7 6 Campinas, 30 de agosto a 12 de setembro de 2010 Campinas, 30 de agosto a 12 de setembro de 2010     Fotos de negros no estúdio retratam contradições do Brasil oitocentista (...) Também como outros, o casal se vestiu e se penteou à moda europeia vigente. A mulher exibiu a sua sombrinha e o homem, o seu chapéu. O homem adiantou ainda o pé esquerdo, bem calçado no sapato escuro lustrado, em contraste com as calças claras. Popular, cartão Na escolha da pose de corpo inteiro estava a certeza do registro de todos os detalhes de sua distinção. Nada em sua roupa ou seu penteado os ligava à origem africana; a única de visita se torna coisa que nos remete à sua origem, que a “denuncia”, é a sua cor — item que, como já objeto de desejo mencionado, os ligava para sempre a uma história de escravidão, ou de antepassados escravos. Em cidades como São Paulo, , Re- cife e Salvador proliferavam estúdios de fotografia. Geralmente, os fotógrafos premiados em exposições nacionais ou internacionais, e os agraciados com o PAULO CESAR NASCIMENTO direito de usar o brasão do imperador nas suas propa- [email protected] gandas, costumavam atender à clientela mais abasta- da. Mas a acirrada concorrência entre os profissionais, cena acima, nar- constatada nos textos dos anúncios publicados pelos rada na página 105 fotógrafos nos jornais locais, proporcionava oportuni- do livro Negros no dades para todos os bolsos, mostra o estudo de Sandra. estúdio do fotógrafo O surgimento, na década de 1860, do retrato (Editora da Unicamp, 360 fotográfico no formato cartão de visita – opção Sandra Sofia Machado Koutsoukos, autora do livro: “Algumas Apáginas) se passa no ateliê do con- das fotos dos negros são tãofalar” expressivas que parecem querer mais barata do que os suportes então existentes e corrido fotógrafo Militão Augusto que se tornou rapidamente uma espécie de objeto de Azevedo, na São Paulo de 1879, de desejo das pessoas das diversas raças e classes parentes. Havia os que abordavam os fotógrafos com e descreve como teria ocorrido a sociais – contribuiu para tornar ainda mais acessível uma vaga ideia e ainda os que chegavam aos estúdios meticulosa produção do retrato de o desejo de mostrar status e honra e de satisfazer o sem ter a menor noção de como desejavam as fotos. O Retrato de ama negra com um casal de negros. O ato de ir ao desejo de ser eternizado em um pedacinho de papel. bom profissional, no entanto, conversava bastante com criança branca amarrada estúdio fotográfico se tornara rapi- “Ser fotografado em estúdio, com uma roupa, o cliente para tentar escolher a melhor pose e arranjos damente uma demanda de status às costas. Cartão postal de de cena mais adequados. A maioria dos ateliês contava Rodolpho Lindemann. Salvador uma pose e acessórios de cena determinados dava nas diferentes camadas sociais no distinção. Os cartões de visita eram vendidos às com uma sala de espera repleta de fotos pelas paredes Brasil oitocentista. A possibili- [década de 1880]. Pertence e de álbuns como mostruário, e muitos dispunham de à coleção Apparecido Jannir dúzias, e quem podia pagar por aquela nova mania, dade de perpetuação da própria pagava. Mas a moda de ter a sua imagem e a de roupas para emprestar aos clientes que não possuíam imagem seduzia não só os fidalgos Salatini. Foto reproduzida de George Ermakoff , O negro na seus parentes e amigos eternizada pegou a todos vestidos, casacas, chapéus ou bengalas chiques. de então, mas também os indiví- que podiam pagar por ela”, relata a pesquisadora. “É muito interessante, por exemplo, olhar as duos mais pobres da sociedade, fotografia brasileira do século XIX. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Contudo, observa Sandra, o valor dos cartões, fotos do estúdio de Militão Augusto de Azevedo entre os quais muitos eram negros. Casa Editorial mesmo quando já barateados consideravelmen- nas quais ele retratou gente mais simples. Em várias Na privacidade dos estúdios e te, podia representar para os mais pobres um das fotos a gente pode ver a mesma casaca vestindo sob a mira da lente da câmera, o investimento dispendioso, que significava o não vários homens, ou o mesmo vestido em diferentes negro livre e o forro tratavam de se Retrato de senhor com cinco escravos. Cartão de visita de Militão suprimento de outros itens necessário para a sua moças, alguns já até meio fora de moda para o perí- fazer representar de maneira nobre, Augusto de Azevedo. São Paulo, 1879. Acervo do Museu Paulista sobrevivência, ou a de seus familiares ou mesmo odo das fotos”, verifica a doutorada pela Unicamp. seguindo, de modo geral, os itens agregados, ainda que fosse um objeto de consumo Outros profissionais e estúdios que também do padrão europeu da moda então almejado como a representação de si e dos seus. alcançaram alguma fama e entraram para a história vigente. Ao vestir-se de tal forma Nas décadas de 1860 a 1880, na cidade de São da fotografia no Brasil do século 19 foram José para as fotos, a pessoa negra, ao Paulo, Militão Augusto de Azevedo atendia desde Christiano de Freitas Henriques Júnior, Joaquim contrário do que as imagens podem a nata da sociedade local aos pobres descalços e Insley Pacheco, Marc Ferrez, Gaspar Antônio da levar a crer, não o fazia devido à sua maltrapilhos, brancos e negros. Em sua coleção, Silva Guimarães, José Ferreira Guimarães, Revert suposta “aculturação”, mas como preservada em seis livros de controle do ateliê no Henry Klumb e Georges Leuzinger, no Rio de estratégia para se proteger e tentar Museu Paulista, conforme constatou Sandra, há Janeiro; Carlos Hoenen e Valério Vieira, em São fazer-se aceita por uma sociedade cerca de 12 mil fotos, sobretudo retratos, onde é Paulo; Guilherme Gaensly, João Goston e Rodolpho na qual o preconceito racial e a dis- possível encontrar representada tanto fidalgos quanto Lindemann, em Salvador; Felipe Augusto Fidanza, criminação dominavam, argumenta pobres. Militão prestava ainda serviços a repartições em Belém; Henrique Rosén, em Campinas (SP); e, Sandra Sofia Machado Koutsoukos, Retrato de mulher da etnia mina ondo com turbante de polícia, fotografando presos, quando solicitado. em , João Ferreira Villela, Augusto Stahl e autora da obra recém-lançada. e colar. De Augusto Stahl. Entre a vasta clientela de brancos ou negros, , alemão que se tornou uma espécie Negros no estúdio do fotógra- Rio de Janeiro, c. 1865. havia os que encaravam a câmera já sabendo o que de “empresário da fotografia” ao abrir estúdios da fo – publicação em que ela revela Acervo do Peabody queriam, pois tinham visto retratos de outros em poses sua Photographia Allemã em Recife, Salvador e Rio um rico painel das representações Museum of Archaelogy semelhantes às que ambicionavam exibir aos amigos e de Janeiro, e em São Paulo, a Photografia Imperial. e autorrepresentações de pessoas & Ethnology, Cambridge, negras livres, forras e escravas pro- EUA. Foto reproduzida de duzidas em estúdios de fotografia no George Ermakoff, O negro Brasil da segunda metade do século Suportes Retrato de na fotografia brasileira do variados para casal. Cartão 19 – é uma versão da tese de douto- século XIX cartões de de visita de rado em multimeios orientada pela Retrato de homem. Cartão Retrato do barão de Moniz de Aragão. Cartão de visita de Militão Augusto de Azevedo. de visita de P. Biegner & Co. Atuou em Berlim visita e carte- Militão Augusto professora doutora Iara Lis Schia- cabinet. 1870- de Azevedo. vinatto e defendida por Sandra no São Paulo, 1879. Acervo do na segunda metade do século XIX. Acervo do Museu Paulista Arquivo Nacional, Rio de Janeiro 1900. Foto São Paulo, c. Instituto de Artes (IA) da Unicamp reproduzida 1879. Atribuída em 2006, após três anos e meio de de Eaton S. como constante pesquisas com auxílio da Fapesp. Lothrop Jr. e do acervo do Para o estudo, Sandra empre- para a sua montagem. Além de estudar não é verdade. Eu quis mostrar que Jonathan B. Museu Paulista, endeu investigações em arquivos os diferentes sentidos, os usos e a circu- algumas das fotos dos negros são tão Spira, The coleção Militão de diferentes instituições, como lação daquelas fotos, a autora tenta per- expressivas que parecem querer falar, history of Augusto de o Arquivo Nacional, a Biblioteca ceber os modos pelos quais as pessoas querer contar a sua história, já que a photography. Azevedo. Foto Nacional, a Faculdade de Medici- negras nelas retratadas influenciavam a fotografia permite isso, permite que As seen reproduzida de na, o Museu Histórico Nacional, composição de suas próprias imagens. você ‘se mostre’, ‘se dê a ver’. É claro through Boris Kossoy, o Real Gabinete Português de A princípio, por ocasião do processo que uns posaram mais participantes do the Spira Militão Augusto Leitura, o Instituto Histórico e de seleção para uma vaga no doutorado, processo de construção daqueles retra- collection. de Azevedo e a Geográfico Brasileiro e o Instituto Sandra cogitava estudar as figuras in- tos do que outros, assim como também Nova Iorque, documentação Moreira Salles, no Rio de Janeiro; fantis (brancas e negras) retratadas nas acontecia com muita gente branca da Aperture, da cena o Museu Paulista, em São Paulo; fotografias antigas. Ao analisar prelimi- sociedade que posava para seus retratos 2001 paulistana a Fundação de narmente as imagens de amas de leite particulares”, observa a pesquisadora. através da Pesquisas Sociais, em Recife; e as (e amas-secas) negras que seguravam fotografia bibliotecas do Instituto de Filosofia as crianças, chamou-lhe a atenção a Imagem dignificante e Ciências Humanas (IFCH), do IA, indumentária daquelas mulheres, várias a Biblioteca Central e o Arquivo delas escravas, muitas vezes de um Ela delimitou a produção de retratos Edgard Leuenroth, na Unicamp. luxo europeizado, e o arranjo das cenas aos que foram feitos em estúdios, pois, As fotos dos escravos são es- dos retratos, que não condiziam com a conforme justifica, a intrigava o fato de De acordo com ela, ao se vestir fotos, que raras vezes mostram algo tografia. Outros talvez requeressem um posassem contra a vontade; algum tipo tralizadas de forma a destacar apenas 1880, surgiram algumas propostas de Serviço tudadas em três categorias: na pri- sua situação social. Mas seus rostos, construir, no interior de um ateliê, uma como a parcela branca da sociedade, capaz de relacionar as figuras repre- retrato de corpo inteiro para poder exi- de negociação teria sido feita, além de a imagem da ama negra e da criança regulamentação do serviço de criadas meira, fotos de escravos domésticos expressões e posturas denotavam a sua cena que poderia ter sido, à primeira se dirigir a um estúdio particular de sentadas a algum tipo de trabalho ou bir todos os detalhes de sua vestimenta, que eles trataram de usar as estratégias branca, serviram como uma tentativa de e amas de leite, livres ou escravas, com que foram levados aos estúdios por posição, revelavam a sua identidade e vista, mais facilmente conseguida fotografia e posar para um retrato, os profissão (assim como nas fotos das dos acessórios que podiam significar de que dispunham para a composição do registrar e exibir de forma “positiva” o constantes exames médicos em clínicas senhores, os quais queriam aquelas podiam também ajudar a revelar parte no espaço público das cidades. Ao negros livres ou forros não queriam pessoas brancas da sociedade), pois a status (como leques, sombrinhas, que também era o seu retrato, e de não possível afeto existente numa situação que eram montadas para isso, visando fotos em seus álbuns de família; na de sua história, conta Sandra, que é começar a investigar sobre o assunto apenas se equiparar aos brancos, no apresentação do instrumento de traba- bengalas, livros), do sapato de gente terem se apresentado de forma passiva, que estava sendo condenada por dou- a dar mais garantias aos patrões de que segunda, fotos que foram exploradas graduada em belas-artes pela Universi- nos manuais escritos pelos fotógrafos sentido de imitar por imitar apenas. A lho ligava o personagem aos setores livre lustrado, enfim, desfrutavam da mas terem se dado a ver”, esclarece San- tores em medicina e moralistas. seus filhos, caso não houvesse outro jei- na chave do “exótico” e vendidas dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) do período, no entanto, entendeu que iniciativa tinha também o significado livres mais pobres, ou à classe escra- mise-en-scène comum naqueles tipos dra. “Entretanto, no fim, ao que parece, Conforme constatou, no Brasil, a to e precisassem ser nutridos por amas como souvenir a estrangeiros; na e mestre em artes pelo IA da Unicamp. a construção de uma cena em estúdio de tentar se inserir naquele meio, ser va. Em tais retratos, ainda, as marcas de registros. De maneira diferente, os escravos domésticos tiveram suas partir de meados do século 19, com as de leite, estariam mais bem protegidos terceira, fotos etnográficas produzi- “Alguns trabalhos mais antigos atendia mais adequadamente a neces- aceito por ele, ou ao menos tolerado. corporais de posse, de torturas, de salienta a investigação, os escravos fotos guardadas nos álbuns das famí- constantes epidemias de febre amarela contra uma série de doenças e germens Obra: Negros no das para servir de suporte a teorias argumentavam que muitas das pes- sidade de se elaborar a representação “Aquela era mais uma estratégia trabalhos pesados, caso houvesse, não domésticos, também muitas vezes re- lias brancas às quais eles pertenciam.” e cólera que assolavam as cidades, de moléstias “suspeitas”, que os médi- estúdio do fotógrafo racistas então em voga. Por último, soas negras que posavam, na época, desejada pelos fotografados, como consciente de sobrevivência numa so- aparecem: aqueles são registros em que tratados vestidos à europeia (ou mesmo Sandra também enquadra em seu aumentou a pressão, por parte dos cos acreditavam que as amas podiam Autora: Sandra Sofia Machado o livro explora fotos de presos em para as chamadas fotos souvenir, ou também permitia o nível de controle ciedade branca, exigente, competitiva os estigmas da escravidão foram propo- com roupas de inspiração e/ou proce- trabalho o costume das famílias se- médicos higienistas, para que os bebês lhes transmitir. E havia ainda a ojeriza Koutsoukos dois álbuns da “Galeria de condena- mesmo para as fotos etnográficas ou que o profissional teria sobre o retrato. e racista”, acentua Sandra. “O negro sitalmente ocultados, afirma a autora. dência africana), eram quase sempre nhoriais de fazer uso das amas negras brancos passassem a ser amamentados racial dos que temiam a transmissão Páginas: 360 dos”, traçando o caminho da feitura antropométricas, posavam como ‘mo- “Ali ele tinha o tempo e o material livre e o liberto procuravam a sua dig- Ainda segundo ela, joias em ouro, levados aos estúdios para que fizessem na amamentação de crianças brancas. por suas próprias mães. de “doenças morais” da nutriz para a Preço: R$ 48,00 dos álbuns (o próprio fotógrafo era delos’ apenas, sem demonstrar nenhum para ajeitar, enquadrar, iluminar a nidade também por meio da imagem.” a elegância da roupa e a pose eram os figuração nos retratos dos senhores. Ela nota que as fotos produzidas em Além da tentativa dos médicos de criança, como a suposta predisposição Editora da Unicamp um dos prisioneiros) e os motivos tipo de atitude ou expressão, o que cena e o retratado”, esclarece Sandra. Essa percepção é reforçada pelas itens de importância a aparecer na fo- “Só que isso não queria dizer que eles estúdio, em composições formais e cen- criar a “mãe higiênica”, na década de das escravas para a “promiscuidade”.