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“Barrados no baile” da MPB

LUÃ FERREIRA LEAL *

O desafio de incluir o ensino de música popular no sistema de ensino pode ser avaliado a partir das múltiplas formas de avaliação a respeito de quais compositores e de quais intérpretes devem ser inseridos no rol de personagens dignos de constar nas páginas da história escolar. A partir das abordagens sobre escrita da história propostas por Michel de Certeau, este trabalho analisará o material didático desenvolvido pelo Instituto Cultural Cravo Albin em 2010 e distribuído aos alunos de escolas do sistema estadual de ensino do . Na busca de um “sentido histórico” de uma série de acontecimentos tidos como fundamentais para a formação da MPB, o “Kit MPB nas Escolas” articula fatos e associa personagens da história social da cultura com transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas no Brasil, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Para esse esforço analítico, devemos realizar uma leitura que trate o material didático como “uma combinação de significações articuladas e apresentadas em termos de fatos” (CERTEAU, 1982). O processo de significação atribui sentido à narrativa ao relacionar fatos selecionados como “sintomas de uma época” que organizam o discurso. Ricardo Cravo Albin, radialista responsável pelo programa “Jazz: música do século XX” da Rádio Roquette Pinto entre 1963 e 1965, e diretor do Clube de Jazz e Bossa, círculo que promovia reuniões de jazzófilos cariocas, foi convidado a assumir o Museu da Imagem e do Som em 1965. Criada nesse ano pelo governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda, a instituição foi dirigida por Cravo Albin do ano de sua fundação até 1971. Por vias distintas às de José Ramos Tinhorão (jornalista e crítico especializado em música popular) e de Sérgio Cabral (jornalista e produtor musical), embora estivesse próximo da atividade de crítico musical, Cravo Albin acumulou prestígio ao participar de diferentes instâncias de legitimação da produção artística: diretor geral da Embrafilme e presidente do Instituto Nacional de Cinema, entre 1970 e 1971, representante da Associação Brasileira de Rádio e Televisão no Conselho Superior de Censura, em 1980, e Presidente do Conselho Empresarial de Cultura da Associação Comercial do Rio de Janeiro, desde 2001. O Conselho de Música Popular do Museu da Imagem e do Som, instituído em 1966 tinha o objetivo de ser uma comissão para defender permanentemente a música popular

*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Bacharel em Ciências Sociais pelo CPDOC/FGV, com ênfase em Sociedade e Cultura. Agência financiadora: CAPES.

1 brasileira. O órgão pretendia, amparado no grau de legitimidade de seus membros dentro do campo de pesquisadores da música popular urbana, consolidar e universalizar determinadas formas de se valorizar a “autêntica” música brasileira (FERNANDES, 2010). Criado por Ricardo Cravo Albin com o apoio de dois pesquisadores de música popular, Henrique Foreis (o Almirante) e Ary Vasconcelos, o Conselho era composto por 40 membros como os jornalistas Jota Efegê, José Ramos Tinhorão, Lúcio Rangel, Nestor de Holanda, Sérgio Cabral, Sérgio Porto, Edigar de Alencar, Eneida de Moraes. Também havia espaço no Conselho para artistas e produtores musicais, como Jacob Bandolim, Paulo Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho, e folcloristas, como Mariza Lira, Renato de Almeida e Édison Carneiro. O tom apologético e impressionista, reforçado pela noção de “testemunha ocular”, é um elemento que caracteriza tanto a geração que produziu na primeira metade do século XX como a que começou a elaborar seus apontamentos sobre a música popular a partir da década de 1960. É o caso dos textos de Tinhorão, Cabral e Cravo Albin, que compuseram narrativas de longa duração sobre a música popular brasileira a partir de registros memorialísticos e que se legitimaram como “testemunhas oculares” da constituição e das transformações do campo da “música popular brasileira”. Ricardo Cravo Albin foi articulista dos jornais “O Globo” e “O Dia”, assim como auxiliou nas pesquisas para especiais sobre música na Rede Globo no último quartel do século XX. Foi indicado para representar a Associação Brasileira de Rádio e Televisão no Conselho Superior de Censura em 1979. No ano seguinte, ocupou uma cadeira nesse organismo subordinado à Divisão de Censura de Diversões Públicas, que por sua vez atuava no âmbito institucional do Ministério da Justiça. Em seu livro de memórias sobre seu posicionamento dentro de um órgão voltado para censurar artistas, intitulado “Driblando a Censura – De Como o Cutelo Vil Incidiu na Cultura”, Cravo Albin se apresenta como personagem importante na defesa dos interesses da classe artística, principalmente os músicos, que representariam a “alma do povo” através de suas músicas. Na condição de especialista, autoridade reconhecida e legitimada, participou de diversos eventos de música como comentarista ou jurado, inclusive no carnaval carioca. Fundado em 2001, o Instituto Cultural Cravo Albin é resultado do esforço para criar um espaço de preservação da memória da música popular brasileira. Na condição de “guardião da memória”, Cravo Albin intervém ao lado dos demais pesquisadores vinculados

2 ao instituto como formulador da história da MPB. Além do Dicionário Cravo Albin da MPB e do “MPB nas Escolas”, são mantidos outros projetos como a Revista Carioquice, a organização de catálogos temáticos selecionados a partir do acervo documental e a realização de eventos culturais na sede do instituto. Localizado no bairro carioca da Urca, o Instituto Cultural Cravo Albin também é responsável por atividades de preservação de acervos de colecionadores particulares, promovendo assim a ampliação de sua função de lugar de guarda da memória. O Instituto Cravo Albin funciona como um espaço de guarda de bens simbólicos que amalgamaram a memória coletiva sobre a musicalidade brasileira. Inicialmente formada apenas com as doações de Cravo Albin, essa instituição conta com documentos textuais, recortes de jornais e revistas, roteiros de espetáculos musicais, vídeos com depoimentos, programas musicais, além do arquivo fonográfico, com discos, fitas sonoras em rolo, fitas cassetes e CDs. Também apresenta em seu acervo esculturas, quadros, medalhas, troféus e mobiliário de personalidades da música popular brasileira. O Dicionário Cravo Albin da MPB teve sua edição impressa publicada em 2006 pela Editora Paracatu, mas os usuários também podem acompanhar a atualização permanente da versão online no site do instituto. Esse empreendimento intelectual consolida um processo de enquadramento da memória coletiva a respeito do resgate das canções e dos personagens transformados em protagonistas na história da canção popular brasileira. Historiador não acadêmico, Ricardo Cravo Albin realiza um investimento na memória e busca manter a unidade em torno de uma narrativa geral que permite o alinhamento de diferentes períodos históricos de produção artística dentro de um mesmo fio condutor: a MPB como marca da identidade nacional. Em 2007 foi lançado o projeto para aproximação do ICCA com as escolas, o qual recebeu a denominação “A escola visita a MPB: crianças e adolescentes na história da música popular”. Lançado em 2010, o material passou por alterações como a inserção de seis DVDs com curtas de 15 a 20 minutos e seis livretos com os títulos: “Cronologia da MPB”, “A sedução do choro”, “O samba dos bambas”, “A diversidade do regional”, “Os 50 anos da bossa nova” e “Febre dos festivais: debate sobre MPB”. Nos últimos anos foram distribuídas outras edições do Kit “MPB nas Escolas”. Cada “segmento estratégico” ganhou um livreto que serve como texto básico para o planejamento das aulas: “A formação da MPB”, definido no resumo como uma “viagem à MPB”, “O choro”, tido como o “gênero pioneiro da MPB”,

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“O samba”, síntese do “jeito brasileiro recriar tudo o que recebemos da cultura estrangeira”, “A bossa nova” dos “tempos de reformulação da MPB”, “Os festivais” do tempo de “reflexão sobre a nossa nacionalidade” e “A música sertaneja” para “onde muitos brasis sempre convergem”. A “invenção da tradição” é indissociável da escrita da história, resulta na consagração escorada na perenidade do que foi considerado clássico. Os indicadores de legitimação – e de classificação da qualidade – presentes no material didático se aproximam aos definidos na produção intelectual de Cravo Albin. O CD com 15 faixas do material didático desenha uma seta com curso linear que agrega diferentes estilos musicais e aproxima intérpretes de diferentes contextos históricos para explicar o processo de formação da MPB. Dessa maneira, o Kit “MPB nas escolas” pode ser analisado como mais um vetor de constituição do panteão de artistas, canções e “gêneros” musicais. Para compreender como é realizada a classificação de gêneros musicais e a construção da narrativa historiográfica dessa periodização, será realizada a análise desse material didático que promove a transposição dessa linha geral da evolução dos gêneros musicais para o ambiente escolar. Conforme indicado nas diretrizes do projeto, o Instituto Cultural Cravo Albin busca com esse material pedagógico “inserir as definições históricas da MPB” nas escolas. O conteúdo do material didático é divido em seis seções temáticas: “A Formação da MPB”, “O Choro”, “O Samba”, “A Bossa Nova”, “Os Festivais” e a “A Música Sertaneja”. Em 2010, o Kit “MPB nas escolas” reunia seis cartazes, um livro intitulado “A Formação da MPB”, o primeiro de uma série lançada para o projeto “MPB nas escolas”, e um CD. Sob coordenação pedagógica de Frederico Augusto Liberalli de Goés e Flora de Paoli Faria, professores doutores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o projeto conta com a coordenação geral de Ricardo Cravo Albin e em 2011, quando obtive acesso a um exemplar do material, recebia apoio da Faperj, da Lei de Incentivo à Cultura e das empresas Duty Free Dufry e Piraquê. De acordo com o sistema do Ministério da Cultura sobre proponentes e patrocinadores de projetos culturais, o Kit “MPB nas Escolas” captou R$ 203.000,00. O tabelião Domingo Henrique Leal Braune disponibilizou R$88.000,00 e as empresas privadas Duty Free Dufry e Indústria de Produtos Piraquê S.A. doaram, respectivamente, R$85.000,00 e R$30.000,00. Nos livros de Cravo Albin, no kit “MPB nas Escolas” e nas análises de Tinhorão há considerações sobre as origens em narrativas lineares na abordagem dos processos formativos

4 da música popular. Com os debates sobre a disciplina “História da Música Popular Brasileira” no currículo escolar, ressurge o debate sobre a linearidade da narrativa historiográfica. Na proposta apresentada por Meller (2013), por exemplo, há uma narrativa linear e a seleção de protagonistas privilegia os “estruturadores” da tradição: “Modinha, lundu, Domingos Caldas Barbosa”, “Choro, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth”, “Surgimento e consolidação do samba”, “Era do Rádio”, “Bossa Nova”, “Jovem Guarda, Festivais, Tropicália”, “Clube da Esquina”, tido como “último grande movimento da MPB”. Esses blocos são sucedidos por estudos a respeito dos compositores e de Hollanda. Qual a bibliografia básica dessa proposta? Um livro de Ricardo Cravo Albin, “O livro de ouro da MPB”, lançado em 2003 pela Ediouro, e outro de Jairo Severiano, lançado pela Editora 34 em 2008, intitulado “Uma história da Música Popular Brasileira”. Ao eleger Caldas Barbosa, poeta “transformado em trovador de salões no reinado de D. Maria I” (TINHORÃO, 2004: 11), como o primeiro personagem, Meller (2013) se aproxima das considerações de Tinhorão no livro “Domingos Caldas Barbosa. O poeta da viola, da modinha e do lundu (1740-1800)”. Na análise de Tinhorão, os versos de lírica simples de Caldas Barbosa encantavam “as elites dos salões pelo seu sabor exótico, casavam- se de maneira perfeita com a tradição nunca interrompida entre o povo miúdo de Portugal, da oralidade cantante das quadras em redondilhas” (Ibidem: 99). Tinhorão adota nesse livro a mesma preocupação com trocas culturais intercontinentais presente em outros títulos publicados desde o final da década de 1980: “Negros em Portugal – uma presença silenciosa” (1988), “Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos: origens” (1988), “Fado. Dança do Brasil, Cantar de Lisboa” (1992), As Origens da Canção Urbana (1997), “Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens.” (1998), “As Festas no Brasil Colonial” (1999), “O Rasga. Uma dança negro-portuguesa.” (2006) e “Festa de negro em devoção de branco” (2008).

“Festa da Música Tupiniquim”

Menezes Bastos (2009) apresenta a ambiguidade do substantivo MPB, cujo uso tornou-se mais recorrente após os festivais competitivos da década de 1960 e sua adoção por agentes do mercado fonográfico que atuavam no Brasil. O contexto histórico cada vez mais é observado pelas pesquisas que abordam e problematizam a utilização da categoria Música

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Popular Brasileira. Como exemplo, pode ser citado o artigo de Neder (2012) que trata a MPB como espaço em disputa por diferentes correntes político-ideológicas e terreno no qual foi permitido na explosiva década de 1960 ampliar os debates sobre questões sociais, referentes ao discurso da negritude com , ao papel da mulher com Nara Leão e à chamada “música de protesto” dos festivais. A música popular brasileira se tornou uma sigla capaz de sintetizar a produção avaliada como a boa musicalidade nacional. Os programas de televisão como “Fino da Bossa”, com Elis Regina e em 1965, “Disparada”, apresentado por Geraldo Vandré em 1967, ambos na TV Record, e “Divino Maravilhoso”, na TV Tupi de São Paulo, apresentado por Caetano Veloso e , aliados ao período de consolidação dos festivais como espaços privilegiados para o surgimento de novos compositores- intérpretes, serviram para “disseminação, cultivo e celebração” da MPB como gênero específico (MENEZES BASTOS, 2009: 5). O livro “A formação da MPB” conta com os quatro versos iniciais de “Canta Brasil”, composta por David Nasser e Alcir Pires Vermelho em 1941, como epígrafe. Dividido em seis capítulos, o itinerário começa com cateretê e lundu e prossegue até o século XXI quando a “mulatice manda e impera!”. Na seção “Olha só!” são destacados aspectos importantes do período histórico que está sendo tratado em determinado capítulo. Uma das caixas de texto da seção “Olha só!” foi intitulada “A Música Popular Brasileira começa a existir” e mostra como a música “só vira popular quando se torna manifestação espontânea”, deixando assim de ser um acessório para outras práticas sociais, como a catequese dos índios. Uma das principais características do discurso historiográfico é, ao definir um sentido da narrativa, atribuir ao relato dos fatos o efeito do real. Na condição de trabalho legível sobre fatos do passado, o material didático de história serve como ferramenta de transformação do passado, daquilo que “aconteceu”, em narrativa inteligível (CERTEAU, 1982). Na “Apresentação” do livro “A Formação da MPB”, o texto apresenta as possibilidades de escolher um bom show para assistir no Rio de Janeiro da segunda década do século XXI: Maria Rita, Sandra de Sá, Ratos do Porão, Gangrena Maldita, Maria Creusa, entre outros artistas que figuram com destaque na cena musical brasileira contemporânea. Há também um mapeamento dos espaços de entretenimento, onde são situados o Circo Voador, a Estudantina, o Teatro Rival, bares e casas com programação de música ao vivo na Lapa. Como aponta o texto inicial, ao folhearmos as páginas do livro “A Formação da MPB” assistiremos “as

6 músicas mais importantes, os cantores, músicos e compositores mais geniais. Os grandes criadores. As inovações. Os episódios decisivos.”. Em 92 páginas, o livro “A Formação da MPB” apresenta nos seis capítulos uma narrativa linear acerca da história da música popular brasileira, destacando, de acordo com a apresentação, “do mais atual até as raízes”. Os capítulos foram intitulados “No início era o cateretê, a modinha e o lundu...”, “Mulatos e mestiços na Corte a Polca, o Choro, o Maxixe... e as primeiras estrelas da MPB”, “Eu sou o rei do terreiro – o samba”, “No xamego do baião seus ancestrais e descendentes: a música regional”, “A renovação da MPB” e “Dos festivais até a MPB do século XXI – a diversidade manda bem na MPB”. O primeiro capítulo conta com as seguintes seções: “O cateretê: os cantos e as danças indígenas”, “Modinha: Brasileira, pois!”, “Lundu: é o Batuque!”. O capítulo sobre “as primeiras estrelas da MPB”: “Mulatices”, “A célebre polca”, “O Choro – a chorada e os chorões” e “Maxixe: carioca da gema”. O terceiro capítulo, dedicado ao samba: “Sem papo furado”, “Na ladeira da Pedra do Sal”, “A Era do Rádio” e “Do esquecimento à redescoberta”. A “revitalização do Samba”, de acordo com a narrativa empreendida, está relacionada à luta de artistas de esquerda para mostrar, em um tom nacionalista contra o iê-iê-iê, a necessidade de retornar – inclusive com a chancela da classe média, cujo gosto havia sido alterado em tempos de novidades como a Bossa Nova – ao que “era autenticamente nosso”. O quarto capítulo, intitulado “No xamego do baião seus ancestrais e descendentes: a música regional”, apresenta apenas uma seção: “Olha o Forró”, cuja epígrafe é formada com os versos de “Luar do Sertão”, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, composta em 1910. O quinto capítulo abarca as seções “A Bossa Nova e a Jovem Guarda”, “O Samba-Canção”, “A Bossa Nova: Isso é Muito Natural”, “A Turma do Rock Arromba a Festa”, “Nas Tardes de Domingo”, “As Tribos Roqueiras” e “Os Fora da Ordem” e o sexto, “Os festivais”, “O Tropicalismo”, “Os Anos 90 em Diante” e “MPB no Século XXI”. Os seis cartazes, assim como os seis capítulos do livro, foram divididos de acordo com as seções temáticas. Cada cartaz apresenta a dimensão de 65 centímetros de comprimento por 45 centímetros de largura. No cartaz intitulado “A Formação da MPB”, é mencionada uma ancestralidade da MPB, a qual teria sido forjada por contribuições dos índios, com a catira, dos brancos com a modinha, a polca e a valsa, e dos negros com o lundu e a batucada. Além do mito de origem, fortemente influenciado nas estruturas narrativas baseadas na formação do Brasil a partir do contato das “três raças”, esse cartaz resume o plano geral da obra, situando

7 as principais transformações no gosto musical dos brasileiros, inclusive com a sucessão dos gêneros musicais. É destacada a criação do samba como fator que promove a MPB como espelho do Rio de Janeiro e que eleva a herança negra a um patamar de notoriedade no plano cultural. O CD, produzido por PMCD Produções, Raul de Araujo Marçal e Marcelo Machado, contém 15 faixas na seguinte ordem de apresentação: “Pelo Telefone”, de e Mauro de Almeira, na interpretação de ; “Brejeira”, de Ernesto Nazareth, Evandro e seu regional, na interpretação de Jacob Bandolim; “Com que roupa?”, de , na interpretação de Nelson Gonçalves; “Aquarela do Brasil”, de , com ; “Festa da Música Tupiniquim”, composição e interpretação de Gabriel o Pensador; “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, nas vozes de Ângela Maria e Cauby Peixoto; “Brasileirinho”, de Waldir de Azevedo, na interpretação de Pepeu Gomes; “As Rosas não falam”, de , com a interpretação de ; “Foi um rio que passou em minha vida”, composição e interpretação de ; “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira, com ; “Sebastiana”, de Rosil Cavalcanti e Jackson do Pandeiro, com Lenine; “O Barquinho”, de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, com Maysa; ”Eu e a brisa”, composição e interpretação de ; “Foi Deus quem fez você”, de Luís Ramalho, na voz de Amelinha; “Planeta Água”, composição e interpretação de Guilherme Arantes. No encarte, não há referência aos respectivos anos de composição das obras, tampouco quando ocorreram as gravações originais ou as versões inseridas no material didático. O material didático, ou seja, o CD, o livro e os cartazes são permeados pelas mesmas representações gráficas. A capa do CD justapõe fragmentos de imagens de um pandeiro, um violão, uma agulha de vitrola, cordas de guitarra, uma sanfona; nas páginas do encarte há referências a partituras e a notações musicais (fusa, semínima, mínima e colcheia) além dos instrumentos representados na capa. A quinta faixa do CD do material didático, composição e interpretação do rapper carioca Gabriel o Pensador, funciona como síntese da narrativa da história da música popular empreendida no material didático. A longa letra narra a chegada de convidados a uma festa que acontece na rua Antônio Carlos Jobim. Os participantes da festa são, em sua maioria, os principais artistas classificados como intérpretes, compositores ou compositores-intérpretes da MPB. Além de Tom Jobim, mencionado no nome da rua onde ocorre a celebração festiva,

8 podemos enumerar Gilberto Gil, Caetano [Veloso], Djavan, Pepeu [Gomes], Elba [Ramalho], Moraes [Moreira], Alceu Valença, com eles o eu lírico afirma: “penetrei com a galera do Nordeste”. Além da “galera do Nordeste”, são citados os artistas ligados ao que se convencionou chamar de soul music , os “novos baianos” e os artistas de rock e/ou de pop: Baby [Consuelo ou do Brasil], Sandra de Sá – com um sample, é recuperado o sucesso “Bye Bye Tristeza”, lançado pela cantora no álbum Sandra de Sá (1985), Ed Motta, Tiririca, Ney [Matogrosso], Paulinho Moska, Cidade Negra, Skank, Tim Maia e Jorge Benjor, com citação do verso “Pra animar a festa” – originalmente da canção “Banda do Zé Pretinho”, incluída no álbum homônimo de 1978. A menção à polêmica com Tiririca com seu álbum de 1996, que em menos de um mês de lançamento vendeu 100 mil cópias e logo depois alcançou a marca de 300 mil cópias do CD Tiririca , incide na organização da letra e na disposição dos nomes elencados. Após listar uma série de artistas negros, o verso “Olha o Tiririca com uma negra cheirosa” remete à liminar de julho de 1996 que obrigou, devido à representação do Centro de Articulação das Populações Marginalizadas, instituição do Rio de Janeiro, o recolhimento do CD em todo o território nacional por causa da faixa “Veja os cabelos dela”: “Eu mandei ela se levar/Mas ela teimou e não quis me escutar/Essa nega fede. Fede de lascar”. A enumeração continua com Lobão, [banda] Barão [Vermelho], Titãs, Raulzito [], , com citação direta de “Baila comigo”, Kid Abelha, Paralamas [do Sucesso] e Blitz. Após “Isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais”, verso de “Deixa isso pra lá” do álbum “Vou de samba com você”, de Jair Rodrigues (1964), começa a citação de versos associados ao axé music – “Segura o tchan”, “Xô, Satanás”, “boquinha da garrafa” –, às duplas sertanejas e às duplas de MCs do funk carioca. Com uma referência ao falecimento de Renato Russo – “No andar de cima” –, o verso “festa estranha com gente esquisita, eu não tô legal, não aguento mais birita” inaugura os trechos dedicados ao rock da década de 1990: João Gordo, Raimundos – que “entraram pelos fundos” – e Sepultura com “índios Xavantes”. Carlinhos Brown e Olodum, as cantoras da “MPB” – Cássia Eller, Zizi Possi, Gal, , , , Daúde, Ângela Rô Rô, Marina Lima – Lulu Santos, “Chico César, Science, Buarque”, todos estão relacionados a uma mesma festa. Os sambistas como o “professor” Martinho da Vila, homenageado com um sample de “devagar, devagarinho”, também fazem parte da festa: Moreira, Bezerra e Dicró – do samba

9 de breque –, Fundo de Quintal, Beth Carvalho, Alcione, e Neguinho da Beija-Flor. Os artistas da Jovem Guarda “estavam em outra festa mas vieram para cá”, no entanto apenas é citado o nome de Roberto Carlos. Ao final da música, o boato sobre a chegada de Michael Jackson “preocupou o pessoal” – o cantor gravou um clipe no Brasil em 1995 –, mas logo todos os convidados da festa se voltaram para a janela na tentativa de ver a “Brasília amarela”, referência ao sucesso “Pelados em Santos” da banda “Mamonas Assassinas” em 1996. Como afirma o refrão da música: Festa da Música Tupiniquim Que tá rolando aqui na rua Antônio Carlos Jobim Todo mundo tá presente e não tem hora pra acabar E muita gente ainda tá pra chegar

Faixa do CD “Quebra-Cabeça” de 1997, álbum considerado o maior sucesso de vendas de Gabriel O Pensador, “Festa da Música” registra em seis minutos um panorama bastante abrangente do panorama musical brasileira após a década de 1960. Qual sentido da inserção dessa faixa no CD do material didático “MPB nas Escolas”? Intitulada “Festa da Música Tupiniquim”, com letra em sintonia com a mescla de batidas e de samples , a faixa transforma-se em mais um modo de corroborar com a análise de processo linear de formação, mesmo que não fique claro o ponto de origem. Se toda seleção implica exclusão, a inserção de “Festa da Música Tupiniquim” aponta para um grande panorama da música popular da segunda metade do século XX, como afirma o eu lírico: “ninguém me convidou mas eu queria entrar”. Para concluir, vale ressaltar um verso da “Festa da Música Tupiniquim”: “Ué! Cadê os críticos?! Ninguém convidou? ‘Barrados no baile uouou’”.

Para ouvir a história da MPB em circuitos de grande circulação

A impressão de veracidade do testemunho denota a importância da primeira pessoa para a reconstituição do passado. Esse processo implica a proeminência da experiência do sujeito narrador na cena do passado, característica presente nas obras de Ricardo Cravo Albin. A hegemonia do presente sobre o passado no discurso está apoiada no corolário da narração da experiência, do testemunho em primeira pessoa (SARLO, 2007). Ainda de acordo com a autora, “narra-se ou se remete ao passado por um tipo de relato, de personagem, de relação entre ações voluntárias ou involuntárias”, evidenciando um continuum inteligível para os

10 leitores. A história de grande circulação torna funcional a investida ao passado, liga-se ao imaginário social contemporâneo acerca do tempo pretérito, encontra resposta na esfera pública, orienta-se por um princípio organizador simples e uma linha de desenvolvimento unitário ligada às necessidades intelectuais, afetivas e morais do presente, formulando assim um panteão de heróis e um grupo de excluídos em sua linha do tempo. De acordo com a autora, a história acadêmica, por sua vez, estaria orientada por um sistema de hipóteses e de princípios múltiplos voltados para compreensão de determinado fato histórico (Ibidem). O lugar do historiador, lugar de emissão de seu discurso, pode ser analisado tanto para aqueles que estão inseridos no ambiente acadêmico, como nas modalidades de história de grande circulação. Busquei relacionar os lugares determinados e os lugares produzidos por eles durante o ato da escrita da história, entendida como prática e discurso. Certeau (1982) orientou o debate ao tratar da historicidade da história, definindo-a como narrativa pensável, inteligível, a partir da qual uma sociedade se compreende. Vale ressaltar, para conclusão do texto, que a MPB “não é monolítica, inclusive no plano musical” (MENEZES BASTOS, 2009: 6), por isso a narrativa historiográfica linear não privilegia os sons dissonantes:

a canção brasileira do século XX pode ser vista como um projeto (inacabado) de país, à espera de novas escutas que percebam os processos de educação sentimental, estética e ideológica contidos em sua tradição. Escutas que valorizem a tradição não apenas como um coro um e harmonizado, mas também percebam as cacofonias, os silêncios e os sussurros perdidos no tempo (NAPOLITANO, 2007: 141).

Torna-se cada vez mais inadequado pensar em uma “linha evolutiva” ou relatar a história da música popular brasileira em uma narrativa linear quando as referências e as apropriações musicais podem ser acessadas a partir de diferentes meios de divulgação desterritorializados: emissoras de TV que veiculam videoclipes, rádios de “música jovem”, trilhas internacionais de telenovelas, canais de divulgação de vídeo na internet, sites e portais de compartilhamento de arquivos de áudio, web rádios, redes virtuais com perfis de artistas. Com as inovações tecnológicas, a circulação de videoclipes para novos lançamentos, sobretudo streaming media , promovem aceleração no fluxo de divulgação de novos bens de consumo cultural. Uma das principais características do discurso historiográfico é, ao definir um sentido da narrativa, atribuir ao relato dos fatos o efeito do real. A “Festa da Música Tupiniquim”, por maior que seja o conjunto de artistas selecionados, corrobora com a linha narrativa do

11 material didático. Na condição de trabalho legível sobre fatos do passado, o Kit “MPB nas Escolas” serve como ferramenta de transformação do passado, daquilo que “aconteceu”, em narrativa inteligível (CERTEAU, 1982). O desafio, mencionado no início do texto, é refletir sobre a música popular a partir dos documentos – textuais ou audiovisuais – disponíveis para análise em sala de aula. Se a escrita da história tende a “ressuscitar” um passado a partir do relato, a partir do corte entre o objeto da análise e o lugar da sua prática, a ruptura passado/presente torna-se menos clara devido à ampla circulação de fonogramas do cânone da MPB após o desenvolvimento de novas tecnologias de circulação de mídias.

Bibliografia

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história . Tradução Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. FERNANDES, Dmitri Cerboncini. A inteligência da música popular: a autenticidade no samba e no choro . Tese de Doutorado - Universidade de São Paulo, Departamento de Sociologia. São Paulo, 2010. MELLER, Lauro. Proposta de Implantação da Disciplina “História da Música Popular Brasileira”: conteúdo, metodologia, bibliografia . XXVIII Simpósio Nacional de História - ANPUH. Natal, 2013. MENEZES BASTOS, Rafael José de. MPB, o Quê? Breve história antropológica de um nome, que virou sigla, que virou nome. Antropologia em Primeira Mão, v. 116, p. 1-12, 2009. NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007 . NEDER, Álvaro. “Parei na contramão”: faixas cruzadas na invenção da MPB. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 25, nº49, 2012.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva . São Paulo, SP; Belo Horizonte, MG: Companhia das Letras: Editora da UFMG, 2007. TINHORÃO, José Ramos. Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do lundu (1740-1800). São Paulo: Editora 34, 2004.