O SABOTADOR

Andrew Gross

O SABOTADOR

Tradução Dina Antunes Esta é uma obra de ficção. Todas as personagens, organizações e acontecimentos descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou foram usados de forma ficcionada.

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor. Reprodução proibida por todos e quaisquer meios.

A presente edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

© 2017, Andrew Gross Direitos para esta edição: © 2019, Clube do Autor, S. A. Avenida António Augusto de Aguiar, 108 - 6.º 1050-019 Lisboa, Portugal Tel.: 21 414 93 00 / Fax: 21 414 17 21 [email protected]

Título original: The Saboteur Autor: Andrew Gross Tradução: Dina Antunes Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes, em caracteres Revival Impressão: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. (Portugal)

ISBN: 978-989-724-443-8 Depósito legal: 450034/18 1.ª edição: Janeiro, 2019 www.clubedoautor.pt Este é um romance baseado em factos reais. Por respeito aos heróis envolvidos, procurei reproduzir de forma fiel os principais acontecimentos militares aqui retratados — o ataque às instala- ções de produção e armazenamento de água pesada na fábrica e a sabotagem ao ferry Hydro — com o drama característico de um thriller. A personagem de Kurt Nordstrum é inspirada em , cuja determinação e sentido do dever ajudaram a realizar o mais importante e improvável ato de sabotagem da Segunda Guerra Mundial. Descobri esta história enquanto pes- quisava para o livro anterior, 72 horas, e pensei de imediato que ainda não tinha sido contada como devia ser. Com esta obra, quero dar vida aos atos de coragem e de ousadia que levaram es- tas duas missões a bom porto, ajudando a definir o desfecho deste terrível conflito.

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Prólogo

Nos anos anteriores a 1943, os serviços secretos britânicos e americanos concentraram-se na possibilidade de os nazis esta- rem a criar uma arma sofisticada ao abrigo do ultrassecreto pro- grama V-3: uma arma capaz de alterar o rumo da guerra. Mísseis guiados que podiam ser lançados do continente europeu contra Londres com uma precisão milimétrica, e o chamado «Canhão de Londres» com um corpo cilíndrico de 140 metros e capaz de disparar granadas carregadas com 25 quilos de explosivos a um ritmo de 600 por hora e com um alcance de 160 quilómetros, fazendo chover um inferno incendiário sobre a capital britânica. Ambos faziam Whitehall tremer de medo. Em 1943, os ousados ataques aéreos realizados pela RAF sobre a cidade de Mimoyecques, no Norte de França, onde a gigantesca superarma estava a ser construída, assim como em Peenemünde, na Alemanha, onde eram desenvolvidas e testadas as secretas bombas voadoras V- 2 , atrasaram os planos de Hitler. Contudo, apesar da preocupação com o armamento «V» dos na- zis, os Aliados também se mantinham atentos à possibilidade de os alemães estarem a fazer progressos naquilo que se temia ser a sua arma decisiva — a bomba atómica. As redes de espiona- gem britânicas encetaram então uma enérgica campanha com o objetivo de perceberem a dimensão dos progressos nazis, pois sabia-se que os cientistas alemães Walter Heisenberg, Otto Hahn e Leisa Meitner se encontravam entre os principais peritos mun- diais na área da fissão nuclear. Logo em 1939 ficara estabelecido que os alemães estavam envolvidos na investigação atómica, concebida com base no óxido

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de deutério (D2O), ou «água pesada», que agia como modera- dor no importante passo de separação dos isótopos, essencial no processo físsil. Eram necessárias grandes quantidades de ener- gia elétrica para produzir o D2O, que não existia na Alemanha, mas que estava a ser feito e sintetizado em pequenas quanti- dades na Norsk Hydro, uma central hidroelétrica em Vemork, na Noruega, que fabricava fertilizantes à base de amoníaco. Esta longínqua fábrica situava-se num estreito desfiladeiro sob o pla- nalto de Handangervidda, uma das mais despovoadas e inóspitas regiões montanhosas da Europa. Através de uma fonte na fábrica, ficou-se a saber que, em maio de 1940, Berlim ordenara que se aumentassem os níveis de produção de água pesada de 500 para 3000 quilos por ano, quantidades consistentes com as considera- das necessárias para fazer uma bomba atómica. Em outubro de 1941, estas desconfianças tornaram-se mais preocupantes. Os serviços secretos britânicos receberam um re- latório da resistência dinamarquesa pormenorizando um encon- tro entre os físicos laureados com o Prémio Nobel Niels Bohr e Werner Heisenberg, diretor do Instituto Kaiser Wilhelm, em Berlim. Heisenberg viajara até Copenhaga para perguntar a Bohr, visto como uma espécie de figura paterna na comunidade cien- tífica mundial, se era moralmente aceitável para um físico cons- truir uma arma de proporções indescritíveis, mesmo em tempo de guerra. Bohr respondeu com uma pergunta: isso significava que acreditava que tal arma era exequível e que podia ser construí- da em poucos anos? O físico alemão respondeu afirmativamente. Aquilo que ele disse chocou Bohr ao ponto de este enviar um alerta imediato para Londres dizendo-se convencido de que a Alemanha estaria à beira de obter uma arma devastadora que teria por base as experiências com água pesada realizadas em Vemork. Churchill e Roosevelt deram a máxima atenção ao assunto. Em Inglaterra, formou-se uma comissão secreta para lidar com o problema, a Special Operations Executive, ou SOE, cuja exis- tência era conhecida por um número reduzido de pessoas. O que se segue é a história de um grupo de homens corajosos cujas ações puseram fim a essa ameaça.

10 Primeira Parte

Capítulo 1

Março de 1942

O velho e rangente ferry avançava pelo lago iluminado pelo sol. O Telemark Sun era um navio bastante eficiente, construído em 1915 e alimentado a carvão. Com 490 toneladas, conseguia ainda fazer a viagem de 30 quilómetros pelo lago Tinnsjå, des- de Tinnoset até Mæl, em menos de uma hora e trinta minutos. Naquele dia transportava cerca de 60 passageiros, assim como dois vagões vazios na proa que regressavam à central hidroelé- trica Norsk Hydro, em Vemork, depois de terem descarregado a carga no comboio que seguia para Oslo, na estação de caminho de ferro do outro lado do lago. Kurt Nordstrum já fizera aquela viagem centenas de vezes, mas nem uma nos dois anos que já durava a ocupação do seu país. Crescera na região, conhecida como Telemark, no Sudeste da Noruega — um lugar marcado por vales luxuriantes no verão e intermináveis extensões de neve e gelo durante o inverno —, situada entre a cidade de e a pequena aldeia de Vigne, na extremidade ocidental do lago Møsvatn. À semelhança da maio- ria dos escandinavos, Nordstrum aprendera a esquiar naquelas montanhas muito antes de ter começado a andar de bicicleta. Fora criado a caçar e a pescar, da mesma forma que os rapazes de outros lugares chutavam bolas de futebol. Conhecia a localização de todos os abrigos e cabanas que salpicavam o Hardangervidda como a palma das mãos. O pai ainda residia em Rjukan, embora Nordstrum nem se atrevesse a visitá-lo. Pelo menos, não pes- soalmente. Nordstrum era conhecido por ser um daqueles que

13 ANDREW GROSS fugiram para as montanhas para continuar a luta contra os nazis. Era do conhecimento geral que a polícia do Nasjonal Samling1 mantinha os familiares dos combatentes da resistência debai- xo de olho, na esperança de os apanhar. A Hirden2 do partido NS estava por todo o lado, tão temida quanto a Gestapo. Não passavam de seguidores do fantoche ditador Vidkun Quisling, que esquecera o seu país e o seu rei, para cumprir as ordens dos nazis. Havia dois anos que Nordstrum não via o pai, e era pouco provável que o visse durante aquela viagem. No convés, envergando as roupas de um vulgar trabalhador e transportando uma pasta com ferramentas de carpintaria, mas com uma Browning.45 escondida no cinto, Nordstrum recostou- -se quando avistou as familiares montanhas da sua juventude que circundavam o Tinnsjå. Era bom poder regressar ao vale. Virou o rosto para o sol. Ultimamente, os dias soalheiros não pareciam abundar. Desde abril de 1940, quando abandonara a universida- de, no segundo ano do curso de engenharia, para se deslocar até Narvik com o objetivo de se juntar às tropas britânicas que ten- tavam bloquear os invasores nazis, que os céus azuis da Noruega pareciam sob uma perpétua nuvem plúmbea. Ao início haviam conseguido mantê-los à distância. Os alemães concentraram o seu blitzkrieg nas cidades. Primeiro tomaram Trondheim, em se- guida Bergen, e Oslo caiu numa semana. Depois foi a vez de o rei fugir, inicialmente para Nybergsund, e depois para Elverum, perto da fronteira com a Suécia, e o povo ajoelhou-se nas ruas e chorou. Nordstrum já tinha visto o seu quinhão de combates — em Hønefoss, em Stavanger e no vale de Gudbrandsdalen. Um ano antes, em Tonneson, juntara-se ao que restava de uma unidade de milícia — um pequeno grupo de homens com fardas maltrapi- lhas que se recusavam a desistir. «Toma», disseram, e colocaram- -lhe uma Krag3 na mão, dando-lhe apenas um carregador com

1 Pode ser traduzido como Partido da União Nacional; partido fascista norueguês que governou o país de 1942 a 1945, durante a ocupação nazi. (N. da T.) 2 Organização paramilitar noruguesa que tomou a SA (Sturmabteilung, a milícia paramilitar nazi) como exemplo. (N. da T.) 3 Krag Jørgensen é uma espingarda desenvolvida pelos noruegueses Ole Herman Johannes e Eric Jørgensen em 1886. (N. da T.)

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30 munições. «É só o que temos», declarou o capitão como quem pede desculpa. «Não desperdices nenhuma.» Miúdos, todos eles, com espingardas e cocktails molotov, e um canhão da última guer- ra, retirado algures de uma prateleira poeirenta. Nenhum sabia combater. Apesar disso, tinham deixado a sua marca nos filhos da mãe. Destruíam pontes, cortavam os abastecimentos ao inimi- go, armavam emboscadas aos oficiais da SS; tinham até matado uns quantos traidores de Vidkun Quisling. Em Haugsbygda, os combates transformaram-se em lutas corpo a corpo; com facas e baionetas quando as balas se acabaram. Até já não existirem sol- dados e metralhadoras para enfrentar, mas sim tanques e artilha- ria pesada e caças-bombardeiros em voos picados a descarregar as bombas. Obuses de 50 milímetros disparados a dois quilóme- tros de distância e que faziam as trincheiras elevar-se nos ares. «És sargento», disseram-lhe. Isso porque Nordstrum, que crescera a caçar, disparava como os melhores. E porque vira a sua quota-parte de carnificina. Era alto e bem constituído, possuidor de testa alta, cabelo curto e claro, e de uma espécie de intencionalidade nos olhos cinzentos e encovados que desde a juventude as pessoas pareciam dispostas a seguir. O seu aspeto endurecera entretanto. Dois anos a ver membros a voar e um homem ser morto com um tiro na testa ao seu lado faziam-no parecer dez anos mais velho. Fosse lá como fosse, continuava vivo. O seu exército há muito que se desmembrara e a maioria dos amigos estava morta. Por aqueles dias fazia apenas o que podia. O rei conseguira chegar a Londres. Nordstrum ouvira dizer que estavam a formar por lá uma espécie de Exército da Noruega Livre. Inglaterra… Talvez em 1940 tivesse sido possível chegar até lá — 250 quilómetros pelo planalto montanhoso enfrentando furiosas tempestades até à Suécia e depois apanhando um navio. Naquele dia, era como se fosse na China. Fizera certa vez a caminhada até à Suécia, de- pois de ter fugido de Narvik; contudo, encontrando por lá pouco apoio, regressara para retomar o combate. E ainda que se conse- guisse chegar a Inglaterra, sem acabar no fundo do mar do Norte ou devolvido às pessoas erradas pela polícia sueca, uma pessoa

15 ANDREW GROSS podia alistar-se. E depois...? Não participar na guerra e treinar. O Exército da Noruega Livre... Tinha de admitir que soava bem. Sabia que um dia formar-se-ia uma nova frente, a verdadeira. A seu tempo, os Aliados haveriam de invadir. Com a sua intermi- nável e entalhada costa que, em toda a Europa, era a mais difícil de defender, a Noruega fazia sentido militarmente. E a única esperança de Nordstrum era conseguir viver o tempo suficiente para participar em tudo isso. Para recuperar o seu país. Ao longe, através do brilho ofuscante do sol que se refletia na água, avistou o porto de Mæl. Quando, há seis anos, deixara Rjukan para fre- quentar a universidade, era ainda rapaz. Ao regressar, não sabia muito bem no que se tornara. — Olha. — Nordstrum deu uma cotovelada a Jens, amigo e companheiro combatente da mesma região, e apontou para as familiares montanhas. — São como um velho amigo, não achas? — Seriam como um velho amigo se regressássemos para ficar — replicou Jens. — Assim, são mais como uma mulher bonita que não podemos ter, e que está apenas a provocar-nos. Conhecia Jens desde os bancos da escola. Era de Rauland, mais a norte. Os pais eram amigos. Enquanto estudantes, tinham jogado futebol, caçado e esfolado veados e esquiado as mesmas montanhas. — Falas como um velho — comentou Nordstrum num tom reprovador. — Tens vinte e cinco anos. Aprecia a vista. — Bem, dois anos de guerra têm este efeito sobre uma pes- soa. — Apesar de tudo o que passara e vira, Jens conseguira de alguma forma manter o seu aspeto de rapaz. — Anseio pelo dia em que possa voltar sem ter ninguém a disparar sobre mim e… — Jens. — Nordstrum interrompeu o amigo a meio da fra- se. — Olha ali. — Desta vez, indicou um oficial que envergava a farda cinzenta da Hirden e que aparecera no convés tipo galaró aperaltado, como se as condecorações no peito fossem resultado de bravura demonstrada no campo de batalha e não de uma sim- ples nomeação política. Por aqueles tempos, eram os Quislings quem controlava tudo: membros do partido nacional-socialista que haviam tomado o poder assim que o rei virara costas, e que de bom grado se tinham transformado nos fantoches dos nazis.

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Não passavam de traidores, de colaboradores. Ficavam em casa, espiando os conterrâneos, fazendo prisões secretas, declamando propaganda na rádio, enquanto os corajosos lutavam nas monta- nhas e morriam. Muitos dos amigos de Nordstrum haviam sido encostados a uma parede e fuzilados pela polícia Quisling por causa de informação conseguida através de informantes. Sentia o estômago dar um nó de cada vez que via um desses traidores. O oficial avançou em passo vagaroso. Tinha rosto chupado e olhos pequenos, brilhantes e arrogantes sob o boné de oficial, o pei- to inchado por um posto desprovido de importância. Chamava- -se Partido de União Nacional. União no inferno. Nordstrum teria de bom grado cuspido nos sapatos do tipo, se a sua viagem ali não fosse mais importante. — Estou a vê-lo — disse Jens. O Hird trazia uma pistola no cinto, mas eles tinham uma Bren4 no fundo do saco de ferra- mentas, e não lhes faltava a vontade de a usar. Nos últimos anos haviam acabado com o sofrimento de muitos traidores. — Basta dares a ordem. — E porque tenho de ser eu a dar a ordem? — perguntou Nordstrum entre dentes, fazendo um aceno de cabeça ao oficial quando este se aproximou. — Tenha um bom dia. — Um bom dia também para vocês. Heil Hitler. — O Quisling levantou a mão e acenou igualmente com a cabeça. Jens, que mal parecia ter idade para se barbear, mas que já matara tantos alemães quanto Nordstrum, limitou-se a encolher os ombros quando o homem passou. — Porque és o sargento. Sargento… Nordstrum riu-se para si próprio. Em todo o caso, o seu grupo já se tinha dispersado. O posto de nada valia, embora Jens nunca deixasse de o mencionar sempre que a oportunidade se apresentava. — Porque prometemos encontrar-nos com o Einar — disse Nordstrum. — Aqui tens uma razão, se é disso que andas à pro- cura. — Segurou o braço do amigo.

4 Metralhadora ligeira desenvolvida pelos checos, fabricada pelos ingleses e adotada pelo exército britânico em 1935. (N. da T.)

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— Estás certo, essa é uma razão — concordou Jens com um suspiro desiludido. — Embora não seja grande coisa. — Seguiram o Quisling enquanto este avançava pelo convés. — Haverá outras oportunidades. enviara uma mensagem a Nordstrum das montanhas perto de Lillehammer dizendo que precisava de o ver para falarem de um assunto da máxima urgência. Não pude- ra revelar do que se tratava, mas o amigo não era pessoa de brin- car quando afirmava que qualquer coisa era urgente. Nordstrum também o conhecia desde a infância, e haviam ambos frequenta- do o curso de engenharia em Oslo, embora Einar, dois anos mais velho, tivesse conseguido licenciar-se antes da guerra e possuísse um bom emprego na barragem de Møsvatn, assim como mu- lher e filho.Por favor, vem, dizia a mensagem. E Nordstrum foi. Sem fazer perguntas e correndo risco de vida. O encontro estava marcado para um café no cais, em Mæl, na margem oriental do Tinnsjå, perto do local onde o ferry aportava. A partir daí, ele e Jens não faziam a menor ideia para onde seguiriam. Possivelmente, em direção às montanhas a fim de se juntarem a alguma unidade. Tinha alguns nomes para con- tactar. Por aqueles tempos, uma pessoa precisava de ter cuida- do com o que fazia. Por todos os atos de sabotagem, os nazis adotavam aquilo a que chamavam uma política de 40 por um, reunindo e matando 40 cidadãos inocentes por cada alemão morto. Proteger os patrícios era essencial para Nordstrum, as- sim como para todos os noruegueses. Por que outro motivo ha- veriam de lutar? O que importava se eram 40 soldados mortos no esforço de reconquistar o país ou 40 inocentes encostados a uma parede e fuzilados? Quarenta mortos eram 40 mortos. Nordstrum sentira na pele a aplicação dessa regra, e ainda car- regava o peso no coração. Não queria ser o causador dessa mor- te a outros. Isso não os impedia de fazer o trabalho; só alterava um pouco as regras. E contribuía para que odiasse ainda mais os filhos da mãe. Mais adiante no convés, o Quisling acercou-se de uma jovem com uma criança ao colo. A rapariga era morena, de compleição

18 O SABOTADOR escura, e desviou o olhar do oficial quando este passou, o que, para aqueles patifes, era como uma admissão de culpa. — Posso ver a sua identificação, por favor? — O oficial estacou diante dela, estendendo a mão. — Desculpe? — Os seus papéis — repetiu o Hird, os seus dedos fazendo sinal impacientemente. Assustada, a mulher segurou a criança com um braço ao mesmo tempo que revolvia o interior da mala com a outra mão, mostrando por fim o cartão de identidade. — Kominic… — O Quisling olhou para a fotografia e em seguida para ela. — Que tipo de nome é este? Cigano? Judeu? — É eslavo — declarou a jovem em norueguês. — Mas, como pode ver, sou de Oslo. Vou apenas levar o meu filho a ver o pai que trabalha em Rauland. — O seu norueguês é bastante bom, minha senhora — disse o Quisling. — Mas é evidente que não tem sangue norueguês. É o quê, então? — Penso que seja bom, senhor, vivi sempre na Noruega — redarguiu ela, com um toque de nervosismo na voz. — Sou tão norueguesa quanto o senhor, juro. — Sim, bem, teremos de verificar isso quando chegarmos a Mæl. — O Quisling olhou uma vez mais para o cartão de iden- tidade. — Não desembarque sem primeiro falar comigo, minha senhora. Caso contrário, terei de a entregar, e ao seu filho, às autoridades. O medo ficou bem patente nos olhos da mulher. O filho, pressentindo a agitação da mãe, começou a choramingar. — Por favor, senhor, não estamos a fazer mal a ninguém. Peço- -lhe apenas que… — O seu filho parece doente, senhora. Talvez fosse melhor separá-lo dos restantes passageiros. — Ele está bem de saúde. Está a assustá-lo, apenas isso. — Se não tem nada a esconder, então não há razão para ter medo, garanto-lhe. — O Hird devolveu-lhe os documentos. — Desejamos apenas que a lei seja cumprida e que todos os judeus

19 ANDREW GROSS e os que não sejam de sangue puro se registem como tal. Agora, devo insistir em que pegue no seu filho e espere por mim lá den- tro. Resolveremos este assunto em Mæl. Claramente transtornada, a mulher sentiu dificuldade em reunir os pertences, e, agarrando o filho pela mão, conduziu-o até aos lugares de terceira classe. Um homem ali perto levantou-se e ajudou-a a juntar as coisas. Todavia, era difícil não notar que a in- quietação tomara conta dela. Era provável que os papéis estives- sem corretos. Ela podia ser judia ou cigana. Nordstrum escutara que tinham começado a reunir essas pessoas e a enviá-las para locais como Grini, um campo guardado nos arredores de Oslo, enquanto outras eram enviadas de barco para sítios mais lon- gínquos na Europa, ninguém sabia muito bem para onde. Talvez ela estivesse em fuga para as montanhas na companhia do filho. Quiçá tivesse lá alguém para os acolher. Em todo o caso, não estavam a incomodar nem a fazer mal a ninguém. Nordstrum olhou para a linha da costa. Já tinham percorrido cerca de três quartos do percurso. Tinham mais meia hora de viagem pela frente. O minúsculo ancoradouro do ferry, em Mæl, aninhado no sopé das montanhas, começava a avistar-se, a bombordo. — Filho da mãe. — Jens cerrou os dentes, indignado. — A usar o poder para aterrorizar uma mulher inocente. — Olhou para Nordstrum com uma espécie de brilho conspiratório, uma comunicação silenciosa que ambos compreendiam de imediato. Vamos a isso? E Nordstrum, igualmente furioso com o Quisling, fitou o amigo com resignação, como que incapaz de impedir o que iria passar-se. — Porque não? Vamos lá. Jens sorriu. — Isso é que é falar. Nordstrum levantou-se e fez sinal ao oficial para que se apro- ximasse. Ele e Jens recuaram até à popa, onde não havia tantos passageiros. O Hird acercou-se dele. — O que deseja?

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— Estava a fazer perguntas sobre aquela mulher? — ques- tionou-o Nordstrum. — Eu conheço-a. Se quiser, posso dar-lhe informações. — Existem recompensas para bons cidadãos como vocês. — Os olhos do Quisling brilharam, quiçá porque pensava no bene- fício que receberia por descobrir e entregar uma cigana ou uma judia em fuga. — Vamos mais para aqui — sugeriu Nordstrum, apontando para a amurada, Jens seguindo logo atrás. — Nem toda a gente pensa assim. Não quero que ninguém escute. O vento açoitava a superfície do lago, forte e gélido. A maio- ria dos passageiros estava no interior a tomar café ou no convés a meio do navio, apanhando sol. Um casal fumava um cigarro no segundo convés, junto à chaminé da popa, as rabanadas de vento agitando os seus cabelos. — Somos operários. Já a vimos em Oslo, tal como ela diz. — Nordstrum inclinou-se para o traidor. O Quisling deu um passo lateral. — Continue… As duas pessoas no segundo convés haviam-se entretanto virado e apontavam para as montanhas. Nordstrum olhou para Jens, e em seguida aproximou-se um pouco mais do Quisling. — Bem, sabe, o que se passa é o seguinte… Por trás, Jens levantou o oficial. O tipo mal teve tempo de se dar conta do que acontecia. — Mas que diabo… — Aqui está a tua recompensa — declarou Nordstrum, agar- rando as pernas do homem. — Aprecia o mergulho. Içaram-no sobre a amurada, o Hird esbracejando freneticamen- te, tentando pontapeá-los e soltando um grito abafado pelo vento, o rosto contorcido de medo e choque, e lançaram-no às águas geladas. O grito final do Quisling foi amortecido pelo ruído dos moto- res do Telemark Sun, avançando a dez nós por hora. — Heil Hitler para ti também! — bradou Jens, estendendo o braço na típica saudação nazi, enquanto o homem caía. O encontro do corpo com a água mal se escutou.

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