A Construção Midiática De Beth Carvalho Como Madrinha Do Samba 1
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011 Do Violão ao Pandeiro: A Construção Midiática de Beth Carvalho como Madrinha do Samba 1 Kelly MARTINS 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ RESUMO Existe uma compreensão de que Beth Carvalho constituiu sua carreira como madrinha do samba, por revelar ou resgatar talentos, sejam estes intérpretes ou compositores de samba. Quebrou barreiras entre a MPB e o samba, conseguindo que este gênero musical atingisse maior prestígio na indústria cultural. O presente artigo faz apontamentos das formas como se deu essa construção midiática de Beth Carvalho como “madrinha” e sua transição como cantora branca, de classe média, iniciada na bossa nova e formada na MPB, para o universo do samba, no qual conquistou enorme autoridade e reconhecimento do público. Aponta-se ainda, como questões relacionadas à raça, classe social e ao gênero são relevantes para a construção da imagem dessa artista como madrinha do samba e de que modo esses fatores possibilitaram sua “transição musical”. PALAVRAS-CHAVE: Samba; Apadrinhamento; Indústria Cultural; Critérios Estéticos. INTRODUÇÃO O show Rosa de Ouro “foi um musical imaginado, fomentado e construído a partir das experiências ocorridas no Zicartola” (DINIZ, 2010, p.166). Com previsão de ficar um mês em cartaz, o espetáculo dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, estreado em 1965, no Teatro Jovem do Rio, ficou quase dois anos em cartaz no Rio de Janeiro e depois percorreu outras cidades do Brasil, também com grande sucesso de crítica e público. Este espetáculo mudou a vida de Beth Carvalho. Clementina de Jesus era uma das integrantes deste show e foi ao vê-la cantar, que Beth Carvalho passou não só a entender o samba, como tomou a decisão de fixar-se nesse gênero musical 3. Beth Carvalho assumiu um lugar de mediação entre os campos midiáticos e do samba. Sua trajetória é, até certo ponto, original. Branca, escolarizada, de classe média e 1 Trabalho apresentado no GP Comunicação e Culturas Urbanas do XI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista CAPES, professora substituta do IFRJ, e-mail: [email protected] 3 Entrevista de Beth Carvalho dada ao Programa do Jô, transmitido pela TV Globo, em 17/05/2011. 1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011 revelada num gênero musical consumido por setores intelectualizados da sociedade, ela ganhou visibilidade em outro, o samba. O interessante é que isso se deu no final dos anos 1960, quando o samba ainda tinha o estigma de música de “morro”. Isto porque suas letras e músicas eram ainda dominadas majoritariamente, mas não exclusivamente, por homens negros, oriundos do subúrbio, com formação escolar precária e poder aquisitivo baixo (VIANNA, 1995). Frequentemente, em vários momentos, percebe-se que o samba é relegado a um plano de prestígio inferior e qualificado como prática subalterna (...) Neste sentido há uma inter-relação muito estreita entre a questão étnica e social (grifo meu). Umbilicalmente identificado como música criada por setores marginalizados da sociedade, no seio de uma população majoritariamente negra ou mulata, o samba percorreu, no decorrer do século XX, um longo caminho de idas e vindas para se afirmar no mercado e conquistar prestígio. O preconceito contra o samba é uma face do preconceito que as classes sociais de maior poder econômico nutrem com relação aos setores mais humildes da sociedade. (TROTTA, 2011, p. 248) Tendo Beth Carvalho uma diferenciação tanto estética quanto social do “estereótipo” da maioria dos sambistas, são levantados alguns questionamentos: Quais os fatores estéticos e sociais que permitiram ou ajudaram seu ingresso ao mundo do samba? Representa a trajetória de Beth Carvalho, interesses da indústria cultural (especialmente, a indústria fonográfica, seus produtores e a crítica especializada) de obter numa única figura, a síntese entre as duas principais vertentes musicais, a MPB 4 e o samba, que nos anos 1960-1970 davam significado a expressão “ser brasileiro”? Qual o peso e a importância das diversas ações exercidas por críticos culturais e produtores musicais na construção da imagem pública de Beth Carvalho como madrinha do samba? O PODER DA PALAVRA Nas palavras são encontradas diversas vozes: perto, longe, fortes e ainda as que ecoam harmoniosamente e ao mesmo tempo. No caso de Beth Carvalho, as palavras realmente tiveram poder e várias falavam positivamente e de forma concomitante sobre a artista que acabava de surgir. 4 A MPB se configurou na segunda metade dos anos 1960 como um gênero musical no qual cabia a produção de cantores e compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Edu Lobo e Elis Regina. Além disso, é importante destacar que a construção dessa nomenclatura e do gênero se deu na televisão, nos festivais da canção e nos programas musicais produzidos àquela época (NAPOLITANO, 2010). Nem o samba nem a música brega (cf. ARAÚJO, 2002) cabiam nessa definição. 2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011 Dedicado à Clementina de Jesus, Canto Por Um Novo Dia, lançado pela Tapecar, em 1973, foi o terceiro LP da carreira de Beth Carvalho e o primeiro de samba. Neste disco, Sérgio Cabral, renomado jornalista, escritor, compositor e crítico musical (abordava frequentemente questões sobre o samba), apresenta a artista: Se eu tivesse que inventar uma cantora, ela haveria (naturalmente) de ter uma voz muito bonita. Depois, eu a treinaria bastante para cantar bem, aprendendo os segredos da colocação da voz, das divisões, da respiração, da impostação, da naturalidade, essas coisas que se aprende na escola. Mais tarde, diria a ela que isso tudo não basta. Uma cantora não é um instrumento musical. É uma pessoa, um ser humano e é fundamental que isso fique claro quando canta. As emoções, a tristeza, a alegria, a depressão, a angústia, tudo isso que uma música popular propõe tem que ser transmitido na hora de cantar. Depende muito dela que a música não seja raspada de suas sensações quando é transmitida. E diria finalmente para cantar as coisas que vêm do povo. As músicas feitas pelos gênios do povo, impregnadas de talento e limpas das ambições comerciais e da neurose da novidade, tão próprias dos compositores de classe média. Sugeriria que ela servisse de ponte entre a cultura popular e o consumo, não deixando que o objetivo prejudicasse a origem. Teria que ser, portanto, uma cantora de muito talento. Beth Carvalho me poupou este trabalho. Ela já existe. (Sérgio Cabral, LP Canto Por Um Novo Dia , 1973) A fala de Sérgio Cabral demonstra como Beth Carvalho conseguia sintetizar os diversos aspectos da cultura musical consagrados pela crítica cultural. A cantora foi capaz de incorporar uma formação clássica com as “emoções” da música popular. Por conta disso, ela passou a ocupar um lugar de referência como “ponte entre cultura popular e o consumo”. Apenas três anos após dar início à sua carreira como sambista, novamente recebe elogios em seu disco, dessa vez do poeta, compositor e diplomata Vinicius de Moraes. Ele inicia: Beth Carvalho, como o nome indica... Repito: Beth Carvalho. Pra bom entendedor, duas palavras bastam. Só podia ser nome de moça carioca, meiga e bonita, e cheia de bossa pra cantar samba. Não deu outra coisa. Beth Carvalho é um encanto de pessoa, e sua vocação para o samba é absolutamente visceral. Estudou piano e violão, é claro, e praticou balé, arte na qual é amarrada e de que sofre frequentes recaídas. Poderia ter dado uma boa bailarina moderna, se quisesse, -e não houvesse no meio do seu caminho não a pedra de Carlos Drumond, mas uma maravilhosa pedra-90, esta doce figura de sambista e ser humano que se chama Nelson Cavaquinho. Porque Beth e Nelson Cavaquinho são como unha com carne. Ela não faz 3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Recife, PE – 2 a 6 de setembro de 2011 nada onde ele não esteja representado. (Vinicius de Moraes, LP Mundo Melhor , 1976). Essas palavras estão no LP Mundo Melhor , lançado em 1976, pela RCA Victor. Foram três colunas inteiras, ocupando toda a contracapa do disco. Certamente tais palavras contribuíram para o engrandecimento da carreira de Beth Carvalho, recém- chegada ao samba. Normalmente, quem toma posse da palavra tem conhecimento do poder que nela há. “A palavra é o modo mais puro e sensível da relação social”. (BAKHTIN, 2004, p.36) Sérgio Cabral e Vinicius de Moraes além de grandes conhecedores musicais, são formadores de opinião, têm o poder da palavra 5. Pensando na palavra como ocupando uma posição de signo social e tendo poder de “transformar pensamentos”, até onde essas opiniões influenciaram a construção midiática de Beth Carvalho como madrinha do samba? Foram dois depoimentos de “peso”, sendo um destes, dado logo no início de sua carreira como sambista. São esses “testemunhos” uma forma de apadrinhamento? Observando esse rompimento da bossa nova e transição da MPB para o samba, é que se torna interessante discutir a partir desse artigo, as questões que influenciaram a obtenção desse título. Foi a partir da mídia, produtores culturais, especialistas e pesquisadores na área musical ou mesmo pelos seus “afilhados”? UNIVERSO DO SAMBA E AS RELAÇÕES DE PODER Ao reformular a noção de indústria cultural, Theodor Adorno (1987) esteve interessado em destacar a articulação dos mais diferentes ramos da produção cultural num único sistema – a indústria cultural.