“O Povo É Tudo!”: Uma Análise Da Carreira E Da Obra Da Cantora Clara Nunes
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Clara Nunes (detalhe). “O povo é tudo!”: uma análise da carreira e obra da cantora Clara Nunes Silvia Maria Jardim Brügger Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com pós- doutorado na mesma instituição. Professora do Departamento de História da Uni- versidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Co-organizadora do livro O canto mestiço de Clara Nunes. São João del Rei: UFSJ, 2008. [email protected] * Esse artigo é resultado do “O povo é tudo!”: uma análise da carreira e projeto de pesquisa “O canto do Brasil mestiço: Clara Nu- da obra da cantora Clara Nunes* nes e o popular na cultura bra- Silvia Maria Jardim Brügger sileira”, financiado pela FA- PEMIG. 1 Clara Nunes nasceu em Ce- dro, distrito de Paraopeba, que, hoje, é a cidade de Caeta- nópolis. 2 Apesar de todos os movi- mentos que vinham modifi- cando o cenário da música brasileira, desde o aparecimen- RESUMO ABSTRACT to da Bossa Nova no final dos Clara Nunes, mineira de Paraopeba, Clara Nunes, from Paraopeba, Minas Ge- anos 50, em entrevista para essa pesquisa, Alaíde Araú- construiu sua carreira, entre as déca- rais, built her career between the 60’s and jo, divulgadora da Odeon, ex- das de 1960 e 1980, em um contexto 80’s, in a context marked by the brazilian plica que Altemar Dutra, tam- bém integrante do cast da gra- marcado, no Brasil, pelo regime mili- military regimen, by the affirmation of the vadora, estava no auge, daí a tar, pela afirmação da indústria cultu- cultural industry, by the growth of the intenção de projetar a carreira ral, pelo crescimento do movimento black movement and by the eclosion/ de Clara nessa linha. Cf. En- trevista concedida por Alaíde negro e, na música, pela eclosão e/ou expansion of many kind of music, as the Araújo a Josemir Teixeira e expansão de diversos gêneros/movi- “bossa nova”, the “iê-iê-iê”, the engaged Silvia Brügger, no Rio de Ja- neiro, em 06/05/2007. mentos, como a bossa-nova, o iê-iê-iê, music and the “tropicalismo”. In this 3 Segundo depoimento de Cla- a música engajada e o tropicalismo. article, I analyze how she built her pathway ra Nunes dado por volta de Neste artigo, procuro analisar como a in a look for identification with the brazilian 1973/74 e exibido no especial “Clara Guerreira”, exibido na cantora construiu uma trajetória que popular culture, what affected the direction TV Globo após a sua morte, pretendia uma identificação com a cul- of her career, after 1970, and the process of em 1983, ela conheceu Ataul- tura popular brasileira, o que passou reappropriation of her own familiar pho através de um ex-secre- tário dele, Jorge Santos, e as- pelo direcionamento de sua carreira, a tradition. I show how this notably political sim se tornaram grandes ami- partir de 1971, e por um processo de propose acquire a sense of religious go. Ataulpho, então, sempre lhe dizia: “Clarinha, canta reapropriação de sua própria tradição mission. samba! Você tem que cantar familiar. Mostro como essa proposta música brasileira. Você tem essencialmente política assumiu em uma voz tão boa!”. Depois disso, ele a acompanhou em Clara um sentido de missão religiosa. uma conversar com Milton PALAVRAS-CHAVE: Clara Nunes; cultu- KEYWORDS: Clara Nunes; brazilian popu- Miranda, diretor artístico da Gravadora Odeon e diretor de ra popular brasileira; música popular. lar culture; popular music. produção dos discos de Cla- ra. A gravação de “Você pas- sa, eu acho graça” decorreria, então, dessa intervenção do ℘ próprio Ataulpho. Outra refe- rência à interferência de Ataul- pho aparece na letra da músi- ca “Mineira”, composta por Paulo César Pinheiro e João Clara Nunes, mineira de Paraopeba1, construiu sua carreira, entre Nogueira, em homenagem a as décadas de 1960 e 1980, em um contexto marcado, no Brasil, pelo Clara, no verso em que o eu poético diz para a homenage- regime militar, pela afirmação da indústria cultural, pelo crescimento do ada: “Canta o samba verda- movimento negro e, na música, pela eclosão e/ou expansão de diversos deiro / Faz o que mandou mi- neiro / Oh! Mineira!”. Nunca gêneros/movimentos, como a bossa-nova, o iê-iê-iê, a música engajada e é demais lembrar que o tropicalismo. Em 1960, Clara ganhou a fase mineira do concurso “A Ataulpho era mineiro, de Voz de Ouro ABC” e classificou-se em terceiro lugar no certame nacio- Miraí. A letra dessa música, gravada por João Nogueira, nal. Com isso, assinou contrato com a Rádio Inconfidência de Belo Hori- faz parte do encarte do Lp de zonte e conquistou espaço na noite e na mídia da capital mineira, che- Clara Nunes “Canto das Três Raças”, de 1976. Por outro gando a ter, em 1963, um programa próprio na TV Itacolomi. lado, segundo a divulgadora Em 1965, tendo assinado contrato com a gravadora Odeon, mu- da Odeon, Alaíde Araújo ela dou-se para o Rio de Janeiro e gravou o seu primeiro LP, “A Voz Adorá- e seu marido, que era radia- lista, freqüentavam ambientes vel de Clara Nunes”, lançado em 1966. Neste disco, interpreta, princi- 192 ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 17, p. 191-204, jul.-dez. 2008 palmente, boleros, seguindo a intenção da gravadora Odeon de de samba e Clara esteve com 2 eles em rodas, ensaios de es- transformá-la em um “Altemar Dutra de saias” . Em seu segundo LP, de colas, como a Mangueira, 1968, passa a gravar sambas, a partir de sugestão de Ataulpho Alves3, e além de ouvir o gênero em sua emplaca seu primeiro sucesso com a música “Você passa, eu acho gra- casa. A partir daí, Alaíde te- Artigos ria percebido que Clara se ça”, que dá título ao disco. No entanto, ainda assim, sua carreira não adequaria muito mais a esse atinge maior projeção. Ela iria deslanchar de fato a partir de 1970, quan- estilo musical, passando a in- terceder dentro da Gravadora do a gravadora convida para produzi-la o radialista Adelzon Alves. pela mudança de seu reper- Apresentador de um programa na Rádio Globo, “O Amigo da Madru- tório. Cf. Entrevista concedi- gada”, dedicado, principalmente, ao samba, ele condiciona a aceitação da por Alaíde Araújo a Josemir Teixeira e Silvia do convite à total liberdade para dirigir a carreira de Clara. Daí em dian- Brügger, no Rio de Janeiro, em te, passa a conferir um direcionamento, uma linha de atuação para a 06/05/2007. cantora. Não bastava, para ele, que ela gravasse sambas4. Era preciso 4 O que, diga-se de passagem, Clara já fazia desde, pelo que construísse uma imagem de cantora ligada às raízes da cultura bra- menos, o carnaval de 1967, sileira. Assim, não apenas ela passa a gravar diferentes gêneros da tradi- quando fez sucesso com a marcha “Carnaval na Onda”, ção musical brasileira, como sambas, frevos, forrós e jongos, mas sua de José Messias e com o sam- forma de interpretar as músicas vai se modificando, deixando de lado ba “Porta Aberta”, de Jair impostações e vibratos presentes em suas primeiras gravações. Os arran- Amorim e Benedito Reis. Cf. , entre outras matérias jornalís- jos também sofrem alterações, incorporando progressivamente os ins- ticas, “Vida de Clara Nunes é trumentos de percussão típicos dos ritmos populares. Adelzon produz um Carnaval”. Revista Inter- valo, no. 204, 1966, p. 48; “Cla- seus LPs de 1971, 1972, 1973 e 1974, deixando de fazê-lo por ocasião do ra Nunes: Chega de Marme- rompimento do relacionamento afetivo que também os unia. Clara se lada”. Revista Intervalo, no. casa, em 1975, com o poeta e compositor Paulo César Pinheiro, que pas- 256, 1968. 5 sa, a partir de 19765, a produzir seus discos. A marca fundamental de O Lp “Claridade”, de 1975, que quebrou a marca de 500 sua carreira estava construída: a relação com os gêneros populares e a mil cópias vendidas foi pro- busca de ser uma “cantora popular brasileira”. duzido pelo violonista Hélio Delmiro, que trabalhava com O objetivo deste artigo é o de procurar entender como se deu a Clara e Adelzon nos discos construção desta carreira vinculada ao popular. Clara afirmava que não anteriores. queria ser reconhecida como uma sambista, mas sim como uma “canto- 6 Mesmo antes da gravação de 6 seu primeiro LP, sob a pro- ra popular brasileira” . Por isso, cabe perguntar: o que ela entendia por dução de Adelzon Alves, Cla- popular? Como este popular aparece em sua obra? São estas questões ra já afirmava que não queria que procurarei abordar neste texto. ser rotulada de sambista. Em suas palavras: “Eu não tenho nada contra o samba, pelo Clara Nunes e a cultura popular contrário, gosto muito. Mas detesto ser rotulada e é preci- so que entendam que sou ca- Adelzon Alves, em entrevista concedida para esta pesquisa, afir- paz de cantar tudo, do soul ma que sua intenção ao planejar a produção da carreira de Clara foi a ao baião.” Cf. “Após dez anos de luta e muito sucesso na vi- de construir uma “imagem audio-visual afro-brasileira”, que, segundo da, surge uma nova Clara Nu- ele, nenhuma cantora havia assumido depois de Carmem Miranda7. A nes”. Reportagem de Léa Pen- teado. Revista Amiga, 8/12/ vinculação com a cultura popular brasileira é explicitada também no 1970. Essa idéia reaparece em encarte do primeiro disco de Clara produzido por ele, em 1971: outras matérias jornalísticas, entre elas, “Clara Nunes: - Não sou uma sambista. Can- (...) Clara Nunes toma uma posição bem definida dentro das raízes da cultura popu- to músicas brasileiras de to- lar brasileira. dos os gêneros”. Jornal Cinco de Março, Goiânia, 07 a 13/ Neste LP o Sabiá num “brinca em serviço”.