Ano Internacional da ON-LINE

Revista do Instituto Humanitas IHUNº 474 | Ano XV 05/10/2015

ISSN 1981-8769 (impresso) LuzDescobertas e ISSN 1981-8793 (online) incertezas

Carlo Rovelli: A grande beleza

Aba Cohen: A encantadora (e complexa) realidade

Marcelo Gleiser: Descobertas e incertezas sobre o “suor dos átomos”

Sandro Chignola: Luciana Barbosa: Joviano Gabriel Maia Uma antropologia Teresa d’Ávila e Mayer: processual para a presença na Do privado ao Comum, pensar novos sujeitos ausência práticas de uma reforma urbana radical e o comum Editorial Ano Internacional da Luz. Descobertas e incertezas

A Unesco, juntamente com outras Ano Internacional da Luz. “A inicia- entidades de âmbito global, declarou tiva visou principalmente aumentar a o ano de 2015 como o Ano Internacio- consciência global sobre como a luz nal da Luz. A data celebra os mil anos e suas tecnologias associadas podem da obra de Abu Ali al-Hasan Ibn Al- ser capazes de promover o desenvol- -Haitham, ou Alhazen, na forma lati- vimento sustentável”, avalia. nizada (965-1040), que escreveu em Carlos Roberto dos Santos, pro- 1015 a obra Kitab al-Manazir, seu li- fessor convidado da Universidade Fe- vro de ótica. Neste ano completa-se, deral do Rio Grande do Sul – UFRGS, destrincha as propriedades de Luz e também, o centenário da publicação A IHU On-Line é a revista do Instituto discorre sobre os avanços tecnoló- do célebre texto de Albert Einstein Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi- sobre a Teoria da Relatividade Geral. gicos ocorridos a partir da fotônica. cação pode ser acessada às segundas-feiras O centenário da importante des- “Cabe destacar que a fotônica surgiu no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço coberta de Einstein é que suscita o por causa da invenção do laser, um debate da edição desta semana da dispositivo que revolucionou várias www.ihuonline.unisinos.br. revista IHU On-Line. áreas, entre as quais as da saúde”, A versão impressa circula às terças-feiras, a Contribuem para o debate Carlo esclarece. partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo Por ocasião do quinto centenário Rovelli, professor no Centro de Física da IHU On-Line é copyleft. Teórica da Universidade de Marseille, do nascimento de Teresa de Ávila, na França, que apresenta o universo que se celebra no próximo dia 15 de Diretor de Redação a partir de sua grande e invisível be- outubro, publicamos as entrevistas A Inácio Neutzling ([email protected]) leza, a física quântica. “Acho que os feminilidade da mística em Teresa ensinamentos mais importantes da d’Ávila, de Faustino Teixeira; e Te- Jornalistas física são que não devemos acreditar resa d’Ávila. A presença na ausência, João Vitor Santos - MTB 13.051/RS muito na intuição direta: devemos de Luciana Barbosa. ([email protected]) estar prontos para mudar a mente”, As duas entrevistas podem ser li- Leslie Chaves – MTB 12.415/RS pondera. das tendo presente a revista IHU On- ([email protected]) 2 Aba Cohen, professor e pesquisa- -Line, no. 460, sob o título A mística Márcia Junges - MTB 9.447/RS dor da Universidade Federal de Minas nupcial. Teresa de Ávila e Thomas ([email protected]) Gerais, faz um recorrido teórico e Merton, dois centenários. Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS conceitual a respeito da física e nos Por ocasião da festa de São Fran- ([email protected]) convida a pensar sobre nossa insigni- cisco de Assis, reproduzimos a entre- Ricardo Machado - MTB 15.598/RS ficância cósmica. “Cada vez mais nos vista concedida à IHU On-Line por Le- ([email protected]) convencemos de que somos habitan- onardo Boff, publicada nas Notícias tes de um ínfimo planeta perdido no do Dia, 04-10-2015, na página do IHU. Revisão espaço de um Universo que se desin- Complementam esta edição as Carla Bigliardi tegrará no infinito”, defende. entrevistas com Sandro Chignola, Projeto Gráfico Trevor Lipscombe, diretor de im- professor de Filosofia Política na prensa na Catholic University of Ame- Universidade de Pádua, Itália, sobre Ricardo Machado rica Press, em Washington, EUA, e antropologia social como maneira de pensar os sujeitos e o comum; com Editoração biógrafo, faz um recorrido histórico Rafael Tarcísio Forneck da vida de Albert Einstein, um dos Luís Rubira, autor de um livro que principais nomes da física de todos os analisa sete álbuns de Ramil, de Es- Atualização diária do sítio trela, Estrela a Longes, em que abor- tempos que revolucionou nosso modo Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia da uma espécie de “desconstrução” de compreender o mundo. Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner, que o artista pelotense vivenciou en- Marcelo Gleiser, professor de Físi- quanto indivíduo e músico. Matheus Freitas e Nahiene Machado. ca na Dartmouth College, em Hano- Completam esta edição as entrevis- ver, nos EUA, comenta sobre as des- Colaboração tas com Joviano Gabriel Maia Mayer, cobertas e incertezas em torno dos Jonas Jorge da Silva, do Centro de Pesqui- mestre em Arquitetura e Urbanismo estudos sobre a física e as proprieda- sa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de pela Universidade Federal de Minas Curitiba-PR. des da Luz. “Somos criaturas da luz, Gerais, sob o título Do privado ao evoluímos num planeta banhado por Comum, práticas de uma reforma ur- ela”, define. bana radical, refletindo sobre os pro- Gian Giúdice, pesquisador que tra- cessos de resistência urbana em Belo balha no European Organization for Horizonte, e com Laércio Pilz, pro- Nuclear Research – CERN como físico fessor da Unisinos, sob o título Viver de partículas e cosmólogo, retoma para além dos padrões. E o artigo de o debate sobre o bosón de Higgs e Carla Holand, A Primavera Árabe que Instituto Humanitas Unisinos - IHU comenta os avanços científicos após se tornou Outono: o caso da Síria e Av. Unisinos, 950 a comprovação da subpartícula. “O suas implicações – para onde vamos?, São Leopoldo / RS bóson de Higgs é o som emitido pela para a editoria Crítica Internacional – CEP: 93022-000 própria estrutura do espaço. É o som Curso de RI da Unisinos. do nada”, explica. A todas e a todos uma boa leitura e Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 Sérgio Novaes, pesquisador brasi- uma ótima semana! e-mail: [email protected] leiro e integrante da Organização Eu- Diretor: Inácio Neutzling ropeia para Pesquisa Nuclear – CERN, Gerente Administrativo: Jacinto faz uma análise ampla sobre as par- Imagem da Capa: Nebulosa de Hélix/ Schneider ([email protected]) tículas elementares e fala sobre o Reprodução Wikipedia

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Destaques da Semana

6 Destaques On-Line 8 Linha do Tempo 10 Alexandre de Freitas Barbosa: A cortina de fumaça sobre a desigualdade no Brasil 12 Luís Rubira: Vitor Ramil, um artista em deslocamento 18 Sandro Chignola: Uma antropologia processual para pensar novos sujeitos e o comum

Tema de Capa

32 Carlos Alberto dos Santos: Dar à luz a Luz 36 Carlo Rovelli: A grande beleza 39 Aba Cohen Persiano: A encantadora (e complexa) realidade 45 Trevor Lipscombe: Einstein – Uma vida dedicada à dúvida 48 Marcelo Gleiser: Descobertas e incertezas sobre o “suor dos átomos” 51 Gian Giudice: O som do nada 54 Sérgio Ferraz Novaes: A elementar natureza da Luz 3 56 Baú da IHU On-Line

IHU em Revista

58 Agenda de Eventos 60 #TERESAD’AVILA - Faustino Teixeira: A feminilidade da mística em Teresa d’Ávila 65 #TERESAD’AVILA - Luciana Barbosa: Teresa d’Ávila e a presença na ausência 70 Joviano Gabriel Maia Mayer: Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical 77 Laércio Pilz: Viver para além dos padrões 81 : Francisco de Assis. O protótipo ocidental da razão cordial e emocional 86 #CríticaInternacional - Curso de RI da Unisinos: A Primavera Árabe que setornou Outono: o caso da Síria e suas implicações – para onde vamos? 89 Publicações 91 Retrovisor

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IHU ON-LINE

Destaques da Semana DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Destaques On-Line Entrevistas publicadas entre os dias 28-09-2015 e 02-10-2015 no sítio do IHU.

Do Welfare State para o Workfare e a necessidade de novos sistemas financeiros autônomos

Entrevista com Andrea Fumagalli, doutor em Economia Política e professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Eco- nomia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Publicada em 02-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1iQGnYF

Apesar de seus prognósticos negativos acerca da situação econômica mundial nos próximos anos, que será marcada pela “instabilidade” e um “estado de crise permanente”, o economista italiano Andrea Fumagalli vislumbra, na criação de uma moeda alternativa, uma possibilidade de os países enfrentarem as dificulda-

des futuras e não terem de se “submeter” a medidas de austeridade. A proposta, Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br 6 explica, consiste em criar um “espaço de autonomia partindo diretamente da au- tonomia financeira, através da criação de um sistema financeiro, com uma moeda própria, a qual seria geren- ciada pela comunidade em que ela estaria inserida”. Essa moeda, esclarece, “não seria substituta da moeda tradicional, mas estaria ao lado dela como um acréscimo para poder ativar os circuitos de produção econômicos que, por definição, não são globalizantes e não podem ser deslocalizados”.

Relatório Figueiredo: crimes continuam 50 anos depois

Entrevista com Elena Guimarães, mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do – Unirio e graduada em Jornalismo pela Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, trabalha no Núcleo de Biblioteca e Arquivo do Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio – Funai. Publicada em 01-10-2015 Disponível em http://bit.ly/1Gl1xDC

“O Relatório Figueiredo deixa sua marca por se tratar de uma documentação que identifica e reconhece as violências cometidas contra os índios a partir da década de 1950, em que o Estado brasileiro aparece ora como autor direto de crimes, através de seus agentes, ora indireto, por omissão diante dos ataques de fazen- Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br deiros, grileiros, madeireiros, seringalistas, assim como na conivência destes com políticos e poderes locais”, diz Elena Guimarães à IHU On-Line. Na entrevista concedida por e-mail, a autora da dissertação “Relatório Figueiredo: entre tempos, memórias e narrativas”, contextualiza os principais momentos da produção e difusão do Relatório e comenta a difusão do documento 45 anos depois, quando ele foi resgatado pelas investigações da Comissão Nacional da Verdade – CNV.

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Metas brasileiras para a COP-21: “esquecemos de debater o modelo de desenvolvimento”

Entrevista com Maureen Santos, coordenadora do Programa de Justiça Ambiental da Fundação Heinrich Böll Brasil e professora do quadro complementar da graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Pos- sui mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e graduação em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá. Publicada em 30-09-2015 Disponível em http://bit.ly/1OazRcE

As metas brasileiras para a COP-21, que será realizada em dezembro deste ano em Paris, anunciadas pela presidente Dilma Rousseff no último domingo, durante o discurso na Conferência da ONU para a Agenda de Desenvolvimento Pós-2015, em Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br Nova York, apesar de terem sido “maiores do que se esperava”, deixaram de fora uma discussão sobre o modelo de desenvolvimento a ser seguido pelo país, avalia Maureen Santos em entrevista à IHU On-Line. Segundo ela, a discussão sobre o enfrentamento das mudanças climáticas não pode ficar limitada às metas de redução de gases de efeito estufa, mas também discutir se queremos manter o mesmo modelo de desenvolvimento que vem provocando o problema, e se as medidas que o país irá implementar para alcançar essas metas não perpetuam esse modelo que viola direitos e impacta os territórios no campo e na cidade.

A contaminação das águas e a disseminação de doenças 7 de proliferação hídrica

Entrevista com Fernando Spilki, graduado em Medicina Veterinária pela Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em Ciências Veteriná- rias pela UFRGS, na área de Virologia Animal, e doutorado em Genética e Biologia Molecular, área de Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas. Atual- mente leciona na Universidade Feevale. Publicada em 29-09-2015 Disponível em http://bit.ly/1KWWvyc

“As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX”, diz Fernando Spilki à IHU On-Line, em entrevis- Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br ta concedida por e-mail. Segundo o pesquisador, a expansão urbana foi feita sem planejamento e os corpos d’água foram “considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a ‘diluição é a solução’, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades”, pontua.

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Linha do Tempo A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, entre os dias 28-09-2015 e 02-10-2015, relacionadas a assuntos que tiveram repercussão ao longo da semana

O Governo que a Demissão de Chioro Crise humanitária dos direita queria? é uma “grande Guarani-Kaiowá é tão pancada” nos grave que cabe em

Estamos vivendo atualmente militantes do SUS diversas relatorias de direitos humanos da uma situação impensável até um A demissão de Arthur Chioro ONU ano atrás. Houve uma campanha do cargo de ministro da Saúde tem gerado repercussão negati- eleitoral extremamente agressi- Uma das preocupações expres- va dentro do próprio Partido dos sas pelas seis relatorias especiais va, onde adversários foram ata- Trabalhadores. “É uma grande de direitos humanos da Organi- pancada que os militantes do cados de forma virulenta – não zação das Nações Unidas que SUS estão recebendo do gover- apenas suas ideias, seus progra- estiveram reunidas com a lide- no”, afirmou o deputado federal 8 rança indígena Eliseu Lopes Gua- mas. Com o reforço do apoio de do PT-BA, Jorge Solla. Para ele, rani-Kaiowá no último dia 24, em movimentos sociais, foi reeleita “a decisão da presidente Dil- Genebra, na Suíça, é justamente ma de lotear o cargo para ten- a presidente Dilma, por peque- a definição de qual delas poderia tar atrair a fidelidade do PMDB receber o caso Guarani-Kaiowá. na margem. Desenvolveu-se uma no Congresso é ingênua, posto Isso significa que a situação de campanha da grande mídia con- que terá resultado efêmero, e a violação de direitos deste povo cada votação se reestabelecerá tra o governo. Começou durante é tão grave e extensa que ela uma nova chantagem”, disse. De pode ser acompanhada por todas o processo eleitoral, se tornou acordo com Solla, que já ocupou as relatorias com as quais Eliseu mais forte no segundo turno e o cargo de secretário estadual de Saúde da Bahia e é médico pes- se reuniu: direito à alimentação; continuou desde então. Motivou quisador da Universidade Federal pessoas internamente desloca- mobilizações de rua contra a da Bahia, existe um grande des- das; violência contra a mulher; contentamento entre militantes defensores dos direitos humanos; presidente, até pedidos de volta do PT em relação à negociação movimento ilícito de resíduos tó- dos militares. Insistentemente com os peemedebistas em torno xicos; e, logicamente, a de po- coloca em debate a possibilidade do ministério da Saúde. A infor- vos indígenas. A reportagem é de mação foi publicada por Portal Patrícia Bonilha e publicada pelo de impeachment. Fórum em 30-09-2015. portal do Cimi em 30-09-2015. Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit. Leia mais em http://bit. ly/1FRSKOR ly/1KPsymR ly/1KPtqYR

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Clima – Metas Um Sínodo das Apartheid carioca: nos anunciadas pelo soluções estádios, os pobres Brasil demandarão perderam espaço faz Cerca de 250 bispos de todo esforços relevantes tempo o mundo estarão reunidos no Vaticano de 4 a 25 de outubro A “Coalizão Brasil Clima, Flo- “Depois de uma série de arras- para aquela que muitos consi- restas e Agricultura” reconhece tões, parte dos moradores do Rio avanços no conjunto de contri- deram ser a mais importante passou a defender que se limite buições anunciadas pelo governo Assembleia Geral do Sínodo dos a ida à praia de quem vive nos brasileiro para o acordo mundial Bispos desde o Concílio Vaticano bairros mais pobres. Frequenta- sobre o clima (INDC), mas sa- II. Eles se reúnem exatamente dores de academias chegaram a lienta uma necessária interação 50 anos depois do Concílio para organizar inspeções em ônibus entre sociedade e governo para se concentrar sobre a família e, que iam a Copacabana”, escreve acompanhamento de métricas e nas palavras do Papa Francisco 9 Bruno Guedes, jornalista, em ar- de mecanismos de implementa- ao final do Sínodo de 2014, “en- tigo publicado por Carta Capital ção. O movimento – composto contrar soluções concretas para por mais de 100 empresas, or- tantas dificuldades e os inúmeros em 25-09-2015. Eis um trecho do ganizações da sociedade civil, desafios que as famílias devem artigo. centros de pesquisa e entidades enfrentar; para dar resposta aos O Rio de Janeiro viveu um fim numerosos motivos de desânimo setoriais – observa que a redução de semana conturbado, uma que envolvem e sufocam as fa- de emissões de GEE (Gases do espécie de convulsão social. A Efeito Estufa), de 37% até 2025 mílias”. Em relação ao Sínodo, praia é o centro de um confronto e de 43% até 2030 com base em cardeais, bispos e analistas lei- que evidencia um forte desejo 2005, é mais expressiva do que gos vêm expressando suas espe- de boa parte da elite carioca por se sinalizava até então. A Coali- ranças e medos em livros, artigos uma espécie de apartheid, pelo zão dará início, agora, a um mer- e entrevistas durante os últimos confinamento da periferia. Para gulho nos marcos econômicos re- dois anos, o que revela tanto o o torcedor de futebol, nenhuma lacionados à INDC para entender reconhecimento da importância surpresa. Na prática, a segre- as demandas e desdobramentos do evento quanto a existência de gação já existe nos estádios de necessários. Em novembro, apre- uma divisão entre estes atores. sentará conclusões, de forma a A reportagem é publicada por futebol. Um espaço que por dé- auxiliar nos debates da COP 21. América, edição de 05-10-2015. cadas foi quase tão democrático A reportagem foi publicada por A tradução é de Isaque Gomes quanto as areias de Copacabana, Envolverde em 29-09-2015. Correa. Ipanema e Leblon. E não é mais.

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EVENTOS A cortina de fumaça sobre a desigualdade no Brasil Alexandre de Freitas Barbosa aplica a metodologia de Thomas Piketty e constata que a redução da desigualdade no país se dá apenas entre trabalhadores

10 FOTO: JOÃO VÍTOR SANTOS JOÃO VÍTOR FOTO:

Por João Vitor Santos

É frequente vermos manchetes culo XXI (Rio de Janeiro: Intrínseca, Ecos da obra de que a desigualdade no Brasil 2014) –, para entender sua metodo- caiu nos últimos anos. Mas de que logia e por que ela extrapola para a O professor olha para o trabalho desigualdade estamos falando? A realidade brasileira. “Hoje, o que de Piketty de forma crítica, inclu- questão permeou a conferência do sabemos da desigualdade no país? sive pondo sua metodologia à pro- professor de História Econômica e Que houve queda na desigualdade va por outras correntes de pensa- Economia Brasileira/Internacional da renda do trabalho. Papel fun- mento em Economia, e reconhece: do Instituto de Estudos Brasileiros damental do salário mínimo. Mas “ele já fez uma revolução”. Isso – IEB da Universidade de São Paulo e a desigualdade sobre a renda?”, porque lançou o olhar sobre a ren- – USP, Alexandre de Freitas Barbo- questiona. da patrimonial. Revolução essa que sa. A palestra, ocorrida na noite de ainda pode ser medida na postura quarta-feira, 30-09, integrou a pro- Um amplo material sobre a obra da Receita Federal do Brasil que, gramação do Ciclo de Estudos O Ca- de Piketty pode ser lida no sítio do depois do sucesso da obra, resolveu pital no Século XXI – uma discussão Instituto Humanitas Unisinos – IHU, abrir os dados sobre o patrimônio. sobre a desigualdade no Brasil, pro- bem como uma breve nota explica- “Dizia-se que a desigualdade caiu. movido pelo Instituto Humanitas tiva publicada nas Notícias do Dia, Mas os dados que se tinha aces- Unisinos – IHU. Barbosa mergulha 05-10-2015, disponível em http:// so no Brasil eram apenas os dados na obra de Piketty, O Capital no Sé- bit.ly/1LdrpHe. da Pesquisa Nacional de Amostra

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Domiciliar – Pnad. Ou seja, dados forçar para que a concentração vá conheço que o professor Bresser dos rendimentos pelo trabalho. É para outras formas de capital”, estava certo, apesar de achar que possível constatar que houve queda diz Barbosa. Por outra via, o que o ele, às vezes, parecia economista na desigualdade do trabalho. Isso professor fala é a taxação de renda de uma nota só ao estar sempre ba- é meritório, tem relação com toda patrimonial. Para ele, se for caro tendo na questão do câmbio”. Ou uma rede de proteção. Entretanto, pagar por essa renda, os investi- seja, o câmbio valorizado está liga- há a renda (patrimonial) que ainda dores serão forçados a canalizar do diretamente a uma questão de causa desigualdade”, explica. seu dinheiro para outras formas política econômica interna. “Que Barbosa destaca que essa me- de capital. “É direcionar o capital se mostrou esgotada”. todologia põe em cheque a velha para a vida prática. Temos muitos ideia de meritocracia. Nela, com setores, essencialmente de infra- Capital no Século XXI “esforço, educação e dedicação” estrutura, que ainda não foram ex- é possível alcançar o mesmo nível plorados no país. Assim, poderia se O Ciclo de Estudos O Capital no de quem já parte de um acúmulo achar uma forma de manter o esto- Século XXI – uma discussão sobre de renda patrimonial. “E isso põe que de capital e ainda promover o a desigualdade no Brasil tem ainda em cheque o mundo todo”, pontua desenvolvimento”. mais quatro encontros. O próximo o professor. “No Brasil, a renda dos O problema todo é que essa é é na segunda-feira, dia 05-10. O mais ricos no Brasil é mais de duas uma questão não só econômica, professor da Universidade Estadual vezes superior à obtida pelo con- mas também política, como toda a de Campinas – Unicamp Márcio Po- junto dos 50% mais pobres da po- obra de Piketty sinaliza. E, diante chmann terá como tema de sua pa- pulação”, destaca, ao lembrar que da atual conjuntura nacional, não lestra “A desigualdade brasileira da essa fatia da população (com ren- há perspectiva de que isso ocorra. renda do trabalho e da apropriação dimentos superiores a 40 salários “Eu não vejo uma sinalização nesse do capital”. A última conferência mínimos) não chega a 1% do total sentido no atual momento. Temos será no dia 11 de novembro, com da população. mudanças importantes em curso, o professor da Universidade de Bra- mas que ainda funcionam com me- sília – UNB Marcelo Medeiros. Ele Pensando em canismos asfixiadores. É o caso da falará sobre “Os ricos e a desigual- alternativas taxa de câmbio”, analisa. Barbosa dade de renda no Brasil”. ainda recorda os argumentos do em 21 de dezembro de 1987. Foi ministro da 1 ■ 11 Se de fato ainda há uma gigante economista Bresser Pereira. “Re- Administração Federal e Reforma do Estado desigualdade no país, como rever- em todo o primeiro mandato presidencial ter esse quadro? “No Brasil, existe 1 Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) a concentração de renda em algu- (1934): economista, cientista político e político e Ministro da Ciência e Tecnologia nos brasileiro. Foi ministro da Fazenda do Brasil primeiros seis meses do segundo mandato, mas formas de capital. Se houver durante o governo José Sarney. Tomou posse permanecendo nesse cargo até o dia 19 de a taxação dessas formas, poderá em 29 de abril de 1987 e deixou o ministério julho de 1999. (Nota da IHU On-Line)

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ESTANTE Vitor Ramil, um artista em deslocamento Luís Rubira, autor de livro que analisa sete álbuns de Ramil, de Estrela, Estrela a Longes, fala sobre a espécie de “desconstrução” que o artista pelotense vivenciou enquanto indivíduo e músico. A repercussão da estética do frio ao longo de sua obra é outro tema abordado

Por Márcia Junges

itor Ramil é justa- Pelotas – UFPEL, e na Université de mente o artista que Reims Champagne-Ardenne – URCA, construiu uma esté- “V França, realizou um aperfeiçoa- tica original, que dá forma à sua mento em Filosofia em 2007-2008, arte, que trabalha com a concep- bem como um pós-dou- ção de que estamos no ‘centro de torado, recém-conclu- uma outra história’ – concepção que ído, sob orientação de influenciou muitas pessoas e que Patrick Wotling. É mes- já tem vários desdobramentos no tre em Filosofia pela 12 campo da arte e da cultura”. A pon- Pontifícia Universidade deração é do Prof. Dr. Luís Rubira, Católica do Rio Grande autor de Vitor Ramil: nascer leva do Sul – PUCRS, e dou- tempo (identidade, autossuperação tor pela Universidade de e criação de Estrela, Estrela a Lon- São Paulo – USP, com a ges). Porto Alegre: Editora Public- tese Nietzsche: do eter- catto, 2015, na entrevista que con- no retorno do mesmo à RUBIRA, Luís. Vitor Ramil: nascer cedeu, por e-mail, à IHU On-Line. leva tempo (identidade, autossupe- transvaloração de todos ração e criação de Estrela, Estrela De acordo com o pesquisador, ainda a Longes). Porto Alegre: Editora os valores (São Paulo: Publiccatto, 2015, 354 páginas, obra em 2004, uma certa incompreensão Discurso Editorial e Edi- financiada pelo FUMPROARTE sobre a trajetória que Ramil “vinha tora Barcarolla, 2010). percorrendo enquanto um artista Leciona na UFPEL, no Departamen- que queria fazer música brasileira to de Filosofia, e tem um intenso a partir do contexto no qual estava envolvimento com a vida cultural inserido levou alguns a não enten- pelotense, tanto que organizou o derem, por exemplo, o significado Almanaque do Bicentenário de Pe- do disco Longes quando de seu lan- lotas (Santa Maria: Gráfica e Edito- çamento”. Rubira analisa o impacto ra Pallotti), obra em três volumes, da obra de Ramil na efervescente publicados em 2012 (volume 1), cena cultural de Pelotas, a Satolep 2014 (volume 2) e 2015 (volume 3). que protagoniza diversas de suas A entrevista foi publicada nas canções e para onde fez questão Notícias do Dia, de 07-09-2015, no de voltar a viver e compor, na casa sítio do IHU, disponível em http:// onde passou sua infância. bit.ly/1FRTrYs. Luís Rubira é graduado em Filo- Confira a entrevista. sofia pela Universidade Federal de

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rez Fonseca3 (que cedo detectou o “fenômeno” Vitor Ramil na esfera da música no Rio Grande do Sul e acompanhou criticamente a traje- (...) após o lançamento de Es- tória do artista publicando diversos artigos e, mais recentemente, um trela, estrela teve necessidade belo texto no Songbook de Vitor Ramil) disse há poucos dias que, de ingressar numa espécie de para ele, A paixão de V segundo desconstrução de si próprio ele próprio (1984) segue sendo o disco ao qual sua audição retorna sucessivamente. O Arthur de Fa- IHU On-Line – Como se relacio- Sur”, domingo, 28/06/2015) pode ria foi também um dos primeiros a nam identidade, autossuperação nos ajudar a compreender a ques- compreender A paixão de V como e criação de Estrela, estrela a tão. Nele, Vitor Ramil diz em en- a obra-matriz de Vitor. De fato, é Longes? trevista que há pouco tempo atrás uma obra que continua a nos entre- encontrou algumas anotações que gar sempre um pouco mais do Vitor Luís Rubira – Muitos daqueles fizera antes de começar a gravar o Ramil que viria nos discos seguin- que acompanharam a trajetória seu segundo disco (A paixão de V tes. Do ponto de vista da canção, artística de Vitor Ramil1 sabem segundo ele próprio, 1984), anota- por sua vez, tudo já estava prefi- que seu primeiro álbum (Estre- ções que versavam sobre uma “es- gurado em Estrela, estrela, mas ali la, estrela, 1981) era uma obra tética implosivista”, a qual con- Vitor ainda não tinha uma lingua- tão em consonância com a músi- sistia em reagir aos seus próprios gem própria, algo que ele irá obter ca “brasileira” que Vitor chegou trabalhos, uma “determinação de somente com o desenvolvimento a ser considerado no eixo Rio-São (permanente) de sua concepção 2 não facilitar, não acomodar-se aos Paulo como o “ 4 caminhos que já foram definidos da “estética do frio” – o que lhe da nova geração”. Reconhecido pelos outros”, pois ele queria “en- permitirá retomar o trabalho sobre já aos 19 anos em nível nacional contrar uma linguagem particular” a canção em A Beça (1995) e Tam- como um artista de talento, o que para a suas criações e isto consis- bong (2000), por exemplo. De mi- explica que ele não tenha conti- tia em “reagir a tudo”, inclusive a nha parte, penso que Longes (2004) 13 nuado a assumir esta “identidade” é um disco não somente com uma si próprio, às concepções que ado- como músico “brasileiro”? A res- alta densidade existencial, mas tava. Pois bem, no livro que acabo posta não é simples, mas um texto também aquele que fecha um per- de publicar, busco mostrar ao lei- recentemente publicado no jornal curso na trajetória do artista, um tor, ao longo de mais de trezentas argentino Página12 (“Milonga ao momento no qual a “estética do páginas, como Vitor Ramil, após frio” já comparece nas canções o lançamento de Estrela, estre- 1 Vitor Ramil (1962): um músico, cantor, de forma natural, entranhada na compositor e escritor brasileiro. Começou la, teve necessidade de ingressar musicalidade de Vitor Ramil. Acho sua carreira artística ainda adolescente, no numa espécie de “desconstrução” começo dos anos 80. Membro de uma família de músicos – com dois irmãos também can- de si próprio como indivíduo e ar- 3 Juarez Fonseca: crítico de música e jor- tores, Kleiton e Kledir, e um primo músico, tista para tentar chegar até esta nalista. Atualmente é colunista no caderno Pery Souza – aos 18 anos de idade gravou seu linguagem original que ele busca- de cultura do Jonal Zero Hora. (Nota da IHU primeiro disco Estrela, Estrela, com a presen- On-Line) ça de músicos e arranjadores que voltaria a va. Esta “desconstrução” envolve 4 Estética do Frio: quinto álbum do canto, encontrar em trabalhos futuros, como Eg- um processo de questionamen- lançado em 1997, compositor e escritor bra- berto Gismonti, Wagner Tiso e Luis Avellar, to sobre a própria “identidade”, sileiro Vítor Ramil. Em “Ramilonga – A Es- além de participações das cantoras Zizi Possi tética do Frio”, denominado por Vitor como e Tetê Espíndola. Neste período Zizi gravou bem como um percurso interior de um song book, inaugura as sete cidades da algumas canções de Vitor, e deu sua “autossuperação”, o qual, por sua milonga (ritmo comum ao Rio Grande do Sul, versão para Estrela, Estrela no disco Fanta- vez, materializa-se em suas cria- Uruguai e ): Rigor, Profundidade, sia. Seu último álbum foi lançado em 2013, Clareza, Concisão, Pureza, Leveza e Melanco- com o título ‘Foi no Mês que Vem’. (Nota da ções (discos, livros, ensaios). lia. Através delas a poesia de onze “ramilon- IHU On-Line) gas” percorre o imaginário regional gaúcho 2 Milton Nascimento (1942): cantor e mesclando o linguajar gauchesco do homem compositor brasileiro, reconhecido mun- IHU On-Line – Quais são as pe- do campo à fala coloquial dos centros urba- dialmente como um dos mais influentes e culiaridades desses álbuns no nos. A reflexão acerca da identidade de quem talentosos cantores e compositores da Mú- contexto da obra de Vitor Ramil? vive no extremo sul do Brasil começa pela sica Popular Brasileira. Mineiro de coração, recusa ao estereótipo do gauchismo; o canto tornou-se conhecido nacionalmente, quando Luís Rubira – Cada um dos discos forte dá lugar a uma expressividade sofistica- a canção “Travessia”, composta por ele e Fer- da e suave; instrumentos convencionais são nando Brant, ocupou a segunda posição no de Vitor Ramil tem sua própria par- substituídos por outros, como os indianos e Festival Internacional da Canção, de 1967. ticularidade, sua especificidade e, africanos, nunca antes reunidos neste gênero Em 1998, ganhou o Grammy de Best World para muitos, cada um deles é uma de música. Pela contundência de suas idéias, Music Album in 1997. Foi nomeado nova- pela originalidade de sua concepção, “Rami- mente para o Grammy em 1991 e 1995. (Nota obra a ser fruída por si mesma, por longa” é uma espécie de marco zero na carrei- da IHU On-Line) excelência. O crítico musical Jua- ra de Vitor Ramil. (Nota da IHU On-Line)

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que é dispensável falar sobre Tan- um aperfeiçoamento e aprofunda- que em 2000 tinha apreciado mui- go (1987) e Ramilonga (1997), pois mento da linguagem em relação aos to o disco Tambong e que ao fazer foram discos que penetraram pro- trabalhos anteriores do artista. uma resenha do Longes escreveu fundamente no nosso imaginário e que era “um disco denso, difícil, muitas pessoas, inclusive, conhe- IHU On-Line – Em que sentido às vezes quase chato (...), às vezes cem de memória muitas das can- a obra Vitor Ramil: nascer leva quase pop (...). Não irá às paradas ções ali presentes. tempo procura compreender de sucesso, não mudará o mundo” o processo artístico, o percur- (Folha de São Paulo, 19/11/2004). IHU On-Line – É adequado com- so interior e uma “identidade” preender Longes como uma espé- que considera o Sul do Brasil não Estética original cie de aperfeiçoamento e apro- como à margem do centro do fundamento da linguagem em país, mas como “centro de uma Como eu dizia, é compreensível relação aos trabalhos anteriores outra história”? que o Sanchez, naquele momento, como Estrela, Estrela, seu pri- tenha dito isto, pois muito pou- Luís Rubira – É este exatamente meiro álbum? Por quê? cos perceberam o significado que o foco do livro. Como eu disse no o Longes tinha numa espécie de Luís Rubira – Na época de lança- início, Vitor Ramil já aos 19 anos fechamento de percurso, o qual mento de Longes (2004), eu escrevi era considerado como alguém de abriria o caminho, em seguida, um texto em que dizia o seguinte: destaque no cenário da música para o Satolep Sambatown. Posso “Horizonte. Eis uma palavra que brasileira, mas abriu mão disso por dizer, com todas as letras, que lá está na letra da música que abre uma necessidade interna de re- em 2004 eram raros os que acom- o sétimo disco de Vitor Ramil. No solver um dilema que se impunha panhavam milímetro por milímetro encarte do CD, ao lado da primei- a ele como artista e que, no fun- os movimentos do Vitor Ramil. Os ra letra, está a foto da fachada de do, era um dilema que estava no que acompanhavam conseguiram uma casa em ‘Satolep’ refletida núcleo do “complexo cultural rio- entender o Longes imediatamente. no retrovisor externo de um auto- -grandense” (para aqui me valer de De outra parte, em 2014, uma per- móvel (...). Se atentarmos para o uma expressão que o crítico literá- gunta (que havia sido formulada 5 conjunto de fotografias, o conteúdo rio Guilhermino César já utilizava com muita inteligência há alguns das letras e a sonoridade da obra, no RS na década de 1950). A saber: anos) foi colocada em destaque 14 veremos que se trata do disco com o problema da “identidade” que num cartaz que anunciava um con- maior substância íntima e artística nos constitui enquanto uma cultu- certo de Vitor Ramil em Barcelona: de Vitor Ramil. Apenas para se ter ra que está “à margem” do centro “Por que este gênio não domina, uma ideia: a casa em ‘Satolep’ é do país, de uma cultura que, como todavia, o mundo da música?” (Ha- aquela em que Vitor morou duran- Vitor bem designou na Conferên- maques, concerts Casa América de te a infância, e onde vive há muitos cia de Genebra (o ensaio sobre a Catalunya, Domingo 23 de Noviem- anos com sua esposa, nascida em “Estética do Frio”, publicado em bre). Talvez um modo de responder Rosário do Sul; os títulos da primei- 2004) é um lugar de cruzamentos a esta pergunta seja aquilo que eu ra e da última letras são sugestivos entre a “brasilidade” e a “plati- observo ao final do livro que bus- (O primeiro dia e Adiós, goodbye); nidade”. A incompreensão sobre a quei fazer para tentar entender o a concepção da estética do frio trajetória que ele vinha percorren- músico, compositor, ensaísta e es- está entranhada na musicalidade do enquanto um artista que queria critor: “se Estrela, estrela havia de Longes. (...). Quanto à sonorida- fazer música brasileira a partir do trazido ao mundo um artista, este de do disco, a milonga não apare- contexto no qual estava inserido por sua vez levaria muitos anos ce nele de forma isolada como em levou alguns a não entenderem, para dar nascimento ao seu próprio A paixão de V segundo ele próprio por exemplo, o significado do disco universo artístico”. Ora, se Vitor (1984), mas entranha-se no violão Longes quando de seu lançamento. Ramil somente encontrou sua lin- de Vitor, que explora o lado mântri- É o caso do crítico Pedro Sanchez guagem original ao chegar a casa co e hipnótico destilado deste estilo dos quarenta anos, minha hipótese em várias faixas. O rock presente 5 Guilhermino César (1908-1993); es- é que este é o motivo que retarda em Tango (1987) surge, agora, de critor, jornalista, professor e historiador bra- que seu nome surja nos cartazes forma mais refinada. (...) tudo se sileiro. Aos 19 anos, em Cataguases, foi um dos fundadores da Revista Verde, de caráter das boas salas de concerto do mun- funde numa só massa. Se a multi- modernista. Mudou-se para o Rio Grande do do. No Théâtre de la Ville em Paris, plicidade de referências contida em Sul, onde tornou-se cronista e crítico literário por exemplo, existe um programa A Paixão de V parecia ganhar unida- do Correio do Povo. Foi chefe do gabinete do permanente de “Musique du Mon- de em Tambong (2000), em Longes governo de Ernesto Dorneles, professor da UFRGS, ministro do Tribunal de Contas do de” e eu tenho certeza de que so- ela realmente é atingida. Nascer Estado do Rio Grande do Sul e Secretário da mente não convidaram o Vitor para leva tempo (...)”. Claro que tudo Fazenda. Foi também presidente do Instituto se apresentar lá porque ainda não Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. isso são impressões que depois eu conhecem o trabalho que ele vem desenvolvo em um capítulo inteiro Atuou na dramaturgia como diretor de algu- mas peças de teatro na década de 1940. Foi desenvolvendo sobretudo a partir dedicado ao tema, mas certamen- escolhido patrono da Feira do Livro de Porto do Longes. Mas certamente vão co- te pode-se dizer que ele representa Alegre em 1990. (Nota da IHU On-Line)

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nhecer, tal como conhecem o Ya- tanto, um disco em que ele vem Carlos Moscardini8 e outros repre- mandu Costa6, que recentemente apenas para fazer um “cover” de sentantes da cultura platina? tocou na Philarmonie de Paris. E suas canções de discos anteriores, Luís Rubira – Recomendo dois do- isto porque o Vitor Ramil é justa- mas no qual elas são recriadas, re- cumentários para o leitor: o primei- mente o artista que construiu uma vestidas sob um único ponto de vis- ro é o que acompanha o processo estética original, que dá forma à ta: o ponto de vista da estética que de criação do disco Délibab (2010) sua arte, que trabalha com a con- ele concebeu para a sua arte. e mostra a parceria com Moscardi- cepção de que estamos no “centro ni; o segundo, que veio a público de uma outra história” – concepção IHU On-Line – Na fértil cena cul- este ano, é o documentário de 110 que influenciou muitas pessoas e tural pelotense, qual é a impor- minutos intitulado Na linha fria do que já tem vários desdobramentos tância e o impacto da obra artísti- horizonte, dirigido pelo curitibano no campo da arte e da cultura. ca de Ramil? Luciano Coelho9, que faz um per- curso temático sobre a concepção Luís Rubira – Em 2014, pouco IHU On-Line – Qual é o contex- da “estética do frio” e apresenta antes de Vitor Ramil viajar para a to de surgimento da “estética do a interlocução com vários artistas, Espanha, a Universidade Federal frio” e qual é o seu lugar den- tal como Drexler e tantos outros de Pelotas o convidou para uma tro da obra de Ramil, inclusive músicos da Argentina, do Uruguai e apresentação no Teatro Guarany, atualmente? do sul do Brasil (http://www.linha- que é um teatro com mais de dois fria.com.br/). Luís Rubira – Ninguém melhor mil lugares. Estava completamen- que o próprio Vitor, que é um ar- te lotado, e por um público que co- tista que reflete conceitualmente nhecia a maior parte das canções IHU On-Line – Por outro lado, sobre seu trabalho, para responder do Vitor. Do mesmo modo é qua- Ramil se aproxima de vertentes à questão (seu ensaio A estética se certo que ele será o convidado musicais bem diversas daque- do frio de 2004 está disponível em homenageado da próxima Feira la da estética do frio, como, por PDF na internet). De outra parte, do Livro de Pelotas, que irá ocor- exemplo, quando canta com Ney 10 a concepção da “estética do frio” rer em novembro de 2015. Estes Matogrosso e Milton Nascimen- (que Vitor jamais defendeu como dois exemplos são representativos 8 Carlos Moscardini (1959 ): violonista um “manifesto”, como algo que acerca da influência de Vitor em e compositor argentino. Em 1990, após ser deveria ser aplicado a outros mú- Pelotas, mas esta influência é algo consagrado como o melhor solista no concur- 15 sicos e formas de arte) é algo que que não tem exatamente como so Nova Música Popular em sua província, continua dando forma ao trabalho gravou seu primeiro álbum solo, “El corazón medir. Posso garantir, no entanto, manda”, pela EPSA Records. Este trabalho, atual que ele faz e que aprofunda que entre aqueles que lutam pela que incluiu composições de sua autoria e e sutiliza cada vez mais. Dou um preservação do patrimônio arqui- arranjos de outras composições exemplo: a audição do álbum du- famosas, foi aclamado pela crítica e por ou- tetônico de Pelotas estão muitos tros artistas notáveis, como seu conterrâneo plo Foi no mês que vem (2013) tem dos que foram influenciados dire- Juan Falù. Atualmente é docente titular do uma unidade sonora entre as can- tamente pelas concepções do Vi- Conservatorio de Música Gilardo Gilardi (La ções que é algo muito, mas muito tor sobre Pelotas, a começar pela Plata) e do Conservatorio Superior de Músi- ca Manuel De Falla (). (Nota da interessante mesmo. Algo novo. canção “Satolep”, feita em 1984, IHU On-Line) Em parte pelo fato de que o violão e pelo livro Satolep, publicado em 9 Luciano Coelho: jornalista, é responsá- de Vitor surge muito em primeiro 2007. Eu mesmo jamais teria orga- vel por pelo documentário musical A Linha plano, em parte pelo modo como Fria do Horizonte. Tem seu foco na produção nizado os três volumes do Alma- musical e no pensamento de músicos do sul ele canta as músicas. Não é, por- naque do Bicentenário de Pelotas, do Brasil, da Argentina e do Uruguai, tendo entre 2012 e 2014 (http://alma- como norte a estética do frio criada por Vitor 6 Yamandu Costa (1980): violonista e Ramil. (Nota da IHU On-Line) compositor brasileiro. É considerado um dos naquedepelotas.com.br/apresen- 10 Ney de Souza Pereira (1941): mais maiores violonistas do Brasil. Filho da can- ta.htm), se não tivesse sido, an- conhecido como Ney Matogrosso, é um can- tora Clari Marcon e do multi-instrumentista tes, influenciado pelo Vitor. tor, diretor, iluminador e ator brasileiro. e professor de música Algacir Costa. Come- Ex-integrante dos Secos & Molhados (1973- çou a estudar violão aos sete anos de idade 1974), foi o artista que mais se sobressaiu com o pai, Algacir Costa, líder do grupo Os IHU On-Line – Que diálogos e par- do grupo após iniciar sua carreira solo com Fronteiriços e aprimorou-se com Lúcio Ya- cerias se estabelecem entre Ramil o disco Água do Céu – Pássaro (1975) e com nel, argentino radicado no Brasil. Até os suas apresentações subsequentes. É conside- 7 quinze anos, sua única escola musical era a e artistas como Jorge Drexler , rado pela revista Rolling Stone como a tercei- música folclórica do Sul do Brasil, Argentina ra maior voz brasileira de todos os tempos e, e Uruguai. Depois de ouvir Radamés Gnatalli 7 Jorge Drexler (1964): cantor, médico e pela mesma revista, trigésimo terceiro maior começou a procurar por outros brasileiros compositor uruguaio, mais conhecido pela artista brasileiro de todos os tempos. Embo- como Baden Powell, Tom Jobim e Raphael sua canção “Al otro lado del río”, a primeira ra tenha começado relativamente tarde, das Rabello. Yamandu toca estilos diversos como música em espanhol a vencer o Oscar de me- canções poéticas e de gêneros híbridos dos choro, bossa nova, milonga, tango, jazz, sam- lhor canção original. Além de cantor e com- Secos e Molhados ele passou a interpretar ba e chamamé, difícil enquadrá-lo em uma positor é formado médico, especializado em outros compositores do país, como Chico Bu- corrente musical principal, dado que mistura Otorrinolaringologia. Ele lançou uma música arque, Cartola, , Tom Jobim, cons- todos os estilos e cria interpretações de rara especial para uma menina misteriosa, cuja truindo um repertório que prima pela qua- personalidade no seu violão de sete cordas. as iniciais eram “GC”, que fez muito sucesso. lidade e versatilidade. Em 1983, completava (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) dez anos de estreia no cenário artístico e já

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to. Quais são os enriquecimentos Vitor se detém sobre este ponto. em espiral, aquele fluxo em que os que surgem desse diálogo? No meu livro eu trato do tema em acordes parecem se diluir e reapa- pelo menos quatro capítulos. Em- recer uns nos outros. É a forma da Luís Rubira – Na verdade é o con- bora seja um assunto que precisa milonga, ou antes, a forma como a trário. É a “estética do frio” que ser bastante explorado, trago aqui vejo, que me interessa. Gosto de permite a Vitor Ramil dialogar com para o leitor o trecho de uma en- ritmos hipnóticos, de músicas que a música brasileira de forma natu- trevista recente que o Vitor con- evoluem tanto para a frente como ral (já no ano de 2000, quando do cedeu ao Juarez Fonseca e que para o fundo, que criam simetrias lançamento de Tambong, o crítico está publicada em seu Songbook: e me permitem escrever de forma Pedro Alexandre Sanchez publicou “É natural para mim compor mi- lírica e reflexiva”. na Folha de São Paulo um texto longas. Nada a ver com pesquisas significativamente intitulado “Vi- ou resgates culturais, tanto que tor Ramil filia ‘estética do frio’ a IHU On-Line – Em entrevis- é o único gênero ‘gauchesco’ que Brasil”). Vitor Ramil, é importante ta concedida à IHU On-Line em me interessa. Por outro lado, tudo lembrar, já tivera contato pessoal dezembro de 2012, Ramil disse a ver com a lucidez poética e o com o Milton Nascimento na época que o tropicalismo foi o principal pensamento profundo de Atahual- de Estrela, estrela, bem como com desdobramento da bossa nova, e pa Yupanqui12; ou com os temas toda uma geração de importantes que preparou terreno para ideias viajantes e extensos da fase elé- músicos brasileiros que vinham da como a “estética do frio”. O que trica de Miles Davis13, no fim dos década de 1970. Da parte do Vitor essa estética sulista revela e ten- anos 60, em que baixos-contínuos é certo, portanto, que ele sempre siona acerca do imaginário do mais acordes e ritmos recorrentes acompanhou a trajetória de mui- gaúcho e da “brasilidade” por es- abrem caminho para mil estra- tos músicos que neste momento sas paragens? nhezas; ou com os cromatismos dialogam com ele, mas é provável e encadeamentos harmônicos do Luís Rubira – No livro intitulado que de uns anos para cá muitos prelúdio de Tristão e Isolda, de João Gilberto (2001), o Zuza de são os enriquecimentos, sobretudo 15 Wagner14, aquele arrebatamento Mello afirma que João é “um dos por parte daqueles que tomam um artistas brasileiros mais admirados contato com o modo original como seu primeiro texto de ficção mais longo, a no- do mundo (...) a referência mais Vitor Ramil desenvolve sua arte. vela Quatro Negros. (Nota da IHU On-Line) marcante de músicos, cantores e 12 Atahualpa Yupanqui (1908 –1992): compositores brasileiros dos últi- pseudônimo de Héctor Roberto Chavero, foi 16 IHU On-Line – Qual é a impor- um compositor, cantor, violonista e escritor mos 40 anos”. O Vitor tem razão tância da milonga e do referencial argentino. É considerado um dos mais im- no que diz sobre o tropicalismo, platino nas suas composições? portantes divulgadores de música folclórica sobretudo porque Caetano Veloso16 daquele país. Suas composições foram canta- Luís Rubira – Tanto no primeiro das por reconhecidos intérpretes, como Mer- esboço sobre a “estética do frio”, cedes Sosa, Alfredo Zitarrosa, Víctor Jara, sicais”, como ele posteriormente chamou). Dércio Marques, Ángel Parra, Marie Laforêt As composições de Wagner, particularmen- publicado em 1992 na coleção Nós, e Elis Regina entre outros, continuando a fa- te essas do fim do período, são notáveis por os Gaúchos, organizada pelo Luis zer parte do repertório de vários artistas na suas texturas complexas, harmonias ricas e Augusto Fischer11, quanto na Con- Argentina e em diferentes partes do mundo. orquestração, e o elaborado uso de Leitmotiv: Filho de pai quéchua e mãe basca, mudou-se temas musicais associados com caráter indi- ferência de Genebra, de 2004, o ainda criança com a família para Agustín vidual, lugares, ideias ou outros elementos. Roca, em cuja ferrovia seu pai trabalhava. Por não gostar da maioria das outras óperas possuía dois Discos de Platina e dois Discos Na adolescência, começa a tomar aulas de de compositores, Wagner escreveu simulta- de Ouro, inclusive pela enorme repercussão violão com o concertista Bautista Almirón, neamente a música e libreto, para todos os da canção “Homem com H” de 1981.(Nota da viajando diariamente os 15 quilômetros que o seus trabalhos. (Nota IHU On-Line) IHU On-Line) separavam da casa do mestre. É dessa época 15 José Eduardo Homem de Mello 11 Luís Augusto Fischer (1958): escri- o pseudônimo Atahualpa Yupanqui, em ho- (1933): mais conhecido como Zuza Homem tor, ensaísta e professor brasileiro. Nascido menagem a Atahualpa e Tupac Yupanqui, de Mello. É um musicólogo e jornalista brasi- em Novo Hamburgo, Fischer vive em Por- os últimos governantes incas. (Nota da IHU leiro. Zuza Homem de Mello atuou como bai- to Alegre desde o seu primeiro ano de vida. On-Line) xista profissional em bailes e clubes da cida- É formado em Letras pela UFRGS. Cursou 13 Miles Dewey Davis Jr (1926 –1991): foi de, em 1955 abandona o curso de engenharia também História, mas não concluiu. Tem um trompetista, compositor e bandleader de para dedicar-se à música. No ano seguinte, mestrado e doutorado (com tese sobre Nel- jazz norte-americano. Considerado um dos inicia-se no jornalismo, assinando colunas de son Rodrigues) também pela UFRGS, onde mais influentes músicos do século XX, Davis jazz para os jornais Folha da Noite e Folha da leciona Literatura Brasileira desde 1985. Es- esteve na vanguarda de quase todos os desen- Manhã, de São Paulo. Em 1957, frequenta a creve regularmente para vários jornais, como volvimentos do jazz desde a Segunda Guerra célebre School of Jazz, em Tanglewood, EUA, Zero Hora, Folha de S. Paulo e ABC Domingo Mundial até a década de 1990. Ele participou onde teve aulas com Ray Brown e outros mú- (de Novo Hamburgo). Também colabora com de várias gravações do bebop e das primeiras sicos do mesmo calibre. Em 1957-58, estuda as revistas Bravo! e Superinteressante. Entre gravações do cool jazz. Foi parte do desen- musicologia na Juilliard School of Music, de 1993 e 1996 foi coordenador do Livro e Lite- volvimento do jazz modal, e também do jazz Nova York. (Nota da IHU On-Line) ratura da Secretaria Municipal de Cultura de fusion que originou-se do trabalho dele com 16 (1942): músico, pro- Porto Alegre. De 1998 a 1999 foi presidente outros músicos no final da década de 1960 e dutor, arranjador e escritor brasileiro. Com da Associação Gaúcha de Escritores. Tem pu- no começo da década de 1970. (Nota da IHU uma carreira que já ultrapassa quatro déca- blicados vários livros de contos, crônicas, en- On-Line) das, construiu uma obra musical marcada saios e teoria literária. Seus maiores sucessos 14 Wilhelm Richard Wagner (1813 pela releitura e renovação, considerada de de vendas são o Dicionário de Porto-Alegrês –1883): foi um maestro, compositor, diretor grande valor intelectual e poético. Em 1969, (1999) e o Dicionário de Palavras e Expres- de teatro e ensaista alemão, primeiramente é preso pelo regime militar e parte para exí- sões Estrangeiras (2004). Em 2005, publicou conhecido por suas óperas (ou “dramas mu- lio político em Londres, onde lança Caetano

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reconheceu em Verdade Tropical cialmente por Teodomiro Tostes17 na canção “Joey”, de Bob Dylan19. Mas (1997) que “A vereda que leva à década de 1920 e mais tarde objeto o que a tornou rapidamente assimi- verdade tropical passa por minha de reflexão por Mário de Andrade18? lável por muitos que conheceram a audição de João Gilberto”. A bossa (É preciso pensar por que justamen- letra da canção na década de 1980, nova, então, é o fenômeno que irá te esta canção foi eleita no ano de quando então Vitor lançou Tango produzir o “tropicalismo” e este, 2000 como a música mais votada (1987), é que era a música de um por sua vez, abrirá um vácuo para o pelos rio-grandenses no contexto da artista sulino que falava aos seus qual Vitor cria a “estética do frio”, conterrâneos por meio de signos co- promoção “A música do Rio Grande” voltando, ao seu modo, à matriz nhecidos por eles (Vitor, por exem- – conforme interessante matéria no (João Gilberto, que inclusive muito plo, já no começo da canção abre jornal Zero Hora, de 17/08/2000). admirava o Armando Albuquerque na mente do ouvinte a existência em Porto Alegre...). Aliás, em outra de uma ‘Satolep’ que para muitos entrevista para o jornal Folha de IHU On-Line – “Joquim” e “Lou- será a própria cidade de Pelotas, São Paulo na época do lançamento cos de cara” são dois clássicos do de uma Pelotas profunda: ‘Satolep/ de Tambong, Vitor observou o se- músico pelotense. Em que medi- Noite/no meio de uma guerra ci- guinte: “No Ramilonga, fiz de pro- da essas canções falam, também, vil). Ele então não somente elege pósito esse viés do Caetano, que na de identidade e autossuperação? um músico absolutamente singular verdade é o da bossa nova. O canto norte-americano, mas adapta a le- regional do sul, grosseiro e gritado, Luís Rubira – “Joquim” é uma re- tra da canção inglesa para falar de de gaúcho macho, me incomodava criação de Vitor Ramil a partir da alguém que estaria entre nós, que muito. Por que não posso cantar de “sobrevoa o Laranjal”, que é levado 17 Teodomiro Tostes: foi um poeta, di- forma leve, delicada? Forcei a barra plomata, escritor e tradutor brasileiro. Jun- preso “para a capital”. A questão da de cantar ‘joãogilbertianamente’ e to com Augusto Meyer, Rui Cirne Lima, “identidade” para mim passa por mantenho isso em Tambong”. Por Vargas Neto e Pedro Vergara formou o pri- aqui: muitos de nós nos reconhece- meiro grupo modernista no Rio Grande do fim, a questão da “brasilidade por Sul. Trabalhou na divisão cultural do mini- mos na canção “Joquim”, não ape- essas paragens” é um tema bem stério de Relações Exteriores.( Nota da IHU nas pela canção falar de um sujeito amplo (nossa matriz portuguesa é On-Line) incompreendido e injustiçado, mas 18 Mário Raul de Moraes Andrade o elo cultural com a “brasilidade”), (1893 –1945): foi um poeta, escritor, crítico por este sujeito ser alguém incom- mas arrisco uma hipótese, embora literário, musicólogo, folclorista, ensaísta preendido e injustiçado próximo de 17 eu não seja da área da música: do brasileiro. Ele foi um dos pioneiros da po- nós... Já “Loucos de cara” expressa esia moderna brasileira com a publicação ponto de vista da sonoridade, esta de seu livro Pauliceia Desvairada em 1922. a crise de identidade de toda uma “brasilidade” já não estava entre Andrade exerceu uma grande influência na geração no Rio Grande do Sul, em nós antes de ser soterrada pela literatura moderna brasileira e, como ensaís- particular em Porto Alegre, tão bem ta e estudioso–foi um pioneiro do campo da 20 “indústria da música gauchesca”, etnomusicologia–sua influência transcendeu explorada por Juremir Machado tal como no caso da antiga canção as fronteiras do Brasil. Andrade foi a figura em seu livro seminal A miséria do popular rio-grandense “Prenda mi- central do movimento de vanguarda de São cotidiano (Porto Alegre: Artes e Ofí- Paulo por vinte anos. Músico treinado e mais nha”, que teria sido registrada ini- conhecido como poeta e romancista, Andrade cios, 1991). Espero, vivamente, ter esteve pessoalmente envolvido em pratica- contribuído em algo para a reflexão Veloso (1971). Transa (1972) representou seu mente todas as disciplinas que estiveram re- em torno deste artista em desloca- retorno ao país e seu experimento com com- lacionadas com o modernismo em São Paulo, passos de reggae. Em 1976, une-se a Gal, Gil tornando-se o polímata nacional do Brasil. mento chamado Vitor Ramil. e Bethânia para formar o Doces Bárbaros, Suas fotografias e seus ensaios, que cobriam típico grupo hippie dos anos 70, lançando uma ampla variedade de assuntos, da histó- 19 Bob Dylan: cantor e compositor■ estadu- um disco, Doces Bárbaros. Na década de 80 ria à literatura e à música, foram amplamente nidense, dono de uma extensa discografia. apadrinhou e se inspirou nos grupos de ro- divulgados na imprensa da época. Andrade Entre seus trabalhos mais recentes, destaca- cks nacionais, aventurou-se na produções dos foi a força motriz por trás da Semana de Arte mos: Modern Times (2006). (Nota da IHU discos Outras Palavras, Cores, Nomes, Uns e Moderna, evento ocorrido em 1922 que refor- On-Line) Velô, e em 1986 participou de um programa mulou a literatura e as artes visuais no Brasil, 20 Juremir Machado da Silva (1962): é de televisão com . Na década tendo sido um dos integrantes do “Grupo dos um escritor, tradutor, jornalista e professor de 90, escreveu Verdade Tropical (1997), e o Cinco”. As ideias por trás da Semana seriam universitário brasileiro. Foi coordenador do disco Livro (1998) ganha o Prêmio Grammy melhor delineadas no prefácio de seu livro de Programa de Pós-Graduação em Comuni- em 2000, na categoria World Music. (Nota da poesia Pauliceia Desvairada e nos próprios cação da PUC-RS até abril de 2014. (Nota da IHU On-Line) poemas. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— A estética do frio e a reação ao Brasil tropical. Entrevista com Vitor Ramil, publicada na revista IHU On-Line, edição 412, de 18-12-2012, disponível em http://bit.ly/1IHij0Q. —— A “estética do frio” e a identidade rio-grandense. Entrevista com Vitor Ramil, publicada na revista IHU On-Line, edição 264, de 30-06-2008, disponível em http://bit.ly/SVKcdT.

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ENTREVISTA Uma antropologia processual para pensar novos sujeitos e o comum Para Sandro Chignola, a filosofia política deve se ocupar especialmente de compreender a razão neoliberal

Por Patricia Fachin

produção filosófica de Sandro instituição conhece sua ideia de sujeito é Chignola, que tem como base uma um sujeito que se adapta à instituição. Por A interpretação histórica da filosofia isso concordo que o problema da antropo- e recorre a recursos sociológicos, centra- logia é um problema sério. Agora temos de -se em trabalhar dois problemas filosófi- pensar outros sujeitos, para pensar outras cos que, segundo ele, são centrais para instituições”. compreender a realidade contemporânea: Neste processo, pontua, a filosofia polí- “Como pensar o sujeito hoje e como pensar tica tem de assumir a “responsabilidade” o comum”. Na entrevista a seguir, conce- sobre o fenômeno dos imigrantes. “Antes dida à IHU On-Line pessoalmente, durante de pensar como enfrentamos a situação dos sua participação no XVII Simpósio Interna- imigrantes, temos de considerar como pen- cional IHU / V Colóquio Latino-Americano samos o espaço europeu, e como pensamos de Biopolítica | III Colóquio Internacio- nossas fronteiras, porque é muito simples nal de Biopolítica e Educação, Saberes e 18 pensar que as fronteiras são permeáveis Práticas na Constituição dos Sujeitos na pelas finanças, mas são muros contra as Contemporaneidade, o filósofo italiano ex- pessoas”. plica que “para pensar o comum” é preci- so “pensar que há algo como um indivíduo Sandro Chignola é professor de Filosofia subjetivado”, que não é mais um indivíduo Política no Departamento de Filosofia, So- burguês moderno, mas algo diferente, que ciologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada “tem de ser pensado de outra maneira”. na Universidade de Pádua, Itália. É autor, Uma nova compreensão de “sujeito” e de entre outros, de História de los conceptos y “comum”, esclarece, deve ser pensada à filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, luz do capitalismo contemporâneo e, nes- 2010). se sentido, “temos de pensar mecanismos O Cadernos IHU ideias publicou o artigo de êxodo, não de enfrentamento com o ‘Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Estado e pensar a antropologia de maneira Deleuze’, de autoria de Chignola. processual para pensarmos algo completa- Ele proferiu a conferência A política dos mente novo”. Uma questão atual para pen- saberes, no XVII Simpósio Internacional IHU sar tanto o “sujeito” quanto o “comum”, / V Colóquio Latino-Americano de Biopolíti- explica, é o fenômeno das migrações. “Meu ca | III Colóquio Internacional de Biopolítica problema com a questão dos imigrantes não e Educação, Saberes e Práticas na Consti- é pensar somente acerca dos direitos deles, tuição dos Sujeitos na Contemporaneidade. mas a maneira pela qual os imigrantes me obrigam a repensar minha própria posição A íntegra da conferência será publicada de cidadão branco e democrático”. Para na próxima edição de Cadernos IHU ideias e pensar um novo “sujeito”, frisa, é preciso estará disponível na página do IHU. romper com a compreensão de que pode- A entrevista foi publicada originalmente mos partir de uma compreensão antropo- em Notícias do Dia, de 28-09-2015, no sítio lógica universal. “Não creio que há algo, do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dis- que existe um sujeito natural que pode se ponível em http://bit.ly/1QLkODR. pôr na base da instituição. Creio que há um efeito circular: a maneira pela qual a Confira a entrevista.

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mente onde uma verdade nos obri- ga a pensar. Nesse sentido, penso que um dos problemas que temos de pensar é o marco que qualifica O termo biopolítica, que Foucault nossa atualidade como sendo neo- liberal. E, nesse sentido, o proble- usou, nos ajuda a explicar o que ma da filosofia política é pensar a liberdade à altura da razão gover- é a governabilidade neoliberal namental neoliberal. Para fazê-lo necessitamos fazer a história das transformações que são postas IHU On-Line – Quais são os prin- Eu me interesso por essa pers- pela razão neoliberal como o hori- cipais problemas filosóficos da fi- pectiva histórica, porque para che- zonte atual da política global. Nes- losofia política atualmente e com gar à segunda questão que você me se sentido, Foucault ajuda: o ter- quais deles ela deve se ocupar faz, tenho de pensar quais são os mo biopolítica, que ele usou, nos primordialmente? problemas filosóficos atuais e para ajuda a explicar o que é a governa- isso tenho de fazer uma história da bilidade neoliberal. A razão neoli- Sandro Chignola – Creio que há problematização. Michel Foucault1, beral trabalha de maneira diversa uma grande divisão na filosofia que estudei, dizia que temos de nas diferentes regiões do mundo contemporânea, principalmente nos colocar numa perspectiva ge- e com instituições diferentes. Em entre a filosofia política de marco nealógica, ou seja, a atualidade é uma perspectiva histórica, temos analítico e a de marco continental, algo que se move, e cada vez que de entender que tipo de problema que é a que pratico. A filosofia ana- temos de pensar nos problemas da a razão neoliberal solucionou para lítica trabalha a clarificação dos atualidade, temos de entender a se pôr de forma hegemônica, e que conceitos, das palavras, e constrói atualidade como algo que está mu- tipo de problema nós poderemos teorias normativas, porque a ideia pôr em frente a essa razão neoli- dando, ou seja, é a atualidade que dessa perspectiva é, por exemplo, beral. Creio que isso não pode ser te mostra os problemas nos quais formular um conceito de justiça feito de modo racional como pen- têm de pensar. que tenha um valor que permita a sam os analíticos, mas tem de ser compreensão entre os povos, como feito no âmbito da história. 19 se fazer filosofia política pudesse Atualidade neoliberal ser entendido como fazer uma “le- Gilles Deleuze2, que é um filóso- IHU On-Line – Por que não se gislação universal” para o mundo. pode ter uma compreensão an- fo francês, dizia que pensamos so- Essa posição me parece bastan- tropológica universal, como pon- te débil, porque pressupõe uma 1 Michel Foucault (1926-1984): filósofo to de partida, por exemplo, ape- ideia transcendental da razão, que francês. Suas obras, desde a História da Lou- sar das diversidades que existem muitas vezes pressupõe uma visão cura até a História da sexualidade (a qual nas culturas, para justamente não pôde completar devido a sua morte) ocidental de mundo, uma língua situam-se dentro de uma filosofia do conhe- garantir uma unidade apesar da franca, que seria a inglesa, e tem cimento. Foucault trata principalmente do diversidade? uma visão bastante problemática tema do poder, rompendo com as concepções Sandro Chignola – Porque o pro- da existência, porque essa ideia clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou- blema é que isso implica numa de uma razão transcendental pela cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível obrigação de pensar as mesmas qual todos possam se entender ten- em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de leis. O que existe é um monolin- de a desaparecer nos conflitos, nas 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, intitu- guismo do outro, ou seja, como se lutas políticas. lada ‘História da loucura’ e o discurso racio- para entender-se, o outro tenha de nal em debate, disponível em http://bit.ly/ A outra grande corrente é a ihuon364; edição 343, O (des)governo bio- te dar a sua própria língua. Parece continental, que faz uma filosofia político da vida humana, de 13-09-2010, di- que esse é o limite fundamental da política que tem um marco mais sponível em http://bit.ly/ihuon343, e edição filosofia analítica. Os filósofos des- 344, Biopolítica, estado de exceção e vida ta posição pensam que para solu- histórico. Deve-se entender que nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ não se trata somente de pensar a ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos cionar os problemas dos conceitos história da filosofia, mas as dife- Cadernos IHU em formação, disponível políticos, imaginar uma teoria uni- em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. versalizante, necessita que o outro rentes tradições, culturas, porque (Nota da IHU On-Line) cada cultura tem sua história e, 2 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo pense como eu. É o que chamo de se temos de tratar de uma relação francês. Assim como Foucault, foi um dos uma “sorte do monolinguismo do estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, outro”. Como se outro não tivesse entre diferentes culturas, temos Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. uma história, sua própria tradição, de ter presente que as culturas são Professor da Universidade de Paris VIII, Vin- e só pode falar contigo se pensar diferentes. Aí tem uma questão de cennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos, singularidades, con- tradução que não é somente lin- ceitos que nos impelem a transformar a nós de criação e de produção de acontecimentos- guística, mas de identidade. mesmos, incitando-nos a produzir espaços -outros. (Nota da IHU On-Line)

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no marco da filosofia analítica, in- tã5, desconstrói essa característica porque se analisarmos somente as glesa, americana. Penso que cla- quando pensa o homem como um visões dos filósofos sobre as coisas, ramente há um problema de uni- “lobo”, que vive em guerra com a filosofia pode parecer somente versalização, mas universalização outros homens. Há uma antropolo- uma série de opiniões, mas sabe- é um processo de tradução, que gia política radicalmente diferen- mos que a filosofia não deve ser fei- necessita que todos que entrem te. Por isso te digo que nós somos ta com opiniões, ou seja, a doxa6, num processo de reconhecimen- modernos e o problema é repensar aquelas ideias que os homens têm to recíproco saibam a cultura que como reconstruir uma antropologia antes de fazer filosofia. Filosofia é têm, do tipo de problema político política à altura das diferenças e uma prática que tem de chegar a que enfrentam em sua realidade, conflitos que existem. uma verdade, e a verdade é uma e que podem se entender somente conquista. traduzindo um a língua do outro, e não pressupondo uma língua uni- Vou dar um exemplo: todos os versal prévia. filósofos do século XX partiam de um pressuposto antropológico que pensa o sujeito como masculino e IHU On-Line – Então, para fazer O problema con- se pensava que o masculino era o filosofia política não é necessá- temporâneo po- sujeito universal. Aí, chegamos à rio uma concepção antropológica Revolução Francesa7 e uma mulher universal? lítico é pensar põe o problema de que a Decla- Sandro Chignola – Essa é uma esses processos ração Universal dos Cidadãos tem questão que me interessa muito. de ser modificada para Declaração Creio que o conceito de ser huma- de subjetiva- Universal dos Cidadãos e Cidadãs, no teve uma significação muito di- e diz ainda que a terceira palavra ferente ao longo da história. Não ção do trabalho do lema da Revolução Francesa, se pode partir do pressuposto de e instituições “fraternidade”, tem de ser imple- que todos entendem ser humano mentada com a “solidariedade”. de um modo tal que sempre foi as- para além da Por isso temos de pensar os pres- sim ou que todos entendem ser hu- dimensão pú- supostos antropológicos da política 20 mano de uma determinada forma. nesta dimensão histórica, porque o Um exemplo é a visão de Aristóte- blica e privada pressuposto antropológico da polí- les3, na Política, quando diz que o tica é uma conquista histórica. homem é um animal racional e po- Hoje, na filosofia política con- lítico, que necessita do outro e que IHU On-Line – Dado que uma temporânea, ninguém pode pensar sua finalidade é a felicidade. Hob- das preocupações da filosofia é a um pressuposto antropológico que bes4, no princípio da modernidade verdade, as definições de Aristó- política, no capítulo XIII do Levia- não inclua a diferença sexual entre teles e Hobbes acerca do homem homens e mulheres, mas na tradi- 3 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 ou podem ser complementares ou ção filosófica prévia não havia essa a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. uma delas pode compreender o questão. Creio que isso diz respeito Suas reflexões filosóficas – por um lado, ori- homem de maneira equivocada. a um problema de tradução, e um ginais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo de A partir dessas duas visões e das problema contemporâneo sério é o pensar que se estenderia por séculos. Prestou mudanças históricas, quais são os significativas contribuições para o pensa- novos pressupostos que devem 6 Doxa é uma palavra grega que significa mento humano, destacando-se nos campos crença comum ou opinião popular. (Nota da da ética, política, física, metafísica, lógica, estar presentes em uma concep- IHU On-Line) psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia ção antropológica neste momento 7 Revolução Francesa: nome dado ao con- e história natural. É considerado, por muitos, histórico da contemporaneidade? junto de acontecimentos que, entre 5 de maio o filósofo que mais influenciou o pensamento de 1789 e 9 de novembro de 1799, alteraram ocidental. (Nota da IHU On-Line) Sandro Chignola – Claro, a filo- o quadro político e social da França. Come- 4 Thomas Hobbes (1588–1679): filóso- sofia busca a verdade e esse é um ça com a convocação dos Estados Gerais e a fo inglês. Sua obra mais famosa, O Leviatã Queda da Bastilha e se encerra com o golpe (1651), trata de teoria política. Neste livro, problema filosófico muito sério, de estado do 18 Brumário, de Napoleão Bo- Hobbes nega que o homem seja um ser na- naparte. Em causa estavam o Antigo Regime turalmente social. Afirma, ao contrário, que 5 Leviatã: é o nome comumente dado à obra (Ancien Régime) e a autoridade do clero e da os homens são impulsionados apenas por Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Es- nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Ilu- considerações egoístas. Também escreveu tado Eclesiástico e Civil. O livro foi escrito por minismo e da independência estadunidense sobre física e psicologia. Hobbes estudou na Thomas Hobbes e publicado em 1651. O livro (1776). Está entre as maiores revoluções da Universidade de Oxford e foi secretário de Sir diz respeito à estrutura da sociedade e do história da humanidade. A Revolução Fran- Francis Bacon. A respeito desse filósofo, con- governo legítimo, e é considerado como um cesa é considerada como o acontecimento fira a entrevista O conflito é o motor da vida dos exemplos mais antigos e mais influentes que deu início à Idade Contemporânea. Abo- política, concedida pela Profa. Dra. Maria da teoria do contrato social. É considerado liu a servidão e os direitos feudais e procla- Isabel Limongi à edição 276 da revista IHU uma das obras mais influentes já escritas mou os princípios universais de “Liberdade, On-Line, de 06-10-2008. O material está do pensamento político, que foi escrito du- Igualdade e Fraternidade” (Liberté, Egalité, disponível em http://bit.ly/ihuon276. (Nota rante a Guerra Civil Inglesa. (Nota da IHU Fraternité), lema de autoria de Jean-Jacques da IHU On-Line) On-Line) Rousseau. (Nota da IHU On-Line)

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problema da tradução, porque, por truindo. Assim, não há um processo responsabilidade de pensar como exemplo, a perspectiva feminina antropológico na política, mas sim enfrentar esse tipo de fenômeno: da política e a perspectiva masculi- processos de subjetivação: os es- antes de pensar como enfrentamos na são completamente diferentes. cravos do Haiti perdem sua própria a situação dos imigrantes, temos Para um filósofo analítico, isso não independência, mas a experiência de considerar como pensamos o é um problema, porque a mulher de subjetivação política radical se espaço europeu e como pensamos pode falar uma língua dos direitos, põe como um mito de referência nossas fronteiras, porque é muito embora essa língua seja masculina. por dois séculos seguintes. Mu- simples pensar que as fronteiras lheres e escravos representam a são permeáveis pelas finanças, mas Problema dos sujeitos contradição imanente de uma an- são muros contra as pessoas. Desde tropologia política pensada de ma- os anos 2000 se tem uma ideia de De todo modo, não gosto de pen- neira tranquila. que as finanças devem fazer parte sar nessa perspectiva de uma con- de um modelo econômico global, cepção antropológica. Penso que mas quando se trata dos homens, um dos problemas filosóficos polí- surgem os muros, que são necessá- ticos mais relevantes é o problema rios para que essa gente entre na dos sujeitos, que entendo como um Europa ou nos EUA em uma posição processo, como uma subjetivação, débil, para desfrutar do seu traba- porque como dizia antes, creio que Não posso pen- lho, mas que é um trabalho precá- temos de pensar numa perspecti- sar um imigran- rio, como de semiescravidão. va histórica. Se penso que há algo como o sujeito, penso numa pers- te somente como Imigração para além da pectiva histórica, ou seja, que o vitimização sujeito político é algo que se põe uma vítima em movimento, tomando a palavra Ainda sobre as migrações, o que nas situações, e em geral os sujei- me parece importante pensar são tos se movem à margem do que se IHU On-Line – Como essa sua os projetos de subjetivação. Não pensa ser a cidadania normal. compreensão do sujeito que se posso pensar um imigrante somen- constrói na história nos ajuda a O problema é a parte dos que te como uma vítima, porque ele é entender o problema dos imigran- não têm parte. No mesmo momen- alguém que investe em sua própria 21 tes hoje? to da Revolução Francesa, quando vida e quer viver melhor e se su- as mulheres tomaram a palavra, Sandro Chignola – Sempre que jeita a uma posição às margens da havia outro sujeito político, que falo dessa questão, falo à luz do cidadania europeia, o que nos obri- se colocou como sujeito político princípio da sociologia: há a coinci- ga também a repensar a cidadania novo: os escravos haitianos. O Haiti dência entre o saber da sociologia europeia. Não podemos pensar que é colônia francesa, e esses escra- e a invenção da fotografia. O - sa nós europeus somos sempre bons, vos fizeram uma revolução contra ber da sociologia é mais ou menos que ajudamos as pessoas; não, nós os revolucionários franceses, por- como se pode fotografar a realida- também somos maus, exportamos que pensaram o seguinte: “Como de. Quando se fala desse tipo de a guerra, e isso me parece algo que podem os revolucionários france- coisa, penso que é como fazer uma nos propõe uma responsabilidade ses falar em igualdade, liberdade fotografia em movimento, porque de pensamento antes de tudo, ou e fraternidade de todos os homens, falar do que está acontecendo ago- seja, repensando o que é a Europa, e manter a escravidão em suas ra é complicado, não é algo sim- o que é a cidadania europeia, sem colônias?” ples, não é como falar de um pro- dar todas as coisas por tranqui- cesso que já terminou. las, como faz a filosofia analítica, A antropologia política é um quando diz: já temos uma ideia de problema muito interessante no Assim, o que me parece impor- justiça, já temos uma visão antro- século XVI, porque quando os co- tante são dois dados. Primeiro, que pológica e agora vamos discutir. lonizadores chegaram ao Brasil, boa parte da imigração é causada houve um problema teológico, por- por intervenções ocidentais em pa- IHU On-Line – Como, a partir que eles tomaram a antropologia íses orientais. Ou seja, se o Ociden- da sua compreensão de filosofia bíblica como algo muito sério. Há te exporta a guerra, tem de impor- política e da sua compreensão de um debate teológico, na segunda tar os imigrantes. A segunda coisa é sujeito, podemos compreender o escolástica, de pensar se todas as um problema que pertence à filoso- fenômeno da imigração do ponto pessoas são seres humanos ou se fia política: é necessário encontrar de vista dos imigrantes e da histó- não são. Esse problema volta na uma forma de enfrentar o racismo, ria política deles? Revolução Francesa quando se diz a xenofobia e o fascismo, onde pa- que os escravos negros não são recia que tudo isso fazia parte de Sandro Chignola – Esse é um pro- humanos e mostra que essa visão uma história terminada. A filosofia blema que está sendo muito deba- muda à medida que a vamos cons- política também tem de assumir a tido na filosofia política, em par-

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ticular na Inglaterra e na França, Sandro Chignola – Não sei, mas conhecido no Brasil. Em que as- onde houve um debate sobre a cri- trabalhei politicamente com os pectos da obra dele concentrou se do multiculturalismo, ou seja, imigrantes na Itália e sempre pen- seus estudos? daquele modelo de integração dos sei que um dos problemas princi- Sandro Chignola – Eric Voegelin é imigrantes dos anos 1950 e 1960. A pais era organizar politicamente os um pensador bastante raro, que se França e a Inglaterra sempre tive- imigrantes. E todos os imigrantes formou na Áustria e na Alemanha ram colônias e imigrantes de cultu- com os quais conversei percebiam nos anos 1930 e teve contato com ras diferentes, que estavam inclu- sua identidade islâmica como algo círculos de intelectuais freudia- ídos e integrados. Esse fenômeno reativo, como uma defesa à exclu- nos. Quando os nazistas ocuparam ficou conhecido como perspectiva são que viviam. O que me chamava a Áustria, ele fugiu e foi para os multicultural, que consistia em a atenção era mais o processo de EUA. Lá ele desenvolveu uma pers- dizer que o Ocidente europeu re- hibridação cultural que havia, no pectiva sobre a filosofia política conhecia que havia, também na sentido de que as meninas islâmi- cas usavam véu, mas queriam ir em relação com outros intelectu- periferia de Paris, cidadãos islâmi- dançar aos domingos com outras ais imigrantes, como Leo Strauss9 e cos. Com os problemas da França meninas. Ou meninos islâmicos que Hannah Arendt10. Depois, nos anos nos anos 2000, e com problemas eram praticantes, mas queriam or- 1950, ele voltou para a Alemanha e na Inglaterra, houve um debate di- ganizar formas de hip-hop entre obteve a mesma cátedra de socio- zendo que o modelo de integração eles. logia que foi de Max Weber11. Ele do multiculturalismo fracassou, porque na periferia francesa há sobre gnose, questionando a validade do processos de identificação reativos termo e buscando redefinir seu significado. pelos quais os jovens migrantes da De suas obras, citamos A nova ciência da po- lítica (2ª ed. Brasília: Universidade de Brasil, terceira geração redescobrem suas 1982). (Nota da IHU On-Line) origens islâmicas, que são polêmi- Não há mais 9 Leo Strauss (Kirchhain, 20 de setembro cas em relação ao Ocidente. de 1899 – Annapolis, 18 de outubro de 1973): possibilidade foi um filósofo político teuto-americano ateu O problema fundamental perten- de origem judaica [1] . Especialista no estudo de pensar um da Filosofia Política Clássica, passou - ama ce à representação de multicultu- ior parte de sua carreira como professor de ralismo, ou seja, dizer que há esse Estado sobe- Ciência Política na Universidade de Chicago. suposto universal, que permanecia (Nota da IHU On-Line) 22 10 Hannah Arendt (1906-1975): filóso- ao centro desse jogo de reconhe- rano como co- fa e socióloga alemã, de origem judaica. Foi cimento, como o que administrava nhecemos nos influenciada por Husserl, Heidegger e Karl as posições. Eu penso que o verda- Jaspers. Em consequência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os Estados deiro problema é o de implemen- anos 1960 Unidos, onde escreveu grande parte das suas tar processos de tradução e de obras. Lecionou nas principais universidades reforma, porque um menino que deste país. Sua filosofia assenta numa -críti Benjamin pensava que a tradu- ca à sociedade de massas e à sua tendência cresce na periferia das metrópoles para atomizar os indivíduos. Preconiza um europeias sem perspectiva de tra- ção era a língua universal em si regresso a uma concepção política separada balho e de integração efetiva, que mesma, porque é um mecanismo da esfera econômica, tendo como modelo de agora é jogado à cultura do consu- que te põe na perspectiva de ver inspiração a antiga cidade grega. A edição que a tua identidade nunca é uma mais recente da IHU On-Line que abordou mo, tende, de maneira reativa, a o trabalho da filósofa foi a 438,A Banalidade se pôr contra uma sociedade. São identidade pura, mas de movimen- do Mal, de 24-03-2014, disponível em http:// to entre outros. Essa perspectiva é bit.ly/ihuon438. Sobre Arendt, confira ianda dois processos que vão mobilizando interessante porque a única língua as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- uns junto aos outros no sentido de universal é a do intercâmbio. 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone pensar integrações econômicas que Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar- permitam uma nova forma de inte- caram o século XX, disponível em http://bit. IHU On-Line – Você estudou Eric ly/ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006, gração, e mecanismos de tradução intitulada O mundo moderno é o mundo sem 8 que permitam que nós discutamos Voegelin . Esse é um autor pouco política. Hannah Arendt 1906-1975, disponí- sem pressupor que há um que fale vel em http://bit.ly/ihuon206. (Nota da IHU 8 Eric Voegelin (1901-1985): estudioso On-Line) por todos, que está no centro, e alemão que causou comoção nos meios aca- 11 Max Weber (1864-1920): sociólogo ale- que nunca põe sua visão em discus- dêmicos ao classificar movimentos políticos mão, considerado um dos fundadores da são, que é a representação que o modernos – como o positivismo e o marxis- Sociologia. Ética protestante e o espírito do mo – como gnósticos, de modo que não pas- capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Ocidente faz de si mesmo. sariam de novas versões de uma velha heresia Letras, 2004) é uma das suas mais conheci- combatida pela Igreja Católica. Foi aluno de das e importantes obras. Cem anos depois, Hans Kelsen, mas acabou emigrando para a a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edi- IHU On-Line – Você fala que o Louisiana, no Sul dos Estados Unidos, duran- ção, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A Ocidente tem uma visão universal te a ditadura de Hitler. Foi lá que escreveu a ética protestante e o espírito do capitalismo de si mesmo. Entre os orientais maioria de seus livros. Em grande parte devi- 100 anos depois, disponível para download do à difusão das teses de Voegelin, inspiradas em http://bit.ly/ihuon101. De Max Weber de modo geral, existe uma visão por autores modernistas, tem havido recen- o IHU publicou o Cadernos IHU em for- universal também? temente uma onda de estudos “revisionistas” mação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o

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teve uma trajetória de formação Trata justamente dessa cone- antes, quando Hobbes põe uma bastante interessante e escreveu xão entre desejo, êxodo e saída, imagem de homem por meio de sobre muitas coisas, principalmen- que permitia ler toda a tradição um conceito, o qual usa para dizê- te a obra que se chama Ordem e da Bíblia, e depois permitiu ler a -lo, produz o efeito de verdade do história, que reúne cinco volumes, colonização da América, como um surgimento do Estado moderno, na qual desenvolveu a ideia de que mecanismo de desejo, liberdade e da soberania. Ou seja, a história o centro da ordem histórica é a movimento, que possibilitava tanto dos conceitos políticos permite experiência que a consciência faz a crítica da ordem a partir de uma dizer isso: há uma época na qual de si mesmo. Mas eu me interessei os conceitos políticos modernos por outra coisa, pelo fato de que foram postos e com os quais nós ele era um dos primeiros filósofos pensamos. políticos da cultura histórica que Eu não gosto dessas ideias de tentava pensar uma ciência polí- Estado, soberania, de uma visão tica a partir de Max Weber, ou da Como se pode universal de homem. A experiên- ciência política como pensava a pensar uma cia da política ocidental, que fun- tradição americana, ou seja, uma damentalmente trabalha com os ciência política nova que recorria à subjetivação li- conceitos de indivíduos, vontade, política antiga, ou seja, recolocava representação política, soberania, 12 vre ao interior Platão e Aristóteles ao centro da Estado, diz respeito a uma época política. de dispositivos determinada que não coincide com A outra perspectiva de sua obra nenhuma universalidade histórica. que me interessava muito era sua políticos que Essa experiência de política des- teoria do êxodo, a qual dizia que são dispositivos constrói, por exemplo, toda a an- a experiência da consciência que tropologia política da experiência permitia a experiência da ordem de governo? filosófica política anterior. da história é uma experiência que se centra sobre a experiência de Fim do Estado distância, quanto, por meio da crí- processos de subjetivação política, tica, um processo de subjetivação que sempre foi meu interesse prin- Hoje, estamos em uma época que te põe em outro lugar, em ou- cipal como um processo de êxodo, em que penso que o Estado está 23 tra ordem de pensamento. Além de saída. Ou seja, pode se ter uma terminando, por conta da globali- disso, a partir da obra de Voegelin, ordem política quando se toma dis- zação, de problemas que mostram tância dela, justamente porque se tive a possibilidade de reconstruir que o Estado não tem a relevância rechaça essa ordem. Ele também uma série de relações com a mi- que tinha antes. Cada vez que digo trabalhou as Confissões de Santo gração alemã nos EUA, nos anos da isso na Argentina, eles respondem: Agostinho13. Guerra. “Não diga isso, nós queremos o Es- tado, porque ele nos serve”. Talvez espírito do capitalismo disponível em http:// IHU On-Line – Como você passou seja o que digam aqui no Brasil bit.ly/ihuem03. Em 10-11-2005, o professor também, mas do meu ponto de Antônio Flávio Pierucci ministrou a confe- do estudo de Voegelin para Fou- rência de encerramento do I Ciclo de Estu- cault? Percebe relações entre os vista da Europa, a impressão que dos Repensando os Clássicos da Economia, dois? tenho é de que o grande mecanis- promovido pelo IHU, intitulada Relações e mo de regulação global cruza os implicações da ética protestante para o ca- Sandro Chignola – O centro prin- Estados, utiliza o Estado, mas não pitalismo. (Nota da IHU On-Line) 12 Platão (427-347 a.C.): filósofo ateniense. cipal da minha investigação até há mais possibilidade de pensar um Criador de sistemas filosóficos influentes até agora foi a história dos conceitos Estado soberano como conhecemos hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialéti- políticos. A história dos conceitos nos anos 1960. ca. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam- políticos na minha perspectiva não -se A República (São Paulo: Editora Edipro, era simplesmente fazer a história IHU On-Line – O que imagina que 2012) e Fédon (São Paulo: Martin Claret, das palavras, porque as palavras 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As pode substituir o Estado, ou vive- implicações éticas da cosmologia de Pla- veiculam, em particular na moder- remos sem o Estado no futuro? tão, concedida pelo filósofo Marcelo Perine nidade política, efeitos de verda- Sandro Chignola – Isso eu não à edição 194 da revista IHU On-Line, de de, como diria Foucault, ou seja, 04-09-2006,disponível em http://bit.ly/pte- sei. Foucault te diria: “Não sei o constroem a realidade. Como dizia X8f. Leia, também, a edição 294 da Revista que colocaremos no lugar, mas é IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento, disponí- tino e criou os conceitos de pecado original preciso fazer a genealogia desse vel em IHU On-Line) e guerra justa. Confira a entrevista concedida processo para entender em que 13 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, por Luiz Astorga à edição 421 da IHU On-Li- ponto estamos”. Isso porque já nos 354-430): bispo, escritor, teólogo, filósofo foi ne, de 04-06-2013, intitulada A disputatio de damos conta de que o Estado não uma das figuras mais importantes no desen- Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla, volvimento do cristianismo no Ocidente. Ele disponível em http://bit.ly/ihuon421. (Nota é mais suficiente para solucionar o foi influenciado pelo neoplatonismo de Plo- da IHU On-Line) problema político, e isso nos colo-

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ca a pensar para além do Estado, problema era o poder. Mas meu de dispositivos políticos que são que é meu problema de investiga- problema foi sempre o sujeito”. dispositivos de governo? É por isso ção, atualmente. Ou seja, o sujeito que é sujeita- que me interesso por Foucault, do, e depois o problema da subje- porque é uma das ferramentas Eu te dizia que esses dispositi- tivação, porque o problema fun- que temos para pensar a atuali- vos de conceitos políticos remove damental do governo neoliberal é dade. Minha questão não é reabi- toda a filosofia política clássica a produção da subjetividade, ou litar a filosofia grega, mas pensar que tem mil ferramentas para seja, disciplina com instrumentos a subjetividade como um proces- pensar de maneira diferente a pedagógicos: a ideia que cada su- so de subjetivação, que é o que política, e adiante nos obriga a jeito pense a si mesmo como um nos permite pensar a identidade pensar de outra maneira. Então, empreendedor de si mesmo, que queer, a identidade masculina e por que Voegelin? Porque ele foi pode construir-se a si mesmo e, a feminina para além da ideia de um dos primeiros que conheci que partir disso, se pôr em concorrên- que porque alguém nasce homem colocava esse problema de redes- cia com os outros no mercado de é homem, ou nasce mulher, é mu- cobrir os antigos, Platão e Aris- trabalho. É um trabalho discipli- lher14. Devemos pensar processos tóteles, para pensar de maneira nar de subjetividade. de transformações dessas identi- diferente a ciência política webe- dades, e é isso que me permite riana que está formulada com a Foucault intuiu por primeiro que pensar a subjetividade dos imi- ideia de que o Estado tem o mo- a razão neoliberal trabalha no co- grantes, que têm uma subjetivi- nopólio da violência e que esse é ração da subjetividade, levando a dade em movimento. o único horizonte político que se pensar a ti mesmo como um con- pode pensar. sumidor, como um sujeito que é livre, mas só é livre de escolher o IHU On-Line – Como essas ins- Foucault, por outro lado, foi o tituições, a exemplo do FMI, que primeiro pensador que já ao final você menciona, criam subjetivi- dos anos 1960 intui que o Estado dades? As instituições, enquanto estava terminando, quando intro- parte do processo histórico, não duziu o termo governabilidade, existem por si mesmas, mas são governança. Ele também é um dos A desconstrução uma criação dos homens. Logo, primeiros que pensa que a nova não lhe parece que antes das ins- 24 regulação política iria armar-se de da universalida- tituições existem os homens e, instrumentos administrativos. Pen- de ou simples- novamente, a raiz dos problemas sa quem são as grandes instituições que temos de enfrentar hoje tem globais que governam o mundo: mente de alguns uma perspectiva antropológica? não são organizações soberanas, porque elas não são eleitas; não conceitos políti- Sandro Chignola – Não sei se são instituições parlamentares do vou responder da forma que você Estado, são grandes organizações cos é necessária gostaria, mas penso que as institui- técnicas da administração global, ções sempre fabricaram os sujeitos de um modo tal que era necessá- como o Fundo Monetário Interna- que quer do mercado. Contra esse rio para o funcionamento das ins- cional – FMI, o Banco Central, que processo de subjetivação, tem de tituições. Quando Hobbes pensa o governam as pessoas. Não há ne- se pensar processos de subjetiva- homem como um lobo, valoriza o nhuma instituição representativa ção livres. Os últimos cursos de homem a partir de um ponto de que permite pensar de maneira Michel Foucault foram dados na vista, porque quer construir um su- democrática clássica a contempo- Grécia, onde ele trabalhou sobre jeito dócil, obediente, um sobera- raneidade política. os gregos, Platão, os estoicos. O no, sem a existência do qual o pró- problema da subjetivação é pen- prio homem está morto. Creio que Criação de sado como formas de vida que não neste sentido há uma antropologia subjetividade são sujeitadas a algo como a forma que é efeito da instituição. Para jurídica moderna, disciplinar, são pensar o Estado dessa maneira, há Foucault é interessante para formas de modificação constante que se pensar a pessoa dessa ma- mim porque pensava que, para de si mesmo. neira, como lobos, como perigosos pensar além do Estado, não pen- e concorrentes. sava a solução, mas antes ajudava Os gregos e o governo a pôr o problema. Outra questão Não creio que há algo – e nisso que me interessa na obra dele é o Os gregos não conhecem a so- sou foucaultiano –, que existe um último Foucault, que é o primeiro berania, conhecem o governo. E sujeito natural que pode se pôr que põe o problema da subjetiva- Aristóteles diz na Política: “Go- ção de maneira claríssima. Numa vernar e ser governado”. O pro- 14 A IHU On-Line nº 463, intitulada Todas as possibilidades de gênero, aborda essa entrevista que concedeu, ele blema é: Como se pode pensar questão. Está disponível em http://migre. disse: “Todos pensaram que meu uma subjetivação livre ao interior me/rCxP4. (Nota da IHU On-Line)

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na base da instituição. Creio que a forma produtiva contemporânea essas categorias de sujeito, sobe- há um efeito circular: a maneira é uma forma na qual a vida dos ho- rania, Estado, público, privado. Há pela qual a instituição conhece mens está posta ao trabalho; é uma que se pensar instituições comuns sua ideia de sujeito é um sujeito vida produtiva. Por exemplo, quan- e não instituições estatais clássi- que se adapta à instituição. Por do alguém posta algo em seu Face- cas. As soluções para isso não se isso concordo que o problema da book ou no Youtube, não faz disso encontram na filosofia, mas nos -ho antropologia é um problema sé- seu tempo livre, mas está traba- mens e mulheres, nos movimentos. rio. Agora temos de pensar ou- lhando, porque o valor da empresa tros sujeitos, para pensar outras IHU On-Line – Que aspectos instituições. da política Agamben ajuda a Para os gregos a filosofia era uma compreender? forma de vida segundo a qual um Sandro Chignola – Penso que pou- vivente produzia sua própria sub- A filosofia está cos, mas essa é uma polêmica pes- jetividade. À altura do capitalismo soal minha. Ele é um filósofo muito contemporâneo, temos de pensar caminhando ao sério, trabalhou com Heidegger17, mecanismos de êxodo, não de en- casou-se com uma mulher muito frentamento com o Estado, ou seja, regresso de sua rica na Itália (risos). Mas tenho temos de pensar novas formas de própria história um problema com seu pensamen- vida que não sejam simplesmente to, porque sua perspectiva sobre estatais ou institucionais, e pensar a sacralização da vida sobre esse a antropologia de maneira proces- dispositivo de exclusão e inclusão sual para pensarmos algo comple- Facebook vai subindo a partir do radical da vida é muito forte de tamente novo. próprio desejo de comunicação das uma perspectiva crítica, mas muito pessoas. Assim, há um capitalismo débil de uma perspectiva política. IHU On-Line – O que você tem que vai assumindo a figura de quem Ele tem uma perspectiva muito vi- em mente sobre o que seria tem a estrutura digital e ganha di- timizada do sujeito, ou seja, o su- essa nova forma de vida a ser nheiro com isso. jeito é uma vítima, um sujeito que não é um sujeito porque tem uma desenvolvida? Não tenho soluções, mas te digo vida que está para ser perdida. Sandro Chignola – Isso é compli- que o problema político contempo- 25 cado, mas eu penso que estou pró- râneo é pensar esses processos de Reconheço que é um pensador ximo de meu amigo Toni Negri15 e subjetivação do trabalho e institui- importante, mas sempre achei ções para além da dimensão pú- assim penso como Agamben16, que que essa perspectiva que ele tra- blica e privada, o que Agamben e balha é ‘vitimária’ e não me ajuda 15 Antonio Negri (1933): filósofo políti- Negri chamam de “comum”. Temos a pensar processos de subjetiva- co e moral italiano. Durante a adolescência, de pensar processos de subjetiva- ção. Nesse sentido, o imigrante foi militante da Juventude Italiana de Ação ção e comunicação que ponham em pode ser visto como “a vida nua”, Católica, como Umberto Eco e outros inte- lectuais italianos. Em 2000 publicou o livro- comum as identidades, as experi- que está no barco entre a Líbia e -manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: ências, linguagens. Estamos num Record, 2003), com Michael Hardt. Em se- processo de transformação e a 17 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo guida, publicou Multidão. Guerra e demo- crise econômica é um sintoma que alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo cracia na era do império (Rio de Janeiro/São (1927). A problemática heideggeriana é am- Paulo: Record, 2005), também com Michael nos leva a pensar de outras formas pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas Hardt – sobre esta obra, publicamos um arti- sobre o humanismo (1947), Introdução à go de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU tória: destruição da experiência e origem da metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira On-Line, de 29-11-2004. O último livro da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O “trilogia” entre os dois autores Commonwe- Estado de exceção (São Paulo: Boitempo Edi- século de Heidegger, disponível em http:// alth (USA: First harvaard University Press torial, 2007), Estâncias – A palavra e o fan- bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, inti- paperback, 2011), ainda não foi publicado em tasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: tulada Ser e tempo. A desconstrução da me- português. (Nota da IHU On-Line) (Nota da Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: tafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira, IHU On-Line) Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, ainda, Cadernos IHU Em Formação nº 16 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita- o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – 12, Martin Heidegger. A desconstrução da liano. É professor da Facolta di Design e arti IHU publicou a entrevista Estado de exceção metafísica, que pode ser acessado em http:// della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com bit.ly/ihuem12. Confira, também, a entrevis- do College International de Philosophie de o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível ta concedida por Ernildo Stein à edição 328 Paris. Formado em Direito, foi professor da em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, Universitá di Macerata, Universitá di Vero- da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a disponível em http://bit.ly/ihuon328, intitu- na e da New York University, cargo ao qual entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito lada O biologismo radical de Nietzsche não renunciou em protesto à política do governo originário de uma nova experiência, ética, pode ser minimizado, na qual discute ideias estadunidense. Sua produção centra-se nas política e direito, com o filósofo Fabrício de sua conferência A crítica de Heidegger ao relações entre filosofia, literatura, poesia Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/ biologismo de Nietzsche e a questão da bio- e, fundamentalmente, política. Entre suas ihuon236. A edição 81 da publicação, de 27- política, parte integrante do ciclo de estu- principais obras, estão Homo Sacer: o poder 10-2003, teve como tema de capa O Estado dos Filosofias da diferença – pré-evento soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. de exceção e a vida nua: a lei política moder- do XI Simpósio Internacional IHU: O UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo na, disponível para acesso em http://bit.ly/ (des)governo biopolítico da vida hu- Horizonte: Ed. UFMG, 2005), Infância e his- ihuon81. (Nota da IHU On-Line) mana. (Nota da IHU On-Line)

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a Sicília, que morre, como o me- conheço a produção brasileira Sandro Chignola – Eles foram nino que morreu esses dias, cuja sobre Foucault, porque não leio fortes, mas a diferença é enten- foto circulou pelo mundo todo, ou em português e também porque der o que é forte no sentido de pode ser visto como um sujeito em as obras brasileiras não chegam que está na moda e está sendo movimento, que tem seu desejo à Europa. Não sei se é um limi- muito lido, e o que é forte por- de liberdade e que sofre, mas que te dos foucaultianos ou limite que é. Esse é um tema com o qual é mais forte do que seu sofrimento dos brasileiros que não se colo- polemizo muito, porque há uma e que nos ajuda a pensar proces- cam em relação com foucaultia- operação em curso, que creio sos de subjetivação para nós mes- que vai evaporar, porque não tem nos de outras partes do mundo. mos. Porque meu problema com a muito sentido falar de uma teoria Meu amigo Edgardo Castro18, que questão dos imigrantes não é pen- francesa, como se falava nos anos é argentino, sempre é convidado sar somente acerca dos direitos 1970, ou de uma teoria italiana. deles, mas a maneira pela qual os a participar de eventos que acon- Dizia-se nessa época que o futuro imigrantes me obrigam a repensar tecem em outros locais do mun- da filosofia era a teoria francesa: minha própria posição de cidadão do. Foucault veio ao Brasil muitas Foucault, Derrida19. Mas há pou- branco e democrático. vezes, mas penso que haja uma cos dias estive num colóquio e al- limitação da língua ou talvez os guém dizia que hoje há algo como Responsabilidade brasileiros não queiram sair e dis- uma teoria italiana, com Toni Ne- política cutir. Nunca encontrei brasileiros gri, Agamben, e nós italianos que em congressos internacionais na estudamos esses problemas. Mas Uma das minhas polêmicas com Europa, por exemplo. Essa é uma acho que isso é moda. E, de outro a filosofia política é que muitas coisa que tem de ser solucionada, lado, existem coisas que são de vezes se faz filosofia política sem porque se há uma receptividade fato influentes e que nos permi- haver responsabilidade pelo que se de Foucault aqui no Brasil, os tem pensar. faz. Ou seja, achar que temos um brasileiros deveriam divulgar suas A desconstrução genealógica de conjunto de autores e é com es- produções. Foucault tem um sentido, porque ses que devemos trabalhar. Há um há de se desconstruir a pretensão processo de subjetivação acadêmi- de universalidade, de neutralida- ca que responsabiliza a produção IHU On-Line – Durante algum 26 acadêmica. tempo, os filósofos que optaram de, de democracia – eu sou mar- por uma teoria da desconstrução xiano –, e não pensar que todo Há uma responsabilidade do tiveram muito sucesso, foram problema político está solucionado trabalho intelectual e essa é uma bastante lidos. Essa ainda é a ten- dentro dos mecanismos clássicos perspectiva weberiana que gosto da representação política, que dência da filosofia ou isso foi ape- muito. Weber tem duas palestras esta pode funcionar para sempre; nas uma “moda”? de 1919, uma chamada O trabalho isso me parece muito débil. Não intelectual como profissão, e ou- 18 Edgardo Castro: doutor em Filosofia sou antidemocrático, mas penso tra, A política como profissão, que pela Universidad de Friburgo, pesquisador que temos de pensar para além da são muito interessantes. Ele faz re- do CONICET e professor da Universidad democracia. É nesse sentido que a ferência específica a Platão, sobre Nacional de San Martín. Tem trabalhado como professor em diversas universidades desconstrução é importante para o diálogo da coragem da verdade, argentinas, e é professor convidado no Insti- desconstruir algumas coisas e pen- no qual ele coloca o mesmo pro- tuto Italiano di Scienze Umane de Nápoles, sar para além delas. blema que Foucault se colocou ao na Universidade Federal de Santa Catarina dizer que a Filosofia é pensamen- e na Universidad de . Suas publicações Nessa perspectiva, a desconstru- versam sobre a filosofia contemporânea, ção da universalidade ou simples- to que tem responsabilidade pelo particularmente francesa e italiana. É um que faz, pelo tipo de autores que dos principais tradutores da obra de Gior- mente de alguns conceitos políti- se trabalha, ou seja, há um moti- gio Agamben ao espanhol. Entre seus livros, destacamos Pensar a Foucault (Buenos Ai- 19 Jacques Derrida (1930-2004): filós- vo para trabalhar uma coisa e não res: Biblos, 1995), Giorgio Agamben. Una ofo francês, criador do método chamado outra. Esse estilo de pensamento arqueología de la potencia (Buenos Aires: desconstrução. Seu trabalho é associado, de Foucault me influenciou muito. Unsam Edita, 2008) traduzido para o por- com frequência, ao pós-estruturalismo e Ou seja, a filosofia tem de pensar tuguês sob o título Introdução a Agamben. ao pós-modernismo. Entre as principais Uma arqueologia da potência (São Paulo: influências de Derrida encontram-se Sig- os problemas que a realidade nos Autêntica, 2012) e Diccionario Foucault mund Freud e Martin Heidegger. Entre sua põe. (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2012). extensa produção, figuram os livros Grama- Castro participou do XVII Simpósio Interna- tologia (São Paulo: Perspectiva, 1973), A cional IHU | V Colóquio Latino-Americano farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras, IHU On-Line – Como vê a recep- de Biopolítica | III Colóquio Internacional 1994), O animal que logo sou (São Paulo: tividade dos estudos de Foucault de Biopolítica e Educação. Saberes e Prátic- UNESP, 2002), Papel-máquina (São Paulo: as na Constituição dos Sujeitos na Contem- Estação Liberdade, 2004) e Força de lei (São no Brasil? poraneidade, que ocorreu entre os dias 21 a Paulo: WMF Martins Fontes, 2007). Dedica- Sandro Chignola – Percebo 24-09-2015, na Unisinos. A última entrevi- mos a Derrida a editoria Memória da IHU sta de Edgardo Castro à IHU On-Line está On-Line nº 119, de 18-10-2004, disponível que no Brasil muitos estudam disponível no link http://migre.me/rCyyx. em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU Foucault e Agamben, mas não (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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cos é necessária. Depois, temos de é uma sociedade, porque não se finidos. Além disso, tem Toni Negri, construir concepções novas. Não pode pensar um indivíduo sem pen- Michael Hardt22, Pierre Hadot23. creio que simplesmente o proble- sar o complexo das relações que Este é um problema que não é ma será fazer uma referência ca- têm intenção com o que se vê, se posto por nós que somos subversi- nônica a um autor. Foucault, por escuta, se imita. vos, mas a globalização é subver- exemplo, escreveu sua filosofia Meus problemas de investigação siva ao dizer que existem algumas a partir do princípio da morte do organizações privadas e sistemas autor. Ele não queria ser um mes- atuais são: como pensar o sujeito de poder que se valem de insti- tre, um filósofo do mundo, ao con- hoje e como pensar o comum hoje. tuições que antes eram públicas, trário, numa entrevista dos anos como a assistência de saúde. Na 1970 ele disse que queria que seu Itália a assistência à saúde era fei- livro fosse lido para incendiar, fa- ta pelo Estado, mas agora perten- zer pensar o momento, e não ser ce às instituições privadas, ou seja, recordado como um autor acerca são eles os inimigos que vão cru- do qual se fazem teses e comen- O grande risco zando a linha que separava antes o tários. Foucault, quando escreveu público e privado. Vigiar e Punir, tinha em mente o é transformar problema das reformas das prisões a filosofia em na França e as revoltas nas prisões IHU On-Line – Esses problemas que você investiga têm repercus- francesas. Ele queria pensar como mera opinião são na Europa? Qual é a tendência era o cárcere e foi construindo seus da Filosofia na Europa? conceitos a partir de uma respon- sabilidade que tinha no presente. Uma das coisas para pensar o co- Sandro Chignola – Essa é uma mum é pensar que há algo como vantagem que estamos perdendo, porque na Europa está se difun- IHU On-Line – O que você está um indivíduo subjetivado, com uma dindo muito a filosofia analítica estudando hoje? vontade que é própria do direito americana, porque ela permite burguês moderno, que não serve Sandro Chignola – Hoje estou tra- conseguir recursos financeiros para mais, porque não há algo como balhando fontes do século XIX, por- pesquisa, permite parcerias com um indivíduo. Cada um de nós tem que me interessa pensar algo como universidades americanas, permite de ser pensado de outra maneira, 27 a transindividualidade do sujeito, a que os jovens encontrem trabalho partir de Gabriel Tarde20, que per- porque estamos permeados de uma em universidades que falam inglês, deu a batalha com Durkheim21 na série de informações que a própria ou seja, uma filosofia que pode ser fundação da sociologia francesa, e biologia nos apresenta a cada dia. exercida em qualquer lugar de lín- disse que a sociedade não é feita gua inglesa. de indivíduos, mas cada indivíduo IHU On-Line – Quais são os filó- Mas creio que a batalha por essa sofos mais importantes para com- 20 Jean-Gabriel de Tarde (Sarlat, 12 intervenção continental de filoso- preender esses problemas filosó- de março de 1843 – Paris, 12 de maio de fia tem de ser entendida no sen- ficos que você estuda? 1904): foi um filósofo, sociólogo, psicólogo tido que temos uma tradição que e criminologista francês. A família de Tar- de era de origem nobre e vivia na região de Sandro Chignola – Foucault é nos permite pensar a filosofia como Sarlat, desde a Idade Média. Tarde começa muito importante, não para dar a sua carreira de investigação primeiro na 22 Michael Hardt (1960): téorico literá- Criminologia publicando vários artigos, nos uma volta ao que Foucault dis- rio americano e filósofo político radicado na quais entra em polémica com o criminologi- se, mas para retomar o trabalho Universidade de Duke. Com Antonio Negri sta italiano César Lombroso. Para além da a partir de onde ele interrompeu. escreveu os livros internacionalmente famo- Criminologia, publica também artigos nas Foucault é útil se retomamos esse sos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, áreas da Sociologia, Filosofia, Psicologia 2003) e Multidão. Guerra e democracia na Social e Economia. Em 1894, é nomeado estilo de pensamento, e não me in- era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: diretor da secção de estatística criminal do teressa se alguém utiliza a palavra Record, 2005). (Nota da IHU On-Line) Ministério da Justiça em Paris, cargo que de Foucault ou de Agamben. Outro 23 Pierre Hadot: filósofo francês, é um conserva até à morte. Nesta cidade, conti- dos co-autores do livro Dicionário de ética nua uma vida intensa ligada à investigação muito importante é Deleuze, pela e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, nas Ciências Sociais e Humanas: colóquios, ontologia, e não pelas coisas que 2003. Sus pesquisas concentraram-se pri- congressos, artigos e polémicas (desta vez escreveu em seu livro mais conhe- meiramente nas relações entre helenismo e com Émile Durkheim, ao qual se opõe na cristianismo,em seguida, na mística neopla- definição e metodologia da Sociologia). cido; mas me interessa o Deleuze tônica e na filosofia da época helenística. Elas (Nota da IHU On-Line) que escreve sobre Nietzsche, Spi- se orientam atualmente para uma descrição 21 David Émile Durkheim (1858-1917): noza, porque creio que nos ajuda geral do fenômeno espiritual que a filosofia conhecido como um dos fundadores da So- representa. Em português pode ser lido o li- ciologia moderna. Foi também, em 1895, o a modificar os quadros da ontologia vro de sua autoria O que é a filosofia antiga? fundador do primeiro departamento de so- com a qual pensamos, ou seja, uma (São Paulo: Loyola, 1999). Para uma resenha ciologia de uma universidade européia e, em ontologia antiplatônica, que nos da obra confira a revista Síntese 75(1996), 1896, o fundador de um dos primeiros jornais p. 547-551. A resenha do original francês é dedicados à ciência social, intitulado L’Année permite pensar as intenções e não de Henrique C. de Lima Vaz. (Nota da IHU Sociologique. (Nota da IHU On-Line) simplesmente ideias e sujeitos de- On-Line)

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uma prática e não somente como é esse processo de transformação Sandro Chignola – Tem uma um saber ao lado de outros sabe- da filosofia em opiniões. Na Itália leitura que se faz de Nietzsche a res. Essa é a coisa que me interes- virou moda falar de um determi- partir dessa perspectiva, mas pen- sa: que a filosofia não é simples- nado assunto, como uma espécie so que ele nos ajuda a pensar que mente um saber teórico, mas uma de talk show em que se convida a verdade é uma perspectiva de coisa que tem de ser feita com a um filósofo e ele fala sobre qual- parte, uma perspectiva em que vida das pessoas, a eleição de uma quer coisa, mas isso é completa- se toma a responsabilidade pelo forma de vida pela qual se neces- mente diferente da responsabili- que se diz, por isso que acho que sita metafísica, geometria, guerra, dade da filosofia. A filosofia está a verdade não é neutra e univer- matemática, música, educação, e caminhando ao regresso de sua sal. É essa ideia de Nietzsche que tudo isso. Não é só filosofia no sen- própria história. Para os gregos, interessava também a Foucault. O tido banal. a filosofia tinha de se separar da que me interessa é a perspectiva doxa, da opinião, mas parece que de como eu participo da realidade, a filosofia faz o caminho inverso IHU On-Line – Como o senhor e a realidade é tensão e conflito. define o atual momento em que e parece que ela tem sido uma opinião, assim como se escuta a Porque participar quer dizer fazer vivemos? É um momento de cri- parte, e não diluir sua própria par- se? Por quais razões? De que opinião de um político. te no universal. modo a filosofia, para além da Por outro lado, onde mais cres- filosofia política, pode nos- aju ce o perigo, cresce o que o salva. edição número 127■ da IHU On-Line, de dar a entender e a encontrar for- Penso a crise da filosofia como uma 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo mas de resolver os problemas da do martelo e do crepúsculo, disponível para ocasião de salvar a filosofia. O download em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição contemporaneidade? grande risco é transformar a filoso- 15 dos Cadernos IHU em formação é intitu- fia em mera opinião. lada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e Sandro Chignola – Sim, a crise pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. é um dos sintomas do presente. Confira, também, a entrevista concedida por Há uma marginalização institu- IHU On-Line – O fato de a fi- Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em cional progressiva. A Itália era o losofia poder estar virando um http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologis- único país onde havia três anos amontoado de opiniões não mo radical de Nietzsche não pode ser mini- de filosofia e agora isso não exis- tem a ver com o que Nietzs- mizado, na qual discute ideias de sua confe- te mais, porque pensam que é che24 disse: “Não existem fatos, rência A crítica de Heidegger ao biologismo 28 de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte mais importante estudar direito, só interpretações”? integrante do Ciclo de Estudos Filosofias economia ou coisas do tipo. O da diferença – Pré-evento do XI Simpó- segundo sintoma da crise são os 24 Friedrich Nietzsche (1844-1900): fi- sio Internacional IHU: O (des)governo lósofo alemão, conhecido por seus conceitos biopolítico da vida humana. Na edição cortes dos recursos financeiros além-do-homem, transvaloração dos valores, 330 da Revista IHU On-Line, de 24- nos departamentos de filosofia, niilismo, vontade de poder e eterno retor- 05-2010, leia a entrevista Nietzsche, o porque se preferem saberes que no. Entre suas obras figuram como as mais pensamento trágico e a afirmação da tragam resultados imediatamen- importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. totalidade da existência, concedida Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), pelo Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e dis- te. Em terceiro lugar, há mutação O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A ponível para download em http://bit.ly/ antropológica dos estudantes, genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Cen- nqUxGO. Na edição 388, de 09-04-2012, que leem menos, e têm uma con- tauro, 2004). Escreveu até 1888, quando leia a entrevista O amor fati como res- foi acometido por um colapso nervoso que posta à tirania do sentido, com Danilo centração menor do que se tinha nunca o abandonou até o dia de sua morte. Bilate, disponível em http://bit.ly/Hza- antes. O quarto elemento da crise A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da JpJ. (Nota da IHU On-Line)

LEIA MAIS... —— Reinventar a liberdade, reinventar a si próprio. Entrevista com Sandro Chignola publicada na revista IHU On-Line, nº 472, de 14-09-2015, disponível em http://bit.ly/1PeJne5; —— “É preciso reinventar a democracia à altura do século XXI”. Entrevista especial com Sandro Chignola publicada na revista IHU On-Line, nº 455, de 29-09-2014, disponível em http:// bit.ly/1O3gfqE; —— Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze. Artigo de Sandro Chignola publicado no Cadernos IHU ideias, nº 214, disponível em http://bit.ly/1gbIVig.

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Tema de Capa DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Dar à luz a Luz O professor e pesquisador Carlos Alberto dos Santos analisa teoricamente os desenvolvimentos da física e seus estudos sobre as propriedades da Luz

Por Ricardo Machado

o princípio ao fim a Luz está lizar diferentes tipos de objetos”, explica presente em nossas vidas. Se o professor. “Nos tempos atuais, temos a Dantes ela estava predominante- fotônica. Esta é a área em que a manipu- mente em seu modo, digamos assim, na- lação da luz é realizada de modo ativo, e tural de existência, com o Sol e a luz do que teve seu surgimento graças à inven- fogo, atualmente há maneiras muito mais ção do laser. Então, eu diria que o laser sofisticadas de ela se fazer presente. “A é o principal invento baseado na mani- fotônica, ou seja, a ciência e a tecnologia pulação da luz. Outro invento de grande dos circuitos elétricos governados por fó- importância para a tecnologia moderna é tons e elétrons, e não apenas por elétrons a fibra ótica, capaz de transmitir -infor como a eletrônica, está cada vez mais se mações em maior quantidade e velocida- impondo no mercado tecnológico. Cabe de do que os cabos condutores usuais”, destacar que a fotônica surgiu por causa complementa. da invenção do laser, um dispositivo que revolucionou várias áreas, entre as quais Carlos Alberto dos Santos é gradua- 32 as da saúde. Tudo isso serviu de motiva- do em Física pela Pontifícia Universida- ção para definição deste ano como Ano de Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Internacional da Luz”, explica o professor realizou mestrado e doutorado em Física e pesquisador Carlos Alberto dos Santos, pela Universidade Federal do Rio Grande em entrevista por e-mail à IHU On-Line. do Sul – UFRGS, onde aposentou-se e per- manece trabalhando como pesquisador Há toda a sorte de inventos que se ba- e colaborador convidado. É avaliador de seiam em tecnologias que usam a luz de cursos de graduação e avaliador de insti- modo passivo e modo ativo. “No primeiro tuições do ensino superior do MEC e colu- caso temos os dispositivos da óptica clás- nista de Ciência Hoje Online. sica, lunetas, telescópios, microscópios, espelhos, etc., que usam a luz para visua- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importân- publicados por Albert Einstein1 em 1905, seu Ano Miraculoso.2 Naquele cia de se celebrar o Ano Interna- ano ele publicou cinco trabalhos, 1 Albert Einstein (1879-1955): físico ale- cional da Luz? mão naturalizado americano. Premiado com entre os quais dois sobre a teoria o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser da relatividade restrita, um sobre autor das teorias especial e geral da relati- Carlos Alberto dos Santos – So- 3 vidade e por suas ideias sobre a natureza o movimento browniano e outro ciedades científicas costumam ce- corpuscular da luz. É, provavelmente, o físi- lebrar efemérides relevantes para co mais conhecido do século XX. Sobre ele, mão, do qual o professor Carlos Alberto dos confira a edição nº 135 da Revista IHU On- Santos participou, concedendo uma entrevis- o avanço da ciência e da tecno- Line, sob o título Einstein. 100 anos depois ta. (Nota da IHU On-Line) do Annus Mirabilis, disponível em http://bit. 2 Ano Miraculoso, ou ainda Annus Mi- logia. Só para citar um exemplo ly/ihuon130 e a edição 141, de 16-05-2005, rabilis: denominação dada ao ano de 1905, pertinente à comemoração deste chamada Terra habitável: um desafio para quando Einstein publicou seus trabalhos so- a humanidade, disponível em http://bi.ly/ bre o efeito fotoelétrico, a relatividade espe- ano, 2005 foi considerado o Ano ihuon141. A Unisinos produziu, a pedido do cial e o movimento browniano. (Nota da IHU Internacional da Física para come- IHU, um vídeo de 15 minutos em função do On-Line) Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a 3 Movimento browniano: é o movimento morar o centenário dos trabalhos 19-05-2005, em homenagem ao cientista ale- aleatório de partículas num fluido (líquido ou

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dimensão e mais massivo é um cor- po, mais profunda é a deformação, até que se chega a um limite onde a deformação transforma-se num Talvez seja conveniente fazer uma poço que atrai qualquer matéria e luz que circule em sua redondeza, distinção entre inventos que usam e de lá nada sai. É por isso que se chama buraco negro. Portanto, a re- a luz de modo passivo e aqueles volução paradigmática da Teoria da que usam a luz de modo ativo Relatividade Geral na interpretação do universo tem a ver com a subs- tituição da interação a distância da gravitação newtoniana, pela defor- sobre o efeito fotoelétrico,4 pelo depende do sistema de referência. mação do espaço-tempo. qual ganhou o Nobel de Física de Ou seja, a velocidade da luz é uma 1921. Em 1915, Einstein publicou constante que só depende do meio Não tenho elementos racionais e o trabalho sobre a teoria da re- onde ela se propaga. Isso teve sé- científicos para dizer que tipo de latividade geral, algo ainda mais rias implicações na teoria clássica influência essa teoria tem nas re- revolucionário que a sua teoria da do eletromagnetismo, formulada lações humanas. Creio que isso fica relatividade restrita. Ambas as te- através das equações de Maxwell, no campo das reflexões filosóficas, orias têm íntima relação com a luz. e na mecânica de Newton. Além que estão fora da minha área de Além disso, a luz está presente em disso, como um subproduto da sua conhecimento. todos os momentos da nossa vida. teoria, Einstein mostrou a equiva- A fotônica, ou seja, a ciência e a lência massa-energia, representa- IHU On-Line – Qual a importân- tecnologia dos circuitos elétricos da pela famosa equação E=mc2. cia do Islamismo Medieval e de governados por fótons e elétrons, Há quem diga que esta é a equação Ibn al-Haytham para os estudos e não apenas por elétrons como a mais famosa da física. Ela explica a da ótica? eletrônica, está cada vez mais se existência da enorme energia libe- impondo no mercado tecnológico. rada em uma reação nuclear. Carlos Alberto dos Santos – Infe- Cabe destacar que a fotônica sur- lizmente meu conhecimento sobre giu por causa da invenção do laser, Teoria da Relatividade a ciência do mundo árabe é muito 33 um dispositivo que revolucionou primário, mas tanto quanto eu sei, Restrita e Teoria da 5 várias áreas, entre as quais as da Relatividade Geral Ibn al-Haytham, nascido por volta saúde. Tudo isso serviu de motiva- do ano 965, realizou muitos expe- rimentos com a luz e escreveu o ção para definição deste ano como A Teoria da Relatividade Restri- Livro da Óptica, que alguns histo- Ano Internacional da Luz. ta tem a ver com quase todos os riadores consideram tão importan- fenômenos em escala atômica. te quanto os Principia Mathema- IHU On-Line – De que forma a Qualquer dispositivo eletrônico tica de Newton.6 Todavia, é quase Teoria da Relatividade proporcio- moderno apresenta fenômenos re- nou uma revolução não somente lativísticos. Ou seja, a nossa tecno- científica, mas também paradig- 5 Abu Ali al-Hasan Ibn Al-Haitham ou logia não seria o que é, se não fosse Alhazen, na forma latinizada (965-1040):, mática de interpretação do Uni- a Teoria da Relatividade Restrita. nasceu em Baçorá, onde atualmente fica o verso, do mundo e das relações Iraque. Físico e matemático árabe que foi o Por outro lado, a Teoria da Rela- humanas? pioneiro da óptica, depois de Ptolomeu. Foi tividade Geral tem a ver com ma- um dos primeiros a explicar o fenômeno dos Carlos Alberto dos Santos – Con- crocosmo, com a gravitação, e teve corpos celestes no horizonte. Escreveu nu- vém ter em mente que existem merosas obras notáveis, pelo estilo e pelas início com o questionamento da observações sobre os fenômenos da refração duas teorias da relatividade, como ação a distância, que fundamenta a da luz, com especial incidência na refração at- mencionei na pergunta anterior. Lei da Gravitação de Newton. Aque- mosférica ao nascer e ao pôr do sol. Em 1015 Na Teoria Restrita, Einstein mos- la história que recitamos na escola publicou Kitab al-Manazir, seu livro de ótica, que propunha uma nova teoria sobre a visão, trou que a velocidade da luz não secundária, “matéria atrai matéria por isso seu nome e sua obra são homenage- na razão direta do produto das suas ados em 2015, no Ano Internacional da Luz. gás) como consequência dos choques entre massas e na razão inversa do quadra- (Nota da IHU On-Line) todas as moléculas ou átomos presentes no do da distância”. Na Teoria da Rela- 6 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrô- fluido. (Nota da IHU On-Line) nomo e matemático inglês. Revelou como 4 Efeito fotoelétrico: é a emissão de tividade Geral, cada corpo deforma o universo se mantém unido através da sua elétrons por um material, geralmente o espaço-tempo, e é essa deforma- teoria da gravitação, descobriu os segredos metálico, quando exposto a uma radiação ção que produz atração gravitacio- da luz e das cores e criou um ramo da mate- eletromagnética (como a luz) de frequência mática, o cálculo infinitesimal. Essas desco- suficientemente alta, que depende -do ma nal. Quanto maior a massa do corpo, bertas foram realizadas por Newton em um terial. Ele pode ser observado quando a luz maior a deformação. A teoria impli- intervalo de apenas 18 meses, entre os anos incide numa placa de metal, literalmente ca na existência dos famosos buracos de 1665 e 1667. É considerado um dos maio- arrancando elétrons da placa. (Nota da IHU negros. Ou seja, quanto menor em res nomes na história do pensamento huma- On-Line) no, por causa da sua grande contribuição à

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unanimidade entre os historiadores Em seu livro “Micrographia”, pu- te, Einstein, que alterou drastica- que Isaac Newton é o pai da óptica blicado em 1665, Robert Hooke8 mente a mecânica e a gravitação moderna. explica a difração considerando newtoniana, fez renascer a teoria que a luz consistia de rápidas vi- corpuscular da luz para explicar o brações, ou seja, a luz era uma efeito fotoelétrico. IHU On-Line – Quais são as prin- onda. Logo depois, Newton inicia cipais diferenças da interpreta- seus estudos sobre óptica e propõe IHU On-Line – Do que se trata o ção da Luz entre Isaac Newton e a teoria corpuscular. Há quem diga 7 efeito fotoelétrico? Christiaan Huygens na compara- que para evitar críticas de Hooke, ção com a Teoria da Relatividade com quem mantinha séria disputa, Carlos Alberto dos Santos – O efeito fotoelétrico foi descober- de Einstein? Newton retardou a publicação de to por Heinrich Hertz,10 em 1887, Carlos Alberto dos Santos – quando ele investigava a natureza Newton defendia o caráter cor- eletromagnética da luz e termi- puscular da luz, enquanto Huygens nou também descobrindo as ondas defendia o caráter ondulatório. de rádio. O fenômeno é simples: Embora os nomes desses cientistas Cabe destacar quando determinado tipo de luz estejam ligados às respectivas teo- que a fotônica (por exemplo, ultravioleta) atinge rias, a questão não surgiu com eles, a superfície de determinado ma- e nem eles foram os únicos a de- surgiu por cau- terial (um metal, por exemplo), observava-se a emissão de uma senvolver essas teorias. A história sa da invenção corrente elétrica. O nome do fenô- é longa e certamente não pode ser do laser, um meno vem daí, um fóton (de luz) detalhada aqui, mas convém ape- produz uma corrente elétrica. To- nas lembrar que a teoria corpus- dispositivo que das as tentativas para explicar o cular já havia sido aventada pelos fenômeno com base na teoria clás- gregos. Assim como para os cientis- revolucionou sica do eletromagnetismo falha- tas da antiguidade, para Newton várias áreas, ram. Em 1905, Einstein aproveitou um feixe de luz era composto por a ideia da quantização da energia entre as quais proposta por Max Planck11 em 1900, 34 corpúsculos que viajavam em li- nha reta. Eram tão pequenos que as da saúde e a aplicou na quantização da luz. ninguém podia visualizá-los, e nin- Para isso considerou que um feixe guém sabia exatamente o que eram de luz era composto por corpúscu- los, cada um transportando uma esses corpúsculos. Alguns fenôme- seu livro “Optics”, que só ocorreu energia igual ao produto da fre- nos luminosos, como reflexão e re- em 1704. Antes disso, Huygens re- quência da luz pela constante de toma e melhora a teoria de Hooke fração, podiam ser explicados por Planck. Vinte anos depois, esses e publica seu famoso “Traité de la essa teoria, outros, como difração corpúsculos foram denominados e polarização, eram inexplicáveis. Lumière”, em 1690. A autoridade científica de 10 Heinrich Rudolf Hertz (1857-1894): matemática, à física e à astronomia. O IHU foi um físico alemão. Hertz demonstrou a exi- promoveu de 3 de agosto a 16-11-2005 o Ciclo Newton sufoca a teoria ondulatória stência da radiação eletromagnética, criando de Estudos Desafios da Física para o Século de Huygens por quase um século, aparelhos emissores e detectores de ondas XXI: uma aventura de Copérnico a Einstein. até que por volta de 1801 uma bela de rádio. Hertz pôs em evidência em 1888 a Sobre Newton, em específico, o Prof. Dr. Ney existência das ondas eletromagnéticas imagi- Lemke proferiu palestra em 21-09-2005, in- experiência realizada por Thomas nadas por James Maxwell em 1873. (Nota da 9 titulada A cosmologia de Newton. (Nota da Young resolveu a questão favora- IHU On-Line) IHU On-Line) velmente a Huygens. Ironicamen- 11 Max Planck [Max Karl Ernst Ludwig 7 Christiaan Huygens (1629-1695): foi um Planck] (1858-1947): físico alemão, consi- físico, matemático, astrônomo e horologista derado o pai da Teoria Quântica. Em 1899, neerlandês. Em física, Huygens é bastante 8 Robert Hooke (1635-1703): foi um cien- descobriu uma nova constante fundamental, lembrado por seus estudos sobre luz e cores, tista experimental inglês do século XVII, uma chamada em sua homenagem Constante de percepção do som, estudo da força centrífuga, das figuras chave da revolução científica. Planck, que é usada, por exemplo, para calcu- o entendimento das leis de conservação em (Nota da IHU On-Line) lar a energia do fóton. Um ano depois, desco- dinâmica equivalentes ao moderno conceito 9 Thomas Young (1773-1829): foi um fís- briu a lei da radiação térmica, chamada Lei de de conservação de energia, o estudo da dupla ico, médico e egiptólogo britânico. Em 1801 Planck da Radiação. Esta foi a base da Teoria refração no cristal da Islândia, e a teoria on- foi nomeado professor de filosofia natural Quântica, que surgiu dez anos depois com a dulatória da luz baseada na concepção de que (principalmente física) do Royal Institution. colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. a luz seria um pulso não periódico propagado Conhecido pela experiência da dupla fenda, De 1905 a 1909, Planck atuou como diretor- pelo éter. Através dela, explicou satisfatoria- que possibilitou a determinação do carácter -chefe da Sociedade Alemã de Física. Como mente fenômenos como a propagação retilín- ondulatório da luz. Young exerceu a medicina conseqüência do nascimento da física quân- ea da luz, a refração e a reflexão. Também durante toda a sua vida (primeiros trabalhos tica, foi premiado, em 1918, com o Prêmio procurou explicar o então recém descoberto sobre o cristalino com 26 anos de idade), mas Nobel de Física. Após sua morte, o instituto fenômeno da dupla refração. Seus estudos ficou conhecido por seus trabalhos em óptica, KWG passou a chamar-se Max-Planck-Ge- podem ser consultados em seu mais conheci- onde ele explica o fenômeno da interferência sellschaft zur Förderung der Wissenschaften do trabalho sobre o assunto, o “Tratado sobre e em mecânica, pela definição do módulo de (MPG, Sociedade Max Planck para o Progres- a luz”. (Nota da IHU On-Line) Young. (Nota da IHU On-Line) so da Ciência). (Nota da IHU On-Line)

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fótons. Ou seja, o fóton é uma par- deveria valer apenas para a radia- dualidade. Por exemplo, inúmeros tícula associada à luz. Diz-se que o ção de corpo negro. Foi por isso dispositivos eletrônicos funcionam fóton é o quantum de luz. Inicial- que ele achou um absurdo a ideia por causa do efeito túnel. Ou seja, mente, Planck achou um absurdo o de Einstein de generalizar a quan- elétrons atravessam paredes finís- uso que Einstein fez da sua cons- tização para o caso da luz. simas de silício e outros materiais, tante, mas os fatos experimentais como se fossem ondas. Então, se demonstraram que Albert estava IHU On-Line – Do que se trata a não fosse a dualidade partícula- certo, e mais do que isso, a teoria dualidade onda-partícula e como -onda não existiria o efeito túnel. do efeito fotoelétrico lhe valeu o isso ajuda a explicar o comporta- Alguns comportamentos molecula- Nobel de Física de 1921. mento quântico? res em reações químicas também ocorrem devido ao efeito túnel. IHU On-Line – Quem foi Max Planck? Qual a importância de seus estudos, especialmente a IHU On-Line – Quais são os prin- Constante de Planck, para as des- cipais inventos baseados na mani- cobertas acerca da Luz? A Teoria da Re- pulação da Luz? Carlos Alberto dos Santos – Max latividade Geral Carlos Alberto dos Santos – Planck foi um dos físicos mais im- tem a ver com Questão complexa. Talvez seja portantes da Alemanha, com rele- conveniente fazer uma distinção vantes contribuições ao estudo da macrocosmo, entre inventos que usam a luz de termodinâmica, sobretudo com os com a gravita- modo passivo e aqueles que usam estudos referentes à radiação de a luz de modo ativo. No primeiro corpos aquecidos, tecnicamen- ção, e teve iní- caso temos os dispositivos da óp- te conhecida como radiação de tica clássica, lunetas, telescópios, corpo negro. Quase todo mundo cio com o ques- microscópios, espelhos, etc., que já viu alguma vez um metal ficar usam a luz para visualizar diferen- avermelhado quando aquecido em tionamento da tes tipos de objetos. Nos tempos alta temperatura. Aquela luz aver- ação a distância melhada é a irradiação provenien- atuais, temos a fotônica, que já te da vibração das moléculas do mencionei em resposta anterior. 35 material, associadas a osciladores Carlos Alberto dos Santos – De- Esta é a área em que a manipu- nos modelos teóricos. Para expli- pois que Einstein explicou o efeito lação da luz é realizada de modo car esta radiação, Planck fez, em fotoelétrico, ficou estabelecida a ativo, e que teve seu surgimento 1900, uma proposta que ele con- teoria corpuscular da luz. No início graças à invenção do laser. Então, siderou desesperadora, mas que dos anos 1920, o físico francês Lou- eu diria que o laser é o principal 12 revelou-se revolucionária. Em vez is de Broglie demonstrou que o invento baseado na manipulação de considerar que os osciladores elétron, que era uma das partículas da luz. Outro invento de gran- irradiavam qualquer quantidade elementares da matéria, também de importância para a tecnologia apresentava um comportamento de energia, como todos na época moderna é a fibra ótica, capaz de ondulatório. Ficou então estabele- consideravam, Planck impôs uma transmitir informações em maior restrição, isto é, os osciladores só cida a dualidade partícula-onda, ou quantidade e velocidade do que os podiam emitir energia em deter- onda-partícula, como queira, para cabos condutores usuais. minadas quantidades. Mais preci- qualquer objeto material. Mas a samente, em quantidades inteiras manifestação ondulatória só pode iguais ao produto da frequência da ser percebida para objetos muito IHU On-Line – Quais são os ne- radiação emitida, por uma cons- pequenos, com dimensões na esca- xos entre os estudos sobre a Luz tante que passou a ser chamada de la atômica, como prótons, elétrons e a microeletrônica? constante de Planck, e a suposição e nêutrons. Logo depois a teoria Carlos Alberto dos Santos – Os é hoje conhecida como quantiza- de Louis de Broglie foi demonstra- ção da energia. da experimentalmente e surgiram estudos sobre a conexão entre luz técnicas de difração de elétrons e microeletrônica resultaram na A partir dessa ideia ele obteve e de nêutrons, muito importantes fotônica, a eletrônica do fóton, ou uma expressão que ajustou com- para a ciência e a tecnologia. seja, a eletrônica comandada pela pletamente a curva espectral da luz.13 radiação de corpo negro. Todavia, Vários comportamentos quân- Planck achava que a ideia não pas- ticos só existem por causa dessa 13 Mais■ informações sobre algumas questões sava de um artifício matemático discutidas aqui o leitor interessado poderá para ajustar as curvas experimen- 12 Louis de Broglie (1892-1987): físico ver na minha coluna da Ciência Hoje Online, francês, estudou principalmente os raios-X, a especialmente nos links a seguir: http://bit. tais, e a constante era tão somente dualidade da onda e a mecânica ondulatória. ly/1Ri5oYw; http://bit.ly/1P7sORd e http:// um fator de proporcionalidade que (Nota da IHU On-Line) bit.ly/1JGgEHW. (Nota do entrevistado)

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A grande beleza Carlo Rovelli, físico italiano, retoma a física quântica para pensar e explicar a complexidade do universo

Por Ricardo Machado | Tradução Walter O. Schlupp

físico e o artista trilham ca- Relatividade nos deu um entendimen- minhos diferentes, mas ru- to diferente da natureza do espaço e Omam para o mesmo lado: a do tempo. Espaço e tempo agora são grande beleza. No fundo, parece ser o entendidos como aspectos de um cam- belo que nos leva a construir uma ética po dinâmico, uma espécie de enorme que possa ser compatível com o nosso água-viva em movimento na qual esta- espaço-tempo. Pensar os fenômenos mos imersos”, complementa. da física é pensar o ser humano. “Acho Carlo Rovelli é doutor em Física pela que os ensinamentos mais importantes universidade de Pádua. Atualmente é da física são (1) que não devemos acre- professor no Centro de Física Teórica ditar muito na intuição direta: deve- da Universidade de Marseille, na Fran- mos estar prontos para mudar a men- ça, e diretor do grupo de pesquisa em 36 te, e (2) não devemos acreditar no que gravidade quântica do Centro de Física as gerações anteriores pensavam: elas Teórica de Luminy. Escreveu inúmeros sabiam muito pouco, menos ainda do livros, dos quais destacamos Covariant que nós”, sustenta o professor e pes- Loop Quantum Gravity. An Elementary quisador Carlo Rovelli, em entrevista Introduction to Quantum Gravity and por e-mail à IHU On-Line. Spinfoam Theory (Cambridge: Cam- Rovelli considera a Teoria da Rela- brige University Press, 2014); Sette tividade a mais bela das teorias. “Em brevi lezioni di fisica (Roma: Adelphi, primeiro lugar, porque é uma ideia 2014) e La realtà non è come ci ap- muito simples (espaço e tempo se pare. La struttura elementare delle curvam). Em segundo lugar, porque cose (Milano: Cortina Raffaello, 2014). previu uma longa lista de fenômenos Em português pode ser lido o seu livro Anaximandro de Mileto – o Nascimento incríveis (buracos negros, big bang, as do Pensamento Científico (São Paulo: ondas de espaço-tempo, retardamento Edições Loyola, 2009). do tempo...), os quais todos se confir- maram depois”, avalia. “A Teoria da Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma a tempo agora são entendidos como IHU On-Line – Quais são as prin- Teoria da Relatividade transfor- aspectos de um campo dinâmico, cipais diferenças entre a Teoria mou o nosso modo de ver e com- uma espécie de enorme água-viva da Relatividade Restrita e a Teo- preender o universo? em movimento na qual estamos ria da Relatividade Geral? imersos. Em segundo lugar e, diria Carlo Rovelli – Einstein1 escreveu Carlo Rovelli – De duas formas. eu, mais importante, a teoria nos duas teorias: a teoria da relativida- Primeiro, ela nos deu um enten- lembrou de que a realidade é mui- dimento diferente da natureza to diferente da nossa ingênua visão 1 Albert Einstein (1879-1955): físico ale- do espaço e do tempo. Espaço e que temos dela. mão naturalizado americano. Premiado com

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Carlo Rovelli – Muitos fenômenos relativos à luz, como, por exemplo, as células fotoelétricas que usa- mos para abrir as portas automa- A mecânica quântica é, ticamente, seriam completamen- atualmente, a melhor teoria te inexplicáveis sem a mecânica disponível para se descrever quântica. como tudo se move IHU On-Line – Como Niels Bohr4 nos ajuda a compreender que de especial [ou restrita], em 1905, to do tempo...), os quais todos se a realidade somente existe por e a teoria da relatividade geral, em confirmaram depois. meio da interação? A partir da Fí- 1915. A primeira esclarece o fato sica, o que isso significa? de que há uma velocidade-limite: a IHU On-Line – Do que trata a Carlo Rovelli – Bohr foi o primei- velocidade da luz. A segunda é uma mecânica quântica? Como ela aju- ro a entender que, quando obser- teoria da gravitação e esclarece o da a compreender os fenômenos fato de que espaço e tempo podem contemporâneos? vamos um fenômeno físico, somos dobrar-se e curvar-se. obrigados a interagir com ele. Se o Carlo Rovelli – A mecânica quân- fenômeno é graúdo (tipo uma pe- tica é, atualmente, a melhor teoria dra), essa interação não o altera. IHU On-Line – Como a Teoria disponível para se descrever como da Relatividade se tornou a mais tudo se move. Sem ela não sería- Mas, para fenômenos minúsculos bela das teorias? mos capazes de compreender e (como um átomo), ela o faz. Por- tanto, não há maneira de obser- Carlo Rovelli – Em primeiro lugar, lidar com átomos, com eletrônica, porque é uma ideia muito simples com a física nuclear, com lasers. var um átomo sem perturbá-lo um (espaço e tempo se curvam). Em pouco. segundo lugar, porque previu uma IHU On-Line – Qual a importân- 3 37 longa lista de fenômenos incríveis cia dos estudos de Max Planck IHU On-Line – O que são partícu- (buracos negros, big bang,2 as on- com sua Teoria Quântica, que re- las subatômicas e como elas aju- volucionou a física? das de espaço-tempo, retardamen- dam a entender a realidade? Carlo Rovelli – Max Planck re- o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser Carlo Rovelli – Toda a matéria autor das teorias especial e geral da relati- almente não entendeu o que ele vidade e por suas ideias sobre a natureza estava fazendo em 1900, ao es- que nos cerca é feita dessas partí- corpuscular da luz. É, provavelmente, o físi- crever as primeiras equações so- culas. Mas essas partículas não são co mais conhecido do século XX. Sobre ele, confira a edição nº 135 da Revista IHU On- bre os “quanta”; mas ele abriu o tipo “pedrinhas”. São estranhos -Line, sob o título Einstein. 100 anos depois caminho. objetos quânticos que saltam de do Annus Mirabilis, disponível em http://bit. ly/ihuon130 e a edição 141, de 16-05-2005, um lugar para outro. chamada Terra habitável: um desafio para IHU On-Line – Como esses estu- a humanidade, disponível em http://bi.ly/ dos ajudaram a compreender as 4 Niels Bohr (1885-1962): físico dinamar- ihuon141. A Unisinos produziu, a pedido do quês que desenvolveu a teoria da natureza do IHU, um vídeo de 15 minutos em função do propriedades da luz? átomo. O prêmio Nobel de Física que ganhou Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a em 1922 deve-se ao seu trabalho sobre estru- 19-05-2005, em homenagem ao cientista ale- 3 Max Planck [Max Karl Ernst Ludwig tura e radiação atômica. Com a idade de 28 mão, do qual o professor Carlos Alberto dos Planck] (1858-1947): físico alemão, consi- anos, Bohr publicou sua teoria que explicava, Santos participou, concedendo uma entrevis- derado o pai da Teoria Quântica. Em 1899, através da teoria quântica de Max Planck, ta. (Nota da IHU On-Line) descobriu uma nova constante fundamental, os problemas surgidos com a descoberta da 2 Big Bang: a teoria do Big Bang, ou Grande chamada em sua homenagem Constante de radioatividade. No dia 17 de maio de 2005, Explosão, foi sugerida primeiramente pelo Planck, que é usada, por exemplo, para calcu- durante o Simpósio Internacional Terra Ha- padre cosmólogo belga Georges-Henri Édou- lar a energia do fóton. Um ano depois, desco- bitável, foi apresentada a peça . ard Lemaître (1894-1966), quando expôs uma briu a lei da radiação térmica, chamada Lei de A trama do espetáculo remete a um miste- teoria propondo que o Universo teria tido um Planck da Radiação. Esta foi a base da Teoria rioso encontro em 1941 entre Niels Bohr e início repentino. A teoria do Big Bang, entre- Quântica, que surgiu dez anos depois com a Werner Heisenberg, alemão encarregado do tanto, não implica em demonstrar que algo colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. programa nuclear de Hitler. A montagem foi explodiu ou que uma explosão foi a causa De 1905 a 1909, Planck atuou como diretor- do Núcleo Arte Ciência no Palco, da Coopera- dessa dilatação ainda hoje observável, já que -chefe da Sociedade Alemã de Física. Como tiva Paulista de Teatro, com texto de Michael as lentes dos modernos telescópios espaciais consequência do nascimento da física quân- Frayn. Os protagonistas da peça, Carlos Pal- usados atualmente permanecem descrevendo tica, foi premiado, em 1918, com o Prêmio ma (Werner Heisenberg), Oswaldo Mendes um resultado de explosão (uma fuga cósmi- Nobel de Física. Após sua morte, o instituto (Niels Bohr) e Selma Luchesi (Margarethe ca). Embora a Teoria do Big Bang seja a mais KWG passou a chamar-se Max-Planck-Ge- Bohr), foram entrevistados na edição 142ª aceita pelos cientistas para explicar o início sellschaft zur Förderung der Wissenschaften da IHU On-Line, de 23-05-2005, disponí- do universo, algumas contradições se man- (MPG, Sociedade Max Planck para o Progres- vel em http://bit.ly/ihuon142. (Nota do IHU tém. (Nota da IHU On-Line) so da Ciência). (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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IHU On-Line – Qual a contribui- IHU On-Line – Do que trata a tribuir para os estudos da física? ção da confirmação do Bóson de gravidade quântica? Quais são os O que ela inaugura de novo? desafios da física para explicá-la 5 Carlo Rovelli – Repito: Ela muda Higgs para os estudos da física? melhor? nossa descrição do que são espaço, Carlo Rovelli – Ela confirma que tempo e matéria e lembra-nos de está correta a teoria das partículas que a natureza é muito diferente da nossa ingênua intuição sobre elementares desenvolvida na déca- ela. da de 1970. Bohr foi o pri-

5 Bóson de Higgs: partícula elementar meiro a enten- IHU On-Line – Como a física aju- bosônica prevista pelo Modelo Padrão de der que, quan- da a compreender o ser humano? partículas, teoricamente surgida logo após De que maneira reproduzimos a o Big Bang de escala maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual do observamos lógica do universo – ao mesmo de partícula. Representa a chave para tempo, complexos e integrados? explicar a origem da massa das outras um fenômeno partículas elementares. Todas as partículas Carlo Rovelli – Acho que os en- conhecidas e previstas são divididas em físico, somos duas classes: férmions e bósons (partículas sinamentos mais importantes da com spin inteiro). O bóson de Higgs foi obrigados a in- física são (1) que não devemos predito primeiramente em 1964 pelo físico britânico Peter Higgs, trabalhando as ideias teragir com ele acreditar muito na intuição direta: de Philip Anderson. Entretanto, desde devemos estar prontos para mudar então não houve condições tecnológicas de buscar a possível existência do bóson a mente, e (2) não devemos acre- Carlo Rovelli – É o problema de até o funcionamento do Grande Colisor de ditar no que as gerações anteriores Hádrons (LHC), em meados de 2008. A se compreender o comportamento faixa energética de procura do bóson vem se pensavam: elas sabiam muito pou- quântico do próprio espaço-tempo. estreitando desde então e, em dezembro de co, menos ainda do que nós. 2011, limites energéticos se encontram entre Espaço-tempo é como uma imensa as faixas de 116-130 GeV, segundo a equipe água-viva. Mas é também um ob- ATLAS, e entre 115 e 127 GeV de acordo IHU On-Line – Qual a grande be- 38 com o CMS. A 4 de julho de 2012, cientistas jeto quântico. Ou seja, ela é feita da Organização Europeia para a Pesquisa leza da natureza? Nuclear – CERN anunciaram que, ao fim de de pequenos “quanta”, como é a 50 anos de investigação, descobriram uma luz. A gravidade quântica procura Carlo Rovelli – Ah, penso que partícula nova que pode ser o bóson de Higgs. entender isso. Leia a edição 405 da revista IHU On-Line, todo mundo acha maravilhosos as- intitulada O Bóson de Higgs e a elegância pectos diversos na natureza. Para invejável do Universo, de 22-10-2012, disponível em http://bit.ly/18nGLSZ. (Nota IHU On-Line – No que a teoria mim, surpreendente e encantadora da IHU On-Line) da gravidade quântica pode con- é sua variedade.

LEIA MAIS... —— A teoria da “curiosidade geral” de Einstein. Artigo de Carlo Rovelli publicado nas Notícias do Dia, de 27-07-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1P5zv6r; —— As cinco principais descobertas de Einstein que mudaram a nossa visão do mundo. Artigo de Carlo Rovelli publicado nas Notícias do Dia, de 27-07-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1YOF8tV; —— A realidade não é como parece: a evolução da física. Resenha sobre o livro de Carlo Rovelli, La realtà non è come appare. La struttura elementare delle cose publicada nas Notícias do Dia, de 15-04-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1Vn3onK; —— “Ciência e fé devem permanecer separadas.” Entrevista com Carlo Rovelli reproduzida nas Notícias do Dia, de 03-11-2014, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1KRDRsv.

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A encantadora (e complexa) realidade Aba Cohen Persiano explica as transformações teóricas da física a partir das Teorias da Relatividade Geral e Restrita

Por Ricardo Machado

s encantos e fascínios da Te- a observada mais recentemente”, es- oria da Relatividade vêm de clarece o professor. Tais estudos permi- Osua própria simplicidade. É tiram à humanidade pensar sobre o seu uma espécie de fórmula perfeita que espaço (insignificante) na cosmologia não pretende ser insuperável. “A rea- universal. “Vivemos numa cultura em lidade é descrita de modo tão encan- que há constante aperfeiçoamento de tador que nos leva a inferir clara e evi- nosso entendimento do Universo. Cada dentemente o mecanismo da gravidade vez mais nos convencemos de que so- (que Newton aspirava conhecer); este mos habitantes de um ínfimo planeta quinto elemento, a gravidade, deixa de perdido no espaço de um Universo que ser uma força mútua entre dois corpos se desintegrará no infinito. Essa -per para se transformar numa distorção cepção nos obriga a pensar de modo espaço-temporal que brota ‘mágica e humilde em relação à existência e à espontaneamente’, como consequên- natureza e a cuidar melhor desse pon- cia necessária, uma espécie de sinôni- tinho azul em que vivemos”, propõe mo físico, dessa pluri-fusão de grande- Aba Cohen. zas da Natureza”, explica o professor 39 e pesquisador Aba Cohen Persiano, em Aba Cohen Persiano é graduado em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Física pela Universidade Federal de Mi- nas Gerais – UFMG onde também reali- Ao colocar a gravidade como um zou mestrado em Engenharia Metalúr- dos elementos centrais para pensar o gica. Doutorou-se no Imperial College tempo e o espaço, Einstein abriu ca- da London University e realizou pós- minho para observações mais sofisti- doutorado na Telcon Metals, no Reino cadas sobre o universo, que, por sua, Unido, e, também, no Laboratoire Louis vez demonstraram a maneira pela qual Néel – CNRS – Grenoble, França. Atual- o universo segue em expansão. “A ex- mente lidera dois grupos de pesquisa pansão do Universo se dá de maneira na UFMG, onde também é professor acelerada, ou seja, no início a rapidez associado no Departamento de Física. da fuga (na realidade a velocidade de expansão do espaço) era menor do que Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a Teoria ceberam a denominação de Teoria que Einstein preferia denominar da Relatividade de Einstein? da Relatividade – TR, a primeira “Teoria das Invariâncias”, foi mais estabelecida/divulgada em 1905, tarde conhecida como Teoria da Aba Cohen Persiano – Dentre Relatividade Restrita – TRR; a se- outras teorias desenvolvidas por Line, sob o título Einstein. 100 anos depois gunda foi divulgada em 1915 e é do Annus Mirabilis, disponível em http://bit. 1 Albert Einstein, há duas que re- ly/ihuon130 e a edição 141, de 16-05-2005, conhecida como Teoria da Rela- chamada Terra habitável: um desafio para tividade Geral – TRG. A teoria de 1 Albert Einstein (1879-1955): físico ale- a humanidade, disponível em http://bi.ly/ 1905 foi publicada com o título mão naturalizado americano. Premiado com ihuon141. A Unisinos produziu, a pedido do o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser IHU, um vídeo de 15 minutos em função do “Sobre a eletrodinâmica dos cor- autor das teorias especial e geral da relati- Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a pos em movimento” e nela Eins- vidade e por suas ideias sobre a natureza 19-05-2005, em homenagem ao cientista ale- tein modificou conceitos rígidos corpuscular da luz. É, provavelmente, o físi- mão, do qual o professor Carlos Alberto dos co mais conhecido do século XX. Sobre ele, Santos participou, concedendo uma entrevis- da Mecânica Newtoniana, fazendo confira a edição nº 135 da Revista IHU On- ta. (Nota da IHU On-Line) com que espaço, tempo e maté-

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ria, que eram imutáveis, passas- dos mais elaborados que a mente o que era elegante (na TRR) é le- sem a ser passíveis de mudanças. humana já produziu. Foi com esta vado ao extremo, quando a TRG Por meio da Teoria da Relatividade teoria que Albert Einstein conse- funde num conceito único aqueles Restrita, ele mostrou que o tempo guiu explicar o fenômeno da gravi- quatro conceitos/grandezas da Fí- pode dilatar, o espaço encolher e dade, um assunto digno de descri- sica Clássica de modo que espaço- a matéria se converter em energia ção mais elaborada. tempo-matéria-energia constitui – e vice-versa. Na Teoria da Rela- no singular – uma realidade única tividade Geral Einstein foi muito IHU On-Line – Por que a Teoria e indissociável de todo o Univer- além, fazendo uma verdadeira da Relatividade é considerada a so. A partir dessa união é possível “simbiose” entre espaço-tempo- mais bela das teorias? mostrar que nas proximidades de matéria-energia e com isto conse- qualquer matéria ponderável/ guiu explicar a gravidade. Ambas Aba Cohen Persiano – Vou di- massa – esteja ela onde estiver, as teorias criam novos paradigmas vidir a resposta em duas partes: tenha ela o valor tiver – o espa- indo muito além das propostas de Em primeiro lugar, as flexibiliza- ço “simbioticamente” encolhe, o Isaac Newton (século XVII – funda- ções de espaço, tempo, massa e tempo se arrasta mais lentamente dor da Mecânica Clássica), para energia, expressas pela Teoria da e até mesmo a luz/energia flui de quem espaço, tempo e matéria Relatividade Restrita, possibilita- modo diferenciado naquela região. eram absolutos (imutáveis) e para ram a criação de novos conceitos A realidade é descrita de modo tão quem a gravidade correspondia a e grandezas associados à reali- encantador que nos leva a inferir uma força de atração mútua en- dade dos fatos; isto nos permitiu clara e evidentemente o meca- tre corpos, cujas peculiaridades enxergar e trabalhar a Natureza nismo da gravidade (que Newton foram descritas por uma regra que de maneira bastante elegante, aspirava conhecer); este quinto ele (IN) deduziu, mas cuja origem conduzindo à fusão, dois a dois, elemento, a gravidade, deixa de e mecanismo eram inexplicáveis desses quatro conceitos clássicos ser uma força mútua entre dois em seu tempo. (Newtonianos) com sua redução a corpos para se transformar numa duas novas grandezas: o espaço- distorção espaço-temporal que IHU On-Line – Quais as diferen- tempo e a matéria-energia. De um brota “mágica e espontaneamen- ças entre as Teorias da Relativida- total de quatro conceitos clássi- te”, como consequência necessá- de Restrita e a Geral? cos passamos a trabalhar com dois ria, uma espécie de sinônimo físi- conceitos híbridos. Por exemplo, co, dessa pluri-fusão de grandezas 40 Aba Cohen Persiano – A Teoria a fusão do tempo ao espaço nos da Natureza. da Relatividade Restrita parte da permitiu entender a realidade invariância da velocidade da luz podendo variar desde uma situa- no vácuo (c ~ 300 mil km/s, valor ção com espaço imutável e tempo IHU On-Line – De que forma a imutável na descrição de qualquer “fluido” (objeto parado) até uma Teoria da Relatividade proporcio- observador, esteja ele se movendo situação que tende a um tempo nou uma revolução não somente ou não relativamente à fonte, es- imutável e espaço “fluido” (quan- científica, mas também paradig- teja esta parada ou não); com isto do v se aproxima de c); por outro mática de interpretação do Uni- Einstein aboliu o éter (substância lado, em lugar de dois princípios, verso, do mundo e das relações imaginada, em que a luz se apoia- o de conservação da massa e o de humanas? ria para viajar pelo espaço) e tra- conservação da energia, um novo Aba Cohen Persiano – A Física balhou com as descrições/percep- paradigma foi estabelecido, com a Clássica, erguida a partir da Me- ções/medidas físicas relacionadas troca destes pelo princípio de con- cânica Newtoniana, perdurou por ao espaço, tempo e processos dinâ- servação da massa-energia, gover- cerca de dois séculos e permitiu à micos feitas por observadores iner- nado pela expressão E=mc2. humanidade trabalhar com a Na- ciais, ou seja, que estão parados ou tureza de modo preciso, como um que se movem em linha reta e com A elegância da Teoria relógio perfeito. Esse alto grau de velocidade constante; foi também da Relatividade Restrita confiança deu sustentação à Revo- na Teoria da Relatividade Restrita lução Industrial e os conceitos de que Einstein mostrou a possibili- Em segundo lugar, a elegância espaço, tempo e matéria absolutos dade da conversão massa-energia da Teoria da Relatividade Restri- (imutáveis), tomados como base de através da expressão E=mc2. ta se transforma num verdadeiro sustentação da Física Clássica até Por outro lado a Teoria da Rela- “passe de mágica” quando mer- o início do Século XX, eram tidos tividade Geral lida com sistemas gulhamos no campo da Teoria da como “dogmas” tanto no mundo da não inerciais, ou seja, sistemas Relatividade Geral: a despeito da Ciência quanto na sociedade. No acelerados, e no seu longo desen- complexidade das equações da entanto, alguns fenômenos obser- volvimento, entre 1907 e 1915, Teoria Geral (um conjunto de dez vados ao final do século XIX, como Einstein criou um dos assuntos de sistemas de equações diferenciais a invariância da velocidade da luz, maior complexidade matemática, parciais de segunda ordem, de- não tinham sustentação pela teoria e também de beleza conceitual, nominadas equações de campo), Newtoniana.

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O tempo de modo a conscientizar um maior to intergaláctico para as galáxias número de cidadãos deste Terceiro mais afastadas, proposta que pre- A realidade de o tempo “fluir” Milênio. valeceu até os anos 1990. A partir de modo mais lento, o espaço en- daí, observações mais sofisticadas colher, a matéria desaparecer ou IHU On-Line – Do que se tratava acabaram por mostrar que a ex- surgir era algo inimaginável até a constante cosmológica de Eins- pansão do Universo se dá de ma- que Einstein demonstrou que isto, tein e por que ele a considerava, neira acelerada, ou seja, no início mais que uma possibilidade, era inicialmente, um “erro”? De que a rapidez da fuga (na realidade a uma necessidade do mundo real. forma a física teórica do século velocidade de expansão do espaço) No campo da Ciência essas mudan- XXI revisa essa questão? era menor do que a observada mais ças paradigmáticas poderiam ruir a recentemente. Essa realidade, base de sustentação das maravilhas Aba Cohen Persiano – Na época tema do prêmio Nobel de Física de propiciadas pela Física Newtonia- da publicação da Teoria Geral, o 2011, ressuscitou a constante cos- na. O que ocorreu na realidade foi Universo conhecido se limitava à mológica; o vetor que impulsiona o que, em vez de ruptura, tivemos Via Láctea na qual não consegui- Universo “para fora” é conhecido uma ampliação daquela base para mos perceber grandes movimen- como “energia escura”. uma situação muito mais rica e ar- tos. Conhecedor que era da ação da gravidade, Einstein tentou ex- rojada. Não foi fácil para Einstein IHU On-Line – Do que se tratam plicar o não colapso gravitacional sustentar suas ideias nos primeiros os fundamentos da natureza em do Universo, que tendia a implodir anos, em especial no tocante à Te- que espaço-tempo-matéria-ener- pela ação do conjunto das estre- oria da Relatividade Restrita, cujas gia se fundem numa realidade las, atribuindo uma “pressão de provas (conversão massa-energia) única? Como isso ajuda a explicar dentro-para-fora”, representada tiveram que esperar mais de duas o mecanismo da gravidade? décadas. nas equações de campo pelo acrés- cimo de um termo que ele deno- Aba Cohen Persiano – Tomemos Aos poucos os físicos foram acei- minou “constante cosmológica”. a Terra como exemplo de massa tando a realidade dos fatos e a Na década de 1920, Edwin Hubble3 que deforma o espaço-tempo em própria sociedade se acostumou. demonstrou que, muito além da sua vizinhança, a rigor não preci- Hoje a energia nuclear é uma re- Via Láctea, o Universo é populado sa ser um planeta ou estrela, já alidade do nosso cotidiano, quan- por um grande número de galáxias; que qualquer massa em menor ou do uma conversão matéria-energia além do mais Hubble inferiu uma maior monta o faz: segundo a Te- 41 em uma central nuclear é capaz dinâmica cósmica em que as ga- oria da Relatividade Geral há um de propulsionar turbinas geradoras láxias se afastam umas das outras afunilamento do espaço à medida de eletricidade; do mesmo modo segundo uma lei de expansão bem que se transita de um ponto mais existe uma necessidade imperiosa definida. afastado (mais alto) para um ponto de se fazer correções relativísticas mais próximo à superfície da Terra; visando à sincronia dos relógios de Movimentação do mesmo modo, mas num sentido corriqueiros aparelhos GPS em re- contrário, há um “desafunilamen- lação aos relógios dos satélites de Ao perceber que essa movimen- to” do tempo quando se vai de referência, sem a qual não man- tação, por si só, poderia evitar o um ponto mais alto para um ponto teríamos o conhecido alto grau de referido colapso gravitacional, mais próximo à superfície da Terra. precisão tecnológica. Einstein se precipitou em afirmar Em outras palavras, na superfície que a introdução da constante cos- da Terra o espaço é mais compri- Ano Internacional da mológica nas equações de campo mido e o tempo é mais dilatado do Luz tinha sido a “maior burrice” que que num ponto mais elevado. ele havia cometido. Desde essa Essa distorção, também conheci- Mesmo que um grande número de época o entendimento da expan- da pelo termo “gradiente espaço- pessoas não saiba, e o Ano Inter- são do Universo prosseguiu, segun- temporal”, envolve apenas metros nacional da Luz tem em seus obje- do uma equação chamada “Lei de e segundos e tem unidades de m/ tivos trazer esses esclarecimentos, Hubble”, para a qual se observa s2, ou seja, é uma aceleração – não essa realidade nos foi apresentada maiores velocidades de afastamen- é uma força como definia Newton no início do século passado e, como – e o seu valor próximo à superfí- partícipes dessa realidade, temos 3 Edwin Powell Hubble (1889–1953): foi um astrônomo estadunidense. Famoso por cie terrestre pode ser calculado obrigação de saber, pois ela incor- ter descoberto que as até então chamadas exclusivamente em termos dessas pora nossas vidas no presente. Nes- nebulosas eram na verdade galáxias fora da deformações, obtendo-se cerca se sentido estão sendo organizados Via Láctea, e que estas afastam-se umas das de 9,8 m/s2. Qualquer objeto co- em todo o planeta diversos eventos outras a uma velocidade proporcional à di- stância que as separa. Seu nome foi dado ao locado nessa região “escorrega” e cursos, como os que elaboramos2 primeiro telescópio espacial, posto em órbita em decorrência do “gradiente de em 1990, para estudar o espaço sem as di- 2 Mais informações em (light2015.org). (Nota storções causadas pela atmosfera. (Nota da funis invertidos”; não há uma for- do Entrevistado) IHU On-Line) ça como propunha Newton, e sim

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um fluir acelerado rumo a pontos que a energia, nesse caso a luz, O Princípio da Incerteza embute onde o espaço é mais espremido e em vez de ser algo contínuo e “di- em si uma infinidade de possibili- o tempo é mais alargado. Podemos visível ad-infinitum”, como uma dades, isto não significa que elas entender que esse “espremer” do onda, é de fato algo granulado, ou irão acontecer um dia. A ideia da espaço e esse “alargar” do tem- seja, a luz é constituída por blocos origem do Universo, tendo seu sur- po, existente nas proximidades do cujas quantidades energéticas são gimento com base nesse princípio, planeta, ou de qualquer massa, é bem definidas, cada bloco é o que é algo que pode ser entendido se a manifestação do “mecanismo de denominamos um “quantum de tomarmos as flutuações do vácuo gravidade” que também pode ser energia” (o valor energético “E” num limite extremo: num intervalo visto como “mecanismo de inér- do bloco é dado pela expressão de tempo ∆t absurdamente peque- cia”, já que ele reflete a “preguiça E=hf, onde h=Constante de Plan- no seria possível criar uma quanti- ou dificuldade” da matéria em ser ck=6,7.10-34 Js e f é a frequência dade de energia ∆E absurdamente acelerada: um modo de entender da luz). grande, suficiente para gerar todo isto é pensar que, para não ser ace- o Universo. lerada com facilidade (a Terra tem Esse foi o pontapé inicial dos es- muita massa, ou seja, muita inér- tudos quânticos. Essa ideia levou Algumas perguntas podem ser cia), o planeta “abraça” o espaço Einstein, em 1905, a explicar o colocadas: pela Teoria da Relati- e “afrouxa” o tempo à sua volta, Efeito Fotoelétrico (prêmio Nobel vidade Geral o espaço-tempo-ma- sendo que essa ação se estende ao de Física de 1921), ao entender téria-energia não têm existência infinito. Vemos assim que a dificul- que a luz, que era uma onda, po- independente; assim perguntamos dade da “grande” massa em ser dia ser entendida também como “sem a existência de espaço e tem- acelerada corresponde a um me- um grão de energia. Mais tarde, po, onde e quando essa flutuação canismo que implica no surgimento na década de 1920 tal dualida- teria ocorrido?”. No meu entender, de um auto-campo de aceleração de onda-partícula levou Louis de além da dificuldade de resposta à que aponta em sua direção. Broglie5 (prêmio Nobel de Física minha pergunta, essa conjectura de 1929) a propor que a matéria, é uma possibilidade extremamen- te remota para grandes massas; o IHU On-Line – o que é mecânica que até então era descontínua, exemplo dado para as flutuações quântica? também pode ser tratada como algo contínuo, como uma onda. A de vácuo foi com massas ínfimas. 42 Aba Cohen Persiano – Também mecânica quântica (MQ) é a teo- no final do Século XIX a Física ria que trabalha com a dualidade IHU On-Line – O que é a gravida- Newtoniana se mostrou incapaz onda-partícula que é observa- de quântica? de explicar outros fenômenos re- da tanto para a luz quanto para Sabemos lacionados ao extremamente pe- a matéria, em especial no nível Aba Cohen Persiano – que a Teoria da Relatividade Geral queno. O modo como um corpo submicroscópico. negro aquecido irradia (por exem- lida com campos contínuos, sem plo uma cavidade esférica aqueci- admitir qualquer tipo de desconti- da, dotada de um furo por onde IHU On-Line – Como o princípio nuidade; por outro lado a Mecânica podemos ver/medir a luz emitida) da incerteza ajuda a explicar a Quântica lida com descontinuida- tem um comportamento inexpli- origem do universo? des. Essa divergência de aborda- cável pela Teoria Clássica. No ano Aba Cohen Persiano – O Princípio gens gera um conflito que os físicos de 1900, Max Planck4 (prêmio No- da Incerteza, proposto por Werner não sabem como lidar, quando se bel de Física de 1918) propôs uma Heisenberg (prêmio Nobel de Físi- tenta aplicar a Teoria da Relati- quebra de paradigma ao afirmar ca de 1932), apresenta um limite vidade Geral a sistemas de baixa abaixo do qual não conseguimos dimensionalidade, que é o campo 4 Max Planck [Max Karl Ernst Ludwig da Mecânica Quântica. Os estudos Planck] (1858-1947): físico alemão, consi- perceber/medir com precisão ab- derado o pai da Teoria Quântica. Em 1899, soluta a localização e simultanea- de gravidade quântica tentam de- descobriu uma nova constante fundamental, mente a velocidade de uma partí- senvolver uma teoria que concilie chamada em sua homenagem Constante de a TRG com a MQ, buscando algum Planck, que é usada, por exemplo, para calcu- cula (sempre haverá uma incerteza lar a energia do fóton. Um ano depois, desco- ∆x na posição e v na velocidade modelo matemático para traba- briu a lei da radiação térmica, chamada Lei de tal que x.m∆v ≥ h/2 onde “m” é lhar, por exemplo, quando se quer Planck da Radiação. Esta foi a base da Teoria lidar com buracos negros, algo Quântica, que surgiu dez anos depois com a a massa da partícula e “h” a cons- colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. tante de Planck) como também não muito massivo, do campo da TRG, De 1905 a 1909, Planck atuou como diretor- conseguimos medir sua energia e e ao mesmo tempo diminuto, do -chefe da Sociedade Alemã de Física. Como simultaneamente a duração tem- campo da MQ. Essas tentativas, até conseqüência do nascimento da física quân- o momento, não conseguiram fazer tica, foi premiado, em 1918, com o Prêmio poral de um evento (∆E.∆t ≥ h/2). Nobel de Física. Após sua morte, o instituto a junção de modo claro. KWG passou a chamar-se Max-Planck-Ge- 5 Louis de Broglie (1892 – 1987): Físico sellschaft zur Förderung der Wissenschaften francês, estudou principalmente os raiox X, a (MPG, Sociedade Max Planck para o Progres- dualidade da onda e a mecânica ondulatória. IHU On-Line – O que são as par- so da Ciência). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) tículas elementares?

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Aba Cohen Persiano – As par- Nobel de Física de 1969) propôs a IHU On-Line – O que são as flutu- tículas elementares são os blocos existência de três pares de quarks, ações quânticas que preenchem o fundamentais da matéria, a partir partículas fundamentais com as tempo-espaço no universo? das quais se constrói as demais. quais, dependendo do modo como Aba Cohen – Essas flutuações são No passado os átomos eram cons- as combinamos, se pode construir responsáveis pela produção dos tituídos por blocos fundamentais não só as centenas de novas par- chamados “pares virtuais” de par- chamados de elétrons, prótons tículas como também os prótons tícula-antipartícula que, em prin- e nêutrons; hoje nem os prótons e nêutrons, que passaram a ser cípio, podem surgir e desaparecer nem os nêutrons são blocos ou compostos por uma trinca de qua- sem violar as leis de conservação partículas fundamentais, no sen- rks específicos. Desta forma, os da física. Com base no Princípio da tido de últimos constituintes, a blocos ou partículas fundamen- Incerteza, sabemos que é fisica- partir dos quais se monta todo o tais da natureza se resume a meia mente possível se “criar do nada” resto. Em meados do século XX, dúzia de quarks e outro tanto de uma partícula desde que isto além dos elétrons, prótons e nêu- anti-quarks, sendo que a essa aconteça num intervalo de tempo trons, foram catalogadas cente- coleção soma-se os léptons (par- muito curto; tal princípio diz que nas de outras partículas, fruto de tículas leves) como os elétrons, só conseguimos medir/perceber colisões entre partículas carrega- neutrinos, muons, tau e suas an- fatos que ocorram acima do limi- das, realizadas em aceleradores tipartículas; completam esse qua- te (∆E.∆t ≥ h/2), mas não perce- precursores do Grande Colisor de dro um conjunto de “partículas bemos/medimos algo que esteja Hádrons (Large Hadron Collider – mediadoras” responsáveis por for- 8 abaixo desse limite (E.∆t < h/2); LHC, na sigla em inglês)6 – há um ças de interação como os fótons, 9 10 em outras palavras se t for um in- amplo material publicado na pági- glúons, partículas W e Z, grávi- 11 12 tervalo de tempo muito pequeno na do IHU sobre o LHC, que acaba- ton e o bóson de Higgs. e ∆E uma quantidade de energia ram por gerar uma complexidade 8 Fóton: é a partícula elementar mediadora suficiente para gerar um par, por de nomenclaturas. da força eletromagnética. O fóton também é exemplo, elétron-pósitron (o pósi- Essa dificuldade foi resolvida o quantum da radiação eletromagnética (in- cluindo a luz). O termo fóton foi cunhado tron é a antipartícula do elétron, 7 quando Murray Gell-Mann (prêmio por Gilbert N. Lewis em 1926. Fótons são com mesma massa e carga, só que bósons e possuem Spin igual a um. A troca positiva), então isto pode aconte- 6 Grande Colisor de Hádrons (Large de fótons (virtuais1) entre as partículas como cer, dentro desses limites ( Hadron Collider – LHC): acelerador de os elétrons e os prótons é descrita pela eletro- partículas do CERN, é o maior e o de maior dinâmica quântica, a qual é a parte mais an- E.∆t < h/2); ou seja: se o produ- 43 energia existente do mundo. Seu principal tiga do Modelo Padrão da física de partículas. to for menor que h/2 isto está objetivo é obter dados sobre colisões de feixes Ele interage com os elétrons e núcleo atômico aquém de nossa capacidade de de partículas, tanto de prótons a uma ener- sendo responsável por muitas das proprieda- gia de 7 TeV (1,12 microjoules) por partícula, des da matéria, tais como a existência e esta- perceber e essas partículas podem ou núcleos de chumbo a energia de 574 TeV bilidades dos átomos, moléculas, e sólidos. surgir e em seguida desaparecer, (92,0 microjoules) por núcleo. O laboratório (Nota da IHU On-Line) confinadas àquele ínfimo intervalo localiza-se em um túnel de 27 km de circun- 9 Glúons: são as partículas intermediadoras de tempo ∆t. Essas são as flutua- ferência, bem como a 175 metros abaixo do da força forte, mas como os fótons também nível do solo na fronteira franco-suíça, próxi- são bósons, isto é, tem spin 1 e um número ções do vácuo; sua existência não mo a Genebra, Suíça. Está em operação desde quântico a mais, a cor. Existem três cores, R setembro de 2008. Um dos principais obje- (red), G (green) e B (blue) e são chamadas de partícula. Representa a chave para tivos do LHC é tentar explicar a origem da carga cor, para ser comparada com as cargas explicar a origem da massa das outras par- massa das partículas elementares e encontrar elétricas. (Nota da IHU On-Line) tículas elementares. Todas as partículas outras dimensões do espaço, entre outras coi- 10 Bósons W e Z: são partículas elementa- conhecidas e previstas são divididas em sas. Leia algumas reportagens publicadas no res que mediam a força fraca; seus símbolos duas classes: férmions e bósons (partícul- sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU: são W+, W− e Z. Os bósons W tem uma carga as com spin inteiro). O bóson de Higgs foi Experiência na máquina do Big Bang sobre elétrica positiva e uma negativa de uma carga predito primeiramente em 1964 pelo físico “partícula de Deus” opõe Stephen Hawking e elementar, respectivamente, e são antipar- britânico Peter Higgs, trabalhando as ide- Peter Higgs, reportagem publicada nas No- tículas um do outro. O bóson Z é eletrica- ias de Philip Anderson. Entretanto, desde tícias do Dia, de 12-09-2008, disponível em mente neutro e é a sua própria antipartícula. então não houve condições tecnológicas http://bit.ly/1Rquhl1; Colisão de partículas (Nota da IHU On-Line) de buscar a possível existência do bóson reproduz início do universo e abre nova era 11 Gráviton: é uma partícula elementar até o funcionamento do Grande Colisor de da Física, reportagem publicada nas Notícias hipotética que seria a responsável pela tran- Hádrons (LHC), em meados de 2008. A do Dia, de 31-03-2010, disponível em http:// smissão da força da gravidade na maioria faixa energética de procura do bóson vem bit.ly/1j92kD6; Em busca do “Big Bang” e de dos modelos da teoria quântica de campos. se estreitando desde então e, em dezembro Deus, reportagem publicada nas Notícias do A teoria postula que os grávitons sempre são de 2011, limites energéticos se encontram Dia, de 01-10-2008, disponpivel em http:// atrativos (gravidade nunca repele), atuan- entre as faixas de 116-130 GeV, segundo bit.ly/1MTVKdg. (Nota da IHU On-Line) do além de qualquer distância (gravidade é a equipe ATLAS, e entre 115 e 127 GeV de 7 Murray Gell-Mann (1929): é um fís- universal) e vêm de um ilimitado número de acordo com o CMS. A 4 de julho de 2012, ico estadunidense. É professor emérito de objetos. Portanto, se o gráviton existir, deve cientistas da Organização Europeia para a física teórica do Instituto de Tecnologia da ser um bóson de spin par e igual a dois, e deve Pesquisa Nuclear – CERN anunciaram que, Califórnia e um dos fundadores do Instituto ter uma massa de repouso zero, segundo a ao fim de 50 anos de investigação, desco- Santa Fé, que se dedica a trabalhos teóricos Mecânica Quântica. (Nota da IHU On-Line) briram uma partícula nova que pode ser o de assuntos como mecânica quântica, super- 12 Bóson de Higgs: partícula elementar bóson de Higgs. Leia a edição 405 da revista cordas, sistema imunológico dos mamíferos, bosônica prevista pelo Modelo Padrão de IHU On-Line, intitulada O Bóson de Higgs evolução das línguas e economia global, vi- partículas, teoricamente surgida logo após e a elegância invejável do Universo, de 22- stos como sistemas complexos em evolução. ao Big Bang de escala maciça hipotética 10-2012, disponível em http://bit.ly/18n- (Nota da IHU On-Line) predita para validar o modelo padrão atual GLSZ. (Nota da IHU On-Line)

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é uma simples conjectura teórica, tein era a Via Láctea, estática; nos e Brian Schmidt22 (Prêmios Nobel pois com base nelas conseguimos anos 1920 cosmólogos como Willem de Física de 2011) mostraram que explicar alguns fenômenos como a de Sitter,17 Georges Lemaître18 e a expansão é acelerada, vemos o Radiação de Hawking13 de um bu- Alexander Friedmann19 usaram a Universo sendo empurrado “para raco negro. Teoria da Relatividade Geral para fora” cada vez mais rapidamen- mostrar a possibilidade de um Uni- te, essa é a “verdade atual”. Não verso em expansão, que o próprio IHU On-Line – Como a noção de sabemos o que virá em seguida. Einstein contestou no primeiro que o universo está em perma- Vivemos numa cultura em que há momento; depois veio Edwin Hub- constante aperfeiçoamento de nente expansão modifica catego- ble, que mostrou essa realidade e nosso entendimento do Universo. rias da modernidade para pensar isto prevaleceu até os anos 1990 Cada vez mais nos convencemos de o mundo? De que forma isso re- quando havia a perspectiva do “big que somos habitantes de um ínfimo posiciona as teorias sobre nosso crunch”, com o Universo implodin- planeta perdido no espaço de um espaço no mundo? do e retornando ao ponto do “big Universo que se desintegrará no Aba Cohen Persiano – No tem- bang”. Hoje sabemos que isto não infinito. Essa percepção nos obriga po de Ptolomeu14 o Universo era acontecerá. a pensar de modo humilde em re- centrado na Terra, depois veio Há cerca de 15 anos a expansão lação à existência e à natureza e a Copérnico,15 Kepler16 e há menos (vista por nós) era uniforme e agora cuidar melhor desse pontinho azul de 100 anos o Universo de Eins- que Saul Perlmutter,20 Adam Riess21 em que vivemos.

13 Radiação Hawking: em Física é o que 17 Willem de Sitter (1872–1934): foi um se chama de radiação térmica que se acredi- matemático, físico e astrônomo neerlandês. IHU On-Line – Deseja acrescen- ta ser emitida por buracos negros devido a Willem de Sitter estudou matemática na Uni- tar algo? efeitos quânticos. Ela leva o nome do cien- versidade de Groningen e depois integrou o tista inglês Stephen Hawking, que elaborou Laboratório de Astronomia de Groninga. Tra- Aba Cohen Persiano – Sabemos os argumentos teóricos de sua existência em balhou no observatório do Cabo na África do 1974. Como a radiação Hawking permite aos Sul (1897-1899), e em 1908 foi nomeado para que a Física Contemporânea se buracos negros perder massa, supõe-se que a cátedra de astronomia da Universidade de configura como um imenso cam- os buracos negros que percam mais matéria Leiden. Foi diretor do Observatório de Leiden 44 do que ganhem por outros meios, venham a de 1919 até sua morte.De Sitter ficou também po que encerra uma maravilhosa evaporar, encolher, e finalmente desaparecer. célebre por seus trabalhos sobre o planeta harmonia, mas suas fronteiras es- (Nota da IHU On-Line) Júpiter. (Nota da IHU On-Line) 14 Ptolomeu (100-178): polimata grego 18 Georges-Henri Édouard Lemaître tão abertas. Nenhuma das teorias reconhecido pelos seus trabalhos em astro- (1894-1966): padre católico, astrônomo e físi- aqui discutidas é a palavra final logia, astronomia e cartografia. (Nota IHU co belga. O asteróide 1565 Lemaître foi assim On-Line). chamado em sua homenagem. Lemaître estu- em matéria de Ciência; ainda que 15 Nicolau Copérnico (1473-1543): as- dou Matemática e Ciências Físicas na Univer- algumas teorias, como a Teoria da trônomo e matemático polonês, governador sidade de Louvain. Entrou no seminário em e administrador, jurista, astrólogo e médi- 1920 para ser ordenado padre em 1923. Em Relatividade Geral e a Mecânica co. Desenvolveu a teoria heliocêntrica para seguida, interessa-se particularmente pela Quântica, consigam prever os fatos o sistema solar, que colocou o Sol como o Teoria da Relatividade de Albert Einstein, centro do sistema solar, contrariando a que ele encontra diversas vezes. Trabalha no da Natureza com precisão absur- então vigente teoria geocêntrica – o geo- Observatório de Cambridge sob a direção de damente elevada, superando uma centrismo (que considerava a Terra como Arthur Stanley Eddington, e depois no Mas- o centro). Essa teoria é considerada uma sachusetets Institute of Technology (MIT), dezena de casas decimais, existem das mais importantes descobertas de todos onde redige sua tese sobre os campos gravi- sérias incompatibilidades entre os tempos, sendo o ponto de partida da as- tacionais da Relatividade Geral. Retorna à tronomia moderna. A teoria copernicana Bélgica em 1925, onde foi nomeado professor elas que exigem novas pesquisas e influenciou vários outros aspectos da ciên- na Universidade de Louvain, onde ensina até a evolução de nosso entendimento cia e do desenvolvimento da humanidade, 1964. (Nota da IHU On-Line) permitindo a emancipação da cosmologia 19 Alexander Alexandrovich Fried- do mundo. Essa busca nos leva ao em relação à teologia. O IHU promoveu de mann (1888-1925): matemático e cosmólo- desenvolvimento de novos conheci- 03-08 a 16-11-2005 o ciclo de estudos De- go russo, um dos “pais” da teoria de expansão safios da Física para o Século XXI: uma do universo e do Big Bang, juntamente com mentos, novas tecnologias e cultu- aventura de Copérnico a Einstein. (Nota da Georges Lemaître e George Gamov. (Nota da ra, levando também à questão da IHU On-Line) IHU On-Line) 16 Johannes Kepler (1571-1630): astrô- 20 Saul Perlmutter (1959) é um astrofisi- segurança, que deve ser vista com nomo, matemático e astrólogo alemão e co estadunidense. Trabalha no Laboratório muito cuidado, pois enseja dois figura-chave da revolução científica do sécu- Nacional de Lawrence Berkeley e é professor lo XVII. É mais conhecido por formular as do Departamento de Física da Universidade olhares. três leis fundamentais da mecânica celeste, da Califórnia em Berkeley. Foi laureado com conhecidas como Leis de Kepler, codificada o Nobel de Física de 2011, juntamente com 2011, juntamente■ com Brian Schmidt e Saul por astrônomos posteriores com base em Adam Riess e Brian Schmidt, “pela desco- Perlmutter. (Nota da IHU On-Line) suas obras Astronomia Nova, Harmonices berta da expansão acelerada do universo me- 22 Brian P. Schmidt (1967): é um astrofís- Mundi, e Epítome da Astronomia de Copér- diante observações de supernovas distantes”. ico estadunidense. nico. Elas também forneceram uma das bases (Nota da IHU On-Line) Foi laureado com o Nobel de Física de 2011, para a teoria da gravitação universal de Isaac 21 Adam Guy Riess (1969): é um astrofísico juntamente com Adam Riess e Saul Perlmut- Newton. (Nota da IHU On-Line) estadunidense. Recebeu o Nobel de Física de ter. (Nota da IHU On-Line)

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Einstein – Uma vida dedicada à dúvida Trevor Lipscombe, biógrafo de Albert Einstein, analisa a trajetória do físico que revolucionou nossa forma de compreender o mundo

Por Ricardo Machado | Tradução Walter O. Schlupp

em sempre o mundo foi pensado coloca Lipscombe. Fugido da Alemanha Na- como movimento. O combustível zista, Einstein nunca foi um exemplo de pai Nque movimenta as descobertas e marido, muito antes pelo contrário, mas nunca foi a certeza, a resposta precisa e figura entre as personalidades mais impor- certeira, mas as dúvidas. Talvez poucas tantes de todos os tempos. “Acho que Eins- pessoas tenham sido tão questionadoras e tein é mais crucial para nós do que apenas inquietas quanto Albert Einstein, um dos suas teorias. Ele entrou num mundo da físi- cientistas mais celebrados de todos os tem- ca em que muitos cientistas pensavam que pos. “Einstein foi um dos melhores físicos havia apenas ‘meros detalhes’ para resol- que já viveu. É incomparável sua habilida- ver. Einstein nos convida a todos a pensar de de olhar para o universo de novas ma- de maneiras novas e emocionantes sobre o neiras – [investigando] se a luz é mais bem mundo que nos rodeia e a perseguir essas descrita como partículas ou como ondas, ideias onde quer que elas nos possam le- ou se a gravidade é mais bem concebida var”, propõe o entrevistado. como força ou como curvatura do espaço”, argumenta Trevor Lipscombe, biógrafo de Trevor Lipscombe é diretor de impren- Einstein, em entrevista por e-mail à IHU sa na Catholic University of America Press, On-Line. “Ele usou sua fama de físico para em Washington, nos Estados Unidos. Ante- 45 promover causas que ele acreditava serem riormente havia ocupado o mesmo cargo boas; foi um dos primeiros exemplos de ce- durante 10 anos na universidade Johns Ho- lebridade que tentou usar seu status para pkins, Baltimore, EUA. Antes disso, por oito provocar mudança”, completa. anos, foi editor de publicações de física e ciências na Princeton University, na cida- “Einstein se atreveu a fazer grandes per- de homônima nos EUA. Ele é biógrafo de guntas: E se a luz for feita de partículas, Einstein com o livro Albert Einstein: a Bio- em vez de ondas (efeito fotoelétrico)? E graphy (Santa Barbara: Greenwood Press, se a teoria eletromagnética da luz estiver 2005). correta e as leis de Newton não estiverem lá muito corretas (relatividade especial)?”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a relevân- lebração do Ano Internacional da futuro, precisamos compreender cia de recuperar o legado de Al- Luz? melhor o passado, e podemos fazer bert Einstein1 por ocasião da ce- isto ao reconhecermos o trabalho Trevor Lipscombe – Einstein aju- de Einstein. dou-nos a pensar de forma diferen- 1 Albert Einstein (1879-1955): físico ale- te sobre a luz e, assim, a entendê- mão naturalizado americano. Premiado com -la melhor. É graças ao trabalho de IHU On-Line – Considerando-se o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser autor das teorias especial e geral da relati- Einstein sobre o efeito fotoelétrico o trabalho de Einstein, como sua vidade e por suas ideias sobre a natureza ultravioleta (pelo qual ele recebeu descoberta da “Lei do efeito foto- corpuscular da luz. É, provavelmente, o físi- o Prêmio Nobel de Física) que ago- elétrico” contribuiu para o esta- co mais conhecido do século XX. Sobre ele, ra se considera a luz como compos- belecimento da teoria quântica? confira a edição nº 135 da Revista IHU On- Line, sob o título Einstein. 100 anos depois ta de partículas. Einstein também Trevor Lipscombe – Com o efeito do Annus Mirabilis, disponível em http://bit. descobriu o princípio da emissão de fotoelétrico, Einstein mostrou-nos ly/ihuon130 e a edição 141, de 16-05-2005, luz que fundamenta o laser. Para que havia uma base razoável para chamada Terra habitável: um desafio para pensar de forma criativa sobre o a humanidade, disponível em http://bi.ly/ se conceber a luz como compre- ihuon141. A Unisinos produziu, a pedido do endida de partículas, conhecidas IHU, um vídeo de 15 minutos em função do mão, do qual o professor Carlos Alberto dos como fótons. Luz de um determi- Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a Santos participou, concedendo uma entrevis- nado comprimento de onda, segun- 19-05-2005, em homenagem ao cientista ale- ta. (Nota da IHU On-Line)

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do Einstein, tem uma determinada período ele não estava numa uni- depois que Hitler2 chegou ao poder. energia. E na teoria quântica os versidade, mas trabalhando como Os nazistas venderam sua casa, que elétrons orbitam o núcleo atômi- funcionário no registro de paten- foi transformada em acampamento co, e cada órbita também tem uma tes em Berna, na Suíça. Ele estava de jovens arianos. Até ali, porém, energia específica associada a ela. casado fazia dois anos e seu filho ele já tinha alcançado suas maiores Graças ao efeito fotoelétrico, ago- Hans Albert tinha nascido em maio realizações na ciência – exceto seu ra entendemos que, se os elétrons do ano anterior. Einstein, então, excelente artigo com Podolsky3 e absorvem um fóton de energia ade- estava lutando para cuidar de sua Rosen,4 o chamado paradoxo EPR,5 quada, o elétron vai mudar de ór- família financeiramente e ainda que sugeriu que a mecânica quân- bita; e para se deslocar para uma encontrou tempo para fazer essas tica não era uma teoria completa, órbita mais baixa, ele irá emitir um profundas contribuições para o que algo estava faltando em nossa fóton de uma energia específica. mundo da física. compreensão da mesma. As frequências de luz absorvidas ou emitidas são características do IHU On-Line – Como é que a Teo- IHU On-Line – Qual era a opi- elemento químico do qual provêm ria da Relatividade proporcionou nião de Einstein sobre o Projeto – é uma impressão digital atômica. uma revolução não só científica, Manhattan? A concepção de Einstein sobre a mas também paradigmática para Trevor Lipscombe – Einstein es- emissão e absorção de luz ajudou a a interpretação do universo, do creveu apoiando o lançamento da cimentar a nossa crença na quanti- mundo e das relações humanas? zação das órbitas de elétrons. bomba atômica, mas depois teve Trevor Lipscombe – Esta seria sérias dúvidas sobre isso. uma boa pergunta a fazer ao Eins- IHU On-Line – Em sua opi- tein! Ele sempre ficava perplexo nião, qual é a relevância de Al- IHU On-Line – Qual o significa- que sua teoria atraísse a atenção bert Einstein para a história da do da constante cosmológica de de pessoas que não tinham faci- humanidade? Einstein? Por que ele considerou lidade em compreendê-la e que Trevor Lipscombe – Einstein foi muitas vezes a usaram para seus um dos melhores físicos que já vi- próprios propósitos. Pode muito 2 Adolf Hitler (1889-1945): ditador aus- tríaco. O termo Führer foi o título adotado veu. É incomparável sua habilidade bem ser que a ideia de que coisas por Hitler para designar o chefe máximo do de olhar para o universo de novas como tempo, espaço e movimento Reich e do Partido Nazista. O nome significa maneiras – [investigando] se a luz é são relativas, e não absolutas, te- o chefe máximo de todas as organizações mi- mais bem descrita como partículas nha cativado pessoas de forma mais litares e políticas alemãs, e quer dizer “con- 46 dutor”, “guia” ou “líder”. Suas teses racistas ou como ondas, ou se a gravidade geral, especialmente na Europa, e antissemitas, bem como seus objetivos para é mais bem concebida como força onde o movimento modernista era a Alemanha, ficaram patentes no seu livro de ou como curvatura do espaço. Ele popular. Era como se a teoria de 1924, Mein Kampf (Minha Luta). No perío- usou sua fama de físico para promo- Einstein se conectasse com alguns do da ditadura de Hitler, os judeus e outros ver causas que ele acreditava serem dos objetivos e crenças dos moder- grupos minoritários considerados “indeseja- dos”, como ciganos e negros, foram persegui- boas; foi um dos primeiros exem- nistas. Parafraseando Einstein, ele dos e exterminados no que se convencionou plos de celebridade que tentou usar disse certa vez a um menino que chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio seu status para provocar mudança. segurar a mão de alguém que você no seu Quartel-General (o Führerbunker) ama só parece durar um momento, em Berlim, com o Exército Soviético a pou- cos quarteirões de distância. A edição 145 da IHU On-Line – Como era a vida mas que, se você colocar a mão no IHU On-Line, de 13-06-2005, comentou na de Einstein em 1905, ao escrever fogão, parece uma eternidade. Eu editoria Filme da Semana, o filme dirigido os artigos que o levaram à posição acho que todos teríamos certa afi- por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últi- nidade com isso! mas horas de Hitler, disponível em http:// que todos nós conhecemos hoje? bit.ly/ihuon145. A edição 265, intitulada Trevor Lipscombe – Em 1905, Nazisimo: a legitimação da irracionalidade IHU On-Line – Como é que o na- e da barbárie, de 21-07-2008, trata dos 75 Einstein apresentou cinco artigos zismo na Europa afetou a vida e a anos de ascensão de Hitler ao poder, disponí- importantes que integraram seu as- vel em http://bit.ly/ihuon265. (Nota da IHU produção acadêmica de Einstein? sim chamado “Ano Milagroso”. Dois On-Line) Em que circunstâncias ele se mu- deles (um artigo e um adendo, na 3 Boris Podolsky (1896–1966): foi um fís- dou para os Estados Unidos? ico russo que imigrou para os Estados Uni- verdade) estabelecem a relativida- dos. Trabalhou com Albert Einstein e Nathan de especial. Outro deles foi sobre Trevor Lipscombe – Einstein nun- Rosen e concebeu o Paradoxo EPR, que é de o efeito fotoelétrico, pelo qual ele ca se sentiu confortável na Alema- máxima importância para a física quântica. recebeu o Prêmio Nobel em 1921. nha. Ele foi ainda adolescente para (Nota da IHU On-Line) Outro foi sobre o movimento brow- a Suíça, em parte para fins de for- 4 Nathan Rosen (1909-1995): foi um fís- ico estadunidense naturalizado israelense. É niano, que continua a ser o artigo mação, mas também porque ele não conhecido por seus estudos sobre a estrutura mais citado. E o último foi sua tese gostava do militarismo da Prússia. da molécula de hidrogênio e seu trabalho com de doutorado, que forneceu um Seus trabalhos sobre a relatividade Albert Einstein e Boris Podolsky resultando novo método para se determinar o geral, por exemplo, foram feitos no paradoxo EPR. (Nota da IHU On-Line) 5 EPR: sigla que designa os autores (Albert tamanho das moléculas. durante sua permanência em Praga, Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen de Tchecoslováquia. Einstein deixou a O que torna essas conquistas um experimento destinado a demonstrar a Alemanha para sempre em 1933, incompletude da mecânica quântica. (Nota ainda mais notáveis é que nesse do IHU On-Line)

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esta hipótese como seu “maior caminho para o laser, por cuja in- de Einstein sobre a relatividade ge- erro”? venção Prêmios Nobel foram con- ral, que 100 anos depois continuam quistados, e o laser tem afetado sendo um desafio para se resolver! Trevor Lipscombe – Quando Eins- profundamente o mundo em que tein desenvolveu sua teoria da rela- Como uma figura pública, acho vivemos – pense na cirurgia a laser, tividade geral, nada sugeria que o que ele é de extrema importância por exemplo. Ele escreveu sobre universo estivesse se expandindo. por usar seu status como uma das a opalescência (o que foi descrito Por isso ele queria encontrar uma pessoas mais inteligentes e famo- como seu “artigo mais incompre- solução em que o universo fosse es- sas do planeta para argumentar em ensível”), a nebulosidade de um tático, imutável no tempo. A gravi- favor da paz, em vez da guerra. E, líquido através do qual passa a luz, dade, no entanto, faz com que as para ser honesto, seu cabelo estilo e que explica por que o céu é azul. coisas entrem em colapso entre si, selvagem, traje desleixado, o fato Ele explicou o efeito fotoelétrico o que impede um universo estáti- de nunca usar meias e ter opiniões que, considerando a luz como par- co. Para neutralizar isso, Einstein iconoclastas da sociedade sempre tícula, nos permite explicar mais precisava de uma pressão cósmica, serão interessantes! facilmente como as partículas de por assim dizer, que empurrasse as matéria interagem entre si – espe- coisas separadas e assim contrarias- cialmente em gigantescas máquinas IHU On-Line – De que forma se a gravidade. Este seria o caso se de esmagamento de átomos como Einstein simboliza as mudanças um dos termos matemáticos em sua o Grande Colisor de Hádrons. Gra- radicais na ciência nos últimos equação não fosse zero, mas tivesse ças à concepção de Einstein sobre 100 anos? um certo valor pequeno. Esta foi a a luz, agora temos, por exemplo, a constante cosmológica.6 Trevor Lipscombe – Acho que eletrodinâmica quântica (QED, na Einstein é mais crucial para nós do Uma vez que se soube que o sigla em inglês), que descreve luz que apenas suas teorias. Ele entrou universo se expandia, e cientistas e matéria, em função da qual mais num mundo da física em que mui- como o padre belga Pe. Georges prêmios Nobel foram concedidos. tos cientistas pensavam que havia 7 Lemaître tinham resolvido as equa- Sua percepção de que partículas de apenas “meros detalhes” para re- ções de Einstein para um universo matéria e partículas de luz têm pro- solver. Einstein se atreveu a fazer em expansão, não havia mais neces- priedades diferentes levou à des- grandes perguntas: E se a luz for sidade de um universo estático. En- coberta dos condensados de Bose- feita de partículas, em vez de on- tão, por ter introduzido esse termo -Einstein, para o que ainda outro das (efeito fotoelétrico)? E se a te- [hipotético] na equação, Einstein Prêmio Nobel foi concedido. Nossa oria eletromagnética da luz estiver sentiu que tinha cometido um erro. compreensão da textura do univer- correta e as leis de Newton não 47 so está intimamente ligada à visão estiverem lá muito corretas (rela- IHU On-Line – De que forma os de Einstein sobre a luz. tividade especial)? Que acontece estudos de Einstein permitem se curvatura e quantidade de ace- uma melhor compreensão das IHU On-Line – Por que Einstein leração resultarem na mesma coisa propriedades da luz? ainda permanece não só um cien- (relatividade geral)? E se partículas tista, mas também uma figura de luz forem contadas de forma di- Trevor Lipscombe – As teorias de pública de extrema importância ferente que partículas de matéria Einstein ajudaram a pavimentar o para o mundo? (estatística de Bose-Einstein)? Eins- tein nos convida a todos a pensar 6 Por ele introduzida artificialmente em sua Trevor Lipscombe – Einstein é de maneiras novas e emocionantes equação. (Nota do tradutor) um dos cientistas mais conhecidos sobre o mundo que nos rodeia e a 7 Georges-Henri Édouard Lemaître de todos os tempos. Eu acho que os (1894-1966): padre católico, astrônomo e físi- perseguir essas ideias onde quer físicos hoje estão conscientes disso co belga. O asteróide 1565 Lemaître foi assim que elas nos possam levar. chamado em sua homenagem. Lemaître estu- e por isso ainda estamos ansiosos dou Matemática e Ciências Físicas na Univer- por tentar provar que ele estava sidade de Louvain. Entrou no seminário em errado, ou por encontrar algo que IHU On-Line – Você gostaria de 1920 para ser ordenado padre em 1923. Em acrescentar algo? seguida, interessa-se particularmente pela ligue o nosso trabalho ao dele. Os Teoria da Relatividade de Albert Einstein, físicos, como todo mundo, têm Trevor Lipscombe – Einstein foi que ele encontra diversas vezes. Trabalha no seus heróis. Por exemplo, faz al- um cientista maravilhoso. Em sua Observatório de Cambridge sob a direção de gum tempo escrevi um artigo sobre vida familiar, foi marido e pai pro- Arthur Stanley Eddington, e depois no Mas- um tipo estranho de matéria cha- sachusetets Institute of Technology (MIT), fundamente falhos. Talvez jamais onde redige sua tese sobre os campos gravi- mado gás de Chaplygin, e minha igualemos suas realizações no mun- tacionais da Relatividade Geral. Retorna à principal motivação para pesquisar do da ciência, mas talvez todos po- Bélgica em 1925, onde foi nomeado professor as propriedades desse gás foi que demos tentar ser os melhores pais na Universidade de Louvain, onde ensina até eu passaria a lidar com as equações 1964. (Nota da IHU On-Line) e cônjuges que pudermos.

■ LEIA MAIS... Assinado, Albert Einstein. Carta esquecida em um cofre por décadas. Reportagem com Trevor Lipscombe reproduzida nas Notícias do Dia, de 25-05-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1O2hVzf.

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Descobertas e incertezas sobre o “suor dos átomos” Marcelo Gleiser analisa as descobertas e os infinitos mistérios acerca da Luz

Por Ricardo Machado

osto de dizer que a luz com maior ou menor nitidez mais devido é o ‘suor dos átomos’, à nossa psicologia do que devido à nossa “Gdado que é emitida quan- interação com a luz. Existe a intenção do elétrons pulam de um nível atômico (ou não) de uma conexão com o outro. mais elevado para outro mais baixo, Quando muito forte, usamos a luz meta- como quando descemos escadas” – assim foricamente para explicar uma atração o professor e pesquisador Marcelo Glei- maior”, pondera o professor, em entre- ser define, de forma sintética, o que é a vista por e-mail à IHU On-Line. luz. “Somos criaturas da luz, evoluímos num planeta banhado por ela (especial- Marcelo Gleiser é graduado em Física mente a parte do ‘espectro luminoso’ pela Pontifícia Universidade Católica do que chamamos de luz visível, as formas Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre em Fí- de radiação eletromagnética que nossos sica pela Universidade Federal do Rio de olhos podem detectar). Nossas tecnolo- Janeiro – UFRJ e doutor em Física Teó- gias dependem em grande parte das pro- rica pelo King’s College, em Londres. É 48 priedades da luz, desde lâmpadas sim- pós-doutor pelo Fermilab e pela Univer- ples a LEDs e lasers”, complementa. sidade da Califórnia, Santa Bárbara, nos Estados Unidos. Leciona no Dartmouth Os avanços científicos permitiram College, em Hanover, nos Estados Uni- que compreendêssemos muitas coisas a dos. Tem uma vasta produção acadêmi- respeito da Luz, mas estamos longe de ca, além de inúmeros artigos e livros pu- poder dissecá-la totalmente. “Não sabe- blicados, dentre os quais citamos A ilha mos por que sua velocidade é de 300.000 do conhecimento: Os limites da ciência km/segundo, ou porque é a coisa mais e a busca por sentido (Rio de Janeiro: rápida que existe na Natureza. Descre- Record, 2014); Criação imperfeita (Rio ver a luz cientificamente não é o mesmo de Janeiro: Record, 2010); Cartas a um que entendê-la por completo”, aponta jovem cientista (Rio de Janeiro: Cam- Marcelo. Tão misteriosa quanto a Luz pus, 2007); Conversa sobre fé e ciência são as relações humanas. Estes dois fe- (São Paulo: Agir, 2011), escrito com Frei nômenos estão tão próximos quanto dis- Betto; e A dança do universo (Rio de Ja- tantes, no paradoxo de suas particulari- neiro: Companhia de bolso, 2006). dades que parecem ocorrer em paralelo uma à outra. “Acho que vemos o outro Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é, afinal de que é emitida quando elétrons pu- que emergem neste contexto nos contas, a Luz? lam de um nível atômico mais ele- ajudam a compreender os desa- fios do século XXI? Marcelo Gleiser – A luz é uma vi- vado para outro mais baixo, como bração do campo eletromagnético. quando descemos escadas. Marcelo Gleiser – O Ano Interna- Essencialmente, ela é a radiação cional da Luz usa as várias datas emitida por cargas elétricas em IHU On-Line – Qual a importân- que coincidem com 2015 (100 anos movimento. Gosto de dizer que a cia de se celebrar o Ano Interna- de relatividade geral de Einstein, luz é o “suor dos átomos”, dado cional da Luz? Como os debates 110 de sua teoria da luz como sen-

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Marcelo Gleiser – A física quânti- ca é a física dos objetos atômicos e subatômicos; ou, pelo menos, neles vemos seus efeitos de forma mais Não sabemos por que sua velo- pronunciada. Ela descreve o mun- do a partir de probabilidades, em cidade é de 300.000 km/segun- particular devido ao princípio de do, ou porque é a coisa mais rá- incerteza de Heisenberg, que diz que não podemos determinar ao pida que existe na Natureza mesmo tempo a posição e velocida- de de um objeto submicroscópico.

do composta por partículas cha- elétrons ou outras partículas que IHU On-Line – Além de Heinsen- madas fótons) para dar atenção ao possuem carga elétrica. berg, quem foram Max Planck,2 fenômeno natural que nos é mais Paul Dirac3 e Erwin Schrödinger4? próximo. Somos criaturas da luz, IHU On-Line – Qual a questão Qual a importância do pensamen- evoluímos num planeta banhado de fundo no debate sobre a Luz? to deles para a teoria quântica? por ela (especialmente a parte do Como sabemos se algo existe? Marcelo Gleiser – Todos contribu- “espectro luminoso” que chama- íram para a construção dessa nova mos de luz visível, as formas de ra- Marcelo Gleiser – O que defini- visão de mundo, que vai contra o diação eletromagnética que nossos mos como parte da realidade física, como explico em meu livro A Ilha determinismo da física clássica. olhos podem detectar). Nossas tec- do Conhecimento, depende do que Aos leitores interessados, sugiro a nologias dependem em grande par- podemos “ver”. A luz é parte fun- leitura de meus livros A Dança do te das propriedades da luz, desde damental de nossos instrumentos Universo e A Ilha do Conhecimento. lâmpadas simples a LEDs e lasers. A de detecção, como microscópios Schrödinger, em particular, desen- visualização como diagnóstico mé- e telescópios, e não só no visível, dico depende da luz e suas proprie- da mecânica quântica, cujas aplicações leva- mas no infravermelho, ultravio- dades. E, claro, sem a luz do Sol a ram à descoberta, entre outras, das formas leta, etc. Portanto, a luz e suas alotrópicas do hidrogênio”. Juntamente com vida não seria viável. 49 propriedades, e como podemos Max Born e Pascual Jordan, Heisenberg esta- beleceu as bases da formulação matricial da usá-las, define, em grande parte, o mecânica quântica em 1925. Em 1927, publi- IHU On-Line – De que forma a que chamamos de realidade. cou o artigo Über den anschaulichen Inhalt Teoria da Relatividade de Einstein der quantentheoretischen Kinematik und esclareceu o debate, que havia Mechanik, em que apresenta o Princípio da IHU On-Line – Em que medida incerteza. (Nota da IHU On-Line) desde o século XVII, em torno das debater sobre a natureza da Luz, 2 Max Planck [Max Karl Ernst Ludwig propriedades da luz (se era onda Planck] (1858-1947): físico alemão, em última instância, implica dis- ou partícula)? considerado o pai da Teoria Quântica. cutirmos a natureza da realidade? Em 1899, descobriu uma nova constante Marcelo Gleiser – A luz é tanto fundamental, chamada em sua homenagem Marcelo Gleiser – Pela resposta Constante de Planck, que é usada, por onda quanto partícula e, de certa acima, vemos que a luz é um ins- exemplo, para calcular a energia do fóton. forma, nenhuma das duas. Sua ma- Um ano depois, descobriu a lei da radiação trumento de prospecção do real, nifestação como onda ou partícula térmica, chamada Lei de Planck da Radiação. nossa ferramenta mestre em nos- Esta foi a base da Teoria Quântica, que surgiu depende do contexto; por exem- sas interações com a Natureza. dez anos depois com a colaboração de Albert plo, se deixamos a luz passar por Einstein e Niels Bohr. De 1905 a 1909, Planck Certas propriedades da luz, ligadas duas fendas, veremos efeitos de atuou como diretor-chefe da Sociedade a efeitos quânticos, puxam os limi- Alemã de Física. Como conseqüência do difração que são propriedades de tes do que hoje compreendemos, nascimento da física quântica, foi premiado, onda; se a luz colide com prótons em 1918, com o Prêmio Nobel de Física. Após como a questão de efeitos entre sua morte, o instituto KWG passou a chamar- ou elétrons, veremos propriedades fótons distantes que aparentam se se Max-Planck-Gesellschaft zur Förderung de partícula. relacionar instantaneamente. der Wissenschaften (MPG, Sociedade Max Planck para o Progresso da Ciência). (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Como a Luz se IHU On-Line – Do que se trata 3 Paul Dirac (1902–1984): engenheiro forma? e matemático britânico. Desenvolveu a a física quântica e qual a impor- chamada Equação de Dirac, que descreve o Marcelo Gleiser – A luz é a ra- tância do pensamento de Werner comportamento relativístico do elétron. Essa Heinsenberg1 para compreender- teoria levou Dirac a prever a existência do diação, a energia emitida quando pósitron, a antipartícula do elétron, que foi elétrons vibram em átomos. Isso mos esta perspectiva teórica? observado experimentalmente em 1932 por pode ocorrer de diversas formas, Carl Anderson. (Nota IHU On-Line) 1 Werner Karl Heisenberg (1901–1976): 4 Erwin Schrödinger (1887-1961): físico mas a luz vem essencialmente des- foi um físico teórico alemão que recebeu o austríaco, um dos pais da teoria quântica. ses movimentos subatômicos com Prêmio Nobel de Física em 1932 “pela criação (Nota da IHU On-Line)

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volveu a equação que usamos para peito às interpretações científi- nizar a luz. O que podemos dizer calcular as probabilidades de even- cas sobre a luz? é que continuamos dependendo da luz para nossa sobrevivência. tos subatômicos. Marcelo Gleiser – Acho que são coisas muito diversas; os Antigos IHU On-Line – De que forma a viam, com razão, a importância IHU On-Line – Que mistérios ain- física de Einstein demonstra que da sobrevivem em torno da Luz? somos criaturas da Luz não so- Marcelo Gleiser – Muitos. Não sa- mente no sentido figurado? bemos porque sua velocidade é de Marcelo Gleiser – A relação ín- 300.000 km/segundo, ou porque é tima entre matéria e energia, que Acho que ve- a coisa mais rápida que existe na aparece na fórmula E = mc2, vem mos o outro Natureza. Descrever a luz cientifi- da luz. O que a fórmula diz é que camente não é o mesmo que en- matéria pode se transformar em com maior ou tendê-la por completo. “luz”: não a luz visível, mas raios menor nitidez gama, que são a forma de radia- IHU On-Line – De que maneira ção eletromagnética mais energé- mais devido à nossa capacidade corpórea huma- tica que existe. E vice-versa, raios nossa psicologia na de interagir com a Luz nos tor- gama podem se transformar em nou capazes de perceber o Outro matéria. (Na verdade, matéria e do que devido (enquanto outro)? antimatéria juntamente, mas isso à nossa intera- Marcelo Gleiser – Acho que ve- é uma outra estória) mos o outro com maior ou menor ção com a luz nitidez mais devido à nossa psico- IHU On-Line – De que maneira a logia do que devido à nossa inte- crença de civilizações multimile- do sol em suas vidas e para a sua ração com a luz. Existe a intenção nares como os egípcios, os incas, sobrevivência. O que sabemos hoje (ou não) de uma conexão com o ou- os celtas, entre outros, em torno da luz é bem diverso, pois temos tro. Quando muito forte, usamos a 50 do Sol é atualizada pela ciência uma descrição quantitativa de suas luz metaforicamente para explicar contemporânea no que diz res- propriedades. Não precisamos divi- uma atração maior.

■ LEIA MAIS... —— Controlando a fragilidade quântica. Artigo de Marcelo Gleiser publicado nas Notícias do Dia, de 17-10-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1MO8F0b; —— A crença na miraculosa capacidade humana da descoberta. Entrevista com Marcelo Gleiser publicada nas Notícias do Dia, de 10-10-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit. ly/1YUxD4T; —— Fé e ciência: um diálogo possível? Um debate entre Marcelo Gleiser e Michael Welker pu- blicado nas Notícias do Dia, de 04-10-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit. ly/1OcNyIe; —— Além da fronteira do Cosmos. Artigo de Marcelo Gleiser publicado nas Notícias do Dia, de 25-09-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1P9j6hg; —— “Buscar Deus nas brechas da ciência é uma estratégia que leva ao fracasso”. Entrevista com Marcelo Gleiser publicada nas Notícias do Dia, de 22-09-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1FLwCWu; —— As novas gramáticas tecnocientificas e a semântica do Místério em debate. Entrevista com Marcelo Gleiser publicada nas Notícias do Dia, de 16-05-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1hg2LcP; —— Um caminho tortuoso. Artigo de Marcelo Gleiser publicado nas Notícias do Dia, de 30-04- 2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LXHl0Q;

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O som do nada Dois anos depois da confirmação da existência do bóson de Higgs, Gian Giudice retoma o debate em torno desta partícula e suas relações como Ano Internacional da Luz

Por Ricardo Machado | Tradução Ramiro Mincato

tecnociência apurou nossos conhecimento da física das partículas. A olhos. Nossa acuidade visual, em partir disso foi possível estabelecer que A detrimento de outros sentidos, a prodigiosa expansão do universo (fre- vem sendo aprimorada há séculos. Entre- quentemente chamado Big Bang) ocorreu tanto, há elementos em nosso universo 13,8 bilhões de anos atrás”, exemplifica que sequer são visuais, mas permitem o professor. “Apesar do impressionante que compreendamos melhor até mesmo progresso na compreensão do universo, como a luz se propaga. “O bóson de Hi- ainda estamos bem longe de ter respos- ggs é o eco emitido pelo vácuo quântico, tas definitivas. Na verdade, quanto mais isto é, pela substância que preenche o tentamos ir em profundidade, mais per- espaço-tempo no qual estamos imersos. guntas surgem, das quais ignoramos as É o som emitido pela própria estrutura respostas”, complementa. do espaço. É o som do nada”, explica o Gian Giudice nasceu em Pádua, Itália, professor e pesquisador Gian Giudice, em e trabalha no European Organization for entrevista por e-mail à IHU On-Line. Nuclear Research – CERN como físico de Segundo Giudice, ainda não somos ca- partículas e cosmólogo. Graduou-se em 51 pazes de perceber imagens luminosas Física na Universidade de Pádua e obteve desde o Big Bang. O registro visual mais Ph.D em Física Teórica, na Escola Interna- antigo que temos data de 380 mil anos cional de Estudos Avançados, em Trieste. após a origem do nosso universo. “Antes De 1988 a 1990 foi pesquisador associado disso, o universo era tão quente que cada no Laboratório Acelerador Fermi, perto imagem foi imediatamente cancelada de Chicago. De 1990 a 1992 foi pesquisa- dor do Departamento de Física da Univer- pelas cargas elétricas que fluíam livre- sidade de Texas, Austin, no grupo lidera- mente. Para entender as idades anterio- do por Steven Weinberg. res a 380 mil anos é preciso extrapolar as observações astronômicas usando o Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o bóson tico, isto é, pela substância que estamos imersos. Em outras pala- de Higgs? preenche o espaço-tempo no qual vras, é o som emitido pela própria estrutura do espaço, mesmo em Gian Giúdice – O bóson de Higgs1 tecnológicas de buscar a possível existência ausência de qualquer forma de ma- do bóson até o funcionamento do Grande Co- é o eco emitido pelo vácuo quân- lisor de Hádrons – LHC, em meados de 2008. téria. É o som do nada. A faixa energética de procura do bóson vem 1 Bóson de Higgs: partícula elementar se estreitando desde então e, em dezembro de bosônica prevista pelo Modelo Padrão de 2011, limites energéticos se encontram entre IHU On-Line – O que há de novo partículas, teoricamente surgida logo após as faixas de 116-130 GeV, segundo a equipe sobre o tema, passados aproxima- o Big Bang de escala maciça hipotética pre- ATLAS, e entre 115 e 127 GeV de acordo com damente três anos da comprova- dita para validar o modelo padrão atual de o CMS. A 4 de julho de 2012, cientistas da Or- partícula. Representa a chave para explicar ganização Europeia para a Pesquisa Nuclear ção desta partícula elementar? a origem da massa das outras partículas ele- – CERN anunciaram que, ao fim de 50 anos Gian Giúdice – Nos últimos anos mentares. Todas as partículas conhecidas e de investigação, descobriram uma partícula previstas são divididas em duas classes: férm- nova que pode ser o bóson de Higgs. Leia a temos aprendido muito sobre o bó- ions e bósons (partículas com spin inteiro). O edição 405 da revista IHU On-Line, intitu- son de Higgs, mas ainda precisa- bóson de Higgs foi predito primeiramente lada O Bóson de Higgs e a elegância invejáv- mos de mais precisas medidas para em 1964 pelo físico britânico Peter Higgs, el do Universo, de 22-10-2012, disponível trabalhando as ideias de Philip Anderson. em http://bit.ly/18nGLSZ. (Nota da IHU entender suas propriedades com- Entretanto, desde então não houve condições On-Line) pletamente. Essas novas medidas

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quenas flutuações quânticas foram dilatadas até preencher distâncias astronômicas no espaço. Essas va- riações na densidade de energia do universo desempenharam o papel O bóson de Higgs é o eco emiti- de sementes em torno às quais as galáxias cresceram. Assim, as es- do pelo vácuo quântico. É o som truturas de galáxias observadas emitido pela própria estrutu- hoje no céu não são mais que as flutuações quânticas de uma subs- ra do espaço. É o som do nada tância primordial.

IHU On-Line – De que maneira permitirão entender o que está por de poder afirmar que compreende- esse debate converge às discus- trás do bóson de Higgs. Por exem- mos a origem do universo. Há for- sões do Ano Internacional da Luz? plo, queremos compreender se o tes indícios para crer que a rápida Gian Giúdice – A luz é expressão bóson de Higgs é de fato uma par- expansão sofrida pelo universo na do eletromagnetismo, isto é, de tícula elementar, ou se é composta sua fase primordial (a chamada uma das forças fundamentais que por outros constituintes. “inflação”) seja devida a uma par- os físicos de partículas tentam en- tícula muito parecida com o bóson tender num quadro unificado. IHU On-Line – Qual o funciona- de Higgs, embora não conseguimos mento do mecanismo de Higgs? ainda revelar sua identidade. IHU On-Line – Como a luz nos Gian Giúdice – A ideia funda- ajuda a determinar a idade do IHU On-Line – O que são as par- mental do mecanismo de Higgs é Universo? tículas elementares? E os grãos do de que as simetrias podem “escon- espaço, o que são? Gian Giúdice – A luz (e, mais em der-se” por detrás dos fenômenos. geral, todas as ondas eletromagné- Deixe-me dar um exemplo. Esta- Gian Giúdice – Segundo a teoria ticas, como a radiação de micro- mos acostumados a ver as coisas atual, a família das partículas é -ondas, raios-X ou raios gama) é o 52 caírem. Será que isso significa que composta de quarks (existem 6 ti- mensageiro usado há séculos pelos a vertical é uma direção especial pos diferentes), de elétrons (com astrônomos para estudar o univer- do espaço? Certamente não. Todas os dois irmãos mais pesados: múon so. Mas não pode haver nenhuma as direções do espaço são equiva- e tau), de três tipos de neutrinos, imagem luminosa anterior a 380 lentes. A razão pela qual as coisas de mediadores das forças funda- mil anos depois do Big Bang. Antes sempre caem para baixo é que mentais (entre os quais o fóton) disso, o universo era tão quente estamos imersos no campo gravi- e do bóson de Higgs. Ainda é uma que cada imagem foi imediata- tacional da Terra. Sobre a terra, a questão em aberto compreender se mente cancelada pelas cargas elé- equivalência de todas as direções há outras partículas fundamentais, tricas que fluíam livremente. Para do espaço é “escondida” pela gra- ou se as partículas que conhecemos entender as idades anteriores a vidade. Em grande parte, da mes- são compostas de outros ingredien- 380.000 anos é preciso extrapolar ma forma, o campo de Higgs “es- tes mais simples. as observações astronômicas usan- conde” algumas simetrias ligadas do o conhecimento da física das à força fraca, uma força que age IHU On-Line – O que são as flutu- partículas. A partir disso foi pos- em nível subnuclear. Isto explica ações quânticas que preenchem o sível estabelecer que a prodigiosa algumas propriedades do mundo tempo-espaço no universo? expansão do universo (frequente- das partículas que não podem ser mente chamado Big Bang) ocorreu Gian Giúdice – Segundo as leis entendidas sem o mecanismo de 13,8 bilhões de anos atrás. Higgs. da mecânica quântica, qualquer forma de energia não é totalmen- te determinada, mas sujeita a flu- IHU On-Line – O que são os bura- IHU On-Line – De que forma o tuações de um ponto ao outro no cos negros? Por que a luz não es- bóson de Higgs ajuda a compre- espaço. Essas flutuações ocorrem capa destes centros de gravidade? ender a origem do universo e, em distâncias muito pequenas e, Gian Giúdice – Os buracos ne- consequentemente, a Teoria da portanto, quase sempre completa- gros são regiões no espaço onde Relatividade? mente invisíveis à nossa percepção o campo gravitacional é tão forte Gian Giúdice – O bóson de Higgs sensorial. De acordo com a teoria que nem mesmo os raios de luz nos permitiu compreender algumas da inflação, o universo passou por conseguem escapar. Se chutamos propriedades das partículas ele- uma expansão massiva durante uma bola para cima, a bola volta mentares. Foi um passo importan- sua fase primordial. Seguindo essa para baixo. Ao contrário da bola, te, mas certamente estamos longe extraordinária expansão, as pe- a Apollo 11 conseguiu escapar da

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atração terrestre e chegou à lua, posiciona as teorias sobre nosso so, chamada de “energia escura”, porque sua velocidade era suficien- espaço no mundo? que origina uma força gravitacional temente alta. Ao contrário disso, repulsiva. Gian Giúdice – A observação de do buraco negro não existe manei- que a expansão do universo hoje ra de escapar, seja qual for a velo- está acelerando revolucionou nos- IHU On-Line – Deseja acrescen- cidade. Não só nenhum míssil po- sas ideias. Sabemos que toda forma tar algo? deria deixar um buraco negro, mas conhecida de matéria ou radiação Gian Giúdice – Apesar do impres- nem mesmo um raio de luz. sofre uma força gravitacional de sionante progresso na compreensão atração. Esta força, portanto, de- do universo, ainda estamos bem IHU On-Line – Como a noção de veria desacelerar a expansão. Mas longe de ter respostas definitivas. que o universo está em perma- hoje, ao contrário, vemos uma Na verdade, quanto mais tentamos nente expansão modifica catego- aceleração da expansão do uni- ir em profundidade, mais pergun- rias da modernidade para pensar verso. Isto significa que há uma tas surgem, das quais ignoramos as o mundo? De que forma isso re- componente misteriosa no univer- respostas.

■ LEIA MAIS... —— Bóson de Higgs: ‘’Apenas a ponta de um fenômeno mais complexo’’. Artigo de Gian Giudice publicado nas Notícias do Dia, de 07-07-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit. ly/1jAgbSQ; —— Uma descoberta, muitas dúvidas. Entrevista com Gian Giudice publicada na revista IHU On- Line, nº 405, de 22-10-2015, disponível em http://bit.ly/1PPNJXp.

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A elementar natureza da Luz Sérgio Ferraz Novaes, pesquisador brasileiro e integrante da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear – CERN, debate as partículas elementares e as propriedades de luz

Por Ricardo Machado

e você estivesse diante de Sher- como a luz e suas tecnologias associa- lock Holmes, o mais célebre das podem ser capazes de promover o Spersonagem de Conan Doyle, desenvolvimento sustentável e forne- e lhe perguntasse qual a propriedade cer soluções para os desafios globais da Luz, ele provavelmente começaria em energia, educação, agricultura, respondendo com seu famoso clichê: saúde, etc.”, coloca o entrevistado. “Elementar, meu caro Watson”. Na físi- “O eletromagnetismo, o efeito fotoe- ca quântica boa parte das explicações létrico, o laser, a óptica quântica e as se originam aí mesmo, nas partículas fibras ópticas são alguns exemplos da elementares. “Partículas elementares importância da luz no desenvolvimen- são os menores blocos que constituem to científico e tecnológico. Tudo indica a matéria que conhecemos. Até o início que ela continuará desempenhando um do século XX acreditávamos que os áto- papel essencial na ciência do século mos fossem esses blocos fundamentais, XXI”, projeta o professor. mas hoje sabemos que os átomos são 54 compostos de prótons e nêutrons, que Sérgio Ferraz Novaes é bacharel constituem o núcleo, e de elétrons. e doutor em Física pela Universidade Mais ainda, graças às investigações que de São Paulo – USP. Realizou pós-dou- foram feitas nos aceleradores de partí- torado no Lawrence Berkeley National culas, sabemos hoje que prótons e nêu- Laboratory, nos EUA, e foi pesquisador trons são compostos de quarks, os ver- visitante na Universidade de Wisconsin, dadeiros componentes elementares da Madison, nos EUA, na Universidade de matéria nuclear”, ensina o professor e Valência, Espanha, e no Fermi Natio- pesquisador Sérgio Ferraz Novaes, em nal Accelerator Laboratory – Fermilab entrevista por e-mail à IHU On-Line. Chicago, nos EUA. No final da década de 1990 tornou-se membro da Colabo- Para o professor, a celebração do Ano ração DZero do Fermilab e atualmen- Internacional da Luz é importante, pois te faz parte da Colaboração Compact pretende despertar a consciência glo- Muon Solenoid – CMS e da Organização bal sobre os impactos das tecnologias Europeia para Pesquisa Nuclear – CERN, associadas e esta propriedade tão fas- onde são realizados experimentos no cinante e misteriosa de nosso univer- colisor de partículas. so. “A iniciativa visou principalmente aumentar a consciência global sobre Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a Teoria lo XX e desde então descobrimos uma interpretação probabilística; Quântica mudou nossa forma de que muitos conceitos que fazem medidas de posição e momento compreender o universo? parte do senso comum na vida co- (velocidade) não podem ser feitas tidiana não se aplicam em peque- simultaneamente com precisão ab- Sérgio Ferraz Novaes – A Mecâni- nas escalas (curtas distâncias). As soluta; surge o conceito de ema- ca Quântica revolucionou a forma partículas e as ondas passam a ser ranhamento quântico onde alguns com que vemos o mundo subatômi- vistas como uma entidade única sistemas, mesmo distantes entre co. A proposta da quantização da (“partícula-onda”), agora descritas si, mantêm-se correlacionados e energia surgiu na virada do sécu- por funções de onda que possuem devem ser descritos de forma con-

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junta. No entanto, é importante ca Quântica em um formalismo que científica em 45 anos de pesquisa ter sempre em mente que esses é capaz de incorporar o carácter não foi capaz de obter uma alter- efeitos não são perceptíveis na efêmero da Natureza, podendo nativa mais satisfatória. Agora, a escala macroscópica uma vez que descrever o surgimento e o desa- descoberta do bóson de Higgs pelo a constante que determina os fe- parecimento de partículas. A TQC Grande Colisor de Hádrons – LHC nômenos quânticos (constante de descreve a força entre duas partí- (Large Hadron Collider, em inglês) Planck1) é extremamente pequena. culas como a troca de uma partí- no CERN veio corroborar de forma cula que intermedeia a interação decisiva esse mecanismo de gera- entre elas. Por exemplo, a intera- ção de massa. O bóson de Higgs é IHU On-Line – O que são as par- ção entre dois elétrons é descrita na realidade o quantum do campo tículas elementares? através da troca de fótons e a in- de Higgs que permeia todo o es- Sérgio Ferraz Novaes – Partículas teração forte entres os quarks pela paço. As diversas partículas inte- elementares são os menores blocos troca de glúons.2 Na realidade as ragem de forma distinta com esse que constituem a matéria que co- próprias partículas elementares campo e essa interação dá origem nhecemos. Até o início do século são os quanta dos campos que as às suas respectivas massas. XX acreditávamos que os átomos descrevem. O fóton é o quantum fossem esses blocos fundamentais, do campo eletromagnético assim IHU On-Line – Qual a importân- mas hoje sabemos que os átomos como o elétron é o quantum do cia do Ano Internacional da Luz são compostos de prótons e nêu- campo do elétron que permeia na retomada dos debates acerca trons, que constituem o núcleo, e todo o espaço. de física teórica? de elétrons. Mais ainda, graças às Sérgio Ferraz Novaes – Cria- investigações que foram feitas nos IHU On-Line – O que são as flutu- do pela assembleia geral da ONU aceleradores de partículas sabe- ações quânticas que preenchem o em 2013, o Ano Internacional da mos hoje que prótons e nêutrons tempo-espaço no universo? Luz vem promover os diversos são compostos de quarks, os verda- Sérgio Ferraz Novaes – Como a aspectos da luz que desempenha deiros componentes elementares TQC consegue descrever bem o um papel tão essencial em nossa da matéria nuclear. surgimento e desaparecimento de vida cotidiana e é um objeto de partículas, ela prevê a criação de grande importância científica. A IHU On-Line – Que relações há pares virtuais (p. ex., elétron-pó- iniciativa visou principalmente entre as partículas elementares e sitron) mesmo no vácuo. A criação aumentar a consciência global so- 55 a Teoria do Campo? e destruição desses pares virtuais bre como a luz e suas tecnologias (em oposição a “reais”) constituem Sérgio Ferraz Novaes – A Teoria associadas podem ser capazes de essas flutuações. promover o desenvolvimento sus- Quântica de Campos – TQC associa tentável e fornecer soluções para a Teoria da Relatividade e Mecâni- IHU On-Line – Qual o funciona- os desafios globais em energia, 1 Max Planck [Max Karl Ernst Ludwig mento do mecanismo de Higgs? educação, agricultura, saúde, etc. Planck] (1858-1947): físico alemão, consi- A luz teve uma importância funda- derado o pai da Teoria Quântica. Em 1899, Sérgio Ferraz Novaes – O me- mental para a medicina, permitiu descobriu uma nova constante fundamental, canismo de Higgs foi criado para ampliar e acelerar a comunicação chamada em sua homenagem Constante de resolver um problema formal da Planck, que é usada, por exemplo, para calcu- global via Internet, e vem sendo teoria das interações eletrofracas lar a energia do fóton. Um ano depois, desco- essencial em diversos aspectos briu a lei da radiação térmica, chamada Lei de gerando a massa das partículas culturais, econômicos, políticos Planck da Radiação. Esta foi a base da Teoria elementares de uma forma consis- e sociais. O eletromagnetismo, o Quântica, que surgiu dez anos depois com a tente. Apesar de ser uma solução colaboração de Albert Einstein e Niels Bohr. efeito fotoelétrico, o laser, a ópti- bastante artificial a comunidade De 1905 a 1909, Planck atuou como diretor- ca quântica e as fibras ópticas são -chefe da Sociedade Alemã de Física. Como conseqüência do nascimento da física quân- 2 Glúons: são as partículas intermediadoras alguns exemplos da importância tica, foi premiado, em 1918, com o Prêmio da força forte, mas como os fótons também da luz no desenvolvimento cientí- Nobel de Física. Após sua morte, o instituto são bósons, isto é, tem spin 1 e um número fico e tecnológico. Tudo indica que KWG passou a chamar-se Max-Planck-Ge- quântico a mais, a cor. Existem três cores, R ela continuará desempenhando sellschaft zur Förderung der Wissenschaften (red), G (green) e B (blue) e são chamadas (MPG, Sociedade Max Planck para o Progres- carga cor, para ser comparada com as cargas um papel essencial na ciência do so da Ciência). (Nota da IHU On-Line) elétricas. (Nota da IHU On-Line) século XXI.

LEIA MAIS... —— “É a única coisa que está faltando.” Entrevista com Sérgio Novaes reproduzida nas Notícias do Dia, de 14-12-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1M4bI1A.

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• Unesco: 2015 é o Ano Internacional da Luz. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 07-01-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1FPuBIR;

• Ano Internacional da Luz. Tecnologias ópticas como ferramenta para desenvolvimento. Entrevista com Ary Mergulhão publicada nas Notícias do Dia, de 05-02-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1RqEwWy;

• O Bóson de Higgs e a elegância invejável do Universo. Tema de Capa da revista IHU On-Line, nº 405, de 22- 10-2012, disponível em http://bit.ly/1Q0tS7N;

• Bóson de Higgs: algumas respostas. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 05-07-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/NaEfaE;

• Bóson de Higgs: ‘’Apenas a ponta de um fenômeno mais complexo’’. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 07-07-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/RBnJS1;

• ‘A ‘partícula de Deus’ demonstra a maravilha da criação’’. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 09-07-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/MF1iwb;

• “Encontrar o bóson de Higgs é tão fundamental quanto encontrar o elo perdido’’. Reportagem publi- cada nas Notícias do Dia, de 08-12-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/s78jMO;

• “O trabalho de verdade está começando”, diz diretor-geral do Cern sobre bóson de Higgs. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 16-07-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/PLZy6y;

• Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabillis. Tema de Capa da revista IHU On-Line, nº 135, de 04-04-2005, disponível em http://bit.ly/1OhjlI6. IHU ON-LINE

IHU em Revista DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Agenda de Eventos Confira os eventos que ocorrem no Instituto Humanitas Unisinos – IHU de 05-10-2015 até 19-10-2015

Ciclo de Estudos em EAD – Repensando os Clássicos da Economia

Ministrante: Prof. MS Gilberto Antonio Faggion – UNISINOS De 02/09 Carga horária: 37h a 04/11 Módulo: MAX WEBER: A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO Saiba mais em http://bit.ly/1fLf14t

Ciclo de Estudos O Capital no Século XXI – uma discussão sobre a desigualdade no Brasil

Conferência: A desigualdade brasileira da renda do trabalho e da apropriação do capital 05/10 58 Conferencista: Prof. Dr. Márcio Pochmann – UNICAMP Terceira Parte: a estrutura da desigualdade, do livro O capital no Século XXI, de Thomas Piketty. Horário: 19h30min às 22h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1dJV50E

2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum

07/10 Conferência: Por uma teoria e uma prática radical de reforma urbana: o caso “BH em comum” Conferencista: Bel. Joviano Gabriel Maia Mayer – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Horário: 19h30min às 22h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1YRddtr

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IHU ideias - Diferença, multiplicidade e complexidade: encontros e experimentações como potência

Conferencista: Prof. Dr. Laércio Pilz - UNISINOS 08/10 Horário: 17h30min às 19h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Saiba mais em http://bit.ly/1M40km6

Mesa-redonda – A Carta Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco sobre o cuidado da casa comum e suas contribuições ao enfrentamento da crise ambiental – 2ª edição 15/10 Horário: 19h30min às 22h Local: Auditório Central – UNISINOS Saiba mais em http://bit.ly/1iOr1UF

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#TERESAD’AVILA A feminilidade da mística em Teresa d’Ávila Faustino Teixeira apresenta a religiosa que inaugura não só a perspectiva humana na busca por um Deus interior, mas também o lugar da mulher que experiencia a jornada interior

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos

este ano, são celebrados os ção da vida espiritual, Teresa lembra 500 de Teresa d’Ávila. A re- desse primado”, aponta. Traços que Nligiosa que viveu na Idade podem dizer muito à atualidade. Para Média é reconhecida como doutora da o professor, hoje, as celebrações são Igreja pela sua experiência de busca oportunidades de revisitar a obra de por Deus. Mas o que a difere em sua Teresa, ancorado nas crises atuais. “Vi- mística? Teresa inaugura um pensa- vemos sob o domínio da produtividade, mento humano acerca da busca por da busca desenfreada pelo sucesso, um Deus, numa jornada que busca esse escravos das leis do mercado. Os gran- Deus dentro de si e nos outros. E além des místicos, como Teresa, destacam a de assumir a condição humana, a reli- importância de um outro ritmo para a 60 giosa assume toda a sua feminilidade vida, de cuidado com o mundo interior, que deixa transbordar sua visceral ex- de quietação dos sentidos, de atenção periência mística. “A ousadia femini- aos toques do silêncio”. na de Teresa, avançando em reflexões Faustino Teixeira é professor do Pro- místicas de impressionante alcance”, grama de Pós-Graduação em Ciência destaca o professor Faustino Teixeira. da Religião da Universidade Federal de “Isto numa sociedade dominada pela Juiz de Fora – PPCIR-UFJF, pesquisador presença de homens, de letrados mas- do CNPq e consultor do ISER-Assesso- culinos, instauradores da ordenação ria. É pós-doutor em Teologia pela Pon- da vida religiosa. Teresa rompe com tifícia Universidade Gregoriana. Entre esse esquema e instaura uma dinâmica suas publicações, encontram-se Teolo- nova, diversa, quebrando a rotina des- gia e pluralismo religioso (São Bernar- ta marca na dinâmica interpretativa do do Campo: Nhanduti Editora, 2012); da escritura. A novidade está no ‘ato Catolicismo plural: dinâmicas contem- feminino de falar’, com astúcia e sabe- porâneas (Petrópolis: Vozes, 2009); doria”, completa. Ecumenismo e diálogo inter-religioso Na entrevista a seguir, concedida por (Aparecida do Norte: Santuário, 2008); e-mail à IHU On-Line, Faustino destaca Nas teias da delicadeza: Itinerários dois traços essenciais da mística tere- místicos (São Paulo: Paulinas, 2006); siana. “Em primeiro lugar, o protago- No limiar do mistério. Mística e reli- nismo de Deus. Para Teresa é sempre gião (São Paulo: Paulinas, 2004); e Os Deus que convoca e abre a relação do caminhos da mística (São Paulo: Pau- ser humano com ele, é sempre o sujei- linas, 2012). Recentemente publicou, em coautoria com Renata Menezes, to nesse processo de abertura, que se Religiões em Movimento. O Censo de irradia na relação com os outros. O ou- 2010 (Petrópolis: Vozes, 2013). tro traço é a centralidade do amor. Por todo o tempo, no processo de afirma- Confira a entrevista.

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IHU On-Line - Qual é a centra- contrado por ela para “ordenar os apegos que impedem essa expe- lidade das Moradas1 na obra de a própria alma”. Seguir os passos riência de encontro. Ela sabe que Teresa d’Ávila2? das Moradas é retomar o caminho ali naquele Fundo “se passam as encontrado por místicos de tantas coisas mais secretas entre Deus e a Faustino Teixeira - Esta grande tradições para apresentar o per- alma” (1M 1,3). obra de Teresa de Ávila (1515-1582) curso que leva o fiel (o amante) ao reflete o momento de sua maturi- Mas é preciso romper com os limi- horizonte mais radical do sentido, dade espiritual. Foi escrita nas ci- tes e ultrapassar a camada espessa do encontro com o Amado. E Teresa dades de Toledo e Ávila entre junho que impede o essencial despoja- acolheu a perspectiva de interiori- e novembro de 1577, 12 anos depois mento. Não há para ela outro cami- zação, que remete a nomes impor- do Livro da Vida3, quando Teresa ti- nho possível de acesso senão o da tantes como Sócrates5 e Agostinho6. nha 62 anos. Foi o último livro dou- interiorização, favorecido pela ora- trinal da mística de Ávila, e reflete A alma torna-se para Teresa o ção. A oração é a porta de entrada um momento particular, de busca lugar especial de encontro com o das Moradas (1M 1,7). A convocação de um melhor alinhamento das vi- Mistério Maior, e toda a sua obra é muito clara: “Ponde os olhos no vas experiências espirituais de Tere- consiste em preparar esse espaço centro: aí está o salão principal, sa ao longo de sua trajetória. interior, através do desapego e das onde se encontra o rei” (1M 2,8). rupturas dos nós, para que seja o Esse centro é como um “braseiro” Como mostrou Michel de Cer- rincão de uma hospitalidade muito de onde irradiam finíssimas fragrân- teau4, a biografia era o modo en- especial. Dizia Teresa: “É suma- cias, que se irradiam por todos os mente bom entrar primeiro no apo- cômodos, até tocar o próprio corpo. 1 Rio de Janeiro : Paulinas, 1982. (Nota da sento do conhecimento próprio, Mas Teresa adverte que essa inte- IHU On-Line) antes de voar aos outros”. riorização deve ser sempre acom- 2 Teresa de Ávila (1515-1582): freira car- panhada pela abertura e conheci- melita espanhola nascida em Ávila, Castela, mento do Mistério de Deus. famosa reformadora da ordem das Carme- IHU On-Line - Em que consiste a litas. Canonizada por Gregório XV (1622), é convocação de Teresa ao cultivo festejada na Espanha em 27 de agosto, e no do mundo interior? IHU On-Line - Em que consistem resto do mundo em 15 de outubro. Foi a pri- as sete Moradas apresentadas por meira mulher a receber o título de doutora da Faustino Teixeira - Teresa já ini- Teresa e como elas culminam no igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Entre cia sua reflexão nas Moradas falan- acesso ao mistério de Deus e ao seus livros citam-se Libro de su vida (1601), do da dignidade da alma, que vem Libro de las fundaciones (1610), Camino de mistério da natureza humana? la perfección (1583) e Castillo interior ou comparada a um castelo “feito de 61 Libro de las siete moradas (1588). Escreveu um só diamante”. Reconhece a dig- Faustino Teixeira - Cada morada também poemas, dos quais restam 31 deles, nidade e beleza dessa alma, porta- reflete um passo no processo de in- e enorme correspondência, com 458 cartas dora de tão precioso bem, pois lá no teriorização e de aproximação ao autenticadas. Sobre Teresa, confira Tere- sa - A Santa Apaixonada, (Rio de Janeiro: centro desse castelo habita um Rei Mistério de Deus. Os temas apre- Objetiva, 2005), de autoria de Rosa Amanda poderoso, que é a razão e o motivo sentados em cada momento são de Strausz; Obras completas (São Paulo: Loyo- fundamental da própria vida. E ela, grande riqueza, traduzindo com fi- la, 1995) e Santa Teresa de Jesus – “Livro da a alma, foi feita à imagem e seme- delidade as dificuldades e alegrias vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da IHU On-Line) lhança desse Deus Misericordioso. que acompanham a dinâmica de 3 São Paulo: Paulinas, 1983. (Nota da IHU O desafio lançado pela mística abu- crescimento espiritual. Alguns te- On-Line) lense é o de avançar em direção a mas, em especial, são destacados 4 Michel de Certeau (1925-1986): intelec- esse centro, rompendo com todos por Teresa, como por exemplo o tual jesuíta francês. Foi ordenado na Compa- “mistério do mal”, no capítulo pri- nhia de Jesus em 1956. Em 1954 tornou-se um dos fundadores da revista Christus, na ponível para download em http://bit.ly/ meiro das primeiras moradas. Um qual esteve envolvido durante boa parte de ihuem14. (Nota da IHU On-Line) tema que sempre ocupou a aten- sua vida. Lecionou em várias universidades, 5 Sócrates (470 a. C. – 399 a. C. ): filósofo ção de Teresa: as artimanhas do entre as quais Genebra, San Diego e Paris. ateniense e um dos mais importantes ícones demônio para impedir o acesso às Escreveu diversas obras, dentre as quais La da tradição filosófica ocidental. Sócrates não Fable mystique: XVIème et XVIIème siècle valorizava os prazeres dos sentidos, todavia águas vitais do mundo interior. (Paris: Gallimard, 1982); Histoire et psy- escalava o belo entre as maiores virtudes, Como mestra do discernimento chanalyse entre science et fiction (Paris: junto ao bom e ao justo. Dedicava-se ao parto Gallimard, 1987); La prise de parole. Et au- das ideias (Maiêutica) dos cidadãos de Ate- espiritual, Teresa indica os cami- tres écrits politiques (Paris: Seuil, 1994). Em nas. O julgamento e a execução de Sócrates nhos da humildade, da paciência, português, citamos A escrita da história (Rio são eventos centrais da obra de Platão (Apo- mas sobretudo da adesão fiel ao de Janeiro: Forense Universitária, 1982) e logia e Críton). (Nota da IHU On-Line) querer de Deus, à gratuidade de A invenção do cotidiano (Petrópolis: Vozes, 6 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, seu Mistério, como antídotos fun- 1998). Sobre Certeau, confira as entrevistas 354-430): bispo, escritor, teólogo, filósofo Michel de Certeau ou a erotização da histó- foi uma das figuras mais importantes no damentais para enfrentar os inú- ria, concedida por Elisabeth Roudinesco, e desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. meros desafios dessa caminhada As heterologias de Michel de Certeau, con- Ele foi influenciado pelo neoplatonismo em direção ao Mistério. O proces- cedida por Dain Borges, ambas à edição 186 de Plotino e criou os conceitos de pecado so é difícil, envolve ascese e luta: da IHU On-Line, de 26-06-2006, disponível original e guerra justa. Confira a entrevista em http://bit.ly/ihuon186. As mesmas entre- concedida por Luiz Astorga à edição 421 da uma batalha permanente contra os vistas podem ser conferidas na edição 14 dos IHU On-Line, de 04-06-2013, intitulada A obstáculos edificados pelos apegos Cadernos IHU em Formação, intitulado disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma da vida. Interessante também ver Jesuítas. Sua identidade e sua contri- síntese dupla, disponível em http://bit.ly/ as provas que Teresa indica para buição para o mundo moderno, dis- ihuon421. (Nota da IHU On-Line)

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verificar o grau de despojamento se avança nas estâncias das mora- a obra de Teresa d’Ávila pode ser encontrado no buscador, sobretudo das, os dons sobrenaturais ganham interpretada? a capacidade efetiva de desapego evidência. Tudo é fruto da graça, Faustino Teixeira - Verificamos diante das intempéries da vida. Na tudo é dom de Deus. Teresa reitera que, de fato, os grandes especialis- medida em que se avança nas de- esse toque magnífico da presença tas na obra de Teresa de Ávila são re- pendências das moradas, firma-se de Deus, que como o bom pastor, ligiosos. São autores que trazem uma um espaço novo, da presença de jamais abandona os seus queridos. contribuição muito importante para Deus e de seus favores sobrenatu- Ela diz no Livro da Vida, no final a interpretação das obras de Teresa rais, sempre gratuitos. do capítulo sexto: “Vossa mão me e de seu itinerário místico. Mas vejo sustenta há vários anos”; “Vós não Nas últimas moradas, que já também como fundamental a aber- vos afastastes de mim por inteiro, apresentam o estado de união mís- tura de novos canais de reflexão so- dando-me sempre a mão para que tica, o tema do êxtase e dos arrou- bre a mística de Ávila, procedentes eu voltasse a me levantar, muitas bamentos ganham lugar especial, de estudiosos leigos, inseridos nos vezes.” bem como os passos de discerni- diversos setores das ciências huma- mento para verificar a autenticida- O outro traço é a centralidade do nas. Isto pode também favorecer um de da experiência vivida. Um ponto amor. Por todo o tempo, no proces- olhar específico, diferencial, sobre a de destaque, a centralidade de Je- so de afirmação da vida espiritual, dinâmica espiritual de Teresa. Pistas sus, como referência para a cami- Teresa lembra desse primado. Mas importantes, como a da corporeida- nhada: estar diante desta presença de forma muito especial no capí- de, foram abertas por pesquisadores é participar de algo poderoso, que tulo terceiro das quintas moradas, não religiosos, como é o caso da psi- exorciza o medo e incita a avançar quando fala de forma exemplar de canalista Julia Kristeva8. Vale tam- com segurança. Como coroação das um outro modo de união, tão queri- bém lembrar a singular contribuição moradas, as teofanias trinitárias do por Deus. Para aqueles que têm de Luce López-Baralt9, em seus es- que marcam o estágio final, simbo- dificuldade de acessar os píncaros tudos sobre a simbologia de Teresa. lizando o matrimônio espiritual. da contemplação, Teresa oferece Trata-se de um desafio importante e um caminho mais acessível, mas em aberto. IHU On-Line - Qual é a perspec- essencial: o amor a Deus e o amor tiva mística de Teresa e como sua ao próximo. Tudo tão simples… IHU On-Line - Por quais razões mística aparece em suas obras? Ela assinala que se o buscador a obra Moradas deveria ser lida hoje? Faustino Teixeira - Poderia desta- guarda esses dois desafios com serie- 62 car dois traços essenciais da mística dade, a união com Deus está garan- Faustino Teixeira - Em sua carta de Teresa, que brilham com intensi- tida. Daí sua ênfase na caridade fra- encíclica sobre o cuidado da casa dade em suas Moradas. Em primeiro terna. Diz para as religiosas: “Quanto comum, Laudato Si’10 (2015), o papa lugar, o protagonismo de Deus. Algo mais adiantadas estiverdes no amor ao próximo, tanto mais estareis no que nos faz lembrar aquela bela re- 8 Julia Kristeva (1941): psicanalista búlg- flexão de João da Cruz7, na Chama amor de Deus” (5M 3,8). Lança seve- ara, professora de Linguística na Universi- viva de Amor: “Se a alma busca a ras críticas às exterioridades da fé, dade de Paris e autora de mais de trinta li- Deus, muito mais a procura o seu aos apegos piedosos e ensimesmados vros consagrados. Aluna de Roland Barthes, aos penduricalhos da fé. O essencial, é uma das mais respeitadas intelectuais da Amado” (Ch 3,28). Para Teresa é atualidade. Seus pensamentos envolvem teo- sempre Deus que convoca e abre a diz Teresa, não está nesse apego su- ria literária, semiologia, filosofia e psicologia. relação do ser humano com ele, é perficial, mas em algo mais profundo Escreveu também quatro romances. Entre sempre o sujeito nesse processo de e exigente, que é deixar-se habitar suas obras estão: As Novas Doenças da Alma, Estrangeiros para nós mesmos e O Velho e abertura, que se irradia na relação pela presença do outro. E adverte as religiosas: “Não, irmãs, não é assim! os Lobos. . Tornou-se influente em teoria com os outros. Na medida em que da cultura e feminismo após a publicação de O Senhor quer obras. Se vês uma en- Séméiôtiké: recherches pour une sémanalyse ferma a quem podes dar algum alí- (Paris: Edition du Seuil, 1969) (Nota da IHU 7 João de Yepes ou São João da Cruz vio, não tenhas receio de perder a On-Line) (1542-1591): ingressou na Ordem dos Carme- tua devoção e compadece-te dela” 9 Luce López-Baralt: Professora convi- litas aos 21 anos de idade, em 1563, quando dada em diversas universidades da América recebe o nome de Frei João de São Matias, em (5M 3,11). O recado é bem claro: do Norte, da Europa e do Oriente Médio. Medina del Campo. Em setembro de 1567 en- não pode haver experiência de união Especialista na investigação e tradução de contra-se com Santa Teresa de Jesus, que lhe com Deus se faltar a virtude da cari- manuscritos árabes e persas. (Nota da IHU fala sobre o projeto de estender a Reforma da dade (5M 3,12). Indica, porém, um On-Line) Ordem Carmelita também aos padres. Aceitou complemento importante: para que 10 Laudato Si’ (português: Louvado se- o desafio e trocou o nome para João da Cruz. jas; subtítulo: “Sobre o Cuidado da Casa No dia 28 de novembro de 1568, juntamente o amor ao próximo ganhe vitalidade Comum”): encíclica do Papa Francisco, na com Frei Antônio de Jesús Heredia, inicia a ele deve deixar-se enraizar no amor qual critica o consumismo e desenvolvimento Reforma. No dia 25 de janeiro de 1675 foi be- de Deus. É a partir desse vínculo fun- irresponsável e faz um apelo à mudança e à atificado por Clemente X. Foi canonizado em damental que o amor ao outro pode unificação global das ações para combater a 27 de dezembro de 1726 e declarado Doutor da degradação ambiental e as alterações climáti- Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi pro- desabrochar com profundidade (5M cas. Publicada oficialmente em 18 de junho de clamado “Patrono dos Poetas Espanhóis”. Sua 3,9). 2015, mediante grande interesse das comuni- festa é comemorada no dia 14 de dezembro. dades religiosas, ambientais e científicas in- Sobre São João da Cruz, confiraAs obras com- ternacionais, dos líderes empresariais e dos pletas de São João da Cruz (Petrópolis: Vozes, IHU On-Line - Para além de uma meios de comunicação social, o documento 2002) (Nota da IHU On-Line). interpretação eclesiástica, como é a segunda encíclica publicada por Francis-

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Francisco chamou a atenção para Faustino Teixeira - Eu citaria aqui ples apaixonados ´espirituais`”, um problema grave de nosso tempo, dois grandes intérpretes, ambos car- como mostrou recentemente Ma- que é a aceleração (rapidación), o melitas, com um trabalho precioso ximiliano Herraíz, em obra sobre a ritmo de velocidade que se impõe às de reflexão sobre a vida e as obras Experiência de Deus em Teresa de ações humanas (LS 18). Vivemos sob de Teresa de Ávila: Tomás Álvarez e Jesus e João da Cruz16. o domínio da produtividade, da bus- Maximiliano Herraíz.12 Destaco aqui Diria que Teresa é uma doutora da ca desenfreada pelo sucesso, escra- a recente edição das Obras Com- simplicidade e da humildade. Todo o vos das leis do mercado. Os grandes pletas de Teresa de Jesús, a cargo seu estilo literário vem marcado por místicos, como Teresa, destacam a de Maximiliano Herraíz13. Trata-se esse toque de acessibilidade, numa importância de um outro ritmo para de uma edição primorosa. Além da dinâmica de desapego que encan- a vida, de cuidado com o mundo in- introdução geral e das notas, há ta. Uma linguagem pontuada pela terior, de quietação dos sentidos, de também um cuidadoso trabalho de marca coloquial, espontânea, toni- atenção aos toques do silêncio. Dizia apresentação de cada obra de Tere- ficada pela experiência. Isto nem Thomas Merton11, que assim como sa, sempre a cargo de Herraíz. sempre veio acolhido com abertura as árvores e as montanhas precisam pelo mundo da teologia. Sempre do repouso da noite para recuperar IHU On-Line - Teresa d’Ávila é houve contenda entre teólogos e suas forças e ressurgir renovadas na doutora da Igreja. O que isso sig- espirituais, com seculares prejuízos aurora, assim também o ser humano nifica e como ela foi elevada a tal e desqualificações acadêmicas do necessita do “espírito da noite”, da posto? trabalho dos místicos por parte dos paz interior e do repouso para re- teólogos de corte. Estas objeções tomar a dignidade de sua natureza Faustino Teixeira - Esse reco- ocorreram por muito tempo, mas essencial. nhecimento tem uma longa histó- ria. Teresa veio canonizada em 12 felizmente foram se amenizando É mediante este “trabalho de de março de 1622, na época do no pós-concílio, por obra de alguns cela” que todos os sentidos pode- pontificado de Gregório XV14. Os teólogos de ponta, como Edward 17 18 rão encontrar o reforço essencial dons de sua santidade foram logo Schillebeecx e Karl Rahner . para então abrir-se às belezas do reconhecidos pela igreja, embora mundo circundante. Na perspecti- tenha tido suas dificuldades em seu 16 Roma: OCD, 2014. (Nota do entrevistado) 17 Edward Cornelis Florentius Alfon- va de Teresa, o mergulho no mun- tempo com a inquisição. Em sua do interior é fundamental, mas ele sus Schillebeeckx (1914-2009): foi um te- canonização já vem situada como ólogo católico belga. Foi membro da Ordem vem sempre acompanhado de uma “Mestra e Doutora”. A declaração Dominicana. Seus livros sobre teologia já sede de irradiação, de uma tensão oficial, de reconhecimento de Te- foram traduzidos em diversas línguas e suas contribuições ao Segundo Concílio do Vati- 63 operativa, visando sempre à virtu- resa como doutora da igreja, acon- de da caridade. cano o tornaram conhecido mundialmente. É teceu no pontificado do papa Paulo considerado um dos teólogos mais importan- VI15, em 27 de setembro de 1970. tes do século XX. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line - Quais são os prin- Mas há que reconhecer que a teo- 18 Karl Rahner (1904-2004): importante cipais intérpretes da obra de Te- logia mística veio por muito tempo teólogo católico do século XX. Ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se resa d’Ávila? relegada ao “rigoroso cenáculo de em Filosofia e em Teologia. Foi perito do Con- ´estranhos` especialistas ou sim- cílio Vaticano II e professor na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se co. A primeira foi Lumen fidei em 2013. No de mais de 4 mil títulos. Suas obras princi- entanto, Lumen fidei é na sua maioria um 12 Leia a entrevista “Deus é antropocêntri- pias são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), trabalho de Bento XVI. Por isso Laudato Si’ é co por ser amor”, disponível em http://bit. 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Pala- vista como a primeira encíclica inteiramente ly/1MU06kz. (Nota da IHU On-Line) vra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos da responsabilidade de Francisco. A revista 13 Salamanca: Sígueme, 2015. (Nota do de Teologia). Em 2004, celebramos seu cen- IHU On-Line publicou uma edição em que entrevistado) tenário de nascimento e a Unisinos dedicou à analisa debate a Encíclica. Confira em http:// 14 Papa Gregório XV (1554-1623): nascido sua memória o Simpósio Internacional O bit.ly/1NqbhAJ (Nota da IHU On-Line) Alessandro Ludovisi, foi eleito papa em 9 de Lugar da Teologia na Universidade do 11 Thomas Merton (1915-1968): monge Fevereiro de 1621 e governou a Igreja cató- século XXI. Veja Karl Rahner. A busca de católico cisterciense trapista, pioneiro no ecu- lica até à sua morte. Fundou a Congregação Deus a partir da contemporaneidade, edição menismo no diálogo com o budismo e tradi- da Propagação da Fé , que era um comitê de 446 da IHU On-Line, de 16-06-2014, nos- ções do Oriente. O livro Merton na intimidade Cardeais para supervisionar a propagação sa edição mais recente sobre o assunto. Dez - Sua Vida em Seus Diários (Rio de Janeiro: do Cristianismo pelos missionários enviados anos atrás, a edição número 102, da IHU On- Fisus, 2001), é uma seleção extraída dos vários para países não-cristãos. Originalmente o ter- -Line, de 24-05-2004, dedicou a matéria de volumes do diário de Thomas Merton, autor mo não era usado para se referir a informação capa à memória de seu centenário, em http:// de livros famosos como A Montanha dos Sete enganosa. O sentido político atual data da bit.ly/maOB5H. Neste meio tempo, a edição Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas Primeira Guerra Mundial e, originalmente, 297, de 15-06-2009, Karl Rahner e a ruptu- sementes de contemplação (Rio de Janeiro: não era pejorativo. (Nota da IHU On-Line) ra do Vaticano II, também retomou o tema e Fisus, 1999). O livro foi editado por Patrick 15 Papa Paulo VI: nascido Giovanni Battis- está disponível para download em http://bit. Hart, também monge e colaborador de Mer- ta Enrico Antonio Maria Montini, Paulo VI ly/o2e8cX. Além de diversos artigos sobre o ton. Na matéria de capa da edição 133 da IHU foi o Sumo Pontífice da Igreja Católica Apos- pensamento do teólogo ao longo do tempo, On-Line, de 21-03-2005, publicamos um tólica de 21 de junho de 1963 até 1978, ano de destacamos também o Cadernos Teologia artigo de Ernesto Cardenal, discípulo de Mer- sua morte. Sucedeu ao Papa João XXIII, que Pública n° 5, Conceito e Missão da Teologia ton, que fala sobre sua relação com o monge. convocou o Concílio Vaticano II, e decidiu em Karl Rahner, do Prof. Erico Hammes, dis- A edição 460 da revista IHU On-Line, sob o continuar os trabalhos do predecessor. Pro- ponível em http://bit.ly/18XbPcU. Em 2014 a título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Tho- moveu melhorias nas relações ecumênicas IHU On-Line publicou a edição 446 intitula- mas Merton, dois centenários analisa a legado com os Ortodoxos, Anglicanos e Protestan- da Karl Rahner. A busca de Deus a partir da de Merton. Confira em http://bit.ly/1hbCXyo tes, o que resultou em diversos encontros e contemporaneidade, disponível em http://bit. (Nota da IHU On-Line) acordos históricos. (Nota da IHU On-Line) ly/112CjfG. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line - Qual foi o papel nova, diversa, quebrando a rotina fala da ousadia dessa mulher. Num de Teresa d’Ávila enquanto refor- desta marca na dinâmica interpre- quadro masculino e repressivo, madora das Carmelitas? tativa da escritura. A novidade está insere em sua pluma uma nota di- no “ato feminino de falar”, com Faustino Teixeira - O que mais versa, marcada por sensualidade astúcia e sabedoria. Assim ela con- impressiona na vida de Teresa de única, desafiando todo pudor. O seguiu driblar a inquisição e seus Ávila é o vigor da sua atuação, a seu vocabulário vem carregado de confessores homens, que resistiam disposição férrea de lutar em favor expressões sensuais, sinalizando a a acolher a riqueza de suas experi- do bem da igreja. Na terceira fase centralidade do corpo como espaço ências místicas. de sua vida, no período que cobre da realização dos favores divinos. os anos de 1562 a 1582, emerge a Um bonito exemplo vem dado no A terminologia reflete essa dinâmi- Teresa escritora e a religiosa empe- Livro da Vida, naquele difícil perí- ca nova: gostos, delícias, prazeres, nhada no trabalho das fundações. odo da presença da inquisição na etc. É o que também lembrou, de É quando percebemos o lado Marta Espanha, quando se interditou a forma pertinente, Michel de Certe- de Teresa, em suas inúmeras via- leitura de muitos livros em caste- au20 em sua preciosa obra, Fábula gens para realizar o sonho tão ges- lhano: escritos de devoção (1559). Mística, publicada originalmente tado de reformar o Carmelo. Sob a Foi quando Teresa ouviu a voz do em Paris21. sua responsabilidade, nada menos Senhor que disse: “Não sofras, que do que 18 fundações, começando te darei o livro vivo”. Ela comentou 20 Michel de■ Certeau (1925- 1986): foi um com a fundação do Carmelo de São na ocasião: “Sempre que o Senhor historiador e erudito francês que se dedicou José (Ávila), em 1562 e concluin- me ordenava uma coisa na ora- ao estudo da psicanálise, filosofia e ciências ção e o confessor me dizia outra, sociais. Intelectual jesuíta é autor de inúmeras do com a fundação do Carmelo de obras fundamentais sobre a religião, a história Burgos, em 1582. Além dessas, ou- o próprio Senhor repetia que lhe e o misticismo dos séculos XVI e XVII. Michel tras projetadas por ela, ainda que obedecesse; depois sua Majestade de Certeau nasceu em 1925, em Chambéry, na não realizadas em sua vida, como mudava a sua opinião, para que me Savoia (França). Depois de obter o diploma ordenasse outra vez de acordo com em filosofia, com um caminho de estudos as fundações de Madrid, Pamplona, itinerante entre a Universidade de Grenoble, Valência e Lisboa. a vontade divina” (V 26,5). a de Lyon e a de Paris, seguiu uma primeira formação religiosa no seminário de Lyon. Em segundo lugar, a presença do Entrou lá em 1950, na Ordem dos Jesuítas em IHU On-Line - Deseja acrescen- corpo na mística de Teresa. Em rica que fez os votos em 1956; queria ser enviado tar algo? expressão do Livro da Vida, Tere- como missionário para a China. Leia também sa assinalou: “Não somos anjos, Michel De Certeau, o pensador jesuíta citado 64 Faustino Teixeira - Em primeiro pelo papa no seu discurso sobre a liberdade pois temos um corpo” (V 22,10). lugar, a ousadia feminina de Teresa, religiosa, nota publicada nas Notícias do Dia, A experiência espiritual de Tere- avançando em reflexões místicas de de 28-09-2015, disponível em http://bit. sa vem sempre pontuada por essa ly/1LsQwrq; Vivemos num mundo sujeito impressionante alcance. Isto numa intensidade do desejo, pelos to- «à globalização do paradigma tecnocrático», sociedade dominada pela presença critica Francisco no Independence Mall, ques da corporalidade. Julia Kris- reportagem publicada nas Notícias do Dia, de homens, de letrados masculinos, 19 teva, em sua obra sobre Teresa , de 28-09-2015, disponível em http://bit. instauradores da ordenação da vida ly/1VyG1aU. (Nota da IHU On-Line) religiosa. Teresa rompe com esse 19 Thérèse mon amour – Fayard, 2008. 21 Paris: Gallimard,1982. (Nota do esquema e instaura uma dinâmica (Nota do entrevistado) entrevistado)

LEIA MAIS... • A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centenários. Revista IHU On-Line, nº 435, de 16-12-2014, disponível em http://bit.ly/1hbCXyo. • A mística nos rastros do cotidiano. Entrevista com Faustino Teixeira, publicada na revista IHU On-Line, nº 435, de 16-12-2014, disponível em http://bit.ly/1iMft45. • Mística: experiência que integra anima (feminilidade) e animus (masculinidade). Entrevista com Faustino Teixeira, publicada na revista IHU On-Line, nº 385, de 19-12-2011, disponível em http://bit.ly/1KSOA51. • Teologia Pluralista e Teologia da Revelação. Entrevista com Faustino Teixeira, publicada nas Notícias do Dia de 04-07-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1QLCEqe. • O campo religioso brasileiro na ciranda dos dados. Entrevista com Faustino Teixeira, publicada nas Notícias do Dia de 25-08-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1MHbFLJ. • Jacques Dupuis: a honradez de uma teologia livre. Artigo de Faustino Teixeira, publicado na revista IHU On-Line, nº 462, de 30-03-2015, disponível em http://bit.ly/1N2dfL7. • Rûmî: a mística reconhecida pela alta literatura. Entrevista com Faustino Teixeira, publicada nas Notícias do Dia de 25-10-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1iMg2uI. • A presença dos espíritos no imaginário da sociedade brasileira. Entrevista com Faustino Teixeira publicada nas Notícias do Dia de 09-08-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http:// bit.ly/1QLDHXm.

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#TERESAD’AVILA Teresa d’Ávila e a presença na ausência Na obra de Teresa d’Ávila é possível compreender a fragilidade da condição humana como potência da alma, diz a psicóloga Luciana Barbosa

Por Patricia Fachin

eresa reconheceu que vinas, permitir que o remorso e a culpa o homem é um ser mais sejam diluídos em uma atitude de cres- “Tamplo e mais disperso cimento, de ação”. do que a soma dos elementos que o Na entrevista a seguir, concedida à compõem. E quando consegue fazer a IHU On-Line por e-mail, ela enfatiza viagem para o centro de si mesmo, o que esse desejo de “caminhada até homem descobrirá o quanto está des- o centro” da alma, “a disciplina para centrado de si e centrado no outro que centrar-se” e o sofrimento são carac- é Deus, este que ele reconhece em seu terísticas humanas, e “quem sofre o interior, na sala mais profunda do cas- processo sairá diferente ao final dele, telo, e que estava lá desde sempre”. como a metáfora de Teresa sobre o bi- A análise é de Luciana Barbosa, auto- cho da seda que passa pela metamor- ra da dissertação De Amor e de Dor: fose, mas doou nesse caminho o seu A Experiência Mística de Santa Teresa quantum de humanidade, que no final 65 D’Ávila (2006), para quem a obra de foi seu ponto de partida para a vida”. Teresa mantém a atualidade porque “trata do humano”, das dores, das an- Luciana Ignachiti Barbosa possui gústias e das culpas que “são atempo- graduação em Psicologia pelo Centro rais”, porque desperta no leitor o auto- de Ensino Superior de Juiz de Fora, conhecimento, com a peculiaridade de com especialização e mestrado em acrescentar “a essa grande viagem ao Ciência da Religião pela Universidade centro do eu (...) a presença amorosa, Federal de Juiz de Fora. Atualmente é dedicada e perseverante de Deus”. doutoranda em Ciência da Religião na Psicóloga e mestre em Ciência da Re- mesma universidade, onde trabalha ligião, Luciana frisa que, há 500 anos, a poesia das palavras de Santa Teresa o que Teresa propõe “serve para o de Ávila sob a orientação de Faustino homem de hoje com total vitalidade: Teixeira. acessar dentro de si suas potências di- Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a atuali- Qual a relevância de retomarmos Luciana Ignachiti Barbosa - A a sua obra, 500 anos depois de grande atualidade dos escritos de dade da obra de Teresa d’Ávila1? seu nascimento? Teresa de Jesus é que ela trata do 1 Teresa de Ávila (1515-1582): freira car- humano. Fala sobre as dores, as melita espanhola nascida em Ávila, Castela, Libro de las siete moradas (1588). Escreveu angústias, as culpas que são atem- famosa reformadora da ordem das Carme- também poemas, dos quais restam 31 deles, porais. O que Teresa traz em suas litas. Canonizada por Gregório XV (1622), é e enorme correspondência, com 458 cartas obras é um chamamento à autoa- festejada na Espanha em 27 de agosto, e no autenticadas. Sobre Teresa, confiraTeresa - A resto do mundo em 15 de outubro. Foi a pri- Santa Apaixonada, (Rio de Janeiro: Objetiva, nálise e à autorreflexão, temas tão meira mulher a receber o título de doutora da 2005), de autoria de Rosa Amanda Strausz; em voga hoje em dia e que conti- igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Entre Obras completas (São Paulo: Loyola, 1995) e nuam despertando o interesse de seus livros citam-se Libro de su vida (1601), Santa Teresa de Jesus – “Livro da vida” (4ª Libro de las fundaciones (1610), Camino de ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983). (Nota da tantos. Porém, o que ela acrescen- la perfección (1583) e Castillo interior ou IHU On-Line) ta a essa grande viagem ao centro

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do eu é a presença amorosa, dedi- como que conversando com minhas terior, ser levado por ela às salas cada e perseverante de Deus. Deus irmãs” (M, Prólogo). E o livro será que compõem esse castelo, e aos está no centro de nós mesmos, no realmente como uma conversa, os processos de passagem de um a centro do Castelo, ela disse. Então escritos são entregues tais como outro nível de oração. Para Tomás mais do que uma autoanálise, ela saem de suas mãos. Apenas em Álvarez, Teresa: “convida (o leitor) convoca o leitor a se sentir ama- um ponto na sexta morada Teresa a penetrar e percorrer sua alma. A do, profundamente amado, assim volta ao texto para adicionar uma seguir as jornadas de seu itinerário num movimento de entrega, quan- explicação. espiritual e as camadas de seu es- pírito, até as camadas mais secre- to mais nos conhecemos, mais nos Teresa passará cinco meses es- tas de seu profundo interior”. aproximamos de Deus, mais absor- crevendo o livro, entre muitas vemos esse amor, e cada vez mais tribulações e afazeres. Em novem- Teresa assim define a alma: amamos. bro, quando encerra os escritos, “Consideremos nossa alma como Quem mais recebo hoje em meu está passando pelo pior momento: um castelo, feito de um só diaman- consultório são pessoas profunda- nessa semana João da Cruz4 havia te ou de limpidíssimo cristal” (M1, mente descrentes... descrentes de sido preso e encarcerado, carme- 1:1). O que torna apaixonante a si mesmas, corroídas pela culpa, litas que haviam votado nela como narrativa de Teresa será a sua per- pelo remorso, pelas lembranças... cepção do quanto a alma é digna sem conseguir acessar em si mes- e bela, pois, criada à semelhança mas suas potencialidades de força de Deus, ela só pode ter em si as e segurança. O que Teresa propôs potências desse criador. Para ela, então, há 500 anos, serve para o A poesia se tor- não considerar a alma “agradá- homem de hoje com total vitali- vel e maravilhosa” (M1, 1:5) seria dade: acessar dentro de si suas na um instru- desmerecer quem a criou e habi- potências divinas, permitir que o mento possível ta: “Mas as riquezas que há nesta remorso e a culpa sejam diluídos alma, seu grande valor, quem nela em uma atitude de crescimento, de se dizer do habita — eis o que raras vezes con- de ação. E que essa ação seja o sideramos” (M1, 1:2). de reconhecer-se, com limitações impossível e dificuldades, sim, mas com pers- Entrar no lugar em que 66 pectivas de crescimento e, princi- já estamos priora são castigadas com a exco- palmente, de amor. Amor para si munhão, seu livro da Vida está na e, então, consequente amor pelo Este castelo que é a alma será mira da inquisição... porém como outro. descrito assim: “Consideremos nos diz Tomás Álvarez, “Mas nada agora como este castelo tem mui- disso se reflete no livro. Como se tos aposentos ou moradas: umas no IHU On-Line - A construção de o ‘Castelo Interior’ fosse o reverso alto, outras embaixo, outras dos uma vida interior é o mote das exato de todos os castelos guerrei- lados. No centro, no meio de todas Moradas. O que Teresa d’Ávila ros do mundo. Nem um só eco das está a principal, onde se passam as queria dizer quando falava do turbulências exteriores chega a pe- coisas mais secretas entre Deus e “castelo interior”? netrar nas páginas da obra (...)”. a alma” (M1, 1:3). Justamente por Luciana Ignachiti Barbosa - Cas- Assim, ler o livro é acompanhar compreender a alma criada em telo Interior ou Moradas2 será o com Teresa seu próprio castelo in- molde tão perfeito Teresa diz das último livro escrito por Teresa. Ela maravilhas que se encontram no o escreve doze anos após o Livro 4 João de Yepes ou São João da Cruz castelo e que, sim, é possível ter da Vida3, que, nesse momento se (1542-1591): ingressou na Ordem dos Carme- acesso a todas elas. Inclusive é en- encontra em poder da inquisição. litas aos 21 anos de idade, em 1563, quando recebe o nome de Frei João de São Matias, fática quanto a isso. É o ano de 1577, Teresa estava com em Medina del Campo. Em setembro de 1567 Então a autora nos faz o convite a 62 anos e escreve como obediência encontra-se com Santa Teresa de Jesus, que a Gracían, seu confessor, que diz lhe fala sobre o projeto de estender a Refor- entrar no castelo, mesmo parecen- ma da Ordem Carmelita também aos padres. a ela que as monjas dos mosteiros do um contrassenso, entrarmos em Aceitou o desafio e trocou o nome para João um lugar em que já estamos, ela tinham necessidade de que lhe fos- da Cruz. No dia 28 de novembro de 1568, afirma que muitos não têm o inte- sem esclarecidas algumas dúvidas juntamente com Frei Antônio de Jesús He- redia, inicia a Reforma. No dia 25 de janeiro resse de entrar ali, apenas andam em matéria de oração. de 1675 foi beatificado por Clemente X. Foi ao redor, e, de tanto apenas rode- Teresa deixa claro, então, o se- canonizado em 27 de dezembro de 1726 e de- clarado Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. arem o castelo, acabam por acre- guinte: “Em tudo que escrever, irei Em 1952 foi proclamado “Patrono dos Poetas ditar que este se confunde com as Espanhóis”. Sua festa é comemorada no dia bestas e sentinelas (orgulho, vaida- 2 Rio de Janeiro : Paulinas, 1982. (Nota da 14 de dezembro. Sobre São João da Cruz, con- de, culpa), que lhe fazem a ronda: IHU On-Line) fira As obras completas de São João da Cruz 3 São Paulo: Paulinas, 1983. (Nota da IHU (Petrópolis: Vozes, 2002). (Nota da IHU “É tal a força do costume de trata- On-Line) On-Line). rem continuamente com os vermes

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e feras das cercanias do castelo, poesia nos traz então é a excelsi- grar-se. Era conhecedora tanto das que já se tornaram, por assim di- tude desse momento, o inefável, fragilidades como das potências da zer, semelhantes a elas. Embora toca nossas fibras mais íntimas e alma, esclarecendo muito disso no tão ricas de natureza, capazes de nos faz antever a face do encontro. seu livro Moradas. conversar com o próprio Deus, não Nesse sentido a poesia realmente Assim, Teresa reconheceu que o há remédio que lhes valha” (M1, nos inspira, mas o que constrói e homem é um ser mais amplo e mais 1:6). solidifica uma busca interior éa disperso do que a soma dos elemen- profunda e real aceitação do que Oração: a porta de tos que o compõem. E quando con- segue fazer a viagem para o centro entrada de si mesmo, o homem descobrirá o quanto está descentrado de si e A porta de entrada para esse cas- centrado no outro que é Deus, este telo será a oração. Não a oração que ele reconhece em seu interior, apenas vocal, mas a que vai tra- O ato de amor na sala mais profunda do castelo, e tar com Deus de coisas interiores. que estava lá desde sempre. Nesse momento Teresa se dirige às é um ato prin- almas que querem entrar no cas- cipalmente de O desejo da caminhada até esse telo, aquelas que se aproximam da centro, o labor, a disciplina para divindade ainda bem timidamente, dor, pois o amor centrar-se e, principalmente, o e, muitas vezes, fazendo apenas o tenta personifi- sofrimento que essas descobertas que lhes manda a obrigação. causam, são características huma- car aquilo que nas. A alma humana, quem sofre o IHU On-Line - A poesia de Teresa ama e, dessa processo, sairá diferente ao final d’Ávila pode ser uma inspiração dele, como a metáfora de Teresa para a construção e solidificação forma, tornar sobre o bicho-da-seda que passa de uma vida interior? pela metamorfose, mas doou nesse os amantes se- caminho o seu quantum de humani- Luciana Ignachiti Barbosa - Eu dade, que no final foi seu ponto de não diria que a poesia mística teria res imortais partida para a vida. essa finalidade. Acredito que a pro- 67 sa de Teresa, sim, tem como função Teresa usará uma palavra dura e direção a inspiração a uma busca se lê na prosa, como diria Maximi- para aqueles que desprezam o in- interior. Porém o poema místico é liano Herráiz6, é: “Debruçar sobre terior de si mesmos, para ela isso escrito por um místico. Pode pa- o texto, ler e mastigar e digerir até seria “grande bestialidade” (M1- recer uma afirmação redundante, que ele faça parte de você”. 1,2). Seu confessor Gracían, ao mas o fato é que o místico se torna ler essa palavra sugeriu substituí- poeta por sua experiência mística, -la por abominação. Mas Teresa fez IHU On-Line - Como a vida inte- questão de manter bestialidade, e não o contrário, para Custodio rior é alcançada a partir das sete 5 porque, segundo ela, a falta de Vega , quanto mais “(...) santi- moradas? dade e sentimento místico, mais conhecimento próprio é uma das vitalidade e transcendência poéti- Luciana Ignachiti Barbosa - Te- maiores aberrações do homem, se- ca”. Daí ser interessante notar que resa sempre se preocupou com a gundo Álvarez: “(...) para ela a in- tanto para os poetas enamorados, condição humana, pois exortava terioridade do homem tem algo de quanto para os místicos, se trata sempre o bom senso; dizia que não sagrado. O castelo está habitado de uma (...) emoção forte e since- éramos anjos e, por isso, devería- por Deus. Entrar nele é relacionar- ra, que toda paixão — pois ao fim, mos combater os caprichos do cor- -se com Deus na morada interior, todo amor real e verdadeiro é pai- po, mas não aniquilá-lo; é preciso ali onde a pessoa é pessoa e se xão, e paixão das mais fortes — vai ter momentos de prazer para ale- acha convocada por Outra pessoa”. direto ao seu objeto, e reúne toda trajetória complicada e tortuosa.” 6 Maximiliano Herráiz García: é padre IHU On-Line - Como o sofri- da Ordem dos Carmelitas Descalços. Espe- mento aparece na obra de Tere- Assim a poesia se torna um ins- cialista nos estudos dos santos fundadores da Ordem, Teresa de Jesus e São João da sa d’Ávila e de que modo ele se trumento possível de se dizer do Cruz, é escritor de trajetória e reconhecimen- transforma em amor? impossível. Onde o místico expres- to internacional. Espanhol de nascimento, sa em palavras uma vivência inten- vive há anos na África, tendo percorrido os Luciana Ignachiti Barbosa - Essa sa e transcendente de encontro, de cinco continentes evangelizando através dos místicos carmelitas. Atualmente é profes- pergunta é muito interessante. amor, de arrebatamento. O que a sor da Universidad de la Mística, em Ávila, Quando defendi o mestrado, me Espanha. Ele concedeu uma entrevista à IHU provocava esse tema: quanto sofri- 5 Ángel Custodio Vega O.S.A (Canales, On-Line na edição 460, intitulada A mística mento em uma obra, como sofreu 1894-1972): escritor, humanista e editor das nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, obras de Luis de León e outros escritores mís- dois centenários, disponível em http://mi- essa mulher! E me propus estu- ticos. (Nota da IHU On-Line) gre.me/rGYFb. (Nota da IHU On-Line) dar esse sofrimento: uma doença

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severa aos 24 anos, que a deixou por seu amor, não por não poder cada página o interesse dessa san- com sequelas para o resto da vida; recebê-lo em totalidade, mas, ao ta pelas pessoas, por suas situações a dúvida constante de não com- contrário, por tanto receber e pou- e necessidades. Ela quer dialogar, preender seus estados e arroubos co poder compensar. dar notícias a um, confortar a ou- místicos, ter seu Livro da Vida na tro, resolver compras do mercado mira da inquisição, ser perseguida A presença na ausência com outra... enfim. Seu desejo de pelos próprios carmelitas da regra partilha está impresso nas pala- mitigada, ter seus amigos presos Teresa sofre então de amor, mais vras, tanto de seus livros, poesias, e torturados quando começa suas precisamente, de saudade. Teresa quanto nos testemunhos de convi- fundações de mosteiros descalços, amou tanto que dizia que morria vência em epístolas. quebrar o braço e conviver com porque não morria; em Denis Vasse: Assim nenhuma das facetas des- essa dor, sem poder se vestir ou es- “Morrer, para Teresa, não é querer sa mulher está separada em planos crever sozinha... enfim... parecia a morte — seria suicida —, mas, distintos... o momento do espiritu- um somatório de dores e desgaste. ao contrário, entrar na realização al, da poesia e da mística... todos do desejo. Para ela, sofrer não é Porém o que se desenrolou ao estão interligados em sua vida e querer o sofrimento — seria maso- longo da dissertação foi entender em suas relações, para ela o mais quismo; é antes, o ato de espera que, para ela, nada disso era so- importante de seus escritos não é viva da presença. Sofrer manifesta frimento. Ela não se queixava ou mostrar o que Deus pode fazer à a presença na ausência e faz da se- sucumbia a nenhuma dessas situ- sua alma, mas ser um espelho onde paração uma ferida de amor.” ações. Inclusive o motivo de sua cada um que a ler possa reconhe- morte, hoje estudada pela ciên- É então que o amor se apresen- cer e permitir a presença desse cia, ter sido provavelmente por ta dolorosamente, na intensidade Deus em sua própria vida. um câncer de útero, que a fez do contato que desnorteia as sen- ter hemorragias severas por anos, sações do corpo, na impossibili- IHU On-Line - Qual foi o papel mas que em nenhum momento de dade da total presença, que abre de Teresa d’Ávila enquanto refor- sua obra é sequer mencionado, a chaga da saudade que volta a madora das Carmelitas? sangrar toda vez que Teresa tem tendo-se notícia desse fato somen- Luciana Ignachiti Barbosa - O sua experiência mística e volta do te por um escrito de Ana de São mosteiro da Encarnação, ao qual encontro com seu Amado. Assim, o Bartolomeu, que foi sua amiga e Teresa fazia parte, observava uma 68 sofrimento em Teresa se manifesta a acompanhou até o momento da regra mitigada, ou seja, as irmãs como resposta a seu Senhor e sumo morte. Então não é esse o sofri- podiam receber visitas, presentes, bem, e o que o caracteriza é so- mento tratado. eram convidadas à corte pelos no- frer por desejar tão grande amor; 7 bres para darem conselhos, ou para Para Miguel de Unamuno , o ato é o próprio amor: “O amor consiste serem acompanhantes, não tinham de amor é um ato principalmente em morrer de desejo até o êxtase. uma vida de clausura. É importante de dor, pois o amor tenta personifi- Até a saída de si, no seu próprio lembrar que, no século XVI muitas car aquilo que ama e, dessa forma, coração: onde isso fala, no arreba- famílias colocavam suas filhas nos tornar os amantes seres imortais. tamento silencioso da alma. Morrer mosteiros por não terem condições Como todo sentimento é um sen- de amor revela que a morte não é financeiras para criá-las, ou, algu- timento de desejo de imortalida- nada.” (Denis Vasse). de, o amor só pode existir como mas vezes, como castigo de um pai severo a uma filha que estivesse sofrimento, já que coloca os seres IHU On-Line - De que forma re- enamorada de alguém que o pai frente às suas limitações e, prin- ligião, mística e poesia se conec- não aceitava. Dessa forma, muitas cipalmente, à limitação do outro, tam na obra de Teresa d’Ávila? daquelas mulheres não estavam ali o que caracteriza as relações de por vontade, nem buscavam a ora- amor humanas. Luciana Ignachiti Barbosa - Acredito que não se conectam so- ção e o recolhimento. Essas visitas, Não obstante, a relação de amor mente na obra, mas sim em toda a essas saídas, acabavam sendo bem- vindas, na verdade um consolo vivenciada pelos místicos tem sua vida de Teresa. O livro da Vida, por para muitas delas. particularidade no fato de que será exemplo, é um itinerário pessoal e estabelecida não com um outro hu- íntimo de sua experiência mística, Com Teresa, porém, era diferen- mano limitado, mas com um Infini- de seu encontro com Deus... e isso te, obrigada a comparecer à Corte to, com um Outro sem limitações dito de forma poética e espiritual. sempre que solicitada para estar que tudo pode doar a quem, ao Ler a obra de Teresa é estar percor- com os nobres, não suportava mais contrário, nem tudo suporta rece- rendo com ela os caminhos, desde estar em lugar tão confortável; ber por sua limitada condição hu- os mais íntimos de sua experiência ansiava pela solidão, pelo recolhi- mana. Desse modo, o místico sofre mística até os mais cotidianos de mento e pela vida simples com sa- um dia a dia no convento. Seu epis- crifícios, para que melhor estivesse 7 Miguel de Unamuno y Jugo (1864- 1936): escritor, poeta e filósofo espanhol. tolário, por exemplo, é uma obra com Deus. Foi então que a ideia de (Nota da IHU On-Line) ampla e robusta, que mostra a fundar mosteiros em que a regra

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primitiva fosse observada calou tocante à reforma. Essa primeira Aos poucos, a população se afei- mais fundo em seu coração. Cansa- fundação necessitava da autoriza- çoou àquele mosteiro tão simples, da da superlotação do seu mosteiro ção do Papa. Enquanto aguardava onde se seguia a ordem e o respei- da Encarnação e da falta de reclu- a autorização de Roma, Teresa es- to à oração. Os donativos começa- são que havia ali, Teresa ansiava perava; como já comprara a casa, ram a chegar e as irmãs puderam por poder realmente servir à regra para não levantar suspeitas, trouxe ter um pouco de alívio em suas de Santo Adalberto: amor, silêncio sua irmã para vir morar nela por dificuldades. Uma vez que havia e pobreza. No entanto, não tinha uns tempos. Após seis meses, a au- desrespeitado a ordem do provin- nenhum recurso, nem propriedade torização veio e Teresa começou a cial, Teresa foi chamada de volta que pudesse utilizar para tal fim, laborar. Com parcos recursos, le- ao mosteiro da Encarnação para se mesmo porque se pudesse realizá- vantou as paredes, montou as ce- retratar. Aspirava ao silêncio e à -lo, gostaria que o mosteiro vives- las da clausura, as grades externas retidão da clausura, mas isso ainda se de doações, que não tivesse um e internas, bem como a capelinha não era possível. sustento fixo, e que acolhesse até com um altar e uma imagem de São mesmo aquelas que não pudessem José no Centro, que seria seu guia Teresa foi recebida como trai- pagar os dotes, ou seja, uma revo- para toda a vida e a quem dedicou dora na casa em que viveu por lução nos costumes da época. esse primeiro mosteiro. Tudo era 27 anos, visto que as irmãs não muito simples, mas exatamente aceitaram a ideia de uma reforma Teresa tinha uma dedicada amiga como Teresa imaginava que deve- mais austera em uma vida já tão viúva, que herdara uma boa quan- ria ser. Hábitos feitos de cânhamo precária; sua estada naquela casa tia de seu marido, Dona Guiomar e sandálias no lugar das botas de não era bem-vinda. Passou, nova- de Ulloa. Com seus recursos, Dona couro; surgiam as Carmelitas Des- mente, por uma série de acusações Guiomar comprou uma pequena calças, seguidoras da regra primi- e arguições, às quais respondeu hu- casa em Ávila para fundar o novo tiva e participantes da reforma do mildemente, tentando levar seus mosteiro. Era preciso todo um carmelo. acusadores a entenderem os seus percurso de autoridades para que reais motivos para provocar uma se conseguisse a aprovação para O Mosteiro de São José começa com quatro noviças: Antonieta de mudança, que nada mais era do a fundação de um mosteiro, ain- que seu amor por Cristo. da mais em uma Espanha já tão Henao, Úrsula de Revilla, Maria de abarrotada deles. Era preciso a la Paz e Maria d’Ávila. Tal mosteiro Durante o período em que foi 69 autorização do bispo da Província, era composto de aposentos sim- obrigada a ficar na Encarnação, as do Prior e do provincial, além da ples — até mesmo desconfortáveis autoridades municipais, bem como autorização de seu superior car- —, a alimentação era pouca, pois os religiosos da regra mitigada, a própria população de Ávila não melita imediato no momento. Nem fizeram de tudo para acabar com concordava com o surgimento de sempre eles convergiram em suas o mosteiro de São José. Mas as ir- mais um convento, principalmente ideias, o que foi uma constante nas mãs, embora sem sua fundadora, porque dependia de caridade; as fundações de Teresa, os obstáculos se mantiveram firmes e não obede- regras seguidas eram rígidas, vinte criados pelos seus. ceram a nenhuma ordem de saída. regras ao todo, escritas por Tere- Com relação a Ávila, o provincial sa, dentre elas as horas do sono, Quando a tempestade finalmen- não autorizou a fundação, Tere- alimentação e oração, bem como o te cessou e Teresa obteve o con- sa recorreu, então, a quem pôde comportamento das irmãs e, prin- sentimento de manter o mosteiro, acudi-la, o padre Pedro Ibañez, um cipalmente, o da superiora, que ti- voltou àquela casa construída com teólogo muito respeitado em Ávi- nha regras mais severas ainda para tanto esforço; e, após esse, fun- la, que concordou em estar ao seu não se encantar com o devaneio do daria mais 17 mosteiros em toda a lado e fazer o pedido a Roma, no poder. Espanha.

■ LEIA MAIS... —— A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centenários. Revista IHU On-Line, nº 460, de 16-12-2014, e disponível no link http://migre.me/rGYiU —— Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação. Revista IHU On-Line, nº 435, de 16-12-2013, e disponível no link http://migre.me/rGYnf —— O feminino e o Mistério. A contribuição das mulheres para a Mística. Revista IHU On-Line, nº 385, de 19-12-2011, e disponível no link http://migre.me/rGYoL

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EVENTOS Do privado ao Comum, práticas de uma reforma urbana radical Joviano Gabriel Maia Mayer discute os processos de apropriação capitalista das cidades e as novas subjetividades que surgem nas resistências

Por Ricardo Machado

o contrário do que se supõe Estado-Iniciativa Privada só é capaz de à primeira vista, maioria não oferecer políticas públicas verticaliza- Ase opõe à minoria (há aqui das e rígidas, como o Minha Casa Mi- apenas uma diferença de grau). Maio- nha Vida. “As ocupações promovem a ria se opõe à Multidão, no sentido de construção de novos territórios insur- totalidade das singularidades. No es- gentes nas metrópoles brasileiras, cada paço urbano, as disputas biopolíticas vez mais indispostos a aceitar propo- que se dão nas cidades tensionam um sições políticas hierarquizadas que se modo de ser análogo a uma espécie de apresentam como solução para os seus fábrica pós-fordista que produz uma problemas e que atentam contra seus única coisa de inúmeras formas: o Co- modos de vida e suas singularidades”, mum. “Aqui se considera que a produ- completa. ção imaterial de linguagem, saberes Joviano Gabriel Maia Mayer possui 70 e afetos é, em princípio, comum, até graduação em Direito pela Universida- que se opere a captura pelo capital, de Federal de Minas Gerais – UFMG e via direito de propriedade, o que ao é mestre em Arquitetura e Urbanismo mesmo tempo, contraditoriamente, pela UFMG. Atualmente é sócio funda- restringe sua produtividade. Assim, é dor do Coletivo Margarida Alves de As- nessa fábrica pós-fordista, esparrama- sessoria Popular. da pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva Joviano participará do 2º Ciclo de se conforma cada vez mais como uma Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, intelectualidade da multidão”, explica governamento da vida e o comum, Joviano Gabriel Maia Mayer, em entre- promovido pelo Instituto Humanitas vista por e-mail à IHU On-Line. Unisinos – IHU, no dia 07-10-2015, pro- “Se, por um lado, o poder instituído ferindo a conferência Por uma teoria e busca imobilizar e reduzir nossa potên- uma prática radical de reforma urba- cia por meio do medo e das paixões na: o caso “BH em comum”. tristes, por outro, os(as) ativistas de O evento ocorrerá, às 19h30min, na todo o mundo reconhecem a dimensão Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros política da felicidade e das paixões ale- – IHU. Mais informações em http://bit. gres para potencializar as resistências ly/1GnZK0S. e agregar mais pessoas”, provoca o entrevistado. Ele coloca que o binômio Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira as quanto horizonte de enfrentamen- lócus (e objeto) privilegiado à cidades se constituem enquanto to ao capital e construção de no- acumulação de riqueza. Por outro espaços de produção do Comum? vos modos de existir se amparam lado, o que caracteriza o capita- fundamentalmente na produção lismo pós-fordista do nosso tempo Joviano Gabriel Maia Mayer - As social contemporânea, nos marcos é uma estrutura produtiva dinâmi- apostas lançadas no tabuleiro da do capitalismo pós-fordista neoli- ca e flexível, disseminada em rede política que tomam o comum en- beral que toma as cidades como e fundada sobre a cooperação das

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aquela que hoje experienciamos nas resistências positivas, mais do que qualquer outra situada no lugar da utopia, ou melhor, no Aqui se considera que a produção não-lugar. Basta observar as for- mas de produção, organização e imaterial de linguagem, saberes expressão dos movimentos multi- tudinários na atualidade para per- e afetos é, em princípio, comum, ceber a importância dada à busca até que se opere a captura pelo ca- da felicidade e à experimentação de outros modos de vida no seio pital, via direito de propriedade das lutas. Se, por um lado, o po- der instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio singularidades, em que a produção imagem, está apto a aparecer na do medo e das paixões tristes, por imaterial tende progressivamente sua máxima força de afetação, e outro, os(as) ativistas de todo o a suplantar a hegemonia da pro- de maneira imanente, dado o novo mundo reconhecem a dimensão dução industrial: ideias, informa- contexto produtivo e biopolítico política da felicidade e das pai- ções, conhecimentos, formas de atual” (PELBART, 2011:29). Pos- xões alegres para potencializar comunicação, relações sociais, to isso, fica mais claro como- ras as resistências e agregar mais etc., como “fonte primordial de trear e cartografar a produção do pessoas. riqueza”, tendo a produção de comum no âmbito da metrópole subjetividade a primazia sobre biopolítica almeja alcançar pistas, IHU On-Line – Como os movi- qualquer outro produto. Aqui se possíveis indicações de como, “no mentos de resistência da Multi- considera que a produção imate- interior dessa megamáquina de dão tensionam a lógica hegemô- rial de linguagem, saberes e afe- produção de subjetividade, surgem nica de pensar o espaço urbano? tos é, em princípio, comum, até novas modalidades de agregar, de que se opere a captura pelo capi- trabalhar, de criar sentido, de in- Joviano Gabriel Maia Mayer tal, via direito de propriedade, o ventar dispositivos de valorização - Mais do que a lógica hegemô- que ao mesmo tempo, contradito- e de autovalorização” (PELBART, nica de pensar o espaço urba- 71 riamente, restringe sua produtivi- 2011:23), fora do comando exerci- no, os movimentos multitudiná- dade. Assim, é nessa fábrica pós- do pelo Estado-capital e de modo rios tensionam a própria lógica -fordista, esparramada pelo — e antagônico aos valores capitalísti- de produzir o espaço urbano. As intrincada com o — espaço metro- cos por ele encampados e dissemi- resistências positivas, espaços performáticos de combativida- politano que a força produtiva se nados na conformação das subje- de, afetividade e subjetividade, conforma cada vez mais como uma tividades, seja na escola, seja via tomaram de assalto as metrópo- intelectualidade da multidão. concessões públicas do espectro les como territórios privilegiados rádio-televisivo ou via dispositivos de disputa, sobretudo no tocan- Metrópole biopolítica móveis parcelados em 24 meses no te ao enfrentamento a grandes cartão de crédito. projetos urbanos ancorados no O que seriam os piquetes do Mo- Desse modo, já não cabem for- paradigma da cidade-empresa do vimento dos Trabalhadores Sem planejamento estratégico e das Teto - MTST nas principais aveni- mulações e projeções utópicas, parcerias público-privadas. Nos das de São Paulo se não a investi- ou seja, prescindimos de constru- marcos do neoliberalismo, cada da política em face da produção/ tos imaginativos apartados da re- vez mais as resistências se ex- circulação de mercadorias mate- alidade para nos fazer caminhar pressam como a defesa de bens riais/imateriais nessa gigantesca rumo à sociedade pós-capitalista, visto que o comum se confirma no comuns frente ao avanço da acu- fábrica biopolítica? Como diz Peter mulação por espoliação (HARVEY, 1 horizonte da metrópole biopolíti- Pelbart, vivemos num “momen- 2005), perpetrada ora pelo Esta- to em que o comum, e não a sua ca exatamente porque o presente traz consigo uma produção que é do, ora diretamente pelo capital, 1 Peter Pal Pelbart: graduado em Ciências comum; em outras palavras, não mas quase sempre pelo Estado- Sociais pela Universidade de São Paulo – se trata de utopia, porque a apos- -capital, unidos em simbiose para USP, e em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, ta em torno do comum parte do a captura do comum. Por outro é mestre em Filosofia pela Pontifícia Univer- lado, as ações dos movimentos de sidade Católica de São Paulo – PUCSP com campo de imanência, da dimen- a dissertação Da clausura do fora ao fora são constituinte da produção bio- resistência da multidão potencia- lizam na cidade a conformação de da clausura: loucura e desrazão (2ª ed. São política. De igual modo, a felici- Paulo: Iluminuras, 2009). Cursou doutorado contrapoderes, redes e conexões dade capaz de nos mover é mais na USP e é livre docente pela PUCSP. Entre subversivas, baseadas na comu- outras obras, é autor de Vida capital. Ensaios de biopolítica (São Paulo: Iluminuras, 2003) pectiva, 1998). Leciona na PUCSP. (Nota da nicação, cooperação e criativi- e O tempo não reconciliado (São Paulo: Pers- IHU On-Line) dade, em contraposição à cidade

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neoliberal das parcerias público- Democracia Real trópole biopolítica. Acrescente-se privadas. Do Parque Gezi2 na Tur- ainda que o comum enquanto prin- quia, ao parque Augusta3 em São Democracia real que se contra- cípio político, ao ser criticamente Paulo; da praça Tahrir4 no Egito põe à “democracia direta do ca- confrontado com a realidade das à Puerta del Sol5 em Madrid, do pital” característica do paradigma resistências, das organizações e cais do porto Estelita6 no Recife da cidade-empresa. Ademais, a movimentos, pode contribuir para à praça de concreto transformada própria complexidade do urbano, dar sentido, orientar as práticas de em “Praia da Estação”7, em Belo enquanto sede privilegiada do po- produção, gestão e deliberação, Horizonte, em todos esses pro- der político e econômico, onde se além de potencializar e conectar cessos é possível captar um dese- concentra tudo aquilo que faz a so- em rede uma pluralidade de lutas jo compartilhado de democracia ciedade contemporânea em todos e práticas alternativas antagônicas real frente à investida do Estado- os domínios, especialmente nas à cidade-empresa. capital a despeito dos interesses metrópoles, cobra a cooperação da coletividade. transdisciplinar como mecanismo IHU On-Line – De que forma os indispensável à compreensão dos processos históricos, a partir do 2 Parque Taksim Gezi: é um parque ur- fenômenos socioespaciais interli- século XVIII, foram transformando bano situado na Praça Taksim, no distrito gados com sua dimensão subjetiva. de Beyoğlu, em Istambul, na Turquia. É um as cidades, que eram espaços de dos parques de menor tamanho da cidade. A “lógica do caos” que acompanha refúgio e liberdade, em ambien- Em maio de 2013, o anúncio governamental aquilo que Guattari (1992) denomi- tes de acumulação capitalista? de um plano que pretende demolir o parque nou “cidade subjetiva” exige o uso para dar lugar à reconstrução do histórico de métodos de pesquisa que assu- Joviano Gabriel Maia Mayer - O Quartel Militar Taksim (demolido em 1940) capitalismo se formou fora dos mu- e, também, à construção de um centro comer- mam o desafio da complexidade ur- cial, desencadeou uma onda de protestos na bana, como é o caso da copesqui- ros das cidades. Cabe aqui um bre- Turquia. (Nota da IHU On-Line) sa cartográfica, método assumido ve retrospecto. De fato, a cidade 3 Parque Augusta: é uma área de 24 mil criou as condições de expansão da metros quadrados, delimitada pelas Ruas Au- pelo grupo de pesquisa Indiscipli- gusta, Marquês de Paranaguá, Caio Prado, no nar UFMG, do qual faço parte. grande indústria, concentrando a centro da Cidade De São Paulo. É uma pro- mão de obra, o mercado consumi- priedade privada, mas com áreas registradas As lutas multitudinárias nos ins- dor, os capitais acumulados, a in- em cartório como públicas - 80% dela não piram a pensar como a inteligência fraestrutura e o poder político. Si- pode, por lei, ser alterada - e que uma parce- coletiva, ou melhor, como a inte- 72 la significativa da população paulistana quer multaneamente, a grande indústria ver transformada em parque público sem ligência de enxame da multidão levou ao crescimento da cidade, edificações em seu interior. (Nota da IHU “pode inventar e construir uma revolucionando a organização do On-Line) sociedade na qual quem governe espaço em nível planetário. A na- 4 Praça Tahrir cujo equivalente latino seja a sociedade em rede, a ri- é “Praça da Libertação”): é a maior praça tureza, antes dominante, passou a pública no centro de Cairo, Egito. Original- queza coletiva da cooperação, a ser dominada por meio de técnicas mente chamada Praça de Ismail, em honra potência do comum” (HERREROS cada vez mais sofisticadas. Entre- a Ismail Paxá, vice-rei (quediva) do Egito no e RODRÍGUEZ, 2012:113). Noutros século XIX, que comissionou o projeto arqui- tanto, até a conquista do poder po- tetônico do novo distrito central da capital termos, as práticas, estratégias e lítico pela burguesia revolucionária egípcia na década de 1860. Depois da Revo- objetivos das lutas dos movimen- europeia, durante séculos a cidade lução Egípcia de 1952, quando o Egito deixou tos da multidão, embora diferen- foi o refúgio contra a opressão feu- de ser uma monarquia constitucional e tor- tes, são capazes de se conectar, se nou-se uma república, a praça passou a se dal, o destino prioritário daqueles chamar midan al-tahrir, praça da libertação. combinar e, quiçá, constituir ações que buscavam a felicidade, a liber- (Nota da IHU On-Line) e projetos plurais compartilhados. dade e a justiça (PAULA, 2006). 5 Puerta del Sol: é um dos locais mais Na atualidade ganha destaque o famosos e concorridos da cidade espanho- A partir do século XVIII, a cida- la de Madrid. É neste local que se encontra desejo ambicioso da multidão me- desde 1950, o quilómetro zero das estradas tropolitana de produção e defesa de se tornou espaço privilegiado espanholas.Em 2011 a praça foi ocupada por do comum urbano, partindo da da reprodução do capital, abrigan- integrantes do Movimento 15M que protesta- expressão das múltiplas singulari- do a grande indústria em prejuízo vam por uma democracia mais participativa na Espanha. (Nota da IHU On-Line) dades, sob as bases da democracia das corporações de ofício. Durante 6 Ocupe Estelita: é um movimento social real, para além da gestão demo- esse percurso a própria estrutura que se contrapõe à construação de 12 torres crática da cidade concernente às urbana passou a ser produzida e de uso residencial e comercial no Cais José intervenções no espaço. A cidade- reproduzida sob a lógica da acu- Estelita, em Recife, Pernambunco. O local o abrigava o pátio ferroviário onde foi inaugu- -empresa do paradigma neoliberal mulação capitalista, manifestando rada a segunda linha ferroviária urbana do de planejamento estratégico é, por a cidade não apenas como espa- Brasil, em 1859, por Dom Pedro. (Nota da sua vez, a expressão mais bem aca- ço de reprodução do capital, mas IHU On-Line) 7 Praia da Estação: trata-se de um movi- bada da ofensiva público-privada também como objeto desta repro- mento que surgiu em 2010 como uma reação contra o comum. Talvez por isso o dução, determinada, em grande a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo direito ao comum seja, em última medida, pela expansão do capital Horizonte que proibia a realização de eventos instância, um possível horizonte de imobiliário, elevado à condição de de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da ca- convergência das forças vivas que importante indutor do crescimento pital mineira. (Nota da IHU On-Line) enfrentam o Estado-capital na me- econômico. A cidade, gradativa-

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mente, reproduziu as contradições O mesmo raciocínio agora vale gia antiurbana capaz de fazer ruir sistêmicas da nova ordem social, para a multidão ante o proleta- sua construção como espaço da li- mercantilizou-se para ser vendi- riado descrito por Engels, pois a berdade, do encontro e da solida- da aos pedaços, um produto e não biopotência criativa da multidão, riedade. No quadro urbano na atu- mais uma obra genuinamente hu- na qual reside a possibilidade da alidade, a exploração direta do(as) mana. O privado se revoltou contra produção do comum, não deixa trabalhadores(as) se multiplica por o público, e a festa, antes na rua, margem a nenhum tipo de nostal- meio de uma exploração indireta espaço comum, torna-se fechada, gia ou utopia com relação às ilhas (LEFEBVRE, 2001) que se estende privada. isoladas pelo oceano. Com todos ao conjunto da vida cotidiana. Esta os seus graves problemas, contra- superexploração é evidenciada, A cidade se tornou assim, ao lon- dições e mazelas, é a cidade que por exemplo, no tempo livre do(a) go do desenvolvimento do capita- oferece as maiores possibilidades trabalhador(a) gasto na autocons- lismo, um grande negócio, mais do emancipatórias, pois, dentre ou- trução de sua moradia, nas horas que isso, tornou-se a nova fábrica tras inúmeras razões, concentra no sacrificadas no longo percurso diá- do capitalismo contemporâneo, “a mesmo território, conectados em rio entre a casa e o emprego ou, usina de geração do mundo, fabri- redes comunicativas e colaborati- ainda, na carga do trabalho do- ca mundi, usina biopolítica de que vas cada vez mais amplas, os(as) méstico invisível e não remunera- precisa o capitalismo para vitali- agentes da transformação — tra- do desempenhado pelas mulheres, zar-se” (CAVA, 2015), plataforma balhadoras, trabalhadores, e to- indispensável para a reprodução da fundamental de acumulação do dos os que vivem sob o domínio do força de trabalho. capital global, espaço privilegiado capital —, o fluxo de informações, de controle político, econômico, a produção artístico-cultural, os Obscurantismo cultural, etc. avanços tecnológicos, os encontros afetivos, a produção de subjetivi- Em paralelo, como veemente- IHU On-Line – De que maneira o dade, o poder político, etc. Desse mente criticou Henri Lefebvre,9 o espaço urbano se transformou em modo, avançar na construção e no urbanismo mais oculta do que re- um grande laboratório das forças compartilhamento dos princípios vela, produz representações ide- sociais? Quais são as potencia- que orientam as práticas dos movi- ológicas e institucionais que não lidades desses movimentos de mentos de resistência é importante dão conta da realidade urbana, resistência? na medida em que “podem criar o com suas problemáticas e práticas, andaime sobre o qual, no caso de 73 Joviano Gabriel Maia Mayer - de modo que “a ciência do fenô- uma ruptura social radical, uma A cidade, especialmente na sua meno urbano só pode resultar da nova sociedade possa ser construí- forma metropolitana, agregou no convergência de todas as ciências” da” (HARDT e NEGRI, 2014:138). tempo e no espaço as condições (LEFEBVRE, 2008). Atualmente, objetivas e subjetivas para a liber- entretanto, já não basta mobilizar tação da multidão frente ao domí- IHU On-Line – Como o concei- todas as ciências já que a compre- nio capitalista imperial. No final do to capitalista de pensar o espa- ensão da realidade urbana também século XIX, Engels8 já afirmava que ço urbano se converte em ato- cobra outros saberes que não go- somente o proletariado “criado micismo e em uma espécie de zam necessariamente do estatuto pela indústria moderna e concen- antiurbanismo? científico. trado nas grandes cidades, liber- Joviano Gabriel Maia Mayer - É tado de todas as cadeias tradicio- interessante notar como a confi- Multiplicidade de nais, inclusive das que o ligavam à guração da cidade, em princípio, olhares terra, é capaz de realizar a grande indica a organização da população revolução social” (ENGELS, 1988). em torno de uma vida comunitária Evidentemente, a investigação/ Nesse sentido, a nostalgia român- — casas próximas umas das outras, intervenção sobre o território na tica da volta ao campo do velho e espaços de convivência, equipa- metrópole demanda uma multipli- bom camponês, agora incorporado mentos sociais compartilhados, cidade infindável de olhares, sabe- ao espaço urbano e quebrado em sistema público de comunicação res e formas de expressão: da ar- seus tradicionais valores, represen- e transporte. Entretanto, o que quiteta à performer, da produtora taria “atrasar o relógio da história” sobressai, contemporaneamente, cultural à advogada, da liderança (idem). é o espaço esmigalhado vendido comunitária à artista plástica, da aos pedaços, a segregação social cientista política ao morador em 8 Friedrich Engels (1820-1895): filósofo e racial, o isolamento e o atomi- situação de rua. Ora, quem me- alemão que, junto com Karl Marx, fundou lhor para dizer sobre as opressões o chamado socialismo científico ou comu- cismo. Como dito anteriormente, nismo. Ele foi co-autor de diversas obras o capitalismo corrompeu a cidade, relacionadas aos processos segre- com Marx, e entre as mais conhecidas de- fez do solo uma mercadoria valiosa stacam-se o Manifesto Comunista e O Capi- e escassa, protegida pelo instituto 9 Henri Lefebvre (1901—1991): foi um tal. Grande companheiro intelectual de Karl filósofo marxista e sociólogo francês. Estudou Marx, escreveu livros de profunda análise sagrado da propriedade imóvel e, filosofia na Universidade de Paris, onde se social. (Nota da IHU On-Line) paralelamente, criou uma ideolo- graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line)

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gatórios das cidades do que os(as) se campo. As rebeliões deflagra- Ademais, como os métodos e as moradores(as) em situação de rua das, sobretudo pela multidão me- formas organizativas do mundo do que trazem nos corpos as marcas tropolitana, tiveram como pano de trabalho são diretamente vincula- da violência cotidiana? Quem me- fundo a agudização da crise urba- dos a um modo específico de viver lhor para falar sobre autoconstru- na, no entanto as forças políticas e sentir a vida, cabe considerar ção do que os(as) pobres urbanos da chamada esquerda instituída as mutações operadas no mundo que autoconstruíram suas casas ainda estão longe de compreender do trabalho que expressam, em nas favelas e ocupações, os(as) as complexidades próprias do fenô- síntese, a passagem do conceito quais cunharam na história de meno urbano fora do prisma estrei- de operário-massa para a noção produção das grandes cidades bra- to da contradição capital-trabalho. de operário-social, o que se dá sileiras essa forma autogestionada Também é evidente que compreen- especialmente a partir da crise de apropriação espacial? É preciso der as contradições próprias da ló- do fordismo e da emergência do extravasar os campos disciplinares gica de apropriação do espaço, sob chamado capitalismo cognitivo e formalmente reconhecidos pelo os marcos do neoliberalismo, do imaterial que confere primazia à paradigma científico moderno, planejamento estratégico e da ci- produção de subjetividades. Ocor- agenciando horizontalmente sabe- dade-empresa, é pressuposto para re que a produção de subjetividade res científicos em sentido estrito a compreensão da crise urbana, ra- operada e determinada pelo poder com outros saberes, narrativas e zão última das jornadas de junho instituído sempre deixa margem às formas de apreensão da realida- de 2013, expressa no agravamento resistências pela via de “disposi- de, subvertendo o lugar de enun- tivos irresistíveis” (NEGRI, 2004). da mobilidade urbana e da questão ciação para desafiar o pensamento Entretanto, demorou muito para habitacional, pautas centrais na ideológico hegemônico sobre o que as forças tradicionais de es- atualidade. território. querda começassem a perceber o papel da subjetividade, tanto no IHU On-Line - Quais são os prin- IHU On-Line – Atualmente, quais domínio biopolítico exercido pelo são as principais contradições do cipais desafios do movimento ur- Império, quanto na arena das re- espaço urbano? bano na busca pelo comum? sistências empreendidas contra o Estado-capital, as quais frequen- Joviano Gabriel Maia Mayer Joviano Gabriel Maia Mayer - As transformações experimentadas no temente trazem consigo a afirma- - Como dito, a afirmação do ca- ção constituinte de outras formas 74 pitalismo financeiro global é mundo do trabalho e as novas con- figurações da classe trabalhadora de vida e relações pós-capitalistas. acompanhada pela acentuação da Se, de um lado, nos marcos do ca- que emergiram da crise do fordis- centralização do capital na metró- pitalismo cognitivo e imaterial, a mo colocaram desafios enormes às pole, impondo a ela uma deter- produção de subjetividade ganha esquerdas tradicionais e especial- minada configuração espacial. Tal progressivamente importância na mente à organização sindical que característica faz da metrópole, extração de mais valor (valores não está preparada para se opor de como condição geral de produção, subjetivos agregados ao produto), maneira ampla e contundente aos o cenário peculiar das contradições por outro, a produção de novas processos de acumulação por espo- próprias do capitalismo: centro e subjetividades também se torna liação, sem contar que o neolibe- periferia, luxo e miséria, moderno central para se vislumbrar qualquer e antigo, legal e ilegal, acessibili- ralismo teve como um dos escopos ruptura com o domínio imperial e dade e exclusão, tudo isso “convi- principais o enfraquecimento das com o controle biopolítico exer- vendo” no mesmo espaço metro- formas tradicionais de organização cido pelo Estado-capital. Porém, politano, forma estendida como e luta do trabalho. Se, como diz como diz Lazzarato,11 estamos num condição planetária geral. A pró- Harvey,10 na atualidade a acumula- pria natureza desses antagonismos ção por espoliação de fato está no 11 Maurizio Lazzarato: Sociólogo e filósofo da vida metropolitana é essencial primeiro plano da acumulação ca- italiano que vive e trabalha em Paris, onde re- para explicar a emergência dos mo- aliza pesquisas sobre a temática do trabalho pitalista global, inegavelmente as imaterial, a ontologia do trabalho, o capita- vimentos sociais urbanos em emba- lutas contra o saqueio neoliberal lismo cognitivo e os movimentos pós-socia- te com o Estado-capital, provedor das nossas vidas, bens e formas de listas. Escreve também sobre cinema, vídeo e das condições necessárias à repro- as novas tecnologias de produção de imagem. existência também ocupam hoje É um dos fundadores da revista Multitudes. dução dos(as) trabalhadores(as) na o primeiro plano das resistências O IHU já publicou uma série de textos e en- cidade. Inegavelmente as manifes- contra o Estado-capital e, como as trevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: tações de junho de 2013 no Brasil vidas são muitas, as lutas também O “homem endividado” e o “deus” capital: colocaram, aos movimentos sociais uma dependência do nascimento à morte. são múltiplas. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada e aos partidos ditos de esquerda, na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015, a necessidade de aprofundar a 10 David Harvey (1935): é um geógrafo disponível em http://bit.ly/1WmGF9v; Sub- compreensão dos mecanismos de marxista britânico, formado na Universidade verter a máquina da dívida infinita. Entre- produção e reprodução do espaço de Cambridge. É professor da City University vista com Maurizio Lazzarato, publicada em of New York e trabalha com diversas questões Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do urbano, bem como a atuação dos ligadas à geografia urbana. (Nota da IHU IHU, disponível em http://bit.ly/1N0i2JB; agentes políticos e financeiros nes- On-Line) “Atualmente vigora um capitalismo social

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momento em que “os métodos para verdades absolutas e ter humil- bana, cumulada com o princípio a produção de subjetividade que dade para se colocar lado a lado, democrático que pressupõe o di- brotaram do leninismo (o partido, horizontalmente, com a multidão reito de lutar pela efetivação dos a concepção da classe operária que abalou as estruturas do poder direitos e o direito constitucional como vanguarda, o ‘revolucionário instituído. Quem sabe assim, par- à moradia adequada que também profissional’) não são mais relevan- tindo da compreensão de que essa goza de proteção no âmbito dos tes para as composições de classes multidão metropolitana (que não tratados internacionais de direitos atuais” (LAZZARATO, 2014:19). Isso se reduz à classe operária e seus humanos dos quais o Brasil é país graças à perda de centralidade do aparelhos de representação) pode signatário. proletariado (representado por se revelar como potência consti- um partido de vanguarda) como tuinte frente ao poder instituído Para além do objetivo imediato o sujeito revolucionário por exce- quando seus múltiplos desejos se de conquista da moradia, a reto- lência, especialmente em face da confluem, essa velha esquerda mada de vazios urbanos pelos sem- crise do fordismo e a nova confi- possa contribuir na edificação de -teto implica a experimentação de guração do trabalho imaterial que uma alternativa que confronte novas formas de apropriação do modificou profundamente a natu- o controle biopolítico do Estado- espaço, nas quais princípios como reza e a composição da classe tra- -capital a partir da produção do a cooperação, o coletivismo ou a balhadora mundial. comum. Nas maiores metrópoles democracia real ganham conteúdo brasileiras atualmente, grandes subversivo sob certas condições. Horizontalidade projetos urbanos concebidos via É nesse domínio que a multidão parceria público-privada à revelia (também) se revela como contra- Há muitos outros desafios para da população chamam a atenção poder: resistência, insurgência e além daqueles inerentes às mu- como importantes trincheiras de poder constituinte, conjuntamente danças operadas no mundo do tra- organização multitudinária, mo- articulados, dinamicamente imbri- balho. Dentre eles a construção bilização política, constituição cados, ora mais, ora menos. Essas de processos autônomos e hori- do comum e produção de novas três dimensões do contrapoder, or- zontais de produção coletiva, for- subjetividades. Não somente pela ganicamente coadunadas, também mação política e ação direta que amplitude desses projetos que podem ser identificadas na luta canalizem as insatisfações dos(as) muitas vezes afetam a vida de das ocupações de sem-teto. Re- citadinos(as) e que expressem a parte considerável da população, sistência contra o desalojamento, 75 construção do comum em opo- mas também por serem a expres- liminarmente concedido, tão logo sição ao Estado-capital. Porém, são mais bem acabada da lógica divulgada e denunciada a violação lamentavelmente, as forças po- de gerenciamento empresarial do coletiva da cerca que protegia a líticas construídas pela esquer- espaço urbano. ilegalidade do descumprimento da da brasileira no último quarto do função social. Poder insurgente, século passado, especialmente os IHU On-Line – Frente os desa- por sua vez, consubstanciado na partidos políticos e as centrais sin- fios habitacionais de nosso tem- quebra do estatuto de proprieda- dicais, mostraram-se inadequados po, que estratégias são mais con- de como instituição protegida pelo como ferramentas políticas aptas dizentes com a constituição do Estado (constituído). Força consti- a dar vazão à força multitudinária poder popular? Por que as ocupa- tuinte conformada pela multidão que eclodiu nas ruas em junho. As ções se constituem em uma forma na defesa e construção do comum rebeliões urbanas de 2013 colo- não somente de luta por moradia, urbano, cuja potência pode criar cam às organizações tradicionais mas também política? territorialidades contra-hegemôni- de esquerda a necessidade de re- Joviano Gabriel Maia Mayer - cas, novas sociabilidades, modos ver velhas práticas políticas, re- No Brasil, a questão habitacional de vida, experimentações e nar- formular concepções tidas como é uma das principais questões mo- rativas insurgentes, em que pese dernas não resolvidas pela moder- o poder simbólico e material da e do desejo”. Entrevista com Maurizio La- cidade-empresa. Especialmente na zzarato, publicada em Notícias do Dia, de nidade, o que ainda torna a luta 05-01-2011, no sítio do IHU, disponível em pela moradia central na atuação última década e, ainda com maior http://bit.ly/1LejolW; “Os críticos do Bolsa dos movimentos urbanos, os quais intensidade, após as jornadas de Família deveriam ler Foucault...” Entrevista junho de 2013, as ocupações or- com Maurizio Lazzarato, publicada em Notí- recorrentemente utilizam as ocu- cias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU, pações de imóveis ociosos como ganizadas por movimentos sociais disponível em http://bit.ly/1GLy9d9; Capi- mecanismo legítimo de pressão se multiplicam nas metrópoles talismo cognitivo e trabalho imaterial. En- política e efetivação do direito de brasileiras, não raro garantindo o trevista com Maurizio Lazzarato, publicada assentamento de milhares de famí- em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio morar. A legitimidade da retomada do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejOsv; organizada ou espontânea de va- lias pobres que não podem aceder As Revoluções do Capitalismo. Um novo li- zios urbanos inutilizados encontra à aquisição da moradia, como é o vro de Maurizio Lazzarato. Reportagem pu- guarida no próprio ordenamento caso de Belo Horizonte, em que blicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit. jurídico nacional, sobretudo na grandes ocupações têm possibili- ly/1GXuMlq. (Nota da IHU On-Line) função social da propriedade ur- tado moradia digna a milhares de

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famílias, a exemplo das ocupações tos a aceitar proposições políticas dido e condicionado às condições da Izidora,12 Dandara13 etc. hierarquizadas que se apresentam econômicas de cada família, mas como solução para os seus proble- por outro lado sem o risco de reto- IHU On-Line – Que novas formas mas e que atentam contra seus mo- mada compulsória pela instituição de convivência e, portanto, bio- dos de vida e suas singularidades. A financeira credora ao longo das dé- políticas emergem com as ocupa- autoconstrução nas ocupações ur- cadas do financiamento imobiliário ções nas Metrópoles? banas é uma modalidade aberta de contratado. Nas ocupações, o ris- produção habitacional que respeita co do despejo por parte do Esta- Joviano Gabriel Maia Mayer - as práticas culturais e as singula- do, por sua vez, é contornado pela Nos territórios recuperados pelos ridades dos pobres urbanos. Cabe fé coletiva no êxito da resistência sem-teto, a multidão se explicita lembrar que as ocupações e outras organizada em rede para a defesa como carne no fazer comum, or- práticas de autoconstrução de mo- do território comum. Em Belo Ho- ganismo multiforme no qual não é radias fazem parte da história de rizonte, desde 2008, nenhuma ocu- possível diferenciar propriamente formação, expansão e esgarçamen- pação urbana organizada pelos mo- o corpóreo e o intelectual, a práxis to das grandes cidades brasileiras, vimentos foi despejada! Dentre os e a teoria, a experiência concreta não há qualquer novidade em po- desafios colocados aos movimentos e o projeto encarnado. Enquanto o bres ocupando imóveis ociosos para urbanos e às novas ocupações de Estado e a iniciativa privada só têm autoconstruir suas moradias e expe- sem teto, destacamos a necessida- o Minha Casa Minha Vida a oferecer, rimentar nos territórios aí constitu- de de se superar o limite estreito verticalmente, como política habi- ídos formas de vida, produção, con- da propriedade privada dentro das tacional, com unidades rígidas, pro- vivência e sociabilidade singulares. próprias ocupações, com a demar- jetos padronizados e conflitantes Como frequentemente afirmam os cação de lotes individuais, para com as culturas construtivas dos(as) movimentos, a luta das ocupações experimentar formas coletivas ino- pobres urbanos, as ocupações pro- de moradia não se reduz apenas à vadoras de apropriação espacial, movem a construção de novos ter- defesa do direito à moradia, não bem como avançar na dimensão ritórios insurgentes nas metrópoles raro ainda confundido com o direito constituinte da resistência, com a brasileiras, cada vez mais indispos- de propriedade, mas também dizem produção de equipamentos e prá- respeito ao direito à cidade. ticas coletivas (econômicas, políti- 12 Resiste Izidora: batizada de Izidora, a cas e culturais) que aprofundem a ocupação mineira é formada por 3 vilas in- 76 terligadas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) Resistência produção de novas subjetividades e tem cerca de 20 mil pessoas a mais que a nessas ocupações. Para tanto, tal- paulista, quase todas morando em casas de Isso também implica a defesa pe- vez o primeiro passo seja conce- alvenaria. A enorme área da Mata do Izidoro, na região norte da capital mineira. (Nota da las famílias sem teto do seu modo ber tais ocupações como espaços IHU On-Line) de viver e ocupar o espaço na ci- comuns de resistência biopotente 13 Ocupação Dandara: ocupação urbana dade, com autonomia para deter- e exercício democrático na metró- na região norte de BH- MG que conta com minar, por exemplo, a tipologia e pole contemporânea, sujeitos in- mais de 1000 famílias organizadas há mais de 5 anos na luta por uma vida mais digna. o tempo de construção da mora- dispensáveis à construção de uma (Nota da IHU On-Line) dia, tempo quase sempre esten- nova sociabilidade urbana.

■ REFERÊNCIAS CAVA, Bruno. Metrópole como usina biopolítica. O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e a virada do comum na conjuntura brasileira. In Revista on line do Instituto Humanitas Unisinos. Ano XV, nº. 464, 2015. Disponível em http:// www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&i d=5909&secao=464. Acesso em 04 de julho de 2015. ENGELS, Friederich. A questão da habitação. São Paulo: Acadêmica, 1988. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração – Isso não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2014. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. HERREROS, Tomás; e RODRÍGUEZ, Adriá. Revolução 2.0: direitos emergentes e reinvenção da democracia. In: Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global. COCCO, Giuseppe e ALBAGLI, Sarita (Org.). Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2012. LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo, Editora n-1, 2014. LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. 2ª ed., Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da multidão. In revista Lugar Comum - Estudos de mídia, cultura e demo- cracia. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Comunicação, nº. 19-20, 2004. PAULA, João Antônio de. As cidades e A cidade e a universidade. In: As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006. PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed. Iluminuras: São Paulo, 1ª Ed., 2ª reimpr., 2011.

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EVENTOS Viver para além dos padrões Laércio Pilz apresenta proposições de Gilles Deleuze e reflete sobre o pensamento poético como forma de experimentação de uma vida mais livre

Por Ricardo Machado

enso que o grande legado com a miséria. A outra ideia dele é que de Deleuze é ter avança- ‘ser de esquerda’ é experimentar um “Pdo no que diz respeito a devir minoritário, ou seja, não se filiar uma poética do pensamento, ou seja, a padrões, à maioria e, em especial, re- um pensamento que não buscava uma sistir ao padrão homem, adulto, macho, definição, a verdade ou até um modelo cidadão”, esclarece. de esclarecimento, mas um pensamen- Laércio Pilz é graduado em Filosofia to livre, experimentando criativamente pela Faculdade de Filosofia Nossa Senho- sua relação com os devires do corpo, ra da Imaculada Conceição – Fafimc, em dos afetos, das relações com o de fora e Viamão, especialista em Educação pela com o de dentro”, apresenta o professor Federação de Estabelecimento de Ensi- e pesquisador Laércio Pilz, em entrevis- no Superior, em Novo Hamburgo, mes- ta por e-mail à IHU On-Line. Segundo tre e doutor em Educação pela Unisinos ele, esta perspectiva foi um dos grandes com a tese A afirmação de uma pedago- legados do pensamento de Gilles Deleu- gia da afirmação: Desconstruindo morais ze e que faz pensar, hoje, o papel das racionalistas a partir do encontro com o universidades. desejo, a multiplicidade e o devir. Le- 77 Deleuze era, sobretudo, um crítico ciona na Unisinos, no departamento de à dominância da lógica capitalista que Ciências Humanas, e atua como profes- buscava permear todos os aspectos da sor autor de diversas disciplinas nos cur- vida e que propunha como resistência sos EAD da instituição. É autor de Antro- às forças de dominação, justamente, pologia filosófica e ética(São Leopoldo: a esquizofrenia. “O termo esquizo me Unisinos, 2010) e Ética e negócios (São aparece como aquilo que busca experi- Leopoldo: Unisinos, 2012). mentar o que foge da regra, que resiste Laércio participará da programação à representação e aos modelos padrão do IHU ideias, promovido pelo Instituto de comportamento (ao ajuste...)”, pro- Humanitas Unisinos – IHU, no dia 08- põe. Na esteira de novas subjetividades, 10-2015, proferindo a conferência Dife- surge uma profunda crise da esquerda, rença, multiplicidade e complexidade: que está implicada no alçamento dessas encontros e experimentações como forças às instâncias de poder. “O que potência. Deleuze coloca é que ‘ser de esquer- O evento ocorre no dia 08-10-2015, da’ é ter como visão o horizonte mundo às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e não a sua casa e a obsessão por não e Companheiros – IHU. Mais informações perder seus privilégios para outros. Ele em http://bit.ly/1KVOtGS. afirma que é uma questão depercepção a gente não se conformar com a fome e Confira a entrevista.

IHU On-Line – Do que vai se tra- ça, multiplicidade e complexida- alimentam a potência do pensa- tar a apresentação do senhor no de: encontros e experimentações mento e da existência humana. A IHU ideias? Quais os temas e auto- como potência —, a proposta é proposta da apresentação é trazer res centrais que serão debatidos? trazer para o diálogo conceitos de volta alguns elementos que tra- como os de diferença, multiplici- balhei em minha tese de doutora- Laércio Pilz - Como o próprio dade e complexidade e como estes do, Pedagogia da Experimentação, título da fala indica — Diferen- dão margem à experimentação e que teve como principal autor

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lido e pesquisado Gilles Deleuze,1 Michel Serres,5 Pierre Lévy6 e Edgar por Sartre (...) Felizmente, havia mas onde também busquei com- Morin.7 Sartre. Sartre era nosso Fora, era por alianças com outros auto- realmente a corrente de ar fresco res, entre os quais destaco Félix IHU On-Line – Qual o grande le- (...) E Sartre nunca deixou de ser 2 3 4 Guattari, Nietzsche, Foucault, gado do pensamento de Deleuze? isso, não um modelo, um método ou um exemplo, mas um pouco de 1 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo Laércio Pilz - Primeiro quero ar puro, uma corrente de ar (...); francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, destacar aqui um comentário fei- um intelectual que mudava singu- Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. to por Deleuze em Diálogos (Gilles larmente a situação do intelectual Professor da Universidade de Paris VIII, Vin- Deleuze e Claire Parnet. São Paulo: (...)’. cennes, Deleuze atualizou ideias como as de Escuta, 1998) sobre sua época de devir, acontecimentos, singularidades, con- Penso que o grande legado de estudante de Filosofia: ‘Era histó- ceitos que nos impelem a transformar a nós Deleuze é ter avançado no que diz mesmos, incitando-nos a produzir espaços ria demais quando chegávamos lá, respeito a uma poética do pensa- de criação e de produção de acontecimentos- método demais, imitação, comen- outros. (Nota da IHU On-Line) mento, ou seja, um pensamento 2 Pierre-Félix Guattari (1930-1992): filó- tário e interpretação, a não ser que não buscava uma definição, a sofo e militante revolucionário francês. Cola- verdade ou até um modelo de es- borou durante muitos anos com Gilles Deleu- tema do poder, rompendo com as concep- ze, escrevendo com este, entre outros, os li- ções clássicas do termo. Em várias edições, clarecimento, mas um pensamento vros Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia a IHU On-Line dedicou matéria de capa a livre, experimentando criativa- e O que é Filosofia?. Félix Guattari, dotado de Foucault: edição 119, de 18-10-2004, dispo- mente sua relação com os devires um estilo literário incomparável, é, de longe, nível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, um dos maiores inventores conceituais do fi- de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ do corpo, dos afetos, das relações nal do século XX. Esquizoanálise, transversa- ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, in- com o de fora e com o de dentro. lidade, ecosofia, caosmose, entre outros, são titulada ‘História da loucura’ e o discurso Conceitos como o de rizoma e o de alguns dos conceitos criados e desenvolvidos racional em debate, disponível em http:// ritornelo dão pulsão a uma geogra- pelo autor. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo 3 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filó- biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, fia esquizo, a um pensar que não sofo alemão, conhecido por seus conceitos disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edi- está enquadrado e nem precisa além-do-homem, transvaloração dos valores, ção 344, Biopolitica, estado de exceção e vida de ajustes e explicações, mas que niilismo, vontade de poder e eterno retor- nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ no. Entre suas obras figuram como as mais ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos busca experimentar linhas de fuga, importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Cadernos IHU em Formação, disponível que foge de um Eu e de um Nós Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. pesado e instituído. Pensar entre O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A (Nota da IHU On-Line) as coisas, para além dos registros 78 genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Cen- 5 Michel Serres (1930): filósofo francês. tauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi Escreveu entre outras obras “O terceiro ins- postos. acometido por um colapso nervoso que nunca truído” e “O contrato natural”. Atuou como o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzs- professor visitante na USP. Desde 1990 ele Experimentações che foi dedicado o tema de capa da edição nú- ocupa a poltrona 18 da Academia francesa. mero 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, (Nota da IHU On-Line) intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e 6 Pierre Lévy: filósofo da informação que Fui professor de História duran- do crepúsculo, disponível para download estuda as interações entre a Internet e a socie- te um bom tempo em escolas de em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos dade. Mestre em História da Ciência e doutor Cadernos IHU em formação é intitulada O em Sociologia e Ciência da Informação e Co- educação básica e ensino médio e pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode municação, pela Universidade de Sorbonne, quando li Deleuze eu percebi que, ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Con- França, Lévy é titular da cadeira de pesquisa mesmo não tendo ainda visitado e fira, também, a entrevista concedida por Er- em inteligencia coletiva na Universidade de roubado vários de seus conceitos, nildo Stein à edição 328 da revista IHU On- Ottawa, Canadá. Entre outras obras, escreveu -Line, de 10-05-2010, disponível em http:// A ideografia dinâmica:rumo a uma imagina- já estava tentando experimentar, bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo ra- ção artificial?. São Paulo: Loyola, 1998. eO com os estudantes, outras ma- dical de Nietzsche não pode ser minimizado, que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. neiras de encontro com os fatos na qual discute ideias de sua conferência A (Nota da IHU On-Line) crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzs- 7 Edgar Morin (1921): sociólogo francês, e os personagens. Perguntávamos che e a questão da biopolítica, parte integran- autor da célebre obra O Método. Os seis li- sobre como podíamos nos trans- te do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença vros da série foram tema do Ciclo de Estu- portar para aquele tempo, como — Pré-evento do XI Simpósio Internacional dos sobre “O Método”, promovido pelo IHU seria possível recompor a história, IHU: O (des)governo biopolítico da vida hu- em parceria com a Livraria Cultura de Porto mana. Na edição 330 da Revista IHU On- Alegre em 2004. Embora seja estudioso da como em nosso tempo e contexto -Line, de 24-05-2010, leia a entrevista Niet- complexidade crescente do conhecimento poderíamos experimentar outras zsche, o pensamento trágico e a afirmação científico e suas interações com as questões histórias. Num primeiro momen- da totalidade da existência, concedida pelo humanas, sociais e políticas, se recusa a ser to, ainda filhos da representação, Prof. Dr. Oswaldo Giacoia e disponível para enquadrado na sociologia e prefere abarcar download em http://bit.ly/nqUxGO. Na edi- um campo de conhecimentos mais vasto: fi- compúnhamos mundos ideais, po- ção 388, de 09-04-2012, leia a entrevista O losofia, economia, política, ecologia e até bio- rém aos poucos fomos percebendo amor fati como resposta à tirania do senti- logia, pois, para ele, não há pensamento que que estes modelos nos reduzem do, com Danilo Bilate, disponível em http:// corresponda à nova era planetária. Além de O bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) Método, é autor de, entre outros, A religação e capturam e, diante desse sen- 4 Michel Foucault (1926-1984): filóso- dos saberes. O desafio do século XXI (Ber- timento, inventávamos, eu e os fo francês. Suas obras, desde a História da trand do Brasil, 2001). Confira a edição es- estudantes, outras histórias singu- Loucura até a História da sexualidade (a pecial sobre esse pensador, intitulada Edgar lares, locais, não mais reduzidas a qual não pôde completar devido a sua morte) Morin e o pensamento complexo, de 10-09- situam-se dentro de uma filosofia do conhe- 2012, disponível em http://bit.ly/ihuon402. cópias de modelos superiores. Essa cimento. Foucault trata principalmente do (Nota da IHU On-Line) memória mais leve e criativa, que

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Deleuze vai experimentar em seus De uma forma simples, podemos para enfrentarmos os desafios encontros com Espinosa,8 Nietzs- dizer que uma sensibilidade aberta contemporâneos? che e Bergson,9 entre outros, penso pode experimentar a eterna novi- Laércio Pilz - Desafios contem- que é o grande legado não só dele, dade na relação com o belo que porâneos (hummm). O que nos mas de um bando de filósofos que emerge da natureza ou até da cul- acontece agora é contemporâneo, fogem do mundo da representação tura, como um corpo selvagem e mas temo dividir demais o tempo e das cópias. Afinal, me pergunto intensivo — este sim, se afeta com em um passado que foi de um jeito sempre: o que de fato criamos em as coisas que aparecem. Porém, se e o presente que é de outro jeito. É nossos encontros com os estudan- representar demais o tempo. Além tes na própria universidade? disso, o universo de questões con- temporâneas é amplo demais para IHU On-Line – O que são, para compor uma resposta única aos Deleuze, os conceitos de “Dife- Penso que o ditos desafios contemporâneos. rença” e “Multiplicidade”? Porém, podemos falar a partir de Laércio Pilz - Não me sinto mui- grande legado certos contextos, certas realidades to à vontade para responder a este de Deleuze é ter que emergem nessa época, como estilo de pergunta. Talvez me sen- a linguagem em rede e um mundo tisse melhor respondendo a uma avançado no global, não nos furtando, ao mes- questão do tipo ‘os conceitos de Di- mo tempo, em perguntar sobre o ferença e de Multiplicidade, apre- que diz respeito que os povos indígenas (ou outras sentados por Deleuze’, despertam a uma poética tradições...), por exemplo, tem a que sintomas em teu pensamento? ensinar às populações urbanas e Em primeiro lugar, me lembraria da do pensamento conectadas. densidade com que o conceito de Diferença é trabalhado por ele em Diferença e sua Tese Diferença e Repetição. O tomarmos a nós como seres de cul- Multiplicidade que se repete sempre é a diferen- tura, com capacidade de desenvol- ça, ao menos na potência do eter- ver outras linguagens e dar carga Mas vejamos: é possível propor no retorno da singularidade vivida explosiva ao pensamento através que a linguagem em rede, aberta 79 em cada momento. Amor fati, que do universo das palavras, dos sons, e criativa (livre!), deve partir da ele ‘recupera’ de Nietzsche. A Di- dos gestos, etc., podemos propor capacidade das pessoas em expe- ferença não como o que difere de que um ‘atacado’ de leituras e rimentar a diferença e a multipli- outro ou de outra coisa, como se de saberes pode nos potencializar cidade (já que foram os conceitos estivéssemos compondo um qua- para a dinâmica da criação das di- dos quais falamos há pouco). Po- dro comparativo, mas a diferença ferenças, porém, sempre a partir rém, essa experimentação não de- como um substantivo que dá vida de uma relação aberta e dinâmica pende só da ‘boa vontade’, mas de ao tempo e ao movimento, através com o mundo da vida. uma mudança radical no modo de da experimentação criativa e viva pensar a si mesmo e sobre a rela- dos conceitos (e me arriscaria a Multiplicidade ção com os outros e, em especial, afirmar, dos afetos para com o aca- com o pensamento. Num mundo so do que nos acontece). Aqui estabeleço um paralelo com global, da dita multiplicidade cul- o conceito de Multiplicidade, ou tural, se não houver uma revolu- 8 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632- seja, o que se diz do múltiplo não é ção de pensamento, ou seja, uma 1677): filósofo holandês. Sua filosofia é consi- tanto que ele apresenta ou repre- generosidade que se abra para os derada uma resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. Foi considerado um dos gran- senta diversas formas, mas que ele outros, como coloca muito bem des racionalistas do século XVII dentro da está em devir, em processo perma- Edgar Morin, não saberemos com- Filosofia Moderna e o fundador do criticismo nente de criação e de relação com por partilhas e aprendizagens. Isto bíblico moderno. Confira a edição 397 da IHU os outros, entre o de dentro e o de On-Line, de 06-08-2012, intitulada Baruch em qualquer área de formação ou Spinoza. Um convite à alegria do pensamen- fora, compondo um encontro cria- atuação. to, disponível em http://bit.ly/ihuon397. tivo com o tempo. Os devires é que (Nota da IHU On-Line) dão corpo à multiplicidade, permi- 9 Henri Bergson (1859-1941): filósofo e es- Relações abertas critor francês. Conhecido principalmente por tem que nos façamos desde sempre Matière et mémoire e L’Évolution créatrice, outros, a partir da radical extensão Pessoalmente, a proposta de De- sua obra é de grande atualidade e tem sido para outras possibilidades/manei- estudada em diferentes disciplinas, como ci- leuze me aparece muito como um nema, literatura, neuropsicologia. Sobre esse ras de experimentar conceitos e desafio à boa vida, a viver relações autor, confira a edição 237 da IHU On-Line, afetos. abertas e construtivas não só com de 24-09-2007, A evolução criadora, de Hen- os conceitos, mas com a gente ri Bergson. Sua atualidade cem anos depois, disponível para downoload em http://bit. IHU On-Line – Qual a potên- mesmo e com as outras pessoas. ly/109AdXn. (Nota da IHU On-Line) cia do pensamento de Deleuze Penso que algo que aproxima ele

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tanto de Félix Guattari, quando do parasitismo podem ser linhas Outra política vão produzir juntos, é o desejo em de resistência, assim como, eco- desfazer certa representação ‘pa- nomicamente, algumas formas de Pessoalmente, proponho que pai-mamãe’, ou seja, juízos que negociação que não se reduzem à precisamos de outra maneira de determinam registros e acabam lógica do lucro insano. fazer política para que possamos limitando e empobrecendo as rela- falar de resistências. Um estado ções. Talvez em âmbito global seja IHU On-Line – Como Deleuze, mais propositivo! Será que a lógi- querer demais buscar este desar- que não acreditava em gover- ca de Estado cabe nisso? Podemos mamento, porém acredito muito no de esquerda, pode contribuir pensar em um estado mais ético e que, se experimentarmos esta re- para pensarmos a crise de es- que consiga compor alianças com a lação criativa, mundos mais belos querda que vivemos no Brasil? sociedade? Acredito que ultrapas- hão de vir. sar a crise política passa também Laércio Pilz - Deleuze afirmava pelo enfrentamento dessas ques- IHU On-Line – A esquizofrenia que a ideia de esquerda não fecha tões, apesar de eu não ser nenhum ainda é o melhor caminho para fu- com a lógica de ‘Governo’, pois estudioso de ciência política. gir dos processos do capitalismo? este está instituído predominan- temente por relações de controle. IHU On-Line – Deseja acrescen- Laércio Pilz - O termo esqui- Poderíamos até estender essa dis- tar algo? zo me aparece como aquilo que cussão, ou seja, se seria possível busca experimentar o que foge falar em esquerda dentro da lógica Laércio Pilz - Deleuze era um da regra, que resiste à represen- de Estado e de governo (...). ‘filósofo da vida’, ou seja, ler suas tação e aos modelos padrão de obras fez um ‘bem danado’ às ma- comportamento (ao ajuste...). É O que Deleuze coloca é que ‘ser neiras como continuei a compor lógico que o Capitalismo produz as de esquerda’ é ter como visão o minhas relações. Talvez um dos suas amarras e capturas. E de for- horizonte mundo e não a sua casa grandes desafios contemporâneos ma muito sutil. Porém, como não e a obsessão por não perder seus seja aliviar o peso com que muitos acredito que um sistema consiga privilégios para outros. Ele afirma ‘carregam suas vidas’. O próprio ser totalmente puro, ou seja, não que é uma questão de percepção estar na Universidade, participar consiga controlar tudo, proponho a gente não se conformar com das atividades e realizar um TCC, 80 que ‘por dentro do capitalismo’ a fome e com a miséria. A outra não pode ser um ritual tão prosaico podemos compor resistências e li- ideia dele é que ‘ser de esquerda’ e cansativo. Isso não significa ig- nhas de fuga. Essas linhas de fuga é experimentar um devir minori- norar a excelência acadêmica e a podem ser denominadas de movi- tário, ou seja, não se filiar a pa- consistência de nossos fazeres, po- mentos esquizo? Pode ser, mas não drões, à maioria e, em especial, rém, como podemos compor qua- seria, na minha concepção, um resistir ao padrão homem, adulto, lidade com um pouco mais de to- movimento absoluto — até porque macho, cidadão. que poético? Essa é uma chamada o próprio Deleuze diria que isso é muito interessante que faz Edgar delirante... O nosso ‘lado esquizo’ Esquerda no Brasil Morin: como podemos realizar uma seria aquele que não se entrega contraofensiva poética num mundo ao modelo, que resiste. Porém, Tenho minhas dúvidas sobre que de atividades tão prosaicas? Pes- pessoalmente, penso que as resis- esquerda no Brasil pensa por devi- soalmente, as leituras de Deleuze tências não se compõem fora da res minoritários, mesmo que mui- me auxiliaram nisso. Se pudesse cultura e do contexto. Insisto, não tos defendam as ‘minorias’. Assim sugerir a quem nunca leu uma obra significa isto que elas se subme- como também colocaria em ques- de Deleuze para começar a pensar tam ao contexto, porém, seriam tão se os políticos, em geral, têm coisas a partir dele, sugiro a obra maneiras de fazer água no que percepção sobre o horizonte das Diálogos (São Paulo: Escuta, 1998), está aí. Afetos generosos, que não questões e não estão presos a inte- que me parece ser uma boa ‘intro- estabelecem a lógica do abuso ou resses imediatos. dução ao seu pensamento’.

■ LEIA MAIS... —— Laudato Si’: inspiração e desafios para Universidade. Reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 18-09-2015, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1iR7zqh; —— Complexidade e pensamento vivo. Entrevista com Laércio Antônio Pilz publicada na revista IHU On-Line, nª 402, de 10-09-2012, disponível em http://bit.ly/1M6eu6j; —— IHU Repórter - Laércio Antônio Pilz. Perfil publicado na revistaIHU On-Line, nº 315, de 16- 11-2009, disponível em http://bit.ly/1OLW7K5.

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TEOLOGIA PÚBLICA Francisco de Assis. O protótipo ocidental da razão cordial e emocional Para Leonardo Boff, o religioso tinha o coração em todas as coisas. Por isso, sentia- se unido ao todo e como membro de uma grande família terrenal e cósmica

Por João Vitor Santos e Patricia Fachin

er radicalmente pobre Boff enfatiza que Francisco se “trans- para poder ser plenamen- formou num arquétipo”, numa refe- “Ste irmão: este é o sentido rência de ideal humano, porque “de da pobreza franciscana”, explica Leo- tudo o que lhe acontecia, a dimensão nardo Boff à IHU On-Line, na entrevis- de sombra e a dimensão de luz, suas ta a seguir, concedida por e-mail. decepções e alegrias, seu sofrimento e No domingo, 04-10-2015, a Igreja ce- morte, fazia caminhos de crescimento lebrou o dia de São Francisco de Assis, e de total integração. Desse proces- que, segundo o teólogo, “inaugurou so que combina ternura e vigor, céu uma Igreja na base, junto com os po- e terra, vida e morte, irrompe sua ir- bres, pregando pelas estradas ou nas radiação de alguém que realizou sua praças, rezando as horas canônicas de- humanidade de modo exemplar. Criou 81 baixo de árvores e teatralizando passa- um humanismo terno e fraterno que vai gens bíblicas como fez com a celebra- além do mundo humano e que abarca ção do Natal, inventando o presépio”. toda a natureza e o próprio universo. Fonte de inspiração nos dias de hoje, (...) Francisco bem o sabia, por isso, a figura de Francisco de Assis é reaviva- embora para nós seja um santo exem- da na Igreja e inspira inclusive Bergo- plar, se considerava o maior pecador do glio, que “tomou o nome de Francisco mundo, ‘pequenino, pútrido e fétido, pelo fascínio que sempre exerceu sobre mesquinho, miserável e vil’, como diz ele a figura deste santo especial e por numa de suas cartas. Ele podia dizer causa do amor aos pobres e à nature- isso, pois não havia negado, mas in- za”, diz o teólogo. Parafraseando a Car- tegrado tais realidades sombrias, pró- ta Encíclica Laudato Si’, do Papa Fran- prias de nossa condição humana, numa cisco, sobre o cuidado da casa comum, síntese superior, repleta de luz, de en- Boff lembra que “‘Francisco é o exem- ternecimento e de amortização”. plo por excelência do cuidado pelo que Leonardo Boff é teólogo, filósofo e é frágil e por uma ecologia integral… o autor de uma imensa obra sobre temas seu coração era universal’ (n.10). Todo ambientais. Desta obra, citamos Eco- o texto da encíclica vem imbuído de logia: grito da Terra, grito dos pobres coração, pois lê os dados da situação (Petrópolis: Vozes, 2015). da Terra afetivamente e não apenas in- telectualmente. Isso é o modo de São A entrevista foi publicada nas No- Francisco ler o mundo a partir de um tícias do Dia, 04-10-2015, festa de sentimento profundo de união”. São Francisco de Assis, disponível em http://bit.ly/1WHLWaP. Autor de São Francisco de Assis: Ter- nura e Vigor (Petrópolis: Vozes, 1990), Confira a entrevista.

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de profunda para com os outros, os valores éticos e a espiritualidade. É o coração que o fez sentir o Sol, a Lua, a água e o lobo e até a morte Está dentro das possibilidades como irmãos e irmãs. Essa atitude nos é exigida hoje pela crise ecoló- humanas desentranhar um gica. A razão sozinha não dá conta de nossos problemas fundamen- São Francisco escondido tais, porque ela apenas vê, analisa dentro de cada um e calcula. Será o coração que nos moverá para o cuidado, o respeito e o amor à Mãe Terra. IHU On-Line - Quem foi Francis- em conhecido livro Essência e For- co de Assis? Como entendê-lo na mas da Simpatia3 afirmava: “São IHU On-Line - Qual era a con- sua complexidade que vai da ter- Francisco é o protótipo ocidental cepção de Igreja de Francisco de nura ao vigor? da razão cordial e emocional, coisa Assis? Quais eram os pontos cru- que posteriormente foi relegada à Leonardo Boff - Embora tenha ciais de divergência com o alto margem”. É ela que nos faz sensí- vivido há mais de 800 anos, novo clero? Com qual modelo de igreja veis à paixão dos sofredores e aos é ele; nós somos velhos. Pois ele ele estava dialogando e, inclusi- gritos da Terra devastada pela vo- conseguiu o que nós dificilmente ve, se opondo? racidade industrialista atual. alçamos: nos relacionar com todas Leonardo Boff - O teólogo Jo- as coisas, mesmo as mais adversas seph Ratzinger4, num de seus es- como a morte, chamando-as com o IHU On-Line - O senhor diz que critos sobre o sentido da profecia doce nome de irmãos e irmãs. As- o contato com Francisco de Assis na Igreja, escreveu que o “não” sim conseguiu uma reconciliação, provoca uma crise profunda. Que de São Francisco ao tipo de Igre- como se fosse um habitante do pa- tipo de crise é essa? ja de seu tempo não poderia ser raíso terrenal. Com razão o grande Leonardo Boff - São Francisco mais radical. Mas seu “não” nun- 1 historiador Arnold Toynbee disse nos faz descobrir nosso distancia- ca é verbalizado, nunca faz uma em sua última entrevista: “Francis- mento da natureza, como se não crítica aberta ao sistema curial, 82 co, o maior dos homens que vive- fôssemos parte dela, mas sim seus especialmente sob Inocêncio III5, ram no Ocidente, deve ser imitado senhores e donos. Essa atitude está o Papa mais poderoso da história por todos nós, pois sua atitude é a na raiz da crise ecológica atual, da Igreja. Ele não falou nem criti- única que pode salvar a Terra e não pois ela se funda na falta de per- cou como fizeram os Reformadores aquela de seu pai, o mercador Ber- tencimento, da ausência de cui- do século XVI. Ele simplesmente 2 nardone”. O filósofo Max Scheler dado e de amor para com todas as deixou-se orientar pelo evange- coisas, pois elas têm um valor in- lho, lido em glossa, quer dizer, sem 1 Arnold Joseph Toynbee (1889-1975): foi trínseco em si mesmas. Comparar o comentários que lhe tiram a força um historiador britânico, cuja obra-prima é que somos e fazemos com o que fa- transformadora, mas em seu senti- Um Estudo de História (A Study of History), zia e era São Francisco nos cria má do original: viver seguindo o Cristo em que examina, em doze volumes, o proces- pobre, descoberto nos mais pobres so de nascimento, crescimento e queda das consciência e nos introduz numa civilizações sob uma perspectiva global. Em crise purificadora, pois nos convida dos pobres que são os hansenia- Um Estudo de História sugere que a civiliza- a mudar nosso estilo de vida. ção como um todo é a unidade adequada para o estudo da história, não o estado nacional, 4 Bento XVI, nascido Joseph Aloisius que ele entende como apenas uma parte de IHU On-Line - Como entender a Ratzinger (1927): foi papa da Igreja Católica um todo maior. Esta sua Obra, principalmen- mística de Francisco de Assis e a e bispo de Roma de 19 de abril de 2005 a 28 te do Volume I (Gênesis) ao VI, (Decadência), de fevereiro de 2013, quando oficializou sua influenciou a partir do final da década de sua relação com o meio ambiente? abdicação. Desde sua renúncia é Bispo eméri- 1980 a administração das grandes corpora- to da Diocese de Roma, foi eleito, no conclave ções, para as quais se avalia que seus concei- Leonardo Boff - São Francisco de 2005, o 265º Papa, com a idade de 78 anos tos tenham igual valor. Isto motivou um pro- conferiu centralidade ao coração. e três dias, sendo o sucessor de João Paulo grama conhecido como “Visão de Empresa”, Em seus escritos a palavra “cora- II e sendo sucedido por Francisco. (Nota da onde se determina a “Visão” (para que existe ção” ocorre 42 vezes sobre uma de IHU On-Line) e onde quer chegar a empresa), reforça-se a 5 Papa Inocêncio III (1198 – 1216): nasceu “Cultura” organizacional, e a “Motivação” “inteligência”; “amor”, 23 vezes em Anagni, Itália. Foi responsável pela or- (Spirit of winning), os três parâmetros pre- sobre 12 de “verdade”. Sabemos ganização da Quarta Cruzada contra a Terra sentes em todas as civilizações que se torna- hoje que é na razão cordial e sensí- Santa. Na Ingrlaterra, enfrentou o rei João e ram hegemônicas. (Nota da IHU On-Line) na França, Felipe II. Inocêncio III convocou 2 Max Scheler (1874-1928): conhecido como vel que se encontram a sensibilida- o Concílio IV de Latrão (1215), o 12º Concí- o filósofo dos valores. Nasceu em uma famí- lio Ecumênico, que consolidou a autoridade lia judaica. Na sua juventude converteu-se ao nique e Colônia. De suas obras destacamos O papal e realizou reformas eclesiáticas. Ele es- catolicismo, do qual se foi gradualmente dis- lugar do homem no Mundo. (Nota da IHU tudou teologia e direito canônico em Roma, tanciando depois de 1923, aproximando-se On-Line) completando seus estudos de teologia na Un- de um panteísmo inspirado em Spinoza e He- 3 Salamanca: Sigueme, 2005. (Nota da IHU viversidade de Paris e os de jurisprudência gel. Ensinou nas Universidades de Iena, Mu- On-Line) em Balonha. (Nota da IHU On-Line)

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nos, ter extremo enternecimento e quem se sente continuamente na pois tudo isso seria vivido com total compaixão para com todos os so- palma da mão de Deus. Atribui-se espontaneidade. fredores e jovialmente acolhendo a ele este dito: “eu possuo pouco as mais duras adversidades que a e o pouco que possuo é pouco”. IHU On-Line - Como Bergoglio e pobreza radical lhe comportava. Este projeto de vida, se vivido Ratzinger compreendem a figura Ele inaugurou uma Igreja na base, hoje, criaria um mundo terno e de São Francisco de Assis? fraterno, amigo da vida, com uma junto com os pobres, pregando pe- Leonardo Boff - Joseph Ratzin- las estradas ou nas praças, rezando sobriedade compartida, numa aura de fraternidade universal, entre ger, em sua tese sobre o conceito as horas canônicas debaixo de ár- de história em São Boaventura, es- as pessoas e com todos os seres da vores e teatralizando passagens bí- creveu como introdução ao tema natureza, abraçados como irmãos e blicas como fez com a celebração uma das mais belas páginas que já irmãs. do Natal, inventando o presépio. se escreveram modernamente so- Queria que seus seguidores fossem bre a figura singular de São Fran- “menores”, categoria social dos cisco. Creio que os franciscanos sem poder e que não aceitassem ainda não souberam valorizar tais nenhum cargo eclesiástico. Deviam reflexões. Bergoglio tomou o nome “in plano subsistere”, quer dizer, Foi exatamente de Francisco pelo fascínio que “manter-se no nível do chão” onde sempre exerceu sobre ele a figura todos os anônimos e invisíveis, o isso que fez São deste santo especial e por causa povo em geral, se encontram. Francisco: para do amor aos pobres e à natureza. Em sua encíclica, lhe dedica três IHU On-Line - Quais os concei- ele o evangelho grandes parágrafos (nn.10, 11 12) tos-chave, as ideias e concepções e explica: “Acho que Francisco é o principais de Francisco de Assis? era tudo, não exemplo por excelência do cuidado Como compreender esses concei- como mero texto pelo que é frágil e por uma eco- tos nos dias de hoje? logia integral… o seu coração era universal” (n.10). Todo o texto da Leonardo Boff - São Francisco IHU On-Line - Como esses con- encíclica vem imbuído de coração, não era um teólogo. Nem era um ceitos podem ser atualizados para pois lê os dados da situação da Ter- clérigo. Esquecemos que era um nossos dias na busca por inspira- ra afetivamente e não apenas inte- 83 leigo. Só no final da vida deixou-se ção para sairmos do estado de lectualmente. Isso é o modo de São ordenar diácono para poder con- crise? Francisco ler o mundo a partir de tinuar a pregar já que havia um um sentimento profundo de união. decreto papal que os leigos não Leonardo Boff - Entre muitas ou- podiam mais pregar como se fa- tras coisas, considero fundamen- zia antes. Mas à condição de que a tal, para sairmos da atual crise, IHU On-Line - Como compre- este ofício não caberia nenhum be- resgatarmos os direitos do coração. ender a relação entre Francisco nefício. As virtudes principais que Quer dizer, sermos não apenas por- e Clara de Assis? Qual o papel de vivia com grande jovialidade era a tadores da inteligência racional, Clara na história e na “doutrina” extrema simplicidade, acolhendo a mas junto com ela e de forma mais de Francisco? todos assim como eram; depois era profunda, da inteligência cordial Leonardo Boff - A relação entre a grande humildade tendo-se a si ou sensível. Sentir, como diz o Papa Clara6 e Francisco é uma das mais como o menor e servidor, irmãozi- em sua encíclica sobre “o cuidado nho de todos, o fratello; principal- da Casa Comum”, como próprias as 6 Clara de Assis ( 1193-1253), foi a fun- mente vivia uma radical pobreza dores da Terra e o padecimento dos dadora do ramo feminino da ordem fran- como poverello. Mas para ele, a ciscana, a chamada Ordem de Santa Clara outros irmãos e irmãs. Agirmos a (ou Ordem das Clarissas). Pertencia a uma pobreza não consistia em não ter, partir do coração que ama, que se família nobre e era dotada de grande beleza. mas na capacidade de dar, e mais identifica com o outro, que cultiva Destacou-se desde cedo pela sua caridade e uma vez dar, até se espoliar de respeito para com os pequenos, tanto que, ao a compaixão e cuidado para com deparar-se com a pobreza evangélica vivida tudo. Tinha consciência de que en- todas as coisas, como cuidava São por São Francisco de Assis, foi tomada pela tre as pessoas se interpõem os bens Francisco. Ele tirava da estrada as irresistível tendência religiosa de segui-lo. e os interesses. Enfrentando a oposição da família, que pre- minhocas para não serem pisadas tendia arranjar-lhe um casamento vantajoso, Remover tais coisas permitia o e pedia que até as ervas silvestres aos dezoito anos Clara abandonou o seu lar encontro direto e imediato, olho a tivessem o seu canto reservado nas para seguir Jesus mais radicalmente. Para hortas, porque elas também mere- isto foi ao encontro de São Francisco de Assis olho, corpo a corpo para colocar- na Porciúncula e fundou o ramo feminino da -se junto ao outro como irmão. Ser cem viver e louvam a Deus de seu Ordem Franciscana, também conhecido por radicalmente pobre para poder ser modo. Se tivéssemos na humanida- “Damas Pobres” ou Clarissas. Viveu na prá- plenamente irmão: este é o sentido de tais sentimentos, não precisa- tica e no amor da mais estrita pobreza. Di- versos episódios da vida de Santa Clara e São da pobreza franciscana. E por fim, ríamos falar em ecologia nem em Francisco compõem os Fioretti de São Fran- era a permanente alegria, como direitos das pessoas e da natureza, cisco. Escritos muitos anos após a morte de

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belas e puras da história do cris- ao dizer: “A reação de Francisco São Francisco à sociedade atual”. tianismo. Ele possuía três amores: ultrapassava uma mera avaliação Tentei assumir o propósito da Igre- amor ao Cristo crucificado, amor intelectual ou um cálculo econô- ja latino-americana, expresso em aos pobres e amor à irmã Clara. mico, porque, para ele, qualquer Medellín7 e Puebla8, que entendeu Era um verdadeiro amor entre um criatura era uma irmã, unida a ele a pobreza não como algo natural homem e uma mulher, mas trans- por laços de carinho; por isso sen- e dado, mas como resultado de figurado por um projeto comum: tia-se chamado a cuidar de tudo o relações injustas entre as pessoas servir ao Crucificado e aos crucifi- que existe” (n.11). Como dizíamos, e suas instituições. Fez-se a opção cados da história. O eros desabro- Francisco punha coração em todas preferencial pelos pobres, con- chava no agape sem perder o seu as coisas, por isso as amava e sen- tra a pobreza e a favor da justiça fascínio e beleza. Entre eles havia tia-se unido a elas como membros social. Desta opção nasceu a teo- afeto e carinho que não escondeu de uma grande família terrenal e logia da libertação. Dom Helder9 durante toda a sua vida. Clara se- cósmica. guramente o ajudou a ser tão ter- 7 Segunda Conferência Geral do Epis- copado Latino-americano: realizou-se no e amoroso para com todas as IHU On-Line - Em seu livro “São em Medellín, na Colômbia no período de 24 criaturas. Francisco de Assis – Ternura e Vi- de agosto a 6 de setembro de 1968. A Confe- rência foi convocada pelo Papa Paulo VI para gor”, a história do santo é reve- aplicar os ensinamentos do Concílio Vaticano IHU On-Line - Em que medida a lada tendo cinco aspectos como II às necessidades da Igreja presente na Amé- visão de Francisco de Assis com pano de fundo. Quais são, como rica Latina. A temática proposta foi “A Igreja relação ao mundo, os seres hu- na presente transformação da América Lati- se relacionam? Como esses aspec- na à luz do Concílio Vaticano II”. A abertura manos e a Igreja dialogam com o tos se atualizam nos dias de hoje? da Conferência foi feita pelo próprio Papa pontificado de Bergoglio? que marcou a primeira visita de um pontífice à América Latina. Durante os três anos de du- Leonardo Boff - O Papa Francis- ração do Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, co colocou o evangelho no centro os padres conciliares latino-americanos man- de sua pregação e de seus gestos tiveram várias reuniões do CELAM em Roma. Ali brotou a idéia de propor ao Santo Padre exemplares. Foi exatamente isso A razão sozinha a realização da segunda Conferência Geral. A que fez São Francisco: para ele Conferência foi inaugurada por Paulo VI na o evangelho era tudo, não como não dá conta de catedral de Bogotá, no dia 24 de agosto, por ocasião do XXXIX Congresso Eucarístico In- mero texto, mas como fonte de nossos proble- ternacional. (Nota da IHU On-Line 84 inspiração, de humanização, de 8 Terceira Conferência Geral do Epis- espiritualização e de identificação mas fundamen- copado Latino-Americano: realizou-se com o Jesus histórico, a ponto de em Puebla de los Angeles no período de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. Foi re- os textos originários atestarem tais, porque ela alizada em Puebla de los Angeles, no Méxi- que chegou a receber as chagas apenas vê, ana- co, em 1979. No fim de 1976, no transcurso de Cristo em seu próprio Corpo. da XVI Assembléia do CELAM, celebrada em San Juan de Puerto Rico, Sebastião Cardeal Não sem razão foi chamado “o lisa e calcula Baggio, então prefeito da Congregação para primeiro depois do Único (Jesus os Bispos e presidente da Pontifícia Comissão Cristo)” ou até de “o último cris- Leonardo Boff - Alguns dizem para a América Latina, anunciou que Paulo VI tão”. A simplicidade, a bondade, tinha a intenção de convocar a III Conferên- que de todos os meus livros (já são cia Geral. Os bispos acolheram com entusias- a ternura e a proximidade que o perto de cem) este é o meu me- mo a notícia e iniciaram os trabalhos prepa- Papa Francisco revela em sua vida, lhor. Que outros o digam, não eu. ratórios ao evento eclesial. Paulo VI apontou bem traduzem o espírito de São Mas tentei, por ocasião da cele- como documento de referência a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de 1975, na Francisco. bração de 800 anos de seu nasci- qual o pontífice analisava o que é evangelizar, mento, destacar cinco pontos que qual é o conteúdo da evangelização, quem são mostrassem sua atualidade para o os destinatários da evangelização, quem são IHU On-Line - Como compreen- seus agentes e que espírito deve presidi-la. der Laudato Si’ desde a perspec- mundo de hoje. O primeiro é “a Paulo VI convocou oficialmente a III Confe- tiva de Francisco de Assis? De que irrupção da ternura e da convivia- rência no dia 12 de dezembro de 1977, sob o forma a ideia de Ecologia Integral, lidade, como mensagem à cultura tema: “Evangelização no presente e no futu- atual”. É a tentativa de opor ao ro da América Latina”. O Papa João Paulo II conceito central da Encíclica, inaugurou a III Conferência pessoalmente, aparece no legado de Francisco paradigma moderno, fundado no com um discurso lido no Seminário Palafo- de Assis? poder como dominação, que tantos xiano de Puebla. Essa foi a primeira viagem males trouxe às grandes maiorias, deste Papa à América e despertou o interesse de multidões. Seu discurso inaugural ditaria Leonardo Boff - O próprio Papa o paradigma do cuidado, da ternu- o esclarece em sua encíclica so- a marcha dos trabalhos da reunião eclesial. ra, da convivialidade com todas as (Nota da IHU On-Line) bre “o cuidado da Casa Comum”, criaturas, não as dominando, mas 9 Dom Helder Câmara (1909-1999): arce- bispo lembrado na história da Igreja Católica ambos, é dificil atestar a correção destes re- estando ao pé delas, como irmão no Brasil e no mundo como um grande de- latos, mas, com certeza, retratam bem o espí- menor. fensor da paz e da justiça. Foi ordenado sa- rito de ambos e os primeiros acontecimentos cerdote aos 22 anos de idade, em 1931. Aos quando da criação das Ordens Franciscanas. O segundo ponto é “a opção 55 anos, foi nomeado arcebispo de Olinda e (Nota da IHU On-Line) pelos pobres como mensagem de Recife. Assumiu a Arquidiocese em 12-03-

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sempre repetia que foi São Fran- Tento mostrar a sua estratégia que dom de Deus. Francisco bem o cisco o verdadeiro fundador des- era de renúncia total a qualquer sabia, por isso, embora para nós ta teologia, porque ele não teve tipo de violência. Procura conver- seja um santo exemplar, se consi- uma atitude assistencialista viven- sar com todos, até com o feroz derava o maior pecador do mun- do para os pobres. Ele mesmo se lobo e conquistar as pessoas pela do, “pequenino, pútrido e fétido, fez pobre, foi viver no meio de- bondade na convicção de que den- mesquinho, miserável e vil”, como les como pobre e a partir deles lia tro de cada um arde a chama divina diz numa de suas cartas. Ele podia toda a realidade, também a ecle- da benquerença entre todas as pes- dizer isso, pois não havia negado, sial. Estimo que esta perspectiva é soas. O quarto ponto aborda “como mas integrado tais realidades som- extremamente atual. São Francisco criou nas bases da brias, próprias de nossa condição Igreja daquele tempo uma igreja humana, numa síntese superior, O terceiro ponto trata “da liber- popular e pobre”, na qual prevale- repleta de luz, de enternecimento tação pela bondade: uma contri- ceu a fraternidade sobre o poder, a e de amorização. buição de São Francisco para uma palavra do evangelho sobre as re- libertação integral dos oprimidos”. flexões teológicas, a celebração da IHU On-Line - Que humanismo vida sobre a celebração de simples Francisco inaugura e como se ali- 1964, permanecendo neste cargo durante 20 ritos e a profunda piedade pelos anos. Na época em que tomou posse como ar- nha com os princípios cristãos? cebispo em Pernambuco, o Brasil encontra- atos e fatos do Jesus histórico, seu va-se em pleno domínio da ditadura militar. nascimento, sua cruz, sua presença Leonardo Boff - Francisco se Paralelamente às atividades religiosas, criou eucarística. projetos e organizações pastorais, destinadas transformou num arquétipo, isto é, numa referência de valor e de a atender às comunidades do Nordeste, que Por fim, como último ponto abor- viviam em situação de miséria. Dedicamos a ideal humano. Como tal não per- editoria Memória da IHU On-Line número do o tema “do processo de indivi- 125, de 29-11-2005, a Dom Helder Câmara, duação realizado biograficamente tence mais aos franciscanos nem publicando o artigo Helder Câmara: cartas por São Francisco”. Quer dizer, sequer aos cristãos. Ele pertence do Concílio, em http://bit.ly/ihuon125. Na à humanidade. É uma das figuras edição 157, de 26-09-2005, publicamos a como ele, de tudo o que lhe acon- entrevista O Concílio, Dom Helder e a Igreja tecia, a dimensão de sombra e a da qual nos podemos orgulhar e no Brasil, realizada com Ernanne Pinheiro, dimensão de luz, suas decepções dizer: está dentro das possibili- que pode ser lida em http://bit.ly/ihuon157. dades humanas desentranhar um Confira, ainda, a editoria Filme da Semana da e alegrias, seu sofrimento e mor- edição 227 da IHU On-Line, 09-06-2007, te, fazia caminhos de crescimento São Francisco escondido dentro de 85 que comenta o documentário Dom Helder cada um. Essa energia amorosa e Câmara – o santo rebelde. O material pode e de total integração. Desse pro- ser acessado em http://bit.ly/ihuon227. Veja cesso que combina ternura e vigor, terna, escondida em nós, nos faz também as entrevistas A amizade espiritual céu e terra, vida e morte irrompe mais humanos, mais compassivos, entre Paulo VI e Dom Helder Câmara, dispo- mais solidários e mais capazes de nível em http://bit.ly/1uFCR7r; e Dom Hel- sua irradiação de alguém que re- der Câmara: “A síntese da melhor tradição alizou sua humanidade de modo um amor incondicional. Não foi espiritual da América Latina”, ambas com exemplar. Criou um humanismo isso que queria Jesus de Nazaré? Ivanir Rampon e publicada nas Notícias do Seu propósito não era criar uma Dia, de 02-11-2014 e 08-09-2013, disponível terno e fraterno que vai além do em http://bit.ly/1S1nSy7. O processo de bea- mundo humano e que abarca toda nova religião, mas suscitar o ho- tificação e canonização foi recentemente au- a natureza e o próprio universo. mem e a mulher novos, feitos de torizado pelo Vaticano e iniciado na arquidio- cese de Olinda e Recife, sobre isso leia Dom Penetrou no seu Profundo radical amor, de compaixão, de entrega Helder Câmara. Hoje é a abertura oficial do onde se aninha Deus com sua gra- aos outros até o último sacrifício, processo de beatificação e canonização, pu- ça e seu amor. Poder ter chegado sempre com total desapego, com blicado nas Notícias do Dia, de 03-05-2015, disponível em http://bit.ly/1cL289g. (Nota até aquele ponto é mais que es- alegre jovialidade e com jovial da IHU On-Line) forço pessoal, é principalmente alegria.

■ LEIA MAIS... —— Francisco. O santo. Revista IHU On-Line, nº 238, de 01-10-2007, disponível em http://bit. ly/1O9fISS; —— Uma outra face de Francisco de Assis. Entrevista com Chiara Frugoni, publicada na revista IHU On-Line nº 469, de 03-08-2015, disponível em http://migre.me/rGVow; —— Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si’. “Nem a ONU produziu um texto desta natureza’’. Entrevista com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia, de 18-06-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://migre.me/rGVhA.

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#Crítica Internacional - Curso de RI da Unisinos A Primavera Árabe que se tornou Outono: o caso da Síria e suas implicações – para onde vamos?

Por Carla Holand

“Mesmo com o apoio dos Estados Unidos aos rebeldes sírios contra a manu- tenção do regime e o apoio, ao mesmo tempo, da Rússia à Assad, um espaço foi aberto para a projeção de poder de países locais, como a Arábia Saudita, Irã e Turquia. As alianças pré-estabelecidas com as potências externas correm perigo e vem questionadas em diversos pontos, aja vista a desconfiança de Riade em relação a Washington pela aproximação diplomática deste à Teerã, em razão das negociações sobre seu programa nuclear”, analisa Carla Holand. Carla Holand é graduada em Relações Internacionais pela UFRGS e tem mestra- do em Estudos Estratégicos pela mesma instituição. Atua como docente de RI da Unisinos e tendo trabalhado também como professora da UFSM. E-mail carlaho- [email protected] Eis o artigo.

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Desde o início de 2011, quando dois governantes tre os Estados sobre a ordem institucional doméstica árabes de longa data1 foram derrubados por levantes adequada. Hoje, a competição sobre o predomínio no populares, o Mundo árabe e o Oriente Médio entraram Golfo e no Levante está ligada à competição entre os em um período de turbulência. E, ao que parece, ne- diferentes modelos do Islã político, a saber: o modelo nhum dos países da região deverá permanecer into- salafista wahhabita saudita, a abordagem mais- mo cado por essa longa onda, que poderá ter duração de derna da Irmandade Muçulmana, o modelo islâmico- uma a duas décadas. -democrático do AKP da Turquia, e o exemplo iraniano Estas turbulências surgem a partir de uma mistura de de uma República Islâmica. competições, tanto de caráter doméstico, quanto ge- O que fazer, então, em meio a este difícil cenário de opolítico. Em nível local, é possível se ver lutas contí- instabilidade, no qual ausência de participação políti- nuas de poder e mudanças de alianças entre a maioria ca – a exemplo do reino saudita – de um lado, e lutas demográfica composta por jovens, a classe média edu- por mudanças políticas e sociais, de outro, se esbar- cada e elites burocráticas estatais, assim como islami- ram em âmbito regional em uma luta pelos países por tas e não-islamitas e entre diferentes escolas do Islã projeção de poder? politizado. Dois prolongados conflitos geopolíticos – o conflito israelo-palestino e a luta pelo predomínio na Tomemos tão somente o caso da Síria. O regime sírio região do Golfo Pérsico – permanecem não resolvidos de Bashar al-Assad manejou e conseguiu sobreviver à e altamente explosivos. Ainda uma terceira questão, Primavera Árabe. Contudo, através de uma guerra civil o conflito na Síria e pela Síria, pode realmente aba- que se estende desde 2011, o Estado sírio caiu em um lar as fundações do sistema estatal no Oriente Árabe. extenso outono desde então, com impactos sentidos Adicione-se a isso uma luta ideológica renovada en- em toda a região e fora dela. A Síria, dessa forma,

1 Zine el-Abdine Ben Ali (Tunísia) e Hosni Mubarak (Egito). (Nota da tornou-se o objeto e ponto focal da dinâmica geopolí- autora) tica regional.

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...o conflito na Síria e pela Síria, pode realmente abalar as fundações do sistema estatal no Oriente Árabe

Devemos perceber que isso se deveu a fatores tanto sua revolução em 2011 foi enfraquecido, bem como a de ordem externa quanto interna. A ausência de envol- Irmandade Muçulmana Egípcia e seus partidos aliados vimento externo direto desde a explosão do conflito em outras localidades do Oriente Médio. Essa ques- sírio por parte de grandes potências como Estados Uni- tão acabou por reforçar a influência regional saudita e dos, União Europeia, Rússia e China, denota um novo dos emirados, limitou a influência turca e impactou na momento na região. Washington não possui o mesmo composição da liderança da oposição Síria. Em relação ímpeto de uma década atrás de implantar regimes ao Irã, o país além de conseguir sobreviver às sanções democráticos e valer-se de intervenção militar direta impostas pela ONU, Estados Unidos e União Europeia, para garantir, além de tudo, suprimentos energéticos foi capaz de manter seu programa nuclear e um pro- importantes. Isso se deve, dentre outros fatores, a no- cesso diplomático com o P5+1, bem como fortaleceu vas fontes energéticas como o gás de xisto e a produ- sua influência no enfraquecido e dividido Iraque e tem ção de petróleo não convencional, tornando os Estados ajudado a manter seu aliado sírio no poder. É também Unidos cada vez mais independente de importações da provável que qualquer transição de poder que possa região. ocorrer em Damasco, terá de considerar a influência iraniana. Não há dúvida de que o desengajamento das gran- des potências dá à arena regional uma prevalência im- Porém, há um ponto importante a ser considerado portante e que até então fora de menor envergadura. em relação a estas questões até aqui apresentadas: Mesmo com o apoio dos Estados Unidos aos rebeldes a crescente polarização confessional da política re- sírios contra a manutenção do regime e o apoio, ao gional, o que afeta tanto Teerã quanto Riade, alas- mesmo tempo, da Rússia à Assad, um espaço foi aber- trando-se por toda a região. Essa polarização recai to para a projeção de poder de países locais, como a na confrontação sunita-xiita. A crescente disputa por Arábia Saudita, Irã e Turquia. As alianças pré-estabe- influência nas questões políticas da região pela sunita 87 lecidas com as potências externas correm perigo e es- Arábia Saudita e o xiita Irã é um ponto que vem, sem tão sendo questionadas em diversos pontos, aja vista dúvida, influenciando as relações internacionais do a desconfiança de Riade em relação a Washington pela Oriente Médio no momento, inclusive o conflito sírio. aproximação diplomática deste à Teerã, em razão das A Arábia Saudita apoia os movimentos contra o regime negociações sobre seu programa nuclear. de Assad, mas certamente irá preferir ver um regime secular autoritário ou democrático emergir na Síria do Em relação a estas duas potências regionais – Ará- que um Estado liderado pela Irmandade Muçulmana ou bia Saudita e Irã – seus modelos de regime com base um governo de caráter radical como o Estado Islâmico, no Islã competem por primazia na região, juntamente ainda que de cunho sunita2. O Irã por sua vez, nunca com o modelo turco do AKP. Todos estes, com a Pri- esteve com tantas oportunidades de projeção de po- mavera Árabe, passam a se apresentar como alterna- der e de possível liderança na região. Contudo, a ques- tivas de possíveis formas de novos regimes políticos tão é se os países árabes adotariam um regime como o na região. As demandas sociais, políticas e econômicas de Teerã e, ainda mais, um de caráter xiita3. Para isto pelas populações se tornaram presentes desde então, temos uma resposta: dificilmente. ainda que muitas tenham sido abaladas pela volta de regimes com baixa participação popular – caso do Egi- 2 O Estado Islâmico é uma organização jihadista de base sunita no Levante, que, além de outras ações na região, ajudou, a partir de 2011, to e de seu breve primeiro governo eleito democrati- na criação da Frente al-Nuzra, grupo de combate forte e de oposição ao camente, que elevou pela primeira vez a Irmandade regime na Guerra Civil Síria. (Nota da autora) 3 O presidente Bashar al-Assad da Síria é alauíta, uma corrente consi- Muçulmana ao poder, e que foi deposto por um golpe derada, por conveniência, de tradição xiita no Islã. Em contrapartida, militar. O soft power conquistado pelo Egito através de a maioria da população da Síria é de origem sunita. (Nota da autora)

Expediente Coordenadora do curso: professora doutora Gabriela Mezzanotti

Editor da coluna: professor doutor Bruno Lima Rocha

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PUBLICAÇÕES O ambientalismo em três escalas de análise

Cadernos IHU em sua 51ª edição publica o artigo de Fabiano Quadros Rückert, licenciado, mes- tre e doutorando em História pela Unisinos, professor na rede pública municipal de São Leopoldo, integrante do GT História Ambiental – RS da Associação Nacional de História - ANPUH e colabora- dor do Conselho Editorial da Revista Latino-Americana de História. Atualmente pesquisa a história da gestão das águas no Rio Grande do Sul. Do que falamos quando falamos em ambientalismo? Esta é a questão central proposta pelo texto, que, de acordo com seu autor, foi escrito para um público de leitores consciente da impor- tância de uma reflexão sobre a história do ambien- talismo. “Como toda história, ela pode ser narrada a partir de múltiplas perspectivas. Na bibliografia produzida por autores de diferentes formações acadêmicas, encontramos uma pluralidade de in- terpretações indicando a existência de dúvidas e explicações incompletas sobre o que provocou o surgimento de movimentos sociais voltados para a preservação da natureza. A bibliografia também potencializa dúvidas sobre as relações do ambien- talismo com as instituições políticas tradicionais e explora as mudanças sociais decorrentes da pro- blemática ambiental e das suas diferentes formas 89 de percepção. Aceitar a existência de dúvidas e de uma pluralidade de interpretações é uma condição necessária para os interessados no estudo das in- terações entre o ser humano e o meio ambiente”, explica Rückert. Segundo o historiador, no caso específico do ambientalismo, é importante ressaltar que, an- tes mesmo da construção conceitual do termo, o antropocentrismo, a lógica cartesiana e a ra- cionalidade econômica já estavam configurados como elementos fundamentais do comportamento humano. “Neste sentido, proponho interpretar o ambientalismo como um pensamento dissidente e pretendo explorar os sinais da sua dissidência na bibliografia existente sobre o tema”, salienta. O conteúdo do artigo foi organizado em três tó- picos que sinalizam variações na escala de abordagem do tema: o primeiro destaca a dimensão científica do ambientalismo explorando os seus vínculos epistemológicos com a Economia Eco- lógica e com a Ecologia Política; o segundo contempla estudos que apresentam interpretações sobre o ambientalismo no Brasil; o terceiro apresenta um histórico do movimento ambientalista no Vale do Rio dos Sinos. “Procuro explorar a polissemia do ambientalismo, identificando pontos de ligação entre as três escalas de análise usadas neste trabalho”, aponta Rückert. Confira a edição digital do artigo em http://bit.ly/1FJb3G1 Esta e outras edições dos Cadernos IHU têm suas versões digitais disponíveis no link http://bit.ly/1C1VKEc, e também podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU ou solicitadas pelo endereço [email protected]. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213.

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PUBLICAÇÕES Vaticano II e a Escatologia Cristã. Ensaio a partir de leitura teológico- pastoral da Gaudium et Spes

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Cadernos Teologia Pública, em sua 100ª edição, traz o artigo O Vaticano II e a Escatologia Cristã. Ensaio a partir de leitura teológico-pastoral da Gaudium et Spes, de Afonso Murad, FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia). O artigo visa mostrar a contribuição da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, para a escatologia contemporânea. O autor escolheu como método um estudo comparativo entre o ensino de um catecismo tradicional cató- lico, anterior ao Concílio (CAULY), referente aos novíssimos, e os artigos do referi- do documento conciliar. Foram escolhidos como parâmetro os temas: antropologia dual, morte e ressurreição, juízo e nova criação, centralidade cristológica, tensão entre ação humana e vinda do Reino. Com isso, há critérios para avançar na es- catologia, além de subsidiar a elaboração de textos pastorais acerca deste tema fundamental para a vida cristã. Confira a edição digital do artigo em http://bit.ly/1OPTjbI. Esta e outras edições dos Cadernos IHU têm suas versões digitais disponíveis no link http://bit.ly/1C1VKEc, e também podem ser adquiridas diretamente no Ins- tituto Humanitas Unisinos - IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos. br. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213.

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Retrovisor Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

O Bóson de Higgs e a elegância invejável do Universo

Edição 405 – Ano XII – 22-10-2018 Disponível em http://bit.ly/1Q0tS7N Estranho, belo, assimétrico, fértil e cada vez em mais acelerada expansão. Assim os cientistas entrevistados pela IHU On-Line desta semana se referiram ao Universo analisando o seu surgimento, bem como a recente confirmação da existência do Bóson de Higgs. Envolto em uma polêmica em função da duvidosa nomenclatura “Partícula Deus”, o Bóson inspirou a presente edição da revista, e trouxe ao debate as origens do cosmos, os grandes desafios da Física e mostrou que há muito mais perguntas do que respostas quando procuramos saber mais sobre o Universo.

Há vida fora da terra? As contribuições da exobiologia 91 Edição 172 - Ano VI – 20-03-2006 Disponível em http://bit.ly/1WA7GFs O tema de capa do número 172 da IHU On-Line inspirou-se no curso de exten- são universitária “Vida Extraterrestre II: Ufologia, Ciência ou Pseudociência?”, promovido pela Unisinos em 2006. Com a assessoria do professor Luiz Augusto Leitão Silva, a edição discute assuntos abordados nesse curso de extensão e no “I Workshop de astrobiologia”, realizado pela Universidade Federal do Rio de Janei- ro – UFRJ no mesmo ano. A astrobiologia ou exobiologia é um campo interdiscipli- nar que combina aspectos da astronomia, biologia e geologia, e que considera a origem da vida na Terra e em outros lugares. Além do professor da Unisinos Luiz Augusto Leitão Silva, contribuem para o debate David Grinspoon, Jorge Quillfel- dt, Robert Zubrin, Gustavo Porto de Mello, Hélio Rocha Pinto, Emanuele Kuhn e Salvador Nogueira.

Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabillis

Edição 135 – Ano IV – 04-04-2005 Disponível em http://bit.ly/1OhjlI6 Em 1905, Albert Einstein, um jovem físico recém formado, funcionário do escri- tório de patentes em Berna, publicou quatro trabalhos que tiveram um impacto formidável, não apenas na Física, mas também em todos os ramos do saber. Em 2005, celebramos o Ano Internacional da Física que comemora os 100 anos deste passo importante da humanidade na compreensão das leis que regem o nosso universo. A Unisinos celebrará o Annus Mirabillis de 16 a 19 de maio, realizando o Simpósio Internacional Terra Habitável: Um desafio para a humanidade.

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A desigualdade brasileira da renda do Mérito e herança na estrutura das trabalho e da apropriação do capital desigualdades brasileiras

05 de outubro – segunda-feira 20 de outubro – segunda-feira Hora: 19h30min Hora: 19h30min Conferencista: Prof. Dr. Márcio Pochmann – Universidade Conferencista: MS Antônio Albano de Freitas – Fundação Estadual de Campinas – UNICAMP de Economia e Estatística – FEE e Universidade Federal Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU do Rio de Janeiro – UFRJ Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU

Políticas públicas de regulação do capital e possibilidades para um Estado Os ricos e a desigualdade de renda no social no Brasil Brasil – IHU ideias

29 de outubro – segunda-feira 11 de novembro – segunda-feira Hora: 19h30min Hora: 19h30min Conferencista: Prof. Dr. Flavio Comim – Universidade Fe- Conferencista: Prof. Dr. Marcelo Medeiros – UnB e Ipea deral do Rio Grande do Sul – UFRGS Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU

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