Rituais De Sofrimento
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São Paulo, agosto de 2011 Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Sociologia Programa de Pós Graduação em Sociologia rituais de sofrimento Silvia Viana Rodrigues Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de doutora em Sociologia. Orientador: Professor Doutor José Carlos Bruni Capa Ilustração: Eduardo Verderame Projeto Gráfico: Rodrigo Barbosa de Souza Salve Rodrigo Barbosa de Souza José Carlos Bruni, Paulo Eduardo Arantes, Gabriel Cohn, Anderson Gonçalves Dias, Luciano Pereira, Maria Ângela Ferraro de Souza, Franklin Leopoldo e Silva, Isleide Fontenelle. Família Viana Rodrigues: Vera, Ailton, Cintia, Natalia, Zé Antônio, Ana. Georgia Sarris, Ludmila Costheck Abílio, Eduardo Verderame, Natália Fujita, Gilberto Tedéia, Clara Rocha, Henrique Pereira Monteiro, Lucas Janonni, Mariane Montana, Caio Fazolin, Daniel Andrade, Mariana Cavalcante, Mariana Magalhães, José César Magalhães, Tatiana Maranhão. Peetssa, Marcela Biagigo, Juliana Kuperman, Domenico Coiro, Mariana Chama, Julia Mello Neiva, Arthur Mansor, Carla Sachs e Bob, Loriane Leisli Azeredo, Flavia Sammarone, Gabriela Sachs, Diogo Lima, Vanessa Satomi, Raquel Coimbra, Filipe Brait, Mariah Leick, Marcia Prado, Maria Carolina Queirós de Oliveira, Gavin Adams, Marina Ronco, Clarice Stal, Joana Buarque de Gusmão, Rosana Nubia Sorbille, Rodrigo Vitullo, Luciana Costa, Família Babinns: Bárbara Araújo e Marcus Binns; Família Oliveira Assis: Penha, Rita, Rosana, Rosicléa e Yasmin; Família Barbosa de Souza: Lúcia, Francisco, Marcela e Alexandre; Família Costheck Abílio: Rose, Romeu e Vanessa. Família quartas-feiras, Filosofia em Pânico, MST, ZoomB, Esqueleto Coletivo, Barulho, Escola Nacional Florestan Fernandes, galera do Largo da Batata, violão. Tamo junto. Resumo No dia 25/07/2010 o programa Pânico na TV levou ao ar uma brincadeira realizada ao vivo com seus próprios humoristas. Logo que chegaram ao aeroporto de Guarulhos vindos da África do Sul, onde cobriram a Copa da FIFA, foram recebidos pela produção que lhes ofereceu uma carona merecida, já que a equipe estava exausta da viagem e, segundo o próprio programa, havia trabalhado sem descanso e em péssimas condições. Ao invés de irem para casa, conforme o prometido, passaram horas rodando por São Paulo sem destino, até que foram deixados no aeroporto de Congonhas. Lá chegando, um colega humorista os recebeu afirmando que se tratava de uma brincadeira, mas o cansaço do passeio seria apenas a primeira, pois eles deveriam se encaminhar ao estúdio para enfrentarem uma lutadora profissional de vale-tudo. Já muito irritado, um técnico da equipe disse: “Eu sou câmera, eu não tenho que tá participando desse negócio aí (...) tô cansado, porra, são quarenta dias, doze horas, comendo mal...”. Todos os outros protestaram e, transtornados, se recusaram a participar: “É uma falta de respeito isso com o cara que tá trabalhando, quero ir embora, quero ir para minha casa”. O produtor do programa interveio e, com um celular em riste, ameaçou: “tem uma ordem que é do Emílio e do Alan [diretores] pra todo mundo entrar no carro agora e ir todo mundo pra lá”. Não obstante o ódio generalizado, eles retornaram ao carro. O humorista encarregado da piada tentou inúmeras vezes fazer os outros rirem até que, já constrangido, falou em tom de brincadeira: “não fica bravo comigo, tô aqui trabalhando, cumprindo ordens”, o outro respondeu: “Brincar... a gente até compartilha com vocês, só que a gente tá sem comer, sem dormir, entendeu? É desumano isso, prá caramba”. O câmera, irado, completou: “Eu tenho uma puta consideração com você, mas como você consegue ver graça nisso, ver seus amigos de trabalho se fodendo (...) uma situação que não tem graça (...) O cara lá em casa vai olhar para mim e achar engraçado ‘há há, o câmera man tá fodido’”. Quando chegaram ao estúdio, aquele que ainda tentava piadas, mas cujo olhar traduzia tristeza, disse com seriedade: “Vem, por favor, eu também tô cansado, desculpa aí.” Capítulo 1: Como essa coisa pôde ser televisionada sem a menor vergonha? Capítulo 2: O que sustenta a ameaça dos diretores? Capítulo 3: Por que a equipe voltou ao carro? Capítulo 4: Como o humorista suportou “ver seus amigos de trabalho se fodendo”? Capítulo 5: Por que a piada continuou? Palavras-chave Ideologia, cinismo, espetáculo da realidade, trabalho, sofrimento, indiferença. Abstract On July 25, 2010, the TV show Pânico na TV (Panic on TV) aired a live joke involving its own comediants. As soon as they arrived at Guarulhos airport coming from South Africa, where they had covered the FIFA World Cup, they were welcomed by the production, which offered them a ride they deserved, since the team was exhausted, and, according to the show itself, had worked non-stop in terrible conditions. But instead of going home as promised, they spent hours driving around the city of São Paulo, until they were left at Congonhas airport. There, another comediant told them it was a joke, and the weariness of the ride would be only the beginning, once they should now go to the studio to fight a professional MMA fighter. Already very angry, a technician said: "I'm a cameraman, I don't have to take part into this (...) I'm fucking tired, it was forty days, twelve hours, bad food..." Everybody else protested, and, upset, refused to participate: "This is a lack of respect with a working guy, I want to go away, I want to go home". The show producer came, and, with his mobile in his hand, threatened: "I've got an order from Emílio and Alan (the directors) for everybody to step into that car now and go there". So despite the general hatred, they went back to the car. The comediant in charge of the joke tried several times to make the others laugh, until, already embarrassed, said playfuly: "don't get mad at me, I'm working here, under orders", to which another answered: "Joking... we even share that with you, but we haven't eaten or slept, got it? This is fucking not human". The cameraman, furious, added: "I respect you a lot, but how can you see anything funny here, watching your co-workers getting screwed (...) not a funny situation really (...) the guy back at home will look at me and think this is funny, 'haha, the cameraman is fucked'". When they got to the studio, the one who was still trying to make jokes, but whose look expressed sadness, said seriously: "Come on, please, I'm also tired, I'm sorry". Chapter 1: How could this thing be shamelessly aired? Chapter 2: What sustains the directors' threat? Chapter 3: Why did the crew go back to the car? Chapter 4: How did the comediant stood "watching his co-workers getting screwed?" Chapter 5: Why did the joke go on? Keywords Ideology, cynicism, reality show, work, suffering, indifference. Sumário 1. Show de horror 7 Jogo Cruel 8 Mais corda 15 Realidade surreal 24 2. Das regras 36 Lei 36 Exceções 63 3. Dos jogadores 78 Meritocracia sem mérito 78 Corpos abstratos 89 Almas Concretas 103 4. Das provas 112 Dos infernos 112 Hipertensão 126 Solitários 133 5. Pede pra sair 137 Bibliografia 147 1. Show de horror Na Galeria Franz kafka Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor - talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações. Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta pela poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro - uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber. 7 Jogo cruel Em Na Galeria1, de Franz Kafka, a conciliação está posta: a dama entra, colorida, sob o olhar cioso do diretor e a atenção dos ajudantes. Suas proezas são precisas, sua destreza digna da emoção que emana por todo o circo. Sua felicidade explode sob os aplausos da platéia. E assim é. Mas o narrador, como em um experimento mental, apresenta uma outra cena que, de fato, é a mesma, porém infernal.