O Golpe na perspectiva de Gênero

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 1 23/02/2018 14:42:38 cult ­— centro de estudos universidade federal da bahia multidisciplinares em cultura reitor coordenação João Carlos Salles Pires da Silva Leonardo Costa vice-reitor vice-coordenação Paulo Cesar Miguez de Oliveira Renata Rocha assessor do reitor comissão editorial Paulo Costa Lima da coleção cult Alexandre Barbalho (Universidade Estadual do Ceará) Antonio Albino Canelas Rubim (UFBA) Gisele Nussbaumer (UFBA) José Roberto Severino (UFBA) editora da universidade Laura Bezerra (UFRB) federal da bahia Lia Calabre (Fundação Casa de Rui diretora Barbosa – RJ) Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Linda Rubim (UFBA) conselho editorial Liv Sovik (Universidade Federal do Rio Alberto Brum Novaes de Janeiro) Angelo Szaniecki Perret Serpa Mariella Pitombo Vieira (UFRB) Caiuby Alves da Costa Marta Elena Bravo (Universidade Charbel Ninõ El-Hani Nacional da Colômbia – Medellín) Cleise Furtado Mendes Paulo Miguez (UFBA) Evelina de Carvalho Sá Hoisel Renata Rocha (UFBA) José Teixeira Cavalcante Filho Renato Ortiz (UNICAMP) Maria do Carmo Soares de Freitas Rubens Bayardo (Universidade de Maria Vidal de Negreiros Camargo Buenos Aires – Universidade San Martin)

coordenador da comissão editorial Antonio Albino Canelas Rubim

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 2 23/02/2018 14:42:40 coleção cult

O Golpe na perspectiva de Gênero

Linda Rubim, Fernanda Argolo (Organizadoras)

edufba salvador, 2018

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 3 23/02/2018 14:42:40 2018, autores. Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA. Feito o depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

diagramação e arte final Marcella Felgueiras de Freitas Napoli / Maria Tarrafa revisão Hilário Mariano dos Santos Zeferino normalização Daiane Cruz de Azevedo

Sistema de Biblioteca – SIBI /UFBA

O Golpe na perspectiva de Gênero / Linda Rubim, Fernanda Argolo (Organizadoras). – Salvador: Edufba, 2018. 186 p. (Coleção Cult)

ISBN: 978-85-232-1684-9

1. Mulheres na Política - Brasil. 2. Igualdade de Gênero. 3. Direitos das Mulheres - Brasil. I. Título. II. Rubim, Linda. III. Argolo, Fernanda.

CDD– 305.420981

editora filiada à:

edufba Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina, Salvador – Bahia cep 40170 115 tel/fax (71) 3283-6164 www.edufba.ufba.br [email protected]

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 4 23/02/2018 14:42:40 sumário

7 “Precisamos falar de Gênero” Linda Rubim e Fernanda Argolo

23 Dilma – uma mulher política Céli Regina Jardim Pinto

33 Incongruências e dubiedades, deslegitimação e legitimação: o golpe contra Clara Araújo

51 Imaginário, mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do impeachment de Dilma Rousseff Cláudia Leitão

65 O golpe e as perdas de direitos para as mulheres Eleonora Menicucci

75 Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política Flávia Biroli

85 Direitos reprodutivos, um dos campos de batalha do golpe Maíra Kubík Mano, Márcia Santos Macêdo

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 5 23/02/2018 14:42:40 105 A máquina misógina e o fator Dilma Rousseff na política brasileira Marcia Tiburi

117 Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo Marielle Franco

127 O golpe de 2016 e a demonização de gênero Mary Garcia Castro

147 Golpe disfarçado de impeachment: uma articulação escusa contra as mulheres Nilma Lino Gomes

161 Sobre o golpe e as mulheres no poder Olívia Santana

177 Dilma: símbolo para a participação política feminina Vanessa Grazziotin

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 6 23/02/2018 14:42:40 “Precisamos falar de Gênero”1

Linda Rubim* Fernanda Argolo**

* Doutora em Comunicação e Introdução Cultura (UFRJ). Professora dos Programas de Pós-Graduação “Venho para abrir portas para que muitas outras Pós-Cultura e PPGNEIM/UFBA. mulheres, também possam, no futuro, ser presi- Membro fundador do CULT/ UFBA, onde coordena o grupo denta; e para que – no dia de hoje – todas as brasilei- de pesquisa Miradas. ras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher”.

O texto acima é parte do discurso de posse da ** Jornalista, Mestre em Cultura presidenta Dilma Rousseff, em 1º de janeiro de 2011, e Sociedade. Pesquisadora do Centro de Estudos durante a celebração da chegada de uma mulher à Multidisciplinares em Cultura presidência da República do Brasil, inaugurando o (CULT-UFBA), vinculada ao que se pensava que seria uma nova página da histó- grupo de pesquisa Miradas. ria cultural e política de um país, que, pela primeira vez, havia escolhido ser liderado por uma mulher.

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 7 23/02/2018 14:42:40 É inevitável que tal fato nos leve à revisitar diversos momentos da história das mulheres, nos quais o investimento desse gênero na con- quista de sua cidadania tem como uma das suas mais importantes con- quistas públicas, o direito político de votar e ser votada, ainda em um tempo em que as mulheres estavam cerceadas por inimagináveis obs- táculos. A conquista e consciência desse direito, também no Brasil, foi alvo de um processo longo e intenso, através de manifestações diver- sas, incluso campanhas em periódicos, que já eram produzidos por este gênero à época, como o jornal feminista “Voz Feminina”, fundado em Diamantina, Minas Gerais, por três jovens mulheres em 1900 com o explícito objetivo da defesa dos direitos das mulheres. (RUBIM, 1984) Um exemplo que pode ilustrar o envolvimento desse periódico na cam- panha pelo voto feminino é o artigo de Clélia Nícia Corrêa Rabello pu- blicado no número 18 do “Voz Feminina” em 16 de abril de 1901.

E por que não havia de ter este direito? Não somos também, como é o homem, parte componente da sociedade? Não estamos sob o jugo da lei e não temos inteli- gência, lucidez, vontade livre? Para que o governo seja democrático, é necessário que todos que estejam sob seu domínio possam também agir sobre ele. Ou então tudo é absolutismo. Para haver liberdade de um povo é evidentemente necessário que seja o seu governo criado pelo sufrágio de todo ele. Mas se apenas uma metade pode agir livremente, a outra agirá automaticamente: só a primeira é livre, a segun- da escrava. São dois povos em um mesmo país, um livre e independente que confor- me sua vontade reina sobre o segundo: os homens são os soberanos: a mulher con- tinua a ser a súdita. (RABELLO, 1901 apud ALVES, 1980, p. 94)

Esta, e diversas outras vozes de mulheres, de variados lugares de fala foram bastante atuantes na luta pelo voto feminino, até que finalmente em 1932, este direito foi garantido. Se por um lado tal conhecimento traduz o amadurecimento das lutas feministas e consequentemente o empoderamento das mulheres, com as conquistas dos seus pleitos, por outro é estigmatizado, e não raramente, apresentado através de

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 8 23/02/2018 14:42:40 narrativas pouco expressivas que escondem a força cultural e a impor- tância desse momento. A respeito disso, já nos anos de 1980, Branca Moreira Alves, na sua tese de doutorado sobre o assunto observa que,

a historiografia brasileira, se e quando se refere ao decreto de 1932 ou a constitui- ção de 1934, concedendo o sufrágio feminino, geralmente silencia sobre o movi- mento, deixando crer que as mulheres se tornaram eleitoras por uma dádiva gene- rosa e espontânea, sem que tivessem lutado ou demonstrado qualquer interesse por esse direito. (ALVES, 1980, p. 13)

A conquista do direito ao voto pelas mulheres brasileiras, no sentido de acontecimento, dado de realidade, é um fato irrefutável. No entanto, o olhar atento da pesquisadora sinaliza que os registros desse fato são narrativas dispersas e excludentes que invisibilizam o processo das lu- tas sufragistas e, de certo modo, os sujeitos que protagonizaram aquelas lutas. Essa atitude, entretanto, não é mero silêncio, em verdade é um “silenciamento”. Atitude política, que determinadamente produz o apagamento a quem não se reconhece e legitima sujeito, com autono- mia para constituir a sua história. É uma percepção que nos parece corroborar com a da professora Céli Regina Pinto (2007, p. 16) quando problematiza a exclusão da mulher no texto da constituição brasileira de 1891. Também para a referida profes- sora não acontece “como mero esquecimento”. A mulher não foi citada, é uma ausência na carta magna do país, porque ela simplesmente não existia, para os constituintes, como indivíduo dotado de direitos. Uma falta que rebate diretamente nas narrativas sobre as lutas das mulheres. Em consequência, a história desse gênero torna-se uma fragmentada e dolorosa saga, tecida por avanços e recuos. Assim sendo, retornamos a Branca Moreira Alves (1980, p. 14) quan- do diz:

tratando-se da história da mulher, esse é um tema que não se esgota, num momen- to histórico definido, já que a condição de opressão contém um elemento de conti-

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 9 23/02/2018 14:42:40 nuidade que permite criar uma ligação entre as gerações que se sucedem no inte- rior de um mesmo sistema de poder.

Uma citação que nos ajuda a perceber o quão frágeis são os tecidos de uma cultura, no que diz respeito ao direito à cidadania das mulheres. Uma cultura que não tem pudor de cultivar quaisquer atos arbitrários e conservadores em favor da dominação masculina.

Questões de gênero no impeachment de 2016 Oitenta e quatro anos se passaram desde a conquista do direi- to ao voto pela mulher no Brasil até a deposição da presidenta Dilma Rousseff. Optamos por fazer essa evocação de tempo, quase um século, para enfatizar o quão conturbada é a construção da história deste gê- nero, representada por avanços e retrocessos, solapada particularmente no que se refere às lutas pela constituição da cidadania. Consonante com tal realidade, somos de opinião que a eleição da mulher Dilma Rousseff, com 55.752.483 votos dos brasileiros em 2010, representou uma mudança significativa para a história das mulheres e, particularmente para o perfil presidencial do país, até então, exclusiva- mente, dominado por homens. Tal novidade acabou mobilizando redes de tensões e expectativas, especialmente porque as instituições pre- tensamente democráticas são majoritariamente masculinas, pensadas e vividas numa cultura de e para homens. Basta observar que na cons- trução do prédio do Congresso Nacional por ocasião da construção de Brasília, não foi planejado um local para banheiro feminino. Até 2015, portanto não havia banheiro feminino no plenário do Senado Federal brasileiro. Como na Constituição de 1891, a mulher ainda é marcada pela falta. Leve-se em conta que era o tempo histórico dos revolucionários e conturbados anos 1960, na capital, ícone da modernidade, fundada por um presidente “Bossa Nova”. Mas, nem assim, entrou no repertório

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 10 23/02/2018 14:42:40 cultural do país que o Parlamento também era lugar de mulher. O que dizer sobre o fato de uma mulher presidente! Deste modo, no primeiro mandato, os choques ocorreram e foi di- fícil suportar uma mulher no comando. “Uma mulher dura”, mas com dias contados, e que em breve iria embora. Não foi. Dilma Rousseff ou- sou o segundo mandato. Um pouco mais protagonista do que na sua campanha em 2010, quando o presidente Lula lhe fazia sombra. E assim, o voto de 54.501.118 brasileiros lhe deu legitimidade para ocupar por mais quatro anos o Palácio do Planalto. A reincidência da ousadia daquela mulher con- quistando, mais uma vez, o direito de governar o Brasil, foi duramente contestada. Vitória que além de provocar ressentimentos com níveis de alta perversidade, em termos de preconceitos, como será discutido por alguns textos desse livro, também desvelou a imaturidade do nosso projeto democrático e, por óbvio, esgarçou duramente a famosa ban- deira de esperança, “por um mundo menos desigual e mais humano”. Palavras de ordem, que se, em algum momento, ativou a esperança de construção de um Estado menos conservador e mais igual, tornaram- se mero clichê, reminiscência nostálgica do que poderia se tornar uma visão ampliada de uma sociedade progressista. Enfim, o respeito às eleições como expressão de democracia foi so- terrado. A vitória da presidenta Dilma foi duramente contestada, não apenas pela oposição formal, que iniciou seu projeto de destituição concomitante com o resultado das eleições de 2014. Sob o clima desse contexto, foi urdida a ofensiva, “fora Dilma”, ten- do como pretensa acusação “as pedaladas fiscais”, já utilizadas como procedimento de gestão pelos presidentes anteriores. Em verdade, tais palavras de ordem eram de fato a tradução do ressentimento dos polí- ticos representantes das tradicionais classes dominantes do Brasil, que tinham perdido o poder e de classes médias cada vez mais reativas a pos- sibilidade de um país menos desigual. Inflamados por uma mídia, ab- solutamente descompromissada com a imparcialidade da informação.2

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 11 23/02/2018 14:42:40 Ao som das panelas, um artefato simbólico, enquanto estigma, na vida das mulheres, o impeachment em 2016, durante o segundo man- dato de Rousseff, deu um fim melancólico à passagem da primeira mu- lher pela presidência da República brasileira. E mais uma vez, ao modo de 1932, o silêncio pairou sobre as questões de gênero e sobre as con- sequências do afastamento da presidenta à participação política das mulheres. Muito foi dito e escrito sobre os vieses político, econômico e jurídico do impeachment. Mas apesar do seu grande impacto simbóli- co para as mulheres, contingente significativo da população no país, as questões de gênero, que fizeram parte de modo contundente da campa- nha do impeachment foram minimizadas, relegadas ao status de pro- blema menor. O que sem dúvida denota mais uma tentativa de silencia- mento da história das mulheres no Brasil. Com base nesta percepção este livro tem como objetivo resgatar os enfrentamentos de gênero que acompanharam a gestão e a crise da pre- sidenta Dilma Rousseff, as reações das mulheres à destituição da presi- denta, e problematiza os impactos do impeachment para a participação política das mulheres no Brasil. Proposta que sofreu inicialmente certa contestação, porque havia ne- gativas de evidências do impeachment relacionadas à questão de gênero. A compreensão majoritária era de que a deposição da presidenta esta- ria fundamentalmente vinculada à crise econômica e ao desempenho político de Rousseff. Sem desprezar tais perspectivas, pois reconhe- cemos que a crise econômica foi utilizada para inflar o descontenta- mento popular cenário ideal para que a oposição atuasse politicamente pelo impeachment. Entretanto, a nosso ver, isso não anula a presença da questão de gênero como elemento de disputa durante toda a gestão da presidenta, inclusive fortemente acionada, durante a campanha po- lítico-midiática em favor do impeachment, ora de forma mais sutil, ora com gravíssima veemência. Ao percorremos a trajetória de Rousseff na presidência da República do Brasil, evidencia-se desde o primeiro momento como a catego- ria gênero permeou a disputa pela permanência do establishment.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 12 23/02/2018 14:42:41 A campanha eleitoral de 2010, a primeira de Dilma Rousseff como candidata, foi marcada por estratégias vulgares e desrespeitosas, que incluíam questionamentos à sexualidade dela, e representações este- reotipadas da mídia, em que Rousseff figurava como o poste de Lula. (ARGOLO, 2014) Já eleita na cerimônia de sua posse, em 1º de janeiro de 2011, foi de- flagrada a primeira inflexão sobre questões de gênero. Diferentemente da posse dos presidentes anteriores, a presidenta Dilma Rousseff subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhada de sua filha, Paula Rousseff – configurando um fato novo, inaugurador na história dessa cerimônia no Brasil. A magnitude simbólica daquele double de mulheres à fren- te do desfile presidencial, sem dúvida estabelecia um fato jornalístico de primeira ordem. No entanto, isso não foi considerado. Como bem o demonstra a manchete do jornal O Globo: “A beleza da vice-primeira- dama rouba a cena na posse da Dilma” (SETTI, 2011). O fato jornalístico é suprimido e a atenção se desloca para a enigmática esposa do então vi- ce-presidente . O texto do jornal enfatiza essa opção com a morna e burlesca observação que a presidenta Dilma Rousseff “até se es- forçou”, mas que foi Marcela Temer quem capturou o olhar dos homens. A partir da objetificação do corpo feminino, traço característico da cultura machista, o jornal banaliza o ato de transmissão de posse da presidência da República de 2011, despreza o dado jornalístico mais im- portante: a primeira vez que uma mulher assume aquele poder. Por fim, a mídia cria um cenário informativo que desconsidera um momento histórico singular para as mulheres e a nação brasileiras. Em vista de tais faltas, não tem como não pontificar esta “derrapagem” como o pri- meiro ato que desqualifica a presidenta Dilma como símbolo de poder. Outra questão que merece atenção é o embate criado pelo uso do ter- mo presidenta, adotado por Rousseff após a sua posse. Tal fato mobi- lizou a imprensa brasileira que engendrou uma série de “seminários” com especialistas em gramática para opinar sobre a correção da palavra,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 13 23/02/2018 14:42:41 e se opôs a adotar a nomenclatura em seus conteúdos, como mais um exemplo da sua parcialidade. A propósito, o texto da filósofa Marcia Tiburi neste livro, “A máqui- na misógina e o fator Dilma Rousseff na política brasileira”, observa, que o poder é também um jogo de linguagem. Ao inaugurar o termo, a presidenta Rousseff rompe com 121 anos de uma tradição de homens a comandar a república. E não é sem sentido que, ao ser afastada do cargo pelo impeachment, quem a substitui busca apagar, desde a linguagem até as marcas que podem condensar a memória da sua presença. Uma das primeiras ações de Michel Temer ao assumir interinamente o go- verno foi “orientar” a Empresa Brasileira de Comunicações (EBC) a não utilizar em seus conteúdos o termo “presidenta”. Desde a primeira campanha da presidenta Dilma Roussef em 2010, o argumento de que ela não seria uma pessoa política sustenta a crítica e a narrativa da sua orquestrada desqualificação. Rotulada grosseiramen- te como “gerentona”, a presidenta foi desacreditada como liderança po- lítica. Repetia-se, recorrentemente, durante seu governo a sua falta de habilidade para lidar com o Congresso, e, mais especificamente, para “barganhar” com os congressistas. A inexperiência da mulher naquele cargo embora seja um mote não explicitamente expresso, permeia as narrativas. A professora Clara Araújo, em “Incongruências e dubieda- des, desligitimação e legitimação: o golpe contra Dilma Rousseff”, rati- fica de forma muito interessante neste livro, como esse jogo de retórica sustentou o processo de deslegitimação da presidenta caracterizada, re- correntemente como alguém “fora de lugar”. São narrativas que elaboram um jogo de parcialidades e estabelecem situações confusas no intuito de provar a falta de eficiência da presiden- ta no jogo político. Se uma parte delas reivindica enfaticamente a neces- sidade de reforma do sistema político do Brasil, como possibilidade de correção do alto nível de corrupção no país, em outras, a grande crítica está centrada na inépcia e falta de capacidade da presidenta para lidar com a barganha política. São discursos que se contraditam e deixam

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 14 23/02/2018 14:42:41 transparecer uma factível incoerência: se um deles parece legitimar a corrupção, como um traço determinante da cultura e do povo brasilei- ros, o outro expressa terminantemente a recusa desse modelo. Afinal qual seria o modelo de gestor que o país precisa/deseja? Alguém que tenha uma participação eficiente no jogo da corrupção, ou alguém que se recuse a seguir esse modelo? A representação da presidenta como “aventureira” no campo políti- co serviu para manter o varejo da política brasileira em operação, como bem observa Céli Regina Pinto, em “Dilma - uma mulher política”. No texto escrito para esse livro, a autora desconstrói o falacioso argumento da presidenta “não-política” e procura demonstrar como essa narrativa operou em favor da manutenção do status quo, ou seja, pela permanência de políticos comprometidos com a barganha e o favorecimento pessoal. Políticos que têm apoiado projetos de lei que suprimem direitos das mulheres e que tentam instituir políticas agressivas de controle sobre o corpo feminino, como destaca o texto de Maíra Kubik Mano e Márcia Santos Macêdo, “Direitos reprodutivos, um dos campos de batalha do golpe”, sobre a polêmica em torno do Projeto de Lei 60/99. A esse respeito, a professora Mary Castro, em “O golpe de 2016 e a demonização de gênero”, pontua que, nos governos Dilma Rousseff, o Congresso Nacional organizou uma ofensiva contra as políticas de gê- nero, em especial com a criação do conceito de ideologia de gênero. Os discursos de orientação machista e homofóbicos se multiplicaram nas casas parlamentares. A partir do apelo à religiosidade do povo, ressalta a autora, estimulou-se o medo e o ódio ao diferente. Em outro patamar, a imprensa brasileira, como já dissemos antes, esquecida dos seus critérios de noticiabilidade, em parceria com o Congresso Nacional, atuou como o maior partido de oposição à presi- denta. De forma contumaz, empregou marcas de gênero em sua campa- nha de deslegitimação. Diversos estereótipos foram recuperados nesse processo simbólico de destituição: da histérica à mal-amada, para citar alguns. Flávia Biroli, em “Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política”, demonstra que a categoria gênero foi tão incisiva

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 15 23/02/2018 14:42:41 na representação simbólica da presidenta que é marca presente tanto das peças de oposição quanto das de defesa. Deste modo, o sexismo, o machismo e a misoginia compuseram os lances mais lamentáveis e perversos da campanha do impeachment. A mídia seja abertamente, ou em articulados jogos de linguagem, utilizou os estereótipos de gênero e double binds3 para empreender sua elabora- da oposição a Rousseff. Mas o fato é que a presidenta rompeu estereóti- pos de gênero e apresentou-se como uma mulher que não cabe no script das instituições mais tradicionais da sociedade brasileira, incluindo a imprensa. Tanto no comportamento, quanto em aparência, a presiden- ta Dilma Rousseff – nos diz Claudia Leitão, no capítulo “Imaginário, mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do impeachment de Dilma Rousseff” – esteve no sentido oposto ao que se cristalizou no imaginá- rio social como representação da mulher. A ofensiva de desconstrução e deslegitimação operou então para que ela fosse identificada como “um erro, uma disfunção”. A rejeição ao modelo de mulher representada pela presidenta torna- se clara quando, logo após a primeira votação pela abertura do processo, de impeachment na Câmara dos Deputados, a revista Veja ofertou ao leitor a antítese de Rousseff. O que poderia ser considerado um exem- plo de mulher, devidamente enquadrada em seu devido lugar de femi- nilidade, representada pela figura de Marcela Temer, no amplamente criticado artigo “Marcela Temer: bela, recatada e ‘do lar’”. (LINHARES, 2016) A edição da referida revista não poupa seus adjetivos ao perfil do que considera ser uma “mulher perfeita”: silenciosa, bonita, vaidosa e dona de casa. Em contraposição, em edição posterior a revista descreve a presiden- ta Dilma Rousseff como uma mulher solitária, de personalidade irascí- vel, politicamente inábil, abandonada pelos aliados e temida pelos fun- cionários. Uma mulher que não desperta sentimentos afetivos, e que, na leitura induzida pela revista, pagou caro pela ambição e teimosia de fugir do lugar social que lhe era devido. (OYAMA, 2016)

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 16 23/02/2018 14:42:41 É importante salientar que a ofensiva conservadora não se reduzia às produções da imprensa brasileira, que atingia apenas Dilma Rousseff ou o Partido dos Trabalhadores (PT). A composição do gabinete minis- terial anunciado pelo governo interino acusava a ausência de mulheres e negros ocupando o primeiro escalão da República. Dando a perceber que o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, portanto, foi mais do que uma marca simbólica para as mulheres brasileiras. Para além disso, significou também a redução da representação descritiva feminina e o fim de um ciclo de empoderamento de mulheres no Executivo Federal. Assim, consolidava-se o golpe no gênero feminino.

As mulheres no centro do golpe: retrocesso e resistência O governo de Dilma Rousseff ficou caracterizado pela maior pre- sença de mulheres nos ministérios. Durante as duas gestões foram em- possadas 18 ministras e uma presidenta de empresa pública. Houve o fortalecimento da Secretaria de Políticas para Mulheres com a indica- ção de uma ministra ligada ao movimento feminista e o aumento do orçamento da pasta em aproximadamente 18%. Em 2015, após reforma ministerial, a secretaria passaria a ter status de ministério com a criação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. No dia seguinte à posse do governo interino de Michel Temer, esse cenário foi reconfigurado. A foto do novo gabinete ministerial revelava a ausência de mulheres, de negros, de índios e de jovens dentre outras faces identitárias. Denotava o início de um governo misógino e con- servador e o consequente desmonte das políticas para mulheres, como bem destaca o texto da Secretária do Estado Olívia Santana, “Sobre o golpe e as mulheres no poder”. O ministro chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, justificou essa falta. As críticas cerradas ao preconceito de gê- nero especialmente conduziram Michel Temer à busca de uma mulher para assumir a Secretaria da Cultura.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 17 23/02/2018 14:42:41 Em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, em 15 de maio de 2016, Temer desqualificou a ausência de mulheres no seu go- verno observando que várias delas ocupariam cargos quase tão impor- tantes quanto os de ministro, pois, na reorganização dos ministérios, haveria espaço para as mulheres nas secretarias. Neste sentido, Temer enfatizou: “para a cultura eu quero trazer uma representante do mundo feminino”. (EM ENTREVISTA..., 2016) A determinação de Michel Temer gerou um forte gesto de resistên- cia das mulheres brasileiras. Ao menos cinco das mulheres que foram sondadas para a Secretaria da Cultura, que substituiria o Ministério da Cultura extinto, segundo a imprensa, negaram veementemente o con- vite. A negativa baseava-se não apenas, no caráter explicitamente opor- tunista do convite, mas também na oposição à extinção do Ministério da Cultura (MinC). A cultura, então, foi o lugar da resistência civil ao impeachment. Artistas, intelectuais, criadores populares, animadores e militantes, de diversos segmentos realizaram um dos maiores movi- mentos de oposição ao governo interino, e conseguiram reverter a de- cisão de extinção do MinC. É preciso reforçar como a negativa das mu- lheres ao convite do presidente representou um ato feminista contra o projeto do governo de exclusão das mulheres dos espaços de poder. A falta de mulheres na lista ministerial não foi o único meio de afas- tá-las do espaço político brasileiro. O decréscimo na representação des- critiva das mulheres tem sido feito de forma gradativa. De modo “mera- mente circunstancial”, conforme o Ministério do Planejamento, 12,13% dos cargos comissionados cortados do Executivo eram ocupados por mulheres. (PRAZERES; AMORIM, 2017) Paralelamente a isso, o governo extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, passando suas atribuições ao Ministério da Justiça (MJ). Assim, a Secretaria de Políticas para Mulheres passou a departamento do MJ, sob o comando da ex-deputada Fátima Pelaes (PMDB-AP). De 2016 para 2017, o corte no orçamento da Secretaria chegou a 61%, e a maioria das políticas iniciadas nas gestões de Lula e Dilma

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 18 23/02/2018 14:42:41 Rousseff foram descontinuadas. As ministras da pasta no governo Dilma, Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes observam nos textos que escrevem para esse livro, “O golpe e a perda de direitos para as mu- lheres” e “Golpe disfarçado de impeachment”, respectivamente, como o desmonte da Secretaria de Políticas para Mulheres comprometeu as políticas de proteção e apoio às mulheres brasileiras, e tem marcado o retrocesso de seus direitos. Ressaltamos que mesmo com limitações, durante o governo Dilma, desenvolveram-se políticas e ações para o enfrentamento da violên- cia contra a mulher, bem como em prol de sua autonomia financeira. Destacam-se a lei do feminicídio e o estímulo por mais autonomia na gestão da vida familiar, por meio da titularidade do “Programa Minha Casa Minha Vida” e como beneficiárias prioritárias do Programa Bolsa Família. Em 2016 elas correspondiam a 93% dos beneficiados e 84% das proprietárias das casas. (MULHERES..., 2016) Estas medidas foram consideradas pela SPM de extrema relevância, ao processo de autonomização das mulheres dado que, por exemplo, di- minuíam as relações violentas ou abusivas, fundamentadas apenas na dependência financeira da mulher. (CEF, 2016) O texto da senadora e procuradora da Mulher no Senado, Vanessa Grazziotin (PC do B-AM), “Dilma: símbolo para a participação polí- tica feminina”, destaca a assimetria no número de parlamentares ho- mens e mulheres no Brasil, e como esse desequilibro tem comprometi- do a representação substantiva das mulheres brasileiras no Congresso. Neste sentido a senadora reafirma a preocupação quanto ao modo que as Reformas Trabalhista e da Previdência, propostas pelo atual gover- no, tratam a questão da tripla jornada das mulheres e a desigualdade salarial deste gênero. Essas ponderações da senadora Grazziotin também estão em pau- ta para a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) em “Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo”. Ela destaca como preo- cupação da sua gestão a proposta de aumento do tempo contribuição

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 19 23/02/2018 14:42:41 previdenciária para os empregados domésticos de 15 para 25 anos, le- vando em conta que, caso isto se efetive, vai penalizar ainda mais as tra- balhadoras, visto que o maior contingente de trabalhadores domésticos no Brasil é composto por mulheres. A esperança contra esse movimento conservador e de retrocesso nos direitos das mulheres são os movimentos feministas que vêm surgindo espontaneamente pelo país. As marcas do sexismo durante a campanha pró-impeachment e os projetos de lei que retiram direitos das mulheres geraram movimentos em redes sociais contra o machismo e o sexismo no país. É possível identificar uma potência no ativismo digital que tem mantido a agenda feminista em debate, e que em boa medida tem pau- tado a grande mídia, apesar das posições conservadoras assumidas por ela. A tentativa do Congresso de adoção de políticas de controle sobre o corpo feminino também mobilizou as brasileiras no movimento inti- tulado “Primavera Feminista”, que levou milhares de mulheres às ruas do Brasil em protesto contra essas políticas. Ainda é cedo para tecermos conclusões sobre a força que esses movi- mentos terão sobre a produção legislativa e a conjuntura brasileira, mas é possível afirmar que só por meio da participação política das mulheres e de sua mobilização pela igualdade será possível reverter o ciclo his- tórico e persistente da opressão de gênero. Nesse sentido é importante manter viva a disposição para “falar de Gênero”. Boa leitura!

Notas 1 Esse livro começou a ser gestado ainda em 2016, durante a campanha pelo impeachment exatamente pelo incômodo da ausência de reflexões sobre o papel/a importância da questão de gênero nas ações do impeachment. Nesse sentido manifestamos a nossa satisfação pelas diversas manifestações que começam a preencher essa falta, em diversas modalidades de expressões e regiões do Brasil, assim como uma espécie de questão de ordem que se espraia pelo mundo pautando essa discussão. Com base nesse contexto é que essa publicação adota como título da apresentação deste livro a oportuna campanha do Núcleo de Estudos

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 20 23/02/2018 14:42:41 Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (NEIM/UFBA), “Precisamos falar de Gênero”. 2 Pesquisa em curso desenvolvida pelas autoras deste texto aponta a imparcialidade e a distor- ção da informação em favor da campanha pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. 3 Kathleen Hall Jamieson (1995) discorre sobre as dificuldades de participação das mulheres no campo político a partir do conceito de doublebinds, um paradoxo vivenciado pelas mulhe- res políticas em que qualquer que seja o comportamento adotado por elas, alguma falta será apontada. A autora classifica as principais dualidades que surgem como cobrança para elas: Profissional ou mãe?; O mesmo ou a diferença?; Silêncio ou vergonha?; Feminina ou compe- tente?; Idade e invisibilidade. As estratégias de participação das mulheres na política, portan- to, se colocam como um conjunto de ações para equilibrar os traços considerados masculi- nos e os considerados femininos.

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EM ENTREVISTA concedida a Sônia Bridi, Michel Temer diz que não tentará reeleição. Entrevistadora: Sônia Bridi. São Paulo: GloboPlay, 15 maio 2016. 1vídeo online (25 min 48 s), son., color. Entrevista concedida ao Fantástico. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2016.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 21 23/02/2018 14:42:41 MULHERES são as principais contratantes do Minha Casa, Minha Vida Rural. Governo do Brasil, Brasília, DF, 1 fev. 2016. Disponível em: . Acesso em 15 maio 2016.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 22 23/02/2018 14:42:41 Dilma – uma mulher política

Céli Regina Jardim Pinto*

“Eu sou uma mulher dura cercada de homens meigos”. Dilma Rousseff1

No dia 17 de abril de 2016, a Câmara de Deputados, * Doutora em Ciência Política. Professora Titular do departa- com mais de 90% de homens, autorizou a abertu- mento de História da ra do processo de impeachment contra a presidenta Universidade Federal do Dilma Rousseff. No dia 31 de agosto do mesmo ano, Rio Grande do Sul (UFRGS). o Senado Federal, com mais de 85% de homens, vo- tou e aprovou o seu impeachment. Não há nenhuma garantia de que a ausência de mulheres nestes dois cenários tenha tido qualquer influência no resul- tado. Entretanto, esta mesma ausência escancara a condição subalterna das mulheres na política. Se, por

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 23 23/02/2018 14:42:41 um lado, não se pode atribuir o impeachment de Dilma Rousseff ao fato de a esmagadora maioria dos representantes no Congresso Nacional ser formada por homens, por outro, isto não afasta a presença das questões de gênero na trajetória de vida política da primeira presidenta mulher no Brasil, desde sua militância, ainda na adolescência, até o impeachment. Quando se analisa a presença das mulheres na política, o Brasil é um dos países menos igualitários do mundo. Segundo dados da União Interparlamentar, atualizados em 1º de março de 2017, o Brasil ocupa o 153º lugar entre 194 países pesquisados, quanto à presença de mulheres nos parlamentos. (IPU, 2017) É também muito pequeno o número de prefeitas e governadoras eleitas ao longo da história. O total de mulhe- res efetivamente eleitas nas Assembleias Legislativas, somadas às elei- tas na Câmara de Deputados em 17 legislaturas, de 1950 a 2014, é de 564. Destas, apenas 184 chegaram à Câmara de Deputados, neste período.2 Desde 1997, com a chamada Lei das Cotas (Lei 9504/1997), os partidos são obrigados a garantir 30% de mulheres em suas listas de candidatos para as eleições proporcionais, uma vez que a lei impede mais de 70% de candidatos de um mesmo sexo. (BRASIL, 1997) Tem havido muita dificuldade para o cumprimento desta cota nos partidos, independente de ideologia e tamanho. Mesmo quando ela é cumprida, não tem mu- dado significativamente o quadro do resultado eleitoral. São muitos os estudos que analisam esta ausência no Brasil, mas é generalizada a identificação de duas causas que ajudam a explicar as dificuldades de as mulheres chegarem a esta esfera pública: o sistema político partidário e a manutenção de profundas desigualdades nas relações de gênero. Em relação ao primeiro, cabe destacar o sistema de listas abertas, a oligar- quização das burocracias partidárias, o alto custo das campanhas elei- torais. As mulheres não encontram espaço neste cenário, mas também estão ausentes os negros, os índios e os trabalhadores das classes popu- lares. Nas duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional, assenta-se uma robusta maioria de homens brancos, de classe média

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 24 23/02/2018 14:42:41 alta ou da burguesia, tanto urbana como rural. Na questão específica das mulheres, soma-se ainda o sexismo generalizado da sociedade bra- sileira que perpassa classes, raças, etnias, posições políticas e ideológi- cas. As assustadoras estatísticas da violência contra a mulher no país são o retrato mais nítido destas relações desiguais. Quanto mais conservadora for a postura política de um partido ou de uma organização da sociedade civil, mais sexistas e preconceituosos serão seus membros em relação à igualdade das mulheres e de outros grupos excluídos. Entretanto, não é necessariamente verdade que pos- turas políticas progressistas sejam, por natureza, não sexistas. E aqui habita um dos mais graves problemas relacionados às dificuldades que as mulheres enfrentam na política. Foi neste cenário que se desenvol- veu a trajetória política da presidenta Dilma Rousseff. Quando Lula indicou Dilma como candidata do Partido dos Trabalhadores (PT) para as eleições à presidência da república, as pri- meiras reações foram de que Lula, naquele momento com alta popula- ridade, elegeria qualquer um, uma mulher como Dilma, ou um poste. Como havia sido secretária do município em Porto Alegre, secretária de estado no Rio Grande do Sul, ministra de Minas e Energia e da Casa Civil no governo Lula, não era possível desqualificá-la completamente, então se passou a considerá-la uma técnica, não uma política. Vale ob- servar que esta qualificação não estava diretamente relacionada ao fato de Dilma nunca ter concorrido a cargos eletivos, mas a sua propalada falta de tato para conversar e atender à classe política e aos interesses privados que chegavam até ela na condição de ministra. Ora, não é preciso uma observação muito atenta para entender que as pessoas podem ser tecnicamente competentes ou não, mas não exis- te possibilidade de cargos políticos, da importância dos assumidos por Dilma, serem preenchidos por pessoas não envolvidas na política. O famoso técnico competente apartidário sabemos que não existe, que foi uma invenção dos governos militares do Cone Sul, retomado re- centemente pelo fundamentalismo neoliberal. Também sabemos que

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 25 23/02/2018 14:42:41 as atividades e os comprometimentos políticos vão muito além de car- gos eletivos e, quando se trata de mulheres, que encontram todo o tipo de dificuldade para se elegerem, a militância fora da disputa eleitoral é muito recorrente. Possivelmente a crítica a Dilma, por parte de alguns homens que faziam política em Brasília, era devida a um alargado con- ceito do que é ser político, que inclui troca de favores e favorecimentos entre agentes públicos e entre agentes públicos e privados. A trajetória de Dilma Rousseff é um contraponto a esta forma de fa- zer política, como revela uma breve recorrida por sua biografia. Ela co- meça sua militância na escola secundária (atual ensino médio) com 16 anos. Isso não é excepcional, estudos sobre carreiras políticas no Brasil apontam, tanto para mulheres como para homens, a política estudan- til como costumeira porta de entrada. Nascida em 1947, seu envolvi- mento com a política ocorreu um ano antes do golpe militar que desde a primeira hora reprimiu, censurou, prendeu e torturou. A vida política legal dos jovens foi, pois, violentamente interrompida, e fez com que muitos deles continuassem militando em organizações clandestinas. Dilma Rousseff militou na Comando de Libertação Nacional (Colina) e posteriormente na Vanguarda Armada Revolucionária de Palmares (VAR – Palmares). Há uma discussão conservadora e moralista sobre o fato de ela ter ou não pegado em armas. Entretanto, a questão que im- porta, do ponto de vista da análise histórica e da análise de trajetória, é entender que haviam sido fechadas todas as portas para a vida política democrática no país e que a luta armada foi uma alternativa, inclusive de altíssimo risco de vida de seus militantes, que a resistência encontrou para lutar contra a ditadura militar. Os muitos grupos que lutavam na clandestinidade não foram tão fracos e desorganizados como um certo senso comum tenta impor, foram sim desbaratados por uma repressão violenta e cruel, que prendeu, torturou e matou. Consequência disto, Dilma foi presa e torturada em 1970, tendo ficado na cadeia até 1973. Quando saiu da prisão, era uma jovem mulher com uma formação política sólida. Sobre este tempo, o depoimento mais contundente é o

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 26 23/02/2018 14:42:41 da própria Dilma, décadas depois, em 2008, como chefe da Casa Civil à Comissão de Infraestrutura do Senado, o qual dá a dimensão de seu comprometimento político. O diálogo ocorreu entre o inquisidor, se- nador Agripino Maia, e a então ministra. Enquanto Dilma, como vi- mos, entrou na política ainda adolescente e logo foi obrigada a ir para a clandestinidade devido ao golpe militar, Agripino Maia entrou na política como prefeito de Natal, nomeado por seu primo, o governador Lavoisier Maia Sobrinho, do Rio Grande do Norte, também nomeado pelo general presidente Ernesto Geisel. Agripino, pondo em dúvida a veracidade das informações que a mi- nistra estava dando à Comissão, acusa: “que lembranças a senhora guar- dou dos tempos da cadeia? Vª. Exª. responde: ‘A prisão é uma coisa onde a gente se encontra com os limites da gente... nos depoimentos a gente mentia feito doido, mentia muito, muito mesmo’, o que me preocupa...” A resposta de Dilma é uma das peças mais importantes do discurso político brasileiro sobre o que aconteceu na ditadura militar:

Qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira só pode partir de quem não dá valor à democracia brasileira. Eu tinha 19 anos, fiquei 3 anos na cadeia e fui barbaramente torturada, Senador. Qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida de seus iguais, entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, Senador, porque mentir na tortura não é fácil. Agora, na democracia, se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira. Isto faz parte, Senador, e integra mi- nha biografia, da qual eu tenho um imenso orgulho. Eu não estou falando de heróis, feliz do povo que não tem heróis desde tipo, Senador, porque aguentar a tortura é algo dificílimo, porque todos nós somos muito frágeis, somos humanos, nós temos dor. E a sedução, a tentação de falar o que ocorre, dizer a verdade, Senador, é muito grande. A dor é insuportável, o senhor não imagina quanto é insuportável. Eu me orgulho imensamente de ter mentido, porque eu salvei companheiros da tortura, da morte. Não tinha nenhum compromisso com a ditadura, eu estava em um cam- po, eles estavam em outro. (DILMA..., 2010)

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 27 23/02/2018 14:42:42 A pergunta que se impõe frente ao diálogo entre estas duas pessoas é: quem é político? O senador ou Dilma Rousseff? Um homem premia- do pela ditadura, que só pulou fora de suas fileiras quando se deu conta de que o barco estava afundando, ou Dilma, uma mulher que se for- jou na luta contra a opressão dentro e fora da cadeia? É Maia, o homem branco, rico e oligarca, o político? E Dilma o poste? A técnica perdida em Brasília? O que significa, para a elite política brasileira, para a mí- dia e até para alguns setores da esquerda, ser político? É ter lábia, é ser matreiro, é ser homem? Que qualidades teria Agripino Maia para ser considerado político e quais os defeitos de Dilma para ser qualificada como poste e técnica? Entre sua prisão pelas forças da ditadura até seu depoimento no Senado, arguida por um dos que se tornou figura política graças às be- nesses de generais, Dilma teve uma vida política ativa. Foi uma das fun- dadoras do PDT, junto com Leonel Brizola. Sua saída do partido foi uma decisão de quem pensava politicamente o futuro da esquerda no país. Secretária de Estado de Minas e Energia do governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, licenciou-se do PDT em 2000 para apoiar Tarso Genro, do PT, que disputava em segundo turno a prefeitura de Porto Alegre com Alceu Collares. Em 2001, Dilma se filiou ao PT e, no mesmo ano, participou da cam- panha eleitoral de Lula para a presidência da república, quando teve um papel importante nas proposições de políticas para Minas e Energia, tornando-se, após as eleições, ministra da pasta. Em 2005, no segundo governo de Lula, assumiu a chefia da Casa Civil, sendo a primeira mu- lher a ocupar o cargo. Porque teria Dilma ocupado estes cargos durante o governo do presidente Lula, um governo com uma preocupação clara no crescimento econômico, na infraestrutura, nas políticas sociais, mas também eminentemente político, no sentido de ter de administrar uma coalizão de partidos com interesses distintos e, inclusive, perspectivas ideológicas muito distantes entre si? Dilma possuía uma capacidade técnica indiscutível e necessária para o governo, mas tinha posições

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 28 23/02/2018 14:42:42 políticas muito claras sobre economia, que se contrapunham frontal- mente ao neoliberalismo. Singer assim qualifica o que chama de Plano Dilma:

A desobstrução de caminhos para a retomada industrial, os esforços pela industria- lização integral do país, a crença no papel indispensável do Estado no planejamen- to, a descrença nas forças espontâneas do mercado, a decisão por parte do Estado dos setores que devem se expandir e o papel estatal no financiamento destes esti- veram todos presentes no que se poderia também denominar de “plano Dilma” (SINGER, 2015, p. 45)

Portanto, a presença de Dilma no governo Lula e, posteriormente, sua atuação como presidenta da República têm uma clara perspecti- va política. Não é admissível pensar sua trajetória no governo federal como a de uma técnica. Dilma, por sua própria história política, tinha uma perspectiva mais política e esquerdizante que o próprio Lula. Dilma nunca esteve de favor em nenhum dos cargos que assumiu, nunca foi agraciada por ser filha, irmã, sobrinha, ou em troca de favores. Enfrentou resistências de todas as ordens: a primeira e a mais radical, quando lutou contra a ditadura; depois, quando chegou ao PT vinda do PDT. Era uma mulher com tradição trabalhista sem pertencer a nenhum dos grupos que formaram historicamente o partido. Dilma nunca teve um grupo para chamar de seu dentro do PT, nenhum que a defendesse, que a protegesse. O PT só abraçou Dilma quando se deu conta, através dela, de que as forças conservadoras do país pretendiam varrer o partido das disputas eleitorais. Apesar de toda a sua longa vida política, de sua integridade na luta pela democracia, Dilma novamente teve de enfrentar o sistema quan- do decidiram que ela seria deposta do poder através de um estratagema legal que uniu quatro forças: as políticas, lideradas pelo então vice-pre- sidente, que estavam mais profundamente ameaçadas pelas inves- tigações da polícia federal; os representantes do capital, tristemente

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 29 23/02/2018 14:42:42 sintetizados na figura de um pato de plástico, o que deu a dimensão da pobreza política e intelectual desta classe; uma classe média, igualmen- te inculta e confusa politicamente, mas muito consciente de que a con- tinuação de um governo de esquerda poderia lhe ameaçar privilégios; o judiciário, extrapolando suas funções e se tornando um poder polí- tico, que se estende deste a primeira instância até o Supremo Tribunal Federal (STF). Durante a campanha a favor do impeachment, levada a efeito nas redes sociais por grupos conservadores, e nas manifestações de rua lideradas por uma classe média urbana elitizada, a questão de gênero aflorou da forma mais primária possível. Deixou de ser um preconcei- to contra mulheres na política para ser simplesmente um preconceito contra a mulher. A sociedade brasileira mostrou todo seu primarismo, toda a sua ignorância, cultivada nos bairros e nos colégios de elite das principais cidades do país. As ofensas sexuais, em adesivos e nas redes sociais, bem como os palavrões dirigidos a Dilma Rousseff, melhor do que qualquer pesquisa de opinião, são parâmetros do nível de educação cívica e de preconceito contra a mulher no país. A crise que resultou no impeachment aflorou a grande contradição da vida de Dilma na política: por um lado, uma mulher que, desde os 16 anos, estava profundamente envolvida em política; por outro, adversá- rios e companheiros acusando-a de não ser política, de não ter sabido conversar com os deputados, de não ter sabido negociar. Somou-se a isto o grito preconceituoso das ruas. Em que os que apontaram o dedo para Dilma estavam pensando, quando a acusaram de não ser política? Hoje, quando o presidente da República e seus ministros se dedicam quase integralmente a articular manobras para se salvarem das investigações da Lava Jato, a pergunta que não quer calar é: isto é ser político? Quem era visto como verdadeiro político nas rodas de homens brancos, ricos, conservadores e mesmo não tão ricos, nem tão conservadores? Dilma ou Sergio Cabral? Dilma ou Eduardo Cunha? Dilma ou Romero Jucá? Dilma ou Renan Calheiros? Dilma ou José Dirceu? Dilma ou Eunício

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 30 23/02/2018 14:42:42 de Oliveira? Dilma ou ? Dilma ou Delcídio do Amaral? Dilma ou ? O último ato de Dilma como presidenta foi a arguição feita pelos Senadores, por 14 horas seguidas, antes da votação do impeachment. Todos que estavam envolvidos naquele evento, todas as cidadãs e to- dos os cidadãos medianamente informados sabiam que aquela sessão de arguição era uma farsa e havia uma única pessoa que não estava fin- gindo: Dilma Rousseff. Sem se alterar, respondeu a todos os questiona- mentos, respondeu para a história, não para os protagonistas da farsa. Os senadores da República, sob a presidência de Renan Calheiros, de posse de um parecer emitido pelo senador tucano Antônio Anastasia, em sessão dirigida pelo diminuído ministro presidente do STF, sabiam que não havia crime, mas que Dilma deveria ser cassada, seu mandato tinha de ser interrompido, para que o fundamentalismo neoliberal fos- se implantado. Era fácil derrubar Dilma, era uma mulher, não um cacique do PT. Depois de tudo que aconteceu, ainda se ouvia, entre detratores e mes- mo entre militantes da esquerda, que ela era dura, ela não tinha jogo de cintura, ela não negociava, ela não cedia às tramas necessárias, ela não era política. Ela era apenas uma mulher. Mulheres não sabem fa- zer política, elas podem militar desde 16 anos, ser brutalmente tortu- radas, ocupar os principais cargos da República, mas serão ditas como não políticas, serão no máximo técnicas competentes, que caem porque não sabem compactuar. Definitivamente, a política está precisando de muitas mulheres como Dilma Rousseff, uma mulher dura em meio a homens meigos e dobráveis, nem sempre aos mais nobres interesses da República.

Notas 1 Ainda como chefe da Casa Civil e já na condição de candidata à presidência da república Dilma falou de sua condição de mulher: “Em condições de poder, a mulher deixa de ser vista como objeto frágil e isso é imperdoável”, afirmou. “Aí começa a história da mulher dura. É verdade: eu sou uma mulher dura cercada de homens meigos”. (NOSSA, 2009) Posteriormente, já presidenta, deu a mesma resposta a Jô Soares. (DILMA..., 2015)

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 31 23/02/2018 14:42:42 2 Este dado considera apenas as deputadas realmente eleitas nos pleitos, não as suplentes que assumiram mandatos.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 32 23/02/2018 14:42:42 Incongruências e dubiedades, deslegitimação e legitimação: o golpe contra Dilma Rousseff

Clara Araújo*

* Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Introdução em Ciências Sociais da Universidade do Estado do O golpe parlamentar de 2016, consubstancia- Rio de Janeiro (UERJ). do no impeachment da presidenta Dilma, levará algum tempo até que seus efeitos sejam mais bem dimensionados. E isto é válido também para aná- lises que tentam compreendê-lo a partir de pers- pectivas de gênero. Há múltiplas vertentes a serem observadas quando se pergunta como e com qual intensidade o gênero perpassou e interferiu no pro- cesso que culminou no impeachment da presidenta. De antemão, pode-se dizer que a história do golpe

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 33 23/02/2018 14:42:42 será contada, também, como a história do forte conservadorismo pre- sente na sociedade brasileira, relacionado com dimensões de gênero. Independentemente das posições políticas professadas, do apoio ou de críticas à presidenta, ao seu partido ou ainda à sua coalizão gover- namental, o fato é que se torna difícil para pessoas com um mínimo de compromisso com a igualdade de gênero, negar a presença dessa face, que antecedeu em muito o impeachment em si, vale registrar. Argumentos de que os registros da presidenta sobre os preconceitos e a discriminação que sofreu se constituem em mera figura de retórica não se sustenta à luz de um levantamento geral das notícias na mídia.1 Desnecessário mencionar aqui aspectos mais brandos de coberturas de mídia, como desfile de estereótipos de gênero nas observações sobre roupas, cabelos, modos e estilos de vestimentas, entre outros. Os con- teúdos midiáticos em reportagens e editoriais são registros públicos. Por ora basta destacar a capa e a matéria da revista Isto É de nº 2417, de 06 de abril de 2016, talvez o exemplar icônico dessas abordagens. Entre os pontos que aparecem como recorrentes, e não só na grande mídia, mas também nessa arena hobbesiana que se tornou a internet, está o da desqualificação como deslegitimação. Embora a intensidade e o peso efetivo que tal aspecto adquiriu só possam ser melhor analisados com mais tempo, a indicação aqui cumpre o propósito da edição desta coletânea: explorar os indícios, levantar as hipóteses e pensar o proces- so. Nessa perspectiva, o ensaio reflete sobre alguns exemplos de como o gênero teria operado como variável importante na deslegitimação2 de Dilma Rousseff para legitimar o golpe parlamentar. Tal caminho de deslegitimação, porém, precedeu o processo da crise e do impeachment e ocorreu mesclado com outras dimensões da crise política em si. A tentativa de deslegitimação como forma simbólica parece ter acompanhado a trajetória de Dilma desde o momento em que seu nome começou a ser veiculado como possível candidata à presidência; fez- se presente no processo direto do golpe (BISCAIA, 2016; BOITEUX, 2016); e pôde ser notada mais de um ano após o golpe (maio de 2017).

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 34 23/02/2018 14:42:42 Tratou-se de processo ambíguo, vale sugerir. De um lado tais investi- das, aparentemente, não surtiram muitos efeitos, ao menos eleitorais, inclusive após a exacerbação dos ataques à presidenta, a partir de junho de 2013. Na eleição de 2014 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi incisivo no cumprimento da Lei de Cotas e no preenchimento das mesmas, elevando, finalmente, para 30% a porcentagem de candidatas. O tema “mulheres no poder” estava mais presente na agenda política. Dilma ganhou as eleições e sua aprovação após junho de 2013 cresceu um pou- co mais entre as mulheres.3 Em outras palavras, a presença de uma mu- lher no cargo mais elevado da República parecia indicar o que a litera- tura denomina de “efeito da representação simbólica” durante parte do tempo em que Dilma esteve na presidência: mulheres no poder tendem a estimular outras mulheres a pleitear ou a considerarem “normal” e possível disputar cargos. De outro lado, o trabalho sistemático, direto e indireto de deslegitimação foi de tal monta que parece ter dissolvido o que poderia existir de simpatia por partes desses setores da popula- ção em relação à experiência e presença de uma mulher na presidência. O simbolismo inicialmente positivo (se é que de fato houve) se dissol- veu e, parece, teve seu sinal invertido: de positivo para negativo. É sob este prisma que o texto faz uma reflexão inicial: parte de al- gumas manifestações explícitas e de outras nem tanto enfáticas, para pensar aspectos da desqualificação política com viés de gênero, que te- riam operado antes e durante o processo de impeachment. A prática, como sabemos, não é nova e tampouco peculiar à figura da presidenta. 4 De fato, o novo está no processo, na raridade de mulheres ocuparem a presidência; de ser atinente à primeira mulher a ocupar a presidência no Brasil; e, mais raro ainda, dessa presidência sofrer um impeachment.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 35 23/02/2018 14:42:42 Vejamos, pois, alguns episódios ou momentos nos quais o gênero pare- ce ter operado como variável interveniente no processo.

Sobre premissas e contextos da democracia, do presidencialismo e da liderança no Brasil Como se sabe, nas democracias representativas a formação do Executivo pode ocorrer via mecanismos plebiscitários diretos – o voto do cidadão para presidente – ou de modo indireto, via parlamento, mas este é legitimado anteriormente através do voto do cidadão para eleger os parlamentares. No parlamentarismo a sobrevivência e a possibilida- de de governo dependem do apoio direto do Legislativo na formação do Executivo, ao passo que no presidencialismo o foco da legitimidade está diretamente no eleitor. A negociação e apoio do congresso continuam a fazer parte desse processo e o governante tem autonomia para nomear ministros e cargos estratégicos, mas o poder do presidente passa pelo voto direto do cidadão na eleição. Diferentemente do sistema parla- mentarista, no presidencialismo o dirigente do Executivo não sai do poder caso não consiga formar um governo. Sua legitimidade está asso- ciada ao voto, e, claro, também ao compartilhamento de poder com par- tidos, via distribuição de cargos, número de deputados que o apoiam, concessão de emendas, entre outros aspectos. (BATISTA, 2016) No Brasil vigora o que se convencionou chamar de “presidencialismo de coalizão”, um formato peculiar ao país: a presidência necessita nego- ciar e compartilhar os cargos entre partidos de uma coligação que ele- geram parlamentares e ter base parlamentar para seguir governando, já que a aprovação de medidas no congresso é fundamental. Esse presiden- cialismo e suas “distorções” há muito são objeto de críticas de diversos setores: os interesses partidários teriam se tornado apequenados; há ex- cessivo número de partidos com os quais negociar e muitos partidos “de aluguel”; e há peso excessivo em negociações individuais, prevalecendo os interesses particulares de parlamentares, uma prática distorcida do

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 36 23/02/2018 14:42:42 exercício da representação. Haveria, assim, uma complexidade da enge- nharia eleitoral. O indivíduo-candidato e depois indivíduo-parlamentar tenderiam a ocupar espaço indevido e em excesso, em detrimento dos partidos e dos interesses coletivos. Neste ambiente, os “atributos” do lí- der como negociador tenderiam a ser bem importantes. Haveria maior necessidade de liderança e carisma não só frente ao eleitorado, com vistas à eleição, mas também na relação com os atores dos legislativos e nas negociações constantes para a obtenção de votos parlamentares, através de liberação de emendas e ocupação de cargos. Carisma e negociação são parte dos processos políticos, como des- tacava Max Weber.5 Segundo ele, formas de legitimação do poder e da dominação seriam sempre necessárias. A dominação legítima passaria, também, pelo carisma como parte da construção da liderança. Por sua vez, o carisma como a capacidade de negociação se torna mais relevante nas democracias representativas, notadamente nos regimes presiden- cialistas. Com efeito, carisma, habilidade, compromisso, experiência, competência, entre outros aspectos, compõem esse cardápio legitima- dor das disputas político-eleitorais e da condução político-administra- tiva governamental. Atributos e carisma, por sua vez, fazem parte do capital político de quem disputa cargos, em particular o cargo de presi- dente da República. Resta-nos, porém, refletir se o peso do carisma in- dividual seria um indicador de “qualidade da democracia” e de firmeza de suas instituições ou, ao contrário, de regimes que ainda dependem mais de pessoas individuais do que de suas instituições. E ainda, em um ou outro caso, refletir sobre quais seriam os atributos de fato relevantes em cada situação... Mas este é assunto para outro texto. O primeiro dos pontos a destacar neste ensaio é, então, que, em se tratando de mulheres que ocupam ou tentam ocupar esse tipo de espa- ço político de poder – cargos elevados no Executivo –, o que irá consti- tuir carisma pesam mais em comparação com os homens; os atributos aparentemente neutros para o exercício da liderança, como “competên- cia” e “experiência”, tenderão a importar sobremaneira; não são de fato

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 37 23/02/2018 14:42:42 expressões neutras; e tendem a ser submetidos ao crivo público mais intenso, em comparação com os homens. No caso em lume – Dilma Rousseff como figura política desde a campanha até o impeachment – ao que parece, não foi suficiente que o carisma como “qualidade” estivesse ausente na pessoa da presiden- ta. Tampouco foi necessário afirmá-lo como atributo e referência para marcar o que é ser líder e exercer uma presidência. Somaram-se vários aspectos. E alguns refletiram questões inegáveis e específicas ao con- texto do país. Por exemplo, a referência temporalmente muito próxima do carisma incomum do presidente Lula, o papel desse “atributo” no presidencialismo, bem como o contexto da cultura política brasileira, no qual a figura do líder ainda revela o peso das pessoas vis-à-vis o das instituições. O problema, pode-se sugerir, é que em Dilma, a ausência de carisma constituiu mais do que uma referência e um contraponto negativos marcados e lembrados. Tornou-se a falta constante que aferia todo tipo discurso, para (des)qualificar qualquer que fosse a sua mensa- gem e o conteúdo de sua fala. A presidente Dilma não foi só destacada como não-carismática, mas como aquela cujos discursos ultrapassavam o vazio do apelo e do conteúdo e eram sempre objeto de chacota e da fal- ta dessa “qualidade” para governar.6 Não que isso não tivesse ocorrido com Lula, por sua linguagem, sua escolaridade, entre outros aspectos, mas em Dilma foi também a sua associação com “mulher burra” que fala “besteira” e não sabe o que diz. Ao lado do carisma, o segundo exemplo de desqualificação a des- tacar neste tópico é o das dinâmicas de negociações entre Executivo e Legislativo; de como a presidenta e seus apoiadores conduziram-nas, se de forma hábil ou inábil, mais ou menos apropriadas politicamente. Como é sabido, dadas as várias distorções e problemas de funcionamen- to do sistema político, as formas de negociação e a cultura política brasi- leira têm como uma das suas bases importantes o “negócio” parlamen- tar individual ou o que denomino de “varejo”. Ou seja, a negociação do

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 38 23/02/2018 14:42:42 interesse particular do deputado, de pequenos grupos a partir de bases locais, ou de demandas eventualmente pouco republicanas. A nature- za problemática do “varejo” reside, entre outros aspectos, na expressão de seu antirrepublicanismo, já que, em geral, pautaria interesses muito particulares, sem falar de práticas corruptas.7 O “varejo” tem sido ob- jeto de questionamentos e críticas constantes de vários setores da po- pulação, incluindo atores políticos organizados, intelectuais e também parte da grande mídia. Registre-se que parte das críticas não ocorre em decorrência da natureza pouco republicana dessa prática e, nesse sen- tido, por ser condenável e anti-política. Advém da negação da própria política. Nessa linha, o “varejo” torna-se a substância da política, numa associação indiferenciada e perversa com a ação política e com a figura do representante político em geral. Em ambas as situações o “varejo” se nos apresenta como um proble- ma, e seria, portanto, uma prática condenável. No primeiro caso, seria atitude antirrepublicana, porque o representante ou o indivíduo-de- putado se locupleta com a coisa pública, e não está preocupado com o bem-estar coletivo. Logo, atitudes para evitar esse tipo de negociação poderiam ser consideradas como virtude política. No segundo caso, a partir de uma percepção mais distorcida e simplificadora, o varejo es- taria “no sangue” e o político seria alguém por natureza envolvido com seus próprios interesses, que só entra na política para se locupletar e sua ação estaria sempre ferindo o interesse do indivíduo-cidadão, que seria prejudicado frente ao Estado e à política. Neste caso, a recusa a agir de tal maneira poderia ser vista, então, como algo positivo no mar de inte- resses escusos “dos políticos”. À presidenta Dilma se atribuía dificuldade de lidar com o “vare- jo” das negociações nas relações Legislativo-Executivo. Costumavam ser destacadas a sua falta de habilidade e de “apetite” para conduzi-las. Seria de se esperar, então que daí pudesse advir alguma nota positiva, ou mesmo que fosse ressaltada a sua virtude de não se apequenar, de

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 39 23/02/2018 14:42:42 não se sujeitar ou praticar essa via de negociação. Mas parece que tal leitura não se fez presente no cenário. A “falta” e o “deslocamento” da presidenta desse campo das práticas políticas do varejo são os aspectos destacados quanto ao seu estilo de negociar. Isto ora parece decorrer de sua inexperiência política, ora de sua inapetência para a função, ora à sua inabilidade, ou ainda aos três aspectos juntos. A ética como elemento constantemente acionado no discurso midiático, também não contou, nesse caso. Não se registram outras leituras possíveis, como por exem- plo, a de que tal resistência poderia ser uma janela de oportunidade para estimular ou desnudar a forma viciada de negociação, abrindo caminho para outro formato de prática política. O ápice foi o episódio do processo contra Eduardo Cunha. A “inabi- lidade” de Dilma ou dos parlamentares de seu partido ficou associada ao fato de recusarem-se a negociar com o então presidente da Câmara dos Deputados a sua absolvição, na votação para abertura de inqué- rito parlamentar que atingia o deputado. O ultimato fora dado como um xeque-mate: ou a bancada da presidenta recusa seu processo ou o deputado aceitaria pedido de impeachment contra a presidenta. Os re- sultados são sabidos. E em que pesem todas as imputações de negocia- tas, chantagens e outros aspectos da prática rotineira do então deputa- do Eduardo Cunha, nos comentários da grande mídia ou nos diversos blogs de movimentos politicamente contrários à presidenta, não foram identificados quaisquer tipos de méritos no seu ato. No arco crítico em relação à sua falta de habilidades e negociações, alinharam-se setores da direita e também setores de esquerda. A pergunta que fica então é se a mesma leitura poderia ser feita caso a presidência fosse ocupada por um homem. Talvez... Não se pode errar em política. Errando, é melhor que seja alguém “do ramo”. Mas “ser do ramo” pode significar muita coisa... De início é difícil fugir à impressão de que houve forte viés de gênero nessa ênfase desqualificadora. Viés dúbio, registre-se, pois o que fora execrado como problema se inverte e passa a ser lido como fal- ta e ausência de Dilma. Como diz Chapman (1993), qualquer que seja a

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 40 23/02/2018 14:42:42 característica ou o recurso necessário para estar na política, mulheres os terão menos e serão mais cobradas segundo os padrões vigentes.

Sobre a experiência, habilidade e as formas da (des) legitimação Nas democracias modernas, a política envolve participação e repre- sentação. A participação política é um termo amplo, que abarca as di- versas formas de ação coletiva dos sujeitos sociais com vistas a inter- ferir intencionalmente ou não, em determinado processo ou causa. A política é, assim, “[...] o lugar em que se entrelaçam os múltiplos fios da vida dos homens e mulheres [...]. Diz respeito à elaboração de regras ex- plícitas ou implícitas acerca do participável e do compartilhável [...]”. (ROSANVALON, 2010, p. 72, grifo do autor) A eleição é momento privilegiado para os cidadãos exercitarem seus direitos. Eleições e partidos políticos são fundamentais, mas práticas públicas coletivas de participação e de deliberação são igualmente ne- cessárias, pois eleições não expressam o todo democrático, embora representem momento importante do processo. Pode-se elencar, por exemplo, a participação em movimentos sindicais, de bairros ou de gru- pos de interesse e de pressão; manifestações e presença em vários tipos de protesto, e assim por diante. Se essas e outras formas de ação coleti- va fazem sentido e são reconhecidas como parte da política, então não restam dúvidas de que o histórico de Dilma Rousseff é indissociável de formas de participação política. Dilma fez movimento estudantil quan- do secundarista. Foi de movimentos de resistência à ditadura, inclusive o guerrilheiro, único a ser lembrado por setores conservadores. Com a volta do exílio, atuou em movimento de mulheres, teve militância em partidos políticos, ajudou a fundar um dos mais importantes partidos no período da redemocratização e seguiu com militância partidária. A sua história remete à participação política desde adolescente e até o

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 41 23/02/2018 14:42:42 presente. Remete, portanto, às experiências com dimensões da políti- ca, embora não estritamente eleitorais. Mas não tem sido bem assim que sua história é apresentada. Também, neste caso, cabe destacar a característica ambígua nos registros de par- te da grande mídia. Nota-se um misto de condenação por seu passado guerrilheiro e de crítica, ou mesmo sarcasmo, com a “verdadeira mili- tância revolucionária”;8 sua saída do PDT e sua subsequente filiação ao PT aparece como se a troca de partido fosse algo excepcional no país, além de mero oportunismo. Sua participação se dilui, desaparece, não conta, ou conta como problema. Independentemente de posições fa- voráveis ou contrárias a certas formas de resistência à ditadura, numa época de perseguições e de “caça às bruxas” tratava-se de algo que exi- gia coragem. Ser torturada, e não desistir. Ter ainda mais coragem para prosseguir participando. E ainda, prosseguir sobre novas bases poderia indicar, minimamente, compromisso e alguma vivência política. Mas coragem ou atitude cívica no sentido mais amplo estão fora de ques- tão... E com isto introduzo o terceiro exemplo de como o viés de gênero e o viés político se mesclaram, perpassando esse requisito valorizado da experiência e se transformaram em seu contrário – inexperiência –, ajudando na deslegitimação de Dilma Rousseff. Em democracias representativas plebiscitárias, presidencialistas, é possível a eleição de chefes de Executivos ocorrer sem que determi- nados pretendentes ao cargo sejam oriundos de mandatos legislativos ou mesmo mandatos executivos prévios. Isto é bom? É ruim? Aqui um posicionamento desejável ou normativo não está em questão. Pode-se sugerir que, embora desejáveis, experiências eleitorais prévias não são imperativas. Outras circunstâncias podem operar como mais impor- tantes. Ou seja, não é requisito para o indivíduo percorrer a “escada” eletiva executiva antes de concorrer a cargos mais elevados. Isto signi- fica que o indivíduo não fez política? Ou que não seja político? A (apa- rente) adesão ao a-politicismo, incluindo o perfil atualmente estimu- lado do “gestor” sem nenhum compromisso básico com a política ou

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 42 23/02/2018 14:42:43 com ocupação prévia de cargos é válida ou condenável? E se sim, a quem deve caber esse julgamento e de que modo? A prática nos governos, nos Executivos, em cargos decisórios e de mando é sempre prática política. Por recorte mais amplo ou recorte mais estreito trata-se de um agir no campo da política. A indicação de cargos nos primeiros escalões – ministérios e presidências de estatais – muitas vezes independentemente das avaliações sobre as qualidades técnicas dos indicados, bem como seus atributos, também tendem a ser políticas. Em suma, a participação, seja ela institucional ou não institu- cional, é do âmbito da política. E a suposta negação do político, também o é. Mas com Dilma tudo parece ter operado negativamente, sempre. Para prosseguir valho-me de dois exemplos bem recentes, ilustrati- vos de tratamento diferenciado sobre trajetórias políticas baseadas na experiência de governo e na falta de experiência com eleições. São os casos do prefeito de São Paulo João Doria Jr (PSDB) e, mais recentemen- te, o do presidente eleito da França, Emanuel Macron (En Marche). Em ambos, o que foi apresentado como falta em Dilma se transforma, se reveste de sentido de virtude, não apenas nos discursos dos dois políti- cos, mas em especial na narrativa da mídia. Nesses candidatos, a inex- periência adquire a áurea de distanciamento da “velha” política e dos “velhos” políticos. Não se argumenta aqui que a explicação se deva ao gênero porque os dois políticos pertencem ao sexo masculino. É mais provável que a explicação esteja na esfera da onda conservadora em curso no mundo. Mas é possível sugerir que o fato de Dilma ser uma mulher tornou mais fácil e palatável a narrativa de seu “deslocamento” devido à inexperiência política; porque de mulheres sempre se cobrará um pouco ou muito mais; porque mulheres ocuparem cargos de diri- gentes ainda é o excepcional, é objeto de atenção com desconfiança e de certo estranhamento, ou de olhar mais acurado sobre e para toda e qualquer iniciativa pública. Vejamos então rapidamente a trajetória de Dilma Rousseff em exe- cutivos governamentais (e sem mencionar cargos em segundo escalão):

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 43 23/02/2018 14:42:43 secretária de Finanças de Alceu Colares na prefeitura de Porto Alegre; secretária de Minas e Energia pelo estado do Rio Grande do Sul; minis- tra das Minas e Energia no primeiro governo Lula e, posteriormente, ministra-chefe da Casa Civil desses governos. Neste último cargo, tor- nou-se responsável pela coordenação e gestão de alguns dos principais programas de políticas públicas do governo Lula, associados com pla- nejamento e execução e que foram carros-chefes das políticas sociais e de desenvolvimento. Como se nota, são cargos públicos e políticos, de governo, em níveis estadual e nacional, normalmente identificados como masculinos, estratégicos e não usualmente destinados às mulhe- res. Por que será que “caíram” no colo de Dilma Rousseff? Não seria um pouco lógico pensar que isto se deveu, de algum modo, à sua vivência política e que as suas qualificações técnicas lhes credenciavam para tais exercícios? No entanto, não foi o que se viu no Brasil. O currículo da mulher política como aquela que não concorreu a cargos, o uso distor- cido da trajetória de militância e da inserção coletiva e o esquecimento proposital de exercícios de cargos públicos eminentemente políticos fo- ram objeto das narrativas mais convenientes à grande mídia, para parte das elites brasileiras e também para redes sociais. E, mais preocupante, é o que continua a ser reproduzido. Já Macron e Doria...

Experiências e “despersonificação” Como sugerido, o período que vai da campanha eleitoral de 2010 até o impeachment da presidenta pode ser lido como experiência prática de desqualificação do sujeito político pelo viés de gênero, mas em dinâ- mica ambígua. Por alguns ângulos, a experiência pode ser vista como a forma através da qual Dilma como indivíduo, como pessoa sexuada e generificada, como candidata, como presidenta e como representante de um projeto político foi construída (ou desconstruída) e corporificou um ser “fora do lugar”, como costumam estar as mulheres em ambien- tes “não-familiares”, ou mesmo nos familiares. A ambiguidade de estar

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 44 23/02/2018 14:42:43 sempre fora do lugar. (COLLIN, 1991) Essa imagem parece ter sido um dos sustentáculos acionados para que se pudesse viabilizar a deslegiti- mação política de alguém que precisaria ser apeado do poder. A ambiguidade surge através da personificação de uma Dilma des- provida de substancialidade, vazia de atributos pessoais, de capacidade intelectual, de experiência e de capacidade política, um ser vazio, apesar de uma trajetória de vida intensa. Ao mesmo tempo, é o ser ameaçador, autoritário, manipulador e ambicioso. Na vida pública, em um momen- to é guerrilheira e, portanto, pessoa (ainda mais mulher) violenta que pega em armas; em outro, é apenas a aparência de guerrilheira incapaz, sem coragem de pegar em armas ou de atirar; a ocupar meras posições de apoio, conforme sugerido por um colunista. Passa-se, assim, da violên- cia como perigo à ausência dessa violência como falha. (NUNES, 2017) No tratamento da sua vida privada a ambiguidade tende a perpassar a forma como suas relações familiares e afetivas aparecem: ora a mulher solitária, separada, sem marido; ora a mulher casada duas vezes, mas sempre submetendo sua vida (até suas escolhas de partidos) às decisões de seu cônjuge, obediente e submissa. A sexualidade varia: da condi- ção de assexuada à condição de lésbica; ou de assexuada à condição de histérica, o que responderia por sua possível irascibilidade, conforme explicitado publicamente por jornalista de uma das grandes revistas semanais de circulação nacional, posteriormente criticado pelo movi- mento feminista. Como um ser “fora do lugar”, Dilma parece surgir como aquela sem habilidades e apetite para governar (características estas marcadas por um estereótipo de feminino ou de masculino, a depender de quem as tenha). Ao mesmo tempo, Dilma é alguém de natureza autoritária e perigosa. Alguém ora sem condição de exercer uma agência de poder, ora ambiciosa em excesso, a ponto de achar que poderia direcionar essa agência prescindindo das práticas institucionalizadas da política bra- sileira. Sobre Dilma, transitou-se e transita-se entre excessos e faltas, nunca o equilíbrio.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 45 23/02/2018 14:42:43 Após uma primeira eleição bem disputada, quatro anos de mandato, de uma reeleição em disputa acirrada, aberta, com debates, e após cerca de um ano e quatro meses de boicotes e ataque da grande mídia, Dilma continuou sendo apresentada por apoiadores do golpe como esse al- guém fora do lugar. Sua defesa pública no Senado Federal foi considera- da histórica, substantiva e corajosa. Respondeu a uma sabatina e deba- tes por mais de 12 horas e mostrou substância ao fazê-lo. Mas após mais de um ano do golpe, a desconstrução e a desqualificação continuam a ser aspectos centrais na grande mídia. A guerra político-jurídica-ideo- lógica dessa desconstrução segue sustentada pelo viés de gênero, que imputa às mulheres, de forma aberta ou velada, lugares e papéis redun- dantes ou aquém do esperado. Assim como na revista Veja8, outros ar- tigos e manifestações poderiam ser elencados. Para este texto cabe ape- nas e por último mencionar o editorial do jornal O Estado de São Paulo, periódico de abrangência nacional e conhecido como porta-voz de par- celas do empresariado e da elite econômica brasileira. Seu editorial do dia 12 de maio de 2017, cujo objeto é a presidenta Dilma Rousseff, de certa forma sintetiza os itens abordados acima. O texto tem o seguinte título “Retorno à irrelevância”. Para além de críticas ao modelo político implantado, ao PT, entre outras, o traço é abertamente desqualificador em conteúdos e ancorados em recursos linguísticos grosseiros, embo- ra sob aparência sofisticada. A retórica da inabilidade acompanha a da (in)experiência. A “inabilidade” de Dilma é remetida à perda da maio- ria parlamentar. O tratamento depreciativo consistentemente repetido pode ser sintetizado em dois trechos do referido editorial. No primeiro, Dilma surge num misto de agente,9 traidora e ingênua que a remete ao seu “não-lugar”. É pelo viés da ausência e não da presença, que sua des- personificação mais uma vez está posta. Afirma o Editorial: “Invenção de Lula da Silva, a jejuna Dilma Rousseff traiu seu padrinho ao acreditar que tinha sido eleita não para guardar lugar para a volta do chefão pe- tista ao poder, mas para pensar e agir por conta própria”. Em seguida,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 46 23/02/2018 14:42:43 contrariando a história quanto à sua trajetória política e inúmeros regis- tros sobre sua erudição, a ex-presidenta é tratada como alguém despro- vida de qualquer inteligência, quase uma idiota e fora do lugar. A linha de desqualificação prossegue ao longo do editorial. A desqualificação reside na escolha precisa dos termos ou das frases que a inabilitam em qualquer situação, já que, segundo o editor,

[...] Dilma Vana Rousseff não apareceu por um acaso na Presidência da República. Sem nenhuma qualidade que a credenciasse para tão relevante função pública, ela não teria subido a rampa do Palácio do Planalto, há cinco anos, se não fosse pela vontade do capo petista Luiz Inácio Lula da Silva [...]” (RETORNO..., 2017, grifo nos- so)

O lugar segue dúbio, como se vê: ingênua e ambiciosa ao mesmo tempo... Em suma, mais uma vez não se esclarece se o mal, ou a falha estaria na sua ambição ou na sua ingenuidade. A desqualificação beira a misoginia, sem qualquer pudor no conteúdo e na forma.

Observações finais? Uma rápida passada de olhos por algumas manchetes nos dois perío- dos eleitorais, durante os governos de Dilma, em especial nos meses que precederam o impeachment, permite notar como o sentido do termo experiência política foi usado todo o tempo por atores diversos – parti- dos de oposição, mulheres políticas pertencentes a partidos de oposição, políticos que não se definiam como de oposição, dentre outros. Em relação a Dilma, a dinâmica desqualificadora parece ter opera- do como único vetor para o apagamento do histórico de sua constante participação política. Do momento que se identificou como candidata até o presente, todo o tempo coube à pessoa da candidata, da presiden- ta e da figura pública marcar, lembrar e afirmar essa trajetória, resga- tar seu passado também como coragem e compromisso de quem, por

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 47 23/02/2018 14:42:43 coerência, permaneceu por mais de 40 anos experienciando a política. Aqui é possível sugerir, para observações mais sistemáticas, que regis- tros apagados ou distorcidos se juntaram num matiz ideológico e mi- sógino bem além de críticas às suas limitações como política ou gover- nante. No passado, perigosa ou ingênua. No presente, não bastou ser desprovida de qualquer virtude política. Foi necessário também o ridí- culo e o desrespeito; foi necessário transformá-la em pessoa assexuada ou sexualmente “desviante”, desprovida de atrativos e de inteligência. O gênero foi acionado na maioria das vezes como recurso negativo da figura pública da mulher Dilma Rousseff, o que de certa forma é o pa- drão. Mas o espectro e diversificação das formas da deslegitimação fo- ram tão amplos, que só estudos mais sistemáticos poderão analisar o seu efetivo impacto no processo do impeachment. De início o que sur- ge é um período marcado por muito preconceito e misoginia. A história do golpe, de suas narrativas legitimadoras e de como o gênero consti- tuiu uma dessas narrativas está começando a ser analisada. Ultrapassa o impeachment e expressa valores que ainda bem arraigados em nossa sociedade. Aqui foram indicados alguns tópicos para futuros estudos.

Notas 1 A exemplo de que escreveu Nogueira (2016) em seu blog no jornal O Estado de S. Paulo. 2 Usarei os termos “deslegitimação”, “deslegitimação de gênero”, ou ainda “deslegitimação simbólica de gênero” para me referir a aspectos de um mesmo fenômeno: a desqualificação da pessoa e do sujeito político pertencentes ao sexo feminino por ser desprovida dos “atribu- tos” associados com a figura do político e de representações tradicionais de sexo. 3 A análise da série histórica das pesquisas feitas pelo instituto Datafolha revela que até o início de junho de 2013 a popularidade da presidenta continuava bem elevada. Decresceu abrupta- mente no final de junho e foi assim até dezembro de 2013. Mas voltou a se recuperar a partir daí, a ponto de garantir a vitória eleitoral em 2014. Nos dados do Instituto pode-se notar que embora a maior queda de popularidade na crise de 2013 tenha sido entre as mulheres, foi também entre elas que os índices de apoio ao governo da presidenta foram mais elevados fora desse momento mais crítico. 4 Ângela Merkel na sua primeira campanha para chanceler recebeu o apelido de “Mutti” (avó) da parte de seus opositores. Uma forma condescendente, mas, claro, desqualificadora de tra- tá-la como política, pois se refere a um ser do sexo feminino que deveria estar cuidando dos netos, e não fazendo política. Dilma não teve a mesma sorte de receber apelidos carinhosos.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 48 23/02/2018 14:42:43 5 Sobre Max Weber e o tema da Dominação e do carisma na política, ver, entre outros, Sell (2011). 6 Não se desconsidera aqui o fato concreto do carisma do presidente Lula e do desafio para qual- quer pessoa que o substituísse; ou ainda a importância do carisma para o/um líder. Apenas se reflete sobre o sentido qualificador que essa dimensão adquiriu no caso em análise. 7 Não estão em questão dimensões institucionais e sistêmicas problemáticas, como por exem- plo, o número de partidos efetivos com os quais se tem que negociar (na Câmara dos Deputados) ou a distribuição de recursos e financiamentos. 8 Ver como exemplo os três artigos escritos pelo jornalista Augusto Nunes no seu blog na revis- ta Veja, entre os dias 13 e 15 de maio de 2017, respectivamente. 9 Aqui, “agência” na acepção sociológica é usada como atributo do sujeito que age, e o faz in- tencionalmente.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 49 23/02/2018 14:42:43 NOGUEIRA, M. A. Dilma, o feminismo e o machismo. Estadão, São Paulo, 27 jul. 2016. Disponível em: . Acessado em: 27 abr. 2017.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 50 23/02/2018 14:42:43 Imaginário, mulher e poder no Brasil: reflexões acerca do impeachment de Dilma Rousseff

Cláudia Leitão*

No dia 15 de setembro de 2011, às 15 horas, entrei * Professora e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais com a ministra da Cultura na sala Apli-cados da Universidade da presidenta Dilma Rousseff para apresentar-lhe Esta-dual do Ceará (UECE) e consultora para economia o anteprojeto do Plano Brasil Criativo, voltado ao criativa da Organização fomento da economia criativa brasileira.1 Também Mundial do Comércio (OMC) e Conferência das Nações participaram da audiência a ministra da Casa Civil, Unidas sobre Comércio e , além da secretária da presidência, Desenvolvimento (UNCTAD). responsável pela ata da reunião. Depois de uma hora de exposição e discussão, a presidenta determinou que a construção do Plano seria liderada e coorde- nada de forma compartilhada entre o Ministério da Cultura (MinC) e a Casa Civil. Saímos, a ministra da

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 51 23/02/2018 14:42:43 Cultura e eu, animadas com o êxito da empreitada. Naquele momento festejávamos a chegada da primeira mulher à presidência e ainda não ha- víamos percebido que aquela vitória, inspiradora de uma nova ordem, provocaria uma grande desordem e instigaria uma reação, especial- mente dos segmentos sociais, políticos e econômicos do país. A vitória de Dilma Rousseff seria o nascedouro de sua futura derrota. A memó- ria mais forte que guardo da minha experiência à frente da Secretaria da Economia Criativa é a daquela audiência, e a imagem recorrente é a daquela mesa, em que somente mulheres discutiam animadamente ce- nários, desafios e novos caminhos para o desenvolvimento brasileiro. Como se sabe, depois de disputar e ser novamente vitoriosa nas eleições de 2014, a presidenta da República foi afastada do cargo no dia 31 de agosto de 2016, em uma votação no Congresso que se tornaria um dos episódios mais sombrios vividos por aquela Casa. Transmitido pela mídia para todo o país, as imagens de centenas de deputados des- tilando o seu ódio à presidenta, em nome de um discurso pautado em “Deus” e na “Família”, demonstravam de forma monstruosa a ânsia do Poder Legislativo de retirar a presidenta do lugar de chefe de mandatária maior da Nação. Havia, nas falas iradas e nos gestos patéticos daqueles homens, um misto insuspeito de violência e de alegria. Era evidente que a resistência da presidenta da República às pressões dos congres- sistas, simbolizada pela sua insubmissão diante das demandas do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, lhe custaria muito caro. Como compreender aqueles discursos e atitudes? Nesse momento, eu já havia saído no MinC e, como parte da popula- ção brasileira, acompanhei pelas mídias a sua agonia. As análises relativas a esse processo, quase sempre de natureza econômica e política, vêm su- bestimando outras dimensões que podem emprestar uma maior comple- xidade ao fenômeno da sua deposição. Penso que os estudos de gênero pro- duzidos pela antropologia do imaginário podem contribuir para ampliar as análises tradicionais sobre o poder, revelando novos olhares e outras dimensões acerca do impeachment de Dilma Rousseff.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 52 23/02/2018 14:42:43 Segundo o sociólogo francês Gilbert Durand, o imaginário “é o con- junto de imagens e de relações de imagens que constitui o capital pen- sado do ‘homo sapiens’”. (DURAND, 1997 apud PITTA, 2005, p. 15) O imaginário enfatiza os significados dos símbolos e das imagens (em um mundo onde somente os conceitos ganharam hegemonia!), permi- tindo às análises históricas uma nova possibilidade de interpretação de fatos, representações, comportamentos, discursos e gestos, a partir de um olhar menos positivista e mais complexo sobre a interação dos sujei- tos com o mundo. Subjacente aos modos de ser e de agir dos indivíduos nas sociedades, existe um repertório ou um repositório de arquétipos, símbolos e mitos. Desse modo, as pulsões subjetivas que respondem às intimações objetivas das sociedades constituem o que Durand (1997 apud PITTA, 2005, p. 15) nomeia de “trajeto antropológico”, ou seja, através dos gestos, símbolos e imagens de pessoas e grupos em um de- terminado tempo histórico é possível compreender a “bacia semântica” que nutre aquelas pessoas e grupos. A antropologia do imaginário estimula novas questões e outros olha- res sobre os estudos de gênero. Na busca de uma visão de mundo menos cartesiana, os mitos e as constelações de imagens propostas por Durand subsidiam a construção de uma epistemologia significativa para a mu- dança de paradigmas nas reflexões sobre a mulher. Segundo ele, o mito não é somente uma narrativa, mas um ato de pensar, um estado de espí- rito em busca de razões que escamoteiam o que é. (STRONGOLI, 2005, p. 148) O mito conjuga sensibilidade e racionalidade, transformando, em linguagem e em relato, escolhas feitas que, por sua vez, organizam modos e modelos de ser. As imagens organizam-se em constelações. Durand reagrupa as imagens em dois regimes: o diurno e o noturno. Cada cultura possui sua dinâmica, ou seja, sua forma de estruturar imagens, símbolos e sig- nos. O regime diurno, marcado pela luz e pelas divisões, é caracterizado pela sua estrutura heroica, que expressa o racional, o maniqueísmo, a excludência, a lógica da construção de heróis, o masculino. O regime

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 53 23/02/2018 14:42:43 noturno, por sua vez, caracteriza-se pela conciliação, possui uma estru- tura mística, que se refere ao sentimento, ao intuitivo, à união, à intimi- dade, ao feminino. (NOGUEIRA, 2005, p. 101-102) No entanto, ao analisarmos as sociedades, em uma perspectiva tem- poral, podemos observar passagens (sempre caóticas) das estruturas antropológicas relacionadas ao masculino para aquelas fundamentadas no feminino, ou vice-versa. Nas sociedades pós-industriais, por exem- plo, o mito de Prometeu, símbolo das imagens heroicas e da força da razão e do individualismo, presentes no século XX, começa a ser obs- curecido pela presença de Dionísio, que representa as imagens do femi- nino, marcadas pela prevalência do sentir sobre o analisar, enfim, pela reintegração do inconsciente e do subjetivo ao racional e ao intelectual. O masculino e o feminino substituiriam, por conseguinte, a dialética entre a ordem e a desordem. Enquanto o universo masculino é solar, diurno, apolíneo, a representação feminina é lunar, noturna, dionisía- ca. De que forma as estruturas do imaginário de Gilbert Durand podem apoiar nossa reflexão sobre as difíceis e complexas relações entre a mu- lher e o poder no Brasil, contribuindo para uma hermenêutica sobre o impeachment de Dilma Rousseff? A imagem do trabalho no Brasil é especialmente significativa para as análises de gênero, especialmente, para os estudos do imaginário do poder. Afinal, a divisão do trabalho moderno segundo o sexo, destinado a estimular relações de dependência entre homens e mulheres, é fruto de uma sociedade prometeica, que encontrará sua anima na represen- tação da mulher enquanto “esposa-dona de casa-mãe de família”, ofe- recendo-lhe o lugar da vigília, dos afazeres domésticos e dos cuidados familiares. Se, em meados do século XIX, com o surgimento da socie- dade industrial, a força de trabalho feminino começa a escapar da esfera doméstica, a sociedade burguesa encontrará seus modos de enfrentar essa realidade, a partir da construção de discursos moralistas contra as mulheres. O disciplinamento de ritos e a definição dos significados dos símbolos acabam por domesticar desejos e destruir sonhos. Destinada

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 54 23/02/2018 14:42:43 à tarefa do “chão de fábrica”, a mulher operária não tem participação nas entidades de classe nem nos sindicatos. É o que observa Margareth Rago (1987, p. 65):

Certamente, a construção de um modelo de mulher simbolizado pela mãe devota- da ao sacrifício, implicou na sua completa desvalorização profissional, política e in- telectual. Esta desvalorização é imensa porque parte do pressuposto de que a mu- lher em si não é nada, de que deve esquecer-se deliberadamente de si mesma e realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido.

O campo profissional da mulher nas sociedades industrializadas é, portanto, reduzido e subalterno, pois representa a antítese do lar. A elas são interditados os cargos de chefia e os processos decisórios. Para o imaginário operário, a mulher simbolizará a fragilidade, assim como a figura vítima da exploração do sistema capitalista, enquanto a maternidade lhe garantirá a simbologia de guardiã do lar e de instru- mento da procriação. É o que estabelecem, por exemplo, os documentos da Câmara Federal sobre as condições do trabalho da mulher, produzi- dos pelos deputados em 1919, com o objetivo de produzir-se uma legis- lação social (MOURA, 1982 apud RAGO, 1987, p. 69):

Somos todos concordes em considerar que o trabalho é o aviltamento e a escravi- dão da mulher, porque é o fim da solidariedade conjugal, da família. O verdadeiro reino da mulher é o lar. Se ela o abandona, se ela não sabe aí servir ao homem e aos filhos, acabou-se o seu poder, foi-se a sua influência.

Ao mito do amor materno é, ainda, acrescentada a força simbólica dos discursos científicos, que legitima os limites da atuação feminina no mundo do trabalho. Enquanto ao homem é destinada a esfera públi- ca, caberá à mulher a vida privada, a intimidade das alcovas, a invisibi- lidade na vida social, política, econômica e cultural. Enfim, será con- siderada “normal” a mulher que demonstrar o sentimento inato, puro

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 55 23/02/2018 14:42:43 e sagrado da maternidade, sentimento este considerado natural e, por isso, presente em todas as fêmeas no planeta. Mas as representações da natureza feminina também se identificam às imagens bíblicas de Maria, aquela que, de forma (des)sexualizada, torna-se mãe do salvador. Tais quais as imagens da cristandade, a mãe -esposa-dona de casa é representada de forma pura, ordeira e passiva. A Igreja e o Estado se encarregam de disseminar, por meio de seus sím- bolos, mitos e representações, o ideal feminino que melhor convém ao sistema econômico, social e cultural. Quaisquer comportamentos des- viantes deste modelo são punidos como pecados pela Igreja ou como atos subversivos pelo Estado. De forma antagônica e complementar às imagens da pureza, também surgem, ao longo das civilizações, imagens profanas da mulher eroti- zada, mundana, de sexualidade insubmissa. Desde o Brasil Colônia, a misoginia e o racismo estiveram presentes e foram decisivos na forma- ção da nossa sociedade patriarcal. O imaginário do Brasil República não se distancia da bacia semântica do Brasil Colônia. As representações da mulher estão sempre associadas dialogicamente às imagens da mulher do lar assim como às da mulher vadia, perdida, enfim, a louca da casa. Essas observações nos permitem constatar que, em pleno século XXI, a presidenta da República Dilma Rousseff será, ao mesmo tempo, simbolizada pelo arquétipo da mãe (quando seu antecessor a nomeia como a “Mãe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)”), ao mesmo tempo em que é desqualificada pelos seus opositores por meio de uma retórica sexista e homofóbica. É o caso da narrativa do deputado Jair Bolsonaro, ao condenar a tentativa do Ministério da Educação de adotar cartilha contra preconceitos sexuais, quando afirma que: “a pre- sidente deve parar de mentir. Se gosta de homossexual que assuma. Se o teu negócio é amor com homossexual assuma... Esse kit gay é o presente de natal que a Dilma Rousseff está proporcionando para as famílias po- bres do Brasil”. (VIRISSIMO; OLIVEIRA, 2011) Desde os primórdios do Brasil República, o Movimento Anarquista construiu um contradiscurso à dominação machista. Contudo, a reação

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 56 23/02/2018 14:42:43 anarquista irá corroborar as representações negativas sobre a vida po- lítico-partidária: “A política de partidos é sinônimo de farsa, astúcia, ambição, de hipocrisia e preconceito.” (MOURA, 1932 apud RAGO, 1987, p. 101). Se a imagem da pureza, associada à mulher, não encon- tra respaldo na atividade política, a mulher que exerce cargo político carrega consigo o peso da mulher sem princípios, da mulher vadia, da mulher da rua e não da casa. Nesse sentido, o vereador José Crespo do Partido Democrático Brasileiro (DEM) corrobora nossa observação ao escrever, em março de 2016, na sua rede social, um post denominado: “RENUNCIA, VAGABUNDA”. Acrescente-se a isso o artigo “Vaca até quando?”, da jornalista Marina Rossi, no jornal El País, de março de 2015:

Durante o pronunciamento em rede nacional de Dilma Rousseff no Dia Internacional da Mulher em 2015, centenas de brasileiros, em 12 capitais do país foram até as ja- nelas e sacadas dos prédios e bateram panelas para se manifestar contra a presidenta. Piscaram as luzes de casa, buzinaram nos carros e gritaram. Além do barulho da co- lher no teflon, foi possível ouvir xingamentos, como ‘vaca’, ‘puta’ e ‘arrombada’, dire- cionados à presidenta.

A construção simbólica do poder observa a proximidade ancestral do imaginário político e religioso. Se observarmos através de está- tuas, as representações do poder nas cidades do mundo, as mulheres representadas são, na sua grande maioria, rainhas ou santas! Embora as sociedades tenham buscado emancipar o imaginário político do re- ligioso, não podemos afirmar que nas sociedades pós-industriais essa dessacralização seja uma realidade, pois as imagens do chefe e do líder continuam promíscuas às imagens do pai e do salvador no imaginário brasileiro. Mesmo os regimes democráticos não estão infensos às repre- sentações do poder das multidões. Nas análises acerca da personalidade da presidenta, por exemplo, as críticas ao seu estilo de governar sempre foram abundantes, especial- mente, nas classes médias e altas, entre homens e mulheres. De um

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 57 23/02/2018 14:42:44 lado, o público masculino denunciava sua incapacidade de “negociar” e sua falta de apetite em urdir acordos políticos – um talento considerado “masculino”–; de outro, segmentos de mulheres observavam que o seu modo de ser – de vestir-se, de portar-se – estava distante das expectati- vas acerca de um certo ethos feminino. Essas percepções são importan- tes para que possamos observar que, como todo o imaginário, a esfera do político é composta por um complexo de imagens, cujas representa- ções encontram maior ou menor acolhida na vida dos indivíduos. As grandes construções da imaginação social estão disponíveis para as pretensões mais antagônicas. O imaginário político é, sem dúvida, o reflexo da cultura, do frágil equilíbrio entre as diferentes linguagens que dispomos para dar significado ao que somos e ao que fazemos. (ARAÚJO; BAPTISTA, 2003, p. 262) Estas reflexões nos permitem in- dagar: o poder presidencial e suas prerrogativas, exercidos por Dilma Rousseff, encontraram adesão pública no Brasil? Ora, o saber foi interditado à mulher por milênios. E, por conse- quência, à mulher foi negado o exercício do poder. O saber, como o sagrado, foi considerado o apanágio de Deus e do homem (PERROT, 2012, p. 91) e, por isso, a interpretação dos textos religiosos, como as escrituras do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, foi reservada predominantemente ao mundo masculino. Para os gregos, a criação é uma tarefa masculina, o que fundamentará o distanciamento da pro- dução artística e científica do imaginário feminino. A educação, mesmo na Idade das Luzes, também foi considerada um privilégio dos homens. Mesmo Rousseau enfatizou o papel subalterno da mulher, sempre ca- racterizado pelos seus deveres junto aos homens. O avanço da mulher, nos últimos cem anos, na construção de um protagonismo nas artes, nas ciências, na política, na administração e em muitas profissões consideradas tipicamente masculinas, não tem ocorrido sem dilemas e conflitos. Ocupar espaços interditados, sa- ber para poder, conhecer para ser reconhecida, transfigurar símbolos para ampliar imaginários vem sendo uma tarefa árdua e complexa. Por

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 58 23/02/2018 14:42:44 outro lado, em uma sociedade marcada pelo autoritarismo, a atividade político-partidária se mantém conectada à bacia semântica das ima- gens patriarcais, de um lado, marcadas pelo messianismo (simboliza- da pela imagem do caçador de marajás, construída pela campanha para Fernando Collor de Melo à presidência), de outro, pela negação ou mes- mo desprezo à atividade política (simbolizada pela campanha de João Doria Jr à prefeitura de São Paulo, que construiu a imagem do gestor competente e antipolítico). Duas grandes representações da política convivem no imaginário brasileiro:

De um lado, aqueles bens intencionados, por uma causa ingrata dotados de elevado espírito público, mas ingênuos, que estariam arriscando sua segurança e de sua fa- mília, que não lhes dará em troca senão decepções e prejuízos. De outro lado, mos- trariam interesse pela política, as pessoas maliciosas, espertas, de escrúpulo discu- tível, para as quais essa atividade representaria, mais que tudo, uma oportunidade de obter vantagens pessoais à custa do erário público. (TABAK; TOSCANO, 1982, p. 56)

Ressalvados os períodos de exceção, nos quais o interesse coletivo desperta, como reação aos desmandos ditatoriais, a apatia, a inapetência e a passividade no exercício da política vêm revelando, cada vez mais, a sociedade o apartheid entre a nova sociedade de redes e os interes- ses corporativos representados nas bancadas congressuais. Se o apetite pela vida político-partidária arrefece no mundo e no Brasil, é evidente que o protagonismo feminino no cenário político é reduzido. Afinal, no imaginário brasileiro, a imagem da mulher na política é o da com- panheira abnegada, da esposa amantíssima, da confidente e cúmplice, sempre solidária às ambições, às agruras e aos desafios de seus maridos. Tal qual o mito de Penélope, do amor que não se cansa de esperar, reser- va-se, naturalmente, às mulheres, filhas e viúvas dos políticos brasilei- ros o panteão da lealdade e da dedicação. Como Penélope, que espera Ulisses voltar da guerra de Troia, e que borda para enganar o tempo, as

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 59 23/02/2018 14:42:44 mulheres participam das suas sombras das trajetórias de seus maridos. Impossível lembrar do nosso Ulysses brasileiro sem a figura de Dona Mora, de Vargas, sem a filha Alzira e, atualmente, de Eduardo Campos, sem Renata. Portanto, no imaginário brasileiro, a ação política femini- na encontra-se historicamente marcada, ora pelo altruísmo, solidão, culpa e desamparo, ora pelo mundanismo, futilidade, superficialidade e fragilidade e, por fim, pelas imagens da insensibilidade e dureza, ou seja, pela masculinização. Assumir suas guerras e travestir-se de Ulisses não é, portanto, uma tarefa desejável para as “boas” mulheres, ambição inoportuna em um país onde as próprias mulheres têm dificuldades em votar em candida- tas mulheres. As pesquisas capazes de aprofundar esse comportamento feminino ainda não são satisfatórias, pois necessitaríamos aprofundar as subjetividades femininas e analisar os mitos aos quais suas represen- tações estão historicamente conectadas: ausência de capacidade de lide- rança, excesso de emotividade, pouca habilidade para a gestão, são algu- mas entre várias representações negativas da mulher como um “animal político”. A história eleitoral brasileira expressa a grande lacuna de mu- lheres na vida política do país:

Nas primeiras eleições à Assembléia Constituinte, logo após a queda da ditadura Vargas, apresentaram-se 18 candidatas, por diferentes Estados da Federação, não tendo nenhuma delas obtido votação suficiente para eleger-se. Assim, a mulher, que 14 anos havia começado a exercer o direito do voto, elegendo à Constituinte uma deputada e uma suplente, recuara, em 1946, para uma atuação eleitoral inex- pressiva, em termos de representatividade, e que não refletia, em absoluto, seu de- sempenho nos agitados anos que antecederam a deposição de Vargas. (TABAK; TOSCANO, 1982, p. 66)

Na história política brasileira, a presença feminina é, portanto, des- contínua, com altos e baixos, diferentemente do número sempre cres- cente da participação da mulher na força de trabalho em geral. Os mo- vimentos feministas, que vêm conseguindo dar institucionalidade e governabilidade a uma agenda de políticas públicas para as mulheres,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 60 23/02/2018 14:42:44 não têm obtido êxito em atrair um contingente mais expressivo de li- deranças femininas para os poderes legislativos municipais, estaduais e federal. Enfim, embora com proventos desiguais relativamente aos do homem nas mesmas funções, não se pode negar que a mulher con- quistou novos espaços sociais, ocupando lideranças em áreas tecnoló- gicas, acadêmicas, artísticas, de gestão de negócios, entre tantas outras, que até bem pouco tempo eram hegemônicas do público masculino. No entanto, esses avanços não têm ocorrido no lócus político-partidá- rio. Mas, o que justificaria essa realidade? E em que medida esse fato se conecta com o impeachment de Dilma Rousseff? Estudiosos do imaginário carregam consigo alguns “vícios” na ob- servação do social. Na posse de Michel Temer, as imagens de sua posse não poderiam ser mais simbólicas, permitindo ver o reaparecimento de uma velha semente mítica do imaginário brasileiro que voltaria a germinar. A lógica aristotélica do “só encontras aquilo que procuras” (DURAND, 1996, p. 113) não poderia ser mais oportuna. Homens de pele branca, de idade avançada, oriundos da mesma classe social reu- niam-se para ritualizar a volta daqueles que nunca saíram do poder. Se um metalúrgico assume a presidência da República, oito anos antes de Dilma Rousseff, uma leitura apressada nos levaria a acreditar que es- ses dois mandatos simbolizariam a irrupção de um novo mito, marca- do desta feita pelos valores prometeicos da Modernidade: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Lula carrega consigo a ambição de Prometeu, que representa o regime diurno/heroico do fazer, do superar, daquele que rouba de Zeus o fogo para trazê-lo aos mortais. Mas a vingança de Zeus não tardará. Acorrentado para ter seu fígado comido eternamente pelos abutres, Prometeu pagará pela ousadia. Na tentativa de dar perenidade às tarefas de Prometeu e aos seus valo- res modernos, uma mulher é escolhida para ocupar o seu lugar. Afinal, o operário e a mulher estiveram juntos ao longo dos séculos XIX e XX lutando pelos seus direitos, irmanados, em princípio, pelas mesmas causas, pelos mesmos sonhos de igualdade, liberdade e fraternidade.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 61 23/02/2018 14:42:44 Mas a guerra de Penélope não se dará com as mesmas armas utilizadas por Ulisses. O mito de Prometeu, nas mãos da presidenta, entra em desgaste e em declínio. Afinal, Dilma não pode ser Ulisses e, enquanto Penélope, não poderá reverter as “regras do jogo”. Estranha e previsível repulsa por essa mulher presidenta que não poderá representar o mito triunfalista do homo-faber. Como Georges Sand, escritora francesa que abandona sua identidade feminina, para adentrar no mundo masculino da literatura, assumindo pioneiramente o uso das calças masculinas, também Dilma Rousseff o fará, para penetrar no mundo masculino da política. Mas todas as tentativas serão vãs. Mulher e feminilidade, ca- racterizados pelo regime noturno e sua estrutura mística não encontra- rão acolhida na sociedade patriarcal e suas virtudes virís. Instalado o governo Temer, seu primeiro ato foi de extinguir o MinC. O clamor das classes artísticas e culturais, no entanto, o obri- garam a devolver a institucionalidade ao Ministério. Nesse ínterim, o presidente compreende a importância estratégica de convidar algumas mulheres para compor o seu governo, na tentativa de aplacar as reações contra a legitimidade de seu mandato. Afinal, oferecer a uma mulher o cargo maior de uma pasta periférica seria convincente e oportuno. Dessa forma, mulheres passaram a ser convidadas e a declinarem do convite. Eu mesma recebi um telefonema de gestores públicos do Rio li- gados ao PMDB que me sondaram neste sentido. Caso aceitasse, o meu nome seria sugerido ao presidente. Uma mulher nordestina certamente seria bem vista em um governo de homens sudestinos. Minha resposta à sondagem foi um sonoro “não”! Lembro de uma palestra que assisti de Gilbert Durand na Sorbonne, quando fazia meu doutorado, e de suas palavras sobre o Brasil. O cria- dor das estruturas antropológicas do imaginário dizia que o Brasil não era uma pátria, mas uma nação que havia nascido sob a égide do femini- no. Para o sociólogo, o Brasil seria, mais cedo ou mais tarde, uma grande “mátria”, pois o homus novus brasiliensis é filho dileto da “pátria mãe gentil”, símbolo da fecundidade e cadinho da feminilidade:

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 62 23/02/2018 14:42:44 [...] a despeito das proezas dos bandeirantes, das revoltas heroicas da inconfidência mineira, das revoltas vãs dos paulistas e dos cangaceiros do Nordeste, as profunde- zas da alma brasileira são esta mística terrena, essa imensa natureza feminizada, encarnada ao mesmo tempo na mãe amamentadora negra, na amazona feroz, na amante mestiça, na nobre companheira da pele branca [...]. (DURAND, 1996, p. 203)

Durand e Caetano Veloso não estão errados. O nosso tropicalis- ta maior, quando compôs “Língua” diz não ter pátria e, sim, mátria! “Conhece-te a ti mesmo”, essa é, sem dúvida, a máxima do homo sa- piens. Lutar contra os deuses é lutar contra a própria condição humana. Em nosso imaginário luso-brasileiro a virtude da conquista é mascu- lina. Mais do que construir um projeto de poder político capaz de reu- nir cinco continentes, a colonização portuguesa hibridizou culturas e transfigurou imaginários. Fernando Pessoa descreveu em sua poesia o ethos navegador português. Em seu “Mar Português” (1974, p. 82) saúda a coragem dos navegadores, mas reserva às mulheres um lugar subal- terno: “[...] Por te cruzarmos, quantas mães choraram... quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar! [...]”.

Notas 1 Ver Leitão e Machado (2016).

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DURAND, G. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

LEITÃO, C. S.; MACHADO, A. F. (Org.). Por um Brasil criativo: significados, desafios e perspectivas da economia criativa brasileira. Belo Horizonte: Código, 2016.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 63 23/02/2018 14:42:44 LEITÃO, C. S. Ter ou não ter o direito à criatividade, eis a questão: sobre os desafios, os impasses e as perspectivas de um Brasil criativo. In: LEITÃO, C. S.; MACHADO, A. F. (Org.). Por um Brasil criativo: significados, desafios e perspectivas da economia criativa brasileira. Belo Horizonte: Código, 2016. cap. 13, p. 309-378.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 64 23/02/2018 14:42:44 O golpe e as perdas de direitos para as mulheres

Eleonora Menicucci*

O golpe parlamentar que retirou do poder a pre- sidenta Dilma Rousseff em maio de 2016, para além * Professora titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal de ter sido um movimento visando interromper um de São Paulo (UNIFESP). Foi processo de mudanças sociais no Brasil, tem tam- ministra da Secretaria de bém um componente forte de discriminação de gê- Políticas para as Mulheres do governo eleito de Dilma nero. Dilma foi a primeira mulher eleita presidenta Rousseff. em um país de cultura marcadamente patriarcal. Assumindo o governo, não apenas continuou o programa de inclusão social iniciado pelo presi- dente Lula em 2003, mas aprofundou-o em muitos de seus aspectos, principalmente em relação às po- líticas para as mulheres. Estava dada a senha para que os opositores do projeto – o grande capital, notadamente o financeiro e a mídia, na qual três

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 65 23/02/2018 14:42:44 famílias detêm o controle dos principais veículos de comunicação – pusessem em marcha a engrenagem que levou ao golpe. A esse agrupamento logo se juntaram setores majoritários da classe média, incomodados com a ascensão de milhões de brasileiras e de bra- sileiros ao que se convencionou chamar de nova classe média, ou me- lhor dito, nova classe trabalhadora, que teve o poder de compra amplia- do como nunca visto na história do Brasil. Reclamavam, por exemplo, de os aeroportos terem ficados parecidos com as estações rodoviárias já que os aumentos de salários acima da inflação e uma melhor distri- buição de renda permitiu o acesso desses emergentes às viagens aéreas. Isso acabava com a distinção e privilégio que lhes parecia natural, quase um dom divino de não pertencerem à mesma classe social dos até então excluídos. Um grande número de novos consumidores passou a ter acesso também a celulares e à internet, à compra de automóveis e bens de consumo duráveis, acesso às universidades, entre tantas outras conquistas que mudaram o panorama da vida brasileira. Partindo dessa análise é que afirmo que estamos há um ano sob a vigência de um golpe patriarcal, machista, sexista, capitalista finan- cista, fundamentalista, mediático e parlamentar que retirou da pre- sidência da República a primeira mulher eleita e reeleita com mais de 54 milhões de votos. Ou seja, nesse caldeirão de interesses, é preciso enfatizar a dificuldade em aceitar que o poder era exercido por uma mulher. E a trataram com a falta de cerimônia, civilidade e respeito que caracterizam o comportamento machista em relação às mulheres em geral, como veremos mais adiante. Quem são os articuladores desse golpe em vigência? São homens brancos, ricos, violentos e vorazes que se explicitaram como estrutu- rantes do patriarcado brasileiro que une gênero, raça e classe. A foto da posse do ministério de Michel Temer chocou a população. Não havia ali uma mulher sequer, ou uma pessoa negra. Todos se caracterizam por pertencerem à mesma classe social e aos mesmos grupos de in- teresse. E uma grande parte acusada de corrupção, hoje comprovadas por uma série de denúncias.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 66 23/02/2018 14:42:44 Em menos de um ano, com uma voracidade jamais vista, desmonta- ram as políticas sociais que sustentam a vida cotidiana, eliminam direi- tos civis, sociais e trabalhistas que garantem a cidadania e privatizam bens públicos. A Petrobrás, que está sendo fatiada e vendida ao capital internacional, é um bom exemplo disso. E mais, ameaça-se vender as terras brasileiras a estrangeiros, o que é vetado até hoje. Ou a privatizar o enorme aquífero existente no subsolo nacional. São retrocessos decorrentes da implantação das políticas em que o foco não é a inclusão social e de garantia dos direitos humanos funda- mentais. Recentemente, o Ministério da Educação publicou as Diretrizes Curriculares Nacionais, que vão orientar o ensino em toda a educação básica brasileira. Elas foram fruto de um minucioso trabalho de consul- tas e discussões com todos os atores interessados durante o governo da presidenta Dilma. No entanto, a nova versão do governo golpista elimi- nou do texto todas as referências à gênero e orientação sexual. Um re- trocesso enorme nos direitos humanos, que visa atender os setores mais conservadores e fundamentalistas da sociedade. Esse conjunto de “reformas”, com ingredientes de ordem política e social, se assenta em especial nas mudanças da política econômica, com forte desregulamentação e orientação para os interesses do mercado. O foco está em arrecadar mais recursos para o pagamento dos juros exorbitantes da crescente dívida pública. Ou seja, parte do orçamento da União é voltado para os rentistas, isto é o que se chama economia rentista. O capital financeiro aplaude e agradece. Enquanto a maioria da população brasileira, pobre, é retirada do orçamento da União. Um retrospecto da linha do tempo do golpe, que teve seu início com as manifestações de 2013, deixa claro que o capital que rege os envol- vidos aproveitou e financiou as manifestações de direita, conhecidas como coxinhas. A primeira delas se deu com a violência sexual explícita contra a presidenta na abertura da Copa do Mundo em 2014, quando torcedores ricos e da direita gritaram contra ela palavras de baixíssi- mo calão e de significado sexual – “Ei, Dilma VTNC”. Manifestação

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 67 23/02/2018 14:42:44 amplificada com indisfarçável prazer pela mídia. E continuou ao longo do processo que culminou com o impedimento da presidenta. Esse período ficou marcado por manifestações de rua que brada- vam contra a corrupção – embora até os adversários reconhecessem que Dilma não era corrupta. E, ainda, com slogans nitidamente fascistas, racistas e misóginos. Ainda provoca imensa indignação, por exemplo, a lembrança de adesivos fartamente distribuídos mostrando Dilma com as pernas abertas para serem colados nos tanques de gasolina dos veí- culos. Quando tal tipo de agressão seria cometida contra um homem? Ainda causa vergonha e revolta nas pessoas sérias, ainda que de oposi- ção ao governo Dilma, a sessão da Câmara dos Deputados que autorizou o afastamento da presidenta. Nesta sessão um deputado, no momento em que votava, homenageia um dos maiores torturados de nosso país. Foi muito mais uma sessão de horrores e deboches, quando depu- tados e deputadas se manifestaram pelo sim em nome da família, da propriedade, da pátria e da tortura. A maioria deles e delas notoriamen- te corruptos e de passado pouco recomendável. Interessante notar que nenhum apresentou argumentos que comprovassem as acusações que pesavam contra a Presidenta. Tal demonstração de baixeza e falta de de- coro político seria o suficiente para anular o resultado da sessão. O que não ocorreu, porque o golpe já estava em processo, independentemente de comprovação das acusações, pois elas interessavam muito pouco. O protagonismo das mulheres na luta da resistência, na luta contra o golpe, teve, sem dúvida alguma, um primeiro motivo. Na eleição e na reeleição da presidenta Dilma, as mulheres brasileiras se sentiram muito representadas. Era uma mulher igual a elas, uma mulher divorciada, não era mulher laranja, era uma mulher com a retidão de vida – ética, honesta e sempre com a vida pautada na luta pela democracia e pela justiça social. Então elas pensaram: eu posso também. Nesse eixo simbólico, sentiam que o que estavam fazendo com Dilma também era feito com elas. E re- sistiram, mandaram-lhe flores, abraçavam-na quando a encontravam.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 68 23/02/2018 14:42:44 São dois fatores estruturantes desse protagonismo. O primeiro, ine- quívoco, que é do valor simbólico – “mexeu com uma, mexeu com todas”. O segundo é agora, porque na época do golpe o retrocesso era de gênero, retirar uma mulher e 11 ministras do poder. Agora, na resistência, com essa avalanche de medidas retroativas, de crueldade que o governo gol- pista está implementando, as mulheres viram que, além desse simbóli- co, há a perda de direitos concretos. As mulheres conquistaram com a Constituição Federal de 1988 o direito de aposentadoria com cinco anos a menos de idade e com cinco anos a menos de contribuição. Com essa reforma da previdência tudo vai se igualar, elas terão que trabalhar 49 anos para receber 100% da aposentadoria. E isso foi determinante para que elas estivessem na linha de frente da resistência ao golpe até hoje, independentemente de partido. Houve o carnaval do Fora Temer e mar- chas com milhares de participantes no 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a palavra de ordem, de novo, foi o “Fora Temer”. A greve geral contra as perdas de direitos, as grandes manifestações pelas “Diretas Já”, tudo isto está num crescente tomando as ruas do nosso país. Na verdade, as mulheres experimentaram durante os governos Lula e Dilma, conquistas importantíssimas com a implementação de polí- ticas sociais, que beneficiaram e beneficiam a população mais pobre do nosso país. E quem são os pobres? A população negra e a população feminina. Foram tirados 40 milhões de pessoas da pobreza. O Bolsa Família passa a ser visto pelas mulheres como um acesso à cidadania, porque o cartão para saque do benefício estava em seu nome; a entrega de mais de 1 milhão de documentos de identidade a trabalhadoras ru- rais, até então sem qualquer registro civil; as cisternas para trazer água para as casas da região Nordeste do país, constantemente assolada pela seca. Nesse caso, a principal beneficiária é a mulher, porque tradicional- mente cabia a elas andar quilômetros para buscar água que abastecesse a casa e a família. Em outros programas importantes, como o “Minha Casa, Minha Vida” que beneficiou milhares de famílias pobres. A titularidade é, em

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 69 23/02/2018 14:42:44 muitos casos, para as mulheres, porque, em casos de separação conju- gal, quando elas ficam com a responsabilidade pelos filhos, é impor- tante garantir a moradia da família. No Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) elas responderam pela maioria das matrículas. O interessante é a mudança do perfil de frequência aos cursos. Elas optaram, em grande número, não por conhecidos cursos para as mulheres – manicure, cabeleireira, costureira – e sim pelas pro- fissões que lhes permitiriam trabalhar nas plataformas de petróleo, na direção de veículos pesados, mecânicas, eletricistas, em profissões na construção civil e no conserto de produtos da indústria branca (gela- deiras, máquinas). A Secretaria de Políticas para as Mulheres com status de Ministério, criada no governo Lula, avançou demais no governo da Dilma, nas po- líticas de enfrentamento à violência, com programas importantíssi- mos, como o Mulher Viver sem Violência no valor de 360 milhões de reais, com seis ações para o enfrentamento à violência contra as mu- lheres: construção de 27 Casas da Mulher Brasileira, uma em cada es- tado para reunir, em um só espaço físico, todos os serviços necessários para acabar com a via sacra das mulheres que foram agredidas e estu- pradas. Inauguramos três casas (Campo Grande, Brasília e Curitiba) e deixamos em processo de construção mais seis (São Paulo, Salvador, Fortaleza, São Luiz, Boa Vista e Porto Velho). Hoje é lamentável que as três que já existiam não estejam mais fun- cionando. A de São Paulo, que foi entregue no final de 2016, encontra-se fechada envolta pelo mato, sem nenhuma satisfação da informação so- bre o que foi feito com os recursos públicos repassados. Também foram entregues 54 ônibus para percorrerem áreas rurais levando atendimen- to às mulheres vítimas de violência; o disque 180, os barcos onde estão? Este é um dos maiores exemplos do desmonte das políticas públi- cas para as mulheres. Também foi sancionada a Lei do Feminicídio, Lei nº 13.104/2015, pela presidenta Dilma, que tipifica a morte de mulher por questão de gênero, como crime hediondo variando a pena de 12 a 30 anos.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 70 23/02/2018 14:42:44 Feminicídio é um crime de ódio e seu conceito foi desenvolvido na década de 1970 para reconhecer e dar visibilidade à morte violenta de mulheres resultante da discriminação, opressão, desigualdade e vio- lência sistemáticas. Na área da Saúde, a presidenta sancionou uma portaria para uni- versalizar o atendimento às mulheres em situação de violência e de estupro, com oferta da contracepção de emergência e aborto, nos casos previstos em lei. Registre-se, ainda, a aprovação da proposta de emen- da à constituição, que incluiu as empregadas domésticas no acesso aos benefícios já concedidos às outras categorias profissionais. Sancionada pela presidenta, essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC), ficou conhecida como a PEC das Trabalhadoras Domésticas. Vale lembrar que mais de 90% de trabalhadores domésticos são mulheres. A maioria ne- gras e de baixa escolarização. Foram avanços enormes e a maioria deles foi estancado, desestru- turado ou paralisado. Em momentos de crises, Simone de Beauvoir já disse que os cortes acontecem primeiro nas ações voltadas para a vida das mulheres. Isso porque o patriarcado é o sustentáculo do capitalis- mo, o sustentáculo das políticas neoliberais. Estamos vivendo, portan- to, muitos retrocessos e perdas de direitos. Se a reforma da Previdência Social (que regula a pensão e aposentadoria de todas as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros) for aprovada será a mais cruel e a mais trágica para toda a população, mas, sobretudo, para as mulheres. Do ponto de vista do ensino, a aprovação da reforma do ensino médio com a inclu- são na base nacional do currículo da perspectiva da Escola Sem Partido, sem as disciplinas críticas, a exemplo sociologia, filosofia e educação física, o objetivo é formar cidadãos e cidadãs adestradas. São impactos que provocam retrocessos e colocam as mulheres em lugares dos quais já saíram, que são o tanque, a cozinha e o fogão, século XX. É muito re- trocesso e muita perda de direito, isso não pode ser aceito. Todas essas políticas exigiram um debate pesado com o Congresso Nacional, por ser uma das legislaturas mais conservadoras que já

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 71 23/02/2018 14:42:45 passaram pelo congresso. Foram duríssimos os embates, sendo que o debate sobre o aborto como uma questão de saúde coletiva nunca pôde ser feito. Esse retrocesso, no plano político, é representado, por exemplo, pelo número irrisório de ministras (apenas duas em 27 ministérios). E no desmonte de programas que garantiriam a emancipação e a igualdade de gênero. No aspecto referente à mulher na sociedade, o símbolo é a exaltação da primeira dama como o exemplo de mulher “bela, recatada e do lar”, em clara oposição à imagem da presidenta Dilma. Ainda nesse campo, o pronunciamento de Michel Temer na solenidade em homena- gem à mulher no dia 8 de março foi elucidativo, particularmente quan- do enalteceu o que vê como qualidades e responsabilidades das mulhe- res: educação das crianças e pelo bem estar da família. E culminou com a lembrança de que elas podem ter grande participação na economia, porque “ninguém mais é capaz de indicar os desajustes de preços no su- permercado do que a mulher”. (AMARAL, 2017) Os movimentos feministas e de mulheres reagem e denunciam tal rebaixamento nas redes sociais e nas manifestações de rua. Uma emis- sora poderosa de televisão, em uma semana, teve que responder a essa reação. Puniu um ator consagrado, afastando-o das novelas por assédio sexual a uma funcionária, e eliminou um concorrente de um programa de entretenimento chamado Big Brother Brasil, por agressão à namora- da na casa onde os participantes ficam confinados. Duas situações são emblemáticas da permanência e consolidação, porque não falar legitimação da cultura da violência e do estupro: a mi- nha condenação, por exemplo, emitida por uma juíza, a pagar a um de- terminado ator 10 mil reais por eu ter criticado a sua postura numa rede de TV, alegando que ele fazia apologia do estupro; a outra, recentemen- te contra a deputada Maria do Rosário, agredida por um humorista que divulgou via internet, gestos de violência sexual contra ela. Também fazendo contraponto ao retrocesso, o jornal digital Brasil 247, lembrou em artigo que “um ano depois do golpe, Dilma dá palestras na Europa e nos Estados Unidos, enquanto Michel Temer mal consegue sair

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 72 23/02/2018 14:42:45 do seu palácio, mas a mulher brasileira foi rebaixada”. (GOLPE..., 2017) Nesse contexto, é de se lamentar, embora não seja de se estranhar, que o Ministério da Mulher tenha sido rebaixado ao nível de uma secretaria na- cional, terceiro escalão da Secretaria Geral da presidência da República, sem autonomia e sem recursos para implementar minimamente projetos que atendam às necessidades e reivindicações das mulheres. Do ponto de vista de avanços ou de manutenção dos direitos con- quistados, tudo isso é muito ruim. E a perspectiva é piorar. É consolidar a perda dos direitos. E acredito que se as mulheres não estiverem nas ruas com informações para reivindicar, para protestar, para mostrar o que perdemos e o que vamos perder, será muito difícil retomarem uma questão fundamental: a democracia. Porque, como militante contra a ditadura militar depois presa e torturada, sei quanto sangue a minha geração derramou para reinstaurar a democracia no nosso país. Hoje o cenário brasileiro se apresenta como um dos mais perigosos da história do Brasil: a judicialização da política, a crescente crimina- lização dos movimentos sociais e dos partidos do campo de centro es- querda, a explicitação total do grupo que liderou o golpe que hoje está no executivo, no consórcio dos três grandes grupos da mídia, no judi- ciário, no tucanato e grandes empresários.

Referências AMARAL, Luciana. “Temer diz que só mulher é capaz de iniciar ‘desastres’ de de preço no mercado”. G1 Online, 08 mar. 2017. Dispo´nivel em: < https://g1.globo.com/politica/ noticia/mulher-ainda-e- tratada- como-figura-de- segundo-grau-no-brasil-diz- temer.ghtml>

GOLPE misógino rebaixou a mulher brasileira. Brasil 247, [S.l.], 10 abr. 2017. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2017.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 73 23/02/2018 14:42:45 o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 74 23/02/2018 14:42:45 Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política

Flávia Biroli*

Em 2016, um golpe parlamentar que contou * Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade com o protagonismo dos meios de comunicação de Brasília (UnB), onde e do Judiciário depôs a primeira mulher a chegar coordena o Grupo de Pesquisas sobre Democracia e à presidência da República no Brasil. A eleição de Desigualdades (Demodê). Dilma Rousseff em 2010, tanto quanto sua reelei- ção em 2014, pode ser tomada como uma indicação de que os obstáculos para a atuação das mulheres nas esferas de representação formal não estão loca- lizados na disposição de eleitoras e eleitores. O Brasil é um dos países com os menores índi- ces de representação feminina no mundo e no con- tinente americano. Os obstáculos à participação das mulheres na política podem ser localizados nas

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 75 23/02/2018 14:42:45 esferas da representação política formal (ARAÚJO; ALVES, 2007) e midiática (MIGUEL; BIROLI, 2011), mas também na divisão sexual do trabalho no cotidiano, que rouba às mulheres tempo e recursos fi- nanceiros, condições preciosas para que tenham voz na esfera pública. (ARAÚJO; SCALON, 2006; BIROLI, 2016b) Dilma Rousseff chegou à presidência em um contexto no qual as condições para a participação política permanecem em larga medida desfavoráveis no Brasil, mas a posição social relativa das mulheres se modificou bastante. O percentual de mulheres economicamente ativas aumentou significativamente no país, passando de 18,5% em 1970 para um teto de 59% em 2005, mantendo-se desde então em cerca de 56%. (PINHEIRO et al., 2016)As mulheres são mais escolarizadas do que os homens, tendo em média oito anos de estudos, enquanto eles têm sete anos e meio. Também tem havido mudanças significativas na configu- ração das famílias; entre 2000 e 2015, a taxa de fecundidade das mulhe- res brasileiras caiu de 2,39 para 1,72 filho. Trata-se de um processo de profundas transformações, mas também de resiliências: mencionei os obstáculos à participação política em conjunto com a divisão sexual do trabalho, que onera as mulheres desigualmente por tarefas que deve- riam ser de responsabilidade coletiva, como ocuidado com as crianças e os idosos, e gostaria de mencionar também a cidadania restrita pela recusa do direito ao aborto e pela violência cotidiana na forma de es- tupros, feminicídios, mas também em suas formas mais sutis, como o assédio moral ou sexual. É possível afirmar que a despeito da baixa presença das mulheres nos espaços de representação formal, elas têm atuado sistematicamente na política. A partir da transição para a democracia nos anos 1980, essa atuação tem ocorrido de forma mais organizada e com maior presença e incidência no âmbito estatal. Isso se ampliou com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder em 2003, por ser esse um partido que tem bases históricas em movimentos sociais, com maior abertura, por- tanto, para o ativismo feminista. Ainda está por ser feito um mapa das

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 76 23/02/2018 14:42:45 políticas públicas com perspectiva de gênero que foram construídas nesse período, em diversos âmbitos. Houve de fato uma agenda de gê- nero incorporada às políticas de Estado nas áreas de saúde, educação, assistência social, em políticas para o empoderamento econômico das mulheres e profissionalização das mulheres negras, em políticas de- senhadas para ampliar o acesso das meninas a carreiras em que os ho- mens predominam, em um conjunto robusto de medidas para tornar efetivo o combate à violência contra as mulheres. (MACHADO, 2016; MATOS, 2016;MATOS; PARADIS, 2014) A partir do Executivo, com destaque para a atuação da Secretaria de Políticas para Mulheres e para as estratégias de ação traçadas nas Conferências de Políticas para as Mulheres(2004, 2007, 2011, 2016), mas também a partir de decisões conquistadas no âmbito do Judiciário e de alianças pontuais no Legislativo, os movimentos feministas pro- duziram avanços importantes, entre os quais cito, a título de exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), sancionada em 2006, que per- mitiu institucionalizar e ampliar o combate à violência doméstica numa perspectiva de gênero; as Normas Técnicas do Ministério da Saúde para garantia do acesso das mulheres ao aborto nos casos previstos por lei;1 a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, regulamentada em junho de 2015, que equaliza os direitos das trabalhadoras domésticas ao de outros trabalhadores, lem- brando que, no Brasil, 98% das pessoas que exercem trabalho domésti- co remunerado são mulheres; a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), sancionada em março de 2015. Conectados a redes transnacionais e mobilizando a seu favor acor- dos internacionais, os movimentos feministas brasileiros atuaram em defesa dos direitos das mulheres em um contexto de democratização, a partir de 1988 sobretudo, e em um momento favorável de maior abertu- ra para suas agendas, com a chegada do PT ao governo federal em 2003. Os muitos limites a essa atuação podem ser destacados, mas meu ponto

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 77 23/02/2018 14:42:45 aqui é que um dos subprodutos das mudanças sociais e da atuação polí- tica de movimentos feministas consolidados a partir dos anos 1980 é a maior capilarização do feminismo na sociedade brasileira, que faz dele um fenômeno que, se não é novo, apresenta-se hoje com nova potência. A internet e as novas formas de mobilização têm, certamente, um papel nessa capilarização e na forma hoje assumida por debates, manifesta- ções e campanhas. Por que trato desse contexto? O que ele nos diz sobre o golpe? Entendo que o golpe de 2016 depôs Dilma Rousseff em um contexto de reação às transformações na posição social relativa das mulheres e às poucas, mas significativas, conquistas no âmbito institucional. O con- teúdo de classe do golpe, isto é, seu conteúdo antipopular, claramen- te revelado nos desdobramentos posteriores – destruição da legislação trabalhista que estabelecia garantias para trabalhadoras e trabalhado- res, por exemplo – é uma de suas faces; o conteúdo de gênero é, sem dúvida, outra face. Ambas compõem o processo que converge na depo- sição da primeira mulher a chegar à presidência. Assim que Rousseff foi deposta, o ministério de homens brancos de Michel Temer passou a desfilar seus corpos e a disparar declarações sexistas que indicavam sua distância em relação às transformações sociais em curso no país e sua convicção de que o lugar das mulheres é na vida doméstica, garantindo assim o protagonismo masculino. O ambiente em que as performances sexistas do novo establishment se tornaram possíveis é aquele em que a competência das mulheres para a vida pública e, especificamente, para a política foi abertamente contes- tada. É, também, o ambiente em que foram rompidos laços e diálogo com os movimentos feministas. A reação em curso contra os direitos das mulheres se tornou mais aguda, no Brasil, a partir de 2015. Os dois anos de intensa campanha contra Rousseff e de tramitação do golpe parlamentar foram também aqueles em que a noção de “ideologia de gênero” foi mobilizada para se restringir o debate sobre gênero nas escolas e a agenda da igualdade e da diversidade nas políticas públicas. Não se trata de uma história que

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 78 23/02/2018 14:42:45 tenha se iniciado em 2015, é claro, mas foi em maio daquele ano que o debate sobre gênero foi retirado pelos parlamentares do Plano Nacional de Educação (PNE) e reações semelhantes pipocam em todo o país. Multiplicam-se ações contra os direitos das mulheres, sobretudo os di- reitos sexuais e reprodutivos. (BIROLI, 2016a) O sexismo atravessa quase todas as relações em uma sociedade como a nossa, mas os estereótipos mais extremos, que negavam às mulheres competência para atuação política, vinham se tornando mais fracos e mesmo ausentes do jornalismo empresarial e do debate nas arenas for- mais. A visibilidade da própria Rousseff, quando ministra das Minas e Energia (2003-2005) e da Casa Civil (2005-2010) e, depois, candi- data à presidência seguiu padrões distintos daqueles que as ministras mulheres dos anos 1980 e 1990 obtiveram em sua presença na mídia. (MIGUEL; BIROLI, 2011, p. 168) As narrativas enunciadas durante o processo de impeachment, no entanto, mostraram-nos que os discursos misóginos não estavam, de maneira alguma, neutralizados. Sexismo e misoginia participaram da construção de um ambiente político no qual uma mulher eleita foi con- testada em sua competência e deposta.Em alguns casos, a construção da imagem de Rousseff e a configuração dos posicionamentos favoráveis a sua deposição podem ser descritos como formas de violência política contra as mulheres, como defendi em outro local.2Atingem Rousseff, ao mesmo tempo em que colocam em xeque a condição das mulheres como atores políticos. Em revistas semanais3, a estigmatização de Rousseff como incom- petente politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais de gênero, nos quais a mulher é associada ao destempero emocional. Em jornais diários, 4 a construção da presidenta eleita em imagens que de certo modo anunciavam sua deposição dentro de um ambiente po- lítico no qual diferentes tipos de violência ganhavam legitimidade an- tecipava um ambiente político em que posições de recusa aos direitos humanos ganhariam maior espaço.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 79 23/02/2018 14:42:45 A ideia de que se tratava de uma mulher perdendo o controle, inca- paz de reagir com sensatez à crise política, atravessou todos os registros e esteve presente em maior medida do que outras abordagens na mí- dia empresarial. O conteúdo sexualmente violento ganhava espaço na internet ao mesmo tempo em que a violência de gênero se expressava na mídia empresarial pela estigmatização de Rousseff e das mulheres como não capazes de atuação na política, sobretudo em contexto de cri- se.Nas redes sociais, as imagens que circularam em memes confirma- vam que o espectro dos estereótipos aceitáveis se alargava. Ao mesmo tempo, nos espaços institucionais, a presença massiva- mente masculina dava seu recado com o slogan “Tchau, querida!”, uti- lizado por partidos e parlamentares que se articularam para a suspen- são do mandato de Rousseff. A ironia presente no “Tchau, querida!” se completava nos corpos. Nas imagens da votação, televisionada e tea- tralizada, ternos e termos utilizados pelos parlamentares – 90 homens para cada dez mulheres nessa legislatura – ao votarem pela deposição de Rousseff e comemorarem o afastamento sem provas da primeira mu- lher a chegar à presidência da República no Brasil apresentam uma gra- mática de gênero bastante evidente. Ao manifestarem seu voto, os parlamentares favoráveis à deposi- ção defenderam repetidamente a “família tradicional”, modo de or- ganização das relações historicamente desvantajoso para as mulheres. O modelo de família que, para os parlamentares, permitiria um retorno a uma ordem desejada tem sido historicamente reduto de violência e da exploração, expondo as perspectivas de gênero em jogo. O discurso de ódio também esteve presente, na homenagem de um deputado ao torturador de Rousseff, que foi prisioneira política durante a ditadura de 1964. Dois conjuntos de problemas precisam ser destacados, no meu en- tendimento. Um deles é o modo como sexismo e misoginia desem- penharam um papel na caracterização de Rousseff como incompe- tente e indesejável à frente do Executivo, definindo uma abordagem

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 80 23/02/2018 14:42:45 no processo de legitimação do impeachment sem crime de responsa- bilidade.5 Poderiam ter sido outros os registros, mas foram, em abun- dância, organizados por estereótipos de gênero. O segundo conjunto de problemas diz respeito à ofensiva conservadora em curso no Brasil e na América Latina no que diz respeito ao papel social das mulheres e aos direitos conquistados nas últimas décadas. Convergem as ofensivas contra os direitos de trabalhadoras e trabalhadores e o ataque frontal ao que vem sendo definido como “ideologia de gênero”, que corresponde ao conjunto de conquistas e conhecimento acadêmico referenciado pela igualdade de gênero. Mas uma vez, o apelo à neutralidade é uma forma de naturalizar perspectivas machistas. Desde a deposição de Rousseff, acelerou-se um ajuste fiscal que restringe equipamentos públicos, res- ponsabilidades do Estado e ações para a retirada de direitos e garantias sociais. As reações são, assim, às mulheres na política e a uma condi- ção de maior participação na vida pública. Em conjunto, reconfiguram a participação social das mulheres e colocam em risco a posição em que a ofensiva conservadora e o governo pós-deposição querem colocá-las, a de sujeitos na vida doméstica, mas não na vida pública; em outras pa- lavras, a de indivíduos domesticados. De muitas localizações sociais emergem vozes que deixam claro que as mulheres não aceitam essa res- trição à sua condição de cidadãs. Os golpes que se recolocam desde a deposição se dão em meio a conflitos, o jogo continua a ser jogado.

Notas 1 Ver Brasil (2005). 2 Remeto a discussões feitas em Biroli (2016c), nos quais situo o debate teórico e a legislação sobre violência contra as mulheres na política. Os exemplos de que trato a seguir já foram utilizados no artigo ao qual remeto nesta nota. 3 Para um exemplo, ver reportagem de capa da Isto É (2016). 4 Para um exemplo, ver fotografia na capa de O Estado de S. Paulo. (FOGO..., 2016) 5 Dilma Rousseff evocou ela mesma o sexismo para explicar o impeachment. Para um exem- plo, ver entrevista à CNN. (DILMA..., 2016)

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 81 23/02/2018 14:42:45 Referências ARAÚJO, C.; ALVES, J. E. D. Impactos de indicadores sociais e do sistema eleitoral sobre as chances das mulheres nas eleições e suas interações com as cotas. Dados:revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, v. 50, n.3,p. 535-577, 2007.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 82 23/02/2018 14:42:45 MATOS, M. Gênero e sexualidade nas políticas públicas: o temor de retrocesso. Teoria e Debate, São Paulo, ed. 149, 17 jun. 2016. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2016.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 83 23/02/2018 14:42:45 o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 84 23/02/2018 14:42:45 Direitos reprodutivos, um dos campos de batalha do golpe

Maíra Kubík Mano* Márcia Santos Macêdo**

“Eta, eta eta eta * Doutora em Ciências Sociais Eduardo Cunha pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Quer controlar professora adjunta do departa- mento de Estudos de Gênero e Minha b...!” Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). (Primavera Feminista après Caetano Veloso) É pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM). ** Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora Introdução associada do departamento de Estudos de Gênero e Feminismo No primeiro dia do mês de janeiro de 2011, da UFBA e pesquisadora Dilma Rousseff tomou posse como presidenta da permanente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre República. Naquele dia, diante das câmeras de tele- a Mulher (NEIM). visão, de todas as pessoas convidadas e do público

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 85 23/02/2018 14:42:45 em geral, não estava somente a pessoa que seria a próxima mandatária do país. Estava uma mulher. E era inevitável enxergá-la enquanto tal, já que se tratava, após 122 anos de República, da primeira a ocupar esse espaço, até então reservado exclusivamente para uso masculino. Como afirma a socióloga francesa Colette Guillaumin (1992, p. 15, tradução nossa):

Diante de um patrão, há sempre uma mulher, diante de um politécnico, há uma mulher, diante de um operário há uma mulher. Mulheres nós somos, não é um qua- lificativo entre outros, é nossa definição social. Tolas as que acreditam que é apenas um traço físico, uma diferença – e que a partir desse dado múltiplas possibilidades nos seriam abertas. [...] Não é o começo de um processo (um ponto de partida, como acreditamos), é o fim, é o fechamento.

Assim, em uma sociedade lastreada por uma ordem patriarcal de gênero como a brasileira, a eleição de Dilma Rousseff não significava necessariamente que estávamos vivenciando uma maior abertura à participação das mulheres. Pelo contrário. Longe de ser um termômetro apontando para uma significativa transformação nas relações de gênero no país, sua vitória nas urnas pode ser lida como, provavelmente, uma das poucas brechas na tão consolidada divisão sexual do trabalho que vem imputando às mulheres a responsabilidade pelo espaço doméstico enquanto disponibiliza aos homens a direção do espaço público. Para atestarmos tal avaliação, basta notarmos que, no mesmo período, a porcentagem de mulheres eleitas para o Legislativo não teve alteração significativa, permanecendo com uma taxa de participação baixíssima – em torno de 10%. (MANO, 2015b) Partiremos de uma compreensão crítica do conservadorismo e an- drocentrismo estruturante da arena política brasileira para analisar o processo que levou à deposição, em 2016, por meio de um golpe par- lamentar-empresarial-jurídico-midiático, da primeira mulher a ocu- par a presidência da República. É evidente que para refletir sobre esse

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 86 23/02/2018 14:42:45 processo numa perspectiva feminista e, portanto, utilizando-se das chamadas lentes de gênero, muitos caminhos poderiam ser traça- dos. Contudo, optamos por pensar aqui a partir do terreno onde se dá uma das principais disputas encampadas pela pauta feminista: os di- reitos sexuais e reprodutivos. Analisaremos particularmente o caso do Projeto de Lei (PL) nº 60/99 – que previa acesso à contracepção de emergência por mulheres vítimas de estupro –, as principais forças que atuaram por sua aprovação, e também aquelas contrárias a ela, e como essa disputa desembocou na chamada Primavera Feminista de 2015 e no enfrentamento a um dos artífices do impeachment: o então presiden- te da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), preso por corrupção, posteriormente, no final de 2016. A questão que orienta essa reflexão é discutir como a temática dos direitos reprodutivos – mais es- pecificamente o tabu contra o aborto – demarca a fragilidade dos limites em torno dos avanços na questão de gênero, produzindo um efeito polí- tico tal que chegou ao ponto de pressionar a ampla aliança estabelecida em nome da governabilidade e demonstrando, assim, a indissociabili- dade dos marcadores de classe, raça/etnia e gênero para pensar a estru- turação da sociedade brasileira. Trabalharemos com a hipótese de que a tensão permanente que ron- dou os dois governos de Dilma Rousseff não poderia ser solucionada dentro dos parâmetros democráticos estabelecidos, dada a incomple- tude da nossa democracia em sua vocação de massas, ao não conseguir reconhecer direitos fundamentais de importantes contingentes popu- lacionais e, principalmente, no que se refere aos interesses de mais de 50% de sua população, a saber, das mulheres cisgêneras – e também dos homens transgêneros. E são, afinal, 800 mil interrupções voluntárias de gestações por ano (SUWWAN, 2004) realizadas de maneira ilegal, sendo que apenas a elite branca consegue realizá-las, também clandes- tinamente, mas em condições seguras e a um alto preço nas clínicas privadas, muitas delas camufladas como instituições particulares de atendimento rotineiro à saúde das mulheres.1

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 87 23/02/2018 14:42:46 Colocando as lentes de gênero Para olhar para esse caso, consideraremos que, em um contexto de forte desigualdade de gênero e, portanto, de ampla reprodução de um discurso cultural dominante, estamos diante de uma situação proto- típica “da mulher fora do lugar”. Esse deslocamento é produto de uma lógica contraditória, baseada em percepções e práticas de gênero cons- truídas e inter-relacionadas dialeticamente (SAFFIOTI, 1992) e que vão se materializar em uma forte divisão sexual do trabalho e que está baseada, como nos aponta Kergoat (2009), em dois princípios: existem trabalhos masculinos e femininos e os masculinos valem mais do que os femininos. Entre os trabalhos considerados masculinos estão a di- reção das forças armadas, das igrejas e, claro, da política institucional – por exemplo, a presidência da República. Inversamente, para as mulhe- res, a principal responsabilidade esperada é a do trabalho reprodutivo que envolve a gestação, o parto e o aleitamento, mas também o cuidado ao longo da vida das crianças e pessoas incapacitadas, assim como a exe- cução das tarefas domésticas e sexuais para o marido/companheiro e outros membros da família. (TABET, 2004) Nesse contexto, tais tarefas, diferentemente daquelas em que há venda de força de trabalho, são realizadas sem remuneração direta, a partir de uma apropriação do corpo feminino, o que a leva, como afirma Guillaumin (1992, p. 15), à posição de “máquina de trabalho” – produz crianças, leite, benefícios à saúde, limpeza etc. E tem como consequên- cia a despossessão da mulher de seu próprio corpo, que passa a perten- cer à sociedade. Entre os meios pelos quais isso ocorre e se mantém, es- tão o estupro e o arsenal jurídico – ambos colocados em questão no caso do PL nº 60/99. Essa posição, que obviamente antecede o sistema capitalista, com ele, agravou-se. (EISENSTEIN, 1980) Há uma coformação das relações de produção capitalistas – de exploração assalariada – e das relações não- capitalistas – de apropriação/opressão – que empurra uma mão de obra feminina rumo a um “trabalho que não é totalmente gratuito, mas que também não é corretamente remunerado e que nem é, nem nunca será,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 88 23/02/2018 14:42:46 plenamente proletário”, como nos mostra Jules Falquet (2008, p. 125). Ademais, na sociedade brasileira, é impossível refletir sobre a distri- buição dessas tarefas sem cruzá-las com raça/etnia, uma vez que entre as classes média e alta há uma transmissão de parte dessas atribuições para empregadas domésticas, em sua grande maioria mulheres negras – a “mucama permitida”, segundo Lélia González (1984). Temos, então, não apenas uma divisão sexual do trabalho, como também uma divisão racial do trabalho, que ocorrem de maneira concomitante e imbricada, pois, como ressalta Moore (2000, p. 34): “o próprio poder é representa- do, em muitos contextos, como sexualizado e racializado”. Convém ainda destacar que, nessa perspectiva, a divisão sexual do trabalho pressupõe, obviamente, que as relações sejam heterossexuais para que a reprodução ocorra. Monique Wittig (2013, p. 62, tradução nossa) alerta para o risco que incorremos quando deixamos de questio- nar a heterossexualidade compulsória, pois

embora tenha sido aceito em anos recentes que não existe semelhante coisa como a natureza, que tudo é cultura, permanece ainda um cerne de natureza que resiste a ser examinado, uma relação excluída do social na análise – uma relação cuja carac- terística é inescapável na cultura, assim como na natureza, e que é a relação hete- rossexual.

A esse respeito, Moore (2000) ainda nos lembra que os discursos culturais dominantes vão conferir diferentes posições de sujeitos a homens e mulheres, limitando as opções e estratégias dessas últimas em particular. E é através dessa insistente ideologia embasada na no- ção de natureza que se inverte o raciocínio sobre como se constroem os homens e as mulheres – e as desigualdades entre eles –, encarcerando- nos na perspectiva de que “uma mulher é uma mulher porque é uma fêmea”. (GUILLAUMIN, 1992, p. 51) Sob esse ponto de vista, qualquer reivindicação de autonomia e poder é intolerável e, mais do que isso, é tida como perigosa, porque, ao fazê-la, estamos sacudindo as estruturas

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 89 23/02/2018 14:42:46 que sustentam as desigualdades de gênero que, interseccionadas com classe e raça/etnia, teriam o poder de implodir a sociedade tal como a conhecemos.

Situando o problema na conjuntura atual O historiador Lincoln Secco (2012) afirmou em seu livro História do PT que a “Carta ao Povo Brasileiro”, lançada por Lula em 2002, antes de eleger-se pela primeira vez presidente da República, foi, em termos gramscianos, a “pá de cal” do processo de transformismo do PT – ou seja, a absorção do maior partido da esquerda brasileira por aqueles que já detinham a hegemonia do país. Para os dirigentes petistas, a condição para vencer o pleito de 2002 dependeria de um amplo arco de alianças com setores da burguesia nacional e com partidos do centro, da centro- direita e da direita, aí incluso o Partido Social Cristão (PSC). Tais acordos não foram temporários, pelo contrário. Permaneceram vigentes no go- verno e no Congresso Nacional, onde foram determinantes para a cons- trução de uma maioria para uma certa “governabilidade”. Até o ponto de ter Michel Temer (PMDB-SP) na vice-presidência com Dilma Rousseff. Mas, aprofundando a crítica de Secco, podemos considerar que o longo processo de transformismo do PT teve, ainda, mais dois elemen- tos bastante dramáticos. Primeiro: seu envolvimento em denúncias de corrupção, em especial o conhecido caso do Mensalão, em 2005, e aquelas decorrentes da Operação Lava Jato, que teriam feito com que o partido perdesse, aos olhos da sociedade, o diferencial ético em rela- ção às demais agremiações – e, quando um partido de esquerda perde sua distinção em relação a outros, isso abre caminho para uma extre- ma-direita, como alerta Chantal Mouffe (2015). Segundo: a divulgação da “Mensagem da Dilma”, carta lançada pela, à época candidata, Dilma Rousseff, em outubro de 2010. Naquele momento, mais de 19 milhões de panfletos associando Dilma Rousseff à defesa da prática do aborto foram apreendidos pela Polícia Federal e, somado a isso, o candidato

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 90 23/02/2018 14:42:46 do PSDB, José Serra, teria chamado a candidata petista de “abortista”. Através da “Mensagem da Dilma”, a então candidata à presidência veio a público para garantir que não proporia a descriminalização ou a le- galização do aborto, caso eleita, porque acreditava que esse era um as- sunto que dizia respeito ao Legislativo. Ela começa a sua carta dirigin- do-se ao povo “com carinho” e “respeito que merecem os que sonham com o Brasil cada vez mais perto da premissa do Evangelho de desejar ao próximo o que queremos para nós mesmos”. (ROUSSEFF, 2010) São muitas concessões feitas para um texto tão pequeno: a defesa da manutenção da legislação atual sobre aborto; o comprometimento em não propor “iniciativa que afronte a família” e a recusa da sanção do Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122 que torna a lesbo/homo/trans- fobia crime, caso ele viole “liberdade de crença, culto e expressão e de- mais garantias constitucionais individuais existentes no Brasil”. Posicionamento semelhante foi também adotado, posteriormen- te, pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM)2 por Eleonora Menicucci, socióloga, feminista e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ocupante do cargo durante o governo Dilma, entre 2012 e 2015. Ao assumir o cargo, ela declarou:

Eu já dei entrevistas, sobretudo nos anos 70, 80 e 90, quando o feminismo necessi- tava de marcar posições e muitas mulheres ousaram dizer até da sua vida privada. Não me arrependo, mas eu sou governo e a matéria da legalização ou descriminali- zação do aborto é uma matéria que não diz respeito ao Executivo, diz respeito ao Legislativo.

Tais pronunciamentos, longe de trazerem à tona posições pessoais de Menicucci e Dilma Rousseff, fornecem indícios da pressão que envolve tal pauta e do quanto ela foi objeto de negociação em prol da dita gover- nabilidade. Evidentemente que essa pressão já existia nos dois manda- tos do presidente Lula – visto que o PT historicamente se posicionou a favor da legalização do aborto – mas certamente que ela aumentou no

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 91 23/02/2018 14:42:46 momento da candidatura e, mais ainda, quando o país passou a ser di- rigido por uma mulher. Afinal, poderia se pressupor que ela estaria do mesmo lado daquelas que passam por interrupções de gestações, sejam elas desejadas ou não, por ocupar também o mesmo lado na divisão se- xual do trabalho.

O caso do PL nº 60/99 O mais próximo que se chegou da discussão sobre aborto duran- te os governos Dilma Rousseff foi com o PL nº 60. Proposto em 1999 pela deputada Iara Bernardi (PT/SP), tinha o objetivo de dispor sobre o atendimento imediato e multidisciplinar para o controle e tratamento, tanto do ponto de vista físico quanto emocional, da vítima de violência sexual. Com a aprovação da lei, todos os hospitais integrantes do SUS deveriam: 1) Fazer o diagnóstico e o tratamento das lesões físicas no aparelho genital e demais áreas afetadas; 2) Fornecer amparo médico, psicológico e social; 3) Facilitar o registro da ocorrência e encaminhá-la a órgãos de medicina legal e delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da vio- lência sexual; 4) Fazer a profilaxia da gravidez e de doenças sexualmen- te transmissíveis, assim como coleta de material para exame de HIV; e 5) Fornecer informações às vítimas sobre os direitos legais e serviços disponíveis. Até sua aprovação, o PL nº 60/99 tramitou por apenas duas comis- sões (BRASIL, 2013a), em ambas com relatores do PT. Em 05/03/2013, 14 anos após sua proposição, ele chegou ao Plenário da Câmara para vo- tação após um requerimento de urgência (no 6906/2013), novamente por ação de um homem petista, o deputado José Guimarães (PT/CE). O motivo era aproveitar a efeméride do 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, para aprovar o projeto. A alteração do regime de tramitação proposta por Guimarães foi aprovada imediatamente pelas lideranças de todos os partidos e o PL

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 92 23/02/2018 14:42:46 passou a ser discutido no plenário, onde recebeu apenas elogios. Cinco deputadas se pronunciaram, entre elas Iara Bernardi (PT/SP), a autora do projeto, que ressaltou a importância de transformar o que já era um procedimento do SUS em lei, para garantir o cumprimento da preven- ção às doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez. Ela também parabenizou a Casa “por ter concordado em colocar em pauta este pro- jeto que está em discussão desde 1999. É uma reivindicação do movi- mento feminista. Parabenizo a Casa inclusive pelo consenso construí- do”. (BRASIL, 2013b) Pelos pronunciamentos, podemos apreender alguns pontos. O pri- meiro é que as integrantes da Bancada Feminina estavam muito gratas ao presidente da Câmara Federal, (PMDB/ RN), hoje em cárcere, e à Casa Legislativa, por terem “permitido” que o PL nº 60/99 fosse à votação após tanto tempo, justamente na semana do 8 de Março. Outro ponto relevante é que Nilda Gondim (PMDB/ PB), Flávia Morais (PDT/GO) e Sueli Vidigal (PDT/CE), deputadas que discursaram na ocasião, eram então integrantes da Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida e mesmo assim defenderam o projeto de lei. “Todo mundo concordou com o PL 66/99 porque é uma coisa tão óbvia a proteção à mulher vítima de violência sexual que não houve, dentro da bancada, nenhum movimento contrário”, explicou Jô Moraes (PCdoB/ MG), coordenadora da Bancada Feminina à época. (MANO, 2015b, p. 231) Em entrevista posterior, a deputada Liliam Sá (PROS/RJ), evangé- lica, confirmou a afirmação de Jô Moraes:

É um assunto polêmico. Eu sou evangélica, eu tenho uma posição em relação a esse projeto. Mas como eu sou um agente público, eu tenho que olhar como um todo. Me colocar no lugar daquela família, daquela mãe. Eu sou a favor daquilo que está escrito na Bíblia. Mas não tiro meu apoio dessas mulheres que necessitem dessa intervenção porque eu sei que é muito duro, é muito triste e doloroso. Então eu gosto de separar muito bem as coisas. Aquilo que eu penso, que é da religião, e aquilo que eu tenho que fazer como agente pública. (MANO, 2015b, p. 231)

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 93 23/02/2018 14:42:46 Chama a atenção o fato da deputada Liliam Sá reivindicar a separa- ção entre religião e a representação pública, apontando que a Bancada Evangélica não deve, portanto, ser vista como homogênea – assim como são diversas as denominações protestantes. Aparentemente, a sua percepção de pertencer ao grupo de mulheres deputadas e de seu mandato representar a população feminina se sobrepôs à sua afiliação religiosa, o que pode demonstrar que, para algumas pautas, foi man- tida a compreensão da necessidade de agir conjuntamente. Ainda que, vale ressaltar, ela tenha tendência a estar à direita do espectro político. (CORADINI, 2010, p. 247) Mas a unanimidade durou pouco. Quando o PL nº 60/99 foi enviado para sanção da presidência da República, a Bancada Evangélica decidiu se mobilizar contra ele. O problema era o termo “profilaxia da gravi- dez”, no artigo 4o, inciso IV, entendido como uma interrupção de ges- tação e não como contracepção. A presidenta Dilma Rousseff tinha um mês para sancionar ou vetar a lei, justamente durante o recesso parla- mentar, e, nesse período, ouviu argumentações de ambos os lados. Nesse ínterim, ambas as Bancadas estiveram reunidas com ela. A presidenta recebeu, em 16 de julho de 2013, 16 cantoras gospel e o então ministro da Pesca, (PRB/RJ), bispo evangéli- co, eleito prefeito do Rio de Janeiro em 2016. “[...] é um momento de muita pressão. O Brasil está vivendo um momento muito delicado, e nós viemos aqui representando a Igreja Evangélica no Brasil e a apoian- do no que ela precisar”, disse a cantora Damares de Oliveira ao jornal O Globo, referindo-se também ao período subsequente às manifes- tações de junho de 2013. (ALENCASTRO, 2013) Se as parlamentares evangélicas não reforçaram o coro contrário ao PL, as cantoras gospel cumpriram esse papel. Para refletir sobre a contradição entre as próprias mulheres evan- gélicas, podemos recorrer à Nicole-Claude Mathieu (2013, p. 130) que pode ajudar a compreender a fragmentação e contradições no campo das “dominadas”:

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 94 23/02/2018 14:42:46 Não há, no que diz respeito às relações estruturais de sexo, a “posição de consciên- cia” dos homens e a posição de consciência das mulheres, mas a posição dos ho- mens (com variações mais ou menos sutis) e as posições das mulheres. Há um cam- po de consciência estruturado e dado para os dominantes, e de toda forma coerente diante da mínima ameaça contra seu poder; e diversas modalidades de fragmentação, de contradição, de adaptação ou de recusa… mais ou menos (des) estruturadas do lado das/os dominadas/os, modalidades cujo entendimento pare- ce particularmente difícil para um dominante.

As movimentações das feministas e da Bancada Feminina foram registradas pela mesma matéria de O Globo de 22/07/2013. (ÉBOLI, 2013) Elas foram ao encontro de Gleisi Hoffmann, então ministra da Casa Civil, acompanhadas da ministra da SPM, Eleonora Menicucci, que apoiou publicamente o PL. Érika Kokay (PT/DF), que participou do encontro, narrou, em entrevista, a articulação feita pelas mulheres:

Nós fizemos duas reuniões com diversos segmentos, vários representantes do gover- no, na perspectiva de participação também com entidades femininas da sociedade civil, para que nós pudéssemos assegurar a manutenção ou a sanção sem qualquer tipo de veto ao projeto da deputada Iara Bernardi que estabelece o atendimento às vítimas de violência. Isso é um pouco a demonstração do obscurantismo que nos ronda, que está à espreita, esperando os momentos oportunos e as frestas para poder golpear direitos básicos da mulher. (MANO, 2015b, p. 239, grifo nosso)

O Globo trouxe ainda uma montagem carregada de drama com uma foto da deputada federal Iara Bernardi (PT/SP) e duas imagens distri- buídas pela internet, uma contra a sanção presidencial e outra a favor. A mesma reportagem afirma que os religiosos advertiram a presidenta que “se o projeto não for vetado, haverá ampla campanha contra ela na eleição presidencial de 2014”. Segundo o texto, um dos integrantes do Movimento Pró-Vida, o advogado Paulo Fernando Melo, disse na reu- nião que “as consequências [da sanção do projeto] chegarão à militância Pró-Vida, causando grande atrito e desgaste para vossa Excelência [...],

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 95 23/02/2018 14:42:46 que prometeu, em sua campanha eleitoral, nada fazer para instaurar o aborto em nosso país”. (ÉBOLI, 2013) Ao final, Dilma Rousseff manteve o PL na íntegra, que se tornou a Lei nº 12.845/2013. No mesmo dia, no entanto, a presidenta anunciou que enviaria duas sugestões de alteração ao Congresso Nacional para: (i) que o artigo 2o não trate de violência sexual de forma vaga, mas sim a partir das formas já presentes no Código Penal; (ii) e que o inciso IV do artigo 3o substitua “profilaxia da gravidez” por “medicação com efi- ciência precoce para prevenir gravidez resultante de estupro” – a reda- ção inicialmente pensada por Iara Bernardi (PT/SP). (EXPOSIÇÃO..., 2013) Derrotada, a Bancada Evangélica decidiu mudar de estratégia. Em reportagem de 03 de agosto de 2013, intitulada “Evangélicos vão atacar lei da pílula do dia seguinte”, anunciam, na Folha de S. Paulo, a apresen- tação de um Projeto de Lei para revogá-la. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou uma nota, também publicada pelo jornal, em que “lamenta profundamente a sanção da lei”, que “pode in- terferir no respeito incondicional à vida humana individual já existente e em desenvolvimento no útero materno, facilitando a prática do abor- to” (FALCÃO; GUERREIRO, 2013) – como se, nesse caso, houvesse alguma outra vida humana em questão senão a da própria mulher. O deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), evangélico, propôs, em segui- da, o PL nº 6.033/2013 para revogar a Lei nº 12.845/2013.

A Primavera Feminista Prosseguindo a tramitação da Lei, o poder Executivo encaminhou sua proposta de alteração ao Congresso Nacional, que se tornou o PL nº 6022/2013. O PL de Cunha foi apensado a ele em novembro de 2014 e em maio de 2015, ambos chegaram à Comissão de Seguridade Social e Família, onde permaneciam até a escrita desse artigo esperando o pare- cer do relator designado, o deputado federal Jorge Solla (PT-BA). Vale lembrar que, três meses antes dos PL chegarem à Comissão, em fevereiro de 2015, Eduardo Cunha havia sido eleito presidente da Câmara dos Deputados, após vencer o candidato petista Arlindo Chinaglia e

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 96 23/02/2018 14:42:46 descolar-se da base do governo. Logicamente que a tramitação pela Câmara e a nova posição de destaque de Cunha fez com que a pressão sobre o tema voltasse, despertando o alerta nos movimentos feministas. Algumas organizações de mulheres, que acompanhavam mais de per- to a movimentação dos PL no Congresso Nacional, passaram a pautar a questão diante do risco da perda de um direito recém-adquirido. Para fazer frente a tão grave retrocesso, no final de outubro de 2015, milhares de mulheres saíram às ruas do país para protestar contra o PL de Eduardo Cunha. O movimento ficou conhecido como Primavera Feminista e fez parte de um contexto onde registrou-se, também, uma forte mobilização online, por meio de campanhas como #meuprimei- roassedio e #meuamigosecreto. (MANO, 2015a) As passeatas foram agendadas via redes sociais e protagonizadas por uma juventude bas- tante pulsante e criativa, como mostra a ousada epígrafe desse texto. No entanto, a necessária e oportuna discussão em torno dessa movi- mentação e se ela pode configurar uma nova onda do feminismo, ficará para outra oportunidade. Não é exagero afirmar que o enfrentamento que as mulheres fize- ram à figura de Eduardo Cunha nas ruas das grandes cidades foi o mais contundente que um deputado jamais experimentou. Cerca de um mês depois, em 2 de dezembro de 2015, Cunha aceitou o pedido de impeach- ment contra Dilma Rousseff feito pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal. Paralelamente a essa movimentação, na manhã daquele dia, o PT havia anunciado que votaria pela cassação de Cunha, com o aval da presidenta Dilma Rousseff, abrindo um processo no Conselho de Ética da Câmara por quebra de decoro, sob a alegação do deputado ter ocultado a existência de contas bancárias não declara- das no exterior. O debate sobre Cunha foi retomado em 30 de março de 2016, quando o relatório preliminar que demandava a continuidade do processo disciplinar com pedido da cassação de Cunha foi aprovado, fazendo, portanto, com que o condutor do impeachment estivesse de- finitivamente sob suspeita.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 97 23/02/2018 14:42:46 O gênero no golpe O dia era 17 de abril de 2016. Da mesma forma que, cinco anos atrás, o país havia parado para assistir à posse da primeira presidenta eleita e vi- via o ineditismo de ter um corpo de mulher ocupando o centro daquele ritual, mais uma vez era uma mulher o alvo daquele novo espetáculo midiático. Com um placar final de 367 votos favoráveis e 137 contrários ao impedimento da presidenta, cada voto favorável foi acompanhado de um argumento que respondia às mulheres, trabalhadores/as, negros/ as, homossexuais e vários outros grupos marcados como diferentes: “Voltem para seu lugar!”. Para Dilma Rousseff, as placas com a irôni- ca frase “Tchau, querida!” colocavam em evidência o caráter patriarcal, conservador e, acima de tudo, misógino do golpe em sua face mais cruel e repugnante. Como nos lembra Burigo (2016): “patriarcado é o siste- ma, misoginia é a indicação de sua existência, machismos são seus atos. Na linguagem, no simbólico onde circulam informação e poder, encon- tramos evidências de todos”. Por outro lado, o processo atual vivido no Brasil não teve apenas um ponto de partida. Trata-se de uma crise múltipla – política, econômi- ca, ecológica – e não se limita às nossas fronteiras nacionais, mas é sim permeada pelo cenário de crise global. Certamente que, na atual con- juntura, a resposta encontrada pelas elites para a “superação da crise” implica voltar no tempo e destruir, uma a uma, as recentes e ainda frá- geis conquistas de nossa jovem e incompleta democracia. Parte de nos- sas perdas do presente remetem à compreensão das profundas contra- dições nas escolhas políticas dos últimos governos que, para chegarem e se manterem no poder, apostaram numa estratégia de conciliação de classes – incorporando não apenas parte do programa da direita, mas realizando concessões na partilha do poder – e fazendo com que movi- mentos para a ampliação da democracia fossem muito limitados, o que impediu sua radicalização, fundamental para qualquer transformação social de longo prazo.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 98 23/02/2018 14:42:46 Assim, considerando-se que a desigualdade brasileira se constitui sobre os pilares de classe, mas também de gênero e raça/etnia, tendo como pano de fundo o colonialismo, vemos como qualquer mudança estrutural dependeria de uma ação articulada de enfrentamento nessas três esferas. A disputa em torno do PL nº 6022/2013 foi uma das muitas demonstrações da falta de capacidade de construção de uma direção po- lítica e ideológica que conseguisse garantir hegemonia. O PT ganhou a eleição, mas não levou o governo. A sociedade brasileira não foi, ao lon- go do tempo, convencida/conquistada pelo projeto político do Partido dos Trabalhadores – muito provavelmente porque, a este projeto, faltou coerência e constância em sua apresentação. Dessa forma, apesar de não se posicionar publicamente a favor do aborto, Dilma Rousseff sancio- nou uma lei que garantia mínimos direitos das mulheres à revelia de uma base de apoio importante para o seu governo e viu, nesse episódio, uma das mais agudas crises que antecederam sua deposição. Isso pode explicar, também, porque, mesmo com todo o processo de transformismo e do esgotamento da experiência petista, ainda era incômodo ter uma mulher eleita pelo PT na presidência. Com o esgar- çamento da coalizão entre o PT e a base aliada, era melhor para a elite voltar a ter controle direto sobre o aparelho do Estado e garantir que nenhuma concessão fosse feita – e, talvez, com isso, garantir que ne- nhuma outra ouse chegar aonde Dilma Rousseff chegou... Nessa perspectiva, adquirem dimensão simbólica e material vários aspectos em jogo no período que antecedeu ao impeachment e uma série de ocorrências que o sucederam. Merece destaque, em primeiro lugar, a constatação de que não é sem razão que um dos principais embates des- ses últimos tempos tenha ocorrido entre Eduardo Cunha e as feminis- tas. Ou que a votação do impeachment na Câmara dos Deputados tenha sido marcada por discursos a favor de uma percepção limitada de famí- lia burguesa, da religião como guia para a política ou da tortura como arma de destruição do contraditório. E ainda que a primeira ação dos golpistas tenha sido a de nomear um ministério inteiramente burguês,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 99 23/02/2018 14:42:46 masculino e branco – encerrando, portanto, qualquer possibilidade de uma ocupação feminina “fora do lugar”. O fortalecimento dessa nova coalizão encontra-se na dependência da progressiva adesão às pautas conservadoras por parte dos grandes partidos que ocupam o espectro da centro-direita no Brasil – especial- mente o PMDB e o PSDB, ambos representantes de forças políticas que, nos últimos 30 anos, abrigaram feministas liberais favoráveis aos di- reitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Quanto tempo essa aliança que articulou o golpe durará, só o tempo poderá dizer. O certo é que teremos um longo percurso pela frente para aquelas e aqueles que ali- mentam um horizonte emancipatório. Muitas serão as frentes para o bom combate contra qualquer forma de conservadorismo e para que não retrocedamos na defesa de lutas históricas dos movimentos sociais em torno da garantia de direitos sexuais e reprodutivos – em especial na garantia do aborto legal –, na manutenção da laicidade do Estado, nos avanços pela igualdade de gênero e por uma educação não sexista, no combate ao racismo e à lesbo/homo/transfobia, entre outras questões. Em um texto de 1985, Carlos Nelson Coutinho (1993, p. 125), refle- tindo sobre a redemocratização brasileira afirmou:

Resta ainda um longo caminho a percorrer na luta para ampliar a socialização da política, para construir um efetivo protagonismo de massas capaz de consolidar definitivamente a sociedade civil brasileira. Do desenlace dessa luta irá depender, de resto, o destino do atual processo de transição da chamada ‘Nova República’: na medida em que esse processo é fruto da combinação de pressões ‘de baixo’ e ope- rações transformistas ‘pelo alto’, seu ponto de chegada pode ser ou a criação de uma real democracia de massas ou a restauração do velho liberalismo elitista e ex- cludente.

Estamos vivendo os minutos finais da Nova República e as nuvens de tempestade nos alertam para procurarmos abrigo e cavarmos – ou sustentarmos – nossas trincheiras.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 100 23/02/2018 14:42:46 Notas 1 Dilma Rousseff evocou ela mesma o sexismo para explicar o impeachment. Para um exem- plo, ver entrevista à CNN. (DILMA..., 2016) 2 Importante destacar que a SPM foi criada durante o governo Lula que depois foi objeto de reforma – juntamente com outras pastas da área de Equidade Racial e Direitos Humanos – ainda no governo Dilma e perdeu status de ministério com Michel Temer na presidência, sen- do posteriormente extinto.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 102 23/02/2018 14:42:47 MANO, M. K. Internet, feminismos e a possibilidade de unidades provisórias. RECIIS: Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 1-3, out./dez. 2015a.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 103 23/02/2018 14:42:47 o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 104 23/02/2018 14:42:47 A máquina misógina e o fator Dilma Rousseff na política brasileira

Marcia Tiburi*

* Marcia Tiburi é graduada em Filosofia e Artes e mestre e doutora em Filosofia pela Máquina misógina Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) . A questão da misoginia relacionada ao golpe É colunista da revista Cult. contra a democracia vivida no Brasil atual ainda não foi suficientemente analisada. Na tentativa de ex- por seus fundamentos e seus efeitos redigi o texto que segue a partir de minha participação como tes- temunha no Tribunal Internacional em Defesa da Democracia no Brasil presidido por Juarez Tavares no Rio de Janeiro em 19 de julho de 2016. Minha intenção é propor que analisemos o machis- mo como um jogo de linguagem para que possamos

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 105 23/02/2018 14:42:47 avaliar a função central da misoginia em suas operações. Ora, a misoginia é o discurso de ódio contra as mulheres, um discurso que faz parte da histó- ria do patriarcado, do sistema da dominação e dos privilégios masculinos, daquilo que podemos chamar de machismo estrutural, o machismo que petrifica a sociedade em sua base e impede transformações democráticas. Quero dizer com isso que a luta pela democracia hoje se confunde com a luta contra a misoginia e todos os ódios a ela associados no espectro amplo do ódio à diferença. Mas a misoginia não é feita apenas de ódio, o afeto como a inveja também merece atenção conforme falaremos adiante. O que aconteceu com Dilma Rousseff nos faz saber que o poder violento do patriarcado não se volta apenas contra as mulheres, mas contra a democracia como um todo, sobretudo na sua versão cada vez mais radical intimamente relacionada com as propostas do feminismo como luta por direitos ao longo do tempo. O que aconteceu com Dilma Rousseff nos ensina a compreender o funcionamento de uma verdadei- ra máquina misógina, máquina do poder patriarcal, ora opressor, ora sedutor, a máquina composta por todas as instituições, do Estado à fa- mília, da Igreja à escola, máquina cuja função é impedir que as mulheres cheguem ao poder e nele permaneçam. Dilma Rousseff é a personagem que está em jogo hoje em dia no Brasil e será necessariamente incluída em nossa história como uma grande heroína. É em torno de sua figura que todo um sistema de práti- cas sedimentadas vem sendo desmontado. É em torno dela, figura cen- tral, que se desenvolvem todas as estratégias que movem a política no Brasil hoje. Como mulher, sacrificada politicamente nesse momento, indepen- dentemente das críticas pontuais que possamos tecer acerca de seu governo, Dilma se torna uma figura exemplar, altamente simbólica da democracia representativa, aquela mesma que é aniquilada nesse momento pelo governo da traição golpista representada pela figura de Michel Temer, personagem fundamental nessa história. Estamos dian- te de personagens com narrativas, operadores, como todos nós, de um

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 106 23/02/2018 14:42:47 jogo de linguagem hegemônico, o jogo de linguagem do poder, mas, nesse caso, o jogo de linguagem machista que é sinônimo do poder. Para compreender essa ideia, convém colocar em questão que gover- no não representativo de Michel Temer se enuncia como uma espécie de ditadura do pater potestas, de uma soberania tirânica que subjuga e exclui o povo dos processos governamentais. Seu governo dá espaço apenas ao homem branco capitalista, coronelista e colonialista e exclui, nesse gesto, a imensa população marcada por toda sorte de diferenças. Michel Temer vem a representar um poder de caráter antiquado. A ex- tinção de ministérios e a retirada de representantes negros e mulheres, em outras palavras de todos os subrepresentados que se tornam agora absolutamente não representados, é a prova do tom da política atual- mente imposta como um velho jogo de linguagem. Ora, quando dize- mos jogo de linguagem, queremos dizer dos processos discursivos, mas não só. Tudo o que é simbólico, imaginário, todo o campo das repre- sentações, está em questão não só no que é dito e no que é feito, mas também no que é encenado.

Dilma, presidenta Dilma Rousseff se confirma no gesto excludente e antidemocrático de Michel Temer como um tabu. Sabemos como um tabu pode virar to- tem em termos de política. Não voltando ao seu cargo, sua chance de se transformar em heroína histórica aumenta e ela pode ser tornar publi- camente o que já é em seu fundamento: símbolo da representação das mulheres extirpadas da política. Ela foi barrada do lugar ao qual chegou pelo voto que instaura a von- tade popular democrática e soberana. Lugar, diga-se de passagem, de mulher que foi eleita. É preciso, contudo, ponderar sobre o papel da reeleição em seu desti- no político. Dilma não apenas foi eleita, mas o foi duas vezes. Dilma foi a mulher reeleita. Isso incomodou as elites machistas e se intensificou

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 107 23/02/2018 14:42:47 quando, como reeleita, insistiu em ser chamada como “presidenta” e não como presidente. A autodenominação serviu de afronta ao poder patriarcal e pode ser elencada entre os fatores que aceleraram o ódio – e também a inveja – despertado pela mulher que se afirmou como presidenta. Sabemos que uma feminista desperta mais o ódio por se dizer feminista do que por agir como uma feminista. O ódio à presidenta – com “a” e não com “e” – é do nível da idiossincrasia fascista, um ódio idiossincrático, ou seja, sem muita explicação, altamente gratuito, um ódio cujos motivos pare- cem não existir. Mas o que realmente está em jogo no caso de uma pes- soa que se autodefine como presidenta além de uma autoafirmação que pode levar ao ódio? Ora, o jogo de linguagem machista opera por hetero denominação e hetero determinação. Isso quer dizer: homens falam e dizem sobre mulheres. Ora, o poder é uma questão de voz, de discurso, de quem fala e de quem escuta. O poder também se cria por meio do ato de falar sobre o outro. A categoria do “outro” é criada em um discurso. Assim é que se cria a mulher ideal e, ao mesmo tempo, se demoniza a mulher fora do “ideal”. Fato é que Dilma Rousseff, ao dizer-se “presidenta” causou mal-estar ao machismo. Interrompeu, talvez sem perceber, o jogo de linguagem machista da história da política no Brasil. Ao afirmar-se presidenta, ela se afirmou como eleita e reeleita potencializando seu lugar – único e pio- neiro – de representante justamente das mulheres, histórica e atualmen- te ainda mais sub-representadas no cenário da democracia brasileira. No estado de exceção em que nos encontramos, em que a vigência da ilegalidade é a lei, a figura incomum e inadequada de Dilma Rousseff é colocada à margem. Banida de seu cargo, lançada para fora do governo por não ser igual em nada – nem em gênero, nem em desonestidade – aos cleptocratas que a julgam hoje e usurpam seu lugar, Dilma Rousseff se torna hoje um fator político, aquele que define o lugar das mulheres na política e, fundamentalmente, seu futuro em nosso país. Sabemos que o que aconteceu com Dilma Rousseff pode acontecer com todos,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 108 23/02/2018 14:42:47 mas talvez não tivesse acontecido se ela não fosse mulher e se, como mulher, não fosse tão diferente de tudo o que se pode esperar de uma mulher. No futuro, a expectativa plantada pelo governo do golpe é de que não seja mais possível que uma mulher venha a estar no cargo má- ximo da política. E isso quer dizer que elas – e todos os sub-representa- dos – não terão lugar. O voto, todos sabemos, com ou sem novas eleições, já não significa nada no Brasil no estado de exceção velado em que estamos vivendo.

Dilma, culpada e banida Dilma Rousseff foi a primeira mulher eleita – e reeleita – presiden- ta de um país em que os números de participação feminina na política são vergonhosos. Se cerca de 10% de mulheres estão presentes na vida parlamentar é, no mínimo, sinal de que vivemos em um país em que as mulheres não são bem-vindas na política. Atraso da nossa política? Certamente. E um país atrasado não é atrasado por acaso. Enquanto vimos há menos de um ano o primeiro ministro do Canadá nomeando metade do seu ministério tendo em vista a paridade de gêneros, buscando assim uma representação contemporânea e atua- lizada da democracia, no Brasil podemos dizer que estamos no século XIX. O governo atual não pretende sequer manter as aparências da de- mocracia para não pegar mal. Honestidade e idoneidade não contaram para a escolha dos ministros do governo no golpe, por que a questão gênero deveria contar? Tocar na questão gênero quando se trata de falar de Dilma Rousseff é chover no molhado, mas quando políticos do século XIX, eviden- temente mumificados, que praticam entre nós o populismo da igno- rância, vêm vociferando contra a expressão gênero, é uma chuva alta- mente política. Sabemos, desde Simone de Beauvoir, que ser mulher é ser marcada por sua sexualidade. Gênero tem a ver com essa marcação. A marcação a que me refiro é o jogo de linguagem do machismo do qual

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 109 23/02/2018 14:42:47 saímos apenas no momento em que nos tornamos feministas. E temos nos tornado cada vez mais feministas. No contexto da misoginia, fala-se mal de mulheres de muitos mo- dos, seja inventando uma essência para elas, seja ocultando as heterode- nominações que pesam sobre elas, seja criando e intensificando as ideo- logias femininas, tais como a ideologia da maternidade, da juventude, da sensualidade, todas essas que fazem parte do sistema do machismo estrutural. Todo esse sistema ideológico não prevê mulheres no poder. Porque o poder é coisa que os homens querem para eles. É evidente que toda mulher vai ter que pagar um preço imenso quando tomar para si alguma coisa desejada pelos homens. A misoginia, cabe dizer, nunca é inocente. É preciso entender que se ela está na base do golpe ela não é pouca coisa. Nenhuma misoginia é pouca coisa. A misoginia é uma arma de espertos, assim como a igno- rância (sobre a qual temos que falar mais a sério). Simbólica e prática, estamos diante de uma misoginia de resultados, gananciosa e compe- tente como seus defensores. Sabemos que o capitalismo depende da culpabilização das pessoas, de trabalhadores, de negros cujos corpos são usurpados. Ora, não é di- ferente com as mulheres, o machismo é o sistema da culpabilização das mulheres e Dilma Rousseff foi, até agora, tratada como a grande culpa- da, culpada da “crise”, culpada do golpe. Na televisão e no discurso do telespectador, vemos a construção da mulher culpada por tudo. Desde Eva, desde Pandora, qualquer mulher, seja mãe ou não seja, é educada para sentir-se culpada. A culpa é estrutural, está arraigada e toda a so- ciedade ajuda a sustentá-la. Ora, o machismo sempre foi a melhor e mais inteligente estratégia política, uma grande estratégia de banimento das mulheres da política e de sua culpabilização. A grande estratégia da exclusão de metade da po- pulação mundial. Agora essa estratégia é usada contra Dilma Rousseff, uma mulher que só pode ser excluída porque, primeiro, foi culpabili- zada. E, culpabilizada, já foi punida, mesmo antes de seu julgamento

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 110 23/02/2018 14:42:47 e mesmo sem provas, enquanto que seus algozes seguem inocentados por eles mesmos. Para que possa ser a culpada, ela precisa ser transfor- mada em vilã, mesmo que seja apenas uma vítima.

Dilma, politicamente estuprada e invejada Aqui, sou obrigada a dizer que Dilma Rousseff viveu um estupro político. Ora, todo estupro é político porque o crime contra uma mu- lher sempre é político já que, desde Simone de Beauvoir, podemos di- zer que a sexualidade é política. Uma mulher está para um homem na sociedade da cultura do estupro como é a nossa, como Dilma está para os políticos que, mancomunados, tiraram-na de seu cargo. Como um estuprador que considera o corpo de uma mulher um objeto para seu uso perverso, os golpistas olham para o corpo de quem ocupa o cargo, mas só quando esse corpo a presidir um cargo, é mulher. Por isso, olham para esse corpo com o olhar do fabricante do caixão. Medem seu tama- nho, seu corte de cabelo, impõem-lhe as medidas que o homem branco europeu e capitalista, que se entende como o dono do poder, inventou. Mas não se trata apenas disso, eles olham para essa mulher de mui- tos modos o que nos obriga a pensar na condição desse olhar. De um lado podemos falar do olhar estuprador típico do desejo patriarcal que não se deve confundir com o todo do desejo masculino. Refiro-me ao olhar daquele que objetifica o outro e que se serve dele para seus fins. Sobre isso, no jogo imaginário misógino, podemos lembrar da imagem de Dilma Rousseff na forma de um adesivo que circulou em carros du- rante algum tempo, no exato instante em que, de pernas abertas, era invadida por uma peniana bomba de gasolina. Mas podemos também lembrar do personagem símbolo do estupro político que é o deputado Jair Bolsonaro, que se posicionou como o grande estuprador em poten- cial contra Maria do Rosário e que, no dia 17 de abril no momento da vo- tação do impeachment, elogiou o conhecido torturador coronel Ustra como o “terror de Dilma Rousseff”. Nesse caso, não podemos falar de

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 111 23/02/2018 14:42:47 um olhar de desejo sexual, mas de um olhar de culpabilização – típico do estuprador que precisa culpar a mulher de saias para tornar-se apto a violentá-la. Esse olhar responde por um desejo obtuso que se expressa como violência sexual. Nesse caso, temos que falar de um outro olhar que, a meu ver, entra na constelação misógina. Esse olhar implica o afeto da inveja. É o olhar conhecido como “olho grande”, ou “olho gordo”. A inveja é a impotên- cia para o desejo. A inveja é responsável por todo tipo de violência co- varde. Para além da mística em torno da potência cancelada da inveja, é preciso ter em vista que subestimamos há muito a potência dos afetos em termos de racionalidade política. Vimos, contudo, o papel do ódio entre nós. É o caso de vermos também o papel da inveja. A inveja quase não se expressa, ela se oculta, porque é covarde. O desejo é o seu oposto. O desejo está para a potência como a inveja está para a impotência. Sabemos que o estuprador não tem desejo. Ele odeia e, no fundo, tal- vez inveje. Não é o desejo que olha para Dilma, mas a impotência de um homem que olha para ela. E esse olhar é destrutivo. Não podemos crer que, sendo o poder patriarcal, capitalista, branco, sendo o poder que impera no Brasil, um poder colonial (de um colonia- lismo que vem de fora, mas que também foi introjetado pelos que hoje estão dentro) que aqueles que sempre o representaram ficariam de bem – isentos de inveja – com uma figura como Dilma Rousseff no seu posto máximo. Além de morrerem politicamente nas urnas, morreram de in- veja. Por isso desrespeitam o voto. A inveja do mau perdedor, do menos votado, do inelegível, do impopular, do pouco popular. Morreram politicamente nas urnas e depois morreram de inveja – passaram todos os recibos – de não poderem usar aquilo que em sua mente autoritária seria simplesmente seu. Se prestarmos atenção no inconsciente ótico revelado na iconografia das redes sociais, nos provi- denciou a imagem de Temer no corpo de Dilma Rousseff com o vesti- do da posse. Talvez o poder fosse seu e do mesmo modo o vestido, em

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 112 23/02/2018 14:42:47 sua condição de veste do poder, no flagrante do olhar caído de Michel Temer. Dilma Rousseff, além de tudo, não é a mulher dos moldes da bran- quitude burguesa, europeia e obediente. Ela está longe de ser a “bela, recatada e do lar” que, conforme vimos na mídia golpista, pode-se ter à cama nos tempos do machismo narcísico e impotente. Contra isso, revistas tentaram fazê-la passar por louca, má, agressiva, doente. Manipulações da imagem fazem parte da era do espetáculo político. Desde o abnóxio segundo colocado, neto de vovô, até o vice-presi- dente, troféu dos menos votados de seu partido (partido, aliás, acos- tumado a presidentes não eleitos pelo voto), ilegítimo em seu cargo interino, passando pelo ladrão histórico que renunciou há poucos dias – todos representantes máximos entre nós do que podemos chamar de ridículo político – todos desejam ser a presidenta. Desejam e não po- dem porque não têm votos, nem poder, só a violência da politicagem. Cuidado com a inveja masculina que historicamente inventou a in- veja feminina num golpe de mestre da misoginia histórica.

“Aquela mulher”: ideologias machistas contra o gênero feminino Dilma Rousseff é uma mulher e como toda mulher terá que pagar pelas regras compulsórias que regem suas vidas no contexto do ma- chismo como ideologia. É a ideologia patriarcal que constrói a ideologia da maternidade, a ideologia da sensualidade e a ideologia da beleza que homens, sobretudo os brancos, tanto quanto as igrejas, os partidos, a publicidade, a mídia e a sociedade civil de um modo geral jogam sobre as mulheres sempre renovando, pela violência simbólica e estrutural, a alienação de suas vidas e corpos como se faz há milênios. Mulheres, como outros trabalhadores, são oprimidas e seduzidas para que não pensem e não ajam de modo a desconstruir o que está mui- to bem guardado por conservadores. Dilma Rousseff foi confrontada

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 113 23/02/2018 14:42:47 a todo o momento com aqueles quesitos do jogo de linguagem misó- gino que sustenta a ideologia machista às vezes de modo mais velado, às vezes de um modo mais escancarado, como acontece com todas as mulheres que chegam ao poder. A qualquer tipo de poder. Imaginem o que deve ser chegar ao poder quanto tantos inelegíveis tem você na mira de suas armas e quando a maledicência é uma arma poderosa nos tempos midiáticos, em que televisão e redes sociais elevam o verbal e o discursivo ao mais importante de todos os capitais. Dilma Rousseff tornou-se, no contexto da misoginia diária, sempre estimulada pela mídia, “aquela mulher”. Seu nome próprio desaparecia diariamente, num sinal de evidente falta de respeito. Dilma Rousseff foi sempre objeto da vileza política seja ao nível ins- titucional, seja ao nível aberto do político no qual todos exercem seus ideais e repetem os clichês da tendência dominante bem trabalhados pela publicidade midiática que serve como prótese de pensamento dos ex-cidadãos transformados em telespectadores e idiotas, esvaziados de sensibilidade e inteligência moral em nossa época.

Misoginia como razão de estado Com a saída da presidenta, a misoginia torna-se razão de estado. É o todo da política de governo. Em termos práticos, isso quer dizer o fim do Ministério das mulheres, da igualdade racial, da cultura, da comuni- cação, do que mais tiver relação com uma política capaz de reconhecer pautas relacionadas a direitos fundamentais. Uma política capaz de re- conhecer a importância da participação popular. Uma política capaz de representar os cidadãos. É o fim da democracia representativa. Autorização coletiva para o machismo em todos os níveis, o racismo, os preconceitos de gênero, em uma palavra é o fascismo como negação do outro o que entra em cena com o fim da representação. O governo se expõe, mas de modo cínico. O rito governamental de Michel Temer, que entrará para a história como o magno representante do ridículo

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 114 23/02/2018 14:42:47 político entre nós, como o boçal invejoso, implicou o ato simbólico de esvaziar a política de seu sentido. Como ele conquistou essa façanha? Tirando a representação da cena. Se na modesta e capenga democracia brasileira denunciamos há mui- to pouco a sub-representação de mulheres, e de mulheres negras, de ne- gros, indígenas, quilombolas, lésbicas, de todos os grupos jogados no campo infindável, imenso, das minorias, o governo golpista vem deixar claro que democracia não é o seu forte. Pensando que está no tempo dos colonizadores e dos coronéis que do século XIX, sua escola antiquada, pensando que governará ilegitimamente deitado em seu esquife de vampiro sugando o pescoço de nossa democracia jovem, guerrilheira e adolescente, o governo do golpe continua mirando o povo com seus olhos capitalistas de fabricante de caixão. Com a típica covardia mas- culina, Michel Temer, o invotável, usurpou o lugar da presidenta eleita legitimamente e instaurou um estado de exceção em que leis não tem mais vigência. Um estado de exceção invisível, analfabeto político, au- toritário e cínico.

Misoginia e luta por hegemonia Política é luta por hegemonia. O jogo do poder é um jogo de manu- tenção do próprio poder, mesmo que o poder tenha que se tornar vio- lento para isso. Um reconhecimento do inimigo sempre foi necessário. Todo governo tem seu inimigo e se deve levá-lo a sério. A direita combate a esquerda, e vice versa. Os capitalistas sempre combateram os comunistas e vice versa. Um governo autoritário combate a democracia de todos os modos, nas formas mais veladas. Ora, o inimigo existe ou é criado. As mulheres foram criadas pela misoginia histórica como inimigas dos homens e delas mesmas. Assim foi com Dilma Rousseff reduzida a ser “aquela mulher” cujo nome as pessoas pararam de pronunciar como não se pronuncia o nome do Diabo, ou um palavrão. Ora, todo poder, todo governo combate aquele

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 115 23/02/2018 14:42:47 que o fragiliza. O combate que o governo ilegítimo Temer tem em rela- ção às minorias é do mesmo teor do combate às mulheres e à presidenta Dilma que se tornou uma heroína fundamental, uma verdadeira metá- fora da democracia em seu estágio atual, o da representação feminina. Não é momento para debater isso, mas no dia em que as mulheres des- cobrirem que o patriarcado é um inimigo sério, no dia em que o povo perceber que o neoliberalismo e toda a religião capitalista são seus ini- migos, aí sim, teremos uma revolução. O governo Temer expõe-se como governo do golpe, uma abjeção po- lítica organizada por anos, na estratégia que culminou no afastamento da presidenta. O golpe começou com um combate diário, desde que a presidenta era candidata. Esse combate é velho e é misógino. A permanência da misoginia é a vitória do autoritarismo antidemo- crático instaurado hoje no Brasil. Se há machismo estrutural é porque há um sistema de privilégios masculino que depende das práticas e dos discursos misóginos. Parece-me que a responsabilidade de todos nós que respeitamos a democracia é combater a misoginia. Hoje, lutar por democracia se con- firma como luta contra a misoginia, ou seja, como desmontagem da máquina misógina, aquela mesma para a qual Dilma Rousseff apontou ao dizer-se presidenta. A questão do golpe contra Dilma Rousseff nos coloca hoje essa gran- de questão. Não haverá democracia se houver misoginia, pois a miso- ginia carrega o princípio da negação do outro que nos coloca agora no atual esvaziamento do estado de direito e do fim da democracia que sempre será a única esperança que podemos ter na política.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 116 23/02/2018 14:42:47 Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é pleonasmo

Marielle Franco*

* Vereadora do Partido Socialista (PSOL-Rio). É socióloga formada pela Introdução Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) O golpe no Brasil, e não estou falando de 1964, e mestra em Administração foi uma ação autoritária, feita com a utilização do Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). arcabouço legal brasileiro em pleno século XXI. Os principais atores desse cenário? De um lado a presidenta, mulher, vista por parcela da população como de esquerda. De outro lado um homem, bran- co, visto por parcela expressiva das pessoas como de direita e socialmente inserido nas classes dominan- tes. Essa conjuntura do golpe, marcada pela altera- ção da correlação de forças políticas, também cravou

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 117 23/02/2018 14:42:47 alterações sociais significativas na esfera do poder do Estado e no ima- ginário popular. Trata-se de um período histórico em que se ampliam as desigualdades, pelas retiradas de direitos de um lado e, por outro, a discriminação e a criminalização de jovens pobres e das mulheres, principalmente as mais pobres. No mesmo período outros elementos pulsam na cidade carioca com caracterizações distintas para a conformação política da ordem nacio- nal e do imaginário predominante. Para uma mulher favelada, negra e que se assume politicamente de esquerda, ser eleita com mais de 45 mil votos é um marco eleitoral histórico. Tais contradições, antinomias de um mesmo ambiente, com diferentes escalas, protagonizam o cenário. Enquanto esteve à frente da presidência da república, Dilma Rousseff enfrentou vários desafios relacionados ao fato de ser a primeira mulher a ocupar aquele espaço de poder e de ter no prédio ao lado o Congresso Nacional mais conservador da nossa história. Não por acaso, seu im- peachment revelou logo a sua faceta patriarcal, com ameaças cotidia- nas às conquistas históricas dos movimentos de mulheres e feministas. Nossa ação política, portanto, identifica com importância significativa a ocupação de espaços de poder, inclusive institucionais, contribuindo para criar ambientes nos quais mais mulheres tenham voz e visibilida- de para pautar nossas demandas em todos os lugares. Os estereótipos associados ao que é ser uma mulher e as expectati- vas sobre como devemos nos comportar são facetas do discurso conser- vador. Movimento esse que ganha força, em escala internacional, tendo em vista que o outro, a outra, o corpo que não compõe o grupo social de poder tende a ser “colocado para fora” ou “impedido” de conviver, com suas “diferenças” pelas classes dominantes. Com a falácia da narrati- va de “crise econômica”, busca-se derrubar os direitos conquistados e uma vez feito, nós, mulheres negras, estaremos ainda mais vulneráveis à violência e ao racismo cotidiano. Para além de resistir, trata-se de ação fundamental alterar tal correlação de forças a nosso favor. Apesar das nossas críticas aos governos petistas, nossa luta sem- pre foi baseada na perspectiva de mais direitos, com enfrentamento às

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 118 23/02/2018 14:42:47 desigualdades, com políticas para construção de um Brasil com condi- ções de vida mais dignas para todas as pessoas. Sabíamos que a concilia- ção de classe tinha limites, e um governo ancorado em tal arquitetura, não reuniria forças para superar as desigualdades. Nesse caso, questões fundamentais, como o genocídio dos povos indígenas e da juventude negra, percebem-se limitadas para acumular políticas públicas e um ar- cabouço legal que possa superar tal situação. O governo ilegítimo, no entanto, dá mais força às elites políticas e econômicas que sempre estiveram no poder e reage às manifestações populares com forte repressão policial. Temer assumiu a incumbência de aprovar as reformas estruturais da forma como foram pensadas pelos grandes empresários e pelas instituições financeiras internacionais. As contrarreformas trabalhistas e da previdência, por exemplo, são peças fundamentais para destruir os direitos das mulheres, principalmente das que vivem dos seus trabalhos ou em condições nas quais o trabalho de suas famílias são os meios de manutenção de suas sobrevivências. Num país com alarmantes desigualdades de gênero que temos, lo- cal onde as mulheres recebem salários menores, as mulheres têm mais dificuldade de serem empregadas em trabalhos formais, sofrem mais com o desemprego e ainda são sobrecarregadas com a dupla ou tripla jornada, as superações e conquistas são desafios diários. Se já é difícil para as trabalhadoras domésticas atingirem os 15 anos de contribuição previdenciária, imagina para alcançar os 25 anos propostos no projeto de lei enviado ao Congresso? O golpe atinge social, econômica e simbolicamente a maioria da po- pulação, mas chega com força destruidora para todas nós, mulheres. A repercussão dessa onda toma todo o país em níveis nacional, nas uni- dades federativas e nos municípios, com grande impacto nas cidades. Antes mesmo do impeachment, os protestos da Primavera das Mulheres chamaram a atenção para o absurdo do projeto de lei que dificultava o acesso ao aborto nos casos já permitidos legalmente. As Marchas das Margaridas e das Mulheres Negras, em Brasília,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 119 23/02/2018 14:42:48 mostraram a força do nosso movimento e transversalidade das nossas pautas. No último 8 de março, uma aliança internacional levou milha- res de mulheres às ruas contra as reformas trabalhista e da previdência. Estamos, portanto, organizadas, ocupando ruas e os vários cenários públicos de diversas maneiras, com outros movimentos sociais, apesar da dura repressão contra esses atos. Descriminalizar, barrar derrubadas de direitos e avançar no direito à diferença e às conquistas sociais e eco- nômicas são desafios que assumimos para o presente. Estamos confiantes, portanto, de que ter um gabinete formado ma- joritariamente por mulheres, voltado para os temas de gênero, favela e negritude, reunirá forças para criar ambientes favoráveis para os em- bates atuais. O diálogo com outras mulheres que ocupam papel de re- presentação, no Estado ou na sociedade civil, assim como com outros setores explorados, marginalizados e oprimidos, será uma estética cla- ra para forjar novos ambientes favoráveis para barrar a onda das classes dominantes e obter novas conquistas. Precisamos cultivar o bom senso para construir uma nova estética política na perspectiva de articular gê- nero, raça, classe e territórios populares para que a vida das pessoas seja colocada acima do lucro. Pode-se afirmar que uma das grandes vitórias da burguesia, das clas- ses dominantes brasileiras, foi construir uma cultura na qual predomi- na um estigma entre pobres e ricos de que o maior problema do Brasil seja a corrupção. Um discurso moral, com latência imediata na vida das pessoas. Com isso, nós da esquerda ficamos em situação desfavorável na correlação de forças, com consequência destruidora para os mais po- bres. Enfrentar e superar as desigualdades são desafios atuais, contem- porâneos, que estão colocados para nós, para o nosso mando, para nossa ação de transformação social por uma vida mais digna e para a grande estratégia de superação do capitalismo. Neste ensaio, quero pontuar os desafios que essa conjuntura tem nos colocado e algumas soluções que estamos criando a partir do mandato, com as possibilidades de escala de mudanças que podemos interagir e

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 120 23/02/2018 14:42:48 agir. Como mulher, negra, com origem na favela da Maré, feminista por convicção, assumi o desafio de ocupar a câmara municipal do Rio com as nossas pautas. Para além disso, assumi o desafio de conquistar um espaço determinante para uma estética popular que consiga articular com os sujeitos estratégicos para barrar o avanço do capital e constituir ambientes nos quais os direitos às diferenças, à vida e a dignidade hu- mana sejam determinantes. Portanto, a empatia com mulheres, negros e mais pobres, são elementos centrais para enfrentar, barrar e superar os projetos dos “donos do poder”.

A cidade do Rio O Rio de Janeiro possui uma história que, em muito, o diferencia de outras metrópoles brasileiras. Na maior parte de sua existência foi capital do Brasil, passando a ser unidade federativa com uma só cidade para em seguida, somente em 1975, integrar-se ao estado fluminense. Condições sui generis, inclusive para criar uma identidade metropoli- tana em uma cidade que é uma grande metrópole. Afinal, a cidade na qual vivemos está incluída entre as 50 maiores cidades do mundo. Nos últimos anos, viveu-se, neste local, o poder político controlado pelo PMDB, no governo estadual e na prefeitura (até as eleições de 2016). É importante destacar como são grandes as contradições que ainda fluem na cidade, e um desses exemplos foi a eleição, ao mesmo tempo, para a Câmara Federal, de Eduardo Cunha, figura chave do processo de impeachment, e a Jean Wyllys, defensor da causa da LGBT. A minha trajetória na coordenação da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) me co- locou em contato também com as consequências diretas do projeto, predominantemente racista e machista, implementado pelo PMDB. O projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) que, apesar de ter sido premiado internacionalmente, colocou-nos num cenário desola- dor, sobretudo diante da crise pela qual passa o governo fluminense.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 121 23/02/2018 14:42:48 Principal marca desse cenário é a violência e o número de mortes que segue ampliando assustadoramente, por conta dos confrontos diários, espalhando-se pela cidade, de forma mais notória nas favelas das Zonas Norte e Oeste e nos territórios populares. E pode ficar ainda pior soma- do à situação do país e à incapacidade de construir um direito criminal sustentado da defesa da vida e não na ampliação das punições. O trabalho na comissão me fez perceber que no Rio de Janeiro era preciso defender o que já deveria ser universalmente óbvio, a vida: que havia direitos fundamentais a serem respeitados; que as favelas são vis- tas como local de medo, miséria e “bandidos”, mas são territórios de potência e sofrem o peso da falta dos investimentos do Estado, não é natural o que nelas ocorre; que é preciso pensar e praticar uma política de segurança pública ampla, integrada a uma perspectiva social que sir- va para defender a vida. Inúmeras famílias, mães, irmãs, avós estão pas- sando pelo pior: a perda de seus filhos, filhas e entes queridos, além da convivência diária com a militarização e a violência por parte do Estado no dito combate ao tráfico e por parte dos grupos criminosos; o que causa efeitos psicológicos e físicos imensuráveis. Soluções como o uso de argamassa blindada nas escolas não blindarão os corpos vulneráveis a essa violação diária de direitos. As questões territoriais na cidade ampliam as desigualdades em formas e condições muito elevadas. Um exemplo simbólico disso foi o ocorrido na Vila Autódromo durante o governo do último prefeito. Posicionada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, esse território popular viveu os efeitos nefastos que as remoções e desapropriações feitas em nome de projetos nos quais o lucro tem mais importância que a vida das pessoas: os megaeventos e os equipamentos esportivos para as Olimpíadas e Copa do Mundo. Entre 2009 e 2013, 20.299 famílias (cer- ca de 67 mil pessoas) foram removidas de suas casas pela prefeitura. Outras milhares – não se sabe o número exato – tiveram as casas de- sapropriadas por decreto, desrespeitando marcos jurídicos importante

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 122 23/02/2018 14:42:48 da legislação em prol do direito à moradia, como o estatuto das cidades. (KONCHINSKI, 2015; PARKIN, 2015) Com as consequências da falta da moradia e da falta de referência territorial, pois foram removidas, as famílias lutaram, com suas pos- sibilidades e condições, para ter seus direitos reconhecidos, ter um lu- gar para onde ir, algum tipo de amparo pelo Estado. A história da Vila Autódromo é muito significativa, pois é com as mais bravas guerreiras da Vila no processo de resistência, que renovo minha certeza de levar adiante a ideia de construir um mandato voltado para as lutas das mu- lheres em todos os campos. Quando lançamos a candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura, pelo PSOL, nossa proposta era se contrapor ao projeto de cidade imple- mentado por Eduardo Paes. Nós defendemos um Rio para as pessoas. Embora não tenhamos chegado à prefeitura, nossa campanha foi vito- riosa: chegamos ao segundo turno e elegemos uma bancada de seis ve- readores na Câmara Municipal. Como feminista, é um desafio ter, pela primeira vez, um prefeito que é bispo, ligado a uma das maiores igrejas do país, com o risco de construir, na cidade, uma estética mais pigmentada pela conduta reli- giosa que pela postura laica. Nossa primeira prova de fogo no mandato foi a audiência pública do Plano Municipal de Educação que, apesar da sua importância e amplitude, foi marcada pelo debate sobre “ideologia de gênero” e “escola sem partido”. Como acontece no âmbito nacional, há um discurso organizado que dizima as propostas em prol de uma educação mais diversa e inclusiva. Reduz as nossas necessidades da pauta – que são muitas – a um debate vazio. Apesar de todos esses desafios, não ficaremos na defensiva, rea- gindo aos avanços que o conservadorismo nos impõe. O feminismo cresceu muito nos últimos anos, está ocupando as redes e as ruas com emblemáticas campanhas, performances e textos provocadores. É com esse dinamismo que estamos construindo nossas propostas.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 123 23/02/2018 14:42:48 Tornar legal é determinante para a realidade na qual vivemos Em 2015, milhares de mulheres foram às ruas contra o Projeto de Lei (PL) 5069/2013. O referido projeto tinha como objetivo dificul- tar o acesso das mulheres vítimas de violência sexual às informações e procedimentos sobre o aborto, direito garantido por lei. A chamada Primavera das Mulheres tomou as ruas do país e fez do movimento fe- minista um canal importante nas lutas dos movimentos da conjuntura pré-golpe. As manifestações inspiraram a minha campanha e o meu compro- misso em fazer um mandato afinado as pautas do movimento femi- nista. Por isso, o primeiro PL que apresentei na Câmara de Vereadoras e Vereadores foi um projeto de programa que garante o atendimento humanizado às mulheres que têm o direito de interromper a gravidez. Hoje, a lei garante este direito em três situações: casos de anencefalia, risco de morte para a mulher e nos casos de gravidez em decorrência de estupro. (BRASIL, 1940, 2012) Apesar disso, muitas mulheres não sabem que têm esse direito, sem contar os profissionais que se negam a fazer o atendimento, alegando objeção de consciência – quando se sentem impedidos de fazer algo que vai de encontro com a sua convicção religiosa –, deixando as mu- lheres à própria sorte. Entre 2013 e 2015, 52% das mulheres que procu- raram os hospitais para realizar um aborto legal não foram atendidas. (MADEIRO; DINIZ, 2016) O que nós queremos com o PL é garantir que as mulheres sejam aten- didas de forma segura e humanizada e que não tenham que levar adian- te uma gravidez decorrente de uma violência tão grave como o estupro.

Espaço Coruja Eu fui mãe adolescente e sei bem as dificuldades de cuidar dos filhos e conseguir trabalhar. Por isso, outro projeto que apresentamos foi o de

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 124 23/02/2018 14:42:48 criação de espaços noturnos para as crianças, que garantiriam que elas pudessem permanecer nos espaços de educação infantil realizando ati- vidades extras, lúdicas, diversas ou descansando. O objetivo é garantir que as mulheres possam ter maior liberdade de atuar no mercado de tra- balho, pois os limites de horários da educação infantil hoje são um dos fatores que afetam diretamente a empregabilidade das mulheres. Nosso objetivo não é deixar as crianças por tempo demais nas cre- ches, nem forçá-las a uma carga excessiva de estudos, mas encontrar um equilíbrio dos horários e tipos de atividades para que as mães não pre- cisem ter que abandonar o emprego, recorrer ao trabalho informal ou contar com sobrecarregar outras mulheres da família. Assim seguimos para a construção de um mandato parlamentar, comprometido com a vida, em suas múltiplas dimensões com refe- rência clara nas pessoas que são exploradas, marginalizadas, discrimi- nadas e interditadas por uma cidade dos poderosos. Avançamos para construir insumos que contribuam para potencializar que mulheres, negros, pobres, assumam o papel de sujeitos para uma cidadania ativa. Conquistar uma cidade de direitos é uma ação fundamental para a re- volução no contemporâneo. E esse é o nosso lugar, esses são os desafios colocados para o nosso mandato.

Referências BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código penal. Diário Oficial, Poder Executivo, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Seção 1, p. 23911, art. 128.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental 54, de 12 de abril de 2012. Brasília, DF, 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2017.

KONCHINSKI, V. Paes muda discurso e desapropria sem acordo casa de vizinhos da Rio-2016. UOL Olímpiadas, Rio de Janeiro, 21 mar. 2015.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 125 23/02/2018 14:42:48 Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2017.

MADEIRO, A. P.; DINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016.

PARKIN, B. Prefeito anuncia desapropriação na Vila Autódromo, e MIT critica política da prefeitura. Rioonwatch: relatos das favelas cariocas, Rio de Janeiro, 27 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 27 mar. 2017.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 126 23/02/2018 14:42:48 O golpe de 2016 e a demonização de gênero1

Mary Garcia Castro*

* Professora aposentada da Tomando altura Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisadora da A intenção deste ensaio2 sobre o tema sugerido, Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO, “o golpe na perspectiva de gênero”, é um texto de- Brasil) e bolsista do Conselho sordenado3 em que se joga com teses de alguns au- Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico tores, como a de Heleith Saffioti (2004) sobre o ca- (CNPq). ráter de formação capitalista da sociedade brasileira por uma “ordem patriarcal de gênero” e as de Terry Eagleton (2015), que em livro com o sugestivo título Esperança, sem otimismo nos anima ao identificar, no ataque ao que se anunciava como ondas libertá- rias, o medo:

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 127 23/02/2018 14:42:48 O fundamentalismo tem suas raízes não no ódio, mas no medo, o medo de um mundo moderno e mutante, em que tudo está em movimento, onde a realidade é transitória e com um final não definido, onde as certezas e os pilares mais sólidos parecem ter desaparecido. Nesse sentido, é a outra face do pós-modernismo. (GUMUCIO, 2016)

Eagleton (2015) mais anima ao sugerir que “a luta continua” porque estar na luta seria a nossa sorte. Ainda que sem profecias ou otimismo, exalta a esperança, porque estamos nos movendo, as ruas fervilham em manifestações contra o golpe e nessas as mulheres se destacam. Segundo ele:

A esperança é um tipo de desejo, mas um que o vincula com um tipo de expectativa. A esperança tem que ser, de alguma forma, viável; tem que ser possível de ser reali- zada, enquanto o desejo pode não ser. (GUMUCIO, 2016)

Recorre-se ao conceito de ordem patriarcal de gênero (SAFFIOTI, 2004), tendo gênero tanto como estruturante de relações simbólicas e materiais do normatizado como ser ou estar homem ou mulher, assim como da crítica a tal modelagem das relações sociais. Já a combinação gênero e patriarcado sublinha o acento em poder de dominação, lingua- gem que embasa instituições, qualifica e hierarquiza mais além do sexo biológico. Sobre o trânsito e fronteiras entre os conceitos de gênero e de pa- triarcado e sua utilidade no debate sobre cultura no capitalismo, escla- rece Saffioti (2004, p. 36):

Não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de eliminar sua utilização exclusiva. Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessivamente ge- ral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro [...]. O patriarcado ou ordem pa- triarcal de gênero, ao contrário, como vem explicito em seu nome, só se aplica a uma fase histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade e deixan- do propositadamente explicito o vetor da dominação-exploração [...]. Trata-se, pois,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 128 23/02/2018 14:42:48 da falocracia, do androcentrismo, da primazia masculina. É, por conseguinte um con- ceito de ordem política. E poderia ser de outra ordem, se o objetivo das(os) feminis- tas consiste em transformar a sociedade, eliminando as desigualdades, as injustiças, as iniquidades, e instaurando a igualdade?

Ainda em nível de cruzeiro, ensaio o gesto de destacar que tal for- mação de gênero patriarcal capitalista teve, no impeachment da presi- denta Dilma Rousseff, ponto de destaque, mas que vinha há muito se modelando, legitimando-se junto ao povo, aproveitando o difundido analfabetismo político, tanto por alianças com pares, como pelo fun- damentalismo religioso, de agências no poder midiático, no judiciário e no legislativo e pelo cultivo do medo à perda de privilégios, ao outro, a outra não igual, apelo a inseguranças e à demonização de indícios de viradas libertárias pregadas como ameaças à norma, à lei do pai, ao pa- triarca.4 O processo de analfabetismo político contou com a omissão de uma esquerda arrogante que, para garantir poder formal na política por re- presentatividade e um projeto de desenvolvimento econômico com- petitivo e de integração na ordem econômico mundial, deixou campo aberto para tal escalada político-econômico-cultural de direita, já que as pugnas por reconhecimento e distribuição de bens e oportunidades que focalizam categorias como gênero, raça/etnicidade, sexualidade e geração, assim como orientadas por vetores de sustentabilidade ecoló- gica, dignidade e do bem viver seriam em tal projeto marginalizadas como politicas identitárias, desviantes da unidade necessária entre tra- balhadores/trabalhadoras para a luta de classe, concebida como restri- ta ao campo das relações econômicas, ou, no caso da esquerda liberal ou sócio-democrática, contradições que se resolveriam por injunções pontuais. Mas gênero e raça/etnicidade são processos organizatórios que sus- tentam uma formação capitalista-patriarcal-racista, não somente ins- crições individualizadas no corpo, cujas colonialidades e subordinações

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 129 23/02/2018 14:42:48 terminariam contempladas com políticas e programas compensatórios para algumas mulheres, alguns negros, alguns indígenas, alguns dos ti- dos como pessoas LGBTTQ, alguns jovens e alguns velhos. Se o ataque mais direto a direitos humanos das mulheres se dá no governo Temer, há que ter claro que o processo de subalternidade da trabalhadora, principalmente se negra, no terreno da economia, não é novo, mas em muito se agudizará, no projeto neoliberal em curso:

A imensa maioria dos trabalhadores precarizados é formada por mulheres. Somos 70% [segundo estudo elaborado pela CUT em 2015] da mão de obra terceirizada do País. Assim, podemos afirmar que a terceirização tem rosto de mulher, principal- mente de mulheres negras. Essa realidade combinada aos cortes na educação e na saúde, impactará brutalmente a vida da mulher trabalhadora, que em sua maioria arca sozinha com as responsabilidades da família.

A Reforma Trabalhista, que isentará as empresas de arcarem com licença materni- dade e outros direitos adquiridos pelas mulheres, vem acompanhada da nefasta Reforma da Previdência, que quer estabelecer que trabalhemos “até morrer”.

O projeto original da reforma previdenciária acaba com a diferença de idade entre homens e mulheres para se aposentar, igualando o tempo de contribuição, mesmo com as mulheres trabalhando mais por causa da dupla jornada e começando a tra- balhar mais cedo informalmente, fruto do trabalho doméstico, que isenta o Estado da obrigação com o cuidado e manutenção das famílias. (MACHADO, 2017, p. 124)

A serpente do neofascismo foi se criando, alimentando-se de um moralismo oportunista que reificou os males do sistema em um sinto- ma, a corrupção, e não nos demos conta que dignidade é um valor básico do povão e nos omitimos da tarefa pedagógica de desvendar a dinâmi- ca das desigualdades sociais5 e mais pressionarmos por uma educação de qualidade, contra o analfabetismo político. Nós, ativistas em movi- mentos sociais, curtimos por algum tempo a euforia de que tínhamos,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 130 23/02/2018 14:42:48 estávamos no poder e dessa posição poderíamos avançar alguma eman- cipação política. Contávamos com cargos, maquinarias para direitos humanos, con- quistamos leis avançadas contra violências nas relações sociais entre os sexos, contra discriminações raciais e de proteção a vulnerabilizadxs. Estávamos institucionalizadxs. Óbvio que tal reflexão é uma hipérbole, a realidade é mais comple- xa e na correlação de forças não éramos poder. Tal apelação retórica é mais para sublinhar a importância da educação formal e aquela que, por diversos meios, apela para o combate ao analfabetismo político e em especial sobre as potencialidades do ativismo/consciência em gêne- ro e raça/etnicidade para “cidadanias insurgentes” (HOLSTON, 2013) tanto contra violências sexualizadas ou baseadas em estereótipos sobre sexo/gênero como para um pensamento crítico sobre o sistema como um todo. Haveria que ter investido mais na perspectiva da interseccio- nalidade – destacada contribuição do “feminismo negro”6 – mas não só de inscrições individualizadas, e sim como enlace de processos simbó- licos e materiais que fortalecem classes de subordinações e se rebelem contra um estado de exceção, como o vigente no Brasil e que ironica- mente, mas não acidentalmente, derrubou uma mulher da presidência e vem minando conquistas de várixs subalternizadxs. Mas o agito de muitos contra o golpe ilustra a propriedade do acento na esperança, como sugerido por Eagleton (2015).

Segundo Ieda Castro, feminista, ex-gestora do governo Dilma: ‘Faltou às gestões anteriores investir na educação política. Queríamos tanto que as políticas aconte- cessem que não fizemos a educação política. Agora é hora de conquistar corações e mentes para a luta geral’, completou Ieda. Na opinião dela, o formato do 8 de março deste ano [2017] consolida o mês das mulheres para além do perfil comemorativo mas como espaço de luta e defesa de direitos. Lúcia Ricon da União Brasileira de Mulheres confia no impacto das manifestações do mês [maio de 2017], especial- mente do dia 8. ‘Nós temos um movimento de mulheres em diferentes facetas e todas unidas na ação de denúncia do golpe contra a reforma da Previdência e contra

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 131 23/02/2018 14:42:48 a reforma trabalhista. Então com certeza as atividades que acontecerão vão fazer reverberar a denúncia’. (CARVALHO, 2017)

A Demonização de gênero: por que o medo à educação? Nesta seção embico mais aterrissagem. Gostaria de tratar do golpe político cultural contra direitos à diversidade, a investida fundamenta- lista, o alvo na educação dos golpistas, como forma de minimizar a for- mação de uma consciência crítica, não somente em relação a costumes, mas a um estado da nação, ressaltando que a campanha contra uma pseudo ideologia de gênero faz parte da orientação pelo retrocesso po- litico cultural, básico para sustentar um regime autoritário. A liberdade é um afeto que tende a não se deixar enquadrar, exigindo ambiências polissêmicas. São jovens mulheres, jovens trans, gente transgressora, que, em di- ferentes manifestações de repúdio ao golpe, fazem o nexo entre macro e micro políticas, sugerindo que corpo e sexualidade são construtos de orientação político-econômica e não tema menor, específico. A força de mobilização das mulheres, dxs jovens decolando do corpo e des ou reterritorializando regras na crítica ao processo golpista mere- ce análises e visibilidade social maiores, sugerindo a esperança a que se refere Eagleton (2015), a renovação da resistência. Um dos desafios para a resistência é compreender que a onda neo- conservadora que assola vários países e que, no Brasil, tomou a forma de um golpe político-econômico-cultural, instalando um regime de exceção, precisa para enfrentamento de uma “deseducação” contra o li- vre pensar, que recorra ao pensamento crítico, ou seja, um saber pensar para um saber agir, como há que mais demarcar que o golpe em cur- so mescla capitalismo neoliberal com patriarcado. Precisamos refletir

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 132 23/02/2018 14:42:48 mais porque a escola, sexualidade e gênero, também no meio escolar, são alvos prediletos de ataques fundamentalistas e conservadores. Se o capitalismo neoliberal é contra o estado de bem estar, apoia-se na lei do mercado, em privatizações e na precariedade do trabalho, o patriarcado é entendido como a supremacia masculina, castradora de desejos e de sexualidades que não se alinham com a heteronormativi- dade. Apoia-se no poder do macho, do pai, da lei/autoridade, ou seja, em instituições e ideologias que consideram a mulher como objeto de reprodução e não sujeito de desejos e de escolhas próprias; e o gay, o/a transexual, o/a transgênero e o travesti como “invertidos” ou “anoma- lias” ideias que vêm sendo defendidas pelo fundamentalismo religioso. Ideias que conquistam massas socializadas no familismo, no pa- triarcado e que tem medo de perder o pater potestas para a escola, tida, erroneamente, como libertária e, principalmente, pelo medo de perder sua autoridade/austeridade (vocábulos caros ao golpe) para uma juven- tude que se rebela contra as amarras castradoras de desejos. A comum apelação para salvar a família, as declarações de fé pelos valores “da família brasileira” nas exposições de voto na seção plená- ria da Câmara dos Deputados, que em 17 de abril de 2016 legalizou o impeachment da presidenta Dilma são emblemáticos de uma ideologia jogo de cena, para conquistar uma massa levada a associar um governo, uma gestão que se queria derrubar com uma mulher que não se encaixa- va na norma esperada, a de mãe de família, “recatada e do lar” e que seria uma ameaça à família, aos “bons costumes”, à moral de austeridade que se queria nas finanças públicas – as metáforas entre a defesa da família e o impeachment da presidenta estariam subliminarmente postas. Não ao azar, tanto o golpe de base conservadora como uma Igreja pa- triarcal no Brasil combatem conquistas feministas, como perspectivas sobre gênero, exaltando a mulher cuidadora, a do lar, como se essa não gostasse ou aspirasse também estar no bar. Governo neoliberal e igrejas fundamentalistas contribuem para violências físicas, verbais, simbóli- cas – ou seja, aquelas em que as vítimas indiretamente colaboram para

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 133 23/02/2018 14:42:48 sua opressão, comumente pela sedução de ideias sobre maternidade, amor romântico e proteção familiar ou medo do “inferno”, não o aqui vivido, mas projetado transcendentalmente. Inseguranças e medos de várias ordens são baluartes de uma ordem conservadora que se sente ameaçada pelos avanços de debates sobre gênero, em especial no campo de direitos reprodutivos e sexuais, ou seja, o controle de corpo, sua fle- xibilização quanto a performances e o poder de vida, separando repro- dução biológica de reprodução sexo-social e destacando a importância do desejo e dos afetos. O patriarcado, o poder do pai, do marido, da lei, de uma crença, de um pensamento único e de um modelo hegemônico de masculinida- de, é um processo material e simbólico complexo, que cada vez mais se enrosca com o capitalismo. O patriarcado é um sistema de opressão de gênero, entendido como construções sociais sobre relações entre o sexo e sua perfilhação cultural e normativa e, novo aporte básico, de cons- trução também do sexo biológico.7 O patriarcado é contra mulheres, gays, lésbicas, transgêneros e outros que não se alinham à heteronor- matividade. A perspectiva da interseccionalidade foge da dicotomia patriarcado e racismo versus capitalismo, ainda que aceite que, a nível da micro po- lítica, podem ambos os sistemas conviver sem se engalfinharem. Mas é uma falácia de níveis equivocados se raça, gênero e orientação sexual, por exemplo, além da inscrição corporal, não são considerados como processos de dominação, de violências que ordenam sistemas sociais. Ou seja, há que reconhecer a mútua colaboração da economia, da cul- tura e da política para sustentar privilégios, competições e hierarquias no capitalismo. Mais do que me referir à intersecção entre gênero, raça e classe, defendo a imbricação de processos de defesa por hegemonias normativas quanto a gênero/sexualidade, com processos por hegemo- nias étnico/raciais em um sistema de organização da economia capi- talista, em sua fase neoliberal, financista e entreguista a interesses do capital internacional dominante.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 134 23/02/2018 14:42:49 Daí a propriedade da reflexão de Saffioti (2004) sobre formação de gênero patriarcal capitalista e porque o golpe instalado no Brasil com o impeachment da presidenta Dilma é mais que uma troca de guarda, ou uma mudança de projetos econômicos liberais e tanto se interessa por minar direitos conquistados por trabalhadorxs, negrxs e pessoas LGBTTQ. Em outro texto desenvolvo mais a ideia de que gênero se alinha a um paradigma de conhecimento modelado na complexidade (CASTRO, 2012), o que pede constante crítica a princípios universais, uma vez que, ao se focalizar tanto reprodução como sexualidade, há que decolar principalmente do território corpo, das vivências e produções de repre- sentações sobre este. Então corpos negros, corpos transexuais pedem modelações próprias não somente em termos de considerar violências, discriminações, subalternidades, mas também desejos, criatividade e o questionamento de conceitos já que abarcam uma pluralidade de vivên- cias, de relações e de subjetividades. Rebatendo a censura a gênero nas escolas estimulada pela aliança golpe e fundamentalismos religiosos, insisto que gênero não é uma ideologia, se entendido tal termo como uma “falsa consciência de ma- terialidades vividas”, já o que fundamentalistas chamam de “ideologia de gênero” para combater perspectiva de gênero nas escolas é sim parte de um paradigma sexista, um paradigma da simplicidade que dicoto- miza e hierarquiza o mundo das relações sociais e sexuais. É um gênero de ideologia que há muito é defendido por dogmas religiosos, como o “parirás com dor”, associação de prazer a pecado; estigmatizar a mulher como a amiga da serpente que trouxe vários males ao mundo; reduzir a mulher à reprodutora; considerar a família como uma instituição que deve ser sustentada pela autoridade do pai/marido e formatar Igrejas como organizações masculinas. Um pensamento que está de acordo com a ideologia da submissão que pauta o golpe de estado no Brasil hoje. O desafio quanto à reivindicação de autonomia das mulheres e dos pejorativamente tidos como “mulherzinhas” persiste e, nestes tempos,

o golpe de 2016 e a demonização de gênero 135

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 135 23/02/2018 14:42:49 é bastante ameaçado tanto por um governo golpista conservador que cortou inclusive conquistas institucionalizadas, como a Secretaria de Políticas para as Mulheres com legitimação de movimentos sociais, como vem gradativamente podando a mínima rede de proteção social que se conquistara, como o Sistema Único de Saúde (SUS), assim como possibilidades de trabalho e, portanto, possibilidade de autonomia das mulheres. Aliás explicitamente contra a mulher são várias as investi- das deste desgoverno, por exemplo segundo notícia veiculada em 26 de março de 2017, o valor autorizado para gastos com atendimento à mulher em situação de violência caiu 61% em 2017 em relação ao ano passado segundo dados do portal do orçamento da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional. Também houve redução de recur- sos que deveriam ser destinados para políticas de autonomia das mu- lheres. De R$11,5 milhões em 2016, o valor passou para R$5,3 milhões em 2017, uma redução de 54%. (GOVERNO..., 2017) A campanha conservadora contra o que se demoniza como “ideolo- gia de gênero”, defendendo como a única norma possível a heterosse- xualidade, vem contra ventos libertários, debate crítico sobre estereó- tipos em relação ao que seria ser mulher e ser homem, questionando desigualdades sócio-sexuais. As escolas têm sido alvo privilegiado de tal ataque e em tal campanha vem se divulgando pós-verdades, como a ideia de que uma educação em gênero retiraria a autoridade da família ou que propiciaria a pedofilia. O mais terrível é o apelo para a religiosi- dade do povo e a autoridade de religiosos junto a famílias, em especial de baixo poder aquisitivo. Estimula-se o medo e o ódio ao diferente. A confusão entre gênero como perspectiva sobre respeito ao outro, à outra; ênfase em direitos sexuais e reprodutivos, combate a violências várias contra homossexuais, transexuais com a ideia simplificadora de que seria um conhecimento contra a família, a favor da pedofilia e da exploração sexual das crianças bem denota uma leitura enviesada sobre gênero e o reconhecimento da importância de debate com perspecti- vas de gênero nas escolas. Segundo escrito da Conferência Nacional dos

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 136 23/02/2018 14:42:49 Bispos do Brasil (CNBB) dirigido a vereadores contra uma perspectiva de gênero nos planos municipais de educação:

Essa ideologia [de gênero] comporta diversos inconvenientes para a educação: (1) A confusão causada nas crianças no processo de formação de sua identidade, fazendo-as perder as referências; (2) A sexualidade precoce, na medida em que a ideologia de gênero promove a necessidade de uma diversidade de experiências sexuais para a formação do próprio “Gênero”; (3) A abertura de um perigoso cami- nho para a legitimação da pedofilia, também considerada um tipo de gênero; (4) A banalização da sexualidade humana podendo aumentar a violência sexual, sobretu- do contra mulheres e homossexuais; (5) A usurpação da autoridade dos pais, em matéria de educação de seus filhos, principalmente em temas de moral e sexualida- de, já que todas as crianças serão submetidas à influência dessa ideologia, muitas vezes sem o conhecimento e o consentimento dos pais. (KRIEGER, 2015)

Ora tal pronunciamento sobre o que chamam “ideologia de gêne- ro” desconhece a complexidade de vivências de juventudes em relação à sexualidade e à orientação da perspectiva de gênero nas escolas contra violências, por exemplo. Fala-se em precocidade da sexualidade e se desconhece que, em grande medida, a chamada gravidez precoce se associa a ideias român- ticas sobre sexualidade e à falta de debates sobre respeito, dignidade da mulher, autoestima e prevenção, ou seja, à falta de uma educação sexual com perspectiva de gênero. A fecundidade entre as mulheres jovens na faixa entre 15 e 19 anos vem crescendo com mais intensidade desde os anos 1980. Em 2004 ti- nha-se que cerca de 107 mil adolescentes e jovens no ensino médio e nos dois últimos anos do fundamental, nas 14 principais cidades do país, ou seja, 22% da população feminina entre 10 a 24 anos naqueles níveis escolares, já haviam ficado grávida.8 Para período mais recente, tem-se que:

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 137 23/02/2018 14:42:49 [Em 2012] 26,8% da população sexualmente ativa (15-64 anos) iniciou sua vida sexual antes dos 15 anos no Brasil;

Cerca de 19,3% das crianças nascidas vivas em 2010 no Brasil são filhos e filhas de mulheres de 19 anos ou menos;

Em 2009, 2,8% das adolescentes de 12 a 17 anos possuíam 1 filho ou mais;

Em 2010, 12% das adolescentes de 15 a 19 anos possuíam pelo menos um filho (em 2000, o índice para essa faixa etária era de 15%). (BRASIL, 2008, 2012; NAÇÕES UNIDAS, c2013; UNICEF, 2011 apud UNFPA, [201-])

Cerca da metade dos nascidos vivos de mães entre 15 a 19 anos, com maior probabilidade, vivem em famílias sem a presença do pai bioló- gico. A gravidez entre adolescentes e jovens tem um perfil social pró- prio: estima-se que mais da metade das adolescentes de 15 a 19 anos sem nenhum ano de escolaridade já tenham se tornado mães. A taxa de fe- cundidade das jovens com mais baixo rendimento (menos de l salário mínimo) era de 128 por mil mulheres, entre as jovens com rendimentos mais altos (l0 salários mínimos ou mais), a taxa de fecundidade baixaria para 13 por mil, segundo Camarano (1998) para a década de 1990 e vá- rios estudos indicam que tal quadro não se alterou muito nos períodos mais recentes, a maior proporção de fecundidade está entre adolescen- tes de baixa renda e baixa escolaridade. Existe (e não é de hoje) um vazio inclusive no plano de políticas pú- blicas por uma educação que colabore em questionar formas de pensar e viver a sexualidade, que invista na autoestima das mulheres jovens, no combate às homo, lesbo e transfobias, e na formação de uma massa críti- ca juvenil. O universo juvenil, suas referências culturais, os sentidos de seus corpos são silenciados por uma educação pouco crítica ou por va- lores de uma “adultocracia” bem intencionada, mas distante de tal uni- verso. Possivelmente tal quadro irá piorar em tempos de Temeridade, com o empobrecimento da população, a não discussão sobre relações de gênero e violências nas escolas.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 138 23/02/2018 14:42:49 Lembro que o conceito de patriarcado se refere ao poder discricioná- rio do pai, à supremacia masculina, ao poder repressivo da lei, ou seja, o patriarcado atua no espaço privado, como a família, e nos espaços pú- blicos. O Congresso e o Senado são formados por muitos patriarcas que, independentemente da idade (e até do sexo/gênero), são vetustos fun- damentalistas. Sexistas fundamentalistas porque leem a Bíblia de uma forma que tal leitura beneficie seus interesses. De fato há católicos e ca- tólicos, evangélicos e evangélicos, e adianto que grande parte da ban- cada evangélica e católica no Congresso e nas Câmaras não necessaria- mente contam com o apoio de muitos católicos e cristãos.

Estes tempos – esperança, ainda que com moderação Já se tem indícios de barbárie anunciadas pelas Propostas de Emenda Constitucioal (PEC) 271 – 55 e a Reforma do Ensino Médio, o aborto das reformas estruturais necessárias como a Reforma Tributária, a Reforma Política, a Reforma dos Meios de Comunicação e a Reforma Agrária. A relação entre o imperialismo, o capital dito nacional, a mídia, o ju- diciário, o legislativo e o executivo sugere investida agressiva em uma agenda neoliberal. A luta de classe ganha outro patamar, de enfrenta- mentos mais explícitos de interesses As ocupações das escolas, das universidades, a mobilização dos se- tores organizados de trabalhadores, dos movimentos sociais, como os de corte feminista, negro e de pessoas LGBTTQ sugerem também que a formação política se faz hoje nas ruas, mas pede mais investimento or- ganizativo, quando a agenda por dignidade deveria tomar acento eman- cipacionista, colorindo, diversificando as frentes de classe, unidas na crítica à barbárie capitalista. Perdemos uma importante frente para mudanças na cultura patriar- cal, quando foi retirado do texto do Plano Nacional de Educação (PNE), que define diretrizes e metas para a educação até 2024, a menção às

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 139 23/02/2018 14:42:49 questões de gênero e orientação sexual.9 Mas a luta continua, contra a investida do que chamam de “ideologia de gênero”. Locais de trabalho, as periferias, as escolas, as ruas e a universidade são importantes frentes de lutas emancipacionistas.

A supressão [de uma perspectiva de gênero] é efeito da pressão de setores religio- sos conservadores que, incomodados com práticas pluralistas que contradizem seus valores morais, têm dificultado, no âmbito da educação, o desenvolvimento de políticas em nome dos direitos das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos, assim como qualquer medida no marco dos direitos humanos.

A importância de se discutir tais questões no âmbito da educação é atestada pela amplitude e incidência de crimes homofóbicos e violência de gênero no Brasil. Estes ocorrem no contexto de uma história e uma cultura construída com lingua- gem machista, sexista e homofóbica que vítima, antes tudo, no âmbito simbólico. As mulheres, as lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais, gays e outros sujeitos sexuais marginalizados têm suas imagens desvalorizadas, o que enseja um clima favorável a violências de todo tipo. Tratar a discussão sobre gênero e diversidade sexual como matéria de educação [por outra cultura] significa dar um passo impor- tante para reduzir as desigualdades e a violência que marcam o país. (POR QUE..., 2014)

A ofensiva de parlamentares e outros atores, em nome da religião contra o debate sobre gênero na escola, bem indica o desafio de termos tanto na economia como na cultura como frentes de lutas políticas para a emancipação agora e por outro amanhã. O retrocesso no PNE, sugere que, de fato, mesmo os conservadores reconhecem e temem a impor- tância de um conhecimento crítico à cultura, à escola, para desconstruir preconceitos e estigmas. O reconhecimento tanto dos nexos entre patriarcalismo e capitalis- mo, assim como entre economia e cultura, quer no plano de micropo- líticas quer em termos de projetos de mudanças sociais tem sido uma

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 140 23/02/2018 14:42:49 marca contemporânea, um estrutural desafio que se busca enfrentar em diversas frentes de direitos de mulheres e daqueles de orientação não heteronormativa no plano da corrente feminista emancipacionis- ta10 e antirracista. A demonização de gênero por conservadores bem indica, insisto, a importância da cultura na viração de relações sociais, ou seja, na forma- ção de sujeitos políticos avessos a repressões, desigualdades sociais e a discriminações de várias ordens. E a formação de sujeitos políticos, com a colaboração de uma educação crítica, é básica para uma outra cultura, participativa, para mudanças no hoje e para outro amanhã. É um desa- fio ao mesmo tempo classista e movimentista, que tem na mobilização contra o golpe um importante momento de esperança em uma longa caminhada.

Notas 1 Neste texto desenvolvo ideias apresentadas em diferentes seminários na Universidade Católica de Salvador (UCSAL); Universidade do Estado da Bahia (UNEB) campus de Serrinha, UNEB campus de Alagoinhas e Universidade Federal da Bahia (UFBA) campus de Salvador no primeiro semestre de 2017, que muito se beneficiaram dos debates com jovens nessas uni- versidades. É um texto em processo e que aqui toma a forma de ensaio. 2 O Ensaismo ético em Adorno joga ênfase na cultura e na ideologia para pensar criticamente a sociedade, crítica à ideologia e à identidade. Ou seja, a tradição do ensaísmo ético seria pensar criticamente a sociedade. Para Adorno, o ensaio não tem fecho; interessa-se pela to- talidade, mas não é arbitrário. (ADORNO, 1986) 3 O ensaio, segundo Adorno (1986, p. 174), privilegia a desordem das ideias – “O ensaio não compartilha o jogo da ciência e da teoria organizada, segundo as quais, como diz Spinoza, a ordem das coisas seria a mesma que a das ideias. [...] O ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva [...]. Vai contra a doutrina arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e o efêmero não seria digno da filosofia [...e] contra a violência do dogma”. 4 “Na opinião do jornal Financial Times, a presidenta Dilma Rousseff rompeu com a rotina de poder no Brasil. A publicação incluiu Dilma na lista de Mulheres do Ano divulgada em dezem- bro do ano passado e ressaltou, em entrevista realizada com ela, que é outro o tratamento dado a réus homens que estão no comando do país. Na ocasião Dilma declarou: ‘Uma mulher exercendo autoridade é considerada dura, enquanto um homem é chamado de forte’.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 141 23/02/2018 14:42:49 Lúcia Rincón, presidenta nacional da União Brasileira de Mulheres (UBM), não tem dúvidas de que o fato de o país ter como presidenta uma mulher estimulou a misoginia. ‘Foi uma arma importante na deposição de uma proposta de governo que estava comprometida com o avanço da igualdade social e no combate à discriminação’. De acordo com Lúcia, não foi surpresa que o ‘braço pesado do golpe’ atingisse de imediato a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. ‘Foi um órgão que perdeu a autonomia por duas vezes. Hoje é uma subsecretaria dentro do ministério da Justiça, com isso dificulta o trânsito, as possibilidades dessa secretaria ser reconhecida por outros ministérios em pé de igualdade’, avaliou Lúcia. O ataque às conquistas e à autonomia das mulheres brasileiras tem o Congresso Nacional como aliado de peso. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cefemea) denuncia as manobras da bancada evangélica e outras como a chamada bancada da bala e o jogo de troca de favores com o Executivo. ‘Os direitos das mulheres são tratados pelas bancadas conserva- doras como moeda de troca para aprovar a reforma da Previdência’, explicou Maira Abreu, assessora técnica do Cefemea. Na opinião dela, o direito ao aborto, seja em que condições seja, é o alvo da bancada conser- vadora no Congresso Nacional. No dia 29 de novembro de 2016 decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou o direito das mulheres brasileiras a interromper a gestação até a 12a semana. O aborto é permitido por lei nos casos em que a gestação implica risco de vida para a mulher, quando a gestação é decorrente de estupro e no caso de anencefalia. A mais recente é a iniciativa do Deputado Alan Rick do Partido Republicano Brasileiro (PRB) que apresentou emenda para mudar o nome do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente para Conselho Nacional dos Direitos do Nascituro, da Criança e do Adolescente, incluindo, através da emenda, as expressões como os direitos do nascituro e a inviolabilidade do direito à vida. ‘Além das restrições totais ao aborto, a proposta sustenta um projeto de sociedade conserva- dora, de impedimento à autonomia das mulheres e de flexibilização da laicidade do Estado brasileiro’, avaliou Jolúzia Batista, da assessora técnica do Cefemea”. (CARVALHO, 2017) 5 Em pesquisas que participamos com jovens do ensino médio em escolas públicas em várias cidades do Brasil, comumente a corrupção era apontada como a principal causa dos proble- mas do país e a principal fonte de informação para tal ideário, segundo xs jovens era a TV ou o “ouvir dizer”. Ver Abramovay, Castro e Waiselfisz (2015). 6 Ver sobre interseccionalidade, entre outros autores, Ribeiro (2016), Davis (2016) e Carneiro (2011). Sobre feminismo negro ver também artigos em Geledés: Instituto da Mulher Negra: . 7 Sobre o conceito de patriarcado, Saffioti recorre a Pateman, para quem: “A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liber- dade e a dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato ori- ginal e o sentido da liberdade civil não pode ser compreendido sem a metade perdida da his- tória, que revela como o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é criado pelo

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 142 23/02/2018 14:42:49 contrato. A liberdade civil não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade, mas também para assegurar as mulheres para si próprios. Seu sucesso nesse empreendimen- to é narrado na história do contrato sexual. O pacto original é também um contrato sexual quanto social; é social no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres-, e também sexual no sentido de estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao corpo das mulheres. O contrato original cria o que chamarei, se- guindo Adrienne Rich de ‘lei do direito sexual masculino’. O contrato está longe de se contra- por ao patriarcado; ele é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno”. (PATEMAN, 1988, p. 16-17 apud SAFFIOTI, 2004, p. 53-54) 8 Dados de 2002 da pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), segundo Castro, Abramovay e Silva (2004). 9 Em 22.04.2014 a repórter Mariana Tokarnia da Agência Brasil escreveu sobre a votação no Congresso do PNE: “Após ser alvo de polêmica, deputados retiraram a questão de gênero do Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE começou a ser votado hoje (22) na comissão espe- cial da Câmara dos Deputados formada para analisar o texto. A comissão aprovou o relatório do deputado Ângelo Vanhoni (PT-PR), salvos os destaques. A questão de gênero foi suprimi- da no primeiro destaque votado. O destaque aprovado nesta terça-feira modifica o trecho do plano que diz: ‘São diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfa- se na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual’, retomando o texto do Senado, que fala apenas em “erradicação de todas as formas de discriminação”. Para os deputados que argumentaram a favor da alteração, as formas de preconceito estão contempladas no texto, e colocar a questão de gênero e orientação sexual vai favorecer o que chamaram de ‘ditadura gay’. Outros parlamentares consideraram a retirada da questão de gênero um retrocesso. “A escola, mais que outro lugar, não pode ser surda e muda e reprodu- zir os preconceitos da sociedade”, defendeu a deputada Fátima Bezerra (PT-RN). Dos 26 deputados presentes, 11 votaram contra o destaque. O plenário estava lotado, com representantes de estudantes, de movimentos sociais, de entidades ligadas à educação e de grupos religiosos. A alteração causou aplausos e vaias. Dirigindo-se aos estudantes, que pe- diam a manutenção da discriminação dos grupos no PNE, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) levantou uma folha de papel na qual estava escrito: ‘Volta para o zoológico’.” 10 Ver produção da União Brasileira de Mulheres (UBM) sobre feminismo emancipacionista na revista Presença da Mulher, da editora Anita Garibaldi e, entre outras publicações, Valadares (2007) e Rocha (2012).

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 143 23/02/2018 14:42:49 CAMARANO, A. A. Fecundidade e anticoncepção da população jovem. In: COMISSÃO NACIONAL DE POPULAÇÃO E DESENVOLVIMENTO (Brasil) – CNPD. Jovens acontecendo nas trilhas das políticas públicas. Brasília, DF, 1998. p. 109-134.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 145 23/02/2018 14:42:49 o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 146 23/02/2018 14:42:49 Golpe disfarçado de impeachment: uma articulação escusa contra as mulheres

Nilma Lino Gomes* * Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Professora da graduação e da Introdução pós-graduação da Faculdade Era uma manhã, em Brasília, com um céu im- de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas pressionantemente azul como sempre nos apresen- Gerais (UFMG). Secretária de ta o céu da capital do país. Dia 12 de maio de 2016. Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do No dia anterior eu e técnicos do Ministério das Ministério das Mulheres, Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos da presiden- Direitos Humanos arrumávamos às pressas as úl- ta legitimamente eleita Dilma timas caixas com os nossos pertences, separando o Rousseff (2015-2016). que era da administração pública e o que era pessoal.

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 147 23/02/2018 14:42:49 Fomos no carro oficial até a minha residência colocar as caixas den- tro do apartamento e, ao nos despedirmos, choramos: eu, o motorista, o segurança, o chefe de gabinete e a secretária. Não chorávamos por- que havia terminado o mandato de quatro anos para o qual a nossa presidenta fora eleita e havia nos escolhido como parte da sua equipe. Chorávamos de desilusão com a política institucional, por sabermos que o impeachment era um golpe parlamentar, midiático, jurídico, fun- damentalista, de classe, raça, gênero e com orientação heteronormati- va. O coração apertava por saber que estávamos sendo obrigados a sair e que entraria para o governo federal um grupo de políticos corruptos, fundamentalistas, ruralistas, empresários, apoiados pelo capital nacio- nal e internacional, pelas famílias donas da mídia hegemônica do país e que instituiriam, sem pestanejar, o Estado mínimo tão almejado pelo neoliberalismo. E ainda, que retomariam com vigor as relações colo- niais, patriarcais e racistas contra as quais alguns de nós tanto lutamos para superar e desenraizar da sociedade, das instituições e da gestão pú- blica brasileira. O poder do voto de cada cidadã e cidadão – mesmo daqueles que vo- taram contrários ao partido que estava no poder e sua candidata – estava sendo usurpado e a tão batalhada Constituição de 1988 tinha uma de suas páginas rasgadas. Tudo feito premeditadamente, a ponto de mo- mentos após o desfecho do golpe, passadas 14 horas de arguição pelo Senado Federal, senadores de oposição declararem que não havia crime de responsabilidade fiscal, mas era impossível ter governabilidade, por isso a presidenta da República deveria sair. As fontes de todo esse processo estão na internet, nos jornais e nas redes sociais. Basta acessá-las com uma boa consulta no Google. Tudo está registrado na história e na vida das brasileiras e brasileiros que acompanharam esse processo violento. O dia 12 de maio foi a data de oficialização da admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, primeira mulher legitimamente eleita presidenta do Brasil. No dia 13 de maio, o governo interino e ilegítimo assumiria o poder até a votação

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 148 23/02/2018 14:42:49 final do Senado em 31 de agosto, substituindo Dilma Rousseff, uma mulher com uma história política reconhecida e honrada de luta contra a ditadura militar nos anos 1960, 1970 e 1980, no Brasil. Aquela que dis- se com orgulho que, apesar de todas as torturas sofridas, nunca delatou ninguém na época dos interrogatórios torturantes dos militares e seus asseclas. Em 2016, o Brasil se encontrava mergulhado em um processo inter- nacional e nacional de crise econômica, alimentada pelo capitalismo global. Uma crise que forçava os países, cuja opção econômica dos úl- timos governos mais à esquerda, legitimamente eleitos, tinha sido de cuidar da população e construir políticas sociais para combater a po- breza, a fome e a desigualdade social, a adotar medidas de austeridade impostas pelos organismos internacionais e abandonar a pauta das po- líticas sociais por uma outra de arrocho econômico e abertura ao capital. Nós, a presidenta Dilma e sua equipe, tentávamos, dentro das condi- ções possíveis, construir um equilíbrio interno à nossa economia, sem perder de vista o investimento nas políticas sociais que foram a marca dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e que revolucionaram a situação de fome, pobreza, assistência, educação superior, moradia e saúde da população ao longo dos últimos 13 anos, tornando-se um exemplo internacional. Tudo correu às mil maravilhas? Sem limites, sem equívocos, sem tensões? Não. Construir políticas sociais em um país marcado pelas de- sigualdades socioeconômicas, de raça, gênero, sexualidade, localização geográfica e regional não é algo que se faz em uma quinzena de anos. É preciso mais tempo para realizar, avaliar, superar ambições e arrogân- cias, rever ações inadequadas e ouvir as demandas da base. Mas, sem dú- vida, foi e continua sendo um passo necessário para que o protagonista do Brasil como nação democrática não seja o grande capital nem o mer- cado econômico, mas, sim, o povo brasileiro na sua diversidade étnico -racial, cultural, de gênero, de classe, regional. A diversidade do Brasil

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 149 23/02/2018 14:42:50 precisa estar representada nas suas políticas como reconhecimento e afirmação da nossa característica pluriétnica e pluricultural. Esse foi o projeto para o qual fui convidada pela presidenta eleita, como ministra de Estado, para integrar a equipe do seu segundo manda- to. Primeiro como ministra chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e depois no Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos (MMIJDH). Nesse curto período (2015-2016) pude acompanhar de perto o desafio das mulheres para se manterem em cargos de poder, decisão e conheci- mento. Os boicotes à presença feminina na mais alta função do país iam desde piadinhas nos corredores até xingamentos à forma dura como os homens se sentiam tratados, às escolhas da presidenta, à imposição de um determinado tipo de ordem, à sua negação de se aliar com políticos e empresários corruptos. A imagem que construí desse momento da minha trajetória pro- fissional e de vida era de um mundo pertencente aos homens, dizendo que ali estava uma mulher e, só por esse fato, ela não os representava, mesmo que fosse uma mulher branca, de esquerda e de classe média, conforme ainda é consentido no contexto da branquitude presente nas relações de poder. Havia exceções masculinas? Sim. Havia alguns poucos homens que se esforçavam para superar o machismo. E é sempre bom recordar que o machismo é um sistema de dominação que ultrapassa a classe, a raça, a posição ideológica e política. O machismo é estrutural e estruturante. Este é um fato do qual alguns podem discordar, mas não há como negar.

Golpe disfarçado de impeachment: uma articulação escusa A articulação escusa para a retirada da primeira mulher presidenta significou não somente colocar em prática muito do que o machismo e a misoginia são capazes, como, também, o temporário fechamento

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 150 23/02/2018 14:42:50 político a um governo federal que se eleja, no Brasil, com uma proposta de esquerda, de combate à fome, à pobreza, ao machismo e ao racismo. O golpe disfarçado de impeachment significa a retomada do lugar do capital e do mercado como eixos orientadores da política econômica e, com eles, todo um processo de diminuição de direitos das trabalhado- ras e dos trabalhadores, com aumento dos privilégios dos capitalistas. Representa a retomada do eixo norte-sul da cooperação internacional, o enfraquecimento dos BRICS e do lugar do Brasil no Mercosul. Tudo isso com a ajuda das alas de direita, conservadoras, religiosas fun- damentalistas, ruralistas e moralistas do Congresso Nacional, sob o olhar literalmente cego de setores do Judiciário e municiados pela mídia hegemônica de empresários. E ainda, por uma parcela da classe média que sonha um dia ser elite e por setores populares cuja visão de honestidade e moral, tão caras para as pessoas que lutam cotidiana- mente pela sua sobrevivência, foi bombardeada pela leitura tenden- ciosa da direita via mídia, novelas, rádio, pequenos jornais, internet, igrejas fundamentalistas e escolas. E o crime de responsabilidade fiscal? Única permissão constitucio- nal para a retirada legítima de um chefe do Executivo do poder? Ele foi comprovado? Não. Portanto, os argumentos de que o impeachment seria pelo “conjunto da obra”, como afirmaram alguns parlamentares, não se sustentam juridicamente. Não se comprovou, mas se manipulou a opinião pública, através de um teatro do Legislativo, apoiado pelo ju- rídico e pela mídia hegemônica que induziram a população, à dúvida e à desconfiança. Colocaram em xeque a competência e a honestidade da primeira mulher chefe de Estado no Brasil. Por isso, para mim, o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff foi um golpe. E não foi um golpe qualquer. Repito que foi um golpe parlamentar, midiático, jurídico, fundamentalista, de raça, clas- se, gênero e com uma orientação heteronormativa. Essas características do golpe estão explicitamente representadas na foto do governo golpis- ta, um dia após usurpar definitivamente o poder, e em todas as ações

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 151 23/02/2018 14:42:50 desencadeadas pelo Executivo, parte do Legislativo e do Judiciário e pela mídia hegemônica desde então. Trata-se de um alinhamento de forças e grupos conservadores, não somente no Brasil, mas na América Latina e demais países da conjuntu- ra internacional. A ofensiva da direita europeia, os retrocessos na polí- tica norte-americana após a última eleição de Donald Trump e os dife- rentes perfis que disputam a presidência e cargos de primeiro ministros na Europa, África e Ásia com viés conservador atestam isso. Um novo contexto de dominação política, econômica e cultural está se configurando no mundo e as forças capitalistas querem minar as políticas sociais, impondo uma pauta de ajuste fiscal e econômico. Querem a retomada da primazia do Estado neoliberal nos países onde este perdeu força ao longo dos últimos 15 anos. O golpe brasileiro está, portanto, dentro de um contexto macro e micro, global e local. Todas as medidas destruidoras implementadas pelo governo golpista, assim que tomou posse, em relação às políticas sociais dos governos Lula e Dilma só reforçam que a questão não estava com a condução, nem com o jeito de ser da presidenta, mas, sim, com o projeto de sociedade, de gover- no e de Estado que ela representava: um Estado democrático e de direito e não um Estado neoliberal, como temos visto nos últimos meses.

A dimensão do machismo e da misoginia A mídia teve uma participação intensa na propagação da miso- ginia no processo do golpe. Seja pelas opiniões dos telejornais, pelos comentaristas, Facebook, Twitter e documentários tendenciosos. Participamos de uma campanha midiática que demonizou o partido ao qual a presidenta Dilma é vinculada, bem como a sua trajetória política e institucional. Apresentada como uma mulher com valores subversivos, que “pe- gou em armas” durante a ditadura, neurótica e sem controle emocional, a imagem da presidenta foi se construindo socialmente como a antítese

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 152 23/02/2018 14:42:50 da mulher “bela, recatada e do lar”. Ora a mídia propugnava que o pro- blema estava na incompetência do fato de ela ser uma mulher e isso não lhe dava condições de gerir um país e uma grande economia, ora a apre- sentava como alguém sem as características emocionais necessárias para ouvir as pessoas, os partidos, os políticos e fazer negociação. O mais interessante é que se passarmos em revista os diversos ho- mens presidentes e primeiro-ministros do mundo, encontraremos tais características comprovadas pela forma como fizeram política e passa- ram pela gestão, mas não me lembro de ouvir ou ver tais características atribuídas ao fato de serem homens, mas, sim, péssimos políticos ou gestores ruins. O gênero não contava nesses momentos de crítica aos governos masculinos. A ação da mídia dos grandes empresários, dos ruralistas, dos políti- cos conservadores e de direita, dos grandes jornais e das famílias que há anos dominam o mercado midiático do rádio, da televisão e da internet tinha objetivos claros. Sendo todos eles capitalistas de primeira linha, o seu objetivo era derrubar o partido, o projeto político e a presidenta que interpunha dificuldades aos processos corruptos de negociação e acumulação de riquezas, do uso privado do orçamento público. A ideia de um Estado mínimo perseguida pelos neoliberais tomou ares ainda mais radicais na primeira década do século XXI e vem se exacerbando. A batalha contra a visão machista e misógina da primeira mulher pre- sidenta divulgada pela mídia hegemônica foi e vem sendo travada pelas mídias sociais, de caráter progressista. Na realidade, desde o golpe disfarçado de impeachment têm sido as mídias e redes sociais a divulgarem publicamente a imagem, as opi- niões, o trabalho internacional da presidenta eleita Dilma Roussef. Ela continua sendo recebida internacionalmente com honras de chefe de Estado, enquanto o presidente ilegítimo e o seu governo têm sido visi- velmente suportados nos meios políticos internacionais e muito criti- cados pela imprensa internacional.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 153 23/02/2018 14:42:50 A diferença de tratamento é de tal ordem que mesmo com todos os desmandos, corrupção, pronunciamentos autoritários na internet, ordens equivocadas, como colocar as tropas do Exército nas ruas de Brasília para massacrar manifestantes pacíficos, o governo ilegítimo não sai das imagens e programas de entrevista na televisão, dos jornais televisivos, rádios, internet, Facebook e Twitter. Mesmo que seja para criticar, a imagem do homem branco, de classe média, usurpador do po- der não sai de cena. Só esse fato já nos dá a dimensão da misoginia e do machismo. Esses mesmos meios de comunicação, desde o início do segundo mandato da presidenta eleita, silenciaram sobre os seus feitos, sabotaram a sua ima- gem e do seu governo, como se o país não tivesse uma chefe de Estado. Enquanto isso esbanjavam notícias negativas sobre a economia, atri- buindo-as ao Partido dos Trabalhadores e suas políticas dos últimos 13 anos, envolvendo as suas principais lideranças no Executivo Federal: Lula e Dilma. A misoginia é de tal ordem que até revistas publicaram capas altamente machistas e estereotipadas com a imagem da presi- denta eleita, insinuando que a mesma não estava bem das faculdades mentais, que estava descontrolada. Se essa deturpação ficasse retida apenas à mídia hegemônica ou veículos das redes sociais conservadores e contrários à presidenta e ao seu partido, já seria sério. Mas o pior é que, sendo formadores de opiniões, revistas e jornais, enfim, o mundo da mídia, conseguiu expandir a visão negativa da primeira mulher eleita presidenta no Brasil e no exterior. Mesmo com todas as denúncias dos últimos tempos, que provam como o impeachment foi tramado por uma articulação escusa de em- presários, mídia hegemônica, políticos, ruralistas, capital internacio- nal, vários setores da população brasileira ainda alimentam essa ima- gem estereotipadamente construída da primeira mulher presidenta e do seu governo. Não se trata de fechar os olhos para aquilo que foi limite no ato de governar ou na forma de governar escolhida pela presidenta eleita.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 154 23/02/2018 14:42:50 Trata-se de abrir os olhos para comparar o tratamento dado à primeira mulher que ocupou o Executivo e que até hoje não teve comprovado qualquer crime de responsabilidade fiscal em relação ao tratamento dado ao homem, vice-presidente que usurpou o poder, com todo um histórico de envolvimento ilícito em propinas com grandes empresá- rios e com um fazer político, dos velhos tempos, recheado de jantares caros e promessas para indução de votos no Parlamento. As perguntas são: por que esse tratamento diferenciado? Simplesmente porque estamos falando de partidos de esquerda e de direita? Por que esta- mos avaliando “a melhor” forma de fazer política e conduzir a economia? Será que é só isso? A situação nos mostra o tipo de tratamento dado a nós, mulheres, quando ocupamos lugares de poder e decisão em uma sociedade que fin- ge aceitar os avanços do feminismo, mas que, na realidade, alimenta-se do patriarcado, do racismo e do machismo estrutural. Fenômenos que a luta das mulheres tem desvelado e denunciado. São construções sociais, políticas e culturais alicerçadas em estruturas profundas. E essas estru- turas compõem o sistema de dominação masculina: o machismo. E é contra esse sistema de dominação que qualquer mulher que o desafia e disputa cargos e funções tidas como masculinas tem que lu- tar. E já que a sociedade brasileira se alimenta de desigualdades estru- turais, se somarmos a raça, a origem socioeconômica, a sexualidade, a idade e a localização geográfica e regional, as dificuldades e desafios serão ainda mais intensos para as mulheres. Esse mesmo sistema de dominação masculina, quando quer desqualificar especialmente as mulheres em lugares de poder e decisão associam a sua forma de ser e de agir às questões da sexualidade, à suposta sensibilidade feminina, ao fato de ser ou não ser mãe, ter ou não um companheiro, ficar ner- vosa por estar “naqueles dias” ou na fase da menopausa. Quem já não ouviu esse tipo de associação feita nos discursos machistas de homens (e mulheres!) quando julgam os atos de uma mulher que ocupa lugar de

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 155 23/02/2018 14:42:50 poder e decisão, principalmente, quando discordam dos encaminha- mentos por ela feitos? O golpe dado à presidenta eleita Dilma Rousseff foi uma tacada do patriarcado e do machismo sobre todas nós, mulheres, mesmo para aquelas que abertamente se mostram contrárias às ideias, ao partido e o modo de agir da presidenta. Se entendemos o machismo como um sistema de dominação presente na realidade social, cultural e política, a vitória desse sistema somado ao patriarcado ao expulsar a primeira mu- lher presidenta eleita recai sobre as demais mulheres. Simbolicamente, coloca em xeque a nossa competência. E mais, afirma para os homens machistas que eles continuam liderando os espaços de poder e que, so- mado aos lugares que ocupam na hierarquia social e econômica, eles podem se beneficiar do imaginário machista para se manter no poder, mesmo quando não tiverem razão. Pode parecer uma avaliação radical, mas aquelas que já ocuparam esses lugares sabem muito bem como tudo isso funciona. Por isso foi muito importante que, desde o início do seu primeiro mandato, Dilma Rousseff tivesse instituído que a chamassem de presidenta, como uma demarcação de gênero. Logo em seguida ouvimos homens, mulheres, especialistas na língua portuguesa e juristas se horrorizarem com tal ato. Mas, como sempre, depois de tudo, descobrimos que tal tratamen- to é possível dentro da língua portuguesa.

Tchau querida e volta querida! A frase “Tchau, querida!”, como um deboche à imagem da mulher/ presidenta e à relação profissional e de amizade desta com o ex-presi- dente Lula, adotada pela oposição durante todo o processo de admis- sibilidade do impeachment, comprova também a misoginia. A frase é uma crítica que mistura o desprezo ao lugar do feminino e a afirmação de que o Executivo não é um espaço para as mulheres. No seu lugar, o Movimento de Mulheres e demais movimentos sociais cunharam a

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 156 23/02/2018 14:42:50 frase “Volta, querida!”, contrapondo-se à ridicularização um sentimen- to de afeto e reconhecimento da competência. O fato de um homem branco, de direita, deputado federal, dar o seu voto no fatídico dia 17 de abril de 2016 – dia da vergonha – homenagean- do o comandante Ustra, reconhecido torturador durante o período da ditatura militar, e um dos torturadores da própria presidenta quando esta atuava na militância de esquerda contra o golpe militar de 1964, é mais um exemplo de misoginia. No voto e na saudação do deputado estavam representados uma posição favorável à cultura do estupro, o desprezo, a violência e o ódio contra a mulher. No Legislativo, assistimos essa pactuação sinistra entre o machismo e a misoginia vinda também das próprias mulheres. Ninguém está livre desse imaginário de dominação masculina, nem as próprias mulheres. Quem não se lembra da deputada federal que, histericamente, pulou e balançou a bandeira brasileira dizendo “Sim! Sim! Sim!” ao impeach- ment e ainda dedicando o seu voto ao marido, na época prefeito de uma cidade do interior de Minas Gerais, que, dias depois, foi preso por cor- rupção e perdeu o mandato? Alguém se lembra de alguma entre as pouquíssimas mulheres do Poder Judiciário, dentro da liberdade que a posição lhes proporciona, emitir alguma opinião denunciando o trato machista e misógino dado à presidenta eleita durante todo esse processo? Enquanto isso, vários homens do Judiciário encheram as redes sociais e a mídia hegemônica com comentários desrespeitosos. A desigualdade de gênero e a misoginia alimentadas durante todo o processo do golpe disfarçado de impeachment e sofrido por todas as mu- lheres, representadas pela figura da presidenta eleita Dilma Rousseff, não ocupou os programas de análise de conjuntura, nem, tampouco, os debates dos partidos da própria esquerda. Se não fossem as mulheres ativistas dentro dos partidos de esquerda, nas redes sociais, no movi- mento feminista, de mulheres negras, nos demais movimentos sociais e sindicatos e nas universidades, essa questão não teria visibilidade.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 157 23/02/2018 14:42:50 Pude observar vários livros e seminários que abordaram o golpe em uma perspectiva progressista serem escritos e realizados apenas com a presença de autores homens do campo progressista. Por que? Nós, mu- lheres, não podemos fazer análise econômica, política e de conjuntura? E ainda, muito raramente essas publicações de caráter crítico admiti- ram as questões de gênero e a misoginia como parte da análise do gol- pe. Ou seja, até mesmo no campo emancipatório nós, mulheres, ainda enfrentamos a luta por reconhecimento, visibilidade, lugares de poder e decisão, o que comprova o caráter estrutural do machismo e do pa- triarcado que ajudam a exacerbar a misoginia.

Repercussões do machismo e da misoginia do golpe Se já temos uma diminuição do número de mulheres eleitas nas úl- timas eleições federais, estaduais e municipais, corremos o risco de ver esse quadro se agravar ainda mais com o advento do golpe. Já tivemos esse resultado negativo nas eleições municipais de 2016 e teremos que trabalhar muito para uma mudança em 2018. Não se trata apenas de as mulheres tomarem coragem, candidatarem-se e disputarem lugares de poder. Aquelas e aqueles que participam dessas instâncias políticas de gestão e partidárias sabem que uma candidatura precisa ser previa- mente construída. Principalmente, se seguimos o caminho legítimo de como se deve organizar uma candidatura. Sabemos que os caminhos ilegítimos elegem muito mais rapida- mente alguns artistas, humoristas, jogadores de futebol, empresários que nunca se interessaram pela vida política e que, de um dia para o outro, aproveitam-se da sua imagem pública e de recursos financeiros investidos na campanha para se elegerem ou ganharem disputas em ou- tros pleitos. Estes costumam vir a público dizer que não são políticos e nem são pobres, por isso, não “precisam e não serão fáceis de corrom- per”. Eles autointitulam-se como “gestores”. E, na sua grande maioria, são homens. E brancos. Afirmam que, por isso, farão um bom mandato,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 158 23/02/2018 14:42:50 quer seja no Legislativo ou em outros lugares de poder e decisão. Será? A realidade da política brasileira tem nos mostrado quão perigosa e equivocada é essa situação. Mas se entramos na disputa política de maneira digna, sabemos que uma candidatura feminina, diante de tudo o que já foi exposto neste ar- tigo, não se dá da mesma forma que a masculina, pois o campo da polí- tica não foi e nem está sendo pensado para nós, mulheres, e para a nossa presença, forma de pensar e fazer política. Nem sempre as bandeiras que muitas de nós carregamos são aceitas, inclusive, em parte do universo feminino conservador. O esforço é maior, a disputa é mais acirrada e há que se analisar muito bem as condições e o momento da disputa. Não tenho muita certeza de que o bom negócio é concorrer de qual- quer jeito para colocar toda e qualquer mulher nos espaços de poder, como defendem algumas companheiras. Numa sociedade tão conser- vadora, patriarcal, machista e racista precisamos muito de mulheres com perfil de esquerda, com diferentes pertencimentos étnico-raciais e socioeconômicos. Com isso, não quero dizer que em alguns momentos essa estratégia “universalista de gênero” não seja necessária. Mas há que saber muito bem como, quando, qual o melhor e qual seria o momento para adotá-la. Considerando o machismo, o patriarcado, o racismo e a misoginia, faz-se cada vez mais necessário que nós, mulheres, articulemos a nossa presença nos diferentes espaços com uma proposta política emancipa- tória. Que analisemos o perfil, as condições, os recursos e as alianças que poderão ser feitas. E que as pautas de gênero e de raça façam parte das nossas propostas.

Considerações finais Finalizo relembrando uma parte da reflexão que registrei em um ar- tigo publicado no livro Mídia, misoginia e golpe, organizado por Elen Geraldes e colaboradores (2016):

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 159 23/02/2018 14:42:50 As mulheres no poder, nessa concepção machista e racista, são vistas como inferio- res e sofrem os mais terríveis tipos de assédio moral e sexual. Quando as mulheres tornam público esse comportamento machista e misógino dos homens, disputando com eles posições de poder, recusando-se a agir como eles desejam e deles diver- gem, tornam-se fonte de ódio, de desejo, de disputa. Encontram nos homens não os seus parceiros, mas verdadeiros opositores e algozes que se aproveitam das desigual- dades de gênero e da pouca presença de mulheres em lugares de poder e decisão para tentar inferiorizá-las, subjugá-las, desrespeitá-las e até mesmo violentá-las física e psicologicamente. Há uma outra história que se esconde por trás do processo de golpe disfarçado em impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff. Uma his- tória da relação de poder em uma sociedade machista, racista e classista que despre- za as mulheres, duvida da nossa capacidade e inteligência, constrói armadilhas moti- vadas pelas questões de gênero e misoginia. Lamentavelmente são os mesmos conteúdos da cultura do estupro e da violência contra a mulher, porém, com roupa- gem refinada, na maioria das vezes, de terno e gravata. (RAMOS, 2016, p. 241)

Referências GERALDES, E. C. et al. (Org.). Mídia, misoginia e golpe. Brasília, DF: FAC Livros, 2016.

RAMOS, L. de S. Nilma Lino Gomes. In: GERALDES, E. C. et al. (Org.). Mídia, misoginia e golpe. Brasília, DF: FAC Livros, 2016. p. 237-241.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 160 23/02/2018 14:42:50 Sobre o golpe e as mulheres no poder

Olívia Santana

Manhã de sabor amargo, aquela do dia 12 de maio * Pedagoga e atual Secretária de 2016, data em que a presidenta Dilma Rousseff do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia. Foi vereadora foi afastada por 180 dias, após a abertura do pro- por três mandatos em Salvador cesso de impeachment no Senado. Muitas de nós, (BA) e também Secretária Estadual de Políticas para as mulheres feministas, estávamos em Brasília, par- Mulheres. ticipando da IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, cujo tema era “Mais Direitos, Participação e Poder para as Mulheres”. Uma ironia dramática. Ainda antes da Conferência, na comissão organi- zadora, coube a mim escrever um texto – colhendo também contribuições de outras companheiras – refutando a possibilidade do golpe. Li na plenária a

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 161 23/02/2018 14:42:50 “Carta Aberta às Mulheres Brasileiras”, naquele clima em que a realida- de era tão chocante que mais parecia um pesadelo. Foi um protesto sentido, lido com a voz embargada de quem esta- va estupefata e indignada com a imposição de semelhante injustiça. Consegui dizer que retirar com pretextos fúteis uma mulher que fora eleita e que cumpria suas funções, era um golpe revoltante. Atenta, atônita e compartilhando do mesmo sentimento, a plateia me ouvia. Disse que os golpistas queriam suspender a aplicação do programa de governo que ganhara quatro eleições seguidas e pôr em prática o pro- grama derrotado nas urnas. Ao final, a emoção se entrelaçou com a em- polgação e aquela plenária de mulheres brancas, negras, indígenas, qui- lombolas, ciganas, filhas do povo, umas universitárias, outras não tão letradas, mas todas carregadas da sabedoria que só a labuta da vida traz, levantou-se a uma só voz e por aclamação aprovou o documento que eu lera como se fosse um manifesto, ao som dos gritos improvisados: “Não vai ter golpe!”. Ovações concluídas, todas se entreolhavam naquele misto de dor, revolta e esperança, quem sabe, na expectativa de que algo pudesse acontecer para repor as coisas nos seus devidos lugares e salvar o man- dato da presidenta. Entretanto, a dura realidade se impôs e, a despeito da veemência de todas, de nossas plataformas e da manifestação do nosso desejo de preservação da democracia e da mais importante conquista de empo- deramento que tivemos na história (a chegada de uma mulher à presi- dência), não logramos forças para barrar o golpe. Assim, o velho poder patriarcal e oligarca, expresso em cores berrantes pelo então vice-pre- sidente Michel Temer, usurpou a faixa presidencial, com o benepláci- to de congressistas, membros do Ministério Público e do Judiciário. Cumpriu-se o planejado, com a facilidade de quem remove um intruso da sua poltrona predileta. Vale lembrar, ainda no governo Lula, a forma como duas mulhe- res negras foram também excluídas da alta esfera do poder, a ministra

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 162 23/02/2018 14:42:50 Benedita da Silva, da Assistência Social, (2003 a 2004) e a ministra Matilde Ribeiro, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2003 a 2008). A passagem de Benedita pelo governo foi meteórica. Após ter fi- cado apenas um ano à frente da pasta, ela saiu sob acusação de ter usado recursos públicos em uma viagem à Argentina para um evento religio- so de interesse particular. Matilde foi descartada por ter sido acusada de fazer mal uso do cartão corporativo, com direito a uma humilhante coletiva de imprensa, que mais parecia um pelourinho eletrônico, vir- tual. Ambas sofreram duros ataques da grande mídia, eivados de pre- conceitos machistas e racistas, e, lamentavelmente, as vozes de defesa foram de baixo potencial audível. Não se trata aqui de defendermos ati- tudes não probas, sob qualquer pretexto. Como destaca Rita Tourinho (2009), o poder discricionário de um gestor ou de uma gestora pública deve levar em conta os princípios da legalidade e da moralidade, por- tanto, toda má utilização de dinheiro público deve ser combatida. Entretanto, não se pode ter dois pesos e duas medidas. Muitas au- toridades públicas praticam delitos infinitamente maiores que os erros cometidos pelas mulheres que ilustram a situação aqui em análise, mas são sujeitos que gozam de elástica tolerância por parte de instituições de fiscalização e punição. Esses são invariavelmente homens brancos que detêm poderoso networking, rede de contatos influentes, que garantem a blindagem de suas presenças nos espaços de poder, a despeito de tur- bulências que possam experimentar. Mas as mulheres, especialmente as negras, não dispõem do direito de errar. Aqui cabe recepcionar a aná- lise feita pela ativista Sueli Carneiro (2009, p. 6) acerca da sub-repre- sentação e dos estereótipos construídos sobre a figura da mulher negra que “determinam tanto a sua ínfima presença nas instâncias de poder como as dificuldades adicionais que lhes espreitam quando ousam romper portas e adentrar lugares para os quais não foram destinadas”. Em entrevista ao jornal The Washington Post, ao comentar so- bre a crise política que impactava o seu governo, a presidenta Dilma Rousseff fez a seguinte afirmação: “Eu acredito que tem um pouco de

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 163 23/02/2018 14:42:51 preconceito sexual ou preconceito de gênero. Eu sou descrita como uma mulher dura e forte, que coloca seu nariz em tudo que ela não deveria”. (WEYMOUTH, 2015, tradução nossa) Sem dúvida Dilma foi muito polida ao diagnosticar “um pouco” de preconceito sexual ou de gênero na saga implementada por forças conservadoras e de direita para des- bancá-la do poder. Na verdade, desde sempre o sexismo fez-se presente em seu caminho, da escolha do seu nome até a sua gestão presidencial. Quando entrou em pauta a escolha de um nome para suceder a Lula na presidência, não foram poucos os que torceram o nariz ao se surpreen- derem com a escolha feita pelo presidente de uma mulher para dispu- tar as eleições. Afinal, entre tantos homens, por que uma mulher? E seu nome só prevaleceu porque Lula gozava de alto prestígio, chegando ao final do seu segundo mandato com mais de 80% de aprovação. E para os que clamavam por um Hércules, eis que é apresentada uma Joana D’Arc que, mais adiante, não escapou da fogueira simbólica em que se conver- teu o linchamento midiático, levando-a à perda do mandato. A chegada de Rousseff ao poder foi, portanto, um ponto fora da cur- va. As tensões de gênero permearam enormemente o processo sistemá- tico de tornar ilegítima sua liderança. Isto se deu misturado à grande carga de ataque ultraliberal dos setores conservadores da elite nacional e grupos estrangeiros, que estavam determinados a pôr fim à agenda democrática e popular desenvolvida por Lula e continuada por ela. Apesar de todas as tentativas de sabotagem, a era Lula/Dilma foi exitosa. Foi um ciclo em que se afirmou a soberania nacional e se ergueu o Brasil no concerto das nações; o PIB que era de R$1,2 trilhão em 2001 pulou para R$5,2 trilhões, em 2014; o Brasil saiu do mapa da fome das Nações Unidas (FAO, 2015); novas universidades foram construídas e a política de cotas, assegurou assento para a juventude mais pobre, e para os negros; as mulheres ganharam prioridade nos programas de trans- ferência de renda e Minha Casa Minha Vida; as trabalhadoras domésti- cas, majoritariamente negras, conquistaram alguns direitos com a Lei Complementar 150/2015; o salário mínimo saltou de 86,21 dólares para

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 164 23/02/2018 14:42:51 305,00 dólares em 2014; o pré-sal foi descoberto, passando a ser base de um grande projeto de emancipação energética, econômica e social para o país. Enfim, um ciclo virtuoso começara a se erguer, proporcionando algum bem-estar a milhões de brasileiras e brasileiros. Mas a crise econômica, que fez estrago em diversos países, também chegou a Pindorama. E ao invés de termos um governo unido para en- frentá-la, o que vimos foi um desnorteamento generalizado e ao final uma capitulação indecorosa às exigências do rentismo que, para não ver reduzidos seus lucros, exigiu do governo impostor que jogasse toda a carga dos prejuízos nas costas das camadas mais vulneráveis da popu- lação, os mais pobres, as mulheres, os negros, os trabalhadores e as tra- balhadoras do campo. Foi uma verdadeira desconstrução nacional e social, facilitada e feita a toque de caixa, em função dos mecanismos que tiveram que lançar mão Lula e Dilma para chegarem ao poder, aliando-se a partidos ideolo- gicamente divergentes, conservadores, como PMDB, PP, PTB e outros. Sem aquelas alianças, seria impossível conquistar a presidência, pois a esquerda sozinha poderia chegar a 30% do eleitorado, e só atraindo se- tores do centro e dividindo a direita, teria a possibilidade de ultrapassar os 50%. Afinal, para além de ideários, política também é matemática. Ademais, o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 se deu num contexto de crise mundial e de enormes pressões dos EUA para manter-se como potência hegemônica, retendo a emergência de uma nova ordem mundial multipolar, de maior equilíbrio entre as nações. Ventos democráticos sopraram ao sul do Equador, a partir de 2000. Além do Brasil, na Argentina, Venezuela, Bolívia e no Uruguai, gover- nos populares foram eleitos, encamparam agendas de afirmação de so- berania, e apostaram em acordos de integração e desenvolvimento da América do Sul e de toda a América Latina. O Brasil teve papel estraté- gico de liderança regional. Além de enfrentar o poderio estadunidense, contribuiu com a criação e desenvolvimento dos BRICS, em contrapo- sição ao G7.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 165 23/02/2018 14:42:51 A vingança veio no galope da espionagem. O WikiLeaks revelou que o governo Dilma foi vasculhado pelos Estados Unidos. Edward Snowden chegou a afirmar e apresentar dados de que o Brasil seria o país mais espionado da América Latina, especialmente em área estratégica como o setor petrolífero, especificamente a nossa Petrobrás e a extraor- dinária riqueza que a descoberta do pré-sal representou. (VIANA, 2015) A presidenta da República, sua secretária, ministros, e até o avião presidencial foram alvos de grampos telefônicos. Ao tomar conheci- mento desses absurdos, a presidenta cancelou viagem oficial aos Estados Unidos, fez um duro pronunciamento contra a prática de espionagem estadunidense e levou o caso para a 68ª Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), alertando que o grave incidente diplomático feria o direito internacional. Defendeu com maestria e firmeza a sobe- rania das nações. Mas o mal já estava feito e o golpe, longe de ser uma ação doméstica, com certeza tem seus tentáculos no coração do impé- rio, como o tempo mostrará. No passado, os golpes de Estado por essas bandas, eram à base das quarteladas (todas fomentadas por interesses estrangeiros em articula- ção com grupos nacionais de direita). As botas e baionetas revelavam a autoria militar de tomada do poder por via da força. Hoje há uma mo- dernização da forma como se interrompem mandatos e se trocam o co- mando de nações, vergando-as a uma tradição de subalternidade. Aqui mesmo, na América Latina, uma onda desestabilizadora, de poucos anos para cá vem modificando a configuração política de diver- sos países. Golpes têm sido dados, mas de forma modernosa: não é mais o golpe militar de estilo clássico, mas articulações preponderantemente parlamentares-jurídicas-midiáticas, com eventual participação secun- dária dos militares. Em Honduras, Zelaya foi deposto, num golpe mi- litar-jurídico-parlamentar, em 2009; no Paraguai, em 2012, Fernando Lugo foi deposto através de um impeachment forjado, aprovado no par- lamento, em 24 horas; no Brasil, o golpe parlamentar-jurídico-midiáti- co de 2016, teve, aos olhos do senso comum, aparência de legalidade; na

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 166 23/02/2018 14:42:51 Argentina, duros ataques, acusação de corrupção, abalaram sobrema- neira o governo de Cristina Kirchner, abrindo o caminho para a vitória do direitista Mauricio Macri; na Venezuela, Nicolás Maduro, embora tenha ganho duas eleições disputadíssimas e altamente fiscalizadas, mantém-se no comando, sabotado e agredido diuturnamente. Em todos esses países, os governos impostos, ou mesmo eleitos, as- sumiram uma concepção neoliberal, e as agendas anteriores, de desen- volvimento com distribuição de renda e de integração regional, foram abandonadas. Os problemas se agravaram e o povo sofre as mais du- ras consequências. Vale aqui resgatar a dramática reflexão de Eduardo Galeano (2010, p. 5) em As Veias Abertas da América Latina:

Alguns países especializam-se em ganhar, e há outros que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi pre- coce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta.

A ação golpista nos impõe o retrocesso. Fica a questão: que país pode se impor como nação soberana se parte significativa da sua elite eco- nômica e política está vocacionada a apenas buscar nacos de vantagens, atendendo a interesses estrangeiros que nos mantêm sob amarras neo- colonialistas? Tal prática é histórica por essas bandas e tem matado nos- sas melhores perspectivas de futuro. Este cenário tão complexo esvazia a tese misógina de alguns que in- sistem em afirmar que Dilma teria caído por ser mulher, e não ter com- petência para dirigir o Brasil. A presidenta foi derrubada porque, na qua- dra da disputa de poder sobre a região, o governo dela era um empecilho à consecução de interesses neoliberais de alta monta. Decididamente razões de gênero não foram determinantes para o golpe. Entretanto, converteram-se em um importante ingrediente facilitador da investi- da golpista, já que, numa sociedade machista e misógina, como a nossa,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 167 23/02/2018 14:42:51 violar os direitos das mulheres é tolerável, ainda que se trate daquela que fora ungida pelo povo com mais de 54 milhões de votos para governar o país. Há que se examinar também a composição das forças presentes no Congresso Nacional. Em 2014, segundo a pesquisa Radiografia do Novo Congresso feita pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o eleitorado brasileiro elegeu o Parlamento com a pior composição desde 1964, ano do golpe militar. (DIAP, 2014) Cresceram os religiosos de feição obscurantista, segmentos conservadores ligados às forças de segurança pública, os ruralistas e os que acham que a defesa dos direitos humanos é algo a ser desprezado. Esses setores ganharam o apelido de bancada BBB – da bala, do boi e da bíblia. Já a bancada que tem origem na luta dos trabalhadores, fi- cou reduzida, de 83 para apenas 50 parlamentares, sendo que a peque- na bancada mais identificada com a luta antirracista perdeu nomes importantes a exemplo do ex-deputado e ex-ministro da Promoção da Igualdade Racial, Edson Santos, do Rio de Janeiro, da deputada Janete Pietá, de São Paulo, e do deputado Luiz Alberto, da Bahia. Mesmo a ban- cada feminina tendo crescido levemente, saindo de 46 para 51 deputa- das, ainda tem uma representação feminista verdadeiramente pequena. Na votação em favor do impeachment, 29 mulheres disseram sim, 20 votaram contra, uma se absteve e outra não compareceu. Se com- parado aos homens, proporcionalmente, as mulheres foram mais soli- dárias à presidenta, já que não chegou a dois terços as que apoiaram o golpe. Entretanto, considerando todas as lutas que foram pavimentan- do o caminho para que as mulheres pudessem chegar ao parlamento, esperava-se bem mais consciência dessa parcela de parlamentares, para a compreensão de que a trama do impeachment era falsa, golpista, e que estava em jogo o mandato da única mulher na história da República a conquistar a faixa presidencial. Em uma apreciação, ainda que rápida do desempenho da bancada fe- minina no Congresso Nacional, há que se considerar ainda as limitações

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 168 23/02/2018 14:42:51 subjetivas das mulheres na esfera de poder, de difícil superação. Muitas dessas mulheres, ainda que estejam na paisagem do poder, são prisio- neiras das amarras de gênero, não se comportando como senhoras ple- nas de seus mandatos, mas atuando como instrumentos para atender aos projetos e expectativas dos homens. Não raro entraram para a po- lítica institucional pela porta do matrimônio ou pelos laços de filiação. São esposas ou filhas de poderosos e influentes que fazem do poder que o povo lhes conferiu a extensão do pátrio poder. É, portanto, uma forma de se manter nos marcos da imanência – como diria Simone de Beauvoir1 – sem transcender para recriar a política a partir da prioriza- ção das pautas de afirmação das mulheres e de promoção da emanci- pação de todas. Vale aqui ilustrar com o exemplo da deputada Raquel Muniz que, ao gritar desesperadamente pelo “sim” ao impeachment da presidenta, afirmou que o Brasil tinha jeito, como comprovava a gestão do seu marido, o prefeito de Montes Claros. No dia seguinte ele foi pre- so pela Polícia Federal, acusado de crime de corrupção pela Operação Máscara da Sanidade II – Sabotadores da Saúde.2 Tem-se falado sobre as dificuldades de Dilma lidar com o Parlamento. Sem dúvida, a experiência política da presidenta era de outra ordem, mais voltada para a gestão dos projetos do que para lidar com as pessoas e suas mais diversas expectativas frente ao governo. Isto pode ter aden- sado problemas com o Congresso. Mas, não percamos de vista que as características altamente retrógradas desse Congresso, as que eram co- nhecidas e as que se revelaram vergonhosamente nos últimos tempos. Neste particular, parlamentares altamente permissivos encontraram- se com uma presidenta impávida, indisposta a barganhas e chantagens. Dilma montou seu governo buscando contemplar o leque de forças par- tidárias que lhe ajudaram a obter a vitória. Entretanto, a formação de um governo de coalização não foi o bastante. O fisiologismo daqueles que a traíram exigia da governante infinita capacidade de atender a es- tômagos insaciáveis. A julgar pela feição do governo Temer – seu ex-vi- ce-presidente – e os incríveis lances de alta corrupção, comprovada por

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 169 23/02/2018 14:42:51 malas milionárias e gravações, era impossível a uma mulher da índole de Dilma Rousseff conciliar interesses daqueles que, na verdade, veem a política como um ambiente de negócios escusos com vistas a enrique- cimento ilícito, não como estratégia de transformação do país e da vida das pessoas. Mas há também que se analisar as insuficiências e as limitações do projeto erguido nos governos Lula e Dilma. Doze anos se passaram sem que, pelo menos, os governos populares pautassem a realização de re- formas estruturais que pudessem criar as bases de um novo Estado, de caráter efetivamente democrático, mais desenvolvido e menos desi- gual. Uma reforma da Educação, com vistas a elevar a qualidade do sis- tema público, do pensamento crítico e a torná-la acessível a todos; uma reforma dos meios de comunicação, reduzindo oligopólios e democra- tizando o acesso aos meios modernos de comunicação, especialmente dos grupos historicamente silenciados; uma reforma tributária com taxação diferenciada das diferentes rendas, tributação das grandes for- tunas e promoção da justiça fiscal; uma reforma política democrática que reduzisse a influência do poder econômico nas disputas eleitorais e com critérios de promoção de mulheres, negros e jovens na democracia representativa. Todo esse elenco de reformas estruturais seria funda- mental para a consolidação da experiência que estava em curso. E isto não foi feito. Criar um pacto social, com participação ampla, em torno das reformas, era um caminho que poderia gerar o cimento da sustenta- ção do governo. As políticas compensatórias de transferência de renda para os mais pobres foram acertadas, mas elas não substituiriam políti- cas estruturantes para o desenvolvimento nacional. O golpe de Estado que solapou o mandato da presidenta foi um ver- dadeiro ataque às conquistas democráticas e um assalto à história de empoderamento das mulheres no Brasil. O que vimos foi uma quadri- lha de homens brutos perfilados à direita de um cabo de guerra entre democracia e autoritarismo, fazendo valer a pior das alternativas, jo- gando a nação na trilha da incerteza e dos descaminhos. Tudo tem sido

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 170 23/02/2018 14:42:51 feito com alguns mestres em corrupção levantando hipocritamente a bandeira da luta contra a corrupção. A Operação Lava Jato, potencializada pelos holofotes da mídia, lamentavelmente, tem sido, em várias das suas etapas, meticulosa- mente seletiva, transparecendo que o seu alvo maior é o Partido dos Trabalhadores (PT), e seu objetivo fora a derrubada da presidenta. Muitos pesos e muitas medidas estão sendo usados na arena dos julga- mentos e no uso das delações premiadas. Juízes tendenciosos substi- tuem a venda de Temis, a deusa da justiça, por lentes de aumento, para enxergarem seus desafetos e salvaguardarem seus protegidos; tomam nas mãos a espada da punição e da perseguição e abrem mão da busca da justiça e do respeito às leis. E magistrados e promotores desprezam provas que ligam figuras de proa do PSDB e PMDB a altos esquemas de corrupção e, por outro lado, tomam indícios como provas cabais, quan- do se trata de incriminar lideranças políticas ligadas ao PT e ao campo aliado da presidenta Dilma. Lula foi, e continua sendo, o alvo absoluta- mente destacado para ser desconstruído aos olhos do povo, às custas do que for preciso, para que jamais possa voltar à cadeira da presidência. O dia em que o impeachment foi votado ficará na história como uma página tão bizarra como as narrativas de Gabriel García Márquez sobre os fatos terríveis e surreais que aconteciam em Macondo, cidade imagi- nária do romance Cem anos de solidão. A era Temer, marcada pelo pragmatismo tosco, de um presidente ilegítimo, que procura apagar todas as marcas progressistas do governo anterior, foi iniciada eliminando a presença de mulheres, de negros e de gente de extração popular do seu primeiro escalão. A fotografia de um governo constituído por 24 homens brancos comandando ministérios evidenciou a marca misógina e falocêntrica da nova gestão, divorciada da mais remota perspectiva de promover a igualdade entre os sexos na ocupação de espaços de poder. As reações foram imediatas, no Brasil e no mundo. Diferente do que sugeriu a revista Veja (LINHARES, 2016), pouco tempo antes do golpe, sobre Marcela Temer, a esposa “bela,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 171 23/02/2018 14:42:51 recatada e do lar”, como se esta devesse ser a vocação das brasileiras, as mulheres bradaram nas ruas e nas redes sociais sua insatisfação com o golpe e com o profundo retrocesso que ele significou na sua representa- ção política e em todos os aspectos da vida social. Vale refletir, investigar melhor o que realmente queriam as pessoas que foram manipuladas para respaldar a derrubada do governo Dilma. O que queriam? Como se sentiram em relação ao que veio depois da saída da presidenta? O governo Dilma foi envolto numa imensa tor- menta. A presidenta foi perseguida, hostilizada, demonizada. A cada pronunciamento público ouvia-se batidas de panelas em todo o Brasil; um adesivo simulando o seu estupro foi distribuído quando houve aumento da gasolina; o cartunista Chico Caruso (2015) estampou no jornal O Globo, a infame charge da presidenta em posição de ser de- capitada por um carrasco do Estado Islâmico em pleno 8 de Março de 2015, Dia Internacional da Mulher. Enfim, em pleno século XXI, os insultos misóginos sofridos por Dilma, figura pública, mas, sobretu- do, uma mulher de carne, osso e sensibilidade, revelaram que o nosso self cultural de hoje não anda muito distante do self cultural vigente no Renascentismo, em 1484. Como bem analisou a saudosa feminista Rose Marie Muraro (2009), na breve introdução histórica do livro O martelo das feiticeiras, foi uma terrível contradição que, justo no apogeu da Renascença, a humanidade tenha permitido que se acendesse a fogueira da inquisição e nela fossem consumidas as vidas de milhares de mulheres acusadas de bruxaria, simplesmente por exercerem seu poder divergente dos códigos e nor- mas vigentes na época, e por buscarem liberdade e autonomia. Fato é que uma histeria coletiva tomou larga parcela do povo brasi- leiro, emulada pelos grandes meios de comunicação. O país ficou pola- rizado entre antipetistas e petistas, chamados, respectivamente, “coxi- nhas” e “mortadelas”, e não viu a luz da razão. E o maniqueísmo se fez golpe e habitou entre nós. Havia mulheres dos dois lados, entre os que queriam o golpe e os que defendiam a permanência da presidenta e a democracia. Vale, en- tretanto, valorizar as manifestações das jovens e de outras gerações que

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 172 23/02/2018 14:42:51 denunciaram o sexismo, a misoginia dos novos governantes. O desmon- te do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, fruto de uma fusão feita na reforma administrativa no governo Dilma, foi duramente criticado, repercutindo internacionalmente. Temer voltou atrás e recriou a Secretaria de Políticas para a Igualdade Racial, a Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Secretaria de Direitos Humanos. Não mais com o status de ministério ou como secretarias li- gadas à presidência, todas foram para dentro do Ministério da Justiça. Se antes já existiam sem a devida substância econômica, tornaram-se organismos precarizados e esvaziados na formulação das políticas pú- blicas e, sobretudo, nos recursos para materializá-las. Acrescente-se a isso o fato de que, num governo de caráter extremamente conservador, não há ambiente propício ao processo de transversalização das políticas para mulheres, para os negros, e para a promoção dos direitos humanos, consubstanciando-se num verdadeiro desmonte de tais políticas. Mais adiante, Temer criou um Ministério de Direitos Humanos, como uma resposta à ausência de mulheres e negros no primeiro escalão e nomeou ministra a desembargadora Luslinda Valois, medida que jamais ultra- passou o perímetro do simbólico. A democracia no Brasil retrocedeu terrivelmente. A Constituição passou a ser sistematicamente violada. O governo Temer, com sua base aliada, tem adotado medidas que impactam diretamente a vida dos que mais precisam da proteção do Estado. Congelou por 20 anos as verbas da educação e da saúde públicas, além de outras áreas sociais; impôs a Lei da Terceirização indiscriminada; fez a Reforma Trabalhista que, entre outros absurdos, permite que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres, mediante autorização médica; pautou a Reforma da Previdência, buscando imputar aos trabalhadores um suposto défi- cit previdenciário de 152 bilhões, dados desmentidos pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e outras instituições. (ANFIP; DIEESE, 2017) O desmonte só empurra o país para o abismo. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 173 23/02/2018 14:42:51 Contínua de abril de 2017 indicava que 14,04 milhões de brasileiros es- tavam desempregados. (IBGE..., 2017) Quando escreveu Quarto de Despejo em 1950, a catadora de papelão que se revelou uma genial escritora, Carolina Maria de Jesus, fez um re- lato chocante: “Eu, quando estou com fome, quero matar o Jânio, que- ro enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades cortam o afeto do povo pelos políticos”. (JESUS, 1999, p. 33) Há que se ter em con- ta que o rebaixamento da política é a estrada que se abre para a barbárie. Estamos vivendo um tempo de perplexidade, desalento e desencanto no seio do povo brasileiro, o que convoca os setores mais comprometidos com a luta coletiva a buscar resgatar o país das mãos daqueles que usur- param o poder central. Este fato imponderável acontece há apenas 30 anos desde a redemocratização do Brasil. Nos vemos diante do desafio de, mais uma vez, lutar por eleição direta para presidente da República. E só a luta ampla, que resulta da aliança entre os diferentes movimentos sociais, pode impulsionar a consciência crítica pelo resgate da democra- cia e pelo reposicionamento do país no rumo do desenvolvimento e da promoção do bem-estar social. Um novo e generoso projeto de nação precisa surgir após o caos que estamos vivendo. Porém, sem as mulheres e sem os negros a democracia representativa nunca será capaz de espe- lhar a grandeza da diversidade do povo brasileiro.

Notas 1 Simone de Beauvoir (1908-1986) foi uma escritora, filósofa existencialista, memorialista e feminista francesa que produziu uma densa obra sobre as desigualdades de gênero e emanci- pação das mulheres. 2 O exemplo apresentado ganhou ampla repercussão na imprensa. Destaco reportagem do jornal O Dia, com o título “Marido de deputada que fez discurso inflamado pelo impeach- ment é preso”, publicada em 18 de abril de 2016. (NASCIMENTO, 2016)

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 174 23/02/2018 14:42:51 Referências ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL – ANFIP; DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS – DIEESE. Previdência: reformar para excluir?: contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira. Brasília, DF; 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2017

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 175 23/02/2018 14:42:51 atingiu-14-048-milhoes-de-pessoas-no-trimestre-ate-ab.shtml>. Acesso em: 11 jul. 2017.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 176 23/02/2018 14:42:51 Dilma: símbolo para a participação política feminina

Vanessa Grazziotin*

* Senadora da República pelo Introdução Partido Comunista do Brasil (PCdoB) do Amazonas (AM) e Há uma relação perversa entre gênero e política, Procuradora Especial da Mulher no Senado. que é nossa tarefa transformar. A pequena partici- pação feminina nos espaços de poder é a face mais visível desta relação. Não tenho dúvidas de que isso foi um componente importante no processo de im- peachment, aspecto abordado por mim, Vanessa Grazziotin, e outras/os parlamentares “no calor da hora”,1 em pronunciamentos nas comissões e no plenário, bem como em artigos externos à luta par- lamentar.2

o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 177 23/02/2018 14:42:51 Primeira mulher a assumir a presidência do Brasil, Dilma Rousseff, foi vítima de xingamentos sexistas, de depreciação da figura feminina e de outras violências por ser mulher. Este componente discriminatório, sabemos, está presente até mes- mo nas democracias mais sólidas e afeta líderes como a primeira-minis- tra alemã Angela Merkel e líderes de outras nações. No Brasil, a misoginia conjugou-se a interesses ocultos e o alvo acabou sendo uma presidenta honesta, afastada sem nenhuma acusação sólida.3 Nesse triste episódio de nossa história, houve uma conjugação de in- teresses, todos eles reptícios, e uma plêiade de traições capitaneada por setores do PMDB e pelo vice-presidente Michel Temer. O golpe começou no dia seguinte às eleições de 2014, quando o can- didato derrotado Aécio Neves levantou a tese do impeachment. Ao lon- go de 2015, o golpe foi aglutinando vários setores da mídia, segmentos sociais com interesses contrariados, como a indústria petrolífera inter- nacional, e políticos preocupados com o avanço da Operação Lava-Jato, como o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Tivemos uma intervenção da mídia sem precedente na história. Foram dias de intenso bombardeio, de ações ilegais como a interceptação dos telefonemas dela e do ex-presidente Lula, e de uma emulação goeb- belsiana das massas, manipulando o ódio, a raiva e o preconceito social. Em várias oportunidades, percebemos que a aglutinação desses se- tores poderia representar uma quebra das regras democráticas, mas o momento simbólico foi a aceitação de um pedido de impeachment sem respaldo jurídico pelo ex-deputado Eduardo Cunha. Milhões de brasileiros lutaram bravamente contra o impeachment: movimentos sociais, setores progressistas da intelectualidade, da igreja e Parlamento. Mas o nível de articulação dos setores mais conservadores, conjuga- do com um apoio maciço da mídia, levou a uma conjuntura que conso- lidou o golpe. No Senado, fizemos um debate aprofundado sobre as questões fis- cais arroladas na denúncia, mostrando que não havia nenhum respaldo

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 178 23/02/2018 14:42:52 e nenhuma justificativa legal para um afastamento como o que foi feito. Também pudemos expor as reais intenções dos que ardorosamente de- fendiam o impeachment. Nós procuramos ouvir e dialogar com todas as forças, e com todos os segmentos, e conseguimos construir uma bancada da legalidade. Parafraseando a heroína comunista Olga Benário Prestes, neste proces- so lutamos pelo bom, pelo justo e pelo melhor para o Brasil. Infelizmente, a maioria de ocasião que se formou já havia decidido pelo impeachment, independentemente da acusação ou dos motivos. A questão de gênero transparecia em muitos discursos, mas além do preconceito, da misoginia e do machismo, houve também a perfusão de outros interesses que impactaram no voto dos senadores e das senadoras. Pessoalmente, posso dizer que tivemos apoio de várias regiões do país, mas também recebemos manifestações de ódio e intolerância vin- das de diversas cidades. Ouvimos inúmeras críticas e recebemos milha- res de mensagens de eleitores que eram favoráveis ao impeachment. Respeitei as críticas e aceitei que muitos eleitores estivessem insatis- feitos, pois sabia que a campanha midiática poderia nublar a percepção das reais intenções de Temer e seus aliados. Mas nunca tive dúvidas do meu papel e da responsabilidade que tinha na luta contra o golpe. Hoje a história mostra que estávamos certos. O que temos vivido desde o afastamento da presidenta Dilma Rousseff corrobora o alerta feito por ela própria presidenta, na data de seu afastamento efetivo, de que o maior risco para o país era ser dirigido por um governo sem voto nem legitimidade.

Um balanço Um ano4 se passou desde que Michel Temer assumiu a presidência da República, após uma decisão inicial da Câmara dos Deputados em reco- mendar a abertura de um processo de impeachment contra a presidenta

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 179 23/02/2018 14:42:52 Dilma, e a autorização para abertura do processo no Senado, no dia 12 de maio. De fato, uma grande parte apoiou a saída da presidenta Dilma por- que acreditava nas promessas de que tudo melhoraria. Nos bastidores do Congresso, ou até mesmo nos microfones, alguns diziam que a questão não era mais jurídica ou legal – já que a presidenta Dilma perdera o seu apoio no Congresso Nacional e nenhum presiden- te governaria sem o apoio do Congresso Nacional.5 Com viés mais econômico, outros diziam que, diante da situação grave da economia nacional, só haveria uma saída, tirar a presidenta Dilma e substituí-la pelo vice-presidente Michel Temer. (COSTA, 2015) O simples fato de um novo presidente assumir – argumentavam – já levaria uma segurança maior ao mercado financeiro, e que nossa econo- mia, portanto, voltaria a crescer. Precisamos, efetivamente, fazer um balanço do que aconteceu nesse último ano no Brasil e o que poderá vir a acontecer nestes próximos anos. Um ano após a usurpação, o governo de Michel Temer só colecionou números extremamente negativos, piores ainda se comparados com as promessas feitas por ele e pela maioria dos parlamentares que cassaram o mandato de uma presidenta que nenhum crime cometeu. O que aconteceu com as contas do governo, que dizia que o déficit público era insuportável e que precisava alguém para pôr ordem na casa? Fechamos o ano passado aprovando, contra o nosso voto, o teto de gastos – a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016 –, para quê? Para cortar gastos em investimentos, gastos na área social, gastos na área de educação, mas mantiveram intactos os gastos financeiros, num orçamento em que metade dos recursos vai para pagar rolagem e o principal de uma dívida pública. A dívida pública do governo brasileiro, em abril de 2016, era de 71% do Produto Interno Bruto (PIB). Em março de 2017, era 79,9% do PIB. Em abril de 2016, as contas do governo registravam um déficit da ordem

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 180 23/02/2018 14:42:52 de R$149 bilhões; em março de 2017, esse déficit subiu para R$156 bi- lhões. Já a taxa de desemprego no Brasil, em abril de 2016, que era em torno de 11,2%; hoje é superior aos 13%, ou seja, quase 14% são a taxa de desemprego. (FRAGA; CARNEIRO, 2017) Também prometeram que os juros baixariam significativamente e tentam enganar a população, dando conta de que, nas últimas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom), houve queda na taxa de juros. De fato, houve queda, mas temos que analisar se as quedas da taxa do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), dos juros oficiais do Brasil, foram superiores à queda da inflação. E aí chegamos à con- clusão simples: em que pese nominalmente terem baixado as taxas Selic de juros nos últimos meses, do ponto de vista dos juros reais, as taxas aumentaram, para o consumidor as taxas de juros permanece- ram em torno de 41%, 42%. São esses os números com que o governo presenteou a nação brasi- leira, o povo brasileiro, com um ano de exercício. Agora estamos, a Câmara e o Senado, debatendo duas reformas que foram entendidas como as prioridades do governo federal – a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista.6 O objetivo dessas reformas é equilibrar os gastos públicos às expen- sas dos trabalhadores e das trabalhadoras, no sentido de que isso pos- sa contribuir para a superação de uma crise econômica estrutural do sistema capitalista – porque não é uma crise econômica só do Brasil –, mesmo que venha em detrimento do bem-estar e do atendimento das necessidades de cidadãs e cidadãos. Agora o governo passa a divulgar que em torno de R$2 bilhões serão liberados para pagamento das emendas dos parlamentares da base do governo. E para que liberar emendas de parlamentares? Para aprovar a Reforma da Previdência, para aprovar a Reforma Trabalhista. Que governo austero é esse? Não podemos aceitar, de forma pacífica, que promovam essas refor- mas absurdas contra o povo. Isso não é reforma; isso é contrarreforma,

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 181 23/02/2018 14:42:52 isso é supressão de direitos, contra a qual não há senão a possibilidade da resistência política. Hoje há uma crise fiscal estrutural porque o governo optou por dis- cutir e por resolver o problema do gasto e não o problema da arrecada- ção. Isso é algo lamentável em qualquer nação do mundo, entretanto com perversão acentuada numa nação com as características do Brasil. O país, no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ao lado da Estônia, é o único país que não cobra tri- buto sobre distribuição de lucros e dividendos. As Nações Unidas já divul- garam inúmeros relatórios mostrando como o Brasil é o paraíso fiscal dos ricos, dos poderosos, desses que não pagam tributo. Precisamos de uma reforma tributária, não da destruição de nossa Previdência Social e de nossas leis trabalhistas – mas carecemos tam- bém de uma reforma política que considere a fundo a imensa distorção de gênero que hoje caracteriza a eleição de nossos representantes.

Por mulheres no poder O segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff – iniciado em 2015 e terminado no triste 31 de agosto de 2016 –, coincidiu com o lança- mento da campanha Mais Mulheres na Política, um esforço conjugado da bancada feminina na Câmara e no Senado para confrontar a sub-re- presentação feminina nos lugares de poder político, que é um dos ele- mentos centrais da reforma política que precisa ser feita no país. Na história do Brasil, as eleições têm servido de indicador para ave- riguar a precariedade da democratização de gênero na sociedade brasi- leira. O impacto do voto feminino – de mulheres e em mulheres – é repre- sado por outros fatores do sistema eleitoral. Barreiras históricas e so- ciais ainda inibem a entrada, a permanência e as perspectivas de futuro das mulheres na política, de modo que a representação masculina no Parlamento continua inflacionada.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 182 23/02/2018 14:42:52 A modificação desta situação é objeto principal da bancada femini- na, por meio da PEC 134/2016 e da campanha Mais Mulheres na Política. Com esta proposta de emenda constitucional, pretende-se criar a reser- va de gênero para a ocupação efetiva de um percentual de vagas, a partir do voto proporcional, em lista fechada e com regra de alternância de gênero. Desde 2015, a campanha foi lançada oficialmente em 12 capitais e em 11 outras cidades brasileiras, além de ter produzido e divulgado farto material de pesquisa, como o livro Mais Mulheres na Política e o mapa das mulheres no poder, encartado no mesmo. Lançada no fim de 2016, a terceira edição desse livro contém análise quantitativa e qualitativa sobre a desigualdade de gênero na política, a partir dos dados das eleições de 2014 e de 2016. Na história do Brasil, as eleições têm servido de indicador para averi- guar a precariedade da democratização de gênero na sociedade brasileira. Os dados das eleições de senadoras, deputadas, prefeitas e vereado- ras mostram um panorama de crescimentos ínfimos, de estagnação, de diminuição e mesmo de ausência total de representantes femininas. Em 2016, 1.284 municípios brasileiros ficaram sem uma vereadora sequer. Nos melhores cenários, resultados mostram que as mulheres brasi- leiras parecem ter atingido um “teto” difícil de ultrapassar espontanea- mente, a despeito de medidas que garantiram um número de pelo me- nos 30% de candidaturas femininas e também regulamentaram o uso do tempo de propaganda para mulheres. Hoje o sistema existente favorece uma sistemática sub-representa- ção feminina e uma super-representação masculina que resulta menos da disputa efetiva que das regras que pré-definem como o jogo eleito- ral pode ser jogado. Talvez nem seja o caso de continuar chamando de representativo um sistema assim. Há uma grande diferença entre representar e substituir. Estes homens não nos representam – nos substituem, usurpam um lu- gar que seria de outras de nós.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 183 23/02/2018 14:42:52 Há muito tempo se reconhece que a exclusão das mulheres do espa- ço de poder torna a política indiferente e hostil às questões femininas, as quais continuam a ser tratadas, sob a ótica masculina, como proble- mas privados, caseiros, alheios ao mundo público da política. Sobretudo, chegou o tempo de dizer que as mulheres não querem só transformar a política para chegar ao poder, mas vão transformar a política ao chegar ao poder. É preciso prestar atenção ao fato de que a equivalência demográfica entre homens e mulheres precisa ser consonante com a presença de ambos nos espaços de poder. A presidenta Dilma Rousseff compreendia profundamente que a democracia é importante para as mulheres, mas as mulheres são muito mais importantes para a democracia.

Notas 1 Ver, por exemplo, as notas taquigráficas de minha intervenção na sessão de 2 de agosto de 2016, na Comissão Especial do Impeachment 2016, disponíveis em Brasil (2016b). Neste sentido, também, a intervenção da senadora Regina Sousa (PT-PI), no dia 29 de agosto de 2016, nas considerações que dirigiu à presidenta Dilma Rousseff. 2 Por exemplo, ver Grazziotin (2016) e também o artigo da senadora Fátima Bezerra (2016). 3 Conforme o voto em separado apresentado na Comissão Especial do Impeachment de 2 de agosto de 2016, por mim, pelas senadoras Fátima Bezerra (PT-RN), Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Kátia Abreu (PMDB-TO); e pelos senadores Humberto Costa (PT-PE), Lindbergh Farias (PT-RJ), Randolfe Rodrigues (REDE-AP) e Telmário Mota (então PDT, hoje PTB-RR): “[...] Sempre afirmamos, desde o início dos trabalhos desta Comissão, que a Denúncia nº 1, de 2016, não se lastreava em fundamentos jurídicos sólidos. Sustentávamos que os dois eixos da denúncia – os decretos que tratavam de créditos suplementares, editados em 2015, e a equa- lização da taxa de juros do Plano Safra referente ao ano de 2015 – jamais poderiam dar ensejo, numa análise isenta, desapaixonada e criteriosa, ao impeachment da Senhora Presidenta da República, pelo singelo e robusto motivo de não caracterizar crime de responsabilidade exi- gido pelo art. 85 da Constituição Federal e elencado pela Lei nº 1.079, de 1950”. Voto em separado da senadora Vanessa Grazziotin e outros senadores referente à pronúncia. (BRASIL, 2016a, p. 35) 4 Este artigo foi escrito em abril de 2017. 5 Ver, por exemplo, o jornalista Ricardo Noblat (2015).

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 184 23/02/2018 14:42:52 6 Muito prejudicial a trabalhadoras e trabalhadores, a reforma trabalhista proposta pelo gover- no foi aprovada e sancionada pelo presidente. A tramitação da reforma da previdência tem sido dificultada pelas sucessivas denúncias de corrupção enfrentadas pelo governo Temer.

Referências + MULHERES na política: retrato da sub-representação feminina no poder. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2017.

BEZERRA, F. O golpe misógino contra a democracia. Jornal Senado Mulher: Informativo da Procuradoria Especial da Mulher do Senado, Brasília, DF, ano 3, n. 25, p. [4], set. 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2017.

BRASIL. Congresso. Senado. Comissão Especial do Impeachment. Voto em separado. Brasília, DF, 2 ago. 2016a. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2017.

BRASIL. Congresso. Senado. Notas taquigráficas, 29ª Comissão Especial do Impeachment 2016, de 2 de agosto de 2016b. Atividade Legislativa, Brasília, DF, 2016. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2017.

COSTA, R. Temer propõe plano de ação imediata para área econômica. Valor Econômico Online, São Paulo, 30 out. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2017.

FRAGA, É.; CARNEIRO, M. Sob Michel Temer, retomada da economia é lenta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 maio 2017. Poder. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2017

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 185 23/02/2018 14:42:52 GRAZZIOTIN, V. O golpe de 2016 e a violência política de gênero. In: RAMIRO, J. F.; MORALES, R. S. de. Somos todas. Somos uma: formas de pensar a mulher na sociedade brasileira. Porto Alegre: ArteLíngua, 2016. cap. 16.

MAPA mulheres na política 2016. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2017.

NOBLAT, R. Sem apoio, como Dilma imagina governar por mais três anos? O Globo, Rio de Janeiro, 22 out. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2017.

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o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 186 23/02/2018 14:42:52 o_golpe_na_perspectiva_de_gênero.indd 187 23/02/2018 14:42:52 Este livro foi composto na EDUFBA por Marcella Napoli. O projeto gráfico deste livro foi desenvolvido no Estúdio Quimera por Iansã Negrão com auxílio de Inara Negrão para a EDUFBA, em Salvador. Sua impressão foi feita na Reprografia da EDUFBA. A capa e o acabamento foram feitos na Gráfica I. Bigraf. A fonte de texto é DTL Documenta. As legendas foram compostas em DTL Documenta Sans, família tipográfica projetada p por Frank Brokland.

O papel é Alcalino 75 g/m².

400 exemplares.

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