trança nos cabelos, bandeja, atendimento, música “O que se quer”, Marisa Monte), descoberta (mesa, jornal, fotografia, música de suspense). Resumo técnico: temporalidade dilatada. Plano detalhe. Músicas extradiegéticas.

Domingas (A Regra do Jogo)

Figura 10 – Domingas triste em sua casa. Imagem do capítulo 12.

Fonte: globoplay https://globoplay.globo.com/v/4463782/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. mulher valente Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: aventura Sentimento principal: dor

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Trabalho: Trabalha de atendente de loja no começo da trama e depois abre o seu próprio restaurante. Relacionamentos amoroso: Ela se relaciona amorosamente com Juca e depois César/Rodrigo Família/amizade: Ela não tem familiares que apareçam na telenovela. Sua melhor amiga é a Indira. Casa: Ela tem a sua própria residência. Consumo/vida material: ela tem um gosto simples, nada específico em relação a isso a destacar. Resumo da narrativa: Domingas, moradora do Morro da Macaca, é vendedora na loja de roupas de Indira. Ela é destratada, agredida, traída e humilhada pelo marido, Juca. Ela aceita os maus tratos, pois não quer ficar sozinha e acha que não vai encontrar mais ninguém. Os vizinhos tentam ajudá-la, mas ela não aceita. Inclusive, ela vende sua casa (casa onde moram) a pedido de Juca após ele ameaçar deixá-la. Mas, chega o dia em que Domingas consegue colocar o marido para fora de casa. Ainda assim, ele a persegue. Depois de expulsá-lo, um dia voltando para casa, Domingas encontra um homem desconhecido dormindo em sua cama. Ela se assunta, mas o deixa ficar. O homem diz se chamar César. Os dois se envolvem. Ele a trata muito bem. A partir disso, a autoestima de Domingas começa a aumentar. Ele a ajuda a enfrentar Juca quando necessário. Mas, o relacionamento do casal sofre altos e baixos. César guarda alguns segredos. Ele já é casado e seu nome verdadeiro é Rodrigo. Ele apareceu na casa de Domingas porque estava traumatizado após perder dois filhos em um acidente de carro. A casa da moça era a residência da babá do rapaz no passado. Eles terminam. Domingas abre um restaurante. Ele a procura, mas ela não o quer mais. Domingas descobre que está grávida. No final, os dois se acertam e têm um filho. Nível fundamental: Ela vai da autoestima baixa para a alta. Submissão (disfórico) versus emancipação (eufórico). Domingas é manipulada, julga e é julgada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador)

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Submissão Emancipação

Não emancipação (dependência) Não submissão (autonomia)

Trajetória linear: Submissão- não emancipação (dependência) – emancipação – não submissão (autonomia).

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Maeva Jinkings. É branca, olhos e cabelos escuros e é encorpada. Figura 11 – Dominga se produz, imagem do capítulo 130.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4771670/programa/

Mudança de aparência: A personagem muda de aparência quando se emancipa e passa a ter autonomia. Roupas: antes de se emancipar ela usa camiseta larga, saia jeans, bermuda jeans, cores claras, mais neutras. Depois de se emancipar, ela começa a usar vestido e estampas floridas. A mudança é gradual. Acessórios, maquiagem: no começo, não usa maquiagem, usa correntinha com um pingente da Nossa Senhora e brincos. Depois, ela começa a usar maquiagem, batom vermelho, flor no cabelo. Cabelo: cabelos cacheados escuros, na altura dos ombros.

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Linguajar: Ela fala com sotaque do Pará, a atriz foi criada neste estado. Na trama, ela também diz ter uma avó que era paraense. Trata-se de uma variação geográfica da linguagem (PRETI, 2000). Cenário recorrente: Em seu quarto, em cima da estante, destaca-se uma imagem, pequena escultura de Nossa Senhora. Música: Tema com César: “Nossa Canção”, Vanessa da Mata. Atuação: a atriz interpreta a personagem com um tom de voz fraco, fica um pouco ofegante quando briga com o marido, chora. Ela hesita um pouco para falar, principalmente no começo da trama.

Substância da expressão Domingas aparece duas vezes no primeiro capítulo. Na primeira ela cumprimenta Tóia na rua e na segunda ela ajuda Djanira que caiu em uma escada na rua também. São aparições bem rápidas, sem fala, quase como figurante. No capítulo 3, mais uma vez a personagem não tem fala e aparece muito rápido na loja onde trabalha. No capítulo 4, ela está junto de outros moradores do morro comemorando que Tóia foi solta, na boate Caverna da Macaca, não há fala. No capítulo 6, ela aparece na loja de novo e sem fala. Ela é de fato apresentada no capítulo 11, na cena que descremos a seguir. Boate Caverna da Macaca está cheia de gente. Juca dança com uma mulher ao som da música (diegética) “Sou dessas” de Valesca Popozuda. Domingas está longe e se aproxima. Sua expressão facial sugere que ela já percebeu que o marido está com outra. Há um plano sequência que focaliza a lateral da moça andando pela boate ao encontro de Juca, ela passa por traz de outras pessoas que dançam e também de um pilar. Ao chegar perto dos dois, sem ser vista ainda, Domingas para e fica olhando a cena por um tempo logo depois deles se beijarem. O plano abre e enquadra os três, Domingas olhando e os dois se agarrando. Em seguida, a mulher traída se direciona até os dois. Ela confronta o marido e empurra a mulher, a chama de “mandada”. Juca pega Domingas pelo braço e a leva para um canto. A partir daí, há uma sequência de campo e contracampo dos dois conversando. Ele a destrata, a chama de “pacotinho”, “jaburu” e “gordinha”. Domingas chora. Juca diz que em casa há uma pilha de roupa para ela passar. Ela diz que não vai passar e que não vai abrir a porta de casa para ele se ele continuar na boate. O homem rebate, diz que tem a própria chave e que deseja um caldinho quente de mocotó esperando por ele quando chegar. Juca empurra Domingas, manda ela “vazar”. Ela o xinga de

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“cretino”. Juca volta a dançar com a moça. E Domingas triste fica olhando um pouco enquanto vai embora. Há a predominância de primeiro plano e plano médio em Domingas. Nos dois casos é possível ver um pouco do ambiente ao redor. Em nenhum momento consegue-se ver o seu corpo inteiro. Apesar de empurrar a moça, os movimentos de Domingas são mais contidos, ela não gesticula as mãos quando os confronta. Quando caminha até eles, o faz vagarosamente, em passos tímidos e tristeza no rosto. Ela não revida o empurrão de Juca. A cena dura em aproximadamente 1 minuto e 30 segundos.

Substância do conteúdo A personagem tem o mérito de retratar um problema sério e recorrente no Brasil, a violência contra a mulher. Na trama, Domingas consegue reagir e se livrar da situação. Percebemos a mudança de atitude da personagem em seu modo de falar, ela passa a ser menos hesitante, e em sua estética. As roupas coloridas, a flor no cabelo e o batom vermelho representam o seu estado de libertação. O batom vermelho especificamente exerce uma simbologia especial no contexto de relacionamentos abusivos vivenciados por mulheres como explica a citação a seguir que trata da cena em que Domingas se arruma em frente ao espelho. Essa cena traz luz a um movimento que se iniciou na internet para fortalecer as mulheres, a partir do vídeo publicado no Youtube pela vlogueira jout Jout denominado “Não tire seu batom vermelho”, que aborda relacionamentos abusivos. A atriz Clarice Falcão também criou o vídeo “Survivor”, em que mulheres utilizam o batom vermelho da maneira que desejam. (BACCEGA; ABRAÃO, 2016, p.116). Porém, o fato de um homem ter aparecido em sua cama repentinamente, com quem Domingas vivencia o amor romântico, se assemelha às histórias de contos de fada e não torna a sua história empoderadora para as mulheres. Afinal, César é um fator importante para o aumento de sua autoestima. Apesar disso, é possível interpretar simbolicamente a figura do rapaz como uma parte do íntimo da personagem em uma espécie de narrativa de iniciação para autoconfiança. O restaurante simboliza a sua independência e a fortalece. Curioso que a libertação de maridos abusivos e a conquista da independência por meio da abertura de um restaurante é um tema já trabalhado em duas personagens de telenovela, Catarina em , do próprio João Emanuel Carneiro, e Celeste de Fina Estampa, de Aguinaldo

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Silva. No caso de Domingas, a comida está relacionada às suas raízes, pois ela cozinha comida do Norte o que a lembra da culinária de sua tia. Contraditoriamente, a comida representa também a sua prisão quando Juca ordena que ela prepare alimentos para ele. As roupas simples e de tons apagados usados por Domingas são símbolo da falta de vaidade, tristeza e baixa autoestima antes da transformação. A personagem, embora esteja classificada no cronotopo da aventura, não vive tantos acontecimentos inusitados e está enraizada a um único local, o Morro da Macaca. mas apresenta mais movimento que Lara e mudança de aparência. Apesar da personagem não fazer referências religiosas verbalmente, a sua corrente com o pingente de Nossa Senhora e a imagem da santa em sua cômoda revelam a sua religiosidade. Tal fato pode inserir-se na caracterização das personagens em João Emanuel Carneio, pois o tema é figurativizado em outras personagens do autor. A relação com o espaço público é evidente em Domingas nos momentos em que ela aparece rapidamente nos primeiros capítulos. A cena em que a personagem é apresentada realça a humilhação sofrida com o plano aberto dela observando o marido a traindo. a música diegética se contrapõem ao comportamento submisso da personagem, pois a letra diz: “sou dessas que fala o que pensa bem na tua cara. Sou dessas que nunca levou desaforo pra casa. Sou dessas que se for preciso até falo mais alto. Sou dessas que roda a baiana sem descer do salto. Sou dessas que se arruma toda só pra provocar. Sou dessas que de vez em quando gosta de aprontar”. Domingas andando devagar até o casal, por sua vez, acentua o sentimento de sofrimento transmitido pela personagem. Seus movimentos contidos, o choro, a não reação ao empurrão de Juca e ela indo embora sem nada mais fazer revelam a submissão da personagem. Outro elemento que chama a atenção é a vestimenta simples de Domingas que destoa do ambiente da boate. Ela usa uma camiseta como se estivesse saído sem se arrumar. Percebe-se na primeira cena o conflito principal da personagem que a acompanhará durante toda a trama. A duração do acontecimento representado equivale ao tempo real o que transmite mais realismo e naturalidade. A música diegética reforça essa impressão. É pertinente observar que a personagem só terá uma música tema com a aparição de César. Submissão: roupas com cores apagadas, camiseta, sem maquiagem, tristeza, sem música, serviços domésticos como obrigação. Trabalhando como atendente de loja. Fala hesitante.

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Emancipação: flor no cabelo, batom vermelho, roupas com estampas florais e coloridas. Novo amor. Música “Nossa Canção”, Vanessa da Mata. Restaurante próprio/comida. Retorno às raízes. Fala com mais firmeza. Trabalhadora: de atendente de loja para proprietária de restaurante. Atendimento ao cliente. Mulher valente: o percurso narrativo mostra o seu caráter como mulher valente. Dor: submissão, atuação, marido, agressão sofrida, serviço doméstico obrigatório. Cronotopo a aventura: a transformação que ela sofre e principalmente a aparição repentina de César em sua cama. Temas e figuras da primeira cena: humilhação/traição: marido com outra, boate, música diegética “Sou dessas” de Valesca Popozuda, o seu caminhar, roupas simples, caldinho de mocotó para o marido, empurrão, as palavras “pacotinho”, “jaburu” e “gordinha”, choro, ir embora sozinha. Resumo técnico: temporalidade real. Ela andando na boate. Música diegética.

Monalisa (Avenida Brasil)

Figura 12 –Monalisa, no salão de beleza, assiste Tufão pela televisão em uma partida de futebol, no primeiro capitulo

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1875660/

Forma do conteúdo Atributos: emergente social. Matriarca e mulher valente. Protagonismo/posição: personagem importante, núcleo principal. Cronotopo: aventura e trivial Sentimento principal: dor e riso Trabalho: É cabelereira, trabalhava em um salão, mas com a ajuda de Tufão, e também graças à formula de alisamento que ela inventou, virou empresária de uma rede de salão de beleza.

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Relacionamentos amorosos: Tufão e Silas Família/amigos: sua família da Paraíba aparece bem pouco no começo da trama. Ela tem um filho adotado. Sua melhor amiga é Olenka. Casa: Ela tem uma casa onde mora com seu filho Iran e sua amiga Olenka. Silas também mora com eles em determinado trecho da novela. Ela hospedou por um tempo Tessália e Leleco. Consumo/vida material: o consumo e gosto material de Monalisa se destacam. A personagem tem um gosto simples para comida. Ela não gosta do champanhe oferecida por Tufão e diz preferir cerveja gelada na comemoração do seu noivado. Sozinha em um quarto de hotel, ela pede coxinha de galinha e frango a passarinho. Ela também não se adapta ao apartamento na zona sul do Rio de Janeiro e prefere morar no Divino, na zona norte. Em determinada cena, ela lista para Silas todas as suas conquistas materiais dentro de sua casa, como as televisões de plasma e um umidificador de ar que ela comprou sem saber para que servia, e cobra dele contribuir com a casa se ele quiser morar lá, com “1 kg de filé mignon”. Resumo da narrativa: Monalisa é paraibana, mora no Rio de Janeiro, trabalha em um salão de beleza e namora o jogador de futebol Tufão. A mãe do jogador, Muricy, não aprova a relação. Ele pede a moça em casamento e os dois ficam noivos. Tufão enriqueceu como jogador de futebol e abre um salão de beleza com Monalisa. Porém, Carminha aparece na vida de Tufão e o seduz. Monalisa descobre um certo envolvimento entre Carminha e seu noivo e termina com Tufão. Ela está grávida, mas não conta para ele. A cabelereira decide voltar para a Paraíba com a família, mas o ônibus capota e ela perde o bebê. Depois, a moça adota uma criança, Iran, e volta para o Rio de Janeiro. Seu salão vai bem, ela faz uma fórmula de alisamento de cabelo que obtém muito sucesso. O negócio vira uma rede. Monalisa consegue comprar a parte de Tufão do salão. A loira tem um relacionamento com Silas, mas é relutante em casar com ele, pois gosta da sua liberdade. Quando ele inventa que tem um problema no coração, Monalisa acaba casando, mas desfaz o casamento quando descobre que era mentira. Quando o relacionamento de Tufão e Carminha acaba, Monalisa, encorajada pelos amigos, procura o amado com um pedido de casamento em público (do mesmo modo que ele fez há 12 anos). Ele aceita. Muricy pede perdão para a moça, mas elas continuam entrando em atrito de um modo cômico. Ela revela que pretende abrir lojas de sua rede no shopping que Tufão e sua irmã Ivana vão abrir no bairro.

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Nível fundamental: A oposição está entre firmeza (eufórico) e fraqueza (disfórico). Monalisa demonstra insegurança em relação ao relacionamento com Tufão logo no início, depois da união ela é traída e se enfraquece. Ela dá a volta por cima e assume sua personalidade forte. Inclusive, ela é independente e não quer abrir mão de sua liberdade e autonomia na relação com Silas. Porém, quando Carminha e Tufão se separam, ela se sente mais vulnerável porque sabe que ainda ama Tufão e o procura. Monalisa abranda os seus sentimentos para que ela reate a relação. Monalisa julga, é julgada e é manipulada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador).

Firmeza Fragilidade

Não fragilidade (segurança) Não firmeza (brandura)

Trajetória linear: fragilidade – não fragilidade – firmeza – não firmeza.

Forma da expressão

A personagem é expressada pela atriz Heloísa Périssé. Ela é encorpada, loira e tem olhos claros. Figura 13 - Na cozinha da sua casa com seu filho, no capítulo 8

. Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1887900/>

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Mudança de aparência: ela corta o cabelo no primeiro capítulo. Muda novamente apenas com a passagem do tempo de 12 anos, no capítulo 8. Roupas: na virada de 1999 para os anos 2000, a personagem usa vestido estampado, com cintura marcada, blusa e saia com cintura marcada, usa bastante cor de rosa, casaquinho e decote. Depois, com a passagem do tempo de 12 anos, e a ascensão social, Monalisa usa menos estampas, cores lisas, além de cor rosa, aparece com blusa roxa e azul. Usa blusas com manga e decote em “v”, bermuda jeans, calça jeans e saia jeans de cintura alta. Acessórios, maquiagem: usa unhas pintadas de cor de rosa, correntinha e brincos dourados. Nisso não houve diferença significativa com a passagem do tempo. A maquiagem permanece parecida, com batom avermelhado. Cabelo: no primeiro capítulo ela está com os cabelos longos, um pouco ondulados, e corta na altura dos ombros (ela está trabalhando no salão de beleza nesse momento) após Tufão, seu noivo jogador de futebol, marcar um gol. Ela usa as pontas viradas para fora. Depois da passagem dos 12 anos ela faz um corte long bob (mais curto atrás), com a nuca batida e mais liso. Nos três visuais ela está loira. Linguajar: ela fala alto, às vezes grita. Dialeto comum. Cenário: sua casa. A cozinha é um ambiente bastante mostrado quando a personagem está interagindo com outras pessoas. O salão de beleza do qual é dona também é importante para a personagem. O ambiente tem bastante cor de rosa e antes da ampliação, havia imagens de santo no espelho. Música: tema com Tufão: “Estória de Nós Dois”, intérprete José Augusto. Tema com Silas: “Pura Adrenalina”, Belo. Atuação: Quando acha que foi traída por Tufão, logo no começo, a atriz apresenta uma tonalidade de voz fraca, tremida e suave. Mas, grita e fala firme em outros momentos. Ela mexe bastante as mãos para falar, está sempre com a postura reta, fala olhando nos olhos do seu interlocutor. Quando briga com Silas, seu namorado, coloca o dedo em riste. Substância da expressão No primeiro capítulo, Monalisa aparece dez vezes. As primeiras vezes são parte de uma cena entrecortada por outras simultâneas. Salão de beleza, samba baixo não diegético. De dia. As cores são vivas e alegres, tons cor de rosa.

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Monalisa, em primeiro plano, prepara uma tintura de cabelo enquanto olha para o lado em direção à televisão. Ela anda até a cliente. Plano de conjunto, vemos Olenka entrando com outra cliente. A câmera enquadra as quatro pessoas, parte do salão de beleza e o lado de fora através de duas grandes portas. A freguesa chama a atenção de Monalisa que parece distraída. Ela diz que está vendo o seu namorado na televisão, a mulher se surpreende por ela ser namorada de Tufão. A câmera anda para a direita e enquadra Olenka em primeiro plano. Ela diz sorrindo que Tufão “andou dando umas volta com você. Isso não quer dizer que ele queira alguma coisa séria contigo”. Monalisa rebate que está com o rapaz faz dois anos. Quando Monalisa responde, Olenka aparece desfocada e vice-versa. Na televisão Tufão diz que vai se casar mês que vem, Monalisa faz cara de espanto, Olenka se aproxima, sua imagem começa a ficar nítida. Primeiro plano, close das duas. Olenka tenta consolar Monalisa. plano de conjunto. A cliente chama por Monalisa porque sua cabeça está ardendo. Vemos as três refletidas no espelho. O trecho dura 58 segundos em média. Essa cena é entrecortada por outras. Há uma elipse. Monalisa não aceita a sugestão de Olenka de ir embora descansar. Ela se direciona até a cliente, mas começa a chorar. Uma trilha sonora triste tem início. Olenka puxa a amiga para um canto e a consola. Vemos as duas de longe, depois a câmera se aproxima. Campo e contracampo de seus rostos em primeiro plano. Olenka diz que já cansou de dizer que “homem é tudo um bando de cachorro, irmã”. “Deixa estar que a loirinha que ele arranjou vai arrancar todo o dinheiro dele”. Monalisa estranha como a amiga sabe que Tufão tem outra mulher loira. Na verdade, Olenka apenas deduziu. Logo em seguida, começa a tocar um samba. Na rua, um carro de som chama por Monalisa. Olenka acha que é pegadinha. Elas saem correndo para a rua, vemos Monalisa enquadrada até os joelhos. Barulho de salto. Tufão aparece e pede Monalisa em casamento. A moça não entende no começo, mas depois aceita. Toca a música tema do casal “Estória de Nós Dois” interpretada pelo cantor José Augusto. Há uma plateia na rua que assiste aos dois se beijar. Na terceira vez em que aparece, Monalisa ainda está no salão assistindo ao jogo de futebol com a amiga. É noite. Toca um rock que também acompanha o jogo de futebol, extradiegético. Câmera em ângulo alto, elas aparecem de costas. Depois, o plano fecha em seus rostos. Elas reagem ao jogo. Monalisa grita quando Tufão sofre uma falta. Acusa o juiz de ter sido comprado. “Tá ganhando quanto, o palhaço?”. Ela promete à amiga que se Tufão fizer gol no final do campeonato ela corta “o rabo de cavalo” todo.

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Na quarta vez, ela está em primeiro plano e diz que não pode “ver essas coisas” que está passando mão. Leva a mão à boca. Na quinta vez, as duas de costas assistindo ao jogo, em meio primeiro plano. Alguns objetos em cima de balcão se sobrepõem à imagem das duas. É noite, ainda toca o rock. Monalisa vira um pouco de lado e une as mãos em ato de reza “ai, minha Nossa Senhora do Rosário, Tufão tem que virar esse jogo”. Na sexta vez, toca o rock ainda. A câmera está em ângulo alto, como se estivesse no lugar da televisão. Quase foi gol e Monalisa grita, vira para trás para se comunicar com outras pessoas gritando. Primeiro plano, ela xinga o juiz “ladrão”. Monalisa joga um objeto na televisão. Na sétima vez, Tufão fez um gol. Toca um samba. Ângulo alto, elas estão de costas. Depois, plano fechado em Monalisa que chora e vê que Tufão está dizendo que a ama na televisão. Olenka está atrás desfocada. “é o homem da minha vida” declara Monalisa. Ela grita e manda beijos para a televisão “eu também te amo, meu amor, meu lindo! Meu lindo!”. Monalisa pega a tesoura no balcão, senta em uma cadeira e entrega a tesoura para Olenka “estou pronta para o sacrifício”. Na oitava vez, Monalisa já está de cabelo curto, de costas, plano aberto, rock de novo, noite. A câmera se aproxima de Monalisa que conversa com uma imagem em papel de Nossa Senhora grudada em um espelho, “ai, minha Nossa Senhora, a senhora não pode me abandonar agora. Ai, meu pai.”. Ela torce pelo gol com os dedos cruzados. Na nova vez, toca um samba. Flamengo ganha. Monalisa e Olenka comemoram o gol. Se abraçam, pulam e gritam juntas. “É campeão! É campeão!”. Todos no salão comemoram. Na décima vez, no Clube do Divino. Muricy dá uma entrevista, seu rosto desfoca e aparece Monalisa ao fundo entrando no clube. Toca o seu celular, “Tufão, é você, meu amor?” ela anda e a câmera a acompanha. Aparece Tufão. Monalisa encosta no balcão do bar, no qual algumas bebidas repousam. Vemos o corpo da moça um pouco acima das canelas, ela diz que é o dia mais feliz da vida dela também. Primeiro plano, Monalisa fala empolgada “tô te esperando!”, dá um gritinho e desliga o celular.

Substância do conteúdo A personagem apresenta dois aspectos que se opõem de certo modo – uma personalidade que ela assume com Tufão e outra sem ele. Por exemplo, possui um visual

191 mais romântico antes da passagem do tempo. Depois, sua caracterização, em termos de figurino e cabelos, conota mais determinação, com cores lisas e cabelo moderno. Com Tufão, ela é mais doce. Com Silas, é mais firme. A primeira atuação aponta para o melodrama, e a segunda tem ares de comédia. As músicas indicam a mesma diferença. A trilha tema com Tufão é mais romântica, e a música tema com Silas é mais divertida. As mudanças visuais de Monalisa se concentram bem no início da novela, o que reflete menor movimento da personagem no meio da trama. Ela espera por forças externas para se unir novamente a Tufão. Após ele descobrir toda a verdade sobre a vilã e a colocar para fora de casa, Monalisa o pede em casamento. É como se a personagem estivesse esperando durante a trama o desenrolar da história com Carminha para assumir o romance deixado para trás há 12 anos. Quando o casal reata, a sensação é de que o tempo não passou. Percebe-se, desse modo, que a temporalidade da personagem não é só a da aventura, mas se mescla com a trivial, que corresponde justamente ao seu período mais cômico e leve vivido com Silas. O gosto material da personagem indica orgulho pelo o que foi conquistado com seu esforço e ao mesmo tempo apego às suas origens populares. Esse gosto demonstra similaridades com a personagem Maria da Penha (Taís Araújo) na novela Cheias de Charme, também de 2012, analisada por Mauro (2014). Monalisa expressa a ética do trabalho e o espírito comunitário (presente na recusa em abandonar as raízes) das novas classes trabalhadoras (erroneamente chamadas de “nova classe C”) discutidos por Souza (2012). É importante opor esse reforço das origens populares às vilãs Carminha e Atena, que, ao contrário, assumem gostos caros e querem se destacar de sua origem pobre a todo custo. O primeiro capítulo da personagem é todo em função de Tufão, do jogo de futebol e de seu trabalho no salão. As cores conotam alegria e romantismo. A técnica que desfoca o fundo e a deixa nítida realça o seu rosto e faz com que vejamos sem ver de fato a personagem de Olenka ao fundo. No caso em que ela é realçada ao fundo, no momento da entrevista de Muricy, a técnica remete à simultaneidade dos acontecimentos no Clube do Divino; sem desenquadrar o momento da entrevista, vemos Monalisa entrando falando com Tufão no celular. O salão de Monalisa é voltado para a rua, o que remete ao público, à comunidade e ao popular. O telespectador se localiza no espaço por meio da porta de entrada. Inclusive, o trecho em que Tufão a pede em casamento reforça o aspecto público e comunitário do bairro com a plateia que os assiste.

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A cena intercalada reforça a sensação de simultaneidade com as outras personagens que assistem ao jogo e acentua a permanência de Monalisa em um mesmo lugar, o trabalho em horário comercial, de dia até de noite. Ainda assim, o ritmo é acelerado pela quantidade de cortes e pela música – o rock conota a tensão do jogo e o samba traz alegria e alívio. Há comédia no modo de Monalisa reagir à partida, falando alto, xingando e jogando objetos na televisão. Mais uma vez, observa-se a simbologia dos cabelos na cena, o corte para ela é um “sacrifício”. Outro aspecto marcante é a religiosidade expressa pela personagem, atrelada à caracterização popular. As cores alegres da trama contrastam com as cores escuras das cenas de Carminha. Monalisa faz parte da temporalidade do Divino enquanto Carminha se destaca em uma ação paralela. Fragilidade: cabelos longos, estampas floridas, paixão por Tufão. Música tema com Tufão “Estória de Nós Dois”, intérprete José Augusto. Firmeza: cabelos curtos, cores lisas, filho adotado, relacionamento com Silas. Música tema com Silas: “Pura Adrenalina”, Belo. Emergente social: de cabelereira para empresária. Orgulho dos bens adquiridos. Tv de plasma, umidificador de ar. Mulher valente: equivale à firmeza no quadrado semiótico. Linguajar firme e alto. Matriarca: equivale à firmeza no quadrado semiótico. Linguajar firme e alto. Dor e riso: dor - música tema com Tufão “Estória de Nós Dois”, intérprete José Augusto, momento de fragilidade do quadrado semiótico. Riso - música tema com Silas: “Pura Adrenalina”, Belo, momento de firmeza do quadrado semiótico. Cronotopo de aventura: ela passa por muitos acontecimentos nos primeiros capítulos da trama. Noivado, desfaz noivado, volta para a Paraíba, perde bebê, adota um menino e volta para o Rio de Janeiro. Cronotopo trivial: a maior parte da trama. Equivale ao riso e à firmeza. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (salão de beleza, atendimento ao público, cores alegres, amiga) amor (televisão, jogador de futebol, pedido de casamento, partida de futebol). Resumo técnico: Cores alegres. Sequência intercalada. Cortes e música no ritmo do jogo de futebol, ritmo acelerado. Músicas extradiegéticas. Simultaneidade no Clube do Divino.

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Das seis personagens observadas a mais complexa é Carminha que também é quem passa por mais transformações. A vilã apresenta mais atributos e sentimentos. Ao mesmo tempo em que é uma vilã canônica, é dúbia e imprevisível em alguns instantes. A personagem faz paródia às mulheres burguesas de telenovela, em consonância com a noção de plurilinguismo paródico de Bakhtin (2010). A perspectiva socio-ideológica burguesa dos valores familiares tradicionais e da religiosidade é satirizada ao ser incorporada pelo fingimento da vilã. A personagem também apresenta dialogia com os contos de fadas, conforme apontado, assim como Domingas. Em termos de movimento Tóia e Atena são mais dinâmicas no primeiro capítulo. Atena é uma vilã leve, que quer se divertir, voltada ao humor. Nota-se que em relação ao nível fundamental, Carminha e Tóia apresentam elementos em comum. Ambas representam a justiça em oposição à injustiça, mas estão em lados opostos. As duas são as que mais sofrem transformações físicas e vivenciam aventuras. O crime e a prisão estão presentes em ambas. A estética noir teve lugar nos primeiros capítulos de Tóia e Carminha. Na primeira houve contraste com o dia, o bairro e o samba. Na segunda o noir foi reforçado como parte do seu caráter. Monalisa contrasta com Carminha no primeiro capítulo por estar integrada à estética popular do Divino, enquanto a vilã se encontra em outra temporalidade que se conecta com o Divino apenas pela televisão. O jogo de futebol dita o ritmo dos planos intercalados de Monalisa, com os cortes rápidos e a música. Além disso, as cores das duas personagens se contrapõem. Monalisa é a mais marcada em termos de classe, pois apresenta a ética do trabalho das novas classes trabalhadoras, tem os sentimentos dor e riso, e duas temporalidades durante a trama, uma relacionada à aventura e outra ao trivial. Lara é a menos marcada em termos de classe, nota-se isso pelo linguajar, pela ausência de referências populares no gosto material ou roupas. É mais romântica também. A sensação de temporalidade estendida e a estética poética do primeiro capítulo contrastam com as outras personagens. A primeira cena de Domingas, por sua vez, coincide com a temporalidade real. A música diegética também trouxe naturalidade à cena. É possível argumentar que se trata de uma representação popular menos caricata do que em Monalisa, com pretensão realista. Comparando as duas vilãs, é possível considerar Atena uma personagem plana, embora em alguns momentos possa ser criativa e capaz de reviravoltas. No entanto, quando a analisamos mais detidamente, percebemos que se mantém com as mesmas características

194 que a apresentam no início da trama. Porém, as duas têm em comum a temática do golpe, a procura e o gosto pelo luxo, elas querem se dar bem na vida com pouco esforço, aproveitam-se da aparência física – as duas são belas, esbeltas, jovens e tingem o cabelo de loiro. Ambas usam os relacionamentos para obter o que desejam e rejeitam o trabalho. De certa forma, dialogam, é possível inferir, com aspectos da mulher popular discutidos por Soihet (2015) no âmbito das poucas oportunidades, da origem pobre, e da dependência dos relacionamentos para obterem status social, embora elas revelem um lado negro específico das personagens vilãs. A chave que as decifra é a da ambição e da conquista de bens buscando conquista-los a qualquer preço. O consumo assume papel aspiracional importante em ambas, com luxo, dinheiro, viagens, mordomias e objetos caros sempre almejados e, muitas vezes, obtidos por elas durante a trama. Carminha deseja ainda o status social que um casamento de interesses pode proporcionar. Das seis personagens as seguintes questões se destacam.  Música: Tóia e Atena contam com música internacional e brasileiras (MPB). Domingas só começa a ter uma música, brasileira (MPB), quando se relaciona com César. Tango eletrônico marca quando Atena e Carminha estão se dando bem. Monalisa tem duas músicas brasileiras (MPB e samba) e Lara conta com uma música MPB.  Roupas e cores: as estampas floridas e alegres marcam a bondade das personagens (Tóia, Lara e Monalisa), a inocência (Tóia), a fragilidade (Monalisa) e a alegria quando Domingas aumenta sua autoestima. Cores lisas marcam o despertar de Tóia e o fortalecimento e amadurecimento de Monalisa. As cores apagadas simbolizam a tristeza e submissão de Domingas. O preto e cores escuras se relacionam à sedução em Atena. Carminha se divide entre o preto e branco, os contrastes, preto para a realidade e seu castigo e o branco para a sua falsa bondade.  Cabelos: os cabelos longos estão para a fragilidade e inocência em Tóia e Monalisa e significam sedução e poder para Carminha e Atena. O loiro tem a mesma conotação de força para Carminha, assim como os cabelos soltos.  Linguajar: o linguajar popular está ausente em Lara e Tóia. Em Carminha ele se divide entre a verdade e maldade (linguajar popular) e o fingimento e mentira (linguajar culto). O pronome “tu” aparece como marcação do linguajar popular.

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 Religiosidade: das seis, Carminha se destaca pela religião quando finge ser quem não é. Além de suas falas e falsas atitudes, a religião está presente em seu pingente e na imagem do seu quarto. Atena tem um santo fixado no espelho do banheiro de seu quarto na pensão. Monalisa tem um santo no espelho do salão no primeiro capítulo, reza e evoca santos na ocasião do jogo de futebol. Domingas tem um pingente de Nossa Senhora e uma imagem da santa na cômoda de seu quarto. Tóia reza em frente a uma imagem de Jesus Cristo na cruz.  Maternidade: destaque para a maternidade em Carminha e Monalisa. A primeira maltrata a enteada, mas assume a postura da matriarca com o filho Jorginho. Monalisa é uma matriarca com o seu filho adotivo Iran. Tóia tem uma relação especial com a mãe adotiva Djanira.  Crime: o crime está presente nas trajetórias de Tóia, Atena, Carminha, Lara e Domingas. A duas últimas se relacionam com criminosos, a primeira é casada com um bandido da facção e a segundo é agredida pelo marido. Atena e Carminha aplicam golpes e Tóia sofre um golpe.  Trabalho, atendimento ao público e serviço doméstico: Domingas, Lara, Tóia e Monalisa trabalham com atendimento ao público. São respectivamente atendente de loja (e depois dona de restaurante), garçonete, gerente de boate e cabelereira.  Espaço público: a interface com o espaço público e/ou a mistura do espaço público e a residência e falta de privacidade estão presentes nas seis personagens de alguma forma. Tóia – rua, quintal, janela, cortinas que separam os cômodos da casa. Lara – bar com cadeiras na calçada. Atena – mora em quarto de pensão sem privacidade. Domingas – rua, loja de frente para a rua. Monalisa – salão de frente para a rua, plateia no pedido de casamento na rua. Carminha – rua, laje.  Andar: as cenas das personagens andando por trás de objetos e obstáculos se repete em Atena, Carminha, Tóia e Domingas. Na primeira, ela está na boate, e o ato sugere naturalidade, sensação de câmera escondida. Em Carminha traz suspense na cena em que está sendo seguida por Genésio. Tóia andando na rua se integra com o bairro e o tom comunitário. O andar de Domingas na boate aumenta a sensação de humilhação e submissão da personagem.  Câmera escondida e subjetiva: se relaciona com as cenas em que as personagens aparecem andando e também em cenas dentro de ambientes fechados quando o

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telespectador tem a sensação de estar espiando, com um olhar privilegiado. Em Carminha, a câmera subjetiva simula o olhar da criança e também os olhares de Rita e Genésio a espiando.  Simultaneidade: Caverna da Macaca no caso de A Regra do Jogo. Televisão e Jogo de Futebol em Avenida Brasil. A cena no Clube do Divino também confere a sensação de simultaneidade no momento em que a imagem de Muricy dando entrevista é desfocada e vemos nitidamente atrás Monalisa entrando com o celular.  Plurilinguismo: contos de fadas, paródia e estética noir.

3.5.Cronotopo idílico Betânia (Avenida Brasil) Figura 14 – Nina reencontra Betânia, cena retirada do capítulo 12

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1894065/ >

Forma do conteúdo

Atributos: trabalhadora. Protagonismo/posição: personagem de apoio (melhor amiga), não tem autonomia. Cronotopo: idílico Sentimento principal: entusiasmo Trabalho: frentista de posto de gasolina Relacionamentos amorosos: morava com o namorado Valdo, mas se separa por causa da amiga Nina. Família/amigos: foi criada no lixão por Mãe Lucinda. Melhor amiga de Nina. Casa: tem sua casa, onde mora com o namorado. Mas aparece pouco.

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Consumo/vida material: Betânia tem um gosto simples, mas usa brincos grandes no trabalho em um ambiente marcadamente masculino. Resumo da narrativa: Betânia morava no lixão durante a infância e era cuidada por mãe Lucinda, assim como Nina e Jorginho. Os três eram amigos. Nina procura por ela quando retorna da Argentina. Betânia, então, está trabalhando de frentista em um posto de gasolina e vive com Valdo. A moça ajuda Nina em sua vingança contra Carminha, se passando por Rita (nome de Nina quando pequena) para enganar a vilã, entre outras ajudas. Valdo não gosta dessas ajudas, que a prejudicam e os dois sempre brigam por esse motivo. Certo dia, por exemplo, Betânia apanha de Carminha. Também Carminha e seus capangas batem em Valdo na frente de Betânia para que esta conte qual a sua relação com Nina. Betânia decide que não vai mais ajudar Nina e deseja que a amiga desista da vingança. Mas, mais adiante, Nina convence a amiga a guardar umas fotos comprometedoras de Carminha e Max. Porém, Valdo vê onde as fotos são guardadas e as vende para Carminha. Betânia se separa de Valdo quando descobre que o rapaz fora subornado por Carminha para prejudicar Nina. No final da trama, Betânia socorre Nilo que passa mal devido à ingestão de veneno ministrada por Santiago. A moça pede ajuda a Nina, mas Nilo morre. No último episódio, Betânia aparece junto de Jorginho e Nina, buscando mãe Lucinda da cadeia. Nível fundamental: A oposição está entre parceria (eufórico) e desavença (disfórico). Ela julga e é manipulada (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador).

Parceria Desavença

Não desavença (entendimento) Não parceria (recusa)

Trajetória linear: Parceria – desavença – não parceria (recusa) – não desavença (entendimento) – parceria.

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Forma da expressão

A personagem se expressa pela atriz Bianca Comparato. É branca, de estatura baixa, magra; cabelos e olhos castanhos.

Mudança de aparência: a personagem não muda nesse sentido, ela apenas se transforma visualmente quando se passa pela Nina, a pedido da amiga. Roupas: Betânia usa uniforme de frentista. Quando não está trabalhando, ela veste blusas simples de algodão, saia jeans e tênis. Quando se passa por Rita apresenta um estilo meio punk, blusa preta e olhos pintados. Acessórios e maquiagem: Betânia não usa maquiagem, usa boné de frentista quando trabalha. Usa brincos, pulseiras em um estilo mais despojado. Relógio vermelho e anel. Cabelo: Betânia tem os cabelos lisos, escuros e um pouco abaixo dos ombros. Linguajar: dialeto comum. Cenário: Sua casa, que aparece pouco, é simples com concreto e tijolos aparentes. Porta de vidro e cortina de acrílico que separa a cozinha. Música: não tem música específica Atuação: Seus movimentos são naturais, mais para contidos. Ela tem o semblante relaxado quando está com os amigos e sorri. Quando está fingindo ser Rita para enganar Carminha ela faz uma expressão mais agressiva. Figura 15 – as amigas Betânia e Nina de mãos dadas. Capítulo 12.

Fonte: https://globoplay.globo.com/v/1894065/

Substância da expressão Betânia aparece pela primeira vez no capítulo 12. Plano aberto, câmera alta, de dia, Nina chega de moto ao posto de gasolina onde Betânia trabalha. Câmera normal, Betânia, com as mãos para trás se aproxima para atender Nina, em plano americano. Depois, as duas em primeiro plano. Nina tira o

199 capacete, começa uma trilha sonora branca. Nina pergunta se ela não a reconhece. Betânia olha um pouco e se surpreende, leva a mão à boca, ao reconhecer a amiga. A música aumenta e as duas se abraçam. Elas conversam um pouco, campo contracampo. Betânia pede a Valdo, seu namorado, que também trabalha no local, para cobri-la, enquanto vai ao bar do posto com a amiga. As duas conversam enquanto andam até o bar, Nina empurra a moto, a câmera as acompanha focalizando-as de frente, em meio primeiro plano. Há uma pequena elipse. As duas estão sentadas na mesa do bar conversando. A câmera se aproxima. Betânia abre um presente dado por Nina, foco no presente e mão de Betânia, que adora a correntinha. As duas conversam, campo e contracampo. A trilha sonora branca presente desde o início da cena para nesse momento. A câmera se aproxima mais e Nina conta que não se chama mais Rita e faz Betânia prometer não a chamar mais pelo antigo nome. Betânia promete. A música volta a tocar. As duas dão as mãos, foco nas mãos. Nina diz que talvez precise da ajuda de Betânia. Esta concorda e diz “a gente é irmã”. As duas tomam café em um copo americano. Nina quer uma cúmplice, Betânia diz “já encontrou”. Nina começa a contar a história de Carminha e a trilha sonora aumenta, a voz das amigas diminui de volume cada vez mais até não dar mais para ouvir. A câmera se afasta um pouco. A cena dura de 3 minutos e 45 segundos em média.

Substância do conteúdo O plano aberto em ângulo alto no posto de gasolina oferece uma explicação visual da localização de Nina e do trabalho de Betânia. A última vez que as duas se viram eram crianças e ainda assim parecem muito amigas quando se encontram. Betânia está bem-disposta a ajudá-la, como se fossem irmãs A música não diegética, o plano de detalhe nas mãos dadas das duas e no presente dado à Betânia trazem emoção à cena. A frentista é uma personagem que só existe em função de Nina e, assim, o seu quadrado semiótico está de acordo com o papel de apoio exercido como melhor amiga. As roupas da personagem apresentam neutralidade, assim como seus gestos. Ela vive momentos inusitados, mas não tem transformação. Ela representa o passado de Nina e está relacionada ao lixão. Diferente da amiga, ela não se afastou tanto de suas raízes, namora um rapaz também do lixão e vive uma vida humilde. O trabalho de Betânia em posto de gasolina revela a relação com o espaço público e a rua. Sua casa

200 com concreto à mostra traz certa impessoalidade. A porta de vidro e a cortina que separa o ambiente da cozinha conversa com a falta de privacidade dos ambientes populares. Parceria: disfarce com outras roupas, desavença com o namorado. Música instrumental. Desavença: namorado, Carminha. Trabalhadora: posto de gasolina, dia, atendimento ao público, rua. Entusiasmo: relação com Nina, “a gente é irmã”. Cronotopo idílico: espaço separado do resto da telenovela, lixão, posto e gasolina, casa que pouco aparece. Temas e figuras da primeira cena: trabalho: posto de gasolina, namorado, atendimento ao cliente. amizade: Nina, bar, presente, corrente de ouro, café, mãos dadas. Resumo técnico: Plano descritivo do posto. Música extradiegética. Plano detalhe mãos dadas e presente.

Mãe Lucinda (Avenida Brasil) Figura 16 – Mãe Lucinda chora ao ser confrontada por Nina em cena do capítulo 13.

Fonte: Globoplay

Forma do conteúdo

Atributos: Trabalhadora. Mantenedora Protagonismo/posição: apoio (mentora), importante. Cronotopo: idílico Sentimento principal: dor Trabalho: catadora de lixo Relacionamentos amorosos: no passado foi casada com Nilo e teve um caso com Santiago. Casa: tem a sua casa onde mora com seus filhos adotivos do lixão.

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Consumo/vida material: as roupas de Lucinda demonstram sua pobreza. Simplicidade. Resumo da narrativa: Mãe Lucinda trabalha no lixão e ajuda as crianças do local. Ela criou muitas delas, como Nina, Betânia e Jorginho. É uma senhora boa e muito querida pelos seus filhos de coração, mas guarda alguns segredos. Ninguém entende, por exemplo, porque ela teme Carminha e não age contra a vilã. Mais para o final da trama descobre-se que Max é seu filho com Nilo, outro morador do lixão que, ao contrário de Lucinda, não é bondoso com as crianças e vive rondando as pessoas com chantagens, entre outras formas de conseguir dinheiro e pequenas regalias. Quando Nina retorna para o Brasil, Lucinda esconde dela que Jorginho é filho de Carminha e mora na mansão de Tufão com a família. Lucinda mulher insiste para que Nina desista de sua vingança e se afaste de Carminha. No final da novela, Lucinda se entrega à polícia pelo assassinato de Max, que, de fato, ela não cometeu. O grande segredo da personagem é revelado bem no fim da narrativa. Lucinda era casada com Nilo e tinha os filhos Max e Clara. Eles eram próximos de outro casal, Santiago e a mãe de Carminha. Porém, Lucinda e Santiago tiveram um caso e a esposa dele descobriu. A mulher traída atacou Lucinda, mas no calor das emoções matou sem intenção a sua filha Clara. Para se vingar, Lucinda matou a mulher. Desde então, ela nutre um grande sentimento de culpa em relação a Carminha, ela se sente responsável por tudo de ruim que aconteceu a ela. Porém, o que ela não sabe é que quem matou de verdade a mãe de Carminha foi o próprio Santiago, que fez Lucinda acreditar que era culpada. Lucinda foi presa pelo crime na época. Nina descobre tudo e vai até a cadeia contar a Lucinda que até então acreditava que Santiago era um santo e a amava. Enfim, Carminha assume que é a verdadeira assassina de Max, Lucinda é solta e garante para Carminha que estará esperando por ela quando for solta. Esse dia chega, a vilã retorna para o lixão e vive com Lucinda. Nível fundamental: O nível fundamental de mãe Lucinda está entre engano (disfórico) e realidade (eufórico). Lucinda julga, é julgada, manipula e é manipulada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador).

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Engano Realidade

Não realidade (ilusão) Não engano (desilusão)

Trajetória linear: engano – não realidade (ilusão) – não engano (desilusão) – realidade. Forma da expressão A personagem se expressa pela atriz Vera Holtz. A personagem é branca, um pouco gorda, olhos castanhos e cabelos brancos.

Figura 17 – crianças comem na casa de Lucinda no lixão. Cena retirada do capítulo 5.

Fonte: Globoplay

Mudança de aparência: não. Roupas: Lucinda, quando está no lixão, usa roupas velhas, desgastadas e largas, às vezes usa um gorro. Usa cores em tom de terra, amarelo, alaranjado e verde quente. Quando vai para outros locais da cidade, fora do lixão, ela usa vestido estampado e cabelos mais arrumados. Acessórios, maquiagem: Lucinda usa brincos, pulseiras e corrente de cor prateada, parecem feitos de material catados no lixão onde ela trabalha. Quando sai do lixão usa presilha no cabelo e bolsa.

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Cabelo: Mãe Lucinda tem os cabelos abaixo dos ombros, lisos e brancos. Às vezes, usa preso. Linguajar: ela tem sotaque caipira do interior de São Paulo, isso se deve ao fato da atriz ser de Tatuí. Ela fala alto. dialeto comum. Cenário recorrente: sua casa, enfeitada com material recolhido no lixão. Há alguns itens coloridos. A cozinha da residência é cenário recorrente. Música: a personagem em si não tem uma trilha sonora específica. Mas muitas de suas cenas no lixão, assim como a de outros personagens no mesmo local, contam com a música instrumental chamada Recomeço, de Eduardo Queiroz. Atuação: a personagem tem bastante drama. quando é confrontada, ela abaixa a cabeça, abaixa o olhar, morde a boca, chora faz drama com voz bem fraca. Quando está feliz, ela sorri bastante, é calorosa.

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 3. No lixão, Rita pequena está na casa de Nilo, ela espia pela janela crianças brincando no lixão, som de música alegre instrumental, não diegética, de dia. Rita pergunta se essas crianças podem brincar, e outra menina responde que são diferentes, de sorte, são crianças da Lucinda. Voz de Lucinda gritando “ah criançada”. Ela é mostrada pelo ângulo da fresta por onde Rita olha. Lucinda de costas passa com uma bandeja de sanduiches, andando até as crianças. Depois, vemos Lucinda um pouco mais longe de corpo inteiro, oferecendo sanduíche para Batata “pega logo seu sanduiche, é gostoso”. Rita sorri. Lucinda fala alto, dá risada, animada. Close no rosto de Batata. Ele e Rita se olham. A menina sai do barraco e os dois brincam. Música alegre. Nilo chega, a música é trocada por outra que transmite medo. O velho dá bronca em Rita. Batata a defende. Nilo diz que vai dar um peteleco em Batata e o segura. Lucinda aparece e grita “chega, Nilo”. Primeiro plano em Lucinda. Depois o plano abre. Vemos as quatro personagens, crianças ao fundo no meio do entulho e um caminhão de lixo. Nilo diz que o moleque precisa de um corretivo e o joga no chão. Primeiro plano em Lucinda “ele é problema meu”. Plano aberto. Batata pede para Lucinda não deixar Nilo fazer maldade com a amiga. Lucinda, em tom grave, pergunta o nome da amiga nova. Rita responde e Nilo a arrasta. Lucinda diz para Batata que não adianta, nada pode ser feito, há a lei do lixo. Ela abraça o menino e grita para Nilo “eu tô de olho em você”. Ele responde. Lucinda dá um beijo na cabeça de Batata, primeiro plano fechado em Lucinda.

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Ela e Batata observam os dois irem embora e a mulher repete “a gente não pode fazer nada”. A cena tem aproximadamente 3 minutos.

Substância do conteúdo A atuação dramática da atriz indica um caráter frágil e perturbado de Lucinda e sua dubiedade enquanto mentora de Nina. Ela não passa por nenhuma mudança de visual e de casa, o que marca a sua falta de movimento. A personagem permanece com o mesmo visual quando Rita é criança e depois adulta, como se o tempo não tivesse passado para ela. Do mesmo modo, o lixão não se modifica. O lixão, com a figura de mãe Lucinda, assume um ar de conto de fadas. A sua casa é diferente, é enfeitada e se aproxima do universo infantil. Há alguns itens coloridos na casa de Lucinda que remetem ao lúdico e à infância, assim como a fruteira cheia. A música instrumental presente em muitas de suas cenas reforça esse aspecto. Na primeira cena em que a personagem aparece, a vemos de corpo inteiro em um momento e também há um plano descritivo do lixão. Ela oferece comida às crianças. Bakhtin (2010) trata da vizinhança entre comida e crianças no idílico, o que remete à ideia de crescimento e renovação. O som das crianças brincando e a imagem de Lucinda pelo olhar de Rita, na fresta do barraco, reforçam o lúdico, o novo e o alegre que brotam daquele lugar aparentemente inóspito. A figura de Nilo é o contraponto de Lucinda, ele representa o mal para as crianças, o que é marcado pela música misteriosa que tem início com a sua chegada. Lucinda é injustiçada, mas age com altruísmo e assume a culpa pelo o que não fez. Seu caráter é bastante melodramático. O lixão é lugar do bem e do mal. De lá vieram os vilões Max e Caminha e os heróis Rita e Jorginho. Lucinda é a que tudo acolhe, inclusive recebe Carminha quando ela sai da cadeia. Lucinda e seu cronotopo representam um ciclo onde tudo começa e termina. Engano: prisão Realidade: liberdade Trabalhadora: subemprego, catadora de lixo, crianças, casa. Mantenedora: crianças, comida, decoração lúdica da casa, música. Relação próxima com filha adotiva. Roupas simples. Dor: atuação e o engano do quadrado semiótico. Cronotopo idílico: lixão, ambiente à parte do resto da novela.

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Temas e figuras da primeira cena: proteção, instinto maternal (crianças e alimento) Resumo técnico: câmera subjetiva, plano descritivo, música extradiegética e ruído diegético (crianças brincando).

Djanira (A Regra do Jogo)

Figura 18 – Djanira lavando roupa no taque em cena do primeiro capítulo.

Fonte: Globoplay

Forma do conteúdo

Atributos: trabalhadora. Mantenedora Protagonismo/posição: apoio (mentora), importante Cronotopo: idílico Sentimento principal: dor Trabalho: professora infantil Relacionamentos amorosos: Zé Maria Família/amizades: É mãe de criação de Tóia e Juliano. Tem um filho biológico, Romero. É amiga de Adisabeba. Casa: tem a sua casa, onde mora com Tóia e Juliano. Consumo/vida material: As roupas, acessórios e cabelo da personagem indicam pouca vaidade. Ela é uma mulher simples. Resumo da narrativa: Djanira é professora, vive e trabalha no Morro da Macaca. É mãe de criação de Tóia e Juliano. O sonho de Djanira é ver Tóia e Juliano casados. Tudo parece bem até o dia em que ela passa mal e precisa de uma cirurgia. Depois de levar um golpe e sem outra alternativa, Tóia paga a cirurgia da mãe com dinheiro roubado, se entrega à polícia e é presa. Djanira pede ajuda a Romero, o filho mau caráter que ela

206 esconde. A partir disso, ela começa a ser manipulada por Romero que alega estar mudando. A professora também esconde da filha seus encontros com Zé Maria, um bandido foragido da polícia que ela acredita ser inocente. Além disso, Djanira sempre mentiu para Tóia sobre seus verdadeiros pais, ela dizia que a moça era filha de um casal de amigos de Belém do Pará que morrera em um naufrágio. Porém, Tóia é filha de um cientista que morreu assassinado no assalto do ônibus de Seropédica. O que Djanira não sabia era que Tóia era herdeira de uma grande herança, quem conta a ela é Ascânio. Ela esconde a identidade da filha para proteger ela e Juliano, pois Zé Maria, pai de Juliano, estava supostamente envolvido no crime. Djanira descobre que Zé Maria é traficante de armas, mas ainda assim não se afasta dele totalmente. Ela descobre também que Romero não se regenerou e está querendo aproximação com Tóia por interesse. Ela tenta desmascarar Romero para Tóia, mas esta descobre que Romero é filho de Djanira e fica mais desconfiada da mãe. Romero também conta a Tóia sobre sua verdadeira identidade, além de mentir que Juliano é traficante. Revoltada com as mentiras da mãe e manipulada por Romero, um pouco antes de se casar, Tóia rasga seu vestido de casamento, rejeita Juliano, diz para Djanira que não quer mais olhar para a cara dela e manda todos os convidados da cerimônia embora. Porém, Zé Maria está fugindo da polícia e entra no evento. A política invade a festa e uma bala perdida acerta Djanira, que morre no local, no capítulo 44. No último capítulo, revela-se que Zé Maria matou Djanira porque ela havia descoberto que ele era um assassino psicopata. A grande oposição da personagem enquanto julgadora é mentira versus verdade. Ela acreditava que estava protegendo a filha quando lhe ocultou a verdade, ela acreditou na bondade de Zé Maria e pensou, por uns momentos, que o filho tivesse mudado. Nível fundamental: Djanira viveu a maior parte de sua vida enganada, acreditando na inocência de Zé Maria e crendo que faz o melhor para a sua filha adotiva. Ela esconde a identidade de Tóia, mas também não sabe de toda a história. É ela que dá abertura para Romero entrar na vida de sua família. A professora age de forma ingênua. Quando Djanira descobre toda a verdade, a filha já não acredita mais nela e a julga mal. Ela é manipulada, julga e é julgada (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador). A personagem é assassinada durante essa grande desilusão, brigada com Tóia. Ela morre sabendo de verdades que os outros não puderam saber sobre Romero e Zé Maria. A oposição de Djanira é o engano e a realidade. No caso da personagem o engano é eufórico e a realidade disfórica.

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Engano Realidade (solidão, morte) (falsas crenças)

Não realidade (ilusão) Não engano (desilusão)

Trajetória linear: não realidade (ilusão)– engano – não engano (desilusão) – realidade

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Cássia Kis. Djanira é branca, bem magra, olhos escuros e cabelos grisalhos. Figura 19 – Djanira chora ao discutir com Romero, em cena do capítulo 13.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4467144/

Mudanças de aparência: não. Roupas: Djanira usa calça jeans larga, jaqueta jeans por cima de vestido florido, meia calça preta, casaquinho, camisetinha por baixo de jaqueta, cinto e sapato baixo. Acessórios, maquiagem: Djanira usa uma fitinha amarrada no pulso, correntinha dourada no pescoço, às vezes usa uma tiara nos cabelos ou grampo, não usa maquiagem. Não usa unha pintada. Cabelo: Djanira tem os cabelos cortados em estilo Joãozinho e grisalhos. Linguajar: Djanira não fala alto, tom normal. Dialeto culto.

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Cenário recorrente: sua casa no Morro da Macaca. A cozinha é um cenário recorrente na residência. No seu quarto há uma imagem na parede de Jesus na cruz. Música: não tem uma trilha sonora específica. Atuação: quando pressionada ela expressa bastante carga dramática, grita, põe as mãos no rosto, chora. Ela apresenta bastante expressão corporal.

Substância da expressão No primeiro capítulo, Djanira aparece nove vezes. Primeiro há uma imagem bem rápida dela pendurando roupas no varal, enquanto sua filha Tóia volta para casa. Nessa imagem, ela aparece iluminada pelo Sol, quase totalmente branca. Música “Ser humano” de Zeca Pagodinho. Depois, quando Tóia entra em casa, sem música, há um plano de conjunto da lateral esquerda de Djanira lavando roupas no taque, no quintal. Tóia a abraça e a repreende por estar lavando suas calcinhas de novo. Djanira diz que a filha deixa acumular. Tóia sobe uma escada e conversa com a mãe do alto. Câmera alta em Djanira, meio primeiro plano, que conta ter sentido dor e por isso passou a noite acordada. A filha entra em casa e a mãe, meio primeiro plano, pergunta do quintal se Tóia não quer dormir antes de pegar Juliano. Djanira entra na cozinha, de braços cruzados sorri. As duas são enquadradas junto de parte da cozinha. Djanira aceita café e puxa a filha para conversar. Diz que se sente responsável pela filha ter sofrido durante a prisão de Juliano, pois ela que o apresentou à filha. As duas andam até a mesa. Em pé, Djanira diz que tudo o que ela quer na vida antes de morrer é ver os dois casados, mas ela tem medo que a filha sofra. Tóia segura o rosto da mãe e diz que está tudo bem. Primeiro plano das duas juntas. Música instrumental, trilha sonora branca. Tóia beija a testa da mãe. A cena tem por volta de 1 minuto e 50 segundos. Na segunda vez, Djanira aparece rapidamente com Tóia andando na rua. Na terceira, junto com Tóia, ela busca Juliano na prisão (trilha sonora branca), há uma elipse, e os três aparecem em casa, na cozinha. Na quarta vez, na rua, Djanira desce escadas com ajuda de Tóia e passa mal., há uma elipse e ela aparece no hospital (trilha sonora branca). Em outra cena, na quinta vez, Djanira está em sua casa descansando (trilha sonora branca). Na sexta, ela está no hospital com Tóia e Juliano, para ser operada. Na sétima vez, há algumas imagens de Djanira sendo operada (trilha sonora branca). Na oitava, ela conversa com Juliano no quarto do hospital. E na nona e última, Djanira deitada na maca liga para Romero (trilha sonora branca).

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Substância do conteúdo Tudo em Djanira traz simplicidade e abnegação. Ela representa um modelo de mulher sofredora. A falta de vaidade, o serviço doméstico árduo (lavar roupas no tanque) e o trabalho como professora infantil fazem parte da construção abnegada da personagem que ainda recebe a filha sorrindo de manhã em casa. Mais uma vez a simplicidade se relaciona com a bondade. Contraditoriamente, Djanira é responsável pelos obstáculos na vida da filha, pois é ela que traz Romero à vida de Tóia, ela adoece e traz uma mentira do passado em relação à filha. Ela prejudica a filha sem querer, inclusive a confundindo com sua inocência e crença em Zé Maria e Romero, por alguns momentos. A cena dela lavando as calcinhas da filha pretende naturalidade cotidiana, sem apelar ao riso, e remete à falta de privacidade. Djanira representa o passado desconhecido de Tóia, o inconsciente e a inocência que deve ser quebrada. A sua morte pode ser interpretada de forma simbólica nesse sentido como a morte das ilusões e o enfrentamento da realidade. As várias aparições da personagem no primeiro capítulo indicam protagonismo, embora ela morra no capítulo 44. Ela não passa por grandes transformações a não ser a descoberta da verdade. A imagem dela iluminada pelo Sol representa elevação e bondade. Suas roupas claras condizem com esse significado. É pertinente destacar a religiosidade na decoração de seu quarto. Ela trabalhando no quintal, as portas de vidro da casa e as cortinas em seu quarto remetem ao público e à falta de privacidade. Do mesmo modo, quando sua voz vem de fora do campo visual, as imagens que parecem de câmera escondida e o fato dela estar lavando as calcinhas da filha dialogam com o informal, o dia a dia e conferem, no caso da câmera subjetiva, uma visão privilegiada ao telespectador. Ela aparece muitas vezes e tem cenas seguidas uma da outra no primeiro capítulo, o que traz ritmo acelerado e acompanha a personagem principal Tóia. Engano: amor com Zé Maria, harmonia com a filha, recuperação moral do filho. Realidade: filho mau caráter, passado de sua filha adotiva, morte. Trabalhadora: professora de crianças, dona de casa, serviço doméstico. Mantenedora: trabalho com crianças, serviços domésticos. Relação próxima com filha adotiva. Dor: atuação e a realidade para ela.

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Cronotopo idílico: no caso de Djanira o cronotopo é mais subjetivo, ela não está separada do resto do morro, mas representa o passado de Tóia, um outro tempo e o espaço da inocência. Temas e figuras da primeira cena: doença (rua, hospital, despesa), família (filhos adotivos, prisão e casa) Resumo técnico: imagem dela iluminada, câmera escondida, música extradiegética, muitas cenas e acontecimentos. Cena seguida uma da outra.

Sueli (A Regra do Jogo) Figura 20 - Sueli em sua pensão serve Atena. Imagem do capítulo 14.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4461870/programa/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora Protagonismo/posição: apoio (melhor amiga) não tem autonomia Cronotopo: idílico Sentimento principal: entusiasmo Trabalho: dona de pensão Relacionamentos amorosos: não Família/amizade: não tem família que apareça. Amiga de Atena. Casa: pensão, mas ela não aparece em um cômodo particular, apenas segue Atena pelo estabelecimento. Consumo/vida material: Sueli recebe presentes de Atena, as roupas que ela não usa mais. A personagem não possui conhecimento sobre as comidas sofisticadas que Atena deseja e compra. O queijo grana padano que Atena menciona ela repete “padan padan”, por exemplo. Resumo da narrativa: Sueli é dona da pensão onde a vilã Atena mora no começo da trama. Ela é amiga de Atena, ouve todas as suas histórias e faz tudo o que a loira pede em

211 troca de pequenos favores, como roupas usadas. Quando percebe que Atena está se envolvendo em encrenca, Sueli tenta dissuadir a amiga, mas não adianta. Ela ainda acaba ajudando a loira a esconder um vídeo comprometedor da facção. Os bandidos descobrem e fazem um plano para capturar Atena, por meio de Sueli, mas esta consegue avisar a vilã. Sueli é capturada e morta pela facção. Nível fundamental: No nível fundamental há a oposição entre cumplicidade e antagonismo. Primeiro, Sueli se diverte ouvindo as histórias de Atena e servindo a amiga. Depois, ela passa a alertar Atena sobre o perigo que ela está correndo. Mas, no fim, Sueli, um pouco contrariada, concorda com Atena e tona-se sua cúmplice ao esconder o vídeo comprometedor e hospedar Ascânio em sua pensão. A cumplicidade é disfórica neste caso, pois ocasionou o seu assassinato. Sueli é manipulada, manipula, julga e é julgada. (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador).

Cumplicidade Antagonismo

Não cumplicidade Não antagonismo (aprovação) (desaprovação)

Percurso linear: não antagonismo (aprovação) – não cumplicidade (desaprovação) – cumplicidade Forma da expressão A personagem é expressada por Paula Burlamaqui. Ela é magra, de estatura média, olhos e cabelos castanhos. Mudança de aparência: não. Roupas: usa blusas justas de alcinha e renda, com o sutiã à mostra. Usa bastante roxo e rosa forte. Acessórios e maquiagem: usa brincos de argola coloridos, gargantilha bem justa, maquiagem muito discreta. Unhas vermelhas. Cabelo: cabelo curto, liso e castanho. Corte reto.

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Linguajar: fala coloquial, às vezes alguns “deslizes” nos plurais, por exemplo “jogo as coisa dele no meio da rua”. Usa você e não tu. Dialeto comum. Cenário: sua pensão. Imagem de Nossa Senhora colada na geladeira. Música: não tem música específica. Atuação: ela demonstra interesse pelas histórias de Atena, pega todas as coisas que ela vai deixando no chão, age como sua criada. Sorri, mas apresenta uma feição mais série, preocupada, principalmente quando aconselha a amiga a desistir de dar um golpe.

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 11. De dia. Música não diegética “Want to want me” de Jason Derulo. Plano aberto, Sueli anda na rua carregando compras em direção à pensão, onde há uma placa escrita “aluga-se quartos”. Figurantes passam na frente dela. A câmera começa a subir e enquadra uma das janelas da pensão. Depois, interior do quarto de Atena, ângulo alto. A música para de tocar. Atena vê Romero na televisão. Ouve-se a voz de Sueli “bonita, eu vou botar lá no seu banheiro, tá?”. A câmera capta a personagem entrando no quarto em plano americano, ela está de costas meio de lado desviando da porta. Ela carrega um rolo de papel higiênico, vai até o banheiro e se abaixa para encaixar o rolo no suporte. Sueli pede o dinheiro da hospedagem da semana para Atena que está atrasada com o pagamento e ela está “tão dura, linda”. Depois vai até Atena, que adianta o dinheiro da próxima semana. Sueli abaixa para pegar as notas em cima da cama. Atena conta que saiu com o homem que aparece na televisão. Sueli reconhece Romero Rômulo, e fala, enquanto conta o dinheiro, que é uma roubada, pois ele não deve ter dinheiro e deve ser comunista. Primeiro plano da personagem, vemos parte da parede onde estão pendurados sacolas e cintos. Sueli abaixa para pegar algumas coisas, suas costas refletem em um espelho atrás. Sueli: “vem cá é isso aqui que cê quer que eu lave?” e mostra umas calças. Atena não dá atenção. A vilã acredita que Romero é 171, afirma que dará um golpe no homem e Sueli nunca mais a verá por lá. A cena dura em média 1 minuto e 20 segundos.

Substância do conteúdo O quadrado semiótico de Sueli é similar ao de Betânia, ambas são personagens de apoio (melhor amiga). Mas, no caso de Sueli, a cumplicidade é disfórica, pois sua amizade é com a vilã. Ela representa, de certo modo, o que Atena não quer ser. Uma mulher

213 humilde, que trabalha, mas sem muito vigor. Sueli parece se encantar com as histórias de Atena, ela se diverte. Em sua primeira cena, ela está na rua com compras, ângulo alto mostra o lugar por fora. Temos a figura da mulher popular relacionada com o espaço público. A parte de fora da pensão é recorrentemente mostrada, como forma de marcar a localização em contraponto ao Morro da Macaca. Depois, Sueli executa tarefas domésticas diárias na pensão. A cena traz naturalidade. Sueli se abaixa para colocar papel higiênico no banheiro de Atena, o que remete a algo menor, corpóreo, o baixo, mas que não provoca riso. A voz dela que surge fora o campo visual também confere informalidade, como uma situação diária. Ela fala sobre as calças para lavar no meio de uma conversa, o que traz naturalidade à cena. A duração da cena dentro do quarto equivale à duração real. O seu trabalho é mais “ordinário” do que das empregadas domésticas da telenovela, pois em uma pensão decadente ela serve a mulheres simples, inclusive à estelionatária Atena. Sueli não tem ambiente privado na pensão que apareça na trama. as imagens de santos no banheiro de Atena e na geladeira na pensão revelam a religiosidade da personagem. Outro dado importante é a sua falta de conhecimento de comidas finas apresentadas por Atena, o que reforça o seu caráter simples e popular. Cumplicidade: cobertura de Romero, dinheiro, morte. Antagonismo: pobreza, vida. Trabalhadora: pensão, atendimento ao público, compras na rua e serviços domésticos. Entusiasmo: o fato de ser confidente de Atena, a cumplicidade. Cronotopo idílico: a personagem se localiza em um ambiente à parte do resto da novela, se relaciona com o passado e lado pouco conhecido de Atena. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (rua, compras, papel higiénico, banheiro, calças para lavar). Resumo técnico: plano geral em ângulo alto da rua. Cenário do banheiro. Música extradiegética e sem música.

Betânia enquanto apoio age só em relação a Nina, seu papel é pontual. Sueli age só em função de Atena, igualmente pontual. Djanira e Lucinda, por outro lado, são mais que apoios. Elas guardam segredos importantes. São dúbias, se relacionam com os bons e os maus, como elos entre o bem e mal e entre o passado e presente. São misteriosas. Elas têm uma vida anterior importante e vivem em uma espécie de “escuridão”, um

214 inconsciente que toma consciência no final. Djanira é que traz Romero e Zé Maria para a vida de Tóia e Juliano. Ela também os aconselha, é mãe. Parece que são várias funções em uma pessoa só. Lucinda “atrapalha” os planos de Nina e ao mesmo tempo é mãe. Parece várias personagens em uma só também. Essas personagens são concentradas, condensadas, mas não pontuais, enquanto as outras de apoio são dispersas. É pertinente notar que as duas são mantenedoras, têm filhos adotivos e se relacionam de maneira próxima com suas filhas adotivas mulheres, ao contrário das matriarcas que protegem seus filhos homens. De modo geral, as quatro têm relações bem próximas com as protagonistas que apoiam, como uma espécie de alter ego. Lucinda e Betânia são mais sublimadas. Djanira e Sueli trazem menos glamour e desempenham mais serviço doméstico. A religiosidade está presente em Djanira e Sueli. Percebe-se nas quatro personagens cores neutras e a falta de transformação física. Os quadrados semióticos de Djanira e Lucinda de um lado e de Sueli e Betânia de outro são quase iguais, mas contrário uma da outra em termos de euforia e disforia. A verdade para Djanira é disfórica, assim como a cumplicidade para Sueli é disfórica. Destacam-se os seguintes aspectos  Serviço doméstico: Sueli, Djanira e Lucinda que serve comida às crianças.  Trabalho com crianças: Lucinda e Djanira  Espaço público: Trabalho de Betânia para a rua, casa com porta de vidro e cortinas que dividem cômodos. Djanira trabalhando no quintal, andando na rua, cortina que divide cômodos e porta de vidro na casa. Sueli andando na rua. Lucinda no lixão.  Religiosidade: decoração pensão de Sueli e quarto de Djanira.  Relação forte com filhas adotivas mulheres: Lucinda e Djanira.  Relação forte com amiga mulher: Sueli e Betânia.  Falta de privacidade, serviços considerados “baixos”: Sueli trocando rolo de papel higiênico, Lucinda catando lixo, Djanira lavando calcinhas e depilando axilas.  Câmera subjetiva e escondida: mais evidente em Lucinda e Djanira.  Cores neutras: nas quatro personagens. Sueli usa mais cores.  Comida: Lucinda serve comida para as crianças, Sueli serve comida para Atena, Djanira na cozinha toma café, Betânia toma café com Nina.

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 Plurilinguismo: conto de fadas.

3.6. Cronotopo da terceira na vida privada

Janaina (Avenida Brasil) Figura 21 - Janaina na cozinha da mansão onde trabalha, imagem do episódio 13.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1896316/programa/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Empregada doméstica. Matriarca. Protagonismo/posição: apoio (camaleão) e tem autonomia Cronotopo: terceira na vida privada Sentimento principal: entusiasmo Trabalho: empregada doméstica Relacionamentos amorosos: Não Família/amizade: Tem um filho chamado Lúcio. É colega de Zezé e Nina. Casa: mora em sua casa com o filho. Consumo/vida material: curiosamente, Janaina é uma empregada doméstica que tem sua própria empregada doméstica. O sofá de sua casa tem um plástico por cima, como se não houvesse sido desembrulhado desde a compra. Ela acredita que seu filho precisa estudar para poder dar aos filhos no futuro uma vida melhor do que ela pode dar a ele, assim como ocorreu com ela e seus pais. A doméstica paga um curso de marcenaria para o filho. Resumo da narrativa: Janaina é empregada da família de Tufão, com a qual trabalha antes mesmo do jogador se casar. Sua comida não agrada a Carminha, mulher de Tufão, por isso contratam Nina para cozinhar. Janaina mora com o filho mau caráter Lúcio e, curiosamente, tem sua própria empregada doméstica em casa, Zulmira, a qual ela não trata bem, reproduzindo um comportamento elitizado. Janaina busca o tempo todo ajudar

216 o seu filho. Ela se ilude, acreditando que ele estuda para ser marceneiro. Mas seu filho se envolve em crimes com Max e Carminha. Em decorrência disso, Janaina pede demissão da mansão de Tufão e começa a vender salgados. Quanto Tufão a procura, Janaína conta o ocorrido. Carminha usa Lúcio para fazer serviços sujos e Janaina tenta o tempo todo resgatá-lo. Nos últimos capítulos, com a morte de Max, ela foge com o filho para outra cidade, temendo que os acusem, pois Lucio é suspeito. Lucio e Janaina, com outros suspeitos, vão à delegacia depor, mas não são culpados. Janaina aparece rapidamente no último capítulo assistindo ao jogo de futebol que fecha a trama. Nível fundamental: A oposição nessa personagem está em dignidade (eufórico) e indignidade (disfórico) Janaina julga e é manipulada (trajetória do destinador- manipulador e do destinador-julgador).

Dignidade Indignidade

Não indignidade (coragem) Não dignidade (vergonha)

Trajetória linear: dignidade – indignidade – não dignidade (vergonha) – não indignidade (coragem). Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Claudia Missura. A personagem é magra, tem os cabelos escuros, lisos, na altura do ombro.

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Figura 22 - Janaina em sua casa com o filho, imagem do capítulo 55.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1968067/

Mudança de aparência: não Roupas: usa uniforme enquanto está trabalhando. Uniforme vermelho ou preto de empregada doméstica. Touca branca quando está na cozinha ou os cabelos são presos com um laço que faz parte do uniforme. Quando não está trabalhando, usa camisetas largas estampadas, floridas, de cores neutras, e calça preta. Acessórios, maquiagem: usa relógio, brincos pequenos. Não usa maquiagem. Cabelo: castanho-escuro e liso, acima dos ombros, na maioria das vezes está preso. Linguajar: dialeto popular. Cenário: mansão onde trabalha, bastante na cozinha. Sua casa, onde mora com o filho Lúcio. A mansão, às vezes, assume uma atmosfera sombria com a presença de Carminha e Max, o que remete ao romance gótico. Música: não tem música específica Atuação: ela tem um jeito de falar olhando um pouco para baixo, sem olhar nos olhos das pessoas, ela entorta um pouco a boca, costuma franzir a testa. Mas com a sua empregada Zulmira ela muda, fala olhando no olho, com a cabeça levantada, dá bronca nela.

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 4, por três vezes, em uma cena cortada por um intervalo comercial e intercalada com outra. Música extradiegética, um samba em volume baixo. Festa de comemoração de noivado de Tufão e Monalisa, A noiva vai anunciar uma notícia importante quando Janaina aparece atrás do casal com o telefone

218 na mão. A empregada chama Tufão e avisa que é “uma tal de Carminha no telefone”. Primeiro plano dos dois. Campo e contracampo. Ele pede para Janaina falar para Carminha ligar depois, mas Janaina informa que é urgente e que a mulher parece desesperada. Ela sai da sala e deixa o telefone com Tufão. O jogador vai até a cozinha com o telefone. Janaina trabalha no fundo com outros empregados. O plano fecha em Tufão, a imagem é intercalada com Carminha. Os dois conversam ao telefone. Trilha sonora branca de suspense. Quando Tufão sai da cozinha correndo, o plano abre e vemos Janaina ao fundo atrás de um balcão, mexendo em umas velas. Ela olha para Tufão, plano de conjunto. O trecho dura 1 minuto e 50 segundos. Na segunda vez, Leleco na festa pergunta por Tufão. Monalisa grita o nome de Janaina, que vem correndo da cozinha. Sem música. Primeiro plano em Janaina. Campo e contracampo com Monalisa. Janaina comunica que “seu Tufão saiu” e mandou avisar que ele “desceu aqui embaixo” para comprar outro vinho. As pessoas conversam na sala. Janaina aparece atrás de Olenka que se levanta para ir embora. Vemos Janaina de longe acompanhar Olenka até a porta. Na terceira vez, Monalisa chama Janaina e pergunta se foi Carminha que ligou. Trilha sonora branca de suspense. Primeiro plano em Janaina que se atrapalha, movimenta as mãos e, pressionada por Monalisa, confessa que sim.

Substância do conteúdo A primeira cena em que Janaina aparece demonstra claramente o papel da personagem de terceira na vida privada. No início, ela é a única que sabe quem ligou para Tufão e o observa sair de casa apressado. A imagem dela no fundo da cozinha com outros empegados, enquanto Tufão fala ao telefone, é emblemática nesse sentido. Ela manipula algumas velas em castiçais. Há um diálogo, é possível sugerir, com uma estética gótica, reforçada com a música de suspense. A atuação da atriz, não só nessa cena, mas em todos os momentos em que trabalha, confere uma expressão atrapalhada, um pouco sem jeito e subserviente em Janaina. A personagem dialoga também com a ética do trabalho (SOUZA, 2012) identificada em Monalisa. Percebe-se o apreço que ela tem pelos bens materiais conquistados, a capa do sofá é um exemplo. O fato dela ter a sua própria empregada doméstica simboliza status e a reprodução de um sistema de desigualdades por parte de Janaina. Ela valoriza o estudo e deseja que o seu filho possa ter capital cultural. Todo o seu entusiasmo é direcionado a Lúcio, que é a promessa de melhores

219 condições sociais para as gerações futuras da família. Além disso, o linguajar da empregada é marcado em termos de classe social. Observa-se que, em contrapartida ao seu papel de observadora, Janaina também tem a sua vida privada explorada, principalmente quando ela pede demissão em um sinal de dignidade após seu filho se envolver nas falcatruas de sua patroa, Carminha. Ela se liberta da sua condição de terceira e assume o seu protagonismo. Quando não está trabalhando como doméstica, as suas roupas são de cores neutras e calça preta, que não destacam o seu corpo. A sua casa tem porta de vidro e ela aparece em algumas situações na rua, ou seja, há um diálogo com o espaço público. Dignidade: casa própria, seus bens, estudo do filho, vender salgados ao invés de trabalhar como empregada doméstica para Carminha. Sem uniforme, roupas simples. Indignidade: mansão de Tufão, empregada doméstica de Carminha. Empregada doméstica: mansão de Tufão, uniforme, cozinha a maior parte do tempo. Trabalhadora: empregada doméstica. Matriarca: filho Lúcio. Entusiasmo: seu percurso narrativo e a dedicação ao filho. Cronotopo da terceira na vida privada: quebra de paradigma, da mansão para a sua própria vida privada. Enquanto empregada, ela é mostrada quase como parte do cenário, observando a vida dos patrões. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (telefone, cozinha, explicações a Monalisa, segredo de Tufão). Resumo técnico: plano dela atrás do casal com o telefone na mão; plano de conjunto, ela ao fundo com outros empregados observando Tufão ao telefone.

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Conceição (A Regra do Jogo)

Figura 23 – Conceição na cozinha da mansão onde trabalha, imagem do capítulo 74.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4631905/ Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Empregada doméstica. Protagonismo/posição: personagem de apoio (camaleão) e autônoma. Cronotopo: terceira da vida privada Sentimento principal: entusiasmo Trabalho: empregada doméstica Relacionamentos amorosos: casada com Nonato Família/amizade: seu marido Nonato, filhos do seu marido. Casa: mora em uma casa no morro com seu marido. Consumo/vida material: não há nada especifico que chame atenção. Resumo da narrativa: Conceição é empregada na mansão dos Stewart, passa a maior parte do tempo lá, embora resida em um barraco no Morro da Macaca. Ela é casada com Nonato, motorista da mansão. Nonato é, na verdade, pai dos dois filhos de Nelita - Belisa e Cesário - filha de Gibson Stuart, o patrão. Conceição sabe de tudo. Orlando, um bandido que deseja se casar com Nelita por interesse, descobre que Nonato é pai dos dois e chantageia Conceição e o marido, pois o casal de empregados tem conhecimento sobre algumas das falcatruas do mau-caráter. No dia do casamento de Nelita com Orlando, Conceição interrompe a cerimônia, conta toda a verdade e se demite. Cesário vai morar com o pai e Conceição no morro. Conceição gosta muitos dos enteados e sempre soube da traição do marido, mas o perdoara já há tempos. Ela também perdoou a patroa. Nível fundamental: A oposição é dignidade (eufórico) e indignidade (disfórico). Conceição é digna quando age em prol dos filhos do marido e da patroa que a traiu, para o bem maior. A indignidade seria o oposto, sendo um nível intermediário a suposta

221 humilhação pela traição do marido, a sujeição. Ela é julgada e manipulada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador).

Dignidade Indignidade

não indignidade (grandeza) Não dignidade (humilhação)

Trajetória linear: não dignidade – não indignidade – dignidade.

Figura 24 - Conceição conversa com Merlô no capítulo 74.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4631905/

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Séfora Rangel. Ela é branca, cabelos castanhos, olhos escuros, estatura baixa e encorpada. Mudança de aparência: não. Roupas: uniforme de empregada doméstica preto e branco, ou cinza e branco. Quando não está de uniforme, usa cores em tons pastel, marrom, bege, estampa discreta, cinzas, blusas discretas. Acessório, maquiagem: brinco pequeno de bolinha dourada, corrente no pescoço com pingente pequeno prateado, usa maquiagem leve, batom rosado.

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Cabelo: no trabalho, seus cabelos ficam presos em um coque com laço preto que é parte do uniforme. Quando não está com uniforme usa os cabelos soltos. A cor das madeixas é castanha acobreada; os fios são lisos, na altura dos ombros. Linguajar: dialeto culto. Cenário: mansão dos Stuart onde trabalha, o ambiente da cozinha é recorrente. E sua casa onde mora com o marido. A casa não tem porta de vidro. É mais decorada que as outras no morro e mais intimista. Iluminação mais escura e menos iluminada. A mansão dos Stuart dialoga com o romance gótico, devido ao ar sinistro da presença dos vilões. Música: não tem música específica. Atuação: ela usa mais expressão facial. Os movimentos do corpo são contidos. Postura reta, franze a testa. Fala firme. . Enfrenta as pessoas às quais se opõe.

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 2, por quatro vezes. São aparições rápidas, sem falas importantes. Na mansão dos Stuart, de dia, sem música, Conceição pega uma bandeja das mãos de Nora que diz “Conceição, os copos”. Conceição: “pode deixar”. A câmera enquadra uma parte da empregada que está do lado esquerdo da tela, da cintura para cima. Dr. Gibson entra no recinto. Conceição sai da cozinha com a bandeja nas mãos e cumprimenta o homem com “boa tarde”, mas é ignorada. Plano de conjunto. Ele entra na cozinha e conversa com Nora. Os dois saem do local e a câmera enquadra Conceição de corpo inteiro junto de outra empregada, ambas de costas, arrumando a mesa, em plano de conjunto. O trecho tem em aproximadamente 30 segundos. Depois, em outra parte, ela bate na porta do quarto de Dante e Belisa, diz que a avó está chamando e que os convidados já estão chegando. Plano americano. Em outro momento, ela atende a porta para os convidados que a cumprimentam. Na quarta vez, ela aparece muito pouco durante a festa, apenas de longe, trabalhando.

Substância do conteúdo A personagem tem uma trajetória de libertação do trabalho parecida com a de Janaina. inclusive, os quadrados semióticos das duas são similares. Mas, Conceição tem o adendo dos filhos do marido e a traição perdoada que tornam a sua dignidade peculiar.

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Diferente de Janaina, ela não é marcada em termos de classe social em seu modo de falar e habitus. A sua casa não tem porta de vidro, é mais intimista e não apresenta a interface com o público das outras residências do Morro da Macaca. A personagem cresce durante a trama e tem a sua vida particular explorada. Sem o uniforme de trabalho, as suas roupas são de cores neutras, assim como as de Janaina. Na primeira cena em que aparece, a personagem é representada como a terceira na vida privada, ainda mais que Janaina, pois diferente desta ela permanece na sala nos momentos de confusão. Conseguimos vê-la ao longe, entre as pessoas. O fato de Conceição ser ignorada pelo patrão quando ela o cumprimenta destaca o caráter de invisibilidade da empregada doméstica. É digno de nota também o ambiente da mansão, no dia da festa há uma imagem de Gibson perto de umas velas em castiçais, em dialogia com uma estética gótica. Em outro momento da festa, Nelita, que tem problemas psiquiátricos veste um vestido de noiva da irmã falecida, um foco de luz a ilumina no alto da escada, em mais uma referência à estética gótica. Dignidade: sem uniforme, cores neutras. Casa própria com o marido no morro. Indignidade: mansão dos Stuart, uniforme de empregada. Empregada doméstica: maior parte do tempo na cozinha da mansão. Uniforme. Trabalhadora: empregada doméstica. Entusiasmo: o entusiasmo está presente no seu quadrado semiótico. Cronotopo da terceira na vida privada: na mansão dos Stuart ela é uma observadora invisibilizada. Ela está a par dos acontecimentos, guarda segredos sobre a casa. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (cozinha, taças, arrumar a mesa, atender porta, servir as pessoas). Resumo técnico: chamam a atenção as imagens dela na casa captadas por pequenos espaços entre as pessoas, atrás dos outros, ou cumprimentando Gibson sem resposta. Ao contrário de Janaina, no momento da festa ela não fica na cozinha, está na sala, mas a câmera quase não a enquadra, o que reforça o seu status de terceira na vida privada.

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Zezé (Avenida Brasil) Figura 25 - Zezé na cozinha da mansão onde trabalha, imagem do capítulo 13

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1896316/ >

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Empregada doméstica. Protagonismo/posição: apoio (nêmesis) não tem autonomia Cronotopo: terceiro na vida privada Sentimento principal: riso Trabalho: empregada doméstica Relacionamentos amorosos: não Família/amizade: não aparece ninguém da sua família. Colega de Janaina. Casa: tem uma casa no morro, mas aparece raramente. Consumo/vida material: nada específico Resumo da narrativa: Zezé é empregada na mansão de Tufão. Ela começa e termina a trama trabalhando na casa. Quando Nina é contratada como cozinheira, Zezé implica com a moça. Evidentemente, sente ciúmes da novata. Zezé demonstra bastante fidelidade à patroa Carminha que, inclusive, lhe pede que vigie Nina. Quando Carminha forja seu próprio sequestro, a empregada vê, no morro onde mora, a patroa sendo levada pelos bandidos a um barraco. Imediatamente, ela conta aos familiares da sequestrada. Quando Carminha sai da mansão para morar em uma chácara, Zezé vai trabalhar para ela. A empregada confessa que a patroa é bem ruim. Mas, a acompanha porque Carminha lhe promete recompensas. Na ocasião em que Carminha é considerada mentalmente perturbada e desaconselhada a sair de casa, Zezé ajuda a vilã a sair da mansão sem ser vista, inclusive de forma humilhante, quando Carminha pisa em suas costas para pular o

225 muro. Também na internação da patroa em uma clínica psiquiátrica, Zezé a ajuda a fugir, mas conta à família quando os vê preocupados Nos últimos capítulos, há uma cena no bar do Silas em que todos a agradam, para que ela conte as fofocas em torno do assassinato do Max. Depois, quando Zezé descobre toda a verdade sobre Nina – que se torna mulher de Jorginho e, então, sua patroa – ela pede desculpas à moça, que, por sua vez, aceita as desculpas e despensa cerimônias. Sua última cena é servindo a mesa da família. Nível fundamental: Zezé costuma fazer todas as vontades de Carminha, sua patroa megera que às vezes lhe dá mais dinheiro em troca de serviços extras. Ela sente ciúmes de Nina quando esta chega para ser a cozinheira da casa, pois é insegura em relação ao emprego. Ela, inclusive, aguenta todas as humilhações que sofre por parte de Carminha. É possível argumentar que ela se alia ao “lado forte” por conveniência, para garantir seu trabalho e sobrevivência em uma realidade social opressiva. Quando Nina assume o posto de patroa, Zezé teme retaliação, o que Nina nega, a tranquilizando. Nina não quer ser tratada por dona. Monalisa também ajuda Zezé a servir a mesa. Temos a oposição servidão (disfórico) versus soberania (eufórico). Zezé é manipulada e julga (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador).

Servidão Soberania

Não soberania (sujeição) Não servidão (equiparação)

Trajetória linear: servidão – não soberania (sujeição) – não servidão (equiparação).

Forma da expressão A personagem se expressa por meio da atriz Cacau Potásio. Ela é negra, alta, gorda e tem olhos escuros.

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Figura 26 - Zezé conversa com Janaina, imagem do capítulo 10.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1891462/>

Mudança de aparência: não. Roupas: para trabalhar usa uniforme vermelho de empregada doméstica, e touca branca quando está na cozinha. O uniforme também é preto e branco, às vezes. Fora do horário de trabalho, Zezé usa blusas estampadas ou lisas e largas, cores vibrantes e calça preta. Acessórios, maquiagem: Usa anéis, brinco pequeno de bolinha dourada, corrente no pescoço. Quando não está no trabalho usa maquiagem leve e uma presilha em formato de flor em seus cabelos. Cabelo: cabelos curtos e crespos. Linguajar: Fala bem alto. Dialeto popular. Cenário: Mansão de Tufão onde trabalha, a cozinha é recorrente. Aparece a sua casa, em um morro, uma vez, onde é possível ver o concreto apenas. Não vemos nada pessoal, ela olha para fora. A mansão, em alguns momentos, remete ao romance gótico, por exemplo, quando Zezé espia Nina a mando de Carminha. Música: não possui música específica, mas uma cena sua ficou famosa, quando a personagem parodia a música “Correndo atrás de mim” do Aviões do Forró. Ela cantou “eu quero ver tu me chamar de amendoim” e dançava enquanto arrumava a casa. Atuação: fala com a cabeça erguida quando está com Janaina. Fala e gesticula com talher na mão. Cruza os braços, vira os olhos para cima quando está contrariada. Emprega palavras irônicas e sarcasmos ao tratar de Nina. Com Carminha, sua patroa, tem uma postura mais subserviente.

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Substância da expressão

A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 8. Plano de conjunto na mesa de jantar da mansão de Tufão. De dia. Ângulo lateral. Estão sentadas à mesa Carminha, Muricy e Ivana. Zezé retira as louças da mesa e vai para a cozinha, enquanto as três conversam. Muricy e Ivana levantam e vão discutir na sala. Carminha também se levanta e grita “meu café, Zezé”. Carminha se senta em uma poltrona e Zezé traz o café até ela, sorri e sai. Essa parte em que ela aparece dura 45 segundos.

Substância do conteúdo O plano de conjunto da mesa revela a amplitude e descrição do local, e a sensação de insignificância de Zezé ao servir a mesa onde as três mulheres conversam. Carminha grita para fazer o seu pedido e nem sequer pede por favor, o que reforça a subserviência da doméstica e as relações desiguais estabelecidas, assim como o sorriso de Zezé quando serve o café à patroa. Zezé usa uniforme nessa cena e na maior parte da trama. Trata-se de uma vestimenta que reforça as distinções sociais. O fato de Zezé vigiar Nina dialoga diretamente com a temporalidade de terceira da vida privada da empregada doméstica. Na cozinha, as conversas com Janaina são sempre sobre os outros da casa. A atuação de Zezé conota deboche, desdém àqueles que não são seus patrões, e submissão aos últimos. Remete à figura estereotipada da mulher negra criada, como fiel, fofoqueira, invejosa e ciumenta (HALL, 2016; PINSKY, 2013). O fato dela estar sempre espiando, como no dia em que ela identifica o paradeiro de Carminha que fora sequestrada, olhando para a rua da janela de sua casa, reforça o fato dela ser uma terceira na vida privada e o seu aspecto popular/público. A casa da personagem aparece rapidamente na cena do sequestro apenas uma parte interior da qual só se vê concreto. Não há sinais de pessoalidade no ambiente e tudo remete ao exterior. Sua vestimenta sem o uniforme traz cores mais alegres que as outras duas domésticas. As blusas são largas lisas ou com estampas de cores vivas e calça preta. Servidão: Carminha como patroa. Não servidão: Nina como patroa Empregada doméstica: mansão de Tufão, cozinha principalmente. Uniforme. Trabalhadora: empregada doméstica. Riso: a sua atuação.

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Cronotopo da terceira na vida privada: o trabalho na mansão de Tufão, além da tarefa de espiar Nina. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (servir café, mesa de jantar, uniforme). Resumo técnico: plano geral da sala de jantar, invisibilidade de Zezé.

Dinorah (A Regra do Jogo)

Figura 27 – Dinorah na casa onde trabalha, mas não recebe, imagem do capítulo 4.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4442652/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Empregada doméstica Protagonismo/posição: dependente Cronotopo: terceira na vida privada Sentimento principal: riso Trabalho: empregada doméstica Relacionamentos amorosos: não Família/amizade: não aparecem seus familiares. É bastante próxima de seu patrão Feliciano. Casa: mora na cobertura onde trabalha. Consumo/vida material: nada de específico em relação a isso. Resumo da narrativa: Dinorah é a empregada doméstica da família falida de Feliciano, em um apartamento na cobertura. Não recebe salário há muito tempo, mas diz que só vai embora quando for paga. Vende pipoca, mate e cerveja no farol perto da praia. Dinorah se dá muito bem com Feliciano, a quem é fiel. Segue o patrão até mesmo quando ele vai morar na rua. A moça não passa por grandes transformações na trama. Feliciano fica rico de novo e diz que vai contratá-la novamente. Ele paga a ela tudo o que estava devendo e diz que ela pode parar de trabalhar. Ela recebe muito dinheiro, mas diz que ainda quer

229 continuar trabalhando para ele. Quando Feliciano se casa com Adisabeba, no último capítulo, Dinorah não aprova, faz pouco caso e diz que não trabalhará para Adisabeba em consideração à mulher falecida de Feliciano. Nível fundamental: A oposição é servidão (eufórico) versus liberdade (disfórico). Ela julga, é julgada (percurso do destinador-julgador.

Servidão Liberdade

Não liberdade (condescendência) Não servidão (desobrigação)

Trajetória linear: Servidão – não liberdade (condescendência) – não servidão (desobrigação) – liberdade. Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Carla Cristina Cardoso. É negra, encorpada e tem olhos escuros. Figura 28 – Dinorah lendo revista na casa onde trabalha, imagem do capítulo 74.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4631905/

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Mudança de visual: ela muda um pouco quando recebe o dinheiro de Feliciano. usa roupas mais sofisticadas. Roupas: bermuda ou calça de lycra, e camiseta (com estampas, dizeres ou alguns detalhes discretos). Laranja claro, violeta, rosa claro, cinza, preto. Acessórios, maquiagem: brincos pequenos, unhas pintadas de cor escura. Cabelo: cabelo curto e crespo. Preso só de um lado. Linguajar: dialeto popular. Usa gírias e palavras irônicas. Cenário: quartinho de empregada na cobertura onde trabalha. Há uma cortina apenas que o separa da cozinha. O quarto possui uma pia, muitos objetos, colocados em uma janelinha e um santo no criado-mudo. Estranho que em uma cobertura o seu quartinho seja tão simples. É um lugar à parte do restante, onde Mel entra para se encontrar com Vavá. Música: não tem música específica. Atuação: ela faz caras e bocas como Zezé. Cruza os braços, entorna os olhos e a boca como sinal de deboche ou ironia.

Expressão da substância A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 2. Música tema de Feliciano “Come fly with me”. De dia. Imagem de cima do Rio de Janeiro, carros na rua e um prédio onde fica a cobertura da personagem. A porta do apartamento abre, entram Breno e Dalila que reclama da demora. A música para de tocar. Dinorah sai de trás da porta, a vemos de corpo inteiro. Ela anda e rebate “pra quem não recebe salário há mais de um ano acho que abri até bem rápido, não é, dona Dalila?”. Dinorah segura um pano de limpeza na mão. Meio primeiro plano, ela responde a Dalila que não vai embora porque está esperando receber o seu dinheiro. Ela vai até “seu Breno” para cobrar seu salário, a vemos de costas, de corpo inteiro. Ele diz que está ocupado e Dinorah reclama que tudo é mais importante na casa do que ela. A empregada fala alto, com as mãos na cintura. É debocha quando dizem para ela pedir a Vavá o dinheiro. Este entra em casa e discute com a irmã e o cunhado. Vavá se direciona ao quarto onde estão seu pai e Janete. Dalila também vai até lá. Depois, Dinorah aparece no cômodo, a câmera a enquadra de costas em meio primeiro plano. Ela entrega o paletó de Feliciano nas mãos de Dalila. Dinorah vira de frente e sai do quarto. Na sala de jantar todos conversam e se arrumam em pé. Dinorah

231 aparece ao fundo em plano americano. Feliciano pega um copo para tomar café e diz que está imundo, enquanto trata de outros assuntos. Dinorah pega o copo para ver, enquanto Feliciano e os seus familiares continuam a conversa. Breno está sentando na mesa de jantar, vemos parte do corpo de Dinorah à direita, em pé, pegando um copo de café. A cena continua com os outros. Depois, os familiares estão prontos para sair, Dinorah aparece atrás de Janete e Vavá, um pouco desfocada. Ela chama “seu Vavá” e diz que dona Aparecida está no telefone. Na verdade, Mel, amante do homem, o espera no quartinho de empregada. Vavá vai com Dinorah para o local, segurando em seu braço. A empregada está com o celular guardado no sutiã e o pano na mão. Plano americano nos dois que param na cozinha e conversam. Ela diz que não tem culpa pois quando chegou, Mel já estava em seu quarto. Dinorah recomenda que Vavá tenha cuidado com o seu “cafofo” que está limpo e arrumado e o leva pela mão. O trecho em que a personagem aparece dura em média 4 minutos e 10 segundos.

Substância do conteúdo Dinorah apresenta similaridade com Zezé em vários aspectos. O quadrado semiótico é praticamente o mesmo, além do deboche e ironia presentes na atuação. O motivo da empregada com um telefonema misterioso se repete, como em Janaina. Há referências ao período da escravidão, pois ela trabalha sem receber praticamente, apesar do tom de comédia. O fato de Feliciano pagar o que deve e dizer para ela ir onde quiser remete ao ato de alforria do período escravocrata. A comédia está no sentido de inadequação transmitido pela empregada doméstica que deita no sofá, assiste televisão, joga xadrez com o patrão, entre outras atividades. Ainda assim, ela continua servindo a Feliciano, a quem reserva grande admiração. O fato dela não usar uniforme a integra mais ao ambiente da cobertura. Na primeira cena em que ela aparece, percebe-se semelhanças com o sitcom brasileiro em formato de teatro, estilo Sai de Baixo e Toma lá dá cá exibidos na Rede Globo. Ela atende a porta e toda a cena se passa na cobertura em tom de comédia. Ela responde à patroa, pede pelo seu dinheiro, mas está com um pano na mão, indicativo de trabalho. Ela leva o paletó para Feliciano e anda entre as pessoas. É enquadrada às vezes apenas em partes, de costas ou por um pequeno pedaço de seu corpo, o que faz parte do clima desse núcleo e da técnica de caixa cênica e câmeras escondidas de Amora Mautner. A personagem também dialoga com a figura estereotipada da mulher negra empregada

232 doméstica (HALL, 2016; PINSKY, 2013). O seu quarto de empregada destoa do restante da cobertura. O seu quarto é separada da cozinha apenas por uma cortina. O espaço é pequeno, tem uma pia, muitos objetos e um santo em cima de uma cômoda, o que revela a religiosidade da personagem. O fato de Mel entrar no seu quarto sem ela ver e a cortina que separa o ambiente do restante indicam a falta de privacidade de Dinorah. Servidão: trabalho sem receber. Feliciano. Liberdade: a chegada de Adisabeba. Deixa a cobertura. Empregada doméstica: não usa uniforme, não recebe, mas continua na casa, serve somente a Feliciano. Trabalhadora: empregada doméstica Riso: atuação. Situação inusitada, uma empregada doméstica que não recebe o seu salário e desfruta do ambiente privado da família. Cronotopo da terceira na vida privada: a convivência na cobertura, ambiente privado alheio. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (falta de recebimento, atendimento de porta, atendimento do telefone, paletó de Feliciano, copo de café, pedido de recebimento, segredo de Vavá). Resumo técnico: os planos em que ela aparece apenas em partes ou atrás de pessoas. o plano em que ela está com o telefone na mão desfocada, atrás de Vavá e Janete.

Janaina e Conceição representam uma mudança de paradigma das empregadas domésticas na telenovela, pois se transformam de terceiras para autônomas. Diferente de Janaina, Conceição fala o dialeto culto e ainda tem a casa mais individualizada, cores diferentes e porta que não é de vidro. Ou seja, a personagem destoa do ambiente popular no qual as outras se inserem. Os níveis fundamentais das empregadas domésticas as dividiram em duas duplas: as brancas e as negras. As primeiras têm o âmbito pessoal mais explorado e se veem livres do emprego doméstico, em um movimento narrativo similar (praticamente o mesmo nível fundamental), apresentando certa fuga do comum nas telenovelas (não canônicas). Ao contrário, as negras estão mais presentes ao ambiente de trabalho, não têm vida pessoal evidente e tendem para a comédia, suas trajetórias fundamentais exibem poucas diferenças entre si. Zezé tem uma trajetória circular, porque começa e termina a trama

233 servindo à mesa da mansão de Tufão. Dinorah ainda decide sair da cobertura de Feliciano, embora o ato não seja explicitado. Além disso, Zezé tem a sua casa muito brevemente apresentada, sem nenhum sinal de pessoalidade. Apesar de não ter casa individual, Dinorah possui um quarto na cobertura que revela um pouco da caracterização da personagem. O diferencial de Dinorah está na mistura entre a terceira da vida privada com o ambiente privado em que trabalha, o que confere comédia, mas também revela dialogia com um discurso escravocrata. Como Feliciano não é um vilão e todo o ambiente remete à comédia, a situação não parece ser uma crítica direta ao pensamento escravocrata. Os seguintes pontos se destacam:  Empregadas brancas: sentimento de entusiasmo, casa dos patrões e casa individual. Percurso de libertação e autonomia.  Empegadas negras: sentimento de rio, casa dos patrões e espaço público. Não possuem suas próprias casas. Percurso que não explicita a liberdade no caso de Dinorah ou a permanência no mesmo espaço no caso de Zezé.  Falta de intimidade e interface com o espaço público/coletivo: quartinho de Dinorah com a cortina que separa o ambiente, casa de Zezé voltada para a rua durante a cena em que aparece sem nada de pessoal, porta de vidro na casa de Janaina.  Conceição a única empregada com linguajar culto e mais privacidade em seu ambiente doméstico.  Discurso estereotipado em diálogo com uma ideologia escravocrata no caso das empregadas negras.  Enquadramentos que reforçam a sensação de que as empregadas são observadoras da vida privada: atrás de um casal com telefone na mão, enquadramento de algumas partes do corpo, atrás de pessoas, como parte do cenário, invisibilizadas. Dinorah e Conceição tem mais movimento no espaço. Zezé e Janaina são mostradas como parte do cenário em algumas cenas.  Religiosidade de Dinorah na decoração do quarto.  Dialogia com sitcom brasileiro de teatro em Dinorah, no ambiente da cobertura de Feliciano.  Dialogia com estética gótica.

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3.7. Cronotopo trivial

Adisabeba (A Regra do Jogo) Figura 29 – Adisabeba nas escadas de sua casa, cena do capítulo 7.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4450401/>

Forma do conteúdo Atributos: emergente social. Matriarca. Protagonismo/posição: apoio (mentora) também tem autonomia e destaque Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: foi prostituta no passado. É empresária, tem uma boate, um hostel e propriedades no Morro da Macaca. Relacionamentos amorosos: Abner, Zé Maria e Feliciano Família/amizade: tem seu filho, Merlô. É amiga de Djanira e Tóia. Casa: mora em sua mansão, com o filho, no morro. Consumo/vida material: o gosto material da personagem se destaca. Sua casa mistura estilos e estampas. Há uma escultura pitoresca na sala, luzes que acompanham o corrimão da escada, banheira hidromassagem de frente a uma televisão que transmite imagens do morro. O gosto é kitsch. Ela tem três cachorrinhas Yorkshire, chamadas Scarlet, Estefani e Lara. Mas às vezes ela chama de outro nome, Suze. Apesar do gosto exuberante, em muitos momentos ela se autodeclara muquirana e expressa preocupação com dinheiro e economia. Resumo da narrativa: Adisabeba é uma ex-prostituta (foi prostituta por 24 anos), que é praticamente dona do Morro da Macaca, tem uma boate chamada Caverna da Macaca,

235 um hostel e propriedades que aluga. Namora um rapaz bem mais jovem, Abner. É muito protetora com o filho Mc Merlô e não aprova o seu relacionamento com Ninfa e Alisson. Quer o filho sempre em casa perto dela. Adisabeba ajuda e oferece conselhos a Tóia, Djanira e Juliano. Ela também ajuda Zé Maria, um bandido com quem teve um relacionamento no passado, acreditando em sua inocência. Em determinado momento, se envolve com Zé Maria, os dois até planejam se casar. Mas, depois, descobre que se enganou em relação ao caráter dele e ajuda a política a capturá-lo. Seu filho se afasta dela em alguns momentos, casa e descasa, mas volta a se apresentar na boate da mãe e a morar na casa dela. Adisabeba, inclusive, arma um plano (bem-sucedido) com Mel para separar seu filho de Janete, com quem ele estava praticamente casado. Depois, quando seu filho decide viver sozinho, Adisabeba faz um acordo com Ninfa e Alisson para trazer ele de volta. Adisabeba se casa com Feliciano no final, depois de revelar que ele é o verdadeiro pai de Merlô. Na última cena, a família de Feliciano se muda para a mansão/hostel dela, assim como seu filho com suas várias mulheres (inclusive Ninfa e Alisson) e filhos. Nível fundamental: Adisabeba julga quem são as pessoas boas para o seu filho e também o manipula para que fique sempre em casa (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador). Enquanto sujeito de sua narrativa temos a oposição entre conservadorismo (eufórico) e libertação (disfórico) em relação ao seu filho e à sua própria vida. Ela inicia a trama relacionando-se com um rapaz mais novo, depois faz de tudo para que o seu filho não saia da casa, casa-se formalmente com o pai de seu filho e aceita as várias esposas de seu filho em casa.

Conservadorismo Liberação

(seu filho deve estar (relacionamento com homem sempre por perto, mais novo) não aceita suas namoradas).

Não liberação Não conservadorismo (convenção) (flexibilização)

Trajetória linear: Liberação – conservadorismo – não liberação (convenção) – não conservadorismo (flexibilização).

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Forma da expressão A personagem se expressa pela atriz Suzana Vieira. Adisabeba é encorpada e tem estatura baixa. Branca, loira e olhos escuros. Figura 30 – Adisabeba em sua casa, imagem do capítulo 9

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4456009/

Mudança de aparência: não. Roupas: Adisabeba usa roupas justas, decote, estampa animal, brilho. Às vezes usa roupas mais curtas. Usa cores fortes, iluminadas e também escuras. Acessórios, maquiagem: Adisabeba utiliza muitas pulseiras, colar com pingente grande (de coração e outro de Nossa Senhora da Aparecida). Anéis e brincos grandes. Usa maquiagem, batom mais claro, tons rosados, e olhos mais carregados. Salto bem alto. Unha comprida e pintada de cor de rosa choque, lilás ou roxo. Cabelo: Adisabeba tem os cabelos compridos até a cintura, ondulados, volumosos e loiros. Em alguns episódios, estão mais lisos. Linguajar: Fala alto. dialeto popular. Utiliza o pronome “tu”. Fala inglês com os estrangeiros que visitam o morro, pronúncia caricata, devagar com alguns erros. Cenário: sua mansão/hostel e sua boate Caverna da Macaca. A sala é um espaço recorrente em sua casa. A casa tem porta de vidro e apresenta estética Kitsch, com excesso de objetos e mistura de estilos. O seu escritório na boate tem um quadro iluminado com uma imagem religiosa. Música: “A dona do barraco”, Calcinha Preta. Tema com Zé Maria: “Nuvem de lágrimas”, Fafá de Belém.

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Figura 31 - Objeto de decoração da casa de Adisabeba, imagem do capítulo 9.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4456009/> Atuação: Ela gesticula bastante, anda com o corpo empinado. Movimentos impulsivos. Olhar altivo em alguns momentos. Com a personagem que é seu filho, ela fala como se ele fosse criança. Ela sempre demonstra empolgação com os shows dele, dança suas músicas. Sempre demonstra bom humor.

Substância da expressão No primeiro capítulo, Adisabeba aparece três vezes. Primeiro, ela está em sua boate cheia, de noite. Música diegética. Com as mãos na cintura, meio primeiro plano (cintura para cima), contra a luz, Adisabeba fala para Tóia receber Neymar, e diz, levantando as mãos, que não quer confusão em sua boate. No mesmo lugar, outras personagens aparecem. Quando seu filho está cantando no palco, Adisabeba dança, meio primeiro plano. Ela sorri com a boca aberta, bate palma e levanta as mãos. Depois de outras personagens no mesmo local, ela aparece dançando ainda, com Abner. Essa parte dura por volta de 2 minutos e 50 segundos. Há uma elipse. Plano detalhe da máquina que conta dinheiro. Adisabeba em sua sala na boate, fica feliz com o dinheiro faturado. Meio primeiro plano e plano americano. Ela paga Tóia, mas dá um pouco a menos que o combinado. Tóia reclama e ela acerta. Adisabeba diz que a moça vai ficar rica desse jeito. As duas fazem um cumprimento com as mãos. Essa parte dura por volta de 45 segundos. Em outra cena, Adisabeba sai de sua casa para a rua, de dia. Iraque diz “Bom dia” e ela responde “só se for pra você”. Ela anda desviando das motos, falando alto, quase de corpo inteiro. Com uma postura um pouco relaxada, pernas meio abertas. Música funk instrumental não diegética A personagem passa por trás de objetos e coisas que estão na rua. Chega na casa de Ninfa e grita o nome da moça. Adisabeba empurra Ninfa da porta

238 e diz “sai da minha frente”. Dentro da casa, a música para e Adisabeba chama pelo filho. Algumas imagens são feitas através do vidro da janela. Ela diz que a casa é dela e que a moça ainda não pagou o aluguel. Ela aparece de corpo inteiro rapidamente. Adisabeba vai afastando tudo de sua frente com movimentos bruscos. Ela encontra o filho no box do chuveiro. Adisabeba discute com Ninfa, diz que ela é só uma bunda. No meio da discussão, Adisabeba confessa que foi prostituta com muito orgulho. Primeiro plano. Quando saem da casa, a música volta. Enquadramento de mãe e filho pela janela, câmera do lado de dentro da casa. Merlô volta com ela andando pela rua. A música para de tocar. As pernas de Adisabeba aparecem. Há uma câmera baixa em alguns momentos enquanto eles andam. Ela fala alto com o filho e bate nele. Eles caminham por detrás de objetos e pessoas. Eles conversam sobre Tóia e Juliano. Na outra cena em que personagem aparece, ela está em sua boate com policiais. Câmera alta, ela anda pelo espaço e pergunta se descobriram alguma coisa. Tóia aparece. Adisabeba corre até a moça, que confessa o crime. Adisabeba em primeiríssimo plano assustada, trilha sonora branca de suspense.

Substância do conteúdo O caráter de emergente social da personagem é expressado pelos bens, modo de falar, de se vestir, decoração da casa, comportamento e referências em diálogos. Não passa pela transformação da ascensão, já inicia a trama nesse status. Logo no primeiro capítulo, ela aparece em sua boate contando o dinheiro da noite de trabalho. Apesar de ser rica e do gosto exuberante, apresenta ética do trabalho e é econômica. A fama de Adisabeba é de muquirana. O close na máquina contando o dinheiro faz parte do caráter materialista de Adisabeba. Quando aparece pela primeira vez na boate, Adisabeba já demonstra segurança em relação a si mesma e ao espaço que domina. A atuação da atriz confere um ar vívido e um tanto mandão à personagem. Suas roupas estão para a inadequação e riso, assim como a decoração da casa. As músicas são populares e divertidas e, juntamente com o dialeto popular, reforça a sua caracterização de classe. Enquanto Adisabeba anda no morro, a utilização da câmera baixa e alta simula a geografia do morro. Há naturalidade na cena e o telespectador tem um olhar privilegiado ao vê-la por frestas entre objetos e construções, conforme ela caminha, como um observador dentro da cena.

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A divisão entre casa, hostel e boate de Adisabeba não é clara no cenário mostrado durante a trama. Os três espaços se misturam. Verifica-se a mescla entre o público e o privado, reforçado pela porta de vidro. A afirmação do público em relação ao popular faz parte da cena em que ela anda na rua, do seu modo de falar e de seus “barracos”. O tom comunitário também está presente, ela cumprimenta as pessoas na rua pelo nome, por exemplo. É pertinente pontuar que por ser uma mulher de mais idade, as roupas de Adisabeba coloridas e justas chamam mais a atenção. É possível relacionar essas características com a vivência da mulher popular mais velha, comentada por Santos (2016), em sobre as ex- chacretes. O autor destaca a narrativa da solidão nessas mulheres, que enfrentaram na vida o dilema de serem livres e sozinhas ou acompanhadas e submetidas a um homem. Santos explica que as ex-chacretes de classe média também lidam com a solidão mesmo casadas, por estarem presas a homens que as controlam, nos quais elas não encontram a figura de um companheiro de fato. A “fuga” do envelhecimento está presente na vestimenta e maquiagem das ex- chacretes das classes populares, expõe Santos (2016). Por exemplo: lápis preto nos olhos, brincos grandes, colares, pulseiras, tornozeleiras, roupas joviais, curtas e coladas no corpo das cores prata e dourada. “A maioria das chacretes com que tive contato veste-se e produz-se para esconder algumas marcas do tempo, mas, concomitantemente, para aparecer como mulher sensual, ainda digna do olhar lascivo de alguém”. (SANTOS, 2016, p.310). Percebe-se tais características em Adisabeba. É importante pontuar que em contraposição a Tóia e a Djanira, que aparecem no mesmo capítulo, Adisabeba passa por menos lugares. Ela permanece no Morro da Macaca, na boate, e na casa de Ninfa. Os acontecimentos pelos quais passa são corriqueiros e não têm a mesma carga dramática das outras duas, por isso conta com menos elipses, menos cenas e a temporalidade é mais próxima à da vida real. Conservadorismo: filho por perto, casamento com Feliciano, netos e família. Liberação: namoro com homem mais jovem, filho longe de casa, seu passado como prostituta. Emergente social: suas propriedades, roupas e decoração. Cores chamativas, estampas animais, brilhos, estilo Kitsch. Matriarca: filho homem Riso: músicas, atuação, cenário, figurino e relação com o filho.

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Cronotopo trivial: localização no Morro da Macaca, temáticas do cotidiano são exploradas, relacionadas à vida material. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (boate, noite, dinheiro, roubo), relação familiar (filho, casa de Ninfa, rua, casa) Resumo técnico: ela contra a luz na boate com as mãos na cintura em meio primeiro plano, plano detalhe no dinheiro, ela andando na rua passando por trás de objetos, imagens através da janela na casa de Ninfa. Música diegética e extradiegética.

Muricy (Avenida Brasil)

Figura 32 – Muricy assiste pela televisão ao seu filho em uma partida de futebol, cena do primeiro capítulo.

Fonte: Globoplay

Forma do conteúdo Atributos: emergente social. Matriarca Protagonismo/posição: apoio (nêmesis) também tem autonomia Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: No passado, foi empregada doméstica e camelô. Não trabalha. Relacionamentos amorosos: Leleco e Adauto Família/amizade: dois filhos, Ivana e Tufão, marido Leleco, nora Carminha e genro Max. Casa: mora na mansão de Tufão com toda a família. Consumo/vida material: o gosto da personagem se destaca. Em sua vestimenta e decoração de seu quarto há estampas de animais e cores escuras. Ela aparece tomando

241 cerveja no gargalo, gosta de filmes de aventura e rejeita um filme cult indicado por outra personagem. Resumo da narrativa: Muricy é mãe de Tufão e Ivana. Trabalhou como camelô e empregada doméstica para criar os filhos, enquanto o seu marido Leleco não trabalhava. Não gosta da noiva de Tufão, Monalisa. E incentiva o relacionamento do filho com Carminha, sem conhecer o verdadeiro caráter dela. Muricy acha que está sendo traída por Leleco que teria um relacionamento com Tessália. Eles brigam, se separam. Muricy começa a namorar Adauto, bem mais jovem que ela. E Leleco também se relaciona com Tessália, bem mais jovem que ele. Os dois casais são obrigados a conviver por um tempo. Em determinado momento da trama, Muricy tem um caso com Leleco. Adauto descobre e a deixa. No fim da telenovela, Muricy reata o seu casamento com Leleco e diante da descoberta do verdadeiro caráter de Carminha, ela pede perdão a Monalisa e a aceita na família. Nível fundamental: Em relação à trama principal ela também é enganada por Carminha e se equivoca em relação a Monalisa. Ela julga e é manipulada (trajetória do destinador- manipulador e do destinador-julgador). Em relação à sua trajetória do sujeito, ela parte de um relacionamento estável, para o relacionamento com um homem mais novo e volta para o marido. Trata-se de uma oposição entre novidade (disfórico) e costumeiro (eufórico)

Novidade Costumeiro

Não costumeiro (diversificação) Não novidade (familiar)

Trajetória linear: costumeiro – não costumeiro (diversificação) – novidade – não novidade (familiar). Forma da expressão

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A personagem se expressa pela atriz Eliane Giardini. Ela é branca e tem olhos claros. Na novela, estava com os cabelos castanhos. É encorpada.

Figura 33 – Muricy em sua mansão, imagem do capítulo 8.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1887900/

Mudança de aparência: mudança no começo da trama, passagem do tempo e ascensão social. Roupa: no começo da trama, antes da passagem do tempo e de morar na mansão com seu filho, ela usa mais jeans (calça, camisa e jaqueta) com detalhes diferentes como brilhos e bordados. As roupas são mais claras nos primeiros capítulos. Depois, já na Mansão de Tufão, começa a se vestir de forma mais sofisticada, com cores mais escuras (por exemplo, saia justa de cintura alta e na altura dos joelhos). Roupas justas, decotes, estampa de animal. Um pouco de brilho. Pretensão elegante. Acessórios e maquiagem: usa batom vermelho, brincos, pulseiras, cintos. Salto alto. Unhas pintadas de vermelho. Depois da passagem de 2000 para 2012, ela aparece com um pingente em formato de aranha. Geralmente, usa brincos de argola. Cabelo: Antes (quando a história se passa no ano 2000) usava o cabelo mais enrolado acima dos ombros. Depois (2012), usa liso na raiz e curvado nas pontas, sempre escovado, um pouco abaixo dos ombros. Linguajar: Fala alto, chega a gritar. Seu sotaque é paulista. Dialeto comum. Cenário: Mora com todos os familiares, na mansão do Tufão, seu filho, no Bairro do Divino. Seu quarto é composto por cores escuras e estampas de animais. Música: “Humilde Residência” de Michel Teló (tema com Adauto).

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Atuação: ela levanta o olhar, mexe a sobrancelha e arregala os olhos para demonstrar desagrado com o marido. Grita. Gesticula bastante as mãos.

Substância da expressão Muricy aparece cinco vezes no primeiro capítulo. Na primeira vez, ela está em um quarto de hotel, de dia, junto com o marido Leleco e os filhos Ivana e Tufão. O ano é 1999, é o dia da decisão do campeonato carioca e Tufão é o grande jogador do Flamengo. O rapaz reclama de um entrevistado na reportagem que assistem sobre ele na televisão do quarto. Muricy acalma o filho. Primeiro plano em Muricy e Tufão. Ela faz ele sentar e fala que é o dia dele. Os dois em primeiro plano com Ivana no fundo. Muricy continua, diz que é o dia dele entrar em campo e “é goooooool” ela grita e levanta o braço. Começa a tocar um samba não diegético. Ivana e Leleco levantam as mãos e gritam. Tufão fica nervoso com a pressão. Muricy se desculpa e diz “a mãe que tá nervosa”. Ivana tenta maquiar Tufão antes dele sair para a entrevista. Muricy dá a camisa do patrocinador para ele colocar por cima da outra que está usando. A mão diz que vai com ele. Plano de conjunto de todos no quarto. Vemos ela de corpo inteiro. Muricy sai com Tufão. Lado de fora. Sol. O samba continua. Muricy desce as escadas em frente ao hotel com o filho e vão em direção aos jornalistas, que chamam por Tufão. Eles passam no meio dos jornalistas e viram para a câmera. A imagem muda para a transmissão televisiva, percebe-se pela alteração de cor e som. Primeiro plano de Muricy e Tufão. Muricy começa a arrumar o cabelo do filho, diz que ele está suado e sorri para a câmera. Ela permanece sorrindo ao lado dele, inclina um pouco a cabeça, querendo aparecer na televisão. A cena muda para o salão de beleza onde Monalisa e Olenka trabalham e assistem à entrevista. Vemos Tufão e Muricy um pouco longe, enquadrados na televisão localizada no alto do estabelecimento, plano de conjunto. O trecho dura 1 minuto e 5 segundos. Em outra cena, Muricy aparece no Clube do Divino assistindo ao jogo do filho com o marido e Diógenes. Seus rostos estão aflitos. A música não diegética é um rock. Os três estão sentados em uma mesa com cerveja. Primeiro plano de Muricy que abaixa a cabeça e segura a correntinha que está usando. Depois de outros trechos, a mesma cena volta, vemos o rosto de Muricy em primeiro plano assistindo ao jogo.

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Mais uma vez, depois de uma intercalação, Muricy está em primeiro plano feliz com o gol do filho, sorri com as mãos para o alto e olha para cima. A vemos também um pouco de costas ao longe em um plano de conjunto. Em outro momento, ela ainda está no clube e é entrevistada. Leleco e Ivana querem participar, mas Muricy enfatiza que a repórter quer falar com a mãe de Tufão. Muricy se assusta um pouco com o microfone e repete muito a mesma coisa. Primeiro plano nela, com microfones perto de seu rosto. Depois quando a repórter afasta o microfone, ela puxa de volta e começa a falar do filho. A imagem fica embaçada para destacar Monalisa ao fundo que entra no clube. Substância do conteúdo A atuação da atriz é marcadamente cômica. Sua tipologia como matriarca é visível na primeira cena, assim como ocorre em Adisabeba. Ambas tratam os filhos como se fossem pequenos. Por exemplo, quando ela se refere a si mesma em terceira pessoa “a mãe” ao falar com ele e no momento em que ela arruma o cabelo do filho em frente à câmera. Percebe-se a valorização da televisão, de aparecer em entrevistas como significado de fama e status social. Observa-se também a valorização da mãe quando somente ela é interesse midiático após o filho ganhar o campeonato. Na cena da partida de futebol, há dinamicidade com os trechos entrecortados com outas cenas de personagens que também assistem à partida. Ritmo acelerado pelos cortes e música. Sente-se a expectativa e empolgação da situação. Muricy é uma admiradora do trabalho do filho, assim como Adisabeba é a admiradora das músicas de Merlô. Tanto Tufão quanto Merlô, apesar de suas diferenças, têm profissões relacionadas à fama e mídia. Também há na cena do quarto de hotel a sensação de naturalidade e referência ao universo popular quando todos falam alto, ao mesmo tempo, afobados com o grande dia de Tufão. A imagem mostra o quarto em plano de conjunto, para que saibamos que se trata de um quarto de hotel. A transmissão televisiva é valorizada do início do capitulo ao fim, nas entrevistas sobre Tufão, com Tufão, transmissão do jogo e entrevistas finais. A televisão é símbolo do universo popular nesse contexto. Ela está presente enquanto instância midiática na comunidade e também por meio do aparelho televisivo. A personagem não dialoga tanto com o espaço externo e sim com os ambientes do bairro, por exemplo o Clube do Divino, onde a última cena remete à simultaneidade de acontecimentos, com sua imagem desfocando e Monalisa passando atrás dela. A

245 emergência social está nas suas roupas e cabelos depois da passagem do tempo. É pertinente destacar a semelhança do seu quadrado semiótico com o de Adisabeba. Novidade: namorado mais novo, Adauto. Música “Humilde Residência” de Michel Teló. Costumeiro: Leleco, seu marido. Emergente social: figurino e mansão do filho. Roupas com estampas animais, escuras. Matriarca: relação com o filho Tufão Riso: atuação. Linguajar popular, fala em volume alto. Cronotopo trivial: acontecimentos relacionados ao dia a dia, acontecimentos triviais. Temas e figuras da primeira cena: família (filho jogador de futebol, filha, marido, quarto de hotel, jogo de futebol, televisão) fama (entrevista, televisão, Clube do Divino). Resumo técnico: plano de conjunto no quarto de hotel. plano dela ao lado do filho na entrevista, planos cortados e músicas extradiegéticas que aceleram o ritmo ao assistir à partida de futebol, plano de Muricy dando entrevista e Monalisa sendo focalizada atrás (simultaneidade).

Ivana (Avenida Brasil)

Figura 34 – Ivana no casamento de seu irmão com Carminha, imagem do capítulo 7.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1886075/

Forma do conteúdo Atributos: emergente social. Protagonismo/posição: apoio (camaleão) não tem autonomia Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: responsável pelas finanças dos negócios da família. Relacionamentos amorosos: Max e Silas. Família/amizades: Muricy (mãe), Leleco (pai), Max (marido), Carminha (cunhada).

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Casa: mora em uma mansão com toda a família. Consumo/vida material: o gosto material da personagem se destaca. Cores do seu quarto são escuras, almofadas coloridas vermelhas e estampa de animal. Escultura de um animal em seu quarto (parece um cervo). Sua relação com o dinheiro é de economia, ela cuida dos negócios da família. Resumo da narrativa: Ivana é irmã de Tufão, filha de Leleco e Muricy. Ela sempre foi boa nos negócios e finanças e é bastante econômica. Ela cuida das finanças da família e do salão de beleza em que é sócia junto de Monalisa, e Tufão. Ivana acreditava na boa índole de Carminha, mulher de seu irmão, que apresenta Max a ela. Os dois se casam, mas na verdade Max é o amante de Carminha. É por meio de uma amizade com Ivana, mantida pela internet, que Nina consegue se infiltrar na mansão da família, como cozinheira. Ivana demora para perceber que fora enganada por Max. No fim da trama, ela inicia um relacionamento com Silas, inclusive o ajuda com as finanças de seu bar. Além disso, a moça abrirá um shopping com seu irmão Tufão no bairro Divino. NÍVEL Nível fundamental: No nível fundamental a oposição se dá entre engano (disfórico) e realidade (eufórico). Ela é manipulada, julgada e julga (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador).

Engano Realidade

Não realidade (ilusão) Não engano (desilusão)

Trajetória linear: engano – não realidade (ilusão) – não engano (desilusão) – realidade.

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Letícia Isnard. É branca, loira, olhos claros e encorpada.

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Figura 35 – Ivana em sua mansão. Foco para o seu modo de mover as mãos. Imagem do capítulo 10.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1891462/

Mudança de aparência: ela muda um pouco no começo da trama devido à passagem do tempo e à ascensão social. Roupas: no começo, ela usava mais jeans. Depois, começa a usar roupas mais sofisticadas. Suas roupas são justas, usa decotes, mas não são curtas. Também veste tomara que caia, blusa de um ombro só e vestidos. Há uma pretensão elegante. Utiliza estampas, cores vivas e iluminadas. O verde é uma cor que se repete. Usa saltos bem altos. Acessórios, maquiagem: cinto, relógio, correntinha no pescoço, pulseira, brincos e relógio. Salto alto. Usa batom vermelho. Depois da passagem do tempo e da ascensão econômica, ela aparece usando muitas joias. Cabelo: Antes, ela usava cabelo mais liso. Depois, em 2012, usa o cabelo escovado, com as pontas viradas para fora, um pouco abaixo dos ombros. Linguajar: Falta alto. Dialeto culto. Cenário: a mansão onde mora. Música: não tem música específica Atuação: Ela fala como criança com seu marido, mesmo na frente de todos. Ela sorri bastante. Mexe bastante com as mãos, anda requebrando a cintura, com as mãos no ar.

Substância da expressão Ivana aparece duas vezes no primeiro capítulo. Na primeira cena, ela está em um quarto de hotel, de dia, com seus pais e seu irmão Tufão. Enquanto a sua mãe e Tufão conversam, Ivana aparece ao fundo, sentada na cama, entre os dois. Ela está passando as mãos nos cabelos, como se quisesse alisá-los mais. Quando a mãe grita gol para incentivar o filho que participará da final do

248 campeonato carioca, Ivana levanta as mãos e grita como comemoração. Começa a tocar um samba. Depois, Ivana levanta, primeiro plano na personagem, e fala para Tufão que a televisão está lá fora, “bora lá”. Ela começa a passar pó no rosto de Tufão, mas ele não aceita. Plano americano dos dois. Ivana: “é pó de arroz masculina” e diz que ele vai ficar oleoso senão colocar. Ivana expressa impaciência e sai de perto. Plano de conjunto de todos no quarto. vemos a personagem de corpo inteiro. O trecho dura cerca de 35 segundos. Ela novamente em outro momento no Clube do Divino. Toca samba. Muricy está sendo maquiada para dar entrevista e Ivana pede para ser maquiada também que vai aparecer na televisão. Muricy diz que querem falar com a mãe de Tufão. Ivana fala de um jeito afetado que é irmã “do cara”.

Substância do conteúdo Ivana não tem uma história própria além do seu percurso de apoio. Sem casar-se com ela, Max, amante de Carminha, não poderia ter entrado na mansão. Ela apresenta o gosto da emergente social, que apresenta certa inadequação e inabilidade em lidar com o gosto da elite. Mas, ela possui a habilidade em lidar com o dinheiro e um linguajar mais culto em comparação com os outros da casa. Sua relação com o dinheiro remete à ética do trabalho da nova classe trabalhadora, assim como Monalisa e Adisabeba. O trabalho está muito presente em sua vida, é a única na mansão de Tufão que de fato trabalha. A sua caracterização corporal relaciona-se a um estilo “perua”, inclusive com o seu jeito de andar um pouco inclinada e os saltos altos. A atuação da atriz confere comédia a ela, inclusive quando ela fala como criança com o marido que a engana e em quem ela confia cegamente. No primeiro capítulo, percebe-se que ela tem menos destaque que Muricy, sua mãe, porque aparece menos. Ela participa do clima da família de empolgação com o grande dia de Tufão. O cabelo alisado e seu jeito de alisá-los ainda mais com as mãos relacionam- se com outras mulheres do Divino e o salão de beleza de Monalisa. O alisamento parece ser um sucesso na diegese popular da novela. Assim como Muricy, ela valoriza a televisão e a fama, que fazem parte do universo popular nesse contexto. Engano: Max, Carminha. Fala como criança. Realidade: Silas.

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Emergente social: suas roupas e mansão. Cores iluminadas, verde, muitas joias. Mas continua com a ética do trabalho. Riso: atuação. fala em volume alto como criança com o marido. Cronotopo trivial: acontecimentos relacionados ao dia a dia, acontecimentos triviais. Temas e figuras da primeira cena: família (irmão jogador, pais, quarto de hotel, jogo de futebol, televisão), fama (entrevista, televisão, Clube do Divino). Resumo técnico: plano de conjunto no quarto de hotel, plano em que aparece atrás de Tufão e Muricy no quarto de hotel.

Olenka (Avenida Brasil) Figura 36 – Olenka conversa com sua amiga Monalisa, no primeiro capitulo

Fonte: Globoplay

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Periguete. Protagonismo/posição: personagem de apoio (melhor amiga) que tem sua própria história, autônoma. Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: trabalha cabelereira no salão de Monalisa. Relacionamentos amorosos: Darkson, Iran, Silas, Cadinho e Adauto. Família/amigos: não aparece nenhum familiar seu na trama, sua melhor amiga é Monalisa. Casa: ela não tem uma casa dela. Mora com a amiga Monalisa. Resumo da narrativa: Olenka é a melhor amiga de Monalisa. Trabalha no salão da amiga e mora na casa dela. Olenka tem um romance com Iran, filho de Monalisa, mas termina tudo quando o flagra com Suelen. Também esteve interessada em Darkson (José

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Loreto) e o perdeu para Suelen. Ela se envolve com Silas, namorado de Monalisa, motivo pelo qual quase perde a amizade. Nesse meio tempo, Olenka trabalha no bar do Silas. Mas as amigas reatam a amizade. Olenka vai morar com a amiga e Iran em um bairro nobre do Rio de Janeiro, mas não se adaptam e voltam ao Divino. Olenka também tem um caso rápido com Cadinho (Alexandre Borges). Ela paquera Adauto (Juliano Cazarré) e consegue conquistá-lo quando descobre o fetiche do rapaz. Ela se veste de dona de casa e fica parecida com Muricy (Eliane Giardini). Os dois terminam a trama juntos, planejam morar juntos e ela o ajuda a superar um trauma e voltar a jogar futebol. Nível fundamental: A oposição é lealdade (eufórico) e traição (disfórico). Porém, após a traição e a reparação, ela parte para um rumo mais independente da amiga, começa um relacionamento e planeja se mudar de casa. Ela julga, é julgada e manipula (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador).

Lealdade Traição

Não traição (reparação) Não lealdade (individualidade)

Trajetória linear: lealdade – traição – não traição – lealdade – na lealdade. Forma da expressão Essa personagem é expressada pela atriz Fabíula Nascimento. A personagem é alta, encorpada, olhos escuros e cabelos castanhos. Figura 37 – Olenka na casa de Monalisa com Iran no capítulo 11

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1892914/

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Mudança de aparência: muda um pouco com a passagem do tempo no início da trama. Roupas: Olenka usa macacão, roupas justas. Usa jeans, cores fortes como o laranja e vermelho, geralmente alegres, podem ser claras também como verde bebê. Usa decote e cinto. Não usa roupas curtas. Com a passagem dos 12 anos na trama não houve muita diferença de estilo nas vestimentas da personagem. Ela usa salto bem alto. Acessórios e maquiagem: Olenka usa batom vermelho desde o começo da trama até o fim. Antes da passagem do tempo, usa corrente no pescoço com pingentes que parecem de madeira ou material similar. Com a passagem do tempo, ela aparece com um pingente dourado escrito Love. Usa brincos de argola e unhas pintadas. Cabelo: Antes da passagem do tempo, seus cabelos são enrolados e compridos. Depois, ela aparece com o cabelo liso e mais comprido. A cor dos cabelos é castanho claro. Linguajar: dialeto popular, expressão “irmã” para falar com as colegas. Cenário principal: casa de Monalisa onde mora e o salão onde trabalha. Música: “Tá Faltando Homem”, Banda Xeiro de Mel. Atuação: Para interpretar a personagem, a atriz faz movimentos espalhafatosos e movimenta bastante a boca para falar. Fala com a boca cheia. Anda requebrando.

Substância da expressão No primeiro capítulo, Olenka aparece 8 vezes. Mas, são cenas entrecortadas por outras que ocorrem simultaneamente. Salão de beleza. De dia. Samba não diegético. Monalisa cuida de uma cliente, enquanto olha para a televisão. Olenka passa por trás de Monalisa com outra freguesa. A câmera enquadra as quatro pessoas, parte do salão de beleza e o lado de fora através de duas grandes portas. Olenka passa pela câmera. Depois que Monalisa fala que é namorada de Tufão para a cliente a câmera se movimenta para a direita e enquadra Olenka em primeiro plano. Ela diz sorrindo que Tufão “[...] andou dando umas volta com você. Isso não quer dizer que ele queira alguma coisa séria contigo”, enquanto chacoalha um pote de tintura capilar e segura um recipiente com a outra mão. Monalisa está em pé ao fundo tratando da cliente sentada, elas aparecem desfocadas enquanto Olenka fala. Quando Monalisa responde, Olenka aparece desfocada. Na televisão, Tufão diz que vai casar mês que vem, Monalisa estranha. Olenka se aproxima com a feição preocupada, sua imagem começa a ficar nítida. Primeiro plano, close das duas. Olenka tenta justificar o depoimento

252 do jogador. Plano de conjunto, a cliente chama por Monalisa porque sua cabeça está ardendo. Vemos as três refletidas no espelho. O trecho dura cerca de 48 segundos. Essa cena é entrecortada por outras. Há uma elipse. Olenka consola Monalisa, que chora. Olenka puxa a amiga para um canto e a consola. Vemos as duas de longe, depois a câmera se aproxima. Campo e contracampo de seus rostos em primeiro plano. Olenka diz que já cansou de dizer que “homem é tudo um bando de cachorro, irmã”. “Deixa estar que a loirinha que ele arranjou vai arrancar todo o dinheiro dele”. Monalisa estranha como a amiga sabe que Tufão tem outra mulher loira. Na verdade, Olenka apenas deduziu. Logo em seguida, começa um samba. Na rua, um carro de som chama por Monalisa. Olenka acha que é pegadinha. Elas saem. Tufão aparece e pede Monalisa em casamento. Olenka vibra com a amiga. Na terceira vez em que aparece, Olenka ainda está no salão assistindo ao jogo de futebol com a amiga. É noite. Toca um rock que também acompanha o jogo de futebol, extradiegético. Ela reage com o jogo. Na quarta vez, continuação, ainda toca o rock. Na quinta vez, continuação, ainda toca o rock. Olenka reclama do juiz “qual é, irmão?!!”. Sexta vez, Tufão fez um gol. Toca um samba. Olenka com a tesoura na mão para cortar o cabelo de Monalisa. Sétima vez, continuação, rock. Oitava, vez. Tufão ganha. Samba. Elas comemoram. Olenka pula e grita abraçada com Monalisa.

Substância do conteúdo Suas roupas e acessórios indicam uma personalidade alegre e expansiva, assim como sua música e atuação. A questão da sensualidade também está presente em suas roupas e a letra da música que sugere que ela está em busca de um parceiro por um viés mais descontraído e até cômico. Seu linguajar é marcado como popular, assim como alguns de seus comportamentos que poderiam ser interpretados como inadequados (falar de boca cheia). É perceptível, nesse sentido, a exaltação do corpo, não exclusivamente em um sentido sexual, mas no sentido popular, conforme comentado no primeiro capítulo por Martín-Barbero (2009) sobre a dicotomia entre o vulgar (comida, bebida, ato sexual,

253 por exemplo) e o elevado. A traição à amiga é o seu movimento na trama. No mais, é uma personagem bastante estável, atrelada ao cotidiano. Na primeira cena ela trabalha o dia inteiro com a amiga, assiste ao jogo de futebol com a amiga. Ela está inserida no ambiente do salão de beleza que apresenta cores vivas e tons cor de rosa. Mas, Olenka é mais vibrante e menos romântica que Monalisa. Suas cores tendem para o alaranjado. O comportamento da personagem é um pouco dúbio, pois mesmo sendo amiga de Monalisa, ela demonstra certo desencorajamento na primeira fala quando acredita que Tufão não quer nada com cabelereira. Ela espelha na amiga a sua frustração com os homens ao dizer que nenhum presta. O seu quadrado semiótico é semelhante ao das outras personagens de apoio (melhor amiga), Betânia e Sueli. As maiores diferenças em relação às outras são a traição à amiga no sentido mais sexual, ao namorar com o ex-namorado dela, o cronotopo trivial, o riso e outros elementos da expressão. No salão de beleza também é perceptível a interface da personagem com o espaço externo, público. É pertinente destacar que Olenka não tem casa própria e vive na casa de Monalisa. A temática da moradia é uma constante nas periguetes. Lealdade: salão de beleza. Monalisa. Traição: bar do Silas. Silas. Trabalhadora: salão de beleza, atendimento ao público, interface com o ambiente externo. Periguete: música tema, o desejo por namorar, os namorados que teve, roupas justas, decotes, cores alegres. Riso: atuação. Linguajar popular. Cronotopo trivial: acontecimentos relacionados ao dia a dia e ao Divino. Temas e figuras da primeira cena: amizade (Monalisa, jogo de futebol, consolo à amiga, comemoração), trabalho (salão de beleza, interface com a rua, televisão, jogo de futebol). Resumo técnico: planos rápidos, cortes e música que aceleram o ritmo junto com o jogo de futebol. Planos no salão de beleza ao lado de Monalisa. Música extradiegética, cores alegres e tons de cor de rosa.

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Suelen (Avenida Brasil) Figura 38– Suelen conversa com seu patrão na porta da loja, imagem do capítulo 11.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1892914/>

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Periguete Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: vendedora de loja. Relacionamentos amorosos: Darkson, Iran, Leandro, Roni, Lúcio. Família/amigos: não tem ninguém da família. É muito próxima de Leandro, Roni e Diógenes. Casa: não tem uma casa dela. No começo não aparece onde ela mora. Ela é despejada e se muda para casa de Diógenes. Mora na rua, com Leandro, Roni Adauto, Lúcio, Iran. Resumo da narrativa: É péssima funcionária, mas não é demitida porque chantageia o patrão, dizendo que o denunciará por assédio, pois ela gravou em seu celular uma cena em que o massageia. Ela deseja ficar famosa, participa do concurso Garota Chapinha, do salão de Monalisa, mas não vence. Suelen gosta de jogadores de futebol por interesse. Quando não tem lugar para morar, a moça se instala na casa do patrão. Em certo momento, deixa a casa e monta uma barraca para morar na rua. Suelen também se esconde na sala de troféus do Clube do Divino. Depois, se instala na casa de Adauto, se esconde na casa de Iran (sem Monalisa saber), depois de Lúcio (sem Janaina saber) e chega a dormir em um depósito de colchão. Suelen inventa que está grávida e que o pai pode ser Iran, Leandro, Lúcio, Darkson ou Diógenes, para tirar proveito material dos rapazes. Diógenes

255 a convida para morar em sua casa novamente. Quando sua farsa é descoberta, os rapazes armam uma cilada para a moça e é humilhada na abertura de um concurso de dança. Em certa altura da trama, é sequestrada por Ramón, traficante de mulheres que a havia trazido para o país ainda adolescente. Roni a salva. Ele se casa com a moça para que ela não seja deportada à Bolívia, já que entrou ilegalmente no Brasil. Apesar de se tratar de um casamento mentira, Suelen se apaixona pelo jogador e eles se envolvem. Depois, Suelen o abandona por Leandro, recém-contratado pelo Flamengo e que se mudou para a Barra. Em seguida, se envolve com outro jogador do Flamengo, Wallerson. Leandro resolve abandonar a carreira e voltar para Goiás, mas Suelen e Roni impedem. Os três terminam a trama formando um triângulo amoroso e a moça tem um filho. Nível fundamental: A oposição é malandragem (disfórico) e genuinidade (eufórico). Ela manipula e é julgada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador.

Malandragem Genuinidade

Não genuinidade (falsidade) Não malandragem (honestidade)

Trajetória linear: malandragem – não genuinidade (falsidade) – não malandragem (honestidade) – genuinidade. Forma da expressão A personagem se expressa na atriz Isis Valverde. É morena, esbelta, olhos escuros e estatura média. Na pele da personagem ela estava com o corpo “malhado”. Figura 39 – Suelen na casa do Iran, imagem do capítulo 44.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/1949207/>.

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Mudança de aparência: não. Roupas: usa calça justa legging e bustiê, mostra bastante a barriga, vestido tomara que caia geralmente com um grande zíper frontal, usa salto, cores mais claras (rosa, azul, branco, estampas). Usa Cinto. Acessórios, maquiagem: tem uma espécie de correntinha que usa em volta da barriga, bracelete, pulseira, maquiagem discreta, às vezes usa um brinco grande em uma orelha só. Unhas postiças compridas pintadas de cores claras. Cabelo: cabelos compridos, lisos e escuros. Linguajar: fala alto, usa o pronome tu, suprime “s de plurais, às vezes (“os ouvido comprido”). Dialeto popular. Cenário: ela aparece na loja onde trabalha no começo, no estádio, no clube do Divino e na casa de outras pessoas. Ela aparece bastante na rua em espaços públicos e comerciais. Música: “Correndo atrás de mim”, Aviões do Forró. Tema com Roni e Leandro: “Video Games”, Lana Del Rey. Tema com Roni: “Endless Love”, Lionel Richie e Shania Twain Atuação: ela mexe bastante as mãos quando fala, anda com o corpo empinado. Ela fala olhando nos olhos de seus interlocutores. Quando briga, usa dedo em riste. Põe o pé em cima da mesa no escritório de Diógenes em uma cena.

Substância da expressão A personagem tem sua primeira cena no capítulo 8. Música tema da personagem “Correndo atrás de mim” do Aviões do Forró. Dia ensolarado. Plano sequência. Darkson anuncia os produtos da loja de Diógenes em um microfone, a câmera faz um travelling para a direita, passa por trás de pessoas que bebem cerveja e andam pelo bairro. Darkson entra na loja e sai por outra porta. Ágata e Janaina aparecem, têm algumas falas, a câmera acompanha as duas, vira e enquadra Suelen de corpo inteiro, que anda entre algumas barracas de produtos, na direção da câmera. Pessoas passam em sua frente A câmera acompanha a moça até a entrada da loja onde está Darkson. Plano de conjunto. Ela anda empinada, mexe os cabelos e rebola. Primeiro corte, plano detalha em seus pés que sobem as escadas da loja. Darkson a paquera pelo microfone. Primeiro plano dos dois. Suelen se posiciona atrás do rapaz, diz para ele esperar sentado e o chama de “boboca babão”, enquanto passa o dedo em seu queixo.

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Plano aberto, ângulo alto da loja e das barracas em volta. Em seguida, Suelen caminha dentro da loja, passa por trás de clientes, de araras de roupas, meio primeiro plano de seu corpo. Diógenes, seu chefe, a interpela “dona Suelen”, a música para, e ela responde “oi” em tom irônico. Ele chama a atenção da moça que está atrasada, plano americano dos dois, um pouco de longe, pessoas passam na frente deles. Ela pega um atestado médico em sua bolsa e conta que estava com rota vírus até o dia anterior. Ele não acredita. Mas, ela ri. É irônica, argumenta que é exposta a muitos micróbios na loja. Suelen gesticula para falar, aponta para as pessoas, com o corpo empinado. Diógenes manda a balconista colocar o uniforme para trabalhar, senão “[...] este micróbio aqui vai acabar com a senhora” e a música começa de novo. Diógenes olha para o corpo da moça enquanto ela anda. Elipse. Plano geral, Suelen no caixa da loja sentada. Ouve-se a voz de uma cliente “oi moça”. Suelen mexe no celular e não dá atenção. Câmera focaliza suas pernas cruzadas com as mãos que seguram o celular. Rosto da cliente que a chama novamente. Suelen pergunta “nervosa? Não pode esperar um segundinho, não?”. A cliente concorda. Mas, Suelen alega ter perdido a concentração. Ela é grosseira, diz que a cliente vai parecer um elefante de circo se usar legging. A mulher a xinga de grossa e Suelen ironiza “linda”. Outra vendedora observa a situação e chama a atenção de Suelen. Esta responde que sua cabeça é outra e que vai ganhar o concurso da garota chapinha. Suelen se levanta e diz “meu corpo é esse, a pista é nossa, meu amor”, manda beijo e sai. A duração do trecho é de 1:55 segundos. Substância do conteúdo A primeira cena da personagem realça o seu corpo, enquadrado por inteiro, andando pelas barracas do bairro. Vemos o jeito dela andar, como se estivesse se exibindo. O plano sequência do trecho em que ela aparece transmite o clima do bairro popular e apresenta algumas de suas personagens. A sensação é de simultaneidade, de reforço do acontecimento da rua, com personagens que dividem o mesmo espaço sem interagir umas com as outras. O tom comunitário está presente, bem como o espaço público como parte da caracterização da mulher popular. O primeiro corte muda a imagem para os pés de Suelen, de salto alto, subindo as escadas da loja. A imagem reforça o poder sensual conferido à personagem. São passos firmes próximos aos pés de Darkson a quem ela esnoba. Os sapatos da moça contrastam

258 com os tênis velhos do rapaz. As roupas de Suelen são sensuais e alegres, parte de sua personalidade. A imagem de cima do bairro localiza a loja no espaço externo e reforça o senso de comunidade e espaço público. Ela é irônica com o patrão, destrata clientes. Na imagem alta da loja, vemos exatamente onde Suelen se encontra, atrás do balcão, e a loja está cheia de clientes. A ironia dela com o patrão e o péssimo atendimento à cliente demonstram a falta de vontade de Suelen para o trabalho e reforçam o seu desejo pela fama. Além disso, na trajetória de Suelen a falta de um lugar fixo para morar é uma temática de destaque. Trata-se de uma personagem desprovida de seu próprio espaço privado, que pertence à esfera pública, em consonância com a história da mulher popular na época do desenvolvimento das grandes capitais brasileiras. Suelen sabe manipular os homens e sua música tema em tom divertido demonstra isso, o que se opõe à musica de Olenka de certa forma. Esta última procura um parceiro, é namoradeira, mas reclama da falta de homem. Suelen é namoradeira, mas ao contrário de Olenka, aproveita-se dos homens e sabe manipular. Eles sempre vão atrás dela. Suelen não reclama que os homens não prestam, pois não tem como objetivo um relacionamento sério. Há um sentido empoderador, da liberação sexual feminina. Malandragem: muitos namorados, chantagem a Diógenes, falsa gravidez. Mentiras. Música “Correndo atrás de mim”, Aviões do Forró. Genuinidade: relacionamento com Leandro e Roni. Músicas “Video Games”, Lana Del Rey e “Endless Love”, Lionel Richie e Shania Twain Trabalhadora: não gosta de trabalhar na loja, quer ser famosa. Atende mal aos clientes, falta ao trabalho e mente. Periguete: Música “Correndo atrás de mim”, Aviões do Forró. Roupas com barriga à mostra e justas. Cores alegres. Malandragem do quadrado semiótico. Linguajar popular. Riso: quadrado semiótico, música e atuação. Cronotopo trivial: acontecimentos do dia a dia ligados a questões materiais. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (mau atendimento às clientes, loja, roupas, concurso Garota Chapinha), sensualidade (roupas, ela andando na rua, paquera de Darkson, música, close nos pés de Suelen). astúcia (atestado médico, falsa doença, conversa fiada) Resumo técnico: plano sequência em que aparece Suelen, ela andando de corpo inteiro, seus pés, música extradiegética, imagem alta da loja.

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Ninfa, apelido de Genivalda de Morares (A Regra do Jogo) Figura 40 - Ninfa na casa de Adisabeba, imagem do capítulo 9.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4456009/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. periguete Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: dançarina de funk Relacionamentos amorosos: Juca e Merlô Família/amigos: não aparece ninguém da sua família. Amiga de Alisson. Casa: antes morava sozinha, depois começa a dividir uma casa com Alisson e no fim se muda para a mansão/hostel de Adisabeba. Consumo/vida material: o seu gosto material está presente em suas vestimentas. Coca- Cola em sua casa. Resumo da narrativa: Ninfa é dançarina do Mc Merlô, junto de Alisson (Letícia Lima) na boate Caverna da Macaca. A moça tem um caso com o cantor e mora de aluguel em um barraco de Adisabeba, mãe do Mc. Ninfa e Alisson brigam por Merlô. Em determinado momento, quando Alisson não tem onde morar, Ninfa é obrigada por Adisabeba a dividir o seu espaço com a colega de palco. A duas se tornam amigas e unem forças contra Merlô. Ambas vivenciam idas e vindas no trabalho e relacionamento com o rapaz Ninfa também tem um breve caso com Juca (Osvaldo Mil), um cafajeste que rouba dinheiro da esposa e usa um barraco para a funkeira morar. Certo dia, ele chega com uma lingerie de presente para Ninfa e tenta agarrá-la à força. Como ela resiste, Juca a expulsa do barraco. Na disputa por Mc Merlô, quando o rapaz se afasta de todos, Ninfa traça um

260 plano juntamente com Alisson e Adisabeba para trazê-lo de volta. No final, Ninfa, Alisson e mais muitas outras mulheres ficam com Merlô. Elas têm filhos dele e todos vão morar na mansão/hostel de Adisabeba. Nível fundamental: É possível averiguar o antagonismo entre exclusividade e não exclusividade (generalidade), pois Ninfa não consegue ter Merlô só para ela e o divide com outras mulheres. Ela é julgada (percurso do destinador-manipulador e destinador- julgador). No final das contas, a exclusividade é disfórica e a generalidade se revela eufórica, pois possibilita a união com o rapaz.

Generalidade Exclusividade (uma entre outras) (a única na vida de Merlô)

Não generalidade (singularidade) Não exclusividade (compartilhamento)

Trajetória linear: a exclusividade é apenas um desejo da moça e não chega a acontecer de verdade, desse modo o movimento oscila entre uma certa singularidade e não exclusividade para no fim chegar à generalidade.

Forma da expressão A personagem se expressa pela atriz Roberta Rodrigues. Ela é alta, negra, olhos escuros e na novela estava com o corpo malhado. Mudança de aparência: não Roupas: usa shorts jeans bem curto e bustiê rosa (parece mesmo um sutiã), jaquetinha jeans, shorts jeans branco. Cinto rosa brilhante. Roupas curtas e brilhantes no show. Acessórios, maquiagem: corrente dourada no pescoço com a palavra blonde e mais outra gargantilha. Unhas pintadas com cores brilhantes. Boné virado para trás. Maquiagem com boca iluminada e olhos marcados. Cabelo: cabelos longos, lisos e pintados de loiro.

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Linguajar: ela usa português coloquial, usa gírias, emprega o pronome “tu”, suprime “s” de plurais e comete erros de português. Diz “evoporou” para dizer “evaporou”, diz “elenita” no lugar de “eremita” Cenário: A casa dela no morro tem poucos móveis. Há cortinas que dividem o box e outas partes. Recortes colados no armário. Reflexo no vidro da janela de cabides com calcinhas penduradas do lado de fora. Roupas penduradas do lado de dentro. Garrafas de coca cola. Música: Além das músicas que dança e canta com de Mc Merlô (música diegética), sua trilha sonora inclui uma batida de funk e a música “Só no Charminho”, Gang do Eletro. Atuação: ela anda empinada, tem bastante expressão no olhar quando demonstra alguma tristeza ou maldade, mexe a sobrancelha, levanta o rosto.

Substância da expressão No primeiro capítulo, Ninfa aparece duas vezes. Ela faz uma apresentação artística no palco da boate Caverna da Macaca, junto de Alisson e Mc Merlô. Ninfa e Alisson dançam e cantam algumas partes da canção. Suas roupas são iguais, douradas. Em alguns momentos vemos os três em um plano de conjunto, de frente, com parte da plateia enquadrada. Há outra câmera que os enquadra de costas, por trás do palco. Outra vezes, de lado, câmera baixa, vemos os três em plano americano. A música é diegética, cantada pelo grupo. Em parte da coreografia elas estão de costas, rebolam. Ênfase em suas nádegas. A personagem é apresentada de fato em outro momento ainda no primeiro capítulo. De dia, música instrumental, batida de funk. Adisabeba grita o nome de Ninfa na porta de sua casa. Ninfa logo aparece e diz “Bom dia, sogra máster”. As duas são enquadradas em plano americano, vemos as coxas e abdômen de Ninfa que usa sutiã e shorts bem curto. A câmera está um pouco afastada, enquadramento lateral por trás de alguns objetos. Ninfa é empurrada pela mulher que entra na casa. Do lado de dentro, a música para de tocar. Ninfa repreende Adisabeba que foi entrando desse jeito em sua casa e segue a mulher que anda pelo espaço apressada. Esta responde que a casa é dela e que a moça ainda não pagou o aluguel. Aparece parte do cenário da residência, que é simples. Em imagens captadas pelo lado de fora da janela, vemos uma garrafa de coca cola no balcão da cozinha. Adisabeba encontra o filho dela escondido no box do chuveiro. Os três vão para a sala e são enquadrados de corpo inteiro, de longe. Ninfa defende Merlô, diz

262 que ele é um adulto. Adisabeba afirma que Ninfa não passa de uma bunda. Ninfa se defende e discute com Adisabeba. Meio primeiro plano em Ninfa e primeiro plano em Adisabeba, campo e contracampo. Os três vão para o lado de fora. A música volta. Ninfa pede para Merlô ficar, mas a mãe dele não deixa. Na porta, a câmera um pouco longe enquadra os três quase de corpo inteiro. A cena dura aproximadamente 1 minuto e 25 segundos.

Substância do conteúdo Na cena vemos a personagem de corpo inteiro. Ela usa um sutiã e um shorts bem curto. Ela esconde Merlô no box do banheiro. Observa-se seu corpo à mostra e a temática sexual na figura masculina. As imagens feitas através da janela do lado de dentro e de forma remetem à questão pública da mulher popular. Chama a atenção o seu cabelo pintado de loiro e seu colar com a palavra “blonde”. Há a exaltação da loira pela personagem negra. O seu nome Ninfa é o apelido de Genivalda que, por sua vez, remete ao universo popular, assim como o universo do funk no qual ela está inserida. A personagem não muda no percurso da trama. Ela é mais estática e todas as suas cenas remetem a questões triviais. A temática da moradia também está presente no fato de sua casa ser alugada de Adisabeba e de ela ser obrigada a dividir um barraco com Alisson no decorrer da trama. As roupas penduradas pela casa, as cortinas que dividem cômodos e o reflexo das calcinhas dialogam com a falta de privacidade e exposição da intimidade. Exclusividade: rivalidade com Alisson. Casa pequena no morro. Generalidade: amizade com Alisson. Casa de Adisabeba, filhos e vida com Merlô. Trabalhadora: ela trabalha como dançarina de funk, o que se relaciona com placo, show, fama e noite. Periguete: roupas, trabalho, atuação, quadrado semiótico. Música. Riso: música, atuação. Cronotopo trivial: situações mundanas. Temas e figuras da primeira cena: moradia (aluguel, Adisabeba entrando sem ser convidada, cortinas, roupas penduradas, janelas), namoro (namorado escondido, sogra, Merlô indo embora). Resumo técnico: imagens pela janela, plano de corpo inteiro, cenário. Música extradiegética.

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Alisson (A regra do Jogo) Figura 41 – Alisson com o seu marido em casa, imagem do capítulo 5.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4445492/

Forma do conteúdo

Atributos: trabalhadora. Periguete. Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: dançarina de funk Relacionamentos amorosos: Denis e Merlô Família/amigos: não aparece ninguém da sua família. Amiga de Ninfa. Casa: morava em uma casa com o marido, depois se instala na casa de Adisabeba. Fica um momento sem onde morar, divide casa com Ninfa e no fim vai morar na mansão de Adisabeba novamente. Consumo/vida material: em um episódio fica claro que ela gosta de comprar roupas. Ela come muito. Resumo da narrativa: Alisson é dançarina no trio de funk liderado por Mc Merlô, que se apresenta na Caverna da Macaca. Ela tem um caso com o cantor, embora seja casada com Dênis. Alisson disputa Merlô com Ninfa. Dênis descobre a traição, e como ele tem relação com a facção criminosa, se vinga, fazendo os dois de reféns no barraco onde mora com Alisson. Porém, o barraco pega fogo e os três são salvos por Juliano. Eles são abrigados por Adisabeba, mãe de Merlô. Dênis é morto pela facção. Alisson é expulsa da casa de Adisabeba, quando Ninfa conta a ela que Alisson rouba comida de seu hostel para revender. Alisson faz de tudo para voltar a morar lá. Mas, sempre é humilhada por Adisabeba. Merlô não se decide entre ela e Ninfa. Adisabeba manda as duas dividirem o

264 mesmo lugar para morar. Em determinado momento, Alisson se une a Ninfa contra Merlô. São várias idas e vindas na disputa pelo Mc. Quando o rapaz se afasta de todos, ela faz um plano com Ninfa e com Adisabeba para trazê-lo de volta. No final, Alisson, Ninfa e mais muitas outras mulheres ficam com Merlô. Elas têm filhos dele e todos vão morar na mansão/hostel de Adisabeba. Nível fundamental: É possível observar o antagonismo entre exclusividade e não exclusividade (generalidade), pois Alisson não consegue ter Merlô só para ela e é obrigada a dividi-lo com outras mulheres. Ela manipula e é julgada (percurso do destinador-manipulador e destinador-julgador). No final das contas, a exclusividade é disfórica e a generalidade se revela eufórica, pois possibilita a união com o rapaz.

Generalidade Exclusividade (uma entre outras) (a única na vida de Merlô)

Não generalidade (singularidade) Não exclusividade (compartilhamento)

Trajetória linear: a exclusividade é apenas um desejo da moça e não chega a acontecer de verdade, desse modo o movimento oscila entre uma certa singularidade e não exclusividade para no fim chegar à generalidade.

Forma da expressão A personagem foi expressada pela atriz Letícia Lima. A moça é alta, magra, branca, cabelos escuros e olhos castanhos. Mudança de aparência: não Roupas: roupas justas, curtas e barriga à mostra. Legging, e salto alto. Nas apresentações usa brilho, shorts curtos e top. Às vezes está mais à vontade, com shorts confortável e camiseta de algodão amarrada para deixar a barriga à mostra. Acessórios, maquiagem: usa unhas pintadas em cores brilhantes. Usa maquiagem com a boca mais iluminada.

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Cabelo: cabelo escuro, comprido e liso. Linguajar: dialeto popular. Fala alto, usa o pronome tu, comete erros de português. Exemplos: “posso te falar pra tu?”, “em cima dos oto”, “e nóis caímo igual umas idiota”, “vou falar pra tus”. Ela coloca bastante aí nos fins das frases e começa as frases com a expressão “ó”. Cenário: Na casa com Denis, no início da trama, há cortinas que separam cômodos. Cosméticos nas mesas e um espelho com moldura dourada e a palavra “fama”. Música: Além das músicas que dança e canta com de Mc Merlô (música diegética), sua trilha sonora inclui uma batida de funk e a música “Só no Charminho”, Gang do Eletro. Atuação: mexe bastante os braços e o rosto para falar, mas não tem muita expressão facial.

Substância da expressão No primeiro capítulo, Alisson aparece uma vez. Ela se apresenta no palco da boate Caverna da Macaca, junto de Ninfa e do Mc Merlô. As duas dançam e cantam algumas partes da música. Suas roupas são iguais, douradas. Em alguns momentos vemos os três em um plano de conjunto, de frente, com parte da plateia enquadrada. Há outra câmera que os enquadra de costas, por trás do palco. Outra vezes, de lado, câmera baixa, vemos os três em plano americano. A música é diegética, cantada pelo grupo. Em parte da coreografia elas estão de costas, rebolam. Ênfase em suas nádegas. Mas, a personagem é apresentada de fato no capítulo 5. Música instrumental, funk. Casa de Alisson. Ela e Merlô se beijam. Alisson está de calcinha e sutiã e ele sem camisa. Vemos os dois até um pouco abaixo da cintura, entre uma fresta da janela. Ela sobe na cama e começa a rebolar, diz que vai fazer um show para ele e tira o sutiã. Outra câmera a capta entre uma cortina, do lado esquerdo. Merlô derruba Alisson na cama. Close na lateral dos rostos dos dois deitados. Ela grita empolgada. A câmera focaliza a porta da casa, Dênis, marido de Alisson chega, “ô, piveta”. A música para. Ele foi solto da prisão neste dia. Ela pergunta baixo “é o Denis?”. Foco no rosto de Merlô, que pula pela janela. Dênis entra na casa. Alisson vai até o chuveiro e grita “oi Denis, tô no banho”. Começa a tocar a música tema da personagem “Só no Charminho”, da Gang do Eletro. Ela disfarça embaixo do chuveiro, “ai, que delícia”. Ângulo alto dela no chuveiro. O marido tira a camisa e entra no banho com ela.

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Ela o chama de gostoso, diz que ele voltou melhor e o puxa. Os dois se beijam. Merlô pega suas coisas pela janela aberta. Elipse. Sem música. Dênis está sentando na mesa da casa. Alisson passa de costas em frente à câmera até a mesa e serve a comida. O rapaz pergunta se ela recebeu o dinheiro que ele mandava. Plano de conjunto. Vemos os dois, ele sentando, ela em pé ao lado e um pedaço da geladeira. Ela responde que sim, que comprou geladeira, micro- ondas e ar condicionado. Ele reprova o fato dela ter virado funkeira. Primeiro plano nela, depois volta para a mesa em um plano mais fechado. Vemos parte de Alisson em pé e ele sentado. Dênis continua, alega que ela não precisa de dinheiro. Alisson argumenta que não tem a ver com dinheiro e sim com o trabalho que ela quer fazer. Dênis diz que ela tem que parar, pois ele está ganhando dinheiro e vai comprar um apartamento para ela na zona sul. O rapaz dá um tapa nas nádegas da moça. Depois a manda colocar cerveja no copo. Ela o chama de “dendê”. Começa a tocar a música tema dela novamente. Ele levanta e os dois se abraçam, se beijam e vão para o quarto. A cena dura 1 minuto e 40 segundos em média.

Substância do conteúdo Na cena, o corpo da personagem à mostra, o grito de Alisson e todo o clima remetem ao sexo não sublimado e à comédia. Há o tema da traição. Vemos os dois entre uma cortina em alguns momentos, o que transmite a sensação de estarmos espiando. Quando Merlô consegue pegar suas coisas pela janela, percebe-se o fácil acesso à casa do lado de fora, o que revela a interface com o exterior, a rua e o público. No chuveiro, Alisson fica com o marido e depois da refeição também. O apetite sexual da personagem é exacerbado. O fato dela servir o marido que está sentado à mesa passa pela dissimulação de Alisson como uma boa esposa em um contexto machista. Ele ainda dá um tapa sem seu bumbum e expressa desaprovação com o seu trabalho de funkeira. A moça dá respostas evasivas. Sabemos que ela não cumprirá os pedidos do marido. O quadrado semiótico de Alisson é igual ao de Ninfa, a música de ambas também é a mesma. As duas são como a mesma pessoa e igualmente planas. A temática da instabilidade da moradia também é presente. A falta de privacidade se expressa nas cortinas da casa que separam os cômodos, a porta de vidro da casa e a janela. Exclusividade: rivalidade com Ninfa. Casa pequena no morro. Generalidade: amizade com Ninfa. Casa de Adisabeba, filhos e vida com Merlô.

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Trabalhadora: ela trabalha como dançarina de funk, o que se relaciona com placo, show, fama e noite. Periguete: roupas, trabalho, atuação, quadrado semiótico. Música. Riso: música, atuação. Cronotopo trivial: situações mundanas. Temas e figuras da primeira cena: traição (Merlô, cama, sexo, corpo à mostra), astúcia (trabalho doméstico, marido, comida, servir mesa, sexo, banho). Resumo técnico: câmera escondida, seu corpo à mostra, música extradiegética, plano dela servindo a mesa.

Mel (A Regra do Jogo) Figura 42 – Mel no quarto de Dinorah para encontrar Vavá, imagem do capítulo 2.

Fonte: Globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4436828/>

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Periguete. Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: figurante e dançarina de funk Relacionamentos amorosos: Vavá, Merlô e Nenenzinho. Família/amigos: não aparece nenhum familiar. Casa: mora em uma casa no morro com seu amante. Também mora um tempo na cobertura de Feliciano. Consumo/vida material: ela deseja luxo e dinheiro. Resumo da narrativa: Mel atua como figurante de novelas e comercial, mora no Morro da Macaca com o “irmão” Nenenzinho (Allan Souza Lima). Ela é amante de Vavá

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(Marcello Novaes), personal trainer, que mora com a esposa, irmãos, pai, sobrinho e a empregada na cobertura do pai, Feliciano, um ex-milionário. Mel pressiona Vavá a deixar Janete. Ele cede e leva Mel para morar na cobertura com seu “irmão”, embora Janete continue também na mesma residência. Ela agrada a todos da casa para não ser mandada embora. Ela se torna a mulher oficial de Vavá, mas também é traída e trai. Eles se separam. Ela e Nenenzinho voltam para o Morro da Macaca. Mel começa a dançar com Ninfa e Alisson. Vavá tenta reatar com Mel, mas a moça beija Nenenzinho em sua frente, revelando que não são irmãos e sim amantes há muito tempo. Adisabeba faz um plano com Mel, para que esta seduza seu filho. O intuito é acabar com o relacionamento entre Merlô e Janete, para que o filho volte para casa. O plano dá certo. No último capítulo, Mel tenta negociar com Adisabeba para ela e Nenenzinho voltarem a se apresentar, mas acaba sendo dispensada. Nível fundamental: Mel quer ser famosa e seduz as pessoas para ter o que deseja. Obtém o que deseja por alguns momentos, como quando se torna dançarina na boate, mas acaba sendo ignorada por Adisabeba e perde o posto. Ela manipula e é julgada (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador). A oposição é fama (eufórico) versus anonimato (disfórico).

Fama Anonimato (o que ela tem por (sua condição) alguns instantes)

Não anonimato (notoriedade) Não fama (indiferença)

Trajetória linear: Anonimato – não anonimato (notoriedade) – fama – indiferença.

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Fernanda Souza. É branca, estatura baixa, encorpada, olhos claros. Mudança de aparência: não.

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Roupas: shorts jeans curtos, blusinha com decote. Acessórios, maquiagem: brinco, correntinha, maquiagem com a boca mais clara. Cabelo: loiro escuro, comprido e ondulado. Linguajar: dialeto popular. Cenário: seu quarto na casa no Morro da Macaca parece de adolescente. Há acessórios pendurados nas paredes, recortes de revista, espelho com bichinhos de pelúcia pregados, adesivos na parede, pôster na porta e cortina que separa o armário. Música: não tem música específica. Atuação: mexe muito as mãos, mexe no cabelo, olha para cima, jeito afetado.

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 2. Vavá entra no quarto da empregada Dinorah e encontra Mel, sua amante, deitada na cama. A câmera a enquadra de corpo interior. Ela diz “oi”, uma música começa a tocar. Mel vai até ele, em pé na cama, diz que estava com saudades e o agarra. A moça o pega pelo colarinho e o puxa para a cama. A câmera enquadra os dois deitados. Mas ele levanta e a chama de louca. Mel diz que ele está bonito de calça jeans. Janete, sua esposa, começa a chamá-lo. Mel, brava, o empurra e pergunta o que ela está fazendo aí. Ela quer que Vavá se separe da esposa, para ela ir morar com ele na cobertura. Enquanto eles conversam, campo e contracampo, há outra câmera que a capta por trás de alguns objetos. Mel o acusa de estar com “medinho”. Vavá rebate com a alegação de que que a própria Mel não gostaria que alguém fizesse o mesmo com ela. Ela ri e afirma que nunca ninguém vai fazer isso porque ela é muito gostosa. Mel sobe de novo na cama, faz pose e balança os cabelos. A moça puxa novamente Vavá para a cama. Mas, ele se esquiva e sai do quarto ao encontro de Janete do lado de fora. A música para de tocar. Mel, deitada na cama, xinga Janete por trás “gorda, cafona”. A cena dura em torno de 1 minuto15 segundos.

Substância do conteúdo A temática da casa está presente na personagem. Ela não quer morar no morro e sim com Vavá na cobertura. Ela o engana para isso e seduz as pessoas para conseguir o que deseja. Também tem o desejo de fama. A personagem e seu quarto têm uma estética mais jovem. A traição é uma temática da personagem. Mel se assemelha a uma vilã, mas ao contrário desta apresenta o tom de comédia. A moça se infiltra na casa de Vavá com o

270 seu amante, como se fosse o seu irmão. A vilã arrivista com amante é muito comum, inclusive temos o exemplo de Carminha. No caso de Mel é uma personagem cômica e de baixo protagonismo. A primeira cena dela no quarto da empregada agarrando Vavá tem tom cômico. A falta de privacidade também está presente no quarto da periguete, no qual cortinas separam a divisão com o guarda-roupa e o fato dela ir encontrar o seu amante no quarto de empregada na cobertura. Fama: figurante, funkeira, contatos. Anonimato: desprezo de Adisabeba. Trabalhadora: ela trabalha como figurante, depois como funkeira, tem o desejo por fama. Periguete: quadrado semiótico, atuação. Riso: atuação. Cronotopo trivial: situações do cotidiano. Temas e figuras da primeira cena: astúcia (pressão para Vavá largar a mulher, escondida no quarto de empregada, puxa ele para a cama, morar na cobertura), competição (Janete, as palavras “gorda, cafona”). Resumo técnico: plano dela na cama, de corpo inteiro. música extradiegética.

Andressa Turbinada (A Regra do Jogo) Figura 43 – Andressa na boate Caverna da Macaca, imagem do capítulo 73.

Fonte: Globoplay

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Periguete Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial

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Sentimento principal: riso Trabalho: cantora de funk Relacionamentos amorosos: Merlô Família/amigos: não aparece nenhum familiar seu Casa: ela se instala na casa de Adisabeba Resumo da narrativa: Andressa Turbinada é uma funkeira famosa. Ela é contratada por Adisabeba para se apresentar junto com Merlô, seu filho, em sua boate. Andressa faz um acordo com Merlô para que assumam um relacionamento de fachada para a imprensa, para alavancar a carreira da funkeira. Ela o assusta ao fazer declarações públicas sobre o “relacionamento”, beijá-lo e anunciar que desejam ter um filho. Ela vai morar com Merlô na casa de Adisabeba. Ninfa e Alisson, que desejam separar os dois, encontram ume ex- marido de Andressa para desmascará-la. Elas descobrem que a funkeira é ladra e chegou a cumprir pena na cadeia. Após ser desmascarada, Adisabeba expulsa a mulher do Morro da Macaca. Porém, Andressa diz que está grávida de Merlô e apresenta um teste de gravidez falso. Adisabeba a pressiona para ir junto dela ao médico. Ninfa e Alisson contam para Merlô sobre a fraude de Andressa, que comprou a urina de uma mulher grávida para forjar sua própria gravidez. Andressa inventa que apanhou do Mc e que, como consequência da agressão, perdeu o bebê. A imprensa aparece para cobrir o fato e todos no morro reprovam Merlô. Andressa vai embora do morro. Depois, Ninfa e Alisson veem na internet que Andressa aplicou o mesmo golpe em outro Mc. Nível fundamental: Essa personagem não chega a ter um desfecho, assim como outras personagens da novela. Ela manipula e é julgada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador). A oposição é entre fama (eufórico) versus anonimato (disfórico).

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Fama Anonimato (carreira de (desaparecimento da mídia) cantora)

Não anonimato (notoriedade) Não fama (indiferença)

Trajetória linear: fama – anonimato – não anonimato (notoriedade) Forma da expressão

A personagem é expressada pela atriz Thaíssa Carvalho. É morena, alta e tem olhos escuros Mudança de aparência: não. Roupas: usa calça justa e bustiê, com barriga à mostra. Cores alegres. Acessórios e maquiagem: usa brincos grandes e pulseiras. Cores chamativas, como laranja. maquiagem discreta. Salto? Cabelo: cabelo liso e comprido com mechas loiras. Linguajar: dialeto popular Cenário: Morro da Macaca e casa de Adisabeba. Música: como ela interpreta uma cantora de funk, há uma música dela, diegética. Atuação: gestos dinâmicos. É sorridente.

Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 26 por quatro vezes. Antes disso, sua presença era anunciada na boate com pôsteres. Ela entra no palco pelo canto direito e todos aplaudem. A imagem enquadra a moça pela esquerda em plano americano, junto com parte do palco. A câmera se afasta e mostra outras personagens na boate que aplaudem a cantora de funk. Andressa está de costas. Dois homens a erguem para o alto, sentada. Outra imagem de trás do palco, enquadra o seu rosto em primeiro plano, ângulo mais baixo. Os homens a viram para frente. Imagem de longe. Ela continua sentada e

273 canta. No chão, ela começa a coreografia. A imagem às vezes a focaliza em primeiro plano, às vezes em plano de conjunto com os outros artistas -. dois dançarinos e duas dançarinas. A cena se volta a outras personagens que estão na boate, enquanto é possível ouvir Andressa cantando. No palco novamente, entra Mc Merlô. Eles cantam juntos. Alisson e Ninfa espiam os artistas, invadem o palco e são vaiadas. Seguranças as retiram do local. Andressa e Merlô começam a cantar de novo a música. Outras personagens com outros acontecimentos na boate têm espaço, com o som de Andressa ao fundo. Esse trecho dura 6 minutos e 45 segundos. Depois de outras partes, a cena da boate continua. Dessa vez, apenas ouvimos a voz de Andressa. Na terceira vez, o show acaba, Andressa agradece a todos e chama Juliano para o palco. Na quarta vez, Andressa está no camarim com Merlô quando entram Ninfa e Alisson. Andressa decide ir embora.

Substância do conteúdo A temática da casa está presente na personagem que se instala na residência de Adisabeba. Ela é uma estrela que busca os holofotes e se expõe para conseguir espaço na mídia. Inclusive ela inventa estar grávida de Merlô para aparecer e permanecer na casa de Adisabeba. Ela é uma periguete plana sem camadas, do mesmo modo que Mel. Deseja fama e faz de tudo para tal, inclusive usa as pessoas. O seu nome artístico Andressa Turbinada faz referência ao seu corpo e ao universo popular do funk. Na primeira cena em que aparece, a personagem cantando no palco é um pano de fundo para outros acontecimentos na Caverna da Macaca em uma temporalidade da simultaneidade. A cena dialoga com a popularidade do funk também nas classes média e elite, pois as personagens no núcleo rico assistem à apresentação e dançam. O seu quadrado semiótico é similar ao de Mel. Fama: carreira, mídia, shows. Anonimato: invenção de histórias para a parecer na mídia. Trabalhadora: trabalha como cantora de funk, noite, boate, palco, camarim, figurino especial. Periguete: roupas, atitude, quadrado semiótico. Riso: atuação. Cronotopo trivial: vive situações mundanas.

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Temas e figuras da primeira cena: fama (show, palco, música, dança, boate, gente, fãs, noite). Trabalho (funk, música, show) Resumo técnico: plano dela no palco, câmera escondida, música diegética. Simultaneidade. Voz de Andressa fora do campo visual.

Beverly (Avenida Brasil) Figura 44 – Beverly no salão onde trabalha, imagem do capítulo 9.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1889464/

Forma do conteúdo

Atributos: trabalhadora. Periguete Protagonismo/posição: dependente Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: cabelereira. Relacionamentos amorosos: ela tem um relacionamento casual com Leandro. Tenta algo com Adauto e Cadinho. Família/amigos: não aparece nenhum familiar dela. Casa: não aparece sua casa. Consumo/vida material: ela usa acessórios coloridos, decote. Não há menção específica a outros aspectos de sua vida material. Resumo da narrativa: Beverly trabalha no salão de beleza de Monalisa. Ela deseja encontrar um rapaz para “sair da seca” (de acordo com suas palavras). Beverly tem um romance rápido com Leandro, o que provoca ciúmes em Suelen. Ela tenta se envolver com Adauto. No final da trama, chama Cadinho para sair, mas ele não aceita. No último capítulo, assistindo ao jogo de futebol que fecha a trama, a personagem comemora um gol dando um beijo em Valentim correspondido por ele.

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Nível fundamental: Beverly é sozinha, mas quer ter alguém. Não é carente afetivamente, a sua necessidade se refere mais à questão sexual. Ela demonstra ser bem resolvida nesse sentido. A oposição está entre liberação (eufórico) e limitação (disfórico). Ela manipula e é julgada (percurso do destinador-manipulador e do destinador-julgador).

Liberação Limitação

Não limitação (satisfação) Não liberação (abstinência)

Trajetória linear: limitação – não liberação (abstinência) – não limitação (satisfação) – limitação – não liberação (abstinência) – liberação.

Forma da expressão A personagem era expressada pela atriz Luana Martau. É magra, estatura baixa, branca e olhos escuros. Mudança de aparência: não Roupas: usa decote, saia curta, tomara que caia, vestido curto, blusa estampada mostrando a barriga um pouco. Sapatos altos, sandália plataforma. Acessórios, maquiagem: usa pulseiras coloridas, grossas, laranja. usa maquiagem, olhos mais escuros e boca mais clara. Óculos escuros com aros laranja. pulseiras cor de rosa. Os óculos levantam a lente. Bolsa rosa. Brincos de argola. Cabelo: cabelos castanhos claros, abaixo dos ombros, usa franja. Linguajar: fala alto, coloquial, usa gírias. Cenário: ela aparece no salão de beleza onde trabalha e em outros espaços do bairro, como bar do Silas e o Clube do Divino. Música: não tem uma música específica. Atuação: masca chiclete. Faz coração com a mão no desfile quando participa de um desfile. Mexe bastante a boca e abaixa um pouco a pálpebra (olhos um pouco fechados).

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Substância da expressão A personagem aparece pela primeira vez no capítulo 9 por duas vezes. Música não diegética, animada. Plano aberto, salão de beleza cheio, ouvimos a voz de Beverly, a câmera se movimenta para a esquerda. Vemos a personagem sentada em uma cadeira do salão, enquanto Olenka arruma o seu cabelo. Beverly se olha no espelho e diz que gostou “pra caramba”, ficou “bafo”. “Aí, não é porque eu tô na minha frente não, mas eu tô bonita pra caramba hein, Olenka”, risos. Imagem de Beverly refletida no espelho, vemos apenas a sua cabeça e Olenka em pé atrás. Beverly pergunta para Olenka se ela tem chance. A personagem vira de frente e se levanta, primeiro plano, suas costas refletem no espelho. Ela faz um pedido, colocando as mãos no bolso da calça, “tu bem que podia falar com a dona Monalisa pra ela fortalecer aqui”. Olenka a repreende diz que ninguém vai ganhar o concurso Garota chapinha por “pistolão”. Câmera do lado direito das moças, Beverly diz que Olenka não entendeu, tenta falar de outra forma, mas é repreendida novamente. Tessália entra no salão, a música muda. Todos param para olhar a moça, inclusive Beverly que a observa de cima a baixo. A câmera enquadra Beverly e Olenka de lado, pela esquerda. Olenka diz para ela que vai ganhar quem merecer e coloca a chapinha nas mãos da cabelereira. Beverly faz cara de desdém e aborrecimento. A cena dura cerca de 1 minuto e 5 segundos. Depois ela aparece no desfile do concurso. No camarim, ela se olha no espelho e Diógenes a apressa. Na passarela, Beverly masca chiclete, faz coração com a mão e anda descontraída com a mão na cintura. Depois ela está no camarim e com as outras concorrentes fazendo uma última volta na passarela todas juntas. Substância do conteúdo Na primeira cena da personagem, percebe-se o tom de comédia que a acompanha. A voz vinda de ponto fora do campo de visão em um primeiro momento traz naturalidade ao ambiente e curiosidade. Beverly elogia a si própria em frente ao espelho, tenta dar um “jeitinho” para ter vantagem no concurso Garota Chapinha e é repreendida por Olenka. Sua estatura baixa é reforçada na cena em que ela olha para cima para conversar com Olenka que, por sua vez, olha para baixo. A chegada de Tessália no salão é o contraponto que faltava para o humor ser completo. Beverly e todas as mulheres do ambiente olham para Tessália de cima a baixo, pois trata-se de uma mulher exuberante, alta e muito bonita. Para completar, vemos posteriormente que, ao contrário de Beverly, ela não se acha

277 bonita e não tem grandes pretensões a esse respeito. Ela participará o concurso só pelo dinheiro. Ou seja, os opostos reforçam a comicidade de Beverly. Do mesmo modo, na cena do desfile, Beverly é a mais baixinha de todas, entra mascando chiclete e faz coraçãozinho com as mãos. São atitudes voltados ao cômico e falta de sutileza. Beverly é bem resolvida quanto à sexualidade, ela chama os homens que ela deseja para sair, mas não costuma ter êxito. O fato de a personagem só aparecer em espaços externos, além do baixo protagonismo, relaciona-se com o caráter público da mulher popular. Vale destacar que ela é uma das poucas mulheres que frequenta o bar do Silas. Liberação: falas, atitudes. Relação com Leandro. Beijo em Valentim. Limitação: rejeição de Cadinho, e de Adauto. Periguete: vontade em encontrar um par romântico, roupas. Trabalhadora: salão de beleza de Monalisa, atendimento ao público. Riso: atuação Cronotopo Trivial: momentos corriqueiros do dia a dia. Temas e figuras da primeira cena: astúcia (tentar vantagem no concurso, conversa, desconversa, conhecidos), merecimento (Tessália, beleza, alguém de fora) Resumo técnico: plano de Beverly sentada olhando para o espelho, plano dela olhando para Tessália.

Tessália (Avenida Brasil)

Figura 45 – Tessália chega no bairro Divino, imagem do capítulo 9.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1889464/programa/

Forma do conteúdo Atributos: Trabalhadora. Mocinha melodramática Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: dor e riso

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Trabalho: modelo, depois trabalha de ajudante no salão de Monalisa. Relacionamentos amorosos: um ex-namorado violento, Leleco e Darkson. Família/amigos: é colega de Monalisa e Olenka. Um primo do interior aparece na casa dela. Casa: fica hospedada na casa de Monalisa, depois mora com Leleco e depois na casa de Darkson. Consumo/vida material: a moça tem um gosto simples. Resumo da narrativa: Tessália é uma jovem muito bonita que partiu de Cachoeiras de Macacu, interior do Rio de Janeiro, para o bairro Divino na capital, para participar do concurso Garota Chapinha do salão de Monalisa. Ela ganha o concurso e se instala na casa de Monalisa. Tessália causa inveja nas outras mulheres por sua beleza. Mas deseja ser dona de casa e mãe de família. Ela começa a trabalhar no salão de Monalisa. Um ex- namorado violento a persegue e a agride por duas vezes, mas Leleco a defende. A moça se interessa por Leleco, um homem bem mais velho que ela. Os dois começam a namorar. Mas, em determinado momento Leleco a trai com a ex-mulher Muricy. Apesar disso, ela nunca o traiu e, ainda assim, ele demonstra ter ciúmes de Tessália. Inclusive, ele contrata Darkson para testar a fidelidade da namorada. Após idas e vindas, Tessália deixa Leleco e se hospeda na casa de Darkson. Ela aceita fingir namorar o rapaz para provocar ciúmes em Leleco. Com o tempo, Tessália e Darkson se apaixonam de verdade e ficam juntos. Nível fundamental: com Tessália, ocorre o contrário do que acontece com Muricy, ela se arrisca ao novo. A oposição é estabilidade (disfórico) versus instabilidade (eufórico). Ela é julgada, julga e é manipulada (percurso do destinador-manipulador e do destinador- julgador).

Estabilidade Instabilidade

Não instabilidade (tranquilidade) Não estabilidade (experimentação)

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Trajetória linear: estabilidade – instabilidade – não instabilidade (tranquilidade) – não estabilidade (experimentação).

Forma da expressão A personagem se expressa pela atriz Débora Nascimento. Ela é bem alta, magra, é branca e tem os olhos claros. Figura 46 – Tessália na casa de Monalisa, imagem do capítulo 10.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1891462/

Mudança de aparência: A personagem passa por pequenas alterações no cabelo, de enrolado para liso e depois para o enrolado novamente. Roupas: Usa cores claras. Roupas justas e às vezes curtas, decote, mas não mostra a barriga. Usa estampas florais (flores miúdas), sapato baixo. Acessórios, maquiagem: não usa acessórios que chamem a atenção, nem maquiagem. Cabelo: cabelos compridos, castanhos e cacheados (alisa em alguns momentos no salão de Monalisa). Linguajar: dialeto comum. Cenário recorrente: Sua casa com Leleco, casa de Monalisa, salão da Monalisa, casa com Darkson. Cenário: na casa com Leleco a decoração é simples e não há nada que chame a atenção. Música: Tema com Leleco: “Assim você mata o papai”, Sorriso Maroto. Tema com Darkson: “Tanta Coisa”, Paolo. Atuação: ela mexe nas pontas dos cabelos, tem o olhar um pouco baixo e às vezes curva o corpo levemente. Quando está comendo segura os talheres de um jeito simples. E senta um pouco curvada. Sorri quando está sem graça.

Substância da expressão Tessália aparece pela primeira vez no capítulo 9 por três vezes.

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Plano detalhe no sino dos ventos em cima da porta do salão de beleza. Tessália chega. Começa a tocar a música tema da personagem “Assim você mata o papai” de Sorriso Maroto. Imagem de Tessália na lateral, plano americano. Outras clientes a olham. Ela anda por outras mulheres que também a observam. Olenka e Beverly reparam em Tessália. A câmera movimenta-se de cima a baixo no seu corpo, dos pés até a cabeça. Primeiro plano de Tessália. Ela mexe nos cabelos de um jeito encabulado. Outras mulheres que passam atrás dela a medem. Olenka diz que vai cuidar dela e a coloca na cadeira em frente ao espelho. Tessália mexe nos cabelos novamente. Olenka diz que ela já é linda e nem sabe o que fazer. Tessália sorri e conta que veio de Cachoeiro de Macacu para participar do concurso e que a família a acha bonita, mas ela não. A personagem vira a cabeça para trás para conversar com Olenka, diz que nem vinha, mas “é uma grana” e sorri. Olenka diz “deixa comigo”. O volume da música aumenta. Plano detalhe no secador, chapinha, escova e presilhas. Elipse. Olenka: “tu vai arrebentar no Garota Chapinha” e vira a cadeira de Tessália de frente ao espelho. Esta se surpreende e mexe nos cabelos alisados. A cena dura 1 minuto e 15 segundos em média. A segunda e terceira vez que Tessália aparece são praticamente a mesma cena intercalada por outras. Ela está no camarim do concurso se arrumando. Suelen tenta a confundir e Olenka ajuda Tessália. Suelen quebra o salto da personagem e cola, toca a música tema de Suelen. Na outra parte, Tessália desfila, música diegética. Ela anda de forma encabulada. Seu salto quebra e ela cai, a música cessa. Leleco a ajuda, som de samba extradiegético. No camarim, Olenka descobre a trapaça de Suelen. As modelos entram na passarela todas juntas, música diegética. Leleco anuncia o nome de Tessália como vencedora. Começa a tocar a música tema da personagem novamente. Tessália chora de emoção, recebe a faixa e a coroa.

Substância do conteúdo Na primeira cena em que ela aparece, percebe-se a sua timidez. Ela entra no salão e fica parada, mexendo nas pontas dos cabelos. A música tema da personagem e a câmera que faz um movimento de baixo para cima em seu corpo a sexualizam. Sua forma de falar remete ao interior, assim como as roupas floridas e o sapato baixo, o que também se relaciona com o seu aspecto de mocinha melodramática. Chama a atenção também a simplicidade com a qual ela se destaca no desfile. Mesmo não se achando bonita, não tendo a pretensão de ser modelo e caindo no palco, ela ganha o concurso. Há similaridade

281 com a figura dos contos de fadas da gata borralheira. O interior é simbolizado por ela como tradicional, inocente, campestre e bucólico. O quadrado semiótico de Tessália faz o movimento contrário do de Muricy e Adisabeba, que partem de algo mais novo para o tradicional. Estabilidade: interior, homem mais velho, dona de casa. Instabilidade: homem mais jovem, Rio de Janeiro, modelo. Trabalhadora: ela trabalha de modelo no começo, mas quer ser professora. Depois, trabalha no salão de Monalisa com atendimento. Mocinha melodramática: roupas floridas e simples, sapato baixo, ausência de maquiagem, atuação. História com Darkson, música “Tanta Coisa”, Paolo. Riso: história com Leleco, música “Assim você mata o papai”, Sorriso Maroto. Cronotopo Trivial: vivencia momentos triviais, do dia a dia. Temas e figuras da primeira cena: beleza (movimento de câmera que a capta de cima a baixo, corpo, rosto, falas de outras personagens, olhares das outras personagens), simplicidade (interior, jeito de falar, jeito de mexer no cabelo, falas de Tessália, sapato baixo, vestido florido). Resumo técnico: o movimento da câmera que a capta de baixo a cima. primeiro plano da personagem mexendo no cabelo. Expressão as outras personagens. Música extradiegética.

Janete (A Regra do Jogo) Figura 47 – Janete traz compras para a família de Feliciano, imagem do capítulo 6

. Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/4447442/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. Mulher valente. Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: dor e riso

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Trabalho: é manicure, mas virou sócia em um restaurante e gerente do hostel de Adisabeba. Relacionamentos amorosos: Vavá, Nenenzinho e Merlô. Família/amigos: marido Vavá, cunhadas, sogro Feliciano. Casa: mora na cobertura de Feliciano, depois tem a sua casa no Morro da Macaca, mas volta para a cobertura. Consumo/vida material: ela aparece fazendo compras para a casa, ela é bem envolvida com o ambiente doméstico. Resumo da narrativa: Janete é manicure, mora com o marido Vavá, na cobertura de seu sogro, junto de outros integrantes da família. Ela é bastante prestativa, faz comida para as pessoas da casa e serviços domésticos, além de pagar o aluguel da cobertura praticamente sozinha, pois Feliciano está falido e os outros membros da família não trabalham. Janete é traída pelo marido, que chega ao ponto de trazer a amante, Mel, para morar na mesma casa. Ela ameaça ir embora, mas seu sogro, Feliciano, não a deixa ir. Janete começa a namorar o “irmão” de Mel, Nenenzinho, mas termina com o rapaz. Depois, a manicure se envolve com Merlô. Os dois vão morar no Morro da Macaca e ela vira sócia de Domingas em um restaurante no morro. Janete quer que Merlô seja mais maduro e o faz pagar o aluguel do barraco onde eles moram. Ela flagra o namorado com outras mulheres, mas é Merlô que decide terminar o relacionamento. Janete volta para a casa de Feliciano. No final da trama, ela planeja expandir o restaurante que é seu e de Domingas. Ela reata com Vavá, a pedido dele, se muda para a mansão/hostel de Adisabeba, junto com os outros integrantes da família de Feliciano, que se casa com Adisabeba. Janete se torna também gerente do hostel, responsável por toda a contabilidade. Nível fundamental: Janete é uma mulher trabalhadora e independente que anseia por um relacionamento, mas não consegue encontra um homem à altura de suas expectativas (um parceiro fiel e trabalhador). Ela é cada vez mais bem-sucedida no trabalho, mas termina a trama com o seu primeiro marido que a traia. Ela manipula, é manipulada, julga e é julgada (percurso do destinador-julgador e do destinador-manipulador). A oposição está entre suficiência (eufórico) e carência (disfórico) nessa personagem.

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Suficiência Carência

Não carência (conformação) Não suficiência (frustração)

Trajetória linear: Não carência (conformação) – não suficiência (frustração) – carência - não carência (conformação).

Forma da expressão A personagem foi expressada por Suzana pires. É alta, magra, branca e de olhos castanhos. Mudança de aparência: não Roupas: usa bastante vermelho, usa calça jeans, cinto, decote, vestido, tomara que caia, blusinha de alça. Acessórios, maquiagem: batom vermelho, brincos grandes, unhas pintadas, tatuagem. Cabelo: cabelos castanhos, com luzes loiras, compridos e lisos. Linguajar: dialeto popular. Cenário: cobertura de Feliciano, casa que aluga no Morro da Macaca, restaurante no qual é sócia. Na casa no morro, a porta é de vidro, como a maioria. Música: não tem uma trilha sonora específica. Atuação: Tem bastante expressão no olhar. É rígida quanto à organização da casa e carinhosa com os seus parceiros.

Expressão da substância Janete aparece por três vezes no capítulo 2. Na primeira cena, ela faz barra para a calça de Feliciano, seu sogro. Ela está abaixada e o homem de pé com o pé em cima da cama. A câmera a enquadra de costas. Plano de conjunto. Chega Vavá, seu marido, que pede para o pai parar de olhar para o decote da mulher. Close no decote de Janete. A

284 câmera sobe o seu rosto, em conjunto com o decote. A câmera em ângulo alto, simula o olhar de Feliciano. Janete sorri e toca um som curto de aspecto cômico. Dalila entra no quarto, se olha no espelho e conversa com seu pai. Janete aparece de costas, em plano de conjunto, quieta enquanto pai e filha conversam. Ela arruma as coisas para sair do quarto, vemos uma parte dela no canto direito. Janete se levanta e passa em frente à câmera quando sai do quarto. A cena continua com Feliciano e Dalila. Na sala, Vavá comenta sobre tia Nora e seu pai, ouve-se a voz de Janete pela primeira vez perguntando sobre o assunto. Não a vemos. Mas, logo em seguida ela aparece com o paletó de Vavá, seu marido, sorrindo. Ela também se arruma para sair com a família, passa batom. Posiciona-se em frente à câmera, de costas, em dado momento. Depois de uma fala de Feliciano, ela concorda com o sogro e defende que dinheiro nunca foi mais importante que uma família unida. Todos se posicionam perto da porta para sair. E Dalila se opõe ao fato de Janete sair com eles, a chama de “manicure embrulhada para presente”. Janete retruca, acusa a cunhada de estar com inveja e declara que prefere ser manicure do que não fazer nada na vida. Vavá a acalma. Janete faz biquinho para beijá-lo. Mas, o casal é interrompido por Dinorah que anuncia um telefonema para Vavá de uma cliente idosa. Janete o incentiva para atender pois “a velha vai pagar”. Dalila a alerta sobre outra mulher dar em cima do seu irmão. As duas são enquadradas na lateral, na altura da cintura mais ou menos. Janete andando diz “sou mais eu, meu bem”. Vavá se encontra com Mel no quartinho de empregada e depois de um tempo Janete começa a chamá-lo. Ela vai até a cozinha, ele sai do quartinho, novamente toca uma música que conota comicidade. Ela reclama que a velha fala muito, mas empolgada pergunta se o marido fechou o negócio e os dois saem para a festa. O trecho dura aproximadamente 4 minutos e vinte.

Substância do conteúdo Na cena comentada, percebe-se a sexualização do corpo de Janete pelo olhar de Feliciano. Nesse instante, a câmera alta simula o olhar do homem, a vemos através dele. Na cobertura, o ambiente é de naturalidade, todos falam ao mesmo tempo. Observa-se a técnica de caixa cênica e câmera escondida da diretora Amora Mautner. As personagens ora passam muito perto da câmera, dão as costas para a câmera, tem apenas parte do corpo enquadrada, entre outros aspectos. Janete é parte desse ambiente. A personagem

285 demonstra ser muito prestativa, ela arruma a barra da calça de Feliciano, depois trás o paletó ao marido. Durante toda a trama, Janete se envolve nas tarefas domésticas, o que é motivo de discórdia com Merlô posteriormente, visto que o rapaz não é tão organizado com a casa como ela deseja. Janete é trabalhadora e demonstra a ética do trabalho da nova classe trabalhadora e habilidade com o dinheiro, como Ivana, Adisabeba, Monalisa e Janaina. A sua forma de falar é bastante popular, ela comete deslizes no português. Enquanto mora na cobertura, Janete quase não aparece andando na rua. No Morro da Macaca ela tem cenas externas, inclusive ela conhece sua futura sócia, Domingas, quando está na rua à procura de um restaurante para comer. Verifica-se, assim, o caráter público e popular bastante presente no ambiente do morro. É digno de nota também a cor vermelha recorrentemente utilizada pela personagem. Em sua primeira cena, o seu vestido tomara que caia vermelho contrasta com a roupa e Dalila, sua cunhada. Dalila é está falida, mas mantém um habitus elitizado e usa roupas sóbrias, em tons claros e que não marcam o corpo. Inclusive, Dalila expressa preconceito com Janete e comenta que a cunhada está “embrulhada para presente”. O quadrado semiótico de Janete apresenta similaridades com o de Monalisa. Porém, enquanto a última retorna para o seu grande amor, a manicure se conforma com o seu antigo marido. Suficiência: trabalho. Carência: amor Mulher valente: trabalho, proatividade, parceria com Domingas. Trabalhadora: manicure, sócia em restaurante, gerente de boate. Atendimento ao cliente. Trabalho doméstico. Riso: atuação, relação com outras personagens Cronotopo trivial: vivencia acontecimentos corriqueiros, do dia a dia e ambiente doméstico. Temas e figuras da primeira cena: família (marido, cunhados, sogro, preconceito, traição, trabalho doméstico, compromisso social), trabalho doméstico (barra da calça, paletó, sogro e marido). Resumo técnico: câmera que sexualiza o seu corpo, câmera escondida, naturalidade.

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Indira (A Regra do Jogo)

Figura 48 – Indira na cozinha de sua casa. Capítulo 6.

Fonte: globoplay < https://globoplay.globo.com/v/4447442/>

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. mulher valente e religiosa Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: riso Trabalho: estilista e tem a sua própria loja. Relacionamentos amorosos: Oziel e Rui. Família/amigos: tem o marido Oziel e quatro filhos pequenos Casa: mora em sua casa com o marido e os filhos. Consumo/vida material: Indira apresenta gostos simples, como “churrasquinho de gato”, toma cerveja. Depois, quando ela passa a ser mais sofisticada, seu gosto muda, ela faz comidas diferentes como tofu no vapor, por exemplo, e começa a se interessar mais por arte. Resumo da narrativa: Indira é estilista no Morro da Macaca, tem sua própria loja chamada Le barrac. Ela rejeita seu marido, Oziel, devido à sua religião (evangélica), que não permite usar pílula e nem preservativo. Ela não quer mais filhos, pois já tem quatro. Indira tem personalidade forte, às vezes é agressiva fisicamente, chega a bater no marido. Em determinado momento, ela se vê em um quarteto amoroso. Oziel começa a ter um caso com Tina, esposa de Rui. Indira acaba com o resguardo sexual com Rui. Em dado momento, os quatro trocam de personalidade, Tina e Rui viram populares e Indira e Oziel intelectualizados. Os dois homens, então, decidem voltar para suas mulheres originais e se unem para arquitetar um plano. Elas acabam voltando. No final, Indira e Oziel

287 planejam uma viagem à França, Indira vai estudar moda em Paris na Universidade de Sorbonne e Oziel vai estudar cinema. Ela continua pouco inclinada a ter relações sexuais com o marido, mas porque prefere ler e fazer atividades intelectuais. Nível fundamental: A oposição saliente é do ordinário (disfórico) versus sublimação (eufórico). O ordinário engloba as questões do dia a dia, do popular e sexual. No caso, a religião adquire o aspecto da sublimação, pois desliga Indira dos prazeres mundanos. Ela manipula, julga e é julgada (percurso do destinador-julgador e do destinador- manipulador).

Ordinário Sublimação

Não sublimação (material) Não ordinário (espiritual)

Trajetória linear: não ordinário (espiritual) – não sublimação (material) – ordinário – sublimação

Forma da expressão A personagem é expressada pela atriz Cris Vianna. É negra, tem os olhos escuros e longos cabelos. Figura 49 – Indira com visual mais sofisticado, imagem do capítulo 136.

Fonte: Globoplay Mudança de aparência: ela muda um pouco, apenas começa a usar roupas mais largas e menos decotadas, como forma de elegância e requinte.

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Roupas: usa vestidos floridos, de alça, compridos e decote. Depois, quando se torna mais “elitizada” começa a usar roupas mais largas, mas ainda são vestidos ou macacão com estampas de cores fortes e vivas. Acessórios, maquiagem: usa pulseira, brincos e maquiagem leve. Cabelo: cabelos escuros, crespos e compridos. Linguajar: dialeto comum Como ela é estilista e sua loja é famosa no morro ela precisa conversar inglês com os estrangeiros e demonstra dominar a língua. Ela fala alto às vezes com o marido, quando briga com ele. Curioso que no episódio em que Ninfa a chama para dançar funk, ela usa o pronome “tu” com ela, claramente em referência ao contexto mais popular da dança. É pertinente expor que na mesma cena, ela e seu marido interagem com Rui e Tina. Rui começa a falar com o casal usando o pronome “tu”, Tina se espanta e pergunta desde quando ele usa “tu”. Tudo indica que o pronome é empregado para reforçar o caráter popular nas personagens de João Emanuel Carneiro. Cenário: Sua casa e loja onde trabalha. Em sua casa há uma cortina que separa o quarto do resto da casa. Música: Quando ela está com Oziel toca a mesma música tema dele “safadin” e quando ela está com Rui toca “Tá me dando mole”, Sorriso Maroto. Atuação: Indira recita salmos para Oziel quando quer reforçar a sua posição de resguardo sexual. Ela fala com firmeza e tem a postura reta. Seus movimentos são moderados. Ela demonstra elegância. Mas, quando se irrita com o marido, exalta-se.

Substância da expressão Indira aparece duas vezes no primeiro capítulo. Na primeira vez, ela cumprimenta Tóia na rua e na segunda, ela ajuda Djanira que caiu em uma escada na rua. São aparições bem rápidas, sem fala, quase como figurante. Ela é apresentada de fato no capítulo 3. Som de samba. De dia. Oziel, marido de Indira, guia um grupo de turistas em um carro aberto. Ele anuncia que vão à loja Le Barrac de Indira Dourado. O homem força um sotaque inglês. Indira está dentro da loja com Domingas, primeiro plano, ela pede para Domingas tomar conta do local e caminha até a porta do estabelecimento. A câmera a capta de costas. A estilista cumprimenta os turistas “olá” e se vira. Em plano de conjunto, a câmera enquadra a loja e a personagem de frente da cintura para cima, em ângulo baixo, aparece o marido ao lado e os clientes subindo as escadas da loja. Oziel diz que os turistas deram sorte porque geralmente Indira está dando

289 entrevista para a televisão e participando de fashion week “nas europas”. Indira responde que graças a Deus eles têm feito sucesso. Câmera posicionada na porta, ângulo mais alto, mostra os turistas que entram. Indira pede para Domingas atender os turistas. A estilista passa bem perto da câmera quando entra na loja. Em seguida, Oziel olha para a rua e vê Djanira voltando do hospital de moto-táxi. A música é trocada por uma trilha de suspense. O homem chama Indira e se espanta, pois Djanira deveria estar no hospital. Foco no casal olhando para Djanira. Desde o momento em que Oziel cita o nome de Indira até o fim da cena conta-se 1 minuto e 10 segundos, em média.

Substância do conteúdo A religião em Indira está relacionada com a sublimação corporal e pode ser equiparada à intelectualização da personagem em seu segundo momento, quando ela prefere ler a ter relações sexuais com o marido. A religião para Indira seria uma busca transcendental que pode ser suprida de outras formas. Percebe-se um tom irônico nessa situação, uma crítica à busca religiosa. Do mesmo modo, o gosto popular da personagem está inserido na esfera vulgar que é rejeitada pela personagem posteriormente, quando ela expressa a preferência por comidas sofisticadas, roupas refinadas e obras de arte. O uso do pronome “tu” se destaca no núcleo de Indira como um indicativo de linguagem popular, ela mesmo reforça esse uso quando aceita o desafio da periguete Ninfa de dançar funk. Na cena mencionada, Indira ouve o marido chegar com os turistas e vai à porta. A interface com o espaço externo é evidente. Além disso, A loja está em um ponto de onde é possível ver Djanira que chega de moto-táxi na casa de Adisabeba. As aberturas da loja e suas janelas são localizadas no espaço. Na cena, Indira e Oziel são observadores de Djanira, que tem movimento na narrativa. No primeiro capítulo, quando Indira socorre Djanira e cumprimenta Tóia a personagem também é uma observadora. O público e o externo na personagem se comunicam com a mulher popular como já comentado nas outras personagens. Ordinário: sexo, comidas simples, universo popular. Sublimação: religião, intelectualização, comidas sofisticadas, arte, curso em Paris, roupas mais sofisticadas, leitura. Mulher valente: atitude com o marido, trabalho e quatro filhos pequenos.

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Trabalhadora: estilista, loja, roupas, interface com o público e com a rua. Atendimento ao cliente. Religiosa: religião evangélica, citação de trechos da Bíblia, proibição de camisinha e pílula, resguardo sexual, menção ao pastor. Riso: atuação, interação com o marido e o com casal Rui e Tina. Cronotopo trivial: acontecimentos do dia a dia. Temas e figuras da primeira cena: trabalho (roupas, espaço público, estrangeiros, estilismo, loja, marido). Resumo técnico: destacam-se as tomadas de Indira que realçam o espaço externo, ela e Oziel observando Djanira.

Dolores Neiva (Avenida Brasil)

Figura 50 – Dolores na rodoviária rumo a Rio de Janeiro, imagem do episódio 54.

Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/1965898/

Forma do conteúdo Atributos: trabalhadora. religiosa Protagonismo/posição: autônoma Cronotopo: trivial Sentimento principal: dor e riso Trabalho: arranjou um trabalho de ajudante no salão de Monalisa. Relacionamentos amorosos: Diógenes Família/amigos: filho Roni. Casa: vem de outra cidade, fica em um lugar de onde é despejada, se muda para a casa de Diógenes. Resumo da narrativa: Dolores é ex-mulher de Diógenes e mãe de Roni. Ela era atriz de pornochanchada, conhecida como Soninha Catatau, e abandonou Diógenes e o filho ainda

291 pequeno. Ela retorna depois de muito tempo ao Divino, completamente diferente, convertida ao evangelismo. A mulher deseja uma nova chance com Diógenes e seu filho. Ela começa a trabalhar de ajudante no salão de beleza de Monalisa. Quando Diógenes descobre que ela está prestes a ser despejada, ele a convida para morar em sua casa. Os dois se casam. Porém, a irmã de Dolores, Nicole, e seus colegas de filme erótico reaparecem e fazem sua antiga vocação ressurgir em sua lua de mel. Ela abandona o filho e o marido novamente retornando a ser Soninha Catatau. Nível fundamental: A oposição se dá entre luxúria (eufórico) e castidade (disfórico). Ela é julgada, manipulada e manipula (percurso do destinador-julgador e do destinador- manipulador).

Luxúria Castidade (índole real, (falsa virtude, artificialidade) natureza)

Não castidade (liberação sem culpa) Não luxúria (punição e culpa)

Trajetória linear: luxúria – castidade – não luxúria (punição) – não castidade (liberação)

Forma da expressão A personagem é expressada por Paula Burlamaqui. Ela é magra, branca de estatura média e olhos castanhos. Figura 51 – Dolores se rende ao seu passado de Soninha Catatau. Capítulo 164.

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Fonte: Globoplay https://globoplay.globo.com/v/2169005/ Mudança de aparência: não Roupas: na maioria das vezes usa roupas com cores neutras, com botões, fechadas, sem decote e saia abaixo do joelho, ou vestido. Às vezes uma blusa estampada. Sapatos baixos. Acessórios, maquiagem: Não usa maquiagem, nem acessórios, apenas uma bolsa simples bege, tiara no cabelo e a Bíblia que carrega. Cabelo: cabelos loiros, um palmo mais ou menos abaixo dos ombros e lisos, mas não muito. Linguajar: usa o português padrão. Cenário: Ela vem de outra cidade. Mora com Diógenes. Trabalha no salão de Monalisa. Música: não tem uma música específica. Atuação: ela está sempre com a Bíblia. Quando ameaçada por algum “pecado”, ela segura a Bíblia com as duas mãos, na altura do peito, com a capa virada para seu interlocutor e reza, fala com Deus. Diz “bendito seja meu pai”, olhando para o alto. “Em nome do senhor” e levanta a bíblia para o seu interlocutor visualizar. A expressão de seu é mais séria nesses momentos.

Substância da expressão Dolores aparece pela primeira vez no capítulo 54. Dia. Plano aberto em uma rodoviária. Trilha sonora instrumental, não diegética. Dolores caminha lentamente entre duas filas de pessoas sentadas, de costas. Prega a Bíblia em voz alta, empolgada. Ninguém presta atenção nela. Algumas pessoas figurantes passam em frente à câmera, segurando malas. É possível ver ao fundo três ônibus estacionados. Dolores recita uma parte da Bíblia que fala sobre Maria Madalena. Ela vira

293 de frente. A câmera se aproxima. Ela anda mais um pouco. A câmera se aproxima mais. Câmera em ângulo baixo que sobe aos poucos. Ela gesticula empolgada, sorrindo, com a Bíblia na altura do peito. A câmera a enquadra em primeiro plano rapidamente, ela termina o discurso. Elipse. Ela está no guichê e compra a sua passagem para o Rio de Janeiro. A atendente, de costas para a câmera, pergunta se ela vai passear. Dolores sorrindo diz que vai ver o filho. A cena acaba. O discurso bíblico que ela faz é o seguinte: “e tendo Jesus ressurgido cedo, no primeiro dia da semana, apareceu primeiramente Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios. E foi Maria Madalena anunciar aos discípulos: ‘Vi o senhor. Jesus, meus amigos, e quem nele crê ainda que morra, viverá.’”. A cena dura por volta de 47 segundos.

Substância do conteúdo “Tornar-se uma mulher evangélica após uma vida de “pecados” no mundo público é tornar-se familiar, caseira e pacata” (SANTOS, 2016, p. 221). Essa citação de Santos, que se refere a uma ex-chacrete convertida ao evangelismo, cabe para a personagem Dolores. O percurso da personagem demonstra que a vida como atriz erótica se opõe à vida familiar e à maternidade. São dois extremos que não podem conviver. Ao “cair em tentação” novamente Dolores não hesita em ir embora e despreza a convivência que teve com o filho. Há na personagem um tom paródico em relação à religião evangélica. A religião é tratada como uma espécie de salvação temporária que não se sustenta no final. A vida de pecados pode ser associada no contexto brasileiro ao alcoolismo, à criminalidade e outras atitudes moralmente condenáveis de pessoas que encontram saída na religião evangélica e até viram pastoras, muitas vezes. No caso, o autor “brinca “com essa temática ao mostrar que há uma índole que prevalece. O fato de a irmã da personagem ser parte do elenco erótico que persuade Dolores a voltar à carreira reforça a ideia de natureza insuperável e dialoga com certo determinismo biológico. A ironia também está presente no exagero de Dolores enquanto evangélica. Em sua primeira cena, ela cita a passagem da Bíblia que trata de Maria Madalena, seguidora de Jesus Cristo interpretada em algumas literaturas como prostituta resgatada por Cristo. Obviamente, a citação da figura bíblica faz referência à própria personagem, cuja profissão é relacionada à atividade sexual. Ela pregando se destaca em pé, lembra um ambiente de igreja. O ângulo baixo a torna grande, o que se relaciona com a religiosidade.

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O deslocamento, distância espacial do filho e da vida familiar simboliza a distância entre os dois mundos o erótico e o religioso. A rodoviária é o símbolo de partida, deslocamento. Um deslocamento externo que remete ao deslocamento interno da personagem. Os dois mundos não são conciliáveis, demonstra a narrativa. Luxúria: Soninha Catatau. Outra cidade. Longe do filho e solteira. Atriz erótica. Genética. Castidade: Dolores Neiva. Maternidade. Ambiente doméstico. Marido. Evangelismo. Bíblia. Religiosa: roupas fechadas, saia comprida, sapato baixo. Cores neutras. Bíblia e falas religiosas. Citações da Bíblia. Tiara nos cabelos. Trabalhadora: trabalha no salão de Monalisa, atendimento ao cliente. Dor e riso: atuação, quadrado semiótico. Cronotopo trivial: bairro Divino, acontecimentos do dia a dia. Temas e figuras da primeira cena: retorno (rodoviária, pregação religiosa, Maria Madalena convertida, roupas fechadas e neutras, saia longa, dia, filho). Resumo técnico: plano de conjunto da rodoviária, ela pregando. Ângulo baixo e meio primeiro plano de Dolores. Trilha sonora não diegética.

Percebe-se dois grupos nítidos no cronotopo trivial - as emergentes sociais e as periguetes. As religiosas são representadas por Indira e Dolores. Janete e Tessália não se encaixam em um grupo definido. Das periguetes, Ninfa, Alisson e Andressa representam a mesma oposição a Adisabeba. Janete, que não é periguete, também se opõe à matriarca, mas é mais velha e é derrotada, digamos assim, pela figura da mãe imponente na vida de Merlô. As outras duas são absorvidas por Adisabeba. Há aquelas que são punidas de algum modo no final da trama (Mel e Andressa) e outras que gozam de um final mais feliz (Suelen, Ninfa, Alisson, Olenka e Beverly). Olenka apresenta o percurso narrativo da melhor amiga e Beverly é uma personagem sem autonomia, bastante secundária. Nesse sentido, dentre elas, Suelen apresenta uma narrativa mais complexa com altos e baixos. Ninfa e Alisson são quase a mesma pessoa na trama, fazem tudo juntas e têm o mesmo percurso narrativo, com poucas diferenças. Observa-se que Mel e Andressa expõem a oposição fundamental entre fama e anonimato,

295 muito comum em outras personagens de telenovela com o mesmo perfil. A moradia é um tema constante nas periguetes. As emergentes se destacam pela estética do excesso de objetos e acessórios, mistura de estilos e sentido de “inadequação”. É o caso de Adisabeba, Muricy e Ivana. Adisabeba e Ivana apresentam também a ética do trabalho, do mesmo modo que Janete. Na mansão de Tufão, Ivana e Muricy fazem coro ao apoio a Carminha e cegueira em relação a ela. São dispersas. Tessália e Muricy são o contrário uma da outra. E Muricy e Olenka são como a mesma pessoa em idades diferentes. Muricy, Ivana e Monalisa passam por pequenas transformações físicas no início da trama e permanecem estáveis posteriormente. Ivana apresenta um desfecho narrativo clássico e parece ser a mais constante das três, embora tenha uma certa ambiguidade no sentido de ser uma emergente com características da trabalhadora. Muricy e Adisabeba são mulheres mais velhas que após algumas reviravoltas, em relacionamentos com homens mais jovens, retornam a uma posição social tradicional, relacionado à família e ao casamento com pessoas da mesma idade. Adisabeba ainda apresenta mais facetas que Muricy. Essa personagem é emergente, com traços de trabalhadora, da matriarca e pode ser considerada de apoio. Nas religiosas Dolores e Indira há uma sátira à religião evangélica. A narrativa das duas demonstra que a religião não é suficiente para os seus anseios ou é incompatível à sua natureza. Nos dois casos o sentimento predominante é o riso e a religião tem ligação direta com o sexo. Destacamos os seguintes aspectos:  Sentido de comunidade, valorização do espaço público: nas casas do Morro da Macaca as portas de entrada são, em sua maioria, feitas de materiais transparentes como vidro; há muitas cortinas no interior da residência, que separam cômodos, fecham armários ou boxes de chuveiro; destaque às janelas. Interface com a rua nos estabelecimentos comerciais.  A problemática da moradia nas periguetes: Suelen não tem casa e se hospeda em várias casas alheias, chega a morar na rua; Alisson fica sem casa, vai morar com Adisabeba, depois na rua, e com amiga; não aparece a residência de Andressa, que se hospeda na casa de Adisabeba; Ninfa é obrigada a dividir a casa com Alisson, pois aluga um barraco de Adisabeba; Mel se relaciona com Vavá porque

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quer sair do morro e morar na cobertura; Olenka mora com a amiga; a casa de Beverly não aparece na trama.  Religiosidade: religião católica em pingente e decoração de Adisabeba. Paródia em relação a aspectos do evangelismo em Dolores e Indira. O paródico está na forma como os fatos são apresentados e não nas próprias personagens.  Linguajar: além das falas em tom de voz mais alto, algumas personagens cometem erros de português, como Janete, Ninfa e Alisson. Destaca-se o uso do pronome “tu” na caracterização das mulheres populares, principalmente nas personagens do morro.  Música: apenas Suelen conta com música internacional, além do forró. Adisabeba: música sertaneja e forró. Muricy: forró. Tessália: samba e MPB. Ninfa, Alisson, Andressa: funk. Olenka: forró.  Destaque ao corpo: sexualização do corpo de Tessália, movimento da câmera de baixo a cima; close nos pés de Suelen; decote de Janete pelo olhar de Feliciano. corpo à mostra de Ninfa e Alisson.  Cena da personagem andando na rua: Adisabeba, Suelen, Dolores.  Câmera escondida: através das janelas e cortinas ou entre frestas e atrás de objetos em Adisabeba, Ninfa e Alisson.  Simultaneidade: a Caverna da Macaca transmite a sensação da simultaneidade, com várias personagens em um mesmo ambiente: Adisabeba, Andressa, Ninfa e Alisson, por exemplo. O plano sequência no qual aparece Suelen confere a mesma sensação, assim como o Clube do Divino.  Roupas: roupas curtas e sensuais nas periguetes, estampas de animais em Muricy e Adisabeba, Tessália com estampas floridas condiz com a simplicidade das mocinhas melodramáticas.  A estética Kitsch e do excesso em Adisabeba, Muricy e Ivana.  A faceta matriarca de Muricy e Adisabeba se relacionam com filhos homens.  Plurilinguismo: contos de fadas.

Vimos que as personagens do cronotopo da aventura são menos marcadas em termos de classe social. A única que conta com uma música mais popular, samba, é Monalisa, que faz parte também do cronotopo trivial. Tóia e Lara, por sua vez, utilizam

297 o dialeto culto. Os vários acontecimentos e lugares percorridos as afastam da trivialidade, do riso e do mundano. Apesar disso, há elementos no cronotopo de aventura que remetem ao universo popular, são eles a religiosidade, o diálogo com o espaço público (Tóia andando pela rua e cumprimentando as pessoas pelo nome, por exemplo) e a simultaneidade (locais como a Caverna da Macaca que reúnem várias personagens ao mesmo tempo, onde tudo acontece). Além disso, os trabalhos desempenhados dialogam com o popular: cabelereira, garçonete, gerente de boate no morro e vendedora de loja (depois dona de restaurante). Já no cronotopo idílico, não há o sentimento riso. Todas as personagens estão para o drama com os sentimentos dor e entusiasmo. No idílico o espaço público também é explorado, assim como a religiosidade. O excesso de intimidade e falta de privacidade que remetem ao popular estão presentes nos tipos de serviços realizados, como o ato de lavar calcinhas da filha e trocar papel higiênico do banheiro. São atividades em sintonia com a simbologia do “baixo”. O trabalho de catadora de lixo também se relaciona com o vulgar e o subemprego. As terceiras da vida privada trazem o estereótipo e o preconceito históricos que rondam a mulher negra enquanto empregada doméstica. Mais uma vez, o espaço público e a falta de privacidade são explorados. Os tipos de planos e enquadramento reforçam a invisibilidade da empregada doméstica e sua função de terceira na vida privada. A maioria das personagens estudadas encontram-se no cronotopo trivial, o qual mais se relaciona com o discurso circulante a respeito do universo popular discutido no primeiro capítulo da tese. Ou seja, percebe-se o popular relacionado ao humor, ao cotidiano, aos assuntos considerados ordinários e ao sentido de inadequação conferido às mulheres populares por parte da lógica hegemônica da classe média, em termos de gosto, aparência, gastos e comportamento. Há no cronotopo trivial o sentido de comunidade nos espaços e cenas nas ruas. A falta de privacidade também está presente. A problemática da moradia nas personagens periguetes é uma constante. Além do dialeto popular, algumas personagens cometem erros de português. O uso do pronome “tu” é um marcador popular. O humor está em todas as personagens do cronotopo trivial, e as músicas são mais populares, samba, forró ou funk. Observa-se também o destaque ao corpo feminino, a religiosidade e a sátira ao evangelismo. Identificamos relação com a carnavalização e o realismo grotesco (BAKHTIN, 1999; 2010). A exploração dos gêneros primários (BAKHTIN, 2003) – falas

298 informais, simultâneas e em alto volume - se destacam nos ambientes da mansão de Tufão, da mansão de Adisabeba e da cobertura de Feliciano. A decoração das duas primeiras é kitsch, com a mistura de estilos e o excesso de objetos em harmonia com a estética do excesso discutida por Rancière (2010). Nas periguetes, o excesso se dá pela comida e pelo sexo. Conforme exposto, esses sentidos são expressos nas temáticas, no cenário, som, tipos de enquadramento e plano, figurino e ritmo. As cenas com temporalidade dilatada, como a de Lara, e com muitas elipses seguidas, aceleradas, como as de Atena se divertindo no hotel não foram constantes na caracterização popular. Essas foram exceções A maioria das primeiras cenas analisadas coincide com a temporalidade real, com poucas elipses, exploram a naturalidade na fala e o uso de câmeras escondidas. De acordo com Stam (2013),

O cinema ilustra a ideia bakhtiniana da relacionalidade inerente entre o tempo e o espaço, já que qualquer modificação em um dos registros importa em mudanças no outro: um plano mais fechado de um objeto em movimento aumenta a velocidade aparente de tal objeto, a presença do meio temporal da música altera a nossa impressão do espaço, e assim por diante. (STAM, 2013, p. 229).

É possível transpor as observações de Stam para o suporte televisivo. Além disso, o autor destaca a mediação do cronotopo entre o discurso histórico e o artístico e os diferentes níveis de manifestação do cronotopo. No nosso caso, o cronotopo se relaciona às representações de processos históricos e sociais no que diz respeito ao universo que circunda a mulher popular no Brasil, e a todo o preconceito adjacente à concepção de mulher pública especificamente em fins do século XIX e começo do século XX na ocasião do desenvolvimento das grandes cidades brasileiras. É pertinente pontuar também a marcação dos espaços masculino e feminino na telenovela. O salão de beleza, o restaurante e a loja de roupas são espaços considerados femininos nas duas tramas, ao contrário dos bares presentes no Divino e no Morro da Macaca. Embora, haja as personagens femininas frequentadoras dos bares, Beverly, por exemplo. Alguns lugares do bairro são mais especificamente marcados por este ou por aquele sexo. A oposição bar/comércio é, deste ponto de vista, exemplar. O “bar do bairro” [...] pode ser considerado, sob certos pontos de vista, como o equivalente da “casa dos homens” das sociedades tradicionais. [...] Ao contrário, o pequeno estabelecimento comercial desempenha o papel de uma “casa das mulheres” onde aquilo que se convencionou chamar de “feminino” encontra o lugar do seu

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exercício: um bom bate-papo, notícias familiares, conversas sobre gastronomia, a educação dos filhos etc.” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2013, p. 57).

Além do espaço, há a exposição do corpo e a forma da narrativa como parte da tecnicidade observada. Os ângulos da câmera e o movimento que destaca o corpo da mulher periguete, sobretudo, são exemplos, assim como o figurino. Verificou-se que as roupas floridas e os cabelos longos se relacionam com as mocinhas, com a inocência, a fragilidade e a alegria das personagens boas; e a mistura de estilos, estampas de animais e exagero estão presentes nas personagens emergentes que tendem ao humor. As vilãs expõem tonalidades mais monocromáticas e sofisticadas. Os cabelos também se relacionam com o poder e a sedução nas más, principalmente quando soltos e loiros. As grifes usadas pelas vilãs revelam a condenação do consumo de uma forma geral, mesmo para a telespectadora que compra com base na vilã e não na mocinha.

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Considerações finais Acreditamos que, no que se refere ao mundo real, a verdade é o critério mais importante e tendemos a achar que a ficção descreve um mundo que temos de aceitar tal como é, em confiança. Mesmo no mundo real, todavia, o princípio da confiança é tão importante quanto o princípio da verdade. (ECO, 1994 p. 95).

Essa citação sintetiza o sentimento com o qual esta tese teve início e é concluída. Como discutimos, o conhecimento e a realidade são construções sociais e assim também são as ficções, enquanto obras humanas inseridas em um contexto socio-histórico. Vimos que as mídias, no processo denominado midiatização, tem atuação importante na produção e reprodução dessas realidades e, nesse sentido, mais que o conteúdo, a forma e a expressão têm destaque. Trata-se do “eixo do olhar” comentado por Martín-Barbero (2009) na mídia televisiva. Por isso, as personagens são pessoas e são texto ao mesmo tempo, ou melhor, corpo no caso da linguagem icônica audiovisual (SMITH, 2004). São parte de um repertório social e capazes de refletir mudanças em curso, ainda mais no contexto da telenovela, produto popular de massa. Não questionamos a coerência da música, das sequências, cortes e roupas de determinada personagem popular, apenas faz sentido sem que precisemos pensar a respeito. São tecnicidades que compõem dada representação, as quais abordamos em determinados aspectos no curso desta tese. De forma objetiva, para refletir sobre os resultados alcançados nesta pesquisa, cabe recapitular, de maneira sintética, os objetivos da pesquisa explicitados na introdução: (1) discutir as características da telenovela brasileira com a finalidade de analisar os discursos das personagens afeitas ao que se denomina mulher popular brasileira; (2) Investigar a forma, a estética e a materialidade discursiva na construção de sentido da mulher popular em duas telenovelas de João Emanuel Carneiro, por meio da análise discursiva, narrativa e da estética televisual de personagens femininas; (3) Contribuir para o aprofundamento das discussões em torno da telenovela a partir da construção discursiva e estética de personagens femininas populares; (4) Contribuir para uma metodologia nos estudos sobre teleficção com foco na materialidade dos discursos televisuais; (5)Oferecer diretrizes de classificação e tipologias de personagens de teleficção. Em relação ao primeiro objetivo, por meio da discussão e análise das características da telenovela, observamos a interlocução da construção da personagem da mocinha pobre - que assume o status da heroína principal desde as primeiras telenovelas - vem do

301 melodrama tradicional, como demonstram Martín-Barbero (2009), Brooks (1995) e Meyer (1996), assim como a arrivista descrita por Meyer (1996) como mulher vingativa e amoral. Esta última relaciona-se com o trapaceiro analisado por Bakhtin (2010), personagem das classes baixas que usam subterfúgios para obter poder, presente também em muitas histórias do Romantismo literário. Simbolicamente essa figura corresponderia a uma certa modulação da personagem vilã geralmente relacionada com as classes mais altas em sua construção histórica em narrativas populares. Em relação à mulher popular no Brasil, de acordo com a perspectiva histórica tratada no primeiro capítulo e do discurso recorrente a seu respeito na mídia, identificamos algumas características trabalhadas nas personagens analisadas. A interface com o espaço público, o exterior e a falta de privacidade chamam a atenção nesse sentido. Esses elementos estão no cenário que constrói um ambiente público, aberto aos olhares e aos julgamentos do espaço público (lojas de frente para a rua, portas de casa sempre abertas, vidros que desnudam a intimidade, locais externos, por exemplo), fazem parte da temática (no caso das periguetes que não têm moradia fixa) e em elementos simbólicos (cortinas que separam cômodos, portas de vidro, janelas grandes e abertas). A sexualidade exacerbada (tema musical, roupas e acessórios extravagantes), o linguajar popular e em voz alta estão mais presentes nas personagens secundárias, como as periguetes pelo viés do riso e da reprovação moral. Isso demonstra a inadequação abordada por Skeggs (2009) e Escosteguy (2014) no tratamento à mulher popular na televisão. A atividade laboral está muito presente nas personagens populares. Não são as costureiras, doceiras, lavadeiras de outrora (SOIHET, 2015), mas desempenham atividades voltadas ao público, como cabelereiras, manicures no salão de beleza de Monalisa, que reúne as personagens do Divino, ou a loja Elegância onde trabalha Suellen (Avenida Brasil), a loja de Indira no Morro da Macaca, o restaurante de Domingas, o hostel e boate de Adisabeba e o posto de gasolina onde trabalha Betânia. Há também as empregadas domésticas que trabalham em um ambiente privado que não é o delas. O espaço-tempo faz parte da caracterização das personagens como mostrado na aplicação do conceito de cronotopo, que abarca o ritmo dado pelos cortes e pela música, a temática, os espaços percorridos e o sentimento suscitado (riso, dor, entusiasmo e medo), que indicam a complexidade das relações e ditam o tom das temáticas abordadas. No segundo e terceiro objetivos, as análises realizadas (narrativa, discursiva e estética televisual) nos permitiram discutir aspectos dos principais discursos das

302 personagens populares de Avenida Brasil e A Regra do Jogo e “o como” esses discursos são trabalhados por meio da tecnicidade discutida por Martín-Barbero (2009), que diz respeito à linguagem e à organização perceptiva proporcionadas pelos formatos industriais em consonância com as matrizes culturais com as quais dialogam. Como demonstrado anteriormente, a tecnicidade se relaciona com a midiatização, no que tange às maneiras pelas quais as mídias (no caso da televisão e da telenovela) lidam com os discursos circulantes (2012) e contribuem com uma forma de ver e conhecer. Sabemos que os discursos são heterogêneos e interdiscursivos por natureza (MAINGUENEAU 1989). Por exemplo, vimos que uma mesma personagem apresenta mais de uma tipologia e temporalidade. Diante dessa perspectiva, encontram-se os conceitos bakhtinianos de polifonia, plurilinguismo e dialogia (BAKHTIN, 2003, 2010). De maneira mais ampla, identificamos diálogo com a linguagem dos contos de fadas, da estética noir e gótica e dialogia com o formato de sitcom brasileiro em palco de teatro. Os enunciados trazem as marcas da enunciação, ou seja, das condições de produção mais imediata e as mais amplas, sociais, culturais e históricas. É relevante tratar do sujeito da enunciação como um pressuposto e não como um sujeito de carne e osso. Desse modo, uma obra bebe de várias fontes do seu contexto socio-histórico como pudemos perceber. A enunciação das personagens analisadas relaciona-se com o conceito de ethos, que diz respeito a uma espécie de orador que extrapola o texto em si e que pode ser depreendido por meio dos indícios deixados no texto (MAINGUENEAU, 2004).

Ao fiador, cuja figura o leitor deve construir a partir de indícios textuais de diversas ordens, são atribuídos um caráter e uma corporalidade, cujo grau de precisão varia segundo os textos. O “caráter” corresponde a uma gama de traços psicológicos. Já a “corporalidade” corresponde a uma compleição corporal, mas também a uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social. (MAINGUENEAU, 2004, p. 98-99).

Nesse contexto, em uma obra teleficcional, essa corporalidade se dá por meio das personagens conforme a concepção de Smith (2004) que atribui primazia à representação icônica “[...]do corpo, da voz e do rosto, que juntos formam o alicerce do reconhecimento na maioria dos filmes, como a sua presença real faz na vida.” (SMITH, 2004, p. 114). 33. Como discutido, os espectadores usam modelos culturais e estereótipos para interpretar

33 “[...] I ascribe primacy to the iconic representation of the body, voice, and face as together they form the bedrock of recognition in most films, as their real presence does in life” (SMITH, 2004, p.114).

303 as personagens e preencher as informações do texto, por isso o agente humano na teleficção é tão importante. Ao mesmo tempo, em termos analíticos e de enunciação, considerou-se a abstração da personagem de modo a encontrar a voz que extrapola o texto o e que não se encerra na personagem. No humor de forma mais geral nas mulheres do cronotopo trivial, o plurilinguismo e indícios da enunciação são evidentes. Bakhtin (2010) aborda o romance humorístico e ressalta que nesses textos identificam-se linguagens e perspectivas multiformes - de gêneros, profissões e grupos sociais – que são reveladas e destruídas como falsas e hipócritas. A ironia, por sua vez, conforme vimos nas personagens Carminha e das religiosas Dolores e Indira, configuram-se, se seguirmos o raciocínio de Todorov (2014 p.71), com o jogo simultâneo entre enunciado e a enunciação. Para o quarto objetivo, utilizamos a união de aspectos da análise semiótica e do discurso, o que nos possibilitou uma ampliação em termos de análise das personagens multifacetando aspectos importantes para os objetivos deste trabalho. A semiótica nos possibilitou lidar com o simbólico, e o discursivo com as condições socio-históricas. O simbólico, explica Todorov (2014), é da ordem das associações e não significações como a linguagem. Associações essas que nos permitiram relacionar a expressão e o conteúdo no contexto da tecnicidade e tratar posteriormente de suas implicações discursivas. Tratamos de alguns indícios da tecnicidade, é pertinente destacar, diante de outras possibilidades de aprofundamento. A metodologia possibilitou a união entre as abordagens estética e cultural, como propõe Gomes (2011). Para atender ao quinto objetivo, buscamos pensar as personagens populares com base em tipologias, que são formas de organizar os discursos sobre a mulher popular. Usamos muitos autores para comparar diferentes tipologias de personagens já existentes e poder realizar uma própria para as personagens analisadas. Cada autor teve a sua contribuição em nossa construção. Percebemos que alguns focam em funções narrativas em suas classificações, como Vogler (2006) e Martín-Barbero (2009) e outros em atributos, como Schmidt (2012) e Oroz (1992). Bakhtin (2010), por sua vez, possibilitou uma classificação que abarca a temporalidade e espacialidade das personagens. As diferentes teorias possibilitaram também para entendermos a complexidade de uma construção tipológica, pois muitos critérios diferentes podem ser levados em consideração.

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As matriarcas, as mulheres valentes, as periguetes, as mantenedoras, as femme fatale arrivistas, as mocinhas melodramáticas, as religiosas e as empregadas domésticas são tipologias que condensam certas concepções discursivas, é possível argumentar. Utilizamos as classificações trabalhadoras e emergentes sociais para separar o quesito classe social. As nomenclaturas vilãs, melhores amigas, camaleão, mentoras e nêmesis relacionam-se a posições narrativas, por sua vez, e não a atributos específicos da mulher popular. Betânia, Sueli e Ivana são as únicas personagens para as quais não encontramos um atributo além da posição narrativa e da posição social, as duas primeiras são trabalhadoras, melhores amigas e a última é emergente social e camaleão. Além disso, os quadrados semióticos levantados nem sempre indicam as semelhanças das personagens em termos expressivos e sim em termos mais abstratos. Por exemplo, Betânia e Olenka que são personagens bastante diferentes possuem praticamente o mesmo quadrado semiótico. Às vezes, os atributos e as funções narrativas se misturam em uma personagem. Por exemplo, a heroína principal é geralmente uma mocinha melodramática e a vilã uma arrivista. Ambas apresentam o cronotopo da aventura. As melhores amigas, por exemplo, representam uma função narrativa que nem sempre coincide com o atributo, por exemplo Olenka é uma periguete, mas em termos funcionais é igual a Betânia e Sueli. Do mesmo modo, Ivana tem o quadrado semiótico parecido com o de Lucinda e Djanira, mas em termos expressivos são personagens bem diferentes. Cabe notar nas matriarcas a relação com os filhos homens e nas mantenedoras a relação com filhas adotivas mulheres. Como as matriarcas são caracterizadas pela superproteção e ciúmes, percebe-se em tal fato uma relação machista de cuidado maior com os homens. No caso das mulheres, a mantenedora é muito mais como uma guia, um alter ego em um percurso de transformação. A teoria de Greimas (GREIMAS 1973; BARROS, 2011; FIORIN, 2008), por sua vez, possibilitou a construção do quadrado semiótico e a identificação de uma forma narrativa. Esse nível fundamental relaciona-se com o movimento narrativo da personagem. É pertinente realçar que talvez outros quadrados semióticos pudessem ter sido feitos por outros pontos de vista, mas optamos por focar no todo da narrativa de cada personagem. Percebemos quadrados semióticos que se repetem, mas cujas expressões podem variar. Importante notar que os quadrados mais canônicos no melodrama, da justiça e da veracidade, não foram constantes no cronotopo trivial.

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Nossa hipótese de que há um modo específico de construir o discurso sobre a mulher popular na telenovela que pode ser observado em termos de estrutura e estética das cenas, em diálogo com a estética do excesso de Rancière, com o realismo grotesco e a carnavalização discutidos por Bakhtin (1999; 2010) foi verificada de forma mais contundente no cronotopo trivial. Cabe mencionar as transformações dos gêneros televisivos e da telenovela de acordo com o movimento tecnológico, dos formatos e mudanças culturais. Lentamente, novas formas de ver são incorporadas com naturalidade como parte da realidade. Se a figura da mocinha melodramática pobre, sem caracterização de classe, que ascende financeiramente e amorosamente, ainda está bastante presente, por um lado, vemos outras caracterizações femininas populares se fortalecerem, como as periguetes, mais estáveis e cotidianas. Estas já podem ser consideradas uma tipologia específica do contexto da telenovela brasileira. Ao longo dos estudos e das análises empreendidas, observamos aspectos que consideramos importantes para um aprofundamento futuro. As tipologias podem ser aprofundadas se aplicadas a um corpus composto por personagens de uma telenovela inteira para que seja possível realizar as relações entre as personagens e para aprofundar a discussão entre função narrativa e atributo, já que a função se dá justamente na relação entre personagens. Desse modo, seria possível desenvolver na telenovela as reflexões de Segolin (1978) sobre personagem-função e personagem estado. Também é digna de aprofundamento a construção espaço-temporal das personagens com foco na caracterização social. Por exemplo, discutir como a temporalidade cotidiana e o espaço dos bairros, das comunidades e das ruas estão presentes nas personagens pobres, enquanto as mulheres ricas são inseridas no ambiente privado, e localidades que remetem a temas “mais elevados” que se destacam dos assuntos triviais do dia a dia. Julgamos pertinente também um estudo futuro tendo como foco o ritmo (cortes de planos, sequências, espaços percorridos) de diferentes personagens em um mesmo capítulo no que diz respeito à caracterização de classe de personagens em diferentes cronotopos, pois foi possível observar superficialmente os contrastes entre personagens em um mesmo episódio, por exemplo a oposição entre Tóia e Adisabeba no primeiro capítulo de A Regra do Jogo e entre Carminha e Monalisa no primeiro capítulo de Avenida Brasil. Adisabeba e Monalisa apresentaram um ritmo condizente com o cronotopo trivial, enquanto Tóia e Carminha estavam mais voltadas à aventura. No caso da vilã Carminha,

306 era nítido o seu destaque do espaço do Divino, com a estética noir, como forma de marcar a sua maldade e gerar suspense em torno do que estaria por vir no cronotopo do encontro entre os dois mundos, no fim do capítulo, com o atropelamento de Genésio na Avenida Brasil. Por fim, são variados os elementos que podem ser aprofundados a partir desta tese. Esperamos ter aberto alguns caminhos e trazido contribuições e possibilidades a novas pesquisas e reflexões nos estudos sobre telenovela, mídia televisiva, personagens e representações da mulher popular.

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