Intérpretes Negras Na Música Popular Brasileira: Vozes Dissonantes Marilda Santanna (IHAC-UFBA) [email protected]
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Intérpretes negras na Música popular Brasileira: vozes dissonantes Marilda Santanna (IHAC-UFBA) [email protected] A artista negra do Brasil ainda não foi devidamente estudada e valorizada nos seus aspectos sócio-históricos musicais de maneira interseccional. Pois a política de silenciamento do colonialismo atinge principalmente as vozes negras brasileiras. Neste sentido, o protagonismo da mulher negra na arte é algo ainda a ser estudo e questionado. A música e a história são campos do conhecimento que nos oferecem subsídios para um estudo desta natureza que pode fazer a diferença. Neste sentido, o que se pretende com o presente trabalho é apresentar resultados da pesquisa de pós-doutorado “Genealogia da intérprete negra na música popular brasileira: lócus e focos de resistência” iniciada em 5 de setembro de 2020 e concluída em 4 de setembro de 2021no Instituto de artes da UNICAMP. Ao longo da pesquisa, pude observar que a grande maioria destas artistas negras vieram da periferia, passaram a trabalhar muito cedo, tendo que abandonar os estudos para ajudar no sustento da família, e trabalharam como artista, mas por uma questão de sobrevivência do que de visibilidade. Obviamente que a partir dos anos 2000 este panorama começa a se modificar e ganha novos contornos a partir de 2010. Entretanto, bom lembrar que a própria indústria fonográfica “quebra” com o advento da pirataria, dos discos independentes e das plataformas digitais, modificando sobremaneira sua importância nos últimos decênios. Em especial, para este evento foram selecionadas algumas artistas negras analisadas tais como: Clementina de Jesus, Sandra de Sá, Luedji Luna e Larissa Luz. Para tanto, ao lançar mão destas “portadoras da voz poética”, pois nas palavras de Paul Zumthor “o intérprete teria o dom da vocação da palavra e do canto originando uma elite de porta-vozes” (1993: p. 60); tendo a música popular como fonte documental; além dos marcadores socais de raça e de classe é perceber como este apagamento vai se reconfigurando ao longo das décadas e do mercado. Pois, as realidades históricas destas intérpretes perpassam as adversidades comuns a outras mulheres negras e artistas cujos contextos históricos são essenciais para compreender e transformar este panorama. Por outro lado, o olhar de uma artista negra e pesquisadora neste ambiente se faz necessário para ocupar o lugar de fala de vozes dissonantes do senso comum. Mais ainda, o que se pretende com o presente trabalho é destacar as vozes negras e suas donas como protagonistas da história da música popular brasileira a partir de uma análise crítica das suas trajetórias artísticas em diferentes contextos históricos. A rainha Quelé e a identidade nacional No Brasil, os estragos provocados pela ditadura militar no cerceamento artístico, político e cultural continuava dando maus frutos. O golpe militar foi deflagrado em 1964 e Clementina desponta no cenário artístico brasileiro em dezembro do mesmo ano participando do show O Menestrel, ao lado do violonista Turíbio Santos, Cesar Faria e outros músicos, sob a direção do seu “descobridor” Hermínio Bello de Carvalho. Entretanto, nem este cerceamento conseguiu embaçar o seu brilho de rainha que “guardava em si a crueza da dicção negra forjada nos fundos das casas das tias que chegaram ao Rio no início do século XX” (TATIT apud CASTRO; MARQUESINI; COSTA; MUNHOZ, 2017, p. 53). Entretanto, é no espetáculo Rosa de ouro que obteve sucesso de público e de crítica o pontapé inicial da Carreira de Clementina de Jesus “que canta com a expressão dos seus ancestrais que da África nos trouxeram poesia e amor”, segundo crítica do Jornal do Commercio assinada por Luiza Barreto Leite (CASTRO et al., 2017, p. 109). Com então 64 anos de idade, após mais de 20 anos trabalhando como empregada doméstica, sem faltar um dia, a partideira da Glória alça voos jamais imaginados. Vai pousar em Dakar, no Senegal em abril de 1966 na delegação brasileira composta por Paulinho da Viola, Elizeth Cardoso, dentre outros. A voz de contralto de Clementina com suas variações melódicas que vão do canto a fala e vice-versa, transmite uma memória ancestral, aprendida oralmente na lida com sua mãe, lavadeira de ganho, que herdou de sua avó, ainda escravizada. Então, literalmente, Clementina aprendeu a cantar, como se diz, “de ouvido”. Ouvindo os jongos, pontos, caxambus, da boca de sua mãe. Nada mais ancestral do que aprender com os seus. Quelé era uma memória viva de uma cultura negra até então que aprendeu, ainda menina, em Valença, Rio de Janeiro, onde nasceu numa casinha pareada com a igreja do Carambita todo este repertório que irá reverberar, por meio de sua voz, aprendido por personagens que povoaram a sua infância como: A escrava cantadeira Tereza Mina, o violeiro capoeira Paulo Baptista, a rezadeira Amélia, a professora Maria Barbosa, o mestre João Cartolinha, a portelense D. Esther, o festeiro Mané Pesado, a mãe de santo Dona Neném e tantas outras figuras que compunham o vasto repertório popular na memória de Quelé. (CASTRO et al., 2017, p. 80). Clementina tem o samba como eixo do seu trabalho. É o Nacional-Popular indissociável do seu fazer artístico. Tempos em que o samba se torna um instrumento de resistência contra um regime de exceção e desce para o asfalto para ocupar os teatros e os Centros de Cultura como forma de resistência. E nada como uma voz autorizada, autenticada pela imprensa marrom e pelos seus representantes. Jornalistas, formadores de opinião, produtores de cultura e uma elite que se identificava com aquele discurso “do oprimido”. Clementina, neste sentido, representava a voz do povo negro oprimida pelo regime e cerceada nas suas necessidades mais básicas, emprego digno e casa própria. Assim, sua voz ecoa e representa uma coletividade de mulheres matriarcas que clama por igualdade de direitos e respeito às matrizes. Apoiada em bell hooks, ouso dizer que Clementina referencia as memórias familiares matriarcais, usa a linguagem decolonial num canto contra hegemônico, libertador. “Benguelê, ê, benguelê, ê, benguelê oh mamãe simba, benguelê ...” Clementina é um patrimônio imaterial da música popular brasileira. Sua voz e seu legado são referências ancoradas na memória e na tradição do povo negro escravizado que se liberta das amarras pelo seu canto anunciando a bonança. Sua voz é um símbolo de resistência e do legado da Cultura afro-brasileira no país. Entretanto, não foi suficiente para libertá-la da opressão de uma sociedade que ainda precisa ser representada em seu pleito por uma figura masculina. No caso de Clementina, Hermínio Bello de Carvalho “seu Salvador”. Vale Tudo Sandra de Sá? Nos anos 1980 o “pacto da democracia racial” que já estava esgarçado, se rompe e novas tecnologias da indústria fonográfica afia seus tentáculos e quem ganha com isso é um novo perfil de artista que surge nesta virada da tecnologia como aliada em novas sonoridades. Estamos falando da rainha do soul brasileiro, Sandra de Sá. Mas, afinal, o que torna Sandra de Sá uma referência na Música Preta Brasileira? Primeiro, uma voz privilegiada, talhada para canções que exigem punch vocal brusco; além de melodias que exige uma voz cheia de vibrato no final de frase. Segundo, um diálogo bastante fértil com o mundo pop brasileiro que brotava no cenário musical cuja produção fonográfica frutificava estimulada pela importação de instrumentos eletroeletrônicos de ponta que transformavam os teclados em verdadeiras orquestras de sopro e de cordas com riffs que grudavam feito chiclete nos ouvidos da juventude periférica e do centro também, consumindo vorazmente os arranjos de Guto Graça Melo, que a esta altura era o produtor fonográfico do terceiro álbum de Sandra de Sá lançado também pela antiga RGE e atual Som Livre, afiliada da Rede Globo de televisão. A artista, com quarenta anos de carreira, sai dos holofotes do maintream, se reinventa e busca parcerias para continuar no mercado, criando Projetos como Música Preta Brasileira ao lado do cantor Toni Garrido e Zé Ricardo apresentado nas periferias do Rio de Janeiro de 2001 a 2005, cantando músicas de Tim Maia, da fase Racional e de Jorge Benjor, do disco Tábua de Esmeralda; cria o projeto Natal + colorido ao lado da apresentadora Daniele Suzuki, arrecadando brinquedos e livros para distribuir na periferia do Rio de Janeiro; Trabalhou no projeto "Quilombola", visitando quilombos pelo Brasil e participando das ações da Fundação Palmares e do Seppir. Sandra de Sá apresenta uma nova negritude que não está preocupada em ser nacional. Mas, sim, popular, massiva e periférica. Seu canto que é rasurado1, assim como o de Clementina, pois incomoda aos ouvidos adestrados para um canto macio, leve e desprovido de discurso de origem representa uma comunidade, também periférica, à margem. Mesmo circulando nos grandes veículos de comunicação, se faz necessário uma “maquiagem” no seu visual, que insiste em transitar pelas periferias do funk e do Soul que “ri da minha roupa, ri do meu cabelo, ri da minha pele”. Seu “cabelo enrolado todos querem imitar, sarará crioulo”. 1 Maiores informações sobre a voz como rasura ver Diniz (2003) A verdade é que “todo brasileiro tem sangue crioulo, tem cabelo duro”. Esta revelação põe em xeque as origens de que “aqui” ninguém é branco (SOVIK, 2009). Sandra também sofre todas as mazelas de sua origem. Mulher, negra, periférica, lésbica se interseccionam em encruzilhadas de opressões que atravanca a fluidez de uma carreira estável, digna de uma artista do seu quilate. Sabendo que no pensamento colonial, cisheteropatriarcal, judaico-cristão a mulher negra é o outro do outro; as vozes destas artistas são focos de resistência, persistência, insistência e reexistência. Por isto, algumas importantes ações para minimizar estas “políticas de silenciamento do colonialismo” (KILOMBA, 2019, p. 41) são fundamentais. Com Clementina a voz do samba, dos jongos, curimãs, caxambus volta as suas origens e o Nacional-popular adquire contornos políticos.