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DE QUE PAÍS É ESSE À PRIMAVERA BRASILEIRA DE 2013: DO DIS- CURSO DA REVOLTA AO RISCO DEMOCRÁTICO

Pedro Ernesto Zambelli Loyola Salgado¹ Vítor Pêgo de Meneses² Antonio Luiz Nunes Salgado³

¹Docente das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. E-mail: [email protected]

²Docente das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. E-mail: [email protected] ³Discente das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. E-mail: [email protected]

RESUMO

O sentimento distópico presente nas canções Que País é Esse de Renato Russo, a qual questiona a estruturação política e social do Brasil e Aluga-se de , que propõe como melhor solução para a situação caótica vivida pelo país alugá-lo dialogam com a primavera brasileira de 2013, no sentido de que esse movimento também questionou a estrutura política do Bra- sil, clamando por sua reestruturação. Porém deve-se entender que essa reestruturação do texto constituinte signifi ca dizer que o poder constituinte originário será acionado. Circunstância que traz um risco considerável para o Estado democrático, visto que esse poder em sua aplicação não sofre nenhum tipo de limitação, o que signifi ca dizer que desde tratados internacionais a direitos humanos e direitos e garantias fundamentais conquistados arduamente pelo povo pode- rão ser desrespeitados pelo legislador constituinte originário. Tem um precedente de execução tão radical que o texto fabricado por ele, por mais que seja promulgado, terá a caracterização de outorgado, ideia essa que defende que o Poder Constituinte é ontológico e um produto da descontinuidade radical.

Palavras-Chave: Primavera brasileira. Constituição. Democracia. Que país é esse. Aluga-se.

INTRODUÇÃO

Entre os anos de 1970 e 1980 houve marcos na história do Brasil, tanto no âmbito polí- tico com a vigência do governo ditatorial dos militares, quanto no artístico. Ao analisar as obras distópicas “Que país é esse?” de Renato Russo e “Aluga-se” de Raul Seixas observa-se o sentimento de descrença com o país, em especial com a classe políti- 1794 ca e o ordenamento jurídico criado por ela, juntamente do pedido popular por uma renovação destes. Destaca-se da feitura das músicas a época, pois ambas foram criadas em plena ditadura militar, sendo a primeira em 1978 e a segunda em 1980. Momento histórico em que a repressão social e o controle das manifestações faziam parte do cotidiano nacional. Nesse ambiente hostil, artistas como Renato Russo e Raul Seixas utilizaram o meio musical para criticar, em certos casos de forma velada, e em outros de forma aberta, o governo e suas ações. Afi nal, com toda a repressão vivida pela população o sentimento democrático fora substituído pelo sentimento de se estar em um regime autocrático. A arte catapulta um senti- mento geral de renovação. A virada somente viria com a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 e a promulgação de uma nova Constituição Federal, através da Assembleia Nacional Constituinte em 1988. Passados vinte e cinco anos, surge no mundo um novo movimento. O conceito primave- ra quando se refere à política se relaciona com protestos, indagações e movimentos revolucio- nários a cerca de algo que pressentiam que aconteceria. No Brasil, a chamada “primavera brasi- leira” ocorreu em junho de 2013, onde jovens e adultos de diferentes ideologias reuniram-se em um sentimento de concordância para com a não aceitação do aumento das tarifas de transporte público. Tal evento, devido à magnitude alcançada se tornou uma referência para os cidadãos brasileiros que voltaram a acreditar no poder de manifestação como impulso para mudanças no cenário político, como visto nos anos de 1983 e 1992. As questões postas pela sociedade, as mudanças pedidas tanto nos anos de 1980 quanto em 2013 exigiram como resposta dos principais condutores dos poderes constituídos o repensar do Estado e seus papéis. O que, em certa forma, representou um risco para própria democracia. Em ambos os momentos, vozes foram erguidas exigindo a refundação do Estado Brasileiro, por uma nova Constituição. Se no primeiro momento estudado representava a consolidação da democracia nascente, no atual, o exercício do poder constituinte originário, ilimitado segundo a corrente positivista poderia gerar grave retrocesso aos direitos pretensamente defendidos pelos manifestantes. Este artigo se propôs a discutir o viés distópico presente nas músicas e nas manifesta- ções da primavera brasileira, bem como as reações ao último movimento e o risco democrático no crescimento dos discursos de rompimento constitucional.

MATERIAIS E MÉTODOS

Para construção deste artigo usou-se do método indutivo ao seccionar o pensamento divergente presente nas obras de arte da última fase da última ditadura brasileira, com as mani- festações populares de 2013, de modo a extrair um conceito geral desses períodos pela agudeza com que os representam. Partiu-se ainda para uma análise fenomenológica dos dois extratos – músicas e primavera – para extrair o que há de distópico em suas essências, e a partir disso permitir dizer o quanto podem servir de substrato para a justifi cação do rompimento constitu- cional. Usou-se para tanto, como método de abordagem o monográfi co, por meio de revisão de literatura. Primeiramente para formação de um cabedal teórico acerca da utopia-distopia. 1795 Em seguida foram pesquisados textos científi cos que buscaram analisar as obras artísticas em comento, assim como textos que trouxessem embasamento para o entendimento da primavera brasileira de 2013.

A DISTOPIA NAS OBRAS ARTÍSTICAS ALUGA-SE E QUE PAÍS É ESSE?

Nos anos de 1960 até fi ns de 1980 o cenário musical do Brasil fi cou marcado por apre- sentar à população grandes artistas como Renato Russo e Raul Seixas, que com suas obras fi - caram marcados como compositores que faziam poesia para ser cantada. Ambos tinham muitas diferenças, principalmente no que diz respeito ao estilo adotado por cada um dado suas vivên- cias e modos de produzir música, porém, no que tange a questão da descrença com o Brasil, em especial com a classe política, as obras Que País é esse de Renato Russo e Aluga-se de Raul Sei- xas alcançaram consonância. Não apenas pelo fato de desacreditarem com um futuro próspero para o país, mas também por se preocuparem, como aponta Devides (2014), em como entender o país no caos das mudanças política, econômica e cultural. No ano de 1980, Raul Seixas em seu disco Abra-te Sésamo lançou a música Aluga-se, a qual propunha de modo irônico alugar o Brasil a fi m de solucionar a crise fi nanceira e cultural que o país vivia, motivada por decisões tomadas de forma indevida por parte do governo. Fato que Devides (2014) aponta como causa de dependência crescente do Brasil para com países como os Estados Unidos, o que trouxe para a população, e em especial para Raul Seixas um sentimento amargurado com o país, principalmente depois de toda luta em prol da liberdade vivida nos anos de chumbo. Época em que, como destacam D’Araujo, Soares e Castro (1994) houve grande repressão por parte do governo militar, estruturada em órgãos da máquina estatal. A exemplo, Centros de Operação e Defesa Interna (CODI) e os Destacamentos de Operação Interna (DOI). O recrudescimento da ditadura gerou por consequência a perda de direitos da população foi considerável, pois o cidadão não podia manifestar seu pensamento, afi nal se o fi zesse e esse fosse contrário ao governo ele era duramente reprimido. Com um cenário desanimador Raul escreve a música aluga-se como uma forma de demonstrar sua descrença para com o Brasil, sugerindo desfazer-se dele, pois passadas duas décadas de lutas para se resgatar os sentimentos de liberdade e nacionalismo além dos direitos inerentes ao homem, criou-se uma amargura com os rumos tomados pela nação. Desde a depen- dência por outros países até as crises fi nanceira e cultural escancararam um cenário desolador para um país subdesenvolvido, endividado e com uma população que não possuía um sentimen- to de identifi cação nacional. Raul criou a inevitável solução para livrar a todos desses problemas elaborando a pro- paganda do aluguel, assim colocou o país como um lugar utópico, perfeito, que tinha, segundo o músico, do Atlântico e vista pro mar até a fl oresta Amazônica no seu quintal. Assim a pro- paganda apresentou todos os atrativos, demonstrando ser o país a terra maravilhosa, que só trará benefícios para quem a alugar, mostrando assim estar determinado em chamar a atenção dos credores e consequentemente sanar as os problemas e dívidas, restabelecendo a paz para o povo. 1796 Mas o sentimento que realmente predomina na música é o de distopia quanto ao Brasil, pois interpretando a distopia como o simples contrário da utopia, ou seja, como o lugar ruim, Raul deixa explícita a crítica à dependência fi nanceira e cultural. Trechos como “o dólar deles paga nosso mingau e é tudo free” evidenciam quem seria o credor, sua infl uência sob o país, e a real condição brasileira de subdesenvolvimento e submissão, como aponta Devides (2014). O refrão evidencia duas coisas que entram em consonância com esse sentimento distó- pico para com o Brasil, primeiro ao dizer de modo irônico que o povo não precisará pagar nada, ou seja, dar as terras quitaria a dívida. O outro ponto está na intertextualização apresentada por Devides (2014) o trecho “tá na hora, agora é hora” com o poema Nevoeiro de Fernando Pes- soa, na qual ele demonstra a dicotomia de sentimentos, em que o poeta português clama pelo sentimento de nacionalismo dos compatriotas, já Raul apresenta o sentimento de ter perdido o pertencimento da terra, clamando aos compatriotas que a abandonem. A segunda obra avaliada traz artista que compartilhou desse sentimento de descrença com a nação, Renato Russo líder e vocalista da banda Legião Urbana. A música “Que País é esse?” escrita em 1978 e lançada apenas nove anos depois no álbum com o mesmo nome, apresentou o Brasil de uma maneira distópica, apontando seus defeitos de forma escancarada. Como aponta Devides (2014) em seu estudo, Renato mostra o país como um lugar desigual, injusto e que não respeita suas bases democráticas, exatamente com a ideia de mostrar o país como um lugar ruim, uma distopia, e com o perdão da expressão, como um pesadelo real para a população. A contestação com a situação vivida está presente do início ao fi m da música, que come- ça já com uma dura comparação do Senado Federal, importante órgão legislativo do Brasil, com favelas colocando a sujeira existente nelas. Como aponta Devides (2014) a sujeira presente em ambos locais seria não aquela física, mas a que representa a constante tentativa de uma minoria se enriquecer em detrimento da maioria, que para isso promove armações e tramóias. Tem sua continuação na alegação de que existe o desrespeito às leis, base necessária para o convívio harmonioso em sociedade, porém apresenta de forma sarcástica a crença de todos no futuro promissor. Há certo utopismo por parte do cantor ao mostrar as belas paisagens geográfi cas do país como os rios Amazonas e Araguaia, porém a distopia intrínseca na música continua com mos- trando o lado podre da sociedade como a violência e a exploração do trabalhador. A violência no país até os anos de 1988 vitimou mais de cento e sessenta mil brasileiros, como aponta Souza (1998). Já a exploração do trabalhador fi ca evidente quando Renato afi rma que ele só descansa em seu leito de morte, ou seja, ele só teria paz após a morte, após passar por condições subu- manas de trabalho. Segundo Devides (2014) essa exploração garante a benesse da classe dona dos meios de produção, que descansaria com a morte desse trabalhador, pois estaria se livrando de um encargo. Um ponto importante da canção de Renato que estabelece uma ligação com a música de Raul Seixas é a demonstração de que o Brasil é um país subdesenvolvido, Raul demonstra esse fato ao colocar a submissão do país para com outros estrangeiros, e Renato diz de forma sarcás- tica que se muito o país é de terceiro mundo. Rediscute assim a visão ufanista de país defendida 1797 na ditadura, e ainda incorporada por parte da população, fato discutido por Santagada (1990) para quem a década de 1980, em termos econômicos e de crescimento, fora perdida. Outro ponto que cabe destaque e se interliga com essa questão econômica é a intensa exploração dos recursos naturais e da população indígena, realidade exposta quando Renato declara que o país só irá enriquecer quando leiloar os indígenas. Isto é, só há enriquecimento se extrair até o último recurso disponível e vender o último indígena existente, para dessa forma se alcançar os patamares tão sonhados e desejados por todos. De Raul ainda se pode extrair a dependência, ressaltando que a nação é piada no mundo, exatamente por ser submissa de outras nações, em especial dos Estados Unidos. Essa submissão não acontece apenas no campo fi nanceiro, pois como aponta Devides (2014) Renato demonstra uma total falta de consideração dos representantes para com os seus governados, que pretendem vender a cultura do país, tida como única. Circunstância que tornaria a população aculturada e totalmente dependente da estrangeira, exatamente o que Raul critica e aponta como uma reali- dade. Diante de tudo que foi exposto cabe fazer um anúncio na parte dos classifi cados dos jornais, com uma interpretação em cima das músicas de Raul Seixas e Renato Russo e do es- tudo de Devides (2014), que fi caria mais ou menos assim: Aluga-se o Brasil. Lugar de belas paisagens, agraciado com rios volumosos uma fl oresta que é o “pulmão do mundo” e banhado pelo Atlântico. Não precisa pagar nada, estamos completamente dispostos a dá-lo, pois não sen- timos nos pertencendo mais, então não pergunte que país é esse, simplesmente o leve. Só mais um aviso, não temos uma cultura própria pois a que existia defi nha por conta das infl uências externas e das vendas constantes de elementos importantes como as almas dos nossos índios. Abraços!

A PRIMAVERA BRASILEIRA DE 2013 E A DISTOPIA APOLÍTICA

Junho de 2013 marcou a história do Brasil com as manifestações ocorridas nas ruas das cidades brasileiras, motivadas inicialmente pelo aumento de tarifas de ônibus e metrô, e, de forma posterior opondo-se à classe política e à força policial. Essas manifestações fi caram conhecidas pela mídia internacional por Primavera Brasileira de 2013, e tomaram proporções vistas apenas em movimentos como as Diretas Já de 1983 e os pedidos pelo impeachment do Presidente Fernando Collor com o movimento dos Caras Pintadas de 1992. Como destaca Santos (2013), a primavera foi marcada pela mobilização coletiva di- fundida através das redes sociais, e se tornou um movimento político de grandes proporções. Muito devido à inabilidade das autoridades políticas, que não atenderam os clamores populares de forma rápida, e forças policiais, as quais agiram de forma violenta recriminando os mani- festantes. Embora as manifestações tenham agido politicamente, devido à falta de organização vertical, de estrutura organizacional, representava multifacetadas vozes. Desde os que busca- vam a implementação dos direitos sociais conquistados com a Constituição de 1988, como o transporte público de qualidade a baixo custo, quanto os que clamavam pela reestruturação do Estado. 1798 As mudanças no conjunto social provocadas pela insatisfação fi caram visíveis, o que, para Santos (2013), escancarou o lado radical de parte da população, com o surgimento de bandeiras com dizeres como “Ditadura já!” ou “O povo unido não precisa de partido”. Esse radicalismo infl uenciou uma aproximação com grupos de cunho facista, neonazista e anarquista como os conhecidos Black Blocs, fato que enfraqueceu o movimento, o fazendo perder apoios importantes. Esse grupo, como afi rma Monteiro (2013) não participa das manifestações para protestar, mas para promover uma intervenção contra os mecanismos de opressão, causando danos as instituições opressivas. Ou seja, eles por serem contra instituições capitalistas lhes causam prejuízo destruindo agências bancárias como símbolos. Ao se tratar dos questionamentos encima da classe política deve-se dar destaque às bandeiras levantadas pelos manifestantes como a redução tarifária, as melhorias cabíveis nos sistemas, educacional e de saúde, e principalmente a que pedia uma nova Constituição. Pedidos como esse foram feitos exatamente porque a população reavivou a descrença e revolta para com a classe política e o ordenamento jurídico vigente, presentes nos anos de 1970 a 1980 e bem representados nas obras distópicas de Raul Seixas e Renato Russo. Como aponta Santos (2013) a população demonstrou estar inconformada com o funcionamento das institui- ções políticas, e, mudar o sistema jurídico através da mudança da Constituição.

A QUESTÃO CONSTITUCIONAL E O RISCO DEMOCRÁTICO

O momento foi marcado pelo fl erte com a ideia de instauração de regime de exceção, assim como surgiram outras alternativas para o apontado desgaste da democracia implantada pela Carta de 1988. Diversas vozes se ergueram apontando caminhos para atender os anseios da primavera de 2013. O governo buscou uma saída de democracia direta, ao propor ao Congresso Nacional um “[…]plebiscito da reforma política prevê a consulta pública sobre cinco temas: fi nancia- mento de campanhas, sistema eleitoral, suplência de senadores, coligações partidárias e voto secreto.” (CAMARA, 2013). A proposta foi entregue aos presidentes do Senado e da Câmara pelo então vice e atual presidente. Ao fi m essa proposta não obteve amparo político e legal. Não foram as únicas alternativas postas. A Associação Nacional dos Desembargadores (ANDES) sugere a formação de uma:

Assembleia Nacional Constituinte para repactuar o Estado Brasileiro em todos os seus elementos: povo, território, poderes, instituições essenciais, os direitos e garan- tias fundamentais do cidadão, o sistema tributário, fi nanceiro, previdenciário e outras matérias que tenham dignidade constitucional (ANDES, 2018).

Esse pedido polêmico de se fazer uma nova Constituição também encontra fundamenta- ção no manifesto à Nação, de autoria dos juristas, Carvalhosa, Bierrenbach e Dias (2017). Esse manifesto aponta o sistema político-constitucional como obsoleto e desigual, sendo necessária uma reforma estrutural, política e administrativa. A reestruturação normativa do Estado aliada aos investimentos nas áreas da saúde, educação e moradia seria o rumo a ser tomado para que assim o país se tornasse justo e democrático. Exatamente o que não acontece atualmente, pois 1799 se tem a existência e forte atuação do ativismo judicial pelo fato de o poder legislativo não con- seguir garantir direitos inerentes aos indivíduos. O sentimento de descrença com o país presente nas obras de Raul Seixas e Renato Russo infl uenciou toda uma geração, a qual clamou nas ruas para que houvesse uma renovação da classe política, e, por consequência do ordenamento jurídico. Esse mesmo sentimento foi revivido em 2013, com a primavera brasileira, momento no qual a população novamente cla- mou por uma reestruturação dos sistemas político e normativo do país. Em ambos os momentos históricos as justifi cativas foram e são a falta de representatividade popular da classe política e um sistema jurídico inadequado, que não atende as reais necessidades da população. Os pedidos por uma nova Constituição atendidos em 1988, voltaram a ser pauta de dis- cussões políticas e jurídicas a partir de 2013 a partir das manifestações sob comento. Juristas como Carvalhosa, Bierrenbach e Dias (2017) pediram uma nova Constituição, alegando uma inviabilidade do vigente sistema político-constitucional, colocando-o como obsoleto. O presi- dente da ANDES (2018) em carta aberta clama por uma nova constituinte originária, afi rmando que o Brasil necessita urgentemente de uma reestruturação do Estado e seus poderes e institui- ções. Porém, para que esse desejo renovador se realize será necessário convocar-se Assem- bleia Nacional Constituinte, dotada de poder constituinte originário. Fato que pode trazer risco para a democracia como orientação do Estado e para os direitos fundamentais dos cidadãos. Tal poder detém características inatas a si, sendo eles, inicial, político, autônomo, incondicio- nado e permanente. Para a corrente positivista o poder constituinte originário ainda agrega as características de ser ilimitado, irrestrito ou soberano, o que talvez represente um risco para a democracia e para os direitos (CARVALHO, 2015). Implica no poder irrestrito que o constituinte originário terá no momento de feitura da constituição, o que signifi ca dizer que ele não tem a obrigação de respeitar nem direitos humanos e fundamentais inerentes ao homem, nem acordos e tratados internacionais. Conse- quentemente ele é livre para instituir normas contrárias a direitos, bem como extingui-los do ordenamento jurídico, além de ter a autonomia para desrespeitar um tratado internacional e suas regras e direitos instituídos. Dessa forma o constituinte originário detendo todo o poder de de- cisão criará no povo o sentimento de imposição da constituição criada, dando-a a característica de outorgada. Seguindo o pensamento de Temer (2014) de que uma nova Constituição signifi ca um novo Estado, ao se ter uma constituição que tem a característica de ser imposta a população e que não respeita seus direitos. Por conseguinte o Estado criado terá muito mais as característi- cas de autocrático do que democrático, reavivando na população dois momentos de ditadura, um com Getúlio Vargas em 1937 e o outro com o Governo Militar, iniciado no ano de 1964. Destaca-se que em ambos os s as constituições foram outorgadas à população e direitos, como o da livre expressão, foram suprimidos e recriminados. Dessa maneira o pensamento a ser empregado no momento de formulação da constitui- ção deve ser o que entra em consonância com o que a corrente jusnaturalista defende. Sáchica (1978) afi rma não existirem poderes absolutos, pois eles têm suas limitações em seus meios e circunstâncias em que atuam. Já para Ferreira Filho (1974) o poder constituinte originário 1800 sofre limitações, de fato, no que tange a necessidade do legislador não poder se chocar com as concepções arraigadas na sociedade, pois caso ocorra ele perderá apoio desta. E limitações de direito, ao tratar do respeito que o constituinte deve ter pelo direito internacional e suas regras fundamentais. Miranda (2015) também aponta limites importantes, estabelecendo-os em três categorias: - transcendentes, no que tange ao respeito pelo direito natural, dignidade da pessoa humana e valores éticos; - imanentes determinam a manutenção da confi guração do Estado e sua soberania e; - heterônomos que determinam respeito a prescrições do direito internacional. Não se vislumbra a possibilidade de ausência de limites ao constituinte originário. O novo Estado a ser concebido a partir da nova carta não surge apenas a partir da sua simples instauração para a sociedade, mas se constrói sob as bases sociais preexistentes. Um Estado para ser de fato um Estado Democrático de Direito deve colocar como prioridade o respeito e a prevalência dos direitos e garantias inerentes ao homem, respeitando também os acordos e tratados internacionais, a fi m de promover uma continuidade da coexistência pacífi ca com os outros Estados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As gerações de brasileiros em diferentes momentos clamaram por mudanças e decla- raram sua crença, ou sua descrença com o presente ou o futuro do país. A esses movimentos culturais ou sociais, sobrevieram reações que, em maior escala poderiam alterar os rumos de construção política do país. A partir do alicerce criado com a desesperança e a descrença nas soluções democráticas, em especial na crise política das manifestações de 2013, surgiram propostas de solução de toda sorte. Desde aprofundamento dos instrumentos democráticos presentes na Constituição de 1988 a rompimentos de maior gravame. Há quem defenda a distopia norte-americana à brasileira, em regime de exceção que estabeleça uma “comunidade política militarizada pós-democrática” (BENHABIB, 2012).

REFERÊNCIAS

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