PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Natália Rissinger Bonotto

A construção da empregabilidade para uma mulher transexual

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

São Paulo 2020

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Natália Rissinger Bonotto

A construção da empregabilidade para uma mulher transexual

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Mary Jane Paris Spink.

São Paulo 2020

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura:______

Data:______e-mail:______

Natália Rissinger Bonotto

A construção da empregabilidade para uma mulher transexual

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Mary Jane Paris Spink.

Aprovado em: ___/___/_____

BANCA EXAMINADORA:

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AGRADECIMENTO CNPq

Gostaria de agradecer ao CNPq pela bolsa concedida, ela foi essencial para a realização desta pesquisa. Processso nº 170222/2017-9

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Prof.ª Mary Jane Spink, pela acolhida, apoio e pela serenidade que lhe é tão característica e que me transmitiu segurança durante toda a construção desta pesquisa. Agradeço pelos inúmeros ensinamentos e pela paciência nesse processo de troca que é a aprendizagem. Agradeço à Prof.ª Elisa Rosa pelas importantes contribuições a este trabalho, com um olhar amplo e sensível ao tema da empregabilidade. Ao Prof. Emerson Rasera, ou melhor, ao Mera, pela generosidade, pelas trocas e pelos apontamentos tão pertinentes e importantes a esse tema “quente”, como ele mesmo definia. Mera, você é uma grande inspiração e um belo presente que o mestrado me deu! Obrigada à Prof.ª Leliane Gliosce Moreira, por ser uma constante fonte de inspiração e segurança, por tornar esse mestrado uma possibilidade real e sempre acreditar em meu potencial e capacidade. Minha eterna gratidão! À participante da pesquisa, pela disponibilidade e generosidade. Por compartilhar comigo seus valiosos conhecimentos e experiências, e pela oportunidade de ampliar minha visão de mundo. Agradeço a todos e todas colegas que conheci e convivi no NUPRAD/PUC-SP. Obrigada pela acolhida, pelas risadas e pelas ricas discussões. Foi muito bom aprender com vocês! À Carol, Luiza, Mônica e Marcela. Quanto carinho tenho por esse encontro! Obrigada por tantas risadas, parceria, desabafos e afeto! Malu, obrigada pelas inúmeras leituras e contribuições, por sempre me transmitir segurança e dividir seu olhar claro e objetivo comigo. Vocês são mulheres pesquisadoras potentes que me inspiram a realizar um trabalho ético e socialmente responsável. À Estela, pelo afeto, segurança e carinho com que cuidou de minha filha para que eu pudesse escrever este texto. À minha mãe, Ireni, por ser meu porto seguro, fonte inesgotável de afeto e amparo para absolutamente todas as horas. À minha irmã, Alana, pela mulher que é e que sempre me ensinou o que é ser justa e ética, ao mesmo tempo leve e alegre. À minha irmã, Morgana, pelo companheirismo, parceria, inspiração de força e afeto. Obrigada pelo amor que me apresentou e me ensinou por toda a vida e, agora, divide com minha filha. Agradeço ao Augusto, meu companheiro, meu amor, pela paciência, pelo incentivo e por auxiliar a tornar esse mestrado real de tantas formas.

E, por fim, agradeço à Martina, por me ensinar tanto todos os dias. Por me lembrar da força das mulheres — de todas as pessoas que se entendem mulheres — e da importância da construção de uma sociedade mais igualitária, livre de normas que nos definem e nos limitam.

RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual. Para isso, buscamos entender o processo de transexualização no contexto da família e da escola para, posteriormente, analisar a trajetória de busca e vivência de um emprego formal. A partir de um estudo de caso, foi realizada uma entrevista semi- estruturada e a transcrição integral deste material. Como técnica de análise, foram utilizados dois mapas dialógicos, que permitem dar visibilidade à dialogia presente no material analisado. Posteriormente, duas linhas narrativas foram criadas de maneira que a passagem do tempo e os processos de transformação da participante ficassem visivelmente organizados. A abordagem teórico-metodológica empregada foi a psicologia discursiva desenvolvida no Núcleo de Estudos sobre Práticas Discursivas no Cotidiano: Direitos, Riscos e saúde (NUPRAD/PUC- SP), que se inscreve no âmbito de uma postura Construcionista. De maneira geral, os resultados indicam que existem dificuldades na empregabilidade formal de pessoas trans sendo a primeira delas a transfobia institucionalizada. Ainda assim, há muitas pessoas trans atuando em empregos formais, mas a literatura a respeito dessa população parece preferir divulgar as dificuldades e mazelas que as atingem contribuindo para a criação de um discurso único de sofrimento e insucesso.

Palavras-chave: Mulheres transexuais; Travestis; Empregabilidade; Psicologia Social; Práticas discursivas.

ABSTRACT

This research aims to study the process of employability for a transsexual woman. A discussion was set about transsexualization in the context of family and formal learning. An interview with a trans woman was undertaken for analysis. Two dialogic maps were made to organize the visibility of the dialogue. Thereafter two narrative lines were created for time passing and transformation processes of the interviewee. The theoretical-methodological approach of discursive psychology - developed in the Nucleus of Studies on Discursive Practices in Daily Life: rights, risks and health (NUPRAD/PUC-SP) - was used to reach the objective, as part of a constructionist approach. In general, the results indicate that there are difficulties in the formal employability for trans people and the main problem is the institutionalized transphobia. Nevertheless, there are many trans people working in formal jobs although the literature about this population seems to prefer to disclose the difficulties and problems that affect them to create an unique discourse of suffering and failure.

Keywords: Transsexual women; Transvestites; Employability; Social Psychology; Discursive practices.

SUMÁRIO

A PESQUISADORA E O TEMA DE PESQUISA ______10 1. OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS ______13 1.1 Procedimentos ______13 1.2 Referencial teórico-metodológico ______17 1.3 Considerações éticas ______18 2. CONSTRUINDO O GÊNERO ______19 2.1 Gênero e sexo como construção social e categoria inaugural do sujeito ______19 2.1.1 Gênero como performatividade ______23 2.1.2 Corpos abjetos ______24 2.2 Travestis e transexuais ______25 2.3 A experiência de Francisca ______29

3. TRABALHO E POPULAÇÃO TRANS ______42 3.1 Empregabilidade para mulheres transexuais e travestis ______45 3.2 A experiência de Francisca ______49

4. DISCUSSÃO ______68 CONSIDERAÇÕES FINAIS ______78 REFERÊNCIAS ______80 APÊNDICES ______85 ANEXO ______168

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A PESQUISADORA E O TEMA DE PESQUISA

Ainda na graduação em Psicologia, no desejo de ser aluna de Iniciação Científica, uma pergunta me interpelava: “E o que você quer pesquisar?”. Eu não fazia a mínima ideia de qual era a resposta a essa questão fundamental para que se inicie uma pesquisa. As respostas, àquela época, poderiam ser muitas, mas não havia uma sequer. Um dia, em meio ao tédio, através da rede social Facebook, encontrei uma matéria publicada pela revista eletrônica Carta Capital (2013) sobre empregabilidade de pessoas trans. Acompanhando a matéria, havia um vídeo. Nele, Luiza Marilac, travesti que havia ficado famosa por um meme na internet, vestia um uniforme de camareira e relatava sua alegria em se apresentar daquela forma. Contava da sensação de satisfação e felicidade ao sair de casa às cinco da manhã para trabalhar, em como caminhava orgulhosa de uniforme pelas ruas. “As pessoas me respeitam, estou indo para o trabalho. Ninguém pensa que estou indo ‘fazer programa’”. Ela mostrou ainda sua carteira de trabalho e contou que hoje dorme à noite e trabalha de dia, “como todo mundo”. E, por fim, relata que sabe como isso tudo – carteira de trabalho, uniforme – pode parecer simples para a maioria das pessoas, mas que para pessoas como ela, para uma travesti, aquilo era uma conquista, um sonho realizado. Eu, assistindo ao vídeo, fiquei surpresa e comovida com o relato. Creio que o que me vinculou ao discurso de Luiza foi o fato de que sua satisfação em estar usando um uniforme e exibir sua carteira de trabalho não estava ligada à necessidade financeira, ao alívio de receber um salário ao fim do mês e saber poder colocar comida na mesa. A satisfação de Luiza era de outra ordem, uma euforia de quem havia cruzado uma importante linha de chegada, um lugar que a colocava ao lado de pessoas com as quais a comparação era sempre de uma posição inferior. A satisfação de transitar em espaços que até então eram proibidos a ela e que, agora, o uniforme lhe servia como um ingresso a esses locais. A sensação em mim era de que ela se lançava para fora de um lugar social visto quase como um submundo e todos, agora, podiam vê-la à luz dia, caminhando, desfilando, circulando pela cidade como alguém que existe e que tem sua existência reconhecida dignamente. Foi a partir desse lugar que realizei minha iniciação científica e que escolhi dar continuidade ao estudo do tema no mestrado em Psicologia Social. O lugar de uma mulher cisgênera, branca, de classe média, que sempre teve acesso às melhores instituições de ensino e sempre teve permissão para olhar para o futuro (não sem algumas restrições) e escolher sua profissão. Para essa mulher, a prostituição ocupa mesmo um lugar categorizado como um “submundo” e, ao ouvir Luiza Marilac pela primeira vez, fazia todo sentido sua felicidade em 11

sair de casa às 5h da manhã para trabalhar o dia todo e voltar à noite para dormir e, assim, não mais se prostituir. Fazia sentido ver a prostituição como um lugar de “não escolha”, onde só é possível o sofrimento e a exploração; e do outro lado, o emprego formal, a carteira assinada, as 8h de trabalho por dia, vistos como um horizonte bonito, livre de exploração, a chegada ao “sucesso”, a tão sonhada ascensão profissional. Ao longo do percurso como pesquisadora, ao entrar em contato de forma mais íntima com o tema da empregabilidade para a população trans, algumas dessas noções foram sendo desconstruídas e o discurso do emprego formal como a melhor e mais digna alternativa de ganhar a vida foi sendo questionado. Peter Spink (2003, p. 28) apresenta a noção de campo-tema, esclarecendo que “campo é o argumento no qual estamos inseridos; argumento este que têm múltiplas faces e materialidades, que acontecem em muitos lugares diferentes”, compreendendo que nosso campo de pesquisa não é “um lugar específico, delineado, separado e distante”. Assim, fui descobrindo e construindo meu campo de pesquisa: conversas, leituras, debates, palestras, contato com a comunidade LGBTQI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, interssex e outros), participação em eventos e visitas a instituições que, de alguma forma, conversavam com o meu tema de pesquisa. Foi o contato com esse campo-tema que possibilitou que eu desnaturalizasse algumas questões e colocasse à prova as minhas próprias premissas sobre o que é trabalho e seu lugar social em meio a diferentes realidades socioeconômicas. Para exemplificar um pouco essas desconstruções que o contato com o campo-tema me trouxe, trago a fala de uma travesti em um Congresso de Psicologia e População LGBT. Ela, já uma senhora por volta de seus 60 e poucos anos, convidada de uma mesa que discutia o trabalho para a população trans, verbaliza: “Eu adoro me prostituir! Faço isso por gosto! Adoro estar na praça e ver os garotos passando e me olhando, me chamando!”. E assim ela seguiu, levantando a bandeira da prostituição como escolha e como profissão, que necessita ser regulamentada para que essas profissionais tenham seus direitos garantidos e para que a prostituição não seja apenas um destino certeiro de travestis e transexuais, mas também um lugar para se estar por prazer. Foi aos poucos que pude compreender melhor as tensões que circulam nas diferenças sociais e perceber que existem interseccionalidades específicas na comunidade LGBT e, por isso, necessidades e desafios distintos. Seja em função da classe social, da raça, idade, do acesso à escolaridade, da forma como a transição de gênero foi conduzida ou até mesmo pelo próprio gênero a se identificar (masculino, feminino, não-binário, agênero etc.) e pela forma como se autodenominam (mulher trans, transxexual, travesti). A busca pelo exercício de uma cidadania digna, com direitos respeitados, passa a ser marcada por todas essas questões, que interferem de 12

maneira significativa na forma como cada jornada pessoal e profissional caminhará. Como afirma Daniel Yago (2019, p. 59), “[...] a própria sigla LGBT é repleta de singularidades irredutíveis a somente um único prisma”. Considerar a população trans à luz de problemáticas racistas, machistas e classicistas produz diferenças na realidade e vivência social de mulheres trans e travestis. Dialogar com essas noções parece essencial para uma visão crítica sobre a problemática da empregabilidade para essa população. Um bom exemplo disso está no fato de que “travestis e transexuais negras são maioria na prostituição de rua. Proporcionalmente, são estas as que têm os maiores índices de violência e assassinatos” — aqui pensando a prostituição de rua como a mais precária, barata e violenta (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019, p. 20). O que encontro como ponto de partida é uma população que, a princípio, foge à norma binária de gênero e, somadas questões como classe e raça, é colocada à margem, com direitos negados diariamente. Por outro lado, de maneira paradoxal, essa mesma população que rompe com normas hegemônicas, muitas vezes também busca se enquadrar dentro da caixa heteronormativa, quando, por exemplo, a passabilidade se coloca como objetivo primordial e o emprego formal (ainda que em condições precárias) é visto como a única forma de se colocar dignamente no convívio social. Como pontua Amara Moira (2017), é curioso pensar que usualmente imaginamos pessoas trans como aquelas que rompem com as regras e os padrões estabelecidos. Mas é importante lembrar que essas pessoas são fruto da mesma sociedade e que apenas reproduzem essas normas de uma forma toda particular.

Diante disso, considerando as especificidades já mencionadas, o atual momento político, histórico e cultural, a pesquisa em questão pretende compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual, atenta ao que difere e ao que se aproxima dos dados encontrados na teoria disponível sobre o tema da empregabilidade para pessoas transexuais.

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1. OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS Entendendo a pesquisa como ação social e, portanto, política, o presente estudo tem por objetivo compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual. Para alcançar tal objetivo, elencamos os seguintes objetivos específicos:

● Entender o processo de transexualização no contexto da família e da escola;

● Analisar a trajetória de busca e vivência de um emprego formal para uma mulher transexual a partir de um estudo de caso.

1.1 Procedimentos

A presente pesquisa é de cunho qualitativo e utiliza um estudo de caso como metodologia para compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual. O estudo de caso valoriza a interpretação das realidades sociais, com atenção especial vinculada à qualidade dos dados apresentados, e não necessariamente ao número de sujeitos participantes da pesquisa (BAUER et al., 2013). Segundo Sarah Baker e Rosalind Edwards (2012), para decidir quantas entrevistas são suficientes, é preciso antes interrogar o objetivo de sua pesquisa. As autoras afirmam que uma só entrevista qualitativa é capaz de produzir relatos ricos de subjetividades, e um único caso pode ser suficiente se houver singularidades específicas e incomparáveis a outros casos. Além disso, uma só entrevista pode demonstrar que um fenômeno é mais complexo ou variado do que se pensava anteriormente.

Neste estudo, chamaremos a participante de Francisca, nome de sua avó e que escolheu para lhe representar nesta pesquisa. Conheci Francisca através da Márcia Rocha, travesti, advogada e uma das fundadoras do portal Transempregos1. Francisca tem 24 anos e se declara como uma mulher transexual. No decorrer da pesquisa, foram realizados três encontros com a participante, sendo o último deles via Skype.

Nosso primeiro encontro teve como objetivo me apresentar e informar a ela sobre meu projeto de pesquisa. Dessa forma, contei um pouco sobre minha trajetória profissional, além de explicitar o tema de minha pesquisa, seus objetivos e de que forma estava planejando conduzir o estudo. Francisca se mostrou disponível e aberta para participar do estudo, apesar de pontuar sobre algumas restrições de horários.

1 Transempregos é uma plataforma digital fundada em 2013 e atualmente é o maior banco de dados de currículos e vagas para pessoas trans no país. Para conhecer mais, acesse: www.transempregos.org 14

Em nosso segundo encontro, realizamos uma entrevista semiestruturada. Segundo Sérgio Aragaki e colaboradores (2014, p. 65), “[...] a entrevista é uma forma de interação que deve se assemelhar, enquanto gênero de fala, às conversas cotidianas, uma vez que é pautada pela dialogicidade e pela coconstrução de sentidos”. Sendo assim, foi elaborado um pequeno roteiro norteador da entrevista (construído a fim de responder aos objetivos da pesquisa). Entretanto, a conversa não se estabeleceu de forma rígida, presa a esse roteiro. Ao contrário, a entrevista se desenrolou de maneira bastante livre, com o intuito de se estabelecer uma relação mais horizontal possível entre entrevistada e entrevistadora. A entrevista ocorreu em uma sala de reuniões do local de trabalho de Francisca e, com sua autorização, utilizamos gravador de voz para o registro do diálogo. A partir da transcrição integral dessa entrevista (Anexo C), dois mapas dialógicos (Anexos A e B) foram elaborados como ferramentas iniciais de análise do material transcrito. Os mapas dialógicos permitem dar visibilidade à dialogia presente nos discursos analisados e aos passos que seguimos na construção da interpretação. Além disso, essa ferramenta parte da “compreensão de que rigor metodológico em pesquisa científica implica a explicitação dos passos de busca e de análise das informações obtidas e visa à reflexividade do/a pesquisador/a no processo da pesquisa” (SPINK; LIMA, 1999; SPINK; MENEGON, 1999 apud NASCIMENTO et al., 2014, p. 248). No primeiro mapa, as categorias foram construídas com ênfase em sua descoberta e vivência como uma mulher trans relacionada à aceitação familiar e sua presença no sistema de ensino. No segundo mapa dialógico, as categorias têm como foco a construção de uma passabilidade e os fatores que a envolvem, as relações de trabalho e a transfobia. Os dois mapas dialógicos estão disponíveis na íntegra no Apêndice, porém, a título de ilustração e para melhor compreensão dessa estratégia de análise, segue um trecho de cada um dos mapas dialógicos:

Trecho mapa dialógico 1 - Sobre a descoberta e vivência como mulher trans

Transexualização Família Escolarização Outros assuntos 3 anos. Ela tinha certeza. Eu queria brincar de boneca, andar de salto, usar maquiagem. Sempre fui delicada, menininha. Eu não tinha nada de menino. E minha mãe sabia. Mãe

é mãe, você conhece. 15

E esse processo com tua mãe foi mais tranquilo que com seu pai? Na verdade com os dois. Eu achei que ia ser sua difícil. A gente nunca sentou e conversou, não. “Eu sou mulher e a partir de agora sou Amanda, ela é mulher”, e os dois se resolveram lá. Minha mãe contou que ela tinha muito medo da família,

do que eles iam achar, mas acabou que as pessoas viram, me conhecem, sabem que eu sou uma pessoa boa, que eu não tenho m- índole. Minha avó de 70 anos me chama de Francisca como se o meu passado tivesse sido apagado. Você sente assim? Eu lembro, sei as dores que sofri. Quando falam da Francisca quando era pequena sempre pra mim é como se fosse outra pessoa. Minha mãe ela fala que teve três filhos: meu irmão, meu antigo eu, que foi viajar, e eu. Então, são três filhos. Fonte: A autora, 2020.

Trecho mapa dialógico 2 - O foco na passabilidade e na empregabilidade

Relações de Passabilidade Transfobia Outros assuntos Trabalho O que mais você acha importante falar sobre o seu dia? Eu já falei que ele não é

muito emocionante (risos). Como eu já tenho uma certa passabilidade, hoje está mais tranquilo.

Antigamente não era?

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Não só na rua, mas nos outros empregos que eu tive era mais chato. Já tive em uma empresa que eu trabalhei, até comentei com você, da questão de me chamarem a atenção porque tinha ido trabalhar de vestido, porque eu era alta e não podia chamar a atenção nas pernas. Queriam me mandar embora com 3 meses porque estavam com medo de causar problemas com as funcionárias, uma mulher ficou constrangida comigo. Isso foi antes de você entrar aqui nesta empresa? Foi numa empresa antes. Depois me contaram, No começo, eu tinha que pois peguei amizade atender com o nome com alguns gestores que me contaram a verdade. masculino, o crachá era com Eu nem sabia disso, mas nome masculino... de usar roupas, me chamaram para conversar. Fonte: A autora, 2020.

Para cada mapa dialógico, foi construída uma linha narrativa. A linha narrativa permite a reunião das informações de maneira que a passagem do tempo e os processos de transformação da participante fiquem visivelmente organizados. Para Mary Jane Spink e Helena Lima (1999, p. 117), “[...] as linhas narrativas são apropriadas para esquematizar os conteúdos das histórias utilizadas como ilustrações e/ou posicionamentos identitários do decorrer da entrevista.”. Por meio da primeira linha narrativa, é possível visualizar de forma cronológica as mudanças em Francisca em relação a si e sua identidade, à família e à suas experiências no sistema de ensino. A segunda linha narrativa apresenta a cronologia a partir da vivência em cada emprego de Francisca, relacionando-a com a construção da passabilidade, com a transfobia vivida e com as relações de trabalho. As duas linhas narrativas serão apresentadas nos capítulos 2 e 3 deste estudo, descritos a seguir. 17

Cada linha narrativa deu origem a um capítulo em que a teoria/bibliografia sobre o tema e a experiência de Francisca se entremeiam, dialogam, seja pelas semelhanças ou pelas diferenças encontradas. O capítulo 2, intitulado Construindo o gênero, toma como base a Linha narrativa 1 (Quadro 1, p. 30), que contém a cronologia das seguintes categorias: Identidade transexual; Relações familiares; Escolaridade. O capítulo 3, cujo título é Trabalho e população trans, parte das informações obtidas por meio da Linha narrativa 2 (Quadro 2, p. 51), e contém a cronologia baseada nos empregos de Francisca, organizada nas seguintes categorias: Passabilidade; Transfobia; Relações de trabalho. O terceiro encontro com Francisca, citado anteriormente, ocorreu por uma vídeo- chamada. Após várias tentativas de agendar um encontro, decidimos que por Skype seria uma solução possível para nós duas. Neste momento, lhe apresentei as duas linhas narrativas construídas a partir de nossa conversa, com o intuito de sanar algumas dúvidas surgidas durante a análise e de confirmar com a participante se ela estava de acordo com a construção das informações.

Importante lembrar que durante toda a construção dessa pesquisa, eu e Francisca mantivemos contato por telefone, seja para trocar informações, sanar dúvidas que surgiam durante a análise da entrevista ou mesmo nas diversas tentativas de agendar nossos encontros, que foram marcados e remarcados algumas vezes. Nesse caminho, Francisca me trazia algumas informações sobre como estava na nova empresa e contou que estava feliz e bem adaptada ao novo ambiente de trabalho. Já no fim do processo de escrita, Francisca me enviou uma mensagem com tom de comemoração, contando que havia conseguido um novo emprego, agora não mais enquanto estagiária, mas como CLT, em uma empresa norte-americana também do ramo agroquímico.

1.2 Referencial teórico-metodológico

Nesta pesquisa trabalharemos tanto questões de gênero quanto a empregabilidade e seus desdobramentos como processos sociais construídos diariamente e, por isso, passíveis de mudanças e transformações. Mary Jane Spink e Rose Mary Frezza (1999) pontuam que somente através de movimentos de estranhamento e enfrentamento a realidade pode ser modificada. Portanto, compreendemos a pesquisa como um potente instrumento de reflexão e, assim, de transformação social. Diante disso, partimos do pressuposto construcionista de que o conhecimento é algo construído de forma coletiva. Essa ideia corrobora com a crítica ao representacionismo, propondo que o conhecimento não se restringe a uma representação da 18

realidade, mas se dá através das vicissitudes dos processos sociais e da interação desses processos. Nesta perspectiva, a linguagem assume papel central, pois se revela como um dos principais artefatos para que as pessoas estabeleçam suas relações sociais. Sendo assim, as práticas discursivas embasam a escuta e a escrita deste estudo, compreendendo essas práticas como maneiras pelas quais, através da linguagem, as pessoas produzem sentido e se posicionam em relações sociais cotidianas e que esse processo ocorre através da interanimação dialógica que se estabelece na conversação (SPINK; MEDRADO, 1999). Compreendemos que é essencialmente na relação com a participante da pesquisa que será possível nos aproximarmos das muitas maneiras em que os sentidos foram sendo construídos em sua trajetória. Segundo Mary Jane Spink e Benedito Medrado (1999, p 45), na pesquisa com práticas discursivas, “estamos convidando os participantes a produzir sentidos a todo o momento.”.

1.3 Considerações éticas

Esta pesquisa segue as diretrizes éticas da Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e a realização de pesquisa em Psicologia com seres humanos, Resolução 016/00 de 09/12/2000 do Conselho Federal de Psicologia. Prezando a autonomia, informação e sigilo de identidade da participante, foram apresentados os objetivos e procedimentos da pesquisa juntamente com um Termo de Consentimento Livre Esclarecido. A participante, estando de acordo com o estudo, assinou o documento consentindo sua participação. A pesquisa também foi submetida ao Comitê de Ética e Pesquisa da PUCSP.

Apesar do trabalho em questão não apresentar riscos significativos à participante, esta esteve livre para desistir de sua participação a qualquer momento, por algum possível constrangimento, incômodo, ou qualquer outro motivo pessoal desencadeado durante o processo de pesquisa. Este capítulo buscou explicitar os objetivos da pesquisa e detalhar os procedimentos adotados para o alcance dos objetivos, assim como esclarecer a partir de qual referencial teórico metodológico este estudo foi pensado e escrito. Nos próximos capítulos, será apresentada a bibliografia encontrada a respeito dos temas citados anteriormente em diálogo com a experiência de Francisca.

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2. CONSTRUINDO O GÊNERO “E o seu nenê, é menino ou menina? Não, mamãe! É nenê!”

Martina, 2 anos, brincando de “nenê”.

Este capítulo tem como objetivo explicitar o caráter histórico, social e cultural da categoria gênero para, então, situar os termos travesti e mulher transexual em meio a esse contexto. Para isso, colocaremos em diálogo a literatura a respeito do tema e a experiência de Francisca como uma mulher trans, que estará baseada em três categorias: a construção de sua identidade trans, sua vivência familiar e sua experiência dentro do sistema de ensino.

2.1 Gênero e sexo como construção social e categoria inaugural do sujeito

Iniciei este capítulo com a fala de minha filha Martina que, brincando com sua boneca, é questionada por mim sobre qual é o sexo do seu nenê. Ela, em sua ingênua sabedoria, me corrige dizendo de maneira simples que se tratava apenas de um nenê. Ponto. Martina, sem saber, me alerta sobre a forma como as normas de gênero, as matrizes sexuais que regem nossa forma de viver e nos constituem enquanto sujeitos, estão de fato tão profundamente enraizadas que não percebemos onde estamos reproduzindo uma norma e onde nós mesmos já somos a materialização dessa norma. Assim, parece impossível identificar como trabalhamos dia a dia, minuto a minuto para perpetuar, construir e naturalizar essas matrizes de gênero que ditam o que é ser mulher, ser homem, e, da mesma forma, o que é não ser nem mesmo humano. Embasada nas concepções sobre gênero de Judith Butler e de autoras(es) que conversam com essas ideias, discutirei como o gênero se situa no campo discursivo enquanto performance. Nesse sentido, a categoria gênero nada tem a ver com a visão simplista, universal e naturalizante que o centraliza no corpo, nos genitais mais precisamente, seguindo à risca a imposição cis- heteronormativa. A palavra gênero foi incluída no contexto social de maneira mais explícita após a II Guerra Mundial, em decorrência dos movimentos sociais como, por exemplo, a primeira onda do feminismo (SPOZZIRRI et al., 2014). Naquele momento, a utilização do termo tinha como intuito se contrapor à ideia de diferenças de comportamentos entre homens e mulheres que fossem pautadas no determinismo biológico estipulado pelo sexo. Tal pensamento carregava a visão naturalizada, universal e imutável dos comportamentos, explicando biologicamente, por exemplo, por que a mulher seria mais frágil e submissa que o homem (SOUZA, 1995). 20

A noção que temos sobre o que é “ser homem” e “ser mulher” vinculada à natureza, ao instintivo, parece apenas um fato dado, real e incontestável. Porém, essa ideia tem suas raízes nos discursos das ciências médicas e da “psi” (psiquiatria e psicologia), e foi construída em nome da normalização e controle de nossos corpos, cunhando áreas novas do saber como a moderna “sexologia”, “sexualidade” e as “identidades sexuais” (LEITE JR, 2008). Importante esclarecer que “a medicina e as ciências da psique não foram poderes impositivos absolutos, mas forjaram suas novas categorias em diálogos com outros campos sociais, como a religião e, especialmente, os iniciantes movimentos pelos chamados direitos civis.” (LEITE JR, 2008, p. 110). Juízos de que homens são “naturalmente” mais fortes, mais viris, com o pensamento mais lógico, e que todas as mulheres possuem o instinto materno e a refinada capacidade de cuidar do outro escondem uma importante intenção de controle das condutas sexuais e sociais de cada indivíduo. Berenice Bento (2008, p. 25) afirma que “se tornou politicamente importante diferenciar biologicamente homens e mulheres”, principalmente através da produção científica. Na obra A história da sexualidade (1988), de Michel Foucault, é possível compreender como o sexo foi se tornando um discurso útil e um dispositivo de poder e controle social. O autor (1988, p. 26) afirma que “por volta do séc. XVIII nasce uma incitação política, econômica, técnica a falar sobre sexo”. Sendo assim, a sexualidade passou a ser assunto não apenas para que se possa condenar ou tolerar as condutas sexuais de cada um, mas também para gerir essas condutas, inseri-las em sistemas úteis, regulá-las para “o bem de todos” e fazê-las funcionar segundo um padrão ótimo de normalidade. Como uma “polícia do sexo”, esse passa a ser regulado discursivamente (FOUCAULT, 1988). Múltiplos mecanismos da ordem da economia, da pedagogia, da medicina e da justiça passam não apenas a incitar e extrair discursos do sexo como também a organizar e institucionalizar esses discursos e comportamentos sexuais. Rapidamente, “da infância à velhice foi definida uma norma do desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis.” (FOUCAULT, 1988, p. 37). É através dessa regulação das condutas sexuais de cada cidadão que se estabelece quais são as práticas e posturas consideradas desvios da norma sexual aceita. Nesse caso, aquela que estiver ligada à regra social heteronormativa. Considero importante explicitar a diferença entre os dois termos: heterossexualidade compulsória e heteronormatividade. O primeiro diz respeito à “expectativa e coerção social para que as pessoas se relacionem afetiva e sexualmente com outras do ‘sexo oposto". Já a heteronormatividade é um conceito mais amplo, incluindo “a organização da vida sexual e afetiva de acordo com os padrões binários de oposições homem/mulher, ativo/passivo, mesmo para relações entre pessoas do mesmo sexo ou gênero.” (LEITE JR, 2008, p. 114). 21

Esses termos têm como base a compreensão de que o comportamento heterossexual e binário de gênero (baseado nas noções de homem/mulher) é o comportamento natural, normal. É da heterossexualidade compulsória que vem, por exemplo, a frase da tia dirigida ao sobrinho nas reuniões de família: “e as namoradinhas?”, tomando como pressuposto que o garoto sinta atração por meninas e não por meninos. Já a heteronormatividade, além de supor que toda pessoa seja heterossexual, impõe que o correto e o melhor para todo e qualquer indivíduo, por exemplo, seja que ele deseje se casar, ou que toda mulher anseie por filhos, que meninos gostem de futebol e meninas de maquiagem. Vale reforçar que os valores da heteronormatividade se encontram fundamentados principalmente no casamento e na reprodução. De acordo com Tamsin Spargo (2017, p. 19), isso se dá porque:

[...] essas “tecnologias do sexo” eram concebidas para preservar e estimular uma população (ou força de trabalho) produtiva e procriadora que atendesse as necessidades do sistema capitalista em desenvolvimento. A unidade chave dessa ordem social era a família burguesa, na qual seria gerada a futura força de trabalho. Michael Foucault (1988) nos mostra que é a partir dessas imposições construídas nos pequenos artefatos das relações sociais, nos discursos médicos, jurídicos, religiosos, institucionais (ou seja, em meio a uma variada e prolixa produção discursiva), que vamos nos constituindo enquanto sujeitos situados em uma determinada época e cultura. É dessa forma, também, que nossas condutas e comportamentos vão sendo geridos e controlados através dessa complexa teia de mecanismos de poder social. Tamsin Spargo (2017, p. 15) reforça que “um componente essencial no argumento de Foucault é que a sexualidade não é um aspecto ou fato natural na vida humana, mas uma categoria da experiência que foi construída e que tem origens históricas, sociais e culturais, mas não biológicas”. É por meio dessa compreensão que o gênero vai deixando de ser entendido como natural e biológico para ser compreendido como histórico e culturalmente construído. Na obra A história da sexualidade (1988), Michel Foucault prioriza a produção discursiva a respeito da sexualidade e da criação da categoria “homossexual” mas é Judith Butler que “devolve o gênero a uma posição central na análise dos desejos e das relações sexuais.” (SPARGO, 2017, p. 41). Para Jorge Leite Junior (2008), quando falamos em estudos de gênero, Judith Butler é uma autora fundamental, principalmente por sua influência acadêmica no Brasil. O autor complementa informando que, para Butler, a ideia de gênero é:

[...] uma das ficções reguladoras mais importantes em nossa cultura, se não a mais importante. É ele, o gênero, que produz a materialidade, inteligibilidade e grau de 22

importância do que entendemos como corpos, organizando-os em sexos distintos e sexualidades próprias. (LEITE JR, 2008, p. 114). Isso significa que Butler se posiciona de maneira diferente ao que vinha sendo afirmado por construcionistas e feministas. Estes afirmavam que o sexo está ligado a uma esfera biológica, baseado na presença de pênis ou vagina (macho/fêmea); e o gênero, por sua vez, possui suas origens no âmbito social, como histórico e culturalmente construído. A crítica de Butler (2000) está justamente nessa relação entre cultura e natureza, pressuposta, a primeira, como construção. A autora afirma que, dessa forma, se supõe uma cultura ou uma ação do social que atua sobre uma natureza, a qual é, ela própria, pressuposta como uma superfície passiva, que se encontra fora do social. Rompendo com essa noção, a autora afirma que o sexo não é natural, mas é também discursivo e cultural como o gênero, pois:

[...] não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido interpretado por meio de significados culturais; consequentemente, o sexo não poderia qualificar-se como uma facticidade anatômica pré-discursiva. Sem dúvida, será sempre apresentado, por definição, como tendo sido gênero desde o começo. (BUTLER, 2003, p. 27).

Logo, para a filósofa gênero e sexo são a mesma coisa. Porém, muitas vezes, a história do conceito de sexo fica ocultada pela figura da superfície de inscrição, trazendo a ele uma posição dada, natural (BUTLER, 2000). Ou seja, parece impossível pensar que o sexo seja de fato um conceito construído histórica e culturalmente, que ele, assim como o gênero, possui uma história e é fruto de uma construção discursiva e cultural. Ela também alega que, uma vez que o sexo seja compreendido também como efeito da normatividade, a materialidade do corpo deve ser pensada simultaneamente com a materialização da norma regulatória de gênero (BUTLER, 2000). A autora afirma ainda que “não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria - quer se entenda essa como o ‘corpo’, quer como um suposto sexo.” (BUTLER, 2000, p.111). Sendo assim, o "sexo" não é simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é. O sexo é, antes de tudo, uma das normas pelas quais esse "alguém" se torna viável, “é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.” (BUTLER, 2000, p.111). Ou seja, o sexo não é apenas algo fixo, simplesmente dado. Esse corpo é por si só a materialização de uma norma de gênero que faz com que determinado ser possa ou não ser lido como um corpo humano dito normal. Berenice Bento (2008), seguindo as proposições de Butler, afirma que antes mesmo de nascer o corpo já está inscrito em um campo discursivo. O que significa que a “matriz das relações de gênero é anterior à emergência do ‘humano".” (BUTLER, 2000, p. 116). Um bom 23

exemplo seria o fato de, ainda na barriga da mãe, nomearmos um bebê, até então um “ser neutro”, de menino ou menina. É através desta nomeação que o menino torna-se o menino, sendo introduzido, através da linguagem e da interpelação do gênero, ao “universo masculino”. Essa nomeação é apenas a interpelação fundante do tornar-se menino, que será reforçada de diversas formas ao longo de vários intervalos de tempo para garantir esse efeito naturalizado que o “ser homem” (ou “ser mulher”) possui. Assim, a nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e a repetição de uma norma. (BUTLER, 2000).

2.1.1 Gênero como performatividade

Se a nomeação de ele ou ela ainda na barriga da mãe funda uma forma de existir, é ao longo do tempo que vamos afirmando ou contrapondo essa existência. Podemos compreender, assim, que o gênero não é uma identidade estável, mas antes “uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos.” (BUTLER, 2003, p. 200). Por meio dessa repetição de atos estilizados, gestos e movimentos que o gênero se apresenta como temporalidade social, como performatividade. Importante esclarecer que “a performatividade deve ser compreendida não como um "ato" singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia.” (BUTLER, 2000, p. 111). Ou seja, deve-se compreender a performatividade mais como uma necessidade de uma identidade inteligível no que se refere ao atual sistema de gênero do que como uma questão de simples escolha individual. (SPARGO, 2017, p. 44). Assim, a performatividade é sempre a reiteração de uma norma ou conjunto de normas. O caráter do gênero muitas vezes concebido como “natural” se instala na medida em que a performatividade adquire o status de ato no presente e, assim, passa a ocultar ou dissimular as convenções das quais ela é uma repetição (BUTLER, 2000, p. 121). Esclarecendo a tese de Judith Butler, Tamsin Spargo (2017, p. 43) afirma que “nós não nos comportamos de determinadas maneiras devido a nossa identidade de gênero, nós chegamos a essa identidade por meio daqueles padrões comportamentais, os quais sustentam as normas de gênero”. Gênero é, então, “uma prática discursiva em andamento, atualmente estruturada em torno do conceito de heterossexualidade como norma das relações humanas” (SPARGO, 2017, p. 42). As normas de gênero foram, portanto, produzidas em torno de um sistema binário, que só aceita dois sexos (masculino/feminino) e da heteronormatividade reprodutora compulsória.

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2.1.2 Corpos abjetos

Judith Butler (2000) afirma que as mesmas normas que delimitam um espaço, que materializam e formam os sujeitos, formalizando quais são os corpos possíveis e inteligíveis, exigem também e simultaneamente a produção do que, então, não são “sujeitos”, dos seres que não se enquadram na excludente matriz heterossexual e binária de gênero. Assim como é preciso existir a sombra para que se tenha luz ou a categoria “homossexual” para que exista a categoria “heterossexual”. Esses seres que não estão adequados à matriz heteronormativa seriam o que a autora nomeia de seres abjetos:

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas "inóspitas" e "inabitáveis" da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do "inabitável" é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. (BUTLER, 2000, p. 112). Corpos abjetos dizem respeito aos corpos, sexos e pessoas que não se enquadram dentro das normas de gênero, adquirindo o status social de monstros, freaks, aberrações, doentes mentais. Esses seres abjetos, apesar de existirem enquanto opostos constitutivos de certo conceito de “humano” por não se enquadrarem na matriz de gênero heterossexual e binária de gênero, não são compreendidos como possuindo o mesmo grau de humanidade. (LEITE JR, 2008). Percebe- se, então, que as normas de gênero organizam, também, o que pode ser definido como humano de fato. Nesse sentido, travestis e transexuais representam uma quebra na inteligibilidade cultural que temos sobre corpo, sexo e gênero. Berenice Bento (2008, p. 18) afirma que “a transexualidade é uma experiência identitária caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”. A autora acrescenta que frente à experiência transexual o sujeito põe em ação os valores que estruturam os gêneros na sociedade. Um homem de batom e silicone? Uma mulher que solicita uma cirurgia para tirar os seios e o útero? Ela é ele? Ele é ela? (BENTO, 2008, p. 21). Assim, travestis e transexuais materializam uma oposição, colocando-se explicitamente contra a norma do binarismo de gênero. A simplicidade binária, que se supunha organizar e distribuir corpos na estrutura social (vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-masculino) perde-se, confunde-se. Chega-se à conclusão que ser homem e/ou mulher não é tão simples. (BENTO, 2008, p. 22). A autora conclui que “transexualidade, travestilidade, transgênero são expressões identitárias que revelam divergências com as normas de gênero uma vez que essas são fundadas no dimorfismo, na heterossexualidade e nas idealizações.” (BENTO, 2008, p. 20).

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2.2 Travestis e transexuais

Foi justamente na tentativa de organizar e manter a ordem binária predominante dita “natural” que instâncias médicas e psicológicas do saber transformaram gênero em diagnóstico (tendo em vistas as perversões, os transtornos sexuais, disforias de gênero etc.). A partir do século XX, essas ciências postulam que os trânsitos entre os gêneros passaram a ser considerados doenças nas sociedades ocidentais. Desde então, diversas categorias e nomenclaturas passam a circular no meio social (BENTO, 2008). No que se refere às categorias criadas para gênero e suas multiplicidades, Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 10) pontua que “todos os seres humanos podem ser enquadrados (com todas as limitações comuns a qualquer classificação) como ‘transgênero’ ou ‘cisgênero’”, esclarecendo que cisgêneros, ou “cis”, seriam as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Já o termo transgênero é posto como “um conceito ‘guarda- chuva’ que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.” (JESUS, 2012, p. 25). A compreensão de gênero enquanto patologia, segundo Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012, p. 576), se deu em 1969, durante o primeiro congresso da associação Harry Benjamin (endocrinologista que se dedicou a estabelecer critérios ao diagnóstico da transexualidade), ocorrido em Londres. Foi então que “a transexualidade passou a se chamar “disforia de gênero”, termo cunhado por John Money em 1973”. As autoras afirmam que a patologização da sexualidade passou a atuar não mais como “perversões sexuais” ou “homossexualismo”, mas como “transtornos de gênero” (BENTO; PELÚCIO, 2012). Em 1980 ocorreu a inclusão de um diagnóstico diferenciado para transexuais no Código Internacional de Doenças (CID), estabelecendo-se um marco no processo de definição da transexualidade como uma doença. No mesmo ano, a terceira versão do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) foi aprovada com a inclusão da transexualidade na categoria dos “Transtornos de Identidade de Gênero” (BENTO; PELÚCIO, 2012). O movimento de despatologização das identidades trans vem ganhando força e algumas mudanças são anunciadas. Embora o DSM-V tenha alterado a classificação anterior “transtorno de identidade de gênero” para a atual “disforia de gênero”, a mudança não despatologiza completamente a transexualidade. 26

Em relação ao CID, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que em sua próxima versão, CID 11, prevista para 2022, o termo será substituído por “incongruência de gênero”. Isso significa que, enquanto “incongruência de gênero”, é retirado da transexualidade o caráter de doença mental, a incluindo na categoria “condições relacionadas à saúde mental”. Contudo, até o momento, a versão mais recente é a CID 10 que mantém a classificação como “transexualismo” (CORTES, 2019, p. 105). A decisão da OMS corrobora com a Resolução 01/2018 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que orienta a atuação profissional de psicólogas e psicólogos no Brasil para que travestilidades e transexualidades não sejam consideradas patologias. Segundo o CFP, “a resolução 01/2018 está baseada em três pilares: transexualidades e travestilidades não são patologias; a transfobia precisa ser enfrentada; e as identidades de gênero são autodeclaratórias”2. Até o momento, em documentos como o CID e o DSM, “as pessoas transexuais são construídas como portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as posicionam como transtornadas, independentemente das variáveis históricas, culturais, sociais e econômicas.” (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 572). Dentre essas classificações e categorizações, Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012, p. 571) salientam que “o critério fundamental para definir o ‘transexual de verdade’ seria a relação de abjeção, de longa duração, com suas genitálias”. Foi dessa forma que as instâncias de saber da área da saúde delimitaram o que seria um “verdadeiro transexual” como aquele que apresenta uma relação de desprezo com a própria genitália e, diante disso, possui a necessidade de realizar a cirurgia de redesignação sexual. O que não se aplicaria, entretanto, àquelas pessoas que se identificam como travestis. A diferença entre os termos "transexual" e "travesti”, no que tange as suas definições, sofre divergências entre o que define o saber médico-psicológico e o movimento social de pessoas transexuais e travestis, inclusive entre as próprias pessoas transexuais e travestis e estudiosos do tema (SOUZA et al., 2016, p. 3). No final da década de 1990, surge, no Brasil, a possibilidade de construção da categoria “transexual” como uma identidade diferente da de “travesti”. Até então, o debate público sobre transexualidade a diferenciava apenas de gays e lésbicas (CARVALHO; CARRARA, 2013).

2 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 01/2018. Orienta atuação profissional de psicólogas(os) para que travestilidades e transexualidades não sejam consideradas patologias. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf. Acesso em: 03 jan. 2020.

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Os autores, ainda na mesma obra, relatam como, aos poucos, a identidade travesti foi sendo construída. É na década de 1960 que os movimentos sociais LGBT no Brasil se organizam em prol de maior aceitação social e fuga de estigmas aos quais os homossexuais eram frequentemente associados. Segundo eles, foi na tentativa de minimizar o preconceito em relação aos homens gays e em busca por maior aceitação social que a exacerbação da feminilidade passou a ser condenada pelo movimento homossexual e uma distinção passa a ser construída: o homem gay e o homem que “se traveste”. Foram diferenciando o homossexual afeminado, a “bicha”, “pintosa”, “do travesti” (ainda chamado no masculino) (CARVALHO; CARRARA, 2013). O que se percebe é que “as concepções que estabeleciam o que era ser travesti e o que era ser transexual estavam no discurso que associava travestis à prostituição e transexual à demanda de mudança corporal completa e à patologia.” (SOUZA et al., 2016, p. 4). Seguindo essa linha de pensamento, a pessoa transexual é aquela que repudia seu genital e deseja a cirurgia de redesignação sexual, enquanto o termo “travesti” está costumeiramente ligado à pessoa que nasce com “sexo biológico masculino”, mas se identifica com o gênero feminino e, por isso, prefere se apresentar socialmente como mulher (vestimentas, gestos, muitas vezes procedimentos hormonais e de cirurgia estética), porém possui uma boa relação com sua genitália e não há desejo de alterá-la por meio de procedimentos cirúrgicos. Em relação à organização dos movimentos sociais de travestis e transexuais, Mario Carvalho e Sergio Carrara (2012, p. 342) pontuam:

Enquanto as organizações de travestis surgem do binômio “violência policial – AIDS”, as organizações exclusivamente transexuais surgem a partir de relações entre pessoas que buscam esclarecer o “fenômeno da transexualidade” e que demandam políticas de acesso às tecnologias médicas de transformação corporal, mais especificamente àquelas relacionadas à redesignação genital.

Para Amara Moira (2017), travesti e feminista, essa é simplesmente mais uma forma de pautar o gênero no corpo, em seus órgãos sexuais, sem considerar as construções culturais e históricas que imperam sobre esses corpos. Além disso, as nomeações “mulher trans” e “travesti” acabam por hierarquizar os gêneros. A autora esclarece que:

[...] transexual é palavra criada pelo saber médico, que responsabiliza o corpo e desculpa o indivíduo (“corpo errado”, “mente feminina”, “sofrimento”, etc.), tornando mais fácil sua aceitação pela sociedade, ao passo que travesti ainda está muito associada ao universo da prostituição precária, da marginalização, da exclusão social, tudo isso pura e simplesmente por “escolha”, “pouca vergonha” ou “falta do que fazer” (como se sua causa não tivesse a justificativa nobre inventada pela medicina para a transexual). (MOIRA, 2017, sem paginação).

Nas palavras de Berenice Bento (2008, p. 22), “na condição de ‘doente’, o centro acolhe com prazer os habitantes da margem para melhor excluí-los. Esse centro construirá explicações 28

aceitas como oficiais”. Desta forma, a travesti estaria associada a posições ainda mais marginais em relação à mulher transexual que, como “doente”, ocupa lugar mais higienizado e aceito socialmente. Segundo David Souza e colaboradores (2016, sem paginação):

É possível pensar que o vínculo das travestis com à prostituição ganhou uma maior visibilidade a partir do advento da AIDS, o que provocou uma forte hostilização destas mulheres. O fator da patologização das travestis culminou nas reiteradas associações de sua imagem a elementos duplamente condenados pela sociedade: a prostituição e a AIDS. Observa-se, portanto, a existência de uma relação entre o início da visibilidade das travestis e a estigmatização que elas sofrem até os dias de hoje.

Diante da distinção entre o que é ser travesti ou mulher trans, baseada na relação que cada uma delas estabelece com sua genitália, nota-se ser impossível distinguir uma travesti de uma mulher transexual apenas olhando para ela. Para Amara Moira (2017), travesti e mulher trans são palavras sinônimas, o que não quer dizer que signifiquem o mesmo, justamente pelo estigma de marginalidade e violência que as travestis carregam. A autora se declara uma delas e afirma: “Travesti por escolha, uma escolha política.” (MOIRA, 2017, p. 32). Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 16) afirma que “a maioria das travestis, independentemente da forma como se reconhecem, preferem ser tratadas no feminino, considerando insultuoso serem adjetivadas no masculino.” Sendo assim, o uso correto da nomenclatura é sempre com o artigo feminino, como “a travesti” e não “o travesti”, pois esse último nega a identificação com o gênero feminino. David Souza e colaboradores (2016) explicam que, diante das tensões que circulam entre essas diferenciações terminológicas, existe o caminho das pessoas transexuais e travestis que afirmam sua identidade por posicionamento político, seja para ir contra a imposição médica- psicológica ou mesmo para fazer uso dessa imposição (por exemplo, pessoas que assumem uma nomenclatura biomédica, como ‘mulher trans’, para acessar o sistema de saúde pública); e o caminho das pessoas trans que se afastam da discussão de definições de termos por não se basearem na diferenciação do saber médico-psicológico. Portanto, as nomenclaturas dessas identidades que afrontam as normas de gênero ainda é um ponto a se discutir e problematizar, inclusive dentro do próprio movimento LGBT. Segundo Mário Carvalho e Sergio Carrara (2012), a noção de “pessoas trans” também vem se fortalecendo como um termo aglutinador, que se refere tanto a travestis quanto a transexuais. Porém, ainda não há um consenso de qual seria a nomenclatura mais adequada e “essa posição tem por si só gerado conflitos em torno do que deve ser mais valorizado, uma suposta união voltada para uma nomenclatura única ou o respeito às identidades autoatribuídas e suas multiplicidades.” (CARVALHO; CARRARA, 2012, p. 346). 29

Seguindo o pressuposto das práticas discursivas de que “linguagem é ação e produz consequências” (SPINK; MEDRADO, 1999, p. 47), trabalharemos com a ideia de autodeclaração, em que cabe apenas a própria pessoa nomear como se vê no mundo e de que forma prefere ser chamada e tratada. Sendo assim, neste estudo nos referiremos à entrevistada como uma mulher transexual, já que é dessa forma que ela se identifica. Passaremos, então, a relatar a experiência de nossa entrevistada, Francisca, como uma estratégia de colocar em ação os conceitos como identidade de gênero, abjeção, heteronormatividade e transexualidade.

2.3 A experiência de Francisca

Francisca é uma mulher transexual, possui 24 anos e relata que se descobriu como uma mulher trans assistindo a um programa de televisão. Ao ver Ariadna, participante do programa Brasil 11, falando sobre sua transexualidade, Francisca pensou: “Nossa, eu sou isso!”. Desde então, a entrevistada deste estudo passou a compreender que existia outra forma de viver, uma forma diferente daquela que lhe foi ditada dia a dia desde que nasceu. O gênero é a categoria que precede e funda o sujeito, colocando na materialidade do corpo sua condição, ou não, de humano. Aqueles que ousam romper com as normas regulatórias de gênero baseadas na heteronormatividade são colocados socialmente como corpos abjetos: sem valor, desumanos, aberrações, doentes mentais. As pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi imposto ao nascer passam a ser um desses corpos abjetos no momento em que rompem as matrizes de gênero estabelecidas. Ultrapassar essas normas muitas vezes significa ir contra a própria família, contra as instituições que nos cercam e nos moldam. Significa romper também com tudo que, em uma sociedade heteronormativa, é ensinado ser o correto e o normal. Nesse momento do texto vamos percorrer a experiência de Francisca em se descobrir uma mulher transexual, compreendendo quais fatores se relacionam e interferem nesse processo de transformação pessoal. Para isso, foi realizada uma entrevista semiestruturada com duração de 55 minutos, em que as noções de transexualidade e empregabilidade estiveram em diálogo. Aqui, traremos a Linha narrativa 1 (Quadro 1), citada nos procedimentos de pesquisa (Capítulo 1) em diálogo com a teoria encontrada a respeito das categorias: Construção da identidade transexual; Relações familiares; Sistema de ensino.

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Quadro 1 - Linha narrativa 1

Fonte: A autora, 2020.

A) Construção da identidade transexual – “Nossa, eu sou isso!”

Como vimos, nossos corpos são preparados desde o ventre da mãe para que possamos desempenhar com êxito nossos papéis de gênero. Após o nascimento do bebê, muitos são os investimentos discursivos dirigidos a esse corpo, sempre buscando a naturalização do comportamento feminino ou masculino, a depender da presença da vagina ou do pênis. Nesse contexto, uma série de aparatos materiais e discursivos são lançados a fim de garantir a preservação da heteronormatividade: rosa, brincos, bonecas, saias e vestidos para as meninas; azul, bolas, calças, revólveres para os meninos. E, assim, o mundo infantil se constrói sobre proibições e afirmações (BENTO, 2006). Francisca relata que desde pequena se sentia diferente, que não agia como a maioria dos meninos, fazendo “coisas de meninos” ou tendo o comportamento esperado de um garoto. “Eu queria brincar de boneca, andar de salto, usar maquiagem. Sempre fui delicada, menininha. Eu não tinha nada de menino". Não é difícil encontrar na literatura relatos de pessoas transexuais como os de Francisca em relação ao sentimento de inadequação desde a infância. 31

A travesti Amara Moira (2017) conta das tantas vezes que brincou escondida com as bonecas da sua irmã e de quando vestia suas roupas sem que a vissem. Relata também a sensação de liberdade e leveza que sentia ao brincar de amarelinha e pular elástico em meio às primas no interior de São Paulo. João Nery (2017), primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil, afirma que se sentia menino desde os quatro anos de idade. João lembra que, aos seis anos, começaram a chamá-lo de Maria Homem na pracinha em que brincava perto de casa. Acrescenta que cresceu como uma criança só e triste, já que não conseguia entender por que o tratavam como menina. Letícia Lanz, mulher transexual que fez sua transição de gênero após seus 50 anos, também fala do sentimento de mal-estar desde a infância em relação ao rótulo de “menino” que lhe havia sido dado ao nascer.

Sentia apenas aquela necessidade premente de fazer certas coisas que os adultos imediatamente repeliam dizendo tratar-se de “coisas femininas”. Coisas que eu fazia com muita naturalidade, como se tivessem sido feitas sob medida para mim. Eu sentia muito conforto em fazer aquelas coisas como se, ao fazê-las, eu conseguisse expressar externamente a pessoa que eu sentia ser internamente. (LANZ, 2014, p. 11).

Segundo Alexandre Saadeh e colaboradores (2018, p. 88), psiquiatra e coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (AMTIGOS-IPq-HCFM/USP), fundado em 2010, “geralmente as crianças têm a sua identidade de gênero congruente com seu sexo biológico, mas não são todas que se identificam totalmente com as características sexuais do seu nascimento". Nessa perspectiva biomédica, a criança que não se identifica com o gênero imposto ao nascimento é considerada uma criança transgênero. Crianças de 3 a 5 anos podem transitar sua autopercepção de identidade de gênero. Quando a criança começa a falar e a se expressar, ela utiliza diversas maneiras para demonstrar a identidade de gênero com a qual se identifica, inclusive nomeando-a. Para a equipe do AMTIGOS, é preciso permitir que a criança experimente todas as facetas da identidade com que se identifica, sem forçá-la à congruência ou não ao seu sexo biológico (SAADEH et al., 2018). Para Francisca, a manifestação de sua identidade se deu ainda na primeira infância:

[...] desde muito cedo. Minha mãe sempre soube. Depois de grande fui conversar com ela e ela falou que sempre soube. Ela disse que quando eu tinha três anos de idade minha 32

tia veio avisar ela que eu era gay. E ela disse: “Ele não é gay, ele vai ser igual a Roberta Close quando crescer!”. Ela tinha certeza3. Entretanto, a imposição social heteronormativa parece reinar e não abrir espaço para que as experimentações de gênero na infância, ainda que lúdicas, sejam realizadas pelas crianças que sugerem fugir dos padrões esperados. Assim como exposto no discurso de Francisca e em alguns relatos encontrados na literatura sobre o tema, o sentimento de inadequação, de sentir-se diferente dos demais, é comum e persistente entre crianças ditas transgêneros. Algumas roupas passam a ser proibidas, outras brincadeiras e companhias são vetadas. Assim, “o cerco se fecha” e as possibilidades de existência começam a se restringir. São essas proibições traduzidas em discursos impositivos sobre seus corpos, somadas à contradição percebida em relação a sua autopercepção e seu tratamento social, que levam crianças ao isolamento e à tristeza. Em muitos casos, essa apatia e embotamento acabam levando ao diagnóstico de disforia de gênero. Para Alexandre Saadeh e colaboradores (2018, p. 88), “[...] a disforia de gênero só é diagnosticada se a criança vivenciar um sofrimento profundo por causa de sua transgeneridade e essa investigação for feita e confirmada pelo profissional da saúde". A equipe salienta:

Uma criança que sofre de angústia como resultado de sua identidade de gênero, especialmente se é intimidada ou marginalizada, vivencia maior risco para desenvolver quadros psiquiátricos, como transtornos de ansiedade, depressão e abuso de substâncias, entre outros. (SAADEH et al., 2018, p. 88).

Os autores acrescentam ainda que o aumento dos índices de suicídio é três vezes maior se comparados a crianças não transgêneras. Entretanto, é na adolescência que as pessoas transexuais vivenciam um dos momentos mais críticos. É nessa fase que a transexualidade se revela para as pessoas de convívio mais próximo, já o que corpo passa por mudanças visíveis, como o surgimento dos pelos, seios, mudança da voz e chegada da menstruação e o incômodo em relação ao próprio corpo se intensifica. Francisca relata que na sua adolescência, com 15-16 anos, ainda era um menino, mas já sentia que era diferente: “[...] mas nem eu sabia direito o que eu era, sentia que era diferente no mundo. Não conhecia a definição trans ainda”4. Apesar de ainda não conhecer a definição trans e, portanto, não se reconhecer como uma transexual, a fala de Francisca aponta para sua não identificação com o gênero masculino. Ela já usava cabelos compridos e conta que a moda “emo” facilitou para que pudesse usar maquiagem

3 Entrevista concedida por Francisca em 22 de jul. 2019, São Paulo, para a autora. Ao decorrer deste trabalho, usaremos trechos transcritos desta entrevista, que encontra-se integralmente transcrita no Apêndice C. 4 Trecho de entrevista. 33

e roupas mais justas. “Eu era uma ‘rouqueirinha’”, disse ela referindo-se às artimanhas que usava para furar as barreiras de gênero impostas a um menino adolescente. Francisca foi, desde cedo, criando saídas, caminhos alternativos para expressar quem era e como se sentia.

Eu lembro de uma menina que ela também era assim como eu, e a gente às vezes trocava o crachá. Eu não queria ficar com o nome de guri estampado, nem ela ficar com o dela. Daí a gente trocava. [...] Mas eu era menino ainda, né (sic)5.

Em relação a se descobrir enquanto uma mulher transexual, Francisca diz que foi “perturbador” se ver dessa maneira.

Quando a Ariadna entrou no Big Brother. Foi quando eu falei: ‘Nossa, eu sou isso". Eu não tinha o conhecimento. Pra mim existia o travesti, que era um homem que colocava as roupas de mulher e pronto. E que aquilo é pecado, que nunca vai ter jeito. Aí, quando eu vi a Ariadna eu vi que tinha como fazer a cirurgia. Naquela época eu pensava muito em fazer a cirurgia, eu pensava que seria uma mulher completa. Mas mudei essa parte, porque eu já entendi que eu aceito o meu corpo do jeito que ele é, eu sou uma mulher completa independente de cirurgia ou não, que tá tudo na cabeça.

[...] Foi perturbadora (a descoberta de ser trans). As pessoas comentavam que eu era uma mulher trans, mas eu dizia que não. [...] E eu achava que era muito errado. E aí foi muito mais forte do que eu. Não foi agora e pronto, foi acontecendo. [...] Eu tomava comprimido escondido, minha tia vinha com pacote de anticoncepcional e eu tomava 2 comprimidos, depois dizia que ia parar, mas tomava outro comprimido, parava, esquecia. Até que eu vi uma amiga que conhecia quando mais nova, eu vi ela, na internet, feminina, tinha virado uma trans, e aí perguntei o que ela tava tomando e ela me levou na farmácia6.

Para Alexandre Saadeh e colaboradores (2018, p. 89), o contexto da adolescência é complicado, pois o “adolescente trans fica vulnerável e necessita se encontrar em outras referências: fazer parte, pertencer a um grupo de pessoas que tenham similaridades, que estejam sentindo ou passando pelas mesmas coisas na vida". As falas de Francisca evidenciam o quanto conhecer outras pessoas trans (na mídia ou pessoalmente) foram definitivas para que ela pudesse compreender a si mesma como fazendo parte de um grupo, se enquadrando em uma categoria que não fosse a de anormal, “coisa do demônio”, ou algo do tipo “muito errado”. Para Guacira Lopes Louro (2000), apesar de por muito tempo acreditarmos que a sexualidade é algo íntimo, singular, individual, é preciso compreender que a sexualidade, além de pessoal, é também social e política. Para a autora, ela é construída ao longo de toda a vida, de muitos modos, e as interações sociais que estipulamos auxiliam nessa construção.

5 Trecho de entrevista. 6 Trecho de entrevista.

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Antônio da Costa Ciampa (2011) também afirma que a construção identitária é um processo político e que dá corpo a uma ideologia. Para o autor, identidade é ação, fazer, refazer, relação. É na relação com os outros que assumimos determinados “personagens”, “papéis”, que acabam por constituir nossa identidade de maneira plural e não fixa. Nas palavras do autor: “identidade é a articulação da diferença e da igualdade”, não podendo ser estática, fixa, algo ou coisa. Identidade é ação, atividade, é metamorfose (CIAMPA, 2011, p. 138). Dessa forma, é no âmbito da cultura e marcadas pela historicidade que se definem as identidades sociais, sejam elas as de raça, classe ou gênero. Todos somos sujeitos de identidades transitórias, fragmentadas, instáveis e plurais. Nesse processo, o indivíduo não participa como mero receptor, mas está implicado, sendo participante ativo na construção de sua identidade (LOURO, 2000). Quando Francisca olha para sua trajetória, ela também explicita o caráter revolucionário e de resistência que assumir sua identidade transexual carrega:

Não é fácil. Não tem como alguém dizer que é opção você escolher ser trans. Ninguém quer ficar apanhando todos os dias, correndo risco de morte. Você passa um conflito tão grande dentro de você pra tomar coragem para se transformar, renascer de novo. É muito complicado. Quantas vezes eu já chorei me questionando por que eu fui escolher ter passado por tanto constrangimento. [...] Só que é mais forte que a gente. Quando eu fui ver já tava tomando hormônio, já tinha trocado as roupas, foi uma coisa de extinto. Eu não aguentava7. Para Guacira Lopes Louro (2000) é por meio de múltiplas estratégias de disciplinamento que aprendemos a vergonha e a culpa. Assim, experimentamos a censura e o controle na tentativa de evitarmos que nossa identidade dita inadequada seja vivenciada livremente. Como afirma Alexandre Saadeh e colaboradores (2018, p. 89), “[...] é importante salientar que nenhum pai ou profissional seria capaz de incentivar ou estimular a criança a se debater com essas questões. Quando se trata de identidade de gênero, não há ingerência externa para mudá- la". Compreende-se que a identidade de gênero não pode ser escolhida, mas é, antes, um processo subjetivo, marcado por constantes identificações e refutamentos dentro das imposições vindas do meio sociocultural em que a pessoa está inserida. De maneira geral, nossa identidade social está, então, sempre suscetível a transformações oriundas da negociação entre nossos desejos, anseios e as normas sociais que (teoricamente) nos apresentam quais são os caminhos possíveis de existência. Sendo assim, a identidade sexual não pode ser vista de forma isolada. “Nossas identidades de raça, gênero, classe, geração ou nacionalidade estão imbricadas com

7 Trecho de entrevista.

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nossa identidade sexual e esses vários marcadores sociais interferem na forma de viver a identidade sexual.” (LOURO, 2000, p. 24).

B) Relações familiares – “Família foi feita pra isso, pra pai e mãe cuidarem dos filhos, dar amor, dar carinho.”

Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o conceito de família não se refere apenas à família nuclear, formada pelos pais ou cuidadores principais e irmãos/irmãs. Para o ECA, a família se estende para além da unidade pais e filhos e é também formada por parentes próximos com os quais as pessoas convivem e mantêm vínculos de afinidade e afetividade. Segundo João Paulo Zerbinati e Maria Bruns (2018), a instituição familiar é complexa, plural e sofre modificações influenciadas pela cultura e pelas marcas singulares de sua história. Dessa forma, a família vem sendo revisitada e adquirindo novas formações, haja vista as novas famílias de pais divorciados, madrastas, padrastos, mães solos, famílias homoafetivas etc. Ainda assim, sua função vital continua sendo a de “oferecer cuidado, fornecer terreno suficientemente bom para o germinar e amadurecimento de suas proles.” (ZERBINATI; BRUNS, 2018, p. 40). O ECA ainda determina que a família, assim como a sociedade e o Estado, tem também o dever de assegurar a “[...] efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”8. Nesse cenário, João Paulo Zerbinati e Maria Bruns (2018, p. 40) afirmam que:

No contexto histórico atual, a família é instigada a unir o tradicional ao contemporâneo no qual o gênero se insere de modo pulsante, em trânsito conceitual e fenomenal. A família com filhos que não mais se enquadram aos padrões cisnormativos é um fenômeno crescente, atual, com iniciais pesquisas científicas, o que instiga e demonstra sua relevância investigativa.

É na família também que ocorrem as primeiras experiências de socialização e, portanto, de experimentações identitárias. Sendo assim, as famílias exercem papel importante no desenvolvimento psíquico e social e no desenvolvimento da sexualidade de seus integrantes. É a família também a principal responsável por transmitir valores e distribuir papéis que perpassam e mantêm as normas socialmente construídas e que regem as relações de gênero (CAMPOS; TILIO; CREMA, 2017, p. 155). As autoras concluem que:

Apesar de apontada como local de cuidado a família também aparece como ambiente de controle estando os pais incumbidos de transmitir aos filhos as normas culturalmente

8 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm. Acesso em: 04 jan. 2020. 36

instituídas que regem o comportamento sexual considerado adequado no coletivo. (CAMPOS; TILIO; CREMA, 2017, p. 155). Talvez por saber que sua condição transexual se colocava no sentido contrário aos valores que sua família lhe transmitiu, Francisca lutou contra seu desejo de viver socialmente como uma mulher. Durante nossa conversa, fica evidente a importância de seus pais em sua construção identitária e a maneira como ela tenta preservá-los dos efeitos socioemocionais que se expor como uma mulher trans poderia causar à família. Nessa tentativa, os pais parecem ser “os últimos a saber”, já que Francisca esconde por um bom tempo seu processo de transição. Já com mudanças físicas em seu corpo, em casa, Francisca ainda era João: “Eu, nesta época tinha muito medo dos meus pais. Não imaginei que eles iam me aceitar, então eu me trocava escondida para sair de casa". Ainda que suas unhas estivessem pintadas, usando maquiagem, cabelos longos, suas vestimentas em casa ainda eram masculinas. Francisca conta que vem de uma família evangélica e escutava muitas coisas a respeito do que era ser travesti, transexual. Entretanto, em um movimento de resistência e sobrevivência, começou a assumir sua identidade trans. Foi em uma festa de natal que Francisca apareceu pela primeira vez para sua família como uma mulher: O dia que eu choquei mesmo (sic) em casa foi no natal. Eu comprei um short, uma sapatilha e uma blusinha. Cheguei em casa, saí do trabalho e fui para casa. Todo mundo ficou sem entender nada. Rabo de cavalo, tinha o cabelo grande9. Ainda assim, nada foi dito de maneira explícita, não houve uma conversa formal sobre o assunto, e seus pais seguiam a tratando pelo nome masculino de batismo.

Não sabiam do meu nome, mas por me verem fisicamente, estava nítido que tinha uma mulher ali.

Mas eu me sentia eu mesma. Só que com o nome, meus pais ainda me chamavam de João. Até que eu conheci um rapaz e a gente começou a namorar. Um dia eu levei ele a uma festa da família, e minha família me chamava pelo meu nome. Daí ele falou ‘Não, essa é a Francisca. Aí a minha mãe: ‘Ãh?’ (sic), não entendeu nada. E ele: “É, a Francisca!”10.

Segundo Maria Tereza Campos, Rafael De Tilio e Izabella Crema (2017), estudos apontam para a importância da família na sexualidade e na identidade de gênero dos jovens/adolescentes e crianças. As pesquisas destacam a importância da existência de diálogos sobre sexualidade no contexto familiar e do papel dos pais nesses processos de desenvolvimento e descobertas dos filhos. Ainda assim, segundo as autoras, os diálogos costumam ser escassos e, quando ocorrem, centram-se na prevenção de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.

9 Trecho de entrevista. 10 Trecho de entrevista.

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A experiência de Francisca também parece ter sido permeada pela falta de diálogo com os pais. Suas descobertas em relação à transexualidade foram baseadas em investigações individuais em seu meio social, no ambiente de trabalho, com amigas. Ainda assim, a aceitação familiar foi sendo construída na relação entre seus integrantes de maneira gradual. Quando questionada se o processo de aceitação de sua transexualidade foi mais fácil com seu pai ou com sua mãe, Francisca responde:

Na verdade com os dois. Eu achei que ia ser superdifícil. A gente nunca sentou e conversou, não. ‘Eu sou mulher e a partir de agora sou Francisca". ‘Ela é mulher’, [...] os dois se resolveram lá (sic). Minha mãe contou que ela tinha muito medo da família, do que eles iam achar, mas acabou que as pessoas viram, me conhecem, sabem que eu sou uma pessoa boa, que eu não tenho má índole. Minha avó de 70 anos me chama de Francisca como se o meu passado tivesse sido apagado11.

João Paulo Zerbinati e Maria Bruns (2018, p. 45) afirmam que “[...] o preconceito social, no qual a rejeição familiar e não aceitação da condição de identidade de gênero se destacam, são os principais fatores de risco para problemas de saúde mental". Estudos como o de Olso e colaboradores (2016 apud ZERBINATI; BRUNS, 2018) apontam que a vulnerabilidade da população trans a problemas de saúde mental parece estar relacionada muito mais a fatores interpessoais e sociais, influenciados por um ambiente hostil e de negligência familiar, do que à autopercepção enquanto pessoas trans. Esse mesmo estudo demonstra níveis mínimos de depressão e ansiedade em crianças transexuais que são apoiadas pela família e rede social em sua transição. Sobre se sentir aceita em sua família, Francisca comenta:

Minha mãe ela fala que teve três filhos: meu irmão, meu antigo eu, que foi viajar, e eu. Então, são três filhos. [...] Eu acho que é uma forma dela aceitar. O importante é que eles me amam e me respeitam. E realmente é verdade, são três filhos. Meu pai sempre sonhou ter uma filha mulher. Ele tem mesmo, morre de ciúmes (sic)12.

Porém, não são todas as famílias que conseguem aceitar e acolher um integrante trans em seu seio. Bruna Benevides e Sayonara Nogueira (2019) falam de um ciclo de violência e exclusão a qual as pessoas trans são submetidas. Para as autoras, esse ciclo se inicia dentro de casa, quando, por não serem compreendidas em suas identidades de gênero, pessoas trans são expulsas de seus lares e colocadas na rua. Estima-se que 13 anos de idade seja a média das travestis e mulheres transexuais quando são expulsas de casa. Para Francisca, a família tem uma função estruturante e fundamental. Família é tudo. Se você não tem o apoio da família, não vai ter onde morar, não vai ter uma estrutura. Pra onde você vai? É o que acontece, vai pra rua, pra marginalidade. Se

11 Trecho de entrevista. 12 Trecho de entrevista. 38

eu não tivesse minha família, imagina eu, se minha mãe me jogasse na rua, eu não sei quem me pegaria pra criar? Ou como eu ia me virar? Família foi feita pra isso, pra pai e mãe cuidarem dos filhos, dar amor, dar carinho. Se você não tiver o apoio da família às vezes é muito difícil. Acho que é essencial. [...] na adolescência você tem a família, ou pai, ou avô, ou um amigo que se torna família pra te ajudar, porque como uma criança vai trabalhar, uma criança de 8 a 10 anos? Não tem como. Acho que mais uma questão de estrutura13.

C) Instituições de ensino – “Teve algo que aconteceu, [...] isso eu não esqueço até hoje, às vezes até choro.”

Segundo Berenice Bento (2011), a escola é uma das instituições centrais no projeto de reprodução da heteronormatividade e das normas de gênero se apresentando como uma organização incapaz de lidar com a diferença e a pluralidade. Nesse sentido, se organiza para garantir a produção de seres abjetos, aqueles lidos como anormais, aberrações, seres menos humanos (como os gays, lésbicas, travestis, transexuais, e todos aqueles que fogem à norma de gênero). Encarando a escola como um espaço (re)produtor de normas de gênero e, portanto, excludente de todos que não se encaixam nessa matriz sexual:

[...] as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se refletem nos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado mas sim se referem a situações do dia-a-dia, a experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior, com colegas, com professoras e professores. As marcas que nos fazem lembrar, ainda hoje, dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente nossa identidade de gênero e sexual. (LOURO, 2000, p. 14).

Quando Francisca relata sua passagem pelo sistema de ensino, seja na escolarização primária, no colegial ou em seu ingresso na universidade, seu discurso se apresenta carregado de lembranças doloridas e de luta.

Então, na escola foi difícil, eu apanhei muito. Desde o primário minha mãe tinha que ir na escola, as pessoas me chamavam de mariquinha (sic). Teve algo que aconteceu, acho que eu estava na terceira série, isso eu não esqueço até hoje, às vezes até choro. Eu lembro que uma menina começou a gritar, tinha uma novela A Senhora do Destino, e tinha um personagem que chamava Ubiraci, um personagem gay que era carnavalesco. E aí uma menina começou a gritar e quando eu fui ouvir todas as crianças do pátio estavam gritando ‘U-biraci, U-biraci’ pra mim, eu lembro que me doeu. Tranquei no banheiro (sic), fiquei lá porque era muita gente gritando, porque naquela época a palavra Ubiraci era para zoar uma pessoa de gay, porque era um homossexual. Foi difícil. Apanhei muito14.

Berenice Bento (2011, p. 552) utiliza o termo “heteroterrorismo” para se referir aos enunciados que incentivam ou inibem comportamentos, assim como os insultos e piadas

13 Trecho de entrevista. 14 Trecho de entrevista. 39

homofóbicas. Segundo a autora, é a cada “reiteração do/a pai/mãe ou professor/a, a cada ‘menino não chora!’, ‘comporta-se como menina!’, ‘isso é coisa de bicha!’, que a subjetividade daquele que é o objeto dessas reiterações é minada". A homofobia, consentida e ensinada na escola se expressa pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse "contagiosa”, instaura-se um sistema de “segregação sexual”, isolando aqueles que não se enquadram na norma heterossexual (LOURO, 2000). Francisca relata que na escola não tinha amigos e sentia-se solitária:

No colegial foi bem punk (sic), eu era muito isolada, eu era aquela criança a última a ser escolhida. Eu nem jogava bola, quando era pra juntar time, ninguém queria saber de mim, eu era gordo, me chamavam de bicha, de tetinha, viadinho (sic).

Então foi uma fase bem chatinha (sic). Eu não tive muitos amigos, meu álbum de formatura tá vazio, tem a minha família, só. Hoje as pessoas dizem: “Nossa, como você mudou, como você tá linda”, e querem me lamber (sic). Mas na época ninguém ligava pra mim, pra como eu estava15. O que ocorre é que a exclusão social se estende ao ambiente escolar, onde pessoas transexuais têm dificuldade de se fazer presente. Nesse caso, como afirmam Cecília Almeida e Victor Vasconcellos (2018), a questão não reside no acesso à educação, mas na dificuldade que crianças e adolescentes que não se enquadram nos padrões heteronormativos de gênero possuem em permanecer na escola, especialmente quando começam a performar sua identidade de gênero. Berenice Bento (2011, p. 556) reforça o caráter normativo que impera no ambiente escolar. Para a autora, há um projeto social mais amplo que normatiza condutas, como “uma engenharia de produção de corpos normais”, que vai além dos muros da escola, mas que encontrará nesse ambiente um terreno fértil de disseminação. Dessa forma, as pressões por condutas heteronormativas se traduzem em atitudes violentas, de exclusão e desumanização, transformando esses jovens em seres anormais e, portanto, recipientes das mais diversas violências psicológicas e físicas. A autora esclarece que existe um desejo de eliminar aqueles que poderiam contaminar o espaço escolar e, portanto:

Há um processo de expulsão, e não de evasão. É importante diferenciar “evasão” de “expulsão”, pois, ao apontar com maior precisão as causas que levam crianças a não frequentarem o espaço escolar, se terá como enfrentar com eficácia os dilemas que constituem o cotidiano escolar, entre eles, a intolerância alimentada pela homofobia. (BENTO, 2011, p. 555).

15 Trecho de entrevista.

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Francisca abandonou seu curso na universidade em função de uma transfobia veleda que a proibiu de usar o banheiro feminino, sendo “convidada a usar o banheiro de deficientes”, segundo seu depoimento. Para a universidade, o banheiro para deficientes seria até melhor, “era mais limpinho” disseram a ela. Francisca conta que não aguentou essa situação.

E depois na faculdade, no primeiro trimestre, já me chamaram na diretoria, pois uma moça falou que uma funcionária de lá não se sentiu à vontade comigo no banheiro. Eu parei, parei total. Eu fiquei 4 anos sem estudar. Fiquei bem mal, falei: “Chega, cansei. Agora vou me dedicar ao trabalho!”. Aí eu voltei, só que em outra universidade16. Um dos dispositivos utilizados para marcar a ocupação desses espaços são os banheiros. Essa questão aparece na fala de Francisca também na experiência escolar:

Já mais velho, no banheiro, tinha que esperar todo mundo sair. Acabava o intervalo, todo mundo voltava para sala e eu ouvia muitas reclamações dos professores porque eu ia no banheiro só quando as pessoas saíam porque se eu entrasse no banheiro masculino, os meninos jogavam água por cima da porta pra me molhar, ficavam zoando, querendo passar a mão na minha bunda (sic)17.

Paul Beatriz Preciado (2013) afirma que os banheiros públicos, desde o século XIX, vêm sendo construídos como uma tecnologia arquitetônica de gênero. Nas palavras do autor: “[...] nós não vamos aos banheiros para evacuar, mas sim para fazer nossas necessidades de gênero. Não vamos para mijar, mas sim para reafirmar os códigos da masculinidade e da feminidade no espaço público". De distintas maneiras, as escolas e universidades se apresentam como lugares inóspitos para as diferenças, colocando no indivíduo e no singular a inadequação. É preciso lembrar que essas instituições não estão isoladas da sociedade, mas, ao contrário, reproduzem em seu interior as normas ditadas por toda estrutura social. Neste capítulo localizamos o gênero enquanto performance, ou seja, como uma identidade constituída no tempo por meio da repetição estilizada de atos que estão a serviço da manutenção das matrizes hegemônicas de gênero, matrizes essas que ditam nossas condutas (BUTLER, 2003). Além disso, explicitamos como os corpos que não seguem as diretrizes de gênero são colocados à margem social, como corpos que não possuem valor, corpos anormais, abjetos. Através do relato de Francisca ficou evidente o quanto as matrizes de gênero atuam de maneira precisa e regulam quais são as possíveis formas de existir. Por muito tempo Francisca não enxergava uma maneira possível de vivenciar sua identidade como uma mulher por ter

16 Trecho de entrevista. 17 Trecho de entrevista. 41

aprendido que quem nasce com um pênis só pode viver como um homem. Ela aprendeu de diversas formas o quanto se entender como uma mulher seria errado e como essa condição poderia lhe colocar coletivamente enquanto um “monstro”, um erro, uma anormalidade. Podemos compreender o quanto, para Francisca, entrar em contato com pessoas parecidas com ela, seja pessoalmente ou mesmo na mídia, possibilitou que ela vislumbrasse uma forma de viver possível. “Eu sou isso”, disse ela ao conhecer uma mulher transexual pela televisão. Foi assim que Francisca percebeu que “ser ela” era possível. Mesmo com uma família evangélica, que compreende a transexualidade como “como algo do demônio”, foi através de um processo gradual de performar seu gênero feminino dentro de casa que Francisca recebeu apoio de seus familiares. Como afirmado por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira (2019), é na família que se inicia o ciclo de violência. Esse apoio familiar recebido por Francisca parece ter sido decisivo para que ela conseguisse se manter com uma estrutura mínima: ter onde morar, comer, conseguir estudar e ter apoio para isso. Aqui a história de Francisca se diferencia de grande parcela da população trans que é expulsa de casa em função de sua identidade de gênero. Sem o apoio familiar, o cenário se transforma para essa população e as oportunidades são muito mais escassas. O sistema de ensino, para Francisca, se mostrou um instrumento eficaz de homofobia e transfobia, fazendo com que a experiência de Francisca na escola e na faculdade tenha sido marcada pela solidão e pela violência. Entretanto, com o apoio da família, Francisca se manteve estudando e chegou ao ensino superior, contrariando os estudos que afirmam que grande parte da população trans não possui níveis básicos de escolaridade (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019). O objetivo deste capítulo foi situar o gênero enquanto produto social, cultural e histórico, explicitando o quanto as normas heterossexuais e binárias de gênero impactam diretamente em nossa constituição enquanto sujeitos. Para isso, trouxemos a experiência de Francisca como uma mulher trans e os impactos dessa vivência na sua relação com a família e com o sistema de ensino. No próximo capítulo, traremos o tema da empregabilidade relacionado à população trans em diálogo com a experiência de Francisca.

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3. TRABALHO E POPULAÇÃO TRANS

[...] eu comecei a dar aulas de Literatura num colégio grande da região. Importante pontuar isso: eu, no segundo ano da graduação em Letras, nenhuma experiência profissional anterior que me qualificasse e mesmo assim consegui o emprego... Hoje, terminando o doutorado em Teoria Literária na Unicamp, estudando a obra de James Joyce, um dos autores mais difíceis da literatura ocidental, e nenhum colégio me contrataria como professora. Por quê? Porque é preciso coragem para contratar uma travesti, é preciso comprar briga com os demais professores, funcionários, alunos, pais de alunos. E ninguém está disposto a comprar essa briga, não por uma travesti. (MOIRA, 2017, p. 34).

Este capítulo tem como objetivo explicitar a centralidade do trabalho em nossa sociedade contemporânea e como, a partir dessa noção, a prática laboral marca o aspecto social e relacional do ser humano. Nesse contexto, traremos a bibliografia encontrada a respeito da empregabilidade de pessoas trans para dialogar com a experiência laboral de Francisca a partir das categorias passabilidade; transfobia; relações de trabalho. Atualmente, a atividade laboral ocupa um espaço que vai além de ser apenas um meio de satisfação das necessidades materiais básicas. O trabalho é também fonte de experiência psicossocial, de identificação e de autoestima, de desenvolvimento das potencialidades humanas. Assim, torna-se um meio fundamental para alcançar o sentimento de participação nos objetivos da sociedade e também um importante fator constitutivo de nossa identidade profissional e social (NAVARRO; PADILHA, 2007). Entretanto, como veremos, de forma paradoxal, essa atividade também se tornou um marcador social de exclusão e marginalidade. Ricardo Antunes (2002) parte da concepção marxista (MARX, 1983) de que é por meio do trabalho que o homem se torna um ser social, tendo o seu significado um caráter plural e polissêmico. Para o autor, a história da realização do ser social objetiva-se através da produção e reprodução da sua existência e esse ato social se efetiva através do trabalho. Em suas palavras:

O trabalho desenvolve-se pelos laços de cooperação social existentes no processo de produção material. Em outras palavras, o ato de produção e reprodução da vida humana realiza-se pelo trabalho. É a partir do trabalho, em sua cotidianidade, que o homem torna-se ser social, distinguindo-se de todas as formas não humanas. (ANTUNES, 2002, p. 123).

Aqui se faz importante pontuar que estamos nos referindo ao trabalho em sua condição autônoma, autodeterminada e libertadora, de caráter coletivo e social, diferentemente da forma de trabalho na atualidade, como veremos mais adiante no texto (FURTADO, 2011; ANTUNES, 2002). Diana Neves e colaboradores (2018) pontuam que as concepções de trabalho são resultado de um processo histórico. Portanto, o desenvolvimento e a propagação dessas concepções estão diretamente vinculados à evolução dos modos e das relações de produção, da 43

organização da sociedade como um todo. Isso significa que as concepções de trabalho se atualizam através do tempo, estando associadas a interesses econômicos e políticos. Como pontuado anteriormente, nas sociedades primitivas, o trabalho possuía um caráter coletivo e autônomo. No decorrer do desenvolvimento das civilizações, o significado do trabalho passa a se relacionar com a noção de emprego/ocupação, com conotações de exploração e sofrimento (FURTADO, 2011). Com o início e o crescimento do sistema capitalista, “[...] o trabalho perde seu caráter concreto, sendo reduzido a meio de sobrevivência, de aquisição de dinheiro para que necessidades humanas possam ser desenvolvidas e satisfeitas.” (FURTADO; SVARTMAN, 2009, p. 91). Nesses termos, o trabalho, antes dotado de sentido e significado para quem o executa, passa a ser dimensionado como emprego, tendo seu sentido restrito a atividade de sobrevivência. Ricardo Antunes (2002, p. 125) acrescenta que na sociedade regida pelo capital “[...] o processo de trabalho se converte em meio de subsistência. A força de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser a produção de mercadorias". O autor afirma que a mais radical constatação de Karl Marx está relacionada à precariedade e perversidade que dominam o trabalho na sociedade capitalista. Como efeito desse modelo de produção, temos o trabalho estranho e alienado. “Isso porque o resultado do processo de trabalho, o produto, aparece junto ao trabalhador como um ser alheio, como algo alheio e estranho ao produtor, que se tornou coisa.” (ANTUNES, 2002, p. 126). Ou seja, no sistema capitalista, em que a propriedade privada e acumulação de riqueza ocupam papel central, o trabalhador não possui mais os meios de produção para vender seu produto. Dessa forma, passa a vender sua própria força de trabalho, distanciando-se tanto do processo de produção quanto do produto produzido por ele mesmo. Seria esse o processo de “desumanificação” do trabalho, em que produto e produtor são transformados em coisa, reduzidos a objetos (VARGAS, 2016). Embasado nos estudos de Engels (1975), Odair Furtado (2011) expõe que é a noção de propriedade privada que induz o sistema social baseado no acúmulo de riqueza e na divisão de classes. Nas palavras do autor:

A forma de acumular riqueza se dá através da exploração de classes, grupos ou ordem de indivíduos que são subjugados pelos que reúnem poder para tanto. Poder físico que submete o outro ou poder simbólico advindo, por exemplo, de crenças religiosas. (FURTADO, 2011, p. 52). 44

Como afirmam Diana Neves e colaboradores (2018, p. 320): “[...] na sociedade capitalista o trabalho passa a ser visto como meio pelo qual uma parte da sociedade sobrevive e a outra parte acumula bens". Diante disso:

A busca incessante do capitalismo neoliberal por lucro, bem como a globalização produtiva, isto é, a lógica do sistema produtor de mercadorias, vem fragmentando os vínculos sociais e as políticas que asseguravam à classe trabalhadora condições mínimas de sobrevivência, gerando uma imensa sociedade dos excluídos e dos precarizados. (OVEJERO, 2010 apud NEVES et al., 2018, p. 321).

No cenário laboral estabelecido pelo capital, alguns trabalham mais e outros menos. Assim, boa parte da população precisa trabalhar de maneira precária para que os lucros e a divisão de classes sociais sejam mantidos. Para Francisco Vargas (2016, p. 315), a precariedade do trabalho possui dimensões tanto objetivas quanto subjetivas. O autor afirma que:

A precariedade pode se manifestar não só através da sensação de risco vivida em determinadas condições de trabalho, mas também através da insatisfação, do desprazer ou sofrimento que se possa ter em relação a ele. A relação subjetiva com o trabalho como ofício, com as atividades e conteúdos de uma ocupação ou profissão, constitui, pois, uma dimensão crucial para apreender a precariedade do trabalho.

Ainda segundo o autor, a precariedade do trabalho pode ser identificada através de critérios que asseguram e garantem os direitos sociais e trabalhistas, como, por exemplo, a situação de formalidade do trabalho ou pela natureza e tipo de vínculo empregatício do trabalhador. Assim como a própria experiência subjetiva que os trabalhadores têm desses mecanismos sociais e institucionais de proteção, reconhecimento e sociabilidade também atuam como indicadores da precariedade existente no trabalho como emprego/ofício (VARGAS, 2016). O trabalho dito informal, caracterizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020) pela soma dos trabalhadores sem carteira assinada (empregados do setor privado e doméstico), sem CNPJ (empregadores e por conta própria) e sem remuneração (auxiliam em trabalhos para a família), é normalmente marcado pela precariedade em relação às condições de trabalho e direitos do trabalhador. Isso porque o sistema de proteções e direitos vinculados ao trabalho representa um importante mecanismo de reconhecimento social e valorização da condição laboral. Além disso, de forma objetiva, a privação de direitos sociais e trabalhistas coloca o trabalhador em uma situação de extrema vulnerabilidade, por exemplo, sem jornada de trabalho definida, sem garantias de previdência ou mesmo em meio a condições de trabalho insalubres (VARGAS, 2016). O trabalho informal e precário atinge com maior força as populações de baixa renda, com menor grau de escolaridade e que estão em situação de desemprego e com dificuldades de se 45

(re)inserirem no mercado de trabalho formal, encontrando na informalidade uma saída para sua subsistência. Normalmente, as chamadas minorias sociais são aquelas mais exploradas nesse sistema de produção e organização social e que ocupam as posições de maior precariedade. Mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência e, mais recentemente, a população LGBT são exemplos de grupos costumeiramente preteridos pelo mercado de trabalho. O IBGE, através da Síntese de Indicadores Sociais referente ao ano de 2018/2019, apontou que pessoas de raça preta ou parda e as pessoas do sexo feminino são aquelas que ocupam cargos com os menores rendimentos médios. Ainda segundo a referida pesquisa, em 2018, os brancos ganhavam em média 73,9% a mais do que pretos ou pardos, e os homens ganhavam, em média, 27,1% a mais que as mulheres (IBGE, 2019, p. 27). Como já mencionado no capítulo 1, em Objetivos e procedimentos, nesta pesquisa a atenção está voltada para um grupo muito particular dentro da comunidade LGBT, que são as mulheres trans e travestis. Além de (e muitas vezes precisamente por esse motivo) serem marcadas como corpos abjetos pelas normas binárias e heterossexuais de gênero, mulheres transexuais e travestis também se encontram em uma situação de marginalidade em meio às relações laborais. O alto índice de violência e exclusão que essas pessoas sofrem será exposto a seguir, auxiliando na compreensão de como se constrói a relação dessa população com o mercado de trabalho.

3.1 Empregabilidade para mulheres transexuais e travestis

Ainda que o Artigo 6º da Constituição Brasileira (1988) preveja o trabalho como um direito civil de todas/os cidadãs e cidadãos, essa não é a realidade de boa parte da população. Atualmente, o Brasil está entre os países com as maiores taxas de desigualdade do mundo, em que, segundo um estudo da Oxfam publicado em 2017, os 5% mais ricos do país detêm a mesma fatia de renda dos 95% restantes (AGUERRE, 2019). Nesse cenário, o desemprego no Brasil torna-se uma importante pauta política e social. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE e divulgada pela Agência de Notícias IBGE (IBGE, 2020), a taxa de desocupação no país apresentou queda no último ano. Se em 2018 a taxa de desocupação estava em 12,3%, em 2019 ela ficou em 11,9%, o que significou 684 mil novos trabalhadores no mercado de trabalho. Ainda assim, o país possui 12,6 milhões de pessoas desempregadas. Paralelamente à queda do desemprego, houve um aumento recorde dos níveis de informalidade. Também segundo o IBGE (2020), 41,4% da população ocupada se encontra na 46

informalidade, a maior proporção desde 2016, quando esse indicador passou a ser produzido. Dos 684 mil novos ocupados citados, 87,1% entraram no mercado de trabalho pela via informal. Ricardo Antunes (2019), em sua fala durante o Seminário Democracia em Colapso18, ocorrido em outubro de 2019, na cidade de São Paulo, afirma que a era em que vivemos hoje, tomada pela tecnologia (ou seja, a era digital), traz consigo a expansão exponencial do trabalho informal, intermitente e sem direitos. Para o autor, o mundo digital convive com o mundo do trabalho informal, e o resultado dessa relação é um trabalho autônomo, invisível, individualizado. Como exemplo dessa atual relação tecnologia/trabalho, temos a pulverização dos aplicativos de serviços como Uber, Rappi, 99Taxis, entre muitos outros. Em meio a esse quadro econômico e político de desemprego vinculado ao crescimento da informalidade, a possibilidade do trabalho formal, com carteira assinada e garantia de direitos, parece se distanciar da realidade de grande parte da classe trabalhadora brasileira. Importante problematizar aqui a noção de “classe trabalhadora”, já que essa não é homogênea e, portanto, é impactada de diferentes maneiras pelo desemprego e pela precarização. Segundo Carolina Bonomi (2017), a classe trabalhadora é composta por uma imensa diversidade que incluiu as relações de gênero, de raça, de sexualidade e todos esses marcadores sociais produzem novas configurações nas desigualdades laborais. A autora afirma que, dependendo da classe social a que pertence, do gênero que se identifica, da cor da pele que possui, serão diferentes e desiguais as possibilidades de acesso a empregos formais, aos postos com melhores salários e a maior ou menor oportunidade de ascensão na carreira. Sendo assim:

O rompimento com a universalidade de “classe” permite pensar nas não tão novas dinâmicas do mundo do trabalho, que discriminam e prejudicam mulheres cisgêneras, negros, negras, homossexuais, lésbicas, homens e mulheres trans. (BONOMI, 2017, p. 69). Ao realizar um recorte de gênero na busca por dados em relação ao mercado de trabalho do país, encontramos informações referentes apenas a “homens” e “mulheres”, o que demonstra o quanto a compreensão de gênero em nossa sociedade está marcada pela visão essencialista e biológica do que é ser homem e ser mulher, pautadas no binarismo. Quando nos referimos especificamente à população travesti e transexual, há uma grande dificuldade no levantamento de dados oficiais de empregabilidade, já que o Brasil não possui esse recorte em suas fontes (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019). Em março de 2018, a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) oficiou à Defensoria Pública da União (DPU) a fim de que esta se manifeste e acione o Instituto

18 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D8HaJXn6Zbs. Acesso em 12 jan. 2020 47

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para incluir as questões demográficas da população LGBT, especialmente da população trans, no censo previsto para 2020 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019). A não existência de dados governamentais oficiais dessa população pode servir como mais um demonstrativo do lugar de invisibilidade social que travestis e transexuais ocupam. Neste estudo, trabalharemos com os dados divulgados pela ANTRA, ainda que esses sejam trabalhados como absolutos e não proporcionais, coletados principalmente através de notificações midiáticas e da sociedade civil. Portanto, o número de ocorrências pode ser ainda maior, tendo em vista o elevado índice de subnotificação. Ainda assim, consideramos importante trabalhar com os dados produzidos pela própria população trans e suas instituições de referência. Além disso, são os dados divulgados pela ANTRA que mais são citados em pesquisas e em matérias sobre empregabilidade trans. Jaqueline Gomes de Jesus (2012) afirma que mulheres transexuais e travestis não possuem acesso a direitos civis básicos, nem mesmo ao reconhecimento de sua identidade. “São cidadãs e cidadãos que ainda têm de lutar muito para terem garantidos os seus direitos fundamentais, tais como o direito à vida, ameaçado cotidianamente.” (JESUS, 2012, p. 11). Segundo dados divulgados pela ANTRA (2018), o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo. Estima-se que hoje a expectativa de vida de uma pessoa trans seja de 35 anos. Em relação ao mercado de trabalho, a instituição informou que 90% das travestis e mulheres transexuais estão se prostituindo hoje no Brasil. Durante a construção desta pesquisa, na busca por referências bibliográficas que tratassem do tema “empregabilidade para pessoas trans”, encontramos poucas publicações com essa especificidade. Na grande maioria dos materiais acessados, a prostituição surgia como a principal forma de sustento de travestis e transexuais, e o preconceito em relação a essa população era considerado um dos principais empecilhos para acessar o mercado de trabalho formal. Marcos Garcia (2007) propõe a existência de um “ciclo vicioso” que relaciona a estigmatização social de transgêneros à entrada na prostituição: “[...] quanto mais estigmatizados, menos carreiras profissionais são a eles(as) acessíveis, levando muitos a se prostituir, o que contribui para aumentar o estigma frente ao grupo, e assim por diante.” (GARCIA, 2007, p. 37). De acordo com Larissa Pelúcio (2008, p. 199 apud RONDAS; MACHADO, 2015), a carência de alternativas “[...] tem feito da prostituição um destino, mais que uma possibilidade de escolha". Entretanto, é importante lembrar que o destino da prostituição nem sempre está associado a sofrimento. Segundo Lincoln Rondas e Lucília Machado (2015), no exercício da prostituição há também a perspectiva da autorrealização profissional já que essa profissão pode ser escolhida 48

pelo prazer que proporciona. No caso das travestis e mulheres trans, a prostituição é um espaço que as possibilita se sentirem desejadas enquanto mulheres, experimentando um corpo feminino capaz de ser atraente aos homens. Ou seja, “[...] o prazer e a satisfação de serem admiradas, elogiadas, cortejadas, aplaudidas e realizadas pelos homens.” (RONDAS; MACHADO, 2015, p. 199). Além disso, a ativista e prostituta trans Indianara Siqueira, no prefácio do livro E se eu fosse pu(t)ra? (MOIRA, 2018), pontua que, enquanto a grande maioria das instituições e espaços sociais rechaçam a presença de travestis, na prostituição elas encontram um espaço de acolhimento e, muitas vezes, de pertencimento. Nas palavras de Indianara:

Eu sempre falava: ser travesti tudo bem, puta jamais. E quando saí de casa, justamente com todas as minhas qualificações profissionais, como chefe de cozinha, cozinheira, pizzaiola etc., ninguém me dava trabalho. Eu teria que sobreviver de alguma maneira, né? Sim, eu dormi na rua, tudo, tudo, até ir, enfim, para a prostituição. Encontrei nas prostitutas justamente uma acolhida, nas travestis prostitutas uma grande acolhida. (SIQUEIRA, 2018, p. 13) O que se encontra é um duplo estigma, tanto em relação às travestis e transexuais quanto em relação às profissionais do sexo. Portanto, é importante ressaltar que a atividade de prostituição no Brasil não é ilegal nem para as pessoas que se prostituem, nem mesmo para seus clientes. “O que se considera crime é o seu fomento e a exploração sexual de pessoas agenciadas por terceiros para a exercerem.” (RONDAS; MACHADO, 2015, p. 195). Nesse sentido, muitas vezes a luta de pessoas trans que atuam na prostituição não é a de acabar com essa profissão, mas antes a de regulamentá-la. Isso porque o que resta a travestis e transexuais normalmente é a prostituição mais barata e precária. Como afirmam Lincoln Rondas e Lucília Machado (2015), o comércio do sexo para essas pessoas é frequentemente marcado pela a falta de proteção e pelos riscos no exercício dessa profissão nas situações de marginalidade social que alguns dos seus praticantes se encontram. Carolina Bonomi (2017, p. 83) acrescenta que, de maneira geral, a maioria das pessoas trans quando conseguem trabalho “o encontram na prostituição, no mercado informal, em serviços terceirizados e/ou como freelancers, dentre outras formas ‘atípicas’ de trabalho, marcadas essencialmente pela precariedade". Segundo Lincoln Rondas e Lucília Machado (2015), outra área de atuação tradicionalmente ocupada por travestis e transexuais em que possuem maior aceitação da sociedade em geral é a de beleza e estética. Para esses autores, não é tão simples dizer se o que leva as travestis a esse mercado é, de fato, uma seleção pessoal ou uma acomodação do socialmente aceitável. Mas eles enfatizam que a área de beleza e estética faz parte da vida e identificação subjetiva das travestis e é muito valorizada por elas. 49

A discriminação no mercado de trabalho formal apareceu de forma explícita e frequente nos estudos para a construção dessa pesquisa. Em relação ao mercado organizacional, a área que surge como maior empregadora de transexuais são as empresas de telemarketing, possivelmente por não necessitar de um contato visual com o público atendido (RONDAS; MACHADO, 2015). Voltaremos a falar sobre esse setor específico no próximo item deste capítulo, visto que a vivência de Francisca no mercado de trabalho formal foi particularmente marcada pelo telemarketing. Carolina Bonomi (2017) afirma que, ao colocar as experiências trans à margem dos processos de inserção social, essa população acaba sofrendo com a falta de acesso à cidadania e aos direitos sociais. Logo, o trabalho que é considerado como direito protegido pela constituição torna-se um espaço de exclusão ou de superexploração, fazendo muitas vezes com que as pessoas trans sejam privadas da sua dignidade humana. Além disso, limitar o espaço de trabalho para travestis e mulheres trans às categorias profissionais convencionadas socialmente como apropriadas a elas ajuda a manter uma certa “homogeneidade” na convivência social, restringindo essa população a apenas alguns locais possíveis para atuação profissional. Locais esses em que essas pessoas são mantidas marginalizadas, deixando a sociedade livre da obrigação de lidar com esse grupo de modo cotidiano, inclusivo e respeitoso (RONDAS; MACHADO, 2015). Diante do exposto, não parece ser à toa que “[...] as reivindicações do movimento das pessoas trans que se tornaram mais fortes nos últimos anos referem-se ao direito à cidadania e ao acesso ao trabalho.” (BONOMI, 2017, p. 71).

3.2 A Experiência de Francisca

Seguindo a mesma estrutura proposta no capítulo anterior, abordaremos a experiência profissional de Francisca em diálogo com as teorizações sobre o tema empregabilidade para pessoas trans. Em um primeiro momento, apresentaremos um breve relato da trajetória profissional da entrevistada para situar sua experiência laboral. Posteriormente, discutiremos a segunda linha narrativa (Quadro 2, p. 51) que apresenta uma cronologia a partir da vivência em cada emprego de Francisca, relacionando-a com a construção de sua passabilidade, com a transfobia vivenciada e com suas relações de trabalho. Francisca trabalha desde os 16 anos, sendo sua primeira experiência profissional como atendente em uma rede de fast food. Nesse período, Francisca relata que já se sentia diferente, 50

mas ainda era um menino e não se identificava como uma mulher transexual, nem mesmo conhecia essa expressão. Saindo do fast food, os dois empregos seguintes de Francisca se dão em duas empresas de telemarketing, sendo esses os locais em que adquiriu suas primeiras experiências administrativas e no atendimento ao consumidor. Carolina Bonomi (2017) afirma que devido à discriminação vivenciada pelas pessoas trans, o telemarketing aparece como uma forma mais rápida e acessível para entrar no mercado formal, acrescentando que esse setor, no meio organizacional, é o que mais emprega a população transgênera. Em entrevista à revista Exame (2018)19, Eliane Terceiro, a superintendente de responsabilidade social da Atento Brasil, empresa de grande porte no ramo de call center, afirma que atualmente a companhia possui 1.300 pessoas trans empregadas nas unidades de todo país. Na reportagem, Eliane pontua que o público trans procura a empresa atraído por vagas com “perfil de primeiro emprego”, com jornada de trabalho de seis horas, em uma função que exige apenas o ensino médio.

Além de ser um ramo em que há grande fluxo de entrada e saída de pessoas, o telemarketing é um trabalho realizado por telefone, em que a(o) funcionária(o) fica “escondida(o)”. Ou seja, apenas sua voz é exposta, não sua aparência. Essa seria uma das razões pelo grande número de pessoas trans nas empresas desse ramo (BONOMI, 2017). A autora pontua ainda que “[...] o telemarketing se transforma em uma opção para pessoas consideradas marginalizadas, como uma forma de garantir seu sustento e um contrato de trabalho que lhes conferem todos os direitos trabalhistas.” (BONOMI, 2017, p. 72). Por meio do portal Transempregos (site com foco em empregabilidade trans, que coloca empresas e candidatos em contato através da divulgação de vagas e envio de currículos), Francisca ficou sabendo de uma vaga de estágio na multinacional Agroquímica e foi aprovada no processo seletivo. Essa empresa possui um programa de diversidade que inclui a população LGBT. No momento em que a entrevista com Francisca ocorreu, ela estava em sua última semana de trabalho na Agroquímica. Seu contrato de estágio estava chegando ao fim e, segundo ela, não existiam vagas efetivas internas para perfis iniciantes naquele momento. Por esse motivo, Francisca havia começado a procurar um novo emprego e, em sua primeira entrevista, foi

19 DESDÉRIO, Mariana. Os números da Atento saltam aos olhos se consideramos a realidade brasileira, na qual 90% dos transexuais atuam na prostituição. Revista EXAME, 12 set 2018. Disponível em: https://exame.abril.com.br/negocios/conheca-a-multinacional-que-emprega-1-300-transexuais-no-brasil/. Acesso em: 10 jan. 2020 51

aprovada para uma vaga de estágio em uma indústria farmacêutica. Ela começaria a trabalhar nessa nova empresa em duas semanas. A seguir, apresentamos a Linha narrativa 2 (Quadro 2.) em diálogo com a teoria encontrada a respeito das categorias: Passabilidade; Transfobia; Relações de trabalho.

Quadro 2 – Linha narrativa 2

Fonte: A autora, 2020.

A) Passabilidade – “Como eu já tenho uma certa passabilidade, hoje está mais tranquilo.”

Amara Moira (2017, p. 24) afirma que “[...] passabilidade diz respeito à leitura social que fazem de você”. Em termos mais específicos, Daniel Yago (2019, p. 60) conceitua passabilidade como:

[...] um termo que designa a possibilidade de uma pessoa transgênero adequar-se ao ou aproximar-se do que dita o padrão estético cisssexual de gênero, predeterminado pelos papéis vigentes em uma sociedade. É frequentemente um critério de exclusão e 52

transfobia para as pessoas que não são “passáveis”, isto é, que não “se passam por” pessoas dentro da norma binária de gênero.

Ou seja, passabilidade vinculada à noção de gênero refere-se ao quanto uma pessoa transexual consegue circular socialmente sem que sua condição trans seja percebida. Dessa forma, passar “[...] diz respeito àquela pessoa que é percebida pelo gênero que deseja ser lida.” (FERREIRA; NATANSOHN, 2019, p. 6). Para estes autores, a construção da passabilidade aponta para a produção social do gênero já que tornar-se passável implica trabalhar sua imagem, sua gestualidade, as inflexões de fala, os modos de agir e se apresentar. No caso de mulheres trans e travestis, inclui-se o uso de maquiagem, sapatos e roupas consideradas femininas, deixar o cabelo crescer ou mesmo fazer uso de perucas. Esse processo envolve também a realização de mudanças corporais mais invasivas, como ingestão de hormônios e realização de cirurgias. Ou seja, uma série de elementos culturalmente construídos que imputam marcadores de gênero a um corpo. Guacira Louro (2000) afirma que, de maneira geral, todos nós investimos muito em nossos corpos. Para a autora, de acordo com as mais diversas imposições culturais, nós construímos nossos corpos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos e morais dos grupos a que pertencemos. Em suas palavras:

As imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza, força são distintamente significadas, nas mais variadas culturas e são também, nas distintas culturas, diferentemente atribuídas aos corpos de homens ou de mulheres. Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios, roupas, aromas, adornos, inscrevemos nos corpos marcas de identidades e, consequentemente, de diferenciação. Treinamos nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e aprendemos a classificar os sujeitos pelas formas como eles se apresentam corporalmente, pelos comportamentos e gestos que empregam e pelas várias formas com que se expressam. (LOURO, 2000, p. 11).

Francisca nos conta sobre sua rotina diária e como os cuidados ditos femininos aparecem no seu dia a dia, desde o uso de maquiagem à preocupação com a combinação de roupas e sapatos:

Olha, a minha rotina aqui depende do dia. Se eu acordo mais cedo, tenho que pensar qual roupa que eu vou pôr, o sapato que vai combinar, aí vou arrumar o cabelo. Se der tempo eu passo maquiagem, se não, eu maquio depois que eu chego aqui quando dá, na hora do almoço. Assim, almoço e volto rapidinho pra passar maquiagem (sic)20.

O termo passabilidade é muito comum na comunidade trans e Francisca o utiliza com naturalidade. Durante a entrevista é possível perceber como ela foi construindo a sua noção de

20 Entrevista concedida por Francisca em 22 de jul. 2019, São Paulo, para a autora. Ao decorrer deste trabalho, usaremos trechos transcritos desta entrevista, que encontra-se integralmente transcrita no Apêndice C.

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“ser passável”. Mesmo quando vivia socialmente como um garoto, Francisca já usava cabelo comprido e uma maquiagem “emo”, características que com frequência são socialmente lidas como femininas. Verifica-se aqui que não são apenas cabelo longo ou uso de maquiagem que constroem a passabilidade de uma mulher trans, mas uma série de elementos combinados que lhe permitem ser reconhecida enquanto uma mulher cis. Para Francisca, é possível perceber que o processo de tornar-se passável começou de fato a partir do momento em que começa a se hormonizar, ainda que, no princípio, resistisse em fazer uso de hormônio. Meu cabelo, desde a época do fast food já era desse tamanho (sic). Eu tomava comprimido escondido, minha tia vinha com pacote de anticoncepcional e eu tomava 2 comprimidos, depois dizia que ia parar, mas tomava outro comprimido, parava, esquecia. Até que eu vi uma amiga que conhecia quando mais nova, eu a vi na internet, feminina, tinha virado uma trans, e aí perguntei o que ela tava tomando e ela me levou na farmácia.

Aí, ela disse que ia me levar para tomar (sic). Eu falei: “Agora é a hora, eu vou”. Eu sempre tive muito medo de injeção. Aí eu fui, mas eu desisti na hora. Não quis tomar injeção, falei que iria doer. Mas acabou que tomei, e tomo até hoje21.

A hormonização provocou mudanças em seu corpo que permitiram a vivência de sua identidade de gênero feminina de maneira mais intensa: “Aí eu compreendi o caminho e fez a diferença no corpo, no rosto. Acho que são as únicas coisas que mudam mesmo. A pele, o corpo, os seios crescendo... Comecei a me sentir muito completa". Além da atenção a vestimentas, acessórios e ao uso de hormônios, a questão da cirurgia de redesignação sexual para transexuais muitas vezes também é um desejo daqueles que querem “adequar” o órgão sexual ao gênero com o qual se identificam. Em relação à realização da cirurgia de redesignação de sexo, Francisca comenta:

Naquela época, eu pensava muito em fazer a cirurgia, eu pensava que seria uma mulher completa. Mas mudei essa parte, porque eu já entendi que eu aceito o meu corpo do jeito que ele é, eu sou uma mulher completa, independente de cirurgia ou não, que tá tudo na cabeça (sic)22.

Ainda que a hormonização tenha tido impacto em relação às suas transformações corporais e à maneira como passou a se reconhecer, a cirurgia de redesignação sexual não é um desejo de Francisca atualmente. Sua fala sugere corroborar a noção performática de gênero, ou melhor, de “ser mulher”, que não está vinculada a uma condição biologicamente imposta pelos genitais. Como ela afirma, para ser uma “mulher completa” ela não precisa de uma vagina.

21 Trecho de entrevista. 22 Trecho de entrevista.

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Nesse sentido, a passabilidade está estritamente ligada ao conceito de gênero enquanto performance. Como explicitado no capítulo anterior,

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (BUTLER, 2003, p. 59).

A estilização de atos repetidos pela qual o gênero se materializa no corpo só existe pela regência das leis heteronomativas e cisnormativas (ou seja, que compreende os corpos cissexuais como naturais, dentro da “normalidade”). A performatividade é justamente a reiteração desse conjunto de normas. Sérgio Ferreira e Leonor Natansohn (2019, p. 11) acrescentam:

Os processos de passabilidade apontam para a prática performática do gênero e expõem entendimentos do que é tido como norma em ser homem ou ser mulher nas sociedades, nos próprios atributos que são recorridos para se alcançar tal condição.

Jorge Leite Junior (2008, p. 122) afirma que não há como separar normas de gênero de uma estética de gênero. O autor pontua que, muito mais do que um “‘verdadeiro’ sexo cromossômico, gonadal, hormonal, endócrino, psíquico ou jurídico”, é a forma como nos apresentamos, ou seja, as roupas, os cabelos, os trejeitos corporais que, cotidianamente, expressam as normas de gênero e deliberam, em um primeiro momento, quem é ou não mulher/homem e o quanto o “masculino” e/ ou ”feminino” desta pessoa está de acordo com o esperado de seu gênero performativizado. Ainda que a estética, a aparência, atinja o status de “passável” e não “denuncie” a transexualidade, existem outros fatores que não estão diretamente ligados ao corpo, mas que situam as pessoas em uma esfera jurídica do que é ser homem e ser mulher. Por exemplo, o respeito ao nome social e a retificação de documentos representam um passo importante na construção da passabilidade. O nome social é a “[...] designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida, independentemente do que consta em sua certidão de nascimento e registro geral (RG).” (ALMEIDA; VASCONCELLOS, 2018, p. 307). Ou seja, o nome social é aquele escolhido pela própria pessoa quando essa entende que o nome recebido no nascimento está de acordo com o gênero que lhe foi designado, não com o gênero com o qual se identifica. A entrevistada relata que a primeira vez que se nomeou Francisca foi durante um treinamento na segunda empresa em que trabalhou, uma empresa do ramo de call center:

Isso com o nome de João mesmo. Não falava Francisca no processo seletivo. Aí eu lembro que teve essa mulher, a Roberta, até hoje tenho que agradecer a ela. Eu tava no primeiro dia de treinamento, pediram para o pessoal entregar os documentos, eu 55

entreguei o meu e fui lá me apresentar. Eu falei que meu nome era João e ela falou que não, que ela queria meu nome de verdade, que esse nome João não era eu. Foi aí que esse nome veio na minha mente, eu falei Francisca. Daí, então, sempre foi Francisca (sic). Só que, infelizmente, para atender, crachá e e- mail era tudo com nome de João. Essa parte não era muito legal23. Ao mesmo tempo que Francisca conta sobre como foi o processo de se nomear socialmente como mulher, ela aponta também para como o uso do nome social ainda é desrespeitado no ambiente de trabalho, já que seu e-mail, crachá e a apresentação aos clientes ainda deveriam ser no masculino. Para Cecília Almeida e Victor Vasconcellos (2018), o uso do nome social é uma das dificuldades que pessoas trans enfrentam para se manter no mercado de trabalho formal, tendo em vista que o desrespeito a isso é uma das manifestações mais expressivas de preconceito contra a população trans. Sobre o não respeito ao uso de seu nome social em diversos ambientes, Francisca relata: Quando as pessoas me chamavam pelo meu nome masculino só faltava gritar (sic), eu fugia, fingia que não escutava. Tinha muito medo do meu nome, sabe? Todo mundo “ai, nossa...” (sic) ninguém sabia quem eu era, não era identificado. É um constrangimento que a gente passa. No começo, eu tinha que atender com o nome masculino, o crachá era com nome masculino... Como era call center, o pessoal entrava perguntando quem era o João, no meio de uma operação de 100 pessoas, pra querer saber quem era o João, e eu ficava bem constrangida24.

Depois que Francisca conquistou uma certa passabilidade em relação à sua aparência e ao seu corpo, ao entrar em sua segunda faculdade (a primeira ela abandonou em função de transfobia sofrida, relatada no capítulo anterior), ela exigiu que a instituição se adequasse ao seu nome social:

Lá, desde o princípio, falei que quero nome social. “Ah, mas como?” (sic). “Você vai ter que fazer uma carta etc”. “Não importa”, eu disse, “faço o que vocês quiserem”. Eles me pediram para prometer que eu ia mudar meus documentos para não dar problema com o diploma. Eu não contei pra ninguém. Preferi não contar sobre eu ser trans e não vou contar25.

Pelo seu relato, é evidente que Francisca passa a circular nos meios sociais sendo lida enquanto uma mulher cisgênero, ou seja, já considerada passável, já que se ela “não contar” ninguém saberá que é transexual. Porém, sua documentação se mostra como um dispositivo que poderia lhe “denunciar”, assim como acontece quando ela relata seu primeiro dia de trabalho na empresa Agroquímica, mas, dessa vez, em uma situação em que seu nome social foi legitimado:

23 Trecho de entrevista. 24 Trecho de entrevista. 25 Trecho de entrevista. 56

Eu pensei: “Ai, meu Deus, eles vão entregar os crachás para as pessoas e eu não sei como vai estar meu nome”, porque eu ainda não havia feito a retificação. Quando entregaram, já estava com o nome de Francisca26. Foi durante a experiência profissional nessa empresa que Francisca realizou a retificação de documentos.

Porque eu não tinha trocado o nome ainda. Os documentos eram no meu nome masculino. Então, teve que continuar também nos outros empregos até quando eu entrei aqui, porque eu não tinha retificado ainda. Mudei em agosto do ano passado27.

Ainda assim, nem todos os documentos foram alterados:

Nem todos os documentos. [...] Falta meu PIS. Meu título de eleitor eu não mudei por causa da eleição passada. Alguns lugares me param por divergência no CPF, mesmo que eu tenha mudado o nome. Por exemplo, fui me cadastrar numa vaga e [por causa da] divergência do meu RG com o nome, tive que colocar o nome antigo... eu ainda tenho algumas coisas pra mudar28.

Percebe-se que, para além do respeito ao uso do nome social, outra grande dificuldade enfrentada pela população trans é a retificação de documentos. Quanto a isso, um passo foi dado em direção ao reconhecimento dessa população enquanto cidadãs e cidadãos de direitos. Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não é necessário autorização judicial, laudo médico ou comprovação de cirurgia de redesignação sexual para solicitar a alteração de nome. Na decisão, a maioria dos ministros invocou o princípio da dignidade humana para assegurar o direito à adequação das informações de identificação civil à identidade autopercebida pelas pessoas trans. Dessa forma:

O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.29

Esse processo facilita a retificação da documentação de pessoas trans sem que essas precisem se submeter a uma cirurgia ou a um laudo psicológico, ou seja, sem necessidade de precisar se submeterem à patologização de suas identidades para realizar a troca de nome e sexo em seus documentos. Fernanda Martinelli e colaboradores (2017) esclarecem que “nome social” é o nome adotado por pessoas trans que ainda não realizaram a retificação de documentos.

26 Trecho de entrevista. 27 Trecho de entrevista. 28 Trecho de entrevista. 29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF reafirma direito de transgêneros de alterar registro civil sem mudança de sexo. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386930 Acesso em 20 jan. 2020. 57

Chama-se “nome de registro” aquele nome designado no nascimento e, quando o nome social é retificado, este passa a ser o novo nome de registro. Tornar-se passável implica, dessa forma, tanto fatores estéticos quanto jurídicos, facilitando o acesso e a circulação de pessoas trans em diferentes meios sociais e protegendo-as de possíveis violências. Cecília de Almeida e Victor Vasconcellos (2018, p. 39) afirmam que transexuais com maior “passabilidade” acabam tendo maior facilidade de acesso ao mercado de trabalho. Os autores acrescentam: Dessa forma, pessoas que não querem ou não iniciaram a terapia hormonal, ou não conseguiram alterar determinados caracteres como pelos no rosto e voz, podem sofrer mais preconceito na busca por um emprego. Quanto mais longe de um ideal hetero-cis- normativo, mais dificuldade em se inserir no mercado de trabalho. Fernanda Martinelli e colaboradores (2017) também afirmam que quem não está adequado aos critérios cisnormativos, ou seja, pessoas que são tomadas como corpos abjetos, como “não sujeitos”, são frequentemente excluídas dos espaços de sociabilidade, incluindo o ambiente de trabalho. É importante pontuar aqui que não são apenas os corpos trans que são marcados pela abjeção. Segundo Cecília Almeida e Victor Vasconcellos (2018), em uma perspectiva interseccional, o mesmo vale para corpos marcados por outras diferenças. Compreender as articulações e sobreposições de trajetórias entre discriminações distintas como de classe, raça, religião e deficiência é importante para entender que o impacto da marginalização social pode aumentar ou diminuir dependendo desses marcadores sociais. Por exemplo, uma transexual negra ou deficiente acaba sendo afetada pelo desemprego de maneira mais direta e através de outras perspectivas. De forma geral, “[...] para se harmonizar com a sociedade o indivíduo visto como fora da norma é pressionado a se adequar ao padrão de gênero hegemônico.” (RONDAS; MACHADO, 2015, p. 195). Ao relatar sobre sua rotina e as dificuldades que enfrenta, Francisca deixa claro que a passabilidade permite uma certa blindagem em relação às discriminações a que pessoas trans são submetidas. Ela afirma: “Como eu já tenho uma certa passabilidade, hoje está mais tranquilo. Não só na rua, mas nos outros empregos que eu tive era mais chato (sic)". Tornar-se passável, então, parece estar a serviço de uma realização pessoal em relação à vivência plena de sua identidade de gênero, mas também atua como um aparato de proteção pessoal já que, como afirmam Fernanda Martinelli e colaboradores (2017), a passabilidade cisgênera permite evitar situações de preconceito e violência. 58

Entretanto, o processo de se aproximar o máximo possível do padrão estético de uma mulher cis acaba também atuando como mais uma forma de reafirmar e naturalizar a norma binária de gênero. Fernanda Martinelli e colaboradores (2017) pontuam que pessoas trans se submetem a processos de remodelação subjetiva e corporal, que podem muitas vezes ser violentos, apenas para se adaptar às exigências sociais e serem aceitas em determinados espaços. Para as autoras, no que tange o mercado de trabalho, a passabilidade possui um caráter estratégico para a empregabilidade de pessoas trans e, ao mesmo tempo, contribui para o regime de invisibilidade de diferentes corporalidades, reforçando processos de exclusão. Por isso, pensar passabilidade cisgênera é, necessariamente, tensionar seu caráter libertador e sua função normatizante. Ao tratar da transexualidade imbricada em um sistema normativo de gênero, Lewis (1995, p. 21 apud Marcos Garcia, 2007) a considera “[...] um fenômeno que contribui para a manutenção de uma divisão binária de gêneros, uma vez que, à medida que o indivíduo escolhe pertencer ao outro gênero e não a uma posição intermediária, acaba por reforçar tal divisão". O esforço em “apagar” características que poderiam evidenciar a ideia de “transição” de gênero acaba por reforçar as noções de que existe um homem e uma mulher “de verdade” e, assim, excluir ainda mais aquelas pessoas que não se encaixam nesses padrões. Logo, cria-se no mercado de trabalho, por exemplo, uma “diversidade homogênea”. A diversidade homogênea refere-se à ideia de que a empresa contrata uma pessoa trans passável, ou seja, esteticamente não há nada que “denuncie” sua transexualidade e ela possui documentação retificada, por exemplo. Com isso, as empresas não precisam enfrentar os desafios gerados pela contratação de alguém fora dos padrões de gênero estabelecidos como normais. Francisca ainda não possui toda a documentação retificada, o que, no caso de uma contratação profissional, faz com que sua transexualidade seja exposta. Ainda assim, hoje ela se declara como militante da causa LGBT, e deixou isso claro durante o último processo seletivo que participou, expondo de antemão sua condição de mulher trans:

Ninguém perguntou nada, mas no final da apresentação eles me perguntaram se eu tinha participado de algum voluntariado, e aí eu comentei que participo do GT das meninas trans, que na parada LGBT eu tava na barraca delas fazendo abaixo assinado, que quando tem evento eu vou ajudar. Então, falei que faço muita coisa voltado (sic) ao meio LGBT. Ponto, e ninguém perguntou nada. Foi natural30.

Apesar de já se considerar passável e muitas vezes utilizar essa “conquista” para se proteger de situações violentas e preconceituosas, no que se refere ao mercado de trabalho,

30 Trecho de entrevista. 59

Francisca parece fazer questão de pontuar ser uma mulher trans, tanto para afirmar sua militância quanto para fazer uso do fator “diversidade”, que surge como um requisito favorável às empresas atualmente.

B) Transfobia – “[...] falou que eu era um homem vestido de mulher, que se achava mulher. Isso me deixou muito mal.”

Como já citado anteriormente, o preconceito e a discriminação são elencados como alguns dos principais fatores que impedem mulheres trans e travestis de acessarem e se manterem no mercado de trabalho formal (ALMEIDA; VASCONCELLOS, 2018). Transfobia é o nome dado a toda discriminação e violência em razão da identidade de gênero (YAGO, 2019). Marcos Garcia (2007) afirma que a transfobia se manifesta envolta em formas extremas de violência e que há um desejo de eliminação da população trans, principalmente de travestis, justamente por ocuparem um lugar que extrapola a inteligibilidade cultural da matriz heterossexual. Como corpos abjetos, ou seja, sem importância social, categorizados como não humanos, (LEITE JR, 2008), mulheres trans e travestis são colocadas à margem social. É nesse contexto que o esforço pela conquista da passabilidade se apresenta enquanto um passaporte de sociabilidade. Durante nossa conversa, Francisca relata episódios de transfobia vivenciados na escola, na universidade, nos locais de trabalho. Ela explicita o quanto apenas o fato de ser quem se é, de se declarar e se assumir enquanto uma mulher transexual, a colocaram em uma posição solitária e de exclusão social:

Ninguém quer ficar apanhando todos os dias, correndo risco de morte. As pessoas já te olham e já te julgam, é difícil pra você ter um relacionamento, difícil pra ter amizade. Sempre tem piadinha (sic), não é fácil. Então, tem que ser muito forte31.

O preconceito em relação a travestis é ainda maior, justamente por esse termo estar frequentemente associado a “forte apelo erótico e fetichista, a transtornos patológicos, à imitação, engano ou fingimento com relação a ser alguém que não se é.” (RONDAS; MACHADO, 2015, p. 195). Antes de se identificar como uma mulher trans, Francisca, que foi criada nessa sociedade heteronormativa e transfóbica, reproduzia tal discriminação em relação a si própria.

Eu tinha preconceito comigo porque eu não queria estar na rua, não queria apanhar, não queria que as pessoas passem (sic) e olhem: “É uma puta” (sic)32.

31 Trecho de entrevista. 32 Trecho de entrevista.

60

Ao falar sobre “estar na rua”, “apanhar”, e ser uma “puta”, Francisca evidencia que, de alguma forma, era de seu conhecimento a exclusão e a violência a que estão expostas pessoas trans, e que, justamente marcadas pela transfobia, encontram a prostituição como único horizonte profissional.

Em relação ao mercado de trabalho, quanto mais longe das normas de gênero elas estiverem, mais marginalizados e explorados serão os cargos destinados a elas. Lincoln Rondas e Lucília Machado (2015) afirmam que normalmente a rejeição a travestis no mundo do trabalho é justificada pela aparência física inadequada. Além disso, Kulick (2008, apud RONDAS; MACHADO, 2015) afirma que, em empregos formais, a população trans está sujeita a tratamentos desrespeitosos e humilhantes. Em seu primeiro emprego em um call center, Francisca estava começando a se hormonizar e sua voz já estava se alterando. Ela relata situações humilhantes a que foi submetida, principalmente em relação ao uso do nome social e de como era punida caso insistisse em atender com nome feminino.

[...] tinha um gestor que não gostava quando eu atendia como Francisca, e os clientes reclamavam quando eu atendia com o nome masculino por causa da minha voz. Então, eu falava Francisca, e diziam que eu não podia falar Francisca, pois perderia pontuação33. Na empresa seguinte, já com a transição de gênero mais evidente, mais feminina, Francisca sofria discriminação principalmente em relação a sua aparência física e estética:

Depois de um tempo, uns dois meses, meu gestor atual me chamava e dizia que eu não podia usar vestido, saia. Eu perguntava por que, e [ele] respondia que chamava atenção. Rebatia que havia outras meninas ali que usavam e [eu] perguntava por que eu não podia. Ele dizia que era pra eu ir de calça. Eu quase briguei lá (sic) porque eu sempre gostei de vestido, só uso calça no frio, e eu ficava muito triste falando que era injusto, que a pessoa que tá do meu lado vinha com vestido, com saia e eu não podia usar. E eu já era muito feminina naquela época. Bem mesmo. Passou o tempo, e quando eu já tava para sair, esse gestor que era amigo meu me contou toda a história, que naquela época tinha essas cobranças era porque foi conversado, teve uma votação, e eles queriam me demitir assim que desse o prazo de três meses porque ficaram com medo de eu constranger outras mulheres no banheiro. Era tudo muito novo naquela época, eu acho que eu era a única trans de lá34.

No mesmo local de trabalho, ocorreu uma situação de transfobia escancarada, dirigida diretamente à identidade de gênero de Francisca, mas nenhuma atitude foi tomada nem pela empresa, nem mesmo pela entrevistada:

Só uma pessoa mesmo que uma vez levantou e falou que eu era um homem vestido de mulher, que se achava mulher. Isso me deixou muito mal. Eu ia denunciar ela. Daí

33 Trecho de entrevista. 34 Trecho de entrevista. 61

minha gestora falou comigo, que era pra eu entender que ela tava num momento de raiva, ela tava grávida, que não era pra eu fazer isso, e acabei desculpando, mas eu fiquei muito triste35.

Fernanda Martinelli e colaboradores (2017) verificaram em suas pesquisas que grande parte da população trans afirma sofrer discriminação no ambiente de trabalho. Ainda assim, segundo os autores, a maioria também declara não fazer nenhum tipo de denúncia, normalmente por receio de sofrer alguma consequência, ainda que estejam apenas demandando por direitos.

Cecília Almeida e Victor Vasconcellos (2018, p. 311) afirmam que se a pessoa trans “busca um emprego depois de ter iniciado o processo de transição, não é contratada em virtude do preconceito durante o processo seletivo". Francisca não relatou nenhuma experiência de discriminação nos processos seletivos de que participou para entrar nas empresas que trabalhou. Porém, já empregada, denuncia o quanto o fato de ser transexual impediu seu crescimento profissional.

[...] me tornei back office, acho que fui a melhor que tiveram, eu sabia tudo, treinava o pessoal novo, levava processo; na troca de gestores, eu fazia o serviço de gestor, cobria férias, respondia os e-mail (sic) do gestor... Só que eu não tive oportunidade de crescer. Por isso que eu saí. Porque eu sinto que seria muito para eles uma travesti, uma trans tendo um cargo de gestão lá. Aí eu fiquei bem chateada. Abriu processo seletivo, fui para participar do processo [...].

Daí teve processo seletivo todo, e foi bem quando eu comecei na faculdade, isso me desanimou muito, muito. Eu concorri com um rapaz, ele não tinha nenhuma qualificação, nenhuma informação, ele tinha acabado de entrar, ele não tinha postura e ele passou. Todo mundo vinha me parabenizar, dizendo “Francisca, a vaga é sua!”, mas ele passou e foi logo mandado embora36.

Francisca não conseguiu o cargo de gestão na empresa de Call Center 2, ainda que julgasse ter as qualificações necessárias para a função. O que se explicita aqui é que os cargos destinados a essa população normalmente são os subalternizados.

Sobre a transfobia que sofrem no mercado de trabalho, Francisca afirma que ainda há grande resistência da população em geral em aceitar que pessoas trans ocupem espaços de prestígio social. Ainda assim, se posiciona no sentido de enfrentar a discriminação sofrida.

A gente vê muita gente comentando, pessoas que xingam na internet, na época de eleição também. Até eu fiz uma matéria para Veja que teve gente que comentou que agora precisa dar o rabo (sic) pra conseguir emprego, que estamos tirando emprego de pais de família pra dar pra esse tipo de gente. Até no LinkedIn a gente postou uma foto nossa na parada e falaram que a empresa X não tem que apoiar a diversidade, que isso é doença mental. Olha como o mundo é preconceituoso. Então, a gente tem que mostrar nossa capacidade. Eles tratam a gente como se fôssemos um nada, como incapazes, e

35 Trecho de entrevista. 36 Trecho de entrevista. 62

nós não somos. Tem gente muito boa, tem pessoas maravilhosas, inteligentes, esforçadas, que estudam, que trabalham, que só merecem uma oportunidade37.

Berenice Bento (2011, p. 556) situa a transfobia como expressão dos valores que regulam a vivência social e mantêm as relações de poder.

[...] não se trata de “saber conviver”, mas considerar que a humanidade se organiza e se estrutura na e pela diferença. Se tivermos essa premissa evidente, talvez possamos inverter a lógica: não se trata de identificar “o estranho” como “o diferente”, mas de pensar que estranho é ser igual e na intensa e reiterada violência despendida para se produzir o hegemônico transfigurado em uma igualdade natural. Quando compreendemos a produção das identidades de gênero marcada por uma profunda violência, passamos a entender a homofobia enquanto uma prática e um valor que atravessa e organiza as relações sociais, distribui poder e regula comportamentos.

C) Relações de trabalho – “E eu não acreditei porque todo mundo tava me tratando normal, como se nada tivesse acontecido. Isso pra mim foi incrível.”

Como já afirmado anteriormente, o trabalho cumpre um papel importante na vida do ser humano, contribuindo tanto para a posição social do sujeito quanto para a construção de sua identidade (SOUZA et al., 2016). Logo, o trabalho surge como uma categoria fundamental, embora não única, para a “compreensão das relações sociais, dos processos identificatórios e do modo de ser dos sujeitos, pois a dimensão ocupacional ainda ocupa um grande espaço na vida das pessoas.” (COUTINHO et al., 2007, p. 34). É possível identificar o quanto as relações que Francisca estabeleceu em suas experiências laborais contribuíram para sua construção identitária. Já no primeiro emprego, mesmo sem se reconhecer como uma transexual, contratada como um menino, Francisca podia se experimentar nessa “troca de gêneros” através de uma brincadeira com uma colega de trabalho que era, em suas palavras, “como ela”.

Eu lembro de uma menina que ela também era assim como eu, e a gente às vezes trocava o crachá. Eu não queria ficar com o nome de guri estampado, nem ela em ficar com o dela. Daí a gente trocava. E eles faziam a gente destrocar38.

Na empresa seguinte, uma companhia de telemarketing, Francisca começou a se reconhecer como uma mulher trans. Foi com suas colegas de trabalho que pintou suas unhas pela primeira vez. E com a remuneração que recebia teve condições de investir em sua aparência feminina.

37 Trecho de entrevista. 38 Trecho de entrevista. 63

Aí nessa empresa eu conheci umas amigas que pintavam a unha, aí eu quis pintar também. Daí pintei de uma cor bem clarinha (sic). Comprei minha primeira maquiagem com meu primeiro cartão de crédito39.

Para Maria Coutinho e colaboradores (2007), é preciso conceber as atividades e relações laborais como constituintes da identidade social dos sujeitos. Dessa forma, para as autoras, há uma relação de mútua determinação entre trabalho e identidade. Francisca é muito clara ao pontuar o quanto sua última experiência laboral a impactou de forma positiva, tanto em relação à remuneração quanto aos conhecimentos construídos com as pessoas com que teve contato em seu dia a dia. Ela afirma que, ao iniciar na empresa Agroquímica, viu sua vida se transformar.

Sim. Foi onde que mudou minha vida. Porque aqui tem muito conhecimento. Conheci muita gente. Conhecimento profissional, pessoal, realizações… O salário é muito bom aqui. Eu ganho praticamente o triplo do que eu ganhava40. No dia em que conversamos, Francisca estava em sua última semana de trabalho na empresa Agroquímica, já que havia passado em uma nova vaga de emprego, como comentado anteriormente. Ela pontua o quanto sente que amadureceu em função das relações que estabeleceu ao longo dessa experiência profissional:

Sim, na qualidade de vida e cultural também. Quando eu entrei aqui, conhecia pouco sobre política. Se você entrasse no meu Facebook, era só besteira, só meme. E conversando com as pessoas daqui, interagindo, as pessoas aqui são cultas demais, e isso foi mudando meu perfil. Se você for olhar o meu perfil das minhas redes sociais hoje, é só informação, assunto sério sobre política, economia do Brasil. Então eu mudei, eu amadureci, me tornei uma pessoa adulta. Hoje quando eu entrei, eu chorei no elevador subindo. Passou um filme na minha cabeça. Olha onde que eu tava, de onde eu vim, quanta gente eu conheci, quantos lugares eu conheci... A minha formação profissional tá show de bola (sic) graças a esta empresa. Serei sempre grata a eles. Muita coisa mudou41.

Além disso, Francisca relata que essa foi a primeira empresa em que afirmou ser uma mulher trans já no processo seletivo e que se surpreendeu por ter sido tão bem recebida pelos colegas de trabalho:

Aqui é normal, por isso é a primeira empresa em que falei abertamente em público que eu era uma mulher trans. Não tive problema nenhum com nome, crachá... Quando eu fiz a entrevista, eu contei. E quando eu cheguei aqui, no primeiro dia, eu até fiquei com medo.

Eu fui tão bem aceita, pois eu achava que as pessoas não sabiam e pensava “como é que eu vou contar?”. Ficava pensando “gente, o que é que eu vou falar para o pessoal?”(sic). Até que depois de umas 3 semanas meu chefe me chamou e eu falei: “então, como é que eu falo?”. E ele disse: “todo mundo já sabe”, que ele tinha contado. E eu não

39 Trecho de entrevista. 40 Trecho de entrevista. 41 Trecho de entrevista. 64

acreditei porque todo mundo tava me tratando normal, como se nada tivesse acontecido. Isso pra mim foi incrível42.

A amigável recepção que Francisca relata ter recebido ao iniciar na empresa está, provavelmente, associada à preparação realizada com a equipe antes de recebê-la. Francisca conta que o gestor conversou com seus colegas, abordando o tema da transexualidade e sanando possíveis dúvidas dos demais funcionários.

O meu ex-chefe conversou com toda a equipe, teve uma preparação para tirar as dúvidas das pessoas, porque, querendo ou não, as pessoas ainda hoje têm um pouco de falta de conhecimento, têm curiosidade sobre qual banheiro vou usar, se podem me chamar de menina, como é que funciona... Tem pessoas que ainda não conhecem muito, né? (sic) Não têm vivência. Então, eles tiraram essas dúvidas. Quando eu cheguei, fui super bem- recebida. Até hoje, aqui na empresa, eu nunca passei por constrangimento nenhum. Isso eu posso garantir que sempre foi bem tranquilo43.

David Souza e colaboradores (2016) afirmam que, para além da capacitação profissional de pessoas trans, a inserção de travestis e transexuais no mercado de trabalho formal requer a criação de uma estrutura sólida no interior das próprias empresas para que os estigmas e os preconceitos não preponderem na sua contratação nem no ambiente de trabalho. Os autores acrescentam que, para uma contratação bem sucedida, é fundamental que haja, por parte das empresas, uma preocupação em preparar os demais funcionários para a incorporação dessas trabalhadoras transexuais e travestis. Essa ação se justificaria justamente pela profunda estigmatização da imagem de transgêneros no entorno social, no sentido de oferecer um ambiente laboral seguro e capacitado para lidar no cotidiano com as identidades de gênero não hegemônicas (SOUZA et al., 2016). Portanto, "[...] é importante destacar que a empregabilidade de pessoas trans está igualmente condicionada a mudanças na mentalidade da gestão de empresas.” (SOUZA et al., 2016, sem paginação). “Para tanto, as empresas precisam adotar políticas que viabilizem a inclusão das travestis e transexuais em seus quadros de funcionários, bem como sua ascensão organizacional.” (RONDAS; MACHADO, 2015, p. 202). Neste contexto, está inserida a chamada “gestão da diversidade”, como uma possível alternativa para as organizações trabalharem com a diferença em seu quadro de funcionários. De acordo com Maria Tereza Fleury (2000), no Brasil, o tema diversidade cultural é relativamente novo na agenda das empresas brasileiras e surge apenas na década de 1990. Segundo a autora, “[...] a gestão da diversidade cultural foi uma resposta empresarial à diversificação crescente da força de trabalho e às necessidades de competitividade.” (FLEURY, 2000, p. 20).

42 Trecho de entrevista. 43 Trecho de entrevista. 65

Ainda que a gestão da diversidade implique “[...] adotar um enfoque holístico para criar um ambiente organizacional que possibilite a todos o pleno desenvolvimento de seu potencial na realização dos objetivos da empresa.” (FLEURY, 2000, p. 20), não é raro que a diversidade, nesses casos, seja compreendida como mais uma ferramenta para a lucratividade.

O relato de Francisca indica que a abertura e o preparo da empresa em recebê-la impactou diretamente na forma como ela mesma encarava sua transição de gênero, lhe proporcionando um ambiente mais empático em que pôde vivenciar sua identidade de gênero de maneira mais livre e segura. Em suas palavras:

Aí teve um evento do nosso grupo LGBT daqui e, no evento, eu fui convidada pra falar. Tinha cerca de 200 pessoas. E subi, tomei coragem e disse que era uma mulher transexual, expliquei, contei minha vida, e desde isso comecei a militar, ter empoderamento e não ter vergonha de quem eu sou44.

Com isso, fica evidente o papel de socialização e afirmação de cidadania que as organizações podem desempenhar. Entretanto, é preciso lembrar que Francisca chegou à empresa Agroquímica como uma mulher trans considerada bastante passável, feminina, com experiência profissional prévia na área administrativa e cursando ensino superior. O que, como vimos, não parece ser a realidade de uma grande parcela da população trans. Sendo assim, é importante refletir sobre qual gestão e para qual diversidade as organizações estão de fato dispostas a abrirem suas portas. Daniel Yago (2019, p. 54) afirma que pensar a problemática política e cultural de minorias no campo da gestão de pessoas implica, necessariamente, problematizar e esclarecer o que se entende por diversidade, já que “[...] nem toda visão de diversidade está a serviço de uma visão democrática”. O autor pontua que, se a diversidade se torna apenas um nome da moda, um chamariz para investimentos, ou mesmo um fator a se cumprir irrefletidamente em um programa de cotas, a diferença corre o risco de ser domesticada em vez de gerar empatia e ser compreendida como parte integral do processo de viver em sociedade. Para Mario Alves e Luis Galeão-Silva (2004), quando não são discutidos os contextos da diversidade, sua história e seu lugar social, essa, ao mesmo tempo que explicitada, é reduzida a uma mercadoria a ser gerida. Dessa forma, a responsabilidade social que as organizações possuem fica mais vinculada ao discurso do que à prática em si, e o caráter político da diversidade é encoberto por uma diferença bastante adaptada aos padrões considerados “normais” e hegemônicos.

44 Trecho de entrevista. 66

Para Daniel Yago (2019), não é possível pensar a diversidade em si mesma. O autor afirma que a diversidade assume caráter transitório, já que “[...] sempre se é diverso em relação a alguma coisa, a alguém ou a algum lugar”. Para ele, uma gestão da diversidade democrática é aquela que trabalha para incluir aquelas pessoas consideradas “desviantes” de uma norma, ou seja, pessoas que por algum motivo não são consideradas “normais” e, portanto, são colocadas à margem da empregabilidade formal (DANIEL YAGO, 2019, p. 55). Logo, é necessário problematizar o fato de que pessoas trans “mais passáveis”, com maior instrução profissional e acadêmica são contratadas mais facilmente que aquelas em maior situação de vulnerabilidade social. José Frota (2019) aponta para o papel das empresas enquanto atores sociais e que, portanto, no combate à discriminação, elas possuem o dever de promover políticas de incentivo à diversidade em suas contratações, assim como mobilizar forças para que se diminua qualquer tipo de exclusão em suas práticas diárias. Complementando, Pedro Aguerre (2019, p. 24) pontua que a noção da gestão da diversidade ainda é um “campo novo e emergente no Brasil, de pesquisa, de intervenção e de preocupações” e amplia sua responsabilidade não apenas para o âmbito da iniciativa privada, mas também envolvendo o Estado e a sociedade. O objetivo deste capítulo foi situar o lugar de centralidade que o trabalho ocupa em nossa sociedade e como ele impacta em nossas relações sociais. Neste cenário, a empregabilidade de pessoas trans foi contextualizada juntamente com a experiência de Francisca. Através das informações apresentadas, é possível verificar que todas as experiências profissionais de Francisca se deram no emprego formal, a maioria delas na área administrativa. Se por um lado essa informação contraria as estatísticas (de que 90% da população trans atua na prostituição, por exemplo), por outro lado, é preciso pontuar que grande parte da experiência profissional de Francisca se deu na área do telemarketing, setor organizacional que mais emprega essa população. Ainda que a experiência profissional de Francisca tenha sido marcada por episódios de transfobia, as relações que estabeleceu ao longo de sua carreira tiveram forte influência na construção de sua identidade profissional e de gênero. Foi através da sociabilidade promovida por seus empregos e com a remuneração que recebia que Francisca se sentiu mais livre para experimentar e expor sua feminilidade. Além disso, o fator passabilidade parece ter contribuído para que Francisca tenha se mantido empregada e tenha conseguido sair do ramo de telemarketing. A passabilidade, dessa maneira, atua como um fator de proteção e inserção social. Porém, tornar-se passável também implica reforçar as normas hegemônicas de gênero. 67

Os programas de diversidade dentro das organizações sugerem facilitar a contratação de pessoas trans. Ainda assim, essas contratações costumam ser de transexuais que estejam esteticamente dentro das normas de gênero e qualificadas dentro das exigências do mercado de trabalho.

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4. DISCUSSÃO

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia 'tá aqui (sic) Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz (sic)? Alvos passeando por aí Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência É roubar o pouco de bom que vivi Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz (sic) sumir.

AmarElo – Emicida45.

Neste capítulo, vamos retomar algumas conclusões já abordadas nos capítulos 2 e 3 e, a partir delas, aprofundar as discussões sobre gênero, transexualidade e seus desdobramentos na construção da empregabilidade. Para isso, articularemos as categorias apresentadas anteriormente, ampliando e problematizando a discussão do tema. Cabe relembrar aqui que o objetivo desta pesquisa é compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual. No capítulo 2, Construindo o gênero, buscamos entender o processo de transexualização no contexto da família e da escola. Posteriormente, no capítulo 3, Trabalho e população trans, contextualizamos o lugar de centralidade que o trabalho ocupa na sociedade e analisamos a trajetória de busca e vivência de um emprego formal para uma mulher transexual a partir do caso de Francisca. Como visto no capítulo 2, o processo de transexualização de Francisca sugere a vivência de episódios e conflitos muito parecidos com outros relatos de outras pessoas transexuais. Por exemplo, a compreensão de pertencer ao universo dito feminino desde muito cedo, ainda na primeira infância; a noção de que esses sentimentos de identificação as colocavam na categoria das pessoas “diferentes”; o sentimento de solidão e isolamento em suas relações sociais; a luta interna para “resistir” em ser quem se é, sem mesmo compreender direito o que acontecia com seu corpo e com seus sentimentos. A literatura consultada indica que esses sentimentos de inadequação são comuns àquelas que rompem com as normas regulatórias de gênero. O relato de Francisca confirma o caráter performático do gênero, o quanto os aspectos biológicos, esse “alinhamento” esperado entre vagina-mulher-feminino, pênis-homem- masculino, não são determinantes para que se afirme quem é ou não uma mulher ou um homem. Vivências como as de Francisca, ou seja, de pessoas transexuais, escancaram o caráter

45 AmarElo. DJ Duh, Emicida, Felipe Vassão. Fonte: Sony Music Entertainment, 2019. Áudio streaming. 69

performático do gênero. Gênero é performance, construção social e temporal, e, portanto, não é fixo. Está sempre sujeito a intervenções e remodelações; está em constante transformação. Dessa forma, como afirma Jorge Leite Junior (2008, p. 121), “todas as versões e variações da feminilidade ou masculinidade são válidas, pois todas são performatividades, necessitando para sua legitimidade o reconhecimento e aceitação social”. Já vimos que a noção de não natural/normal que alguns corpos assumem é construída pelas normas de gênero, através da performatividade. Corpos que não são reconhecidos como normais, ou seja, não são identidades inteligíveis, possuem pouca ou quase nenhuma aceitação social. A heteronormatividade atua, então, como um agente de regulação social, um instrumento que delimita o grau de importância a alguns corpos e relega à condição de não humanos a outros. Na prática, isso significa o controle social das menores condutas -- por exemplo, “meninas não podem sentar com as pernas abertas”, “meninos não choram” --; até as delimitações mais amplas do que se compreende como um corpo que não possui valor social por materializar o que se entende como um corpo não possível, uma aberração. Exemplo disso são os altos índices de assassinatos de pessoas trans no Brasil. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA46, em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. Os requintes de violência com os quais essas pessoas são mortas expressam como seus corpos são vistos socialmente. O caso de Dandara dos Santos47 pode ilustrar a violência a que essa população é exposta. Dandara era travesti e foi cruelmente espancada e morta a tiros em plena rua. O caso ocorreu em 2017, no interior do Ceará. Dandara foi filmada sendo apedrejada, recebendo chutes e golpes com pedaços de madeira. O vídeo termina com ela sendo colocada em um carrinho de mão e empurrada, quase desfalecida, pela rua. Depois disso, foi morta com dois tiros. O vídeo com a cena do espancamento foi exposto nas redes sociais. Apesar da grande repercussão midiática após a divulgação do vídeo na internet, com exceção da comunidade LGBT e, principalmente, da comunidade trans, houve pouca (ou quase nenhuma) revolta da população. A cis-heternormatividade produz efeitos profundos em absolutamente todos os níveis de nossa convivência social, delimitando quais espaços podemos circular e, de maneira mais ampla, o quanto somos ou não considerados humanos. É fato que outros marcadores sociais existem, como raça e classe social, que se somam às normas de gênero para controlar condutas e medir o valor de cada um de nós.

46 Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019 BENEVIDES, Bruna G., NOGUEIRA, S. N. B. (Orgs). – São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020. 47 G1 CE. Travesti Dandara foi apedrejada e morta a tiros no Ceará, diz secretário. Matéria disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/apos-agressao-dandara-foi-morta-com-tiro-diz-secretario-andre- costa.html. Acesso em: 08 jan. 2020 70

O caso de Dandara mostra o quanto a violência a esses corpos abjetos, que são lidos como monstros, aberrações, corpos doentes, é legitimada pela sociedade. É aceita. Esse assassinato ocorreu em plena a luz do dia, em meio a rua, foi filmado e exposto na internet. Um homem, branco, de classe média, morador de um bairro nobre em São Paulo, não é exposto a esse tipo de violência. Seu corpo representa outro nível de importância socialmente. Uma aberração pode ser morta nas circunstâncias relatadas. Um ser humano, não. Como já exposto, o ciclo de violência contra essa população se inicia no interior de seus lares, já que essas famílias não são diferentes de todas as outras e estão inseridas na mesma sociedade normatizadora. Sendo assim, como pontuam Bruna Benevides e Sayonara Nogueira (2019), não é raro que o ciclo de exclusão social se inicie em casa, fazendo com que jovens trans sejam expulsos de seus lares. Sem ter onde morar, precisam abandonar a escola para ganhar seu sustento. Nesses casos, a prostituição surge mais como um destino do que como uma escolha. Nossa pesquisa mostrou que a família é um fator essencial na construção de uma empregabilidade trans que seja fruto de satisfação para quem a realiza. Essa satisfação pode dar- se por diferentes vias, como pelas atividades desempenhadas, pelo local de trabalho e até pela remuneração recebida. A família representa a estrutura necessária para que a busca por um emprego seja possível. Quando está trabalhando, normalmente a pessoa auxilia financeiramente em casa, melhorando a qualidade de vida da família como um todo. Nesses casos, estar empregado pode implicar uma melhor aceitação familiar em relação à condição trans. A pessoa que traz o sustento da família costuma ser mais valorizada. Mesmo na prostituição, quando o filho/filha trans consegue melhorar a qualidade de vida da família, ele/ela costuma ter sua identidade melhor aceita. No caso de Francisca, ela se refere a sua família, principalmente aos pais, sempre com amor e respeito. Além disso, pontua claramente que não sabe onde estaria se não fosse pelo apoio deles. Poderia estar na rua, inclusive na prostituição, o que deixa claro que nunca foi seu desejo. Não creio ser possível responder ao que faz uma família aceitar ou expulsar seu filho trans, sua filha trans, de casa justamente por não haver uma homogeneidade nas relações humanas e familiares. É fato que, em um primeiro momento, a grande maioria das famílias rejeita e luta contra a ideia da transição de gênero, justamente por não compreender a transexualidade no âmbito da “normalidade”. Somados a isso, os motivos para a resistência de pais e mães em acolher ou não a condição trans podem ser muitos: o medo do que “os outros” vão pensar sobre seu filho/filha; o desejo de proteger-se e protegê-los da violência existente; o nível de acesso ao 71

conhecimento e a informação sobre o que é gênero e a trasexualidade; as relações estabelecidas desde a infância no interior dessas famílias. A mãe da entrevistada parecia estar se preparando para receber sua “filha” há muito tempo, já que, quando Francisca tinha apenas três anos, sua mãe anunciou: “Vai ser igual a Roberta Close, tenho certeza”. Francisca também relata que o pai sempre desejou ter uma filha e que, agora, ele tem. O apoio familiar pode reduzir o ciclo de violência e exclusão sofrida por pessoas transexuais. E esse pode ter sido um fator importante na vivência profissional de Francisca, que faz com que sua trajetória tenha sido bastante diferente da literatura discutida no transcorrer dessa dissertação, segundo a qual grande parte da população trans está na prostituição. Outro diferencial na trajetória de Francisca é a permanência no sistema de ensino. Como visto, a escola se apresenta como uma instituição reprodutora de valores hegemônicos e não se mostra preparada para lidar com a diversidade e a diferença em seu meio de convívio. Sendo assim, para aquelas pessoas que não estão enquadradas dentro dos padrões cis-heteronormativos e vivenciam a transexualidade em idade escolar, o que se percebe é um processo de hostilização e violência contínua em seu cotidiano (SOUZA et al., 2016). Como afirma Berenice Bento (2011), há um processo de expulsão escolar dessa população, e não de evasão, visto a dificuldade de se manter estudando em um ambiente transfóbico e, portanto, extremamente solitário. Com baixos níveis de escolaridade, o acesso ao mercado de trabalho formal torna-se ainda mais difícil. David Souza e colaboradores (2016) pontuam o quanto a escola, inserida na sociedade capitalista, tem um papel instrumental de formação de indivíduos e está voltada para a preparação e desenvolvimento profissional, levando em conta as demandas do mercado de trabalho. Por isso, a escola vem se mostrando um importante instrumento do capital em que a educação se transformou em mercadoria. O foco atual da grande maioria das escolas está muito mais vinculado à preparação de crianças e jovens para o mercado de trabalho do que com o compromisso com uma educação emancipadora, que desenvolva o pensamento crítico em suas alunas e alunos. Exemplo dessa mercantilização da educação são as escolas particulares de educação infantil que oferecem aulas de inglês a crianças de dois anos, vendendo essa oferta como o início da preparação para o universo competitivo do mercado de trabalho. Para David Souza e colaboradores (2016), o período escolar tem um impacto decisivo nas possibilidades de inserção no mundo do trabalho e, portanto, o nível de escolaridade pode definir o acesso às oportunidades e a inserção mais ou menos precária no mercado de trabalho. Nesse cenário, Vitor Paro (2001, apud BATISTA; SILVA, 2016) aponta para o quanto o discurso mercantil da educação está a serviço da manutenção das estruturas sociais e como, dessa 72

forma, as pessoas individualizam um problema que é coletivo, político e econômico. Ou seja, é muito comum trabalhadoras e trabalhadores acreditarem que sua não ascensão profissional/social se deve à falta de escolaridade e não às injustiças intrínsecas à própria sociedade capitalista. Para o autor, não é dever da escola responsabilizar-se ou mesmo ter como principal função a preparação para o mercado. Na prática, o nível de escolaridade é fator excludente em processos seletivos e, paradoxalmente, não é nenhuma garantia na obtenção de um emprego. Um exemplo é o índice de trabalhadores com ensino superior completo atuando na informalidade. Segundo pesquisa realizada pela consultoria Idados48(2020), entre 2015 e 2019, a taxa de informalidade entre os trabalhadores com diploma universitário cresceu quase 5%, enquanto o crescimento da taxa de informalidade dos trabalhadores em geral foi de 2,7%. Em termos relativos, significa que 44% dos empregos informais criados foram ocupados por trabalhadores com ensino superior. Portanto, mesmo com formação superior completa, não há garantias de uma vaga no mercado de trabalho formal, sendo um indicativo concreto de que talvez o problema não esteja no âmbito individual, tratando-se antes de uma questão político-econômica. Ainda assim, a dificuldade na contratação de travestis e transexuais por parte das empresas é frequentemente justificada pela falta de qualificação profissional e baixo nível de escolaridade. Nesse contexto, algumas iniciativas por parte do Estado e da organização da própria comunidade LGBT têm sido criadas para melhorar o déficit de escolaridade e a capacitação profissional das pessoas trans. O programa Transcidadania49, da prefeitura de São Paulo, surge como uma iniciativa pioneira nesse sentido. O Transcidadania teve início em 2015 e seu objetivo é promover a reintegração social e o resgate da cidadania para travestis, mulheres transexuais e homens trans em situação de vulnerabilidade, sendo a educação o foco principal. As beneficiárias e os beneficiários do programa recebem a oportunidade de concluir o ensino fundamental e médio, além da receberem cursos para qualificação profissional. Com duração de dois anos e uma carga horária de seis horas diárias, elas e eles recebem um auxílio mensal de R$ 1.097,25 para que consigam se manter no programa. Em 2015, o programa contava com 100 vagas. Atualmente, são ofertadas 240 vagas. O que se espera, ao final do programa, é a ampliação das possibilidades de reinserção no mercado

48 PIRES, Ana Tereza. Crescimento da informalidade é maior dentre os trabalhadores com ensino superior. : Consultoria IDados. Disponível em: https://idados.id/posts/8842/crescimento-da-informalidade-e- maior-dentre-os-trabalhadores-com-ensino-superior. Acesso em: 13 jan. 2020 49 PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Transcidadania. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/lgbti/programas_e_projetos/index.php. Acesso em: 15 jan. 2020 73

de trabalho para a população trans vulnerável. Apesar de algumas críticas por parte do movimento trans em relação à efetividade e às condições do Transcidadania, ele é considerado um programa inovador principalmente pelo olhar exclusivo às pessoas transexuais. Diante de tais informações, é possível pensar que, muito mais que o nível de escolaridade ou qualificação, é o preconceito em relação à condição trans, a transfobia, que promove a primeira exclusão do mercado de trabalho formal. Sendo assim, seria muito mais eficaz promover uma educação crítica e diversa, do que escolas que tem como foco a preparação para a competitividade do mercado de trabalho do sistema capitalista. No caminho oposto a uma educação inclusiva, combativa à violência de gênero, o Presidente Jair Bolsonaro, em setembro de 2019, pediu ao Ministério da Educação que redigisse uma lei proibindo a abordagem das questões de gênero nas escolas de ensino fundamental50. O fim do que Bolsonaro chama de “ideologia de gênero” está previsto no projeto de Lei batizado de “Escola sem partido”, arquivado desde o fim do ano de 2018 e que, possivelmente, voltará à pauta política em 2020. Esse tipo de posicionamento por parte do Estado brasileiro reforça o que algumas integrantes do movimento social trans chamam de transfobia institucionalizada. O governo, que deveria promover a igualdade de gênero, incita e apoia a violência contra a comunidade LGBT e todas aquelas manifestações da sexualidade consideradas desviantes. A experiência de Francisca aponta para o quanto não apenas a escolaridade, mas a construção da passabilidade como ferramenta de proteção contra a transfobia institucionalizada (promovida inclusive pelo maior representante do governo) podem abrir portas para o mercado de trabalho formal, permitindo sua inserção em grandes organizações. Como visto no capítulo 2, tornar-se passável envolve tanto fatores estéticos quanto jurídicos e facilita o acesso e a circulação de pessoas trans em diferentes meios sociais, incluindo o mercado de trabalho. Isso porque a passabilidade faz com que pessoas trans cheguem o mais próximo possível do ideal cis-heteronormativo, tornando seus corpos socialmente inteligíveis (ALMEIDA; VASCONCELLOS, 2018). Fernanda Martinelli e colaboradores (2017) explicitam o caráter estratégico da passabilidade para a empregabilidade de pessoas trans e, ao mesmo tempo, o quanto esse processo contribui para o regime de invisibilidade de diferentes corporalidades, reforçando processos de exclusão.

50 CANCIAN, Natália; SALDAÑA, Paulo. Bolsonaro pede a MEC projeto de lei para proibir 'ideologia de gênero'. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/bolsonaro-pede-a-mec- projeto-de-lei-para-proibir-ideologia-de-genero.shtml. Acesso em: 10 jan. 2020 74

Nos parece fundamental apontar para o paradoxo existente em tornar-se passável, atingindo um status social de “normalidade”, e, com isso, agir de maneira a reforçar e naturalizar as normas de gênero que regulam e violentam todos os corpos. Pessoas transexuais que, a princípio, representam o rompimento em relação às matrizes de gênero ao moldarem seus corpos em direção à passabilidade, acabam reafirmando a cis-heteronormatividade e contribuindo para a normatização que classifica quais são os corpos passíveis ou não de humanidade. Nesse contexto, a cultura e a teoria queer surgem como representações de resistência e transgressão às matrizes hegemônicas de gênero. A palavra queer costumava ser usada como um termo homofóbico para gay/lésbica, designando o que era considerado “esquisito”, “estranho”. O termo foi “apanhado” pelo movimento social e teórico para representar “a manifestação intencional da diferença que não deseja ser assimilada nem tolerada.” (SPARGO, 2017, p. 32). A autora afirma que, em teoria, “o queer está incessantemente em desacordo com o normal, com a norma, seja a heterossexualidade dominante ou a identidade gay/lésbica. É categoricamente excêntrico, a-normal.” (SPARGO, 2017, p. 33). Guacira Lopes Louro (2016, p. 7, apud FIGUEIREDO, 2018) afirma que o queer é o sujeito da sexualidade desviante que não deseja ser integrado, nem tolerado. A autora define como

[...] um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do 'entre-lugares', do indecidível.

Mary Jane Spink e Rose Mary Frezza (1999) explicitam que somente por meio de movimentos de estranhamento e enfrentamento a realidade pode ser modificada. A teoria e a cultura queer representam, portanto, um instrumento potente de resistência e possibilidade de transformação social das sexualidades hegemônicas. Eurídice Figueiredo (2018, p. 43) acrescenta:

Assim, podemos concluir que queer tem, pelo menos, duas vertentes: de um lado, é uma atitude existencial que se reflete no comportamento transgressivo que não respeita a heteronormatividade e, de outro lado, é uma teoria que busca estabelecer princípios e criar dispositivos que levem a uma ruptura de valores impostos.

As tensões provocadas pela teoria e pela prática queer são fundamentais para caminharmos em direção a experiências de corpos mais livres não apenas para a população trans, mas para homens e mulheres cis que também são atravessados pelos imperativos da performance de gênero, logo, da estética de corpos. 75

Francisca é uma mulher trans passável e, por isso, incluída na regulação binária de gênero. Entretanto, ao se autodeclarar como uma pessoa transexual, assume uma identidade política desviante e reivindica seu lugar de resistência e transgressão. Durante a construção desta pesquisa, a trajetória profissional de Francisca foi se diferenciando da grande maioria dos casos relatados na literatura encontrada: mulheres trans e travestis expulsas de casa, sem acesso à educação e encontrando na prostituição um espaço de sustento e acolhida. Ainda no início desta pesquisa, realizei uma visita ao Centro de Referência da Diversidade - CRD de São Paulo. Localizado no centro da cidade, o CRD é voltado ao atendimento da população LGBT em geral, mas justamente pela localização geográfica, acaba tendo como maior público travestis e mulheres trans que atuam na prostituição e se encontram em situação de vulnerabilidade social. Em uma conversa com o psicólogo responsável da instituição, questionei sobre a empregabilidade dessas pessoas, as dificuldades, os desafios que poderiam ter nesse âmbito. Ele me respondeu que no CRD normalmente a demanda está mais vinculada a outros tipos de problemas. Por exemplo, onde elas irão dormir essa noite, como recuperar os documentos roubados no último programa etc. Deixando claro que há outras demandas urgentes antes da empregabilidade. Existe, sim, uma grande parcela de travestis, mulheres e homens trans que se encontram em situação de extrema pobreza e precariedade social, com direitos negados sistematicamente pelo Estado e que lutam em seu cotidiano apenas para sobreviver. Essa, na grande maioria das vezes, é a população trans encontrada na literatura e na grande mídia. Nesse cenário, o questionamento “por que a trajetória de Francisca foi diferente?” surgiu como guia na construção deste estudo. Entretanto, talvez a trajetória profissional dela não seja tão diferente da construção de carreira de muitas pessoas trans, e sim diferente da forma que a literatura e a mídia escolhem representar a transexualidade em seus conteúdos. Marcia Rocha, uma das fundadoras do Transempregos, em entrevista à revista Veja51 em julho de 2018, comenta sobre como o mercado de trabalho formal vem aumentando a contratação de transexuais. Marcia afirma que, em 2014, quando iniciaram efetivamente as atividades do Transempregos, apenas uma pessoa foi empregada através da plataforma. Em 2015, foram 45 pessoas trans empregadas. No ano seguinte, o número subiu para 120 e, em 2017, 250 pessoas

51 FUTEMA, Fabiana. Com metas de diversidade, empresas recrutam funcionários trans. Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/com-metas-de-diversidade-empresas-recrutam-funcionarios-trans/. Acesso em: 09 jan. 2020 76

foram contratadas através da Transempregos. Essas contratações foram realizadas entre empresas de pequeno, médio e grande porte, a grande maioria na cidade de São Paulo. Isso significa que vem crescendo o número de pessoas trans empregadas por empresas privadas, possivelmente impulsionadas pelos programas de diversidade que muitas organizações passaram a aderir. É preciso pontuar que, também nos últimos anos, o próprio discurso sobre as questões de gênero e sobre a transexualidade vem se tornando mais comum e, portanto, sendo mais difundido pela população de forma geral. Por exemplo, personagens trans na novela das 21h assumindo papéis que não sejam o do “carnavalesco”, a dona do salão de beleza ou a prostituta. Ou mesmo a própria matéria da revista Veja citada que relata histórias sobre diversidade e população trans em grandes organizações. Aos poucos, timidamente, novas narrativas parecem estar sendo tecidas para essa população. Durante toda a construção da dissertação o contato com a entrevistada foi mantido, principalmente via telefone e aplicativo de mensagens. Como pontuado no primeiro capítulo, Francisca sempre se mostrou receptiva e amigável aos meus contatos. Ainda assim, quando precisamos agendar algum dos nossos encontros, remarcações foram constantes. Marcávamos e, por vários motivos, Francisca os desmarcava. Ainda que houvesse motivos objetivos para as remarcações, compreendi, ao longo da construção da pesquisa, que podia ser difícil para Francisca ocupar esse lugar. O lugar de uma mulher trans sendo entrevistada por uma mulher cis, psicóloga, que estuda a população trans. Em nossa primeira conversa pessoalmente, Francisca me perguntou por que eu estava interessada em estudar esse tema, eu sendo uma mulher cis. Passado algum tempo, nossa relação se tornando um pouco mais próxima, senti que Francisca ficou mais interessada em conhecer o que estava sendo produzido e, dessa forma, passou também a confiar mais em mim e no trabalho desenvolvido.

Entretanto, lembrar do questionamento que Francisca me fez é lembrar do lugar de onde falo, e esse foi um exercício constante durante toda a produção deste estudo. Entender que minha posição social como uma mulher cisgênera, branca e de classe média influencia meu olhar e minha escuta. E influencia também o olhar e a escuta de Francisca na nossa relação. Mais uma vez, é a mulher cis estudando a mulher trans. Como afirma Guacira Louro (2000, p. 12), “[...] os grupos sociais que ocupam as posições centrais, "normais" (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc.) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros”. A autora afirma que pessoas como eu falam por si e também falam pelos "outros", ou sobre os outros. Nesse sentido, Guacira Louro (2000) afirma que as identidades 77

sociais e culturais são políticas, representam e perpetuam relações de poder. Mas, pelo mesmo motivo, podem resistir, ressignificar e contestar a hegemonia dos “normais”. Considero, então, importante partir do princípio de que as narrativas trans são muitas e são plurais ao contar a história de uma mulher trans, sem transformá-la na história de todas as mulheres trans. Chimamanda Adichie (2019, p. 26), alerta para o perigo de uma história única e de como ela é capaz de criar estereótipos. A autora afirma que o “[...] problema com estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”. Em contato com a literatura e em conversas do senso comum, fica evidente como as dificuldades, as mazelas, as desgraças sobre essa população são muito mais frequentemente relatadas. Raramente discursos de pessoas trans bem-sucedidas são descritos ou enaltecidos. A quem serve a predominância de versões “precárias” da população trans circulando nas produções acadêmicas? A quem serve a massiva produção literária associando travestis a prostituição? Por que se escolhe representar essa população apenas pela via da desgraça? No caso de mulheres trans e travestis, é justamente a circulação desses discursos únicos que as mantêm em suas posições sociais: ou são consideradas anormais, doentes, corpos sem nenhuma importância, ou vistas como vítimas, sofredoras, desprovidas de potência e destinadas ao fracasso. Segundo Chimamanda Adichie (2019, p. 27), “[...] a consequência da história única é essa: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como somos diferentes. E não como somos parecidos”. Francisca possui uma trajetória profissional com muitos pontos em comum a outras pessoas trans, mas também com similaridades a carreiras de outras mulheres, trans ou não. Considero importante contar a história de uma mulher trans que trabalha com o que gosta, que atua em uma multinacional, que está crescendo profissionalmente e se sente orgulhosa disso. “Existem histórias que não são sobre catástrofes e é muito importante, igualmente importante, falar sobre elas.” (ADICHIE, 2019, p. 27).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa buscou compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual. Para isso, partimos do pressuposto de que as realidades são construídas em e por nossas práticas, portanto, de que o conhecimento é construído de forma coletiva, através de nossas experiências e interações diárias (SPINK; MEDRADO; MELLO, 2014). Dessa forma, situamos o gênero como uma temporalidade social, “uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos.” (BUTLER, 2003, p. 200), ou seja, gênero como performatividade. Sendo assim, apresentamos o trabalho e o emprego como resultados de processos históricos, tendo suas concepções vinculadas aos modos e às relações de produção, a interesses econômicos e políticos (NEVES et al., 2018). Tanto as questões de gênero quanto as noções de trabalho se apresentam como marcadores sociais centrais que delimitam espaços de circulação e contribuem para a estratificação social. O trabalho, ao mesmo tempo que se mostrou um lugar de interação social importante, inclusive na constituição de identidades sociais, também se apresentou como um instrumento de exclusão e marginalidade. Nesse sentido, pessoas que rompem com as noções de inteligibilidade de gênero, como transexuais e travestis, são vistas como corpos abjetos, socialmente sem importância, e, portanto, muitas vezes acabam sendo destinadas à informalidade, à prostituição e ao trabalho precário. O que a literatura encontrada sobre o tema nos mostrou é que, em um ciclo de violência que muitas vezes tem início dentro de seus próprios lares, a exclusão de mulheres transexuais e travestis se estende aos ambientes escolares e organizacionais como um “efeito dominó”. Sem escolaridade e qualificações profissionais, poucas vagas no mercado de trabalho formal estão disponíveis a essa população. Portanto, numa tentativa de se enquadrar às exigências da heteronormatividade, a passabilidade se apresentou como um importante instrumento de proteção contra a transfobia e a marginalidade social a que pessoas trans são expostas diariamente. Ao mesmo tempo, tornar-se passável parece atuar como mais um artifício regulador de condutas que reforçam as normas heterossexuais e binárias de gênero. Diante disso, a experiência de Francisca aponta para outras possíveis narrativas de pessoas transexuais e a construção de sua empregabilidade. As vivências da entrevistada ilustram situações transfóbicas tanto no sistema de ensino como nos ambientes de trabalho. Ainda assim, Francisca teve apoio de sua família quando se assumiu como uma mulher transexual, está inserida no ensino superior, não quis e nem precisou trabalhar na prostituição, possui um currículo com 79

ampla experiência na área administrativa e atua em uma empresa multinacional em que tem a oportunidade de se desenvolver e melhorar sua qualidade de vida e de sua família. Observamos neste estudo que, ainda que a literatura e a grande mídia se esforcem para apresentar e representar essa população apenas pelo viés do sofrimento e da precariedade, as experiências de empregabilidade de pessoas trans são muitas e são plurais. Travestis, mulheres e homens trans, pessoas agêneras e tantas outras pessoas que representam a anormalidade em nossa sociedade podem também representar a resistência e ruptura em relação às matrizes de gênero hegemônicas e aos locais que lhes são destinados a ocupar. Isso significa que gênero, enquanto norma social reguladora, está sujeito a processos de estranhamento e ressignificações. Se, enquanto sociedade, há a pretensão de algum futuro com mais equidade, com oportunidades que sejam para todos e todas, é preciso que reflexões e ações sejam realizadas no presente e de forma coletiva. No âmbito da empregabilidade, como afirma José Frota (2019), empresas privadas e grandes organizações são importantes atores sociais e, portanto, possuem o dever de promover políticas de incentivo à diversidade em suas contratações e atuar de maneira que se diminua qualquer tipo de exclusão em suas práticas diárias. Como afirmam Mary Jane Spink, Benedito Medrado e Ricardo Mello (2014, p. 16): “[...] as diferentes maneiras de fazer pesquisa produzem diferentes realidades.” Portanto, ressalto o importante papel da pesquisa científica na construção e naturalização dos discursos únicos sobre a população trans e a empregabilidade. Ou seja, a produção científica, como ato político, contribui para o crescimento do estigma dessa população. Dessa forma, é importante que novas pesquisas sejam realizadas. Estudos que possam apontar outros caminhos, novas e diversas narrativas sobre pessoas transexuais. Além disso, esta pesquisa mostrou que a postura e as ações que o Estado assume para com a população LGBT, e mais especificamente com a população trans, são um grande diferencial no grau de cidadania a que essas pessoas têm acesso e direito. Novas políticas públicas que incluam e reconheçam a questão da identidade de gênero se mostram urgentes para que narrativas mais plurais sejam possíveis de fato.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A - Mapa Dialógico 1 Entrevista Francisca:

Transexualização Família Escolarização Outros assuntos

A primeira questão que tenho pra fazer é: onde você trabalha hoje? Trabalho na Empresa 1. A Empresa 1 é uma empresa de quê? É uma indústria química, ela vende matéria-prima para as outras empresas formularem seus produtos. E como é seu dia a dia de trabalho? Aqui é normal, por isso é a primeira empresa em que falei abertamente em público que eu era uma mulher trans. Não tive problema nenhum com nome, crachá [...] Quando eu cheguei, fui super bem- recebida. Até hoje, aqui na empresa, eu nunca passei por constrangimento nenhum. Isso eu posso garantir que sempre foi bem tranquilo. Você sempre se sentiu à vontade? Sim. E o que você faz? Você chega no trabalho e faz o quê? Eu chego e a primeira coisa que eu faço é ligar o computador e vou pegar um café, porque aqui cada andar tem uma copa. Pego um café e depois eu volto pra minha mesa e começo a fazer meu trabalho. O que é o seu trabalho? Antes eu fazia, nesta área que estou agora, porque já fui de outra área, é envio de 87

amostras, ajudar as meninas a colocarem ordem de pedido no sistema, gerar remessa, ver estoque e tou cuidando do atendimento comercial por e-mail e por telefone. [...] Só que a gente não vende para a alimentação animal, tem que ser humana, então tem que conversar isso com o cliente. E é você que conversa com o cliente? Eu informo por e-mail e, se ele insistir, tenho que passar pro vendedor. Eu faço a intermediação entre eles. E você trabalha sozinha ou tem mais alguém que trabalha com você na equipe? No atendimento comercial, só eu. E você atende muita gente durante o dia? Bastante. Por exemplo, agora tinha uns 80 e- mails lá. Fora as ligações que vão caindo, tem dia que é 30, 40… Diariamente? Não. Isso porque eu não estava. Por dia, uma média de 20 e- mails. Depende do dia. Você gosta de fazer isso? Gosto. Eu acho que sou apaixonada pela área de costumer, de ter contato com o cliente. Se eu não tiver contato com alguém, não me completa tanto. Por exemplo, trabalhar sozinha no computador, a parte administrativa você já não gosta tanto? Eu gosto. O que eu faço tem um pouco de 88

administrativa, é venda com administrativa. Mas você está vendo pra quem que vai. Não gosto muito de trabalhar com projetos, você fazer um projeto X e ficar lá... não sou muito fã. Porque, o que tem no projeto? Eu gosto de coisa mais operacional. Acho que me identifico mais com isso. Mais ágil, talvez... Aham. E que horas você começa aqui? Como é estágio, eu começo às 9 horas e termino às 16h. Você normalmente sai às 16 horas mesmo? Sim. E que horas você tem que sair de casa para vir para cá? Depende. Umas 7h30min, 7 horas… Você leva umas 2 horas pra chegar aqui? É porque eu deixo o celular 20 minutos adiantados. Então, às vezes, eu falo que são 7h30min, mas são no meu celular, que é pra eu não atrasar. Então, dá quanto tempo até aqui? 1h30min, às vezes 2 horas. Por exemplo, se eu saio daqui às 16h, eu chego às 18h em casa. 18h-18h10min. Se eu saio mais tarde, demora mais ainda. Me conta um pouco da sua rotina. Você acorda e faz o quê? Como você se prepara para ir trabalhar? Olha, a minha rotina aqui depende do dia. Se eu acordo mais cedo, tenho que pensar 89

qual roupa que eu vou pôr, o sapato que vai combinar, aí vou arrumar o cabelo, se der tempo eu passo maquiagem, se não, eu maquio depois que eu chego aqui quando dá na hora do almoço, assim, almoço e volto rapidinho pra passar maquiagem.

Eu acordo se eu não tenho tempo pra roupa, pros meus cachorros dou comida, água, dou carinho, eu me arrumo correndo, tomo café, acho que é umas das primeiras coisas que eu faço, levanto e vou direto pegar um café. Geralmente meu pai deixa pronto, pego o café e já desço pra dar comida para os cachorros e aí troco de roupa... Você só toma café de manhã, não come nada? Não. Daí, quando chego aqui, pego um café com leite e como uma bolachinha. Quando eu chego, eu como isso. E você vem como pra cá? Eu pego um ônibus e dois trens. Um até Osasco e de Osasco até a linha Esmeralda. E como é o trajeto? Pegar o ônibus e trem sempre foi tranquilo? Como é? É tranquilo. Ninguém gosta de pegar o ônibus cheio demais de manhã, né? Mas é tranquilo, tirando aqueles caras que encostam na gente. Isso já aconteceu. Eles esbarram e fingem… Como é que foi? 90

Foi constrangedor. Para toda mulher é constrangedor. Eu fiquei alguns dias mal. Me deu um enjoo, vontade de chorar nesse dia. O trem estava cheio naquele dia, e ele ficou se encostando em mim. Foi bem chato. E quando você chegou no trabalho nesse dia, você comentou com alguém? Não, eu fiquei tão envergonhada... eu pensei em quanto as mulheres passam por isso. Você nem precisa estar indo pro trabalho, pode estar indo pra qualquer lugar, acontece. Você pode estar indo pra um passeio no parque, pode acontecer. Mas isso não é frequente? Não. Isso aconteceu uma vez há muito tempo. Fora isso, é tranquilo. Foi vindo pra cá? Foi. O que mais você acha importante falar sobre o seu dia? Eu já falei que ele não é muito emocionante (risos). Como eu já tenho uma certa passabilidade, hoje está mais tranquilo. Antigamente não era? Não só na rua, mas nos outros empregos que eu tive era mais chato. Já tive em uma empresa que eu trabalhei, até comentei com você, da questão de me chamarem a atenção porque tinha ido trabalhar de vestido, porque eu era alta e não podia 91

chamar a atenção nas pernas. Queriam me mandar embora com 3 meses porque estavam com medo de causar problemas com as funcionárias, uma mulher ficou constrangida comigo. Isso foi antes de você entrar aqui nesta empresa? Foi numa empresa antes. Depois me contaram, pois peguei amizade com alguns gestores que me contaram a verdade. Eu nem sabia disso, mas de usar roupas, me chamaram para conversar. No começo, eu tinha que atender com o nome masculino, o crachá era com nome masculino... Como foi o processo seletivo lá? No processo seletivo em si, foi até tranquilo, porque eu não falei. Eles foram saber depois, mas tudo OK. Mas tu te apresentou como Francisca? Sim. Depois que foi a questão da gestão que foi mais complicado. Algumas pessoas tiveram preconceito, mas não percebi. Só uma pessoa mesmo que uma vez levantou e falou que eu era um homem vestido de mulher, que se achava mulher. Isso me deixou muito mal. Eu ia denunciar ela. Daí minha gestora falou comigo, que era pra eu entender que ela tava num momento de raiva, ela tava grávida, que não era pra eu fazer isso, e acabei desculpando, mas eu fiquei muito triste. 92

Era uma colega de trabalho sua? Sim. Ela fez isso no meio da equipe? No meio da equipe. Mas acabei relevando. Não denunciei, não fiz nada. O que você pensou na hora ou sentiu? Risos Pode ser sincera! (risos) Na hora, foi de jogar ela longe! Aí comecei a chorar, e saí. Minha vontade na hora era de voar… Deixa eu entender como foi esse processo de seleção. Você se apresentou como Francisca, mas de início pediram que você mantivesse as suas informações masculinas, é isso? Porque eu não tinha trocado o nome ainda. Os documentos eram no meu nome masculino. Então, teve que continuar. Também nos outros empregos até quando eu entrei aqui, porque eu não tinha retificado ainda. Mudei em agosto do ano passado. Mas, quando você entrou aqui, te deram um crachá e tudo o mais com identidade feminina? Sim. Aqui já foi com identidade feminina. E nos outros empregos não foi assim? Não. Como era call center, o pessoal entrava perguntando quem era o João, no meio de uma operação de 100 pessoas, pra querer saber quem era o João, e eu ficava 93

bem constrangida. Tanto que teve uma outra empresa em que trabalhei antes, que foi mais ou menos assim, e tinha um gestor que não gostava quando eu atendia como Francisca, e os clientes reclamavam quando eu atendia com o nome masculino por causa da minha voz. Então, eu falava Francisca, e diziam que eu não podia falar Francisca, pois perderia pontuação. Esse foi seu primeiro emprego? Qual foi o seu primeiro emprego? Meu primeiro emprego foi no McDonald's. Ainda não era a Francisca. Era o João. Que idade você tinha? 16-17 anos. Eu estava no colegial, último ano. Não lembro a idade certa, acho que era 17 anos. Foi por aí. Eu era um menino ainda, mas eu já sentia que era diferente. Eu lembro de uma menina que ela também era assim como eu, e a gente às vezes trocava o crachá. Eu não queria ficar com o nome de guri estampado, nem ela em ficar com o dela. Daí a gente trocava. E eles faziam a gente destrocar. Daí tinham vagas e eu queria ser anfitriã, mas nem passei no processo, porque naquela época anfitriã era função pra mulher, pra ficar brincando com criança, fazendo bixiga, maquiagem... Mas eu queria aquilo. Pra mim era normal ir. 94

Só que pras pessoas não era normal. Fiquei um ano só, mas eu era menino ainda, né. No vestiário, eu esperava todo mundo se trocar. Eu era a última a entrar, mas nem eu sabia direito o que eu era, sentia que era diferente no mundo. Não conhecia a definição trans ainda. E como foi essa descoberta? Foi perturbadora. As pessoas comentavam que eu era uma mulher trans, mas eu dizia que não. Tenho uma amiga da primeira faculdade que entrei, que ela falava pra mim e eu dizia que não queria ser esse tipo de coisa, que eu não iria pro inferno. Eu cresci numa família evangélica. A gente sabe como é, a gente escuta as pessoas falando. E eu achava que era muito errado E aí foi muito mais forte do que eu. Não foi agora e pronto, foi acontecendo. Meu cabelo, desde a época do Mc já era desse tamanho. Eu tomava comprimido escondido, minha tia vinha com pacote de anticoncepcional e eu tomava 2 comprimidos, depois dizia que ia parar, mas tomava outro comprimido, parava, esquecia. Até que eu vi uma amiga que conhecia quando mais nova, eu vi ela, na internet, feminina, tinha virado uma trans, e aí perguntei o que ela tava tomando e ela me levou na farmácia. Você a conhecia desde pequena? 95

Desde criança, menino. Aí ela disse que ia me levar para tomar. Eu falei: “Agora é a hora, eu vou”. Eu sempre tive muito medo de injeção. Aí eu fui, mas eu desisti na hora. Não quis tomar injeção, falei que iria doer. Mas acabou que tomei, e tomo até hoje. E ela foi com você? Foi. Aí eu compreendi o caminho e fez a diferença no corpo, no rosto. Acho que são as únicas coisas que mudam mesmo. A pele, o corpo, os seios crescendo... Comecei a me sentir muito completa. Aí eu entrei numa empresa... E quando você começou com esse processo de transição, de tomar comprimidos, você não estava empregada? Tava. Tinha entrado numa empresa de call center também. Você saiu do McDonald's e foi para essa empresa de call center? Sim. Esperei o resultado do exame de reservista do quartel, que foi horrível. Como foi isso? Até hoje não senti sensação igual, de tanta tremedeira e coração explodindo. Pensa, eu já tinha o cabelo na altura do ombro, usava calça super apertada, calça feminina, usava blusinha de banda, porque eu era emo, lápis de olho, rímel... eu era uma roqueirinha. Fui pra fila do quartel. Quando cheguei lá, meu coração tremia. Na hora de entrar, o 96

soldado perguntou se eu estava acompanhando algum namorado. Respondi que não, que era eu. E o rapaz: "ah ta, entra na sala." Então, quando eu entrei na sala, tinha muitos homens, eu tremi demais. Mas logo fui dispensado. Você teve medo? Tinha muito medo do meu nome, sabe? Todo mundo “ai, nossa...” ninguém sabia quem eu era, não era identificado. É um constrangimento que a gente passa. Daí passei essa fase do quartel e entrei nessa empresa. Eu achei que eles foram bem abertos, sabe? Era uma empresa de telemarketing? Isso. E quando eu entrei, eu passei no processo e tudo. Isso com o nome de João mesmo. Não falava Francisca no processo seletivo. Aí eu lembro que teve essa mulher, a Roberta, até hoje tenho que agradecer a ela. Eu tava no primeiro dia de treinamento, pediram para o pessoal entregar os documentos, eu entreguei o meu e fui lá me apresentar. Eu falei que meu nome era João e ela falou que não, que ela queria meu nome de verdade, que esse nome João não era eu. Foi aí que esse nome veio na minha mente, eu falei Francisca. Foi a primeira vez que você se nomeou Francisca? Foi. Daí então sempre foi Francisca. Só que, infelizmente, para atender, crachá e e-mail era tudo com 97

nome de João. Essa parte não era muito legal. Até que um dia que eu acho que foi no feriado de Natal e Ano Novo, eles têm costume de ligar para saber se a pessoa vai trabalhar. E aí meu chefe ligou para minha mãe perguntando da Francisca (risos), e não tinha Francisca em casa, meus pais não sabiam. Você não falava em

casa ainda? Não. Eu nesta época tinha muito medo dos meus pais. Não imaginei que eles iam

me aceitar, então eu me trocava escondida para sair de casa. Aí nessa empresa eu conheci umas amigas que pintavam a unha, aí eu quis pintar também. Daí pintei de uma cor bem clarinha. Comprei minha primeira maquiagem com meu primeiro cartão de crédito, usava top para debaixo da blusa. O dia que eu choquei mesmo em casa foi no Natal. Eu comprei um short, uma sapatilha e uma blusinha. Cheguei em

casa, saí do trabalho e fui para casa. Todo mundo ficou sem entender nada. Rabo de cavalo, tinha o cabelo grande… Foi a primeira vez que você se mostrou feminina na frente de toda a família? Foi. Nossa, foi assim... Mas eu me sentia eu mesma. Só que com o nome, meus pais ainda me 98

chamavam de João. Até que eu conheci um rapaz e a gente começou a namorar. Um dia eu levei ele a uma festa da família, e minha família me chamava pelo meu nome. Daí ele falou “Não, essa é a Francisca”. Aí a minha mãe “ãh?”, não entendeu nada. “É, é a Francisca”. Aí no meio de toda essa história, saí de casa mas não pelo meus pais, saí de casa porque eu estava muito apaixonada e eu achava que era o momento, e a família dele também falou que ia mandar ele pra outro estado…. Então eu falei para morarmos juntos, tinha 18 anos de idade. Daí moramos juntos por um ano e meio. Daí, quando não deu mais certo, cada um seguiu o seu caminho. Você voltou para casa dos seus pais? Voltei. Na verdade a gente se separou, eu voltei pra casa dos meus pais e ele voltou comigo. Meu pai nunca tinha visto ele. O tempo que a gente morou fora, meu pai não quis ver. Aí eu pedi para o meu pai. [...] Esse foi o primeiro dia que eu chorei de felicidade, eu nunca tinha chorado, não sabia como era a sensação de chorar por felicidade. Eu e minha mãe a gente foi conversar com meu pai e falei pra ele que estava namorando que minhas coisas 99

estavam lá, todos os móveis, que por favor deixasse ele vir morar comigo. Quando meu pai falou que sim, nossa, a emoção tomou conta. Minha mãe chorou junto. Foi bem legal, assim. Meu pai nunca tinha conhecido e hoje ele sabe aceitar a minha condição E aí, depois disso, eu entrei no segundo call center, que foi o que te contei, onde teve a questão do vestido. Me conta como foi neste call center. Desde quando eu entrei foi o processo que eu te falei. Eu fiz o processo como Francisca, eu entrei. Mas tinha um gestor lá, que ele era gay e tudo, ele me adorou... Depois de um tempo, uns dois meses, meu gestor atual me chamava e dizia que eu não podia usar vestido, saia. Eu perguntava por que, e respondia que chamava atenção. Rebatia que havia outras meninas ali que usavam e perguntava por que eu não podia. Ele dizia que era pra eu ir de calça. Eu quase briguei lá porque eu sempre gostei de vestido, só uso calça no frio, e eu ficava muito triste falando que era injusto, que a pessoa que tá do meu lado vinha com vestido, com saia e eu não podia usar. E eu já era muito feminina naquela época. Bem, bem mesmo. Passou o tempo, e quando eu já tava para sair, esse gestor que 100

era amigo meu me contou toda a história, que naquela época tinha essas cobranças era porque foi conversado, teve uma votação, e eles queriam me demitir assim que desse o prazo de três meses porque ficaram com medo de eu constranger outras mulheres no banheiro, era tudo muito novo naquela época, eu acho que eu era a única trans de lá…. Que ano foi isso? 2015/2014 ou 2016, não lembro, mas foi nessa época. A empresa nem existe mais, faliu. Eu fiquei bem chateada [...] O que me salvou foi que o cliente nosso pediu para ouvir uma ligação minha [...] Ele falou que não tinha por que me mandar embora, que o meu atendimento era muito bom. Ele não deixou que me demitissem. Aí eu passei para outra área, me tornei back office, [...] Só que eu não tive oportunidade de crescer. Por isso que eu saí. Porque eu sinto que seria muito para eles uma travesti, uma trans tendo um cargo de gestão lá. Aí eu fiquei bem chateada. Abriu processo seletivo, fui para participar do processo... Você acha que não recebeu uma promoção porque seria demais de uma mulher trans ou uma travesti como gestora? Acredito que sim. Ainda mais naquela época. Porque não 101

fazia sentido, eu sabia muita coisa de lá. Talvez eu não fosse madura de idade, mas eu tinha bastante conhecimento. Quando eu saí, essa célula se desestruturou, a galera começou a pedir demissão, o pessoal desanimou. Isso te contaram depois? Me contaram, porque depois de uma semana a gestora desta área saiu, o pessoal todo começou pedir pra ser mandado embora. E você chegou a ter essa conversa lá com eles, de que você gostaria de crescer, que gostaria de uma oportunidade? Não, não, eu quis ficar em casa, descansar. Não adianta mais brigar, sabe. Não adianta brigar pra ficar forçando as pessoas a mudar. Daí teve processo seletivo todo, e foi bem quando eu comecei na faculdade, isso me desanimou muito, muito. Eu concorri com um rapaz, ele não tinha nenhuma qualificação, nenhuma informação, ele tinha acabado de entrar, ele não tinha postura e ele passou. Todo mundo vinha me parabenizar, dizendo “Francisca, a vaga é sua!”, mas ele passou e foi logo mandado embora. Porque não tinha qualificação… Sim, e logo abriram outra seleção. Daí pensei que a vaga, agora, seria minha. 102

Mas pediram por alguém que, no mínimo, estivesse estudando administração. Pensei que fosse eu, porque infelizmente muita gente lá não tinha graduação. Essa vaga era minha. Mas não. O trabalho era das 11 horas às 19 horas, ou seja, quem faz curso presencial fica como? Daí disse que chega, queria entrar no corte eu não queria ficar mais, tinha faculdade e não ia ficar com VR a R$ 7 por dia, tava ganhando pouco, que ia sair procurar outra coisa. Lá você era com carteira assinada? Era CLT, mas o salário muito baixo. Naquela época era R$ 980, um salário mínimo. Ainda tem os descontos...VR R$ 7,00. De lá ia direto pra faculdade. Entrava às 7h20min, tinha de sair de casa às 4h30-5h, e de lá tinha que esperar para ir pra faculdade, pois não tinha dinheiro pra passagem. Na faculdade era escolher comer ou não comer. Isso é tortura, gente. Foi aí que fiquei 9 meses em casa e entrei nesta empresa que estou agora. Como estagiária? Sim. Foi onde que mudou minha vida. Por quê? Porque aqui tem muito conhecimento. Conheci muita gente. Conhecimento profissional, pessoal, 103

realizações… O salário é muito bom aqui. Eu ganho praticamente o triplo do que eu ganhava, então eu pude ajudar mais em casa. Quando trabalhava no call center pensava que queria simplesmente poder ir ao MacDonald’s sem precisar me programar tanto, ser uma data especial. Hoje eu tô com vontade, eu compro. É um dinheiro que não tá fazendo falta para pagar uma conta. O dinheiro que eu tô podendo conseguir reformar minha casa, eu consigo pagar minhas coisas, ajudo meus pais, melhorei a internet de casa, pago a conta de água, de luz, ajudo com a mistura. São coisas que antigamente era muito difícil eu conseguir fazer. Antes queria sair com amigos e não podia. Queria um sapato novo, demorava tempo pra conseguir comprar… Revolucionou sua vida na qualidade de vida... Sim, na qualidade de vida e cultural também. [...] Então eu mudei, eu amadureci, me tornei uma pessoa adulta. [...] A minha formação profissional tá show de bola graças a esta empresa. Serei sempre grata a eles. Muita coisa mudou. E quando você diz que sua vida profissional está show de bola, o que 104

você acha que mudou da sua formação mesmo? Uma coisa que queria muito e sair da especificação de call center. [...] Entendo que eu tenho mais capacidade de conseguir outras vagas, um mercado mais amplo pra mim. Isso melhorou bastante. E como foi esse processo de saída daqui, porque agora você tá na última semana. Me conta como você está. Tenho muitas amizades aqui. Só eu acho que eu vou sentir muita falta do ambiente de trabalho, vai ser difícil, mas a gente tem que pensar no lado profissional nessa parte e ver que vai ser melhor. [...] Como foi essa escolha de sair, de participar de processos? Questão de vagas.Não tem muitas vagas juniors. Aparece uma ou outra, mas depende muito do ano de faculdade, tem vagas aqui dentro, mas é pra quem se formar este ano, eu me formo daqui um ano e meio, no final de 2020. Depende do curso. Abre muita vaga pra pleno, sênior. Antes de eu ficar esperando, eu já estou de olho nas vagas que vão abrir, mas antes de ficar só esperando, eu vou começar a procurar fora. Tanto que meu contrato ainda não acabou. 105

Você comentou comigo que é outubro, né? Outubro. Faltam 2 meses, mas eu preciso em mim primeiro. Quando você começou a pesquisar outras vagas? Mês passado. Entrei de férias já comecei a procurar. Foi rápido, então? Foi minha primeira entrevista. E como foi essa entrevista? Primeiro eu fiz uma entrevista por telefone com a agência, [...] Eram quantos candidatos? Sete. Bastante. Mas tinha bastante vaga também. [...] Você sabia para qual vaga você tava concorrendo? Eu pensava que era costumer care. Eu me confundi, porque vi no LinkedIn uma vaga assim. Mas na postagem que a pessoa divulgou estava só como estágio, [...] e passei para a área de desenvolvimento de fragrâncias, que é envio de amostras, tem contato com clientes, faz uma pesquisa de satisfação pra ver se deu tudo certo, organiza eventos, oferece produtos… O que é exatamente o que você gosta... Sim. Tratar com questão de documentos, mexer com segurança. E eu não sei mais porque tenho que entrar primeiro, né. Logo a gente vai saber. 106

Dia 5 você começa, né? É. Agora que você tem a documentação como Francisca… Nem todos os documentos. Até mandei um e-mail para ela hoje. Falta meu PIS, meu título de eleitor eu não mudei por causa da eleição passada. Alguns lugares me param por divergência no CPF, mesmo que eu tenha mudado o nome. Por exemplo, fui me cadastrar numa vaga e divergência do meu RG com o nome, tive que colocar o nome antigo... eu ainda tenho algumas coisas pra mudar. E nesse novo processo seletivo em que você foi aprovada, você precisou comentar que você é uma mulher trans ou não? Ninguém perguntou nada, mas no final da apresentação eles me perguntaram se eu tinha participado de algum voluntariado, e aí eu comentei que participo do GT das meninas trans, que na parada LGBT eu tava na barraca delas fazendo abaixo assinado, que quando evento eu vou ajudar, então falei que faço muita coisa voltado ao meio LGBT. Ponto e ninguém perguntou nada. Foi natural. Isso já no processo seletivo? No final. Com todo mundo junto? No grupo. E para você é tranquilo? Hoje é, depois que eu entrei na Empresa 1 é. 107

Antes de entrar aqui eu tinha muito medo das pessoas saberem, até que eu fui tão bem aceita, pois [...] eu achava que as pessoas não sabiam e pensava como é que eu vou contar. Ficava pensando “gente o que é que eu vou falar para o pessoal?” Até que depois de umas 3 semanas meu chefe me chamou e eu falei: “então, como é que eu falo?”. E disse “todo mundo já sabe”, que ele tinha contado. E eu não acreditei porque todo mundo tava me tratando normal, como se nada tivesse acontecido. Isso pra mim foi incrível. Aí teve um evento do nosso grupo LGBT daqui e, no evento, eu fui convidada pra falar. Tinha cerca de 200 pessoas. E subi, tomei coragem e disse que era uma mulher transsexual, expliquei, contei minha vida, e desde isso comecei a militar, ter empoderamento e não ter vergonha de quem eu sou. [...] Quero dar muito orgulho pra minha família e calar a boca de muita gente preconceituosa. Algo que você já tenha escutado e por isso está falando? A gente vê muita gente comentando, pessoas que xingam na internet, na época de eleição também. [...] Então é calar a boca de muita gente, quebrar muitos tabus. Falando em quebrar tabus, gostaria de saber mais da tua trajetória estudantil, acadêmica, porque 108

isso também é algo novo, às vezes, né? Então, na escola foi difícil, eu apanhei muito. Desde o primário minha mãe tinha que ir na escola, as pessoas me chamavam de mariquinha. Teve algo que aconteceu, acho que eu estava na terceira série, isso eu não esqueço até hoje, às vezes até choro. Eu lembro que uma menina começou a gritar, tinha uma novela A Senhora do Destino, e tinha um personagem que chamava Ubiraci, um personagem gay que era carnavalesco. E aí uma menina começou a gritar e quando eu fui ouvir todas as crianças do pátio estavam gritando U-biraci, U- biraci pra mim, eu lembro que me doeu tranquei no banheiro, fiquei lá porque era muita gente gritando, porque naquela época a palavra Ubiraci era para zoar uma pessoa de gay, porque era um homossexual. Foi difícil. Apanhei muito. No colegial foi bem punk, eu era muito isolada, eu era aquela criança a última a ser escolhida. Eu nem jogava bola, quando era pra juntar time, ninguém queria saber de mim, eu era gordo, me chamavam de bicha, de tetinha, viadinho. Já mais velho, no banheiro, tinha que esperar todo mundo sair. Acabava o 109

intervalo, todo mundo voltava para sala e eu ouvia muitas reclamações dos professores porque eu ia no banheiro só quando as pessoas saíram, porque se eu entrasse no banheiro masculino, os meninos jogavam água por cima da porta pra me molhar, ficavam zoando, querendo passar a mão na minha bunda... Então foi uma fase bem chatinha. Eu não tive muitos amigos, meu álbum de formatura tá vazio, tem a minha família, só. Hoje as pessoas dizem: “Nossa, como você mudou, como você tá linda”, e que me lamber. Mas na época ninguém ligava pra mim, pra como eu estava. E depois na faculdade, no primeiro trimestre, já me chamaram na diretoria pois uma moça falou que uma funcionária de lá não se sentiu à vontade comigo no banheiro… Ali você já usava o banheiro feminino… Já estava começando a usar o banheiro feminino, já tava trabalhando naquela empresa, com cabelo grande, feminina, mas eu tava em transição e ela pediu que eu não usasse nem o banheiro feminino, nem masculino, tinha que usar o banheiro de deficientes. Aquilo me destruiu. Aí eu fui conversei com professor de Direito, 110

disse que poderia recorrer na justiça, só que teria que envolver os meus pais. Eu entrei com 17 anos, tinha acabado de fazer 18, e me preocupei caso

isso se espalhasse, como seria com meus pais. Eu não queria causar esse constrangimento parar a minha família. Teus pais nem sabiam do teu

processo de transição? Não sabiam do meu nome, mas por me verem fisicamente, estava nítido que tinha uma mulher ali. Mas eu optei por não processar. Até tinha uma amiga minha se revoltou e quis entrar nos banheiros dos homens e ela entrou comigo no banheiro dos homens pra questionar que palhaçada era aquela. Essa menina foi incrível. Só que eu acabei me sentindo muito mal, e o pessoal começou a questionar porque eu passei a usar o banheiro de deficientes, tinha que usar a desculpa de que era mais limpinho. Depois eu troquei de

universidade. Trocou por esse

motivo? Eu parei, parei total. Eu fiquei 4 anos sem estudar. Fiquei bem mal, falei “chega, cansei”, agora vou me dedicar ao trabalho. Aí eu voltei, só que em outra universidade, lá desde o princípio falei que quero nome social. “Ah, mas como? Você fazer carta etc”. 111

Não importa, eu disse, faço o que vocês quiserem. Eles me pediram para prometer que eu ia mudar meus documentos para não dar problema com o diploma. Eu não contei pra ninguém. Preferi não contar sobre eu ser trans e não vou contar. Mas acabou acontecendo a entrevista para a revista Veja, aí todo mundo ficou sabendo. Tanto que eu tinha um grupo de 4 amigas, e hoje estou só. Elas não chegaram e falaram explicitamente o motivo, mas simplesmente se afastaram de mim. Hoje converso com uma ou outra, alunos novos que não sabem, mas eu fico na minha. E você percebe que essa mudança foi depois que elas ficaram sabendo? Sim, porque foi no final do ano passado essa notícia, e neste ano, já no primeiro semestre, as pessoas se afastaram de mim. E você não conversou com elas? Tem coisas que prefiro não dar tanta importância na vida. Tanta coisa que a gente passa na vida que não vale a pena. Já ouvi comentários preconceituosos demais. Na faculdade? Sim, quando saiu aquela cura gay, teve um aluno, o pessoal não sabia de mim ainda, ele disse que era contra cura gay, porque ser gay não tem cura, mas que identidade gênero é 112

doença mental. Na hora que ia falar acabou a aula. Fiquei sem acreditar. É uma moçada muito jovem, então eles não têm muita mentalidade. Mas fora isso, eu não saio falando pra todo mundo. Perdi muitas amizades, até do pessoal de onde eu moro, hoje tem muitos que nem me olham mais na minha cara, eu sei que as pessoas falam mal. Mas eu não me importo. Tento ser o mesmo e não fazer mal para ninguém, só isso. Me respeita que te respeito, só isso, respeitar. Tem mais alguma coisa que você acha importante dizer e que não disse e gostaria de deixar registrado em relação à carreira? Da carreira, não. Mas alguma outra coisa, qualquer coisa, que você queira me dizer? Não é fácil. Não tem como alguém dizer que é opção você escolher ser trans. Ninguém quer ficar apanhando todos os dias, correndo risco de morte. Você passa um conflito tão grande dentro de você pra tomar coragem para se transformar, renascer de novo. É muito complicado. Quantas vezes eu já chorei me questionando por que eu fui escolher ter passado por tanto constrangimento. As pessoas já te olham e já te julgam, é difícil pra você ter um relacionamento, difícil pra ter amizade. Sempre tem piadinha, 113

não é fácil. Então, tem que ser muito forte. Só que é mais forte que a gente. Quando eu fui ver já tava tomando hormônio, já tinha trocando as roupas, foi uma coisa de extinto. Eu não aguentava. Quando as pessoas me chamavam pelo meu nome masculino só faltava gritar, eu fugia, fingia que não escutava. Banheiro, então, eu saía de perto da minha mãe pra ir no banheiro feminino, porque eu não conseguia entrar no banheiro masculino. Não conseguia ficar sem sutiã. Eu ficar com o peito de fora, usava sempre uma regatinha. Desde muito cedo? Desde muito cedo. Minha mãe sempre soube. Depois de grande fui conversar com ela e ela falou que sempre soube. Ela disse que quando eu tinha três anos de

idade minha tia veio avisar ela que eu era gay. E ela disse que ele não é gay, ele vai ser igual a Roberta Close quando crescer, ela tinha certeza. Isso quando você

tinha 3 anos? 3 anos. Ela tinha

certeza. Eu queria brincar de boneca, andar de salto, usar maquiagem. Sempre fui delicada, menininha. Eu não tinha nada de menino. E minha mãe sabia. Mãe é mãe, você conhece. E esse processo com tua mãe foi

mais tranquilo que com seu pai? Na verdade com os

dois. Eu achei que ia 114

ser sua difícil. A gente nunca sentou e conversou, não. “Eu sou mulher e a partir de agora sou Francisca, ela é mulher”, e os dois se resolveram lá. Minha mãe contou que ela tinha muito medo da família, do que eles iam achar, mas acabou que as pessoas viram, me conhecem, sabem que eu sou uma pessoa boa, que eu não tenho má índole. Minha avó de 70 anos me chama de Francisca como se o meu passado tivesse sido apagado. Você sente assim? Eu lembro, sei as dores que sofri. Quando falam da Francisca quando era pequena sempre pra mim é como se fosse outra pessoa. Minha mãe ela fala que teve três filhos: meu irmão, meu antigo eu, que foi viajar, e eu. Então, são três filhos. Você gosta de ouvir isso? Você acha uma uma boa definição? Eu acho que é uma forma dela aceitar. O importante é que eles me amam e me respeitam. E realmente é verdade., são três filhos. Meu pai sempre sonhou ter uma filha mulher. Ele tem mesmo, morre de ciúmes. Ele falou que não queria saber quando eu tivesse namorado eu teria que ir lá falar com ele. Você acha que o apoio da família foi importante pra 115

você? Fez diferença? Família é tudo. Se você não tem o apoio da família, não vai ter onde morar, não vai ter uma estrutura. Pra onde você vai? É o que acontece, vai pra rua, pra marginalidade. Se eu não tivesse minha família, imagina eu, se minha mãe me jogasse na rua, eu não sei quem me pegaria pra criar? Ou como eu ia me virar? Família foi feita pra isso, pra pai e mãe cuidarem dos filhos, dar amor, dar carinho. Se você não tiver o apoio da família às vezes é muito difícil. Acho que é essencial. Inclusive na manutenção ou conseguir do emprego mais tarde, né? Acho que sim porque na adolescência você tem a família, ou pai, ou avô, ou um amigo que se torna família pra te ajudar, porque como uma criança vai trabalhar, uma criança de 8 a 10 anos? Não tem como. Acho que mais uma questão de estrutura. De base, né? Sim. ok. O que mais você acha que é importante dizer? Ai, gente, já falei bastante! (risos). Não sei... Pra você é suficiente, quer me dizer mais alguma coisa? É suficiente... Então está bom, encerramos aqui!

116

APÊNDICE B - Mapa dialógico 2 Entrevista Francisca

Passabilidade Transfobia Relações de Outros assuntos Trabalho

A primeira questão que tenho pra fazer é: onde você trabalha hoje? Trabalho na Empresa 1. A Empresa 1 é uma empresa de quê? É uma indústria química, ela vende matéria-prima para as outras empresas formularem seus produtos. E como é seu dia a

dia de trabalho? Aqui é normal, por isso é a primeira empresa em que falei abertamente em público que eu era uma mulher trans. Não tive problema nenhum com

nome, crachá... Quando eu fiz a entrevista, eu contei. E quando eu cheguei aqui, no primeiro dia, eu até fiquei com medo. Eu pensei: “Ai, meu Deus, eles vão entregar os crachás para as pessoas e eu não sei como vai estar meu nome”, porque eu ainda não havia feito a retificação. Quando entregaram, já estava com o nome de Francisca.

O meu ex-chefe conversou com toda a equipe, teve uma preparação para tirar as dúvidas das pessoas, porque, querendo ou não, as pessoas ainda hoje têm um pouco de falta de conhecimento, têm curiosidade, sobre qual banheiro vou usar, se podem me 117

chamar de menina, como é que funciona... Tem pessoas que ainda não conhecem muito, né? Não têm vivência. Então, eles tiraram essas dúvidas Quando eu cheguei, fui super bem- recebida. Até hoje, aqui na empresa, eu nunca passei por constrangimento nenhum. Isso eu posso garantir que sempre foi bem tranquilo. Você sempre se sentiu à vontade? Sim. E o que você faz? Você chega no trabalho e faz o quê? Eu chego e a primeira coisa que eu faço é ligar o computador e vou pegar um café, porque aqui cada andar tem uma copa. Pego um café e depois eu volto pra minha mesa e começo a fazer meu trabalho. O que é o seu trabalho? Antes eu fazia, nesta área que estou agora, porque já fui de outra área, é envio de amostras, ajudar as meninas a colocarem ordem de pedido no sistema, gerar remessa, ver estoque e tou cuidando do atendimento comercial por e-mail e por telefone. [...] Só que a gente não vende para a alimentação animal, tem que ser humana, então tem que conversar isso com o cliente. E é você que conversa com o cliente? Eu informo por e-mail e, se ele insistir, tenho 118

que passar pro vendedor. Eu faço a intermediação entre eles. E você trabalha sozinha ou tem mais alguém que trabalha com você na equipe? No atendimento comercial, só eu. E você atende muita gente durante o dia? Bastante. Por exemplo, agora tinha uns 80 e-mails lá. Fora as ligações que vão caindo, tem dia que é 30, 40… Diariamente? Não. Isso porque eu não estava. Por dia, uma média de 20 e- mails. Depende do dia. Você gosta de fazer isso? Gosto. Eu acho que sou apaixonada pela área de costumer, de ter contato com o cliente. Se eu não tiver contato com alguém, não me completa tanto. Por exemplo, trabalhar sozinha no computador, a parte administrativa você já não gosta tanto? Eu gosto. O que eu faço tem um pouco de administrativa, é venda com administrativa. Mas você está vendo pra quem que vai. Não gosto muito de trabalhar com projetos, você fazer um projeto X e ficar lá... não sou muito fã. Porque, o que tem no projeto? Eu gosto de coisa mais operacional. Acho que me identifico mais com isso. Mais ágil, talvez... Aham. E que horas você começa aqui? 119

Como é estágio, eu começo às 9 horas e termino às 16h. Você normalmente sai às 16 horas mesmo? Sim. E que horas você tem que sair de casa para vir para cá? Depende. Umas 7h30min, 7 horas… Você leva umas 2 horas pra chegar aqui? É porque eu deixo o celular 20 minutos adiantados. Então, às vezes, eu falo que são 7h30min, mas são no meu celular, que é pra eu não atrasar. Então, dá quanto tempo até aqui? 1h30min, às vezes 2 horas. Por exemplo, se eu saio daqui às 16h, eu chego às 18h em casa. 18h- 18h10min. Se eu saio mais tarde, demora mais ainda. Me conta um pouco da sua rotina. Você acorda e faz o quê? Como você se prepara para ir trabalhar? Olha, a minha rotina aqui depende do dia. Se eu acordo mais cedo, tenho que pensar qual roupa que eu vou pôr, o sapato que vai combinar, aí vou arrumar o cabelo, se der tempo eu passo maquiagem, se não, eu maquio depois que eu chego aqui quando dá na hora do almoço, assim, almoço e volto rapidinho pra passar maquiagem. Eu acordo se eu não tenho tempo pra roupa, pros meus cachorros dou comida, água, dou carinho, eu me arrumo correndo, 120

tomo café, acho que é umas das primeiras coisas que eu faço, levanto e vou direto pegar um café. Geralmente meu pai deixa pronto, pego o café e já desço pra dar comida para os cachorros e aí troco de roupa... Você só toma café de manhã, não come nada? Não. Daí, quando chego aqui, pego um café com leite e como uma bolachinha. Quando eu chego, eu como isso. E você vem como pra cá? Eu pego um ônibus e dois trens. Um até Osasco e de Osasco até a linha Esmeralda. E como é o trajeto? Pegar o ônibus e trem sempre foi tranquilo? Como é? É tranquilo. Ninguém gosta de pegar o ônibus cheio demais de manhã, né? Mas é tranquilo, tirando aqueles caras que encostam na gente. Isso já aconteceu. Eles esbarram e fingem… Como é que foi? Foi constrangedor. Para toda mulher é constrangedor. Eu fiquei alguns dias mal. Me deu um enjoo, vontade de chorar nesse dia. O trem estava cheio naquele dia, e ele ficou se encostando em mim. Foi bem chato. E quando você chegou no trabalho nesse dia, você comentou com alguém? Não, eu fiquei tão envergonhada... eu pensei em quanto as 121

mulheres passam por isso. Você nem precisa estar indo pro trabalho, pode estar indo pra qualquer lugar, acontece. Você pode estar indo pra um passeio no parque, pode acontecer. Mas isso não é frequente? Não. Isso aconteceu uma vez há muito tempo. Fora isso, é tranquilo. Foi vindo pra cá? Foi. O que mais você acha importante falar sobre o seu dia? Eu já falei que ele não é muito emocionante (risos). Como eu já tenho uma certa passabilidade, hoje está mais tranquilo. Antigamente não era? Não só na rua, mas nos outros empregos que eu tive era mais chato. Já tive em uma empresa que eu trabalhei, até comentei com você, da questão de me chamarem a atenção porque tinha ido trabalhar de vestido, porque eu era alta e não podia chamar a atenção nas pernas. Queriam me mandar embora com 3 meses porque estavam com medo de causar problemas com as funcionárias, uma mulher ficou constrangida comigo. Isso foi antes de você entrar aqui nesta empresa? Foi numa empresa antes. Depois me contaram, pois

peguei amizade com alguns gestores que me contaram a 122

verdade. Eu nem sabia disso, mas de usar roupas, me chamaram para conversar. No começo, eu tinha que atender com o nome masculino, o crachá era com nome masculino... Como foi o processo

seletivo lá? No processo seletivo em si, foi até tranquilo, porque eu não falei. Eles foram saber depois, mas tudo OK. Mas tu te apresentou

como Francisca? Sim. Depois que foi a questão da gestão que foi mais complicado.

Algumas pessoas tiveram preconceito, mas não percebi. Só uma pessoa mesmo que uma vez levantou e falou que eu era um homem vestido de mulher, que se achava mulher. Isso me deixou muito mal. Eu ia denunciar ela. Daí minha gestora falou comigo, que era pra eu entender que ela tava num momento de raiva, ela tava grávida, que não era pra eu fazer isso, e acabei desculpando, mas eu fiquei muito triste. Era uma colega de

trabalho sua? Sim. Ela fez isso no meio

da equipe? No meio da equipe. Mas acabei relevando.

Não denunciei, não fiz nada. O que você pensou

na hora ou sentiu? Risos (risos) Pode ser

sincera... Na hora, foi de jogar

ela longe! Aí 123

comecei a chorar, e saí. Minha vontade na hora era de voar… Deixa eu entender como foi esse processo de seleção. Você se apresentou como Francisca, mas de início pediram que você mantivesse as suas informações masculinas, é isso? Porque eu não tinha trocado o nome ainda. Os documentos eram no meu nome masculino. Então, teve que continuar. Também nos outros empregos até quando eu entrei aqui, porque eu não tinha retificado ainda. Mudei em agosto do ano passado. Mas, quando você entrou aqui, te deram um crachá e tudo o mais com identidade feminina? Sim. Aqui já foi com identidade feminina. E nos outros empregos não foi assim? Não. Como era call center, o pessoal entrava perguntando quem era o João, no meio de uma operação de 100 pessoas, pra querer saber quem era o João, e eu ficava bem constrangida. Tanto que teve uma outra empresa em que trabalhei antes, que foi mais ou menos assim, e tinha um gestor que não gostava quando eu atendia como Francisca, e os clientes reclamavam quando eu atendia com o nome masculino por causa da minha voz. Então, eu 124

falava Francisca, e diziam que eu não podia falar Francisca, pois perderia pontuação.

Esse foi seu primeiro emprego? Qual foi o seu primeiro emprego? Meu primeiro emprego foi no Fastfood X. Ainda não era a Francisca. Era o João. Que idade você tinha? 16-17 anos. Eu estava no colegial, último ano. Não lembro a idade certa, acho que era 17 anos. Foi por aí. Eu era um menino ainda, mas eu já sentia que era diferente. né. Eu lembro de uma menina que ela também era assim como eu, e a gente às vezes trocava o crachá. Eu não queria ficar com o nome de guri estampado, nem ela em ficar com o dela. Daí a gente trocava. E eles faziam a gente destrocar. Daí tinham vagas e eu queria ser anfitriã, mas nem passei no processo, porque naquela época anfitriã era função pra mulher, pra ficar brincando com criança, fazendo bixiga, maquiagem... Mas eu queria aquilo. Pra mim era normal ir. Só que pras pessoas não era normal. Fiquei um ano só, mas eu era menino ainda, No vestiário, eu esperava todo mundo se trocar. Eu era a última a entrar, mas nem eu sabia direito o que eu era, sentia que era diferente no mundo. 125

Não conhecia a definição trans ainda. Como foi esse processo de conhecer? Quando a Ariadna entrou no Big Brother. Foi quando eu falei: “Nossa, eu sou isso”. Eu não tinha o conhecimento. Pra mim existia o travesti, que era um homem que colocava as roupas de mulher e pronto. E que aquilo é pecado, que nunca vai ter jeito. Aí, quando eu vi a Ariadna eu vi que tinha como fazer a cirurgia. Naquela época eu pensava muito em fazer a cirurgia, eu pensava que seria uma mulher completa. Mas mudei essa parte, porque eu já entendi que eu aceito o meu corpo do jeito que ele é, eu sou uma mulher completa independente de cirurgia ou não, que tá tudo na cabeça. Mas conheci a partir dela. E como foi essa descoberta? Foi perturbadora. As pessoas comentavam que eu era uma mulher trans, mas eu dizia que não. Tenho uma amiga da primeira faculdade que entrei, que ela falava pra mim e eu dizia que não queria ser esse tipo de coisa, que eu não iria pro inferno. Eu cresci numa família evangélica. A gente sabe como é, a gente escuta as pessoas falando. E eu achava que era muito errado E aí foi muito mais forte do que eu. Não foi agora e pronto, foi acontecendo. 126

Meu cabelo, desde a época do Mac já era desse tamanho. Eu tomava comprimido escondido, minha tia vinha com pacote de anticoncepcional e eu tomava 2 comprimidos, depois dizia que ia parar, mas tomava outro comprimido, parava, esquecia. Até que eu vi uma amiga que conhecia quando mais nova, eu vi ela, na internet, feminina, tinha virado uma trans, e aí perguntei o que ela tava tomando e ela me levou na farmácia. Você a conhecia desde pequena? Desde criança, menino. Aí ela disse que ia me levar para tomar. Eu falei: “Agora é a hora, eu vou”. Eu sempre tive muito medo de injeção.

Aí eu fui, mas eu desisti na hora. Não quis tomar injeção, falei que iria doer. Mas acabou que tomei, e tomo até hoje. E ela foi com você? Foi. Aí eu compreendi o caminho e fez a diferença no corpo, no rosto. Acho que são as únicas coisas que mudam mesmo. A pele, o corpo, os seios crescendo... Comecei a me sentir muito completa. Aí eu entrei numa empresa... E quando você começou com esse processo de transição, de tomar comprimidos, você não estava empregada? Tava. Tinha entrado numa empresa de call center também. Você saiu do McDonald's e foi para essa empresa de call center? 127

Sim. Esperei o resultado do exame de reservista do quartel, que foi horrível. Como foi isso? Até hoje não senti sensação igual, de tanta tremedeira e coração explodindo. Pensa, eu já tinha o cabelo na altura do ombro, usava calça super apertada, calça feminina, usava blusinha de banda, porque eu era emo, lápis de olho, rímel... eu era uma roqueirinha. Fui pra fila do quartel. Quando cheguei lá, meu coração tremia. Na hora de entrar, o soldado perguntou se eu estava acompanhando algum namorado. Respondi que não, que era eu. E o rapaz: "ah ta, entra na sala." Então, quando eu entrei na sala, tinha muitos homens, eu tremi demais. Mas logo fui dispensado. Você teve medo? Tinha muito medo do meu nome, sabe? Todo mundo “ai, nossa...” ninguém sabia quem eu era, não era identificado. É um constrangimento que a gente passa. Daí passei essa fase do quartel e entrei nessa empresa. Eu achei que eles foram bem abertos, sabe? Era uma empresa de telemarketing? Isso. E quando eu entrei, eu passei no processo e tudo. Isso com o nome de João mesmo. Não falava Francisca no processo seletivo. Aí eu lembro que teve essa mulher, a 128

Roberta, até hoje tenho que agradecer a ela. Eu tava no primeiro dia de treinamento, pediram para o pessoal entregar os documentos, eu entreguei o meu e fui lá me apresentar. Eu falei que meu nome era João e ela falou que não, que ela queria meu nome de verdade, que esse nome João não era eu. Foi aí que esse nome veio na minha mente, eu falei Francisca. Foi a primeira vez que você se nomeou Francisca? Foi. Daí então sempre foi Francisca. Só que, infelizmente, para atender, crachá e e-mail era tudo com nome de João. Essa parte não era muito legal. Até que um dia que eu acho que foi no feriado de Natal e Ano Novo, eles têm costume de ligar para saber se a pessoa vai trabalhar. E aí meu chefe ligou para minha mãe perguntando da Francisca (risos), e não tinha Francisca em casa, meus pais não sabiam. Você não falava em casa ainda? Não. Eu nesta época tinha muito medo dos meus pais. Não imaginei que eles iam me aceitar, então eu me trocava escondida para sair de casa. Aí nessa empresa eu conheci umas amigas que pintavam a unha, aí eu quis pintar também. Daí pintei de uma cor bem clarinha. Comprei minha primeira maquiagem 129

com meu primeiro cartão de crédito, usava top para debaixo da blusa. O dia que eu choquei mesmo em casa foi no Natal. Eu comprei um short, uma sapatilha e uma blusinha. Cheguei em casa, saí do trabalho e fui para casa. Todo mundo ficou sem entender nada. Rabo de cavalo, tinha o cabelo grande… Foi a primeira vez que você se mostrou feminina na frente de toda a família? Foi. Nossa, foi sim.. Mas eu me sentia eu mesma. Só que com o nome, meus pais ainda me chamavam de João. Até que eu conheci um rapaz e a gente começou a namorar. Um dia eu levei ele a uma festa da família, e minha família me chamava pelo meu nome. Daí ele falou “Não, essa é a Francisca”. Aí a minha mãe “ãh?”, não entendeu nada. “É, é a Francisca”. Aí no meio de toda essa história, saí de casa mas não pelo meus pais, saí de casa porque eu estava muito apaixonada e eu achava que era o momento, e a família dele também falou que ia mandar ele pra outro estado…. Então eu falei para morarmos juntos, tinha 18 anos de idade. Daí moramos juntos por um ano e meio. Daí, quando não deu mais certo, cada um seguiu o seu caminho. Você voltou para casa dos seus pais? Voltei. Na verdade a gente se separou, eu 130

voltei pra casa dos meus pais e ele voltou comigo. Meu pai nunca tinha visto ele. O tempo que a gente morou fora, meu pai não quis ver. Aí eu pedi para o meu pai. [...] Quando meu pai falou que sim, nossa, a emoção tomou conta. Minha mãe chorou junto. Foi bem legal, assim. Meu pai nunca tinha conhecido e hoje ele sabe aceitar a minha condição E aí, depois disso, eu entrei no segundo call center, que foi o que te contei, onde teve a questão do vestido. Me conta como foi

neste call center. Desde quando eu entrei foi o processo que eu te falei. Eu fiz o processo como

Francisca, eu entrei. Mas tinha um gestor lá, que ele era gay e tudo, ele me adorou... Depois de um tempo, uns dois meses, meu gestor atual me chamava e dizia que eu não podia usar vestido, saia. Eu perguntava por que, e respondia que chamava atenção. Rebatia que havia outras meninas ali que usavam e perguntava por que eu não podia. Ele dizia que era pra eu ir de calça. Eu quase briguei lá porque eu sempre gostei de vestido, só uso calça no frio, e eu ficava muito triste falando que era injusto, que a pessoa que tá do meu lado vinha com vestido, com saia e eu não podia usar. E eu já era muito feminina naquela 131

época. Bem mesmo. Passou o tempo, e quando eu já tava para sair, esse gestor que era amigo meu me contou toda a história, que naquela época tinha essas cobranças era porque foi conversado, teve uma votação, e eles queriam me demitir assim que desse o prazo de três meses porque ficaram com medo de eu constranger outras mulheres no banheiro, era tudo muito novo naquela época, eu acho que eu era a única trans de lá…. Que ano foi isso? 2015/2014 ou 2016, não lembro, mas foi nessa época. A empresa nem existe mais, faliu. Eu fiquei bem chateada porque tinha pessoas que na roda assim conversavam comigo e estavam apoiando pra eu sair. Pessoas que eu nem imaginei que eu iam defender, me defenderam. O que me salvou foi que o cliente nosso pediu para ouvir uma ligação minha e, justo essa ligação, eu lembro até hoje, foi uma mulher que ela ligou umas 30 vezes. Ela ligava e ninguém tinha atendido ela, as pessoas estavam desligando porque era uma coisa bem crítica, ela teve um problema muito grave com o produto, e eu dei toda a atenção que ela precisava. Disse ficar calma, que iria ajudá- la, passaria para a 132

responsável. Deixei ela falar meia hora tudo que ela queria. [...] E aí eu tratei ela muito bem. Ela falou que não tinha por que me mandar embora, que o meu atendimento era muito bom. Ela não deixou que me demitissem. Aí eu passei para outra área, me tornei back office, acho que fui a melhor que tiveram, eu sabia tudo, treinada o pessoal novo, levava processos, na troca de gestores, eu fazia o serviço de gestor, cobria férias, respondia os e-mail do gestor... Só que eu não tive oportunidade de crescer. Por isso que eu saí.

Porque eu sinto que seria muito para eles uma travesti, uma trans tendo um cargo de gestão lá. Aí eu fiquei bem chateada. Abriu processo seletivo, fui para participar do processo... Você acha que não recebeu uma promoção porque seria demais de uma mulher trans ou uma travesti como gestora? Acredito que sim. Ainda mais naquela época. Porque não fazia sentido, eu sabia muita coisa de lá. Talvez eu não fosse madura de idade, mas eu tinha bastante conhecimento. Quando eu saí, essa célula se desestruturou, a galera começou a pedir demissão, o pessoal desanimou. 133

Isso te contaram depois? Me contaram, porque depois de uma semana a gestora desta área saiu, o pessoal todo começou pedir pra ser mandado embora. E você chegou a ter essa conversa lá com eles, de que você gostaria de crescer, que gostaria de uma oportunidade? Não, não, eu quis ficar em casa, descansar. Não adianta mais brigar, sabe. Não adianta brigar pra ficar forçando as pessoas a mudar. Daí teve processo seletivo todo, e foi bem quando eu comecei na faculdade, isso me desanimou muito, muito. Eu concorri com um rapaz, ele não tinha nenhuma qualificação, nenhuma informação, ele tinha acabado de entrar, ele não tinha postura e ele passou. Todo mundo vinha me parabenizar, dizendo “Francisca, a vaga é sua!”, mas ele passou e foi logo mandado embora. Porque não tinha qualificação… Sim, e logo abriram outra seleção. Daí pensei que a vaga, agora, seria minha. Mas pediram por alguém que, no mínimo, estivesse estudando administração. Pensei que fosse eu, porque infelizmente muita gente lá não tinha graduação. Essa vaga era minha. Mas não. O trabalho era das 11 horas às 19 horas, ou seja, quem faz curso 134

presencial fica como? Daí disse que chega, queria entrar no corte eu não queria ficar mais, tinha faculdade e não ia ficar com VR a R$ 7 por dia, tava ganhando pouco, que ia sair procurar outra coisa. Lá você era com carteira assinada? Era CLT, mas o salário muito baixo. Naquela época era R$ 980, um salário mínimo. Ainda tem os descontos...VR R$ 7,00. De lá ia direto pra faculdade. Entrava às 7h20min, tinha de sair de casa às 4h30- 5h, e de lá tinha que esperar para ir pra faculdade, pois não tinha dinheiro pra passagem. Na faculdade era escolher comer ou não comer. Isso é tortura, gente. Foi aí que fiquei 9 meses em casa e entrei nesta empresa que estou agora. Como estagiária? Sim. Foi onde que mudou minha vida. Por quê? Porque aqui tem muito conhecimento. Conheci muita gente. Conhecimento profissional, pessoal, realizações… O salário é muito bom aqui. Eu ganho praticamente o triplo do que eu ganhava, então eu pude ajudar mais em casa. Quando trabalhava no call center pensava que queria simplesmente poder ir ao MacDonald’s sem precisar me programar tanto, ser uma data especial. Hoje eu tô com vontade, eu compro. É um dinheiro que não tá fazendo 135

falta para pagar uma conta. O dinheiro que eu tô podendo conseguir reformar minha casa, eu consigo pagar minhas coisas, ajudo meus pais, melhorei a internet de casa, pago a conta de água, de luz, ajudo com a mistura. São coisas que antigamente era muito difícil eu conseguir fazer. Antes queria sair com amigos e não podia. Queria um sapato novo, demorava tempo pra conseguir comprar… Revolucionou sua vida na qualidade de vida... Sim, na qualidade de vida e cultural também. Quando eu entrei aqui, conhecia pouco sobre política. Se você entrasse no Facebook, era só besteira, só meme. E conversando com as pessoas daqui, interagindo, as pessoas aqui são cultas demais, e isso foi mudando meu perfil, se você for olhar o meu perfil das minhas redes sociais hoje, é só informação, assunto sério sobre política, economia do Brasil. Então eu mudei, eu amadureci, me tornei uma pessoa adulta. Hoje quando eu entrei, eu chorei no elevador subindo. Passou um filme na minha cabeça. Olha onde que eu tava, de onde eu vim, quanta gente eu conheci, quantos lugares eu conheci... A minha formação profissional tá show de bola graças a esta 136

empresa. Serei sempre grata a eles. Muita coisa mudou. E quando você diz que sua vida profissional está show de bola, o que você acha que mudou da sua formação mesmo? Uma coisa que queria muito e sair da especificação de call center. Acho que é um bom lugar para você aprender, se desenvolver. Mas quando você tem a experiência só ali, muita empresa te rejeita. Porque é específico, é atendimento. Então, como é que a pessoa vai te colocar como auxiliar administrativo se minha única experiência é atender telefone? Isso mudou aqui. Porque tive experiência em sustentabilidade, costumer care. Atendo o telefone, mas é bem mais administrativo, mexo no Excel, faço Powerpoint, participo de reuniões, de workshops, hoje sei organizar eventos, faço relatório de despesas. Então, é algo mais amplo. Entendo que eu tenho mais capacidade de conseguir outras vagas, um mercado mais amplo pra mim. Isso melhorou bastante. E como foi esse processo de saída daqui, porque agora você tá na última semana. Me conta como você está. Tenho muitas amizades aqui. Só eu acho que eu vou sentir 137

muita falta do ambiente de trabalho, vai ser difícil, mas a gente tem que pensar no lado profissional nessa parte e ver que vai ser melhor. Acredito que vou ter uma boa chance na outra empresa, que eu vou aprender mais também, desenvolver, porque como sou nova ainda, o foco é desenvolver. Enquanto tem oportunidade ainda de trocar de emprego, eu posso tentar, arriscar. Quando você já é mais velho, já tem uma carreira é mais difícil você arriscar. Então hoje eu posso arriscar. Vou lembrar sempre com carinho e dizer um até breve a todos, né. Não quer dizer que um dia eu não possa voltar pra cá. Como foi essa escolha de sair, de participar de processos? Questão de vagas. Não tem muitas vagas junior’s. Aparece uma ou outra, mas depende muito do ano de faculdade, tem vagas aqui dentro, mas é pra quem se formar este ano, eu me formo daqui um ano e meio, no final de 2020. Depende do curso. Abre muita vaga pra pleno, sênior. Antes de eu ficar esperando, eu já estou de olho nas vagas que vão abrir, mas antes de ficar só esperando, eu vou começar a procurar fora. Tanto que meu contrato ainda não acabou. Você comentou comigo que é outubro, né? 138

Outubro. Faltam 2 meses, mas eu preciso pensar em mim primeiro. Quando você começou a pesquisar outras vagas? Mês passado. Entrei de férias já comecei a procurar. Foi rápido, então? Foi minha primeira entrevista. E como foi essa entrevista? Primeiro eu fiz uma entrevista por telefone com a agência, foi pelo WhatsApp, chamada de vídeo. Ela me encaminhou para fazer a dinâmica. Lá eles chamam de short (?), curto mesmo, no mesmo dia. E teve a dinâmica, os candidatos a maioria fazendo Engenharia, Química, Farmácia… e eu pensava o que estava fazendo ali. Eram quantos candidatos? Sete. Bastante. Mas tinha bastante vaga também. Só que específicas, para trabalhar em laboratório, trabalhar com formulação de produtos. E eu me perguntava o que estava fazendo ali. Você sabia para qual vaga você tava concorrendo? Eu pensava que era costumer care. Eu me confundi, porque vi no LinkedIn uma vaga assim. Mas na postagem que a pessoa divulgou estava só como estágio, e eu tentei. Só que lá tinha vaga de compra técnica e desenvolvimento de fragrâncias. Mas 139

disseram que era uma vaga mais adminstrativa. Fiz a dinâmica, me apresentei, então essas duas gestoras de Compras e Desenvolvimento de Fragrâncias me chamaram e passei para a área de desenvolvimento de fragrâncias, que é envio de amostras, tem contato com clientes, faz uma pesquisa de satisfação pra ver se deu tudo certo, organiza eventos, oferece produtos… O que é exatamente o que você gosta... Sim. Tratar com questão de documentos, mexer com segurança. E eu não sei mais porque tenho que entrar primeiro, né. Logo a gente vai saber. Dia 5 você começa, né? É. Agora que você tem a documentação como Francisca… Nem todos os documentos. Até mandei um e-mail para ela hoje. Falta meu PIS, meu título de eleitor eu não mudei por causa da eleição passada. Alguns lugares me param por divergência no CPF, mesmo que eu tenha mudado o nome. Por exemplo, fui me cadastrar numa vaga e divergência do meu RG com o nome, tive que colocar o nome antigo... eu ainda tenho algumas coisas pra mudar. E nesse novo processo seletivo em que você foi aprovada, você precisou comentar que você é 140

uma mulher trans ou não? Ninguém perguntou nada, mas no final da apresentação eles me perguntaram se eu tinha participado de algum voluntariado, e aí eu comentei que participo do GT das meninas trans, que na parada LGBT eu tava na barraca delas fazendo abaixo assinado, que quando tem evento eu vou ajudar, então falei que faço muita coisa voltado ao meio LGBT. Ponto e ninguém perguntou nada. Foi natural. Isso já no processo seletivo? No final. Com todo mundo junto? No grupo. E para você é tranquilo? Hoje é, depois que eu entrei na Empresa 1 é. Antes de entrar aqui eu tinha muito medo das pessoas saberem, . até que eu fui tão bem aceita, pois eu achava que as pessoas não sabiam e pensava como é que eu vou contar. Ficava pensando “gente o que é que eu vou falar para o pessoal?” Até que depois de umas 3 semanas meu chefe me chamou e eu falei: “então, como é que eu falo?”. E disse “todo mundo já sabe”, que ele tinha contado. E eu não acreditei porque todo mundo tava me tratando normal, como se nada tivesse acontecido. Isso pra mim foi incrível. Aí teve um evento do nosso grupo LGBT daqui e, no evento, eu fui convidada pra falar. 141

Tinha cerca de 200 pessoas. E subi, tomei coragem e disse que era uma mulher transsexual, expliquei, contei minha vida, e desde isso comecei a militar, ter empoderamento e não ter vergonha de quem eu sou. Quanto mais eu me escondo, mais as pessoas pisam na gente. A gente tem que saber que a gente ta aqui, que tem trans trabalhando, que tem trans que vai entrar na empresa, que a gente tem capacidade para isso, que a gente tem oportunidade, quando eu entrei aqui eu disse pra eles que meu objetivo de vida é mostrar para as meninas que a gente pode, eu quero ser diferente, fazer diferente pra mostrar pra elas que a gente tem outra oportunidade. Eu tinha preconceito comigo porque eu não queria estar na rua, não queria apanhar, não queria que as pessoas passem e olhem “é uma puta”. Não tenho nada contra, mas eu quero ser diferente, quero fazer a diferença e acho que estou conseguindo. Quero dar muito orgulho pra minha família e calar a boca de muita gente preconceituosa. Algo que você já tenha escutado e por isso está falando? A gente vê muita gente comentando, pessoas que xingam na internet, na época 142

de eleição também. Até eu fiz uma matéria para Veja que teve gente que comentou que agora precisa dar o rabo pra conseguir emprego, que estamos tirando emprego de pais de família pra dar pra esse tipo de gente. Até no LinkedIn a gente postou uma foto nossa na parada e falaram que a empresa X não tem que apoiar a diversidade, que isso é doença mental. Olha como o mundo é preconceituoso. Então, a gente tem que mostrar nossa capacidade. Eles tratam a gente como se fôssemos um nada, como incapazes, e nós não somos. Tem gente muito boa, tem pessoas maravilhosas, inteligentes, esforçadas, que estudam, que trabalham, que só merecem uma oportunidade. Se eu não tivesse tido uma oportunidade na Empresa 1, não sei como estaria hoje, não sei qual o caminho que teria tomado na vida. Então é calar a boca de muita gente, quebrar muitos tabus. Falando em quebrar tabus, gostaria de saber mais da tua trajetória estudantil, acadêmica, porque isso também é algo novo, às vezes, né? Então, na escola foi difícil, eu apanhei muito. Desde o primário minha mãe tinha que ir na escola, 143

as pessoas me chamavam de mariquinha. Teve algo que aconteceu, acho que eu estava na terceira série, isso eu não esqueço até hoje, às vezes até choro. Eu lembro que uma menina começou a gritar, tinha uma novela A Senhora do Destino, e tinha um personagem que chamava Ubiraci, um personagem gay que era carnavalesco. E aí uma menina começou a gritar e quando eu fui ouvir todas as crianças do pátio estavam gritando U-biraci, U- biraci pra mim, eu lembro que me doeu tranquei no banheiro, fiquei lá porque era muita gente gritando, [...] porque naquela época a palavra Ubiraci era para zoar uma pessoa de gay, porque era um homossexual. Foi difícil. Apanhei muito. No colegial foi bem punk, eu era muito isolada, eu era aquela criança a última a ser escolhida. Eu nem jogava bola, quando era pra juntar time, ninguém queria saber de mim, eu era gordo, me chamavam de bicha, de tetinha, viadinho. Já mais velho, no banheiro, tinha que esperar todo mundo sair. Acabava o intervalo, todo mundo voltava para sala e eu ouvia muitas reclamações dos professores porque eu ia no banheiro só quando as pessoas saíram, porque se eu 144

entrasse no banheiro masculino, os meninos jogavam água por cima da porta pra me molhar, ficavam zoando, querendo passar a mão na minha bunda... Então foi uma fase bem chatinha. Eu não tive muitos amigos, meu álbum de formatura tá vazio, tem a minha família, só. Hoje as pessoas dizem: “Nossa, como você mudou, como você tá linda”, e que me lamber. Mas na época ninguém ligava pra mim, pra como eu estava. E depois na faculdade, no primeiro trimestre, já me chamaram na diretoria pois uma moça falou que uma funcionária de lá não se sentiu à vontade comigo no banheiro… Ali você já usava o banheiro feminino… Já estava começando a usar o banheiro feminino, já tava trabalhando naquela empresa, com cabelo grande, feminina, mas eu tava em transição e ela pediu que eu não usasse nem o banheiro feminino, nem masculino, tinha que usar o banheiro de deficientes. Aquilo me destruiu. Aí eu fui conversei com professor de Direito, disse que poderia recorrer na justiça, só que teria que envolver os meus pais. Eu entrei com 17 anos, tinha acabado de fazer 18, e me preocupei caso isso se espalhasse, como seria com 145

meus pais. Eu não queria causar esse constrangimento parar a minha família. Teus pais nem sabiam do teu processo de transição? Não sabiam do meu nome, mas por me verem fisicamente, estava nítido que tinha uma mulher ali. Mas eu optei por não processar. Até tinha uma amiga minha se revoltou e quis entrar nos banheiros dos homens e ela entrou comigo no banheiro dos homens pra questionar que palhaçada era aquela. Essa menina foi incrível. Só que eu acabei me sentindo muito mal, e o pessoal começou a questionar porque eu passei a usar o banheiro de deficientes, tinha que usar a desculpa de que era mais limpinho. Depois eu troquei de universidade. Trocou por esse motivo? Eu parei, parei total. Eu fiquei 4 anos sem estudar. Fiquei bem mal, falei “chega, cansei”, agora vou me dedicar ao trabalho. Aí eu voltei, só que em outra universidade, lá desde o princípio falei que quero nome social. “Ah, mas como? Você fazer carta etc”. Não importa, eu disse, faço o que vocês quiserem. Eles me pediram para prometer que eu ia mudar meus documentos para não dar problema com o diploma. Eu não contei 146

pra ninguém. Preferi não contar sobre eu ser trans e não vou contar. Mas acabou acontecendo a entrevista para a revista Veja, aí todo mundo ficou sabendo. Tanto que eu tinha um grupo de 4 amigas, e hoje estou só. Elas não chegaram e falaram explicitamente o motivo, mas simplesmente se afastaram de mim. Hoje converso com uma ou outra, alunos novos que não sabem, mas eu fico na minha. E você percebe que essa mudança foi

depois que elas ficaram sabendo? Sim, porque foi no final do ano passado essa notícia, e neste ano, já no primeiro semestre, as pessoas se afastaram de mim. E você não conversou com elas? Tem coisas que prefiro não dar tanta importância na vida. Tanta coisa que a gente passa na vida que não vale a pena. Já ouvi comentários preconceituosos demais. Na faculdade? Sim, quando saiu aquela cura gay, teve um aluno, o pessoal não sabia de mim ainda, ele disse que era contra cura gay, porque ser gay não tem cura, mas que identidade gênero é doença mental. Na hora que ia falar acabou a aula. Fiquei sem acreditar. É uma moçada muito jovem, 147

então eles não têm muita mentalidade. Mas fora isso, eu não saio falando pra todo mundo. Perdi muitas amizades, até do pessoal de onde eu moro, hoje tem muitos que nem me olham mais na minha cara, eu sei que as pessoas falam mal. Mas eu não me importo. Tento ser eu mesma e não fazer mal para ninguém, só isso. Me respeita que te respeito, só isso, respeitar. Tem mais alguma coisa que você acha importante dizer e que não disse e gostaria de deixar registrado em relação à carreira? Da carreira, não. Mas alguma outra coisa, qualquer coisa, que você queira me dizer? Não é fácil. Não tem como alguém dizer que é opção você escolher ser trans. Ninguém quer ficar apanhando todos os dias, correndo risco de morte. Você passa um conflito tão grande dentro de você pra tomar coragem para se transformar, renascer de novo. É muito complicado. Quantas vezes eu já chorei me questionando por que eu fui escolher ter passado por tanto constrangimento. As pessoas já te olham e já te julgam, é difícil pra você ter um relacionamento, difícil pra ter amizade. Sempre tem piadinha, não é 148

fácil. Então, tem que ser muito forte. Só que é mais forte que a gente. Quando eu fui ver já tava tomando hormônio, já tinha trocando as roupas, foi uma coisa de extinto. Eu não aguentava. Quando as pessoas me chamavam pelo meu nome masculino só faltava gritar, eu fugia, fingia que não escutava. Banheiro, então, eu saía de perto da minha mãe pra ir no banheiro feminino, porque eu não conseguia entrar no banheiro masculino. Não conseguia ficar sem sutiã. Eu ficar com o peito de fora, usava sempre uma regatinha. Desde muito cedo? Desde muito cedo. Minha mãe sempre soube. Depois de grande fui conversar com ela e ela falou que sempre soube. Ela disse que quando eu tinha três anos de idade minha tia veio avisar ela que eu era gay. E ela disse que ele não é gay, ele vai ser igual a Roberta Close quando crescer, ela tinha certeza. Isso quando você tinha 3 anos? 3 anos. Ela tinha certeza. Eu queria brincar de boneca, andar de salto, usar maquiagem. Sempre fui delicada, menininha. Eu não tinha nada de menino. E minha mãe sabia. Mãe é mãe, você conhece. E esse processo com tua mãe foi mais tranquilo que com seu pai? 149

Na verdade com os dois. Eu achei que ia ser super difícil. A gente nunca sentou e conversou, não. “Eu sou mulher e a partir de agora sou Francisca, ela é mulher”, os dois se resolveram lá. Minha mãe contou que ela tinha muito medo da família, do que eles iam achar, mas acabou que as pessoas viram, me conhecem, sabem que eu sou uma pessoa boa, que eu não tenho má índole. Minha avó de 70 anos me chama de Francisca como se o meu passado tivesse sido apagado. Você sente assim? Eu lembro, sei as dores que sofri. Quando falam da Francisca quando era pequena sempre pra mim é como se fosse outra pessoa. Minha mãe ela fala que teve três filhos: meu irmão, meu antigo eu, que foi viajar, e eu. Então, são três filhos. Você gosta de ouvir isso? Você acha uma boa definição? Eu acho que é uma forma dela aceitar. O importante é que eles me amam e me respeitam. E realmente é verdade., são três filhos. Meu pai sempre sonhou ter uma filha mulher. Ele tem mesmo, morre de ciúmes. Ele falou que não queria saber quando eu tivesse namorado eu teria que ir lá falar com ele. Você acha que o apoio da família foi importante pra você? Fez diferença? 150

Família é tudo. Se você não tem o apoio da família, não vai ter onde morar, não vai ter uma estrutura. Pra onde você vai? É o que acontece, vai pra rua, pra marginalidade. Se eu não tivesse minha família, imagina eu, se minha mãe me jogasse na rua, eu não sei quem me pegaria pra criar? Ou como eu ia me virar? Família foi feita pra isso, pra pai e mãe cuidarem dos filhos, dar amor, dar carinho. Se você não tiver o apoio da família às vezes é muito difícil. Acho que é essencial. Inclusive na manutenção ou depois pra conseguir um emprego mais tarde, né? Acho que sim porque na adolescência você tem a família, ou pai, ou avô, ou um amigo que se torna família pra te ajudar, porque como uma criança vai trabalhar, uma criança de 8 a 10 anos? Não tem como. Acho que mais uma questão de estrutura. De base, né? Sim. ok. O que mais você acha que é importante dizer? Ai, gente, já falei bastante! (risos). Não sei... Pra você é suficiente, quer me dizer mais alguma coisa? É suficiente... Então está bom, encerramos aqui!

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APÊNDICE C - ENTREVISTA (TRANSCRIÇÃO)

Francisca se declara mulher transexual, tem 24 anos de idade e trabalha como estagiária há 1 ano e 10 meses em uma multinacional. A entrevista ocorreu no dia 22 de julho de 2019, na cidade de São Paulo, na sala de reuniões da empresa na qual Francisca trabalha, e teve duração de 55 min e 05 seg. As falas da pesquisadora estão sinalizadas em negrito.

Eu sei que você tá trocando de emprego, mas a primeira questão que tenho pra fazer é: onde você trabalha hoje? (Vamos usar como referência o seu emprego até este momento.)

Trabalho na Empresa 1.

A Empresa 1 é uma empresa de quê?

É uma indústria química, ela vende matéria-prima para as outras empresas formularem seus produtos.

E como é seu dia a dia de trabalho?

Aqui é normal, por isso é a primeira empresa em que falei abertamente em público que eu era uma mulher trans. Não tive problema nenhum com nome, crachá... Quando eu fiz a entrevista, eu contei. E quando eu cheguei aqui, no primeiro dia, eu até fiquei com medo. Eu pensei: “Ai, meu Deus, eles vão entregar os crachás para as pessoas e eu não sei como vai estar meu nome”, porque eu ainda não havia feito a retificação. Quando entregaram, já estava com o nome de Francisca. O meu ex-chefe conversou com toda a equipe, teve uma preparação para tirar as dúvidas das pessoas, porque, querendo ou não, as pessoas ainda hoje têm um pouco de falta de conhecimento, têm curiosidade, sobre qual banheiro vou usar, se podem me chamar de menina, como é que funciona... Tem pessoas que ainda não conhecem muito, né? Não têm vivência. Então, eles tiraram essas dúvidas. Quando eu cheguei, fui super bem-recebida. Até hoje, aqui na empresa, eu nunca passei por constrangimento nenhum. Isso eu posso garantir que sempre foi bem tranquilo.

Você sempre se sentiu à vontade?

Sim.

E o que você faz? Você chega no trabalho e faz o quê?

Eu chego e a primeira coisa que eu faço é ligar o computador e vou pegar um café, porque aqui cada andar tem uma copa. Pego um café e depois eu volto pra minha mesa e começo a fazer meu trabalho.

O que é o seu trabalho?

Antes eu fazia, nesta área que estou agora, porque já fui de outra área, é envio de amostras, ajudar 152

as meninas a colocarem ordem de pedido no sistema, gerar remessa, ver estoque e tou cuidando do atendimento comercial por e-mail e por telefone. Então, os clientes entram em contato pedindo documento, querem cotação, querem saber informação de produto, daí eu tenho que procurar quem é o responsável, qual a aplicação que ele vai usar, se tá de acordo com a área... Porque tem produtos que têm diversas aplicações. Só que, às vezes, por exemplo, a empresa vende um produto que é usado para nutrição humana, mas o cliente queria comprar para alimentação animal. Só que a gente não vende para a alimentação animal, tem que ser humana, então tem que conversar isso com o cliente.

E é você que conversa com o cliente?

Eu informo por e-mail e, se ele insistir, tenho que passar pro vendedor. Eu faço a intermediação entre eles.

E você trabalha sozinha ou tem mais alguém que trabalha com você na equipe?

No atendimento comercial, só eu.

E você atende muita gente durante o dia?

Bastante. Por exemplo, agora tinha uns 80 e-mails lá. Fora as ligações que vão caindo, tem dia que é 30, 40…

Diariamente?

Não. Isso porque eu não estava. Por dia, uma média de 20 e-mails. Depende do dia.

Você gosta de fazer isso?

Gosto. Eu acho que sou apaixonada pela área de costumer, de ter contato com o cliente. Se eu não tiver contato com alguém, não me completa tanto.

Por exemplo, trabalhar sozinha no computador, a parte administrativa você já não gosta tanto?

Eu gosto. O que eu faço tem um pouco de administrativa, é venda com administrativa. Mas você está vendo pra quem que vai. Não gosto muito de trabalhar com projetos, você fazer um projeto X e ficar lá... não sou muito fã.

Porque, o que tem no projeto?

Eu gosto de coisa mais operacional. Acho que me identifico mais com isso.

Mais ágil, talvez... 153

Aham.

E que horas você começa aqui?

Como é estágio, eu começo às 9 horas e termino às 16h.

Você normalmente sai às 16 horas mesmo? Sim.

E que horas você tem que sair de casa para vir para cá?

Depende. Umas 7h30min, 7 horas…

Você leva umas 2 horas pra chegar aqui?

É porque eu deixo o celular 20 minutos adiantados. Então, às vezes, eu falo que são 7h30min, mas são no meu celular, que é pra eu não atrasar.

Então, dá quanto tempo até aqui?

1h30min, às vezes 2 horas. Por exemplo, se eu saio daqui às 16h, eu chego às 18h em casa. 18h- 18h10min. Se eu saio mais tarde, demora mais ainda.

Me conta um pouco da sua rotina. Você acorda e faz o quê? Como você se prepara para ir trabalhar?

Olha, a minha rotina aqui depende do dia. Se eu acordo mais cedo, tenho que pensar qual roupa que eu vou pôr, o sapato que vai combinar, aí vou arrumar o cabelo, se der tempo eu passo maquiagem, se não, eu maquio depois que eu chego aqui quando dá na hora do almoço, assim, almoço e volto rapidinho pra passar maquiagem. Eu acordo se eu não tenho tempo pra roupa, pros meus cachorros dou comida, água, dou carinho, eu me arrumo correndo, tomo café, acho que é umas das primeiras coisas que eu faço, levanto e vou direto pegar um café. Geralmente meu pai deixa pronto, pego o café e já desço pra dar comida para os cachorros e aí troco de roupa...

Você só toma café de manhã, não come nada?

Não. Daí, quando chego aqui, pego um café com leite e como uma bolachinha. Quando eu chego, eu como isso.

E você vem como pra cá?

154

Eu pego um ônibus e dois trens. Um até Osasco e de Osasco até a linha Esmeralda.

E como é o trajeto? Pegar o ônibus e trem sempre foi tranquilo? Como é?

É tranquilo. Ninguém gosta de pegar o ônibus cheio demais de manhã, né? Mas é tranquilo, tirando aqueles caras que encostam na gente. Isso já aconteceu. Eles esbarram e fingem…

Como é que foi?

Foi constrangedor. Para toda mulher é constrangedor. Eu fiquei alguns dias mal. Me deu um enjoo, vontade de chorar nesse dia. O trem estava cheio naquele dia, e ele ficou se encostando em mim. Foi bem chato.

E quando você chegou no trabalho nesse dia, você comentou com alguém?

Não, eu fiquei tão envergonhada... eu pensei em quanto as mulheres passam por isso. Você nem precisa estar indo pro trabalho, pode estar indo pra qualquer lugar, acontece. Você pode estar indo pra um passeio no parque, pode acontecer.

Mas isso não é frequente?

Não. Isso aconteceu uma vez há muito tempo. Fora isso, é tranquilo.

Foi vindo pra cá?

Foi.

O que mais você acha importante falar sobre o seu dia?

Eu já falei que ele não é muito emocionante (risos). Como eu já tenho uma certa passabilidade, hoje está mais tranquilo.

Antigamente não era?

Não só na rua, mas nos outros empregos que eu tive era mais chato. Já tive em uma empresa que eu trabalhei, até comentei com você, da questão de me chamarem a atenção porque tinha ido trabalhar de vestido, porque eu era alta e não podia chamar a atenção nas pernas. Queriam me mandar embora com 3 meses porque estavam com medo de causar problemas com as funcionárias, uma mulher ficou constrangida comigo.

Isso foi antes de você entrar aqui nesta empresa?

Foi numa empresa antes. Depois me contaram, pois peguei amizade com alguns gestores que me 155

contaram a verdade. Eu nem sabia disso, mas de usar roupas, me chamaram para conversar. No começo, eu tinha que atender com o nome masculino, o crachá era com nome masculino...

Como foi o processo seletivo lá?

No processo seletivo em si, foi até tranquilo, porque eu não falei. Eles foram saber depois, mas tudo OK.

Mas tu te apresentou como Francisca?

Sim. Depois que foi a questão da gestão que foi mais complicado. Algumas pessoas tiveram preconceito, mas não percebi. Só uma pessoa mesmo que uma vez levantou e falou que eu era um homem vestido de mulher, que se achava mulher. Isso me deixou muito mal. Eu ia denunciar ela. Daí minha gestora falou comigo, que era pra eu entender que ela tava num momento de raiva, ela tava grávida, que não era pra eu fazer isso, e acabei desculpando, mas eu fiquei muito triste.

Era uma colega de trabalho sua?

Sim.

Ela fez isso no meio da equipe?

No meio da equipe. Mas acabei relevando. Não denunciei, não fiz nada.

O que você pensou na hora ou sentiu?

Risos

(risos) Pode ser sincera...

Na hora, foi de jogar ela longe! Aí comecei a chorar, e saí. Minha vontade na hora era de voar…

Deixa eu entender como foi esse processo de seleção. Você se apresentou como Francisca, mas de início pediram que você mantivesse as suas informações masculinas, é isso?

Porque eu não tinha trocado o nome ainda. Os documentos eram no meu nome masculino. Então, teve que continuar. Também nos outros empregos até quando eu entrei aqui, porque eu não tinha retificado ainda. Mudei em agosto do ano passado.

Mas, quando você entrou aqui, te deram um crachá e tudo o mais com identidade feminina?

Sim. Aqui já foi com identidade feminina.

156

E nos outros empregos não foi assim?

Não. Como era call center, o pessoal entrava perguntando quem era o João, no meio de uma operação de 100 pessoas, pra querer saber quem era o João, e eu ficava bem constrangida. Tanto que teve uma outra empresa em que trabalhei antes, que foi mais ou menos assim, e tinha um gestor que não gostava quando eu atendia como Francisca, e os clientes reclamavam quando eu atendia com o nome masculino por causa da minha voz. Então, eu falava Francisca, e diziam que eu não podia falar Francisca, pois perderia pontuação.

Esse foi seu primeiro emprego? Qual foi o seu primeiro emprego?

Meu primeiro emprego foi no McDonald's. Ainda não era a Francisca. Era o João.

Que idade você tinha?

16-17 anos. Eu estava no colegial, último ano. Não lembro a idade certa, acho que era 17 anos. Foi por aí. Eu era um menino ainda, mas eu já sentia que era diferente. Eu lembro de uma menina que ela também era assim como eu, e a gente às vezes trocava o crachá. Eu não queria ficar com o nome de guri estampado, nem ela em ficar com o dela. Daí a gente trocava. E eles faziam a gente destrocar. Daí tinham vagas e eu queria ser anfitriã, mas nem passei no processo, porque naquela época anfitriã era função pra mulher, pra ficar brincando com criança, fazendo bixiga, maquiagem... Mas eu queria aquilo. Pra mim era normal ir. Só que pras pessoas não era normal. Fiquei um ano só, mas eu era menino ainda, né. No vestiário, eu esperava todo mundo se trocar. Eu era a última a entrar, mas nem eu sabia direito o que eu era, sentia que era diferente no mundo. Não conhecia a definição trans ainda.

Como foi esse processo de conhecer?

Quando a Ariadna entrou no Big Brother. Foi quando eu falei: “Nossa, eu sou isso”. Eu não tinha o conhecimento. Pra mim existia o travesti, que era um homem que colocava as roupas de mulher e pronto. E que aquilo é pecado, que nunca vai ter jeito. Aí, quando eu vi a Ariadna eu vi que tinha como fazer a cirurgia. Naquela época eu pensava muito em fazer a cirurgia, eu pensava que seria uma mulher completa. Mas mudei essa parte, porque eu já entendi que eu aceito o meu corpo do jeito que ele é, eu sou uma mulher completa independente de cirurgia ou não, que tá tudo na cabeça. Mas conheci a partir dela.

E como foi essa descoberta?

Foi perturbadora. As pessoas comentavam que eu era uma mulher trans, mas eu dizia que não. Tenho uma amiga da primeira faculdade que entrei, que ela falava pra mim e eu dizia que não queria ser esse tipo de coisa, que eu não iria pro inferno. Eu cresci numa família evangélica. A gente sabe como é, a gente escuta as pessoas falando. E eu achava que era muito errado E aí foi muito mais forte do que eu. Não foi agora e pronto, foi acontecendo. Meu cabelo, desde a época do Mac já era desse tamanho. Eu tomava comprimido escondido, minha tia vinha com pacote de anticoncepcional e eu tomava 2 comprimidos, depois dizia que ia parar, mas tomava outro comprimido, parava, esquecia. Até que eu vi uma amiga que conhecia quando mais nova, eu vi 157

ela, na internet, feminina, tinha virado uma trans, e aí perguntei o que ela tava tomando e ela me levou na farmácia.

Você a conhecia desde pequena?

Desde criança, menino. Aí ela disse que ia me levar para tomar. Eu falei: “Agora é a hora, eu vou”. Eu sempre tive muito medo de injeção. Aí eu fui, mas eu desisti na hora. Não quis tomar injeção, falei que iria doer. Mas acabou que tomei, e tomo até hoje.

E ela foi com você?

Foi. Aí eu compreendi o caminho e fez a diferença no corpo, no rosto. Acho que são as únicas coisas que mudam mesmo. A pele, o corpo, os seios crescendo... Comecei a me sentir muito completa. Aí eu entrei numa empresa...

E quando você começou com esse processo de transição, de tomar comprimidos, você não estava empregada?

Tava. Tinha entrado numa empresa de call center também.

Você saiu do McDonald's e foi para essa empresa de call center?

Sim. Esperei o resultado do exame de reservista do quartel, que foi horrível.

Como foi isso?

Até hoje não senti sensação igual, de tanta tremedeira e coração explodindo. Pensa, eu já tinha o cabelo na altura do ombro, usava calça super apertada, calça feminina, usava blusinha de banda, porque eu era emo, lápis de olho, rímel... eu era uma roqueirinha. Fui pra fila do quartel. Quando cheguei lá, meu coração tremia. Na hora de entrar, o soldado perguntou se eu estava acompanhando algum namorado. Respondi que não, que era eu. E o rapaz: "ah ta, entra na sala." Então, quando eu entrei na sala, tinha muitos homens, eu tremi demais. Mas logo fui dispensado.

Você teve medo?

Tinha muito medo do meu nome, sabe? Todo mundo “ai, nossa...” ninguém sabia quem eu era, não era identificado. É um constrangimento que a gente passa. Daí passei essa fase do quartel e entrei nessa empresa. Eu achei que eles foram bem abertos, sabe?

Era uma empresa de telemarketing?

Isso. E quando eu entrei, eu passei no processo e tudo. Isso com o nome de João mesmo. Não falava Francisca no processo seletivo. Aí eu lembro que teve essa mulher, a Roberta, até hoje tenho que agradecer a ela. Eu tava no primeiro dia de treinamento, pediram para o pessoal entregar os documentos, eu entreguei o meu e fui lá me apresentar. Eu falei que meu nome era 158

João e ela falou que não, que ela queria meu nome de verdade, que esse nome João não era eu. Foi aí que esse nome veio na minha mente, eu falei Francisca.

Foi a primeira vez que você se nomeou Francisca?

Foi. Daí então sempre foi Francisca. Só que, infelizmente, para atender, crachá e e-mail era tudo com nome de João. Essa parte não era muito legal. Até que um dia que eu acho que foi no feriado de Natal e Ano Novo, eles têm costume de ligar para saber se a pessoa vai trabalhar. E aí meu chefe ligou para minha mãe perguntando da Francisca (risos), e não tinha Francisca em casa, meus pais não sabiam.

Você não falava em casa ainda?

Não. Eu nesta época tinha muito medo dos meus pais. Não imaginei que eles iam me aceitar, então eu me trocava escondida para sair de casa. Aí nessa empresa eu conheci umas amigas que pintavam a unha, aí eu quis pintar também. Daí pintei de uma cor bem clarinha. Comprei minha primeira maquiagem com meu primeiro cartão de crédito, usava top para debaixo da blusa. O dia que eu choquei mesmo em casa foi no Natal. Eu comprei um short, uma sapatilha e uma blusinha. Cheguei em casa, saí do trabalho e fui para casa. Todo mundo ficou sem entender nada. Rabo de cavalo, tinha o cabelo grande…

Foi a primeira vez que você se mostrou feminina na frente de toda a família?

Foi. Nossa, foi assim... Mas eu me sentia eu mesma. Só que com o nome, meus pais ainda me chamavam de João. Até que eu conheci um rapaz e a gente começou a namorar. Um dia eu levei ele a uma festa da família, e minha família me chamava pelo meu nome. Daí ele falou “Não, essa é a Francisca”. Aí a minha mãe “ãh?”, não entendeu nada. “É, é a Francisca”. Aí no meio de toda essa história, saí de casa mas não pelo meus pais, saí de casa porque eu estava muito apaixonada e eu achava que era o momento, e a família dele também falou que ia mandar ele pra outro estado…. Então eu falei para morarmos juntos, tinha 18 anos de idade. Daí moramos juntos por um ano e meio. Daí, quando não deu mais certo, cada um seguiu o seu caminho.

Você voltou para casa dos seus pais?

Voltei. Na verdade a gente se separou, eu voltei pra casa dos meus pais e ele voltou comigo. Meu pai nunca tinha visto ele. O tempo que a gente morou fora, meu pai não quis ver. Aí eu pedi para o meu pai. Como a gente tem um espaço lá em casa, uma outra casa embaixo da casa dos meus pais, eu conversei com ele. Esse foi o primeiro dia que eu chorei de felicidade, eu nunca tinha chorado, não sabia como era a sensação de chorar por felicidade. Eu e minha mãe a gente foi conversar com meu pai e falei pra ele que estava namorando que minhas coisas estavam lá, todos os móveis, que por favor deixasse ele vir morar comigo. Quando meu pai falou que sim, nossa, a emoção tomou conta. Minha mãe chorou junto. Foi bem legal, assim. Meu pai nunca tinha conhecido e hoje ele sabe aceitar a minha condição E aí, depois disso, eu entrei no segundo call center, que foi o que te contei, onde teve a questão do vestido.

Me conta como foi neste call center.

159

Desde quando eu entrei foi o processo que eu te falei. Eu fiz o processo como Francisca, eu entrei. Mas tinha um gestor lá, que ele era gay e tudo, ele me adorou... Depois de um tempo, uns dois meses, meu gestor atual me chamava e dizia que eu não podia usar vestido, saia. Eu perguntava por que, e respondia que chamava atenção. Rebatia que havia outras meninas ali que usavam e perguntava por que eu não podia. Ele dizia que era pra eu ir de calça. Eu quase briguei lá porque eu sempre gostei de vestido, só uso calça no frio, e eu ficava muito triste falando que era injusto, que a pessoa que tá do meu lado vinha com vestido, com saia e eu não podia usar. E eu já era muito feminina naquela época. Bem mesmo. Passou o tempo, e quando eu já tava para sair, esse gestor que era amigo meu me contou toda a história, que naquela época tinha essas cobranças era porque foi conversado, teve uma votação, e eles queriam me demitir assim que desse o prazo de três meses porque ficaram com medo de eu constranger outras mulheres no banheiro, era tudo muito novo naquela época, eu acho que eu era a única trans de lá….

Que ano foi isso?

2015/2014 ou 2016, não lembro, mas foi nessa época. A empresa nem existe mais, faliu. Eu fiquei bem chateada porque tinha pessoas que na roda assim conversavam comigo e estavam apoiando pra eu sair. Pessoas que eu nem imaginei que eu iam defender, me defenderam. O que me salvou foi que o cliente nosso pediu para ouvir uma ligação minha e, justo essa ligação, eu lembro até hoje, foi uma mulher que ela ligou umas 30 vezes. Ela ligava e ninguém tinha atendido ela, as pessoas estavam desligando porque era uma coisa bem crítica, ela teve um problema muito grave com o produto, e eu dei toda a atenção que ela precisava. Disse ficar calma, que iria ajudá- la, passaria para a responsável. Deixei ela falar meia hora tudo que ela queria. Eu adoro. Acho que esse é a parte que eu gosto. Eu gosto de escutar as pessoas. Então, quando o cliente entra em contato, quando ele quer desabafar, eu entro em estado de êxtase, fico toda trémula, sabe, ficou dormente, eu deixo falar... aquilo é muito bom para mim. E aí eu tratei ela muito bem. Ele falou que não tinha por que me mandar embora, que o meu atendimento era muito bom. Ele não deixou que me demitissem. Aí eu passei para outra área, me tornei back office, acho que fui a melhor que tiveram, eu sabia tudo, treinada o pessoal novo, levava processos, na troca de gestores, eu fazia o serviço de gestor, cobria férias, respondia os e-mail do gestor... Só que eu não tive oportunidade de crescer. Por isso que eu saí. Porque eu sinto que seria muito para eles uma travesti, uma trans tendo um cargo de gestão lá. Aí eu fiquei bem chateada. Abriu processo seletivo, fui para participar do processo...

Você acha que não recebeu uma promoção porque seria demais de uma mulher trans ou uma travesti como gestora?

Acredito que sim. Ainda mais naquela época. Porque não fazia sentido, eu sabia muita coisa de lá. Talvez eu não fosse madura de idade, mas eu tinha bastante conhecimento. Quando eu saí, essa célula se desestruturou, a galera começou a pedir demissão, o pessoal desanimou.

Isso te contaram depois?

Me contaram, porque depois de uma semana a gestora desta área saiu, o pessoal todo começou pedir pra ser mandado embora.

E você chegou a ter essa conversa lá com eles, de que você gostaria de crescer, que gostaria 160

de uma oportunidade?

Não, não, eu quis ficar em casa, descansar. Não adianta mais brigar, sabe. Não adianta brigar pra ficar forçando as pessoas a mudar. Daí teve processo seletivo todo, e foi bem quando eu comecei na faculdade, isso me desanimou muito, muito. Eu concorri com um rapaz, ele não tinha nenhuma qualificação, nenhuma informação, ele tinha acabado de entrar, ele não tinha postura e ele passou. Todo mundo vinha me parabenizar, dizendo “Francisca, a vaga é sua!”, mas ele passou e foi logo mandado embora.

Porque não tinha qualificação…

Sim, e logo abriram outra seleção. Daí pensei que a vaga, agora, seria minha. Mas pediram por alguém que, no mínimo, estivesse estudando administração. Pensei que fosse eu, porque infelizmente muita gente lá não tinha graduação. Essa vaga era minha. Mas não. O trabalho era das 11 horas às 19 horas, ou seja, quem faz curso presencial fica como? Daí disse que chega, queria entrar no corte eu não queria ficar mais, tinha faculdade e não ia ficar com VR a R$ 7 por dia, tava ganhando pouco, que ia sair procurar outra coisa.

Lá você era com carteira assinada?

Era CLT, mas o salário muito baixo. Naquela época era R$ 980, um salário mínimo. Ainda tem os descontos...VR R$ 7,00. De lá ia direto pra faculdade. Entrava às 7h20min, tinha de sair de casa às 4h30-5h, e de lá tinha que esperar para ir pra faculdade, pois não tinha dinheiro pra passagem. Na faculdade era escolher comer ou não comer. Isso é tortura, gente. Foi aí que fiquei 9 meses em casa e entrei nesta empresa que estou agora.

Como estagiária?

Sim. Foi onde que mudou minha vida.

Por quê?

Porque aqui tem muito conhecimento. Conheci muita gente. Conhecimento profissional, pessoal, realizações… O salário é muito bom aqui. Eu ganho praticamente o triplo do que eu ganhava, então eu pude ajudar mais em casa. Quando trabalhava no call center pensava que queria simplesmente poder ir ao MacDonald’s sem precisar me programar tanto, ser uma data especial. Hoje eu tô com vontade, eu compro. É um dinheiro que não tá fazendo falta para pagar uma conta. O dinheiro que eu tô podendo conseguir reformar minha casa, eu consigo pagar minhas coisas, ajudo meus pais, melhorei a internet de casa, pago a conta de água, de luz, ajudo com a mistura. São coisas que antigamente era muito difícil eu conseguir fazer. Antes queria sair com amigos e não podia. Queria um sapato novo, demorava tempo pra conseguir comprar…

Revolucionou sua vida na qualidade de vida...

Sim, na qualidade de vida e cultural também. Quando eu entrei aqui, conhecia pouco sobre 161

política. Se você entrasse no Facebook, era só besteira, só meme. E conversando com as pessoas daqui, interagindo, as pessoas aqui são cultas demais, e isso foi mudando meu perfil, se você for olhar o meu perfil das minhas redes sociais hoje, é só informação, assunto sério sobre política, economia do Brasil. Então eu mudei, eu amadureci, me tornei uma pessoa adulta. Hoje quando eu entrei, eu chorei no elevador subindo. Passou um filme na minha cabeça. Olha onde que eu tava, de onde eu vim, quanta gente eu conheci, quantos lugares eu conheci... A minha formação profissional tá show de bola graças a esta empresa. Serei sempre grata a eles. Muita coisa mudou.

E quando você diz que sua vida profissional está show de bola, o que você acha que mudou da sua formação mesmo?

Uma coisa que queria muito e sair da especificação de call center. Acho que é um bom lugar para você aprender, se desenvolver. Mas quando você tem a experiência só ali, muita empresa te rejeita. Porque é específico, é atendimento. Então, como é que a pessoa vai te colocar como auxiliar administrativo se minha única experiência é atender telefone? Isso mudou aqui. Porque tive experiência em sustentabilidade, costumer care. Atendo o telefone, mas é bem mais administrativo, mexo no Excel, faço Powerpoint, participo de reuniões, de workshops, hoje sei organizar eventos, faço relatório de despesas. Então, é algo mais amplo. Entendo que eu tenho mais capacidade de conseguir outras vagas, um mercado mais amplo pra mim. Isso melhorou bastante.

E como foi esse processo de saída daqui, porque agora você tá na última semana. Me conta como você está.

Tenho muitas amizades aqui. Só eu acho que eu vou sentir muita falta do ambiente de trabalho, vai ser difícil, mas a gente tem que pensar no lado profissional nessa parte e ver que vai ser melhor. Acredito que vou ter uma boa chance na outra empresa, que eu vou aprender mais também, desenvolver, porque como sou nova ainda, o foco é desenvolver. Enquanto tem oportunidade ainda de trocar de emprego, eu posso tentar, arriscar. Quando você já é mais velho, já tem uma carreira é mais difícil você arriscar. Então hoje eu posso arriscar. Vou lembrar sempre com carinho e dizer um até breve a todos, né. Não quer dizer que um dia eu não possa voltar pra cá.

Como foi essa escolha de sair, de participar de processos?

Questão de vagas. Não tem muitas vagas junior’s. Aparece uma ou outra, mas depende muito do ano de faculdade, tem vagas aqui dentro, mas é pra quem se formar este ano, eu me formo daqui um ano e meio, no final de 2020. Depende do curso. Abre muita vaga pra pleno, sênior. Antes de eu ficar esperando, eu já estou de olho nas vagas que vão abrir, mas antes de ficar só esperando, eu vou começar a procurar fora. Tanto que meu contrato ainda não acabou.

Você comentou comigo que é outubro, né?

Outubro. Faltam 2 meses, mas eu preciso pensar em mim primeiro.

Quando você começou a pesquisar outras vagas? 162

Mês passado. Entrei de férias já comecei a procurar.

Foi rápido, então?

Foi minha primeira entrevista.

E como foi essa entrevista?

Primeiro eu fiz uma entrevista por telefone com a agência, foi pelo WhatsApp, chamada de vídeo. Ela me encaminhou para fazer a dinâmica. Lá eles chamam de short (?), curto mesmo, no mesmo dia. E teve a dinâmica, os candidatos a maioria fazendo Engenharia, Química, Farmácia… e eu pensava o que estava fazendo ali.

Eram quantos candidatos?

Sete.

Bastante.

Mas tinha bastante vaga também. Só que específicas, para trabalhar em laboratório, trabalhar com formulação de produtos. E eu me perguntava o que estava fazendo ali.

Você sabia para qual vaga você tava concorrendo?

Eu pensava que era costumer care. Eu me confundi, porque vi no LinkedIn uma vaga assim. Mas na postagem que a pessoa divulgou estava só como estágio, e eu tentei. Só que lá tinha vaga de compra técnica e desenvolvimento de fragrâncias. Mas disseram que era uma vaga mais adminstrativa. Fiz a dinâmica, me apresentei, então essas duas gestoras de Compras e Desenvolvimento de Fragrâncias me chamaram e passei para a área de desenvolvimento de fragrâncias, que é envio de amostras, tem contato com clientes, faz uma pesquisa de satisfação pra ver se deu tudo certo, organiza eventos, oferece produtos…

O que é exatamente o que você gosta...

Sim. Tratar com questão de documentos, mexer com segurança. E eu não sei mais porque tenho que entrar primeiro, né. Logo a gente vai saber.

Dia 5 você começa, né?

É.

Agora que você tem a documentação como Francisca… 163

Nem todos os documentos. Até mandei um e-mail para ela hoje. Falta meu PIS, meu título de eleitor eu não mudei por causa da eleição passada. Alguns lugares me param por divergência no CPF, mesmo que eu tenha mudado o nome. Por exemplo, fui me cadastrar numa vaga e divergência do meu RG com o nome, tive que colocar o nome antigo... eu ainda tenho algumas coisas pra mudar.

E nesse novo processo seletivo em que você foi aprovada, você precisou comentar que você é uma mulher trans ou não?

Ninguém perguntou nada, mas no final da apresentação eles me perguntaram se eu tinha participado de algum voluntariado, e aí eu comentei que participo do GT das meninas trans, que na parada LGBT eu tava na barraca delas fazendo abaixo assinado, que quando evento eu vou ajudar, então falei que faço muita coisa voltado ao meio LGBT. Ponto e ninguém perguntou nada. Foi natural.

Isso já no processo seletivo?

No final.

Com todo mundo junto?

No grupo.

E para você é tranquilo?

Hoje é, depois que eu entrei na Empresa 1 é. Antes de entrar aqui eu tinha muito medo das pessoas saberem, até que eu fui tão bem aceita, pois eu achava que as pessoas não sabiam e pensava como é que eu vou contar. Ficava pensando “gente o que é que eu vou falar para o pessoal?” Até que depois de umas 3 semanas meu chefe me chamou e eu falei: “então, como é que eu falo?”. E disse “todo mundo já sabe”, que ele tinha contado. E eu não acreditei porque todo mundo tava me tratando normal, como se nada tivesse acontecido. Isso pra mim foi incrível. Aí teve um evento do nosso grupo LGBT daqui e, no evento, eu fui convidada pra falar. Tinha cerca de 200 pessoas. E subi, tomei coragem e disse que era uma mulher transsexual, expliquei, contei minha vida, e desde isso comecei a militar, ter empoderamento e não ter vergonha de quem eu sou. Quanto mais eu me escondo, mais as pessoas pisam na gente. A gente tem que saber que a gente ta aqui, que tem trans trabalhando, que tem trans que vai entrar na empresa, que a gente tem capacidade para isso, que a gente tem oportunidade, quando eu entrei aqui eu disse pra eles que meu objetivo de vida é mostrar para as meninas que a gente pode, eu quero ser diferente, fazer diferente pra mostrar pra elas que a gente tem outra oportunidade. Eu tinha preconceito comigo porque eu não queria estar na rua, não queria apanhar, não queria que as pessoas passem e olhem “é uma puta”. Não tenho nada contra, mas eu quero ser diferente, quero fazer a diferença e acho que estou conseguindo. Quero dar muito orgulho pra minha família e calar a boca de muita gente preconceituosa.

Algo que você já tenha escutado e por isso está falando? 164

A gente vê muita gente comentando, pessoas que xingam na internet, na época de eleição também. Até eu fiz uma matéria para Veja que teve gente que comentou que agora precisa dar o rabo pra conseguir emprego, que estamos tirando emprego de pais de família pra dar pra esse tipo tipo de gente. Até no LinkedIn a gente postou uma foto nossa na parada e falaram que a base não tem que apoiar a diversidade, que isso é doença mental. Olha como o mundo é preconceituoso. Então, a gente tem que mostrar nossa capacidade. Eles tratam a gente como se fôssemos um nada, como incapazes, e nós não somos. Tem gente muito boa, tem pessoas maravilhosas, inteligentes, esforçadas, que estudam, que trabalham, que só merecem uma oportunidade. Se eu não tivesse tido uma oportunidade na Empresa 1, não sei como estaria hoje, não sei qual o caminho que teria tomado na vida. Então é calar a boca de muita gente, quebrar muitos tabus.

Falando em quebrar tabus, gostaria de saber mais da tua trajetória estudantil, acadêmica, porque isso também é algo novo, às vezes, né?

Então, na escola foi difícil, eu apanhei muito. Desde o primário minha mãe tinha que ir na escola, as pessoas me chamavam de mariquinha. Teve algo que aconteceu, acho que eu estava na terceira série, isso eu não esqueço até hoje, às vezes até choro. Eu lembro que uma menina começou a gritar, tinha uma novela A Senhora do Destino, e tinha um personagem que chamava Ubiraci, um personagem gay que era carnavalesco. E aí uma menina começou a gritar e quando eu fui ouvir todas as crianças do pátio estavam gritando U-biraci, U-biraci pra mim, eu lembro que me doeu tranquei no banheiro, fiquei lá porque era muita gente gritando, porque naquela época a palavra Ubiraci era para zoar uma pessoa de gay, porque era um homossexual. Foi difícil. Apanhei muito. No colegial foi bem punk, eu era muito isolada, eu era aquela criança a última a ser escolhida. Eu nem jogava bola, quando era pra juntar time, ninguém queria saber de mim, eu era gordo, me chamavam de bicha, de tetinha, viadinho. Já mais velho, no banheiro, tinha que esperar todo mundo sair. Acabava o intervalo, todo mundo voltava para sala e eu ouvia muitas reclamações dos professores porque eu ia no banheiro só quando as pessoas saíram, porque se eu entrasse no banheiro masculino, os meninos jogavam água por cima da porta pra me molhar, ficavam zoando, querendo passar a mão na minha bunda... Então foi uma fase bem chatinha. Eu não tive muitos amigos, meu álbum de formatura tá vazio, tem a minha família, só. Hoje as pessoas dizem: “Nossa, como você mudou, como você tá linda”, e que me lamber. Mas na época ninguém ligava pra mim, pra como eu estava. E depois na faculdade, no primeiro trimestre, já me chamaram na diretoria pois uma moça falou que uma funcionária de lá não se sentiu à vontade comigo no banheiro…

Ali você já usava o banheiro feminino…

Já estava começando a usar o banheiro feminino, já tava trabalhando naquela empresa, com cabelo grande, feminina, mas eu tava em transição e ela pediu que eu não usasse nem o banheiro feminino, nem masculino, tinha que usar o banheiro de deficientes. Aquilo me destruiu. Aí eu fui conversei com professor de Direito, disse que poderia recorrer na justiça, só que teria que envolver os meus pais. Eu entrei com 17 anos, tinha acabado de fazer 18, e me preocupei caso isso se espalhasse, como seria com meus pais. Eu não queria causar esse constrangimento parar a minha família.

Teus pais nem sabiam do teu processo de transição? 165

Não sabiam do meu nome, mas por me verem fisicamente, estava nítido que tinha uma mulher ali. Mas eu optei por não processar. Até tinha uma amiga minha se revoltou e quis entrar nos banheiros dos homens e ela entrou comigo no banheiro dos homens pra questionar que palhaçada era aquela. Essa menina foi incrível. Só que eu acabei me sentindo muito mal, e o pessoal começou a questionar porque eu passei a usar o banheiro de deficientes, tinha que usar a desculpa de que era mais limpinho. Depois eu troquei de universidade.

Trocou por esse motivo?

Eu parei, parei total. Eu fiquei 4 anos sem estudar. Fiquei bem mal, falei “chega, cansei”, agora vou me dedicar ao trabalho. Aí eu voltei, só que em outra universidade, lá desde o princípio falei que quero nome social. “Ah, mas como? Você fazer carta etc”. Não importa, eu disse, faço o que vocês quiserem. Eles me pediram para prometer que eu ia mudar meus documentos para não dar problema com o diploma. Eu não contei pra ninguém. Preferi não contar sobre eu ser trans e não vou contar. Mas acabou acontecendo a entrevista para a revista Veja, aí todo mundo ficou sabendo. Tanto que eu tinha um grupo de 4 amigas, e hoje estou só. Elas não chegaram e falaram explicitamente o motivo, mas simplesmente se afastaram de mim. Hoje converso com uma ou outra, alunos novos que não sabem, mas eu fico na minha.

E você percebe que essa mudança foi depois que elas ficaram sabendo?

Sim, porque foi no final do ano passado essa notícia, e neste ano, já no primeiro semestre, as pessoas se afastaram de mim.

E você não conversou com elas?

Tem coisas que prefiro não dar tanta importância na vida. Tanta coisa que a gente passa na vida que não vale a pena. Já ouvi comentários preconceituosos demais.

Na faculdade?

Sim, quando saiu aquela cura gay, teve um aluno, o pessoal não sabia de mim ainda, ele disse que era contra cura gay, porque ser gay não tem cura, mas que identidade gênero é doença mental. Na hora que ia falar acabou a aula. Fiquei sem acreditar. É uma moçada muito jovem, então eles não têm muita mentalidade. Mas fora isso, eu não saio falando pra todo mundo. Perdi muitas amizades, até do pessoal de onde eu moro, hoje tem muitos que nem me olham mais na minha cara, eu sei que as pessoas falam mal. Mas eu não me importo. Tento ser o mesmo e não fazer mal para ninguém, só isso. Me respeita que te respeito, só isso, respeitar.

Tem mais alguma coisa que você acha importante dizer e que não disse e gostaria de deixar registrado em relação à carreira? Da carreira, não.

Mas alguma outra coisa, qualquer coisa, que você queira me dizer? 166

Não é fácil. Não tem como alguém dizer que é opção você escolher ser trans. Ninguém quer ficar apanhando todos os dias, correndo risco de morte. Você passa um conflito tão grande dentro de você pra tomar coragem para se transformar, renascer de novo. É muito complicado. Quantas vezes eu já chorei me questionando por que eu fui escolher ter passado por tanto constrangimento. As pessoas já te olham e já te julgam, é difícil pra você ter um relacionamento, difícil pra ter amizade. Sempre tem piadinha, não é fácil. Então, tem que ser muito forte. Só que é mais forte que a gente. Quando eu fui ver já tava tomando hormônio, já tinha trocando as roupas, foi uma coisa de extinto. Eu não aguentava. Quando as pessoas me chamavam pelo meu nome masculino só faltava gritar, eu fugia, fingia que não escutava. Banheiro, então, eu saía de perto da minha mãe pra ir no banheiro feminino, porque eu não conseguia entrar no banheiro masculino. Não conseguia ficar sem sutiã. Eu ficar com o peito de fora, usava sempre uma regatinha.

Desde muito cedo?

Desde muito cedo. Minha mãe sempre soube. Depois de grande fui conversar com ela e ela falou que sempre soube. Ela disse que quando eu tinha três anos de idade minha tia veio avisar ela que eu era gay. E ela disse que ele não é gay, ele vai ser igual a Roberta Close quando crescer, ela tinha certeza.

Isso quando você tinha 3 anos?

3 anos. Ela tinha certeza. Eu queria brincar de boneca, andar de salto, usar maquiagem. Sempre fui delicada, menininha. Eu não tinha nada de menino. E minha mãe sabia. Mãe é mãe, você conhece.

E esse processo com tua mãe foi mais tranquilo que com seu pai?

Na verdade com os dois. Eu achei que ia ser super difícil. A gente nunca sentou e conversou, não. “Eu sou mulher e a partir de agora sou Francisca, ela é mulher”, os dois se resolveram lá. Minha mãe contou que ela tinha muito medo da família, do que eles iam achar, mas acabou que as pessoas viram, me conhecem, sabem que eu sou uma pessoa boa, que eu não tenho má índole. Minha avó de 70 anos me chama de Francisca como se o meu passado tivesse sido apagado.

Você sente assim?

Eu lembro, sei as dores que sofri. Quando falam da Francisca quando era pequena sempre pra mim é como se fosse outra pessoa. Minha mãe ela fala que teve três filhos: meu irmão, meu antigo eu, que foi viajar, e eu. Então, são três filhos.

Você gosta de ouvir isso? Você acha uma boa definição? Eu acho que é uma forma dela aceitar. O importante é que eles me amam e me respeitam. E realmente é verdade., são três filhos. Meu pai sempre sonhou ter uma filha mulher. Ele tem mesmo, morre de ciúmes. Ele falou que não queria saber quando eu tivesse namorado eu teria que ir lá falar com ele.

167

Você acha que o apoio da família foi importante pra você? Fez diferença?

Família é tudo. Se você não tem o apoio da família, não vai ter onde morar, não vai ter uma estrutura. Pra onde você vai? É o que acontece, vai pra rua, pra marginalidade. Se eu não tivesse minha família, imagina eu, se minha mãe me jogasse na rua, eu não sei quem me pegaria pra criar? Ou como eu ia me virar? Família foi feita pra isso, pra pai e mãe cuidarem dos filhos, dar amor, dar carinho. Se você não tiver o apoio da família às vezes é muito difícil. Acho que é essencial.

Inclusive na manutenção ou depois pra conseguir um emprego mais tarde, né?

Acho que sim porque na adolescência você tem a família, ou pai, ou avô, ou um amigo que se torna família pra te ajudar, porque como uma criança vai trabalhar, uma criança de 8 a 10 anos? Não tem como. Acho que mais uma questão de estrutura.

De base, né?

Sim.

ok. O que mais você acha que é importante dizer?

Ai, gente, já falei bastante! (risos). Não sei...

Pra você é suficiente, quer me dizer mais alguma coisa? É suficiente...

Então está bom, encerramos aqui!

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ANEXO

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO

Cara Participante:

Meu nome é Natália Rissinger Bonotto, aluna do mestrado em Psicologia Social, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social. Gostaria de convidá-la a participar voluntariamente da pesquisa intitulada: “A construção da empregabilidade para uma mulher transexual.”, onde o objetivo do estudo é compreender a experiência da empregabilidade para uma mulher transexual. Caso aceite e concorde em voluntariar-se para esta pesquisa, sua participação se dará participando de uma entrevista, respondendo algumas perguntas sobre o tema. Em caso positivo, essa entrevista será gravada e você terá acesso à gravação em qualquer momento. Seu nome não será utilizado em qualquer fase da pesquisa, o que garante seu anonimato, e a divulgação dos resultados será feita de forma a não identificar os voluntários.

Não será cobrado nada, não haverá gastos, e não estão previstos ressarcimentos ou indenizações.

Considerando que toda pesquisa oferece algum tipo de risco, nesta pesquisa o risco pode ser avaliado como: mínimo.

Como benefícios em relação a sua participação na pesquisa, espera-se contribuir para mobilização social referente à inserção trabalhista da população transgênero.

Gostaríamos de deixar claro que sua participação é voluntária e que poderá recusar-se a participar ou retirar seu consentimento, ou ainda descontinuar sua participação se assim o preferir, sem penalização alguma ou sem prejuízo ao seu cuidado.

Desde já agradecemos sua atenção e participação e colocamo-nos à disposição para maiores informações.

Você ficará com uma cópia desse Termo e em caso de dúvidas e outros esclarecimentos sobre essa pesquisa você poderá entrar em contato com a pesquisadora principal: Natália Rissinger Bonotto. Endereço: Rua Ferreira de Araújo, 1000. Apto 22. Pinheiros, São Paulo. Telefone: (11) 945 13 7225. Caso tenha dúvidas em relação a questões éticas dessa pesquisa, poderá entrar em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da PUC/SP. Endereço: Rua Ministro Godói, 969 - sala 63C. Perdizes - São Paulo – SP. Telefone: (11) 3670-8466.

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Eu ______(nome da participante e número do documento de identidade) confirmo que Natália Rissinger Bonotto explicou-me os objetivos dessa pesquisa, bem como, a forma de participação. As alternativas para minha participação também foram discutidas. Eu li e compreendi esse Termo de Consentimento, portanto, eu concordo em dar meu consentimento para participar como voluntario dessa pesquisa.

São Paulo, _____, ______, 2019.

______

(Assinatura do sujeito da pesquisa ou representante legal)

______

(Assinatura da testemunha para caso de sujeitos analfabetos, semianalfabetos ou portadores de deficiência auditiva, visual ou motora).

Eu,______

(nome do membro da equipe que apresentar o TCLE)

Obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido do sujeito da pesquisa ou representante legal para a participação na pesquisa.

______

(assinatura do membro da equipe que apresentar o TCLE)

______

(identificação e assinatura do pesquisador responsável)