Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Marcelle Marie Freitas Huet Rodrigues

Memórias do salazarismo na sociedade contemporânea

Rio de Janeiro 2012

Marcelle Marie Freitas Huet Rodrigues

Memórias do salazarismo na sociedade contemporânea

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de Concentração: História Política.

Orientadora: Profª. Dra. Maria Emília Prado.

Rio de Janeiro 2012

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

S159m Rodrigues, Marcelle Marie Freitas Huet Memórias do salazarismo na sociedade contemporânea/ Marcelle Marie Freitas Huet Rodrigues. – 2012. 121 f.

Orientadora: Maria Emília Prado. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. . Bibliografia.

1. Salazar, Antonio de Oliveira, 1889-1970. 2. - Política e governo - Teses. I. Prado, Maria Emília. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 32(469)

Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Marcelle Marie Freitas Huet Rodrigues

Memórias do Salazarismo na sociedade contemporânea

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: História Política.

Aprovada em: 2 de abril de 2012.

Banca Examinadora:

______Profª. Dra. Maria Emília Prado (Orientadora) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ ______Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ ______Profª. Dra. Denise Rollemberg Instituto de Ciências Humanas e Filosofia - UFF ______Prof. Dr. António Pedro Pita Universidade de Coimbra

Rio de Janeiro 2012

DEDICATÓRIA

Para o meu tio, In Memorian: Kenedi Jaime Souza Freitas.

AGRADECIMENTOS

É impossível não agradecer aos familiares próximos pela torcida constante: às primas Mônica e Anna, às tias Rosangela e Lili, ao meu irmão Guilherme, bem como aos compadres Philipe e Cristina e à afilhada Isadora, pela ausência sofrida do seu aniversário de um ano, bem como a todos os que acompanharam, com muito carinho, esta trajetória. À minha mãe, um agradecimento especial pela dedicação em me ajudar no momento mais difícil deste trabalho. Sem ela, tudo teria ficado mais complicado. Ao professor Machado da Costa, por me encorajar a fazer o mestrado, enviar livros de Portugal, me apresentar aos entrevistados. Ao amado marido, apoio constante todos esses anos, acolhendo minhas dúvidas e encorajando minhas ideias. À minha orientadora, por acolher o tema, orientar minhas leituras e não permitir desvios na dissertação. Além disso, o seu incentivo, para minha participação no Colóquio com portugueses, certamente enriqueceu o trabalho. Ao professor Francisco Carlos Palomanes Martinho pelo apoio ao tema, assim como à professora Denise Rollemberg que, a partir de uma aula na pós-graduação, apresentou o referencial teórico utilizado na dissertação, incentivando o trabalho e me ajudando a crescer no ofício de historiador. Pela paciência na hora do desespero, agradeço às amigas de trajetória acadêmica: Alessandra, Gabriela e Elisa. Para as minhas amigas de longa data, Carla e para a vibrante Regina, sempre na torcida, meus sinceros agradecimentos. Pelo carinho e pela dedicação em solucionar todos os nossos problemas burocráticos, à Daniele e ao Marco António. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão da bolsa de mestrado. Todos os livros foram comprados com essa preciosa .

RESUMO

RODRIGUES, Marcelle Marie Freitas Huet. Memórias do salazarismo na sociedade contemporânea. 2012. 122 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

O desenvolvimento de pesquisas recentes sobre ditaduras permitiu uma reflexão diferenciada, menos polarizada, sobre o comportamento da sociedade perante o estabelecimento de um regime de exceção. No presente trabalho, as memórias de alguns portugueses foram o objeto de análise para compreender as ambivalências, os silêncios e as oposições dos mesmos ao longo de suas vidas na vigência do salazarismo. O confronto de suas memórias com a história nos permitiu avaliar a ideia que cada um tinha sobre a instauração e permanência de uma ditadura, bem como a complexidade da relação do poder institucional com os indivíduos e de suas concepções particulares de política, justiça e bem estar social.

Palavras-chave: Salazarismo. Ambivalência. Memória.

ABSTRACT

The development of recent research on dictatorships allowed a differentiated reflection , less polarized, about the society behavior in front of the establishment of a dictatorial regime. In this present work, the memories of some Portuguese were the subject of analysis towards to understand the ambivalence, the silences and the oppositions of them throughout their lives in the presence of Salazar period. The clash of their memories with the story allowed us to evaluate the idea that each one had on the establishment and permanence of a dictatorship, as well the complexity relationship of the institutional power with the individuals, and their particular conceptions of politics, justice and welfare state.

Keywords: Salazarismo. Ambivalence. Memories.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 8

1 A MEMÓRIA COMO OBJETO DE PESQUISA: TEORIAS E METODOLOGIA ...... 16 1.1 Salazar e salazarismo ...... 22

1.1.1 Salazar ...... 22

1.1.2 Salazarismo ...... 25

2 AS ENTREVISTAS ...... 33

2.1 Os bastidores da pesquisa: uma pequena reflexão ...... 33

2.2 Os entrevistados ...... 35

2.3 Entre a história e a memória ...... 36

2.3.1 Primeira República ...... 36

2.4 Mocidade portuguesa e educação física ...... 42

2.4.1 Censura e polícia política ...... 61

3 A GUERRA DO ULTRAMAR E O “25 DE ABRIL” ...... 96

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 117

REFERÊNCIAS...... 119

ANEXO ...... 123

8

INTRODUÇÃO

Ninguém com menos de quarenta anos tem uma memória real do que implicava viver sob uma polícia secreta ou sob a censura da comunicação social.1

Em 2010, o historiador português radicado na Irlanda, Felipe Ribeiro de Meneses, lançou o livro Salazar – Uma Biografia Política. Na introdução, o autor faz uma afirmação reproduzida na epígrafe, que merece alguns comentários. A princípio, ela nos oferece uma informação, incontestável, no que diz respeito à existência da polícia secreta e da censura na dinâmica do regime. Mas, confrontando com as questões abordadas neste trabalho, é possível fazer alguns questionamentos. Primeiro, é que a memória real do salazarismo pode estar se apagando com o desaparecimento das antigas gerações e, segundo, que esse tipo de memória, principalmente ligado à censura e aos desvarios da polícia secreta, é comum a todos os que viveram nessa época. Bem, se é possível que esta geração não se interesse ou, até mesmo, não conheça profundamente o que foi o Estado Novo, o que significou o salazarismo e quem foi Salazar, aliás uma queixa recorrente dos entrevistados, temos, por outro lado, uma enorme publicação de livros, teses, filmes e séries sendo publicados e transmitidos pelas emissoras portuguesas. Não pretendendo analisar a qualidade dessas obras, o fato é que o salazarismo é um assunto do qual Portugal não se liberta tão cedo. E não é só porque foi uma parte importante da história contemporânea do país que ele é estudado e falado, o que por si só tem uma grande relevância. Foram quarenta e oito anos de ditadura (1926-1974), dos quais quarenta anos com Salazar no poder, sendo que trinta e seis anos como Presidente do Conselho de Ministros conduzindo o Estado Novo. Mas também, e exatamente por isso, pela relevância que esse passado tem como referência na construção do presente. Não são poucos os debates políticos da atualidade que recuperam o salazarismo para defender suas posições políticas, seja de esquerda, para lembrar os aspectos negativos do salazarismo, seja de extrema direita, para lembrar o que foi Portugal com o salazarismo e, por exemplo, na época do PREC2, quando o

1 MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar – Uma Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2010, p.13.

9

Partido Comunista assumiu, juntamente com o governo provisório, destaque no governo, depois do 25 de Abril. Velhas dicotomias aparecem para explicar o que Portugal é ou não é: moderno/atrasado; rural/industrial/rico/pobre/centro/periferia; palavras que, ao assinalar da crise, voltam para a arena política sob a luz do que foi Portugal um dia, tentando resgatar a raiz dos problemas deste país. Em 16 de julho de 2009, por exemplo, Alberto João Jardim, político madeirense, defendeu publicamente a proposta de proibir o Partido Comunista em Portugal, causando uma enorme confusão entre muitos parlamentares, principalmente entre os do Partido Comunista. Para ele, a lógica deveria ser a seguinte: se a constituição não permite a formação de um Partido Fascista, não deveria permitir o Partido Comunista, visto que, segundo ele, ambos comportam ideologias totalitárias.3 Não precisa muito para esbarrar com a história recente em Portugal. Seu resgate não é feito somente para legitimar o presente. Como foi dito, a história foi importante por si mesma. É um movimento duplo, uma retroalimentação que parece não ter fim, mas que, pouco a pouco, vai se desenhando em um formato mais inteligível, porém não menos polêmico. Nas paredes dos becos apertados de Coimbra, lemos palavras de ordem contra um fascismo, que para muitos perdura no tempo em Portugal.

Arquivo pessoal. De forma mais organizada, há os que lutam ou, simplesmente, trabalham para divulgar a memória da resistência ao Estado Novo. Um exemplo é o Centro de Documentação do 25 de Abril, com depoimentos e arquivos de pessoas que viveram na época do Estado Novo. Além disso, não é pouco significativa a iniciativa do Turismo de Coimbra, junto com a Associação

2 PREC- Conhecido como Processo Revolucionário em curso, é a fase da tomada do poder após a Revolução dos Cravos até 1976, com a nova constituição.

3Parte da sua declaração está disponível em: http://tv1.rtp.pt/noticias/index.php?t=Joao-Jardim-quer-proibir-comunismo-em- Portugal.rtp&article=232845&visual=3&layout=10&tm=9. 10

Acadêmica de Coimbra, de recriar a Crise Acadêmica de 1969, no seu 40o aniversário4, a atmosfera da crise, seus embates com a ditadura, a repressão e o cerceamento da liberdade de expressão. Em 2009, quem visitava Coimbra poderia ver, em vários pontos da cidade, marcos explicativos do confronto e a demarcação dos lugares de memória5 do salazarismo. O exército em marcha para reprimir os manifestantes.

Arquivo pessoal.

Recriando a marcha dos estudantes de Coimbra por suas escadarias, onde os esperava um carro do exército e militares montados em seus cavalos.

Arquivo pessoal.

4 http://www.jn.pt/paginainicial/pais/concelho.aspx?Distrito=Coimbra&Concelho=Coimbra&Option=Interior&content_id=118 2743

5 Em referência a Pierre Nora. 11

Arquivo pessoal. A repressão ao longo das ruas de Coimbra. Repressão na Av. Sá da Bandeira.

Arquivo pessoal.

E a ex-sede da PIDE em Coimbra.

Arquivo pessoal. 12

Todo esse esforço mostra como é importante, ainda, para parte da sociedade portuguesa, privilegiar a memória de seu passado. O salazarismo recorreu à história e à memória dos portugueses, “dos verdadeiros portugueses” do “Portugal profundo”, para reforçar seus princípios. Presenciamos, na atualidade, o mesmo recurso para contestá-lo. Era importante para o salazarismo resgatar o patrimônio material e imaterial de Portugal, entrar em contato com o que ele acreditava ser a verdadeira identidade portuguesa, a do mundo rural, do povo simples, do império colonial, lembrando e recriando espaços de memória, como Portugal dos Pequeninos e festejando a grandeza do país com a Exposição do Mundo Português, reconhecendo na identidade de parte do povo português, um caminho possível para dar vida as suas próprias verdades. Como diz Eduardo Lourenço,

A consistência, a força, a coerência do nosso sentimento de identidade estão amalgamadas com a vivência de um espaço tempo próprio, homogeneizado pela língua, pela história, pela cultura, pela religião enquanto “habitus” sociológico, pela sua própria marginalização no contexto europeu, o seu “ilha sem o ser”. Mas ainda, pela permanência, por assim dizer físicas, ao alcance dos olhos e das mãos de uma estrutura social de um arcaísmo extremo, quer dizer, de um enraizamento profundo no passado. 6

Da mesma forma, mas por motivos diferentes dos de Salazar, e variados também, nos usos da memória na atualidade, privilegiamos a memória. Há quem defenda a necessidade do esquecimento, já que a lembrança não é a única função da memória. Ao fotografar a antiga sede da PIDE em Lisboa, fechada para obras porque iria virar um centro residencial, um português me perguntou, com um leve sorriso “Você sabe o que foi isto? Disse: Sim, a sede da PIDE. Ele riu, virou-se e continuou a andar. Intrigada com seu sorriso, perguntei. E o senhor, sabe o que isto vai virar? Ele, mais uma vez, riu e disse: Sei. Um prédio residencial. Continuei. O senhor não acha que poderia ser um centro de memória ou um museu? Ele riu e disse: Não, é muito grande. Eu ri e disse: Talvez a memória não precise de um lugar tão grande. Rimos os dois. Porém, o que está em jogo, muitas vezes, é quem determina o que esquecer e o que lembrar. Na maioria das vezes, isto é feito sem consulta à população. O que se deseja é a sua ratificação e as opiniões contrárias manifestam-se posteriormente, em tom de condenação. É só lembrarmos o que desperta em muitos o Memorial Getúlio Vargas, no bairro da Glória, no

6 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p. 13.

13

Rio de Janeiro. Para uns, um fascista ou um ditador conservador, para outros, o “pai dos pobres”, símbolo da democracia. Imaginemos, então, a possibilidade de se ter, em Portugal, um Museu em memória de Salazar? Em 2007, a Câmara Municipal de Santa Comba Dão, propôs a criação de um Centro de Estudos e Museu do Estado Novo7, na antiga casa do ditador, no Vimieiro, atualmente abandonada e em ruínas8. Houve uma grande reação por parte da União de Resistentes Antifascistas Portugueses - a URAP, culminando em um abaixo - assinado9, o que desagradou alguns moradores de Santa Comba Dão, que partilhavam da ideia da Câmara. O mesmo aconteceu com o concurso, pela emissora portuguesa RTP, para a eleição dos «Grandes Portugueses», em que ganhou António Oliveira Salazar. A reação contrária veio em forma de manifesto10, encabeçada por José Mattoso e Fernando Rosas, assinada por Luís Reis Torgal, importantes historiadores citados ao longo desta dissertação e que têm uma posição bem clara quanto ao salazarismo. De qualquer forma, parece pouco provável que o salazarismo venha cair no esquecimento, pelo menos a curto e médio prazo. Porém, o mais importante, é compreender que a memória pode ser objeto de pesquisa, quando devidamente problematizada. Na epígrafe, além da questão anteriormente analisada, temos o fato de que, ainda que tenhamos presentes todos os que viveram o salazarismo desde o início, suas lembranças não serão as mesmas. O que garante que todos irão compartilhar o mesmo conhecimento do que era “viver sob uma polícia secreta ou sob a censura da comunicação social”? Esta é uma das questões que serão analisadas ao longo desta dissertação, a partir dos depoimentos recolhidos em 2009, com portugueses que viveram à época do Estado Novo Português. O primeiro ponto a esclarecer é dizer que são pessoas que não viveram a maturidade de suas vidas no início da Ditadura, em 1926, nem a sua fase civil, no início do Estado Novo (1933-1945). São pessoas que vivenciaram sua adolescência e juventude nas décadas de 50 e 6011 - portanto, após a Segunda Guerra Mundial, onde o regime de António de Oliveira Salazar sofreu algumas modificações, de forma efetiva ou cosmética, dependendo da corrente historiográfica que analisa o regime. Embora seja impossível debruçar sobre estas transformações, ponderando as peculiaridades do regime nesse período, é preciso situar os

7 http://videos.sapo.pt/BmPZ1GtHGZl1zw2Ab9rv

8 http://www.youtube.com/watch?v=YYmO0vek1kM&NR=1

9 http://www.urap.pt/index.php?option=com_content&task=category§ionid=8&id=28&Itemid=38

10 TORGAL, Luís Reis. Estados Novos, Estado Novo: ensaios de História Política e Cultural. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, vol.1, p.42.

11 Neste período, as médias de idade dos entrevistados variam de 12 a 22 anos. 14

depoentes, dizendo que os mesmos viviam sobre as regras da censura, da vigilância da polícia política, mas também sobre um momento de oposições mais abertas em relação ao regime e uma maior abertura ao mundo.12 Com isto, quero dizer que não é possível considerar o Estado Novo um bloco único desde a sua implantação, em 1933 (considerando a constituição) até o seu fim, em 1974, com a Revolução dos Cravos. Entretanto, se a experiência pessoal dos entrevistados tem um período determinado historicamente, o interesse deste projeto está em percorrer as memórias de cada um sobre o Salazarismo.13 Nesta introdução, apresentamos o tema, discorrendo sobre a sua relevância, bem como apresentando ao leitor o ambiente encontrado em Portugal à época da entrevista, precisamente em Coimbra. No primeiro capítulo, em A memória como objeto de pesquisa, apresentamos a metodologia a ser trabalhada, bem como o referencial teórico utilizado para embasar a análise das entrevistas. Utilizando a história oral como ponto de partida, as entrevistas serão o objeto principal de estudo sobre o tema. Não obstante, algumas biografias servirão de complemento para aprofundar o depoimento. Pierre Laborie é a fonte teórica principal deste trabalho, através dos conceitos de ambivalência e “zona cinzenta”. René Rémond inspira o recorte do projeto em História Política. Além da apresentação teórica, apresentamos os temas Salazar e Salazarismo, discorrendo uma breve história de quem foi o personagem central do regime, António Oliveira Salazar. Isto porque o Estado Novo e suas memórias giram ao seu redor, seja para lhe atribuir os males do regime, seja para lhe atribuir as glórias. E, exatamente por ser a figura principal do Estado Novo, em Salazarismo, sintetizamos o que foi esse movimento que organizou e sustentou a ditadura e que transcendeu o homem de Estado. O segundo capítulo – As entrevistas, é dedicado ao contexto da preparação das entrevistas. Subdividido em Os bastidores da pesquisa: uma pequena reflexão; onde discorremos sobre as dificuldades na preparação do trabalho; – Os entrevistados, apresentando as pessoas escolhidas para fazer a entrevista; Entre a história e a memória, onde

12 Historicamente, podemos situar os depoentes em dois períodos, de uma classificação de 4 tempos: “De um período de abertura ao Ocidente e às relações internacionais, até o princípio da década de sessenta, NATO - 1949, ONU – 1955 , OCDE – 1960 e à EFTA”; (...) e “De um período de crise e isolamento(...) que acompanha a guerra colonial e que se inicia no princípio da década de sessenta” , ver Luís Reis Torgal. Estados Novos, Estado Novo: ensaios de História Política. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, vol. 1, pp. 344-345.

13 De acordo com o enciclopédia de guerras e revoluções do século XX, o Salazarismo é a expressão do modelo político constituído em Portugal durante o período do Estado Novo (1933-1974), seja sob a liderança de Salazar, seja sob a liderança de Marcelo Caetano, ambos presidentes do Conselho de Ministros. Ver, Enciclopédia de guerras e revoluções do século XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Francisco Carlos Teixeira da Silva (coord). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004 p.804. 15

as entrevistas são analisadas, a partir de três temáticas históricas: A Primeira República, a Mocidade Portuguesa e a Educação Física e o último tema, Censura e Polícia Política. Para finalizar, no terceiro e último capítulo, Guerra do Ultramar14e o 25 de Abril, as memórias serão analisadas encaminhando a discussão sobre o impacto da Revolução dos Cravos e finalizando com um breve comentário sobre a historiografia.

14 O termo Guerra Colonial é para demarcar a referência mais utilizada pelos entrevistados. Temos outros dois termos para se referir a mesma: Guerra do Ultramar e Guerras de Independência. As mudanças revelam as diferentes perspectivas para se referir a Guerra que aconteceu entre Portugal e as colônias, precisamente, de 1961 até o nosso recorte histórico - 1974. 16

1 A MEMÓRIA COMO OBJETO DE PESQUISA: TEORIAS E METODOLOGIA

Como todo projeto, a definição da linha de pesquisa é de suma importância, não só para orientar o trabalho, mas para indicar sob que parâmetros o pesquisador está analisando o seu objeto. Apesar da atenção conferida à mentalidade e a formação oferecida pelos ambientes culturais do Estado Novo, como a Mocidade Portuguesa, a dissertação está inserida na linha de pesquisa em História Política. É interessante perceber que quase todos os entrevistados se veem como apolíticos. Isto é relevante na medida em que o próprio regime fazia questão de retirar ou minimizar, de seus atos, o teor político. Nesse sentido, o salazarismo também era “apolítico”. Até Salazar dizia que não gostava de políticos. Mas fez política durante quarenta anos. E porque a ditadura desejava continuar, precisou estar atento aos pequenos detalhes da sociedade, dialogando com ela, ainda que silenciosamente. E esta, muitas vezes, respondia tal como o ditador: silenciosamente, mas politicamente. Consideramos, portanto, uma situação em que o Governo buscou legitimidade através da sociedade, oferecendo um programa que atendia a algumas demandas da sociedade, materiais ou simbólicas. Entretanto, esse diálogo não é uniforme. Ele é permeado de avanços e recuos ao longo da ditadura. René Rémond diz que é comum aos historiadores, “uma vez conhecido o desfecho de uma história, obter conclusões a partir de uma sequência já determinada, ignorando a ambivalência das situações, da ambiguidade dos comportamentos e das incertezas”15. O fato de uma ditadura impor regras, valores, limitar a expressão de pensamento pode nos levar a acreditar que essas ambivalências não existem. A situação fica mais complexa quando consideramos as ambivalências como contradições. Ao fazer isto, tendemos a desconsiderar a racionalidade que organiza determinada escolha. Escolha esta que é da ordem do político e que opera no Estado e na sociedade, de forma dinâmica, renovando-se sempre. A renovação do estudo do político permitiu ao historiador compreender a história política sob novos paradigmas. Há uma passagem do texto de Rémond que explica a escolha da análise do salazarismo, através das memórias, na linha de História Política.

Certamente o poder é o ponto máximo. O poder supremo, aquele que se exerce numa sociedade global, no interior de um território definido por fronteiras, dispondo do poder de coerção, definindo a regra com a lei e sancionando as infrações, é o único poder que tem todos esses atributos. Mas há também a conquista e a contestação desse poder, e a relação do

15 RÉMOND, René. O Retorno do político. In: CHAUVEAU, A. ; TÉTARD, P. (org.). Questões para a história do presente. BAURU: EDUSC, 1992, p. 56. 17

indivíduo com a sociedade global política – de onde o estudo de comportamentos das escolhas, das convicções, das lembranças, da memória, da cultura. O político toca a muitas outras coisas. Não é um fato isolado. Ele está evidentemente em relação, também, com os grupos sociais e as tradições de pensamento.16”

É exatamente por acreditar nessa abrangência que toca o político, que escolhemos a memória, a partir da metodologia da história oral, para analisar o comportamento político desse grupo. E, uma vez que, nesta pluralidade, consideramos as ambivalências, o referencial teórico de Pierre Laborie é, de fato, o melhor caminho para analisar os depoimentos.

Pessoas e sociedades são feitos de memória – e de lacunas de memória... Ela torna a dar existência àquilo que existiu, mas não existe mais, ela é uma “representação presente de uma coisa ausente”. 17

Tentando percorrer o difícil caminho da “neutralidade narrativa”, fugindo, neste momento, de juízos de valor sobre as opções dos entrevistados, até porque julgar não é a função do historiador, esse trabalho visa compreender as escolhas individuais de um grupo de cidadãos portugueses vivendo na ditadura salazarista. O objetivo é analisar o comportamento daqueles que viveram a ditadura e que, em 2009, após 35 anos do seu término, narram a experiência de terem vivido o regime, de acordo com as seguintes tomadas de posição: 1) reconhecendo-se apolíticos e, portanto, dizendo não pensar sobre o regime; 2) Dizendo-se contra o regime, mas não tomando posição; e, 3) Posicionando-se contra. Ao serem selecionados para as entrevistas, ao primeiro contato, quase todos disseram não ter nada a dizer ou não compreender no que poderiam ajudar na pesquisa. Trata-se do que Danièle Voldman18 referiu-se ao dividir os entrevistados em as “grandes testemunhas” e as “pequenas testemunhas”. As primeiras, conscientes do seu papel na história, afirmam ter muito a dizer; as segundas, na maioria das vezes, se colocam como quem não tem nada a dizer. Entendemos melhor esta posição, quando nos voltamos ao objetivo da pesquisa. Algumas dessas pessoas estão preocupadas, não com os grandes fatos históricos, mas com a lembrança de sua própria vida. Ela é o termômetro da história.

16 RÉMOND, René. O Retorno do político. In: CHAUVEAU, A. ; TÉTARD, P. (org.). Questões para a história do presente. BAURU: EDUSC, 1992, p. 58.

17 Citação de Pierre Laborie. Memória e Opinião. In: Cecília Azevedo; Denise Rollemberg [et al]. Cultura Política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, pp.79 – 97.

18 VOLDMAN, Danièle. Definições e usos, FERREIRA, Marieta de Moraes ; AMADO, Janaína. In: Usos e abusos da História Oral, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, pp. 33- 42. 18

Não é difícil encontrarmos, nos depoimentos, os acontecimentos sendo rememorados a partir de suas próprias vivências pessoais. Por isso, foi muito importante, desde o inicio, indicar claramente o caminho a ser percorrido por suas memórias. Partindo de um título provisório, “Minha vida no Estado Novo Português”, os depoentes eram informados que o objetivo não era saber a história do Estado Novo, mas como era a vida de cada um deles durante o regime: onde nasceu, qual era a ocupação dos pais, onde estudou, onde trabalhou, como era o dia a dia de cada um deles etc. Podemos, dessa forma, destacar uma primeira observação sobre a análise dos depoimentos: é fundamental compreender que há uma relação da memória dos depoentes com as diferentes temporalidades por onde o Estado Novo se construiu e, cada uma dessas, de forma específica, com a época em que a memória individual de cada entrevistado foi forjada. Contudo, há tantas variantes que podem exercer uma influência sobre a memória, o que tornaria inviável o estudo sobre os depoimentos, caso o objetivo fosse descobrir uma suposta verdade sobre os fatos. O relevante sabermos é que a apreensão da memória depende do ambiente social e político: “trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagem e textos que falam do passado, em suma, de um certo modo de apreensão do tempo ( cf ciclo, gerações, tempo/temporalidade)”19. Os fatos históricos, atualmente, bastante analisados por historiadores de diversas perspectivas historiográficas, servirão para confrontar a representação que cada um dos entrevistados tem sobre o regime, não para corrigir as “reminiscências”, mas para analisar as narrativas daqueles que hoje são portadores da “memória contemporânea” do salazarismo, porque, como diz o historiador Alessandro Portelli, “Representação e fatos não existem em esferas isoladas”20 Não existe memória pura. Toda memória, em qualquer época e pessoa, tem a sua formação mediada pela cultura política e social em que os indivíduos estão inseridos, bem como pela própria memória coletiva. O tempo histórico interage com a memória, num processo de reelaboração contínua; o que torna a lembrança e, também o esquecimento um processo dinâmico já que ela é “ particularmente instável e maleável”21. Essa instabilidade, porém, ao contrário do que possamos crer, nos fornece muitos elementos que, quando confrontados e analisados, poderão esclarecer o comportamento dos indivíduos sob a ditadura.

19 LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: UNICAMP, 2003. p. 419.

20 PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana ( Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”, In: Ferreira, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, 2006, p.11.

21 LE GOFF, op.cit, p.462. 19

Além disso, a memória está sempre sendo atualizada por uma de suas formas de manifestações, a opinião pública, que, com ou sem os aparatos legais para controlá-la, é impossível impedir a sua manifestação. O que significa dizer que os códigos do presente interferem sempre, em maior ou menor grau, nas representações do passado, lembrando que a opinião remete, ao mesmo tempo, “à visão do presente, às interpretações do passado e às expectativas do futuro”.22 E, não esquecendo que a “memória coletiva também é um instrumento e objeto de poder”, a memória será sempre a base para futuras construções de outras memórias coletivas e, assim por diante. Não obstante, ao relatar suas vivências, o depoente está fazendo escolhas e estas são individuais. Neste momento, importa menos saber de onde vêm suas memórias e, sim, as escolhas das representações que os indivíduos fazem para narrar suas experiências individuais dentro do regime. Portanto, quando uma entrevistada diz que concorda com a instauração da ditadura, por causa do excesso de desordem que havia antes do 28 de Maio de 1926, e que Salazar consolidou esta ordem, o que para ela, nesse sentido, foi bom, é preciso analisar esta explicação dentro da própria narrativa, como um todo, lembrando sempre que foi uma escolha dela, já que em outras narrativas, encontraremos pessoas que, mesmo reconhecendo os tumultos que marcaram a Primeira República, ainda assim, escolheram se opor à instauração da ditadura. Logo, é a sua narrativa que dará a coesão necessária ao seu argumento, quer concordemos ou não. De qualquer forma, dialogar com a historiografia sobre a ditadura a partir da memória é uma tarefa árdua, uma vez que a própria historiografia é múltipla, ampliando muitas vezes as tensões que encontramos ao analisarmos as diversas memórias do regime. Para sair da nebulosa situação em que nos encontramos ao tentar estudar esses períodos, Laborie propõe um caminho, que é observar o lugar de destaque que ocupa a “ambivalência do pensamento e dos sentimentos”. A ambivalência que está presente não só nas atitudes dos franceses sob Vichy, mas na sociedade alemã, nos habitantes de Civitelle Val di Chiana, e, no nosso caso, em Portugal na época de Salazar. Iremos encontrar atitudes que, aos olhos do senso comum, assumem a denominação de covardia, colaboracionista, oportunismo e, no mais leve dos adjetivos, indecisos. Até pode ser. Mas, para compreender suas escolhas ou não escolhas, acompanhar o que preferimos chamar de ambivalências é, ao nosso entendimento, a melhor forma de entender o comportamento de alguns portugueses diante da ditadura. Não adianta só

22 LABORIE, Pierre. Memória e Opinião, In: AZEVEDO, Cecília; ROLLEMBERG, Denise; BICALHO, Maria Fernanda; KNAUSS, Paulo; QUADRAT, Samantha Viz (orgs). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 81.

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recorrer aos estudos de todas as instituições, leis, livros e pessoas que instauraram o regime, mas há que compreender as motivações daqueles que se calaram publicamente perante o regime, o que é a grande maioria. A opção pelo silêncio tem várias possibilidades; medo, concordância, total ou relativa, comodidade, indiferença etc. Pierre Laborie utiliza o termo “attentisme” para se referir aos franceses que não assumiram posição explícita na sequência da derrota da França para a Alemanha Nazista e sob o governo de Vichy, esperando o desenrolar dos acontecimentos. Veremos que, tal como os franceses, quando muitos foram petanistas e gaulistas ao mesmo tempo, muitos portugueses, ao abraçar a ditadura como uma saída para a organização da sociedade e da economia, irão condenar aquilo que consideravam os excessos ou desvarios da ditadura. Ao mesmo tempo, muitos outros que condenaram a ditadura, irão apontar alguns momentos favoráveis ao país durante o salazarismo. Tentaremos ver, ao longo da dissertação, se os comportamentos desses portugueses estão inseridos na “cultura do pensar-duplo”, do homem duplo, ou seja, “daquele que é um e outro ao mesmo tempo, mais pelo peso de uma necessidade exterior do que por cálculo cínico ou interesse”23. Tal como na França, a cultura do duplo é sentida até pelos que não queriam se envolver com o regime e até por isso mesmo, já que qualquer pessoa poderia ser um informador da PIDE. Como diz uma entrevistada, as notícias eram passadas “à boca pequena”. Tanto a ambivalência, que inserimos na cultura do “pensar-duplo”, como o attentisme, vão nos levar ao que alguns historiadores chamam de “zona cinzenta”24. Ao colocarmos os entrevistados nessa “zona cinzenta”, acabamos por optar em não utilizar o termo manipulação, comumente usado nas pesquisas sobre ditaduras. A não utilização desta palavra indica a forma pela qual estaremos tratando a memória ao longo da pesquisa, embora sem intenção de promover um debate profundo sob o tema, mas à luz de alguns depoimentos que recuperam esse conceito para analisar o próprio comportamento diante da ditadura. Somente para situar teoricamente esta questão, consideraremos alguns autores acerca do tema. Le Goff, por exemplo, nos diz que, entre outras coisas, “as direções atuais da memória estão ligadas à manipulação da informação”25. Já o historiador Fabrice D’Almeida26

23 LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do pensar –duplo. In: ROLLEMBERG, Denise ; QUADRAT, Samantha Viz. [orgs]. A Construção Social dos Regimes Autoritários: Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.39.

24 Para o conceito de zona cinzenta, ver Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerra d’ Espagne à la Libération. Paris. Seuil, 2001.

25 LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: UNICAMP, 2003. p. 419.

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argumenta que esta palavra, associada aos regimes totalitários, e aos seus respectivos serviços de propaganda, acabaram por imprimir à sociedade uma passividade perante o regime, no que diz respeito às suas escolhas. D`Almeida chega a dizer que a palavra manipulação tornou-se mesmo, a “tartes à la creme du langage journalistique et intellectuel depuis lês années 1990”. Tornou-se comum definir os regimes que tiveram a força de uma polícia política, uma grande censura e um grande investimento em propaganda, como totalitários, sendo sinônimos de ditatoriais desconsiderando, ou colocando em segundo plano, a influência do consenso e do consentimento da população ao regime. Todavia, se utilizarmos a palavra manipulação, no sentido usual, pouco ou nada servirá este estudo sobre a memória desses indivíduos que viveram na ditadura salazarista, pois se tudo o que fizeram foi decorrente de induções externas, manipulado pela propaganda, mas não só, bastaria ler os panfletos da situação, os jornais, os arquivos oficiais e teríamos o perfil do cidadão português: ou aqueles que resistiram, e certamente os encontraria nos processos da PIDE, na Torre do Tombo; ou aqueles que concordavam com o regime. E aqueles que não se enquadram em nenhuma das classificações, seriam somente os apáticos ou inertes. O que estas palavras nos dizem sobre suas opções? Certamente, muito pouco. Não haveria “zona cinzenta”, pois teríamos somente, posição ou oposição e, na verdade, sabemos que não é assim. Aceitando ou não o regime, cada um tinha, dentro de si, os motivos específicos para colocar limites, seja na aceitação ou na oposição ao mesmo. Para a grande maioria, há uma variedade enorme de sentimentos que, a todo o momento, se movimentava para um dos polos. Claro que o medo pela conhecida repressão, fazia com que muitos se calassem diante do regime. Mas isto não quer dizer que o aceitassem literalmente, nem que o medo tem tanto poder assim para silenciar uma população inteira. Dessa forma, tal como D’Almeida, que também não acredita que alguém possa manipular o outro, tal como marionetes, ou seja, suprimindo-lhes seus desejos, empatias e antipatias; enfim, impondo suas escolhas e que, ao mesmo tempo, reconhece a sua permanência como instrumento nas relações de poder, buscamos, na memória do entrevistado, a sua representação do salazarismo, a partir da sua própria história. Refutar o caráter manipulador do regime, não é, neste trabalho, negar a tentativa de manipulação do mesmo pelos seus órgãos oficiais, e sim, rejeitar uma compreensão sob o regime, baseada no caráter “ativo e intencional do manipulador e no caráter passivo e inconsciente do manipulado”.27

26 “Car << manipulation>> reste Le mot de référence pour designer un problème specífique: celui de La manipulation de masse”, Fabrice D’Almeida. La Manipulation. Ed. Paris, PUF, 2006, p.80.

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Como vimos, atualmente, encontramos em Portugal a memória sendo analisada pelos pesquisadores de diversas áreas, em função da participação de pessoas na resistência, presos políticos pela PIDE, integrantes do movimento que culminou na Revolução dos Cravos, entre outros eventos importantes ligados à resistência ou somente partes integrantes da história do Estado Novo. Além disso, temos uma historiografia que debate a essência do salazarismo no que diz respeito à classificação do regime como “fascista” (genérico, de cátedra ou à portuguesa) ou, por outro lado, como um regime “autoritário de caráter conservador”, identificando importantes representantes dessas correntes, no primeiro caso, os investigadores Luís Reis Torgal e Fernando Rosas, por exemplo; e, no segundo caso, António Costa Pinto. O fundamental para este estudo foi ter encontrado a possibilidade de refletir sobre os comportamentos desses indivíduos diante da ditadura e problematizar essas memórias dentro de uma perspectiva menos polarizada, o que acreditamos permitir o aprofundamento do conhecimento de como a ditadura foi organizada em Portugal e em que ponto esses comportamentos podem comprometer a democracia.

1.1 Salazar e salazarismo

1.1.1 Salazar

Aqui está e é, como veem, uma bem modesta pessoa. Tem uma saúde precária e nunca está doente; tem uma capacidade limitada de trabalho e trabalha sem descanso”28.

Assim se definia a figura de proa do Estado Novo, António de Oliveira Salazar. Mas, quem foi Salazar? Seria impossível falar sobre o salazarismo, sem antes percorrer, mesmo que brevemente, o início de sua carreira. Importante para entender as suas escolhas e opiniões, ela nos oferece a sua identidade política de base. Veremos que Salazar, apesar de reivindicar para si a alcunha de apolítico, soube muito bem capitanear os ganhos políticos em torno da exploração da sua origem e personalidade, seja nos seus discursos, seja através das biografias

27 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO Gianfranco. “Manipulação”, Dicionário de Política, p. 727-734, v. 2, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000, p. 727.

28 Antônio Oliveira Salazar, apud MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar – Uma Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2010, p.80. 23

que eram divulgadas em Portugal e no exterior, com ou sem apoio do Secretariado de Propaganda Nacional. Em 1951, num discurso conhecido como «Meu Depoimento», Salazar agradeceu publicamente à providência por ter nascido pobre. Filho de António Oliveira e Maria do Resgate Salazar, nasceu em 1889, na povoação do Vimieiro, perto de Santa Comba Dão. Apesar de pobre, com mais quatro irmãs, Salazar é o filho mais novo e foi o que teve maiores condições de avançar nos estudos, fazendo-o, primeiramente, com um professor local e, depois, tornando-se seminarista, tal como muitos outros que pretendiam continuar os estudos, já que a Igreja, na falta de escolas oficiais, complementava essa função social. Em 1900, iniciou seus estudos como seminarista em Viseu, completando o curso de Teologia. Professor do colégio Via Sacra, Salazar empenhou-se na publicação de suas ideias, através da imprensa regional. A partir desses escritos, podemos ter uma ideia da sua visão de mundo, sendo que, muitas delas o seguirão na fundamentação do salazarismo para a formação do Estado Novo. Muitas outras serão adaptadas ou, até mesmo, abandonadas em prol das exigências do momento. Adquirindo o gosto pela atividade intelectual que desenvolvia como católico, foi mais longe. Em 1910, inscreveu-se na Universidade de Coimbra. Lá, inseriu-se numa rede de sociabilidades restrita, mas importantíssima, da qual sairão muitos dos seus futuros colaboradores no governo, além de amigos na vida particular. Seus escritos terão a marca desses anos como seminarista, sua vivência em Coimbra e, pelo contexto histórico que presenciava, fazendo uma leitura muito particular de tudo o que via, mas que era compartilhada por muitos dos seus contemporâneos em torno dos debates e combates com a República e sua relação com a Igreja. E foi combatendo os que atacavam a Igreja que Salazar iniciou a sua vida política, posteriormente melhor desenvolvida pela entrada no Centro Acadêmico de Democracia Cristã (CADC), defendendo os princípios de Leão XIII e onde estreitou os laços com o amigo de Coimbra, Manuel Cerejeira, mais tarde, Cardeal Patriarca de Lisboa. Em 1914, licenciou-se em Direito com honras. Já como professor na Universidade de Coimbra, optou pelas questões econômicas e financeiras, escrevendo duas dissertações para o cargo, que foram usadas constantemente como plataforma política, uma vez que a República e, mesmo a ditadura, não foram capazes de solucionar eficazmente seus problemas financeiros. Com a “Questão Cerealífica: o trigo”, Salazar reconhece que Portugal deveria ter outras produções, mas como não tem, por dificuldades de produção e de venda, deveria investir mais na produção e venda daquilo que lhe é necessário e tradicional, o trigo. Em “O Ágio do Ouro”, encontramos a sua solução para a economia portuguesa: o equilíbrio da 24

balança. Nada muito novo em termos de economia se lembrarmos do mercantilismo, mas que haveria de funcionar nos anos iniciais de Salazar como ministro das finanças. Passa então, a escrever sobre assuntos ligados à economia. Sua ascensão no Centro Católico Português, pelo qual foi candidato, ganhando e perdendo eleições, lhe ofereceu a oportunidade de ser reconhecido como um verdadeiro representante dos ideais católicos na vida política. E, se é verdade a famosa declaração a António Ferro que “Este homem que é governo, não queria ser governo. Foi deputado: assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou”29, o que podemos ver é que a sua carreira política crescia, cada vez mais. Mas foi o golpe de 1926, que iria mudar a sua vida, e os destinos de Portugal, de forma decisiva. Após a breve passagem pelo governo da ditadura, sob o convite de Gomes da Costa e Mendes Cabeçadas, no que ficou conhecido como «trio de Coimbra»30, Salazar passa a interferir, mais de perto, nas decisões políticas, principalmente no que se refere à economia, fazendo parte da comissão de Reforma do sistema tributário, em 1927, que culmina com um relatório que não tem a aprovação do ministro das finanças, Sinel de Cordes. Contudo, após uma crise aberta entre Salazar e o ministro, com críticas através da imprensa, de ambos os lados, e a permanência do impasse na economia portuguesa, além das sucessivas crises que afetavam a ditadura, que não conseguia se legitimar e se estabilizar, o nome de Salazar passa a ser cogitado novamente para o governo, já que, além de ser doutor em finanças, era um nome que atraía parte dos republicanos conservadores e parte da direita radical, ao mesmo tempo em que poderia afastar os extremistas de ambas as correntes. Em 27 de abril de 1928, assume a pasta das finanças. Sua atuação política se torna mais clara nesse momento, pois além dos problemas nas finanças, Salazar precisa mergulhar no subterrâneo da política para conseguir executar os seus projetos e, aqueles que não concordam com Salazar, acabam saindo, um por um, do governo. Ao se tornar imprescindível, não só pelos resultados iniciais positivos em relação às finanças, mas como alguém que pudesse garantir o sucesso político da ditadura, que constantemente sofria com tentativas de golpes vindo de todos os lados, Salazar vai desenhando em torno da sua pessoa o retrato do governo que irá implementar. Em 1932, não há mais dúvidas. Salazar está mais forte do que nunca. É empossado Presidente do Conselho de Ministros. Sua força não elimina a oposição ao governo, nem a oposição de dentro do governo. As lutas continuam. Em 1937,

29MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar – Uma Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2010, p.657. Em recente biografia de Salazar, o autor diz ser controversa esta afirmação, uma vez que, ao que tudo indica, Salazar não voltou porque o parlamento foi fechado. Ver em Meneses, op. cit, p.49.

30 O trio era composto por Salazar, Manuel Rodrigues e Mendes dos Remédios. 25

sofre um atentado que irá mudar a sua rotina pessoal. Mais recluso, vivendo no Palácio de São Bento, Salazar passa a trabalhar e a viver para manter o Estado Novo que criou. Lá, dividia seus momentos íntimos com a governanta Maria de Jesus e suas pupilas, Maria da Conceição Rita, mais conhecida como Micas, com quem conviveu até casar e com Maria Antónia, que saiu após uma divergência com a governanta sobre seu namorado, que diziam31 ser da oposição. Lá, despachava com os ministros, oferecia jantares protocolares. Alternava a sua moradia, com momentos de lazer, no Forte São João do Estoril ou na sua casa no Vimieiro. Jamais se casou. Teve alguns romances, mas nunca os exibiu, tampouco os assumiu. Sua personalidade não permite que façamos afirmações definitivas a seu respeito. Por 36 anos, foi Presidente do Conselho. Defendeu o patrimônio colonial sem nunca ter visitado nenhum deles. Em 1968, após sofrer um acidente, afastou-se do governo. Em 1970, aos 81 anos, morria António de Oliveira Salazar. A personalidade mais falada, odiada ou amada, conhecida e discutida em Portugal por aqueles que viveram ou não o Estado Novo. E, ainda assim, uma grande incógnita.

1.1.2 Salazarismo

Se conhecer Salazar já é uma tarefa difícil, pela profusão de textos que tentam dar conta da sua biografia, compreender o que foi o salazarismo não fica por menos. Para nos orientar nesta empreitada, temos a seguinte definição: “expressão do modelo político constituído em Portugal durante o período do Estado Novo (1933 – 1974), seja sob a liderança de António Oliveira Salazar (1933-1968), seja sob a liderança de Marcelo Caetano (1968-1974)32. E, antes de conhecermos o que foi o Estado Novo, vamos conhecer os pressupostos teóricos que fundamentaram a sua institucionalização e sua manutenção por 41 anos, uma vez que, também, foi a expressão de um movimento em que as decisões eram temperadas por compromissos que poderiam favorecer ou fragilizar o governo. Ao rever a trajetória inicial de Salazar e os momentos iniciais da Ditadura Militar, percebemos que esse processo começou bem antes de 1933. Isto não quer dizer que tudo já estava definido, como uma linha traçada a priori. Até porque nada estava definido, desde o início até o seu fim.

31 Posteriormente voltaremos a este assunto, ao analisar o depoimento de sua irmã, Maria José.

32 MARTINHO, Francisco Carlos. Salazarismo, In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX, Rio de Janeiro: editora Elsevier, 2004. p.804. 26

Como católico, articulista dos valores como hierarquia, tradição e ordem, vai se opor aos republicanos na sua ofensiva à Igreja. No discurso de 1914 à juventude católica do Porto, disse: “Sem o cristianismo guiando os espíritos, os três grandes princípios de 1789 desviar- se-iam uns aos outros, visto serem naturalmente incompatíveis”33 Tornou-se lugar comum na historiografia e mesmo em biógrafos, vincular as atitudes do salazarismo como resultado da sua ligação com a Igreja. Isto aconteceu porque as afinidades que o salazarismo tem com a doutrina católica são muitas e não é só pela sua formação teológica, mas pela formação intelectual de toda uma geração34 que concebe uma solução conservadora para o país. Essa geração, que faz parte de uma «nova geração», representa “novas lógicas políticas e culturais”35. E, aos poucos, através dos discursos de Salazar, seu pensamento passou a representar uma esperança para essa elite atingir seus objetivos. Para Salazar, era preciso temperar os princípios da Revolução Francesa com o modelo cristão de hierarquia. Como diz António Costa Pinto

O salazarismo, de certa forma, expressou a esperança de um “movimento católico”, estreitamente ligado à hierarquia e de contornos autoritários. O espaço para um partido de tipo democrata cristão ou popular seria ocupado pelo Partido do Centro Católico, cujo catolicismo social resvalaria rapidamente para uma alternativa corporativa autoritária, já presente no apoio à Ditadura de Sidónio, em 1917.36

É um paradoxo com o qual terá de lidar ao longo do seu governo, principalmente no confronto com a liberdade; garantida, em tese, na constituição, para acalmar os ânimos dos republicanos conservadores, limitada por decretos e cerceada na prática. O objetivo era que a liberdade não fosse tamanha que pudesse, com suas ideias e ações, “perverter a opinião pública”, de forma que a ordem fosse mantida a qualquer custo, A Bem da Nação. Aliás, é em torno da defesa desses valores que o salazarismo irá se deparar com vários conflitos ao longo do regime; já que ele é, também, resultado de uma série de compromissos de grupos que nem sempre estão do mesmo lado. Mas, é inegável que a convergência se dá pela “rejeição ao

33 MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar – Uma Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2010, p.37.

34 Luís Reis Torgal cita personalidades que nasceram por volta de 1889, como exemplo da «geração cronológica». Além disso, recupera os pressupostos ideológicos dos que integram o que ele chamou de «nova geração». Ver em Conceitos de uma geração ou de algumas gerações, in: Estados Novos, Estado Novo, p.67-127, parte 1.

35 TORGAL, Luís Reis. Estados Novos, Estado Novo: ensaios de História Política e Cultural. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, vol.1, p.75.

36 PINTO, António Costa (coord). Portugal Contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p. 20. 27

liberalismo herdado da Primeira República e da apologia de um Estado política, economicamente e socialmente forte e interventor”37 . Falar da Igreja e, o seu papel dentro do Estado Novo, é sempre um assunto polêmico. De uma forma simplificada, só para ilustrar, temos o entendimento dessa relação como: a “suprema força informadora da ação do Estado Novo”38; como uma “separação concordatada”39, e como um “catolicismo tradicionalista”40. Maria Inácia Rezola41, em sua análise, conclui que a “imagem de um pacto de mútuas compensações e benefícios” continua válida para definir as relações entre a Igreja e o Estado. No que se refere aos benefícios conquistados pelo salazarismo, temos: 1) contenção da extrema direita; 2) mobilização e enquadramento das massas e 3) arranque e credibilização do corporativismo, principalmente na década de 30. Entretanto, conclui que não se pode “classificar o salazarismo como um nacional-catolicismo”42. Mas não foi só o antiliberalismo que permitiu a união em torno do salazarismo. A ideia corporativa também fazia parte dos valores conservadores da época. Resgatando a noção medieval de corpo, o salazarismo defendeu um corporativismo que fosse “representativo para categoria profissional, como posição à manifesta atomização ou fragmentação profissional de interesses na forma representativa liberal”43, ainda que, na prática, o corporativismo tivesse sido mais econômico do que político, pois manteve um tipo de representação liberal pela eleição direta da Assembleia e para a Presidência da República, até a década de 40. E, mesmo no setor econômico, a partir de 1947, esse corporativismo econômico perde e se afasta mais ainda dos seus propósitos iniciais, quando o governo deixa, oficialmente, através do Decreto – Lei no 36.173, de intermediar as negociações entre patrões e empregados. A ideia inicial do salazarismo era que o corporativismo atingisse todos os núcleos da sociedade. E, como Salazar não inventou a roda e, por isso mesmo, suas ideias

37 ROSAS, Fernando (coord). In: MATTOSO, José. História de Portugal, 1994. p. 185.

38 Fernando Rosas.

39 Manuel Braga Cruz.

40 António Costa Pinto.

41 REZOLA, Maria Inácia. A Igreja Católica e a Consolidação do Salazarismo. MARTINHO, Francisco Palomanes & PINTO, António Costa. (orgs) In: O Corporativismo em Português, 2007.

42 REZOLA, Maria Inácia. A Igreja Católica e a Consolidação do Salazarismo. In: O Corporativismo em Português, 2007, p. 266.

43 MARTINHO, Francisco Carlos. Salazarismo, In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX, Rio de Janeiro: editora Elsevier, 2004, p.804. 28

puderam se fundir com outros grupos, para compor uma identidade que fundamentasse teoricamente o regime, é possível encontrar em outros grupos a defesa do corporativismo para organizar a sociedade, como o Integralismo Lusitano, por exemplo, que tinha como base a religião, as corporações e os municípios. Outro pilar do salazarismo era o seu nacionalismo que, em parte, explica a defesa permanente do patrimônio colonial. E nesse ponto, o salazarismo conquista várias frentes, inclusive muitos republicanos, que não questionavam a manutenção das colônias: “A pulsão nacionalista repousava na herança do passado”. Nacionalismo e colonialismo era uma questão antiga, que remonta ao século XIX. Acontece que o salazarismo dá outra dimensão ao patrimônio. Ele fará parte do Estado, ou como se dizia à época, “Do Minho ao Timor”. Essa visão de unidade possibilitava acreditar-se que as colônias estariam integradas, fugindo do padrão metrópole-colônia. Dessa forma, o regime não chegou a afrontar a ordem internacional, 44 o que, em parte, explica a sua longevidade, mesmo depois da viragem democrática. Salazar, ao liderar este movimento, acabou por ser a síntese dos diversos projetos mal definidos que existiam no combate à República, principalmente aquela configurada sob a liderança do Partido Democrático. A propagação das suas “verdades eternas” contrastava com as incertezas que insistiam em derrubar um regime sem saber o que fazer depois. Enquanto os opositores do governo da primeira república não sabiam o que queriam, Salazar afirmava com toda a tranquilidade que lhe era peculiar: “Sei muito bem o que quero e para onde vou”. E no rol de suas certezas, Salazar oferecia a solução para um antigo problema: o saneamento das finanças. Muito do sucesso do salazarismo e da sua manutenção se deu por conta do equacionamento da crise financeira que assombrava o país. Se o país não era rico, também não estava na bancarrota, após Salazar assumir como ministro das Finanças. Mas sua visão da economia pressupunha uma visão política autoritária. O salazarismo não foi um movimento moderno propriamente dito. Foi uma modernidade conservadora, na medida em que fomentou a economia sem realmente proporcionar mudanças qualitativas e quantitativas na sociedade, a partir de uma competição dos mercados industriais e de uma modernização da economia rural. Em recente biografia de Salazar, o autor diz que Salazar, ao ser chamado para compor o governo da ditadura militar , em 1926, representava “uma seção potencialmente

44 PINTO, António Costa (coord). Portugal Contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.35. 29

importante da direita, um conservadorismo discreto e não militante que era muito mais numeroso pelo país do que o sufrágio eleitoral sugeria..45.”. Segundo Eduardo Lourenço, ensaísta português, Portugal não sofreu de crise de identidade nem nos seus piores momentos, como deveria ser, por exemplo, na perda das “províncias ultramarinas”. Isto porque, “nós pensamos saber quem somos por ter sido largamente quem fomos e pensarmos igualmente que nada ameaça a coesão e a consistência da realidade nacional que constituímos”46 . Dessa premissa, o autor conclui que não há crise de identidade. Há hiperidentidade. Uma hiperidentidade baseada no que foi, na tradição. Era tentando manter a tradição que ocorreram as transformações «regradas e limitadas» do Estado Novo. Eram pautadas nos valores como religião, nação e família. Aliás, a família era o pilar da sociedade para o salazarismo e não, o indivíduo. No discurso à União Operária de Coimbra, em 18 de março de 1928, intitulado «Duas Economias» recorrendo a uma solução das finanças baseadas em ajustes morais da sociedade portuguesa, Salazar diz que a reforma do espírito nacional passa pela família.

Pensa-se muitas vezes que o nível de vida operária depende apenas da taxa do salário; mas sabe-se que um operário norte-americano nem sempre consegue viver como um operário francês que recebia antes da guerra – e hoje muito menos – apenas metade do salário daquele. E isso, descontada a diferença do custo de vida, deve-se às qualidades de economia da mulher francesa.47

No entanto, o salazarismo não era só uma forma de chegar ao poder. Era mantê-lo. Por isso, a par dos ganhos políticos de estabilização da economia, Salazar precisava manter a oposição, interna e externa, sob controle. Ao lado de medidas repressivas, como a reforma da Polícia Política, da implantação do Tribunal Militar, da reforma da Censura e dos campos de concentração de presos políticos como o Tarrafal, o salazarismo se concentrou na depuração do espírito da sociedade portuguesa, recebendo nessa etapa a colaboração de alguns dos representantes da direita radical. Dedicaram-se com afinco ao programa do professor doutor e de legitimar cada ação sua perante a sociedade, através da publicação de seus discursos à nação, de concursos, de comemorações e exposições, dos movimentos juvenis e da escola. Aliás, a escola foi o aparelho que mais atenção teve por parte do regime. Ao propagar os valores da tradição, da família e da nação, a escola foi reformada para reforçar o

45 MENESES, Filipe Ribeiro de. Salazar – Biografia Política. Lisboa: Dom Quixote, 2012, p.53.

46 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p.10.

47 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p. 53. 30

nacionalismo, a tradição, a família e a religião. E por isso, a Mocidade Portuguesa também esteve sobre os cuidados do Ministério da Educação. Talvez, tenha sido a parte do corporativismo que deu certo, pelo menos por um tempo, concebido na sua visão organicista do Estado. Mas nenhuma propaganda foi tão mobilizadora quanto as que reclamavam o resgate da tradição, como, por exemplo, nos «concursos da aldeia mais portuguesa de Portugal». Mexiam com um imaginário do Portugal verdadeiro, do homem simples, mas feliz. Segundo Costa Pinto, os salazaristas se enquadram no que ele considera como «conservadores autoritários», e que diferiam das outras duas correntes que disputavam a hegemonia na ditadura: os republicanos conservadores e os exaltados da direita radical. As alianças entre os grupos foram se modificando conforme as necessidades do momento e a migração de pessoas entre os grupos era constante. O salazarismo foi hábil em afastar do poder, primeiro, a corrente republicana conservadora que, entre outros pontos, defendia a volta do parlamento e dos partidos e, depois, afastou os radicais de direita. Isto não quer dizer que não vamos encontrar no governo representante das duas correntes, como foi o caso da propaganda. De qualquer modo, no que diz respeito aos radicais com cariz fascizante, foram relegados a “instituições secundárias do regime”. Não se pode esquecer que um dos maiores credores do salazarismo representava a ala dos republicanos conservadores, muito deles desejosos de retornar à república parlamentar e partidária. Essa figura de proa era o presidente da República, Óscar Carmona, que servia de interlocutor entre ele e o exército, que apoiava Salazar, ao mesmo tempo em que desconfiava dele, criando-lhe várias situações embaraçosas. Foi o ponto de equilíbrio que o regime precisava para se manter. Depois de Carmona, esta situação irá mudar e o salazarismo terá de criar novas condições para unir os descontentes, principalmente dentro do exército. A manutenção do Império Português será o maior dos argumentos para a unidade nacional. O colonialismo, através do nacionalismo que ressurge com a guerra, se torna a nova pedra angular do regime, fato que substituiu a ideia corporativa dos anos iniciais. Mas, as transformações internas e externas, mais o insucesso dessa batalha inglória no ultramar irão fragilizar o regime. No pós-guerra, mudam-se as palavras, mas não mudam os valores. No tempo em que Salazar esteve no poder, foi fiel aos seus princípios: “a negação da democracia, dos partidos; um corporativismo reativo à mudança econômica e social; o integrismo colonial”.48 Quanto à natureza do regime, se foi ou não fascista, há uma enorme discussão historiográfica, que foge ao objetivo desta dissertação. No entanto, é interessante destacar

48 PINTO, António Costa (coord). Portugal contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 2004. p.37. 31

duas posições importantes no meio acadêmico e que servirão de base para a análise da memória do salazarismo pelos entrevistados49. Segundo António Costa Pinto, não há dúvidas da influência do fascismo nas ditaduras das décadas de 20 e 30. No caso português, “o salazarismo sofreu uma influência decisiva do fascismo italiano, mas não conheceu nem a especificidade do momento, nem a viragem mais totalizante da segunda metade dos anos trinta”50. Para ele, os modelos fascistas foram alterados e adaptados à realidade portuguesa. Não conheceu um Partido Fascista nem um movimento de massa. De acordo com o autor, teve, por parte do catolicismo tradicionalista e a Igreja, “a limitação à fascitização do regime.”51 Já para o historiador Luís Reis Torgal52, essa análise deve-se ao fato de o investigador ver o regime pelo prisma da autocaracterização do salazarismo, que o tempo todo tentou se diferenciar do fascismo ou do totalitarismo.

Um dos mais altos objetivos do « 28 de Maio» e da evolução por ele determinada na política e no direito é o restabelecimento do Estado nacional e autoritário [...]. É isto exato; e, todavia é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário [...] Tal Estado seria essencialmente pagão, incompatível por natureza com o gênio da nossa civilização cristã, [...]. A Constituição aprovada pelo plebiscito popular repele, como inconciliável com os seus objetivos, tudo o que direta ou indiretamente proviesse desse sistema totalitário.53

E por não ter um movimento de massa, entre outros motivos, Costa Pinto o definiu como «profundamente conservador». Torgal analisa que as conclusões do autor devem-se mais pela sua pesquisa ao Nacional – Sindicalismo do que pelo estudo do Estado Novo e do Salazarismo e de suas origens. Já Torgal define o Estado Novo como um regime «fascista». Mas explica: “Trata-se de um «fascismo à portuguesa», no sentido em que se organiza segundo as nossas próprias características e os nossos condicionalismo (...)”54.Na obra referida desse historiador, encontraremos uma análise da geração de Salazar e dos salazaristas, do pertencimento desses numa geração que compartilha a ideia de um Novo Estado, fato que irá contribuir para a posterior construção do Estado Novo. Entre eles, muitos

49 É impossível fazer um levantamento desta discussão. Os dois investigadores, além de produzirem importantes obras sobre o Estado Novo, foram utilizados como referenciais para exemplificar o debate.

50 PINTO, op. cit.44.

51 Ibidem.

52 TORGAL, Luís Reis. Estado Novo e Fascismo, In: TORGAL, Luís Reis. Estados novos, estado Novo: ensaios de História Política e Cultural. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, v.1. Neste ensaio há uma análise mais aprofundada sobre o tema. p. 727-734

53 TORGAL, apud MESQUITA, p. 100-101.

54 TORGAL, Luís Reis. Estado Novo e Fascismo, In: TORGAL, Luís Reis. Estados Novos, Estado Novo: ensaios de História Política e Cultural. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. v.1. p. 364. 32

pertenceram ao Integralismo Lusitano, cultuavam declaradamente Mussolini e defendiam a viragem para a extrema-direita. Debate interminável, o fato é que a presença dos elementos fascistas, não só presente na composição da elite salazarista, como no Estado Novo, mais forte nas décadas de 30 e 40, é um fato incontestável. O salazarismo, pela sua característica duradoura, permitiu a experiência de viver na «Era do Totalitarismo» e na «Era da Democracia», como lembra Costa Pinto. No primeiro momento, a sua maior preocupação era a consolidação do regime. No segundo momento, face aos novos ventos, era a sua manutenção. E de certa forma conseguiu. Sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, às tentativas de golpes, que nunca cessaram. Retirou a Ditadura do seu vocabulário, optando por uma definição mais receptiva, «democracia orgânica». Sobreviveu ao susto da candidatura do general Humberto Delgado, à reorganização da oposição, com os Militares do «28 de Maio», um PCP mais coeso e, até a volta de Rolão Preto. Apesar de parecer o fim, o salazarismo resiste. Em clima de Guerra Fria, não é de se espantar que uma Ditadura, que sempre lutou contra o comunismo fique ao lado do maior símbolo da Democracia, os EUA. Essa aliança não é tão natural e amigável como podemos pensar, mas foi hábil se pesarmos os ganhos políticos que foram angariados com a aproximação. Aproximação que termina com a guerra colonial e a administração Kennedy, retirando-lhe apoio na ONU. Por isso, querendo ou não, é impossível desconsiderar o peso da guerra para um salazarismo frágil na sua estrutura. O Salazarismo investiu tudo o que podia e não podia nessa guerra. A vitória seria a sua vitória. Além de defender Portugal da guerra , o salazarismo iria assegurar o patrimônio colonial. Porém, a guerra durou muito mais do que acreditavam os salazaristas e, até mesmo, Salazar, já que ele morreu bem antes do seu fim. Em agonia, o salazarismo teve de enfrentar, além das oposições de rotina, a insatisfação de grupos católicos ligados à JEC e JUC. Porém, com o afastamento de Salazar, iniciou-se um período de esperança, para aqueles que queriam ver o regime liberalizando-se, conhecido como «primavera marcelista» (1968-1969). Após algumas medidas em favor dessa ideia, o que era esperança se transformou em medo por parte dos salazaristas. Por outro lado, os portugueses que esperavam pela mudança, logo perceberam que não seria o Dr. Marcelo Caetano a fazê-la, ao menos, de forma radical. O fim da antiga estrutura do Estado Novo estava em curso, mas ainda não havia chegado o momento da queda. Houve pressão de todos os lados, mas Marcelo Caetano não abriu mão da guerra. E, paradoxalmente, o motivo que permitiu uma sobrevida ao regime, foi o mesmo que o tirou de cena.55

55 PINTO, António Costa (coord). Portugal Contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.50. 33

2 AS ENTREVISTAS

2.1 Os bastidores da pesquisa: uma pequena reflexão

A apreensão da elaboração das entrevistas e a seleção dos entrevistados transformaram-se em um primeiro alerta, coloquemos assim, de como é delicado falar sobre o salazarismo. A tarefa é árdua, mas os meandros revelaram surpresas agradáveis ao deslocarem, por alguns momentos, o objetivo central, que era a elaboração das entrevistas, a princípio uma tarefa mais prática, para a reflexão de questões metodológicas e epistemológicas, posta a priori por um dos entrevistados. Afirmações como “vale a pena entrevistar alguém de direita, embora não acredite que eles tenham alguma coisa a dizer”, é, sem dúvida nenhuma, uma base para refletirmos não só a própria prática, quando o entrevistador atribui ao entrevistado o poder de “revelar” a história, como sobre a memória do entrevistado acerca de quem tem ou não com o que contribuir para o “conhecimento verdadeiro da história”, embora reconheça poder ser válido entrevistá-los. Isto é o que muitos estudiosos sobre o assunto, como Alistair Thompon,56 procuram esclarecer quando o assunto é história oral. Nos primórdios do uso das fontes orais, os historiadores saíram de uma posição meramente arquivística para atribuir às mesmas, o poder de descobrir a realidade histórica. Ao longo do tempo, paralelamente às outras possibilidades de entendimento da metodologia, desenvolve-se outra que é a de levar em consideração “os muitos níveis de memória individual e a pluralidade de versões do passado, fornecidos por diferentes interlocutores”57. Assim, as distorções da memória podem ser esclarecedoras do modo como o passado, não só é lembrado, como é esquecido e assim, com estas duas possibilidades interagindo, sobrevivendo, vão ganhando status de história por diferentes grupos sociais. É preciso esclarecer que, não conhecendo ninguém em Portugal, que teria pouco tempo e, que, principalmente, estava indo com recursos limitados; foi necessário recorrer aos conhecidos de uma pessoa da família. E assim fiz. Pedi ao prof. Machado da Costa, um dos entrevistados, que falasse com algumas pessoas se haveria a possibilidade de eles me

56 Ver VOLDMAN, Danièle. “Definições e usos”, In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. P.65-91.

57 Ibidem, p.67 34

concederem uma entrevista. De pronto ele aceitou, bem como seus amigos, o que muito me ajudou. Mas, se a princípio, isto era um facilitador, foi se mostrando ao longo dos dias um problema, já que o entrevistado demonstrava um grande interesse em que eu falasse com quem “sofreu” com o regime, ou historicamente falando, quem se opôs. Isto revela uma necessidade, que não é só de pessoas comuns e militantes, mas também de muitos historiadores, de se registrar somente uma determinada memória, que acaba por favorecer a exclusão ou depreciação de outra, que é a dos que não têm nada a dizer, no caso, os apoiadores de Salazar, já que eles “só vão dizer bem”. O que, em parte, pode ser uma verdade. O que não é verdade, ou, pelo menos, não é considerado neste trabalho, é que outras pessoas (sejam elas apoiantes ou neutros) não tenham nada a dizer. Se já sabemos que o silêncio pode ser revelador, o fato é que emudecer as pessoas, além de ser uma atitude pouco democrática, não nos explica nada sobre o que foram esses “années troubles”58 português. Claro que não se está julgando a atitude do entrevistado, uma vez que, no senso comum, se estamos a defender uma democracia, é comum que falemos o que foi a ditadura, no que ela implicou e o que aconteceu com aqueles que a ela se opuseram para reafirmar o que se quer construir, o presente, demarcando negativamente o passado. É perfeitamente compreensível. Além disso, mesmo achando que não teriam nada a dizer, nosso entrevistado reconheceu a validade de ouvir o que eles tinham a dizer. O fato é que, na transmissão de uma memória, muitas vezes, já oferecemos uma conclusão do que a memória processou. É como se não oferecêssemos a laranja para cortar e já déssemos o sumo pronto. Mas, em relação à escrita da história, isto não é possível. Ouvir o outro é acolher o que ele tem a dizer, seja “falar bem do regime”, seja “falar mal”. Porque o que está em questão é a possibilidade de refletir sobre como as pessoas entendiam como deveria ser estruturada a sociedade, seus valores, suas crenças. Isto é muito diferente de defender o regime. Ampliando essa possibilidade, incluímos os que se consideravam neutros por serem apolíticos. Na lista dos entrevistados, acabamos por conseguir muitos dos “neutros”, e da oposição. Os salazaristas, estes não conseguimos, com exceção de um, jornalista e editor, que se prontificou a conversar comigo e permitiu que eu gravasse a entrevista, já que o outro, com quem conversei seis horas seguidas no shopping Colombo, em pleno dia de jogo do , não permitiu um segundo de gravação. Destes, falarei em outra oportunidade. Neste momento, o que nos interessa é falar sobre os entrevistados, os quais eu

58 LABORIE, Pierre. Les Français dês années troubles: de La guerra d’ Espagne à La libération. Paris: Édition Du Seuil, 2001.

35

denominei, a princípio, de “neutros” e, para ampliar a reflexão, dois entrevistados que participaram da oposição, cada um a sua maneira. E por que neutros? Bem, porque não se encaixavam, aparentemente, dentro de uma classificação que divide a sociedade entre os que se opuseram e os que apoiaram. Ao falar de neutros, quero enfatizar o não posicionamento público perante o regime, como figuras destacadas na sociedade como Mário Soares, António Sérgio, ou no caso dos entrevistados, o economista Sérgio Ribeiro ou José Esteves. Pessoas que tiveram uma participação aberta contra o regime ou que, sob a condição de sigilo das diretrizes do partido comunista, agiram secretamente, mas agiram. Ou aqueles que, igualmente, se destacaram no apoio ao regime. De qualquer forma, para efeitos de estudo, os neutros seriam aqueles que, no dizer de Salazar, viveram habitualmente as suas vidas. Isto envolve uma multiplicidade de condições impossíveis de se desdobrar neste momento. Por isso, dividi os entrevistados e, neste trabalho, falarei de pessoas com um cotidiano comum: o médico Dr. Armando Lacerda, os professores, Machado da Costa, Maria da Conceição Roque, João Roque, o comandante da Marinha Mercante João Pina, a enfermeira Hermínia Pina e a assistente social Maria José. Por fim, analisaremos três entrevistados que criticaram o regime de forma bem diferente: Duarte Nuno, José Esteves e Sérgio Ribeiro.

2.2 Os entrevistados

Como foi dito, o professor Machado da Costa foi, tal como um anfitrião, quem me apresentou aos entrevistados, por serem amigos próximos dele ou conhecidos. Muitos não estão nesta lista por questão de tempo, já que a transcrição se mostrou muito mais demorada do que havia previsto inicialmente. De qualquer forma, identificamos entre os selecionados, o compartilhamento da mesma rede social, privilegiada, o que não significa dinheiro, mas sim acesso a uma cultura que não era para todos os cidadãos portugueses, o que também não significa dizer que todos a tiveram por meios fáceis, pois a trajetória individual mostrou que alguns tiveram um caminho difícil para chegar à maturidade com o mínimo de conforto e oportunidade, como o caso da Maria da Conceição Roque, do José Esteves e de Sérgio Ribeiro. Digo isto para evitar simplificações ou conclusões precipitadas acerca desta sociabilidade privilegiada. Nesse grupo, três dos entrevistados foram alunos de Machado da Costa: Armando Lacerda, nas aulas de Educação Física do colégio Moderno, formando-se em medicina; João Roque e sua esposa, Maria da Conceição Roque, no antigo INEF, onde concluíram o curso 36

para professores de Educação Física. Já Hermínia, funcionária pública, foi apresentada por seu pai que era amigo do professor Machado, tal como ao seu marido, João Pina, comandante da Marinha Mercante, tornando-se amigos de ambos. Maria José, também funcionária pública, assistente social na Casa dos Pescadores, era esposa de um grande amigo dele, João Coutinho, amigo de longa data, do ISEF e em estágio no mesmo Liceu. E o Duarte Nuno Oliveira, um antigo amigo do Liceu. Dos dez entrevistados, sete nasceram antes de 1940. Foram eles: José Esteves, (1919), Machado da Costa (1933), Duarte Nuno (1935), Sérgio Ribeiro (1935), João Pina (1937), Maria José (1938) e Hermínia (1939). Os outros três entrevistados nasceram pós 1940: João Roque e Armando Lacerda em 1942 e Maria da Conceição Roque em 1947, a mais nova do grupo e, também, a mais distante do que podemos considerar os “anos dourados” do Estado Novo. De qualquer forma, somente José Esteves viveu, realmente, o período áureo do regime. A maioria tem, na verdade, o relato de familiares de um passado próximo, quer seja sobre a queda da Primeira República e a instalação da Ditadura, quer seja sobre a fundação do Estado Novo.

2.3 Entre a história e a memória Os anos que antecederam o Estado Novo59.

2.3.1 Primeira República

Nesse período, que vai de 1910 a 1926, somente José Esteves era nascido. Todavia, quase todos os depoimentos convergem para uma imagem negativa do que foi a Primeira República, seja por relatos dos pais ou familiares, seja por leituras dos livros. E, essa imagem, que sobreviveu por todo o Estado Novo e permanece nos dias de hoje, diz respeito, na maioria dos relatos, aos tiros e tumultos que aconteciam nas ruas. Para eles, o que sobrou da Primeira República foram os “barulhos”. Com, exceção de Sérgio Ribeiro, todos os outros entrevistados fizeram referência ao passado republicano como um momento de muitos conflitos e arruaças. Conflitos no poder, pelas instabilidades governamentais e nas ruas, pelas disputas dos grupos de oposição, que, na visão da época, significava perturbar a ordem e a paz da sociedade portuguesa. Parece que o que está em questão não é o motivo pelo

59 O que será apresentado aqui sobre a história e, em outros momentos da dissertação, são sínteses que tem somente o objetivo de situar o leitor nas discussões sobre as memórias dos entrevistados, uma vez que é inviável recontar a história do Estado Novo, além de não ser o objetivo. 37

qual se brigava ou que grupos estariam mais ou menos aptos a assumir o comando. Não. Nada disso foi lembrado ou questionado. Somente os “barulhos”. Armando Lacerda, por exemplo, diz que seu pai, para mostrar-lhe que ser contra o regime não fazia sentido, dizia que ele não tinha noção do que foi Portugal na Primeira República. “Vocês não viveram o período imediato à implantação da República”. E, para esclarecer o que foi o período, conta sobre o clima de insegurança que era sentido por ele, com tiros e ameaças. É baseado nessas histórias que o entrevistado atribui a adesão ao salazarismo à experiência política anterior. “Por isso, acredito que as pessoas que viveram estas coisas eram, de alguma maneira, pró-salazaristas”. Machado da Costa diz que a família não falava em política e que era “bastante conservadora, como toda família naquele tempo”. Mas acredita que a mãe era salazarista. Também atribui à “bagunça que era a Primeira República”, o motivo dessa simpatia pelo novo governante. E que isto se reforçou depois, devido ao fato de Portugal não ter ido à segunda Guerra, lembrando que houve uma homenagem das mães portuguesas a Salazar. Hermínia lembra que o maior mérito de Salazar, além de regularizar os cofres do Estado, foi pôr o país em ordem. “Porque aqui, antes do Salazar, era um pandemônio”. Contam-nos histórias de tiros que se ouviam pelas ruas de Lisboa. “Chamavam os barulhos”, explica a entrevistada. Duarte Nuno também reforça esta ideia quando diz que os pais contavam-lhe histórias sobre o período anterior ao Estado Novo “e parece que aquilo era bomba todos os dias, de um lado no outro, e Salazar tinha posto uma certa paz e, portanto, a isso deviam todos os portugueses, essa paz”. Uma brecha importante para vislumbrarmos uma opinião diferenciada sobre a Primeira República, embora não dita, foi o depoimento de João Pina. Da época, tem a lembrança de duas versões diferentes. Uma está bem definida, pois diz que “dentro dos lábios femininos”, a história da Primeira República eram os tiros e as guerras e as ameaças na rua, referindo-se ao que a avó contava. Quanto ao tio, diz que, por este ser contra o regime, falar dessas coisas lhe irritava. Mas, se realmente o tio não comentava o que pensava sobre essa época ou comentava e o entrevistado não quis falar, não é possível saber. O interessante é que o tio escrevia para o jornal A Batalha e participou do movimento anarco-sindicalista. Movimento este que, na sua maior parte, foi responsável pelas “arruaças” às quais a avó se referia. O que podemos supor, e somente isso, é que é bem provável que o tio tivesse uma visão de “arruaça” diferente da mãe, no caso, a avó do entrevistado. 38

Sérgio Ribeiro refuta a imagem da Primeira República como caótica, por esta ser “uma imagem dada pelos detentores do sistema e do regime para justificar a radicalização”. Diferentemente dos outros entrevistados e, sem se pautar no que dizia ou não seu pai, ele evidencia o que está implícito na palavra imagem, ligada muitas vezes à manipulação. Como não se referiu aos movimentos e instabilidades, não é possível saber se ele os nega. Entretanto, está claro que, ainda que os considere, o mais importante a ser destacado foi o uso político pelos conservadores para legitimar a radicalização. Seguindo a lógica de sua explicação inicial sobre o surgimento do regime, que para ele foi fascista, este foi “fruto da própria crise do capitalismo que, buscando soluções para sobreviver, encontra na radicalização a sua salvação; que é para ele, a salvaguarda dos interesses de alguns.” Isto tudo, com apoio da Igreja, que também se radicaliza. Não obstante, ao contrário dos pais ou familiares dos outros entrevistados, todos oriundos de família conservadora, seu pai nunca aderiu ao fascismo, embora ele não fosse politizado. Sérgio Ribeiro disse que o pai não falou sobre o período republicano: “Sobre isto não tinha uma impressão muito formada. Tinha uma impressão muito afetiva porque ele era republicano porque era amigo do Artur”.60 Esse republicanismo “afetivo” também nos leva a outro ponto que é relevante. Sua crítica, pelo depoimento de seu filho, refere-se mais à monarquia do que ao salazarismo. Questionava a legitimidade da representação com inspiração divina. Sendo contra esse tipo de representação, recebeu com mais simpatia a República. Outro fato que reforça essa adesão é o seu anticlericalismo, de forma que ele ficasse mais suscetível ao sistema político que rejeita a influência da Igreja nas decisões políticas. Não podemos esquecer que a República Portuguesa foi extremamente anticlerical, causando revolta em uns, mas conquistando a adesão de outros. Em relação ao Estado Novo, Sérgio diz que seu pai o rejeitava por ser contra imposições, como é possível constatar quando ele fala sobre a sua não participação na Mocidade Portuguesa, no próximo tema. José Esteves foi o único dos entrevistados com o depoimento transcrito que já tinha nascido antes do Estado Novo. Tinha sete anos quando o golpe de Maio de 1926 aconteceu. Mas, nem por isso seu depoimento foi diferente. Sobre a Primeira República, diz que esta “primeira experiência republicana” foi uma vergonha. E, a vergonha era tamanha, que “até

60 Este amigo chamava-se Artur Oliveira Santos. Foi administrador do Concelho de Ourém, amigo da família. Escritor e jornalista, ele defendia o republicanismo, fundando e colaborando com jornais na propaganda republicana. Sua casa é hoje um Museu, por ter abrigado os três videntes, Jacinta, Lúcia e Francisco entre os dias 13 e 15 de agosto de 1917. Segundo o site e o entrevistado, esta intervenção, ao levá-los para sua casa, foi para entender melhor o que estava acontecendo. Mas sua atitude tem análises controversas. Informações obtidas do site http:/www.museu.cm-ourem.pt 39

indivíduos da Seara Nova” apoiavam a intervenção das forças armadas, o que acabou acontecendo, pondo fim ao que ele chamou de “ arremedo de democracia”. O interessante no seu depoimento, é que, para ele, Salazar “desviou os objetivos da ditadura”. Disse que “era a opinião de toda a gente” que a ditadura era necessária para organizar a política da Primeira República, “inclusive dos democratas.” Seja como for, em 1910 a monarquia foi derrubada por um grupo mais ou menos heterogêneo de republicanos das forças armadas, elementos civis e militares, republicanos radicais e anarquistas, com uma expressiva participação dos carbonários. Portugal era um mundo rural, com uma economia atrasada e com “70% da população com mais de sete anos”, analfabeta, em 1911. Seu maior patrimônio era o Império Colonial, motivo, aliás, de união da sociedade portuguesa, perante o Ultimatum Inglês de 1890, que segundo Costa Pinto, consolida o nacionalismo português.61 Uma República parlamentarista, com limitações dos poderes do Presidente da República, de sufrágio limitado, em que reinava o domínio do Partido Democrático, que tinha no seu alicerce uma base assimétrica, com compromissos entre “jacobinos urbanos” e “notáveis de província”, o que lhe conferia vitórias, mas não, estabilidade.62 E esta instabilidade não é só pelos compromissos internos, mas principalmente perante as investidas da oposição. Uma oposição que não era legitimada pelo princípio liberal, posto em prática por democracias modernas, no que se refere à garantia da representatividade pelo voto porque as eleições eram marcadas por fraudes e compromissos anteriores às mesmas. “A instabilidade eleitoral e a instabilidade governamental caracterizaram todo o período republicano. Entre 1910 e 1926, Portugal teve 45 governos de diversos tipos: 17 de um só partido, 3 militares e 21 coligações.”63 Certamente que outras questões reforçavam as instabilidades no período: a relação entre Estado e Igreja e a campanha anticlerical ligada aos republicanos, que promoveu uma aliança conservadora e autoritária como se pode perceber na atuação do Partido de Centro Católico; a aliança com integralistas e uma parcela da direita radical civil que foi, progressivamente, apresentando um programa político alternativo ao vigente; a esperança dos monárquicos em restaurar o regime ou, pelo menos, ter uma influência maior para a defesa dos seus interesses; o resultado negativo da participação de Portugal na Primeira Guerra

61 PINTO, António Costa. Portugal Contemporâneo: uma introdução. In: PINTO, António Costa (coord.) Portugal Contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.12.

62 Ibidem, p.12.

63 Ibidem, p. 18. 40

Mundial, defendida pelo Partido Democrático; as clivagens partidárias após a guerra e as mobilizações sociais que levavam às ruas as insatisfações de grupos sindicais e setores do funcionalismo público e do comércio, além da radicalização dos republicanos conservadores que entenderam que a aliança com militares64 iria resgatar os ideais republicanos, depurando- os da desordem instalada. Sem considerar todos esses aspectos, há que se pensar em um fator, que no entender desta dissertação, é muito importante. Todos esses conflitos pelos quais passou a República, e que têm, certamente como base, fatores políticos, temos, no que se refere aos republicanos, o fato de terem sido incapazes de “auto e hetero-regulação do funcionamento do sistema institucional do republicanismo liberal”65, incapazes de “fazer frente à oligarquia financeira”66. E, por outro lado, a “eficaz reorganização do campo conservador”67; além dos fatores culturais, mais precisamente centrados na elites, como “descrença na classe político dominante”68, “vazio ideológico da generalidade das elites políticas dos partidos republicanos”69, “ diluição das opções ideológicas e dos ideais éticos em mesquinhas lutas pelo poder”70, e um “ controle da grande imprensa por parte das correntes conservadoras hostis ao Partido Democrático”71. Há, ainda, um fator cultural que neste trabalho é fundamental para a análise.

O alastramento da síndrome ditatorial na opinião pública ( cujos efectivos contornos político- ideológicos eram, aliás, vagamente definidos). A alternativa ditatorial era vista como panacéia para todos os males e a única alternativa à hegemonia do Partido Democrático.72

Se resgatarmos a última questão posta por José Esteves, tendo o entrevistado lutado por ideais democráticos e se anunciar como um democrata e pacifista, é possível que essa

64 Os motivos da “ intervenção militar na política republicana e a persistência de facções organizadas no interior das Forças Armadas precede o período do pós guerra. A principal diferença entre as intervenções do pré-Guerra e o golpe de 1926 é, talvez, a multiplicação de tensões corporativas entre o exército como instituição e o governo, primeiro, e a sua crescente unidade na intervenção na arena política, depois” Ver mais sobre o assunto em PINTO, op.cit.,págs. 26 e 27.

65 REIS, António. O fim da Primeira República. ROSAS, Fernando ; ROLLO, Maria Fernanda. (coords.) In: História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2009, p.578.

66 Ibidem, p.578.

67 Ibidem, p.578.

68 Ibidem, p.579.

69 Ibidem, p.579.

70 Ibidem, p.579.

71Ibidem, p. 580.

72 Ibidem, p.580. 41

concordância em instaurar a ditadura fosse devido ao fato de esta ser compreendida por muitos como um período de transição73. Daí ele dizer que Salazar desviou os objetivos da ditadura. Mas, porque era necessário, na visão de alguns republicanos à época, um governo forte que pusesse alguma ordem. É importante ressaltar que a democracia também não era entendida como é hoje, ou, mais precisamente, após a segunda guerra mundial. Por isso, talvez, fosse melhor referir-se aos republicanos democratas com cautela, tendo em vista que o ideal de democracia variava conforme os grupos que a defendiam. Não podemos esquecer algumas das limitações que sofreram quase todos os regimes republicanos quando da sua implantação, mantendo, portanto, fortes compromissos oligárquicos e com propostas democráticas bem restritas. Além do mais, tratava-se de uma “democracia aristocrática, de elites, que dirigem, educando o povo para a democracia”.74 Povo este, em sua maioria, pobre e analfabeto, organizado por estruturas mentais aristocráticas e clericais.75 E porque não dizer, com uma mentalidade profundamente conservadora. O que, naturalmente, não diz respeito a todos, mas a uma grande parte da sociedade portuguesa,76 permeável às soluções autoritárias, não só para o golpe que culminou com a derrocada da Primeira República, mas à renovação que estas propostas foram sofrendo ao longo dos anos em que a ditadura passou de uma fase de transição, para uma fase de ser, ela mesma, o regime. Ou, como no dizer de Salazar:

As ditaduras não me parecem ser hoje parêntesis dum regime, mas elas próprias um regime, senão perfeitamente constituído, um regime em formação. Terão inteiramente perdido o seu tempo os que voltarem atrás, como talvez o percam os que nelas supuserem a suma sabedoria política. 77

Em 28 de maio de 1926, através de um golpe militar, encerrava-se a breve e intensa República portuguesa. Palco de muitas instabilidades, golpes e mortes de representantes do Governo, de uma agitação constante nas ruas, conhecidos como «barulhos», a Primeira

73 É preciso dizer que a compreensão da ditadura como uma necessidade, ainda que transitória, não era partilhada por todos. Houve quem se opusesse à instauração da ditadura desde o início. O fato a ser ressaltado aqui não é dizer que todos estavam a favor da ditadura, seja qual for o significado em questão, mas que aparece em muitos depoimentos a ideia de que muitos eram a favor da sua intervenção. Duradoura ou transitória. O que revela em si uma “fé” nesta forma de governar autoritariamente para se resolver os conflitos e uma descrença no processo democrático, propagandeado por seus opositores, mas confirmados aos olhos de muitos cidadãos portugueses ao lembrarem-se dos barulhos.

74 FARINHA, Luís. A Caminho do 28 de Maio. (coords.) ROSAS, Fernando ; ROLLO, Maria Fernanda. In: História da Primeira República Portuguesa, 2009, p.540.

75Ibidem, p.540.

76 Este conservadorismo não necessariamente aparece na forma autoritária.

77 TORGAL, Luis Reis. Salazar, os Estados Novos e o Estado Novo. In: Estados Novos, Estado Novo. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, p. 155, v. 1. 42

República Portuguesa padece dos males de muitas outras repúblicas no seu percurso inicial: uma grande instabilidade partidária, com programas políticos pouco claros, golpes que culminam em disputas intermináveis que acabam por enfraquecê-la, desmoralizando o regime perante a sociedade e viabilizando a reação dos seus oposicionistas. Contando com uma elite conservadora fortalecida pelos motivos supracitados e por uma crise constante na economia, os militares assumem o controle do Governo, com vistas a reorganizar o país do “caos e da desordem” imposta pela República. Ao que parece, a opção pela via conservadora, apelando para a ditadura, era naturalizada por muitos portugueses. Para uma conclusão parcial, destacamos que, ao mesmo tempo em que todos os entrevistados tenham se referido aos pais ou familiares como apolíticos, eles revelam certo posicionamento político dos pais. Ou de adesão, por serem conservadores, ou de crítica ao regime, por serem “republicanos”, “Anglófilos” ou “anarquistas”. Isto demonstra que não eram tão apolíticos assim. É possível discutir o nível desse posicionamento no sentido de avaliar o grau de politização de cada um deles. Mas não há dúvida de que todos eles dispunham de uma ideia do que era bom ou ruim para eles, politicamente. Aceitar ou não aceitar o regime implica em uma avaliação do que cada um estaria disposto a ganhar e a perder e o quanto cada uma dessas opções significava para eles.

2.4 Mocidade portuguesa e a Educação Física

Sem dúvida nenhuma, a Mocidade Portuguesa78 foi uma das instituições do regime que teve e, ainda tem um grande interesse por parte da sociedade e dos estudiosos do regime. Talvez, por ser comparada com a Juventude Hitlerista, pela sua marca ideológica fundamentada no desenvolvimento da raça79, na ordem e que muitos atribuem uma componente alienante para explicar o seu projeto. Tudo isto pode ser considerado. Entretanto, ao tomarmos consciência das intenções do salazarismo ao criar a organização e suas consequências, os depoimentos abriram um espaço para refletir quanto à importância da mesma, vista na perspectiva não dos documentos produzidos pela organização, mas na

78 A Mocidade Portuguesa foi instituída em 1936, através do decreto – lei no 26. 611 em 19 de maio de 1936, com o fito de abranger “toda a juventude, escolar ou não; e tem por fim estimular o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do caráter e a devoção à Pátria, no sentido da ordem, no gosto da disciplina e no culto do dever militar”. Artigo 1o do Regulamento da Organização Nacional da Mocidade Portuguesa.

79 Sobre a questão da raça em Portugal, ela não adquiriu o sentido de eugenia. Era mais uma questão de saúde e higiene. No Decreto- Lei n0 26.611, no Regimento da Junta Nacional de Educação, §2o À sub-secção Educação Física e pré-militar, compete essencialmente: 10o” Promover tudo quanto concorrer para aumentar o vigor da raça portuguesa.” 43

memória de alguns portugueses. O suscitar de algumas questões pode ser interessante para compreendermos melhor a ditadura salazarista. No depoimento de João Pina, ele diz que, inicialmente, houve resistência da família com relação a sua participação na Mocidade Portuguesa, mas quando confrontado com a possibilidade de repetir o ano, decidiu participar. De qualquer forma, não foi algo que o deixasse revoltado ou contrariado. Seu depoimento leva a crer que sua participação foi um cumprimento de uma obrigação, onde o sentido negativo era mais sentido pelo tio, que dizia “É! Estas coisas não são boas pra você”, do que por ele próprio. Além do mais, passou rápido porque no quinto ano não tinha mais essas tarefas de marchar e usar fardas e tudo isso que ele recorda ser chamado de “fantochadas”. Ele lembra, com alguma animação, de ter participado do desporto, no remo, concluindo que, quanto a participar da Mocidade Portuguesa, “nunca senti opressão nenhuma.” Armando Lacerda participou da Mocidade Portuguesa, mas só no ensino primário e por um ano só. Desfilou uma única vez e se lembra de fazer a saudação romana, à qual ele se refere como saudação nazi80. “A Mocidade Portuguesa, fui uma vez ao desfile, na , que se fazia na altura. Era em dezembro, precisamente era o aniversário da Revolução contra os espanhóis em 1640, em que havia um desfile da Mocidade Portuguesa que, então, eu tive de ir com aquele cinto com “S” de Salazar e de camisinha verde. Fiz desfile e foi a única vez". Ao que parece, essa participação não teve impacto para uma possível adesão ao regime Também não prosseguiu nas aulas de canto coral, optando pelo futebol. E lembra-se de livrar-se logo das atividades na quarta feira, dia da Mocidade Portuguesa, não sabendo mais o motivo, embora diga que não era mais obrigatório. Machado da Costa diz que só começou a participar no Liceu, já que, na escola primária, não havia instalações para as atividades. As aulas de Canto Coral também faziam parte, com “canções que nos incentivavam a achar que Portugal era o maior país do mundo ( ...) que era o país das descobertas, que não sei o quê (...) e nós ficávamos convencidos que aquilo é que era verdade”. Marchou somente uma vez, mas isto não chegou a incomodá-lo, pois diz que não tinham noção do que estavam fazendo. Para ele, como para muitos,

80 No artigo 16o do Regulamento, op. Cit, diz que “a M.P. adota a saudação Romana como sinal de subordinação hierárquica e patriótica solidariedade”. 44

“aquilo era normal”. “(...) Depois que soube que se me inscrevesse para praticar desporto, estava dispensado (...), eu me inscrevi no voleibol. Nunca tinha ouvido falar em Voleibol (...) e comecei a jogar o voleibol de tal maneira que cheguei à seleção nacional de voleibol (...) como, aliás, muitos (...) que fizeram desporto no meu tempo, começaram todos na Mocidade Portuguesa”...) E também se lembra de fazer a saudação romana, à qual se refere como nazi. Lembra do “S” no cinto e diz que era como se fosse gado. “(...) cópia da juventude Hitleriana. Camisa verde como os fascistas de Mussolini, à qual pertenciam todos os jovens e criancinhas que estudavam, quer dizer, entravam na Mocidade Portuguesa, que tinha a função de adormecer politicamente a juventude. E conseguiu, porque os jovens gostavam de atividades desportivas. A Mocidade Portuguesa proporcionava atividades desportivas, algumas que os mais pobres nunca podiam sonhar: equitação, vela. Não havia hipótese nenhuma de um pobrezinho e, haviam muitos nessa altura, sonhar que podiam fazer vela ou equitação e a Mocidade Portuguesa dava-lhes estas possibilidades, não é? Do Desporto”. Maria José disse que sua maior queixa não tem nada a ver com a proposta ideológica da Mocidade, mas quanto a sua personalidade, muito fechada, que lhe colocava numa situação de constrangimento naquele tipo de convivência, que era solicitado ao fazer as atividades da Mocidade. Diz, inclusive, que era visto como uma obrigação, que fazia parte e reconhecia que poderia lhe ser útil. “Face às minhas condições sociais, ainda era capaz de me trazer algumas vantagens, porque me dava o mínimo de oportunidade.” Hermínia também participou da Mocidade Portuguesa (Feminina) e diz que gostava. Ia aos sábados para as aulas de Formação Feminina. “Gostávamos. E, as nossas criancinhas eram tão lavadinhas, que nós adorávamos. Pra nós, Salazar era um Deus Salazar, era um Deus. Eu ainda me lembro que pra mim Salazar era um Deus!”. Relembra o que aprendiam nas aulas. “Aprendíamos a coser, a tratar de um bebê, puericultura81, fazíamos ginástica. Éramos obrigadas a fazer ginástica e tínhamos esses trabalhos assim. Aprendíamos tudo”.

81 Decreto- Lei n0 26.611, §2o secção, op.cit, 1o “O organizar e rever o plano da higiene e educação corporal da Mocidade Portuguesa nas suas relações com a família, a escola e a Nação, o qual começará pelo desenvolvimento da puericultura nas escolas de freqüência feminina”. 45

E, ao mostrar a foto dos meninos fazendo aulas da Mocidade Portuguesa em Serpa, diz “é tudo como os jovens de Hitler. Era cópia igual”. Conceição Roque participou, em África, da Mocidade Portuguesa. Marchava, bem como seu irmão. “Meu irmão fazia marchas aos sábados, tinha que marchar. Isso lá em África. Nós tínhamos Mocidade Portuguesa." (...) "Dia da Raça, a Raça Portuguesa, não sei se existe isso, nós todos somos uma mistura, né? Tem mesmo qualquer coisa de fascizante”, reflete mais tarde. “Aquilo, pra mim, era uma festa e qualquer coisa agradável, porque era desporto, havia quem acampasse (...). Eu, pela Mocidade Portuguesa, praticava desporto, basquete e atletismo e, pra mim, era alegria isso. Pra mim era uma coisa boa, a Mocidade Portuguesa não tinha conotação nenhuma.” Para ela, era uma festa. Gostava de usar a farda. “Era gira”. Duarte Nuno foi quem mais se aproximou da hipótese levantada a partir deste trabalho sobre a Mocidade Portuguesa. " Logo se ia pro Liceu, Mocidade Portuguesa, com uma farda e tal, o “S” de Salazar no cinto etc e coisa e tal (ri) . Claro que no princípio, eu julgo que à Mocidade Portuguesa aderiu bastante gente como os miúdos, até porque tinha mais atividades desportivas, gratuitas, desde o voleibol. Portanto, era um processo dos miúdos se encontrarem e não ligavam muito. Digamos, eu julgo, que o lado teórico do fascismo na Mocidade Portuguesa era mínimo, a não ser os jovens dirigentes, os comandantes dos castelos e tal, porque eram um pouco mais informados, eram militares, paramilitares, porque sem armas, entretanto.” João Roque se lembra da farda e dos dias reservados à Mocidade Portuguesa. Um ponto interessante é o que ele diz sobre a Mocidade. “Uma muito boa, é que o 25 de abril acabou com ela, que eram os campeonatos.(...) A outra não era tão boa porque quero dizer isto porque não quero perder essa marcação(...). A Mocidade Portuguesa era uma cópia da Mocidade Hitleriana. Não havia a saudação Nazi, mas marchava-se (....). Aquilo era uma preparação para a tropa, vamos chamar assim.” E, depois, entre a tropa e a Mocidade Portuguesa(...) havia uma coisa para os mais velhotes que eram as milícias.” Mesmo descrevendo-a assim, como não gostava de marchar, foi para o desporto. Fazia parte da equipe de Handebol. Não lembra de fazer a saudação “nazi”, mas diz que fazia continência. Lembra-se do hino e do “S”de Salazar. Sérgio Ribeiro não participou da Mocidade Portuguesa porque seu pai foi contra. Mas não por questões ideológicas e, sim, numa atitude que ele classificou de ‘oposição por 46

inércia’, pois seu pai era contra imposições. Segundo o entrevistado, isto fez com que ele, ‘naturalmente’, também fosse contra as fardas. Pelos textos legais, ao que parece, a obrigatoriedade do uso da farda não era tão radical assim. O Regulamento sobre isto diz: “É facultativo o uso do uniforme fora de actos oficiais, mas sempre em condições de não ser desprestigiado”82. Não obstante, isto não o impediu ter sofrido com essa situação porque todos os seus amigos estavam integrados na organização e ele, não. Além disso, ele não tinha mais o que dizer para não usar a farda, o que transformava a situação num eterno “adiamento’, provocando um incômodo. Analisemos, agora, algumas questões. A Mocidade Feminina está embasada em uma visão da mulher à qual o regime não deixava dúvidas. No Decreto-Lei no 27.084, de 14 de Outubro de 1936, o governo promoveu a Reforma do Ensino Liceal, outra preocupação do regime. É interessante verificar que esse decreto indica uma preocupação em assinalar um diálogo com a sociedade, quando diz ser a reforma, uma resposta “aos técnicos da pedagogia e à opinião pública, apesar do ‘carinho reformador’ que o governo dedica ao ensino Liceal. E, antes de tudo, inicia com uma espécie de esclarecimento sobre as reformas. Um dos pontos a esclarecer é a questão da educação feminina no Liceu. Ele diz: “E, visando à missão natural da mulher, nos Liceus de frequência exclusivamente feminina, oferecer-se-á, às aulas que não se destinam a estudos superiores, um curso de educação familiar, premente necessidade de uma época em que tantos males poderão ser evitados pela habilitação das mães e pelo próprio prestígio do lar”. Claro que, tudo isto, visando contribuir para a “formação da mentalidade corporativa”. Atualmente, isso pode nos causar estranheza por tanto tempo de luta contra essa naturalização do papel doméstico da mulher. Mas, em 1936, isto não era de forma alguma estranho à mentalidade da sociedade portuguesa. Gostavam as filhas e gostava a família, porque era em nome da família que se fazia isso , A Bem da Nação. E não é difícil encontrarmos, hoje em dia, pessoas defendendo as mulheres em casa, para cuidar dos filhos, porque depois que elas entraram no mercado de trabalho é que “desandou”tudo, em relação à educação. Isto em 2012! O fato é que, ainda que isto gerasse um consenso em parte da população, porque nunca falamos de um todo, isto não impediu que as mulheres que entrevistamos continuassem seus estudos, trabalhando e cuidando dos seus filhos e maridos. Pode até ser que isto as tenha ajudado a se afastarem dos assuntos políticos, já que sempre se colocam

82 Regulamento, op.cit, artigo 13o. 47

como “apolíticas”. Mas, veremos, no próximo tópico, que suas vivências pessoais possibilitaram outras experiências que puderam minorar o impacto de uma possível “alienação”. Se isto justifica a adesão, não explica por si só a continuidade do regime. O que se pretende com esses depoimentos é mostrar que havia uma diferença entre o que pretendia o regime com a Mocidade Portuguesa e o que esses portugueses percebiam da organização. Isto é menos para causar alguma polêmica com o fato de se considerar ou não a instituição como fascista e, mais, para compreender como as pessoas que participaram da Mocidade Portuguesa entendiam as suas atividades, bem como ainda veem hoje, em alguns casos. Ou seja, não é questão de quantificar se o lado teórico do fascismo na Mocidade era mínimo, mas de analisar qualitativamente o que ela significava para quem participava de suas atividades, sem, entretanto, considerar os que a integravam, como filiados nas suas atividades, para percorrerem a hierarquia proposta pela organização. Estes, como bem destacou Duarte Nuno, certamente estão dentro do enquadramento ideológico proposto, embora acredita-se que cada um recebe o projeto de forma muito particular e, generalizações são sempre deficientes para explicar adesões e comportamentos. Desse modo, sugerimos outra perspectiva83 da Mocidade Portuguesa, que se aproxima, em parte, de outras aqui analisadas84 para interpretarmos o conjunto das relações entre a sociedade e o salazarismo. E essa perspectiva está relacionada com a forma com que a Educação Física foi sendo orientada ao longo do Estado Novo, precisamente, o desporto. De acordo com os depoimentos, a Mocidade Portuguesa pode ser compreendida como uma organização para alienar a Juventude; como uma oportunidade na vida, de se socializar e fazer atividades circum-escolares agradáveis, embora com importância moderada e, em alguns casos, servindo de inspiração para seguir uma profissão, no caso do desporto. Ressaltemos que muitos esportistas e profissionais de Educação Física iniciaram suas atividades na Mocidade, participando dos campeonatos, como lembrou Machado da Costa. Mas, apesar desse reconhecimento, isto não implicou seguir a organização na sua forma ideológica. Sérgio Ribeiro lembra que alguns amigos que dela fizerem parte, depois, ‘se libertaram’.

83 Ver FERREIRA, António Gomes. O ensino da Educação Física em Portugal durante o Estado Novo. In: http://www.ced.ufsc.br/nucleos/nup/perspectiva.html

84 Ana Luiza Falcão de Souza defendeu sua dissertação sobre a mocidade Portuguesa na UERJ em 2010, com o título, A organização da mocidade portuguesa: entre rupturas e permanências (1943-1974). A autora analisa os elementos da organização, na sua fase inicial, destacando a proximidade com as organizações fascistas, que promoviam uma identificação com a sociedade, pelo apelo a questões que lhes eram comuns, gerando um consenso. Mas, também, suas diferenciações, suas rupturas, ao longo da sua existência.

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Os depoimentos revelam que alguns souberam aproveitar as brechas da própria organização para escapar daquilo que eles consideravam “maçantes”, e que eram exatamente as atividades com conotações mais militarizadas. O caso do desporto é significativo, já que era uma atividade com menos visibilidade dentro do programa da Mocidade Portuguesa embora inserido desde o início e o próprio Salazar defendia a ideia de um desporto saudável85. Entretanto, ele foi adquirindo importância exatamente pelo interesse que despertava nos alunos; sem esquecer, é claro, a luta de docentes para torná-lo mais significativo dentro do quadro de atividades e fora dos parâmetros defendidos pelo regime, embora nem sempre com ruptura total. E, o que era uma crítica à forma que o regime tratava o desporto, bem como os clubes, acabou por se tornar uma crítica ao regime, no âmbito educativo, seja ao nível metodológico, seja na formação dos professores, principalmente ao nível da Educação Física no primário. Por fim, embora tenham participado86 da Mocidade Portuguesa, parece que esse fato pouco influenciou na forma como eles foram se relacionando com o regime, posteriormente, na vida adulta. A Mocidade foi uma passagem obrigatória, prazerosa ou não, que trazia benefícios os quais souberam aproveitar, não sem rejeitar aquilo que não era desejado. Ou, ao menos, contornando as situações desagradáveis. E, se a opinião dos pais ou família contava para que os filhos entrassem na Mocidade, o contrário também era verdadeiro, como foi possível perceber pelo depoimento de Sérgio Ribeiro. Seja como for, a ação da organização sobre a juventude poderá explicar a consolidação do regime, através do consenso. Todavia é possível relativizar a sua importância na manutenção do regime por uma inculcação ideológica forjada nos tempos iniciais na juventude. Isso, porque sua ação mais intensa foi nos períodos iniciais, principalmente antes do Eixo começar a dar sinais de que iria perder. Além do fato de que sua ação focou os Liceus, prioritariamente. Isto, num país onde a educação era deficiente, e que muitos não continuavam os estudos, fez com que muita gente ficasse de fora de uma atuação contínua.

85 Embora alguns estudos digam que o desporto não tenha tanta importância para o regime, vejamos o que a Lei no 1.941, de 11/04/1936 que institui a Junta Nacional de Educação , diz a respeito do desporto, integrado na secção educação moral e física, decomposta em duas subseções: educação moral e cívica e educação física e pré-militar. 30 “Promover a orientação dos desportos e dos jogos desportivos, no sentido da boa ordem anátomo-fisiológica, do espírito de fraternidade e da leal competição, bem como a cooperação das respectivas organizações na obra educativa do Estado”e 50 “Promover o desenvolvimento de todas as espécies de desporto, particularmente o exercício ao ar livre, bem como estimular a criação de uma ampla rede de ginásios, piscinas naturais ou artificiais e campos de jogos em todo o país.” É preciso esclarecer que a Junta é “um órgão técnico e consultivo que funciona junto do Ministro da Educação Nacional e tem por fim o estudo dos problemas relativos à formação do caráter, ao ensino e à cultura do cidadão português, a par do desenvolvimento integral da sua capacidade física”, op. Cit.

86 A participação era obrigatória aos portugueses, estudantes ou não, desde os sete aos catorze anos, bem como os que freqüentam o 1o ciclo dos liceus, tanto do ensino oficial como particular, e voluntariamente, os restantes até a data do alistamento militar”. Artigo 5o, do Regulamento da Organização , op. cit. 49

Assim como na universidade, onde a Mocidade não estava presente, deixando os jovens livres para entrar em contato com outras ideologias. E, finalmente, porque muitas das atividades propostas pela Mocidade eram desenvolvidas pelos professores de Educação Física, que dentro de sua formação, traziam visões diferenciadas, não só dos métodos, mas em relação ao regime. Como vimos, alguns entrevistados tiveram uma experiência com a Educação Física mais próxima do que aquela ministrada na escola ou na Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina, ou porque estavam ligados ao desporto e suas atividades associativas, como o Sérgio Ribeiro, ou porque foram professores desta disciplina, como no caso dos professores Machado da Costa, José Esteves, João Roque e Maria da Conceição, formados no INEF- Instituto Nacional de Educação Física. Sobre este último, teceremos um breve comentário acerca de sua criação. Este Instituto foi formado a partir de uma proposta de Lei de 1939 e tinha por finalidade,

Instituir um centro de estudos científicos e de prática racional da educação física, como instrumento de unidade didática e de orientação geral, e com finalidade profissional de formar os respectivos agentes de ensino, oficial ou particular, tendo-se em vista o revigoramento da raça no plano da educação integral e os interesses da Pátria.87

E, para o melhor desenvolvimento da Educação Física, na visão do regime, esta ficaria subordinada à Mocidade Portuguesa. Com isso, passaria a ser subscrita por esta importante organização da juventude criada no tempo áureo do regime. Acontece que, embora o regime resistisse, após a Segunda Guerra Mundial, devido às mudanças impostas pela vitória das democracias e, com a necessidade de adequar o país em um projeto de desenvolvimento econômico, que não pode prescindir do desenvolvimento humano, algumas diretrizes da Educação Nacional foram revistas, aumentando a pressão para reconfiguração do desporto na disciplina, bem como a Educação Física como um todo, inclusive com novas concepções. O mais interessante é que, segundo os estudos considerados por esta dissertação 88, tais mudanças vieram a partir de movimentos de professores que se graduaram ou que lecionavam no INEF, instituição com grandes referências salazaristas, como se lembra Machado da Costa. Quanto às mudanças, estas diziam respeito a:

A abertura ao desporto, o alargamento da duração do curso para quatro anos, a introdução de abordagens do campo das Ciências Sociais, a renovação do corpo docente e dirigente, o

87FERREIRA, António Gomes. O ensino da educação física em Portugal durante o estado novo. Disponível em: http:// WWW.ced.ufsc.br/núcleos/nup/perspectiva.html, p.204, apud Crespo, 1991, p.17.

88 Como o trabalho supracitado e o de António Franco, citado a seguir. 50

crescente interesse pelas relações internacionais, a criação de centros de estudo mostram que se estava diante de um espírito inovador, por isso, bastante aberto a reflexões e as propostas vindas do estrangeiro.89

Muitas dessas transformações foram caras a nomes destacados nessa área, com a valorização do psicologismo e o pedagogismo, bem como o desportivismo, principalmente nas décadas de 50 e 60. Não obstante, a ruptura com o antigo modelo ainda demorou muito para acontecer. Toda essa história nos fornece a possibilidade de refletir sobre o aparecimento de uma discussão crescente nas décadas de 50, 60 e 70, sobre a situação do ensino em Portugal, o que acaba por discutir o regime, já que a educação não está desligada de um tipo de concepção e projeto político. A força desses discursos, nos períodos citados, nos mostra que, apesar dos esforços dos conservadores do regime, graças a ações práticas de alguns professores, militantes confessos contra o regime ou não, e, incentivadores das novas correntes pedagógicas; o desporto ia ganhando destaque e, com ele, nessa área, o regime ia se modificando. A exigência de novas técnicas, equiparação salarial, mudança na carga horária, valorização na formação dos professores e, principalmente, o reconhecimento da precariedade da Educação Física no ensino primário, foram alguns dos fatores impulsionadores para questionar a forma pela qual o regime concebia a Educação Física: visões mecanicistas, visando somente à ordem e à disciplina, com forte coloração moral, para uma visão mais integrada do ser humano, privilegiando a ação, onde o homem é senhor dos próprios movimentos. Nesse ponto, o INEF é destacado como uma instituição que reflete a situação da época, composta de pessoas defensoras dos antigos pressupostos e de pessoas que vão incorporando as novas concepções nas propostas de reformas do ensino de Educação Física, principalmente no ensino primário. Destacamos então, a atuação do entrevistado José Esteves, que, além de ter sido ex-aluno da primeira turma de graduação do INEF, foi, em 1958, subdiretor desse Instituto, período que ele relata em sua biografia, de alguma tranquilidade, com o diretor e alunos, “mas não com alguns professores mais comprometidos, politicamente, com o regime de então”.90 E, nesse cargo, além de criticar publicamente a situação do desporto e a instituição à qual o INEF também estava subordinado, a Direção Geral dos Desportos, Esteves ajuda a promover os “Cursos de Férias de 1958”; o que foi uma forma de

89 FERREIRA,op.cit, p.208

90ESTEVES, José. O que fizestes da vida, José?Lisboa: Multinova,2001, p.172. 51

incentivar a formação de professores, a qual cabia a esse Instituto, mas que era considerada débil.91 Outros movimentos em torno da qualificação profissional e valorização da Educação Física têm continuidade, ao logo dos anos. A tese de doutoramento de António Franco cita, como exemplo desse momento de renovação no INEF, o período a partir de 1963, quando este começa a se desligar “daqueles vínculos ideológicos e iniciando um novo e fértil percurso técnico-pedagógico”92. E, também, como resultado dos trabalhos na década de 60, mais precisamente, a monção enviada ao Secretariado da Reforma, pelos professores da área, a partir das célebres “14 sugestões do professor José Esteves”93, e que, dentre outras coisas, reforçam a solicitação já desejada, há muito tempo, da transformação do INEF, em Instituto Superior, o que de fato aconteceu, tornando-se ISEF- Instituto Superior de Educação Física, mas somente após o 25 de Abril94. Franco defendia que, muitas das novas orientações que iam surgindo para a revisão nos programas de formação dos docentes de Educação Física, poderiam ser consideradas como subversivas, por falarem abertamente contra a proposta oficial do ensino, ou, mais precisamente, “uma ruptura da ideologia pedagógica da Mocidade Portuguesa”:95 Como Franco diz, “é importante a libertação desta subordinação tecnicista. É a movimentação do aluno, que está em causa, principalmente na sua expressão lúdica e na intencionalidade que se opõe à clássica repetição automática de gestos que não eram vividos”.96 E essas mudanças de propostas eram compatíveis com as solicitações de muitos docentes em relação à Educação Física no ensino primário, deixado em segundo plano. Assim, o Instituto, que poderia ser considerado como aparelho ideológico do Estado97, acaba por ser ele mesmo, um veículo de transformação do regime, ainda que de

91 SANTOS, Arnaldo ; BRÁS, José. Biografia de José Esteves. Universidade Lusófona. Da forma que estava no site, não tem maiores referências, nem paginação. Disponível em:

92 SILVA, António Franco Pereira da. Os Programas de Educação Física do Ensino Primário em Portugal nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX: Contextos, conteúdos e Modelos de Implementação. Disponível em HTTP:// ndl.handle.net/10400.5/221 , página 183.

93 SILVA, António Franco Pereira da. Os Programas de Educação Física do Ensino Primário em Portugal nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX: Contextos, conteúdos e Modelos de Implementação. Disponível em HTTP:// ndl.handle.net/10400.5/221 , p. 174. Segundo Franco, “As 14 sugestões de José Esteves (...) resultam de um pedido do próprio Ministro [ José Viga Simão], na sequência do encontro entre os dois, motivado pela solicitação dum grupo de reputados diplomados de Educação Física para a reforma e integração urgentes do INEF na Direção Geral do Ensino Superior” , em nota.

94 Atualmente, Faculdade de Motricidade Humana, nome, aliás, criticado pó r José Esteves, em Esteves, op.cit, p. 292.

95 SILVA, op. cit., p.274.

96 Ibidem, p.272.

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forma lenta, dissimulada e difusa. Mesmo que, em tese, ela seja o locus que imprime o habitus98 na sociedade e garante à reprodução, o salazarismo que se queria totalitário, por almejar imprimir o controle total sobre as instituições e pessoas, como diz Ferreira,

Não conseguiu ser tão tentacular assim e por vários motivos: empenho dos profissionais em difundir suas novas idéias, crescimento do número de alunos, falta de equipamentos e docentes com formação diferenciada, entre outros.99

A transcrição seguinte, embora sendo longa, sintetiza a ideia que se quer ressaltar neste trabalho. Não se pode dizer que a evolução da Educação Física tenha somente seguido o rumo imprimido pela lógica do Estado Novo. Apesar das fortes convicções ideológicas que sustentavam o regime e da sua grande aposta nos instrumentos de controle da sociedade, houve aspectos que se impuseram e forçaram o curso ou que o Estado Novo entendeu incorporar para melhor se adaptar a tendências que se desenhavam na Europa desenvolvida. Por outro lado, há a considerar que, embora declaradamente conservador, anti-liberal e controlador, o regime salazarista absorveu elementos iconográficos e ideológicos republicanos e não resistiu à modernização cultural em resultado do desenvolvimento econômico a que forçosamente tinha de aderir. Isto significa que, embora o Estado Novo Português tivesse instrumentalizado a educação física com o objetivo de que ela seguisse os desígnios formativos do regime, partiu do pensamento e experiência anterior e veio a permitir no seio da principal instituição de formação de professores da especialidade ganhassem peso tendências pedagógicas que contrariavam as orientações inicialmente definidas.100

Essa tendência é exemplificada através da atuação de Esteves, que, ao longo dos seus anos, defendeu a ideia de “democratização cultural” e que acabou por influenciar seus escritos, com mais intensidade na década de 60 e ao longo da década posterior.

97 Segundo a noção de aparelho ideológico do Estado, Louis Althusser considera que a escola, dentre outras instituições, como a Igreja, a família, a cultura (como o esporte, por exemplo), são aparelhos ideológicos do Estado, pois permitem a imposição da ideologia dominante que garante a reprodução das condições materiais. No caso Português, estas condições materiais devem ser relativizadas, pois Portugal no início do Estado Novo é país, praticamente rural. Mas ainda assim, as diferenciações de classe estão presentes, dentro de uma ideologia conservadora. Para saber mais sobre o debate das teorias crítico-reprodutivistas que analisam a escola, ver ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Teorias crítico-reprodutivistas. In: Filosofia da Educação. São Paulo: Ed. Moderna,1993. pp.188-196.

98 Para alguns intelectuais, como Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, a escola reproduz as diferenças de classes através do habitus, que para eles significa ‘uma formação durável e transportável, isto é [um conjunto de] esquemas comuns de pensamento, de percepção, de apreciação e de ação”, A reprodução, p. 259, apud ARANHA, op. cit, p.189. A partir deste conceito, podemos compreender a Mocidade Portuguesa, juntamente com a Igreja, a Escola e outras instituições do regime, como uma organização que através de seu programa pedagógico, promove o habitus na juventude.

99 FERREIRA, António Gomes. O Ensino da Educação Física em Portugal durante o Estado Novo. Disponível em: http:// WWW.ced.ufsc.br/núcleos/nup/perspectiva.html, p.210.

100 FERREIRA, António Gomes. O Ensino da Educação Física em Portugal durante o Estado Novo. Disponível em: http:// WWW.ced.ufsc.br/núcleos/nup/perspectiva.html, p.202. 53

A partir do quadro101 acima, verificamos que a sua produção literária foi mais intensa nas décadas já referidas, tendo a Análise Crítica do Fenómeno Desportivo ocupado a maior parte de sua publicação em jornal, em 1960 e 1970, mantendo um nível alto frente às demais publicações, mas com um índice reduzido, na década seguinte. O jornal foi o seu maior veículo de divulgação. Sobre o fomento ao desporto, embora com publicação modesta, é um assunto que o acompanhou, desde o início de sua carreira. Ainda que não tenha publicado nada a respeito, nas décadas de 80 e 90, teve destaque significativo em jornais nas décadas anteriores, fazendo-se conhecer através de suas opiniões, sempre reiteradas em palestras ou conversas informais. Das publicações de livro, destacamos duas importantes obras. A primeira, em 1967, O Desporto e as estruturas sociais, publicada pela editora Prelo, do entrevistado Sérgio Ribeiro, admirador de seu trabalho e de suas ideias. Em suas memórias, ele diz que o livro não foi apreendido, mas que suas palestras foram acompanhadas pela polícia política, como constatou no seu processo individual depois do 25 de abril. A segunda, em 1974, O Racismo e o Desporto102. Na biografia sobre Esteves, os autores demonstraram que o professor vai formando seus conceitos à medida que se relaciona com o exercício da profissão, adotando, inclusive, a ginástica que era defendida no INEF, a ginástica educativa de Ling, depois questionando os

101 Este quadro foi reproduzido a partir do texto de SANTOS, Arnaldo ; BRÁS, José. Biografia de José Esteves. Universidade Lusófona. Disponível em: http://omeublog.grupolusofona.pt/p543/files/2010/05/Biografia-de-Jos%C3%A9-Esteves.pdf

102 Este livro está baseado na sua experiência em África, lugar onde lecionou e que relata encontrar um racismo bem demarcado no desporto. 54

métodos para o desporto. Além de professor, foi preparador físico da equipe de futebol da Associação Acadêmica de Coimbra e Basquetebol, em diferentes épocas. Na década de 50, participou de palestras e debates sobre diversos clubes, os quais ele criticava pela excessiva preocupação destes com o que ele entendia serem espetáculos, sem valorizar a função social do Desporto, como em 1958, quando esteve no INEF, à frente dos cursos de férias. Dentre os vários objetivos defendidos por ele, muitos visavam à formação dos docentes preparando-os para educar e, não somente, treinar. No jornal o “Século”, por exemplo, ele fala um pouco do que viria a ser publicado em 1967, no seu livro O Desporto e as Estruturas Sociais.103Vejamos o que diz no jornal, em 1966:

Se o desporto reflete as estruturas sociais, a via possível dele se tornar um meio de autêntica e generalizada valorização humana é a da promoção escolar. Ou, de outro modo: Só pela via escolar e pacífica, pelo acesso à cultura, pela comparticipação da riqueza, pela promoção integral, pela solidariedade social e internacional, será possível modificar as estruturas sociais, e nestas, o próprio desporto. O desporto não é melhor nem pior que a sociedade em que ele se realiza 104

No seu depoimento, Esteves fez questão de dizer que os professores de Educação Física eram obrigados105 a participar da Mocidade Portuguesa e que eles estavam na categoria profissional de “contratados permanentes”, o que significava ganhar menos e ter menos prestígio diante dos outros professores, considerados efetivos. Aliás, essa questão de efetivos e contratados será uma das frequentes discussões nos seus artigos, requerendo, como outros docentes, a valorização profissional pela equiparação salarial. Apesar disso, enfatiza que não eram instrutores da Mocidade e, sim, professores. “Éramos professores e tínhamos aquelas duas tardes destinadas à Mocidade Portuguesa e faziam parte do nosso trabalho. Mas , realmente, o que fazíamos eram atividades desportivas”. Portanto, mesmo sendo obrigados a trabalhar para a organização, o desporto era uma atividade em destaque entre os professores de Educação Física. Assim como Machado da Costa, que anos antes, quando menino, optou pelo desporto para fugir das atividades ligadas à marcha, quando professor, teve a sua vida profissional toda

103 ESTEVES, José. O que fizeste da vida, José? Lisboa: Multinova, 2001, p. 208.

104 Biografia de José Esteves Arnaldo Santos e José Brás, Universidade Lusófona. http://omeublog.grupolusofona.pt/p543/files/2010/05/Biografia-de-Jos%C3%A9-Esteves.pdf

105 Através do Decreto-Lei no 27. 084, de 14/10/1936, que diz respeito a Reforma do Ensino Liceal de 1936, o capítulo III, artigo 30 §4o “ Os professores de educação física e de canto coral prestarão à Mocidade Portuguesa o serviço que o Ministro determinar, o qual há computado, para todos os efeitos, como serviço doente.” E o § 50 diz “É obrigatório para todos os professores o serviço circum-escolar que o reitor, ouvido o conselho pedagógico e disciplinar, lhes distribuir designadamente sob a forma de conferências e excursões educativas para a Mocidade Portuguesa, dentro do programa estabelecido pelo Comissariado Nacional.” 55

ligada ao desporto.106Nem por isso, fugiu das aulas pré-militares no INEF, que, segundo ele, foram somente no primeiro ano107. De forma que, mesmo não sendo a orientação primeira do regime, embora também seja uma opção considerada nos programas da Mocidade, o desporto ia assumindo um lugar de destaque face ao exercício militar e às atividades de uma ginástica contestada, para integrar ginástica e desporto como um todo que se completa. É o que podemos concluir dos relatos, mas que parece ter sido um movimento mais abrangente108, pelo que é possível perceber através das pequenas reivindicações de professores e das modificações que surgiram no interior do INEF. Como, por exemplo, o grupo de estudos formado por professores que pertenciam à Inspecção da Educação Física. Grupo oficioso, que se reunia nas instalações da Inspecção e, que, no dizer de Silva, era “uma estratégia de ruptura da ideologia pedagógica da Mocidade Portuguesa”109, do qual participaram, entre outros professores, Melo Carvalho, Jorge Crespo e o próprio António Franco. E, exatamente porque o ensino da disciplina era criticado, entre outras coisas, no âmbito do ensino primário, e em face da demanda de alunos, as escolas tiveram de incorporar por causa das mudanças no pós - guerra, com reflexos no mundo do trabalho e na educação, é que foi criado o Curso de Instrutores do INEF, no qual poderiam ingressar os professores do ensino primário, a partir de 1964. Segundo Silva, esse curso teve uma procura grande pelos professores do ensino primário, fazendo com que tivesse um número de instrutores diplomados superiores aos professores formados. Foi este o curso que fez João Roque, ingressando no INEF, em 1967 para depois, voltar à África, não mais como militar, mas como professor. Bem como, Conceição, que também fez o mesmo curso, curiosamente, como bolsista da Mocidade Portuguesa em África, para onde regressa, para lá trabalhar e, depois, novamente, regressar a Lisboa, em definitivo, agora já casada e com uma filha, para fazer o curso de Professores de Educação Física. Apesar de terem seus diplomas gerados um uma época diferente dos outros dois entrevistados, com mais abertura para críticas, e recebendo

106 Só para citar algumas atividades, lecionou em escolas de formação de professores, nas cadeiras de Handebol e Voleibol, sendo o primeiro, objeto da sua tese de licenciatura no INEF, em 1958, treinador de handebol no Liceu D. João de Castro e no Colégio Moderno , bem como uma longa trajetória ligada a sua atividade como técnico desportivo de 1948 até 1989. Informações cedidas pelo entrevistado.

107 António Franco diz que “o primeiro plano de estudos do Instituto, mas não os seguintes, tem disciplinas como “Educação especial pré-militar(teórica), Exercícios de educação especial pré-militar ( prática), Organização corporativa e Ginástica de aplicação militar. Em SILVA, António Franco Pereira da. Os Programas de Educação Física do Ensino Primário em Portugal nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX: contextos, conteúdos e Modelos de Implantação. Disponível em http://ndl.handle.net/10400.5/221, p. 184.

108 Verificado a partir da tese de doutoramento de SILVA e do artigo de FERREIRA.

109 SILVA, António Franco Pereira da. Os Programas de Educação Física do Ensino Primário em Portugal nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX: contextos, conteúdos e Modelos de Implantação. Disponível em http://ndl.handle.net/10400.5/221, p. 274. 56

orientações pedagógicas diferentes da formação inicial dos primeiros, tanto João Roque como Conceição não indicaram nenhum tipo de envolvimento intelectual que questionasse o regime, ainda que no âmbito educacional. Apesar disso, tudo o que se lembra é que, quando foi professor em Angola, dizia que o ensino não era bom, “porque não incluía a maioria”. Não obstante, toda essa questão da Reforma do INEF, de conflito com o regime, salvo alguns casos específicos de perseguição de pessoas sem motivos políticos na época do PREC, ambos fizeram o curso do INEF sem se envolver nessas discussões que incorporavam, de alguma forma, uma crítica ao regime. No entanto, um dado que nos parece interessante é a relação da Conceição como desporto. Ela optou pelo desporto porque gostava dos jogos. Não fugiu às marchas e, tampouco, sofria por estar na Mocidade. Como foi dito, ela gostava muito e sente orgulho dessa época. Isso exemplifica outra questão que se relaciona com o que foi posto até agora. O desporto, que estava no programa da Mocidade, foi um espaço de disputa da juventude. A Mocidade oferecia um lugar onde o regime não era opressão e, sim, lazer, satisfação e a possibilidade de reconhecimento e futuro. Muitos ficaram gratos, concordaram com seus programas, aderiram ao sistema devotando-lhe suas vidas. Uns iam mais longe, participando de exercícios militares. Ou, como no caso da Conceição, representando o desporto em paradas e festas cívicas. Alguns, simplesmente, aproveitaram o que lhes era interessante. Outros, porém, desfrutaram das atividades desportivas para, também, servir como um espaço de oposição, independente da filiação partidária. O desporto agregava uma multiplicidade de portugueses com posições políticas as mais diversas possíveis, desde comunistas, democratas, católicos, salazaristas e “apolíticos”. No caso do Sérgio Ribeiro, seu depoimento acerca do desporto é significativo.

O desporto faz parte da vida e o fascismo caracterizou-se por ser um regime opressivo total. Por isso, a luta contra o fascismo foi, também, uma luta em todas as frentes, embora, naturalmente, com diferentes intensidades. No desporto, que o chamado Estado Novo quis instrumentalizar, ganhando a juventude, houve episódios muito interessantes. Em alguns participei, como praticante e dirigente. Dois exemplos: tentaram incluir os campeonatos de futebol, que as Associações de Estudantes organizavam, na Mocidade Portuguesa, instituição para – fascista, “oferecendo”o Estádio Universitário e equipamentos, o que era verdadeiro luxo. Não aceitamos e continuamos a organizar os nossos campeonatos a que chamamos de T.I.A ( torneios inter-associações), em terrenos pelados e equipamentos velhos e pobres. Segundo exemplo: tentaram dar grande força a um Centro Desportivo Universitário de Lisboa ( CDUL), como clube para universitários praticantes de todas as modalidades, mas as Associações de Estudantes lutaram e conseguiram que o CDUL tivesse, nas suas assembleias gerais, representantes seus e, a par da representação no desporto federado, organizasse as competições, os torneios inter universidades e faculdades, com as AE, como estruturas representativas. Foi uma luta vitoriosa, unitária, embora sempre com comunistas muito activos. Foi nessa luta, que escolhemos e elegemos o “nosso”professor José Esteves para ser candidato – e eleito- a presidente da direção. Dessas direcções, fiz parte como tesoureiro e, depois, como presidente, até não ser homologado ( no que seria o meu 3o mandato na direcção) pelo Ministério da Educação, por suspeitas de ligação ao Partido. Fui para a direcção da Federação Portuguesa de Atletismo como vice-presidente... No desporto, fui 57

sempre praticante ( sobretudo de futebol) e dirigente associativo, por gosto ( e benefício pessoal) e intervenção em frente de luta política.

Isto foi por volta de 1956/57, já participando da luta contra o Decreto - Lei 40900. Ele foi vice-presidente da Associação de Estudantes do ISCEF, delegado da R.I.A ( Reunião Inter Associações) e que reagia à tentativa de levar os campeonatos ao controle dos Centros Universitários da Mocidade Portuguesa. Foi nessa época, que ele disse perceber a existência de organizações clandestinas “a polarizar e conduzir as acções”. Segundo Sérgio, o resultado das pressões foi que o governo retrocedeu, arquivando a proposta, o que ele considera uma vitória da Associação. Quanto à questão da representatividade da CDUL com pessoas escolhidas pelos estudantes, ele diz, em seu livro, que o sucesso foi consequência de negociações, o que não deixa de ser relevante, considerando o regime vigente ser uma ditadura e que o entrevistado compreende como um regime ‘opressivo total’110. Além disso, é intrigante o fato que, apesar de o PCP estar ligado aos movimentos, o envolvimento na defesa de interesses diferentes do regime agregava pessoas com um movimento de oposição bem peculiar, como ele mesmo cita, o José Esteves.

José Esteves era um oposicionista ao fascismo, com conhecida posição de católico, mas que sempre colaborou, unitariamente, com outros oposicionistas de outras posições políticas. Por isso, sendo eu um comunista, sempre tivemos os dois a melhor colaboração, tendo um enorme respeito e admiração, com ele colaborando em iniciativas suas e da sua área, e sabendo poder contar com ele para colaborar com iniciativas nossas. Numa editora Prelo, de que fui sócio e responsável de várias colecções ( economia, política, teatro), o professor José Esteves teve a coordenação de uma coleção de História e Sociologia do Desporto, em que publicou livros seus, que são “clássicos”.111

E foi por ligações como estas que muitas das relações sociais no salazarismo iam se desenhando, permitindo uma oposição, às vezes direta, por vezes difusa, mas que envolvia visões muito particulares de como se posicionar face ao regime. No início da década de 60, Sérgio Ribeiro foi convidado para fazer parte de um projeto na Siderurgia Nacional, onde trabalhava, visando a um projeto para “organização e implementação de prática desportiva, com criação de espaços”, na idealizada “Cidade Desportiva”, na fábrica do Seixal. Lembrou- se, então, mais uma vez, de José Esteves. Assim, depois de solicitar a este ‘uns conselhos”, convidou Esteves para conversar com o tenente-coronel Figueiredo Gaspar. 112Ao longo do

110 Algumas informações foram complementadas através de seu livro. Ver em RIBEIRO, Sérgio. 50 anos de Economia e Militância. Lisboa: Ed.Avante!, 2008, p. 30.

111 Os depoimentos de Sérgio Ribeiro inseridos nesta parte, sobre o desporto, foram complementos enviados por correio eletrônico.

112 Apesar do movimento, o projeto não foi concretizado e Sérgio Ribeiro, logo em seguida, saiu da Siderurgia Nacional. 58

Estado Novo, outras vezes iriam se encontrar e debater sobre assuntos referentes ao desporto e ao “fascismo”. Em seu livro de memórias, José Esteves se lembra do acontecimento narrado por Sérgio Ribeiro, sob uma perspectiva diferente, sem citar o PCP, mas creditando à R.I.A a mudança dos acontecimentos. Ele diz que o CDUL foi uma ideia de Vasco Pinto de Magalhães, o primeiro diretor do CDUL. Primeiramente, Esteves foi convidado pelo Dr. Armando Rocha, em 1957, para ser candidato a diretor do CDUL, que o entrevistado declinou por alegar estar a direção ligada ao “situacionismo”. “Mas pouco tempo depois deste convite, surgem os dois representantes do INEF na R.I.A ( Reuniões Inter Associações, porque não lhes era possível outra designação, como Federação das Associações de Estudantes de Lisboa, por exemplo, ou qualquer outra, de correta expressividade...), e eram o António Souza Santos e o Eduardo Trigo. Os quais me dirigem, em nome daquela organização acadêmica, um novo convite, para a presidência de uma outra lista, exatamente a que a rebelde, e prestigiada, R.I.A tencionava apresentar, nessas primeiras eleições a efectuar no CDUL”113. O que podemos destacar dessas duas memórias, é o fato comum de ser o desporto um lugar de disputa pela juventude entre a “oposição” e a “situação”. E, essa disputa, para Sérgio Ribeiro, ‘foi uma luta vitoriosa, unitária, embora sempre com comunistas muito activos’. Para Esteves, além do esforço da ‘rebelde’ R.I.A, aparecem dois representantes do INEF a insistir na sua candidatura, o que faz com que acreditemos serem, ao menos, simpáticos à ‘oposição’. O que sinaliza mais uma vez, através do relato das memórias, a participação de pessoas no INEF alinhadas com outras propostas. E, chamamos atenção à referência a participações ou movimentos “unitários”, caracterizado por Sérgio Ribeiro, seja no movimento do CDUL, embora enfatize a participação dos comunistas, seja a referência à participação de José Esteves, que, como disse, sempre colaborou, “unitariamente’. Esses movimentos associativos em torno do desporto eram formados por uma nova geração de estudantes que, após a Segunda Guerra Mundial e, precisamente, a partir das eleições de Humberto Delgado, vivenciaram a luta em prol da democratização do regime ou da sua transformação. À medida que os espaços de crítica iam se ampliando e renovando, percebemos a adesão de jovens e adultos que aderiam à luta, ao mesmo tempo em que outros, ainda que testemunhando esses movimentos, afastavam-se de tudo o que dizia respeito à política.

113 ESTEVES, José. O que fizeste da vida, José? Lisboa: Multinova, 2001, p. 170. 59

Por último, destacamos a fragilidade progressiva da Mocidade Portuguesa nas décadas de 50 e 60, através de dois momentos: O primeiro pode ser ilustrado pelo II Congresso da Mocidade Portuguesa, em 1956. Para se adaptar aos novos tempos, esse Congresso propôs uma série de reformas que evidenciam a necessidade de reafirmação da organização. Não só ampliando a área de ação da Mocidade, como conquistando “democraticamente” a adesão, não pela obrigatoriedade, mas sugerindo a voluntariedade.114 Destacamos a ênfase que foi dada ao papel dos professores, atribuindo a eles o sucesso da organização. “A Contribuição dos professores, dirigentes naturais da Organização, é fator particularmente relevante para que os objetivos da Mocidade Portuguesa sejam atingidos”. 115Além disso, no Voto IV o pedido de alargamento da ação da organização para além da população escolar, o que revela que a ação da Mocidade, nas escolas, não estava sendo suficiente, na visão da organização, para levar o projeto do Estado Novo adiante. A reafirmação do INEF, como centro de formação de professores, também é significativo no quadro de mudanças desse período.

Importa muito que o Instituto Nacional de Educação Física venha a ser o indispensável grande centro de formação de dirigentes da Mocidade, e que nos cursos do Magistério Primário e nos estágios pedagógicos dos ensinos liceal e técnico se não permaneça no esquecimento desse importante aspecto de preparação de futuros professores (...). 116

Em segundo lugar, destacamos o “Manifesto dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa117, que critica a organização contra a crescente perda de autoridade da mesma sob as organizações da Juventude. Vê-se uma preocupação com as universidades, quando denunciam “a traição que os estudantes contestatários, definidos como agentes da subversão marxista’, conduzem, no interior das Universidades, contra os camaradas mortos e que ainda combatem nas Províncias do Ultramar”.118 Esta citação de Ana Luísa Falcão de Souza é interessante porque a autora analisa que a ideia de traição, não só revela, para nós, o descontentamento; bem como diz respeito “à incapacidade das gerações mais velhas em transmitir às novas gerações a mística revolucionária”. Ainda seguindo a ideia de traição, os

114 Boletim Geral do Ultramar, apud SOUZA, op. cit, p.123.

115 Ibidem, p.124.

116 Ibidem, p.124.

117 Este Manifesto foi publicado no semanário nacionalista “Agora” e, depois, no jornal “ Diário da Manhã, subscrito por 42 graduados. Isto foi no ano de 1966.

118 Boletim Geral do Ultramar, apud SOUZA, op. cit, p.145. 60

graduados tocam em outro ponto relevante para este trabalho. É que eles denunciam “a traição de todos os que atuam com espírito burguês e atitude apolítica”. 119 Esta última observação é incrível. Vejamos que, não só os entrevistados, olhando para o passado e para a atitude deles, se descrevem como apolíticos por não tomar posição; mas também pessoas ligadas ao regime acusam a sociedade que não se manifesta a favor do regime, como apolíticos. De forma que, ser apolítico, na experiência salazarista, servia para classificar quem aderia ao regime, bem como para os que se omitiram, seja no esforço da manutenção do mesmo, seja na luta ao lado da oposição. Deste tema, é possível concluir, parcialmente, que a Mocidade Portuguesa pode ter sido responsável pela adesão ao regime nos tempos iniciais, mas a sobrevivência do mesmo não se deu pela sua atuação contínua junto à juventude. Houve mudanças na organização120 e na sociedade que a impediram de atuar de forma totalitária e alienante ao longo dos seus trinta e oito anos. Vimos que a Educação Física representou essa disputa da juventude e dos professores em torno de propostas, concepções e ideais diferentes da organização, as quais, com o tempo, foram ajudando a minar o regime. E o mais importante. Foi uma área politizada, através das associações dos desportos, ampliando assim o debate político. Através dos movimentos citados, verificamos a consciência dessa fragilidade, a partir da organização. Além disso, ainda que em número reduzido, constatamos a permanência de grupos que exigiam, por conta própria, o recrudescimento com aqueles que entendiam como contestatários, que poderiam pôr em causa o regime, igualmente como aqueles que se calavam, sendo igualmente chamados de traidores.

2.4.1 Censura e polícia política

A Polícia Política do Estado Novo sofreu várias modificações ao longo da sua vigência, que trazem para o debate historiográfico algumas divergências quanto ao verdadeiro teor dessas mudanças, que, infelizmente, não serão abordadas no momento. Porém, para situar

119 Ibidem.

120 Em 1966, sete meses depois do Manifesto dos Graduados, o Ministério da Educação publica o Decreto – Lei 47311, reformando a Mocidade Portuguesa, “com intenção de ‘(...) adaptar melhor [a MP] às circunstâncias dos tempos presentes”. SOUZA, op. cit, p. 151. 61

o leitor de qual polícia estamos falando, faremos um breve parêntesis histórico para entendermos melhor essa instituição. A PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado, criada em 1945, foi a solução “cosmética” do regime para se adaptar aos novos ventos do mundo pós-guerra. Cosmética, porque, no dizer de Fernando Rosas, ela continuou a ser “a entidade verdadeiramente condutora de todo o processo de “justiça política”, desde a instrução dos processos à execução das penas, passando pelo julgamento dos réus que levava a tribunal.” 121Sua antecessora no Estado Novo foi a PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, sigla pouco lembrada pelos entrevistados. Como veremos, o termo PIDE é a referência maior na memória dos mesmos quando se fala em repressão, pois as consequências de suas ações não foram esquecidas, ainda que não vivenciada por alguns deles ou, até mesmo, minimizadas. Criada em 1933, a PVDE “resultou da fusão de polícias já, anteriormente, existentes durante a Primeira República Portuguesa (1910- 1926), nomeadamente no curto período do sidonismo”.122Período este em que a direita começa a refletir sobre as alternativas ao sistema liberal, então, em crise. Como diz Maria Alice Samara, sobre a polícia deste período,

Sidônio Pais foi o chefe carismático que procurou enquadrar as massas, esteticizando a política. Lançou as bases para a idéia de um partido nacional, fez a experiência “corporativa” como seu Senado. Os Sidonistas ensaiaram a utilidade da polícia política e clamaram pela intervenção da população ordeira para suster os vermelhos. O regime acentuou o desprestígio da instituição parlamentar, ensaiou a concentração de poderes e mostrou as vantagens da intervenção do Estado na economia.123

Ao ler esta citação, até parece que estamos falando do regime que se instalou após o golpe de 1926, alguns anos depois, e que é o tema desta pesquisa – o salazarismo. Isto porque, suas características não democráticas estavam a germinar antes mesmo da sua instalação, e, talvez, até por isso mesmo. O projeto que vai ganhando espaço é o da criação de um Estado instado por uma elite conservadora e aceito por parte da população como solução de segurança e estabilidade, ainda que para tal, fosse necessário aceitar a polícia política e a censura. Essa aceitação tem muito a ver com o fato de anunciar os seus alvos. É como se, tirando os inimigos selecionados, tudo estivesse na mais perfeita ordem. De forma que a escolha de inimigos políticos também fez parte da história da República Portuguesa. Desde o

121 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.32.

122MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes & PINTO, António Costa (orgs). O Corporativismo em português: estado, política e sociedade no salazarismo e no varguismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.307.

123 SAMARA, Maria Alice. Sidonismo e a restauração da República. Uma encruzilhada de paixões contraditórias. In: ROSAS, Fernando & ROLLO, Maria Fernanda (orgs). História da Primeira República Portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2009, pp. 371-395. 62

início da ditadura, por exemplo, a PVDE, até 1934, preocupava-se mais com o “reviralhismo e revolucionarismo republicanista”, já que o Partido Comunista Português era tido como uma organização “desorganizada” e que não oferecia grandes perigos ao regime. A partir dessa data, a PVDE foi especializando-se no PCP, e, dessa forma, este passou a ser o alvo principal durante todo o regime, só disputando atenções com a oposição de extrema esquerda e os movimentos de libertação na “guerra colonial”, a partir de 1961. Em 1969, já com Marcelo Caetano, a polícia política deixa de se chamar PIDE, e passa a ser DGS – Direção Geral de Segurança, também tutelada pelo Ministério do Interior, como as anteriores, mas tendo as colônias submetidas ao Ministério do Ultramar. Sem dúvida nenhuma, um dos aspectos que mais revela o caráter ditatorial do regime é a polícia política. E para ter uma ideia do que era a polícia mais conhecida pelos portugueses, a PIDE, tivemos como base o livro da historiadora portuguesa Irene Flunser Pimentel – A história da PIDE124, onde a mesma relata entre outros assuntos, a história da instituição, seus métodos, os objetivos, a história de casos de perseguidos políticos ou de pessoas ou grupos que se opunham ao regime salazarista. Nesse livro, ela destaca o que o historiador Fernando Rosas diz sobre esta polícia.

Ao considerar a polícia política portuguesa como um , no qual se articulavam, além da polícia política - < a espinha dorsal do sistema>-, as prisões especiais, os tribunais especiais, as medidas de segurança e o saneamento político, Fernando Rosas afirmou que se pode falar do Estado Novo como um regime de natureza claramente policial>125

Ou seja, a repressão policial é “um fator decisivo da conservação do Estado Novo e do silenciamento, intimidação e liquidação dos seus oponentes”126. Mas Rosas analisa também, que, ao lado da repressão policial, estariam atuando outras forças “menos visíveis, mas mais eficazes”127 que “apostavam na desmobilização cívica, no medo, na subserviência, na intimidação generalizada”128. Segundo o mesmo autor,

a censura, a Igreja católica, os caciques locais, os professores primários e liceais arregimentados etc, foram instrumentos de opressão e de intimidação que precederam e

124 O livro é o resultado da sua tese de doutoramento em História Contemporânea Institucional e Política, defendida em 2007, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, onde foi orientada pelo Prof. Doutor Fernando Rosas.

125 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.20.

126 Ibidem.

127 Ibidem.

128 Ibidem. 63

frequentemente dispensaram os bons ofícios da polícia política e da repressão política strictu sensu129.

E é baseado nesses princípios explicativos de coação e repressão, de um lado, e manipulação, do outro, que o silêncio e a adesão ao Estado Novo, dos portugueses que viveram o Estado Novo, são interpretados. Mas, como os entrevistados viam esta polícia política? Qual a memória que eles trazem desses anos de ditadura salazarista? Acompanhando os depoimentos, será possível levantar algumas questões, posteriormente analisadas. A ideia de manipulação fica bem forte, quando se faz referência à escola e à Igreja, entendidas teoricamente como aparelhos reprodutores do Estado. É impossível negar que, na proposta oficial, a ideia era realmente incutir, seja nos mais jovens, seja nos mais velhos, os princípios do Estado Novo, com a sua “política do Espírito”, como acabamos de ver no que se refere à Mocidade Portuguesa130. Por outro lado, parece que não eram ideias tão estranhas aos entrevistados, diante do que os pais lhes ensinavam. Ainda assim, a ideia de manipulação está presente em alguns depoimentos. Machado da Costa, por exemplo, comunga dessa opinião, quando diz que as aulas de canto coral exaltavam Portugal. Bem como os livros primários que passavam uma ideia do bom português. Hermínia também se lembra dos livros e confirma essa intenção do regime de evidenciar o povo português como pessoas simples, humildes. Por outro lado, a organização passava valores que não eram estranhos a sua formação, já que seu pai pertencia à Legião Portuguesa. A ideia de ter um líder que veio de família humilde, que a mulher é o núcleo da família e esta era sagrada, não diferia da mentalidade de muitas famílias à época. Hoje ela questiona isso, embora reconheça que alguns ensinamentos eram importantes e não faziam mal. Mas, para muitas dessas crianças, era um paradigma da sociedade. Para alguns pais, criticar os livros não fazia sentido, pois eram conservadores. Para os filhos, muito menos. Como diz Armando Lacerda “eram os pobretos e os alegretos”. Situação que, segundo Lacerda, depois acabou por incomodar os portugueses. Da mesma forma, é a influência da Igreja. O texto o “Papa e a Igreja Católica”131, mostrado pela Hermínia, mostra como a religião aparecia nos livros didáticos. E isso,

129 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.20.

130 Não só pelo o que propunha o decreto que criou a organização, como o esforço em atrair os jovens através de revistas especializadas para as faixas etárias, com propagandas. Ver, VIEIRA, Joaquim. Mocidade Portuguesa. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008.

131 Este texto, apesar de não estar anexo, foi citado na entrevista. Por e-mail, a entrevistada declarou desconhecer o texto. Por isso ele não estar no trabalho. Contudo, decidi não retirar a citação, porque por e-mail, o entrevistado João declarou que não se falava em religião na escola. Mas há um texto no livro de leituras da quarta classe, de 1960, cujo título é Necessidade da Religião. Este texto estará anexo. 64

também, não era um motivo de estranhamento num país onde a Igreja Católica tinha influência, de longa duração, sobre a formação da sua mentalidade . Como ela disse, hoje se questiona os papas e se diz que as pessoas entravam em conflito com a Igreja, mas, à época ninguém reclamava. Contudo, o fato é que não reclamar envolve muitas variáveis, como estar sim, de acordo com a Igreja, mas também, não querer entrar em conflito com a mesma. E isto são, somente, duas possibilidades entre muitas outras. Duarte Nuno é mais enfático na questão da manipulação em relação à Igreja, quando diz que esta manipulou a população em relação ao regime, como a questão de Fátima.

A igreja era, de facto, uma importante força , não era repressiva, evidentemente, mas fazia ligação com o próprio sistema fascista, não é? Eles estavam de acordo. O próprio cardeal era um homem que colaborava em todas as cenas com Salazar.132

Além da influência da Igreja, o entrevistado recorre à comparação com a Alemanha Nazi, para reforçar a ideia de manipulação. Diz que muitos portugueses foram envolvidos pelo desenvolvimento da Alemanha e que se desconhecia o que se fazia com os judeus. Reflete que esta situação era preparada para não se perceber o que realmente acontecia de fato, como a cineasta alemã que ele não lembrou o nome. “Aquela que fez um documentário dos jogos olímpicos.”133 Não obstante o reconhecimento da manipulação, ele faz uma observação que parece relevante: “Mas, julgo que muita gente foi enganada, penso eu. Mas, houve uma altura, em que as pessoas deixaram de ser enganadas. Foram enganados aqueles que queriam, né? Pois era evidente, né?” Este comentário nos interessa, na medida em que entendemos o Estado Novo como um processo que se transformou ao longo dos anos. E, junto com ele, muitos dos mecanismos que permitiram o consenso para a legitimidade e construção do regime em tempos iniciais, foram substituídos por outros, ou pelo regime, ou pela oposição, desconstruíndo paradigmas, confrontando as realidades que acabavam por invadir a vida daqueles que queriam delimitar uma distância do regime.

132 Não podemos esquecer a relação de Salazar com Manuel Gonçalves Cerejeira, ainda na “República dos Grilos”, quando eram professores da Universidade de Coimbra. Cerejeira, pouco tempo depois de Salazar tornar-se Presidente do Conselho de Ministros, foi nomeado Cardeal Patriarca de Lisboa.

133 A cineasta alemã da qual se refere Duarte Nuno é Leni Rienfenstahl. Há controvérsias se este filme, Olympia, (1938) é mesmo de propaganda Nazista. O mesmo não se pode dizer de outro filme seu “ O Triunfo da Vontade”. 65

Tal ideia de manipulação é compartilhada por Sérgio Ribeiro quando diz que, já na época, o pai lhe desvendou os milagres de Fátima, por explicações não religiosas. Entretanto, Sérgio diz, a respeito dos fenômenos, que, quando estes acontecem “numa massa de pessoas, de centenas, centenas ou milhares, que estão predispostas a encontrar nisso, causas sobrenaturais, isto causa prostração”. Ele reconhece que são ideias passadas para uma parte da população que está disposta a acreditar ou aceitar, porque compartilham esses valores, embora o que ele quer sinalizar é a manipulação em torno do evento. Lembrando que o fenômeno de Fátima aconteceu em 1917, mobilizando milhares de pessoas e sendo muito explorado pelos governantes da época. Portanto, onze anos antes de Salazar assumir como Ministro das Finanças da já instalada ditadura em 1926. Quanto à relação da Igreja com o Estado, não há dúvidas que ela existiu de forma a legitimar o regime, com a anuência de muitos fiéis e até pode ser que para grande parte deles, como disse Hermínia, estava “tudo bom, tudo bom, tudo, bom. Todavia, também é certo dizer que existiram contestações por parte da sociedade contra essa relação da Igreja com o salazarismo e, até mesmo, dentro dos meios católicos, ainda que, muitas vezes, sobre assuntos pontuais e não, sobre o regime como um todo. E, se isso foi menos visível no início do regime, relembremos dois casos contemporâneos aos entrevistados. Só para citar duas situações de contestações, temos a questão do Bispo do Porto, em que este enviou a Salazar, em 1958, críticas ao Estado Novo, e as duas cartas enviadas também para Salazar, por católicos. Uma, respondendo a um discurso de Salazar em que este acusa “alguns católicos a romperem a frente nacional”134, animados pela iniciativa do Bispo António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto. E outra, criticando os serviços de repressão do regime, ambas em 1959. Cartas, aliás, das quais um dos signatários é o entrevistado José Esteves, que acabou por sofrer um processo, tal como os outros, mas que nada aconteceu devido a uma anistia135. Irene Pimentel diz que,

É consensual entre os estudiosos o marco representado pelo ano de 1958 para o arranque em força da contestação católica ao Estado Novo, não só pelos apoios que Humberto Delgado reuniu então entre os católicos, mas também devido à célebre carta do bispo do Porto a Salazar. Foi então que o Presidente do Conselho e também a PIDE começaram a preocupar-se 136 com os chamados católicos “progressistas”.

134 ESTEVES, José. O que fizeste da vida, José? Lisboa: Multinova, 2001, p. 175.

135 Ibidem, p.181.

136 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 244. 66

Não obstante a compatibilidade de ideais entre o Estado Novo e a sociedade, que gerou o consenso, a sociedade teve que aprender a conviver com as incompatibilidades também. Certamente, a censura é um fator que distorce a percepção dos fatos, por impedir que opiniões divergentes venham à tona. Esta também não foi exclusividade do Estado Novo. A censura vem de longe, na Primeira República. No Estado Novo, ela foi potencializada, com vistas não só ao inimigo político, mas também, visando a um maior controle da sociedade, através da necessidade de “impedir a perversão da opinião pública da sua função de força social e salvaguardar a reputação e integridade moral dos cidadãos”137. É o que dizem os parágrafos finais do artigo oitavo da Constituição de 1933, que limita o exercício dos direitos e garantias individuais do cidadão. Por isso, para que nada fragilize o Estado, institui-se a censura. Era a proteção contra os oposicionistas. Mas ela se fazia também sobre tudo aquilo que poderia perverter os “bons costumes”. E não há nada mais percebido entre os entrevistados do que a censura, não só dos livros e jornais, mas também dos teatros e cinema, entre outros. E, nesse setor, a polícia política está intimamente ligada, pronta para proibir publicações, apreender livros, encerrar espetáculos e associações. Era o que Hermínio Martins chamou de “alvos sociais”, “aqueles cujo estatuto social preocupava essa polícia, independente da sua actuação política”138. Ou seja, pessoas que, independente de estarem ligadas ao partido da oposição, vinculavam suas ideias através de seus livros, esculturas, quadros, ou formando associações que permitiam outras idéias circularem139. E ai de quem estivesse envolvido com o PCP ou em algum tipo de oposição mais demarcada. Aí, a polícia política se fazia sentir, reprimindo diretamente os envolvidos. Muitas vezes, ela ficava atenta aos movimentos de intelectuais, artistas e grupos de associações exatamente para investigar as ligações desses grupos com o PCP, como parece ser o caso contado por Duarte Nuno. Embora este entrevistado não tenha se filiado ao PCP, ao menos não confirmou isto na entrevista, e nem a “nenhum partido”, foi preso por ter ido receber, no aeroporto, Maria Lamas, em 1953, no seu retorno de um Congresso pelo aparente motivo da Paz , de ela pertencer ao Movimento Mundial da Paz. Apesar de ter dito isso de uma forma que nos

137 MESQUITA, António Pedro. Salazar. Na história política do seu tempo. Lisboa: Editorial Caminho, 2007, p. 126.

138 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 20.

139 No livro de Irene Pimentel, ela cita uma classificação proposta por Hermínio Martins, onde, para além dos conspiradores, oposição em sentido estrito, e resistentes, temos um grupo que atuava numa “estratégia “metapolítica” para a modernização das formas de pensamento e a mentalidade cultural da intelligentsia” e a oposição política orientada para as oportunidades legais ou semilegais”.MARTINS, apud PIMENTEL, p.250. 67

parecesse um motivo banal, pois isso não era um motivo por si só digno de desconfianças da PIDE, o fato é que Maria Lamas foi presidente da direção do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas – CNMP, em 1945, uma organização feminina “não afecta ao regime”140. Ele se lembra de serem umas vinte ou trinta pessoas que foram ao aeroporto e que foram presas, inclusive ele. “ E foi uma surpresa e lá fui eu a parar em Caxias, seis meses.” De acordo com Irene Pimentel foram cerca de 50 jovens, entre eles estando o poeta Alexandre O´Neill, que a PIDE suspeitava estarem ligados ao PCP, fato nunca comprovado.141 Machado da Costa diz que sabia que existia a censura por causa dos filmes que passavam pela comissão de censura. Mas havia alternativas para quem quisesse fugir da censura, embora perigosas. Eram os cineclubes. O irmão de Duarte Nuno os frequentava, mas realmente, corria um sério perigo. Tanto que os cineclubes também foram alvo da PIDE. Em 1948, a PIDE instruiu uma investigação para verificar uma suposta ligação entre o PCP e o Círculo de Cinema, concluindo que havia “tendência avançada da maioria dos seus sócios”, o que determinou a prisão de integrantes da associação.142No caso dos livros, Machado da Costa se lembra de um livro seu apreendido pela PIDE quando voltava de uma viagem, Espartaquia, que falava sobre o desporto na Checoslováquia. E, também, dos bailes organizados pelo seu grupo, os quais só aconteciam depois de pedirem uma autorização à Direção Geral dos Espetáculos, o que era obrigatório, por causa dos problemas que os ajuntamentos poderiam causar ao regime. Armando Lacerda diz que sabia da existência da censura, mas conseguia ler alguns livros clandestinos . Além disso, ouvia as músicas de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, lembrando, deste último, o fado “A trova do vento que passa”, sobre o qual diz que “toda a letra é de facto, de um siginificado extraordinário.” Mas o interessante é que ele lembra disso ao dizer que “nós tivemos uma vivência em que sabíamos que as coisas não estavam bem”, e isso, ao que parece, diz respeito ao fato de haverem as tais proibições, como os livros e as músicas, estas conhecidas como “músicas de intervenção”. O que, naturalmente, fazia com que os que as cantassem fossem perseguidos. Gostar dessas músicas, era ter, ao menos para o regime, uma simpatia pela oposição, fato que os colocava em perigo.

140 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 256.

141 Ibidem, p. 253.

142 Ibidem, p. 258. 68

Duarte Nuno diz que, ao decidir afastar-se da política, depois da segunda prisão, integrou-se ao Coro da Academia de Amadores de música, dirigida por Fernando Lopes Graça143. Ele fez questão de dizer que isso foi importante para ele. Reproduzindo novamente o que ele disse sobre o diretor: “ ele harmonizava canções de todo o país e músicas brasileiras também, e, portanto, não eram nada de protestos, eram pura e simplesmente canções harmonizadas”. Mediante isso, podemos concluir que o diretor não fazia nada de mais para poder ser perseguido, fato que ele não comenta, mas deixa a impressão de que havia algo nisso, a partir do comentário que faz em seguida. Disse que, depois, em encontros, eles cantavam canções proibidas, como “Canta, camarada, canta”, música esta cantada por Zeca Afonso e que é um símbolo da música de intervenção. Ficou difícil saber se, por esse motivo, houve algum problema, ou se ele somente disse isto para, simplesmente, falar do coro e dos encontros com músicas proibidas. De qualquer forma, é interessante ver que, ao decidir se afastar das coisas políticas, ele vai justamente para um coro dirigido por Fernando Lopes Graça. Porque, embora o entrevistado tenha dito que o diretor não tocasse músicas de protestos, o fato é que o diretor era um antigo opositor conhecido do regime. Vejamos o que a PIDE fala da Juventude Musical Portuguesa, por ele dirigida: Segundo Irene Pimentel,

Sob vigilância esteve também a Juventude Musical Portuguesa (JMP), existente em Portugal desde 1948, a qual tinha começado logo, segundo a PIDE, por ter “uma direção em tanto duvidosa”, constando que aí se fazia “política anti-situacionista ou talvez avançada”sob a égide de Fernando Lopes Graça. A preocupação da polícia política prendia-se, em especial, com as relações internacionais da JMP, que fazia parte da Federation Internationale des Jeunesses Musicales, criada em 1941, na qual estavam representados países da “cortina de ferro”.144

Isto significa que, para a PIDE, qualquer associação em que ele estivese presente, esta passaria a ser suspeita, ainda que seus alunos não soubessem do que se passasse nos bastidores da música, pelo fato do diretor trabalhar com músicas regionais e folclóricas, canções que eram apoiadas pelo regime. Mas nos diz, também, além da possibilidade do entrevistado não saber sobre isso, que talvez, ele não tenha deixado tanto quanto ele disse, as coisas políticas, pois ia aos encontros onde se respirava um ambiente de oposição, ainda que pela música.

143 Fernando Lopes Graça foi opositor do regime, ainda no tempo que a polícia política era a PVDE. Foi preso algumas vezes e passou a vida a ter problemas com o regime.

144PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 258. 69

Maria da Conceição Roque também foi assistir ao Zeca Afonso quando estava no INEF, mas, como ela disse, era “ à boca fechada”, bem como Adriano Correia de Oliveira. Entretanto, mesmo com os segredos em torno da presença desses cantores, ela diz que não percebia se havia “algo de subversivo” neles. Mas, sabia que os sussurros eram por causa da PIDE, ou melhor, “da outra senhora: “nós nem sequer dizíamos PIDE, era a outra senhora, quando se falava da outra senhora era a PIDE”. E diz que Zeca Afonso “tinha a simpatia dos jovens por ser perseguido pelo regime”. De qualquer forma, certamente, Zeca Afonso foi, e ainda é, muito valorizado, sobretudo pelo PCP. Um fato que despertou a atenção na entrevista com Sérgio Ribeiro, foi exatamente a sua reação quando, durante a sua entrevista, ao falar no Zeca Afonso, perguntou a mim se eu o conhecia. Quando disse que não, ele surpreendeu-se e lamentou, dizendo: “ uma grande falha. Nossa, é claro”. Ou seja, para além de uma possível gentileza em não julgar o desconhecimento da entrevistadora, ele colocou para o partido ou militantes contra o regime, a responsabilidade de se divulgar mais a memória deste ilustre “camarada”145. E, ao que parece, não era somente através da música que era possível respirar um ambiente de oposição. Não foi difícil encontrar depoimentos exaltando o quanto prazeroso eram esses momentos, ainda que alguns desses entrevistados nunca tivessem tomado uma atitude de oposição, ou demonstrasse alguma inclinação para discutir assuntos políticos, como fez questão de registrar João Pina. Mas, até ele, que diz não saber de nada do que se passava e não querer saber por estar preocupado em divertir-se ao sair do navio, adorava as piadas políticas do teatro de Revista. O teatro foi lembrado com muita saudade por Armando Lacerda, João Roque, todos considerando um momento aúreo do humor em Portugal, exatamente pela tentativas de burlar a censura. Duarte Nuno via o teatro, tal como os cineclubes, como um “escape” desses anos de ditadura, em que “havia umas graçolas”, embora censuradas. João Pina cita o teatro porque diz que o maior problema do regime foi a limitação da liberdade. Declara ter conhecimento da censura, critica a sua existência, mas diz que ela teve uma grande vantagem, a qual ele se adianta em dizer que é uma heresia: a de pôr o “ crânio de todos os ecritores a funcionar”. Adorava assistir às peças que traziam, no texto, o que não poderia ser dito publicamente, no “subentendido”. Como ele disse, “Eram ataques e piadas ao regime, mas que eles não podiam, de maneira nenhuma cortar, porque estava bem urdida a

145 Grifo meu. 70

teia”. Mas, para perceber a sutileza das críticas encobertas em metáforas ou meias palavras, revela ter sido, ao menos, um expectador atento aos problemas decorrentes de um regime ditatorial. Muito mais do que, às vezes, o entrevistado demonstra. E, porque não, de envolvimento, já que uma das peças à qual o entrevistado foi assistir, dizia respeito a problemas que ele mesmo conhecia de perto, uma vez que participou da campanha do Bacalhau, onde o filme mostrava a “realidade do submundo e a vida dura dos pescadores”. Peça esta que, segundo ele, ficou três dias em cartaz e foi censurada. João Roque também cita o teatro de revista com alegria. “Teatro de revista era giro!” E o motivo era o mesmo: o contornar a censura. O que lhe dava uma sensação de “triunfo, mesmo que escondido”. Armando Lacerda também exalta o teatro de revista como o lugar para criticar o regime, com suas “buchas”, onde os atores faziam uma piada de duplo sentido e que todos riam muito. E critica a piada depois do 25 de Abril, por ter esta deixado de ser política e enveredado para uma piada “porca, suja, brejeira”.Sua observação sobre o fato das pessoas rirem é interessantíssima: “ Na altura, as pessoas riam precisamente por isso. Porque havia ali uma convergência.” Ao que parece, rir do regime era uma forma sutil de reconhecimento que algo estava fora do lugar, ainda que isto não significasse ser um opositor ou um militante contra o regime. Duarte Nuno, porém, relembra as censuras de jornais e dos livros, mas de uma perspectiva diferente, devido ao seu trabalho como livreiro. Os jornais, ele acompanhou um pouco mais de perto porque seu pai foi jornalista, trabalhando em jornais “mais de extrema direita” e; depois, no Diário de Notícias. Apesar da censura também atuar neste jornal, ele disse que, sabendo que poderiam ser censurados, “os próprios jornalistas já sabiam o que haviam de fazer”. Aliás, Sérgio Ribeiro disse que ficou espantado quando veio ao Brasil, na época da ditadura, e viu que alguns jornais podiam deixar o espaço em branco ou colocar receitas, o que por si só já era uma dica que a reportagem havia sido censurada. Manobra que, segundo ele, em Portugal, não poderia ser feita. Mas Duarte Nuno diz que foi o seu irmão quem chamou a sua atenção para uma “situação desesperada que se via, de perseguições políticas, e, sobretudo, de censura aos jornais e aos livros. “Quer dizer, eu vou te contar, nos livros era uma coisa louca”. E, sobre isto ele conhece bem, porque como livreiro, viu de perto as apreensões. Mas diz que nem por isso deixavam de ser lidos. Muitos livreiros encomendavam, arcando com o custo de terem problemas com a PIDE. Como aconteceu com ele, quando participou da cooperativa da Livraria Universitária, em Lisboa - Livrelco, por volta de 1969 ou 1970, não soube informar ao certo. Os livros que 71

ele esperava da França foram apreendidos. Foi nessa cooperativa que vivenciou um novo interrogatório, em 1972, sem grandes problemas, devido ao aparecimento, na direção, “de uma rapaziada de extrema esquerda”, o MRPP – Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, criado em 1970.146Esse movimento teve influência na formação de outros movimentos com infiltração estudantil: o FEML, com orientação marxista Leninista e RPAC - Resistência Popular Anti Colonial147. Irene Pimetel diz que essa cooperativa estava sob a vigilância da PIDE, por ter elementos “desafetos ao regime”. Em 1971, o governo agiu para resolver esse problema, publicando um diploma, dizendo que as cooperativas que exercessem “ atividades que não fossem exclusivamente de caráter económico, ficavam “sujeitas ao regime legal que regula o exercício do direito de associação”148Com isto, as atividades de diversas cooperativas foram encerradas, dentre elas, a Livrelco. Seu último problema com a PIDE se deu em sua livraria, a Galileu, por conta de uma apreensão, também não tendo grandes problemas. Outra forma de sentir a censura e o policiamento do Estado na vida particular dos portugueses, citado pelos entrevistados, é o juramento à Constituição e o repúdio ao comunismo que todos os candidatos ao funcionalismo público deveriam fazer. Os funcionários públicos e as Forças Armadas, desde os tempos iniciais do Estado Novo estavam submetidos ao crivo do Estado. E, com base no decreto - lei n. o 25.317 , de 1935, o regime iniciava a sua política de prevenção contra possíveis opositores dentro do aparelho do Estado. Esse decreto dizia que:

Funcionários ou empregados, civis e militares, que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política, ou não dêem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado, serão aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos, em caso contrário149.

Em 1936, outro Decreto-Lei n.o 27.003, obrigava os funcionários públicos, ou pretendentes, a prestar o seguinte juramento: “Declaro, por minha honra, que estou integrado

146 Segundo Irene Pimentel, os anos 60 foram férteis para a contestação da luta por meios pacíficos. Muitos militantes do PCP migraram para estes partidos que propunham a violência . Em Portugal temos em 1964 a criação da Frente de Acção Popular – FAP e do Comité Marxista-Leninista Português, o CMLP. Com pouca duração, após a crise académica de 1962, Surgiu o MAR – Movimento de Ação Revolucionária, durando pouco tempo. A mesma autora define extrema – esquerda “ são considerados os agrupamentos e forças políticas que, seguindo a ideologia marxista, se situam mais à esquerda que os partidos comunistas, que criticavam pela sua orientação ‘revisionista’, pacifista, de colaboração de classes e abandono da via revolucionária para a conquista do poder”. PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 209.

147 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.212.

148 Ibidem, p.261.

149 TORGAL, Luís Reis. Estados Novos, Estado Novo: ensaios de História Política e Cultural. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, p. 194, vol. 1. 72

na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com ativo repúdio ao comunismo e a todas as ideias subversivas.” João Roque se lembra do juramento. Diz que o candidato tinha de ir à papelaria comprar a declaração, conhecida como declaração anticomunista, que custava, à época, cinco escudos. Entretanto, mesmo assinando a declaração, conta-nos que algumas pessoas, depois, foram “corridas”. Machado da Costa também assinou, mas disse que essa obrigatoriedade não lhe custou nada, à época. A mesma opinião tem Maria da Conceição. “Assinávamos qualquer coisa, mas ninguém ligava muito àquilo. Aquilo era um automático, era um papel que tinha de ser assinado, fazia parte da tal inconsciência política”. Já Hermínia diz que o fato de ser funcionária pública já era um ponto a favor, exatamente porque sua vida era vasculhada pelo registro criminal. “Ia saber a nossa vida toda e nós tínhamos que ter o nosso registro criminal, ou seja, não éramos criminosos de maneira nenhuma. Nem politicamente, nem de maneira nenhuma.” O fato é que, se muitos assinaram sem sentir algum tipo de constrangimento ou repressão por parte do regime, como disse Machado da Costa, ou, que era um “automático”, como disse Conceição, havia pessoas que se incomodaram, sim, com essa obrigatoriedade. O próprio Machado se lembra do nome de Edmundo Pedro, que, segundo ele, não assinou, embora a pessoa citada tenha uma longa trajetória de oposição ao regime, desde os seus treze anos de idade integrado ao Partido Comunista, preso várias vezes pelo regime e um dos primeiros a ir para o Campo de Concentração do Tarrafal, juntamente com seu pai, também opositor da ditadura de 1926. Este é um dos vários exemplos em que a memória cristaliza uma posição da história que deve ser confrontada com outras fontes históricas para que o historiador não seja o narrador de um lado só da história. Se, não podemos falar nem que “ninguém ligava àquilo”, pois houve quem se recusasse a fazer ou até fez, com contrariedade também não é possível afirmar que todos se opuseram ou ficavam revoltados com esta obrigatoriedade, sentida por alguns dos nossos entrevistados como protocolar. A visão comum, entre os últimos, sobre essa situação, é que muitas pessoas internalizaram as regras do regime porque não eram suficientes para lhes criar grandes problemas ou incitá-los a oposição. É o que demonstra Hermínia quando disse que o fato de ser funcionária pública já era um indício de que se vivia sobre as normas do regime, já que tinham a vida analisada previamente. O que parece conferir certa tranquilidade aos cidadãos que não estavam preocupados em fazer oposição. Todavia, apesar de tudo o que o regime fazia para manter a ordem, os movimentos de oposição iam irrompendo e, com o passar dos anos, com mais frequência e com formas de 73

lutas que, por vezes, deixava o regime atordoado, embora sempre conseguisse contornar a situação em benefício da sua permanência, ainda que falhando no objetivo de eliminá-los de uma vez por todas. Isto porque, após a vitória da democracia no desfecho da Segunda Guerra Mundial, muitos acreditaram na possibilidade de o país ser agraciado com os “ventos da mudança”. Não só as pessoas comuns que gostariam de alguma abertura, mas, principalmente, os oposicionistas declarados, levando à formação de várias frentes de oposição, seja com formação comunista, pela reorganização do partido, seja com formação democrática, como o MUD - Movimento de Unidade Democrática, ou das várias organizações de socialistas, fracionadas pelas posições divergentes dos seus representantes, todas elas resultantes da frágil formação antifascista como o MUNAF150 que, poucos anos antes, tinha permitido acreditar na possibilidade de congregar todos os que lutavam contra o fascismo, assim considerado pela maioria da oposição, ainda que com divergências ideológicas e de métodos. Não podemos esquecer as dissidências no âmbito das Forças Armadas que levaram Salazar a ter de lançar mão da sua habilidade em tratar de assuntos difíceis, ficando a meio caminho entre punições e esquecimentos em relação aos levantamentos com participações de militares. Só para citar alguns casos emblemáticos, temos: A Mealhada em 1946 e a Abrilada em 1947, com participação de republicanos tradicionais. O primeiro, uma tentativa de criar um movimento civil-militar para derrubar o regime. O segundo, com uma extensão maior devido à participação do Presidente da República, o general Carmona. Ambos tiveram penas brandas151. Em 1952, Henrique Galvão, preso, escrevia o Pasquim Moreanto – Movimento de Resistência Anti- Totalitária, o que lhe causou grandes problemas para “provar” que não eram panfletos contra a ditadura e, sim, comédias. Segundo Pimentel, Mário Soares contou que isso circulou por todo país, “à boca pequena”. 152 O “Golpe da Sé”, em 1959, movimento que uniu militares, católicos e militantes do PCP, entre eles o iniciante comunista Sérgio Ribeiro. Só para citarmos mais um, o “Golpe de Beja”, uma tentativa de ocupar o quartel de Beja, com envolvimento do General Humberto Delgado. Todas essas tentativas falharam, mas foram movimentos que ocuparam o regime por um tempo, tento um peso grande pelo envolvimento de homens de uma instituição que ajudava a sustentar o governo.

150 Em 1943 formou-se o CUNAF - Conselho Nacional de Unidade Antifascista. A partir de 1946, passa a ser conhecido publicamente com a designação de MUNAF. Ver mais sobre isto em ROSAS, Fernando. (coord.) As mudanças “invisíveis” do pós – guerra. In: MATTOSO, José. História de Portugal, 1994, p.414.

151 Apesar do envolvimento dos militares, destacamos que muitos envolvidos estavam preocupados com desavenças com Santos Costa, homem de confiança do governo. PIMENTEL, p.221. 152 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.227. 74

Além disso, o mundo do trabalho também teve suas mudanças em relação às lutas sindicais. Segundo Palomanes, “para o empresariado, o papel policiesco do Estado Novo era útil para enquadrar as reivindicações sociais, mas não para intermediar os seus negócios.”153 Em seu livro, A Bem da Nação154, o autor defende que os organismos que representavam o Estado corporativo para soluções do mundo do trabalho, muitas vezes, resolviam a favor do trabalhador. Contudo, a partir do decreto-lei no 36.173 de 1947, o governo não interferiu mais nos acordos coletivos de trabalho155. Isto fez com que a responsabilidade da defesa dos interesses dos trabalhadores ficasse por sua conta, abrindo caminho para aproximações de grupos de oposição que disputavam a defesa de seus interesses. Os movimentos estudantis, animados por experiências reivindicativas durante a guerra e, com a esperança de levar suas ideias para além da universidade, também contribuem para um novo ambiente de contestação. Isso levou a PIDE a intensificar sua preocupação com os estudante, tanto nos Liceus, quanto nas instituições de ensino superior. E é interessante perceber as diferenças que os entrevistados vão fazendo em relação à politização em cada ambiente de ensino, no que se refere ao conhecimento ou desconhecimento da situação política em que vivia o país. Ao que podemos também, somar, o ambiente de trabalho. Há um movimento relevante nos depoimentos, no que diz respeito à experiência política de cada um e a sua percepção do que se passava no regime. Vimos até agora que a maioria, ainda que não contestasse o regime publicamente ou individualmente, conheceu o lado repressivo. Embora alguns tivessem dito que não viam nada, não sabiam de nada, aos poucos, lembraram-se de situações que os deixavam mais próximos dessa realidade, do que, inicialmente, disseram. Esse foi o movimento de Hermínia e João Pina em que os exemplos são mais claros no que se refere à combinação do desconhecimento político e o conhecimento de fugas, censuras, perseguições e prisões. Maria José e Conceição estão muito mais envolvidas nos seus próprios dramas pessoais, embora também soubessem da existência da PIDE. Por outro lado, há os que sabiam, por experiência própria, mas que dizem estar conscientes do que era o regime independentemente do envolvimento com oposicionistas ou de terem sido presos e interrogados, como Duarte Nuno, José Esteves e Sérgio Ribeiro. E os

153 MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Salazarismo, In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX, Rio de Janeiro: editora Elsevier, 2004, p. 804.

154 Idem. A Bem da Nação. O sindicalismo português entre a tradição e a modernidade (1933 – 1947). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002

155 Idem, Salazarismo, In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org). Enciclopédia de Guerras e Revoluções do século XX, Rio de Janeiro: editora Elsevier, 2004, p. 804. 75

que sabiam, mas que nunca tiveram envolvidos com a oposição, como Machado da Costa e Armando Lacerda e João Roque; o que não significa não ter oposicionistas no seu círculo de amizades. Para compreender melhor o que está sendo dito, é preciso aprofundar, de forma mais linear, na narrativa de alguns entrevistados. No que se refere aos movimentos estudantis, Hermínia diz que iam atrás dos barulhos. “Nós não estávamos bem capacitados, não estávamos bem politizados”. O tempo todo, no seu depoimento, ela explica o seu “desconhecimento” ou “não engajamento”, atribuindo ao fato de que a politização era “fraquinha”, ou que não se sabia das coisas. Mas, ao longo da sua vida, ela teve várias oportunidades de saber o que se passava nas frestas do regime. Aos quatorze anos, ela estava no Liceu, em Beja, quando houve as manifestações a respeito do assassinato de Catarina Eufêmia que, como ela disse, teve repercussão na região, inclusive não tendo aula no Liceu. Mas, para ela, incluindo a juventude, isso não foi nada. Os meninos “ricos” do Liceu, como ela se referiu à juventude, não perceberam isso. É interessante ela atribuir o status de riqueza à não compreensão da “gravidade das coisas”. Fato, aliás, presente desde o início do seu depoimento, quando demarca, o tempo inteiro, as diferenças regionais entre o norte, com menos pobreza e mais conservador, e o sul, com mais diferenças sociais, pobreza, latifúndios e, portanto, mais permeável às revoltas. Como ela disse, o Baleizão era conhecido como “Moscovo do Alentejo”. Contudo, ao ir para Lisboa em 1957, iniciou a sua vida profissional através de um curso no Hospital Santa Maria. Nesse período, ela estava com dezoito para dezenove anos. Idade em que, ela mesma disse, os amigos começaram a lhe mostrar os erros do regime, pois tinha colegas que já pertenciam ao Partido Comunista. “Foi aí que eu comecei a abrir os olhitos”. Ainda assim, diz que a maior parte das pessoas não falava em política. “Só os muitos politizados”. E refere-se aos portugueses como “carneirinhos”. Ou seja, ou havia os que seguiam o regime sem perceber, ou os que eram “muito politizados”. Contudo, ela, em 1963, já casada, escondeu uma amiga que era do Partido comunista em casa, porque o pai havia sido preso. Não só os amigos contavam, mas ela viveu, sim, essa situação de repressão e perseguição ao regime, ainda que através da amiga. Mas, como ela “era uma anônima no meio de outros anônimos”, ela não se percebeu envolvida. Estava claro que aquilo não lhe pertencia porque ela nunca pertenceu a nenhum partido, nem se opôs ao regime. Tinha a tranquilidade de viver numa família pró Salazar. Por isso ela dizer, mesmo sabendo e vendo o que se passava com os opositores, que ninguém sabia de nada. “Vivíamos em paz e sossego. Na paz do senhor. Eu e meu marido, tantas pessoas em Portugal que viviam em paz”. Por outro lado, ela conta que sabia que havia as prisões políticas, servindo estas de alertas para maus 76

comportamentos. “Fica lá direitinho dentro do regime antes que vá acabar em Caxias”. Apesar do sossego em que, diz, vivia, condena Salazar pela polícia política e seu grupo de informadores, já que qualquer um poderia ser preso por ter falado algo indevido ou, até mesmo, inventado, o que para ela, era uma “patifaria”. Mediante essas questões, é certo que ela sabia a respeito do ambiente de repressão que sofriam os oposicionistas. Mas isso não dizia respeito a ela e à vida que ela tinha escolhido. Ela não queria se envolver. O fato de sua família ser pró Salazar pode ter contribuído para esse não envolvimento, uma vez que ela reconhecia pontos favoráveis no governo. Sua queixa maior foi contra os informadores e o atraso cultural. Mas ela também sabia que, se falasse algo contra o regime, poderia sofrer as mesmas consequências que seus amigos. E, também, o que parece mais correto, ela tinha uma vida confortável. Como disse, “na altura, eu não tinha razões de queixa”. De qualquer forma, suas ações eram mais conscientes do que ela demonstra ser, embora diga que eram uns carneiros. Ela mesma disse que “ouvia de um lado, ouvia do outro e mantinha-me na mesma”. Se, por um lado, ela disse que era uma criancice ir defender os colegas quando a PIDE os perseguia em manifestações, conclui que não tinha porque ser politizada, como eles tentaram fazer com ela, porque “vivia numa calmaria”. Mesmo assim, não deixou de ajudar a amiga militante, que teve aonde se abrigar, graças ao fato de ela ser uma “anônima”. O mesmo movimento teve o depoimento de João Pina. Não sei de nada, não vi nada, não era político. De fato, ele diz não sentir a opressão do regime, exatamente porque nunca se envolveu em política. Para ele, passou “tudo ao largo”. Tudo o que ele sabia, ele ouvia dizer, inclusive sobre os informadores e as prisões. Diz que não se falava em política porque, pelo que ele percebia, “era um bocado perigoso”. Mas as coisas não se passaram tão distantes dos seus olhos, pois teve contato com um colega mais velho, na escola náutica, o Manuel Serra156, o qual, segundo suas palavras, “era um bocado comutado com o partido comunista”; ou outra coisa que ele não se recorda, se era a JOC ou o que era, mas que, pela sua trajetória política, é possível ter uma ideia do quanto era comprometido com a oposição. Para João, ele era ‘um pouco mais esclarecido” e tentava falar em política, mas diz que isso era algo que ninguém ligava. Por várias vezes, ele disse que tudo o que queriam era diversão, sair daquela rotina do navio, ir para os cafés. De modo que nunca se sentiu oprimido pelo regime, “como nunca se

156 Manuel Serra foi militante católico dirigente da JOC – Juventude Operária Católica, que participou do “ Golpe da Sé”, em 1959 e “Golpe de Beja”, em 1961/62. Segundo Mário Soares, citado por Irene Pimentel, “a alma civil da conspiração foi o oficial da marinha mercante Manuel Serra, antigo dirigente da Juventude católica e participante entusiástico da candidatura Delgado”, e segundo a PIDE, chefe de uma milícia civil e elemento de ligação entre esta e a Junta do Movimento Nacional Independente (MNI)”. PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 227. 77

metia em nada”. Mas é possível dizer que ele nunca se sentiu oprimido exatamente porque nunca se meteu em nada. Porque, de fato, parece ser esta a equação utilizada por alguns cidadãos, nos tempos de Salazar. Nunca viu os “dramas que as pessoas dizem” e nada que lhe tocasse de mais perto ou de amigos. Não obstante, além de o colega de escola náutica lhe querer dizer algumas coisas sobre política, viu de perto, no navio Índia, em 1959, mais ou menos, por volta dos seus vinte e um ou vinte e dois anos, a ação da PIDE em busca dos responsáveis por fazer circular uns panfletos contra o regime lá dentro. “Uma hora depois, a PIDE estava lá”. O que surpreende é a rapidez com que esta chegou e, o que nos leva a pensar que, informadores e oposicionistas faziam a mesma “viagem”. De qualquer forma, como ele era o oficial do dia, “despachou” os PIDES. Segundo ele, foi a única vez. Lembra outra experiência, dura, nas palavras dele, que foi presenciar o transportes de 800 homens como carga, para São Tomé, no navio Benguela, em situação desumana e “com todo apoio do governo”. Além disso, recorda o pai, relembrando a época em que as pessoas lhe escreviam pedindo que ele ajudasse alguns indivíduos que estavam no Tarrafal, já que ele era uma pessoa influente na praia. No início da entrevista, ele diz que o pai era “francamente anglófilo”. O tio era um ex-anarco–sindicalista, que não gostava do regime a ponto de não querer nem falar. Encontrou na escola náutica alguém, o Manuel Serra, que tentou falar sobre política, mas que ninguém ligava, deduzindo que ele estava incluído, e o pai comentou com ele sobre o Tarrafal, embora ele mesmo tenha lembranças, mas muito vagas, porque era criança. Nada disso o fez se colocar como alguém que refletisse sobre o regime. Pelo contrário, fez questão de enfatizar que não percebia nada. Ao ser perguntado sobre possíveis comparações com os países por onde passava, destaca um lado positivo do governo: o escudo era aceito em todo lugar. Como disse, ele era da Marinha Mercante. Para ele, a vida no mar o afastou da vida política. “Vivíamos num mundo paralelo”. Contudo, o seu desconhecimento ou sua não politização pode ser explicado por algo que ele mesmo falou: “Estávamos preocupados com a nossa segurança, com o navio, com a nossa profissão e aquelas coisas”. Maria José também atribui ao fato de não se discutir política a situação de não perceber os movimentos de oposição ou o clima de vigilância que havia em Portugal. O curioso é que, de certa forma, a PIDE estava próxima dela, já que seus pais trabalhavam para Salazar e sua irmã morava na mesma casa que ele. Disse ficar espantada de nunca ter percebido nada em relação a isso, com os “PIDES a levantar e abaixar a cabeça, a entrar e sair de São Bento”. Revela que só despertou seu espírito crítico quando Maria Antónia saiu de São Bento. Certamente, ela era muito nova, quando ia visitar a irmã e o Sr. Doutor, para perceber 78

tais movimentações. Seu depoimento nos leva a crer que, realmente, ela foi se dando conta, aos poucos, com o desenrolar de uma história que lhe era, e é ainda, muito cara. No Liceu D. João de Castro ela nunca presenciou algo que indicasse alguma movimentação contra o regime, a não ser uns diálogos de alguns professores com os alunos, precisamente numa disciplina de organização do Estado que ela não lembra qual era o nome, nem o que eles falavam, além de Maria Antónia ter saído de São Bento, o que fez com que passassem a conversar muito sobre o “ridículo de certas situações” que esta viveu. Outra experiência que fez Maria José compreender o regime com outros olhos foi a sua ida para a Escola Superior de Serviço Social. Foi aluna de Marcelo Caetano e Paulo Cunha, homens do regime, mas, também, de Francisco Moura, um professor “claramente contra o regime”. Não desabona Marcelo Caetano como professor, mas lembra com admiração de Francisco Moura ou Chico Moura, nome que ela falou com alegria, depois de achar que tinha esquecido. Disse que ele já falava alguma coisa contra o regime e que era querido pelos alunos. Mas foi trabalhando que ela disse ter percebido as contradições do regime. Ela trabalhava na Casa dos Pescadores, uma instituição corporativa, que simbolizava os valores do regime. Apesar de boas instalações, em alguns casos, mostrou-lhe uma realidade de pobreza e miséria, que eram resolvidas de forma “paternalista” e que, dessa forma, não seriam nunca resolvidas. Se o regime teve alguma pressão sobre as pessoas, ela diz sentir somente “alguma pressãozinha” no trabalho, quando sugeriam que ela acompanhasse o grupo em algumas realizações do Estado, ou manifestações, as quais ela não se recorda ao certo. Não obstante, foram as conversas com sua amiga Josefina que lhe marcaram profundamente. Para Maria José, ela era um referencial para se conversar aquilo que ninguém ousava dizer. Culta, de família aristocrática e pró Salazar, a amiga trazia de fora as comparações que Maria José afirma não conseguir fazer por ter estado tanto tempo dentro do regime, ainda que por mãos alheias. Sua melhor amiga lhe encanta por suas ideias e personalidade. E não se esquece de dizer que ela se relacionava com “aquelas pessoas da Capela do Rato”. E que criticava muito o regime. Maria José diz não ter sentido o peso da PIDE ou do regime porque, como disse: “mas, de facto, eu sou, no fundo, estou oriunda de uma família (...) conservadora (...). E, quer queira, quer não, muito chegada a Salazar. Como ela disse, para as amigas do Liceu, ela era “a do Salazar”. Que, de fato nunca foi, a não ser pela ligação de sua irmã, o que já era o bastante, aos olhos de um povo que girava em torno do ditador, independente do sentido que podemos atribuir a isso. Realmente, sua família estava segura. Ela também. 79

Toda sua angústia é em relação ao passado de sua família ligada a Salazar e não, enquanto uma portuguesa que viveu no regime de Salazar. A portuguesa Maria José viveu como muitos outros portugueses. Cresceu, estudou, foi para a universidade, casou e trabalhou. Talvez, com alguns benefícios que muitos não tiveram por ter os pais ligados a Salazar, mas com um percurso não muito diferente de alguns dos nossos entrevistados. Escola, Liceu, Universidade e Trabalho. Mas, como ela mesma disse a respeito do retorno de sua irmã, eles tiveram outra vida. Na visão dela, ela começou de novo. Mesmo assim, o seu convívio com Maria Antónia nos faz acreditar que muitas coisas foram se revelando, já que o motivo principal da saída da irmã de São Bento foi a suspeita de que seu namorado era um opositor, uma investigação privada feita pela PIDE, sob o comando de D. Maria. Por isso, não deixou de sentir o peso de vigilância, autoritarismo e censura características próprias de uma ditadura. Contudo, para a entrevistada, elas parecem ter mais peso quando direcionadas à governanta do que ao ditador, lembrado por ela com simpatia. E mesmo sabendo dessa história, não se lamenta por nunca ter questionado os PIDES. Mas questiona a tia Micas ter ficando tanto tempo na casa de Salazar, a conviver com o ditador. Quando perguntada por que a tia, que foi vestida como criada e tratada como tal ainda criança, ficou tanto tempo com Salazar, ela responde: “Pra não personalizar, as pessoas deixam estar nessa situação. Aceitam a situação. Mas, aceitar a situação naquela idade, eu entendo algumas coisas. Mas, o que acho dificílimo, é que com dezessete ou dezoito anos, e o caso da Maria Antónia convém, é que não se tenha o olhar crítico sobre as coisas, percebe? E isto é menos do que ter o aproveitamento total daquilo que se considera vantajoso. “Só pode ser isso, não pode ser outra coisa!” É muito significativa a clareza pela qual ela analisa a opção da tia, dizendo que com dezessete e dezoito anos ela deveria ter mais noção do que estava acontecendo , quando ela mesma não se lembra de ter percebido as coisas logo, por ser de família conservadora e de ser ligada a Salazar. Parece que não foi só a tia que teve dificuldades de perceber o ambiente em que vivia. Conceição também não se lembra de sentir-se vigiada ou oprimida. Diz que não percebia o regime, porque não se falava em política. A única coisa que lembra, quando viveu em Angola, foi de sua mãe lhe dizer que seu pai era um tolo e irresponsável. Lembra do pai cantando uma música que tinha símbolos do trabalho e acha que ele era ligado à esquerda. Um dia, a mãe pegou uns panfletos em casa e jogou tudo fora porque sabia que poderiam ser presas. É que, para sua mãe, Salazar era um ídolo por ter lhes livrado da Guerra e, aqueles que eram contra ele, eram uns tolos. Sobre a PIDE em África, ela se lembra de ouvir falar, mas a 80

referência era positiva. “Alguém muito importante, conceituado”. E mesmo quando foi para Lisboa, ela diz não ter consciência do que se passava. Mas ia aos shows no INEF, do Zeca Afonso e Adriano Correia Oliveira, como foi dito anteriormente, à boca fechada, sem se referir á PIDE, e, sim, à “outra senhora”. No depoimento, o que aparece com mais nitidez é a sua relação com Angola. Na mesma medida que não via as questões relacionadas com censura e repressão, aparece a sua ligação com a terra, seja pelo desporto, ligada à Mocidade Portuguesa, seja na vida adulta, quando recebe, da mesma, uma bolsa para estudar em Lisboa. Na faculdade, não se sente rejeitada e diverte-se imenso com alguns atrasos que ela detecta em Portugal, ao nível pessoal, quando diz que as colegas do desporto tomavam banho com o fato de banho. E, de certa forma, diz que os colegas viam os portugueses, que da África chegavam, como heróis. Não obstante, apesar de não falar em política com a mãe, esta falava sim, mas com uma conotação negativa, bem como com quase todos os entrevistados. Não só porque sua mãe sabia que poderia ser perigoso, mas também, porque ela reconhecia Salazar como alguém que não merecesse essa traição. No mais, vivia o dia a dia para sobreviver. Machado da Costa, apesar de também fazer esta relação entre o não falar em política e não compreender o regime, aos poucos, vai se deslocando daquela pessoa que não sabia e que estava tudo bem, para alguém que percebe a situação e se posiciona em relação ao regime, ainda que desligado de partidos, conspirações ou qualquer tipo de oposição. O significado que o regime vai assumindo para ele, no decorrer dos anos, nem de perto passava por sua cabeça quando era jovem. Percebia algumas piadas sobre Salazar e a PIDE, “mas não eram nada demais”. Na sua análise, diz que isto acontecia porque, como toda família à época, a sua também era conservadora. Não obstante, lembra que nem toda a juventude era assim. “Os que tinham em casa, exemplos familiares de democracia, esses eram mais ativos.” E cita o Sérgio Ribeiro como referência. É uma ligação interessante porque o próprio Sérgio Ribeiro disse que seu pai não era politizado. Como vimos, a sua democracia, ou melhor, seu republicanismo, era uma resistência a imposições. O que não o impediu de participar de movimentos democráticos posteriores, que certamente influenciaram o Sérgio Ribeiro. Mas a questão posta, neste momento, é o uso do ser “apolítico” em diversos contextos. E não deixa de ser interessante o fato de Machado da Costa justificar a adesão de Ribeiro à oposição, por ter um pai politizado. Aos poucos, sua vida profissional acabou por lhe colocar em contato com outras realidades que iam além dos horizontes traçados no âmbito familiar. De fato, não sentiu a ditadura, mas ele não era indiferente a ela. Nas viagens, ia confrontando as realidades, 81

ouvindo as críticas externas a Portugal. Em Portugal, o Colégio Moderno foi importante porque, como disse, “também me fez ver certas coisas”, onde relembra com admiração o João Soares, “um republicano a sério”, que o marcou profundamente, ainda que pouco se falasse em política. E o que se falava foi o suficiente para lhe deixar pensativo sobre o que significava a ditadura. Lá, soube da presença de um possível informador da PIDE, que mais tarde foi confirmado existir, embora a data tenha ficado confusa, pois diz que a confirmação veio quando Maria de Jesus foi à PIDE pedir autorização para visitar o marido que estava preso em São Tomé, quando esta prisão data de 1968. Portanto, não era mais professor do colégio157. E fala com júbilo ao lembrar que a PIDE também era enganada, pois lá, escondido, esteve Álvaro Cunhal; deixando claro que com a permissão de João Soares, “que não era comunista, era um democrata”. Além disso, recorda o dia em que, após ser solto, Mário Soares chegou ao Colégio a contar o que havia acontecido o que “indignou o pessoal todo”, “ficando pequenas coisas a germinar”.158 Apesar de não estar envolvido em oposições e dizer que se “não se metesse com a PIDE, a PIDE não incomodava”, e que isto acaba por condicionar as pessoas, o que em parte pode ser constatado a partir dos relatos, ele teve de ir várias vezes ao prédio da Rua António Maria Cardoso para apresentar o passaporte e dar satisfações de suas constantes viagens ao exterior, ainda que fosse de conhecimento dessa polícia a sua atividade profissional e as devidas exigências da mesma. E não escapou de ter um livro apreendido. Em outra ocasião, ciente do risco que corria, caso lhe atribuíssem a alcunha de comunista, quando um diretor, por provocação, o chamou de comunista, ele saiu “pianinho”. De qualquer forma, mesmo percebendo todas as questões que envolvia a privação da liberdade individual e, até a repressão, em casos de oposição, ele decidiu não se envolver. Lembra de estar no intervalo de uma sessão no cinema Monumental, no mesmo momento em que havia um comício159 autorizado no Liceu Camões e ouviu um tiro, que ele diz não ter

157 Foi professor do Colégio Moderno de 1958 até 1964. Informação cedida pelo entrevistado por correio eletrônico. Neste momento, é possível que a memória esteja equivocada.

158 Apesar do entrevistado dizer que foi quando Mário Soares foi preso em Moçambique, não encontrei nenhuma referência a esta prisão. Contudo, Maria Barroso, sua esposa, conta em seu livro de memórias que entre 1960 e 1966 o marido foi preso várias vezes. A única referência a prisão em que ele fora solto perto do Natal, foi a que aconteceu em 12 de maio de 1961, durando seis meses. Ver em XAVIER, Leonor. Maria Barroso: Um olhar sobre a vida. Lisboa: Difusão Cultural, 1995, p. 151.

159 O entrevistado confunde-se ao dizer de quem era o comício. Primeiro ele diz ser de Humberto Delgado, que, de fato, em 1958, fez um comício no Liceu Camões, dias depois de dizer a um jornalista que se fosse eleito, demitiria Salazar. Desta forma, no dia deste comício, os arredores do Liceu tiveram um policiamento maior com algumas confusões. Depois, ele disse que foi de Quintão Meireles. A única referência encontrada de um movimento de propaganda desta candidatura foi na Garagem do Monumental, em Areeiro, em Lisboa. Quintão desistiu por criticar as eleições. Isto aconteceu em 1951, ganhando o candidato de Salazar, o militar Craveiro Lopes. http://www.iscsp.utl.pt/~cepp/eleicoes_portuguesas/1951.htm 82

acertado ninguém e um grande tumulto com a G.N.R, que por lá entrou com os cavalos a pôr os manifestantes a correr. Diante disto, lembra que sentiu que aquilo não era certo. Com a mesma atitude, viu os movimentos universitários de 1962. À época, ele já estava formado e lecionando na Faculdade de Ciências, com a equipe de voleibol, onde estava o futuro general Hugo dos Santos. E, mesmo sabendo de envolvimento de professores, nunca participou. Como disse: “nunca senti nada. Estava lá a assistir”. Por outro lado, ainda que oriundo de família conservadora, pró Salazar, Armando Lacerda demonstra perceber, desde miúdo, esse ambiente de censura e vigilância. E, mesmo não morando com o pai na infância, na juventude travou algumas discussões com ele, ainda que fossem com todo respeito, como fez questão de dizer. O que para ele é relevante pelo fato de a maioria dos conservadores não conceder uma abertura para tais discussões em família sobre política. Além disso, destaca como importante na autoanálise da sua relação com o regime, a vivência no Colégio Moderno. Destaca a figura de João Soares, dono do colégio, como alguém que aplicava métodos bastante democráticos, “o que para a época poderia ser visto como algo fora do lugar”. Além do fato de abrigar ali, militantes do partido comunista, como Álvaro Cunhal e Sacuntala Miranda.160 E, mesmo sendo oriundo de uma família de classe média alta burguesa, tal como o era também, João Pina, disse que estava atento a tudo o que acontecia à época. Pontua as diferenciações entre a fase de ingenuidade no colégio e de maior comprometimento, na universidade, com o “meeting point” das cantinas universitárias. Na primeira fase, foi assistir, no Liceu Camões, à sessão de esclarecimento em favor da candidatura de Humberto Delgado, com dezesseis anos, relatando tal como Machado da Costa, as confusões com a cavalaria e a G.N.R, a qual, pela sua lembrança, entrara no café Monte Carlo. Diz perceber que as coisas “não estavam bem” desde os tempos do Liceu. Da segunda fase, lembra as manifestações em torno do dia do Estudante, ao qual ele se refere não tendo espaço para ingenuidades, porque os movimentos eram propositais, eram de oposição, de confronto e os alunos sabiam disso. Nesse momento, diz que os assuntos eram mais discutidos, inclusive no hospital Santa Maria, bem como nos cafés. Também lembra, com ironia, das piadas que faziam à PIDE, com suas gabardines a dar “um ar de respeito”, cuja presença fazia com que eles mudassem a conversa para não ter problemas, porque sabia da vigilância e dos informadores, que poderiam estar em qualquer lugar.

160 Sacuntala Miranda nasceu nos Açores em 1934. Foi militante, exilou-se em Londres e só voltou a Portugal depois do 25 de Abril. Escreveu sua história no livro Memórias de Um peão nos combates pela Liberdade, Lisboa: Edições Salamandra, 2003. 83

Diferente de Machado da Costa, seu professor no colégio Moderno, ele só soube, depois do 25 de Abril, que lá havia um informante da PIDE. Descreve o ambiente como de “extraordinárias cautelas”. Foi através de sussurros que soube no Colégio Moderno da prisão de Mário Soares. Da mesma forma, soube, já na faculdade, da sua saída do PCP. Estudante de Medicina, viu colegas serem “corridos” à época da crise acadêmica de 1962161, acompanhando a luta de jovens dirigentes estudantis, como Jorge Sampaio. Mesmo assim, nunca se envolveu com o partido. Não militou, nem fez oposição. Como disse, sua oposição não passava de conversas em cafés. Viveu o Estado Novo, com críticas internas, mas vivendo e fazendo tudo o que queria dentro do que era possível, mesmo correndo o risco de ser parado pela PIDE na madrugada, nas ruas de Lisboa, como aconteceu ao voltar da casa de amigos. “Portanto, a gente sabia”, diz para concluir sobre o tema. Ao contrário de Lacerda, João Roque não participou de nenhum evento estudantil. Mas lembra de sentir uma “pressãozinha”, lá pelos catorze anos, ainda em Peroguarda, por sentir que não estavam à vontade. Aos quinze já estava em Lisboa e também se lembra das conversas nos cafés e dos sussurros. Mas não soube dizer se era assim em todo o país. Disse que não ouvia falar em política e, que, tampouco falava em política. Sua vida acadêmica decorreu “sem problema nenhum”. Do INEF, não se lembra nem de apoiadores do regime, nem de opositores. Sua crítica dirige-se à situação posta no pós 25 de Abril, quando uma professora foi acusada por ser macrobiótica, fato suficiente para ser saneada nos períodos tumultuados da transição. Para ele, foi um dos momentos de mais “cretinice do INEF”. Lembrança que Conceição, sua esposa, também teve. Quando professor na Parede, viu uma colega ser saneada por ser acusada de comunista. Ele diz que ela não era, mas seu irmão, morto pela PIDE, era comunista. Dos que podemos dizer que estiveram envolvidos com alguma forma de contestação, temos Duarte Nuno e José Esteves. Na oposição, Sérgio Ribeiro. Duarte Nuno teve uma vida movimentada, e os exemplos acerca da vigilância e da censura que estão na sua memória, fazem parte de um leque bem maior de situações do que os outros entrevistados. Além disso, vimos que fez parte de outros momentos em que , de fato, ele atuou. Detendo-nos aos pormenores de algumas destas situações, é interessante analisar a sua fala, quando questionado qual tinha sido a sua atitude no interrogatório a que foi

161 Segundo a historiadora Irene Pimentel, após as eleições de Humberto Delgado, surge uma nova geração que vai influenciar a “crise estudantil de 1962”. Os dirigentes estudantis, em fevereiro de 1962, se reuniram na Associação Acadêmica do ISCEF, decidindo pela criação de um Secretariado Nacional dos Estudantes e realizar um Encontro Nacional de Estudantes Portugueses para discutir assuntos sociais e pedagógicos. Entretanto, as comemorações do dia do Estudante foram suspensas, com a polícia invadindo a Cidade Universitária e iniciando a partir daí, um conflito que só recuou em Junho deste ano. Ver PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 262. 84

submetido, quando foi preso, em 1953. Ele diz que tomou posição que “era a posição da esquerda em relação à polícia, que era não dizer nada”. Ora, a maneira como ele conta a sua ida à recepção a Maria Lamas, nos faz pensar que foi algo sem muita importância. Tendo o irmão lhe convidado, ele foi. Mas ao dizer como foi o interrogatório, diz que fez como toda a esquerda. Ou seja, ele se coloca como alguém de esquerda e demonstra saber a orientação mais importante do PCP, quando dos interrogatórios. Nada a dizer. Ele não era filiado a nenhum partido, não tinha feito nada de errado. Seu pai era salazarista e foi da Legião Portuguesa, então, por que esta posição que poderia colocá-lo em risco? Aliás, se pergunta até que ponto o fato de ter sido solto e não ter sido agredido, não teria sido por influência de seu pai. Mas, como ele disse, não falar nada era uma orientação do PCP. Em 1947, Álvaro Cunhal escreveu um folheto, depois reeditado várias vezes, que, segundo Pimentel, “iria moldar durante anos a “moral” dos comunistas na cadeia e chegou mesmo a influenciar outros elementos da oposição não comunista”.162 Ao que parece, o entrevistado seguiu as normas, embora, se ele não era do PCP e não estava envolvido em nenhuma conspiração como afirmou, não tinha mesmo muito a dizer. E, sendo assim, até pode ser que o pai tenha tido alguma influência na sua liberdade. Mas, o caso, é que a PIDE estava interessada mesmo era em comunistas e conspiradores. Quem ela concluísse que não era um perigo para o regime, ela soltava, como foi com ele e com muitos outros na mesma situação, inclusive com o poeta Alexandre O´ Neill. Depois dessa primeira prisão, ele disse ter ficado enfurecido e, como algumas forças oposicionistas tentaram incorporá-lo na luta, ele se integrou ao MUD Juvenil, lembrando “que as pessoas que formavam os seus grupos não eram comunistas”. Não nega a simpatia pelos comunistas, que, no dizer dele, eram pessoas que se entregavam à luta, indo presos por anos e anos. De fato, ele demonstra essa simpatia e como estava informado dos comportamentos dos militantes. Não é possível saber até que ponto o irmão não o influenciou nessa aproximação, pois foi ele quem o trouxe para esta “oposição” silenciosa e não comprometida partidariamente. Sua passagem pelo MUD foi rápida e logo saiu após ser preso pela segunda vez. E é isto que faz do seu depoimento algo interessante. Sua insistência em conviver com a oposição. Está claro que ele concorda com as críticas ao regime e que simpatiza com os militantes, integrando-se ao MUD por ter ficado enfurecido com a prisão. Mas não era só

162 O folheto se chamava “Se fores preso, camarada...”, PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 296. 85

quem tinha sido preso que se integrava ao MUD Juvenil. Pimentel diz que a partir de 1947, apareceu uma “geração de jovens da oposição, integrados ou não ao PCP, que se envolveram no MUD J e na candidatura presidencial de Norton de Matos, em 1949”.163 Aliás, a segunda prisão nos diz um pouco mais sobre o seu comprometimento com aqueles que questionavam o regime. Ele foi preso na praia da Arrábida, num acampamento onde cerca de 15 jovens, do Liceu e da universidade164 lá estavam para discutir o regime, embora acredite que o encontro era para formar quadros. O que aconteceu foi que, em determinada altura, “apareceram uns escritos sobre a guerra colonial”. Isto foi em 1954, ano em que Portugal se viu pressionado pelas pretensões já conhecidas da União Indiana em retomar os territórios do chamado “Estado Português da Índia”, iniciando um confronto que culmina com as perdas dos enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, em 1954.165Além desse fato, alguns movimentos independentistas também começaram a se organizar esse ano, em África. Contudo, depois da segunda prisão, ele abandona a política, mas não os encontros clandestinos. Continuou frequentando os cineclubes e os encontros de músicas proibidas. Foi ao enterro de António Sérgio166 e ia ver as manifestações do “5 de Outubro”, data da Implantação da República em Portugal, onde “havia cenas de pancadarias”. Sérgio Ribeiro também participava dessas comemorações e se lembra das mesmas cenas167. É significativa a sua percepção do dia a dia que se vivia em Portugal. Conclui que era medíocre. “se não tivesse nenhuma posição ao regime, as coisas eram quase aceitas, não é? Embora esta análise possa ser relativizada, o que fica claro é que ele, Duarte Nuno, tinha, sim, uma posição clara sobre o regime e não aceitava as coisas que via ao seu redor. Outro entrevistado que não aceitava o regime, e que foi construindo a sua contestação ao longo do salazarismo, muito a partir da sua experiência como educador, como já foi dito, é o Professor José Esteves. Já acompanhamos a breve referência sobre essa dinâmica combativa no desporto e como católico. Falemos um pouco sobre o que ele sentiu sobre ser interrogado.

163 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 262.

164 Este elo entre os estudantes do Liceu e os estudantes universitário ficam mais fortes a partir de 1962, quando alguns alunos do Liceu formaram uma Comissão Pró Associação, fato que desperta a atenção da PIDE, por esta considerar que esta associação vinha alterando o panorama acadêmico, uma vez que os universitários já vinham politizados desde o Liceu. Ver mais sobre isto em, PIMENTEL, op. cit, p.263.

165Os territórios de Goa, Damão e Diu conquistaram sua independência somente em 1961. ROSAS, 1994, p. 515.

166 António Sérgio, intelectual e político português, que defendia a democracia. Seu nome está ligado a oposição não comunista. Morreu em 1969.

167 Depoimento enviado como complemento pelo entrevistado, por correio eletrônico. 86

José Esteves diverte-se com o fato de estar com oposicionistas, a falar mal do governo, tão próximo da PIDE. É que muitas vezes, os encontros aconteciam no , na Livraria Sá da Costa ou na Bertrand, reduto de intelectuais. Acontece que nem tudo era divertido quando se estava na oposição. Esteves analisa, tal como Duarte Nuno, haver uma diferenciação no tratamento aos presos políticos. Ele foi interrogado quatro vezes e, disse que nunca sofreu nenhum tipo de tortura. Mas acredita que foi devido ao fato de não ser comunista. Disse que estes, sim, sofriam uma tortura, psicológica, que ele descreve assim: “Se eram pessoas cultas, licenciadas, indivíduos médicos, tratavam o castigo era lhes pôr de estátua, de pé, dias, as pernas inchadas. Não lhes tocavam! Não os tocavam (...). As pernas arrebentavam, os pés arrebentavam os sapatos e, claro, começavam a dormir de pé e eles batiam com força na mesa para acordar. E havia pessoas que ficavam semanas nisso e era incrível!” Esta era mais uma das muitas situações que o professor José Esteves criticava e ainda critica. Da sua história em relação aos interrogatórios, o que fica mais demarcado, não é ser interrogado, mas a gama de informações que a polícia política tinha a seu respeito. “Eles sabiam minha vida íntima!”, diz ele inconformado. O que nos leva ao ambiente criado e propagandeado pela PIDE, de informadores. Lamenta profundamente o ambiente hostil que essa situação causava. Quando foi interrogado pela primeira vez, ficou impressionado com os dados pessoais que eles tinham. Começou a duvidar de todos, inclusive, da família. “(...) Depois, na segunda vez, comecei a desconfiar de uma pessoa e dei-lhe uma informação falsa. Uma informação que não dei a mais ninguém. E, depois, mais tarde, a terceira ou quarta vez, aquela informação tinha chegado lá. E, eu, com esse indivíduo, deixei de falar (...)”. No caso dele, além de um informador externo, havia um agravante que era ter um “parente...vagos parentes”dentro da PIDE, o chefe Rego. Mas ele lembra que “tinha informadores pagos ou benévolos por todo o país”. Aliás, essa questão dos informadores está na memória de todos os entrevistados, mesmo aqueles que disseram saber por ouvir falar. Quando o Esteves disse que havia informadores pagos ou benévolos, ele estava se referindo a um grupo de pessoas que, pelas mais diferentes razões, procuravam a PIDE para servi-la. O fato é que a PIDE se preparou ao longo dos anos, profissionalizando os seus funcionários, instrumentalizando-os na luta contra o inimigo. Oferecia uma carreira dentro da instituição, investindo em cursos de formação. Além disso, aguçava o imaginário das pessoas mais propensas a desejar o status que ela oferecia. Não é à toa que alguns entrevistados lembraram “dos indivíduos de gabardine”. Conceição lembrou que, em África, os PIDES eram tidos como alguém “muito importante”. 87

Só para dar um exemplo desse cuidado com a preparação de seus funcionários, Agostinho Lourenço168 criou, em 1948, a Escola Técnica da Polícia ou PIDE – o ETP, visando ao “ensino, seleção, aperfeiçoamento e especialização”. Para os Graduados, havia um gabinete de estudos e um Boletim de informação.169A escolha, porém, nem sempre era fácil. A própria polícia reconhecia que muitos só queriam “um cartão de autoridade para exibição e actuação”.170 O contato dessa polícia e os ministérios, precisamente do Interior, era a tentativa de “controlar” a sociedade, o que nem sempre conseguia, mas que servia de aviso aos oposicionistas mais recalcitrantes. Esteves exemplifica como agia a polícia, quando queria saber a respeito de outras pessoas, ao prender um suspeito. “Depois do 25 de Abril, houve dois amigos meus, comunistas, que me disseram que, nos interrogatórios a que tinham sido sujeitos naquele período, apareceu de repente uma pergunta desse gênero: E qual é o papel do José Esteves nisso? E o que José Esteves fazia lá na sua célula? E eles eram meus amigos e disseram: O José Esteves não fazia nada. Ele não é comunista, é anticomunista, é católico praticante e não sei o que mais. Tá a ver? Até assim, de repente, faziam perguntas para ver se apanhavam qualquer coisa”. E foi assim, católico, anticomunista, mas oposicionista, que acabou por testemunhar em favor de um comunista, o economista Sérgio Ribeiro.171 Certo dia, o pai deste procurou Esteves para pedir que fosse testemunha de defesa de seu filho. Era o julgamento de Sérgio Ribeiro, preso em 1963, na vaga de prisões que ocorreram esse ano devido à traição de um membro do partido comunista, Rolando Verdial, quando muitos intelectuais do quadro do partido foram presos. Verdial foi preso duas vezes. Fugiu, sendo recapturado em 1963, alguns dias antes de Sérgio Ribeiro ser preso. Não deixa de ser interessante o fato de Ribeiro ser casado, há pouco tempo, com Antonieta, sobrinha de Antunes Varela, ministro de Salazar. Ela sabia que ele era comunista, mas desconhecia os detalhes do seu papel no partido. Sobre a prisão, recorda-se: “Bateram na porta e eu já sabia das outras prisões. Lá vêm eles. Chegou a minha vez. Portanto, não tem nada a fazer (...)”. Ficou um tempo na cadeia do Aljube e, depois, em Caxias.

168 O Capitão Agostinho Conceição Pereira Lourenço foi o primeiro diretor da PIDE, quando da mudança que reorganizou a polícia política em 1945, conferindo em termos de direção uma continuidade a instituição, uma vez que o mesmo já chefiava a PVDE. PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 33.

169 Ibidem, p.59.

170 Ibidem, p.58.

171 Também foi testemunha de Salgado Zenha e Bernardino. 88

Foram tempos difíceis, desde a prisão, até a condenação após o julgamento, que o sentenciou ficando catorze meses preso. Não foi torturado fisicamente, mas sofreu uma tortura psicológica, que ele julga igualmente difícil. Como disse, “É uma tortura que vai ao interior do próprio torturado”. A polícia jogava com a sua condição social. “Então você! Um jovem licenciado. Recém-casado. Com uma família a constituir-se, com uma carreira profissional brilhantíssima. O fulano pode ser o que quiser. Um homem inteligentíssimo. Faziam-me esses elogios todos. A ser controlado por um borra-botas, um operário!”. E assim iam tentando, não só obter a colaboração, como também, “recuperá-lo”. Há uma memória curiosa desta diferenciação que os entrevistados relatam sobre a atuação da PIDE nos interrogatórios. Duarte Nuno disse que violentado mesmo foi o grupo preso por conta do assassinato de Catarina Eufêmia. Aboim Inglês. Um militante do PCP, preso e agredido no Aljube, disse que “A PIDE fazia as suas diferenças de classe no tratamento dos presos”.172 É significativo o que está escrito no despacho enviado ao Tribunal, redigido pela PIDE, sobre os presos e que, de certa forma, completa o que o entrevistado disse.

O que constrange é verificar-se que indivíduos cultos, bem preparados e instalados, com enormes responsabilidades pessoais e profissionais, se deixem acorrentar de tal forma que reneguem a Deus, traiam a pátria, ignorem ou desprezem a família [...]. E são eles intelectuais, mentores de um povo, condutores de massas, já que pela cultura, já pela posição social, já pelas facilidades de toda a ordem de que vêem rodeados [que] [...] assim agem e colaboram numa obra corruptora de gerações, revestidos de uma capa de humanitarismo que os faz aparecer como heróis ou como mártires, aos olhos dos menos instruídos.173

Não obstante, independente do tipo de tortura, havia uma grande expectativa, desde familiares, amigos e da empresa em que trabalhava, até da polícia. Irene Pimentel analisa que, após a traição de Verdial, o setor intelectual do PCP foi desmantelado. Ao que parece, a PIDE conseguiu parte do que queria. Exausto, Sérgio Ribeiro confirmou. Por um lado, isto foi motivo de alívio, já que ele cumpriu uma pena consideravelmente menor do que determinava a sentença. Por outro, uma grande tristeza. É que ser posto em liberdade e ter sua pena reduzida significava para o PCP que o preso ou falou alguma coisa ou confirmou, o que era tão grave quanto. Depois de catorze meses, foi posto em liberdade, mas foi expulso do PCP, acontecimento que o marcou profundamente, nunca deixando de se

172 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 148.

173 PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.175. 89

referir a isso em artigos, entrevistas e no seu livro. “Digo sempre isto: Eu não traí e eu não expulsei o partido de mim. E como não expulsei o partido de mim (...), passado pouco tempo, estava eu outra vez no partido”. Sua explicação para ter confirmado deve-se a o fato de que, com a tortura do sono, ele tinha consciência do estado de debilidade a qual poderia entrar. Por isso, pensou que fosse mais lógico, confirmar o que a PIDE já sabia, do que vir, depois, a falar o que ela não sabia. “Tortura do sono é terrível! É terrível! (...). Agora eu domino e controlo coisas que amanhã posso não controlar (...)”. Mas, de qualquer forma, diz que foi um fraco. E, se levarmos em consideração o folheto de Cunhal, reeditado em 1959, teremos uma ideia desse sentimento, que o Partido Comunista também sabia trabalhar, numa disputa psicológica que não parece ser somente, mérito da PIDE. Nessa versão, “foi dado maior ênfase à posição de ‘só fala quem quer’ considerando-se que, se ‘a resistência física’ podia ter limites, a ‘resistência moral’ não podia ser vencida, a não ser que o preso quisesse”.174 A questão da tortura é complexa, porque tais diferenciações permitem fazer juízos de valor quanto à tortura, no sentido de quem foi mais torturado ou que tipo de tortura é pior. Nesse caso, nos afastamos da questão principal que é o uso da tortura para alcançar um objetivo. Por outro lado, pode ser perigoso na medida em que a qualificação em relação com o grau de violência pode servir de capital político em períodos de democracia, sem levarmos em conta projetos políticos, trajetórias políticas e o fato de não compreender a tortura, uma violência, independente da sua natureza175. O próprio Sérgio Ribeiro diz que os miúdos ficam decepcionados quando ele diz que não sofreu violência física.Da mesma forma, ela serve para mensurar o próprio regime. É comum ouvir dizer que uma ditadura foi má ou boa pelo nível de violência que ela aplica aos seus cidadãos. A contabilização do número de mortos é uma referência para muitos governos avaliar o grau de violência do regime. Porém, o mesmo critério é utilizado em regimes democráticos. E assim, ficamos na superfície do problema, que é a adoção da violência na solução dos problemas. Não foi, porém, a única vez que esteve na cadeia, já que as vésperas da Revolução lá estava ele, novamente, em Caxias. Ele atribui essa nova prisão a uma entrevista concedida para uma rede de televisão de Bruxelas, à qual estava intelectualmente ligado, falando sobre a sua prisão e como era o regime. Dessa vez ficou poucos dias, tendo uma sensação diferente. A primeira vez foi posto em liberdade sem o país estar em liberdade. Ou como ele disse:

174 Ibidem, p.299. 175 No depoimento ele define este tipo de tortura como tortura do sono. Mas, só para esclarecer, há uma diferença entre a tortura do sono e a estátua. A estátua implicava sempre em o indivíduo ter privação do sono, mas a tortura do sono não implica em o indivíduo ficar em pé. PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.366. 90

(...) fui preso no dia 17 de abril (...). E, fui solto no dia 27 de Abril, que é o segundo nascimento. Sair da prisão assim é nascer a segunda vez. (...) Eu sei o que é sair da prisão com as portas abertas pro lado de dentro. A dizer, ‘agora vê lá se tem juízo’. É muito bom sair da prisão. Mas, sair com as portas abertas pro lado de fora e, ao mesmo tempo, é o país que está em liberdade, não sou só eu. Ah! Não se pode contar por mais que se diga! Ainda por cima, saímos na noite do [dia] 26 pro [dia] 27, com uma espécie de túnel à noite e ao fundo com algumas fogueiras acesas.” Não obstante a sua experiência nas prisões, Ribeiro lamenta o que aconteceu ao seu companheiro de partido, conhecido na célula como o Gomes. Sobre o assunto, que está no primeiro capítulo do seu livro,” 50 Anos de Economia e Militância”, ele conta que esperava o Gomes, quando percebeu que o ambiente estava estranho. Como ele não apareceu, foi à cervejaria, comeu algo e retornou. Constatou que o companheiro não chegou. Ele descreve o que aconteceu: “O Gomes vinha não sei de onde e apercebeu-se como eu, que essa zona estava minada. E, quando chegou aqui, tomou um café, pediu um café, e apercebeu-se que um desses fulanos o tinha seguido e entrou no café. E, em vez de fazer vir até a mim, dá a volta. E, em vez de levar a PIDE até a mim quando chegou aqui, até essa rua, e na esquina, começa a correr para fugir. Eles apanharam-no e como eles o seguram, levou dois tiros e morreu. Foi assassinado. (...) Hoje a rua chama-se José Dias Coelho, porque o Gomes chamava-se José Dias Coelho.176 Esse episódio o marcou muito e fez com que ele refletisse a respeito da clandestinidade. “Eu por acaso, quando escrevi o livro não tinha isto tão presente como tenho agora. A questão de não conhecer o nome. A questão do pseudônimo. Aquele homem, que era o homem a quem eu entregava a minha liberdade, entregava a conta do partido (...), com quem estava ligado mais intimamente (...) era um pseudônimo. Apesar da admiração enorme que eu tinha por ele, sem saber quem ele era, mas só por ser um camarada que está na clandestinidade. Portanto, isso é qualquer coisa que define bem o que é o fascismo. E o que é a luta na clandestinidade. Ele foi assassinado”.177

176 Sérgio Ribeiro lembra que há uma música de Zeca Afonso que fala sobre isto, que se chama a Morte saiu à rua, mas corrige dizendo que ele era escultor e não pintor.

177 José Dias Coelho foi morto no dia 19 de Dezembro, na Rua da Creche, em Alcântara, um bairro de Lisboa, por uma brigada da PIDE comandada por José Gonçalves. Ver mais sobre o caso em PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, pp. 395-398. 91

Dos três tópicos escolhidos para analisar nos depoimentos, a temática sobre a polícia política é a mais delicada. Isto porque, se acompanharmos o movimento dos depoimentos, notamos uma oscilação que vai do estar “tudo tranquilo na paz do senhor” até os momentos em que nos deparamos com um tipo de depoimento dizendo que a tortura que ele sofreu é a “que vai ao interior do próprio torturado”. Além disso, no mesmo depoimento, é possível perceber variações em relação ao próprio discurso. Por exemplo, ainda que Machado da Costa dissesse que nunca foi incomodado e que viveu normalmente, teve de ir à PIDE comunicar suas viagens. João Roque sentia uma pressãozinha. Lacerda mudava “o rumo da prosa”, como se diz no Brasil, quando os tais de gabardine chegavam ao café. Hermínia e João nunca sentiram nada, nenhuma opressão, mas Hermínia sabia que não podiam ser contra o regime, senão iam parar em “Caxias”. Nessas considerações parciais, é possível destacar algumas situações recorrentes: 1) A demarcação da condição de apolíticos para não se envolver em política – Mas, o que significa ser apolítico? Todos os que se disseram apolíticos, oriundos de família conservadoras, tiveram a oportunidade de construir uma consciência política, ainda que não fossem militantes. A própria vida se encarregou de colocá-los frente a situações que poderiam confrontar as suas opiniões sobre o regime. Mas optaram por se refugiar no cotidiano do trabalho, lazer, e família. Essa é uma situação que nos leva a pensar sobre a ideia de politizados que os entrevistados têm e o que, infelizmente, foi pouco explorado nas entrevistas. Dessa forma, o que temos são hipóteses. Todos refletiam sobre o governo, mas alguns optaram por viver “habitualmente”, porque não tinham do que reclamar. Suas vidas eram confortáveis. O que se passava na esfera política não interferia no cotidiano deles. É o caso de João e Hermínia. Por outro lado, Machado da Costa, Armando Lacerda e João Roque, por exemplo, compreendiam que a realidade poderia ser outra, mas sabiam das consequências de tomar uma posição contrária ao regime. Também tinham uma vida confortável. Certamente, também não queriam comprometer esse conforto, mas não foi esse o argumento principal para o silêncio deles. A polícia política aparece como um limite para que eles pensassem uma coisa, mas vivessem silenciosamente. Armando Lacerda e José Esteves disserem que Portugal era um país com pouca politização, porque rural, analfabeto. O país do “Fado, Futebol e Fátima”. Sabemos que esta representação pode até explicar o silêncio ou adesão de uma parte da sociedade. Mas não explica toda a sociedade. Tampouco os entrevistados. Por outro lado, podemos levar em consideração o fato de que o salazarismo é condenado. Historiadores, políticos e militantes não se furtam de reavivar a memória daqueles 92

que sofreram nas “mãos” da PIDE. Ser apolítico parece ter um impacto menos negativo do que dizer o que se pensava sobre o regime e não se opuseram. O julgamento do presente sobre o passado recente certamente interferiu em alguns momentos nos depoimentos, embora seja imprudente colocar palavras em bocas alheias. Vimos como Hermínia e João tiveram avaliações positivas sobre o regime. João, por exemplo, disse que, quando viajava, não fazia comparações sobre os regimes políticos, mas lembra que o escudo era bem aceito em todo lugar. Ambos condenavam a polícia política, sobretudo os informantes. E, quando Hermínia achou que deveria ajudar uma amiga que fugia da polícia, não recuou; embora isto não signifique estar de acordo com a posição política da amiga. Da mesma forma, nenhum dos dois esqueceu-se de dizer o quanto Salazar era correto com o dinheiro público, ainda que seja uma lembrança do passado que também serve para criticar o presente. A não atitude em relação ao regime não significou, necessariamente, ser “pró Salazar”. Machado da Costa, por exemplo, era professor, não concordava com o regime, mas quando estourou a crise acadêmica de 1962, ficou a assistir. Armando Lacerda frequentou os meetings, foi aos comícios, mas fazia parte do grupo que denominou opositores de café. Maria José foi, aos poucos, se distanciando do salazarismo. Tudo o que ela queria era virar a página. Se mudar o regime não lhe dizia respeito, ao menos poderia tentar viver outra vida. Queria ser outra. Mais por forças de insatisfações pessoais do que por não concordar com o regime. Conceição sabia que se meter em política significava problema. Seu pai foi um exemplo do que não se devia fazer, através dos olhos de sua mãe. Alcoolismo e política se misturaram em uma imagem só, de um homem que era irresponsável. Sem recorrer à repetição dos depoimentos, podemos sintetizar que, a partir dos relatos, foi possível perceber a coexistência de várias memórias sobre o salazarismo. Memórias que são fruto de escolhas feitas conscientemente por cada um dos entrevistados, no que diz respeito a como viver esse período, mas também, de como lembrar. Enquadrá-las em classificações tornaria estéril toda a tentativa de compreender suas escolhas. Por isso, compreendemos esses comportamentos como ambivalentes, pois isto implica em acolher suas hesitações ou compromissos diante do regime. Para Laborie, a ambivalência é um dos espelhos menos deformantes para dar conta da plasticidade das situações attentistes e de suas aparentes contradições”.178

178 LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do duplo-pensar. In: ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. [orgs] A construção social dos regimes autoritários: Legitimidade, consenso e consentimento no século XX.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.38. 93

Nesse pequeno grupo de cidadãos portugueses, encontramos as diferenças de comportamento que estão presentes em qualquer sociedade, seja ela ditatorial ou democrática. Contudo, a análise recai sobre um dado concreto e irrefutável: vivia-se sobre os ditames de uma ditadura. Aceitando ou não, concordando ou não com o regime, cada um deles teve de conviver com as regras do salazarismo e com tudo aquilo que com ele se relacionava, inclusive a oposição. O argumento de não ser politizado, no caso destes depoimentos, não implica em não se ter uma ideia política sobre as coisas. Da mesma forma que tomar decisões políticas, não implica em ser um militante. Todos estes entrevistados preferiram esperar os desdobramentos, vivendo duplamente e habitualmente suas vidas. 2) Crítica e resistência – Vimos como foi possível construir uma crítica ao regime, ainda que suas bases familiares fossem conservadoras. No caso de Duarte Nuno e José Esteves, os pais eram salazaristas. Isto não impediu que eles tomassem posições críticas, ou estivessem envolvidos em grupos que discutissem a situação da ditadura em Portugal. O pai de Duarte Nuno foi da Legião Portuguesa; ele, um simpatizante da oposição e o irmão, um militante envolvido com os movimentos de independência de Angola. Esteves também era filho de salazaristas, era católico e, nem por isso, foi salazarista. Não podemos analisar a história com reduções. A memória dos entrevistados, muitas vezes, simplifica suas escolhas, certamente atendendo a uma lógica difícil de compreender. Não há uma equação simples: pai salazarista, filho salazarista. Não há determinismos. Isto, no máximo, pode explicar algumas ambivalências nas atitudes dos entrevistados, decorrentes de uma herança conservadora, que coexiste com novos olhares sobre a realidade, e que convive com ambivalências de outra ordem. Sabemos também que, em alguns casos, há necessidade de se metamorfosear diante da realidade, sendo interessante explicar as suas próprias escolhas a partir das escolhas dos pais. Não foi o caso deles. Tanto Esteves quanto Duarte Nuno viveram o salazarismo tecendo críticas e discutindo em reuniões os rumos do regime. Não parecem ter vividos uma vida ambivalente. Mas sabiam até onde poderiam ir. Quando viu que não era possível continuar, Duarte Nuno recuou. Conheceu os limites impostos pelo regime. E, através deles, confrontou-se com os seus próprios limites. Esteves tinha críticas muito específicas. Conta, em seu livro de memórias, que Salazar chegou a conhecer suas rebeldias, referindo-se a ele como o “de tronco nu”, numa referência ao problema que ele teve com o reitor de um dos Liceus em que ele trabalhou, por se negar a ministrar as aulas, com os alunos usando camisas. Para o regime, ele incomodava, mas não ameaçava. E assim ele podia estar relativamente liberado para fazer suas intervenções, o que não impediu que a PIDE estivesse acompanhando suas palestras para ver até onde ele iria e 94

chamando-o para interrogatórios. E, quando assinou a lista dos católicos, foi processado, sem consequências maiores. Mesmo assim, em muitos momentos, ambos silenciaram suas queixas, para sobreviver. Não foram clandestinos, não foram duplos, mas sabiam seus limites. Quando podiam, recorriam aos encontros clandestinos para poder falar, pensar e sentir o que fora deste ambiente poderia lhes colocar em risco. O homem-duplo também está presente na oposição. Segundo o estudo de Hermínio Martins sobre a oposição, utilizado anteriormente neste trabalho, através do livro de Irene Pimentel, resistência implica em clandestinidade. Embora Ribeiro diga, em seu livro, que ele não trocava de pele, para dizer que o cidadão e o militante eram um só, o clandestino só pode ser clandestino na condição de ser duplo. Sendo assim, clandestinidade implica, também, em ser outro. Ele mesmo, no depoimento, se queixa do que ele diz com ironia e bom humor, ser uma “falha conspirativa imperdoável”. E tem tudo a ver com o que ele falou sobre ter um pseudônimo. Se José Dias Coelho era o “Gomes”, ele era o Zeferino. ZE, de José, FE, de Ferreira, RI, de Ribeiro e NO, como complemento. Realmente, para quem estivesse a vigiá- lo, esperando encontrar um clandestino, comunista, ligando o seu nome e o pseudônimo, fatalmente chegariam nele. Como disse, o PCP teve muitas falhas. E a PIDE soube aproveitá- las. Portanto, ele era o Sérgio Ribeiro, economista, casado com a sobrinha de um ministro de Salazar, mas era também, o “Zeferino”, o militante comunista que esperava o Gomes na noite em que este foi morto. Um custo alto para quem quisesse entrar para a resistência, mas que não era segredo. Os riscos eram anunciados, pelo regime e pelo partido. Há uma passagem interessante de Hermínio Martins sobre a resistência que diz o seguinte:

A resistência é de longe a estratégia de oposição que mais custos tem num regime autoritário, em que a repressão contra este modo de oposição é tão severa e inevitável, as compensações tão incertas e remotas, que poucas são as estruturas organizativas que ousam adotá-la. Por isso, à excepção do PC, apenas os movimentos de ‘libertação nacional’ levaram a cabo com sucesso tal estratégia. 179

3) Os Informantes – Por causa do impacto na memória dos entrevistados, faremos uma breve, mas importante observação, sobre o mundo dos informantes. Como já foi dito, havia uma carreira a seguir dentro da PIDE. Poucos eram os elementos que tinham o segundo ciclo ou o ciclo superior.180 Muitos faziam por voluntarismo, por concordar com o regime e querer ser parte desta “obra”. Uns, por necessidade. Recebiam dinheiro para serem informantes.

179 MARTINS, apud PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 132. 180 “Até início dos anos sessenta, o recrutamento era feito num meio mais rural, uma década depois, < a grande base de recrutamento foi a tropa, os homens que fazem a guerra das colônias e que são recrutados in loco.” PIMENTEL, op. cit, p.56. 95

Outros, por prestígio. Ou por todos estes motivos e algo mais. O certo é que o grupo de informadores acabou por ser um núcleo importante para a ação da polícia política. Simbolicamente, representava a sua onipresença, já que qualquer um poderia ser informante da PIDE, em qualquer lugar, do “Minho ao Timor”. Mas, em 1962, uma circular < secreta> do diretor da PIDE admitia que os portugueses já não tinham tanto medo da polícia política como seria desejável e, por isso, dava instruções para se fazer renascer esse temor e melhorar a qualidade das informações sobre o ambiente político, militar, econômico e social.181

Com isso, queremos mostrar que, se a polícia política acirrou a luta contra a oposição, por outro lado, revela que o nível de temor da sociedade portuguesa perante a instituição não era mais como eles gostariam que fosse. Isto acontece porque a geração é outra, com novos valores, livres de muitos argumentos herdados dos pais. Ou construídos no contato com uma nova realidade, como a guerra colonial que acabou por disputar um espaço de vigilância que a organização não estava preparada para operar. Muitos homens foram deslocados para o Ultramar e as brechas foram aumentando e a oposição crescendo, à medida que os custos materiais e afetivos iam recaindo para a sociedade portuguesa da metrópole. O ambiente, dessa forma, permitia uma circulação de ideias bem maior do que no início do regime, ainda que à boca pequena. Além disso, a duplicidade não operou somente como defesa do regime quando se cala porque não é possível dizer o que pensa ou pelo silêncio daqueles que esperam para ver no que tudo aquilo vai dar, mas também no que Iva Delgado analisou sobre os informadores, onde “muitos cidadãos em circunstâncias normais seriam apenas isso, em regime de ditaduras, transformavam-se em delatores”.182 Nesse caso, a duplicidade implica, também, em covardias, sendo essas aqui pensadas sobre o aspecto da denúncia e, não, do silêncio.

181 Ibidem, p. 314. 182 MARTINS, apud PIMENTEL, Irene Flunser. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p.314. É importante dizer que as denúncias também diziam respeito às pessoas do regime. E, salazaristas integrantes do governo ou simpáticos ao regime, muitas vezes, foram vigiados pela PIDE, como a Liga dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa. Além disso, a delação também fazia parte do universo de pessoas de nível superior e com dinheiro.

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3 A GUERRA DO ULTRAMAR E O “25 DE ABRIL”

O último capítulo recupera os depoimentos acerca da Guerra do Ultramar e termina com breves considerações sobre a Revolução dos Cravos. Entraremos em contato com memórias que, embora tenham feito um percurso singular, contêm pontos convergentes na análise sobre esses dois momentos históricos. – A guerra do Ultramar e o “25 de Abril”.

O ano oficial da guerra do Ultramar foi o ano de 1961183. Desgastado, o salazarismo vislumbrou o seu renascimento, para sustentar, mais uma vez, a continuidade do regime. Tendo o Estado fracassado no seu intuito de fazer do corporativismo um pilar de longa duração, o Estado Novo apela ao outro pilar do regime, revolvendo o nacionalismo em torno da defesa do patrimônio colonial. A herança da ideia que os portugueses tinham em torno da sua missão histórica de cuidar dos territórios ultramarinos uniu, por algum tempo, parte da sociedade portuguesa que legitimava a guerra através do consenso criado em torno da luta pelo Portugal “uno e indivisível”. A partir da campanha “Angola é Nossa”, o governo conseguiu mobilizar segmentos da sociedade, criando uma atmosfera de união. Claro que alguns não concordavam com a intransigência do governo, que não aceitava buscar uma solução negociada para a guerra. Mas, aos poucos, a durabilidade da mesma agregou vários problemas que acabaram expondo as contradições do regime. Os depoimentos sobre o tema refletem a diversidade com que a situação era pensada. Uma mescla entre a autodeterminação e a federação, que exprime a luta para transformar o que representa o “Portugal profundo”. Machado da Costa revela o seu temor em ter de ir para a guerra. Como esta durou muito tempo, temeu pelos filhos, assim como sua mãe também tinha medo que o filho fosse para a tropa. Além das preocupações pessoais, ele questionou a validade da guerra. “Ninguém podia entender o que estávamos a fazer lá. E, depois da vivência que eu tive no estrangeiro, estávamos a defender quem? Por que é que estávamos ali a combater. Aliás, para os dois lados não havia razões, não havia razões para uma guerra daquela.” Hermínia criticou a guerra, explicando que

183 Os movimentos de independência já foram se organizando desde a década de cinqüenta. Em 1954, Portugal perdeu a seu primeiro território ultramarino. 97

“foi um erro. (...) “Manteve aquela coisa (...). Gastamos muito, perdemos muitos homens. (...) Se tivéssemos dado a independência, talvez não tivesse morrido tanta gente, numa guerra que gastou muito dinheiro e matou muitos homens. Uma guerra inútil.” (...) Disse que concordou com o movimento Angola é Nossa, mas só no início, porque foi atrás da carneirada. Depois “começamos a ver que aquilo não era nada. Era uma casmorrice. Já estávamos a ver que perdíamos aquilo e continuamos a mandar pra lá nossos homens, e a morrer. Morreram muitos. Até conhecidos meus, morreram muitos.” Quanto ao “25 de Abril” disse que seu pai não se manifestou. Ela e o marido ficaram contentes, mas diz que os velhos não. “Estavam muito arraigados ao regime. Estavam muito presos, tinham medo da mudança. Nunca mudamos em Portugal e eles tinham medo de mudança. E, ao que parece, para ela, esse medo tem a ver com as diferenças sociais e culturais. “Por exemplo: no norte as pessoas tinham medo da mudança. No sul fica tudo contente. (...) Só quem era rico é que não ficou, porque iam perdendo as coisas, foram perdendo.” Novamente, como no início do seu depoimento, ela recorre às diferenças entre o norte e o sul. O primeiro, conservador, o segundo, comunista. Mas sabemos o quanto podem ser redutoras as dicotomias. Contudo, o fato é que muitos que tinham dinheiro, “homens de bem e de bens”, tornaram-se os alvos prediletos de segmentos da sociedade que queriam fazer justiça. Casas, fábricas e propriedades foram ocupadas indiscriminadamente no pós 25 de Abril.184 E foi do norte que veio a reação da extrema direita, inflamando a população rural do norte do país no momento da transição para a democracia. Por achar que Portugal estava estagnado, comemorou a Revolução. “Eu, meu marido, e toda a gente. “(...) João já viajava muito, já ia lá para fora, já via tudo que já havia nos outros países. Então, aceitamos lindamente o “25 de Abril”. Não tinha nada a perder. Se calhar, tínhamos a ganhar.”. Perguntamos se havia uma expectativa de mudanças. “Exatamente. Pra melhor. (...) Nós ganhávamos mal, nossos ordenados eram muito baixos à vista dos estrangeiros. Tínhamos um ordenado muito baixinho, ganhávamos muito mal e tínhamos aquela expectativa de que o mundo ia mudar para melhor”. (...) João, em seu depoimento, disse que quando viajava, sob o aspecto político, não fazia comparações. O quanto isso é verdadeiro, talvez nunca vamos saber. Mas, neste momento, isso pouco importa. De fato, todos os argumentos da entrevistada são pautados em questões muito particulares. Não envolve um projeto de governo, mas existe uma demanda política. Ela

184 SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p. 126. 98

pensa na melhoria salarial, mais abertura cultural. De forma que, se o novo regime político pudesse trazer isto, tudo bem. . Em relação ao Marcelo Caetano, a sua lembrança sobre algum tipo de mudança no regime ficou a cargo da personalidade do, então, novo presidente do Conselho de Ministros. O fato de o novo Presidente do Conselho estabelecer o contato através da televisão atraiu a sua atenção. “Eu só percebi que ele queria estar mais em contato com o povo. “(...) Tinha as conversas em família, falava com a gente. (...) Eu não sei muito porque eu não sou política, tão politizada para falar sobre isso. Nem sou comentadora histórica. Não sei bem.” (...) “Era uma novidade. Nunca nenhum chefe de Estado tinha falado conosco, com o povo português.” (...) Não obstante, esse lado positivo de Marcelo era a sua fraqueza, pois a entrevistada avalia o fracasso do Marcelismo também pela sua personalidade. “Nós achamos que, com o Marcelo, vinha a mudança, mas não veio. Ele era muito “águas mornas”. Não era pessoa de grandes inciativas”. “Marcelo Caetano não tinha gabarito para segurar as rédeas do nosso país. Muito boa pessoa. Incrível, toda gente gostava dele, mas não tinha gabarito como se diz, não tinha pulso para segurar.” (...) A guerra do ultramar não traz boas lembranças para Maria José. Seu irmão foi para a tropa. Era piloto da aeronáutica e morreu em um choque de aviões no ar. Com dificuldades para falar sobre o assunto, contou um pouco do que seu irmão escrevia para a família: “No fundo, ele dizia que “estou eu a deitar aqui tanto Napalm’, lembro-me da expressão Napalm, que eram aqueles explosivos para matar milhares, era matar! ‘O que é que eu estou aqui a matar milhares de pessoas, percebe? Com que fim, com que finalidade?’ Eu acho que isto foi uma coisa, não sei se isto é contestar o regime?(...) Depois, muito tempo com a guerra colonial, aí é que as pessoas, não é? Se punham voltadas e fugiam. A guerra colonial, digamos que foi determinante quase para a queda do regime”. E, enquanto o irmão estava em Angola, alguns portugueses gritavam Angola é nossa! Mas ela não. “Pois, quando toda a gente gritava Angola é nossa!(...) eu sentia, nessa altura eu sentia perfeitamente que era um disparate, ia ter um mau caminho, indiscutivelmente. E sentia que era arriscadíssimo. E quanto ao meu irmão era arriscadíssimo, a gente nunca espera o que acontece(...).” Ela foi aluna de Marcelo Caetano e, apesar de avaliá-lo como bom professor, achava que não conseguiria mudar o regime. Mas por motivos diferentes da Hermínia. Para começar, ela relembra que o seu programa, “Conversas em Família” recebia críticas. Achava seu professor inteligente, mas o fracasso do Marcelismo, para ela, tem motivos políticos. 99

“O meu professor era uma pessoa inteligente e dava boas aulas. As aulas eram boas. Eram boas aulas. Mas como pressentia, ou tinha a intuição, não sei bem como, que ele não seria, ele não era capaz de fazer a mudança. Não se tinha distanciado suficientemente. Tinha que haver ruptura mesmo e não podia haver meios termos.” Para ela, não precisa ser politizada para ver que não daria certo. Era uma questão de lógica. “Naquela época, já havia o suficientes para ver, quase que logicamente, sem ser muito política, que não podia continuar a situação. Tinha de haver mesmo a ruptura pra mim, nessa altura, era um bocado claro (...)”. Sobre o pós “25 de Abril”, ela lembrou que os dirigentes que assumiram a Casa dos Pescadores também eram autoritários, inclusive sofrendo com algumas intrigas. Duarte Nuno contou que depois da Revolução, ele encontrou alguns ex-agentes da PIDE na rua, mas sua reflexão sobre isto é significativa. “Eu acho que, de facto, nós tínhamos os mesmos princípios, porque veio de facto o 25 de Abril e muito daquela gente que colaborou com o Estado Novo fez a sua vida democrática normal, a não ser polícias, enfim, tipos que torturavam e tal, esses não. Mas, mesmo assim, até esses, quase nenhum apanhou prisão. Isto faz parte dos princípios que defendíamos, não é?” A democracia era mesmo para todos. "Entretanto, houve uns facínoras que escaparam, mas isto acontece em todo lado.” (...)“Pois, veja que foi, realmente, uma revolução, em que quase que não houve mortos, não é? Coisa estranha. Portanto, ou as pessoas não estavam a pensar nisso ou, depois, posteriormente, com aquelas brigadas, com a rapaziada da extrema- esquerda, fazia justiça com suas próprias mãos. Houve, de facto, perseguição, isso houve, em relação aos postos (funcionários públicos- sobretudo as filhas, não é? As filhas é que sofreram mais. Houve muita gente que se converteu (risos). Porque , de facto, a política dizia também pouco, não é? Não queriam que nada os aborrecessem. Eu sei, eu sei de vários casos.” Disse que se fosse convocado para a guerra iria fugir e que nunca concordou com o movimento “Angola é Nossa”. Para ele, “Angola era nossa pros brancos, sobretudo. E não para os negros. E nós sabíamos que havia racismo. Havia mesmo . Havia exploração do negro, é um facto.” Partidário da descolonização, conta que o livro que mais vendeu foi Portugal e o Futuro, do Spínola. “Vendi centenas deles. Fiquei assim espantado. E depois , tudo caminha rapidamente, porque estava tudo podre, não é? (...)”. 100

Para ele, a guerra foi determinante para a derrubada do regime. “(...)Os jovens que vão morrendo na tropa, não é? Na guerra. E isso vai minando . Quer dizer, apesar de toda a propaganda, podiam dizer isto foi para honrar a pátria, foi para defender a pátria e tal, de facto é que os jovens iam morrendo e centenas e depois, estropiados . E, depois, aquela gente que vinha não funcionava bem. Eu tive um colega ou dois, que vieram de lá em 65/67, que não funcionavam mesmo bem, não é? Problemas psíquicos. Portanto, tudo isso começou a criar um certo desencanto, apesar da propaganda dizer que aquilo era necessário e que Angola é nossa (...)". É provável que as pessoas mais chegadas ao regime, mais ligadas, por favores por isso por aquilo , defendessem não é? (...) Se era consciente isso eu não sei dizer, mas que havia uma defesa havia e nessas manifestações apareciam aos milhares. Iam lá arranjar caminhonetes nos vários pontos do país, nas caminhonetes, (...). “manifestação espontânea”( risos). (...)"Agora, eu acho que senti que aquilo mais tarde ou mais cedo, os próprios milicianos que vinham de lá davam conta disso, não é? Ia se sabendo dos recuos , do que se passava em Moçambique, o que se passava em Angola, em vários recuos das forças, não é? A falta de meios. Portanto, eu acho que, à certa altura, começou-se a pensar que aquilo era indefensável, não é? E, portanto, podia perfeitamente, eu julgo que a Revolução aconteceu e não houve grandes manifestações contra a Revolução, não é? Na sua opinião, pensa que Portugal fez muito pouco pelas colônias em África. "Acho que se fez muito pouco. Porque Salazar não permitia. Salazar não permitia que se discutisse a pátria. Eram as palavras dele. A pátria, não se discutia. Pronto. E a pátria é Angola, é Moçambique, era isto, era aquilo lá. E quem discutisse era preso. Portanto, não há nada a fazer, não é? Nem mesmo com Marcelo Caetano. Podia ter feito alguma coisa e não fez. Eu lembro, na altura confiamos muito em Marcelo Caetano, na chamada Primavera Marcelista. E, depois, havia aquelas forças tenebrosas que apoiavam o Salazar, que tinham uma grande força com a PIDE e a polícia aí era importante, não é?O exército não tanto, mas também era, mas, sobretudo a polícia, não é? A própria PIDE, não é? Portanto, não houve alteração nenhuma. Mas foi pena. Eu penso que podia se ter chegado a um, quer dizer, o branco, de facto, acho que seria muito difícil, para a maioria dos brancos, admitir uma igualdade de comportamento pra com o negro. Aliás, nem sequer a própria África do Sul conseguiu resistir a isso, que era o grande bastião. Alí , era de facto, que havia mesmo, a grande divisão de negros para um lado e brancos para outro (...). Portanto, era difícil. Mas, talvez, não se tivesse criado tantos ódios como se criou . Agora já não" Armando Lacerda também acredita que Marcelo Caetano poderia ter feito alguma 101

coisa, mas tal como Duarte Nuno, atribui aos “ultras” o fracasso da “Primavera Marcelista”. Em relação às colônias, acha que o governo deveria ter feito uma abertura através de um relacionamento mais amistoso, um maior investimento, porque ele se lembra de alguns africanos terem lembranças positivas em relação a Portugal. "Anos depois do 25 de Abril,(...) eu fui a Moçambique, Angola não, só quando estava na tropa, e achei uma coisa curiosíssima”. Diz que ouviu de um rapaz: "meus pais dizem: no tempo dos portugueses é que isto era bom. A ilha de Moçambique está destruída e foi considerada um patrimônio da UNESCO”. Em 2004, ele foi a Moçambique e regressou com uma má impressão do lugar. "Houve um desenvolvimento, de facto, de Angola, Moçambique, Guiné eu não conheço. Isso é um fato. Apesar de existir a guerra, Angola desenvolveu-se. Com estradas (asfalto)(...). A outra era a vivência das pessoas lá que entendiam que, de fato, o desenvolvimento não fosse suficiente e que precisavam no caso de Angola, é uma província riquíssima” (...). “Eu não esqueço, por exemplo, de verificar de estar a jantar em casa de um amigo meu que vivia lá e que esteve comigo aqui no colégio no Liceu (...) verifiquei que eles tinham convidado pais e as pessoas que eram natural de Angola (...) A crítica, precisamente a nós militares que estávamos lá é que estava tudo mais caro, e , (...) na altura, como pode imaginar, Luanda tornou- se uma cidade retaguarda de guerra (...). E conversou com outras pessoas da casa. "Você pensa que eu estou aqui de modo próprio e de bom agrado?” “(...) "Eu dizia: Mas vocês, eu me recordo de ver na televisão, em Portugal, (...) as primeiras tropas quando cá chegaram, vocês encherem a marginal de Luanda a aplaudir as tropas que vinha do ultramar para defender. Então, o discurso está um bocadinho incoerente. Vocês aplaudem dum lado quem vem para defender, né? Depois eu dizia: Será que vocês que vivem em Luanda estão afastados da realidade daqueles que vivem nas fazendas e que estão afastados dos que são alvos dos ataques terroristas, na altura. Porque os movimentos de libertação (...) atacavam as fazendas, as coisas isoladas (...) e Luanda, embora fosse uma cidade de retaguarda de guerra, não tinha a vivência direta e próxima do que era a guerra, como Lourenço Marques, agora Maputo. Está a ver? (...)” As pessoas de Luanda não viviam tudo. O que sentiam? A carestia de vida. Portanto, isto no fundo tem muito a ver quer queiramos ou não, embora todos nós vivamos em sociedade, infelizmente, nós pomos sempre muito os interesses pessoais sobre a componente e a avaliação coletiva. Nós, muitas vezes, pensamos muito mais no nosso umbigo. “E as pessoas que viviam em Luanda, na altura, se bem que estavam a sentir uma autonomia, uma independência, fosse aquilo que fosse, porque havia 102

aqueles que falavam numa espécie de federação.” Aliás, ele se lembra que ficou muito aliviado de ver que o Spínola defendia algo que ele acreditava. “Não sei se leu aquele livro Portugal e o Futuro? Pronto. O Spínola, uma das coisas que defendia era a federação entre Portugal e as províncias, Estados Unidos de Portugal, pronto. (...) E havia aqueles de uma solução mais radical que queriam pura e simplesmente a independência. (...) Não sei como isso poderia se resolver, isso é uma coisa política”. Disse que nunca concordou com a ideia de Angola é nossa, mas torcia para ter uma solução que ele não sabe bem o que poderia ser, mas que se pode ter uma ideia, a partir do que ele coloca a seguir. "A minha ideia e sempre disse isto e, também depois, mais tarde, fiquei muito contente quando apareceu o livro do Spínola, a dizer precisamente de uma transformação política e, eventualmente, de haver uma federação dos tais estados livres, (...) que houvesse autonomia de Angola, Moçambique, Guiné etc, e que depois, houvesse de fato, uma ligação com Portugal. Se me perguntar como é que essa ligação se iria fazer, eu não sou capaz de responder (...).” Nesse período em que serviu, ficou em uma “zona de operações” que não houve muitos conflitos. Era uma área mais de controle e vigias, já que era uma “zona de passagem”. Nessa experiência, percebeu o desligamento dos milicianos no que dizia respeito ao cumprimento das operações, deixando de fazer as vistorias que lhes eram confiadas. “A vigilância, que era para fazer pelos quadros superiores acabou por ser feita pelos capitães que não vigiavam direito.” (...) “Os movimentos de libertação também sabiam que a ‘tropa macaca’ não fazia operações. E eles tinham medo dos comandos, fuzileiros e paraquedistas, que eram um a tropa especializada e quando faziam as operações faziam a sério”. (...)1973, portanto, doze anos de guerra. A “tropa macaca já estava nessa fase”. (...)“ Com a entrada dos milicianos, as tensões foram acirrando, o que acabou por culminar no Movimento dos Capitães. “Milicianos, apanhados, iam duas vezes para a tropa e depois foram incorporados. [Com patente e salários]. Metiam o chico. Passavam a ser militares, oficiais, direto, por terem participado da guerra colonial, às vezes por duas ou três vezes.” Essa situação desfavorável de hierarquia mais a guerra em si, acabou por criar tensões. “Isto não agradou. Acabou por proporcionar o Movimento dos Capitães.” Além disso, havia o Partido Comunista. “Militares comunistas começam a ganhar força dentro da sociedade militar”. Havia miliciano que já tinha uma formação política (AMFA) “Estava a ser manipulado pelos comunistas”. 103

Temos algumas questões delicadas nessa perspectiva. A guerra do ultramar, apesar de João Roque, como militar, e tantos outros portugueses, acreditarem estar defendendo o que era “seu”, foi perdendo apoio não só internacional, como internamente. Para nos atermos somente ao fator interno, que diz respeito à sociedade de forma mais direta, temos as seguintes situações: uma elevação dos gastos com as forças armadas e a defesa nacional, com o aumento da receita do Estado, afetando a economia portuguesa; o descontentamento de parte da população, que via seus familiares e amigos voltarem em péssimas condições físicas ou mentais, ainda que fossem só leves alterações de comportamento, como notou Conceição em relação ao seu irmão. Isto quando não voltavam, como foi o caso do irmão da Maria José. O desconhecimento de regiões inóspitas fez com que muitos militares tivessem contato com livros de guerrilhas; além do grande número de baixas e deserções que afetavam a mobilização para o esforço de guerra. Tudo isto fez com que o governo criasse o decreto Lei no 353, de 13 de Julho de 1973, seguido do decreto no 409 do mesmo ano, visando preencher os quadros deficitários. Resumidamente, esses decretos

Permitiram assim que os combatentes do ultramar, milicianos, que não eram soldados de carreira, pudessem, depois de quatro anos de combate, voltar à metrópole e se tornar oficiais da escala ativa, fazendo um curso acelerado de dois semestres na Academia militar (em vez de cursar os quatro anos regulamentares dos oficiais de carreira). Isso ofendia a hierarquia das Forças Armadas, à medida que os novos oficiais, ex-milicianos, podiam até ultrapassar o grau hierárquico dos seus ex-comandantes no ultramar.185

Vimos, anteriormente, que já havia certa insatisfação dentro das Forças Armadas com o regime. Salazar vem temperando o humor dos militares desde o início e os momentos de crise “teimavam” em aparecer sob a forma de conspirações e aparentemente, muito personalizadas. No contexto da guerra, o aparelho militar foi ganhando autonomia em relação ao Estado, destacando as iniciativas de “jovens oficiais, nomeadamente capitães, assim como majores, coronéis e alguns poucos generais”.186 Aos poucos, houve o que Secco definiu como a “transmutação dos interesses corporativos em questão político ideológica.”187 Ao que parece, essa transmutação é resultado de múltiplos fatores, formando novos consensos e consentimentos desse grupo que viria formar o Movimento das Forças Armadas, mais do que uma simples manipulação dos comunistas, embora não tenhamos dúvidas do envolvimento dos mesmos na preparação política para essa mudança de posição. Segundo o ensaísta Eduardo Lourenço, eram eles, “jovens oficiais de um combate recusado, mais por injusto do

185 SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p. 108.

186 PALOMANES, 2004, op.cit, p.744.

187 SECCO, op. cit., p. 158. 104

que por impossível”.188 Lacerda mesmo disse que o descontentamento era discutido entre um momento e outro, não com todos, mas acontecia de se perguntarem sobre estar ali. "Questionavam-se, por que se está aqui a fazer? Pra que isto serve?” (...) “Entre nós, milicianos, era uma conversa que tinha alguma frequência". Apesar de João Roque dizer que não se falava em política, lembra que ir para a guerra foi um momento de confronto com o regime. E Maria José se lembrou do que o irmão falava nas cartas, indagando se isto era ou não, questionar o regime. Já a lembrança de Lacerda do pós “25 de Abril, não é positiva, por causa da atuação do PREC. “Todos os dias, havia uma nacionalização”. Segundo ele, muitos desmandos aconteceram nesse período. Para o entrevistado, quem ajudou a recolocar alguma ordem no processo de democratização foi o Vasco Lourenço, capitão do “25 de Abril”, bem como Melo Antunes189 e Mário Soares, tendo este último liderado uma manifestação, em 1975. E, de acordo com suas palavras: “Portugal foi salvo de uma nova ditadura.”190 Com todas essas experiências, as discussões com o pai, a experiência democrática no Colégio Moderno, o serviço na tropa, ele faz uma reflexão que chama de “um bocado retrógrada”, mas que é importante destacar. "Eu digo uma coisa que é um bocado retrógada (...). Eu percebi muito que a ideologia comunista na época, e como disse com muito respeito pelos comunistas e ver aquilo o que representavam como oposição etc, etc, e até pelo que era defendido. Decorridos esses anos todos, com a queda do muro de Berlim e, no fundo por aquilo que eu acho que é uma evidência é que aquela ideologia era uma ideologia que não vingou, não vingou. Nós podemos dizer que na sua gênese estava, na gênese da ideologia comunista estava qualquer coisa, que seria aliciante,que seria interessante e seria até desejada, só que quando nós friamente analisamos, achamos que é uma utopia. É que não pode existir .E a prova disso é

188 LOURENÇO, apud, PALOMANES, 2004, op. cit, p. 744. 189 General Ernesto de Melo Antunes, citado no depoimento de Duarte Nuno por terem feito serviço militar juntos, representava o setor mais politizado das Forças Armadas e um dos principais autores do programa do MFA.

190 O entrevistado se refere ao momento crítico da transição, no período conhecido como PREC- Processo revolucionário em curso, que durou do dia 25 de abril de 1974 até novembro de 1975. Numa sucessão de acontecimentos históricos, desde a Revolução, com a queda do regime, tentativas de golpes feitos pelas alas radicais, tanto a esquerda como a direita, a radicalização da extrema-esquerda no que diz respeito aos saneamentos e nacionalizações e a vitória dos socialistas nas eleições para a Assembléia Constituinte um ano depois do “25 de Abril”, Portugal encontra-se em meio a conflitos, agora entre alguns socialistas e o governo provisório, bem como daqueles com o PCP. Dois momentos de visibilidade deste conflito são as manifestações dos dias 18 e 19 de Julho, no Porto e em Lisboa, conhecidos como o “verão quente”, organizadas por Mário Soares com apoio de Vasco Lourenço. 105

que não existiu, (...) na própria União Soviética. E eu, às vezes, eu prefiro ver assim: Como é possível, se me perguntarem aqui, um homem de 70 ou 80 anos (...) que acho que é difícil uma pessoa que é formada, com determinado conceito, de um momento para o outro, abdicar. Já me custa mais admitir e é por isto que eu lhe digo , penso que é uma questão cultural e até intelectual. Já me custa ver hoje, uma pessoa de 30 anos que já teve uma determinada vivência , pensar ainda que aquilo é (...) aplicável.” Isto é um bocado reacionário.” Não vou agora ao ponto do Jardim, não, não!” Aquilo é diferente”. E faz um balanço da sua posição quanto ao Ultramar, que ele chamou de moderada porque pode ser uma questão sentimental ou até irracional, pois fez muitos amigos por lá, Angola e Moçambique. Pensa que não deveria haver um corte abrupto, “um corte umbilical”. Por isso, acredita na opção pelo entrosamento. “Eu achava, portanto, que se houvesse essa interligação seria também um fator da não existência de um corte umbilical, tá a ver? E por quê? Porque seria benéfico para todos os países envolvidos. Ainda que fosse Portugal o mais beneficiado, na medida em que Angola é que tem a riqueza. Mas Portugal poderia oferecer o “know how”. Entretanto, reconhece que isso “ talvez não desse certo, exatamente por que Angola, sendo o país detentor da riqueza, iria acabar querendo se separar totalmente, tendo sua autonomia e independência.” Por isso, acha a independência legítima. E fala sobre a posição de Salazar quanto ao assunto, ao dizer que o Presidente do Conselho de Ministros não percebeu essa caminhada em favor da independência. “ Acho que não percebeu. E acho que foi aí, eu acho que é o grande, acho que teve outras coisas, mas acho que esse foi, em termos políticos, o grande erro de Salazar. Foi esse. Pra mim foi esse.” E ressalta que, desde cedo, aprendiam na escola que Portugal era um território “ uno e indivisível”. Questiona-se também, se muitos dos que queriam a independência na África, não desejavam fazer uma colonização. “De facto, as coisas foram de tal maneira, e muito puxadas pelo partido comunista, que queria... Eu não sei se o partido comunista ao fazer isso, também, não queria, como veio a acontecer mais tarde’. Àquela altura do PREC houve muitos quadros russos, cubanos em medicina, muitos médicos cubanos que foram para Angola e pra Moçambique, tá a ver? Portanto, houve também russos e, não só, que foram para Angola e pra Moçambique (...). Será que também não havia o interesse depois, de eventualmente, você sabe [colonialismo por outro lado] (...) Isso aconteceu, isso aconteceu”. E sua dúvida vinha por saber da 106

influência de comunistas no meio dos guerrilheiros. Isso tudo em uma época de “esferas de influências” sobre a Guerra Fria, no que acarretaria, para ele, num “colonialismo às avessas”. A avaliação que Lacerda faz da presença dos comunistas na tropa, tem sua razão de ser. Se haveria um “colonialismo às avessas”, isso só depois, com o curso da história, seria possível saber. O que de fato tinha como concreto, era uma crise de mentalidades que não pode ser limitada em uma região específica. Como diz Secco, “As ideias circulam num espaço metropolitano tanto quanto nos territórios coloniais. E ambos inserem-se em ondas mundiais”.191 Interesses “europeus, soviéticos e norte-americanos”192 estavam presentes nessa guerra.

A União Soviética tinha um prestígio pouco discutido como modelo: a planificação parecia uma panacéia capaz de tirar um país atrasado do subdesenvolvimento num ritmo acelerado, sem que as condições objetivas (recursos materiais e humanos, quantitativamente e qualitativamente).193

Apesar desse modelo pouco questionado, é possível encontrar, nos programas dos movimentos de libertação, ideias presentes no Portugal do século XIX, como o republicanismo. Isto se explica pelo fato de muitos revolucionários terem sido formados em Portugal. Uma geração que acabou por incorporar a mesma cultura do colonizador. Entretanto, o socialismo era a via rápida para alcançar a transformação desejada ou possível. Se Portugal demorou a expandir seu desenvolvimento urbano194, a “África portuguesa nunca desenvolveu sua urbanidade nem seu urbanismo”.195 A rede de estradas foi construída para atender aos interesses econômicos, como produtos sul-africanos e da Rodésia por Lourenço Marques e Beira, por exemplo. Os interesses da população só eram atendidos quando estes coincidiam com os interesses de financeiros ou administrativos. Não houve mistura. Os portugueses significavam muito pouco, em termos populacionais, em relação aos nativos. Portugal, insistindo na guerra do ultramar, expôs essas desigualdades, abriu uma ferida que não tinha condições de fechar, porque defendia uma solução que não iria resolver. Tudo isso,

191 SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p. 76.

192 Ibidem, p. 77.

193 CHALIAND, 1977, p.135, apud SECCO, op.cit, p.66.

194 Há um estudo sobre as diferenças entre o desenvolvimento da urbanidade de Portugal e outros países, mostrando que Portugal esteve sempre atrás de países como França e Inglaterra, bem como a vizinha Espanha. Ver em GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia.

195 SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p. 82. 107

para não mexer nas próprias feridas. No final, portugueses e nativos têm suas vidas abaladas. A identidade é questionada. O sofrimento atingiu a todos e aumentou a ambivalência que marcava a sociedade no que se refere ao ultramar. Conceição Roque, que morou muitos anos em Angola, recorda o sentimento perante a guerra. Em Lisboa, já casada e com uma filha, sofria por saber que sua mãe ainda morava lá. “Na altura, aquilo era visto como uma invasão”. “Nós considerávamos aquela terra nossa e foi incompreensível como é que, pra mim já não porque já estava cá, eu vivi o 25 de Abril cá; mas para estas pessoas que estavam lá, aquilo foi uma hecatombe. Nós não fizemos mal nenhum. O que nós fizemos? Por que temos que ir embora da nossa terra? E, então, aqueles ataques todos. Morreu gente. Morreu gente vítima de ataques terroristas, né? (...) E aquilo foi a passar um mau bocado, tratavam mal as pessoas, claro que tratavam, era isso que se pretendia, né? Não foi pacífico. O melhor que fizeram as pessoas foi mesmo vir embora. Mas, por exemplo, minha mãe e meu irmão vieram embora um ano depois do “ 25 de Abril”. Nós dizíamos: venham embora, venham embora, porque a gente via, nas notícias, as pessoas a virem embora. E a deixar tudo e virem embora". Na altura seu pai já havia falecido. "Nós fomos buscar minha mãe no aeroporto e minha mãe vinha tão estranha. E começou a dizer que só tinha trazido duas malas porque o resto viria depois. E eu disse: Mãe, o resto não vem depois, já não vem nada e ela zangou-se comigo e chorou. Não acreditava que suas coisas não vinham. Eles vieram quando não havia nada nas prateleiras, quando começaram a acreditar que não podiam lá estar. Qualquer louco podia matá-los. Um amigo do meu irmão desapareceu e algum amigo avisou que ele estava na beira da estrada, apunhalado com dois tiros ou qualquer coisa, estava ferido e trouxeram e conseguiram salvá- lo, porque foi atacado. Atacavam as pessoas assim. Não era mais possível fazer uma vida normal (...)." E, mesmo sentindo-se angolana, entendia que a guerra não fazia sentido, no que se refere à independência. “Pra nós não fazia sentido. Por que Angola independente? Angola é Portugal! Lembro- me que eu trabalhei depois do Liceu, numa Câmara Municipal e, nessa altura, fui porta - estandarte do grupo desportivo da câmara, participando numa manifestação, julgo que encomendada pela metrópole pra lá, porque acho que foram feitos em vários pontos de Angola, cantando o célebre “Angola é nossa”, "Angola é nossa gritarei. É carne, é sangue da nossa grei! Lembro - me dessa canção épica (risos) era chamar o patriotismo (...). Pronto. E as pessoas sentiam-se proteger o que era seu. O que era seu. O que era seu . No nosso caso, 108

era nossa casa, não tínhamos nada mais". E ela faz um paralelo com as pessoas que viviam aqui, em relação à guerra: "Eu penso que aqui as coisas, aqui as pessoas não gostavam de perder os seus soldados, né? Lá, os soldados de lá, acho que sentiam a defender o que era seu. Diferente dos coitados que iam daqui, pro sítio que não conheciam e começaram a questionar perder suas vidas lá. Eu namorei um paraquedista de Tomar e eu acho que ele lutava por algo que ele achava que era dele, (...), lutava com muita garra porque achava que aquilo era Portugal. Por que havia assim um certo encanto, chegar em África (...). Depois de quase quarenta anos do fim da Guerra de Portugal com Angola, ela chora ao se lembrar da guerra. "Porque a gente viu a nossa cidade completamente destruída, aquilo que se construiu, que foi construído, não é? Por nós. Angola, Luanda, Benguela, Lobito, (...), Nova Lisboa, tudo destruído. Mesmo lugares da tua infância e da sua adolescência e tudo porque a guerra é uma coisa muito estúpida, não é? (...). Eu virei a página, mas fica aqui qualquer coisa. As pessoas lutavam com muito orgulho". Mesmo assim, hoje, ela diz que valeu a pena a independência. "Acho que sim, acho que se fez aquilo que se deveria fazer, acho que não há nada que chega à liberdade e dá direito das pessoas se afirmarem como tal. No entanto, sei porque já falei com algumas pessoas, que dizem que lá se lamenta a partida dos portugueses. Mas, na altura, fomos maltratados. Fomos porque, quando digo fomos, é minha gente, porque eu estava cá , estava a salvo, mas muita gente lamentou a partida dos portugueses, porque também piorou a vida para eles e é o que dizem muitos, hoje há lá imensa corrupção.(...)” E, no dia 25 de Abril de 1974, lembra-se de bater a sua porta um amigo a dizer: “ (...) há uma revolução! Há uma revolução! Mas, não se preocupe. Eu conheço um sítio onde podemos nos esconder. Certamente ele estaria muito mais politizado porque a economia, julgo que era uma das faculdades muito mais politizadas". (...) "A descolonização podia ter sido feita de uma maneira completamente diferente. Não foi pacífico. De ver colegas, um grande amigo meu, conhecido [dizia]196Ah! O que é alguns que morram, isso não é nada para a história e eu dizia: não é porque não é nem tua mãe, nem teu irmão, senão pensavas de uma maneira diferente e fiquei zangada com ele, depois ele percebeu isso". E, em vez de ir para um esconderijo, como sugeriu o outro amigo, ela e o marido foram para a rua, já que não tinham motivos para esconder-se. Entretanto, seu comportamento

196 Grifo meu. 109

não era de uma militante, pois nunca se envolveu em política e, sim, de “expectadora”. “Fomos, mas por curiosidade. Fomos pro Largo do Carmo (...) que era onde estavam as coisas a acontecer, ficar a espera da saída de Marcelo Caetano (...) ouvindo aqueles gritos todos e povo unido jamais será vencido". (...) “Manter a calma. Imagina as pessoas não mantinham a calma. Eu percebo que a coisa foi de tal maneira.” Para ela, o “25 de Abril ” foi surpresa. “Pra mim foi. Pra mim foi. E certos comportamentos eu não aceitei. Na faculdade, a história dos saneamentos custou - me a ver. Também era ligeiramente mais velha, já era casada, tinha responsabilidade com filho, não sei se isso mudava a maneira de ver as coisas. Mas custou-me ver professores que eu gostava, professores que eram amigos, e de repente, viravam bandidos e não tava certo (...). E era com a maior das irresponsabilidades. Ah, vai ser saneado porque era da Mocidade Portuguesa. Esse porque era incompetente, esse porque era macrobiótico197, (profª.Suzete). Eram esses desmandos.” (...)Era esta a situação do pós “25 de Abril”, que o conceito da liberdade era poder invadir uma casa, independente de esta ter dono. Tudo se perdeu. Qualquer um fazia o que queria. (...) "Assim como nas faculdades. Sanearam-se professores. Mas sem razão. Olha, uma professora, nossa professora de ginástica, que era uma alemã, que estava cá fugida da guerra (...) sanearam-na por quê? Porque era fascista. Fascista por quê? Porque tinha trabalhado para Mocidade Portuguesa. Era, na altura, toda gente era da Mocidade Portuguesa. Toda gente que eu me lembro.” De fato, logo no início do PREC, ocorreu um processo intensivo de saneamentos em universidades, instituições públicas visando à eliminação daqueles que estiveram mais ligados ao salazarismo. Secco chega mesmo a dizer que o “MFA promoveu o saneamento de pessoas e não de processos burocráticos.”198. Apesar disto, não se pode creditar toda a responsabilidade dos acontecimentos aos militares envolvidos no MFA nem ao PCP. No caso do MFA, o projeto inicial era democratizar, descolonizar e desenvolver199. Quanto ao PCP, em muitos casos, foi chamado a servir de freio aos movimentos mais radicais que se instalaram à esquerda e o controle do movimento popular e operário. (...) “Mas era bom que tivessem outras vozes e alguém que enfrentar, às vezes, porque era tudo tão parvo, ia tudo atrás. Olha, fiquei com muito medo. Tive a apreciação do que era a carneirada. Não pode confiar numa multidão. Toda gente vai atrás. Alguém do que diz

197 Ela conta o caso da Porf. Suzete que foi saneada porque era macrobiótica, mas que isso era somente um motivo qualquer que arrumavam para sanear.

198 Secco, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p.138.

199 PALOMANES, op. cit, 2004, p. 774. 110

mata, vai tudo matar, ninguém pensa."(...) Um discurso inflamado pode inflamar mesmo". "Tive alusão muito viva de que era preciso dizer não quando era preciso dizer não e era preciso dizer logo e bem alto". E, mesmo com essa experiência ruim do PREC, fala o que pensa sobre a democracia. “A democracia tem muitos erros, sofre de muitas simplificações, mas penso que pode ser melhorado sim". João Pina não participou do movimento “Angola é Nossa”, mas acreditava na autodeterminação, desde que feita em moldes diferentes do que foi. "Não, eu estava de acordo em que todas as províncias ultramarinas deveriam ter, na devida altura, a autodeterminação. Dentro de uns determinados limites e bem negociados e não, como foi, da forma que foi negociada porque isto foi prejudicial para nós, foi prejudicial para eles, acabou naqueles genocídios que todos nós sabemos. Devia ter sido uma coisa, talvez, feita a forma com a cabeça, tronco e membro como fez Inglaterra, não é verdade, com calma. Ali não. (...) Deu-me a impressão, esta é a sensação que eu tenho, que a independência das colônias foi uma coisa feita toda feita ali à pressa, despacharem daqui, não serem mais maçados nem nada disso, foi a impressão com que eu fiquei, embora seja apologista da alta determinação, mas não da forma como foi feita, foi muito feita a correr , a correr muito. Dá a impressão que tem um furúnculo que espreme para se ver livre daquilo e acabou. Agora, a autodeterminação é imprescindível, é imprescindível(...)”. Sua reflexão está muito pautada pela condição que as ex-colônias enfrentam como corrupção, desemprego e crimes. “Não me pergunte como deveria ter sido feita porque não sou político. Agora fazer uma autodeterminação em seis meses ou quatro meses, não. Não vê o que deu em Timor? Mataram - se todos uns aos outros, a Guiné, matam-se uns aos outros, em Moçambique, mataram-se uns aos outros, em Angola mataram-se uns aos outros, pra quê? E aí, acho que o grande responsável disso tudo somos nós. Portugal é que foi o responsável por aquilo. Isto é a minha maneira de ver o problema.” “Agora, se o Rosas vê assim eu não sei”200. (risos) Um fato interessante é que, mesmo sendo uma pessoa viajada, diz que não fazia comparações sobre o aspecto político. "Eu, sobre o aspecto político, não fazia comparações. A única coisa é que eu viajava pra a Europa de navio, (...) mais frequência outros países (...) e toda a gente aceitava o Escudo, era uma moeda forte, graças a economia do prof. Oliveira Salazar". "Eu era um

200 Refere-se ao Historiador Fernando Rosas. 111

apolítico percebe-se". (...) "Nunca fui afetado porque era totalmente apolítico, completamente. Preocupava-me com a minha profissão, e quando chegava a um porto, queria ir fazer compras, ir a um Museu, distrair, depois beber um copo, jantar para sair da rotina daqueles almoços da comida de bordo e acabava-se aí a história.” Para concluir, responde que, “mesmo não sendo afetado, eu tinha a consciência que o regime estava condenado, tinha que mudar um dia". E lembra-se da esperança que tomou as pessoas quando Marcello Caetano assumiu. “Dizem que os chamados “ultra” é que o boicotaram”. “Acabou por ficar na mesma.” "Foi uma pena, porque, talvez, as coisas tivessem se processado de uma forma mais lenta.” (...) "A menina não queria saber o que foi a PREC.” (...) “Hoje estamos melhor. Não me queixo”. Ao contrário de Armando Lacerda, João Roque diz que não se falava em política. “A tropa ainda era uma coisa mais controlada nesse aspecto, porque Salazar existiu, existiu enquanto ditador porque teve o apoio da tropa. A tropa suportou Salazar o tempo todo. E suportavam-se um ao outro (....)". Foi para a guerra em 1965. E lá, entrou em choque com uma realidade que ele desconhecia. "Primeiro um choque muito grande". "Dar apoio às escolas, o trabalho do batalhão onde eu estava era dar apoio à escola que ia levar víveres de Luanda pro Norte de Angola e levar madeira do Norte de Angola pra Luanda (...). Foi aí que, se calhar, mais forte se teve a consciência mais forte do que se estava a fazer ali. Porque (...) havia escravos. Não o escravo tradicional, mas escravo com requintes, que eram os negros que eram contratados no sul (....) pelos campos lá de cima (norte) para ir trabalhar no campo contratado por uma verba anual, que iria recebendo depois mensalmente enquanto vivia lá(...). A questão da escravidão é por causa do fato que os trabalhadores ficavam presos ao trabalho porque deixavam seus salários nas cantinas, ficando sempre a dever.” No princípio, ele diz ter ido com a ideia de que Angola é Nossa. “Depois comecei a ver que não era bem assim." E diz que muito do desenvolvimento que teve, com estradas, era por causa da guerra e, não, para melhorar a região para o povo, mas por causa das minas. “Portanto, onde havia circulação de tropas, as estradas eram asfaltadas" Quanto à recepção que a tropa teve, ele coloca dúvidas. "Sim. Mas esse bem recebido a gente nunca tinha certeza se era ou era uma máscara. 112

Porque, aconteceu muitas vezes, que pessoas, que se pensavam estar a apoiar perfeitamente depois aparecem de outro lado."(...). Muitas vezes, quando se pensava que tinha o apoio , o apoio era para conseguir outras coisas". Quando voltou, Marcello Caetano já tinha assumido a Presidência do Conselho no lugar de Oliveira Salazar. E lembra-se das conversas em família. "Conversas em família. Nós ouvíamos." (...) Ouvia aquilo porque pensava-se , pensou- se , e começou a ser uma abertura, mas depois aquilo não teve desenvolvimento nenhum (...)."Ele falava, falava, falava, e não saia dali"(...). "Ele deu indicações de que queria abrir o regime e há quem diga que ele não abriu porque não deixaram abrir”...). "A tropa por um lado e o poder econômico por outro”...). Diz que, quando Salazar morreu, houve quem comemorasse. “Isso, houve júbilo! Houve júbilo na rua e no ambiente universitário estavam a bater palmas"(...). E a ideia era que, depois que Salazar morreu, iriam conseguir a liberdade. Mas lamenta que, mesmo após a Revolução, a liberdade não veio. Foi o que ele chamou de uma época de “contra tudo e contra todos”, porque houve muitos exageros. Diz que muita gente entendeu errado a ideia de liberdade. “Tanto o povo, quanto a polícia que integra o novo regime”. Com desmandos desta última, talvez, por estar habituada a “receber ordens políticas”. Além do “caça às PIDES”. E faz uma comparação entre a PIDE em Portugal e em África, à época da guerra. "Enquanto aqui em Lisboa tinha o papel fundamental de perseguição aos opositores do regime, em Angola ajudava a tropa fazer mais como polícia do que perseguir. Polícia que está nos bastidores para obter informações do que se passava na tropa. Portanto, se havia movimentações de comboios que entravam para ajudar ou os próprios nativos, a PIDE obtinha essas informações"(...)"O inimigo vinha do Congo "."Era o exterior, vinha de fora." "Eram mais editores de informação". Estavam a defender o país, e que Angola era Portugal.” No dia da Revolução, ouviu pelo rádio201 para as pessoas não saírem de suas casas. Mas ele não obedeceu e foi para a Baixa com a esposa. Segundo ele, o clima era de “euforia”. E, finalizando, ele faz uma reflexão sobre a educação na atualidade. Diz que muitas coisas estão sendo corrigidas, mas

201 O rádio foi um importante meio de comunicação, junto com a televisão, para o início das operações, como na divulgação e controle da revolução, com esclarecimentos sucessivos dos acontecimentos a população. No dia 25 de Abril, a rádio tocou Girândola Vila Morena, do músico Zeca Afonso, como senha para a continuidade das operações até o seu total sucesso, ou seja, a queda do regime. Ver PALOMANES, op. cit, 2004, p. 774. 113

“(...) Eu aprendi coisas lá na 4ª classe que agora não se dão no 5º ano do Liceu e eu não percebo. Por quê? “ Outra coisa que ele lembra é que "começaram a (...) fomentar o desrespeito contra os professores (...). O governo tem atacado os professores, são os bandidos, uns ordenados ruins.” E, ao ser questionado se a ditadura justificou-se, ele responde. "Não. Nunca. De maneira nenhuma. Agora (...) uma revolução, quanto a mim, traz, depois de 40 anos de ditadura, traz sempre qualquer coisa de sinal contrário e as correções, muitas vezes, têm um processo. Agora, é preciso. Alguém que seja contrário que não queira esgrimir contra tudo e contra todos porque não é questão, daí não é interessante (....).” José Esteves não falou muito sobre a Guerra Colonial, mas se lembrou do seu temor quanto ao partido comunista. Aqui em Portugal, o Cunhal esteve quase a fazer um golpe com oficiais do exército que estavam também dispostos a isto (...) e estavam todos dispostos202. E eu estava a pensar muitas vezes, (...) são capazes de fazer uma coisa desse gênero e eu passo duma ditadura de direita para uma ditadura de esquerda”. E continuo a ser perseguido. E continuo a ser perseguido! Isso foi uma coisa que eu pensei e que muita gente pensou. Foi uma coisa terrível”. (...) E lembra até com uma certa ironia o que foi o período imediatamente posterior ao “ 25 de Abril”, conhecido como “PREC”.

Para ele, Ditadura, Fascismo e Totalitarismo são palavras que definem o regime porque dizem respeito ao que faltava no regime e que ele considera como importante: “Não há o menor respeito pelos direitos do homem”. As "liberdades suspendidas". Criticou as Forças Armadas por terem sustentado a ditadura. Defende com ardor o seu fim, que a seu ver, só onera as contas do Estado, desviando o dinheiro para o que é realmente importante: a educação. Por isso, diz: “E ainda não estamos em democracia! Democracia cultural, o que ainda não existe. É o que eu defendia em Portugal país do futuro.” Sérgio Ribeiro tem uma leitura particular dos acontecimentos. Vamos lá, ver isso. Isso é interessante. O fascismo não é um regime autônomo. O fascismo é um regime extremista dentro do capitalismo, na minha perspectiva. E resulta que quando Salazar cai da cadeira, portanto, em 68. E, quando aparece Marcelo Caetano, Marcelo Caetano não é mais do que um dos alicerces do fascismo. O Marcelo Caetano era um homem inteligente, culto, excelente professor, mas fascista! E, curiosamente Marcelo Caetano apanha a Guerra Colonial, vai apanhar com uma situação (...) Em 1951, houve uma revisão da constituição portuguesa de 33. Dessa revisão da constituição o Marcelo, como membro da Câmara Corporativa, faz um parecer. E é um parecer negativo com a mudança da constituição que no final da guerra, já faz uma coisa que é extremamente importante para a questão da guerra colonial, que é o facto de, a constituição de 33 ter um anexo, que era o

202 É possível que o entrevistado esteja se referindo ao 25 de novembro de 1975, quando o “PCP tentou um golpe no sentido de adquirir maior força junto ao aparelho de Estado, eliminando tanto os segmentos de direita quanto aqueles considerados “esquerdistas. Em resposta, o governo decretou estado de sítio, isolando os elementos ligados à ala mais radical do MFA e as chamadas correntes revolucionárias”. A partir daí, o processo revolucionário entra em declínio iniciando o processo de democratização através da ala mais moderada do movimento. VER PALOMANES, op. cit, 2004, p.775. 114

Acto Colonial. Não estava integrado na constituição. Em que o problema das colônias está fora da constituição da República Portuguesa. Em 51 e no pós guerra, o Salazar e os ultras do regime, incorporaram como parte 6º da constituição da chamada Das Províncias Ultramarinas. Deixou de ser Acto Colonial pra ser Província Ultramarina “Timor igual a Minho”. Isso já no começo de um processo, que é o processo de independência das colônias. O Marcelo como relator daquela partida tem um parecer dizendo isto é um disparate. Timor não é igual ao Minho, nós temos que procurar uma saída que seja o da criação de estados dentro do mundo português (...) Isto não é o caminho. O caminho da integração não é o caminho. E curiosamente, vai apanhar 18 anos depois, o caminho que ele disse que não ia levar a nada a não ser as coisas más, é a coisa má. É curioso. Simplesmente o Marcelo não pode fazer nada, porque continua fascista. E, naquela altura, fazer alguma coisa era ir contra o fascismo. Porque ele era um dos alicerces (...)”. “(...) Sendo comunista e estando no partido, a nossa janela, não é por aqui que nós vamos de democratizar. A democratização só pode dar com uma ruptura. Na via em que estamos não chegamos lá. E, depois, o próprio Spínola vai pra solução política, e, apareceu com o livro Portugal e o Futuro, quando tentou a solução militar na Guiné Bissau e que não resultou. Então, como ele, o grande militar, não consegue, ninguém vai conseguir!(...) Então, só há uma saída. É a saída política (...)”.

Curiosamente, o depoimento de Maria José, que se define como apolítica, se aproxima da análise de Sérgio Ribeiro sobre Marcelo Caetano. Só para relembrar, ela disse que o ex- professor não havia se separado o suficiente do regime para promover a mudança. Para ela, teria que haver a ruptura. Para Ribeiro também. Vejamos o que diz Secco sobre a revolução:

A impossibilidade de vencê-la só lhe dava a perspectiva de uma solução política (negociada) com as guerrilhas. Mas a solução negociada externa só era possível com a solução de ruptura interna, posto que os interesses que se opunham ao fim do colonialismo eram dominantes no aparelho de Estado. Por isso, na curta duração dos acontecimentos aqui apresentados, só uma revolução de cores radicais e socialistas (as cores da época) poderia realizar a tarefa “liberal” e “democrática”, que nos outros países se concretizou sem disfarces da linguagem e sem esperanças dos revolucionários. A articulação do fator exógeno ( guerra colonial) com o endógeno (Estado corporativo) mostrou que o externo não se impunha senão por meios de contradições internas203.

A partir do pequeno grupo aqui analisado, foi possível perceber que a ideia de ruptura, em geral, não era aceita. Críticos ou não do regime, politizados ou apolíticos, a maioria entendia que a descolonização deveria ser gradual. Havia um compromisso histórico. Portugal precisava terminar a sua missão. Não desenvolvera a África portuguesa o suficiente. Os nativos não estariam prontos para assumir o país sozinho. Mas quando estariam? Claro que, ao olhar retrospectivamente, é possível imaginar que se Portugal tivesse negociado a transição, muitas coisas poderiam ter sido evitadas. Mas será que o regime queria arcar com os custos dessa transição? Ao olhar para o seu passado colonial e o pouco investimento em suas colônias, podemos concluir que não. Além disso, a componente anticomunista está presente. Secco diz que o “25 de novembro” provocou o Portugal Profundo” ao revolver a fúria anticomunista. É significativa a análise de Lacerda sobre o comunismo. Ele, que tinha amigos comunistas e admirava a sua luta. Esteves também era anticomunista declarado e, tal

203 SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p.154. 115

como Lacerda, temia uma ditadura de esquerda. O próprio Duarte Nuno, que tinha o irmão ligado ao PCP e ao MPLA, quando ficou indignado com o regime, foi para o MUD Juvenil e, não, para o PCP. Não vamos dizer sobre aqueles que não se pronunciaram sobre a recusa do partido, mas é interessante ver nos que criticavam o salazarismo, quererem distância do partido que realmente fazia oposição ao regime. Após tantas páginas de história, termino este trabalho a pensar o quanto teria ajudado, na duração do regime, o fato de ser o partido comunista, a única opção visível de promover a ruptura do regime. Será este um dos fortes motivos de tantos portugueses se manterem em uma posição de attentisme?

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Irene Pimentel, depois da Revolução dos Cravos, a memória da ditadura sofreu mudanças. De 1974 até 1980, foram anos de ajustes de contas. Escrever sobre a ditadura era se lembrar dos que apoiaram o regime e os que resistiram. O resto era uma massa “apolítica”, que teve o seu silêncio determinado pelo desconhecimento e pela repressão. Parte desta historiografia entendia o Estado Novo como uma ruptura da tradição democrática. A instauração da Primeira República e a Revolução dos Cravos foram acontecimentos políticos que indicariam a “vocação portuguesa para a liberdade”204. Nos relatos, vimos o peso com que os entrevistados atribuíram às crises políticas na Primeira República, as quais justificariam um consenso na sociedade em torno da solução ditatorial. Claro que estamos falando de memórias e elas podem estar reproduzindo imagens para reforçar uma política de memória construída na época para legitimar o Estado Novo. Não obstante, além de ser com esta memória que os entrevistados dialogaram com a sua própria experiência com o regime, sendo uma “memória herdada”; temos na historiografia inúmeros trabalhos que analisam parte de uma geração intelectual que defendia, antes mesmo da Ditadura de 1926, um Estado Novo forjado a partir de idéias autoritárias e conservadoras.205 O grupo analisado nasceu neste ambiente, já definido e organizado pelo salazarismo, com exceção de José Esteves. Herdaram o consenso e, por algum tempo, o reforçou, na medida em que muitos aproveitaram parte da estrutura do Estado como a Mocidade Portuguesa, por exemplo, sem que isto significasse a adesão aos seus princípios. Rejeitaram o que não queriam, por não ter afinidades com um programa voltado para o exercício militar, mas desfrutaram da ginástica e dos desportos. Gostar da Mocidade e integrar a Mocidade não significou, necessariamente, integrar na parte mais ideológica da organização. Souberam tirar proveito daquilo que lhes poderia ser útil ou prazeroso. Contudo, à medida que foram se relacionando com pessoas diferentes, no percurso de suas vidas, (Liceu, Universidade e Trabalho), puderam entrar em contato com idéias diferentes, formas diferentes de pensar a vida e se relacionar com o regime. Todos eles tiveram amigos que iam do apoio a rejeição ao regime, pela luta clandestina ou somente, pelas críticas em cafés.

204 PALOMANES, 2010, op.cit, p. 285.

205 Estamos retomando o trabalho de Torgal, citado no início do trabalho. 117

Impossível de generalizar as conclusões para a sociedade portuguesa, o que este grupo nos mostrou foi a possibilidade de, uma vez gerado o consenso, pensar a continuidade do regime através de um consentimento silencioso que perdurou por toda a fase do Pós guerra, num ambiente mais propício para contestações, onde muitos preferiram ser expectadores. Lisboa não era tão controlada assim que impedisse de perceber as movimentações contra o regime. As opiniões contrárias chegavam à “boca pequena”. O desporto foi um lugar de disputa nas décadas de sessenta e setenta, entre as associações de estudantes e a Mocidade Portuguesa. A censura, no seu papel de ocultar a informação, promovia a crítica através do humor, como no teatro de revista. Piadas de duplo sentido para uma população dupla. O riso era a via permitida por um grupo seleto, privilegiado, que não ousaria contestar o regime além das brechas abertas por terceiros. Da posição de distância, a envolvimentos com grupos de oposição, críticas abertas ao regime à oposição na luta clandestina, este grupo vivenciou uma época em que a própria PIDE reconhecia que a sociedade já não tinha tanto medo da polícia política. Isto não significa que ela não iria punir quem insistisse em derrubar o regime, mas que havia mais circulação de idéias discutindo alternativas. Ao acompanharmos as narrativas da vivência de cada um dos entrevistados para lidar com o salazarismo, confrontamos com diferentes representações mentais, o que acabou por revelar a dinâmica que estava por trás de alguns comportamentos. Destacamos a representação mental sobre a guerra do Ultramar e a transição para a democracia, como os momentos que marcaram os entrevistados mais do que o salazarismo em si. A partir dos relatos, foi possível encontrar um traço de continuidade do regime na mentalidade destes portugueses. Quanto à guerra, como vimos, com raras exceções, foi sentida como um erro, mas somente depois dos desdobramentos negativos que recaiam sob os dois mundos. Os sangues que jorravam em África respingavam cada vez com mais força em Portugal, um país que estava, sobretudo, voltado para a Europa. Por vias indiretas, acabou por reforçar um dos pilares que sustentou o Estado Novo por décadas: o anticomunismo. Não só pela presença de comunistas nas operações, envolvidos com elementos das Forças Armadas e de militantes do movimento de Libertação, como na fase de transição para a democracia, o chamado Processo Revolucionário em Curso. Tais acontecimentos internos, engendrados no ambiente de guerra fria, não deve ser ignorado para analisar a longa duração do regime, principalmente nas décadas do pós guerra. Os “ventos da mudança” renovaram o consenso, resgatando o anticomunismo numa sociedade onde uma parcela se via pacífica e feliz. Ou, se queriam a mudança, não desejavam uma 118

transformação. E quem propunha a transformação, era o partido comunista, muito atrapalhado pelas ações extremistas que colocavam para um povo recluso em si mesmo, alternativas de conciliação ou radicalismos, dependendo do momento e do grupo a frente do partido, o que deixava dúvidas sobre suas reais intenções. Com exceção de Duarte Nuno, José Esteves e Sérgio Ribeiro, cada um com sua forma singular de se colocar diante do que seria uma crítica ao regime, todos os outros se apropriaram do argumento do próprio governo para manter-se habitualmente, dentro de um regime de exceção. Uns, duplos porque imersos em suas zonas cinzentas, por se definirem apolíticos, entre um vai - e - vem de conhecimento e desconhecimento do que se passava. Outros, duplos por se colocarem contra o regime, mas viverem outra vida, a que se poderia viver. Nenhum deles, entretanto, apolíticos. Somente decidiram, politicamente, se afastar. Como dizia Salazar, homem de bem não se mete em política. Eles não se meteram.

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