A FORÇA FEMININA INSURGENTE E EMERGENTE NO : , A MULHER NEGRA NO ENSINO DE HISTÓRIA

Ana Lúcia da Silva – DHI – PPH - UEM

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Resumo: Com base no aporte teórico dos Estudos Culturais este trabalho valoriza a cultura popular negra. Os Estudos Culturais dão visibilidade e valorizam a cultura popular, sem a hierarquização de culturas, como baixa cultura X alta cultura ou cultura popular X cultura erudita. No simpósio temático: “Pedagogias culturais e mídias”, objetiva-se apresentar a análise das pedagogias culturais de uma das matrizes do samba carioca, ou seja, o samba-enredo “Dona Ivone Lara o enredo do meu samba”, apresentado pela escola de samba Império Serrano, na festa do carnaval em 2012 e na mídia, e que rendeu homenagem a Dona Ivone Lara. Esta mulher negra é uma das Divas insurgentes e emergentes na sociedade brasileira contemporânea, que rompeu com as fronteiras do racismo e do machismo, e fez História no universo do samba. Por meio da trajetória de vida de Dona Ivone Lara, propõe-se analisar as condições de vida, trabalho e educação do povo negro no Brasil após a abolição da escravidão em 1988 e ao longo do século XX, dando visibilidade as mulheres negras na sociedade e no universo do samba, a fim de revisitar a História de nosso país. Essa preocupação está em consonância com a Lei n. 10.639/2003 que tornou obrigatório o estudo da História africana e afro- brasileira nas instituições de ensino e incluiu o dia “20 de novembro” – Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar; e a Resolução n. 2/2015 que trata sobre a formação docente inicial e continuada, priorizando uma Educação democrática, pautada na diversidade, combatendo-se múltiplas práticas de preconceito e de discriminação. Ao depreender que as pessoas, desde a infância a fase adulta, não aprendem apenas na escola, e são interpeladas na vida cotidiana por artefatos culturais da mídia, a análise das pedagogias culturais no samba-enredo possibilitará pensar o samba como um dos recursos pedagógicos no Ensino de História, ao se fazer a abordagem da História do povo negro no Brasil, da História da África e da cultura afro-brasileira. Busca-se expor como a escola de samba Império Serrano e sua comunidade propalaram pedagogias culturais com o samba-enredo e enalteceram Dona Ivone Lara e produziram Arte, ao apresentá- los na festa do carnaval carioca, permitindo-se problematizar questões candentes ao feminismo negro na História do Brasil, dialogando-se com as áreas de Educação, História e Arte.

Palavras-chave: História do Brasil; Ensino de História; Samba.

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Introdução

Por mais de trezentos anos africanos e africanas, e seus descendentes trabalharam no Brasil submetidos a escravidão, construindo o atual país com outros povos, o colonizador português, indígenas, imigrantes de diferentes nacionalidades e migrantes de diversas regiões.

Após várias insurgências e práticas de contestação do povo negro e de representantes do Movimento Abolicionista contra a escravidão negra no Brasil e luta em prol da liberdade, houve o fim gradual do trabalho compulsório, culminando no fim da escravidão em treze de maio de 1888.

A Princesa Isabel assinou a Lei Áurea que pôs fim a escravidão no Brasil, mas não garantiu políticas públicas para a inclusão do povo negro a sociedade. Desta maneira, negros e negras organizados por meio da imprensa negra e do Movimento negro em suas diversas faces e contextos históricos, tiveram que lutar por políticas públicas de combate ao racismo, para o acesso à Educação e ao trabalho, a fim de superar as desigualdades sociais e raciais.

Neste início do século XXI, após cento e quinze anos do fim da escravidão no Brasil, uma das grandes conquistas do Movimento Negro foi a aprovação da Lei n. 10.639/2003 que tornou obrigatório o estudo da História africana e afro-brasileira nas instituições de ensino de nosso país e incluiu o dia “20 de novembro” – Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar (BRASIL, Lei n. 10.639, 2003). Além disso, por meio desta lei e da Lei n. 11. 645/2008 tornou-se obrigatório o estudo da História africana, afro- brasileira e indígena na Educação Básica e no Ensino Superior (BRASIL, Lei n. 11. 645/2008). No Estado do Paraná, em 2010, houve a aprovação da Resolução n. 3.399, que tornou obrigatório a organização de Equipes Multidisciplinares nas escolas da rede pública estadual, com o objetivo de promover o estudo e o desenvolvimento de atividades pedagógicas sobre a História africana, afro-brasileira e indígena na Educação Básica (PARANÁ, Resolução n. 3.399, 2010).

Nesta perspectiva, essa legislação educacional possibilitou que outros sujeitos históricos ganhassem visibilidade no curricular escolar e nos projetos políticos

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pedagógicos das escolas e instituições de Ensino Superior, fazendo ecoar outros saberes, outras identidades, narrativas, histórias e práticas culturais; distanciando-se do ensino de História tradicional e eurocêntrico, que por séculos e décadas deu ênfase aos “grandes homens” da esfera política e/ou religiosa, silenciando a História de indígenas, negros, mulheres, crianças, entre outros sujeitos anônimos.

O currículo prescrito é um artefato social e cultural, um território ou campo de disputas, permeado por relações de poder, concepções de mundo, ideologias, culturas, entre outros aspectos da vida social. O currículo não é neutro. A seleção de conteúdos que compõem o currículo escolar, pode favorecer a inclusão e/ou a exclusão de saberes de determinados grupos sociais e/ou etnias, identidades, histórias e práticas culturais (BITTENCOURT, 2012; SILVA, 2006; GOODSON, 1995).

Por isso, afirma-se que a política curricular enquanto currículo efetua um processo de inclusão e exclusão de saberes e indivíduos no espaço escolar. Enfim, “o currículo estabelece diferenças, constrói hierarquias, produz identidades” (SILVA, 2006, p. 12). Além disso, o currículo é um espaço de significação, intimamente vinculado ao processo de formação de identidades sociais e culturais:

[O] currículo também produz e organiza identidades culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais... Dessa perspectiva, o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos. O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz (SILVA, 2006, p. 27). Neste sentido, as Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, e a Resolução n. 3.399/2010 são conquistas históricas dos Movimentos sociais negro e indígena no Brasil, de professores e professoras atentos a diversidade étnica e cultural de nossa gente, sem a hierarquização de povos, identidades, saberes e culturas. Uma Educação atenta a diversidade, desconstruindo-se o paradigma tradicional e eurocêntrico.

Nos Estudos Culturais não há a hierarquização de saberes, culturas, povos e/ou identidades. Os Estudos Culturais dão visibilidade e valorizam a cultura popular, sem a

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hierarquização de culturas, como baixa cultura X alta cultura ou cultura popular X cultura erudita. Assim, nos Estudos culturais depreende-se a importância da cultura popular negra e da análise das pedagogias culturais nos artefatos culturais da mídia. Os artefatos culturais da mídia propalam pedagogias culturais, ou seja, ensinamentos, práticas culturais, formas de pensar e estar no mundo, produzindo significados, sentidos e subjetividades no mundo contemporâneo (ANDRADE, 2016; ESCOSTEGUY, 2010).

Com base no aporte teórico dos Estudos Culturais, neste texto objetiva-se destacar as possibilidades de revisitar a História do Brasil a partir da cultura popular negra, dando visibilidade ao protagonismo da mulher negra ao proceder a análise das pedagogias culturais em um dos artefatos culturais da mídia, o samba-enredo: “Dona Ivone Lara o enredo do meu samba”, apresentado pela escola de samba Império Serrano, na festa do carnaval em 2012 e na mídia, e que homenageou a Dama do samba, Dona Ivone Lara.

Esse texto está estruturado da seguinte forma: em primeiro momento, eu ressalta-se as condições de vida do povo negro no Brasil após o fim da escravidão e a luta do Movimento negro; em segundo momento, se apresentará uma breve biografia de Dona Ivone Lara e a análise do samba enredo “Dona Ivone Lara o enredo do meu samba”, da escola de samba Império Serrano, edição do carnaval 2012; e ao final serão tecidas as considerações finais.

O negro no Brasil após o fim da escravidão

Com o fim da escravidão negra em treze de maio de 1888 o povo negro conquistou a liberdade, porém sem acesso a cidadania. Por isso, negros e negras se organizaram para superar o legado da escravidão, racismo, pobreza e exclusão social. Pois, a elite que adentrou o Estado brasileiro elegeu como prioridade a política de incentivo a imigração e de branqueamento do povo.

No século XIX, o processo de abolição da escravidão no Brasil foi acompanhado da política de incentivo a imigração. Na medida em que o governo brasileiro libertava o povo negro gradualmente, por meio de práticas políticas, como a proibição do tráfico negreiro, Lei do Ventre Livre, Lei do Sexagenários conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, até culminar na Lei

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Áurea de 1888; na vida cotidiana ocorreram várias práticas de resistência negra, como revoltas, fugas, formação de quilombos, entre outras; e a organização do Movimento Abolicionista que também pressionava o Parlamento acerca do fim da escravidão, destacando-se algumas lideranças negras, tais como José do Patrocínio, Luiz Gama, André Rebouças, Castro Alves, Maria Firmina, Chiquinha Gonzaga, entre outros e outras (COSTA, 2010; BRASIL, A cor da cultura - Heróis de todo Mundo, 2004; MALERBA, BERTONI, 2001; MALERBA, 1999; MOTT, 1991).

A abolição da escravidão negra no Brasil não foi uma dádiva da princesa Isabel que assinou a Lei Áurea em 1888. Foi um processo gradual o fim do trabalho compulsório em nosso país. Pois, a escravidão já era questionada na vida cotidiana por meio das práticas de resistência negra e o Movimento Abolicionista. Além destes fatos, as mudanças ocorridas na economia mundial, principalmente após a Revolução Industrial, às pressões dos ingleses para que o governo brasileiro colocasse fim a escravidão, contribuíram para que a princesa Isabel assinasse a Lei Áurea. Uma lei que tornou negros e negras livres, mas sem cidadania e condições dignas para viver e/ou se integrar a sociedade brasileira.

Após a abolição da escravidão em 1888, os ex-escravos, ou seja, os negros e as negras continuaram sendo alvos do racismo, empregava-se mais os imigrantes, em detrimento do povo negro. Por isso, denuncia-se o racismo e a exclusão social e racial a que foi relegado o povo negro em nosso país:

O processo de abolição foi acompanhado pelo processo de imigração. Conforme se libertava, o negro deixava de ser mão-de-obra fundamental à produção, pois o trabalho nas lavouras e nas indústrias começou a ser feito pelos imigrantes. O ex-escravo tornou-se desempregado, foi morar nas favelas das cidades; no latifúndio, quando ali permaneceu, embora livre, continuou sendo tratado como escravo. A mulher virou empregada doméstica, para quem se pagava um salário simbólico e a quem se remunerava com roupas usadas e sobra de alimento; por vezes, a prostituição tornou-se uma alternativa de sobrevivência (MALERBA, BERTONI, 2001, p. 60).

O governo brasileiro incentivou a imigração para o Brasil, a fim de promover a substituição gradual do trabalho escravo para o trabalho livre, e mais, o branqueamento da

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população. Naquela época indígenas e negros eram considerados “raças degenerativas”. Assim, para alguns representantes da elite brasileira, desenvolver o país significava também branquear o povo brasileiro.

Na passagem do século XIX para o século XX, principalmente entre os anos de 1870 e a década de 1920 houve a propagação das teses do chamado racismo científico no Brasil, índios e negros eram concebidos como “inferiores”, portanto deveriam ser eliminados no processo de constituição do povo. Para representantes da elite, a diversidade racial oriunda do processo de colonização portuguesa, era uma ameaça a "construção de uma nação que se pensava branca" (MUNANGA, 1999, p. 51). O projeto de desenvolvimento do país estava associado à questão racial, uma mentalidade caminhava em direção para a afirmação da ideologia do branqueamento da população. Por isso, o incentivo a imigração era uma forma de branquear a população brasileira, para que nossa gente cada vez mais fosse clareando a pele, tornando-se branca, a ponto de eliminar a presença indígena e negra (JACCOUD, 2008; HOFBAUER, 2006; SKIDMORE, 1976; MUNANGA, 1999).

Nesse processo de branqueamento do povo brasileiro, o branco que era concebido como “raça superior” e que este seria predominante na formação da nação, e os não- brancos desapareceriam (SKIDMORE, 1976; NASCIMENTO, 2017).

Diante da prática política do Estado brasileiro de incentivo a imigração, do ideal de branqueamento do povo e da ausência de políticas públicas para a inclusão do povo negro a sociedade, constata-se que negros e negras após a abolição da escravidão em 1888 conquistaram a liberdade, permaneceram excluídos e relegados ao racismo, à pobreza, as desigualdades sociais e raciais, desde o final do século XIX ao século XX. As teorias raciais oriundas da Europa e dos Estados Unidos reverberaram no pensamento da elite brasileira que foi se constituindo, concebendo-se a diversidade étnica e cultural como um problema para o chamado "progresso" e projeto de "civilidade" do Brasil.

Sendo assim, no final do século XIX e ao longo do século XX, negros e negras se organizaram para lutar pela cidadania, propiciando o surgimento do Movimento Negro, em suas múltiplas faces, como a imprensa negra, a Frente Negra Brasileira (FNB), o Teatro Experimental do Negro, o Movimento Unificado Contra a Discriminação Étnico-

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Racial, o Movimento Negro Unificado (MNU), o Movimento de Mulheres Negras (MMN), entre outras formas de organização. O Movimento Negro lutou e luta pela cidadania do povo negro em nosso país, produz saberes e estratégias para pressionar o Estado e reivindicar políticas públicas de combate ao racismo, as desigualdades sociais e raciais, e também de acesso à Educação e ao trabalho (GOMES, 2017; ZUBARAN, 2017; CARNEIRO, 2011).

Nesse processo histórico de luta do Movimento Negro há algumas conquistas, tendo como exemplos: o reconhecimento de que existe racismo no Brasil, visto que na Constituição de 1988 esta prática foi e é concebida como crime inafiançável (BRASIL, Constituição, 1988); a obrigatoriedade do estudo da História da África, da História e cultura afro-brasileira nas escolas e instituições de Ensino Superior de nosso país; a política de ação afirmativa do Estado brasileiro, como as cotas raciais nas Instituições de Ensino Superior e em concursos públicos. A Lei n. 12.990/2014, estabeleceu a reserva de vinte por cento das vagas para negros em concursos públicos (BRASIL, Lei n. 12.990, 2014. Embora estas conquistas do Movimento Negro, no Brasil ainda persistem as desigualdades sociais e raciais, que impedem a plena cidadania do povo negro.

Enfim, pode-se ressaltar que após o fim da escravidão o Estado brasileiro não se preocupou em estabelecer políticas públicas para mudar a realidade social do povo negro, visto que estava voltado para o incentivo a imigração, o ideal de branqueamento e a esperança no projeto de desaparecimento dos não-brancos, principalmente, de negros, que eram concebidos como “inferiores”. Com o fim da escravidão o povo negro conquistou a liberdade, porém sem cidadania plena, devido a existência das desigualdades sociais e raciais.

No Brasil República contemporâneo, mesmo tendo conquistas no final do século XX e início do século XXI, o Movimento Negro prossegue sua luta contra o racismo estrutural e camuflado na sociedade, pois este favorece a permanência das desigualdades sociais e raciais.

A cultura popular negra canta a mulher insurgente e emergente no samba: Dona Ivone Lara (1921 - 2018)

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Após fim da escravidão negros e negras tiveram que lutar pela cidadania. No início do século XX, na capital do Brasil República, no , havia uma grande concentração da população pobre, de negros e negras no espaço urbano, fazendo surgir vários cortiços, uma população vivendo em condições paupérrimas.

Na década de 1920, quando ocorreram as reformas urbanas na capital do Brasil, houve um processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro, durante o governo do prefeito Pereira Passos, o povo pobre e negro foi expulso do espaço urbano, muitos foram viver nos morros e assim surgiram as favelas, outros foram viver na periferia, ou seja, nos subúrbios (FERREIRA, 2004).

No Brasil, no contexto de desigualdades sociais e raciais, por conta do racismo e machismo, a mulher negra foi alvo de múltiplas práticas de discriminação, de gênero, raça, classe e sexual, ou seja, por ser mulher, negra, pobre e a difusão de estereótipos acerca da mulher negra no imaginário social, tais como: a mulher negra é “boa” de cama, “boa” cozinheira e para a realização de trabalhos domésticos. Os estereótipos difundidos no imaginário social estabelecem papéis sociais tanto para as mulheres negras como para os homens negros, desqualificando-os (CARNEIRO, 2011; RIBEIRO, 2018). Por isso, na contemporaneidade a filósofa negra Djamila Ribeiro pontua que “[u]ma mulher negra terá experiências distintas de um mulher branca por conta de sua localização social, vai experenciar gênero de uma outra forma” (RIBEIRO, 2017, p. 61). E mais, em decorrência da difusão de estereótipos “[a] mulher negra ainda é a gostosa do samba ou a empregada; e o homem negro, o malandro ou ladrão” (RIBEIRO, 2018, p. 49).

Neste sentido, é interessante depreender o lugar de fala da mulher negra na sociedade brasileira. Foi nesta sociedade desigual, machista e racista que em treze de abril de 1921 nasceu Yvonne Lara da Costa, filha de João da Silva Lara e de Emerentina Bento da Silva. O pai de era violinista e componente do Bloco dos Africanos e a mãe era cantora do Rancho Flor do Abacate. Dona Ivone Lara não tem registros fotográficos de sua infância. Esta mulher negra cresceu, estudou e se formou em Serviço Social, era funcionária pública, casou-se aos vinte e cinco anos com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, o presidente da escola de samba Prazer da Serrinha. Ela teve dois filhos Odir e

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Alfredo (BURNS, 2009; MACEDO, 2007; DUNCAN, 2007) Dona Ivone Lara denunciou que a mulher não era criada para ser sambista. Por isso, ela falava:

Quem me criou achava que eu não devia me meter no samba, mas, sim, seguir meus estudos. Mas, como eu gostava de fazer meus versos, eu passava para meu primo, o Mestre Fuleiro, e ele os apresentava aos sambistas como se fossem dele. Nessa época, eu nem frequentava escola de samba (MACEDO, 2007, p. 85).

Dona Ivone Lara também relatou que quando viveu com a tia em Madureira, subúrbio carioca, esta era avessa ao samba. A tia dizia que mulher não devia se envolver com o samba. Sendo assim, Dona Ivone Lara reafirmava:

[A] minha tia não permitia. Ela dizia: “Você estudou, não é possível você se meter em samba, você gostar de samba, você é uma moça prendada... Não! De jeito nenhum!” Eu fazia as músicas escondida e dava para o Fuleiro, e ele apresentava como sendo dele (SANTOS, 2010, p. 41). Nas narrativas da trajetória de vida de Dona Ivone Lara fica evidente o preconceito relativo ao universo do samba existente na sociedade brasileira, e até mesmo entre familiares, por conta dos valores, costumes e práticas culturais do período que acabavam designando papéis sociais para homens e mulheres.

Dona Ivone Lara não se limitou aos papéis sociais de mulher prendada, esposa e mãe, assistente social e enfermeira. Nos anos de1960, no período em que não se aceitava mulher como compositora de samba, devido ao machismo, ela continuou compondo , que eram apresentados pelo seu primo, o compositor Mestre Fuleiro. Embora o machismo daquela época, Dona Ivone Lara não desistiu de apresentar seu talento no mundo do samba. Esta mulher negra insurgente e emergente, superou obstáculos impostos as mulheres de sua época.

Foi em 1965 que Dona Ivone Lara compôs o samba-enredo “Os cinco bailes da história do Rio” com Silas de Oliveira e Bacalhau, e se tornou a primeira mulher a integrar o grupo de sambistas compositores da escola de samba Império Serrano, fundada em 1947. O samba-enredo fazia alusão aos cinco bailes tradicionais ocorridos no Rio, para festejar fatos que marcaram a história: a festa de vinte anos de fundação da cidade (1585);

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o festejo em comemoração a mudança da capital do vice-reino do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro (1763); a aclamação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves (1818); o baile de Independência do Brasil (1822); e o último baile do Império, realizado na Ilha Fiscal. Dona Ivone Lara se tornou a grande Dama do Samba (RANGEL, FREITAS, 2014; BURNS, 2009; MACEDO, 2007).

A Império Serrano, é uma das escolas tradicionais de Madureira, nesta agremiação carnavalesca Dona Ivone Lara fez História e desfilou na ala das baianas. Ela também se destacou como compositora, principalmente após 1965, quando passou a fazer parte do grupo de compositores.

Dona Ivone Lara se consagrou no universo do samba como compositora e intérprete da música popular negra. Por conta de seu protagonismo na vida e no samba, ela se tornou a Dama do Samba, também conhecida como a Rainha do samba.

A Dama do Samba

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Fonte: DUNCAN, Zélia. Álbum de retratos: Dona Ivone Lara. Rio de Janeiro: Memória Visual; Edições Folha Seca, 2007. p. 56.

Eu selecionei essa foto da capa do LP de Dona Ivone Lara “Samba, minha verdade, minha raiz” (1978), por ser muito significativa ao se vislumbrar a trajetória de vida desta mulher negra. Na foto ela está no centro da roda de bambas, compositores e instrumentistas. Uma mulher que ousou lutar para alçar voo no universo do samba, sendo ladeada por onze homens, em sua maioria negros. Para a Dama do samba estar ai nesta foto que fez a representação da roda de bambas, tocando e cantando alegremente no quintal de uma casa simples com três gaiolas de passarinhos, ela teve que superar o machismo presente na sociedade brasileira e na própria família como já mencionei anteriormente.

Em 2012, na festa do carnaval, a escola de samba Império Serrano não integrava o Grupo Especial das escolas de samba carioca (LIESA, Outros carnavais - Carnaval 2012, 2019). Neste ano, esta agremiação carnavalesca homenageou Dona Inove Lara, mulher negra insurgente e emergente, com o samba-enredo: “Dona Ivone Lara o enredo

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do meu samba”, composto por Arlindo Neto. Segue a letra deste artefato cultural carnavalesco:

Serra nos anos dourados da nossa história Desperta e vem cantar feliz O jongo e o samba de raiz Do enredo desse carnaval Que não é sonho meu pois ela é real Ivone Lara la Quero ver quem não vai se embalar No encanto de Tiê Oia Lá Oxá Desfilando em verde e branco E a sinfônica demonstra o seu amor Batendo forte no balanço do agogô

A rainha da casa, mãe esposa de fé Diz que o dom de compor é coisa de mulher Como o mestre venceu desafio ôôô Nos cinco bailes da História do meu Rio

Dona Dama Diva... Estrela do samba de luz radiante Show no opinião Parceira da bambas carreira brilhante Com a liberdade num lindo alvorecer Sonha nossa terna mãe baiana Seu sorriso negro não dá pra esquecer E hoje nosso império aclama

Dona Yvone

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Lara la Laia Lara Laia Lara Laia Na primeira estrofe do samba-enredo, nas pedagogias culturais se ensinou uma História real, a de Dona Ivone Lara, mulher negra que se consagrou no samba, um dos grandes ícones e baluartes da agremiação carnavalesca verde e branco, ou seja, da escola de samba Império Serrano, dando-se visibilidade as expressões culturais afro-brasileiras: o jongo e o samba.

Na segunda estrofe do samba-enredo o tempo verbal que imperou foi o passado de glória de Dona Ivone Lara no samba. Os versos deram destaque ao samba-enredo “Os cinco bailes da história do Rio” que Dona Ivone Lara compôs com Silas de Oliveira e Bacalhau em 1965 (RANGEL, FREITAS, 2014; BURNS, 2009; MACEDO, 2007).

Assim, Dona Ivone Lara com seu talento foi abrilhantando o samba, em um contexto que era majoritariamente de homens. Ela transgrediu a sociedade brasileira desigual, racista e machista, mostrando que mulher pode estudar e ser o que ela quiser, assistente social, enfermeira, mãe, esposa, compositora, sambista, enfim bamba.

Na terceira estrofe, na festa do carnaval a comunidade da Império Serrano aclamou o talento, a alegria e o sorriso negro de Dona Ivone Lara, nomeando-a de “Dona Dama Diva...”. Dessa forma, exaltou-se a trajetória de vida dessa mulher negra no samba.

Na última estrofe, Dona Ivone Lara foi novamente reverenciada pela comunidade da Império Serrano, pelo povo negro e do samba. Assim, cantou-se “Dona Yvone/ Lara la Laia/ Lara Laia/ Lara Laia”.

Assim, com base na história e trajetória de vida de Dona Ivone Lara, eu afirmo a relevância de analisar as pedagogias culturais no samba-enredo em tela, pois este possibilita pensar a Arte carnavalesca no Ensino de História, ou seja, a abordagem da temática sobre a mulher negra na História do Brasil, dando-se visibilidade a História e cultura afro-brasileira. A Dama do samba é um dos grandes exemplos de vida para as mulheres, em especial para nós mulheres negras.

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Neste início do século XXI, a Dama do samba se despediu deste mundo. Em dezesseis de abril de 2018, Dona Ivone Lara, aos noventa e sete anos de idade faleceu, e seu corpo foi velado na quadra da escola de samba Império Serrano, onde se renderam homenagens a ela e se celebrou a vida e a morte desta mulher negra sambista. A imprensa noticiou a morte de Dona Ivone Lara e fez homenagens, publicizando a trajetória de vida e luta dela no universo do samba, ao romper com as fronteiras do machismo e preconceito na década de 1960 (BRASIL - EL PAÍS, 2018; PARDO, 2018).

Dona Ivone Lara e outras mulheres negras como , Jovelina Pérola Negra, entre outras, abriram caminhos e quebraram tabus na sociedade machista e racista, de forma preponderante a partir da década de 1960. Elas desbravaram os caminhos para outras mulheres sambistas no universo do samba carioca, constituindo-se em exemplos de vida, lutas e resistências.

Considerações finais

Na História do Brasil República contemporâneo, Dona Ivone Lara e outras mulheres negras são exemplos de mulheres insurgentes e emergentes. Por meio do estudo de suas trajetórias de vida, da análise das pedagogias culturais nos artefatos culturais da mídia, como o samba-enredo, da escola de samba que teceu homenagem a Dama do Samba, é possível se repensar o Ensino de História para além da Historiografia tradicional e eurocêntrica, problematizando-se as relações de gênero, as desigualdades sociais e raciais, o racismo, o machismo, os papéis sociais destinados aos homens e as mulheres em diferentes contextos históricos e períodos da História humana.

Em suma, pode-se afirmar que Dona Ivone Lara, é uma das Divas insurgentes e emergentes na sociedade brasileira contemporânea, que rompeu com as fronteiras do racismo e do machismo, e fez História no universo do samba, sendo exemplo principalmente para meninas, adolescentes e mulheres negras.

No Ensino de História, no espaço escolar, historicamente as mulheres negras foram e/ou são mencionadas quando se estuda a escravidão na colonização portuguesa na América; e após o fim da escravidão suas trajetórias de vida na História do Brasil são silenciadas, devido a narrativa tradicional e eurocêntrica.

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Assim, a trajetória de vida de Dona Ivone Lara, a Dama do Samba e a análise das pedagogias culturais no samba-enredo permitem revisitar a História do Brasil, e fazer a abordagem da História e cultura afro-brasileira, como também a produção de saberes e subjetividades positivas acerca da identidade negra, da mulher negra, questionando estereótipos consagrados na vida social.

Por isso, com base nos Estudos Culturais eu ressalto a relevância da pesquisa e do estudo da cultura popular negra, de artefatos culturais da mídia na formação docente inicial e continuada de professores e professoras, para que outros saberes, sujeitos, identidades, histórias e práticas culturais ecoem no currículo escolar e nas salas de aula da Educação Básica e da Academia. Esta preocupação está em consonância com e a Resolução n. 2/2015 que trata sobre a formação docente inicial e continuada, priorizando uma Educação democrática, pautada na diversidade, combatendo-se múltiplas práticas de preconceito e de discriminação.

Referências ANDRADE, Paula Deporte de. A invenção das pedagogias culturais. In: CAMOZZATO, Viviane Castro. CARVALHO, Rodrigo Saballa de. ANDRADE, Paula Deporte de. (orgs.). Pedagogias culturais: a arte de produzir modos de ser e viver na contemporaneidade. Curitiba: Appris Editora, 2016. p.19-32. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2012.

BRASIL - EL PAÍS. MORTE DE DONA IVONE LARA (1921-2018). Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/17/politica/1523963309_464951.html. Acesso em: 17 abr. 2018

BRASIL. Lei n. 10.639/2003, a obrigatoriedade da História da África e cultura afro- brasileira nas instituições de ensino no Brasil. BRASIL. Lei n. 11. 645/2008, a obrigatoriedade da História e cultura africana, afro- brasileira e indígena nas instituições de ensino no Brasil. BRASIL. Lei n. 12.990/2014, estabeleceu a reserva de vinte por cento das vagas para negros em concursos públicos.

BRASIL. Projeto pedagógico “A cor da Cultura”, Programas “Heróis de Todo mundo”, personalidades negras abolicionistas, 2004. Disponível no site: Acesso em: 10 jun. 2019

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