ampliada revista & biografia «foi a verdadeira, apesar de oculta, primeira-dama do estado novo.» fernando dacosta

Joaquim Vieira

D. Maria, companheira de Salazar de companheira D. Maria, A Governanta A

D. Maria, companheira de Salazar Joaquim Vieira A Governanta vol. 1 António de Oliveira Salazar O nome de Maria de Jesus Caetano Freire – ou simplesmente Maria, Menina Menina Maria, simplesmente – ou Freire Caetano de Jesus nome de Maria O Maria, Senhora como a Maria ou Dona conhecida tornou Maria –, se que menção em qualquer de Salazar, não possui governanta da residência menos uma muito Novo», do «Estado de história dicionários nenhum dos colaborou durante mais mulher, no entanto, quem Foi esta entrada própria. tempo e mais de perto com o ditador: até Lisboa, quando o acompanhou-o tão até chamaram para entrar no Governo, serviço e manteve-se ao seu sair de São Bento dentro de destacado protagonista do século XX português desen- se missão a sua que certo É meio século. ao fim de quase um esquife, nos responsabilidade qualquer sem pessoal, privado e âmbito no rolou mas importará questionar planos político, governativo ou administrativo, em pesado ter poderá de Jesus de Maria presença ponto a constante que até pelo presidente do Conselho. algumas das opções governativas seguidas «É, enfim, pela Maria que me chegam os murmúrios do os murmúrios que me chegam pela Maria «É, enfim, de até – palavra secretos, e os rumores mais exterior, um prisioneiro. Sim, [...] Sou um algumas críticas. honra! – isso anos. Mas para Estado há 23 Governo o prisioneiro. mim.» me governasse a que alguém era preciso

Maria de Jesus Caetano Freire, a fiel governanta por de volta Salazar, de 1940.

© Coleção Maria da Conceição de Melo Rita Coordenação editorial João Pombeiro Revisão João Alexandre Capa e paginação PixelReply.com

A Governanta | D. Maria, Companheira de Salazar é uma série editada pela Reverso para a revista SÁBADO. © Reverso, 2021 | © Joaquim Vieira, 2021 | Cofina Media, 2021 Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor. Depósito legal: 481312/21 ISBN: 978-989-8925-91-6 Impresso em março de 2021 na Printer.

Índice

Capítulo 7 11 Introdução 131 Intriga em São Bento 13 Capítulo 1 151 Capítulo 8 A retaguarda de Salazar Chez Maria

25 Capítulo 2 175 Capítulo 9 De camponesa a tricana A caixa do correio

39 Capítulo 3 187 Capítulo 10 A luta pelo arroz A usura do poder

57 Capítulo 4 209 Capítulo 11 Dentro de muros O crepúsculo

71 Capítulo 5 235 Capítulo 12 Economia de guerra Purgatório

89 Capítulo 6 Encruzilhada de paixões 253 Notas e bibliografia

«A causa de uma mulher é a causa de um homem: triunfam ou fracassam juntos.» Lord Tennyson

«A ideia de sacrifício dá a certas mulheres um prazer oculto.» William Thackeray

«As camareiras não possuem qualquer sentimento humano. Se eu pudesse apresentar ao parlamento uma petição para a abolição das camareiras, fá-lo-ia.» Mark Twain

«Só há três coisas a fazer com uma mulher: amá-la, sofrer por ela ou transformá-la em literatura.» Lawrence Durrell

D. Maria, companheira de Salazar 11

Introdução

nome de Maria de Jesus Caetano Freire – ou simples- Omente Maria, Menina Maria, Senhora Maria ou Dona Maria –, que se tornou conhecida como a governanta da re- sidência de Salazar, não possui qualquer menção em nenhum dos dicionários de história do «Estado Novo», muito menos uma entrada própria. Foi esta mulher, no entanto, quem co- laborou durante mais tempo e mais de perto com o ditador: acompanhou-o até Lisboa, quando o chamaram para entrar no Governo, e manteve-se ao seu serviço até tão destacado protagonista do século XX português sair de São Bento den- tro de um esquife, ao fim de quase meio século. É certo que a sua missão se desenrolou no âmbito privado e pessoal, sem qualquer responsabilidade nos planos político, governativo ou administrativo. Mas importará questionar até que ponto a constante presença de Maria de Jesus ao lado de quem ditou o destino dos portugueses durante quatro dé- cadas (atendendo a que, mesmo enquanto mero titular das Finanças nos anos iniciais, a influência de Salazar foi crucial para a política do executivo) poderá ter pesado em algumas das opções governativas seguidas pelo presidente do Conse- lho. Recluso, monástico e celibatário, Salazar tinha em Maria de Jesus, dialogando com ela todos os dias, o único contacto com a realidade quotidiana dos portugueses, além de um ca- nal para a passagem e o intercâmbio de muita informação da mais variada ordem, o que permite concluir, como o próprio aliás confessou mais do que uma vez, que o protagonismo da- 12 A Governanta quela que já foi designada como a «governanta de » nem sempre respeitou a total separação entre esfera privada e esfera pública. Não que o fundador e líder do regime ditatorial não sou- besse decidir pela própria cabeça, mas na sua ponderação pré- via ter-se-á muitas vezes valido de elementos carreados pela mulher que dele estava mais perto ou até das suas opiniões, que o patrão via como representativas do senso comum. Bas- ta atentar, em páginas mais adiante, no papel determinante de Maria de Jesus na definição de políticas quanto ao comér- cio de bens de consumo. Entendi assim valer a pena aceitar o desafio que me foi lançado para a escrita do presente livro (publicado pela pri- meira vez em 2010, objeto de três edições e agora reeditado em versão revista e ampliada). Contra a lógica das coisas e o rumo da História, e ideologias à parte, Salazar alcandorou-se ao estatuto de figura mítica na existência deste país, e tudo o que o rodeou ainda conta para percebermos o porquê desses quase 50 anos de um regime que, até pela sua longevidade, a todos nós deixou marcas difíceis de apagar ou suplantar. Devo expressar o meu agradecimento a Maria da Concei- ção de Melo Rita (a Micas desta história), que há mais de duas décadas me introduziu no universo da intimidade salazarista, a Felícia Cabrita, pelos contactos e documentos fornecidos, a Mário Duarte, responsável da Biblioteca Municipal de Pe- nela, e a António Alfredo, funcionário da mesma autarquia, pelo apoio na investigação sobre as raízes da biografada, ao genealogista Lourenço Correia de Matos e a todos os que aceitaram prestar depoimentos sobre uma personagem e uma realidade já tão esvanecidas pelo tempo e pela História. Uma palavra de apreço também aos editores, que acredita- ram na ressurreição da governanta de Salazar. Capítulo 1

A retaguarda de Salazar

D. Maria, companheira de Salazar 15

cenário foi o Forte de Santo António em São João do OEstoril, onde António de Oliveira Salazar costumava passar o período de férias estivais. Vendo chegar a sua viatu- ra oficial com o porta-bagagens carregado de lenha por in- dicação da governanta, Maria de Jesus, o chefe do Governo advertiu-a, irado: – Os carros do Estado não são para carregar lenha! Não consinto! Não consinto! – Merda, merda, merda! – retorquiu-lhe a governan- ta. – A lenha não é para mim! A lenha é para o Salazar!1 Talvez a nenhuma outra mulher em Portugal tenha sido possível lançar diretamente a palavra de Cambronne ao fun- dador do regime do «Estado Novo», durante as quatro déca- das em que ele esteve no poder, sem ser de imediato sujeita a detenção e interrogatório pela polícia política. Este era o poder simbólico daquela a quem chamavam simplesmente Dona Maria ou Senhora Maria – o de possuir, como mais nenhuma mulher num sistema onde os colaboradores do di- tador eram quase todos homens, a total confiança do gover- nante que foi figura central do século XX português. Chegados os dois de Coimbra, Maria de Jesus Caetano Freire já acompanhava Salazar antes de ele entrar para o Go- verno, e só saiu da residência oficial de São Bento depois da sua morte. Ninguém esteve por isso tão perto dele durante todo o seu percurso pelo poder. A disponibilidade dela era 16 A Governanta aliás total, já que nunca se casou. Foi, além disso, a única pes- soa a criar, durante todo esse longo período, um arremedo de vida familiar a um homem que também sempre se manteve celibatário (sem contudo ter havido qualquer relacionamen- to físico entre ambos). O seu destino confundiu-se pois com o do amo, e, mesmo que não se saiba de qualquer intervenção direta que tenha tido na área política, as suas funções priva- das não terão deixado de interagir com as funções oficiais do mais perene dos governantes portugueses: Maria de Jesus «passava por ser voz autorizada junto de Salazar em todas as matérias, fruto da confiança que o presidente [do Conselho] tinha no seu bom senso e na sua inabalável fidelidade».2 «Era uma mulher dura, muito forte, atenta a tudo», re- cordará José Paulo Rodrigues, que foi subsecretário de Es- tado da Presidência do Conselho (trabalhando diretamente com Salazar e sob sua dependência), entre 1962 e 1968. «Ela comandava com grande serenidade, independência e poder as coisas domésticas. Duas caraterísticas suas eram a grande inteligência (apesar de rude e sem cultura), uma inteligência prática, e a vontade firme. Era uma sombra do dr. Salazar, se bem que seja difícil de calcular o grau de influência dela no seu trabalho».3 Também José Luciano Sollari Allegro, se- cretário particular de Salazar entre 1947 e 1960, depôs no mesmo sentido: «[Maria de Jesus] era uma pessoa com reais qualidades e que sempre se soube manter no seu lugar. Gra- ças a ela nunca o presidente do Conselho teve a mais leve preocupação quanto aos muitos assuntos que há sempre a resolver dentro de uma casa».4 «Toda a gente sabia, lá no Palácio, que a D. Maria era, para ele, indispensável, e que ofendê-la a ela era ofendê-lo a ele»5, escreverá o jornalista e ensaísta Idalino da Costa D. Maria, companheira de Salazar 17

Brochado, que foi secretário da Assembleia Nacional entre 1949 e 1964. «D. Maria era uma pessoa de grandes qualida- des, muito inteligente, de uma dedicação canina a Salazar».6 «Dedicação canina ao Dr. Salazar» é expressão reiterada por Paulo Rodrigues.7 «A D. Maria obedecia cegamente a Sala- zar», recorda Fátima Cértima, frequentadora da residência oficial acompanhando a mãe, Maria Arminda Lacerda, umas das admiradoras de Salazar que se enfiavam em São Bento a tomar chá tendo por anfitriã a ilustre empregada do ditador. «Ela fazia tudo e ele não mexia uma palha quanto à governa- ção da casa».8 O jornalista Fernando Dacosta, que conheceu e entre- vistou a governanta, defendeu no seu livro Máscaras de Sala- zar a tese de que «Maria de Jesus Caetano Freire tornou-se a mulher mais poderosa de Portugal no século XX», justi- ficando: «Na sombra, condicionou São Bento, ministérios, administrações, leis, polícias. [...] Foi a verdadeira, apesar de oculta, primeira dama do Estado Novo. Ficou na história por um cognome, a Governanta. Como sucedeu com as rainhas: D. Maria I, a Piedosa, D. Maria II, a Educadora».9 Mais ainda: «Foi a presidenta que maior poder e menor visibilidade teve entre nós – e a que mais durou, e influenciou, e ficcionou. Se António Ferro [jornalista e escritor encarregado da propa- ganda do Estado Novo] encenou Salazar fora de São Bento, ela encenou-o dentro de São Bento».10 Maria da Conceição de Melo Rita, que da infância ao ca- samento viveu com Salazar e Maria de Jesus (a quem tratava por «tia», embora fosse sua concunhada), não tem dúvidas quanto ao ascendente doméstico da governanta sobre o go- vernante: «Se ele mandava no nosso país, a Tia Maria man- dava na casa dele».11 Apesar de Salazar possuir uma família 18 A Governanta de sangue, constituída pelas suas quatro irmãs, estas viviam na província, pelo que Maria de Jesus e Maria da Conceição desempenhavam para ele o papel possível de familiares no quotidiano. A jovem teve assim a oportunidade de conhecer os traços bem definidos da «dona da casa»: «Tinha uma per- sonalidade forte, vincada. Era inteligente, muito determina- da e muito exigente no trabalho».12 Um dos sobrinhos-netos de Salazar, António Salazar de Melo, que privou com a governanta nas visitas que fazia ao tio, confirma o relevo da presença de Maria de Jesus na vida diária do antigo presidente do Conselho: «Ela era bastante voluntariosa, tinha uma personalidade vincada. A sua prin- cipal caraterística era a grande dedicação a Salazar. Ele não só podia como depositou nas suas mãos todo o governo domés- tico. Não tinha de se preocupar com nada nesse domínio».13

O próprio Salazar confessou à jornalista e escritora fran- cesa Christine Garnier, que o entrevistou em 1951, convi- vendo regularmente com o par nos anos seguintes, a impor- tância crucial de Maria de Jesus para o desempenho das suas funções governativas: Depois de tantos anos, que sei eu da existência comum? Não uso porta-moedas nem dinheiro: onde é que eu gastaria as notas? Não escolhi nenhuma das minhas gravatas nem ne- nhum dos meus fatos. Não sei quantas camisas possuo. O po- der absorve-me todo o tempo e todo o pensamento. Depois da minha chegada a Lisboa, a Maria encarregou-se de tudo o que eu tive de negligenciar. Livrou-me de todas as preocu- pações materiais. Conhece os meus assuntos muito melhor que eu. Vive a minha vida. Compreende? A sua intuição é tal D. Maria, companheira de Salazar 19

que fareja os possíveis perigos, muito antes de eu ser avisado. As minhas irmãs não tomam conta de mim a este ponto... Em Lisboa, ela ocupa-se sempre dos pratos que me são desti- nados. Para mim transformou-se também numa espécie de se- cretária. Muitas pessoas que não querem dirigir-se a mim pela via oficial escrevem cartas à Maria. Ela recebe por isso uma quantidade apreciável de correio. Às vezes até a ouço queixar- -se: «Perco o meu tempo a responder a todas estas cartas – res- munga ela – quando tenho tanto que fazer em casa».14 Mas Salazar foi ainda mais longe, desvendando também à autora (por quem alimentou uma paixão, acompanhada de muito perto pela governanta) a capacidade de Maria de Jesus na recolha de informação política que ele tinha por particu- larmente valiosa: «É, enfim, pela Maria que me chegam os murmúrios do exterior, os rumores mais secretos, e até – pa- lavra de honra! – algumas críticas. [...] Sou um prisioneiro. Sim, um prisioneiro. Governo o Estado há 23 anos. Mas para isso era preciso que alguém me governasse a mim».15 Verificou Paulo Rodrigues que, fora das suas funções ca- seiras, uma das tarefas assumidas por Maria de Jesus consistia em fazer uso da sua intuição para distinguir entre gente leal e gente hostil ao ditador: «Ela tinha uma espécie de radar para avaliar quem se aproximava do dr. Salazar. Ela sabia quem, no Governo, eram as pessoas que eram amigas dele».16 É bem possível que a governanta comunicasse a Salazar as suas desconfianças, influenciando-o acerca da opinião que formava dos outros, uma vez que o próprio não ignorava as avaliações que ela fazia, conforme, com um sorriso, revelou a Garnier: «Com o seu caráter autoritário, [Maria] mal su- porta presenças estranhas. Sabe que com Maria a vigiar não se aproxima quem quer? Ela protege-me melhor do que a minha escolta!»17 20 A Governanta

Fátima Cértima não tem dúvidas sobre o exercício de uma insinuante influência subterrânea por parte da gover- nanta: «Que movia os cordelinhos, movia. Eventualmente, se queria prejudicar alguém, meteria o seu venenozinho. Não era para graças, era de aspeto duro e não me pareceu que fos- se muito maleável. É a impressão que tenho, de uma miúda então com 20 anos».18

A governanta poderia ter ainda outra utilidade política para Salazar: a de fazer passar mensagens que o circunspe- to ditador, conhecedor do peso das palavras e do valor dos silêncios, não quisesse comunicar de viva voz. «Salazar, que era incapaz de elogiar ou agradecer serviços frontalmente, descobriu um processo genial de nos dizer a todos o que sen- tia e queria, sem nunca se comprometer...», contará Costa Brochado. «Por exemplo: a D. Maria, falando um dia com minha mulher, já quando íamos nos anos sessenta, disse-lhe: o senhor doutor, falando do seu marido, disse “esse é a leal- dade em pessoa”.»19 Como salientou Salazar à sua interlocutora francesa, a governanta era também destinatária – ou melhor, interme- diária – dos pedidos e recados que, por via escrita e oral, inú- meras pessoas, desde figuras do regime a cidadãos anónimos, lhe faziam chegar, na esperança de que a sua proximidade ao ditador fosse a chave para a resolução de problemas que as afetavam. Constatou-o, por exemplo, Sollari Allegro: «Muitas pes- soas tentavam chegar ao presidente do Conselho por seu intermédio ou escreviam-lhe cartas com os mais variados pedidos. Nunca isso alterou a sua forma de proceder, e as D. Maria, companheira de Salazar 21 cartas que recebia entregava-no-las sempre. No gabinete dá- vamos-lhes o mesmo andamento que tinham todas as outras, isto é: pedir aos respetivos serviços informações sobre os as- suntos versados, tentar que se resolvessem os casos a que era possível dar solução e transmitir aos interessados as respos- tas convenientes».20 Paulo Rodrigues confirma-o: «Ela não tinha praticamente influência nas coisas políticas, a não ser quanto aos muitos pedidos que chegavam por correio. Pedi- dos de emprego, nomeações, etc., mas ela defendia-se muito quanto a isso. Sollari e Allegro contou-me uma vez que ela dava esses pedidos aos secretários e eles despachavam-nos como se fossem dirigidos a eles».21 Dacosta conclui também que a governanta não se em- penhava em dar seguimento às petições: «Os pedidos a D. Maria multiplicavam-se de todos os lados: empregos, au- diências, promoções, dinheiro, empenhos. Ela escapava-se a atendê-los. Recebia pouca gente».22 Mas Maria da Concei- ção Rita (que Salazar tratava familiarmente por Micas), ob- servadora privilegiada da vivência diária dos dois adultos da residência de São Bento, sugere que D. Maria pode ter tido mais do que indiferença em relação a algumas das solicita- ções que recebeu: «Ela era muito procurada com pedidos de toda a ordem. O Senhor Doutor [nome por que era tratado Salazar pelos seus próximos] por vezes reagia mal com tantos assuntos que ela lhe apresentava. Até lhe disse uma vez que ela estava a exagerar nos pedidos».23

Como pano de fundo da existência de Maria de Jesus permaneceu sempre a sua ambígua admiração por Salazar, na verdade uma paixão impossível, jamais assumida, muito 22 A Governanta menos concretizada, que a mulher sempre suportou em si- lêncio e sublimação, nunca abandonando o que desde sem- pre lhe fora definido como sendo a sua condição. «Ela tinha por Salazar um grande amor, que sabia ser impossível», re- corda Vera Franco Nogueira, outra das assíduas visitas fe- mininas de São Bento, viúva do último ministro dos Negó- cios Estrangeiros de Salazar e seu biógrafo, Alberto Franco Nogueira. «Não é possível tratar de um homem tanto tempo e com tanta qualidade e dedicação sem por ele ter um grande amor. Ela dizia-me dele: “É um homem tão extraordinário que não tem explicação”».24 Fátima Cértima corrobora este ponto de vista, julgando ter sentido a deceção na impossibilidade do amor: «Ela tinha uma paixão assolapada por Salazar, mas tudo se passava na relação governanta-amo. Gostava muito dele mas pela cala- da. Pelo menos do que se via. E, claro, vivia um bocadinho frustrada porque, gostando dele, não havia hipótese».25 Jamais explícito, esse afeto íntimo intuía-se da forma como Maria de Jesus encarava a relação de Salazar com cer- tas mulheres. Foi o caso da pequena Micas, que se fez mulher em São Bento: «[Ela] tinha muitos ciúmes, sempre me tratou com aspereza, no fundo eu era um empecilho entre os dois. Queria-o só para ela. Tinha-lhe um fortíssimo amor, mas cada um no seu lugar».26 Que a governanta, estoicamente, nunca se atreveu a sair desse «seu lugar» foi também a informação que retirou António Rosa Casaco, agente da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a polícia política do regime, e duran- te alguns anos membro da guarda pessoal de Salazar (tendo ainda, como fotógrafo amador, registado algumas das poucas fotografias em que surgem juntos Maria de Jesus e o seu se- D. Maria, companheira de Salazar 23 nhor): «Posso afirmar que a Senhora Maria foi sempre uma mulher honrada, sob todos os aspetos, sabendo colocar-se sempre dentro da sua esfera doméstica, e nunca se atreveu, nem em pensamento, a “olhar mais alto”. [...] Nunca pensou em casar ou ter qualquer ligação amorosa, e assim foi até à morte, e as enfermeiras que [a] assistiram na sua agonia final confirmaram esta asserção, isto é: a Senhora Maria tinha o seu hímen intacto».27 É com a doença de Salazar, um hematoma craniano que surge em 1968 e o obriga a submeter-se a uma intervenção cirúrgica de onde sai incapacitado para governar, que Maria de Jesus assumirá na prática um estatuto de cônjuge, selec- cionando as visitas ao paciente, transmitindo informações acerca do seu estado e dirigindo todos os cuidados a ter com ele no pós-operatório, tanto na clínica como depois do re- gresso a São Bento (onde é mantido apesar de já não desem- penhar quaisquer funções oficiais). O estado de semicons- ciência em que se encontra o ex-chefe do Governo permite à governanta tomar conta do poder interno na residência sem que alguém levante obstáculo. Tudo o que diga respeito a Salazar passa obrigatoriamente por ela. Ao fim de dois anos, o inquilino do palacete deixa de poder resistir e morre. Tem 81 anos de idade, e Maria de Jesus 76. É ela quem o ampara nesse epílogo: «Nos últimos momentos, Salazar tem Maria de Jesus, a governanta, à beira do leito. A mulher de quem tanto se falou mas que o amou à distância. Ele faleceu a seu lado sem lhe dirigir o olhar. Maria de Jesus sofreu. Muito. Correu durante dezenas de anos que eram amantes e que os uniam duas filhas ilegítimas. E ela nunca se livrou das calú- nias e mexericos sem, no entanto, alguma vez com ele ter tido um pacto carnal».28 24 A Governanta

Maria de Jesus chora ao lado do cadáver do homem que amou, e a televisão mostrá-la-á a beijá-lo no momento em que a urna é fechada. Para os portugueses, ficará de algum modo como a putativa viúva de Salazar, estatuto com que ela terá sonhado toda a sua vida. Capítulo 2

De camponesa a tricana

D. Maria, companheira de Salazar 27

pesar de nunca ter contraído matrimónio com o príncipe Aencantado, a história de Maria de Jesus Caetano Freire não deixa de ter o seu lado de Cinderela. Ao nascer de uma pobre família camponesa no lugar da Freixiosa (melhor dizen- do, em Serradas da Freixiosa) da freguesia de Santa Eufémia, no concelho de Penela, distrito de Coimbra, pelas 14h de 20 de junho de 189429, nenhuma conjugação astral ou terrena apontaria para que a menina viesse a passar quase toda a sua vida adulta ao lado do homem mais poderoso de Portugal. Baptizada em 1 de julho seguinte em Santa Eufémia, foi registada como filha «legítima» de Serafim Caetano, da Frei- xiosa, e de Felicidade de Jesus, de Vale Florido, freguesia de Alvorge, no contíguo concelho de Ancião.30 Maria nasceu no meio de uma prole de sete filhos (os irmãos eram mais três rapazes e três raparigas). Das courelas dispersas que possuíam, os pais tiravam um pouco de milho, feijão, trigo, batatas, couves e alguma azeitona – recordam os habitantes mais antigos do lugar. Tudo somado, não assegurava mais do que uma economia de subsistência. Os bens de consumo necessários ao dia a dia, fossem as roupas, os cobertores para o inverno ou os panos para a apanha da azeitona, eram tran- sacionados na feira do Espinhal, à segunda quinta-feira de cada mês, com a venda da produção agrícola remanescente. Não espanta por isso a modéstia do lar, um piso térreo, «casinha pequenina, pobre», recorda a vizinha Celeste Bento.31 28 A Governanta

Maria José, conterrânea nascida em 1920, uma geração depois de Maria de Jesus, mas a ela ligada por amizades familiares, também se lembra dessa habitação, há muito desaparecida: «A casa só tinha dois quartinhos, nem era forrada [com estu- que e cal] nem nada. Não tinha janela nenhuma».32 Mesmo hoje, uma visita a Penela, com o seu castelo an- terior à fundação da nacionalidade e cujo foral foi concedido por D. Afonso Henriques, revela que a Natureza não tratou de ser generosa para com o concelho, entalado entre as serras da Lousã e do Sicó. Para se chegar à Freixiosa, situada à beira da estrada que liga Coimbra a Tomar, é preciso andar qua- se dez quilómetros para sul, descobrindo-se o aglomerado de atalaia ao Monte de Vez. Toda a região é de minifúndio, prejudicado por uma orografia hostil à abundância agrícola. O produto mais caraterístico é o chícharo, misto de tre- moço, feijão e grão, cuja falta de notoriedade gastronómica diz tudo quanto ao seu potencial económico. Não custa adivinhar que no lar de Serafim e Felicidade houvesse demasiadas bocas para alimentar, e por isso o de- sígnio da família era, tão cedo quanto possível, colocar os filhos fora de casa. «A produção de criancinhas era muito maior do que podia absorver o mercado de Penela, pelo que entre os 10 e os 12 anos elas saíam de casa e iam aprender um ofício para casa de alguém que desempenhasse determina- do mister», explica Mário Duarte, responsável da Biblioteca Municipal de Penela e cultor da memória da terra. «As meni- nas iam para casa de uma senhora onde aprendiam a servir, a conhecer as artes do lar. Em Penela, como havia muito mais oferta que procura, os jovens iam para Coimbra».33 No caso de Maria de Jesus, os seus irmãos rapazes deman- daram o Brasil e África, mas a emigração não era destino que D. Maria, companheira de Salazar 29 então se reservasse a uma rapariga do campo, cujas opções socialmente aceitáveis variavam entre encontrar marido e ir para freira (a escolha de uma sua irmã mais nova, Maria José de Jesus). A campónia de Serradas da Freixiosa, sem nunca ter pos- to os pés numa escola (que aliás não existia na sua aldeia), resolveu por isso rumar até Coimbra, apenas a uns 30 quiló- metros de distância. Iria tornar-se numa tricana, como tantas outras raparigas das terras em volta. Na capital das Beiras, à época a terceira cidade mais importante do país (depois de Lisboa e Porto), vivia uma vasta aristocracia e uma desen- volvida classe burguesa, mercê da propriedade fundiária e de um princípio de indústria e comércio. Mas o que tornava diferente a sociedade coimbrã era a vida universitária, com o seu mundo à parte de professores em fatos escuros e de estudantes de obrigatória capa e batina, habitando em casas alugadas e em «repúblicas». Havia ali à beira do Mondego, por conseguinte, todo um vasto mercado laboral ao alcance das mulheres que se dispu- sessem a trabalhar como criadas ou cozinheiras, pelo menos até se arrimarem a um cônjuge. Maria de Jesus passou a ser uma delas, se bem que à chegada já corresse o risco de ultra- passar a idade então imposta pelas convenções como casadoi- ra: «Quando ela resolveu partir para Coimbra, para servir e fugir aos trabalhos agrícolas, já teria mais de 20 anos», retém Micas, de a ter ouvido contar mais tarde.34 Talvez não viesse a encontrar marido, talvez até nem estivesse interessada, mas podia pelo menos orientar a vida para longe da penúria que desde sempre fora apanágio do campo em Portugal. 30 A Governanta

Numa das casas académicas da cidade, um antigo conven- to situado na Rua dos Grilos – por isso chamado «Palácio dos Grilos» (que de palácio pouco tinha), ou até «República dos Grilos» (embora demasiado sorumbático para tanto) –, habitavam dois jovens professores catedráticos de 36 anos, nascidos apenas com cinco meses de diferença e unidos por uma amizade estreita e cúmplice, forjada nos combates dos estudantes católicos e conservadores, na década anterior, contra o liberalismo e o anticlericalismo do recém-procla- mado regime republicano: o padre Manuel Gonçalves Ce- rejeira, oriundo de Lousada, em Vila Nova de Famalicão, e titular da cadeira de História da Faculdade de Letras, e Antó- nio de Oliveira Salazar, ido do lugar do Vimieiro, em Santa Comba Dão, e que na Faculdade de Direito tinha a seu cargo Economia e Finanças. Cada um no seu pelouro, são figuras de relevo, tendo Salazar em 1921 sido eleito deputado pelo partido do Centro Católico Português (que ajudou a fundar), se bem que não tenha aquecido o lugar, já que uma revolta armada deu cabo da legislatura ao fim de meses. Apesar da sua juventude, Salazar atingiu já a aura de pri- mus inter pares entre as celebridades catedráticas da Univer- sidade de Coimbra, como o recordará, mais de seis décadas depois, um dos alunos do mestre, Fernando Alves Machado, logo disso avisado ao desembarcar na cidade: De entre todos aqueles nomes ilustres um me destacaram e contra ele me preveniram: António de Oliveira Salazar! Uma «fera», disseram-me. Embora de sóbria mas correta apresen- tação, discrição no comportamento e pouca comunicabilidade, toda a gente em Coimbra o conhecia e admirava. O seu mundo continha-se entre Coimbra e Santa Comba Dão: a Universi- dade e a Mãe. [...] Rigoroso no respeito dos horários, de uma D. Maria, companheira de Salazar 31

assiduidade exemplar, Salazar apenas um dia em cada ano não comparecia na Faculdade: 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. [...] Todos reconheciam que o grande professor, posto que exigente até extremos dolorosos, que lhe permitissem concluir que as suas lições tinham sido ouvidas e compreendidas, era afinal rigoroso mas impecavelmente justo na apreciação final.35 Alves Machado acabará por alugar um quarto no primei- ro andar dos Grilos, posto que o segundo andar está exclusi- vamente reservado a Cerejeira e Salazar, cada um com apo- sentos próprios. A vocação dos dois professores não é seguramente a in- tendência doméstica, deixada a cargo de serviçais que porém os trazem insatisfeitos: «A criada não era muito bem aceite pelos patrões. Não tinha o devido cuidado na confeção das refeições, então feitas em fogareiro a petróleo, e a comida sabia e cheirava a petróleo. As limpezas também deixavam a desejar».36 Efetuada por Cerejeira uma sondagem junto de um padre seu amigo, João da Silva Campos Neves (futuro Bispo de Vatarba e, a partir de 1948, Bispo de Lamego), este sugere-lhe a contratação de uma mulher que – segundo in- formação recolhida mais tarde por Micas – tinha «servido uma família muito conceituada» de Coimbra e de que havia boas referências: Maria de Jesus. Relatará Paulo Rodrigues: «O padre Campos Neves – que muitos viemos a conhecer e admirar como Bispo de Vatar- ba – aconselhara aquela mulher digníssima chamada Maria de Jesus a ocupar-se do governo doméstico da velha casa onde viviam dois mestres de Coimbra: o Doutor Cerejeira e o Doutor Salazar».37 O episódio que vai mudar para sempre a vida de Maria de Jesus será também narrado por Franco No- 32 A Governanta gueira na sua monumental biografia de Salazar, explicando que ela vai substituir não uma mas duas criadas:

Havia dez anos que [Cerejeira e Salazar] habitavam os Gri- los. Mas agora dera-se uma modificação doméstica, naquele outono de 1925. Salazar despedira as duas criadas, a Maria da Conceição e a Bárbara, e depositou as economias de ambas na Coimbra Editora [de que fora um dos fundadores cinco anos antes], a 15%. Para as substituir, Cerejeira contratara uma go- vernanta, a Maria de Jesus, indicada pelo [futuro] Bispo de Lamego, D. João Campos Neves, que a dispensou do seu pró- prio serviço. Logo no seu primeiro dia de trabalho nos Grilos, aquela ficou muito surpreendida: foi encontrar Salazar, com um trapo a fazer de pano do pó, a espanejar a mobília do escri- tório. E a governanta começou sem perda de tempo a arrumar, a limpar, a escanhoar, e a imprimir aos Grilos um novo sentido de ordem e de arranjo. De início, vendo os seus hábitos revol- vidos, Salazar ofereceu alguma resistência. Mas em pouco se adaptou à nova serviçal, e até a apreciou, porque o libertava de muitas tarefas e cuidados domésticos. Aliás, ao findar de 1925, Salazar permanecia mais em Coimbra do que era seu hábito.38 Micas ouvirá anos depois contar que, com o recrutamen- to de Maria de Jesus, além de ter deixado de limpar o pó dos seus livros e do seu quarto, o professor de Santa Comba Dão beneficiou de outra vantagem: «Já não precisava de mandar a roupa à mãe, no Vimieiro, para ser lavada».39 Nas posteriores narrativas feitas por áulicos de Salazar, Maria de Jesus raramente será referida, desde a sua entrada ao serviço dos dois catedráticos de Coimbra, como criada, antes como governanta. Dificilmente será de crer que a nova empregada, então com 31 anos, fosse logo contratada com tal estatuto – nem o espaço habitado nos Grilos por Cerejeira e Salazar era de molde a requerer alguém com essas funções. D. Maria, companheira de Salazar 33

Só que a futura proximidade de Maria de Jesus a Salazar irá calar qualquer despromoção sua de um cargo avant la lettre, mesmo nos tempos iniciais ao lado daquele que virá a ser seu patrão definitivo. Terá Maria de Jesus, que habitava no edifício e convivia diariamente com os seus dois senhores, apreendido a con- sequência dos diálogos que ali se travavam, dos planos que se desenhavam, dos projetos que se anunciavam? O certo é que, no ano a seguir à sua entrada, o golpe militar de 28 de Maio de 1926 põe termo à infausta experiência da I Repúbli- ca e instaura uma ditadura marcial de rumo ainda equívoco, fazendo sem sombra de dúvida intensificar as conversas po- líticas entre os dois inquilinos da Rua dos Grilos, ambos há muito ocupados e preocupados com os problemas da orien- tação do país: Cerejeira numa perspetiva mais etérea; Salazar com uma visão mais secular, virada sobretudo para a grave questão financeira que ameaça arruinar o Estado português. À empregada não pode ter sido indiferente, de qualquer modo, a chamada de Salazar a Lisboa pelos militares, dias após o triunfo da insurreição, para assumir a pasta das Fi- nanças do governo ditatorial, o que ele começa por aceitar mas rejeita passados apenas cinco dias – quiçá assustado pela instabilidade decorrente de divergências que os golpistas ain- da não haviam conseguido fazer dissipar entre eles. Fervorosa católica em casa apostólica romana, a Maria de Jesus também não passará despercebida, no ano seguinte, a passagem por Coimbra do padre Mateo Crawley, envia- do do Papa Pio XI a Portugal para reportar sobre a situação da Igreja no País – tanto mais que o visitante acaba por ir parar aos Grilos, como contará Franco Nogueira: «Adoeceu, em virtude de forte resfriado; e como no Seminário [onde 34 A Governanta se alojara] não existissem condições para tratamento eficaz, o padre Cerejeira convidou-o para os Grilos. Ali lhe prepa- raram aposentos, e Mateo beneficiou também dos cuidados da governanta Maria de Jesus. Restabeleceu-se. Mas por su- gestão de Cerejeira, e com o aplauso de Salazar, Mateo não abandonou os Grilos».40 O agente papal tornou-se assim, segundo o mesmo bió- grafo, «num íntimo de Cerejeira e de Salazar», dos quais avalia o elevado potencial e com quem desenvolve longos debates acerca da «situação político-religiosa em Portugal e os problemas da Igreja».41 Maria não pode ter deixado de as- sistir às conversas, e muito menos de participar nas missas conduzidas por Mateo: «A missa nos Grilos era agora muitas vezes celebrada por Mateo. Salazar ajudava, Cerejeira assis- tia, outros amigos acorriam de vez em quando. E de Salazar e de Cerejeira passara o padre Mateo a ser o confessor, mesmo o guia espiritual e moral. Se Salazar se sentia impressiona- do com o padre Mateo, este por seu lado sentia-se fascinado com a inteligência daquele, a sua força de vontade, o vigor das suas convicções, a sua lucidez, a austeridade do seu por- te. Eram intermináveis as conversas e as discussões entre os ocupantes dos Grilos».42 Maria de Jesus observará certamente como Mateo estuda a personalidade de Salazar, que passa a tratar por tu, e adivi- nha a mais oculta das intenções do catedrático, abrindo-lhe o jogo numa conversa à varanda dos Grilos testemunhada por Cerejeira: «A mim não me enganas. Por detrás dessa frieza há uma ambição insaciável. És um vulcão de ambições».43 D. Maria, companheira de Salazar 35

Não tardaria que viesse a revelar-se tal ambição: em abril de 1928, na sequência de uma série de artigos sobre política económica e financeira que publica na imprensa, Salazar é outra vez instado – agora pelo chefe de um novo Governo da ditadura militar, o coronel José Vicente de Freitas, e com o concurso do jovem engenheiro Duarte Pacheco, ministro da Instrução e futuro titular das Obras Públicas, que para o efeito vai até Coimbra – a assumir a pasta das Finanças. Pe- rante a insistência, e vencidas as suas hesitações, aceita, mas agora com outra determinação e maior vontade de ficar e de reformar. Apresenta um programa e impõe condições que o tornam no mais poderoso membro do gabinete, pela forma como passa a controlar e decidir sobre os gastos dos restantes ministérios. Na cerimónia de posse, proclama uma «vontade decidida de regularizar por uma vez a nossa vida financeira e com ela a vida económica nacional». Avisa os portugueses de que vêm aí «todos os sacrifícios necessários» ao cumpri- mento do programa, além de pedir que lhe dêem tempo e se submetam à sua autoridade: «Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, recla- me, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar».44 Salazar não vai porém sozinho para a capital. Ao fim de menos de um mês em Lisboa, aluga casa no rés do chão do número 91 da Avenida Duque de Loulé, «modesta, mesmo acanhada»45, e regressa à Beira para encerrar alguns assuntos: «Deslocou-se o ministro a Coimbra, num domingo, a bus- car alguma da sua mobília, e aproveitou a ocasião para um salto ao Vimieiro. Mas foi rápida a estadia, e logo regressou a Lisboa. E trouxe consigo a Maria de Jesus, a governanta 36 A Governanta que Cerejeira contratara para os Grilos; e na casa instala-se também o secretário, Simões Neves. Podia agora retomar os seus hábitos domésticos, e trabalhar com mais à-vontade».46 Maria desce, talvez pela primeira vez na vida, à grande ci- dade. É um salto de gigante na sua carreira de empregada do- méstica, tanto mais que não vai trabalhar sozinha, mas leva pelo menos uma rapariga que recruta no distrito de Coimbra como sua ajudante. Isto apesar de o seu estatuto profissional ainda se não ter alterado, como se depreende de uma carta que Cerejeira, a partir de Coimbra, dirige ao amigo nos úl- timos dias de maio, preocupado com o excesso de trabalho que se abateu sobre os ombros de Salazar: «Suponho que a instalação em casa própria e a ida das criadas te terão propor- cionado um pouco mais de descanso e bem-estar».47 Há quem defenda a ideia de que Salazar terá disputado Maria de Jesus com Cerejeira, acabando por levá-la contra a vontade do amigo. A verdade, contudo, é que na mesma altura, por extraordinária coincidência (ou mais do que isso), também Cerejeira estava já a caminho da capital para a assun- ção de um cargo de ministro, mas da Igreja: em 23 de março fora eleito arcebispo titular de Mitilene e auxiliar do patriar- ca de Lisboa, António Mendes Belo, sendo sagrado na Sé de Coimbra em 17 de junho (com a presença de Salazar e do padre Mateo, que entretanto se atardara por Portugal) e to- mado posse como vigário-geral do patriarcado de Lisboa em 5 de agosto – e provavelmente não teria lugar para Maria de Jesus nas suas novas funções. De resto, no ano seguinte, em novembro, na sequência da morte de Mendes Belo, confir- mar-se-ia o seu rápido percurso ascensional, ao ser nomeado cardeal-patriarca de Lisboa, o posto máximo da hierarquia católica em Portugal (onde aliás, pouco tempo depois, iria es- D. Maria, companheira de Salazar 37 colher para seu bispo auxiliar o padre Campos Neves, o mes- mo que em Coimbra lhe havia apresentado Maria de Jesus). Dos Grilos saíam pois, de uma assentada, os homens que nas décadas seguintes governariam os portugueses nos pla- nos material e espiritual. Assim como a mulher que, desco- berta e moralmente apoiada por um deles, seria, na sombra, o mais firme suporte do outro.

Capítulo 3

A luta pelo arroz

D. Maria, companheira de Salazar 41

s beirões Salazar e Maria de Jesus têm todas as razões Opara se entenderem: ambos partilham raízes no profun- do país rural (ele em terra mais produtiva), ambos professam um catolicismo ortodoxo, ambos são solteiros, ambos são circunspetos, ambos contam os tostões. Contar tostões é aliás a política financeira que leva o novo titular das Finanças a alcançar, logo nos primeiros tem- pos, o «milagre» do equilíbrio das contas do Estado – razão do seu sucesso nos meios do regime (que por intermédio dele passa de ditadura militar a «ditadura financeira») e de uma notoriedade pública que nesses tempos não cessa de crescer. Ao contrário do que era já tradição das décadas recentes, o ministro que desta vez sobraça tão espinhosa pasta é capaz de, tão cedo, não regressar à sua anterior vida profissional – como aliás ele mesmo previra na posse. O êxito tornará a sua posição inexpugnável no âmbito do regime: os primeiros-ministros mudam mas Salazar fica – na verdade, é na órbita do ministro das Finanças que gira toda a atividade dos governos da ditadura, é ele quem define as políticas em curso, é ele quem traça as estratégias, é ele quem constrói uma ideologia. Tal circunstância só poderia redun- dar – como redundou – num único desfecho: acabar o próprio por ser o chefe do Governo. A nova posse ocorre em 5 de julho de 1932 – e Salazar, olhando para a experiência recente, resolve ser mais avisado acumular o cargo de primeiro-minis- tro com as Finanças, em vez de deixar a pasta a outro. 42 A Governanta

Houvera já antes que pensar em arranjar na capital alo- jamento mais acolhedor e espaçoso. Salazar e Maria de Jesus não afincaram raízes na casa da Duque de Loulé, tendo-se mudado ao fim de pouco tempo para o número 3 da Rua do Funchal. Mais longe da Praça do Comércio, onde o ministro tinha o gabinete de trabalho, a Rua do Funchal situava-se na fronteira entre um bairro tradicional – Arroios – e a Lisboa moderna das Avenidas Novas, com o Instituto Superior Téc- nico (ainda em construção e dirigido, aliás, por Duarte Pa- checo), mesmo à sua beira. Também esta casa seria conside- rada inferior ao estatuto do ocupante, desta vez por António Ferro, admirador do fascismo italiano, ao terminar uma das entrevistas em série que faz a Salazar em finais de 1932 para o Diário de Notícias: «E ditas estas palavras, as últimas da tarde, o dr. Salazar, despedindo-se de mim, entrou para a sua casa, na Rua do Funchal, essa casa que não seria mais simples e mais modesta se ele fosse um comunista praticante, que vale mais para o povo, no seu exemplo raro, do que todas as palavras ao vento, do que todas as promessas...»48 Entretanto, a missão de Maria de Jesus alarga-se quan- do o regime se institucionaliza com a aprovação da Cons- tituição de 1933 e passa a adotar a expressão salazarista de «Estado Novo». Salazar é confirmado na chefia do Governo, cargo que agora se designa por Presidência do Conselho. É necessária outra vez uma nova habitação, condizente com a dignidade da função. A escolha recai numa casa de fachada ti- picamente fin de siècle situada no número 64 da Rua Bernar- do Lima, uma tranquila transversal à Duque de Loulé, não muito longe do Liceu Camões. É uma residência muito mais ampla do que as anteriores: dois pisos nobres – um rés do chão com a sala de jantar, um D. Maria, companheira de Salazar 43 longo corredor, ligando à biblioteca e ao escritório de Sa- lazar, e a cozinha nas traseiras, separada do pátio por uma divisória envidraçada, e um primeiro andar onde se situam os quartos do inquilino, de Maria de Jesus e de hóspedes –; umas águas-furtadas, onde se alojam as criadas, que são agora duas; e ainda uma cave, acolhendo a entrada de serviço e onde se situa a arrecadação e a caldeira a carvão de coque, para o matinal banho de imersão do homem da casa e o aquecimen- to central no inverno. Apesar da sua rara utilização (talvez apenas por uma ou outra irmã de Salazar de visita à capital), o quarto de hóspedes é de longe o melhor do edifício, sendo o único cujas janelas dão para a rua e que tem casa de banho própria e zona de vestir. Ascético, Salazar opta por aposentos pessoais mais modestos.49 Como sempre, os propagandistas do regime continuam a ver aqui um «viver habitualmente» (expressão posterior do próprio Salazar noutras circunstâncias) que nada tem que ver com o costumeiro protocolo atribuído a um chefe de Gover- no. Di-lo, por exemplo, José Leitão de Barros, jornalista, ar- tista plástico e realizador de cinema, numa reportagem sobre o quotidiano do presidente do Conselho que escreve em maio de 1938 para a revista O Século Ilustrado (de que é diretor): Sobre a mesa, a meio da sala, numa bela taça de cristal, dormem em sossego cinco rosas soberbas. Cada uma tem a sua cor: amarela, vermelha, branca, roxa, carmesim. Reconheço, na parede da grande chaminé holandesa, uma antiga gravura do Coração de Jesus que já vira na casa da rua do Funchal. Uma recâmara mobilada num conjunto de ouro velho «Luís XVI» e veludo cinzento dá, num canto da sala, um ar de riqueza agra- dável e harmónica. Naquele arranjo passaram mãos femininas. [...] Só «um dos nossos» preferiria habitar numa casinha quasi pobre, com a «bondosa senhora Maria», [...] a viver nos altos 44 A Governanta

palácios de arrogante pé-direito, onde a alma e a vida enre- gelam. Só um bom cristão podia, voluntariamente, renunciar assim ao exibicionismo sedutor e preferir a tranquilidade dum recolhimento, quasi monástico, numa travessa sossegada e vulgar do Bairro Camões.50

Como gestora da vivenda e chefe do pessoal menor, Maria de Jesus pode agora reivindicar o estatuto de gover- nanta com que passa a ser designada. As criadas, adolescentes entre os 15 e 17 anos, são recrutadas de famílias rurais das Beiras, algumas na sua própria terra, e não têm por destino afeiçoar-se ao lugar: chegada a idade de casarem, obtida me- lhor ocupação ou caídas em desgraça junto da sua superiora, esta encarrega-se de as substituir por outras igualmente jo- vens. A sua função consiste em assegurar as limpezas, tratar das roupas e fazer algumas compras, mas não as dos mais im- portantes alimentos a confecionar, que essa escolha é missão atribuída em exclusivo a Maria de Jesus, assim como a pre- paração das refeições de Salazar. O ditador mantém-se aten- to a cada novo recrutamento feito pela governanta: segundo Franco Nogueira, o presidente do Conselho «assenta por sua mão o início e o fim do mês das criadas novas».51 Pode toda a gente na casa saborear os mesmos pratos, mas os do patrão são sempre feitos à parte pela governanta – na culinária não se aceitam misturas. Caseiro, avesso a comer fora a não ser por estritas obrigações de Estado, Salazar é o comensal diário e quase sempre solitário da Bernardo Lima, tanto ao almoço como ao jantar. Senta-se à mesa por automa- tismo, não ordena, não reclama, não mostra preferência por carne ou peixe, come o que lhe põem à frente – come e cala. D. Maria, companheira de Salazar 45

Mas Maria de Jesus, com o tempo, adivinhou que, como toda a gente, ele possui as suas tendências palatais, e por isso já lhe conhece os apetites, tão frugais, simples e pouco exi- gentes que dir-se-ia habitar ainda na casa rural do Vimieiro ou no seminário de Viseu (onde em jovem chegou a tirar ordens menores). E só ela está autorizada a cozinhar a pe- tinga frita com feijão frade, o bacalhau assado com batatas a murro ou com grelos cozidos e broa esfarelada, as trutas do Dão grelhadas, também com grelos, as iscas ou um dos pratos eleitos pelo patrão: arroz de lampreia. Do mesmo modo, têm de passar pelas suas mãos o caldo verde ou o caldo de cebola com batata, assim como a marmelada final, o único doce que ele aprecia, e que se extasia a devorar à colherada ainda em estado líquido. Quanto ao resto, basta compor a ementa com queijos frescos de entrada e fruta no fim: laranjas, pêras e maçãs todo o ano, cerejas e melão quando há. Não se excede no vinho: um único copo por refeição, obrigatoriamente da sua própria colheita, na pequena propriedade que herda da família e amplia em Santa Comba Dão. Nada de digestivos, a não ser um Porto, se tiver companhia.52 No pátio, embora exíguo, Maria de Jesus instala capoei- ras. Como mulher do campo que não esqueceu as leis da so- brevivência, aí se dedica à criação de galinhas e coelhos para consumo da casa. Não é iniciativa que Salazar veja com bons olhos, pesando de um lado a solenidade da função e do outro a poupança que apesar de tudo valorizará. Mas não ousa con- trariar a autoridade que a governanta paulatinamente reforça. A dinâmica de Maria de Jesus revela o seu total empenha- mento no cargo. Ainda na Rua do Funchal, um trabalhador que ia fazer reparações à residência surpreendeu-a fazen- do-lhe a corte. Ela escandalizou-se e de imediato rechaçou os seus avanços. Pelo que contará mais tarde a Micas (então 46 A Governanta acabada de nascer mas ainda longe de aparecer lá por casa), terá sido essa a única vez na sua vida que um homem se apro- ximou dela com tais intenções.53 Já então teria decidido que o seu desígnio seria dedicar- -se de alma e coração a Salazar enquanto pudesse, e qualquer devaneio com outro aparecer-lhe-ia como ato de traição in- compatível com os seus princípios morais. Maria de Jesus não via homem além dele – todos os testemunhos concor- rem nesse sentido. E, mantendo-se o seu ídolo celibatário, não seria ela a cometer a amarga infidelidade de se entregar a alguém de categoria inferior. Tendo chegado já aos 40 anos, assumia portanto a atitude e a prática de freira sem hábito, mantendo a castidade, expul- sando os pensamentos impuros e dedicando-se a uma obra e a uma missão a favor de outrem. Podemos dizer que perten- cia à Ordem das Auxiliadoras do presidente do Conselho, de que era ao mesmo tempo fundadora, noviça e madre supe- riora. Nunca abandonaria este último cargo, mesmo quando a ordem veio a encher-se de outras devotas do santo a quem julgavam dever-se a salvação de Portugal. O lado religioso da sua ação não escaparia por exemplo, mais tarde, à atenção de Paulo Rodrigues: «Muita coisa decorreu da simultaneidade em Coimbra daquelas duas personagens, Salazar e Cerejeira, pelo que ela atuava de uma maneira mais eclesiástica».54

Cedo Salazar percebe que Maria de Jesus pode também desempenhar uma função política: desligá-lo das questões comezinhas do quotidiano, para ele se sentir mais equidis- tante ao tomar as decisões de governante. O próprio o reco- nhecerá a Ferro em 1938: «Eu vivo em Lisboa, é certo, mas D. Maria, companheira de Salazar 47 tão isolado que estou, afinal, tão próximo dos Clérigos como do . O meu isolamento tem essa vantagem: permite- -me estar ao lado de todos os portugueses, permite-me não viver aqui ou além para viver, simplesmente, em Portugal».55 Mas a governanta, com as suas surtidas à rua, auscultan- do a atmosfera pública e os rumores em curso, funciona ain- da como antena de Salazar, uma das escassas ligações que ele mantém à vida real para sentir o pulso da sociedade. O que o leva, por exemplo, nos primeiros meses de 1936, a inter- vir no regulamentado mercado alimentar para resolver um problema relacionado com o consumo de arroz, conforme relatará, nas suas memórias, um dos mais próximos colabo- radores políticos do ditador, Pedro Teotónio Pereira, então recém-nomeado ministro do Comércio e Indústria:

São os portugueses grandes comilões de arroz. A ida ao Oriente criou-lhes o gosto pelo arroz de sustância, pela canja, pelo arroz doce e outros pratos suculentos. Não obstante, o arroz produzido em Portugal raramente atingia 20% das ne- cessidades do consumo. Para tornar mais negro o quadro, esse arroz da terra, ou arroz chinês, era tido por um produto de inferior qualidade, e deixara-se criar no espírito dos consu- midores a ideia corrente de que quem quisesse comer arroz capaz teria de comprar o carolino produzido na América ou na Birmânia. Nem sequer se estudava a possibilidade de fo- mentar a produção do nosso arroz do Ultramar com vista a servir dentro da economia nacional o paladar e a nutrição dos consumidores mais exigentes. Lançadas as providências destinadas a estimular a produ- ção e a qualidade do arroz da terra, começou a esboçar-se no comércio interno um açambarcamento das pequenas quanti- dades ainda existentes do arroz importado. 48 A Governanta

Lembro-me de que estava uma tarde a trabalhar com o Dr. Salazar quando ele fez uma pausa para limpar os óculos, sinal que ia abordar um assunto novo, e disse: – A Maria queixa-se de que é péssimo o arroz que o [Se- bastião Garcia] Ramires [antecessor de Teotónio Pereira no cargo] e o senhor puseram à venda. Quer comprar-se arroz carolino, que é o de que toda a gente gosta, e é só a preços de mercado negro que se consegue algum. Eu conhecia já há alguns anos a senhora Maria, governan- ta de Salazar, e, ao mesmo tempo que muito a estimava, tinha grande receio de discutir com ela problemas de abastecimentos. Pareceu-me, porém, que era melhor requerer ali mesmo a discussão do assunto do que deixar a acusação no ar. Chamou-se a senhora Maria e ela confirmou tudo o que eu ouvira a Salazar. Quando ela se retirou, limitei-me a prometer que alguma coisa se faria. Chamei o Jorge Cordeiro Blanco, presidente da Comissão Reguladora do Comércio do Arroz, e discutimos o assunto sob todos os ângulos. Mediante umas consultas à sua agenda e umas breves res- postas a perguntas que fizemos pelo telefone à Comissão Re- guladora do Arroz, ficou traçado um plano de ação a executar imediatamente. Consistiria ele no seguinte: Requisitar, ao preço da tabela oficial, umas toneladas de arroz carolino existentes nos armazéns por grosso. Alugar uma loja num sítio central para instalar, com o mí- nimo de despesa e por pouco tempo, um armazém regulador dos preços do arroz. Pelo telefone ficou apalavrada uma loja disponível na Rua do Jardim do Regedor. Publicar, no dia seguinte, nos principais diários, anúncios de meia página informando o público de que, até à próxima entrada no mercado do arroz especial de produção nacional, não seria autorizada a compra, por todo o freguês identificado, de mais de um quilo de arroz carolino ao preço da tabela. D. Maria, companheira de Salazar 49

A loja abriu no prazo de dois ou três dias. No primeiro dia houve bicha e foram vendidos dois mil quilos de arroz ca- rolino em pacotes de quilo e meio quilo. Os totais das vendas foram diminuindo rapidamente até se verificar que o assunto caíra no esquecimento. Como se compreenderá, não tive muitas ocasiões nem ne- cessidade de renovar medidas de proteção desta natureza, mas nem por isso quero deixar de dizer que foi importante sossegar as donas de casa que se alarmavam pela falta do seu arroz favo- rito. E, mais importante que isso, em dois ou três anos, o arroz produzido na Metrópole atingiu o volume das nossas necessi- dades e fomos, além disso, capazes de produzir várias qualida- des de arroz especial que depressa fizeram esquecer a Birmânia e as Carolinas americanas. Todo o arroz que se consome, do mais barato ao produto de luxo, passou a ser produzido em Portugal e, embora sujeito a grandes riscos, como tudo o que nasce da terra, tornou-se uma das culturas mais regularmente remuneradoras».56

Teria Maria de Jesus sido responsável pela qualidade do arroz que os portugueses passaram desde então a consumir? A hipótese coloca-a num patamar muito mais elevado quan- do se avalia a sua influência histórica, à partida insignificante. Não que ela exprimisse algumas preocupações nesse sen- tido. A governanta atuava sobretudo em função dos interes- ses de quem lhe era próximo. Os irmãos, por exemplo. Se os rapazes tinham assegurado o bem-estar além-mar, no Brasil ou em Moçambique, já a irmã mais nova, Rosalina, devia ser ajudada a ultrapassar os estreitos horizontes da Freixiosa. Quando uma vez acompanhou Salazar a passar uns dias de fé- rias no Caramulo, na casa de uma família amiga do presiden- 50 A Governanta te do Conselho, aproveitando este para alguns colóquios com o seu outro amigo Jerónimo Lacerda, proprietário do sana- tório local, Maria de Jesus resolveu chamar Rosalina para a ajudar nas lides domésticas, e assim dar-lhe algum mundo. Em boa hora o fez, porque a irmã caiu de amores pelo despenseiro do sanatório, José Abrantes da Conceição, um rapaz oriundo de Tondela, ali perto, e não tardou muito até se combinar casamento. A governanta entendeu porém que o futuro cunhado devia ter melhor posição, tanto mais que ele até já tinha a quarta classe, e bastou mexer uns cordeli- nhos para lhe arranjar um lugar de porteiro no Palácio de São Bento, na capital, onde o chefe do Governo possuía o seu gabinete oficial. No edifício viria a funcionar também, a partir de janei- ro de 1935, a Assembleia Nacional (o hemiciclo do regime, resultante de escrutínios quadrienais de que resultaria siste- maticamente a eleição de parlamentares da única formação política autorizada, a pró-salazarista União Nacional, dadas as dificuldades criadas aos grupos da oposição quando se per- mitia a sua candidatura). A Abrantes da Conceição compe- tia porém tomar apenas conta da entrada lateral contígua à Calçada da Estrela, usada por Salazar, e não do acesso dos deputados. Nessa função, ele e Rosalina, entretanto casados, tinham direito a habitação nas dependências traseiras do próprio palácio. Uma vez em Lisboa, naturalmente, as irmãs passaram a visitar-se com regularidade – numa ou noutra casa, Maria de Jesus tinha a certeza de estar sempre com Sa- lazar por perto.57 Oriundo de uma necessitada família rural da aldeia ton- delense da Lajeosa, sem meios de sustento para todos os fi- lhos, o cunhado de Maria de Jesus resolve levar para a casa de Lisboa, em fins de 1935, uma das suas irmãs gémeas (últimos D. Maria, companheira de Salazar 51 rebentos de uma descendência de oito sobreviventes). A me- nina, Maria da Conceição, tem então apenas 6 anos, e entra para a escola primária logo após chegar à capital. Só que, ao mesmo tempo, Rosalina engravida, e quando, em maio do ano seguinte, está na iminência de dar entrada na Maternida- de Alfredo da Costa para o parto, é preciso decidir o que fazer à criança. Como nas famílias que se prezam se deve ser uns para os outros, Maria da Conceição é posta à guarda de Maria de Jesus, na Bernardo Lima.58 O presidente do Conselho, segundo os seus epígonos de- votado admirador de crianças e de flores59, acolhe bem a no- vidade em sua casa, conforme relatará mais tarde a própria Maria da Conceição: «Salazar não se opôs à minha presença na sua residência, e até me pareceu que apreciava a animação trazida por uma criança. Para toda a gente da casa, ele era “o Senhor Doutor”, conservando-se o título académico que tra- zia de Coimbra. Também me habituei a tratá-lo desse modo [...]. Guardo a imagem de um homem meigo, que dialogava comigo e parecia ter um interesse genuíno pela minha insig- nificante pessoa, ao contrário da D. Maria, sempre solene e distanciada, a quem eu chamava “tia”».60 O uso do título coimbrão, imposto por Maria de Jesus na residência, é confirmado por Costa Brochado: «Senhor Dou- tor era o tratamento dos tempos em que, em Coimbra, nos Grilos, a D. Maria, ainda só Maria, servia o depois Cardeal Ce- rejeira e o Salazar. Ficou fiel a este tratamento até à morte»61. Ao acolher a menina, a governanta acabaria, involunta- riamente, por modificar a vida de ambas, assim como a do seu mestre. É que, entrada apenas por uns dias, Maria da Conceição só sairia da residência de Salazar já adulta. A ex- plicação para a reviravolta é dada por ela mesma: 52 A Governanta

Ou porque me agradou mais o conforto da nova morada, ou porque encontrei no inquilino um carinho que ainda não sentira de nenhum homem na minha curta existência, escoa- dos os dias para Rosalina dar à luz uma menina, e chegado o momento de me levarem de volta a São Bento, desencadeei um motim na Bernardo Lima: não queria sair – gritei no meio de enorme choradeira. O Senhor Doutor, que estava presente, perguntou-me porquê. Arranjei logo uma explicação: – Aqui é mais quentinho. – Se a desobediência era atitude condenada por aquelas bandas, eu não o senti. O senhor da casa acabou por me res- ponder: – Então, se gostas de cá ficar, ficas. Não sei que combinações foram feitas com a minha família. Só sei que, através de um ato de rebeldia que nem sequer julgo fazer parte da minha maneira de ser, conquistei o direito a uma vida melhor, e que nessa vida se abriu uma porta para uma jor- nada que eu estava longe de poder algum dia imaginar.62 É assim que entra em cena aquela que Salazar viria a re- batizar de Micas, dando-lhe a escolher entre esse nome (sig- nificando pequenas porções, bocados, migalhas) ou Maria Pequena. Ficou Micas, colando-se-lhe para sempre. Os ocupantes permanentes da casa de Salazar, agora um homem, uma mulher e uma criança, constituem uma espé- cie de informal «sagrada família» que, aos olhos da opinião pública, acaba por tornar mais humano o perfil rígido e con- ventual do chefe do Estado Novo. «Como tudo isto é portu- guês!», escreverá Leitão de Barros na sua reportagem, quan- do se refere ao quotidiano daquele a quem chama o «Grande Operário» e das suas duas companheiras na Bernardo Lima.63 As visitas à residência resumem-se a um escasso conjunto de velhos amigos de Salazar: Cerejeira nunca falha cada 28 D. Maria, companheira de Salazar 53 de abril, dia do aniversário do amigo, ou véspera de Natal. O médico Fernando Bissaia Barreto, republicano conserva- dor de Coimbra, aparece todos os sábados para pôr a con- versa em dia. Antero Leal Marques, chefe de gabinete do presidente do Conselho, almoça na casa aos domingos para atualização da agenda. António Augusto Nogueira da Silva, de Braga, fundador e dono da Casa da Sorte, empresa de ven- da de lotaria, janta durante a semana. A família Lacerda (do Caramulo) é visita constante. O advogado e agora deputado José Nosolini, antigo colega de Coimbra (e futuro embai- xador no Vaticano e em Espanha), surge acompanhado da mulher, Maria Lívia. O padre José António Marques, nas- cido perto do Vimieiro, vem após o jantar de domingo para contar ao amigo as últimas que se dizem dele nas ruas e nos cafés – incluindo as anedotas e as piadas de revista no Parque Mayer, talvez a diversão preferida de Salazar, que reage sem- pre com sonoras e genuínas gargalhadas.64 Com todos Maria de Jesus vai fazendo amizades mais ou menos profundas (sobretudo com os casais Nogueira da Silva e Nosolini). Mas vai sobretudo aprendendo, recolhendo in- formação, requintando modos e etiqueta, apurando sabores, observando. Pensa até viajar para o estrangeiro, ir ao Brasil visitar um dos seus irmãos. O problema é que o passaporte só é então concedido a quem saiba ler e escrever, um obstá- culo para os muitos que nunca tiveram qualquer educação escolar, entre os quais ela mesma. Questão que se resolve: a governanta passa a receber em casa, todos os fins de tarde, lições particulares de uma professora «alta, de idade e sempre vestida de preto», segundo a memória que dela guarda Mi- cas. A criança ficou com a ideia de que Maria de Jesus «tirou uma 4.ª classe um bocado forçada», mas que importa? Com 54 A Governanta o passaporte na mão, atravessou o Atlântico em 1938 para reencontrar o irmão. Descobriu até o gosto pelas viagens, se bem que fossem uma extravagância para as suas funções e o seu vencimento.65 Se Salazar ensinava diariamente a Micas, com um desvelo paternal, a escrita e a tabuada – e até a catequese, levando-a a recitar, sentada ao seu colo, todas as orações do calendário litúrgico –, já Maria de Jesus teve de se alfabetizar sem a do mestre.66 De qualquer modo, a sua aprendizagem trouxe uma vantagem à casa: doravante, a governanta podia mandar as criadas fazer compras no mercado com listas que ela pró- pria escrevia em papelinhos.

O que a menina desde sempre notou naquela residência foi o contraste entre Salazar e Maria de Jesus no que respei- tava à expressão dos afetos: O presidente do Conselho arranjava tempo para brincar comigo [...]. Uma ou outra vez, também jogávamos [no pátio] à bola, só os dois, claro, que a Tia Maria não era pessoa para essas coisas – tal como era incapaz de um beijo ou de um afeto. A minha hora de deitar – 22h30 – era sagrada, porque aquela era uma casa de ordem e disciplina, mas o Senhor Doutor nun- ca ia para a cama sem subir ao meu quarto para ver se eu estava bem, acariciar-me a cabeça e ajeitar-me os cobertores – coisa que a Tia Maria, com a sua secura e o seu autoritarismo, nunca fez (não quero dizer que não fosse bondosa para comigo, mas o mínimo que posso garantir é que ela não estava ali para ganhar um concurso de popularidade). Esta prática do aconchego era diária, e mantinha-se mesmo quando Salazar tinha compro- missos noturnos – em regra [...] banquetes de Estado. [...] Ou- D. Maria, companheira de Salazar 55

tra coisa para a qual a Tia Maria também nunca teve paciência foi contar-me histórias, algo que eu apreciava como qualquer criança da minha idade. Lá estava porém Salazar para, também aí, assumir o papel simultâneo de pai e mãe. A sua especiali- dade eram as fábulas, que ignoro onde foi buscar. Delas tirava sempre uma conclusão moral, que procurava incutir-me como conselho para a vida.67 Sem qualquer laço familiar com Micas, Salazar parece na verdade mais envolvido com a criança do que a sua concu- nhada. São extremos os cuidados que lhe presta quando ela adoece: «Pelos meus oito anos, caí à cama com tosse con- vulsa e sarampo ao mesmo tempo. A acumulação das duas doenças motivou um estado de emergência à minha volta, a ponto de me fazerem descer para o quarto de hóspedes, onde a evolução do meu estado de saúde podia ser acompanhada mais de perto. Durante a noite, sempre que me ouvia tossir, o Senhor Doutor lá se levantava para me ministrar o xaro- pe e compor-me a roupa».68 O próprio chefe do Governo, numa conversa com Ferro em 1938, confirma a preocupação que Micas lhe suscitou dessa vez: «Tenho aí, como sabe, uma pequenita, que não me é nada. Teve agora um sarampo vul- gar, mas sofria tanto com a febre que numa noite me levantei cinco vezes a ver como estava. No dia seguinte, é claro, não pude trabalhar como de costume».69 E um dos seus amigos revelará: «Na altura, ele não conseguiu trabalhar ao ritmo normal. Disse-me então ter sentido, mais uma vez, que se tivesse fundado uma família não teria podido consagrar-se inteiramente ao seu país».70 No que os dois adultos eram unânimes, pelo que recorda Maria da Conceição, era na necessidade de poupar – e pou- par sempre, não apenas em hora de maior carência. Micas 56 A Governanta aprendia aquilo que então se chamava «lavores femininos», sob instruções de Maria de Jesus mas por indicação de Sa- lazar, que entendia crucial para uma rapariga conhecer as regras de futura dona de casa. E uma das suas tarefas con- sistia «em coser as meias que a Tia Maria rompia com certa frequência», isto porque ele lhe dizia: «Deves aproveitar as coisas, não deitá-las logo fora, porque ainda podem servir».71 Neste capítulo, talvez Salazar fosse ainda mais austero do que Maria de Jesus, porque era frequente a criança ouvi-lo advertir a governanta: «Maria, temos de poupar».72 Ele fazia questão de assegurar do seu bolso as despesas de funciona- mento da residência, o que implicava um constante sufoco orçamental. A roupa ficava puída de tanto uso, e depois era ainda reciclada: costureira experiente, ela fazia por exemplo as suas saias a partir das velhas calças do patrão. Mas enco- mendava a uma modista adaptações mais complexas do ves- tuário usado.73 A atmosfera adensou-se a partir do momento em que, no verão de 1936, deflagrou mesmo ao lado a terrível e arrastada guerra civil espanhola, com o seu risco de contágio imedia- to a Portugal. Salazar duplicou funções para que o regime evitasse pisar terreno minado, passando a acumular, além das Finanças (vindas de trás), as pastas da Guerra (depois Defesa), desde maio, e dos Negócios Estrangeiros, a partir de novembro. É então que Maria de Jesus, temendo pelos efeitos nocivos das preocupações e do excesso de trabalho na saúde do presidente do Conselho, intervém para o proteger, filtrando os pedidos dos que pedem para serem recebidos e desligando mesmo, por vezes, o telefone. Capítulo 4

Dentro de muros

D. Maria, companheira de Salazar 59

a manhã de 4 de julho de 1937, um domingo, estava Ma- Nria de Jesus com Micas a assistir à missa, na igreja da Rua de Santa Marta, perto de casa, enquanto Salazar fora fazer o mesmo à capela particular da vivenda do seu amigo Josué Trocado, nas Avenidas Novas, quando de rompante entrou no velho templo, vinda da Bernardo Lima, uma criada alvo- roçada: alguém acabara de tentar assassinar à bomba o Senhor Doutor. Nervosa e aflita por desconhecer as reais consequências da explosão, a governanta precipitou-se com as outras de volta a casa, para saber mais notícias.74 Afinal, para grande alívio de todas, o amo escapara ileso à carga de grande potência, que só não fez vítimas por um erro de cálculo dos responsáveis pelo atentado – um grupo de anarquistas querendo castigar o líder do regime pelo apoio político e material (mais visível do que encapotado) dado aos nacionalistas que se haviam insur- gido contra a república em Espanha, chefiados pelo general Francisco Franco. Nessa noite, a governanta assiste, de uma janela do 1.º andar da Bernardo Lima, a uma ampla e ruidosa manifesta- ção de apoio a Salazar, que, apesar de convocada por organi- zações do Estado Novo, revela, na espontaneidade da multi- dão que se aglomera, a popularidade de que o presidente do Conselho então goza. Mas não é suficiente a reação popular. Salazar precisa de maior proteção, deixando de ser sustentável o modelo de singe- 60 A Governanta la residência civil tão relevado pelos seus fiéis como prova pro- vada de um governante imerso no modo de viver português. Iniciam-se diligências com vista à criação de uma residên- cia oficial do chefe do Governo, devidamente resguardada de intenções subversivas. A escolha recai sobre um palace- te lisboeta pertencente à família Sottomayor, com entrada a partir da Rua da Imprensa à Estrela, que tem a vantagem de se situar num espaço contíguo às traseiras do Palácio de São Bento, permitindo ligação direta pelos jardins sem necessida- de de sair para a rua. António Carneiro Pacheco, ministro da Instrução Pública (depois Educação Nacional) e presidente da Comissão Executiva da União Nacional, fica encarregado de negociar a aquisição do edifício e do espaço florestal à sua vol- ta75, que, obviamente, ficarão rodeados de um muro com a al- tura conveniente ao resguardo de toda e qualquer indiscrição.

Enquanto decorrem as obras de adaptação do palacete a residência oficial, Maria de Jesus prepara a mudança para a sua nova casa, desta vez à dimensão do título que ostenta. Discute assim com Salazar todos os detalhes da disposição interior do espaço, que o presidente do Conselho depois in- tegra nos relatórios escritos pelo punho dele sobre o rumo a dar aos trabalhos. «O trabalho foi feito na orientação de nada modificar no traçado da casa e de não alterar as divisões existentes, apro- veitando-se tudo o que existe com a maior economia», co- meça Salazar por considerar. Expõe depois, com minúcia de perfeccionista, as diretivas piso por piso, começando pelo rés do chão. A seguir ao átrio de entrada, menciona o «escritório habitual de trabalho e de D. Maria, companheira de Salazar 61 receber» («guarnecido com a minha mobília de escritório»), que «deve ser muito cuidado: faz naturalmente parte da série que é mais frequentada por estranhos», a «biblioteca e ga- binete para um secretário» («deve ter-se em conta que esta sala é a mais frequentada da casa e que, em caso de jantares a estranhos, é naturalmente destinada a servir cafés e a fumo – deve ser muito cuidada»), a sala de jantar, a sala de receber, a casa de banho («completa: retrete, bidé, mictório, banheira, lavatório, banco, pequeno armário na parede, espelho»), até uma sala da costura (a pensar, claro, nas atividades da go- vernanta e das criadas) e a copa: «Além do elevador, deve prever-se um armário grande na parede oposta à janela para guarda de algumas louças, compotas, alguma mercearia mais fina, etc. É conveniente ser do tipo dos aparadores com mesa livre entre os armários inferiores e superiores. Devem pre- ver-se ao centro do compartimento ainda uma mesa para as refeições das criadas (6 pessoas) e junto da janela encostado à parede um pequeno fogão a gás». Mesmo o vão da elegante escada que conduz ao piso superior é intervencionado: «Terá de ser estudado o aproveitamento deste vão (talvez um divã encimado por pequena prateleira de estante para livros ligei- ros?) – pode ficar um cantinho agradável».76 Segue-se o primeiro andar, onde se situarão os seus apo- sentos particulares e os de Maria de Jesus, mas também um espaço de trabalho coletivo oficial: «Sala em que se deve pre- ver se efetuem, quando necessário, Conselhos de Ministros. [...] É o melhor compartimento da casa, certamente muito quente no verão, mas, à parte algum Conselho que ali se rea- lize, serve optimamente durante oito meses pelo menos para estudos com vários ministros ao mesmo tempo. A mesa do centro fica bem para se examinarem grandes mapas, projetos 62 A Governanta de obras, etc. A decoração da sala, cortinados, etc., devem ter em conta que a sala se destina principalmente a trabalho intelectual». Estipula ainda uma sala de escritório «para tra- balhar sozinho» e um quarto de hóspedes («a mobilar com duas camas»).77 Na cave, entre outras coisas (como a instalação de um arquivo morto), será necessário proceder-se à adaptação da cozinha: «A cozinha é escura: se não puder dar-se-lhe mais luz, deve ao menos tentar-se aclará-la mudando o pavimen- to para claro e pôr azulejo branco nas paredes. A colocação dos móveis necessários só pode fazer-se depois de se saber o lugar do fogão. Como um fogão grande é incómodo para o meu serviço e um fogão pequeno fica desproporcionado com a casa, sobretudo se um dia esta vier a ser habitada por muitas pessoas e a ter muito movimento, talvez seja melhor ser o que se instalar propriedade minha e obedecer a certos requisitos que se indicarão».78 Por último, Salazar planeia a instalação dos quartos das criadas e serviços de apoio nas águas furtadas. E, num adita- mento ao relatório, datado do dia seguinte, entra em novos pormenores, como considerações minuciosas sobre o proces- so e os equipamentos do aquecimento de águas. Pronuncia-se também sobre a antena para a captação de emissões radiofóni- cas e sobre a colocação de tomadas elétricas em todos os pisos: «Não é necessário que pudessem funcionar duas telefonias; mas que a telefonia pudesse funcionar em dois lugares».79 Espraia-se depois pelas dependências externas do pala- cete, preconizando no manuscrito a instalação a que Maria de Jesus tanto aspira: galinheiros e coelheiras, incluindo o «depósito da comida da criação (palha, feno, folhas, cereais, etc.)» e a «cozinha da criação». E com uma especificação téc- D. Maria, companheira de Salazar 63 nica revelando a atenção de quem escreve: «Deve abrir-se na parede interior da vedação um orifício que em caso de necessidade torne comunicáveis os pequenos galinheiros – veda-se com uma simples tábua».80 Falta também falar do estendal e da produção agrícola: «Reservar um pedaço de terra para a roupa, para uma peque- na horta e um pequeno pomar e ao mesmo tempo isolá-lo convenientemente do restante terreno de jardim e parque». Em suma, o campo desce à cidade, opção no entanto sempre reversível: «A utilização total do talhão em horta permite com mais facilidade que mais tarde quem quiser mande re- constituir o ténis, e isso tem vantagens».81 Há ainda indicações para a casa do motorista e por fim uma solução para um problema levantado pela circulação entre o exterior e a residência, deste modo exposto: «É im- possível que as ligações do pessoal e das pessoas estranhas que procuram o pessoal, bem como as relativas à entrada de quaisquer artigos ou géneros (carvão, lenha, mercearia, etc.), se façam pelo portão da Rua da Imprensa. [...] Eram inevi- táveis encontros desagradáveis (as pastas dos Ministros e as sacas do carvão)». Daí o pedido de adaptação de uma outra entrada, pela Calçada da Estrela, para uso do pessoal menor, com a colocação de campainha, intercomunicador e botão de abertura do portão. Os contactos pessoais nessa entrada fi- cam reduzidos ao mínimo: «O único caso em que o pessoal tem de sair de casa para vir ao portão é relativamente raro: trata-se de pessoas a quem é preciso entregar alguma coisa mas a quem não se deseja deixar entrar; e não entram senão as pessoas cuja voz for conhecida». A data de finalização dos extensos relatórios de obras pela mão de Salazar é de 3 de março de 1938.82 64 A Governanta

Neles fica também salvaguardada, provavelmente para o respetivo reembolso, a descrição de despesas para a resi- dência já realizadas por várias senhoras, incluindo a «snr.ª Governanta (CRGE [Companhias Reunidas de Gás e Eletri- cidade]; fogareiro e ferro; mobiliário para pessoal)».83

É deste período que data a primeira imagem de Maria de Jesus publicada na imprensa. A acompanhar a reportagem de Leitão de Barros sobre o quotidiano de Salazar, saída em 21 de maio desse ano em O Século Ilustrado (e reimpressa no pró- prio dia pelo diário O Século, da mesma empresa editora), sur- ge uma fotografia da governanta, acompanhada por Micas e trazendo pela trela um cão oferecido ao chefe do Governo por um grupo de admiradoras minhotas, tirada durante uma visita às obras de São Bento. A miúda enverga um casaco de lã dos Pirenéus que aparenta ser peça requintada, mas que não passa do aproveitamento de um velho roupão do ditador.84 À foto foi dado o título: «Salazar íntimo – é esta a snr.ª Ma- ria». Tratava-se sem dúvida de uma revelação, numa im- prensa sujeita a censura férrea e apenas publicando o que ao regime interessava: perante os portugueses, Maria de Jesus tinha agora um rosto. Continuam os trabalhos de adaptação em São Bento, que se arrastam por quase mais um ano. Uma das dependên- cias que tanto Salazar como Maria de Jesus fazem questão de aprimorar é o oratório previsto para o 1.º andar, entre o quarto dele e o escritório. Atendendo às circunstâncias relacionadas com a segurança, a missa dominical passará a realizar-se aqui, pelo que, para os dois católicos, a decoração precisa de ser especialmente cuidada. Salazar faz a encomen- D. Maria, companheira de Salazar 65 da dos paramentos ao património do Estado, mas quando os inspecciona, depois de instalados, fica furibundo pelo seu es- tado de degradação, descrito na reclamação que elabora com comentários acerbos acerca dos objetos: Casula branca – bastante suja – poderá ser lavada e substi- tuído o galão – velha – serve para uma igreja pobre. Casula preta – idem. Casula verde – idem. Casula branca – nojenta e rota. Casula roxa – remendada, bastante velha e nojenta. Bolsas – nojentas e cada uma de seu tamanho. Véus de cálix – idem – o encarnado é ordinário mas é me- lhor – alguns nem são mesmo de cálix. Patena – não pode mesmo servir canonicamente, além do estado em que está. Uma alva – é boa, substituindo-se as mangas. Uma alva – boa. Toalha de altar – ordinária, suja e velha – é de algodão – não poderia nunca servir senão para cobertura. Corporais – cheios de caruncho e velhos – seriam muito grandes para o que se pretende. Em resumo: se tivessem sido vistos com cuidado, nunca deveria ter-se a ideia de que poderiam servir, pois não têm a necessária decência.85 O protesto de Salazar, que ordena a substituição da maior parte do material, tem a data de 7 de agosto. Dez dias depois, escreve outra nota severa tirando conclusões da sua «desagra- dável impressão das desordens» resultantes da cedência dos paramentos naquelas condições. Acaba por ser fornecido à residência oficial um novo conjunto de material de culto, de melhor qualidade, mas, após a sua verificação pessoal, o chefe do Governo ainda faz algumas devoluções, em 29 de outubro. 66 A Governanta

Com os atrasos, a mudança acaba por ter lugar apenas no inverno seguinte, ou, segundo Franco Nogueira, já mesmo em abril de 1939.86 O biógrafo revela que Salazar faz questão de esclarecer os ministros de que «paga do seu bolso a gover- nanta e as duas criadas»87 (que crescerão para seis ao fim de pouco tempo, remuneradas sempre da sua carteira). As con- tas separadas continuam um princípio sagrado para o chefe do Governo, que entende não ter o Estado obrigação de lhe custear os gastos da vida privada. «Em São Bento, as despesas de funcionamento da residência (incluindo telefones) conti- nuavam a ser pagas por ele, excepto a conta da eletricidade, debitada à Assembleia Nacional», relatará Micas.88 Fernando Dacosta, baseado em entrevistas que fez a Maria de Jesus nos seus últimos anos de vida, revela porém que na residência oficial existam dois contadores de eletricidade: o do rés do chão media a energia a pagar pelo Estado e o do 1.º andar a que Salazar cobria com a sua conta pessoal. O mesmo viria a passar-se com a água, o combustível e os telefones.89 Os escrúpulos do ditador levaram-no também, ao entrar em São Bento, a proceder a uma clara distinção entre o que eram os seus bens e os do Estado, estabelecendo regras para utilização de uns e de outros. Micas avivou a memória sobre essa questão: «Lembro-me de que o palacete estava equipa- do na íntegra com roupas de cama e mesa, além de todo um conjunto de outros objetos de uso doméstico. Mas Salazar mandou a Tia Maria arrumar tudo isso em armários no só- tão, onde ainda cheguei a ver o material nas suas embalagens originais, tal como viera das lojas. Entendia ele que o patri- mónio do Estado só deveria ser usado em funções oficiais; no resto, qualquer equipamento teria de ser custeado pelos D. Maria, companheira de Salazar 67 próprios utilizadores. Todo o mobiliário da zona particular do palacete, por exemplo, na maior parte oriundo da Bernar- do Lima, havia sido adquirido por ele».90 De Salazar, conforme já ele preconizara no memorando sobre a adaptação, era também o fogão, de coque e lenha. Po- dia ter aproveitado a mudança para renovar equipamentos, mas com a poupança na ordem do dia o que se fez foi trazer da Bernardo Lima a maior parte da tralha. Decidiu investir ape- nas num novo trem de cozinha, que os instrumentos antes em uso estavam nas últimas. Um quebra-cabeças, porém, dada a opção pelo mercado germânico – então pujante na Europa devido ao crescimento industrial e comercial da Alemanha, coincidindo com o apogeu de Hitler no poder. Conta-o a pro- tegida de Salazar: «Foi preciso encomendar as peças por catá- logo, que estava escrito em alemão, porquanto eram impor- tadas do III Reich. Recordo-me de ver na cozinha o Senhor Doutor, que não sabia alemão, a falar com a Tia Maria e a assinalar a lápis no catálogo as peças a adquirir, escolhendo-as pelos tamanhos indicados nas respetivas ilustrações».91 A exorbitante dimensão da cozinha, nunca antes experi- mentada por Maria de Jesus nas práticas culinárias, permitia- -lhe agora aprofundar a sua arte dos tachos, que melhorava a olhos vistos e sabores sentidos. Junto à cozinha, no piso inferior, situavam-se ainda as despensas, a sala da caldeira e a garrafeira. Quanto ao arquivo, servia não só para guar- dar os papéis de Salazar mas também as suas condecorações e insígnias, expostas num mostrador fechado com tampo de vidro. Num cofre alto, conservavam-se os segredos do Esta- do Novo.92 Um piso acima, o recanto que Salazar entendeu aprovei- tar no vão da escada acabou por se tornar no seu pouso fa- 68 A Governanta vorito para os momentos de lazer. Equipado de um cadeirão, transformou-se no canto dos media: ele sentava-se aí para ler a imprensa diária, e aí também acabou por ficar instalada a telefonia, que lhe permitia sintonizar a Emissora Nacional (a estação oficial) para ouvir noticiários e uma ou outra emissão de música clássica (não sendo porém devoto da rádio).93 Quanto ao seu gabinete (o «escritório habitual de traba- lho e de receber»), prefere sentar-se numa poltrona, que lhe dá mais conforto, do que na cadeira frente à secretária (cujo tampo é usado sobretudo para acumular pastas e papéis – os documentos de entrada e os de saída). Será para sempre fiel a esse lugar, como constatará anos mais tarde Franz-Paul de Almeida Langhans, seu secretário particular de 1951 a 1961, que nunca o viu à secretária: «Trabalhava sentado numa poltrona (maple) e escrevia sobre uma pasta adequada que tinha sobre os joelhos. [...] O Presidente acomodava-se na poltrona. Punha a manta e, com todo o cuidado, enrolava-a às pernas tendo os pés sobre a escalfeta elétrica que ele mes- mo ligava na altura. Evidentemente, isto durante o inverno. Depois, recostava-se e perguntava: “Que novidades há?”. [...] Este “antes do despacho” tornou-se habitual e foi verdadeira “instituição”».94 Os telefones estavam na sala da biblioteca, onde se sentava o secretário, mas este só trabalhava de manhã, quando Salazar efetuava o despacho. Se o telefone tocava à tarde, à noite ou ao fim de semana, era atendido por uma criada, pela gover- nanta ou até, muitas vezes, pelo próprio chefe do Governo.95 O quarto de Maria de Jesus era de dimensões modestas, um pouco acanhado até, quase tão estreito quanto um cor- redor. A senhora, contudo, não parecia importar-se com o sacrifício – além de que beneficiava de uma casa de banho D. Maria, companheira de Salazar 69 própria, partilhada é certo com o quarto dos hóspedes, mas que era tão usado como na Bernardo Lima. As irmãs de Sa- lazar raramente apareciam, e as questões relacionadas com a sua família pareciam ficar cada vez mais distantes, como rela- taria Costa Brochado: «[Ele] não tinha problemas de família, porque nem as irmãs se lhe dirigiam se não como e quando ele queria... A sua família era a D. Maria, que não se entendia bem com toda a família dele».96 Nas águas-furtadas, Micas tinha o seu próprio quarto, enquanto os aposentos das criadas ficavam em duas amplas divisões. Ao mesmo nível, havia uma sala sempre fechada à chave, onde se guardava o tal recheio que era património do Estado – só desencaixotado para jantares oficiais – e muitas das ofertas pessoais recebidas por Salazar (para as quais não se encontrava espaço, destino ou função).

A governanta era a depositária de todas as chaves da casa, desde as das portas às dos armários, usando para as transpor- tar uma ampla argola metálica. Certo dia perdeu a chave da sua própria cómoda, onde guardava o ordenado (a que teve de recorrer de repente para fazer face a despesas), e foi o cabo dos trabalhos para arrombar a gaveta sem afetar o móvel.97 Grande novidade foi também a instalação de um eleva- dor. Quando um dia encravou entre dois pisos, com empre- gadas lá dentro, Maria de Jesus viu-se obrigada a chamar os bombeiros. Salazar, muito fleumático perante aquela agita- ção, apenas pediu que não fizessem barulho com os trabalhos de resgate e reparação.98 A rotação de criadas, agora em maior número, seguia o seu ritmo habitual sob a batuta da governanta. Dormindo 70 A Governanta paredes meias com as raparigas, Micas ficou com uma viva recordação da passagem delas por São Bento: Recrutadas em asilos de infância em Viseu, Coimbra e Figueira da Foz, todas com menos de 20 anos, exceto a cozi- nheira e a criada de mesa, estavam longe de receber os 100 es- cudos mensais que a Tia Maria pagava às duas mais velhas. Às sete da manhã, uma hora depois de se levantar para começar a preparar as coisas para o dia, a própria governanta tocava a campainha que obrigava todo o pessoal menor a pôr-se tam- bém de pé. Elas queixavam-se da dureza do trabalho, além da exiguidade das folgas, domingo sim, domingo não. A gover- nanta era exigente no seu apuro e rigorosa na inspeção das suas funções: despedia-as por dá-cá-aquela-palha, uma tarefa qualquer que ela achasse imperfeita ou mal executada. Mesmo Salazar se arrepiava com a sua severidade. Pouco importava: para a Tia Maria, não podia haver contemplações com o pes- soal doméstico.99 Mas para estas rapariguinhas da província, oriundas de famílias despossuídas, problemáticas ou até inexistentes, trabalhar em Lisboa na residência do presidente do Conse- lho tinha outro significado para além da mera compensação material, do esforço desenvolvido ou da obediência a um sar- gento de saias. Em primeiro lugar, podia-se considerar um golpe de sorte num destino à partida cruel; em segundo, era um trampolim para outros voos. Otília Oliveira, que entraria em São Bento em 1965, aos 15 anos e com a terceira classe, arregimentada por Maria de Jesus no seu próprio concelho de Penela, garante que só pode estar agradecida: «Pagavam roupa, calçado, comida, dormida, que podíamos querer mais? Vinha da terra, não tinha nada. Para mim foram os melhores anos da minha vida».100 Capítulo 5

Economia de guerra

D. Maria, companheira de Salazar 73

aria, vamos lá fazer o relatório. -MIsto dizia Salazar à governanta ao fim do dia, a cami- nho do quarto ou já mesmo sentado sobre a cama. A mulher desenrolava a seguir tudo o que se passara durante a jornada quanto ao governo doméstico.101 «Ela aproveitava então para se queixar da escassez de re- cursos financeiros», segundo evoca Micas, que testemunhou estas conversas: «Eu assistia muitas vezes à disputa dos meios financeiros entre o Senhor Doutor e a Tia Maria, porque também era chamada a dar o meu testemunho acerca dos es- tudos escolares na jornada. De resto, as duas tínhamos de lhe falar de tudo o que se passara durante o dia e que pudesse ser de algum interesse para os anais do lar, já que a curiosidade dele não tinha limites».102 Nisto de planeamento orçamental, cortar nas despesas é fácil, difícil é gerir o dinheiro disponível. A função teórica pertencia a Salazar, que determinava o que Maria de Jesus podia gastar; a ela cabia a aplicação prática da doutrina sa- lazarista. Mas a ginástica diária era tremenda: «A Tia Maria costumava queixar-se-me da forretice do patrão, lamentan- do que o orçamento não desse para tudo».103 A discussão in- tensificava-se na altura em que a governanta apresentava a Salazar as contas do mês, que ela tinha o dever de apontar em livros de merceeiro. A resposta dele era inevitável: – Pois é, mas não pode ser mais.104 74 A Governanta

Ainda a explicação de Micas: «Percebi mais tarde as ra- zões de todo este aperto. O vencimento do Senhor Doutor era escasso para tantos encargos, desde as despesas em São Bento que ele teimava em liquidar do seu bolso até às obras da sua quinta do Vimieiro, onde a construção de muros e tanques de rega parecia não ter fim. Precisava ainda de aju- dar duas das suas quatro irmãs (que eram todas mais velhas), ambas solteiras e sem atividade profissional».105 Se em tempo de paz Maria de Jesus tinha de seguir uma economia de guerra, que seria quando houvesse mesmo guerra? Foi o que aconteceu após Hitler invadir a Polónia em setembro de 1939, mas sobretudo grande parte da Europa ocidental na primavera seguinte. Apesar de o engenho sala- zarista ter ajudado a poupar Portugal ao envolvimento direto na Segunda Guerra Mundial, a população não escapou aos seus efeitos na penúria dos abastecimentos vitais, e o palacete de São Bento também não: «Quando foi imposto em Portu- gal o racionamento dos géneros de primeira necessidade, o Senhor Doutor entendeu que a sua residência não iria ficar de fora. E, porque tínhamos de dar o exemplo, também em São Bento se praticavam as senhas de racionamento para o pão, a batata, os laticínios, o bacalhau, as massas, o arroz, o açúcar, o azeite, o café, o grão, os cereais, a farinha, o sabão ou o carvão, a lenha e o petróleo».106 Além de que se impro- visava: na falta de açúcar, por exemplo, Maria de Jesus «pu- nha pedras de sal no café para quebrar o amargo».107 Outros depoimentos confirmam que Salazar dispensou então o recurso ao privilégio de governante: «Na altura [...] do racionamento, na Segunda Guerra Mundial, ele e D. Ma- ria cumpriam com todo o rigor as limitações impostas. Che- gavam a tirar comida dos seus pratos para a dar às raparigui- nhas que albergavam».108 D. Maria, companheira de Salazar 75

Mas a governanta tinha agora a oportunidade de expan- dir a sua criação doméstica ou intensificar a sua produção agrícola. Poderia o chefe mostrar-se desagradado, ele que até determinara a existência de galinheiros, horta e pomar em São Bento? Não fora Salazar que, com o advento da guer- ra, lançara a nível nacional a palavra de ordem «produzir e poupar»? E não afixava o Ministério da Economia cartazes a dizer «capoeira povoada, riqueza amealhada»? Ela não fazia outra coisa: «Chegou a haver 500 galinhas (existiam choca- deiras a petróleo para os ovos) em São Bento, além de perus, patos, pombos, coelhos».109 Micas confirmaria o crescimento da atividade agrope- cuária no local: Em São Bento, as capoeiras, amplas, sólidas e erguidas para esse propósito, passaram a ocupar toda uma zona encostada ao muro exterior do jardim, numa das suas extremidades, no en- fiamento do grande portão que da Rua da Imprensa à Estrela dava acesso ao palacete. As instalações haviam sido montadas pelos funcionários camarários que garantiam a manutenção diária do parque ajardinado do Palácio de São Bento, dirigi- dos em horas extraordinárias pela Tia Maria. Aí cresciam as galinhas, os perus, os patos, os pombos e os coelhos que con- sumiam parte do seu tempo mas a que ela tinha uma devoção muito particular. Um pequeno lago garantia a felicidade dos patos antes de irem parar aos tachos da governanta, que até ti- nha tido o cuidado de acrescentar um pombal ao aviário. Para ela, este era um instrumento crucial de sobrevivência no meio urbano, o cordão umbilical que a ligava à vida camponesa de onde era originária – como todos nós naquela casa, afinal, sem no entanto sentirmos com tal intensidade a premência desse elo vital. [...] Não muito longe das capoeiras, resolveu criar a 76 A Governanta

sua própria horta, para colher sem intermediação algumas das dádivas da terra: couves, nabiças (para uma das sopas favoritas do Senhor Doutor), feijão verde, e, em certo momento, até batatas. [Salazar], por razões de higiene, abominava os pom- bos, que, no seio da criação, eram uma das espécies favoritas dela. Nas discussões entre ambos acerca do empreendimento, um dos pontos prioritários, como não podia deixar de ser, ti- nha a ver com a sua viabilidade económica. Ela defendia que assim se poupava em despesas no mercado, mas ele contrapu- nha que havia que contar com o investimento em rações – que me lembro de serem compradas num armazém da Avenida 24 de Julho, frente ao Tejo. Então ela recorria ao seu argumento definitivo: as receitas obtidas com a venda para fora, que aju- davam ao equilíbrio do orçamento doméstico.110 As capoeiras de São Bento, com efeito, serão mais do que uma iniciativa para autoconsumo. A governanta mantém uma linha de produção contínua de galináceos que vende para o Hotel Aviz, então tido como o mais luxuoso da capital, e onde o maior adepto da sua criação não é um hóspede qualquer: Duas vezes por semana, ela despachava o sr. Furtado, mo- torista de apoio à residência, na carrinha de serviço, com um carregamento de várias dúzias de ovos e de pequenos frangos (quase pintos) para entrega no hotel, nas Picoas, em cuja cozi- nha ambos os produtos eram muito elogiados. Soubemos de- pois que havia um hóspede muito especial, instalado no Aviz em plena guerra, que não dispensava nem uns nem outros. O seu nome era Calouste Gulbenkian [o célebre milionário ar- ménio, com fortuna feita na base da exploração de petróleo no Médio Oriente, que se refugiou em Portugal durante o confli- to mundial, deixando no país, em herança, a fortuna que servi- ria para a criação da fundação com o seu nome]. Não que isto tranquilizasse Salazar, que olhava desconfiado para o negócio e teria preferido que a Tia Maria dele desistisse, mas a verdade D. Maria, companheira de Salazar 77

é que ele jamais o impediu (o sr. Furtado, que ambicionava – sem nunca o ter conseguido – ser promovido a motorista do presidente do Conselho, também detestava o frete, mas nada podia fazer para contrariar as ordens da governanta).111 Sem contabilidade organizada nem entidade em nome da qual emitir faturas, Maria de Jesus não declarava receitas, mas não se pode dizer que fosse um caso de espeto de pau em casa de ferreiro: o seu superior havia abolido em 1929 o imposto sobre transações comerciais (só o retomando em 1966).112 As instalações da criação eram escala inevitável no ro- teiro de Salazar durante os seus passeios higiénicos pelos jardins de São Bento. Conta-o Costa Brochado: «[Ele] gos- tava de passear no quintal, a horas certas, depois do almo- ço, à sesta, que invariavelmente dormia, até às cinco horas. Quando havia Micas, passeava com as duas: outras vezes, só com a D. Maria: visitava as coelheiras, galinheiros e pombal, donde se alimentavam como se estivessem em Santa Com- ba Dão».113 Confirma-o Almeida Langhans, considerando «muito discretas e dissimuladas as capoeiras da casa, onde Maria cuidava da populosa criação doméstica que fornecia os ovos diariamente servidos às refeições do presidente do Conselho... e o Doutor Oliveira Salazar também as visitava, na sua volta diária, nos paulatinos e meditativos passeios pelas alas do parque, ao terminar as principais refeições».114 Para a rega da horta, a governanta beneficiava da água que, segundo Micas, vinha de uma nascente em Campo de Ourique. A mesma fonte também se usava para a lavagem da roupa, em tanques que ficavam próximos das capoeiras, se- parados apenas por um buxo. «Eram dois tanques, mas mui- to grandes, em pedra, e um mais pequeno, dos normais, onde 78 A Governanta ela fazia a barrela».115 Dacosta reconstituiu o recanto e o ri- tual: «Uma vez por semana [ela] dirigia a barrela da roupa. O criado, o Sr. Oceano, ia buscar a cinza de que se precisava, ajudado pelas raparigas. Eram feitos quatro tanques: um para a roupa pessoal de Salazar, outro para a de D. Maria e das meninas, outro para a de mesa, e o último para a das camas. As peças eram, depois, postas a corar, ao sol. O presidente do Conselho, que gostava delas muito limpas, cheirava-as a todas antes de serem apanhadas».116

A partir de certo momento, Micas deixa de ser a única criança no edifício. Chega primeiro a sua irmã gémea, Ana, que Salazar manda vir da Lajeosa por achar que não deveriam viver as duas separadas. Mas por pouco tempo: «Parece que não haveria lugar para as duas no palacete, e portanto ela fi- cou a viver com o nosso irmão José, que mantinha as funções de contínuo no Palácio de São Bento. Para nos vermos, bas- tava atravessar o jardim, e assim sucedia com frequência».117 (Ana entraria mais tarde para uma ordem religiosa; quanto a José, fez estudos e chegou a administrador hospitalar). Aparece depois Maria Antónia, a filha de José e Rosalina, cujo nascimento levara Micas a mudar-se para a residência de Salazar: Era lógico que ela por ali passarinhasse, acompanhada da mãe, tanto mais que a Tia Maria era a madrinha da criança. Apesar da nossa diferença de idades (uns sete anos), eu brinca- va muito com a minha sobrinha. Num certo inverno, durante os primeiros tempos de guerra, com as travessias do jardim de um lado para o outro, a Maria Antónia acabou por apanhar uma gripe que lhe trouxe febres altas e complicações respi- D. Maria, companheira de Salazar 79

ratórias. Foi num sábado, dia do jantar do dr. Bissaia Barreto com Salazar, e por isso a Tia Maria aproveitou para uma con- sulta. Após observar a Maria Antónia, o veredito do médico coimbrão foi categórico: ela não podia andar a saltitar de uma casa para outra, ou ficava com o meu irmão e a Rosalina ou mudava-se para o palacete. Lá ficou nesse dia, e também nos seguintes, para recuperar. E foi ficando – passámos a ser duas as «pupilas do Senhor Doutor», como um dia alguém nos cha- mou. A Maria Antónia, que tinha então uns três anos e meio, ficou a habitar no meu quarto. Aí fomos crescendo, cada uma com a sua cama – e, naquele sótão, até nos podíamos dar ao luxo de dispor de um pequeno quarto de vestir contíguo.118 Não se pode dizer que Maria de Jesus, com a sua aspereza e a sua obsessão pelo desempenho das funções caseiras, fosse uma extremosa companheira das meninas – ao contrário de Salazar, apesar de não ser da família. A mais velha das pupilas disso se ressentiu: era por exemplo o chefe da casa quem brin- cava com ela ou lhe contava histórias para adormecer, não a concunhada.119 Mas Micas ficou com melhor recordação dos verões, quando a governanta se mostrava mais disponível para se dedicar às crianças, levando-as até à praia de Caxias: [Ela] levantava-se cedo para nos preparar o almoço, depois descíamos a pé até Santos, com o farnel embrulhado em jor- nais para se manter quente, tomávamos o comboio das 9h20 e ficávamos em Caxias até cerca das 16h, alugando um toldo ou uma barraca. A Maria Antónia detestava comer sopa, e mes- mo na praia a Tia Maria mantinha um conflito permanente com a afilhada por causa disso. Durante as nossas surtidas à praia, após o almoço, e por causa do racionamento imposto pela guerra, a Tia Maria deixava-nos sozinhas à beira-mar para ir comprar carvão, que depois transportava no regresso a São Bento.120 80 A Governanta

Estas idas à beira-mar, coincidindo com a época em que também em São Bento se punha fita adesiva nos vidros das janelas (para evitar estilhaços causados por eventuais defla- grações) e se cumpriam a rigor (mesmo da parte de Salazar e da governanta) os exercícios de proteção feitos com base em simulacros de bombardeamento aéreos121, acabaram mesmo por chamar a atenção de um jornalista de O Século, que a pro- pósito publicou no matutino, em 15 de outubro de 1942, uma crónica a roçar, como de costume, a hagiografia salazarista:

Croquis a Carvão

Em muitas destas manhãs maravilhosas, na praia de Caxias, uma senhora e duas meninas ocupavam normalmente e pontualmente um toldo. Em nada se faziam notar. Nenhum sinal de excepção as marcava. Um belo dia começou a faltar carvão em Lisboa e a senho- ra, aproveitando aquelas horas da manhã, deixava as meninas no toldo e ia, a pé, a Paço de Arcos, comprar um pouco de car- vão. Depois, à hora do regresso, as meninas sacudiam as meias, compunham-se e regressavam todas tranquilamente a Lisboa. Em geral, o grupo saía em Santos e tomava, a pé, a avenida Wilson... [atual D. Carlos I]. Só aqui começa este croquis a animar-se. É que o grupo da senhora que comprara o carvão e das meninas da praia entrava em casa do sr. presidente do Conselho... Era uma sua governante [sic] a senhora, e era a «Micas» - aquela menina que «O Século Ilustrado» surpreendeu um dia, numa entrevista sensacional com o sr. dr. Oliveira Salazar, a aprender com o mestre das finanças e dos números as casas da tabuada – a tal menina da praia de Caxias! D. Maria, companheira de Salazar 81

Serve este incidente verídico e discreto apenas para marcar duas coisas. Primeiro, que o próprio presidente do Conselho não quer para si excepções, aliás inteiramente legítimas, e, por- tanto, a sua governante vai, a pé, até Paço de Arcos comprar uns quilos de carvão. Segundo, que a simplicidade extraordiná- ria e a modéstia inacreditável da vida deste homem, que é hoje uma figura mundial, comprazem-se especialmente em não mu- dar os seus hábitos, em não alterar, em nada, a sua sóbria e calma mediania. Espantoso e inacreditável exemplo é este! Exemplo escondi- do, misterioso, obscuro, não provocado, sem esperar publicidade nem indiscrição do repórter. É que tudo isto, para o espírito daquela casa de beirão simples, é tudo o que há de mais natural!

Chegadas à puberdade, as pupilas teriam de receber in- contornáveis lições sobre regras e outros aspetos de iniciação sexual, mas Maria de Jesus poupar-se-ia a essa tarefa que tal- vez a incomodasse, não deixando porém que deixasse de ser executada, como confirma Micas: «A Tia Maria confiou as lições a uma das raparigas empregadas no palacete».122 Infalível era o cumprimento dos rituais religiosos. A missa celebrava-se, aos domingos e dias santos, no orató- rio montado no primeiro andar (que Micas se lembra de se abrir e fechar como um armário), pelo cónego Alberto Car- neiro de Mesquita, secretário de Cerejeira no Patriarcado. Maria de Jesus era participante inevitável, e a pupila recorda a presença, nem sempre regular, de Salazar: Assumindo as competências de sacristão, o Senhor Doutor ajudava com frequência à missa – em latim, como é óbvio, pois 82 A Governanta

estávamos muito longe ainda do Concílio Vaticano II –, o que implicava, entre outras coisas, ser ele a preparar a água e o vi- nho. Mas reparei que, ao contrário de todas nós, ele nunca se confessava nem comungava. Comuniquei a minha estranheza à Tia Maria, que fez questão de me explicar – frisando-o várias vezes ao longo da nossa vida em comum – que a Salazar fora concedida pela Santa Sé uma licença especial que o isentava de tais práticas. Não sabia – e continuo sem disso estar segura – que existia uma modalidade de dispensa de rituais que eu jul- gava de lei para todo e qualquer católico (mesmo o Papa), mas a idade não me permitia fazer inquirições mais aprofundadas. [...] No oratório também rezávamos o terço à noite, ritual diá- rio em maio, o mês de Maria, e, de novo, podia acontecer ter- mos nesse momento a companhia do senhor da casa.123 A religiosidade de Salazar haveria depois de ser ines- gotável tema de controvérsia, mas Maria de Jesus, que não comungava de questionamentos a esse respeito, cobria-o de todo o tipo de amuletos, não fosse o Diabo tecê-las: «A D. Maria punha-lhe ao pescoço, ou na roupa interior, escapulá- rios e medalhinhas, quando ele saía para longe, Braga, Porto, por exemplo, e as viagens se consideravam perigosas».124

Micas não encontra muitas caras novas nas visitas de São Bento. Mas entre elas realça o banqueiro Ricardo Espírito Santo, «grande amigo e admirador do chefe do Governo, figura alta, bonita e elegante, [...] e também o casal Soares da Fonseca». José Soares da Fonseca, primeiro ministro das Corporações de Salazar, «era casado com Maria Teresa Ser- ras e Silva, de uma família coimbrã da qual o Senhor Dou- tor era muito amigo», sendo provável que o relacionamento viesse daí.125 D. Maria, companheira de Salazar 83

Mesmo faltando-lhe um atento mas improvável Pigma- lião, Maria de Jesus, com a sua enorme vontade de aprender, sobretudo com as senhoras que visitam a residência – mulhe- res de colaboradores de Salazar e de empresários seus amigos (como Lívia Nosolini e Maria Teresa Serras e Silva) –, e ao que se conta também com Espírito Santo, atinge o plano mí- nimo de sofisticação que lhe permite não ser já confundida com uma serrana. «Tornara-se uma mulher altiva e distante, perdera os modos rudes de camponesa e olhava muito pela sua imagem», notará Felícia Cabrita ao escrever sobre as mu- lheres que circularam na órbita de Salazar.126 «Perde modos de rapariga rural, aprende etiqueta e habitua-se ao protocolo».127 A metamorfose é assinalada por todos os que contactam com a governanta. «Assenhorou-se com tal rapidez e perfei- ção que parecia ter nascido fidalga», escreverá Costa Brocha- do. «Mulheres de ministros conviviam com ela, davam-lhe chás em casa, passeavam-se por toda a parte. Ela era a discri- ção em pessoa».128 «Com elas ia aperfeiçoando a maneira de falar e os segredos da etiqueta», observou Micas do contacto com as tais senhoras da sociedade. «Foi aprendendo a ser uma lady».129 E apontará Dacosta: «Maria de Jesus Caetano apren- deu depressa os rituais da etiqueta e do protocolo. Os seus gestos ganharam movimentos de sedução, as suas palavras modulações de elegância, para o que contribuiu o didatismo gentil de Ricardo Espírito Santo, assíduo de São Bento».130 Ou ainda: «Maria de Jesus interpretou magnificamente o papel que o destino lhe atribuiu. Aprendeu a afirmá-lo e a resguardá-lo».131 De novo Costa Brochado: «Sabia, sobre- tudo, manter-se nos seus limites lógicos. Incapaz de abusar, exorbitando das suas funções no trato com os superiores».132 Maria de Jesus tinha até o seu cabeleireiro, o Salão Mon- teiro, na Rua Borges Carneiro, transversal à Calçada da Es- 84 A Governanta trela, que Micas passaria também a frequentar já mais cres- cida: «Ia cada uma na sua vez, e uma ou outra vez ia eu com ela. A Tia Maria ia lá uma vez por semana. Ela gostava de se arranjar, andava toda pinoca».133 Acrescenta Dacosta: «Preo- cupada com a sua aparência, Maria de Jesus ia regularmente ao Salão Monteiro pentear-se e pintar de preto o cabelo, que lhe ficou branco muito cedo. Vestia quase sempre de escuro, normalmente de negro e castanho. Tinha um porte elegan- te, discreto. Usava maquilhagem leve. As roupas eram feitas em casa. Salazar e ela mostravam-se exigentes na qualidade, na perfeição das coisas que utilizavam».134 «A modista, Dona Virgínia, também aconselhava o que ficava bem», acrescen- tará ainda a pupila.135 Este desejo de ascensão na escala social nem sempre será visto com bons olhos por aquelas que julgam situar-se nos degraus superiores: as admiradoras de Salazar e visitas lá de casa. «Algumas queriam que ela fosse a marquesa de Alor- na», constatará Vera Franco Nogueira.136 Por isso mesmo, «as senhoras que frequentavam São Bento não perdoavam a mais pequena falha à Maria». Mas a mulher do futuro bió- grafo de Salazar ter-lhes-ia explicado: «Por favor, a Maria não é a marquesa de Alorna, é apenas a governanta, e para essa função é perfeita».137 Governanta uma vez, governanta para sempre. O presi- dente do Conselho terá apreciado o sentido de moderniza- ção e a capacidade de aprendizagem de Maria de Jesus, mas entendido também não dever encorajar as suas aspirações classistas. Aquando das celebrações do duplo centenário da fundação da nacionalidade e de restauração, em 1940, Salazar explicou a Micas o significado dos festejos, a poucas semanas de ir celebrar a data a Guimarães, propondo-se levar as pupi- las à cerimónia oficial e rematando: D. Maria, companheira de Salazar 85

– A Maria também podia assistir, mas não tem roupa con- digna. Só que a governanta não se deixou ficar, replicando de imediato: – Não há problema, eu trato disso. Micas completa o relato do episódio: «Ela telefonou à D. Virgínia e tratou logo da toilette, que apareceu em poucas se- manas».138 A pupila ficará com uma memória amarga do epi- sódio, porque uma doença a reteve em São Bento. Mas não à governanta: «Lá seguiram com ele a Tia Maria e a Maria Antónia, enquanto a febre me prendia ao palacete».139 Terá o ditador, no seu íntimo inconfessado, sentido a fun- cionária como um empecilho ou um embaraço numa ocasião como esta, ou quando levava as pupilas a assistir a outras cerimónias oficiais, fossem desfiles militares na , fosse a inauguração do Estádio Nacional, em 10 junho de 1944, onde a governanta ficou sentada ao lado das visitadoras de São Bento, mesmo junto à tribuna presiden- cial?140 O facto é que, na década seguinte, em vésperas de Maria de Jesus partir para Moçambique para aí visitar o seu irmão Manuel, que fizera fortuna como fazendeiro, quando foi pedir a Salazar autorização para mandar confecionar um casaco a partir de umas peles que lhe haviam oferecido, terá recebido dele uma resposta cruel: «Não. Venda as peles e vá ao Grandella [armazéns de venda a retalho no ] man- dar fazer um casaco de tecido, conforme a sua condição».141

Mas o fundador do Estado Novo nunca dispensaria a sua companheira de percurso governativo, até porque, só no ca- pítulo da indumentária, era já ela quem lhe escolhia a roupa 86 A Governanta e aconselhava os padrões. Desde sempre o observou Micas (que também via Maria de Jesus a reclamar junto de Salazar contra a insuficiência do dinheiro para confeções): Nas opções de vestuário do Senhor Doutor, ele e a Tia Ma- ria eram unha com carne. Como o presidente do Conselho não ia aos estabelecimentos, competia à governanta interpretar os seus gostos em indumentária e proceder às necessárias enco- mendas. A alfaiataria situava-se em frente ao Hotel Avenida Palace, ao Rossio, e ainda hoje tem as portas abertas. Lembro- -me de lá ir buscar as amostras de fazenda para Salazar depois escolher. A Tia Maria dava uma ajuda, fazendo a pré-seleção dos padrões a submeter à apreciação do Senhor Doutor, mas era sabido que ele gostava dos tons clássicos, em volta dos cin- zentos, com ou sem riscas (nunca me lembro de ele alguma vez ter envergado, por exemplo, um fato castanho). Quanto às camisas, eram mandadas fazer na Casa Pitta, à Rua do Ouro. A camiseira da loja ia a São Bento para as provas, e mais tarde, quando se reformou, continuou a ser ela a confecionar as ca- misas. Recordo-me de uma vez ter ido a casa dela entregar um tecido em seda natural para uma nova camisa para o Senhor Doutor. Era também a Tia Maria quem chamava a atenção do chefe do Governo para o envelhecimento das botas, o único calçado que, desde muito novo, ele usava (não por qualquer problema ortopédico, mas por mera habituação) e que se lhe colou à pele como uma imagem de marca perante a opinião pública.142 Adianta ainda a pupila que, nessa circunstância, seria ine- vitável Salazar responder à governanta: – Não faz mal, manda-se pôr meias-solas.143 Nem podia ser de outro modo da parte de quem fazia do aforro um modo de vida: «Sob encomenda de São Ben- to, um sapateiro da Calçada da Estrela fazia as botas numa D. Maria, companheira de Salazar 87 pelica muito fina – porque às vezes doíam os pés ao Senhor Doutor –, e quando se estragavam era ele também quem as restaurava».144 O restauro tornou-se aliás numa prática instituída por Maria de Jesus, que, apesar de não primar pela simpatia, soube criar a Salazar uma agradável surpresa quando ele lhe passou para as mãos um par de botas velhas para deitar fora: «Sem dizer nada, a senhora chamou um sapateiro e orde- nou-lhe: “Gaste o que for preciso, mas veja se recupera, sem o alterar, este calçado.” O homem apurou-se e conseguiu-o. D. Maria meteu-as numa caixa, embrulhou-as, pôs-lhes um laçarote e, no Natal, colocou-as na chaminé, entre as pren- das. Quando ele as viu, ficou tão contente que até bateu pal- mas de alegria: “Ai que bom, ai que bom, as minhas botinhas, as minhas botinhas!”».145 Em suma, «aquele mundo tinha o seu quê de muito espe- cial», como notaria Almeida Langhans. «O mundo da Maria de Jesus e das criaditas de serviço... Um mundo que estava sempre na benevolência de Salazar contra as investidas exa- geradas de uma governanta zelosa... Um outro aspeto do temperamento de Salazar...».146

Capítulo 6

Encruzilhada de paixões

D. Maria, companheira de Salazar 91

abe-se que Salazar era cauto mas não era casto. Ao longo Sda vida manteve discretos relacionamentos afetivos com diversas mulheres, se bem que o tipo de contacto físico havi- do esteja ainda coberto por um manto de mistério. A crer nos responsáveis policiais, os maiores problemas com a segurança de Salazar tinham até que ver com estas fre- quentes investidas: «O tenente Castro e Silva [...], coman- dante da escolta permanente de Salazar, disse-me um dia que nada preocupava mais a polícia do que defender Salazar das mulheres e das suas fugas secretas... Ao que lhe respondi que a D. Maria era, nesse capítulo, a sua melhor defesa... Mas não chegava, segundo Castro e Silva».147 Na posição que ocupava, controlando ao detalhe toda a vida privada do ditador, Maria de Jesus, com efeito, estava forçosamente a par de tais aven- turas amorosas e intervinha até nos seus enredos. «Em relação às mulheres, ela deve ter pensado que, se era preciso, enquanto o Dr. Salazar se entretivesse com elas mas não saísse dali, tudo bem», especula Vera Franco Noguei- ra, em função da proximidade que teve com o quotidiano do palacete de São Bento. Estando vedada a Maria de Jesus a mínima probabilidade de protagonismo nessa história, re- signou-se a dar a Salazar a cobertura necessária, recalcando qualquer sentimento que não fosse a lealdade e uma dedi- cação sem limites. «Ela sofria o que ele sofria, e isto só com um grande amor pode acontecer, sabendo que outra coisa era 92 A Governanta impossível. Não era normal as mulheres solteiras ficarem as- sim com um homem solteirão. Coitadinha da Maria».148 Ainda antes da mudança para São Bento, a pequena Mi- cas assistiu a uma cena que já contrariava, nesta matéria dos afetos, o retrato de Salazar formado pela opinião pública: Fiquei espantada por ver, no Carnaval de 1937, um grupo de seis a oito senhoras jovens entrarem de roldão pela Bernar- do Lima, todas de mascarilha e vestidas à belle époque, para o que presumo ter sido um assalto-surpresa à residência do Se- nhor Doutor. Percebi que, apesar do disfarce, ele as conhecia, e que as terá recebido com manifesto agrado. A Tia Maria até preparou uma pequena ceia para este serão diferente dos de- mais. Na sala de jantar, enrolaram o tapete de Arraiolos para se movimentarem mais à vontade, e calculo que elas devem então ter tirado as máscaras. Durante parte da noite, lá esteve Salazar a divertir-se com o grupo de folionas. [...] Mais não vi, porque entretanto chegara a minha hora de recolher ao quarto.149 Porém, apesar de nessas ocasiões manter a aparência de mera funcionária cumpridora dos seus deveres, Maria de Je- sus podia ser terrivelmente ciumenta perante a possibilidade de outras mulheres invadirem aquela que considerava como sua coutada particular. Nem sequer Micas, a criança que se fazia mulher, escapava dessa obsessão: «Devo reconhecer que se prolongou por muitos anos o ritual salazarista de [ele] me visitar no meu quarto antes de recolher ao seu, a ponto de causar ciúmes à Tia Maria. Certa vez, até a ouvi atirar-lhe: “Ó Senhor Doutor, a pequena já é uma mulher!” Mas ele não ligou, e continuou a fazer-me o mesmo».150 Noutras vezes, a governanta podia socorrer-se da pupila como aliada, numa compreensível frente solidária, pois cada nova mulher era uma ameaça para ambas. Foi o que aconte- D. Maria, companheira de Salazar 93 ceu quando Salazar andou de beiço caído pela aristocrata Ca- rolina Maria José Correia de Sá, filha do visconde de Asseca e designada por viscondessa (apesar de não ser a herdeira do título). Ele e Maria de Jesus conheceram-na no mesmo dia, quando a rainha D. Amélia, viúva do assassinado D. Carlos, que regressava por umas semanas do exílio a que se reme- tera após a instauração da República em 1910, foi recebida no palacete, em 1945, logo após o fim da guerra na Europa. Carolina, que estivera com a família junto de D. Amélia e do filho, D. Manuel II, no seu retiro britânico, apareceu tam- bém, como uma das damas de companhia da velha rainha. A narrativa é de Micas, que testemunhou a visita de D. Amélia para um chá nos jardins de São Bento: «Do encontro entre o Senhor Doutor e Carolina, nessa tarde, nasceu uma profunda atração recíproca. Chegou mesmo a correr o boato de um matrimónio iminente, o que colocou a Tia Maria em estado de profunda angústia, calculando a sua possível desti- tuição do importante cargo que era ser a mulher mais próxi- ma e íntima de Salazar [...]. No meio da sua compreensível aflição, ela acabou por me pedir que eu aproveitasse as despe- didas noturnas no meu quarto, que ainda prosseguiam, para implorar ao Senhor Doutor que não se casasse – e cá a Micas, obediente à sua concunhada, procedeu em conformidade. O meu tutor apenas me deu uma resposta tão fugaz como seca: “Deixa lá isso, dorme, dorme”».151 Para alívio da governanta, o famigerado casamento, que – acreditavam os realistas mais impenitentes – iria contribuir para restaurar a monarquia em Portugal, deu em nada. 94 A Governanta

O ressentimento de Maria de Jesus perante Micas, esse, é que nunca deixou de existir, crescendo mesmo à medida do crescimento da jovem. Fátima Cértima, apesar da sua juven- tude quando era visita de São Bento, registou esse sentimen- to: «Se a D. Maria gostava das pessoas era ótima, se não gos- tava era complicado. Ela tinha uns certos ciúmes da Micas, é a impressão que eu tive. Era muito ciumenta».152 A disciplina e o comportamento foram os pretextos para a governanta implicar com a protegida de Salazar: Nunca abrandou o grau de exigência com ninguém: esta- va-lhe na massa do sangue. Deitava o olho a tudo e criticava à esquerda e à direita, mesmo perante o Senhor Doutor. Certo dia, por motivos que se me varreram da memória, perdeu a cabeça comigo, e rematou o sermão com uma frase terrível para a minha existência: – Qualquer dia, não entras mais nesta casa. A ameaça desabou em cima de mim como uma bomba. Na altura eu tinha acabado de abandonar os estudos e já começara a trabalhar. A perspetiva de a porta de São Bento se me fechar para sempre deixou-me desorientada. Não me fui abaixo, mas assim que surgiu a oportunidade fui-me queixar ao Senhor Doutor, que estava a trabalhar no escritório. Ele acariciou-me e disse-me: – Enquanto eu aqui estiver, virás sempre a esta casa, não te aflijas. [...] Numa outra ocasião, teria eu uns 18 anos, ao jantar na copa [do 1.º andar] com a Tia Maria, como era hábito, surgiu o Senhor Doutor, coisa que fazia com regularidade. Acontece que eu tinha acabado de apanhar dela um dos mais violentos raspanetes de sempre (e não foram poucos), estando a soluçar sob o efeito emocional da reprimenda. Ele quis logo saber o que se passava, e, depois das explicações da Tia Maria (que também já não recordo), apenas sentenciou, de rosto severo: D. Maria, companheira de Salazar 95

– Ó Maria, a hora da refeição é sagrada! Ela ficou um bocadinho sentida, como acontecia nos mo- mentos de divergência com o patrão, e até lhe passar o amuo a minha vontade era de desaparecer dali para fora. Quanto a ele, nunca o vi tão zangado como naquele momento. Aliás, ao contrário da Tia Maria, o Senhor Doutor nunca levantava a voz, era uma pessoa calma, fleumática, que não expressava na vida quotidiana quaisquer tiques de autoritarismo.153 A governanta mantém-se vigilante quando regressa às lides uma antiga paixão da juventude de Salazar, Júlia Peres- trelo, filha dos donos da quinta do Vimieiro, de que o pai dele fora feitor, cujo namoro tinha sido abruptamente inter- rompido pela mãe da rapariga, remetendo explicitamente o aspirante a amante à sua inferior condição de classe: «Maria de Jesus entra em sobressalto ao saber que a filha dos fidal- gos por quem o presidente do Conselho se apaixonara, em jovem, e que o rejeitara, lhe escrevera. Na carta dizia que o pai tinha morrido e, como se encontrava viúva, podiam, se quisesse, reatar a relação. Salazar não quis. Quando estavam em Santa Comba, ela ia à missa para ficar (os dois tinham ca- deiras privativas na igreja) a seu lado. Salazar não lhe falava, porém. Apenas a cumprimentava, à distância – à distância, D. Maria vigiava-os, enigmática».154 Mas a governanta pode até servir de intermediária nou- tras relações, sobretudo se forem platónicas, como o caso de Maria da Conceição Santana Marques, oriunda de Elvas, en- tão com 37 anos, enquanto Salazar tem 63, quando ele lhe envia, a duas semanas do Natal de 1952, uma consoladora carta a propósito do falecimento da avó dela: «Avalio o seu profundo desgosto pela morte da Avozinha e não tento con- solá-la. [...] Se não está nos planos dos pais saírem consigo 96 A Governanta em viagem para qualquer parte com o fim de a distrair e fa- zer repousar, venha daqui a dias passar aqui uma temporada. Fale com a Maria. Afetuosamente».155

A relação feminina de Salazar com a qual Maria de Jesus virá a ter maior envolvimento será todavia a que manteve com Christine Garnier, jornalista e escritora francesa, anti- ga modelo surgida na capa da revista Marie Claire no tem- po da guerra156, que em 1951 é encarregada pelo seu editor, Bernard Grasset, de ir a Portugal fazer o perfil do ditador. A hora do primeiro encontro entre ambos arrastou-se, mas lá se conseguiu através de Arminda Lacerda, segundo rei- vindica a filha desta: «Foi a minha mãe, que era amiga da Christine Garnier, que a apresentou ao Dr. Salazar. “Elle est pétillante” [“Ela é efervescente”], advertiu-o. E ele tinha en- contrado uma pessoa que eventualmente o faria feliz».157 A escritora francesa confirmá-lo-á nas suas memórias: «Sem Arminda – que se tornou e permanece uma grande amiga minha – eu não teria conseguido […] encontrar Salazar».158 Deu-se na verdade um coup de foudre, e pela primeira vez até o agente da PIDE António Rosa Casaco, membro da guarda pessoal de Salazar e fotógrafo nas horas vagas, tem autorização para documentar pela imagem o prolongado embevecimento do chefe do Estado Novo pela francesa (por sinal casada e com um filho, mas disponível para outras expe- riências). O regular regresso de Christine, nos anos seguin- tes, a Portugal, para passar férias de verão com o presidente do Conselho, é prova da relação que estabeleceram. Contudo, se bem que o novo devaneio salazarista traga agitadas as frequentadoras dos chás de São Bento, Maria de D. Maria, companheira de Salazar 97

Jesus ilude a regra e ganha empatia pela escritora. Acharia ela que Salazar podia por fim arrumar ali as botas? Ou que, pelo contrário, sendo a outra casada, tudo não passaria de mero flirt, útil até para renovar o sangue do ensimesmado sexagenário? O certo é que a aproximação foi recíproca, e Christine acabará por cultivar uma prolongada amizade com a go- vernanta. Apesar de nenhuma falar a língua da outra e do choque inicial de culturas: «[A visitante] quis acompanhar as refeições com cerveja, barbarismo que deixou a Tia Maria estarrecida, tanto mais que a francesa era a primeira pessoa a rejeitar o vinho das Ladeiras [a quinta de Salazar no Vimiei- ro]», recorda Micas159, testemunha privilegiada, ao lado de Maria de Jesus, dos encontros que Christine teve com Salazar no Forte de Santo António ao Estoril (onde ele, com a gover- nanta e as pupilas, passava todos os verões), em São Bento e em Santa Comba Dão. A francesa, como recordará mais tarde, terá assim opor- tunidade de observar in loco a forma como a «toda poderosa» governanta se havia apoderado da vida de Salazar: A austeridade não a assustava […]. Logo se encarregou da vida pessoal (muito impessoal) de Salazar – encomendando fatos, gravatas e camisas, dirigindo as assustadas criadas com mão de mestre, cozinhando ela própria as refeições, por receio de envenenamento, tornando-se muito rapidamente uma es- pécie de secretária (muitas pessoas lhe escreviam, não ousan- do dirigir-se ao «Chefe»), uma espécie de banqueiro (Salazar nunca usou nem carteira nem dinheiro) e também uma espé- cie de agente secreto (graças a Maria, chegavam aos ouvidos de Salazar os rumores exteriores, certos boatos e algumas críticas, e ela tinha uma notável capacidade para alertar dos possíveis perigos). Todas as noites, à meia-noite, após as orações, diri- 98 A Governanta

gidas por ela, sentava-se (numa cadeira de madeira) junto à cama de Salazar e dava-lhe conta de tudo: o dinheiro gasto, as bisbilhotices apuradas, o interesse em afastar certo empresário ou em falar com certo ministro. Mil detalhes capitais. […] Ma- ria aparecia a toda a gente como alguém bastante temível».160

Maria de Jesus acaba por se tornar destacada protagonis- ta de Vacances avec Salazar, o livro que Christine publicará no ano seguinte em resultado das suas entrevistas com o ditador, e que terá imediata edição portuguesa (Férias com Salazar). Logo nas primeiras páginas o leitor é introduzido no am- biente «familiar» de Salazar, quando Christine o interroga so- bre as pupilas: «“Maria Antónia e Micas”, precisa Salazar. “Já são raparigas agora. A primeira está a acabar o liceu e a outra, que terminou os estudos, está empregada num instituto de as- sistência social. À noite, após a minha dura jornada de traba- lho, passeio com elas no meu jardim de Lisboa e tenho enfim a impressão de me encontrar, como os outros, em família”».161 Mas a primeira referência que Salazar faz à governanta chega apenas um pouco mais à frente, quando a escritora descreve um passeio com o entrevistado pelos jardins de São Bento: Ele parece mais feliz entre o feijão verde e os patos do que sob os tetos luxuosos e gélidos da sua «casa de passagem». Aparecem galinhas à nossa volta. «Penetramos agora no reino de Maria», diz, distendido. «Você já deve ter ouvido falar de Maria. Ela tratava já em Coimbra do alojamento onde eu vivia com o meu amigo Manuel Gonçalves Cerejeira, o atual Car- deal-Patriarca. Ele foi chamado para o episcopado ao mesmo tempo que vim para Lisboa como ministro das Finanças. Ma- D. Maria, companheira de Salazar 99

ria seguiu-me e já não me deixou. Tornou-se assim, pouco a pouco, uma personagem – uma personagem importante, tanto para os contínuos de São Bento como para os meus amigos!» [...] «Entrevi-a há dias em Lisboa», digo-lhe. «Arminda Lacer- da até nos serviu de intérprete por um momento. Maria pare- ceu-me tão intuitiva, tão inteligente...’»[...] «Você também lhe agradou», declara Salazar, de cabeça erguida. «De resto, encontrá-la-á a toda a hora. E também amanhã, se for a São Bento, onde o novo Presidente da República, o general [Fran- cisco] Craveiro Lopes, presta o juramento à Constituição».162 Será só em São Bento, já após ter falado com Salazar uma primeira vez no forte do Estoril, que a visitante trava conhe- cimento com Maria de Jesus, como recordará décadas depois: Descobri-a aquando do meu segundo encontro com Sa- lazar, nos jardins de São Bento, em Lisboa, ao crepúsculo. O ardente olhar dela, quase selvagem, pareceu-me, por um breve instante, familiar. […] Maria não falava francês e eu não falava português […]. Mas, imediatamente, compreendemo- -nos, adivinhámo-nos. Lançámo-nos, não sei porquê, nos bra- ços uma da outra. E vi brilhar lágrimas nos olhos desta mulher temida por todos e que me dava, que me deu, tudo. As preciosas toalhas, as elaboradas sobremesas, os seus eloquentes olhares, o seu cabeleireiro, onde me levava às suas custas […]. NUN- CA FALÁMOS ENTRE NÓS. Tudo se traduziu em gestos um pouco obscuros, e em beijos. Sempre que eu chegava a Lisboa para ir ter com Salazar, ela estava lá, no aeroporto ou na esta- ção terminal do Sud-Expresso. Lá, sim, como a constância.163 No livro-reportagem, Christine descreve as suas despe- didas de Maria na véspera de regressar pela primeira vez a Paris, com a promessa de voltar e corresponder ao convite de Salazar para uma visita ao Vimieiro: 100 A Governanta

Mal comecei a agradecer a Salazar, apareceu uma mulher no enquadramento da porta: Maria. Em Portugal, mais vezes que noutros países, encontram-se desconhecidos cujo rosto, estranhamente, parece familiar. No dia em que pela primei- ra vez encontrei Salazar julguei reconhecer os seus traços. E esta noite sinto-me pronta a retomar com Maria laços que me parecem datar de tempos muito antigos. Ela dirige-se para mim, atravessando o escritório, palpitando com a sensibilida- de particular dos portugueses. E olhamo-nos sem uma pala- vra, separadas pela barreira da língua, como duas mudas que se conhecem pelo alfabeto silencioso dos dedos. «Maria gostava de lhe oferecer um presente antes de se ir embora», traduziu docemente Salazar. Desde que entrara, que, com efeito, ela conservava uma mão cautelosamente fechada. Cheguei até a pensar que retinha um pássaro cativo nos dedos. A uma pala- vra do Presidente, decidiu-se a entregar-me a sua prenda: um busto minúsculo, em vidro opaco, representando um Salazar de fantasia – como um daqueles objetos que descobrimos ao fundo de um sótão e sobre os quais perguntamos: «Isto é o Sa- cré-Coeur ou Napoleão?» Maria aguarda, um pouco ansiosa, a minha reação. Gostava de lhe dizer como me comove este pre- sente inesperado. Mas ela não perceberia as minhas palavras. Com o olhar em busca de um conselho, um apoio, viro-me para Salazar, que permanece silencioso. Então, com o coração apertado por uma súbita emoção, abraço Maria. E vejo brilhar as lágrimas nos olhos desta mulher que não conheço.164 De novo em Portugal, e de visita ao Vimieiro para acom- panhar as «férias de setembro, férias de um mês, férias de tra- balho»165 que Salazar aí passa (mas, certamente por causa das más-línguas, hospedada longe, no Palace Hotel do Buçaco), Christine é alvo de vários mimos da governanta. Lembra- rá por exemplo nas memórias: «Havia numerosas fontes na quinta166, e que cantavam. Uma delas gozava da nossa prefe- D. Maria, companheira de Salazar 101 rência. Maria sabia-o – ela sabia tudo -, e tinha feito colocar, sobre os degraus de pedra, almofadas de cor viva. Sobre estas almofadas, encontrávamos sempre – oferenda anónima e co- movente – algumas flores, algumas nozes, alguns figos».167 No seu livro dedicado a Salazar, a autora regista muitas das outras atenções de Maria de Jesus para com ela. Estão no exterior da vivenda mandada construir por Salazar quan- do Maria Antónia surge com uma mantilha de lã, em «tricot bege»: «“Maria pede-lhe que ponha esta mantilha”, diz-me ele, após ter trocado com a rapariga algumas palavras em português. “Ela receia que, estando pouco habituada às tardi- nhas frescas de Portugal, você apanhe frio”».168 E a entrevis- tadora confirmará a utilidade da diligência. Mais à frente, alude à inflexível disciplina de Maria de Je- sus: «É uma e meia da tarde. Maria de certeza que está abor- recida: a espiga de milho que lhe pedi o favor de me assar já deve estar carbonizada. Abandono a custo estes frescos de- graus e o sereno murmúrio da fonte».169 Depois, são os des- velos constantes: «Maria entra suavemente na pequena sala. Coloca sobre uma mesinha de centro uma bandeja com uvas. Fica um instante sorridente à minha frente, divertida por me ver mordiscar um cacho. E murmura algumas palavras ao doutor.170 “A Maria lamenta que você não tenha podido ir à vinha esta manhã”, traduz Salazar. “Foi ela própria que apanhou estas uvas para o seu lanche”».171 Mesmo quando está longe da governanta, numa altura em que vai ao Porto entrevistar Cerejeira (antecipando aliás o momento em que Maria de Jesus começou a trabalhar para os dois amigos, que a francesa julgou serem então ainda estudantes), a autora permanece sob os seus cuidados: «Maria emprestou-me a sua melhor escova, para que eu possa, ao abandonar o automó- 102 A Governanta vel, desfazer-me do pó da estrada. Fez-me compreender por gestos o interesse que esta visita tinha para ela. Ao mesmo tempo que servia o jovem estudante que se ia tornar pre- sidente do Conselho, não tinha ela assegurado também, em Coimbra, os aposentos desse outro estudante que iria aceder ao purpurado?»172 A discreta presença da governanta projeta-se também nas refeições: É total o contraste entre a modéstia da casa rural e o sump- tuoso refinamento desta mesa. E pergunto [...]: «Maria está por trás de todas estas cores e todo este encanto, não é?» «Claro», responde Salazar. «Ela interessa-se muito pela cozinha e pela decoração da mesa. Esta noite quis esmerar-se de uma forma especial. Quer honrá-la a si com uma espécie de vaidade». Uma Maria quase invisível, aparecendo por vezes no corredor e apa- gando-se na penumbra do piso inferior, iria durante cerca de três semanas «honrar-me» com toalhas de mesa bordadas de flores, ramos de flores cada vez mais elaborados e pratos mais engenhosos. Mais um mito, a frugalidade monástica que Sala- zar imporia aos seus convidados. Os que o espalham de certeza que não conhecem a senhora173 Maria! Salazar revela-me nessa noite que a sua intendente possui uma impressionante coleção de livros de cozinha e que ensaia a cada dia as receitas mais ex- travagantes. «Sou por vezes vítima das suas experiências», diz ele sorrindo. «Bem lhe repito, porém, que me contento com bacalhau e batatas, ou sardinhas assadas».174 A escritora relatará nas memórias que a toalha de mesa co- locada pela governanta era sempre diferente em cada dia, sen- do sobre ela «dispostas com gosto, em godés de cristal, e entre os bouquets de beladonas e papoilas, amêndoas, figos, nozes e passas de uva». E mais: «Os delicados pratos assemelham-se também a canteiros de flores, a uma vitrina de joalharia».175 D. Maria, companheira de Salazar 103

Novas refeições, as mesmas observações: «“Maria voltou a pôr uma toalha nova”, digo eu em cada dia. Onde é que terá ela encontrado estas flores raras? E em que livro terá lido a receita destes pratos peculiares?»176 À mesa, Salazar solicita à convidada que lhe conte as anedotas que ouviu em Portugal a respeito dele. Numa das que Christine lhe reproduz, e que aliás, segundo as suas recordações, o deixam algo carrancudo, a governanta surge também como personagem: «Conta-se […] que você convida um grupo de pessoas para uma refei- ção tão escassa que os convivas ficam desiludidos. No fim, pede à Maria que traga o peru, e ouve-se um suspiro de alívio coletivo. Lamentavelmente, o peru está vivo, e bem vivo: foi treinado de propósito para debicar as migalhas».177 A assistência da governanta prossegue: «Terminado o almoço (café proibido!), aparecia Maria junto à nossa mesa para uma pequena conversa através de gestos. Será que eu tinha gostado dos pratos? O bolo não tinha demasiado açú- car?...»178 O relato de Christine Garnier, precioso para se conhecer o papel de Maria de Jesus junto de Salazar, realça também a função de chefe de gabinete, informal mas implacável, desem- penhado pela governanta: «Toca o telefone. Maria deve ter atendido em baixo, na cozinha. É ela que seleciona as inúme- ras chamadas recebidas. Separando o trigo do joio, responde quase sempre que “o senhor doutor agora está na quinta”. Só passa a Salazar uma ligação que ache indispensável».179 A própria francesa, de início, tinha de passar pelo crivo da governanta: quando aparecia em frente à casa do Vimiei- ro, um dos agentes da PIDE ia a correr avisar Maria de Jesus. Mas para o fim é como se fosse já da família, e entra sem pre- venir.180 (Como recorda Fátima Cértima, fosse em São Bento 104 A Governanta ou noutro sítio qualquer, «a D. Maria sabia tudo, era um cão de guarda: quem ia, não ia, entrava, não entrava»).181 Aproximando-se o momento da sua partida do Vimiei- ro para Paris, pelo Sud-Expresso, Christine é prevenida por Salazar: «Quanto a Maria, tenho a certeza de que ela lhe dirá adeus de lágrimas nos olhos». A autora replica-lhe: «Maria e eu não trocámos duas frases desde que nos conhecemos, e no entanto tornámo-nos amigas. Parece que entre nós duas as palavras são inúteis. Entendemo-nos. A sua silenciosa presen- ça far-me-á falta em Paris».182 E a seguir a refeição de despedi- da: «Pela última vez, sento-me à mesa redonda para almoçar junto a Salazar. A toalha de renda está juncada de rosas. Maria preparou em minha honra um enorme bolo verde e banco e dispôs sobre uma bandeja de prata, cinzelada à espanhola, pêssegos, figos e uvas da quinta.183 Durante um instante, tudo está em silêncio».184 O adeus dá-se pouco antes de o comboio chegar a Santa Comba Dão: «Maria apareceu na varanda com um vestido de domingo. Tem a atitude afetada e um pouco solene da- queles que acompanham ao cais de uma gare um amigo de partida para uma longa viagem. Fala ao Presidente com a voz baixa: “O comboio está quase a passar por Santa Comba”, traduz Salazar. “Tem de se ir embora”. Maria dá-me então o seu presente de despedida, um napperon de pano fino que ela bordou minuciosamente para mim com pequenas rosas [nas memórias, a autora dirá tratar-se de corações, sendo a oferta acompanhada de figos secos e de marmelada].185 E soluça en- quanto a abraço. Muito obrigada, digo com emoção. É a única expressão portuguesa que aprendi na minha estada no Vi- mieiro. Não conheço outras palavras para exprimir a Maria a minha gratidão. Saudades, responde ela no meio das suas D. Maria, companheira de Salazar 105 lágrimas. “Que mágoas você deixa aqui”, interpreta Salazar. “Que mágoas eu levo!” Será preciso acrescentar?»186 [Classifi- cará depois a viajante estas «férias» especiais: «As mais belas de toda a minha vida».]187 Christine Garnier presta assim a Maria de Jesus o reco- nhecimento pelo lugar que ocupa ao lado de Salazar, a um ponto que os compatriotas da governanta não exprimem nem nunca exprimirão (et pour cause).

Apesar do tom hagiográfico da obra, o presidente do Conselho, ao ler as provas, que recebeu quando Vacances avec Salazar estava a ser traduzido para português pelo dirigente da PIDE Agostinho Barbieri Cardoso, sentiu-se incomodado com uma alusão às difíceis relações das suas irmãs com a go- vernanta. A referência fora feita numa conversa que Christi- ne havia tido no Vimieiro com duas delas, Marta, professora primária, e Elisa. Salazar escreveu logo ao embaixador por- tuguês em Paris, Marcello Mathias, por cujo intermédio se faziam os contactos com Christine, a tentar censurar a passa- gem: «Aproveito para fazer referência a uma frase que se lê no capítulo II, “L’écolier de Vimieiro” [“O colegial do Vimiei- ro”]. O tenente Barbieri chamou-me a atenção para ela; aliás conheço-a bem, embora não fizesse nenhum pedido a Mme. Garnier de a cortar ou modificar. Na aludida frase a senhora faz-se eco do que ouviu aqui acerca das relações das minhas irmãs com a minha governanta, a Maria. Mme. Garnier diz que as relações não são boas, mas elas são oficialmente óti- mas, pelas razões que levam as sogras a tratar muito bem as noras que é para que estas lhes tratem muito bem os filhos. As minhas irmãs vão desgostar-se com a alusão, coitadas, 106 A Governanta que considerarão inverídica e injusta. O tradutor diz-me que acha isso tão mau para o público português que não incluirá a referência na edição portuguesa. Estaremos ainda a tempo de Mme. Garnier alterar ou suprimir a tal frase?»188 Estando o livro já na tipografia em França, a diligência de Salazar foi inútil para a edição original, se bem que os portu- gueses tivessem sido devidamente resguardados de saber da antipatia reinante entre as suas irmãs e Maria de Jesus. Na edição francesa, a jornalista pergunta às duas entrevistadas: «Dizem-me que o Presidente tem como governanta uma mu- lher muito inteligente, mas de aspeto azedo, chamada Maria. Ela também costuma vir ao Vimieiro?». Reação: «“Sim”, res- ponde Marta com uma voz cortante. Ouvindo pronunciar o nome de Maria, as duas irmãs ficaram logo hirtas. Sentindo que faltava cordialidade nas relações delas com a governanta, tratei de mudar o rumo da conversa».189 Era este o trecho que tanto preocupou o fundador do Estado Novo.

Quanto ao resto, se bem que, segundo venha a relatar a autora, Salazar tenha reagido mal às considerações sobre o seu próprio caráter no texto original, aceitou, num encontro que teve com ela em Lisboa meio ano após a estada no Vi- mieiro, o retrato da disciplinadora de São Bento: «Emocio- nou-se ao ler o que eu tinha dito da sua infância, da sua mãe e de Maria».190 Durante esta segunda visita à capital portuguesa, Christi- ne fica alojada na residência oficial (intramuros, não haveria lugar a falatórios inconvenientes): «No meu austero quarto, os taipais estavam sempre fechados. Impossível maquilhar- -me. Tomar banho representava um problema, já que a água D. Maria, companheira de Salazar 107 estava sempre fria. Mas, na pequena sala de jantar que Sala- zar havia feito arranjar no primeiro andar, Maria elaborava as mesmas ementas do Vimieiro e surpreendia-me todos os dias com extravagantes sobremesas, assim como com toalhas igualmente sumptuosas».191 Num domingo, haverá ainda tempo para um passeio a três até à Serra da Arrábida, mas Maria de Jesus ficará para trás quando Salazar resolve mostrar à escritora o convento abandonado e acabado de restaurar pelo Duque de Palmela. Assoberbado com o desempenho das suas funções, o chefe do Governo não tem tempo para outras saídas com a sua hós- pede, mas programa-lhe minuciosas visitas e circuitos onde Christine está sempre acompanhada por Maria. Duas déca- das depois, a francesa lembraria esses passeios: «Levando-me pelo braço ou pela mão, beijando-me por vezes fogosamente por impulso, Maria acompanhava-me sempre, assim como um polícia sentado ao lado do motorista. Só uma vez Ma- ria tomou uma iniciativa audaciosa: convidou-me, com a sua amiga irlandesa, Miss Rose [O’Connor, radicada em Portu- gal e visita frequente de São Bento], para um restaurante em frente ao mar, onde apenas se comia marisco. Umberto, o ex-rei de Itália [então exilado em Cascais], que se encontrava numa mesa vizinha, veio conversar connosco. Foi um mo- mento encantador, mas ainda hoje continuo espantada com esta liberdade tomada perante o programa estabelecido [por Salazar]».192 Como acompanhante de Christine, Maria de Jesus assu- me e executa o papel de vigilante, às ordens de Salazar, da escritora francesa, como contará mais tarde Arminda Lacer- da, que reconhece contudo o afeto daí nascido pela visitante: «“A Garnier caiu-lhe no goto” [à governanta, que] mantinha 108 A Governanta sobre ela uma vigilância que só tinha paralelo com a que o próprio Salazar exercia, que ia ao ponto de lhe fixar hora de entrada, quando Christine era convidada para uma receção social noturna».193 Arminda Lacerda (Mindinha para os amigos) orgulha-se porém de ter fintado uma vez o poder de Maria de Jesus, não sem grandes amargos de boca: “Todos receavam a D. Maria, mas eu fiz-lhe frente”. É com incontido sabor de vitória que Mindinha relata o episódio. Henrique Chaves, agrário de Évora, convidou-a para um al- moço na sua herdade e estendeu esse convite a Christine Gar- nier, sublinhando que era um grupo restrito de convidados. A ideia não agradou muito a Salazar, que não podia ou não queria ir. Embora achasse bem que Christine fosse conhecer Évora, preferia que fossem almoçar num restaurante, sugestão que Maria Arminda rejeitou de imediato – «Não fazia senti- do. Somos convidadas, estávamos lá e íamos ao restaurante». Fez-se como Mindinha quis. Só que no dia da partida, quan- do passou por São Bento, para levar Christine, quem também estava apetrechada para ir era a D. Maria: «Ah, não, Maria de Jesus. Se queria vir, tivesse dito mais cedo. O que é que as pessoas vão pensar se chegar agora consigo, sem ter avisado? E não a levei». Não tardou pela resposta: «Eu entrava livremente em São Bento. O polícia já me conhecia e abria logo o portão». Ora, na vez seguinte, ele saiu, viu quem eu era, voltou para dentro, telefonou, sentou-se e estive ali um quarto de hora an- tes que me abrissem o portão. Mudaram o sistema de controle, pensei eu. Mas, quando da vez seguinte repetiram a cena, per- cebi tudo. A Maria de Jesus queria vingar-se. Mas a mim não me metia ela medo. Fui direta ao Doutor Salazar e disse-lhe: «Venho despedir-me, porque já não mais cá volto». «Porquê, Mindinha? Para onde vai?», perguntou-me ele surpreendido. Então contei-lhe que se era assim tão inspecionada a minha D. Maria, companheira de Salazar 109

entrada é porque não me queriam lá. E desatei a chorar. «Vai resolver-se tudo, não chore», disse-me ele, e assim foi. Na vez seguinte o polícia abriu-me o portão sem demoras.194 De qualquer modo, Christine Garnier evocará mais tarde como decisivo o contributo da governanta de Salazar para a concretização da missão editorial que recebeu de Grasset: «Sem Maria de Jesus Caetano, eu não teria podido escrever este livro».195

Férias com Salazar obtém considerável sucesso de vendas em França e em Portugal, e após mais alguns meses a autora regressa outra vez ao país ibérico: «Eu ansiava por reencon- trar a paz dos claustros, por ir de novo ao encontro de Sala- zar».196 Já ganha a confiança do líder português, ela é hóspede no Forte de Santo António em simultâneo com ele: «Ele e Maria convidaram-me para “fazer férias” num pequeno quar- to desta edificação, que se debruçava sobre o Atlântico».197 Na memória destas novas férias com Salazar, sobressai outra vez a imagem de Maria: «Almoçávamos às 14 horas, numa espécie de largo corredor, fechado por uma cape- la dedicada a Santo António e abrindo-se para o Atlântico. Como esquecer estas refeições, estes vasos de manjerico que nas horas quentes Maria protegia com a ajuda de um guar- da-sol, os cantos dos tentilhões nas suas gaiolas e a pequena capela com a sua talha dourada e os seus veludos vermelhos? Gostava muito dela. Separava os nossos quartos monásticos, no primeiro andar. Ao serão, até à meia-noite, as criadinhas entoavam aí, sob a égide de Maria, ladainhas muito ternas à Virgem».198 110 A Governanta

No forte, eventual fruto da dificuldade, já relatada pela hóspede, em ter acesso a água quente, dá-se um quiproquó no domínio da higiene pessoal, de acordo com a memória de Micas, reproduzida por Felícia Cabrita: «O que mais desin- quietou a imaginação da rapariga foi, um belo dia, a azáfama da governanta. Maria de Jesus subia e descia escadas com bal- des de água quente. A casa de banho de Salazar parecia que ia receber rainha. Na verdade, corria entre a criadagem que os franceses eram gente avessa a águas e limpezas. Salazar não escapava a mitos civilizacionais, gostava de asseio. Foi a própria governanta quem, numa vingança prosaica, contou o segredo a Micas: “Disse-me que Salazar andava muito quei- xoso porque a Garnier não tomava banho, só punha cremes na pele. E com a ajuda da Maria lá convenceu a francesa a um banho de imersão”. Maria de Jesus, apaixonadíssima pelo pa- trão, passa por todas as provações: antes com ele do que sem ele. Cozinha para os amantes, requinta-se na decoração da mesa para a ceia. É um elo fundamental na propaganda. Ata como pode, mesmo contra as especificidades mais íntimas da sua natureza, o homem ao país. Micas faz o retrato: “Desde que ele estivesse bem e não se esquecesse da nação, para ela estava tudo bem”. Christine, aliás, sabe que precisa dela, con- ta com a sua lealdade, mantém-na debaixo de olho, ou seja, dá-lhe importância. Sempre que regressa a Paris, não perde o elo com a governanta».199

Quando estão longe, as duas mulheres não deixam de comunicar entre elas, como duas amigas de longa data: tro- cam missivas servindo-se de Mathias como intermediário. As cartas seguem por correio diplomático, vendo-se Salazar D. Maria, companheira de Salazar 111 obrigado a colocar um cartão dirigido ao embaixador, como em 24 de março de 1952: «Tenha paciência. Mande também a carta que é da Maria de Jesus a Mme. Garnier, e quando puder traduza-lha para que a entenda».200 A natureza dos laços que unem Christine a Salazar e Ma- ria permite que no verão de 1954 ela deixe com eles o filho, Jean-François, de 14 anos, para passar um mês de férias no forte do Estoril. A atmosfera fria e austera do edifício e a vigilância dos agentes da PIDE (impedindo mesmo a conti- nuação do contacto com uma rapariga encontrada na praia contígua) não deixaram as melhores recordações no ado- lescente.201 Quanto à governanta, que recebera mãe e filho à chegada, mantinha-se discreta às refeições: «Ficava na co- zinha e era uma criada que nos servia. Por vezes ela apare- cia para ver se tudo estava a correr bem, mas não era muito frequente».202 Christine, acabada de casar em segundas núpcias (após o senhor Garnier ter requerido o divórcio ao descobrir as ex- tensas cartas de Salazar para ela), foi viajar com o novo mari- do (que o ditador nunca convidou nem mostrou interesse em conhecer), regressando pouco depois a Lisboa, sozinha, para mais uma estada junto dos anfitriões: Quando, em setembro, cheguei ao Forte de Santo Antó- nio, Maria não fez nenhuma alusão à minha nova vida. Para ela, eu era aquela-que-não-muda, à qual nada acontece, a «inalterável». Era maravilhoso, Retomei a confiança em mim, encontrei o meu porto, entre estas paredes quase nuas, entre os gerânios indigentes e os manjericos frágeis. Sim, verdadei- ramente, eu tinha duas almas. Este pensamento perturbava- -me. Como uma miúda, continuava a fumar às ocultas com a amiga irlandesa de Maria, miss Rose, e a esconder as beatas nas juntas das pedras deste forte austero, em volta do qual circu- 112 A Governanta

lavam polícias silenciosos. Na verdade, que Salazar me tenha admitido, compreendido, amado, respeitado, apesar de todas as minhas loucuras, ele que era tão intransigente, espanta-me mesmo hoje. Maria agia da mesma maneira, nunca se esque- cendo, nas minhas partidas, de me encher de ovos frescos para a minha viagem no Sud-Expresso.203 No plano sentimental, acabará por esfriar, como todas as suas restantes atrações femininas, a relação de Salazar com a francesa, embora a correspondência se mantenha e Christine continue a visitá-lo em Lisboa. O que, todavia, em nada al- tera a intensidade da ligação entre as duas adoradoras – cada uma à sua maneira – do fundador do Estado Novo. Micas explicará como a governanta reagiu ao affaire Gar- nier/Salazar com uma fleuma muito diferente do habitual: «Apesar [das] evidências, a Tia Maria não pareceu tão preo- cupada com o caso como com a história de Carolina Asseca, uns anos antes. A Garnier até a convidou para passar uns dias numa casa de campo que possuía nos arredores de Paris. E a governanta lá foi sozinha, para uma curta vilegiatura a expensas da autora de Férias com Salazar».204 A viagem, que Ricardo Espírito Santo se propôs custear, acabou porém por criar a Salazar um delicado problema po- lítico, de difícil resolução, e talvez este fosse um dos casos em que o ditador terá visto a governanta a extravasar das suas competências, colocando-se num patamar que não lhe pertencia: «Em novembro de 1954 Ricardo Espírito Santo deslocou-se a Paris para inaugurar a exposição da Ourivesa- ria Civil Portuguesa e Francesa. O banqueiro e colecionador reservou 20 lugares num avião da Air France, para transpor- tar amigos, médicos e uma enfermeira [estava já afetado pela doença que o viria a vitimar pouco depois]. Para grande sur- D. Maria, companheira de Salazar 113 presa – e incómodo – de Salazar, entre os convidados encon- trava-se Maria de Jesus, a sua governanta».205 O chefe do Governo confessa-se então ao embaixador Mathias, numa carta onde expõe a questão, se mostra emba- raçado e pede ajuda: Os amigos [do banqueiro] andam pela dezena. Daí a lem- brança de convidar outras pessoas, entre elas a minha gover- nanta, a Maria, que, já se sabe, não conhecendo bem ou não medindo bem a delicadeza dos melindres que possa haver, ficou excitada com a possibilidade de ir passar gratuitamen- te, quanto a viagens, uns oito dias a Paris. [...] Eu estou em circunstâncias difíceis, criadas por aquele convite ou ofereci- mento feito, sem me ser dita uma palavra. «A rico não devas, a pobre não prometas», etc. Há o caso de Mme. Garnier, a complicar ainda a vida. A senhora insiste, tem a casa ao dispor, etc., mas decididamen- te não conviria em qualquer caso e por vários motivos ir além de um ou dois dias, se mesmo esta curta estadia é considerada pelo Dr. Marcello Mathias razoável e possível. Temos ainda a dificuldade da língua e ser necessário conseguir que alguém – da Casa de Portugal?, estranho à Casa? – vá fazer um pouco de companhia, se a viagem tem de fazer-se. Receio por fim muito que, se o nosso amigo [Espírito Santo] tem de se ocupar do caso, para além da estrita viagem, etc., não meça bem as distâncias nem as diferenças e julgue que é muito amável – e a mim muito grato – estabelecer um plano único para todas as pessoas que constituem o séquito, o que não pode de algum modo ser. Nos começos de outubro esta sonhada viagem esteve para realizar-se em diferentes e melhores condições. Uma senhora amiga, da Madeira, com família em Paris e em Londres, tinha convidado a Maria para fazer com ela a viagem de automóvel, fazendo as precisas demoras em Espanha e reservando oito ou 114 A Governanta

dez dias para Paris. Por não saber resolver os problemas deri- vados dos anteriores convites e insistências de Mme. Garnier, arranjaram-se razões pelas quais a viagem não podia agora realizar-se. E no entanto seria, sob vários aspetos, a solução ideal. Agora cai-me esta dificuldade com a circunstância de nem sequer se poder mostrar desagrado para qualquer lado. Como tem aí muitos elementos de apreciação que me fal- tam aqui e certamente da última vez não transmitiu pelo tele- fone, peço-lhe o obséquio de se debruçar uns minutos sobre este caso e dizer-me como se poderá ou deverá agir. Não es- queço que há também a possibilidade da Embaixada, cujo ofe- recimento espontâneo e amável muito agradeço, mas que, sen- do possível dispensar, seria melhor não ser utilizado. Tenha paciência, mas não posso tomar uma resolução e dar o meu assentimento definitivo sem o ouvir, com inteira sinceridade e franqueza.206

Transformada a viagem da sua governanta em assunto de Estado, presume-se – dado não existir resposta de Mathias à carta – que Salazar deverá ter voltado ao telefone para discu- tir a matéria com o diplomata. Mas cinco dias depois o chefe do Governo, numa linguagem algo cifrada, escreve de novo ao embaixador acerca do tema que o atormenta, e para o qual delineia detalhes do que parece ser uma operação complexa: Muito obrigado pela sua amabilidade e pronta compreen- são de todo o problema; e muito obrigado também desde já por todas as maçadas que vai ter. Vai junto uma carta para Mme. Garnier em que resumi- damente digo o seguinte: houve uma reviravolta na questão da viagem a Paris. Sem meu conhecimento, ofereceram uma viagem de ida e volta, com a vantagem de pequena demora, D. Maria, companheira de Salazar 115

oito dias pouco mais ou menos. Nestes termos criou-se um ambiente de aceitação, impossível de contrariar. Acontece po- rém que o embaixador e sua mulher, desejando ser agradáveis à pessoa interessada, há muito tempo insistiam por um passeio a Paris alojando-a na Embaixada. Eu julgava muito difícil con- vencê-los a desistir. Pensei por outro lado que Mme. Garnier tinha a sua vida e não podia perder tempo. A Embaixada fornecia ainda a solução do problema da lín- gua, não sendo necessário recorrer ao pessoal da Casa de Por- tugal (como estava previsto e a mim não me agradava nada). Nestes termos tinha dito ao Dr. Marcello Mathias que M. [Maria] iria para a Embaixada, mas que era necessário infor- mar Mme. Garnier de tudo e fazer as coisas de modo a que a visitante pudesse visitá-la, estar com a senhora, gesticular em francês com ela, como costumam fazer aqui. O meu desejo era no entanto que M. a não incomodasse demasiadamente nem lhe fizesse perder tempo além do necessário. Peço-lhe ainda que compreenda que tudo se fez pelo melhor e com boa in- tenção. Dentro desta orientação, melhorada ainda aí pela inter- venção pessoal, é favor trabalhar junto de Mme. Garnier. A sua insistência e amabilidade têm sido tão grandes que eu receio pelo menos um amuo da sua parte. É preciso que a Maria visite também os pais de Mme. Garnier. E que tudo corra o menos mal possível.207 Maria de Jesus lá parte para Paris, na segunda quinzena de novembro, e não tarda Salazar, preocupado com os efeitos da estada da empregada na capital francesa, escreve de novo a Mathias (enviando também uma carta que pede para o em- baixador entregar à governanta): Espero que tudo esteja a correr bem e que a Maria não tenha maçado de mais. Recebi de Mme. Garnier uma carta aceitando muito bem a instalação de Maria na Embaixada mas 116 A Governanta

apresentando programas de encontros e passeios que julgo a sobrecarregariam muito. Peço que tenha cuidado com isso. Certamente a Maria há de querer comprar lembranças nos ar- mazéns; não há de ser Mme. Garnier que a há de acompanhar. Uma das empregadas daí que fale a língua e conheça o dinheiro é mais que bastante. [...]. Muitos cumprimentos e mais uma vez muito obrigado pelas atenções com a Maria de Jesus.208 Tudo corre pelo melhor. Regressa Maria de Jesus a Lis- boa, mas algumas das suas aquisições virão mais tarde, como se depreende de uma carta de Salazar a Mathias três meses depois: «A Maria recebeu uma encomenda que havia feito a sua mulher, e que lhe foi enviada pela GNR, que trouxe as pratas da exposição».209 A escritora parece ter ficado radiante por receber Maria de Jesus na sua cidade: «De Paris, Christine Garnier escreve uma torrente de cartas. [...] Está contente, verdadeiramente encantada com a visita da governanta Maria de Jesus: esta fora de uma tocante amizade».210 Logo pelo Natal, passado um mês sobre a viagem, a francesa escreve à governanta: «Os dias passam, passam, mas mantenho o meu pensamento fiel junto a si. Espero que esteja bem». Fala do ex-marido, que está em Dakar, e do filho, que foi lá passar a quadra. E de outras reações à visita da portuguesa: «Os meus pais não se esquecem de si e pedem-me para lhe transmitir os seus afe- tos. Creia, cara senhora, também no meu, muito sincero, e com os melhores votos, que formulo para si». (A carta leva ainda um post-scriptum: «Agradeço que transmita à Micas as minhas lembranças»).211 Não tarda, chega a São Bento outra carta de Christine para Maria de Jesus: «É com grande alegria que rapidamente vos irei ver a Lisboa. Parece-me que os dias demoram a pas- D. Maria, companheira de Salazar 117 sar».212 Mas, segundo Franco Nogueira, essa viagem não se concretizará: «Christine Garnier escreve [a Salazar] de Bru- xelas e Paris. Afinal não pudera vir a Lisboa em setembro: tivera que fazer umas viagens; o editor Grasset morrera [...]; e, além disso, em Lisboa, a governanta Maria de Jesus estava doente, e Salazar tinha assim dificuldade em receber Christi- ne. Poderá vir em novembro?»213 Seria a doença da governanta um pretexto para justifi- car o distanciamento que se vai registando entre o chefe do Governo e a escritora? É um facto, de qualquer modo, que, de acordo com o relato de Micas, Maria de Jesus terá estado por esta época hospitalizada numa casa de saúde ao Prínci- pe Real, em Lisboa, com um «problema de cabeça», após ter desmaiado: «Eu fui lá visitá-la com o Senhor Doutor, que teve o maior cuidado no seu restabelecimento».214 A Salazar, Christine invocará contudo de novo uma doença, agora dela própria, para não aparecer em novembro, optando por passar esses dias no sul de França em casa do poeta Paul Geraldy (sublinhando porém, para o destinatá- rio da carta, que o anfitrião tem 76 anos). Propõe a seguir a Páscoa.215 Insiste contudo em levar desta vez o marido.216 Porventura sentindo falta de recetividade de Salazar, não surge logo, acabando por regressar mais tarde, em outubro de 1956, mas sozinha.217 E, como em cada visita, a coquette parisiense vai continuando a cultivar com a aldeã migrada em Lisboa uma improvável amizade que nunca se apagará.

© Coleção Maria da Conceição de Melo Rita Maria de Jesus, acompanhada de Micas, na sua horta implantada nos jardins da residência oficial de São Bento. , Coleção Hemeroteca Municipal de Lisboa O Século Ilustrado © Salazar Dinis, A fotografia que dá a conhecer Maria de Jesus aos portu- gueses: a governanta com Micas e o cão Dão durante uma visita às obras de adaptação do palacete de São Bento, a residência do ditador (inícios de 1938). da residênciaoficial(c.1953). a famíliavirtual deSãoBento,nos Micas, jardins MariaAntóniaeagovernanta, Salazar,

© António Rosa Casaco, Salazar na Intimidade A governanta (em segundo plano) no ca- samento de Micas, celebrado no palacete de São Bento. Ao lado de Micas e do noi- vo, Manuel Rita, o cónego Carneiro de Mesquita; na segunda fila Nogueira da Sil- va; atrás de Maria de Jesus, Maria Eugénia Nogueira da Silva; ao centro Salazar la- deado de Rose O’Connor; atrás, à direita, a sogra de Micas, Júlia Moura, semi-oculta por António Cardoso dos Santos Lourei- ro, dono da Fundição de Oeiras, que tem a seu lado a mulher, Janine, e à frente o filho, Ricardo; na última fila, à direita, o prior da Basílica da Estrela, padre Tobias, e a seu lado o pianista António Melo e a mulher. © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita © António Rosa Casaco, coleção particular © António Rosa Casaco, coleção Maria da Conceição de Melo Rita Maria de Jesus (à direita), na companhia A governanta (atrás, ao centro) seguin- do ditador e da mulher de Augusto No- do Salazar à saída da missa na Igreja da gueira da Silva, Maria da Silva, no Forte Misericórdia, em Santa Comba Dão de Santo António, em São João do Esto- (1952). ril (c. 1953). © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita Salazar, Maria de Jesus e Margarida, filha de Micas. © António Rosa Casaco, coleção Maria da Conceição de Melo Rita Maria de Jesus, Maria Antónia (de tran- ças) e Salazar (casaco branco) na quinta do chefe do Governo no Vimieiro, em 1952. © Beatriz Ferreira, coleção Maria da Conceição de Melo Rita A governanta com Antoninho no Forte de Santo António. © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita Maria de Jesus como madrinha no batismo da filha de Micas, Margarida, com Salazar e o padrinho, António Nogueira da Silva. © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita

A governanta com Salazar e Antoninho no gabinete oficial do presidente do Conselho. © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita

Maria de Jesus (à direita) com Maria da Conceição, os filhos desta, Margarida e António (Antoninho), e Salazar, no exterior do palacete de São Bento, no primeiro dia da comu- nhão das crianças. © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita

Maria de Jesus com Antoninho, Salazar e duas freiras da Ordem das Doroteias, de visita ao Forte de Santo António. A governanta durante a sua viagem a França (1954), com Christine Garnier, o marido e o filho. ©DR © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita Maria de Jesus (segunda a contar da direita), com Micas à sua esquerda, no Vaticano, em dezembro de 1950, após a audiência privada concedida pelo Papa Pio XII. © Coleção Maria da Conceição de Melo Rita

Maria de Jesus (à esquerda) em Vila Pery, durante a sua viagem a Moçambique, em 1956. © Coleção Torre do Tombo – Instituto dos Arquivos Nacionais A governanta falando aos jornalistas – na companhia de uma enfermeira, em frente às instalações da Casa da Saúde da Cruz Vermelha, em – sobre o estado de Salazar, em 9 de se- tembro de 1968, dois dias após a operação a que foi submetido o ditador. © Coleção Torre do Tombo – Instituto dos Arquivos Nacionais Recebendo as visitas na Cruz Vermelha (10 de setembro de 1968). À direita, Rui Salazar de Melo, sobrinho-neto do pre- sidente do Conselho. © Coleção Torre do Tombo – Instituto dos Arquivos Nacionais A governanta com duas visitantes nos corredores da Cruz Verme- lha, durante o internamento de Salazar (setembro de 1968). © Fontes de Melo, coleção Torre do Tombo – Instituto dos Arquivos Nacionais O último adeus de Maria de Jesus: no cemitério do Vimieiro, momentos antes de Sala- zar ser sepultado (30 de julho de 1970), vendo-se na imagem também Américo Thomaz e Marcello Caetano.

Capítulo 7

Intriga em São Bento

D. Maria, companheira de Salazar 133

menina Maria às vezes é azeda. -A Foi assim que Salazar comentou para Micas uma das frequentes diatribes da governanta, o que, segundo a pupila, correspondia na linguagem dele a uma «crítica acerba». Mas podia também desabafar, quando a via mais carrancuda: – A menina Maria hoje não está nos seus dias.218 «Menina Maria» era o tratamento que ele dava a Maria de Jesus quando falava da governanta aos da casa ou de perto dela (Sollari e Allegro dirá porém: «o Doutor Salazar, quan- do se referia a ela, dizia sempre “a Maria” e nós tratávamo-la por D. Maria»).219 Seria a expressão eufemística usada pelo chefe do Governo quando desagradado pelas mais embezer- radas atitudes da empregada. Há um consenso sobre este lado do perfil de Maria de Jesus: autoritária, irascível, irritadiça, intolerante, metediça, controladora, impaciente. Submetia-se apenas perante o pa- trão, e mais ninguém. Todos os outros eram vistos à partida como empecilhos à existência e à atividade de Salazar, e de- pois ela lá se dignava a levantar essa suspeição a alguns dos mais próximos. Não que não mantivesse certos afetos, só que possuía um crivo muito apertado: «Era amiga do seu amigo, mas escolhia muito bem as amizades».220 Resistia por exemplo a ensinar o seu mister, como se te- messe que alguém viesse um dia ocupar-lhe o lugar. Micas foi um dos alvos dessa má vontade: 134 A Governanta

Uma das caraterísticas da Tia Maria era a falta de pachorra para ensinar. Competente nas suas funções, executava-as de modo metódico e despachado, sem pausas para mostrar como se fazia. Quem pudesse, que a seguisse, quem não pudesse, tan- to pior. Esta atitude era manifesta nas lides alimentares, em relação às quais ela não estava na disposição de partilhar segre- dos. A tal ponto que acabei por embirrar com os meus deveres de a acompanhar na culinária. Por isso mesmo, após tanta in- sistência do Senhor Doutor para eu aprender a cozinhar com a governanta, repliquei-lhe: – Mas ela não tem paciência para ensinar. Paciência tinha ele para me ouvir, e não só: ensinou-me a mim a ter também paciência. E a verdade é que ainda acabei por aprender alguma coisa dos tachos com a Tia Maria, so- bretudo quando, lá mais para a frente, comecei a pensar em casamento.221 A governanta podia também tornar-se quezilenta, pegar- -se com qualquer um por uma minudência. Sobretudo se era alguém que trazia de ponta. Micas conta mais uma história, após ser operada ao apêndice e Salazar a ter ido buscar ao hospital: Assim que entrámos na residência, [o Senhor Doutor] quis que eu descansasse numa chaise longue que lá havia, co- briu-me com uma pequena manta e foi buscar, para colocar sob a minha cabeça, umas almofadas muito bonitas e de exce- lente qualidade, cuja função era sobretudo decorativa. A Tia Maria ficou um pouco escandalizada e chamou-lhe a atenção: – Ó Senhor Doutor, olhe que essas almofadas são muito boas. Recebeu logo resposta: – Pois são, Maria, mas as coisas boas são para se usar.222 D. Maria, companheira de Salazar 135

O retrato é confirmado por Dacosta: «“Mulher de pou- cas palavras, revelava-se austera, brusca. Havia empregadas e operários que se recusavam a trabalhar em São Bento por causa do seu génio. Tratava-os mal, berrava com eles, nem sequer respondia aos cumprimentos que lhe dirigiam”, reve- la-me Manuel Marques, barbeiro de Salazar. “Pessoalmente não tive, porém, razões de queixa porque eu sabia ouvi-la. Sabia dominá-la”».223

Tal como o seu chefe em relação ao país, Maria de Jesus tinha também um desígnio em relação ao pequeno mundo que eram os serviços confinados pelos muros de São Bento (incluindo o palácio, onde se sentava a Assembleia Nacional e permanecia também o gabinete oficial de Salazar): o poder absoluto. Não admitia de facto domínios partilhados, apenas alianças com quem aceitasse a sua autoridade e um combate sem tréguas a quem desconfiasse de lhe fazer frente ou de sabotar a posição política do presidente do Conselho. Depois do pessoal menor, os alvos da hegemonia da go- vernanta eram os chefes de gabinete de Salazar: «Aos chefes de gabinete (Leal Marques, José Manuel da Costa), Maria de Jesus fazia-lhes a vida negra, como a quase todos os que tra- balhavam de perto com ele, espiando-os, denunciando-os, intrigando-os, infernizando-os».224 A passagem por São Bento de José Manuel da Costa, um monárquico integralista, foi aliás, em março de 1951, en- curtada por ação direta da governanta, que, desconfiada do posicionamento político do novo colaborador de Salazar, co- meçou a conspirar contra ele pouco após a sua nomeação, aliando-se ao almoxarife do Palácio de São Bento, Guilherme Alves de Almeida, conforme relatará Costa Brochado: 136 A Governanta

O novo chefe de gabinete visava prover todos os pontos de interesse político com pessoas da sua confiança política, já que os integralistas colaborantes se encontravam no poder. Com repetidas atitudes destas, José Manuel da Costa, que era um espírito alegre, muito aberto e popular, acabou por entrar em conflito com a D. Maria, visto que as direitas a que ele perten- cia consideravam necessário «abatê-la», a ela e ao almoxari- fe do Palácio, porque ambos denunciavam a Salazar todas as minudências do gabinete.... Realmente o tal almoxarife e a D. Maria levaram ao conhecimento de Salazar frases agressivas e até injuriosas proferidas pelo chefe de gabinete contra o pró- prio Presidente. Por exemplo: «como é que se manda embo- ra este Salazar!?» Salazar, que tinha uma estranha capacidade de «encaixar», simulando não sentir as ofensas, não só não as esquecia como, na hora própria, as punia sempre [...]. Rapi- damente, Salazar mandou José Manuel da Costa para diretor do Secretariado Nacional da Informação, de onde saiu para a direção do Diário da Manhã, etc., etc.! Mas nunca mais o viu nem falou com ele... E voltou a ficar, desta vez até à morte, sem chefe de gabinete.225 Desde cedo que, aliás, Maria de Jesus encontrou para a sua cruzada um aliado na pessoa do almoxarife de São Bento, que no fundo desempenhava na Assembleia Nacional funções idênticas às dela na residência oficial. Guilherme de Almeida trabalhara nas obras de restauro do palácio e na adaptação da residência oficial. Foi ainda Costa Brochado quem, no lugar privilegiado de secretário do hemiciclo à época, fez a narrati- va da forma como a governanta subjugou o homem: Salazar nomeou-o fiel e, depois, almoxarife do Palácio da Assembleia Nacional. Por sua vez, a D. Maria transformou-o em mordomo da casa, do jardim e capoeiras, nunca mais o lar- gando... Ele era o autêntico faz-tudo. A qualquer hora do dia D. Maria, companheira de Salazar 137

ou da noite, porque o almoxarife tinha domicílio legal no Palá- cio, era chamado à residência porque se fundira uma lâmpada, se entupiram os canos, rebentara uma caldeira, se inundara uma dependência, etc., etc., etc. Deste modo, o homem foi-se tornando uma potência, porque D. Maria gostava imenso dele, e [...] servia para fazer a sua política com toda aquela gente que vivia à volta do Palácio... Ora o almoxarife Guilherme era muito bom no trabalho, mas péssimo em política e diploma- cia... Os contínuos e todo o então chamado pessoal menor [...] não gostavam dele: achavam-no duro, grosseiro e por vezes tirânico. Tenho cartas promovendo-me a santo, e dignidades parecidas, por defender pobres contínuos e simples mulheres da limpeza das suas garras... Vivia toda a gente, naquele palá- cio, atemorizada porque o almoxarife podia, nos seus contac- tos diários com a D. Maria, contar desmandos de cada um ou até inventar o que servisse à sua política.226 Terá sido Guilherme de Almeida, por exemplo, quem le- vou à detenção do capitão Henrique Galvão, quando este, na transição para os anos 50, abandonou a sua posição de fiel apoiante e colaborador do Estado Novo e passou a conspi- rar contra Salazar. Segundo Costa Brochado, Galvão planeou rebentar o portão de São Bento com um blindado militar e prender o presidente do Conselho, e quando o plano se gorou tentou corromper o almoxarife para abrir as portas a partir de dentro. Guilherme de Almeida fingiu-se interessado na proposta apenas para denunciar Galvão e levá-lo à prisão.227

Nas intrigas em que Maria de Jesus se envolveu com Gui- lherme de Almeida, estava em causa não só o poder sobre o pessoal de São Bento mas também o jogo de correntes políti- cas dentro do próprio regime: 138 A Governanta

Durante os três meses de funcionamento efetivo da As- sembleia Nacional [em cada ano] a competência disciplinar sobre os funcionários passava do presidente do Conselho para o presidente da Assembleia, praticamente. Explorando esta circunstância, inimigos do almoxarife do palácio leva- ram algumas mulheres da limpeza a queixarem-se dele junto do presidente da Assembleia, que era, então, o Dr. Albino dos Reis, acusando-o de maus tratos verbais, tirania e atentado ao pudor, etc. O presidente despachou instaurando processo disciplinar e dele incumbindo um deputado de extrema-direi- ta228, adversário público de Salazar... Transparecia o intento de se atingir o presidente do Conselho através do almoxarife, considerado perigoso informador da D. Maria e do próprio Salazar. [...] As tais direitas não colaborantes aproveitaram a maré para darem uma lição de moral e justiça a Salazar, por intermédio de um seu protegido, etc. Corrido o processo, foi, no fim, proposta uma pesada pena contra o almoxarife: e o dr. Albino dos Reis esperou as vésperas do encerramento da As- sembleia para mandar o processo ao presidente do Conselho, devolvendo-lhe, desse modo, a competência disciplinar... Sa- lazar ficou com o processo, sem dizer palavra, até à reabertura da Assembleia Nacional, devolvendo-o, então, ao dr. Albino dos Reis, que, é claro, não só não fez executar a pena proposta como arquivou o processo, sem mais se falar no caso... Du- rante a instrução do processo, a D. Maria deixava-se ver pelo funcionalismo com o almoxarife, sentados nos bancos do jar- dim da residência, que eram visíveis das traseiras do palácio... Protegia-o, portanto. E nessa guerra das mulheres da limpeza havia as que eram pró-almoxarife e as que eram contra; e só aquelas entravam nos serviços da residência.229 O narrador ressalva porém que Salazar e a governan- ta não ignoravam as provações do pessoal menor: «Voltando às mulheres da limpeza, direi que elas tinham um estatuto D. Maria, companheira de Salazar 139 verdadeiramente confrangedor! [...] Mas é preciso frisar que tanto a D. Maria como o próprio Salazar estavam sempre mais atentos à vida desta pobre gente do que possa imagi- nar-se».230 (Costa Brochado conta que o chefe do Governo, quando havia atrasos nos salários, enviava no mês seguin- te bilhetes à secretaria da Assembleia Nacional a solicitar o seu pagamento aos funcionários, sublinhando que estes não tinham outros meios de subsistência). Podendo-o, contudo, Maria de Jesus não hesitava em infernizar a vida desses tra- balhadores, já que lhe era reconhecida uma autoridade que «às vezes extravasa até ao pessoal menor da AN».231 A aliança entre a governanta e o almoxarife acabaria por exasperar Salazar, quando o ditador viu violados os seus sa- crossantos princípios de poupança. Em 23 de agosto de 1950, exprimiu por escrito a Costa Brochado a sua cólera após desco- brir que se substituíra a fonte de energia do sistema de aqueci- mento da residência, do carvão para o gasóleo, aparentemen- te contra as suas próprias indicações: «A caldeira funcionava muito bem a carvão e a lenha e não estava indicado nem havia vantagem em que passasse a funcionar a gasóleo». Acrescen- tava que perguntara ao Ministério das Obras Públicas o que se passava, tendo recebido uma nota sugerindo que o melhora- mento fora solicitado ou pela governanta ou pelo almoxarife: Aí se diz que a instalação fora pedida por uma de duas pessoas ou pelas duas conjuntamente. A governanta é, porém, pessoa não qualificada para apresentar pedidos ou sugestões acerca das obras, mormente em sentido contrário das indica- ções expressas por mim ao arquiteto que as dirigia. O mes- mo se deve dizer do antigo fiscal, hoje almoxarife do palácio e anexos, pois, devendo olhar cuidadosamente pelos trabalhos, não podia dar ordens relativamente a estes nem mesmo fazer pedidos aos encarregados de dirigi-las. [...] A instalação custa 140 A Governanta

18 contos e [...] nada se lucra com ela, pois que o preço do aquecimento [...] é igual nas duas hipóteses. Isto é, parece que dos 18 contos gastos se tira apenas a vantagem de o pessoal doméstico não sujar as mãos no carvão, o que é pouco para justificar a despesa.232 Ato contínuo, Salazar mandava instaurar inquérito para apuramento das responsabilidades do almoxarife na mudan- ça (deixando porém de fora Maria de Jesus).233 Segundo re- latará o secretário do hemiciclo, Guilherme de Almeida terá sabido defender-se, justificando-se com questões de segu- rança e higiene, invocando o problema das fugas de fumo e declarando que deixara a decisão para quem dirigia as obras. Protegeu o nome de Maria de Jesus, nunca a envolvendo no processo. E acabou ilibado.234

Os motivos para as animadversões da governanta podiam ser variados e obscuros, e talvez só o facto de se ser mulher fosse já razão para se incorrer nas suas fúrias. Como aconte- ceu com uma das duas telefonistas efetivas do Palácio de São Bento, servindo em simultâneo o hemiciclo e a Presidência do Conselho, de sua graça Donzelina: A Dona Donzelina, era uma mulher muito inteligente, profissional de exceção, muito bela, elegante e distinta. Sabia tudo o que se passava na política dos gabinetes e não igno- rava as políticas da D. Maria. Acabou, por isso, por cair na desgraça da governanta... Corria no palácio que a D. Maria não a queria ali e ia impor a sua substituição. Fiquei em picos, tanto mais que essas substituições dependiam apenas de um despacho meu. Eu era amigo da Donzelina, admirava-a e não gostava que, fosse quem fosse, passasse sobre mim... Calcu- D. Maria, companheira de Salazar 141

le-se por isso a minha expectação quando, um dia, estando a despacho de funcionário com o presidente do Conselho, entra no gabinete uma graciosa criadinha, impecavelmente trajada, e, dirigindo-se a Salazar, lhe diz inocentemente, de forma que eu ouvi: «A senhora D. Maria manda dizer para o senhor Dou- tor se não esquecer da telefonista!» Fiquei transido, porque era um dos melhores testes que se me podia oferecer para o estudo de Salazar! Este ouviu a mocinha, fez a cara mais feia e zangada que se possa imaginar e, sem dizer uma só palavra à rapari- ga, prosseguiu a conversa que tínhamos em desenvolvimento. E jamais me disse uma só palavra acerca da telefonista...235 Era idêntica a atitude de Maria de Jesus perante aqueles que, extramuros, julgava indignos da confiança de Salazar, e esse sentimento abrangia em especial os que se intitulavam seguidores do fundador do Estado Novo. Era, nessa medida, mais desconfiada do que o próprio ditador, tique aliás ha- bitual entre os epígonos dos poderosos. Nos últimos anos de vida, ela explicaria a Dacosta que estaria assim a proteger Salazar: «As pessoas em frente dele eram todas mesuras, vas- salagens, ninguém tinha coragem de lhe dizer nada. Pediam- -me a mim para lhe transmitir as coisas ruins. Só o Marcello Caetano [colaborador e ministro de Salazar, considerado nos corredores do poder, nos anos 50, como o seu mais provável sucessor, partilhando apelido mas não tendo relação fami- liar com a governanta] o enfrentava. Ele habituou-se a não ser contrariado, habituou-se a ouvir só améns, e isso não o ajudou. O senhor doutor dizia-me que o maior perigo não vem dos inimigos, mas dos que se fazem passar por amigos. Parte dos que o visitavam apenas queriam poleiro... Batiam, porém, a boa porta!»236 Fátima Cértima recolheu idêntica impressão em São Bento, embora Salazar por vezes levantasse reservas: «A D. 142 A Governanta

Maria era capaz de dar a sua opiniãozinha quando havia al- guma coisa política de que não gostava. Salazar muitas ve- zes foi mal informado, mal aconselhado. E ela tinha grande influência lá em casa, não havia nada que ela não soubesse. Mas ele também a metia nos eixos, era pessoa para isso, não gostava da interferência de ninguém».237 «Ele não tinha que pensar em nada, quanto ao governo da casa», escreverá Costa Brochado, para defender que essa era apenas parte das vantagens da governanta. «Ainda por cima, D. Maria era o seu ministro dos estrangeiros interno... Eu já disse que ele dela se servia quando queria louvar alguém sem ficar diretamente ligado ao louvor ou elogio... Mas ai daquele que ela percebesse ter caído em desgraça perante Sa- lazar... Transformava-se numa autêntica fera! Era agressiva e provocadora. Tudo em defesa de Salazar, que ela adorava e serviu, como ninguém, até à morte!»238 O instinto político juntava-se ao sentido maternal de Maria de Jesus para criar uma barreira de proteção em volta de Salazar. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o presi- dente do Conselho, esgotado e inseguro quanto ao futuro do regime e dele próprio, sofre uma depressão. «Os dignitários do regime entram em pânico», escreve Dacosta, acrescentando que o apoio vem da governanta: «Ma- ria de Jesus tem, então, um papel decisivo. Maternal, apazigua- -o, recupera-o lentamente. Faz-lhe petiscos, serve-lhe Portos. Afasta inoportunos, neutraliza contactos, desliga telefones, arreda jornais. Ministros, militares, pides, sacerdotes, são mantidos à distância. O pessoal recebe ordens para falar baixo, não falar. “Foram dias de grande aflição. Eu sabia, porém, que com descanso, com mimos, sem ninguém a preocupá-lo, ha- via de melhorar. Eu conhecia-o bem. Foram anos terríveis os das guerras, a espanhola, a mundial, mais tarde a das colónias. D. Maria, companheira de Salazar 143

Aquela alminha de Deus nunca teve sossego! Sempre ralado, sempre aflito, sempre alguém a querer fazer-lhe mal”, palavras de Maria de Jesus».239 A intendente de São Bento achava-se, por outro lado, no direito de dispor das forças policiais a seu bel-prazer. «A Tia Maria recorria com frequência para pequenos recados, servi- ços e compras [a] dois agentes da PSP à paisana que alterna- vam em serviço na casa de Salazar», testemunhará Micas.240 O mesmo sucedia com os membros da PIDE encarregados da segurança pessoal do presidente do Conselho, quando o ditador e a sua funcionária se encontravam no Vimieiro. Segundo ouviu contar Francisco Elmano Alves, que foi de- putado nos anos 60 e viria a ser o último presidente da Co- missão Executiva do partido da ditadura, Maria de Jesus terá recorrido com tal frequência aos agentes da PIDE, em Santa Comba Dão, como moços de fretes, que estes, ofendidos nas suas competências de orgulhosos cães de guarda do Estado Novo, acabaram por fazer queixa ao seu superior hierárqui- co, que por sua vez colocou o problema a Salazar, só então terminando tal abuso de funções.241

A governanta achava também que tinha uma palavra a dizer acerca dos namoros das moças da casa, fossem as cria- das, fossem, mais tarde, quando chegaram à adolescência, as pupilas. Nessa matéria, apesar de mais nova, Maria Antónia adiantou-se a Micas. Para preocupação da madrinha, que lhe financiava os estudos liceais do seu modesto ordenado (au- mentado por Salazar, em setembro de 1954, de 500 para 600 escudos mensais242 – três euros na moeda atual, mas que, de- 144 A Governanta duzindo a inflação, correspondiam na época a um poder de compra equivalente a 300 euros), a jovem manifestava um espírito mais independente, quiçá até inconformada com a disciplina de internato feminino imposta por Maria de Jesus, enquanto a tia Micas permanecia muito ligada aos adultos da casa, sobretudo a Salazar. É esta que desfia as suas memórias: Ainda adolescente, [Maria Antónia] arranjou um namora- do [...]. A minha sobrinha frequentava o [Liceu] Maria Amália Vaz de Carvalho, e ele trabalhava num stand de automóveis quase em frente [presumivelmente da Ford]. O namoro de- pressa evoluiu para uma arrebatada paixão física, mas tudo isso a Maria Antónia ocultava à sua tia e madrinha – e logo também ao Senhor Doutor. Ela era arredia, rebelde até, in- conformada com a disciplina de São Bento, e achava que não tinha de dar satisfações a ninguém lá em casa (por vezes nem cumpria as tarefas que lhe eram atribuídas pela Tia Maria, exe- cutando-as eu para a proteger). É claro, contudo, que a Tia Maria sabia que havia mouro na costa: bastava atentar às sessões noturnas que a sobrinha fazia ao telefone. Ocultar o namoro à senhora não era uma atitude sensata, porque a poderosa governanta de Salazar ti- nha maneiras de o descobrir. Quem organizou as diligências para a vigilância e a recolha de informação, a pedido dela, foi Nogueira da Silva, e em breve estava tudo deslindado: a Maria Antónia andava a faltar às aulas para ir namorar para o Jardim Botânico e o Príncipe Real. Pior ainda: o rapaz (por sinal, uma simpatia) pertencia aos movimentos de oposição ao regime do Estado Novo. Houve escândalo na residência: então andava a Tia Ma- ria a pagar do seu bolso os estudos da afilhada para ela trocar as classes por práticas libidinosas com um homem que, para mais, conspirava contra a situação? Era sincero o desgosto da governanta e genuína a sua fúria. A Maria Antónia é que não D. Maria, companheira de Salazar 145

esteve com meias medidas: após discutirem as duas, tão zanga- da com a madrinha como esta com ela, pegou na trouxa e foi para casa dos pais, que se tinham entretanto fixado no bairro social da Ajuda. Recordo-me que fui nesse dia acompanhar a minha so- brinha até Santos, onde apanhou o autocarro para a Ajuda. A sua saída de São Bento coincidiu com uma das idas do Senhor Doutor e da Tia Maria para o Vimieiro – e desta vez fiquei em Lisboa. No dia seguinte, recebi um telefonema da Tia Maria a pedir-me que fosse levar a casa da Maria Antónia a sua almofa- da preferida, que ela havia deixado para trás. A lembrança fora do próprio Senhor Doutor, que, apesar de maçado e ressenti- do com toda esta história, a ponto de não ter querido assistir à rotura da sua pupila rebelde, ainda mantinha por ela uma ponta de afeto. A Maria Antónia é que nunca correspondeu ao gesto conciliador: jamais voltou a pôr os pés em São Bento e nem sequer nos participou o seu casamento (com o homem que foi a razão da sua fuga – como eu só soube muito depois) ou o nascimento, logo a seguir, da filha. Tudo isto, como é lógico, com grande ofensa da sua madrinha. Direi que a Maria Antónia passou, também ela, para a oposição.243

Estava-se em meados da década de 50, e Micas acabou por não querer ficar muito mais tempo sozinha em São Ben- to. Só que, quando arranjou um namorado, Manuel Rita, com quem viria a casar, adoptou estratégia diferente da da ex-companheira: Ao contrário da Maria Antónia, eu seguia a ordem esta- belecida em São Bento, e logo confidenciei à Tia Maria a mi- nha nova paixão. É claro que a sua primeira atitude foi tirar informações sobre o meu pretendente. E as informações não 146 A Governanta

foram nada auspiciosas: não que o Manuel fosse um perigoso subversivo, mas o pai, antigo proprietário de uma fundição em Olhão, tinha andado em reviralhos contra o regime saído do 28 de Maio, fizera bombas na sua fábrica, tivera de se refugiar da polícia em Baleizão, no Alentejo, e chegou a estar preso na cadeia do Aljube, em Lisboa. Eram histórias antigas, o senhor, coitado, até já morrera, mas no pensamento da Tia Maria seria mais do que provável ele ter legado um qualquer gene revolu- cionário ao filho, dentro daquela lógica de que «se não foste tu, foi o teu pai». Por muito preocupada que a Tia Maria tivesse fi- cado, é curioso que o Senhor Doutor, antes mesmo de conhecer o Manuel, tenha depositado suficiente confiança nele para o au- torizar a entrar em São Bento e a namorar comigo nos jardins, em vez de andarmos pelo exterior em arroubos amorosos.244 As reservas da governanta não demoveram Micas, que ao fim do regular período de enlevo marcou casamento. Mas antes seria obrigatório que a mãe do noivo obtivesse o acor- do de Salazar e de Maria de Jesus, até porque a pupila ambi- cionava realizar a cerimónia na residência oficial. Marcada uma reunião a três em São Bento, a governanta não ficou satisfeita com a conversa, ainda segundo o relato de Micas: No encontro, que durou cerca de uma hora, foi relembra- do o passado inconveniente do pai do Manuel, e depois de a senhora ter partido assisti à interpelação do meu tutor pela Tia Maria: – Ó Senhor Doutor, então a pequena vai casar com uma pessoa cujo pai é contra a situação, que andou fugido à justiça pelo Alentejo e que chegou a estar preso no Aljube? Mas ele, fleumático, arrumou logo a questão: – Ó Maria, em cada mão temos cinco dedos e cada um de- les é diferente, tanto no tamanho como na função. O pai é um e o filho é outro. Não tem importância. D. Maria, companheira de Salazar 147

Perante o nihil obstat do Senhor Doutor, escolhi o oratório da residência para ser celebrado o matrimónio e a sala de jantar do rés do chão para o banquete. Os meus padrinhos acabaram por ser o casal Nogueira da Silva. Não que fosse essa a minha intenção inicial: pelo menos no que respeita ao padrinho, é claro que eu teria gostado de convidar o Senhor Doutor. Mas, por respeito e acanhamento, faltou-me a coragem. Foi um erro, já que, depois de obter o compromisso dos Nogueira da Silva, a Tia Maria veio-me com esta conversa: – Sabes? O Senhor Doutor ficou muito admirado por não o teres convidado para padrinho de casamento. Bem arrependida fiquei, mas na altura já não podia recuar. A minha concunhada bem podia ter-me dado a entender, an- tes, a disponibilidade do Senhor Doutor. Mas era assim o seu feitio. Não havia nada a fazer».245

A governanta continuou a desempenhar o papel de juíza matrimonial pelos anos fora. António Dias, um cantoneiro da Freixiosa e vizinho da antiga casa dos pais de Maria de Jesus, recorda-se de um jardineiro ter sido transferido para fora de São Bento porque ela não apreciava o namoro dele com uma criada da residência, originária da terra.246 Outra criada natural da Freixiosa era Otília Oliveira, que na verdade foi levada por Rosalina para trabalhar sob as or- dens da irmã em São Bento. «A Rosalina tinha ido à Freixiosa para a apanha da azeitona, que era dela e da irmã», vasculha Otília na sua memória. «Eu fui participar na apanha e ela fi- cou encantada com o meu trabalho. Pediu então ao meu pai que me deixasse vir para Lisboa. Ao princípio ele estava re- nitente, mas como éramos nove irmãos numa família muito pobre acabou por autorizar. Já vinha com a ideia de ir para 148 A Governanta

São Bento, mas era preciso deixar sair primeiro uma rapariga que lá estava, e por isso ainda estive uns oito dias em casa da Rosalina a aguardar que vagasse o lugar. A minha primeira impressão é que a D. Maria era muito rígida, mas comigo não foi o caso, foi uma pessoa maravilhosa».247 Otília valoriza a circunstância de Maria de Jesus lhe ter permitido a fuga à endémica carência de Penela, mais do que o policiamento que a governanta fazia dos seus derriços epis- tolares: «Ela gostava muito de saber dos meus namorados e dos das outras raparigas. Havia um envelope grande e com- prido, com o nome da D. Maria, no sítio da entrada de São Bento, junto ao portão, onde estavam os polícias, para ser colocada toda a correspondência que ia chegando. Depois o envelope, fechado, era-lhe entregue, e ela é que o abria, ti- rava de lá o correio e o distribuía por mim e pelas outras. Assim controlava toda a correspondência para nós. Às vezes, de torta que era, retinha o envelope durante uns três dias. Mas nós também não éramos parvas: com o vapor de uma chaleira, abríamos o envelope, tirávamos as nossas cartas e púnhamos lá outras, já antigas. Se eu não tinha carta para lá pôr, já sabia que ela acabava por me vir atazanar: “Então, Otília, há tanto tempo que não recebes carta do Lúcio...”»248 Num regime de sombras e enganos, para se sobreviver ludibria-se – mas também se é ludibriado. Até Salazar, para assegurar a confidencialidade da sua correspondência parti- cular, precisava de iludir a vigilância, não da governanta, mas – pasme-se! – da polícia política por ele criada e tutelada – e desta vez Maria de Jesus era não vítima mas cúmplice da ilu- são. Contá-lo-ia Christine Garnier, já liberta da censura que o ditador fez ao seu livro na década anterior: D. Maria, companheira de Salazar 149

Durante as minhas longas ausências, [eu e Salazar] não cessávamos de nos corresponder: uma carta ou duas por sema- na. Eu contava-lhe tudo – ou quase. Endereçava as minhas car- tas em duplo sobrescrito a Maria, para a sua morada privada, no número 28 da Calçada da Estrela, o que nos evitava as in- discrições da polícia internacional. Salazar escrevia-me para a caixa postal que lhe indicava, falando das galinhas e da horta de Maria, das suas preocupações governamentais, da sua melan- colia crescente, das camélias que floresciam sem ele na quinta249 do Vimieiro, porque ele não tinha lá voltado – por questões de segurança, segundo creio –, à pobre casa das nossas férias. Im- plorava-me que pensasse na minha saúde e na minha alma, e inquietava-se regularmente quanto à data do meu regresso. O francês usado por ele era perfeito. Maria acrescentava sempre alguns rabiscos inábeis, infantis, em português, e terminava por «os beijos da sua dedicada serva». Fora Salazar que a en- sinara a ler e escrever [Micas, como vimos, conta porém que a governanta teve nos anos 30 uma professora particular para tirar o diploma da escola primária].250 E nessa época, já com Salazar e Maria de Jesus septua- genários, Otília é testemunha de que a governanta em nada diminuíra a intensidade do seu permanente estado de aler- ta perante as mulheres: «Ela era ciumenta quando vinham senhoras de visita ao palacete. Em particular havia uma de quem ela não gostava muito, Virgínia Quevedo Crespo, que vivia em Viseu e quando enviuvou do marido, médi- co no Porto, passou a aparecer muitas vezes em São Bento. A Christine Garnier também aparecia. E havia uma Cristia- na que ia lá almoçar todos os domingos e estava de beicinho pelo dr. Salazar, mas para mim aquilo já era mais conversa do que outra coisa».251

Capítulo 8

Chez Maria

D. Maria, companheira de Salazar 153

aria, o telefone é só para coisas urgentes e para dar -Mrecados, não para essas conversas. Micas assistiu a constantes advertências como esta, de Sa- lazar à sua governanta, para se moderar nos contactos telefó- nicos. Mas para Maria de Jesus o telefone era uma tentação, talvez mesmo o seu maior vício, o que deixava o chefe do Go- verno alarmado com os gastos. «Pouco importava», acrescen- taria a pupila. «Havia sempre um sentimento de urgência na frequência com que a Tia Maria recorria ao telefone. Nem que fosse para ouvir um conselho culinário ou aprender um novo prato».252 Dacosta ouviu de Mavilde Araújo, uma aprendiz de cozinheira que trabalhava sob as ordens do governanta (con- fecionando pratos iguais aos dela mas para a criadagem)253, a mesma preocupação: «Maria de Jesus servia-se permanen- temente do telefone. Preocupado com as contas, o senhor doutor andava sempre em cima dela: “Maria, tenha cuidado com esse aparelhozinho, olhe que isso conta muito!’’, recorda Mavilde Araújo».254 Apesar de as sobremesas doces não serem o forte de Sa- lazar, Maria de Jesus interessava-se por esse género culiná- rio (como por todos os outros), e Micas verificou que ela «aprendeu muita doçaria por telefone»:255 Mas, para isso, precisava da ajuda do homem da casa. Guar- do, escrita a lápis pela mão do Senhor Doutor, a receita de um bolo que desconheço como surgiu, mas imagino-o a passar ao 154 A Governanta

papel aquilo que a governanta ouvia ao telefone e lhe ditava: «200 gr. de farinha, 4 ovos, 100 gr. de manteiga ou margarina, 20 gr. de fermento ou farinha e fermento e leite. E faz-se um pão que se deixa levedar. Depois de levedo põe-se numa tigela e vai-se pondo um ovo de cada vez e batendo como quem faz sonhos. Depois põe-se a manteiga derretida. Buraco no meio. Deita-se na forma e deixa-se levedar segunda vez. Uma hora ou hora e meia. Meia hora está cozido. (Em vez do sal, uma colher de açúcar quando se quer fazer um bolo e 150 gr. de corintos). E deita-se chantili no buraco. 1,5 dl de rhum».256 Esta imagem de Salazar a secretariar a sua governanta es- pantou mais do que um observador da vida quotidiana de São Bento. Descreveu Manuel Guimarães, num artigo publicado no Diário de Notícias acerca dos hábitos gastronómicos de São Bento, circunstância idêntica, situando o telefone no vão da escada (enquanto Micas se lembra de o ver na biblioteca): «D. Maria telefonava, à noite, desse recanto, que partilhava com o presidente. Salazar, ao lado, lia ou escrevia. Prestava discreta atenção às atividades da governanta, que telefonava agradecendo gentilezas desta ou daquela senhora, mais ínti- ma da casa. De vez em quando, havia consultas gastronómi- cas, e uma ou outra amiga – sempre da alta burguesia ou das grandes casas de família – dava-lhe, por telefone, conselhos culinários e receitas que D. Maria estava interessada em ten- tar fazer na sua cozinha. Mulher de poucas letras, Salazar to- mava o apontamento que a própria repetia pausadamente ao telefone, como se fosse ela mesma a escrever».257 Se em algum ramo se mostrou acertada a aposta de Sa- lazar em Maria de Jesus, foi sem dúvida na culinária. Com o correr do tempo, e sem nunca perder a vontade de aprender, a governanta tornou-se cozinheira exímia e primorosa: «D. Maria, cuja argúcia e sagacidade não passaram despercebi- das aos poucos que com ela privaram de perto, revelou-se na D. Maria, companheira de Salazar 155 gastronomia, mais do que uma boa cozinheira, uma autên- tica intérprete do caprichoso paladar do Presidente, que ela muito bem conhecia».255 Talvez o paladar de Salazar fosse mais elementar que ca- prichoso, mas isso não obstou a que a governanta-cozinheira ousasse avançar pelos caminhos da sofisticação. Micas cons- tatou-o desde logo: O Senhor Doutor estava certo na perceção dos talentos gastronómicos da governanta, que com os anos se tornou numa cozinheira que honraria o melhor restaurante da capi- tal. Sempre atenta ao que podia melhorar a sua arte culinária, recolhia informação por toda a parte e aconselhava-se muito com as senhoras que visitavam o palacete. Aprendeu mesmo a elaborar receitas sofisticadas, para lá do gosto básico do Se- nhor Doutor, como umas galantines que jamais me saíram da memória gustativa. A Tia Maria também se havia especializa- do em preparar faisão, que de vez em quando alguém enviava de oferta para São Bento. Ela ia comigo para as capoeiras de- penar o animal. Depois elaborava um molho especial, idêntico ao escabeche, com que conservava a ave, metida inteira num largo frasco. Comia-se em qualquer altura, mas não era petisco pelo qual o Senhor Doutor tivesse especial inclinação.258 Eram as tais «experiências» das quais, a Christine Garnier, o ditador se confessara «vítima». E outros o confirmariam: «Salazar detestava soufflés e todo o tipo de cozinha elabora- da».259 Maria de Jesus, por seu lado, receava um retrocesso: «Por vezes afligia-a o regresso do presidente à sardinha frita com salada de feijão-frade, que lhe fazia lembrar a casa pater- na, onde a sardinha era repartida por dois, e mais tarde a mi- séria do Seminário de Viseu, que, em seu entender, era mais que franciscana».260 Por isso a governanta não se poupava a 156 A Governanta esforços para «educar» o palato do presidente do Conselho: «Salazar, que afirmava não gostar de coelhos, comia-os (e apreciava-os) sem saber, no entanto, que os comia. D. Ma- ria disfarçava-os com molhos, temperos, condimentos, ervas aromáticas – que ele não detetava. “Tinha a mania que era muito esperto, mas nós enganávamo-lo com facilidade”, con- fidenciava-me Maria de Jesus.»261 (Felícia Cabrita escreverá porém que, em Santa Comba Dão, «Salazar pelava-se por um arrozinho de coelho do monte, e era ela [a governanta] quem tratava com Armando Santos, que trabalhava na quinta [das Ladeiras] desde os 17 anos, da caçada»).262 Os últimos retoques nos pratos servidos a Salazar eram dados pela própria governanta na copa situada no 1.º andar do palacete (junto à sala de jantar particular), para onde a comida era enviada da cozinha através de um pequeno mon- ta-cargas.263 Precisará Otília Oliveira: «À refeição, os mimi- nhos, as coisas mais delicadas, eram preparados na copa».264

Mas com Salazar seria sempre necessário regressar às coisas elementares e ao sabores autênticos, pois eram esses gostos da província que ele nunca haveria de abandonar. E os amigos e apoiantes espalhados pelo país fora, sempre desejo- sos de lhe agradar, faziam por corresponder a tais apetites: «A governanta nem precisava de se preocupar muito com o recheio da despensa, porque o que não faltava em São Bento eram vitualhas oferecidas por admiradores de norte a sul do país. Do Alentejo, alguém enviava uns biscoitos deliciosos. Da mesma região vinham também pinhões, ameixas e trou- xas remetidos por uma das eternas apaixonadas do Senhor Doutor, Maria da Conceição Santana Marques. Uma senho- D. Maria, companheira de Salazar 157 ra já idosa da família Nunes Mexia [...] produzia uns biscoitos em forma de gancho que o chefe do Governo muito aprecia- va para acompanhar o seu chá preto (ou verde, com menor frequência). De Viseu vinham uns magníficos doces de ovos moles tostados na cobertura [Deverá tratar-se de um envio do casal Quevedo Crespo, a que também terá aludido Ma- nuel Guimarães: «Uma família amiga de Viseu mandava-lhe, de quando em quando, castanhas de ovos, que o presiden- te comia com prazer»].265 Nogueira da Silva encomendava o primeiro salmão pescado no rio Minho, remetido de Bra- ga e embarcado em avião no Porto, que chegava ao palacete acondicionado em caixas de madeira com gelo e ervas muito frescas, e que o Senhor Doutor gostava de comer cozido com molho de manteiga salpicado de salsa. O dono da Casa da Sorte era também responsável pelas enormes remessas de pão de ló de Margaride que devorávamos com prazer».266 O envio da produção temporã retomava o costume me- dieval de oferecer à Igreja ou ao senhor feudal a colheita ini- cial: «De norte a sul, Salazar era lembrado em tempo de pri- mícias. Do Minho enviavam-lhe as primeiras lampreias e os primeiros salmões, pescados em cada ano. [...] Gostava muito de morcelas assadas no forno e apreciava as alheiras que lhe mandavam de Mirandela familiares de [Joaquim] Trigo de Negreiros, antigo ministro e amigo pessoal do professor de Coimbra. Os saborosos enchidos alentejanos eram-lhe envia- dos regularmente por um amigo, médico de profissão, resi- dente em Elvas».267 E Arminda Lacerda conta a Christine Garnier o episódio da «truta grande» de Santa Comba: Há algum tempo, o barbeiro do Vimieiro detetou no Dão uma truta soberba. Conhecendo os gostos do presidente, pas- 158 A Governanta

sou longas semanas à beira do rio, na esperança de pescar o peixe. Sem o conseguir, foi ter com camponês considerado o pescador mais dotado da zona. «Se me conseguires apanhar aquela truta», disse o barbeiro num rasgo de generosidade, «faço-te a barba de graça durante um ano». O camponês, sedu- zido pela proposta, foi logo preparar as suas linhas e colocar-se na margem. A truta em causa devia ser muito esperta, porque se passaram longos meses sem que o homem conseguisse ven- cê-la. A Maria dizia-me de vez em quando: «Ainda não conse- guiram pescar a truta grande». Até que um dia, ao almoço, que é que apareceu sobre a mesa do presidente? A truta, a famosa truta. E o pobre barbeiro teve de escanhoar o pescador triun- fante 365 vezes de borla...268 Ainda outro relato convergente: Amigos de Viseu, Santa Comba, Elvas e Braga enviavam- -lhe todas as semanas cestos recheados de carnes, fumeiros, enchidos, hortaliças, pães de ló, broa, queijo, vinho, azeite [...]. Havia sempre que fazer na cozinha de São Bento. Com- potas, perdizes, salgados, doces. «Trabalhávamos todo o ano para todo o ano», explica Mavilde Araújo. «Recebíamos mui- tas visitas, pelo que não podíamos facilitar. As ementas eram decididas pela D. Maria, de véspera. O senhor doutor gostava muito de linguados grelhados e sardinhas assadas. Era perdido por arroz de ovos, costeletas fingidas, lombo rico, bacalhau de capote, tudo coisas inventadas pela senhora. Ela foi uma das melhores cozinheiras que conheci. [...] D. Maria almoçava, quando Salazar tinha convidados, depois dele. Geralmente so- zinha. [...] A princípio as refeições constavam de dois pratos, depois de um só. Ela bebia tinto Dão, como ele. Apaixonados por caldo verde, comiam-no todos os dias, ao almoço. Quando estavam sós repetiam a dose, eram muito sopeiros».269 D. Maria, companheira de Salazar 159

As sopas remetem de novo para as raízes, e nisso irma- nam-se Salazar e Maria de Jesus: «Salazar comia sopa a todas as refeições como qualquer português do Norte que se pre- za, e a governanta era catedrática na matéria. O caldo-verde e a sopa de nabiças eram as preferidas, as únicas dignas da broa de Santa Comba, esfarelada. Para além destas, D. Maria entendia-se maravilhosamente com a sopa de cebola, uma receita pessoal de resultados surpreendentes. Quem com ela conviveu recorda, ainda hoje, com saudades, uma torta de bacalhau desfiado, a sua interpretação pessoal da bola de Chaves, e, sobretudo, o magnífico esparregado, que Salazar apreciava muito particularmente».270 Sublinhe-se ainda que a governanta «fazia uma canja deliciosa de ossos de peru moí- dos e uma outra canja de efeito excelente com as espinhas e as barbatanas de bacalhau, que os fornecedores lhe enviavam já aparadas e em embalagem própria».271

Quanto ao próprio Salazar, «nunca cozinhou, nem tinha tempo para se preocupar com a labuta das cozinhas», confir- ma Manuel Guimarães. «Elogiava a comida quando lhe agra- dava e apontava-lhe os defeitos quando era caso disso, com grande mágoa de D. Maria, que se esforçava por cozinhar bem e barato, ao gosto de Salazar, que perguntava sempre o preço dos alimentos e adorava calcular o valor em escudos daquilo que lhe era servido nos pratos».272 A questão orçamental era um constrangimento para Maria de Jesus, já que, segundo o mesmo autor, ela nunca poderia ultrapassar em despesas um quarto do salário do presidente do Conselho. Também por isso era crucial a ida da governanta ao mercado: «Nas com- pras, ela ia ver qual era a sardinha e o carapau mais baratos».273 160 A Governanta

Dadas todas estas circunstâncias, apesar dos prodígios de Maria de Jesus na cozinha, não se pode falar num festim quotidiano. De resto, as preparações mais opíparas estavam reservadas a outrem: «Os banquetes oficiais, raros, mas na- turalmente mais concorridos, tinham lugar na sala grande [a sala de jantar do rés do chão, com lugar até cerca de 30 con- vivas], e o serviço era feito por pessoal do Hotel Aviz, onde brilhava o célebre cozinheiro João Ribeiro, afinal o espontâ- neo mestre de cozinha da felina D. Maria, que nunca o perdia nestas andanças gastronómicas.274 (A boda do casamento de Micas terá sido uma das raras refeições – se não a única – que a governanta confecionou para esta sala).275 Não havia porém reciprocidade, pois era impossível ar- rancar Salazar da mesa de São Bento a não ser para banquetes oficiais: «Apesar deste assédio gastronómico, sabe-se que Sa- lazar não aceitava convites para almoçar ou jantar em casa de amigos. Julgo mesmo que nunca teria entrado num restau- rante e muito menos tomado nele uma refeição. Quando via- java, munia-se de um farnel cuidadosamente preparado pela D. Maria. Quando lhe apetecia, comia-o à sombra de uma ár- vore, dentro do carro».276 Havendo à vista melhor alternativa ao farnel, o chefe do Governo não hesitava: «Como a maior parte dos portugueses, apreciava sardinha assada, sobretudo quando acompanhada pelos [...] pimentinhos pequenos que lhe chegavam da Beira, no [...] cesto que mandava buscar aos Caminhos de Ferro. Um dia, durante uma merenda campes- tre [...], pediu mesmo à governanta que fosse trocar o frango corado, que trouxera de casa, pelas sardinhas assadas que uns pedreiros preparavam ali perto, entre tijolos, para o seu al- moço».277 A governanta sabia corresponder à inclinação do pa- trão por sardinhas, mas apontando para certa época do ano: D. Maria, companheira de Salazar 161

«D. Maria guardava as sardinhadas para os meses de verão, normalmente agosto e setembro, que o presidente passava no Forte de Santo António. Era nessa altura que Salazar lem- brava o bacalhau assado com batatas a murro e os bolinhos de bacalhau, receita de Penela, uma das poucas prendas gas- tronómicas que D. Maria fazia remontar às suas humildes origens».278 A asa protetora de Maria de Jesus cobria sempre Salazar, como seu anjo da guarda. Quando ele ia para o Forte de São João do Estoril, o que passou a suceder após os anos da Se- gunda Guerra Mundial, ela acompanhava-o. O mesmo em relação ao Vimieiro. Foi no triângulo São Bento-São João do Estoril-Vimieiro que ele sempre viveu enquanto esteve no poder, e ela com ele. As ausências da residência de Lisboa não eram tão raras quanto se possa pensar. Uma consulta à agenda diária do ditador, anotada em grande parte por ele e que sempre preservou, indicam que as ausências de Lisboa podiam, ao fim do ano, totalizar perto de dois meses.279 Mas no forte Salazar continuava a trabalhar como se estivesse em São Bento, reunindo até com os seus colaboradores, e no Vi- mieiro recebia e enviava o despacho diário. A Maria de Jesus competia tudo fazer para que ele, em qualquer dos vértices do triângulo, se sentisse sempre em casa. Depois de iniciar o dia com um pequeno-almoço de café de cevada (por vezes chá) com torradas simples, sem leite nem manteiga, a governanta iniciava as diligências respei- tantes à intendência da casa280 – uma rotina de quase meio século, sete dias por semana, apenas interrompida por raras doenças e por uma ou outra viagem. 162 A Governanta

Tudo se mantinha, por exemplo, no Forte de Santo An- tónio, que estava entregue ao Instituto de Odivelas, para fi- lhas de oficiais do Exército, e ao qual Salazar pagava o aluguer mensal correspondente ao período da sua ocupação (porque, segundo Sollari Allegro, a lei previa «que o presidente do Conselho tivesse direito a residir num edifício do Estado mas não em dois»).281 Relata António da Silva Teles, um dos últimos secretários particulares do ditador: «Após professo- res e alunas [do Instituto de Odivelas] partirem para férias, [o forte] era cedido, quase nu, ao Chefe do Governo, que lá passava a quadra estival, entrando, amiúde, pelo esplên- dido outono do Estoril, cujo outubro, repousado, quase sem brisas, lhe era particularmente caro. Da casa da Rua da Im- prensa à Estrela, em Lisboa, iam os móveis estritamente in- dispensáveis à instalação. Chegava-se a julho e a governanta, Maria de Jesus, ia tratando dos preparativos para a mudança. Até que esta ocorria, geralmente perto de agosto. E, então, os hábitos de trabalho da casa de Lisboa transferiam-se para o Forte de Santo António do Estoril. Lá se deslocava, todas as manhãs, um secretário».282 Completa Micas: «Repetia-se [...] o preceito, seguido pelo Senhor Doutor desde início, de levar de Lisboa tanto a roupa de casa como a louça e os talhe- res, pois fazia questão de não utilizar o recheio do forte».283 E ainda: «Na medida do possível, as rotinas de São Bento mantinham-se em São João do Estoril. Até mesmo os circui- tos de domingo, tendo como favorita a volta ao Guincho – e a observação, no regresso, das residências ilustres de Cascais. [...] Quando o tempo o permitia, a Tia Maria mandava co- locar cadeiras num terraço sobre-elevado do forte, e ali pas- sávamos longos períodos após o almoço, vendo evoluir os golfinhos que entravam na barra do Tejo em grandes grupos, D. Maria, companheira de Salazar 163 ou serões de plácido convívio ao luar de agosto, observando a Lua espelhada no oceano. Conversámos de tudo nessas noi- tes maravilhosas».284 Nos passeios dominicais, com partida tanto da residência oficial como no forte, era também habitual a comparência da governanta: «Uma volta de carro com Salazar era sempre uma fuga à rotina de São Bento. Ele aliás tinha o cuidado de me levar a passear aos domingos (porque os sábados eram então jornadas de trabalho como qualquer outro dia útil). Sentava-me atrás com ele, enquanto ao lado do motorista ia o agente da PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado ou, mais tarde, da PIDE, sua sucessora a partir de meados dos anos 40] que garantia a segurança do presidente do Conse- lho. Connosco passou a ir também a Maria Antónia, a partir de certa idade, e muitas vezes éramos acompanhados pela Tia Maria, que ouvia mais do que falava, ao contrário do Senhor Doutor, sempre loquaz e a comentar tudo aquilo que víamos. Nunca saíamos dos arredores da capital».285 A diferença em São João do Estoril é que se almoçava mais tarde, «à hora espanhola», segundo Paulo Rodrigues: «O meu gabinete ficava no Palácio de São Bento e eu ia des- pachar com o dr. Salazar uma vez por semana, havendo dias em que à entrada ou à saída a D. Maria aparecia para me falar, fosse na residência ou no forte. Mas aqui eu tive de arranjar amigos que almoçassem comigo perto das 15h, pois acabava o despacho depois das 14h30».286 Esta era a ocasião em que apareciam com maior frequên- cia os familiares do ditador. O seu sobrinho-neto Rui Salazar de Melo (descendente, como o seu irmão António, da irmã Laura de Salazar) costumava ir passar alguns dias ao forte: «Também iam as irmãs de Salazar, embora a tia Leopoldi- 164 A Governanta na só fosse visitá-lo. A D. Maria estava sempre presente, controladora. Era rígida nos horários: tinha de se respeitar a hora do lanche, do jantar, etc. Ele, que também lanchava, nunca se lembrava das horas».287 Como os matutinos, que Salazar demorava uma hora a ler, entre as 9h30 e as 10h30, só ao fim da manhã chegavam ao forte, pela via oficial, a governanta pedia aos prestadores de serviços que apareciam mais cedo o favor de comprarem a imprensa e a deixarem lá. O barbeiro de Salazar, Manuel Marques, contaria por exemplo que comprava o Diário de Notícias e o dava ao chefe do Governo.288 «D. Maria estabeleceu com o staff de empregadas e prote- gidas que a rodeavam um código secreto», contará Dacosta, que fala de uma série de sinais que nem a PIDE interceta- ria.289 Micas não tem memória de tal sinalética,290 mas o au- tor de Máscaras de Salazar fornece outros casos, ao nível da palavra: «Se, por exemplo, [a governanta] dizia ao telefone, quando ia com Salazar a Santa Comba, para “mudarem as flo- res da jarra da capela”, isso significava que havia alterações no percurso e nas horas de chegada. Desconfiava de que o aparelho estivesse sob escuta. Tinha muito medo de atenta- dos, de revoluções – ao contrário de Salazar, que não ligava às questões de segurança».291

Inevitável era a ida para Santa Comba da residência ofi- cial em peso, com Salazar à frente, para as vindimas das suas terras, em inícios de outubro. «Vinham sempre ao Vimieiro na altura das vindimas, trazendo também as empregadas», recorda Rui Salazar. «Salazar aborrecia-se porque a D. Ma- ria carregava sempre o carro com muita coisa. O vinho era D. Maria, companheira de Salazar 165 despachado num pipo, com açafate e palha, pela CP, mas ele e a governanta levavam também vinho em garrafas. Um in- divíduo que tinha transporte levava a criação, os produtos hortícolas, os enchidos quando matavam um porco e o peru para o Natal».292 Quando fez a sua segunda série de entrevistas a Salazar, em 1938, António Ferro visitou-o também no Vimieiro, es- tabelecendo diferenças e semelhanças com a vida diária na capital, logo à chegada. «Em vez do porteiro uniformizado, agaloado, que nos olha superiormente e nos pergunta o que desejamos, [é] a senhora Maria, dedicada servidora do dr. Salazar, que entreabre a porta e me convida a entrar: “O sr. doutor estava à sua espera”».293 Depois é a refeição: «“O al- moço está na mesa, sr. doutor”, avisa-nos a sr.ª Maria, com voz de boa nova. Dois passos e eis-me na pequena casa de jantar interior que dorme na sombra... Sento-me, por fim, à sua mesa íntima, discreta, e tomo o primeiro contacto com a fazenda de Salazar, com a sua courela, através do cal- do verde fumegante, cujo aroma sobe dos pratos como um incenso rústico».294 O vinho tem de ser de produção casei- ra: «Contrariando os meus hábitos, [...] vou experimentar o vinho que a sr.ª Maria me deitou no copo. Mas o dr. Sa- lazar corta-me o gesto. “Não beba esse... Ela enganou-se. Tenho outro aí, que julgo melhor. É aqui natural da nossa fazendinha, mas creio que se poderá beber”».295 Por último, a sobremesa: «Estamos no fim do almoço, que fechou com a chave de oiro dum delicioso pudim, obra-prima da sr.ª Ma- ria».296 Deveria ser talvez um pudim francês, segundo Ma- nuel Guimarães a «única preferência» de Salazar quanto a sobremesas doces, «e mesmo esta pouco habitual»297 (se bem que, além da marmelada, que Salazar consumia, a gover- 166 A Governanta nanta produzisse também uma gama variada de compotas, como doce de tomate, muito apreciadas mas não por ele).298 «Café nem vê-lo. Perturbava-o, e ele evitava tudo quanto pu- desse desviá-lo da sua permanente e atenta sobriedade».299 Ferro não o diz, mas a refeição poderia ter fechado com uma ginginha, outra produção caseira da governanta (coin- cidindo com a colheita do fruto e que passava por manter as garrafas em repouso compulsivo durante dois anos, mas de que o homem da casa não era entusiástico consumidor), ou então, o mais certo, um Porto: «Salazar mantinha uma curiosa relação com o vinho do Porto, que muito apreciava. Usava-o em lugar de água, durante os discursos, para molhar a palavra. A garrafa do precioso líquido era confiada ao chauf- feur do presidente, que a fazia chegar à mesa da conferência, recolhendo-a no final, a rogo de D. Maria, que no regresso a São Bento a reclamava de imediato, sem nada querer saber acerca dos sucessos da palavra do amo e senhor».300 No Vimieiro, Maria de Jesus não baixava a guarda, sobre- tudo nas relações exteriores. Desconfiava, por exemplo, das aparições de Felismina de Oliveira, professora e inspetora do ensino primário que se julga ter sido a primeira namorada de Salazar, ainda dos seus tempos de seminário: «Felismina, quando por lá aparece, mal dirige a palavra à governanta».301 José Duarte, um empregado da quinta, percebia o que estava em causa: «Só um ceguinho não via que elas se odiavam, a professora nem lhe dava palavra». Micas «percebia a tensão amorosa que se criava no Vimieiro entre as duas mulheres. Mas verdade, verdadinha, é que ali, agora, quem punha e dis- punha era Maria de Jesus, que não queria que faltasse nada ao amo. [...] Só um pobre de espírito é que não dava conta ao espreitar no olho de Maria de Jesus da adoração que ela tinha pelo patrão».302 D. Maria, companheira de Salazar 167

António Salazar de Melo revela que a sua bisavó e mãe do seu tio-avô, Maria do Resgate, ainda conheceu a gover- nanta, quando começou a trabalhar para Salazar e Cerejeira em Coimbra, aparecendo a acompanhar o filho no Vimieiro: «Ia vestida à tricana, traje que então se usava em Coimbra, próprio da condição dela. Notou-se em Santa Comba por ser uma roupa diferente da que se usava na região. As relações dela com as irmãs do meu tio não eram muito afetuosas, mas também não se pode dizer que fossem muito frias. Não havia uma relação muito próxima entre elas, o meu tio teve sempre vida própria, muito absorvente, ela não era uma pessoa da fa- mília e portanto não tinha que ter uma relação de família».303 São histórias do clã das quais, mais do que por conheci- mento direto, o sobrinho-neto ouviu falar. Tal como o epi- sódio em que Maria de Jesus recusou deixar entrar no Vi- mieiro um íntimo de Salazar: «A pessoa ia para visitar o meu tio, creio que ele estava ocupado e tinha dito à governan- ta que não estava disponível para ninguém. O visitante era muito próximo dele, e, sendo uma pessoa com bonomia, sem hesitar, entrou à mesma pela casa adentro, como se fosse da família, sempre a rir. Mas ela é que ficou muito aborrecida. Quis cumprir as ordens e foi desautorizada. Isto deve ter-se passado nos primeiros anos, se não ela já conheceria a intimi- dade daquela pessoa com o meu tio».304

O sobrinho, que, tendo nascido em 1946, se lembra de Maria de Jesus desde sempre, viu-a várias vezes em Santa Comba sem estar a acompanhar Salazar: «Não sei bem para fazer o quê. Possivelmente ou para falar com as minhas tias ou para preparar a ida do meu tio, mas especulo. Ela ia sem- 168 A Governanta pre acompanhada de uma empregada».305 Haveria também, possivelmente, mantimentos a recolher. Mas é por outro lado verdade que, em certa altura, o fundador do Estado Novo pensou em resolver, em Santa Comba Dão, o proble- ma da velhice da sua mais íntima colaboradora, empenhan- do-se para isso junto de Carneiro de Mesquita – que, além de ir dizer missa a São Bento, fora amigo de Salazar (e de Cerejeira) desde os tempos juvenis de Coimbra, em que os três trabalhavam para o O Imparcial, semanário dos estudan- tes católicos. Desvendará Franco Nogueira que, em inícios de 1954, Salazar, «desde há tempo, está preocupado com os seus pró- ximos: as irmãs, a governanta Maria de Jesus – que futuro lhe poderá assegurar?»306 O ditador pondera então adquirir nova propriedade em Santa Comba, que vai ver: «Não sentiu entu- siasmo; mas pareceu-lhe boa para o fim em vista. Poderia dei- xar o usufruto vitalício da casa à Maria de Jesus; e por morte desta passaria à Misericórdia de Santa Comba. Simplesmen- te, a propriedade está à venda por 150 contos: como obtê-los? Esteve a “deitar contas à vida”, e verifica que não tem dispo- níveis mais de 20 contos».307 É então que escreve a Carneiro de Mesquita: «Tenho [...] pensado na Maria de Jesus, a quem conviria garantir o direito a uma casa e a uns géneros para o resto da vida. Com os capitais que possui ou com uma pensão vitalícia que adquira com parte deles, desde o momento que tenha garantida casa, pão, azeite, umas galinhas, uma horta e lenha, deve poder viver. Então lembrei-me que estas pro- priedades eram óptimas para o efeito – melhores para deixar à Misericórdia de Santa Comba [...], contanto que eu pudesse deixar o usufruto, enquanto viva, à Maria de Jesus».308 Sala- zar adianta que, «depois de longa reflexão», decidiu-se pela D. Maria, companheira de Salazar 169 compra, solicitando ao amigo um empréstimo de 130 con- tos e propondo escrupulosamente as condições do abono, tal como escrupulosa fora a avaliação que pedira (ainda segundo com o relato que faz na carta). E termina: «Não se preocupe se notar a mais pequena objeção por causa do usufruto que eu desejava instituir. Se não puder ser, a operação não se fará».309 O cónego aceita na íntegra a proposta e avança com o seu dinheiro, uma poupança que se destinaria a construir um asilo para pobres, projeto assim suspenso.310 Aquirida a pro- priedade por 150 contos (750 euros, atualizados para quase 75 mil euros depois de deduzida a inflação) três semanas de- pois, o facto é que o projeto de casa para a governanta não irá para a frente. Seis anos mais tarde, ao liquidar junto de Carneiro de Mesquita a última prestação, Salazar dir-lhe-á na respetiva carta que essa será questão ainda a resolver: «Mil vezes grato pelo favor (aliás foi tolice comprar a propriedade, salvo o caso da Maria de Jesus, a ver mais adiante)».311

Uma visita a Santa Comba implicava também algumas vezes, à ida ou à vinda, uma passagem pela Freixiosa, que fi- cava mais ou menos a caminho. Maria de Jesus parece não ter mantido laços afetivos com a povoação onde nasceu: «Não tinha grandes atrativos pela terra ou pelas pessoas», garante Micas. «Ia lá talvez matar saudades, mas não se referia à Frei- xiosa e não tinha lá amigos. Fui lá com ela a um casamento de uma prima afastada, daqueles que duravam dias, e de que ela era madrinha. Foi a única vez que me lembro de ela ir à terra. E não era do género de ficar por lá enquanto o Senhor Doutor ia a Santa Comba. Era mais de parar, recolher coisas e ir embora».312 170 A Governanta

Um vizinho da casa da família, Salazar Lopo, nascido em 1908, julga-se mesmo convicto de que Maria de Jesus não dava importância a Penela, adiantando como explicação o ressentimento: «A Maria nunca fez nada pelo concelho por- que a vizinhança daqui dizia que era amante de Salazar, e por isso, como retaliação, ela não lhe pedia nada a favor da terra»313 (há porém quem ali garanta que a escola primária de Serradas da Freixiosa, surgida depois da Segunda Guerra Mundial perto da casa onde nasceu Maria de Jesus – e hoje já abandonada –, resultou de ela ter puxado os cordelinhos em Lisboa, enquanto outros juram que a iniciativa partiu de um emigrante no Brasil). É um facto que mesmo hoje a ideia da ligação íntima entre os dois prevalece em grande parte dos habitantes locais: ninguém tira da cabeça a António Dias, nascido em 1926, que a sua conterrânea «era criada para todo o serviço».314 As paragens de Salazar e Maria de Jesus na terra estão registadas na memória local: «Quando, pelas festas natalícias, partiam para o Vimieiro, acompanhados pela Micas e a Ma- ria Antónia, faziam sempre uma paragem na taberna do Ma- chado, na Freixiosa [...]. Hermínia da Conceição já conhecia os costumes da mulher, e mal os avista na estrada põe uma panela de água ao lume. Quando Maria entrava na casa de pasto, já a outra tinha o saco de plástico preparado e saía a correr para com ele aquecer os pés do presidente do Conse- lho, que nunca abandonava o carro nem para desentorpecer as pernas. De seguida, Maria de Jesus fazia uma visita rápida à eira onde vivia a família enquanto ele a esperava, paciente, no carro».315 Celeste Bento, neta da mulher da casa de pasto, confirma que a avó, mãe da sua mãe, aquecia água para o que devia ser não um saco de plástico mas uma botija de cerâmi- D. Maria, companheira de Salazar 171 ca: «Eles passavam aqui quando vinham de Santa Comba. Sa- lazar ficava sempre no carro, com a botija de água quente».316 António Dias lembra-se de, numa dessas paragens, alguns habitantes terem interpelado o presidente do Conselho: «Ele ficou no carro com o motorista. Falámos-lhe das nossas mi- sérias. E ele: “Sim, eu vejo isso”. Isto deve ter sido no tempo da guerra».317 Certo é que, fazendo escala na Freixiosa, o carro de Salazar não partia vazio. Maria de Jesus recolhia sobretudo produtos alimentícios, para consumo em São Bento. «Era rapinadora, levava tudo de todos, sobretudo aos velhos, criação, vege- tais, etc., dizendo que era um favor que estavam a prestar ao dr. Salazar», protesta o morador centenário. Mas outros têm memória diferente: «A gente é que lhe queria dar, às vezes ela até nem queria aceitar», defende Maria José. E recorda ainda, afinal, algumas ajudas individuais: «Ela mandava coisas para a gente, com papel a indicar para quem eram: “Isto é para a prima Albertina, de Vouzela”. Mandava sobretudo roupa para as crianças e mercearias».318 Quando Salazar não passava, mandavam-se os produtos por encomenda, de autocarro. Ou ia o motorista da Presi- dência do Conselho recolhê-los: «O sr. Furtado vinha cá com o carro da Presidência buscar as coisas».319 E que produtos de Penela podiam interessar a Maria de Jesus? «Mandávamos feijão, grão, alfaces, fruta (como cerejas), o que criávamos na fazenda», lembra Maria José. «Quando ela recebeu um feijão tenro e com a vagem muito comprida, mandou dizer: “Até levei ao senhor doutor para ele ver”».320 E no automóvel do chefe do Governo a governanta «levava erva para os coelhos, cabeças de nabo e milho», acrescenta ainda a mesma mulher. «Ela até me deu uma vez cinco escudos quando estavam a 172 A Governanta carregar o carro. Não era Salazar que levava o carro cheio, era ela. Ele uma vez disse-lhe: “Ó Maria, tu pareces como os ciganos, levas aí tanta coisa”. E ela: “Ó senhor doutor, lá tudo faz conta para a criaçã”».321 Completa António Dias: «Além de batatas, davam-lhe queijos da terra e criação morta, que ia em sacos, porque não havia frigorífico».322 Mantiveram-se ainda as terras da própria família de Ma- ria de Jesus, que, com a morte dos pais e a emigração dos ir- mãos, estavam a cargo dela e de Rosalina. «Quem lhes tratava da agricultura era um Dinis Reis, que era sacristão, agricultor e tinha um café»323, explica José Santos, um enfermeiro nas- cido na Freixiosa nos anos 40. David Reis, filho do sacristão, recorda-se de o pai tomar conta dos terrenos de Maria de Jesus, de em rapaz lhe ir levar coisas a São Bento e de a mãe visitar a governanta várias vezes em Lisboa: «Mas não se fa- lava muito dela lá em casa».324 Otília de Oliveira menciona um dos produtos dessas courelas: «Eu e o sr. Furtado íamos buscar a azeitona a Penela».325 Havia de facto outra coisa de que Dinis Reis se encar- regava e que parecia ser o que mais interessava a Maria de Jesus na sua terra: a produção de azeite a partir das oliveiras da família. Muita gente na Freixiosa afirma ter participado nessa operação: uns na apanha da azeitona, outros no despa- cho do azeite para a capital. A Maria Marta Correia, nascida em 1924, coube o envio do líquido através da camionagem Claras, de que o pai era agente local: «A azeitona era apanha- da de dois em dois anos. O azeite era feito no lagar de outra família. A produção era de 40 a 50 litros. A lata com o azeite, de cor verde, tinha um cadeado que só podia ser aberto em São Bento. O despacho era feito para a garagem dos Claras em Lisboa, e depois a D. Maria mandava ir lá buscar».326 D. Maria, companheira de Salazar 173

A governanta concedia ainda a algumas das mulheres da terra o privilégio de uma visita a São Bento, ou até de uma estada por alguns dias. Maria José foi uma das beneficiadas: «Fui a Lisboa quando a Maria Antónia, filha da Rosalina, fez 18 anos. Lembro-me de ver Salazar sentado à cabeceira da mesa usada só para o servir e de ele nos perguntar: “Vocês já lancharam?” “E bem”, disse a Rosalina. “Então e quem é esta rapariga aqui?”, perguntou ele apontando para mim (eu estava tão envergonhada...). E disse a D. Maria: “Estás envergonha- da porquê, filha? Não estejas. Aqui somos todos irmãos”. Ela aproveitava azeitonas de uns zambujeiros que havia em São Bento, e Salazar disse-lhe: “Ó Maria, não apanhes isso”. E ela: “Ó sr. dr., isto misturado com as minhas azeitonas dá um azeite muito bom”. À noite ele lia enquanto a D. Maria rezava. Ela foi a uma matança de porco no Alentejo e só regressou já com os enchidos todos feitos. Entretanto Salazar reparou que nós tínhamos almoçado mal. Foi buscar a chave da despensa e dis- se às criadas: “Comam tudo o que lá está”. Quando a D. Maria regressou do Alentejo ralhou com as criadas por causa disso. Se era mandona? Mas as criadas tinham de ser mandadas».327 Daí a impressão recolhida por Leonor Dias, a modista das mulheres da casa quando Salazar e comitiva mudavam para o Forte de Santo António: «Aquelas raparigas eram infeli- zes».328 A costureira percebeu logo o que ali se gastava (ou antes, não gastava), ao reparar que as batas das criadas eram confecionadas com o tecido mais barato do mercado: «Cha- mávamos-lhe “riscado de Camões”, e era só utilizado para os forros das fardas dos canteiros, que eram em cotim. E mes- mo assim estavam apassajadas».329 Leonor Dias foi severa na avaliação da governanta: «Adoptou o estilo de Salazar e tor- nou-se ainda mais económica do que ele. Quando fazia um vestido novo, recuperava os botões dos velhos. É uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém. Aquilo parecia mal, 174 A Governanta porque as pessoas reparam sempre nessas coisas, e eu às ve- zes dizia-lhe, mas ela não dava saída».330 A modista começou por receber a governanta no seu ateliê de Oeiras, mas a agitação causada obrigou à mudança de planos: «Vinha no automóvel da Presidência [do Conse- lho], com chauffeur, e aquilo deu azo a um rodopio de visitas da vizinhança a minha casa, a pedir-me para lhe meter uma “cunha” a propósito de tudo e de nada. Ora eu era incapaz disso, e senti-me incomodada […]. Acabei por perguntar à D. Maria se não era preferível que fosse eu a ir ao Forte de Santo António, fazer-lhe as provas».331 Uma mulher «de poucas conversas, que sabia o que que- ria e não gostava de ser contrariada» – assim viu Leonor Dias a castelã de São Pedro do Estoril, confirmando a impressão geral. «Mesmo quando me pedia uma opinião era só para ter uma confirmação da opinião dela».332 Capítulo 9

A caixa do correio

D. Maria, companheira de Salazar 177

Senhora Dona Maria e Minha Senhora,

Com os meus mais respeitosos cumprimentos peço licença para relembrar o pedido feito quando tive o grande gosto de procurar V. Exª. em companhia do meu cunhado dr. Elísio Pimenta. É que chegou ao meu conhecimento que o Senhor Ministro do Interior tinha envia- do ao Senhor Presidente a indicação do meu nome para delegado do Governo junto da Companhia Elétrica das Beiras, de Coimbra, que é lugar que muito me convinha. Como já passou um certo tempo e ainda não houve solução, eu lembro-me de que se torne necessário e conveniente prestar qualquer esclarecimento sobre alguma dúvida que tenha surgido a meu respeito. Desta sorte, ao solicitar, de novo, o valioso interesse e proteção da Senhora Dona Maria para o meu caso, peço ainda o grande favor de me informar se será necessário prestar qualquer esclarecimento ao Senhor Presidente, o que farei sem demora. Como tive ensejo de dizer à Senhora Dona Maria, tenho grande necessidade de ajuda, porque os meus três filhos a estudarem me obrigam a despesas que não podem apenas ser suportadas com o meu vencimento de conservador do Registo Civil. Assinava esta carta de 4 de setembro de 1960, como um «servidor incondicional e agradecido», Augusto Duarte Hen- riques Simões, de Vila Nova de Poiares, num cartão onde se intitulava «deputado da nação»333, que o era de facto. E não um deputado qualquer: tendo feito parte da Assembleia Na- cional em quatro legislaturas consecutivas (de 1953 a 1969, sempre por Coimbra, o distrito de Maria de Jesus), foi um 178 A Governanta parlamentar ativo, com dezenas de intervenções no hemici- clo334, além de ter presidido à Câmara Municipal de Poiares nos anos 50. Era até conhecido na região como «o deputa- do dos humildes» ou «o deputado dos pobres». Não consta que o empenho que colocou junto da governanta de Salazar tenha sido atendido, mas não deixa de ser curioso como al- guém com tal notoriedade social e política no regime julgasse possuir Maria de Jesus uma influência alargada às múltiplas nomeações para cargos de confiança governativa. Essa influência sempre foi negada ou desvalorizada pelos mais próximos colaboradores do fundador do Estado Novo. Escreverá por exemplo Paulo Rodrigues, depois de mencionar a obra doméstica da governanta, «à qual Salazar aludia bem humorado, afirmando que ele talvez fosse capaz de governar o país, mas que nunca seria capaz de governar aquela casa»: O âmbito da sua autoridade era efetivamente o governo doméstico: nesse, tinha grande autoridade; mas não interferia em nenhum outro. É verdade que muitas pessoas procuravam confiar-lhe as suas pretensões, contar-lhe os seus problemas, narrar-lhe pequenas coisas que tinham por necessárias ou ati- tudes que se lhes afiguravam injustas. E a Maria respondia às cartas, como sinal de preocupação pessoal pelas dificuldades que lhe expunham. Mas, logo, cartas e memoriais eram entre- gues aos secretários do Presidente, que, segundo testemunho expresso de Sollari Allegro, lhes davam o mesmíssimo anda- mento que tinham todos os casos cuja exposição chegava ao Gabinete pelo correio. E eram muitos. Salazar respeitava, com escrúpulo, a competência própria daqueles com quem traba- lhava, mas não permitia que a exorbitassem. Era assim com os políticos e com todos os colaboradores: a Maria governava a casa com a independência que sempre se firmava em adquirida confiança.335 D. Maria, companheira de Salazar 179

O antigo subsecretário de Estado da Presidência não nega, porém, que comunicar um problema a Maria de Jesus era como falar ao anjo mais próximo de Deus: «Suponho que a Maria faria chegar ao dr. Salazar certas coisas em que ela reparava, mais por dever de caridade do que por dever polí- tico. Raramente lhe punha problemas, mas se punha e eram viáveis era um bom rumo para os encaminhar. Muita gente recorria à Maria, sobretudo gente modesta. E ela limitava-se a entregar as cartas aos secretários».336 O certo é que a fama da governanta era suficiente para muita gente bem colocada (e não apenas «modesta») achar que ela (e através dela Salazar) podia ser permeável. Rosa Casaco, apesar de garantir que Maria de Jesus não foi uma «egéria» (conselheira secreta), seria um pouco mais ambíguo acerca de certo tipo de pedidos que lhe iam parar às mãos: «Afirma-se que a Senhora Maria pedia aos comandantes das grandes corporações militares e paramilitares que aliviassem um castigo a um soldado, a um polícia ou um agente de trânsi- to que “eram da sua terra” ou casados com moças “lá da terra”. A “cunha” ou o empenho, ou carta de recomendação, vêm de longe em todos os países.»337 E Micas não nega que alguns re- cados surtissem efeito, apesar de poderem fazer perder a pa- ciência a um santo: «Até mesmo para cunhas, que certamente muito o maçavam, ele [Salazar] podia torcer-se na cadeira, como notávamos, mas à partida não dizia que não. Era pelo menos um ouvinte sempre atento, prometendo muitas vezes ler os papéis e fazer o possível dentro do razoável, ou seja, mandando seguir os trâmites normais se visse que para tanto havia fundamento – e é claro que, quando as diretivas vinham de São Bento, a obediência era rápida e inquestionada».338 180 A Governanta

Na correspondência particular de Salazar, conservada hoje na Torre do Tombo, ainda se encontram algumas cartas com cunhas remetidas à governanta. Como por exemplo a de um Fernando Sousa Silveira, da Venda Nova, com data de 10 de dezembro de 1965: Tomo [...] a ousadia de lhe formular um pedido, animado pelo bom acolhimento que sempre se dignou dispensar-me. Como já tive ocasião, minha senhora, de lhe transmitir, numa das minhas últi- mas idas a sua casa, o colega Pessoa, com quem vai em 20 anos aqui tenho trabalhado como seu adjunto, foi requisitado para servir num organismo corporativo da Lavoura, deixando, portanto, a direção da Estação de Avicultura Nacional, estabelecimento que na sua ausência tenho vindo a dirigir. [...] Pela larga permanência no lugar que te- nho vindo a ocupar, julgo estar em condições de poder desempenhar as funções que ao colega Pessoa estiveram confiadas. Era esta, em suma, a minha pretensão, que ouso pôr, minha senhora, à sua consi- deração e esperar para ela o amparo que necessito.339 Mais uma vez, também neste caso a diligência não resul- tou. Encaminhada a carta para o departamento respetivo, o gabinete do secretário de Estado da Agricultura encarregou- -se de esclarecer São Bento que «a decisão já havia sido toma- da e era absolutamente indispensável», tendo sido nomeada outra pessoa.340 Parte dos pedidos tinha de facto que ver com nomeações e transferências. Como o da mulher (não identificada), co- nhecida da governanta, que em 20 de setembro de 1944 lhe escreve do Funchal pedindo a transferência do marido para o continente: «Parece-me, Maria de Jesus, que não é só nesta terra que o meu marido pode ser útil. Não escrevo direta- mente ao Senhor Doutor para não lhe tirar tempo e porque não há nada como entender-se por palavras, e estou absolu- D. Maria, companheira de Salazar 181 tamente certa que a ninguém posso confiar melhor a missão, porque sendo amiga do Doutor Salazar também é nossa, e pode compreender todo o sentido destas palavras».341 Curio- samente, a autora da carta começa por dizer que acabou de falar com Salazar: «Soube pelo Senhor Doutor, com quem falei ontem ao telefone, que a Maria está no Caramulo com duas das criadas e que tinha ido pouco bem de saúde».342 Mas havia súplicas de toda a ordem. A irmã Lúcia, alega- da vidente de Fátima, já em clausura no convento carmelita de Santa Teresa, em Coimbra, recorria a Maria de Jesus para transmitir bilhetes manuscritos com solicitações a Salazar, relacionadas com a própria Ordem das Carmelitas, conforme revelou Micas: «Os papelinhos escritos por Lúcia ao Senhor Doutor, sempre acompanhados de recados para a Tia Maria a solicitar-lhe o habitual empenho junto do chefe, chegavam ao palacete pelas mãos do casal Duarte Martins, que apoiava financeiramente o carmelo do Estoril».343 Os pedidos foram feitos nos anos 50 e ignora-se que destino tiveram. Segundo Fátima Cértima, «havia muita gente, da classe média baixa, que precisava de favores e contactava com a D. Maria para lhe fazer os pedidos».344 Por vezes os correspon- dentes exprimem frustração por falta de resposta às petições. Para reforçar a sua, José de Matos Ferreira, escrevendo de Tondela a «Maria, sempre boa amiga», em 27 de novembro de 1939, explica: É de prever que, quando esta chegar ao seu conhecimento, já aí tenham dado entrada os dois caixotes com as maçãs que mandei despachar, e que até já as tenha mandado tirar, desembrulhar e ar- rumar. Se assim for, já me pode dizer alguma coisa, ralhar mesmo com ordem superior, que eu tudo recebo como de bom amigo, mas, se ainda as não tiver tirado dos caixotes, faça-o sem perda de tempo, 182 A Governanta

para não se amolgarem umas contra as outras, porque então apodre- cem mais facilmente, e só depois me ralharia. [...] Na minha penúl- tima carta fazia-lhe um pedido. O seu silêncio é bem significativo, e bem mostra que segue à risca as pisadas do seu Senhor, mas, se me puder dizer alguma coisa...345 Sempre que podiam, os peticionários invocavam um qualquer fator de proximidade a Maria de Jesus ou ao seu patrão, como no caso de um natural do Vimieiro, José Lo- pes Ferreira, a solicitar, em 19 de janeiro de 1951, colocação em Lourenço Marques como «chefe de zona da camionagem automóvel»346, ou de Manuel Mendes Revolta, que assinava em 15 de dezembro do ano anterior, usando o respetivo ca- rimbo, uma carta como chefe do posto da Polícia de Viação e Trânsito do Pontão: Isto é uma coisa que, embora não esteja nas mãos de V. Ex.ª, uma informação que V. Ex.ª preste pode influir eu ser atendido. Como há tempos disse a V. Ex.ª, quando por aqui passou no car- ro do senhor Figueiredo, seu sobrinho e pessoa de quem sou muito amigo, desde novembro de 1931 até outubro de 1939 sempre fiz parte da brigada de segurança ao Exmo. Senhor presidente do Conselho, que ao tempo estava ao serviço na Polícia de Segurança Pública de Coimbra, onde então pertencia. Agora o meu pedido trata do seguin- te: eu comprei um lagar de azeite sito no Casal de João Fernandes da freguesia de Santiago da Guarda no concelho de Ancião, minha terra natal. O lagar era antiquado, e agora pretendo modernizá-lo. Já fiz obras nas dependências, em que gastei já 50.000 escudos, e para os maquinismos preciso de gastar mais 100 contos. Requeri ao Exmo. Ministro da Economia [Ulisses Cortês] uma comparticipação pela Junta de Colonização Interna, amortizável em 15 anos, porque para a minha vida financeira seria uma grande vantagem, e requeri visto pelo mesmo processo terem sido beneficiados muitos capitalistas, com a concessão de tal comparticipação. É esse portanto o pedido que faço D. Maria, companheira de Salazar 183

a V. Ex.ª. Sua Excelência o Senhor Ministro da Economia é nosso conterrâneo, mas como para tudo é sempre precisa uma ajuda.347 Um António dos Santos escreve à governanta em 18 de outubro de 1952 a justificar-se por não lhe ter corrido bem a prova que acabou de fazer para um cargo na função pública, mas com a esperança de que ainda possa conseguir o lugar, sugerindo subliminarmente uma ajuda: «O presidente do júri é o Exmo. Sr. Costa Brochado, da Assembleia Nacional. Há quatro vagas de 2.º oficial, por isso não me importava de ficar em quarto se não merecesse mais. Agradecido».348

Mas grande parte dos pedidos são de pessoas desvalidas, gente sem meios, sem posses e sem qualquer conhecimento ou ligação aos ocupantes de São Bento, que muitas vezes, à beira do desespero, ultrapassam a custo os escolhos da escrita para exporem um rosário de desgraças espelhando uma faceta da realidade social portuguesa. Veem Maria de Jesus com aura de salvadora, e pode até calhar que sejam bafejadas pela sor- te, como num episódio contado por Micas: «Apesar das suas restrições orçamentais (tanto em casa como no país), Salazar também se dispunha por vezes a abrir os cordões à bolsa para aliviar o sofrimento dos outros. Certo dia, a Tia Maria rece- beu uma carta duma pobre mulher relatando que a doença do marido o impedia de trabalhar, o que a levara a penhorar a sua própria máquina de costura para dar de comer aos filhos. En- fim, uma história de fazer chorar as pedras da calçada, como havia tantas outras à época. A Tia Maria contou o caso ao Senhor Doutor e ele, sem sequer conhecer a mulher, resolveu pagar do seu bolso as cautelas da casa de penhores, para que 184 A Governanta ela recuperasse a máquina que tanta falta lhe fazia».349 E até a mulher de um preso político em Caxias, condenado a «medi- das de segurança», forma arbitrária de manter alguém atrás das grades por tempo indefinido já cumprida a pena a que foi condenado em tribunal, resolve pedir ajuda a Maria de Jesus: Não sei se a senhora ainda se lembra de mim. Sou aquela rapa- riga que andou aí, ao serviço dos Móveis Olaio, a arranjar os móveis da casa de Sua Excelência o Sr. presidente do Conselho, do qual a senhora é a digníssima governanta. No caso de a senhora não se lembrar de mim, sou a Maria Emília, a rapariga a quem a senhora confiava sempre as chaves dos apartamentos que se estavam arran- jando, e que guarda ainda hoje como recordação um quadro que a senhora me ofereceu. [...] Há dois anos que me sinto bastante doente, e já estive até internada num hospital a fazer uma operação. Tenho a meu encargo uma filha de 9 anos e a minha mãe, viúva, inválida de 65 anos de idade. Tenho meu marido na cadeia há 3 anos. A minha vida dia a dia se agrava porque não posso manter o encargo que tenho [...]. O meu marido foi condenado em 2 anos de prisão maior e medidas de segurança no tribunal plenário [instância especial criada para o julgamento de crimes políticos]. [...] Já cumpriu a pena e vai em 7 meses de medidas de segurança. O comportamento na cadeia é do melhor. Para o comprovar está numa sala especial de presos mais bem comportados. O próprio diretor da cadeia pode abonar o bom comportamento dele, pois meu marido está regenerado e ansioso de voltar ao lar, para se dedicar à família. [...] Pedia-lhe encarecida- mente que a senhora falasse com Sua Excelência o Sr. presidente do Conselho, para que meu marido saísse em liberdade condicional, pois ele é a única esperança que tenho para ajudar a salvar o meu lar, que se está a arrastar para a miséria.350 D. Maria, companheira de Salazar 185

Maria era por vezes também mencionada em cartas es- critas a Salazar, na presunção de que inquirir, por exemplo, da saúde da governanta ou enviar-lhe cumprimentos signi- ficava agradar ao ditador. Noutras ocasiões, a empregada era usada como intermediária em contactos e combinações entre o chefe do Governo e os seus correspondentes. Como o caso de Mary Espírito Santo, viúva de Ricardo Espírito Santo, que em julho de 1964 escreve a Salazar pedindo-lhe «uma audiên- cia para o genro, António Ricciardi, administrador-delegado da Petrangol, sobre o petróleo de Angola»351 e fornecendo as necessárias instruções: «Diga à minha amiga senhora Maria para telefonar 281 423 onde eu me encontro e eu transmi- tirei ao meu genro a sua decisão».352 Valerá a pena referir, a propósito, que a amizade estabelecida entre Ricardo Espíri- to Santo e a governanta levara-o ainda em vida a oferecer a Maria de Jesus algumas ações da empresa petrolífera Sacor (e que ela, por seu turno, havia prometido oferecer um desses títulos a Rosalina e José, o que nunca veio a acontecer).353 Nos frequentes cartões enviados por Cerejeira a Salazar há também algumas referências (embora esparsas) à antiga empregada de ambos em Coimbra. Escreverá por exemplo o cardeal, numa nota não datada mas provavelmente de 1966, por ser pós-Concílio Vaticano II (conforme nela referido): «Tencionava ir hoje celebrar aí, aproveitando a ocasião para alguns minutos de conversa contigo, e para ver a Maria, mas impedem-mo algumas minudências urgentes que me tomam a manhã toda».354 Nogueira da Silva não só intermedeia com a governan- ta (escrevendo por exemplo, em 23 de abril de 1965, a Sala- zar: «Com respeitosos cumprimentos, renovo os meus vo- tos, transmitidos por intermédio da Menina Maria, de que V. Ex.ª tenha passado uma Páscoa feliz e consoladora»)355 186 A Governanta como a convida para ficar na sua casa em Braga durante uma celebração do 28 de Maio (também em carta ao presidente do Conselho, em 16 de maio de 1950): «Já tenho os bilhetes assim como os quartos, que felizmente chegam para todos, para o Senhor Dr. José Marques, Miss Rose, Menina Maria e minha sobrinha».356 A relação de amizade de Maria de Jesus com o proprietá- rio da conhecida loja de lotarias com balcão no Rossio e com a sua mulher teria levado até, segundo Costa Brochado, a um surpreendente investimento conjunto: «A D. Maria foi mui- to amiga do fundador da Casa da Sorte, sr. Nogueira da Silva, com quem teve sociedades agrícolas em Moçambique».357 Dessa ousadia capitalista não existe traço, mas vale a pena recordar que uma das deslocações com que a governanta de Salazar satisfez a sua atração pelas viagens foi a Moçambique, em 1956, embarcada no paquete Vera Cruz, com o fim de vi- sitar o irmão Manuel, ele sim, grande proprietário agrícola. Micas tem também memória de a concunhada ter feito um cruzeiro ao norte de África, que alguém lhe terá oferecido.358 A própria pupila mais velha de Salazar viajou com a go- vernanta, a primeira vez ao Funchal, algures em finais dos anos 40: Com a Tia Maria, voei de hidroavião até à Madeira. Para mim foi uma experiência aterradora – pior ainda do que o meu batismo do ar foi, após a amaragem, o transbordo de passagei- ros para a pequena lancha que nos levou até ao cais do Funchal sobre uma ondulação alterosa. Ficámos umas três semanas na cidade em casa de Mrs. Cary Garton, uma viúva inglesa que era amiga do Senhor Doutor (e que também possuía um apar- tamento no Estoril). Na verdade, viajámos a convite dela num aparelho da Aquila Airways, uma pequena companhia ingle- sa de hidroaviões que era propriedade de um dos seus filhos. D. Maria, companheira de Salazar 187

Mrs. Garton, que vivia acompanhada de um homem um pou- co mais novo que dizia ser seu filho adotivo, aparecera em São Bento através de uma amizade comum a ela e ao Senhor Dou- tor, e andou depois de volta do chefe do Governo para ele dar um empurrão num assunto que há muito estava emperrado na nossa Aeronáutica Civil: a concessão à Aquila Airways de uma ligação aérea regular entre a Inglaterra e a Madeira. Resolvi- do o assunto a contento da companhia, ela passou a encher a residência de São Bento de orquídeas, estrelícias e antúrios colhidos no seu jardim do Funchal e enviados de avião para Lisboa.359 Ainda com Micas, Maria de Jesus terá cumprido uma das ambições da sua vida, ir a Roma ver o Papa – e, mais do que isso, encontrar-se com ele em audiência privada: Em dezembro de 1950, viajei outra vez com a Tia Maria, agora até Roma. Íamos acompanhadas de umas sobrinhas do embaixador Nosolini, então colocado no Vaticano. Lembro- -me do intenso frio ao longo dos três dias de viagem ferroviá- ria, em que até apanhámos neve. Chegámos a tempo de assistir a uma importante cerimónia religiosa presidida pelo Papa Pio XII, que a seguir nos concedeu a honra de uma audiência par- ticular. Como é lógico, a nossa relação com o Senhor Doutor teve influência. Aliás, Sua Santidade, que na audiência se ex- primiu sempre em português, perguntou-nos até como estava o «Doutor Salazar». Ficámos alojadas na embaixada portugue- sa, e ainda tivemos tempo para fazer um pouco de turismo na capital italiana. E não só: eu e as sobrinhas de Nosolini conse- guimos dar um pulo de comboio a Florença e Assis – mas a Tia Maria ficou em Roma porque estava com gripe.360 Maria de Jesus cultivava aliás um bom relacionamento com certos diplomatas e as suas mulheres. A governanta é por exemplo mencionada em alguma da correspondência 188 A Governanta entre Salazar e Marcello Mathias, para além das peripécias da sua visita a Paris. Em 27 de maio de 1952, justifica-se o chefe do Governo ao embaixador, confirmando a função de «radar» de São Bento exercida pela empregada: «A Ma- ria disse-me que lhe ouviu ter falecido há pouco a sua sogra. Nenhuma notícia tinha chegado aqui a esse respeito, e daí o meu silêncio».361 E em 28 de outubro de 1956, a propósito de outra visita da autora de Férias com Salazar: «Ontem sua mulher quis ter a amabilidade de convidar Mme. Garnier e a Maria para o almoço. Como a seguir tínhamos de ir a Lisboa, fui buscá-las.»362 E ainda em 20 de janeiro de 1958: «Entre- guei à senhora Maria o que a sua mulher enviava para ela. Não gostava que se incomodasse por sua causa».363

A crónica da vida social da governanta só ficaria porém completa com a invocação dos chás de São Bento, frequen- tados por senhoras da sociedade admiradoras de Salazar. O ditador nem aparecia, ou se o fazia era de fugida: «Não sei se Salazar participava, mas ele achava graça àquela coscu- vilhice e estava por ali muito perto», relembra Fátima Cér- tima, frequentadora desses encontros na qualidade de filha de Arminda Lacerda, por sua vez filha do dono do Sanató- rio do Caramulo, Jerónimo Lacerda. «Havia chás com muita frequência».364 Fátima fala da relação da família com Salazar: A minha mãe entrava e saía em São Bento sem mar- car audiência, porque ele adorava-a. E havia chás com as amigas todas, dele e dela. O meu tio, irmão da minha mãe, tinha uma relação de amizade com Salazar, mas era do tipo de uma reunião por ano, na Páscoa. As coisas funcionavam através da minha mãe. O meu avô, pai da minha mãe, era D. Maria, companheira de Salazar 189

muito amigo do dr. Salazar. Tinha casa no Caramulo e ele ia lá passar férias. A minha mãe era pequena na altura. Estava num colégio interno em Lisboa. As más línguas diziam que eles tinham um affaire, mas é mentira, era amizade pura. Um dia, ele telefonou para o colégio para falar com ela. Identi- ficou-se: «Daqui é o dr. Salazar». Do outro lado não acredi- taram e disseram-lhe: «E daqui é o Marquês de Pombal».365 Cecília Supico Pinto, casada com Luís Supico Pinto, uma das figuras de proa do salazarismo, ex-ministro da Economia e presidente da Câmara Corporativa a partir de 1957, era ou- tra das visitadoras, e reclama um bom relacionamento com Maria de Jesus: «Ela simpatizava muito comigo, sabia que eu não ia lá maçar o presidente do Conselho. E também gostava do meu marido».366 Quaisquer veleidades de ascensão social estavam bloquea- das à governanta. Salazar já várias vezes lho dera a entender, e tanto Cecília Supico Pinto como Vera Franco Nogueira (também assídua em São Bento), entre outras certamente, situavam com rigor o estatuto de classe de Maria de Jesus. «Ela sabia estar sempre no seu lugar», recorda a mulher do presidente da segunda câmara. E Vera advertia regularmente as restantes para não terem uma marquesa como padrão da governanta. Para a mulher do último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, havia de resto uma barreira fisioló- gica separando a camponesa beirã do beautiful people: «Ela era muito feia e tinha uma voz horrível. Mas em tudo o mais era delicada. E nunca vi nela vaidade».367 Corrobora, de outra for- ma, Fátima Cértima: «Ninguém ligava à D. Maria. Quem era ela? Uma governanta. Não tinha peso político nenhum».368 Apesar do nível a que sempre esteve remetida, Maria era julgada a pessoa competente para intermediar ou diri- 190 A Governanta mir conflitos entre as frequentadoras de São Bento, causados por ciumeiras, invejas ou qualquer outro género de rivali- dades. Cary Garton, por exemplo, escreve-lhe em 17 de ju- lho de 1965 lamentando-se de Cristiana, a mulher que Otília Oliveira reparara andar a arrastar a asa a Salazar: «Queria pedir um grande favor à boa amiga, que veja se me ajuda à Cristiana me vir falar [sendo a remetente inglesa, percebe-se alguma dificuldade sintática no português]! Ela quando che- gou, e eu telefonei para ela vir almoçar comigo, disse-me que não podia aos primeiros dias mas que viria logo que pudesse, e até hoje nada! [...] Fui sempre amiga dela, e nada tenho com a vida de ninguém, mas de quem sou amiga, sou amiga até morrer! Se a D. Maria me fizer este favor, eu ficar-lhe-ei muito grata! [...] Veja se ela vem com a D. Maria».369 Segundo Rosa Casaco, a agenda social de Maria de Jesus implicava ainda ter de lidar com os antigos colegas do ca- tedrático de Coimbra: «Dizia-se que havia uns íntimos que entravam pela cozinha, pois eram dos tempos de Coimbra, terra pequena onde o meio académico formava um mundo à parte. Os senhores Doutores por Coimbra, que ocuparam ca- deiras ministeriais, conheciam as praxes académicas e tinham por Salazar o respeito devido ao primus inter pares. Para eles, a senhora Maria era uma instituição. Saudavam a senhora Maria com bonomia. Os senhores Doutores por Lisboa ou pelo Porto, os Senhores Engenheiros, entravam pela porta principal e a maior parte deles nunca via a Senhora Maria».370

Mesmo que Salazar não estivesse presente nos chás, era fácil as visitadoras cruzarem-se com ele no meio acanhado e D. Maria, companheira de Salazar 191 rarefeito da residência oficial. A começar porque havia es- cassez de pessoal: «Éramos na verdade tão poucos que todos tínhamos de ser um pouco polivalentes no funcionamento do palacete. Eu, por exemplo, recebia muitas vezes o correio, e quando não havia criada disponível abria também a porta a ministros e outros colaboradores. Não existiam contínuos ou porteiro. Nós próprias pegávamos no sobretudo e no chapéu do visitante, que púnhamos sobre um sofá à entrada ou no bengaleiro à direita. Também íamos ao gabinete do Senhor Doutor anunciar quem havia chegado e chamar a pessoa as- sim que ele a mandava avançar (o que em regra era imedia- to). Após a audiência, ele ia à biblioteca despedir-se e tocava à campaínha para chamar uma de nós. Levávamos as vestes ao visitante e acompanhávamo-lo à saída».371 Fátima Cértima garante que «por vezes era o próprio Salazar quem abria a porta – eles eram pessoas extremamente simples».372 Anselmo da Costa Freitas, um dos últimos secretários particulares do ditador, evocaria uma dimensão equivalen- te nos efetivos do próprio gabinete: «Sem esforço e sem dramas, o gabinete do Doutor Salazar passava largo tempo composto apenas pelo presidente do Conselho e pelo secre- tário, desdobrando-se um e outro pelo acompanhamento de tudo quanto a ele afluía: atendiam-se telefonemas – não era surpreendente alguém ligar para a Presidência do Conselho (residência) e surgir-lhe do outro lado da linha o Doutor Salazar –, recebiam-se pessoas, dava-se sequência à corres- pondência recebida, cumpriam-se obrigações de cortesia, estudavam-se documentos oficiais, preparavam-se as deci- sões e o gabinete vivia sem tensões».373 Não admira por isso que à governanta fossem até cometi- das tarefas de extrema sensibilidade e grande responsabilida- 192 A Governanta de: «Era D. Maria quem queimava os telexes e o material se- creto que chegava a São Bento. Mavilde ajudava-a. “O senhor doutor só tinha confiança em nós para fazer esse serviço”».374 Só a lenta introdução de eletrodomésticos, ao alcance progressivo do orçamento caseiro, viria aliviar a missão de Maria de Jesus e aos poucos garantir-lhe uma vida mais ai- rosa: «A primeira grande novidade terá sido o ferro elétrico, que, em plena Guerra Mundial, veio substituir o velho uten- sílio a brasas. Foi mais ou menos na época em que o fogão a carvão deu lugar ao aparelho a gás. E em que chegou o aspi- rador, muito apreciado por todas as mulheres da casa, que puderam pôr de lado o balde e o pano espremido e torcido com que se levantava o pelo dos tapetes – função que tam- bém a Tia Maria me levava a executar, por vezes até no gabi- nete de trabalho de Salazar. O frigorífico chegaria mais tarde. Tudo, claro, pago do bolso do Senhor Doutor».375 Pouco tempo após casar-se, Micas deu um novo contri- buto para a animação da residência oficial – um bebé, nascido em setembro de 1958: Apareceu um menino, e o seu nome próprio surgiu como uma inevitabilidade, por razões que nesta altura da narrativa já posso abster-me de explicar: António. Ou Toninho, como passámos a tratá-lo em casa, ou ainda Antoninho, como prefe- riam em São Bento. O bebé passou na verdade a ser uma fonte de alegria para a Tia Maria e o Senhor Doutor, que logo após o parto apareceu a visitá-lo, criando verdadeiro alvoroço na ma- ternidade. Aliás, como também já se tornou óbvio, os padri- nhos não poderiam ser outros que não os meus pais adotivos – António de Oliveira Salazar e a sua fiel governanta. Alguns meses depois do parto, estando eu com a Tia Maria em Braga para assistir ao funeral da Maria Eugénia Nogueira da Silva [mulher do homem da Casa da Sorte], o Toninho adoeceu e o D. Maria, companheira de Salazar 193

meu marido acorreu com ele a São Bento para se sentir mais seguro. O Senhor Doutor e uma das suas empregadas ficaram a tomar conta do nosso rebento, e o dr. Bissaia Barreto foi do parecer que o Toninho lá permanecesse até recuperar. Depois, ele e a Tia Maria afeiçoaram-se à criança. Quando fazíamos tenção de o trazer para casa, pediam que continuasse no pa- lacete por mais uns dias. E foi ficando. Embora o meu marido tenha resistido um pouco à separação, para nós foi uma atitude providencial. Trabalhávamos até à noite, e [...] dispúnhamos de escassa disponibilidade para cuidar do nosso recém-nasci- do. Sabíamos que em São Bento ele estava bem entregue, e só aos fins-de-semana o levávamos para casa. Se eu tinha sido como uma filha para o Senhor Doutor, ele agora tinha no An- toninho o seu neto.376 Era a vez de Salazar ensinar alguma coisa a Maria de Je- sus: «Ao contrário do que sucedia com a governanta, para o presidente do Conselho as crianças não eram um frete – dava-lhes toda a atenção na sua presença e não se impacien- tava com elas. Foi assim comigo, tal como haveria de ser com o meu filho. A dedicação do Senhor Doutor ao afilhado che- gou ao ponto de transmitir conselhos de puericultura à Tia Maria, desde como aferir a temperatura do leite no biberão (derramando uma gota sobre as costas da mão) até como mu- dar as fraldas».377 Um problema ocorrido durante o parto haveria de ter se- quelas sobre Toninho, a quem Salazar detetou, aos três anos, um atraso de aprendizagem. «O que não obstou a que a criança se mantivesse em São Bento e a que o Senhor Doutor o con- tinuasse a considerar o seu ai Jesus, levando-o com ele para o Forte de Santo António ou mesmo para o Vimieiro. Agora, das suas calças velhas, além de saias para a Tia Maria, também se faziam, quando era preciso, calções para o menino».378 194 A Governanta

Cecília Supico Pinto, que também visitava o forte, lem- bra-se de aí ver o rapazito: «Ele tirava as válvulas a um barco de borracha, que assim ia ao fundo, e quem enchia o barco todos os dias era o Senhor Doutor. “Ele tem cá um fôlego”, disse Odete, a criada».379 E Silva Teles relataria, sobre quando a criança já teria perto de 10 anos: «Várias vezes vi entrar na sua sala de trabalho o pequeno filho de uma das suas pupilas, criança com alguns problemas. Nunca dei conta de que o Se- nhor Doutor, como afetuosamente era tratado pelas pessoas da casa, se impacientasse com a interrupção. Acarinhava o menino, como se dispusesse de tempo sem fim para lhe dedi- car. Até que a governanta o levava».380

Se Maria de Jesus tinha ao longo do ano uma vida social que ultrapassava em muito as expetativas de uma rapariga da Freixiosa, o seu Natal era em regra passado em Lisboa e em casa, isto é, apenas com a família adotiva: «As vésperas de Natal [de Salazar] passavam-se sempre com as pessoas com quem vivia portas adentro, D. Maria e as afilhadas, com quem partilhava as prendas do sapatinho que chegavam de todo o país».381 Os presentes natalícios nunca foram a espe- cialidade da governanta pouco dada a afetos: Eram de tecido as prendas mais frequentes. Assim despa- chava a Tia Maria, nessa quadra, as outras mulheres da casa: com vestuário ou peças de pano para uso doméstico, como toalhas de rosto, sempre em embrulhos muito mal preparados por ela, em papel pardo, de merceeiro. Com a letra incipiente da sua quarta classe de adultos, punha nos embrulhos pape- linhos com o nome de cada destinatária. A árvore de Natal armava-se na sala de jantar do rés do chão, mas na noite da D. Maria, companheira de Salazar 195

consoada as empregadas [que Maria de Jesus não autorizava nesta época a irem à terra, invocando acréscimo da trabalho doméstico, com limpezas mais a fundo e refeições mais elabo- radas] ficavam junto à lareira da cozinha. Comecei por colocar aqui o sapatinho, sob a grande chaminé, até que subi com ele à árvore de cima, onde me recordo de ter recebido os meus brinquedos (poucos) e outras prendas – modestos, como era timbre da casa. Claro que o Senhor Doutor não me ia comprar presentes, deixando a tarefa à Tia Maria, a quem faltava voca- ção para escolher brinquedos. Ficava-se por isso por uma caixa de lápis de cor ou algo ao mesmo nível.382 E as coisas não mudariam mesmo depois de Micas sair de São Bento para formar família: Na manhã do dia de Natal, o Senhor Doutor gostava de assistir enlevado à abertura dos presentes pelo Antoninho. Mas na véspera, quando ia deitar-se, após a missa e o chá com bolachas no lugar da ceia de consoada, já a Tia Maria lhe tinha colocado aos pés da cama as dezenas de prendas que haviam enviado ao presidente do Conselho, muitas delas oferecidas pelas suas eternas admiradoras. Ele recostava-se no leito, já em camisa de dormir, e a Tia Maria, eu e o Manuel dispúnha- mo-nos estrategicamente em volta, por vezes comigo senta- da numa ponta do colchão. Chegava então o momento de se começar a abrir os embrulhos, entre a boa disposição geral. E logo ali ele fazia a distribuição [...]. Conservava o que lhe interessava (como os cortes de seda natural para a confeção de camisas, oferecidos pelo casal Duarte Martins), e o resto ia di- reto para o meu marido, guardando o presidente do Conselho apenas os cartões com os nomes dos ofertantes, para lhes agra- decer por escrito. Nem sempre lá estávamos nessa noite, mas quando acontecia era o Manuel quem ficava a ganhar, com as meias e gravatas que o Senhor Doutor rejeitava – ou porque se repetiam os padrões e os géneros (e ele não gostava de possuir 196 A Governanta

um guarda-roupa muito extenso), ou porque o estilo era desa- dequado ao seu perfil.383 Muito provavelmente, também a governanta beneficia- ria de alguma oferta enviada a Salazar e que ele julgasse mais útil à sua colaboradora de confiança. Capítulo 10

A usura do poder

D. Maria, companheira de Salazar 199

m finais dos anos 50, perfazem-se três décadas de perma- Enência de Maria de Jesus em Lisboa, ao lado de Salazar. É muito tempo no poder, talvez demasiado, quaisquer que sejam os pontos de vista. Nunca em Portugal um chefe de Governo durara tanto no cargo. O fundador do regime mos- tra o seu suposto desapego do poder reiterando que «todos os dias há comboios para Santa Comba».384 Mas vai ficando, nunca exprimindo vontade de sair ou emitindo sinais de que o vai fazer. E a governanta fica com ele. Ela – e quem mais conhece bem Salazar – acha que ficará até ao fim: «Maria de Jesus não acredita (nem Franco Nogueira) na sinceridade de Salazar quando se lamuria com o fardo do poder. “Ele habi- tuou-se àquela vida, de muita ralação, é certo, mas também de muita prepotência, de muito orgulho”».385 Vive-se uma evidência, porém: nada os fará regressar à época de glória, estes são tempos de incerteza e decadência. A montanha já há muito foi conquistada. Agora faz-se o tra- jeto descendente. O primeiro sinal é a candidatura oposicio- nista do general dissidente Humberto Delgado à Presidên- cia da República, em 1958, que abala os pilares do regime: «Salazar chegou a temer confrontações públicas e, com o desenvolvimento da situação, a queda do poder. Previne a governanta da gravidade do que se passa pedindo-lhe para estar em condições de sair rapidamente de São Bento. “Com grande serenidade lembrou-me que eu não teria dificuldade 200 A Governanta em acolher-me”, recordará D. Maria, “na casa de amigos, já que não podíamos ir para o Vimieiro”. “E o senhor doutor?”, perguntei-lhe. Olhou-me fixamente: “Não se preocupe”».386 Micas recorda que «houve qualquer coisa que fez estremecer a D. Maria, com receio de terem de se ir embora, mas tudo isso passou».387 É também pelos olhos de Salazar que Maria de Jesus vê o apogeu da Guerra Fria: «“O senhor doutor explicou-me: a bomba [atómica] é uma coisa decisiva, faz desaparecer cida- des em segundos”, revelar-me-á Maria de Jesus. “O senhor doutor está preocupado, pois os países pequenos como o nosso não podem fazer nada. Só rezar. Só Nossa Senhora de Fátima nos pode valer. Estamos nas mãos de loucos”».388 Ou a invasão das possessões portuguesas de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, em finais de 1961: «“Foi uma aflição. Nunca mais esquecerei”, de novo Maria de Jesus, “essas horas, em São Bento, agarrados ao telefone. Rezei vários terços para que tudo corresse como ele queria. Só um dia depois soube- mos da traição [a rendição da guarnição portuguesa]. Tratou- -se de um dos maiores desgostos da sua vida. E da minha”».389 Ou, ainda, o assassínio de Humberto Delgado pela PIDE, em fevereiro de 1965: Consternado, [Salazar] desabafaria a D. Maria (que mo confidenciou) ser um dos «espinhos de que jamais se livra- ria». A governanta lembrava-se bem da madrugada em que o telefone tocou (seriam umas três horas) junto do seu quarto. Um derivado do aparelho central permitia-lhe ter acesso di- reto, quando ligado (o que sucedia fora das horas de serviço), a todas as chamadas – que atendia com presteza. A voz cava de [Fernando] Silva Pais [diretor da PIDE] comunicava-lhe ser necessário acordar o senhor presidente, pois precisava de falar-lhe o mais rapidamente possível. Intuindo algo muito D. Maria, companheira de Salazar 201

grave, ela desandou a bater à porta de Salazar. Que anuiu a recebê-lo dentro de uma hora, e 60 minutos depois acolhia-o, vestido a rigor, no seu gabinete. Especializada em escutar às portas (e não só), D. Maria percebeu o que se passara. Do pre- sidente do Conselho fixou palavras geladas e ordens secas no sentido de «tudo ser silenciado». [...] Maria de Jesus Caetano duvidou, no entanto, da versão de Silva Pais. Achava mesmo que o seu telefonema e a sua ida de madrugada ao palacete não passaram de um estratagema para inibir e cumpliciar o chefe do Governo».390 Micas recolheu da governanta outro ângulo da história: «Recordo-me de a Tia Maria contar que o Senhor Doutor ficou muito surpreendido e aborrecido, por não estar à espera desse desfecho, para o qual aparentemente não terá dado ordens.391 Até a relação com Christine Garnier está desgastada. Em mais uma das suas visitas, a francesa toma nota de certas «nuances» remetendo o passado para o passado. O seu objeti- vo era a tranquilidade de São João do Estoril ou do Vimieiro, mas, com os anfitriões em Lisboa, ela aceita de novo a hospe- dagem de São Bento: «Que me importava? Era o REFÚGIO que eu procurava: ser-se acolhida com o coração, saber-se admitida de uma vez por todas, respirar o aroma das sopas de Maria, dormir entre lençóis conventuais, escutar o murmú- rio das orações noturnas. E, como antes, reencontrando os ritos, eu gritava em silêncio: “Obrigado, porque nada mudou, ainda não, hoje não!”» Só que essa era apenas a aparência das coisas: Nada mudou na casa de Salazar? Sim. Nuances primordiais. Na nossa amizade, não sei quantas brechas. As grandes amiza- des, como os amores, têm os seus tropeções, as suas deceções, as suas questões, as suas reivindicações, os seus ciúmes, as suas miudezas, os seus mistérios (…). Contudo, ali também o pró- 202 A Governanta

prio «clima» era diferente. Salazar tinha acolhido para junto de si o filho de uma das suas filhas adotivas, uma criança atrasada, de uns seis ou sete anos, que inundava São Bento com os seus gritos demenciais e mordia quem tentasse aproximar-se dele. Era bastante assustador, e Maria, que tomava conta do miú- do, via as suas próprias forças a definharem. Maria ocupava-se também de vários parentes doentes – camponeses de barrete de lã ou de lenço negro –, que eu entrevia na vasta cozinha ou reunidos à hora da televisão em redor de um aparelho. E Sala- zar queixava-se: «A Maria tomou a seu cargo uma quantidade de pessoas. Já não tem tempo para pensar em mim!» O tempo dos sorrisos parecia terminado. (…) Miss Rose, a irlandesa, ti- nha morrido – já não haveria almoços de marisco, com Ma- ria, à beira do Atlântico. Só o doutor392 Bissaya Barreto, antigo condiscípulo do presidente [do Conselho] na Universidade de Coimbra, se mantinha, seguindo um velho hábito de dezenas de anos, a vir jantar a São Bento aos sábados. Os dois homens já não tinham nada para dizer um ao outro, e os pesados silên- cios tornavam a refeição insuportável.393

Mas apesar de toda a agitação externa e interna, tendo como pano de fundo uma guerra colonial que progressiva- mente se abre em três diferentes frentes africanas, procura- -se manter em São Bento a rotina de sempre: Salazar esco- lhendo os seus ministros e Maria de Jesus as suas criadas. O governante, perante um qualquer escolho nessa tarefa, até ousa fazer, face à a sua funcionária-chefe, uma comparação: – A menina Maria tem mais facilidade em escolher uma criada do que eu um ministro. O desabafo foi ouvido por Micas, que fez o paralelismo: «Podia parecer óbvio, mas só para quem não conhecesse as D. Maria, companheira de Salazar 203 exigências da Tia Maria. Na realidade, eu ouvia cada um de- les queixar-se da dificuldade em recrutar pessoal qualificado para o seu ramo de atividade. Com a diferença de que o Se- nhor Doutor, com as cerimónias que o caraterizavam, tinha menos intimidades com os seus ministros do que a Tia Maria com as suas criadas. Mas, quanto a despedimentos, nenhum deles se mostrava paralisado pela hesitação: a governanta pela via oral, Salazar através de um cartão enviado à “vítima”. Só que o chefe do Governo prendia-se mais aos seus homens do que ela às suas mulheres».394 Otília de Oliveira, uma das últimas recrutadas, introdu- ziu um dia na residência oficial a irmã mais nova, com os mesmos 15 anos que ela tinha quando chegou a Lisboa, para que também começasse a trabalhar em São Bento: «A mi- nha irmã estava a comer açorda e a governanta disse-lhe: “Ó Maria, come pão”. Como se tratava de açorda, respondeu: “Pão estou eu a comer”. Levou logo uma chapada da senho- ra Maria».395 Apesar da dureza de Maria de Jesus perante o que interpretava como uma impertinência, a criança ficou a trabalhar no palacete. Mas a saber que o respeitinho era sagrado. Descreve Otília: Sem contar com a senhora Maria, éramos seis mulheres. Havia repartição de funções: eu servia à mesa e tinha a meu cargo a receção às visitas, a campainha, a porta e os telefones. A Elisabete, que era de Mangualde, fazia o mesmo que eu. De- pois havia a cozinheira e a ajudante de cozinheira. As outras duas só faziam limpeza (uma outra rapariga era também de Penela, filha do coveiro, e a senhora Maria tinha ido buscá-la a uma casa de correção). Nós também fazíamos limpeza; tí- nhamos, cada uma, uma sala que nos era atribuída. A minha era a do Conselho de Ministros. A limpeza era feita de manhã. Na parte da tarde dedicávamo-nos à costura, ao ponto-cruz e 204 A Governanta

a outras coisas. No fim do almoço, o dr. Salazar e a senhora Maria iam dar um passeio pelo jardim e ver a horta. Depois faziam uma sesta os dois. No fim do jantar, rezávamos todas o terço com o dr. Salazar (até tenho uma medalha que ele me ofereceu quando eu tinha 18 anos). Ao serão víamos televisão, mas ele não. Eu e a Elisabete não tínhamos família em Lisboa, pelo que aos domingos íamos as duas passear com a senho- ra Maria e o dr. Salazar no Cadillac, aos arredores de Lisboa. Também íamos para Santa Comba com eles. Ela era muito ca- rinhosa para com ele e vice-versa. Ele de cabeça estava bem. Preocupava-se muito connosco. O senhor doutor, à refeição, guardava para mim metade da peça de fruta que escolhera, se fosse por exemplo uma pêra ou uma maçã. Não se falava nada de política ou de coisas sociais. Não sabíamos nada do que se passava na política, só que a nível pessoal ele era muito bondo- so. Quando tive um problema respiratório, mandou-me para um médico. Uma vez tive uma dor de cabeça e ele ficou todo preocupado comigo. A senhora Maria gostava que eu tratasse da horta, com a minha experiência lá na terra: tirava-se favas, couve para caldo verde e eu fazia broa como em Penela. Ela adorava a minha trança, e ela e o senhor doutor tiveram um grande desgosto quando eu cortei o cabelo. Havia pouco di- nheiro. Iam grandes cestos de ovos para a Fundição de Oeiras, através do senhor Rita [marido de Micas, que trabalhava nesta empresa, propriedade de António Cardoso dos Santos Lourei- ro, amigo de Salazar e visita frequente de São Bento], em troca de outros produtos alimentares que vinham de lá. O senhor doutor não gostava muito disso. Mas ela conseguia dar-lhe a volta. Eu recebia 250 escudos por mês, que mandava para os meus pais [Franco Nogueira refere que em finais de 1966 os vencimentos das criadas variavam entre 350 e 450 escudos].396 O dinheiro era depositado diretamente na Caixa Geral de De- pósitos, numa conta em nosso nome.397 D. Maria, companheira de Salazar 205

A governanta permanece também como destacada anga- riadora de informações para Salazar. A todos os níveis, como o demonstra o diálogo que tem com o jornalista Fernando Dacosta: – O senhor doutor gostou muito do filme Música no Cora- ção [estreado em 1965]. Até se comoveu... – Foi vê-lo? – pergunto eu, surpreso, a D. Maria. – Não. Eu é que o vi e lho contei, com todos os pormeno- res, como ele gosta de ouvir. Apaixonado pelo cinema [...], Salazar afastou-se, no en- tanto, das salas escuras com o avolumar do trabalho e da curio- sidade do público. [...] D. Maria e as amigas passaram, então, a deslocar-se, a seu pedido, às primeiras matinées, e a contar-lhe minuciosamente, aos serões, as histórias das películas por si escolhidas. Manta de lã nas pernas, bule de chá na mesa, Sa- lazar deleitava-se com as aventuras, desventuras, a correrem, noite fora, em diferido pela sua imaginação.398 O mesmo autor discorre sobre os encontros entretanto havidos com os dois ocupantes de São Bento: D. Maria demorava-se, depois de Salazar se retirar, em conversas soltas, exaltando a vida do campo e denegrindo a da cidade; escutava-lhe com frequência queixas contra as cria- das, contra as vendedeiras da praça onde se abastecia, contra as pessoas que só sabiam pedir favores, contra os políticos, contra os ministros, as mulheres, os filhos, os motoristas, as amantes dos ministros. Era uma criatura expedita, esperta, que vigiava São Bento através de ardis de boa eficácia. Detinha, pela in- fluência exercida no chefe do Governo, poderes imensos no país. O estadista, que a sabia de fidelidade absoluta, gostava (precisava) de se lhe abrir: o seu autoritarismo maternal torna- ra-se-lhe um contraponto ao peso da vertigem do sumo poder. Uma vez, enquanto nos servia cálices de Porto, disse-me: «Nós 206 A Governanta

sabemos que a sua família é das oposições... mas é tão novinho, não se meta em política, não dê cabo da sua vida!’» O presi- dente do Conselho meneou ligeiramente a cabeça, em sinal de assentimento.399 Paulo Rodrigues vê a governanta «disciplinada desde sempre pelo ambiente de casa de Salazar, mantendo o mé- todo, a disciplina, o silêncio envolvente».400 Nesse plano, a criatura terá até ultrapassado o criador: «Ela assumia uma posição mais intransigente do que o dr. Salazar», admite An- tónio Salazar de Melo, da memória que guarda das visitas ao tio-avô. É por isso a mais fiel guardiã dos princípios e nor- mas impostos pelo ditador, a todos os níveis: «Salazar nunca fumava – e, mais do que isso, não tolerava o fumo nem que se acendesse um cigarro perto dele. Os ministros estavam bem cientes desse pormenor, e, por muito dependentes que fossem do tabaco, nunca ousaram fumar à sua frente. Aliás, nunca vi uma pessoa a fumar junto do Senhor Doutor. O Manuel, fumador inveterado, saía para o jardim para puxar a sua fumaça. E ai dele se a Tia Maria o descobrisse de cigarro na mão...»401 Maria de Jesus não possuía, por exemplo, o espírito de humor com que o seu patrão era capaz de enfrentar algumas situações: «Quando bem-disposto, a ironia soltava-se-lhe: Uma vez estávamos a preparar a sala de refeições para um al- moço, conta Idalina dos Santos, empregada, durante anos, em São Bento. O senhor doutor veio e inspecionou tudo, como gostava de fazer. Quando ia a sair, a D. Maria viu uma vassou- ra encostada a uma cadeira. Repreendeu-me. Então ele inter- rompeu-a dizendo: “Deixe ficar a vassoura, se os convidados se tornarem maçadores pode servir para os enxotar”».402 D. Maria, companheira de Salazar 207

Um drama familiar parece entretanto desmentir que a governanta colocasse algum empenho na satisfação dos pe- didos que continuam a chegar-lhe às mãos: «Nem por um sobrinho [filho de Rosalina], mobilizado para a Guiné, in- terferiu. O jovem, pertencente à Força Aérea, morreu pouco depois de embarcado. “Pelos caídos em defesa da Pátria não se chora”, avisara o presidente do Conselho. Ela não chorou. As razões de Estado estavam acima das do coração – como das de Deus».403 (David Reis, de Penela, que revela estar em África com o sobrinho de Maria de Jesus quando ele morreu, diz que a fatalidade ocorreu em Angola e se deveu a um cho- que entre dois aviões404, informação que Micas corrobora: «Em 1969, havia morrido [...] o meu sobrinho António, um capitão-aviador da Força Aérea cujo aparelho a jato chocou com outro ao levantarem voo em Angola»).405 Salazar e Maria de Jesus procuram ambos iludir a idade, fardo que porém não pode deixar de pesar. «Por essa altura a Tia Maria magoou-se num joelho, devido a uma queda que deu, e submeteu-se a tratamentos num consultório da Rua Braancamp», rememora Micas, que continuava a visitar o pa- lacete com regularidade.406 Mas o pior estaria para vir. Relata Otília Oliveira: «Houve uma altura em que a senhora Maria se foi muito abaixo, caiu no chão, começou a espumar muito pela boca. Eu assisti».407 A crise eclode em inícios de 1966, e logo a 6 de janeiro escreve Franco Nogueira no seu diário: «Doente a “sr.ª Maria”, a governanta do presidente do Con- selho. Coração atingido, arteriosclerose, coronárias afetadas, doença grave em suma. Tem lançado a perturbação na vida e nos hábitos de Salazar. Quando lhe perguntei pela “doente”, disse-me o que havia acontecido, como ela estava, como tinha passado a noite, e toda a minúcia. E acrescentou: “Tudo isto 208 A Governanta

é uma perturbação, porque ela é uma peça fundamental desta máquina que não funciona sem ela e me escangalha a vida”. Se morre a Sr.ª Maria, como vai ser a vida de Salazar?»408 Na sua biografia de Salazar, adiantará o então ministro dos Negócios Estrangeiros que o líder do regime comunica aos «colaboradores mais chegados» a sua preocupação com o problema clínico da governanta, «de alguma gravidade»: «Não obstante este contratempo, que pesa nos seus 76 anos, mantém o chefe do Governo o cumprimento das suas obri- gações públicas».409 Percebe-se que a questão é séria, e tocam campainhas de alarme até nas chancelarias. De Paris, em 20 de fevereiro, pergunta Marcello Mathias em post-scriptum a uma comunicação oficial a Salazar: «O que há com a D. Ma- ria?»410 Responde o ditador, dois dias depois, pela mesma via: «A Maria de Jesus vai um pouco melhor, mas lentamente. Tem sido um grande problema, médico e doméstico, como pode calcular».411 Não se poupam cuidados clínicos: «Até um médico liga- do à oposição, [o neurologista João Pedro] Miller Guerra, acabou por ir vê-la a São Bento».412 Dacosta adianta mais detalhes, citando declarações de Manuel Nazaré, um médico africano, de Moçambique, e deputado à Assembleia Nacio- nal: «Certa ocasião, D. Maria sofreu uma queda e adoeceu com gravidade. Salazar não se opôs a que se chamasse o dou- tor Miller Guerra, que era um elemento destacado da opo- sição, para a observar. Recebeu-o, mas não lhe falou. Aflito com o estado dela, pediu-me para o informar imediatamente, estivesse a fazer o que estivesse, dos resultados das análises. “A Maria é muito importante para mim, mais do que eu para ela!”, comentou».413 A dimensão do mal obriga Micas a prestar assistência no- turna à governanta: «A Tia Maria foi hospitalizada com um D. Maria, companheira de Salazar 209 problema cardíaco mas que acabou por lhe afetar o equilí- brio mental. Por isso, já durante a recuperação no palace- te, o Senhor Doutor insistiu para que eu ficasse junto dela. Dada a exiguidade do seu quarto, eu deitava-me no chão em cima do tapete, ao lado da cama. A minha concunhada estava muito perturbada: levantava-se a meio da noite, ia para os corredores, queria enfiar-se na sala do oratório. Mas tudo se recompôs. Quando retomei o trabalho, o Senhor Doutor, sempre vigilante, escreveu uma carta a [Francisco do] Ca- sal-Ribeiro [deputado e administrador da Cidla, empresa do grupo Sacor, onde a pupila então trabalhava] pedindo para me descontarem no ordenado os dias em que estivera com a Tia Maria. [...] Nada me foi deduzido. Mesmo o poder de Salazar tinha limites».414 Mas nem tudo se terá de facto recomposto, segundo o testemunho de Otília Oliveira, que acompanhava o dia a dia de São Bento: «A partir daí a senhora Maria nunca mais foi a mesma pessoa. A voz ficou-lhe um pouco apanhada, tendo aos poucos recuperado, até ficar quase normal. A doença tam- bém lhe afetou um pouco a parte da cabeça».415 Regista Franco Nogueira, relativamente às finanças domésticas de Salazar em finais de 1966: «Para si e para a governanta, é permanente o consumo de medicamentos: mais de um conto por mês na Far- mácia Rego à Calçada da Estrela» (adianta ainda que o primei- ro-ministro «para despesas de alimentação entrega a Maria de Jesus, em média, uns cinco contos por mês», mantendo-lhe o mesmo ordenado de 600 escudos fixado 12 anos antes).416 António Silva Teles, recrutado no ano seguinte como se- cretário particular de Salazar, menciona um prolongamento do estado enfermiço de Maria de Jesus, que terá obrigado a atrasar em 1967 a habitual deslocação estival para o Forte de Santo António: «D. Maria, a governanta, andava adoentada e 210 A Governanta

Salazar, na sua natural delicadeza de sentimentos, não a que- ria afligir com a preocupação da mudança».417 Se algum efeito ficou da doença, terá sido tornar a gover- nanta ainda mais abelhuda e irritável, como testemunharia Maria da Conceição de Melo Rita: Outra constante era a tendência da Tia Maria para se in- trometer na nossa vida, arrogando-se o direito de ter uma pa- lavra sobre ela – e por vezes mais do que isso. Em meados de 1967, no meio de planos para regressar ao Brasil, o meu mari- do lembrou-se de comprar em Olhão uma propriedade onde subsistiam as instalações da antiga fundição do pai, na qual ele também havia trabalhado em miúdo. Para tanto, fomos pedir um empréstimo ao Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, tendo sido atendidos por um dos seus funcioná- rios superiores. Tudo parecia estar a correr bem, mas passa- das algumas semanas foi-nos comunicado que o nosso pedido havia sido indeferido. Ao que parece, a Tia Maria não gostou que tivéssemos avançado com a diligência sem lhe darmos prévio conhecimento, e terá intervindo junto da direção do banco para que o empréstimo fosse anulado. Na verdade, a má disposição da governanta, tão amarga quanto imprevisí- vel, chegava por vezes a desencorajar o meu marido de visitar São Bento, e quando enfim resolvíamos lá ir ele interrogava- -se pelo caminho, antes de chegarmos: «Como é que estará ela hoje?» Mesmo assim, quisemos convidá-la para almoçar connosco em celebração dos nossos dez anos de casados, em dezembro de 1967. Nada feito: recusou liminarmente. Estava com certeza a passar por mais um dos seus amuos, cujas ra- zões não conseguíamos compreender.418 Em menos de um ano, outra patologia viria causar uma reviravolta ainda maior na vida de Maria de Jesus. Capítulo 11

O crepúsculo

D. Maria, companheira de Salazar 213

ão se falava noutra coisa no verão de 1968: a capital por- Ntuguesa (e arredores) andava num virote causado pelas faustuosas festas que dois multimilionários estrangeiros, o norte-americano Pierre Schlumberger, detentor de fortuna petrolífera, e o boliviano Antenor Patiño, o «rei do estanho», entenderam organizar, com escassos dias de diferença, nas suas propriedades, respetivamente em Colares e Alcoitão, convocando todo o high-life nacional e pelo menos metade do jet-set internacional. Nem sequer Maria de Jesus, então com Salazar em São João do Estoril, mais próximo do epicen- tro dos acontecimentos, ficou indiferente. Mas esbarrou com a casmurrice do amo, a qual, ao contrário do habitual, desta vez foi maior do que a dela, como relata Micas, que, ao partir de férias para o Algarve, tinha ido ao forte com a família bus- car o filho e despedir-se dos septuagenários: «No seu esque- ma moral, ele achava que, estando Portugal a sustentar uma guerra em três frentes africanas, não ficava bem a exibição de tão frívolos sentimentos. Até a Tia Maria, que por por- tas travessas lá desencantara um convite para uma das festas, e que andava entusiasmada pelo seu iminente mergulho no seio dos ricos e famosos, acabaria por ficar no forte, perante o amuo do seu chefe. Pois, nesse dia de início de férias, de- parei com ela muito irritadiça, maldisposta, a tratar-me ru- demente e mesmo a ignorar-me. Eu conhecia o feitio dela, e não me pareceu que a atitude tivesse a ver com a censura 214 A Governanta velada de Salazar à sua participação nas festividades da alta burguesia. Estranhando aquele comportamento, comentei-o com o Senhor Doutor quando, à saída, ele me disse adeus com um abraço mais forte do que o habitual, como se se tra- tasse da despedida para uma longa viagem. Respondeu-me apenas: “Não ligues. Ela anda muito nervosa”».419 À pupila escapou contudo que também o velho ditador não estava a viver os seus melhores dias. Mas, no final de agosto, Christine Garnier, alojada no forte para mais umas férias com Salazar, notou pela primeira vez, como haveria de contar anos depois, que se passava «qualquer coisa». «Salazar mostrava-se demasiado afável, abria-se em demasiadas confi- dências», recordaria a escritora. «E falava da morte, o que não fazia parte dos seus hábitos. Inquieto devido à saúde de Maria, disse várias vezes: “Sem ela, eu estaria perdido. Não poderia mesmo continuar a trabalhar. Lembre-lhe que eu ordeno-lhe que morra depois de mim”. Por intermédio da minha amiga Ar- minda, transmitimos a Maria esta ordem singular: ela pôs-se logo a murmurar não sei que reza esconjuratória».420 As próprias circunstâncias desta visita da francesa fu- giam às regras de Salazar, que pela primeira vez a convida- ra a vir acompanhada do marido – mais um novo marido, com quem ela havia contraído matrimónio pouco antes, e o primeiro que ele conhecia. A missiva de convite ao casal, onde o governante português só mostrava ciúmes por causa da governanta («A Maria recebeu a sua carta, reparei que era muito mais longa do que a que você me enviou a mim – por- quê?»), era imperativa: «Anule os seus compromissos, venha com o seu marido ao Forte, onde nós vos esperamos. […] É PRECISO que venha ver-me, os vossos amigos que espe- rem. Aguardo o seu telegrama de concordância».421 D. Maria, companheira de Salazar 215

A autora não deixa também de descrever as premonições que por norma a memória faz associar a momentos especiais, como viria a ser este: «Na véspera da nossa partida para Pa- ris, sentia-me muito oprimida. Digo a Salazar: “Na próxima Páscoa você não acha que podíamos ir à sua quinta422 do Vi- mieiro ver as fontes e as camélias?” Não respondeu. Nessa mesma noite, vi em sonhos Maria coberta de negro, sozi- nha no carro presidencial e a chegar, lavada em lágrimas, a Anvers-sur-Oise [local da residência de Christine]. […] Nas despedidas, Maria desfez-se em soluços fora do comum, qua- se numa crise de nervos. Ela sabia, tenho a certeza, que nunca mais nos veríamos no forte, que era o fim, não de um afeto, mas de uma época».423 Entretanto, as intermitentes enxaquecas que Salazar vi- nha sentindo desembocaram numa crise dias depois, confor- me relata Otília Oliveira, que então servia no forte: «Nós já há uns tempos que víamos que ele andava mal, só se queixava de dores de cabeça. Então foi lá o médico observá-lo e disse que ele tinha de ir imediatamente para o hospital. Estava lú- cido, falava connosco, mas à noite não jantou».424 O clínico era António de Vasconcelos Marques, à data um dos mais consagrados neurocirurgiões portugueses, e fora convocado para comparecer no Forte de Santo António pelo médico pessoal de Salazar, Eduardo Coelho, no dia em que a Costa do Sol se preparava para a folia noturna de Pa- tiño. Dacosta recolheu o testemunho do especialista: «[Vas- concelos Marques] desloca-se [ao forte] a 6 de setembro: “Encontrei Salazar, que não conhecia pessoalmente, com um aspeto muito acabrunhado”, descreve-me. “Pedi para o ob- servar com atenção. Fomos para o seu quarto e ele deitou-se. A situação era gravíssima, necessitava de ir imediatamente 216 A Governanta para Lisboa a fim de serem feitos exames complementares. D. Maria de Jesus declarou, no entanto, que ele não ia para o hospital e que não podia ser tomada nenhuma decisão sem se ouvir o Governo. Sentei-me num banquinho de pedra e esperei. Passou hora e meia até aparecer o doutor Paulo Ro- drigues, ministro da Presidência. Depois de muito instada, D. Maria concordou no internamento, com a condição de a via- gem se fazer ao fim do dia. Estabeleci contactos com a minha equipa e mandei reservar instalações na Cruz Vermelha”».425 Complementa Paulo Rodrigues: «Ao princípio da tar- de de 6 de setembro, ao regressar a São Bento, depois de almoço, encontrei recado urgente para ir a Santo António. Fui preocupado. Quando cheguei ao Estoril estavam com a Maria o Prof. Eduardo Coelho e o Dr. António de Vascon- celos Marques, cuja presença o primeiro viera a solicitar».426 E adianta Franco Nogueira: «Também informados pela go- vernanta, entram no forte o secretário particular do chefe do Governo, Costa Freitas, e Maria Lívia Nosolini».427

Maria de Jesus conta então aos presentes o que até essa altura guardara como segredo de Estado: Salazar dera sema- nas antes uma queda, no terraço do forte, ao sentar-se numa cadeira de lona. Levantara-se sozinho, mas desde então sur- giram com inquietante regularidade as dores de cabeça. Na altura, Otília de Oliveira não estava em São João do Estoril: «Quando foi da queda do dr. Salazar eu e outra rapariga tí- nhamos ido levar uma irmã dele a Santa Comba. Soubemos quando estávamos lá em cima. Foi a D. Maria que nos disse, mas não se mostrou preocupada. Ele queixava-se de dores de cabeça, mas nada fazia prever o que veio a acontecer».428 D. Maria, companheira de Salazar 217

«Insiste a governanta em chamar com urgência um médico», descreve Franco Nogueira sobre a imediata reação de Ma- ria de Jesus ao acidente. «Salazar proíbe-a: dentro de pouco tempo virá para a visita de uso o Professor Eduardo Coelho: e então será o momento de referir o que sucedera».429 Mas tanto o médico e a governanta como sobretudo o próprio Salazar, que a proibira de contar a episódio a outras pessoas, deixaram arrastar a situação até Vasconcelos Marques ser chamado a observar o paciente. Nessa noite, acompanhado de Eduardo Coelho e Vascon- celos Marques, Salazar, que se mostra alheado e em progres- siva perda de noção da realidade, passa pelos hospitais dos Capuchos e de São José para observações, até que acaba na Casa de Saúde da Cruz Vermelha, em Benfica, onde o neu- rocirurgião conclui pela necessidade de o operar à cabeça, na presunção de que se formara um hematoma no seu interior. Maria de Jesus terá seguido diretamente do forte para a Cruz Vermelha. Está reservado todo o sexto piso da instalação hospitalar de Benfica para apoiar a tormenta clínica de Sa- lazar, incluindo, «ao fundo do corredor, no outro extremo, um quarto para a governanta, que acaba de chegar noutro automóvel com Maria Lívia Nosolini».430 Vasconcelos Marques previne Salazar da intervenção: «Pergunto-lhe se quer que chame um confessor. Interrom- pe-me com secura: “Isto é um hospital ou uma igreja?” Nunca lhe vi, aliás, quaisquer preocupações religiosas. Quem [já após a operação] passava a vida a rezar era a D. Maria. E o Cere- jeira. Ia para o quarto ao lado, punha as mãos sobre o rosto e suspirava, enquanto repetia orações em latim».431 («Cerejeira reza na antecâmara, D. Maria comunga na capela»).432 Da cirurgia, efetuada a meio da madrugada, resultará com efeito a neutralização de um hematoma intracraniano. 218 A Governanta

Dizem os médicos que se trata da única lesão observada no doente, deixando suspirar de alívio Maria de Jesus e os cola- boradores mais chegados ao ditador, entretanto concentra- dos em expetativa na Cruz Vermelha433. Ao país, nessa ma- nhã, anuncia-se: «O presidente do Conselho foi operado esta noite de um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem». Não se quis dizer que fora de madrugada, para omitir o caráter de urgência da operação, nem que o hematoma se situava na cabeça, para não se saber da gravidade do caso, o que só à tarde será reconhecido, em novo comunicado onde se fala do «êxito» da intervenção.434 Excetuando o pessoal clínico, Paulo Rodrigues é uma das primeiras pessoas a acederem ao quarto de Salazar após a ope- ração: «A primeira vez que consentiram visitas fui vê-lo. Assim que cheguei ao pé do dr. Salazar, que estava desejoso de encon- trar alguém da sua confiança, pois só via médicos e enfermei- ros, disse-me: “Olhe lá, nós não estamos presos, pois não?”»435 Com o primeiro comunicado, começam a convergir para a Cruz Vermelha, alarmados, os fiéis de Salazar, e já Maria de Jesus, apesar de subjugada pela comoção, está investida de poderes sobre o acesso ao convalescente. Relata Franco No- gueira: «Vou com a minha mulher [...] ao hospital de Benfi- ca. [...] Aparece a governanta: comovida a mais não poder, e num estado de pessoa a quem se suspenderam as faculdades mentais.»436 Para esclarecer noutro lado: «No período pós- -operatório imediato, naquela manhã, estavam naturalmente proibidas visitas, mas, para satisfazer um pedido de Salazar, a mulher do autor desta biografia (ambos havíamos chegado à casa de Saúde pelas 8 horas da manhã) foi introduzida no quarto do doente pela governanta, e encontra-o de cabeça ligada, olhos cerrados, mas lúcido e reconhecendo-lhe ime- D. Maria, companheira de Salazar 219 diatamente a voz».437 «Há uma certa lenda sobre a influência de D. Maria na seleção das visitas», julga porém Paulo Rodri- gues. «Eram mais os médicos quem o fazia».438 Micas capta as notícias no Algarve e regressa a Lisboa, para também acorrer ao Hospital da Cruz Vermelha:

Percebi então o nervosismo irascível da Tia Maria no dia em que fomos ao forte buscar o Toninho. Ela estava não só abalada pelo estado de saúde do Senhor Doutor, mas também ocupada em disfarçar qualquer indício que nos pudesse levar a desconfiar do que se passara. Por isso nos terá querido ver pelas costas tão rapidamente quanto possível. Senti a Tia Ma- ria embaraçada com o sucedido, remetida a alguns silêncios quanto às origens do caso e muito pouco à vontade para me ajudar a reconstituir o que se havia passado. [...] Para além da equipa médica, só entrava no quarto do Senhor Doutor quem a Tia Maria queria. Ela ocupava um quarto duas ou três portas distante do dele e não abandonava o corredor, a não ser para rezar na capela do hospital, o que aliás fazia com alguma fre- quência (para lá me tendo também arrastado). Sentia-se que estava muito perturbada com a ocorrência, portando-se como um feroz cão de fila do presidente do Conselho, uma dona da figura de Salazar. No meio do seu enervamento, metia-se em tudo e dava ordens a toda a gente, atrapalhando e complicando mesmo o bom andamento dos serviços clínicos. Sendo ela a filtrar, entre a multidão de personalidades (e anónimos) que acorreu à Cruz Vermelha, quem possuía o privilégio de aceder ao quarto do paciente, acabei por não ver o Senhor Doutor tanto quanto eu desejaria. Mas recordo-me da primeira vez que entrei no quarto dele. Não falava. Fiquei com a impressão de que me conheceu, mas não o posso garantir com segurança. Senti-o muito abatido, atrapalhado com o que se passava com 220 A Governanta

ele. Das outras vezes, falava por monossílabos, mas quase sem- pre de forma incompreensível. A incerteza sobre o seu reco- nhecimento da minha pessoa manteve-se. [...] Quase sempre era da Tia Maria que recebíamos as informações, sem nos dei- xar entrar no quarto, o que só acontecia nos dias bons dela.439 Para Costa Brochado, este desfecho seria previsível: «Pa- rece que ninguém reparou na circunstância de não se afir- mar, idoneamente, a data da queda e a do internamento. Mas o mistério é simples [...]. Salazar vinha sofrendo sucessivos delíquios, escondidos do público cuidadosamente, por sua ordem e com a rigorosa colaboração da D. Maria, que, por seu lado, também vivia quase no mesmo estado... O sr. Ama- deu Antunes dos Santos, quando andou na residência oficial a dirigir a conferência do inventário, avisou-me, no fim, de que, naquela casa, era preciso um médico para cada um dos dois... E ele conhecia-os bem. De resto, todos sabiam, no pa- lácio, que os achaques de ambos eram cuidadosamente es- condidos, como era natural».440 É um facto, porém, que se soube da data do internamento e que foi possível mesmo calcular com algum rigor o dia do acidente de Salazar no forte (uma queda que, segundo tese muito posterior, teria acontecido não no pátio mas na ba- nheira, situação tão embaraçosa para a governanta, por ter tido de acudir ao patrão completamente nu, que ela nunca a teria confessado a ninguém).441 Numa altura em que toda a vida nacional fica reduzida àquele hospital em Benfica, en- quanto se especula acerca da evolução do estado de saúde de Salazar – e sobretudo sobre a sua capacidade de sobreviver e continuar a governar –, Maria de Jesus, dois dias após a ope- ração, presta as primeiras declarações da sua vida à imprensa, para fornecer a versão pessoal do que terá ocorrido: D. Maria, companheira de Salazar 221

Foi há cinco semanas, numa segunda-feira, como hoje. Pouco passava das 9 horas. Encontrava-me ainda nos meus aposentos quando ouvi um barulho que me deu a impressão de uma porta a bater. Corri a ver o que se passava. Quando cheguei, o senhor doutor levantava-se do chão. Tinha sido a cadeira onde o senhor doutor se ia sentar que se desconjun- tou. Ao cair, para trás, batera com a cabeça no chão. Pouco se queixou. Quis chamar o médico assistente, sr. prof. Eduardo Coelho, porém, o senhor doutor não quis, argumentando que daí a cinco dias, sábado próximo, aquele clínico iria, como de costume, visitá-lo e, então, seria a oportunidade para se lhe contar o que ocorrera. Assim se fez, e foi ansiosamente que esperei pela chegada do médico. Ao tomar conhecimento do ocorrido, o sr. prof. Eduardo Coelho aconselhou o senhor doutor que, ao mais pequeno sinal de dor de cabeça, o avisas- se imediatamente. Durante três semanas nada de anormal se registou. O senhor doutor sentia-se bem e até recebeu várias visitas, como os jornais noticiaram. No dia 2 do corrente ain- da presidiu a um conselho de ministros. No dia seguinte, ter- ça-feira, queixou-se de dores de cabeça e pediu uma aspirina. Fui eu quem lha deu e logo lhe pedi licença para chamar o sr. prof. Eduardo Coelho. Mas o senhor doutor não quis, acres- centando que daí a dias ele o iria observar, como de costume, e, então, havia tempo de lhe contar o que se passava. No outro dia, quarta-feira, reapareceram as dores de cabeça, e o senhor doutor novamente não me deixou chamar o médico. Até que na quinta-feira, dia 5, como voltassem as dores, eu, à sua reve- lia, telefonei ao sr. prof. Eduardo Coelho, que chegou em boa hora. O resto já o sr. jornalista sabe...442 Estas declarações foram notoriamente buriladas pelo jor- nalista, pelo que não se sabe quais as autênticas expressões usadas por Maria de Jesus ou sequer se as informações são exatas. Paulo Rodrigues, por exemplo, reivindicaria a inicia- 222 A Governanta tiva de chamar Eduardo Coelho: «[Salazar], naquele dia, pa- receu-me cansado e a espaços tirava os óculos e levava a mão à fronte. [...] Logo que regressei a São Bento falei com um dos meus secretários. Também o dr. Costa Freitas lhe nota- ra a letra menos firme e algum pequeno lapso de memória. Assentámos na urgência de nova visita do médico, e logo ele foi ao Estoril recomendar à Maria que chamasse, imediata- mente, o professor Eduardo Coelho, como, aliás, este deter- minara para o caso de sintomas desse tipo, logo após a queda que Salazar dera – precisamente um mês antes – no terraço do Forte».443 Franco Nogueira, por seu turno, contesta o dia adiantado por Maria de Jesus como aquele em que se teria dado o aci- dente: «A governanta sugere a data de 5 de agosto de 1968, que foi uma segunda-feira, como sendo a da queda. [...] Mas esta sugestão da governanta não me oferece confiança [...]. A governanta Maria de Jesus já na altura sofria de perturbações arterioscleróticas, e é provável que estivesse confusa no seu depoimento, para mais no estado emocional em que se en- contrava».444 O biógrafo do ditador defende que a fatalidade terá ocorrido em 3 de agosto, um sábado, baseado num depoi- mento escrito do calista Augusto Hilário, que tratava dos pés de Salazar e que teria sido a única testemunha do sucedido.445 Mas Fernando Dacosta avança com a versão de que, afi- nal, só o barbeiro do presidente do Conselho, Manuel Mar- ques, estaria presente, e de que, com base numa entrevista ao próprio, o problema nem teria sido a falta de resistência da suposta cadeira: «“Salazar não se apercebeu [...] de que a ca- deira onde costumava instalar-se – deixava-se cair sobre ela, como os miúdos – se encontrava fora do sítio. Como conse- quência, estatelou-se desamparadamente no chão de grani- D. Maria, companheira de Salazar 223 to”, especifica-me. “Recompôs-se e proibiu-me de contar o sucedido a quem quer que fosse. Mas eu, à saída, disse a D. Maria o que acontecera”».446 Com cadeira ou sem ela, o certo é que a governanta terá visto (ou encenado, ou relatado) nessa peça da mobília uma ofensa: «Dois dias depois do acidente, D. Maria pegou nela e, furiosa, partiu-a, atirando-a ao mar. Por isso nunca foi en- contrada, apesar dos esforços em localizá-la feitos, posterior- mente, pelos investigadores. Ela passou, aliás, e a partir daí, a odiar o forte, o Estoril, o oceano – e só muitos anos depois se deslocou, levada por um franciscano de Benfica, ao local para visitar um jardineiro que lá prestara serviço».447

Os passos da governanta, entrando e saindo do hospital, passam a ser acompanhados pela imprensa: «A certa altura compareceu a sr.ª D. Maria de Jesus Caetano de Freitas [sic], que só naquele momento ia ver o Chefe do Governo. Tinha preparado o seu pequeno-almoço, constituído por sumos, chá e uma torrada. Para o almoço, tencionava dar-lhe um caldo verde feito por ela própria.»448 Mas a omnipresença da mulher chega a exasperar a classe clínica: «O doente levan- ta-se, passeia pelo quarto, recebe visitas, conversa. Maria de Jesus, que se instalara no edifício, não arreda pé – para irrita- ção de médicos, enfermeiras, polícias e pessoal. Aproveitan- do um período de boa disposição do operado, Vasconcelos Marques tenta tirar nabos da púcara: “A senhora D. Maria é uma mulher inteligentíssima”, avança. Ríspido, Salazar gela- -o: “É dedicadíssima!” Dias antes perguntara a [o ex-ministro da Economia José Gonçalo] Correia de Oliveira: “Mas quem é, afinal, esta senhora? É a mulher, é a amante, é a empregada 224 A Governanta do presidente do Conselho...?” “É a empregada”, respondeu- -lhe o ministro».449 Questão apenas de dedicação, explicará Paulo Rodrigues: «Ela desdobrou-se na assistência ao dr. Salazar. Estava muito angustiada com a situação, sofreu muito. O próprio cardeal Cerejeira, quando ia ver o dr. Salazar, chamava sempre a Ma- ria para lhe dar uma palavra de ânimo. Era muito estimada por todos eles».450 Sollari Allegro defende que a governan- ta, apesar de tudo, se conteve nos seus limites: «Durante a doença do presidente do Conselho, quando estava junto das senhoras que iam à Casa de Saúde informar-se do estado de saúde do Doutor Salazar, a Maria de Jesus fazia sempre a cerimónia de não se sentar enquanto essas senhoras não insistissem com ela para o fazer. Manteve sempre a mesma maneira de ser e nunca exorbitou das suas funções».451 Na Cruz Vermelha, Maria de Jesus recorre ao pessoal da sua confiança para saber a quantas anda o regime com toda a intriga política que fervilha nos corredores do edifício: «Para saber o que se passava em encontros a que não ti- nha acesso, ela dizia-me: “Vai lá e vê se ouves”. Como eu era pequena, as pessoas não reparavam em mim e continuavam a conversar. Ouvi muita coisa. A Clínica da Cruz Vermelha [...] era um ninho de víboras. Todos preocupados apenas com os seus interesses», ainda Mavilde Araújo. «As senhoras da socie- dade que faziam parte dessas instituições de caridade que havia eram umas intriguistas de primeira. Desviavam dinheiro dos peditórios para a canasta, vi-as fazer isso. Algumas levavam cabeleireira e massagista privativas nas suas viagens a África, pagas pelo Estado, quando iam apoiar os soldados. Umas opor- tunistas! A D. Maria detestava-as, chegava a correr com elas de São Bento. O senhor doutor também tinha reservas em relação ao seu comportamento, mas não podia fazer nada».452 D. Maria, companheira de Salazar 225

Ao nono dia de convalescença, Salazar é inesperada- mente acometido de uma hemorragia cerebral, ficando em estado de inconsciência, porventura perto do coma, e então tudo se precipita. Testemunha Dacosta: «Na Cruz Verme- lha ouço D. Maria soluçar: “O senhor doutor está perdido, coitadinho, apenas um milagre o poderá salvar”».453 Perdem- -se as esperanças de uma qualquer recuperação: o acidente vascular incapacita de vez o fundador do Estado Novo para a governação e obriga à escolha de um substituto. Demora porém dez dias a nomeação de um sucessor, pelo Presidente da República, contra-almirante Américo Thomaz, ouvido o Conselho de Estado. A escolha recai em Marcello Caetano. É o fim de uma época. Também para Maria de Jesus, cuja missão em Lisboa fica de súbito aparentemente terminada ao fim de quatro décadas.

Na Cruz Vermelha, os médicos continuam sem saber o que fazer ao ilustre paciente, até que lentamente sai do coma em fins de outubro, para logo se agravar outra vez o seu esta- do nos primeiros dias do mês seguinte. Mas a partir de início de dezembro há nova recuperação, e os clínicos começam a autorizar-lhe visitas. Já em janeiro de 1969, vai vê-lo al- guém muito especial: «Uma visita que se evidenciou foi a de Christine Garnier [...]. Eu não estava lá na altura, mas conta- ram-me do choque que ela teve ao avistar o Senhor Doutor, tendo saído do quarto muito abalada».454 Dirá por seu turno Fátima Cértima: «A D. Maria foi com a Christine Garnier à Cruz Vermelha. Salazar terá reconhecido Christine e sorri- do, mas estava muito mal».455 226 A Governanta

E a própria escritora relembrará nas memórias essa dolo- rosa viagem: «[Maria] conduziu-me a um quarto de dor, de- pois em direção a um Salazar muito diminuído.456 […] Fran- queámos oito vezes a porta da Cruz Vermelha, oito vezes a porta do quarto branco do sexto andar onde Salazar tinha levado a cabo o seu terrível combate. […] Maria apertava-me nos seus braços. Desconhecidos diziam-me: “Atenção, meça as suas palavras. O presidente [do Conselho] ainda está mui- to fraco. Fale-lhe de coisas fáceis e sem problemas”».457 Christine garante que o paciente a reconheceu mas se la- mentou de não poderem falar à vontade, rodeados que esta- vam por enfermeiras que, além do mais, sabiam falar francês. E à saída: «Ansiosa, Maria esperava-me no corredor com o seu olhar trágico e as suas perguntas, que ela fazia traduzir por uma ou outra das suas amigas: “Como é que o encontrou? Diga. Diga a verdade. Está lúcido?”» Ao Antoine [marido de Christine], explicava por gestos: “Estou a chorar porque a Christine me faz recordar os belos dias de outros tempos”».458

O novo Governo aceitara entretanto que Salazar, mesmo destituído de funções oficiais, continuasse a ocupar o pala- cete de São Bento, o que significa que afinal Maria de Jesus poderia prolongar a sua missão até morrer um dos dois: ou ela ou Salazar. Faltaria ainda verificar se Maria cumpriria a ordem de morrer depois, que ele lhe comunicara através de Christine Garnier. O regresso a São Bento, convencidos os médicos, por fim, de que o fundador do Estado Novo pode ter alta459, dar-se-á em 5 de fevereiro de 1969: D. Maria, companheira de Salazar 227

Maria de Jesus pega no Salazar que lhe deram os médicos, mete-o numa ambulância e recosta-o, embrulhado em mantas, em São Bento. Ouvira, na clínica, os importantes do regime dizerem-lhe que o «levasse dali». «Para onde?», perguntou. «Para a sua casa». «Qual casa? Os senhores sabem muito bem que ele só tem a residência oficial. A do Vimieiro não está em condições de o receber neste estado». Os visados entreo- lharam-se. Contactado, Américo Thomaz conferencia com Marcello Caetano. A Governanta tinha razão. D. Maria corre as cortinas e os reposteiros que dão para a Estrela. À cólera branda que a tomava juntava-se uma tristeza sem fim. Ficou de pé durante várias noites a olhar Salazar adormecido sob os sedativos. Não iria dizer-lhe nada sobre o que se havia pas- sado. Iria, pelo contrário, fazer com que tudo continuasse na mesma. Teria de vigiar as criadas, as enfermeiras, os médicos, os visitantes. Os antigos ministros de confiança continuariam a ser ministros. Que importavam Marcello Caetano, Américo Thomaz, o Governo, o País, a PIDE? Saberia lidar com todos – decidiu. E cumpriu.460 Narra Franco Nogueira: «Nos dias soalheiros, [Salazar], acompanhado da governanta, de uma enfermeira, de algu- ma senhora amiga, dá longos passeios de automóvel pelos arredores de Lisboa; e noutros dias, como tratamento, e pe- sadamente apoiado em duas enfermeiras, faz um pouco de marcha no parque da residência, para cá e para lá».461 O que então se passa em São Bento é uma comédia de en- ganos, que tem como produtor o aparelho do regime, como principal protagonista Salazar e como encenadora Maria de Jesus. Nos seus assomos de lucidez ou semilucidez (esse esta- do nunca será rigorosamente estabelecido, mas Paulo Rodri- gues, por exemplo, garante que Salazar «falava com grande lucidez durante vinte minutos a meia-hora»462), é dito ao de- 228 A Governanta posto ditador que ele continua em funções, e a governanta encarrega-se de manter as rotinas à sua volta, para que de facto assim pareça: «O seu talento de representação tocará o patético quando, inutilizado, o estadista regressa da Cruz Vermelha e imerge num cenário fantasmático. Espectral, ela cria uma realidade que sobrepõe, impõe à realidade geral. Si- derados, o País, o mundo de então, aceitam essa desmesura de sombras e simulações».463 Christine Garnier, que regressa a São Bento para rever o grande doente, converge na mesma ideia: Não falemos de Maria, a mais empenhada em manter a grande ilusão em casa do seu Senhor Doutor464, que tinha perdido a noção do tempo. Era ela que afastava aparelhos de rádio e de televisão (que Salazar, de resto, menosprezava antes da doen- ça), que selecionava febrilmente os jornais e indicava à enfer- meira as passagens que sem riscos podiam ser lidas em voz alta. […] Esta conspiração do silêncio exasperava-me. Quis, de cada vez, berrar a Salazar toda a verdade, nada mais do que a verdade. Infelizmente, devia contentar-me em olhá-los face a face, neste cenário ilusório, este homem fora de série, esta mulher de exceção (que tinha recebido ordem para «morrer depois»). […] Eu amava-os, Salazar e Maria, mais do que nun- ca. Amá-los-ei para sempre.465 Além da leitura da imprensa já depurada das notícias so- bre a atividade do Governo de Caetano, faz parte do enre- do a visita de ministros de Salazar, pedindo-lhe autorização para viajarem. «Ninguém teve coragem para dizer a Salazar que tinha sido substituído por Marcello Caetano, a minha mãe disse-me isso», lembrará Fátima Cértima. «Davam-lhe os jornais para ele ler, mas em todas as notícias com a cara do Marcello faziam um buraco, tiravam a fotografia, e ele D. Maria, companheira de Salazar 229 não reparava. Pensou até ao fim que era ele quem tomava conta das coisas».466 Sobre as visitadoras, que também liam ao enfermo a imprensa, conta Paulo Rodrigues: «Tinham de cuidar, sempre, de omitir as notícias que pudessem revelar- -lhe a sua substituição». Salazar queixava-se contudo de que lhe liam «notícias que não interessam nada».467 Testemunhará Jacinto Simões, o médico encarregado da hemodiálise que é preciso assegurar a Salazar mais do que uma vez por semana: «Um dia, estava eu presente, chegou o doutor Gonçalo Correia de Oliveira, que havia sido minis- tro, dizendo que queria pedir licença ao senhor presidente do Conselho para se deslocar a Londres. A senhora Maria respondeu-lhe: “Eu trato disso, senhor doutor”. Dirigiu-se à cama de Salazar, baixou-se e sussurrou-lhe: “Está aqui o se- nhor doutor Correia de Oliveira que pede licença a Vossa Excelência para se deslocar a Londres”. Sem que se tivesse ouvido nada da boca de Salazar, ela levantou-se, virou-se para Correia de Oliveira e disse: “Vossa Excelência pode ir, o senhor presidente está de acordo”».468 Histórias idênticas sucedem-se, sempre sob a supervisão da governanta. Como quando o embaixador do Brasil, Carlos Silvestre de Ouro Preto, abandona o seu posto em Portugal, em janeiro de 1970, mas não sem antes ir a São Bento pedir a Salazar a sua foto autografada: «Exprime-se com fluência Salazar, e Ouro Preto está atónito. Depois, sobre uma pasta dura de cartão, Salazar prepara-se para assinar sob a fotogra- fia que lhe traz a governanta. Mas vira o retrato de costas. Diz a governanta: “Senhor Presidente, tem de assinar do outro lado, onde está a fotografia”. Responde Salazar, brusco: “Sei muito bem o que estou a fazer”. E escreve nas costas brancas do retrato: “Esta fotografia pertence ao Sr. Embaixador do 230 A Governanta

Brasil Ouro Preto”. E explica: é que já uma vez oferecera uma fotografia a [o ex-ministro da Defesa, Fernando dos] Santos Costa, roubaram-na, e depois outra pessoa exibiu-a, autogra- fada, como se lhe tivesse sido oferecida. Depois, volta então a fotografia do lado da imagem, e assina-a com mão firme».469 Também Costa Brochado aparece, em nome dos velhos tempos: Depois de conversar com a governanta, fui ver Salazar, que estava deitado, na cama. Surpreendeu-me o esplêndido aspeto da sua cara, olhos, jogo fisionómico e dignidade de comportamento. – Senhor presidente, cumprimento V. Ex.ª. Olhou-me, silenciosamente, mas a governanta quebrou o silêncio: – Sabe quem é? Conhece-o? – Conheço. É o senhor ministro do Interior. Aflição na governanta e nas duas enfermeiras presentes. E a governanta ajudou: – Então, então... Não vê que é o diretor? E eu, rápido: – Costa Brochado, senhor presidente. – Olha os meus olhos! Se tivesse ouvido a voz, logo o reco- nheceria, concluiu Salazar. E eu, ajudando: – Não admira, como a luz está coada e o senhor Presidente me viu de perfil...470

Paulo Rodrigues mostra-se convicto de que Salazar sabia da sua exoneração, mas «fazia de conta que governava, en- trando na peça».471 Esta suposição advém da circunstância de que Maria de Jesus teria confiado às irmãs do ex-subsecretá- rio de Estado da Presidência, já após a morte de Salazar, que o D. Maria, companheira de Salazar 231 ocupante de São Bento «estava farto de saber.»472 «[O antigo ministro da Educação Francisco] Leite Pinto é que combinou connosco do que é que falávamos ou não com o dr. Salazar. Mas a Maria Lívia [Nosolini], que era como uma irmã para ele e lhe contava tudo, falava de mais. E eu penso que às vezes a Maria lhe dizia qualquer coisa sobre a evolução dos aconte- cimentos que nós não dizíamos».473 O mistério, contudo, permanece, pois terá sido diferente a atitude de Maria de Jesus a fazer fé no que a própria disse mais tarde: «O Presidente da República chegou a pedir-me para contar ao senhor doutor que já não estava em funções. Disse-lhe que não. Pedi-lhe mesmo que ninguém o fizesse. Que esperassem. Uma corja! O senhor doutor havia-me re- latado, há muito tempo (ele gostava de contar-nos, a mim e às meninas, coisas da História), que os russos, quando o Le- nine estava para morrer, faziam todos os dias um jornal falso para ele ler e não saber o que se passava. Achei que podia poupá-lo. Se ele aguentou o país 48 anos, o país bem podia aguentá-lo algum tempo. Eu não sei se ele acreditou. Nunca me disse nada».474 Outro assunto tratado entre a governanta e o Presidente respeitou ao enorme arquivo de Salazar, resultante de uma atividade governativa de 40 anos (e não 48 como na afirma- ção atrás citada), conforme um apontamento feito por Costa Brochado de uma conversa que teve com Maria de Jesus em 14 de maio de 1969: Pelas seis horas da tarde, fui falar com a governanta. Per- guntei-lhe se tudo estava correndo bem, se precisava de algu- ma coisa. Disse-lhe que o não tinha feito mais cedo por ter ab- soluta confiança no Amadeu Antunes. Como ela respondesse que tudo corria bem, disse-lhe que, da nossa parte, tudo con- 232 A Governanta

tinuaria absolutamente como dantes. Agradeceu-me e chorou convulsivamente, agarrando-me as mãos sinceramente. Per- guntei-lhe depois pelo Diário e os papéis particulares de Sala- zar. Contou-me como lhos pediram. Foi a Comissão primeiro, e como ela pediu à esposa do chefe do Estado para o marido a receber, tendo-lhe ela respondido que lhe dissesse o que que- ria, pois tudo transmitiria ao Presidente, respondeu que não, que só a ele diria o que queria. E foi à presença do almirante, o qual confirmou que ela deveria deixar sair todos os papéis, pois poderiam assaltar a casa e os papéis não podiam desapa- recer. Respondeu a governanta que a casa esteve segura, bem guardada pela Polícia, durante 40 anos e que, portanto, bastaria continuar a Polícia a guardá-la. O chefe do Estado não gostou e pôs-se a caminhar na sala para trás e para diante, lastiman- do-se: Ora a minha vida! O que me havia de acontecer! Nem aos piores inimigos eu desejaria acontecesse o que agora me acontece a mim. Olhe, faça o que quiser... pois fique lá com os papéis... O Dr. [João Pinto da] Costa Leite [ex-ministro e à data presidente da Sacor] achou bem esta atitude da governan- ta. E ela mandou substituir as chaves do arquivo, visto haver chaves na secretaria da Presidência do Conselho.475 E mais adiante: «Cá fora recomendei à governanta que não desse a ninguém os papéis particulares e que, em caso de afli- ção, se aconselhasse com o senhor Cardeal Patriarca. Não po- dia confiar em mais ninguém. Agradeceu-me muito e pediu- -me para os visitar mais vezes, sempre que quisesse, mesmo sem ordem dos médicos».476 Entretanto, «a Tia Maria fazia [...] constar para fora que o patrão estava bem e que tinha a perceção de todas as coi- sas», explicará Micas.477 E as visitas a São Bento sucedem-se. Otília Oliveira havia-se despedido («passámos para o pala- cete quando o senhor doutor foi para a Cruz Vermelha, a D. Maria deu-me a chave da despensa para eu orientar as coisas, D. Maria, companheira de Salazar 233 mas como eu era mais nova as outras não gostaram, comen- tando que era “a eleita, a menina bonita”; fartei-me e em fins de 1968 fui ao hospital dizer-lhe que me ia embora, por não me sentir bem no lugar em que estava, o que foi um desgosto para ela»478), regressando porém para ver o antigo patrão, acompanhada do marido (o mesmo Lúcio das cartas retidas pela governanta): «Ele ficou todo contente ao ver-me. Co- nheceu-me, chamava-me “menina da D. Maria”. Falou co- migo e o meu marido, e a conversa foi coerente. Quando o Lúcio veio da tropa em Angola, ele tinha autorizado o nosso namoro no interior de São Bento – de dia, claro, depois o meu namorado ia dormir fora».479 A representação salta para lá dos muros de São Bento, nas eleições de 26 de outubro do mesmo ano para a Assembleia Nacional: «Acompanhado da governanta e de uma enfermei- ra, [Salazar] comparece para votar. É na freguesia da Lapa, na Rua da Bela Vista. Não pode sair do carro; mas o presi- dente da mesa, acompanhado dos delegados da oposição que fiscalizam o ato, leva a urna até junto do doente, e recebe o seu voto».480 A estabilidade clínica de Salazar só se desagregará no ve- rão do ano seguinte, continuando até lá as visitas dos inde- fetíveis. «A D. Maria percebia muito bem quem lá ia e não ia desinteressadamente, tinha o tal feeling, o instinto femini- no», considerará Cecília Supico Pinto, que se inclui no lote dos escolhidos: «Ela, na véspera de o dr. Salazar morrer, ain- da me levou ao quarto dele, insistiu comigo para lá ir porque eu gostava muito dele. Isso foi graças a ela, não sou de me in- sinuar. Esteve assim dois ou três dias, em estado terminal».481 A governanta ouve as últimas palavras do ditador: «An- tes de expirar, em São Bento, Salazar ciciará: “Sim, mãe, sim”. 234 A Governanta

Nunca, referiu-me Maria de Jesus, a invocava em voz alta».482 O médico Macieira Coelho assiste ao desfecho: «A seu lado, Maria de Jesus está impassível. “Olhei as suas reações. Não fez um gesto, um esboço de carícia”, acrescenta aquele médico. Não lhe pôs sequer a mão nas mãos, no rosto. Manteve-se sempre imperscrutável».483 Relata Franco Nogueira: «Na resi- dência permanecem ainda os médicos, as enfermeiras, e acor- rem sucessivamente amigos pessoais de Oliveira Salazar. São estes, incapacitada a governanta pela sua emoção, que tudo dispõem».484 Micas também aparece: «Tendo ganho a rotina de, antes de entrar ao serviço, passar por lá para saber como tinha ele passado a noite, na manhã de 27 de julho de 1970, uma segunda-feira, encontrei a Tia Maria lavada em lágrimas, sentada na cama dela. Salazar acabara de falecer uns minu- tos antes, pouco passava das 9h. Chorei um pouco com ela e choraria muito mais depois. [...] A Tia Maria estava arrasa- da. Mas no palacete vivia-se uma intensa azáfama, pois desde logo era preciso preparar os funerais e arrumar a casa».485 Realizadas exéquias de Estado nos Jerónimos, a urna se- gue para o cemitério do Vimieiro, em comboio especial, na companhia dos mais próximos de Salazar. Por essa ocasião, Micas experimentará de novo o fóeitio de Maria de Jesus: «O Senhor Doutor não haveria de descer à terra, no cemitério do seu adorado Vimieiro, sem a Tia Maria me ter dado mais uma prova da sua peculiar simpatia, ao entregar à diretora do Instituto de Odivelas o convite para as cerimónias fúnebres que me era destinado. Desta vez impus-me, junto de um dos ex-secretários de Salazar, o dr. José Sollari Allegro, que es- tava ligado à organização do evento. Enviou-me logo outro convite, tanto para as exéquias oficiais na igreja do Mosteiro dos Jerónimos como para a viagem de comboio especial a acompanhar o féretro até Santa Comba Dão».486 Capítulo 12

Purgatório

D. Maria, companheira de Salazar 237

ue fazer quando se acaba de cumprir a missão de toda Quma vida? Apenas ir sobrevivendo? Procurar novo de- sígnio? Ajudar outros a cumprirem os seus? Satisfazer dese- jos por realizar? Lançar um constante olhar nostálgico so- bre o passado? Aguardar serenamente (ou angustiadamente) pela morte? A Maria de Jesus, esgotada a razão da sua exis- tência com o último suspiro de Salazar, já assegurado o cum- primento da diretiva patronal de morrer apenas depois dele, só pareceu importar a chegada do que ela certamente enten- deria por chamamento do Além, que esperou mais tranquila do que agitada, como se esses anos não passassem de uma resignada transição pelo purgatório. De purgatório se tratou pelas imediatas dificuldades que se lhe ergueram. A começar pela fulminante ordem de des- pejo que recebeu de Marcello Caetano logo que acabou de arrefecer o cadáver do pai do regime. Nada justificava, na verdade, que a governanta continuasse a ocupar o palacete de São Bento (quando, à luz da razão de Estado, já nenhum sentido fizera a farsa que aí decorrera nos dois anos ante- riores). Mas não o entendia assim Maria de Jesus: «Após a morte de Salazar, ela foi ao Saldanha [local da residência de Maria Arminda Lacerda] a chorar com abundância, queixan- do-se de que lhe tinham dado um prazo de 24 ou 48 horas (não me recordo bem) para se ir embora. Estava muito aflita, sem saber para onde ir. Tinha estado todo aquele tempo com 238 A Governanta o presidente do Conselho, e achava que não se devia fazer aquilo».487 Micas, julgando que Maria de Jesus «nunca pôs na cabeça que teria de sair de São Bento»488, dilata um pouco mais o prazo de expulsão, mas confirma a sua imperiosidade: A Tia Maria recebeu uma comunicação emitida por Mar- cello Caetano dando-lhe uma semana para abandonar o pa- lacete (e eu, ao saber da «ordem de despejo», aproveitei para levar umas roupas e uns brinquedos do Toninho que por ali haviam ficado esquecidos). A ex-governanta não gostou do ul- timato. Claro que, desaparecido o seu chefe, já não lhe assistia qualquer direito de ali permanecer. Mas ela preferiria que não houvesse aquela pressão, que a deixou ainda mais abalada do que já estava devido à morte do Senhor Doutor. Queixou-se de que tinha pouco tempo para arrumar as coisas, mas o sucessor de Salazar foi inflexível quanto à data de entrega das chaves da residência. E o palacete acabou mesmo por ser abandonado no último dia do prazo, 8 de agosto de 1970.489 Contas feitas, ninguém ficou a dever nada a ninguém: «Quando [Salazar] morreu a Senhora Maria devolveu intac- to o recheio da casa que lhe tinha sido entregue pelo Estado quase meio século antes».490 Houve por isso que procurar novo teto ao fim de décadas sob o de São Bento. Não que Maria de Jesus não tivesse já an- tevisto uma solução, como lembra Micas: «Era preciso come- çar por resolver a questão do alojamento da Tia Maria, agora mais solitária do que nunca. Ela investira num apartamento em Benfica, mas o prédio ainda estava em construção quan- do o Senhor Doutor faleceu. Dois dias após o funeral, eu e o Manuel fomos a São Bento oferecer-lhe alojamento em nos- sa casa enquanto aguardava o fim das obras em Benfica. Ela, porém, não aceitou. Foi isto a um sábado, e no dia seguinte D. Maria, companheira de Salazar 239 regressámos com as crianças ao palacete para participar na missa do sétimo dia pela morte de Salazar, numa cerimónia muito íntima onde, além da Tia Maria, só estavam mais al- gumas senhoras, Nogueira da Silva e o pessoal da casa».491 Não terão faltado apoios instantâneos: «Tenho ideia dessa infelicidade que foi a saída dela de São Bento», evoca Paulo Rodrigues. «Mas nesse momento uma dúzia de famílias disse à Maria: “A nossa casa é sua”».492 A opção acabou por recair sobre a oferta apresentada pelo dono da Fundição de Oeiras, confortável por deixar Maria de Jesus autónoma: «Valeu à Tia Maria a generosidade de António Cardoso, o ex-patrão do meu marido, ao colocar-lhe à disposição a vivenda da fa- mília, no Linhó [entre Cascais e Sintra]. O sr. Cardoso e a mulher passavam então a maior parte do tempo na sua vi- venda dos arredores de Paris, pelo que a Tia Maria só tinha no Linhó a companhia da criadagem. Ao fim de pouco tem- po, sem para tal ser solicitada, transformou-se, na prática, de hóspede em governanta daquela casa: estava-lhe na massa do sangue».493 Micas acha, por outro lado, que os apoios à habitação de Maria de Jesus não teriam sido assim tantos como isso: «Após a morte de Salazar, ela foi esquecida por muitos, a al- guns dos quais fez grandes favores. Valeu-lhe o presidente da Fundição de Oeiras».494 O episódio é também relatado com idêntico dramatismo pela ex-cozinheira de São Bento: «Após o funeral “ficámos ainda uma semana em São Bento a pre- parar tudo”, prossegue Mavilde Araújo. “[...] Entregámos as chaves da casa na Assembleia Nacional. A Maria foi viver, o seu apartamento ainda não estava pronto, para os arredo- res do Linhó. Todos fugiram quando ele [Salazar] adoeceu e morreu. Menos a Maria. Menos nós”».495 240 A Governanta

Se Salazar planeara em tempos construir em Santa Com- ba Dão uma casa para a sua governanta, a obra nunca se fez, nem a respetiva courela foi parar às mãos dela. Por outro lado, convencido, se não da sua imortalidade, pelo menos da sua capacidade de protelar o fim, o ditador nunca cuidara de atribuir os seus bens post-mortem. Não terão faltado a Maria de Jesus, mesmo assim, meios de subsistência: «A D. Maria contou-me (palavras de Mavilde Araújo) que quando Salazar voltou para casa, depois da operação, disse-lhe: “Aí, no fundo do guarda-fatos, está um envelope com dinheiro. É para o caso de o Estado não pagar o meu funeral para Santa Comba. Se o pagar, fica para si, para mobilar o seu andar de Benfica”. A D. Maria tinha uma contita no banco e uma pensão vita- lícia de quatro contos. Foi ele que a levou a fazê-la. Como lhe pagava mal quis compensá-la assim».496 Micas acha que a ideia do apartamento em Benfica terá surgido mais tarde, mas confirma a solução financeira preparada por Salazar para os últimos dias da governanta: «Ele deu-lhe uma pensão vitalícia de quatro contos por mês».497 Convém esclarecer que aqueles quatro contos (20 euros à moeda atual, mas com um valor equivalente a quase 1200 euros aos dias de hoje, deduzindo a inflação) eram ao tem- po quantia razoável para sustentar a sobrevivência de uma viúva, sobretudo virtual e sem descendência. Não faltaram de resto contributos chegados às mãos de Maria de Jesus para o apartamento e o resto: «Ela foi ajudada por pessoas amigas para o comprar, antigas senhoras que visitavam Sala- zar em São Bento, e também pela família Espírito Santo».498 «Resolvemos a vida dela quando o dr. Salazar morreu», ga- rante Paulo Rodrigues. «Um grupo de senhoras encabeçado por Maria Lívia Nosolini compraram-lhe um andar em Ben- D. Maria, companheira de Salazar 241 fica, que tinha um lado fronteiro à igreja, pelo que ela estava nas suas sete quintas. Foi muito adotada pelas amigas do dr. Salazar. E Francisco Leite Pinto, a certa altura, resolveu que não se podia ter Maria ao deus-dará, era preciso dar-lhe um sustento: escreveu a 25 ou 30 amigos do dr. Salazar a dizer que tinha de se ajudar Maria. As senhoras já lhe tinham arranja- do apartamento, e nós combinámos depositar-lhe dinheiro no início de cada ano numa conta do Banco Espírito Santo. Ela nem sabia quem depositava».499 Cecília Supico Pinto, que reclama ter participado também nos apoios a Maria de Jesus, desmente igualmente a tese de que tenha ficado abandonada: «Não faltava nada do que precisava».500

Logo no Linhó, desvenda-se uma Maria de Jesus diferen- te, aliviada já dos seus deveres de Estado, da gravitas de que se reveste qualquer função oficial: «Foi aí que eu e o meu mari- do reatámos com ela uma convivência mais pacífica, extinta a tensão a que as nossas relações estavam sujeitas no palace- te, sobretudo nos últimos anos de vida do Senhor Doutor. Visitámo-la algumas vezes e chegámos a almoçar ou jantar com ela no Linhó. Liberta das suas responsabilidades de go- vernanta de São Bento, ela metamorfoseava-se agora numa mulher mais meiga e afetuosa».501 Evoca a filha de Armin- da Lacerda: «Ela dava-nos chocolates e peru pelo Natal».502 E continua Micas: O desanuviamento prosseguiu já com a Tia Maria instala- da em Benfica, o que sucedeu ao fim de alguns meses. Como eu continuava a trabalhar no Marquês de Pombal, ia vê-la muitas vezes durante a semana, apanhando um autocarro à hora do almoço. Apesar de termos de comer à pressa, pareceu-me que 242 A Governanta

ela apreciava estas visitas. Aos fins de semana, era a Tia Ma- ria que ia passar um dia connosco à Parede [local da vivenda onde residia o casal], com o meu marido a recolhê-la de carro em Benfica. Trazia-nos sempre um pequeno contributo para o almoço, sobretudo a sobremesa – quando se tratava de pudim, ainda vinha dentro da forma para não se desmanchar na via- gem. Uma vez – coisa rara – apanhou o comboio no Cais do Sodré e apareceu-nos de surpresa para nos oferecer o almoço, trazido oculto num saco. Perplexos com a atitude, comentá- mos depois como o nosso relacionamento se tinha alterado no sentido positivo.503 Paulo Rodrigues recorda-se de visitar Maria de Jesus já em Benfica: «Para essa casinha, ela convidava de vez em quando os amigos. Fui lá algumas vezes. Dizia que a pensão que lhe da- vam dava para se sustentar e ainda convidar uns amigos para almoçar.»504 «Já em Benfica», diz Micas, «ela não vivia sozi- nha, mas sim com duas das antigas empregadas de São Bento, que entretanto tinham os seus empregos mas partilhavam o mesmo apartamento.»505 Uma dessas acólitas foi Elisabete, a amiga de Otília Oliveira, que afirma ter esta recebido de Maria de Jesus, em testamento, terras na Freixiosa.506 Segundo David Reis, de Penela, também «uma moça que foi empregada do- méstica em São Bento, e que é dos lados de Ancião, acompa- nhou Maria até ao fim, e ela até lhe deixou terrenos».507 O antigo subsecretário de Estado da Presidência, que, quando Salazar morreu, pediu a Maria de Jesus uma recorda- ção do líder político e recebeu da governanta «a Parker que foi a última caneta com que ele escreveu»508 (fazendo assim jus à alcunha de «lapiseira de Salazar» com que Paulo Rodri- gues havia sido cognominado)509, afirma que, pela intimida- de de meio século com o antigo presidente do Conselho, a sua ex-intendente era vista, após o desaparecimento do go- D. Maria, companheira de Salazar 243 vernante, como «uma demiurga»: «Em dois ou três anos, ela foi de férias de verão para a Foz do Arelho com as minhas irmãs e comigo. Era adorada pelas mulherzinhas de lá, que iam visitá-la com frequência, vantagem de ter sido íntima de Salazar. Sentava-se na cadeira em frente da nossa casa e fala- va com elas. A Maria adorava estas conversas, mas era muito discreta sobre Salazar. Elas, muito modestas, iam pelo cheiro de santidade, por ela ter sido próxima de Salazar».510 Maria de Jesus, na verdade, não se prendia aos tempos idos, optando por não remexer no baú das recordações: «Nunca se mostrou interessada em falar sobre o passado, muito menos em refletir sobre ele. Talvez fosse penosa para ela a recordação. Preferia por isso remeter-se ao silêncio».511 Confirma Otília Oliveira: «Continuei sempre a falar com a D. Maria, ia a casa dela em Benfica. Não se falava do tempo passado».512 A sua antiga modista do Forte de Santo António, Leonor Dias, garante que a ex-governanta de São Bento fez parte da comitiva de Américo Thomaz quando o Presidente visitou o Brasil em 1972, acompanhado dos restos mortais de D. Pedro IV, então trasladados para a pátria adotiva do monarca (que ele tornou nação independente e de que foi primeiro sobe- rano). A costureira recorda-se por se ter tratado de uma rara ocasião em que a regrada Maria de Jesus cometeu a extrava- gância de confecionar «um enxoval de dois vestidos».513 Ne- nhuma outra fonte confirma a sua viagem, mas, a ter existi- do, poderia ser interpretada como um desagravo presidencial a Marcello Caetano (nunca tão próximo de Thomaz como o seu antecessor, que aliás o colocara na Presidência), usando Belém como instrumento a mulher que mais próxima estive- ra de Salazar. 244 A Governanta

Apesar de inabalável nas suas convicções, a antiga mu- lher forte de São Bento assistiu impassível ao 25 de Abril de 1974, como se lhe fosse indiferente, desaparecido o seu ídolo, que o regime fosse ditatorial, revolucionário ou democráti- co, que na cadeira do poder se sentasse um discípulo do mes- tre remetido a um beco sem saída, um militar deslumbrado pela política ou um civil escudado numa maioria parlamen- tar. «Ela foi muito discreta sobre o 25 de Abril» – é o único comentário que Paulo Rodrigues consegue produzir a pro- pósito, não retendo nenhuma reação de Maria de Jesus ao acontecimento.514 Nem factos insólitos, frutos de uma época insólita, alteraram essa sua atitude: Maria de Jesus tentava, em público, não ser reconhecida. Evitou sempre, aliás, que a fotografassem. Isso permitiu-lhe não ter sido incomodada depois do 25 de Abril, à parte peque- nos incidentes de ocasião. Destes, o mais desagradável deu-se quando, uma tarde, três indivíduos lhe tocaram à campainha dizendo, um deles, que era um sobrinho chegado do Brasil. Ela, que tinha uma irmã no Rio, mandou-os entrar, ofereceu- -lhes de beber, mas desconfiou dos modos. Perguntou-lhes pelos familiares e, de repente, olhando o relógio, disse: «Ah, já me esquecia, tenho de tomar uns remédios urgentes, aliás o médico está aí a chegar, peço-vos, meus filhos, que voltem amanhã, amanhã tenho todo o tempo disponível para vocês». Depois de terem saído, e temendo que houvessem deixado al- guma bomba escondida, chamou a polícia. No dia seguinte (fa- ziam parte de um grupo de extrema-esquerda), não lhes abriu a porta.515 D. Maria, companheira de Salazar 245

Apesar da discrição, Maria de Jesus não olvidou um passa- do glorioso à sua maneira, e uma das pessoas que a fazem revi- vê-lo é Christine Garnier, como a amiga francesa descreve re- conhecida nas suas memórias, escritas por esta altura: «Hoje, que tudo acabou, ela escreve-me, em português, para me dizer que não se esquece de nada. Obrigado. Obrigado, Maria».516 Relata-se uma bancarrota iminente da senhora, mas sem confirmação: «Com o 25 de Abril ela perdeu todos, ou qua- se todos, os seus rendimentos. Podia fazer uma fortuna se tivesse aceitado falar da sua vida com Salazar, desde Coim- bra! Negou-se absolutamente e morreu nobre, digna, exem- plar, em tudo!»517 Se manteve os rendimentos, confirma-se no entando a recusa em partilhar memórias, na linha aliás do seu pacto de silêncio: «Visito D. Maria meses depois de Salazar ter morrido. [...] A voz vibra quando lhe refere com- portamentos de impertinência (“tinha muitas birras, muitas teimosias”), de aspereza (“era tortinho, saía à mãe, dizem”), de ludíbrio (“ele gostava de meter medo aos que o enfrenta- vam”), de desamparo (“tinha a mania que era forte, mas sofria muito”). Um editor estrangeiro contacta-me: pretende ofe- recer-lhe milhares de contos pelas suas memórias. Levo-lhe a proposta. Ela olha-me com transparência: “Não posso. Eu prometi ao senhor doutor nunca falar da nossa vida. Está a ver, estou velha, doente, dentro em breve morro, e depois com que cara lhe apareço, lá em cima?”»518 É por isso algo bizarro o longo monólogo confessio- nal que Fernando Dacosta, tendo falado com Maria de Jesus nos seus últimos tempos, coloca na boca dela, para mais com algumas elocuções atribuídas a Salazar mas não fazendo par- te do que se conhece do seu pensamento ou da sua maneira de se exprimir. Como neste relato a ela atribuído: «Algumas 246 A Governanta vezes [Salazar] dizia-me, mostrando-me cartas, papéis, jor- nais: “Vê, vê? Estão todos a meus pés”. Todos, eram os gran- des do mundo que o incensavam. “Não acredite muito nisso”, respondia-lhe, “olhe que esses são os primeiros, chegando a ocasião, a voltar-se contra si”. “Eu sei, mas mesmo os que me detestam temem-me. Isso é que é importante”».519 Ou ainda este, feito por Manuel Marques: «Confidenciava-me, depois, muita coisa. Chegou a dizer-me que Salazar já não governava nada, que quem mandava era o Barbieri Cardoso, de quem ela não gostava».520 Teria a ex-governanta atingido de facto, como defendeu Franco Nogueira, um estado arterioscleró- tico que a levou a baralhar mito e realidade? Seja como for, passadas a letra de forma, essas considerações (parte delas, aliás, fazendo sentido) merecem menção numa recensão da matéria publicada sobre a personagem: «O senhor doutor insistia connosco na necessidade de pouparmos, de não cedermos à tentação de querer o inacessí- vel», rabujava-me D. Maria espartilhada pelos orçamentos do- mésticos de São Bento: «Moía-nos todos os dias o juízo com o perigo das promessas de bem-estar impossíveis de conseguir. Danava-o não poder acabar com tais demagogias, nem com a avidez dos ricos. A maior parte dos que o rodeavam eram insa- ciáveis de ambição. Para que o povo o não soubesse, a Censu- ra tinha de intervir, mas não adiantava grande coisa. Quando eu saía à rua as pessoas queixavam-se muito, contava-lhe isso, ele ouvia, às vezes tomava notas, só que não servia de grande coisa. Os galifões da PIDE, da tropa, da política, do dinheiro, todos palavrinhas mansas pela frente, enganavam-no perma- nentemente. De certo modo, era-lhe bem feito, pois tinha a mania que controlava tudo... quem é que o mandou ficar no Governo até tão tarde? Não escutava os amigos que o aconse- lhavam a ir descansar, como o doutor Mário de Figueiredo, o D. Maria, companheira de Salazar 247 doutor Bissaia Barreto. Sempre casmurro, só ouvia o que lhe convinha. Bem fez o cardeal Cerejeira, que resignou na altura certa. Se ele estivesse vivo e no poder também não teria havido o 25 de Abril. Sabia atuar a tempo, nos momentos certos, sem hesitações, desde Coimbra que se tornou obstinado, quem o traía escusava de contar com o seu perdão. Não se importa- va que discordassem de si, mas dentro das regras estabeleci- das. Por ele, claro. Os que as não acatavam não lhe mereciam condescendência, caíam sob a alçada da PIDE, eram presos, desterrados, essas coisas. Recebia muitas cartas de mulheres e mães de condenados a suplicarem piedade. Não lhes reagia. Quando se tratava de conhecidos meus eu pedia, sem ele sa- ber, ao major Silva Pais que, dentro do possível, interviesse. Atendia-me com frequência. Pessoa sensível [Silva Pais], so- freu muito com a fuga da filha [Ana, conhecida pelo diminuti- vo Annie] para Cuba [em 1962, acompanhando o marido, um diplomata suíço acabado de transferir de Lisboa para Havana, tendo-se ela integrado no regime revolucionário de Fidel Cas- tro]. Acho que a sua influência na polícia diminuiu a partir daí, embora continuasse como seu diretor [da PIDE]. O ho- mem-forte passou a ser, nos bastidores, o Barbieri Cardoso. O senhor doutor procedia como se nada tivesse acontecido, mas entre nós apiedava-se com as aflições do pobre major e desgraçado pai. Os católicos progressistas fizeram-se, depois dos comunistas, o grupo que o senhor doutor mais detesta- va. Considerava-os mesmo uns oportunistas porque não se assumiam frontalmente contra ele. Esses católicos provinham quase todos de famílias de posses, feitas com o regime. Como não queriam comprometer-se, armaram-se em contestatários, sabendo que tinham as costas quentes. O cardeal Cerejeira protegia-os, para os controlar, afirmava, mas nós não íamos nessa conversa. Muitos pertenciam à Opus Dei, uma organiza- ção que, sob a capa de religião, ambicionava o poder político e económico. Salazar sabia-o bem. Era tudo uma tropa fandanga 248 A Governanta

que o rodeava, que ele deixou que o rodeasse, e que o traiu logo que adoeceu. A começar pelo próprio almirante Améri- co Thomaz. Ao menos os comunistas não o enganavam... o senhor doutor respeitava até Álvaro Cunhal, a sua coragem, a sua inteligência, a sua coerência, talvez por serem, um em cada canto, parecidos. Escutei-lhe várias referências a ele. Ti- nha de o combater sem quartel dado ser, repetia, muito peri- goso. A sua fuga, com outros dirigentes do PCP, do forte de Peniche [em janeiro de 1960] foi sugerida por Salazar à PIDE. Tornara-se um incómodo muito grande mantê-lo prisioneiro em Portugal, se fosse para a Rússia, ou para outros países do Leste, perdia junto dos seus seguidores a auréola de mártir. O senhor doutor estava convencido de que Moscovo não apoia- ria nenhuma revolução para o apear. Mandou até suspender a biografia que uns indivíduos do regime queriam editar sobre o Estaline porque era muito dura para com ele. Os dirigentes da PIDE, para mostrar serviço, estavam, porém, sempre a ata- zaná-lo com os perigos do Leste... Ele não os levava muito a sério, mas queria-os a controlar tudo e todos, sem falhas. Di- vertia-se a saber o que diziam e pensavam de si, chegava a rir com o medo, o terror, que inspirava nos outros. Isso levava-o a exagerar na corda que dava às polícias e à Censura. Com a idade foi-se, porém, desinteressando, cansando. Quarenta anos a fazer a mesma coisa é muito tempo, até eu já estava farta de São Bento».521

Há, de qualquer modo, uma aura que Maria de Jesus, sa- bendo-se quem foi, transporta sempre consigo: «Aos domin- gos, quando “a sua figura alta, magra, imponente, entrava na igreja, todos os rostos se voltavam na sua direção, seguindo- -lhe os passos, apoiada a uma bengala, muito direita, com o cabelo apanhado atrás”, evoca o encenador Miguel Abreu, seu D. Maria, companheira de Salazar 249 vizinho na época. “Era uma mulher superiormente inteligen- te. Deve ter sido um suporte importante de Salazar. Ajudou-o muito no comando da Nação”, afirma-me o seu confessor».522 Vítima de uma trombose na transição para a década de 1980, Maria de Jesus é tratada no Hospital de Santa Maria e fica depois internada no Lar João XXIII, no bairro de Alva- lade.523 É então tirada a prova dos nove acerca de um enig- ma que se tornara já histórico: «Quando [...] “a algaliámos, na sequência de exames ginecológicos, ela sofria de infeção urinária crónica, comprovámos que estava completamente virgem. Virgem como veio ao mundo”, revela a diretora do lar [...]. “Reagiu bem ao ambiente desta casa”, destaca. “Nun- ca a vi zangada. Psicologicamente estava perfeita, tinha aqui grande carinho e apoio. Não se mostrava exigente, nem se- quer na comida. Apreciava especialmente pratos alentejanos e cozido à portuguesa. Vestia bem, com elegância. Via-se que era uma senhora educada, de princípios, muito discreta. Das 17 pessoas que havia cá dava-se apenas com duas ou três. Aquela com quem estabeleceu melhores relações foi com uma prima do doutor Álvaro Cunhal, Madalena Cunhal. E com a mãe do bailarino Jorge Trincheiras. Não falava do pas- sado. Nem em São Bento, nem em Salazar. Passava algum tempo na sala a ver televisão. Rezava o terço todos os dias, no quarto. Tomava o pequeno-almoço na cama, ia para a saleta, lia, lia bastantes livros, lanchava e deitava-se cedo”».524 Maria de Jesus não sobrevive muito tempo à doença, vin- do a falecer no lar escassos meses após ser internada: «“Man- teve até ao fim a sua personalidade. Expirou serenamente na madrugada de 22 de maio de 1981, na sequência de uma pneumonia”. Ao seu funeral foram 30 pessoas. Numa foto- grafia autografada que lhe deu pouco antes de morrer, Sala- zar escreveu: “A Maria de Jesus Freire, muito grato pela sua 250 A Governanta companhia de sempre, até sempre”».525 Micas fala de «umas duas dezenas de pessoas no funeral, mas entre elas pouca da gente que frequentava São Bento».526 As exéquias trouxeram à luz do dia a acrimónia acumu- lada entre Maria de Jesus e Rosalina, que tratou do enterro: «Ela ficou sepultada no cemitério da Ajuda, pois foi a irmã que quis que fosse para lá».527 Mais ainda: «Ficou em campa rasa, também por vontade da irmã. Poderia ter ido para o Ce- mitério do Vimieiro, porque o dr. Salazar mandou fazer uma laje para cada uma das irmãs e sobrou uma que reservou para ela, mas declinou».528 Também Mavilde Araújo afirma que o ditador «tinha comprado duas campas no cemitério da terra, uma para ele, outra para a Maria, mas a Maria não a quis».529 Foram as últimas vontades de Maria de Jesus (depois de em tempos negar à irmã mais nova a ação da Sacor que lhe prometera) que mais exasperaram Rosalina, se bem que o mal-estar viesse de trás: A irmã pô-la num lar. «Internaram-na contra a sua vonta- de. Contra a sua vontade levaram-na, depois de falecer, para os Jerónimos, não lhe respeitando o desejo de ficar na nossa igre- ja. A família contrariou-a em vida e em morta», exclama-me um dos frades de Benfica. Este religioso conviveu intimamente com ela. Acompanhou-a, inclusive, por várias vezes à sepul- tura de Salazar, no Vimieiro, ao Forte de Santo António do Estoril, ao teatro para ver a Laura Alves – delirou com a peça Um Zero à Esquerda. Todos os meses mandava celebrar missa por alma de Salazar. Dava, no entanto, não o apelido mas o nome de António Oliveira. «Deus sabe muito bem de quem se trata», confidenciava aos sacerdotes. Admiradora deles, anulou o testamento a favor da família, deixando a sua casa de Benfica aos Capuchinhos. Ao ser informada da alteração, ainda estava o corpo nos Jerónimos, a irmã Rosalina começou aos impropé- rios: «Não me deixou nada, nada, nem a bengala...»530 D. Maria, companheira de Salazar 251

Maria de Jesus não perdoava nem esquecia. A quezília ter-se-ia originado com a fuga de São Bento da rebelde filha de Rosalina (e afilhada da governanta), um quarto de século antes: «A Rosalina ficou contrariada. Havia atritos entre as duas. A Tia Maria quando fez testamento, deixando o apar- tamento para os padres da Ordem dos Capuchinhos, de que gostava muito, não lhe deu nada. Ela tinha ficado muito abor- recida por causa da situação criada pela Maria Antónia, por ter feito aquilo, e a Rosalina também, porque a Tia Maria não deu oportunidade à sobrinha de mudar de ideias, para a pe- quena lá ficar».531 Já Micas recebeu por disposição testamentária de Maria de Jesus algumas libras de ouro: «Tinham-lhe sido dadas pelo cónego Carneiro de Mesquita. Todos os anos, pela Páscoa, ele oferecia-lhe uma libra».532 Mas não só: «Herdei algumas das suas peças de mobiliário e parte do espólio de Salazar que, pela morte do Senhor Doutor, lhe havia ido parar às mãos. Esse gesto representava, da parte da minha concunhada, o reconhecimento final da relação privilegiada que eu havia mantido com o meu tutor. Recebi e guardo com carinho os objetos aos quais ela atribuía maior valor sentimental, en- tre eles um crucifixo de pau-santo e marfim que figurava no quarto do Senhor Doutor e que a Tia Maria depois pusera no seu».533 Quanto à Freixiosa, já todas as raízes haviam sido cor- tadas, e a ex-governanta nunca encarara a possibilidade de regressar à sua terra. A própria casa da família, há muito abandonada, tinha em tempos sido vendida por Rosalina, que pagara a parte às irmãs (já que os irmãos estabeleceram a vida além-mar).534 Tendo seguido Salazar para sempre, Ma- ria de Jesus virou as costas a Penela, na vida e na morte.

D. Maria, companheira de Salazar 253

Notas

Capítulo 1 / A retaguarda de Salazar:

1 Episódio narrado in Costa Brochado, Memórias de Costa Brochado, pp. 137-138. 2 Manuel Guimarães, «A mesa de Salazar de Santa Comba a São Bento», Diário de Notícias, 9 de agosto de 1992. 3 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 4 In Jaime Nogueira Pinto (org,), Salazar Visto pelos Seus Próximos, p. 43. 5 Costa Brochado, op. cit., p. 137. 6 Idem, ibidem, p. 138. 7 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 8 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 9 Fernando Dacosta, Máscaras de Salazar, p. 225. 10 Idem, ibidem, p. 224. 11 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, Os Meus 35 Anos com Salazar, p. 36. 12 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2008. 13 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 14 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 224. 15 Idem, ibidem, p. 224. 16 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 17 Christine Garnier, op. cit., p. 68. 18 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 19 Costa Brochado, op. cit., p. 138. 20 Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 43. 21 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 22 Fernando Dacosta, op. cit., p. 230. 23 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 24 Depoimento de Vera Franco Nogueira, recolhido telefonicamente em 2009. 25 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 254 A Governanta

26 In Felícia Cabrita, Os Amores de Salazar, p. 130. 27 António Rosa Casaco, Servi a Pátria e Acreditei no Regime, p. 230. 28 Felícia Cabrita, op. cit., p. 188.

Capítulo 2 / De camponesa a tricana:

29 Arquivo da Universidade de Coimbra, Registos Paroquiais, Penela, Santa Eufémia, livro de Baptismos n.º 11 (1893-1903), fols. 26-26v.º, assento n.º 23. 30 Idem. 31 Depoimento de Celeste Bento, recolhido em 2009. 32 Depoimento de Maria José, recolhido em 2009. 33 Depoimento de Mário Duarte, recolhido telefonicamente em 2009. 34 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 35 In Jaime Nogueira Pinto (org,), op. cit., pp. 247-249. Alves Machado virá a ser secretário de Estado do Comércio nos governos de Salazar e do seu sucessor, Marcello Caetano, entre 1965 e 1969. 36 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 37 J. Paulo Rodrigues, Salazar: Memórias para um Perfil, p. 237. 38 Franco Nogueira, Salazar, vol. I, p. 295. 39 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 40 Franco Nogueira, op. cit., p. 329. 41 Idem, ibidem. 42 Idem, ibidem. 43 Cf. Franco Nogueira, op. cit., p. 330. 44 Oliveira Salazar, Discursos. 1928-1934, pp. 5-6. 45 Franco Nogueira, op. cit., vol. II, p. 8. 46 Idem, ibidem, pp. 8-9.

Capítulo 3 / A luta pelo arroz:

47 Cf. Franco Nogueira, op. cit., vol. II, p. 9. 48 In Entrevistas de António Ferro a Salazar, p. 46 49 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 35-36. 50 José Leitão de Barros, «O Inquilino da Rua Bernardo Lima, 64», in O Século Ilustrado, 21 de maio de 1938, p. 2. 51 Franco Nogueira, Salazar, vol. IV, p. 364. D. Maria, companheira de Salazar 255

52 Idem, ibidem. 53 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 54 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 55 In Entrevistas de António Ferro a Salazar, p. 144. 56 Pedro Theotónio Pereira, Memórias, vol. 1, pp. 237-239. 57 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 30-33. 58 Idem, ibidem, p. 34. 59 Cf., por exemplo, depoimento de José Luciano Sollari Allegro in Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 39. 60 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 34. 61 Costa Brochado, op. cit., p. 138. 62 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 34-35. 63 José Leitão de Barros, artigo cit., p. 2. 64 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 38-39. 65 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 66 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 44. 67 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 40-41. 68 Idem, ibidem, p. 41. 69 In Entrevistas de António Ferro a Salazar, p. 192. 70 Christine Garnier, op. cit., p. 38. 71 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 45. 72 Idem, ibidem. 73 Idem, ibidem, pp. 45-46.

Capítulo 4 / Dentro de muros:

74 Idem, ibidem, pp. 48-49. 75 Costa Brochado, op. cit., p. 147. 76 Cf. Torre do Tombo, Arquivo António de Oliveira Salazar, AOS/CO/OP – 1, pasta 9. 77 Idem, ibidem. 78 Idem, ibidem. 79 Idem, ibidem. 80 Idem, ibidem. 81 Idem, ibidem. 256 A Governanta

82 Idem, ibidem. 83 Idem, ibidem. 84 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 50. 85 Cf. Torre do Tombo, Arquivo António de Oliveira Salazar, AOS/CO/OP – 1, pasta 9. 86 Cf. Franco Nogueira, op. cit., vol. III, p. 201. 87 Idem, ibidem. 88 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 73. 89 Cf. Fernando Dacosta, op. cit., p. 298. 90 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 59. 91 Idem, ibidem, p. 75. 92 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 60. 93 Idem, ibidem, pp. 60-61. 94 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 91. 95 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 60. 96 Costa Brochado, op. cit., p. 178. 97 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp., 62-63. 98 Idem, ibidem, p. 61. 99 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 75-76. 100 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009.

Capítulo 5 / Economia de guerra:

101 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 74. 102 Idem, ibidem. 103 Idem, ibidem, p. 73. 104 Idem, ibidem, p. 74. 105 Idem, ibidem. 106 Idem, ibidem, p. 65. 107 Depoimento de Maria de Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 108 Fernando Dacosta, op. cit., p. 54. 109 Idem, ibidem, p. 229. 110 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 71-73. 111 Idem, ibidem, p. 73. 112 Cf. António Barreto/Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História do Estado Novo, entrada «Fiscalidade». D. Maria, companheira de Salazar 257

113 Costa Brochado, op. cit., pp. 148-149. 114 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 95. 115 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. Cf. ainda Maria da Conceição de Melo Rita/ Joaquim Vieira, op. cit., p. 72. 116 Fernando Dacosta, op. cit., p. 225. 117 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 66. 118 Idem, ibidem, pp. 66-67. 119 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 41. 120 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 85. 121 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 65-66. 122 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 123 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 79-80. 124 Costa Brochado, op. cit., p. 175. 125 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 95. 126 Felícia Cabrita, op. cit., p. 129. 127 Idem, ibidem, p. 122. 128 Costa Brochado, op. cit., p. 138. 129 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 130 Fernando Dacosta, op. cit., p. 28. 131 Idem, ibidem, p. 224. 132 Costa Brochado, op. cit., p. 175. 133 Depoimento telefónico de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2009. 134 Fernando Dacosta, op. cit., p. 224. 135 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 136 Depoimento de Vera Franco Nogueira, recolhido telefonicamente em 2008. 137 Depoimento de Vera Franco Nogueira, recolhido telefonicamente em 2009. 138 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 139 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 76. 140 Cf. Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 77. 141 Segundo testemunho que terá sido ouvido a António Augusto Nogueira da Silva, relatado em depoimento de Tomás de Oliveira Dias, recolhido em 2009. 142 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 112-113. 143 Idem, ibidem, p. 113. 258 A Governanta

144 Idem, ibidem. 145 Fernando Dacosta, op. cit., p. 229. 146 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 94.

Capítulo 6 / Encruzilhada de paixões:

147 Costa Brochado, op. cit., p. 147. 148 Depoimento de Vera Franco Nogueira, recolhido telefonicamente em 2009. 149 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 40. 150 Idem, ibidem, p. 41. 151 Idem, ibidem, pp. 104-106. 152 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 153 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 107-108. 154 Fernando Dacosta, op. cit., p. 232. 155 Carta de Salazar a Maria da Conceição Santana Marques, 8 de dezembro de 1952, arquivo particular. 156 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 38. 157 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 158 Christine Garnier, op. cit., p. 138. 159 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 137-138. 160 Christine Garnier, op. cit., pp. 138-139. 161 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 23. 162 Idem, ibidem, pp. 68-69. 163 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 139. 164 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, pp. 78-79. 165 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 140. 166 Em português no texto francês. 167 Christine Garnier, op. cit., p. 141. 168 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 109. 169 Idem, ibidem, p. 136. 170 Em português no original francês. 171 Christine Garnier, op. cit., p. 194. 172 Idem, ibidem, p. 182. 173 Em português no original francês. 174 Idem, ibidem, pp. 118-119. D. Maria, companheira de Salazar 259

175 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 144. 176 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 106. 177 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 144 178 Idem, ibidem, p. 146. 179 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 201. 180 Idem, ibidem, p. 228. 181 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009 182 In Christine Garnier, op. cit., p. 229. 183 Em português no original francês. 184 Idem, ibidem, p. 241. 185 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 150. 186 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 245. 187 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 140. 188 In Correspondência Marcello Mathias/Salazar – 1947/1968, Difel, 1984, pp. 204-205. 189 Christine Garnier, Vacances avec Salazar, p. 41. 190 Christine Garnier, Jusqu’où Voient Mes Yeux, p. 155. 191 Idem, ibidem, p. 156. 192 Idem, ibidem, p. 160. 193 António Melo, «Nós somos ricos na inveja» (com base numa conversa com Maria Arminda Lacerda), Público, 17 de abril de 2000, p. 16. 194 Idem, ibidem. 195 Christine Garnier, op. cit., p. 138. 196 Christine Garnier, op. cit., p. 162. 197 Idem, ibidem, p. 162. 198 Idem, ibidem, p. 163. 199 Felícia Cabrita, op. cit., pp. 152-153. 200 In Correspondência Marcello Mathias/Salazar – 1947/1968, p. 217. 201 Cf. António Melo, «Um pequeno salazarinho» (entrevista com Jean-François Garnier), Público, 16 de abril de 2000, pp. 2-3, e Christine Garnier, op. cit., p. 192. 202 In António Melo, «Um pequeno salazarinho», Público, 16 de abril de 2000. 203 Christine Garnier, op. cit., p. 192. 204 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 138-139. 205 Pedro Jorge Castro, Salazar e os Milionários, p. 84. 206 In Correspondência Marcello Mathias/Salazar – 1947/1968, pp. 306-307. 260 A Governanta

207 Idem, ibidem, p. 308. 208 Idem, ibidem, p. 309. 209 Idem, ibidem, p. 310. 210 Franco Nogueira, op. cit., vol. IV, p. 349. 211 Cf. Torre do Tombo, Arquivo António de Oliveira Salazar, correspondência particular, cx. 43. 212 Idem, ibidem. 213 Franco Nogueira, op. cit., vol. IV, p. 391. 214 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 215 Franco Nogueira, op. cit., vol. IV, p. 400. 216 Idem, ibidem, p. 445. 217 Cf. Correspondência Marcello Mathias/Salazar – 1947/1968, p. 356.

Capítulo 7 / Intriga em São Bento:

218 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 107. 219 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 44. 220 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 221 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 108-109. 222 Idem, ibidem, p. 111. 223 Fernando Dacosta, op. cit., p. 226. 224 Idem, ibidem, p. 45. 225 Costa Brochado, op. cit., pp. 177-178. 226 Idem, ibidem, p. 145. 227 Cf. Costa Brochado, op. cit., p. 145. 228 O autor refere-se a um dos dez deputados da Causa Monárquica que haviam sido eleitos nas listas da União Nacional. 229 Costa Brochado, op. cit., p. 181. 230 Idem, ibidem, p. 182. 231 Pedro Ramos de Almeida, Salazar - Biografia da Ditadura, p. 429. 232 Cf. Costa Brochado, op. cit., pp. 281-283. 233 Cf. Costa Brochado, op. cit., pp. 283. 234 Cf. Costa Brochado, op. cit., pp. 283-286. 235 Cf. Costa Brochado, op. cit., pp. 184-185. 236 Fernando Dacosta, op. cit., p. 224. 237 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. D. Maria, companheira de Salazar 261

238 Costa Brochado, op. cit., p. 175. 239 Fernando Dacosta, op. cit., p. 93. 240 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 64. 241 Depoimento de Francisco Elmano Alves, recolhido em 2010. 242 Franco Nogueira, op. cit., vol. IV, p. 364. 243 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 140-141. 244 Idem, ibidem, pp. 142-143. 245 Idem, ibidem, pp. 145-146. 246 Depoimento de António Dias, recolhido em 2009. 247 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 248 Idem. 249 Em português no original francês. 250 Christine Garnier, op. cit., p. 255. 251 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009.

Capítulo 8 / Chez Maria:

252 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 115. 253 Depoimento de Maria da Conceição Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 254 Fernando Dacosta, op. cit., p. 230. 255 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 256 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 115. 257 Manuel Guimarães, «A mesa de Salazar de Santa Comba a São Bento», Diário de Notícias, 9 de agosto de 1992. 258 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 109. 259 Manuel Guimarães, Idem. 260 Idem, ibidem. 261 Fernando Dacosta, op. cit., p. 229. 262 Felícia Cabrita, op. cit., p. 130. 263 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 61. 264 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 265 In Manuel Guimarães, «A mesa de Salazar de Santa Comba a São Bento», Diário de Notícias, 9 de agosto de 1992. 266 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 109-110. 267 Manuel Guimarães. 268 Christine Garnier, op. cit. p. 89. 262 A Governanta

269 Fernando Dacosta, op. cit., p. 229. 270 Manuel Guimarães, Idem. 271 Idem, ibidem. 272 Idem, ibidem. 273 Depoimento telefónico de Vera Franco Nogueira, recolhido em 2009. 274 Manuel Guimarães, «A mesa de Salazar de Santa Comba a São Bento», Diário de Notícias, 9 de agosto de 1992. 275 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 109-110. 276 Manuel Guimarães, «A mesa de Salazar de Santa Comba a São Bento», Diário de Notícias, 9 de agosto de 1992. 277 Idem. 278 Idem. 279 Cf. Torre do Tombo online: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=3886688. 280 Fernando Dacosta, op. cit., p. 225. 281 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 38. 282 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., pp. 267-268. 283 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 182-183. 284 Idem, ibidem, p. 88. 285 Idem, ibidem, pp. 81-82. 286 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 287 Depoimento de Rui Salazar de Melo, recolhido em 2009. 288 Fernando Dacosta, op. cit., p. 227. 289 Idem, ibidem, p. 231. 290 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 291 Fernando Dacosta, op. cit., p. 231. 292 Depoimento de Rui Salazar de Melo, recolhido em 2009. 293 In Entrevistas de António Ferro a Salazar, p. 118. 294 Idem, pp. 118-119. 295 Idem, p. 120. 296 Idem, p. 124. 297 Manuel Guimarães, Idem. 298 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 88. 299 Manuel Guimarães, Idem. 300 Idem, ibidem. 301 Felícia Cabrita, op. cit., p. 130. D. Maria, companheira de Salazar 263

302 Idem, ibidem. 303 Depoimento telefónico de António Salazar de Melo, recolhido em 2009. 304 Idem. 305 Idem. 306 Franco Nogueira, op. cit., vol. IV, p. 331. 307 Idem, ibidem, p. 332. 308 In Franco Nogueira, op. cit., vol. IV, p. 333. 309 Idem, ibidem. 310 Cf. Pedro Jorge Castro, op. cit., p. 24. 311 Torre do Tombo, Arquivo António de Oliveira Salazar, correspondência particular. 312 Depoimento telefónico de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2009. 313 Depoimento de Salazar Lopo, recolhido em 2009. 314 Depoimento de António Dias, recolhido em 2009. 315 Felícia Cabrita, op. cit., p. 129. 316 Depoimento de Celeste Bento, recolhido em 2009. 317 Depoimento de António Dias, recolhido em 2009. 318 Depoimento de Maria José, recolhido em 2009. 319 Idem. 320 Idem. 321 Idem. 322 Depoimento de António Dias, recolhido em 2009. 323 Depoimento de José Santos, recolhido em 2009. 324 Depoimento de David Reis, recolhido em 2009. 325 Depoimento de Otília de Oliveira, recolhido em 2009. 326 Depoimento de Maria Marta Correia, recolhido em 2009. 327 Depoimento de Maria José, recolhido em 2009. 328 In António Melo, «As banhistas da praia do Estoril», Público, 18 de abril de 2000, p. 22. 329 Idem, ibidem. 330 Idem, ibidem. 331 Idem, ibidem. 332 Idem, ibidem. 264 A Governanta

Capítulo 9 / A caixa do correio:

333 Cf. Torre do Tombo, Arquivo António de Oliveira Salazar, cartas particulares, AOS/CP-257. 334 Cf. em http://app.parlamento.pt/PublicacoesOnLine/DeputadosAN_1935-1974/ html/pdf/s/simoes_augusto_duarte_henriques.pdf 335 José Paulo Rodrigues, op. cit., p. 237. 336 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 337 António Rosa Casaco, op. cit., p. 230. 338 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 181-182. 339 Torre do Tombo, Arquivo António de Oliveira Salazar, correspondência particular, AOS/CP-257. 340 Idem. 341 Torre do Tombo, Arquivo de António de Oliveira Salazar, correspondência particular, AOS/CP-43. 342 Idem. 343 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 154. 344 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 345 Torre do Tombo, Arquivo de António de Oliveira Salazar, correspondência particular, AOS/CP-43. 346 Idem. 347 Idem. 348 Idem. 349 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 46. 350 Torre do Tombo, Arquivo de António de Oliveira Salazar, correspondência particular, AOS/CP-43. 351 Pedro Jorge Castro, op. cit., p. 89. 352 Torre do Tombo, arquivo António de Oliveira Salazar, correspondência particular, AOS/CP-257. 353 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 354 Torre do Tombo, arquivo António de Oliveira Salazar, correspondência particular. 355 Idem. 356 Idem. 357 Costa Brochado, op. cit., p. 138. 358 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. D. Maria, companheira de Salazar 265

359 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 120-121. 360 Idem, ibidem, p. 121. 361 Correspondência Marcello Mathias/Salazar. 1947/1968, p. 225. 362 Idem, p. 356. 363 Idem, p. 396. 364 Depoimento de Fátima Lacerda, recolhido telefonicamente em 2009. 365 Idem. 366 Depoimento de Cecília Supico Pinto, recolhido em 2008. 367 Depoimento de Vera Franco Nogueira, recolhido telefonicamente em 2009. 368 Depoimento de Fátima Lacerda, recolhido telefonicamente em 2009. 369 Torre do Tombo, arquivo António de Oliveira Salazar, correspondência particular, AOS/CP-43. 370 António Rosa Casaco, op. cit., p. 230. 371 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 116. 372 Depoimento de Fátima Lacerda, recolhido telefonicamente em 2009. 373 Jaime Nogueira Pinto, op. cit., p. 260. 374 Fernando Dacosta, op. cit., p. 231. 375 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 74-75. 376 Idem, ibidem, pp. 156-157. 377 Idem, ibidem, pp. 157-158. 378 Idem, ibidem, p. 159. 379 Depoimento de Cecília Supico Pinto, recolhido em 2008. 380 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit. pp. 269-270. 381 Manuel Guimarães, Idem. 382 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 114. 383 Idem, ibidem, pp. 160-161. 384 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., depoimento de Henrique Martins de Carvalho, p. 191.

Capítulo 10 / A usura do poder:

385 Fernando Dacosta, op. cit., p. 353. 386 Idem, ibidem., p. 216. 387 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 388 Fernando Dacosta, op. cit., p. 98. 266 A Governanta

389 Idem, ibidem, p. 107. 390 Idem, ibidem, pp. 220-221. 391 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 162. 392 Em português no original francês. 393 Christine Garnier, op. cit., pp.208-209. 394 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 133. 395 Depoimento de Otília de Oliveira, recolhido em 2009. 396 Franco Nogueira, op. cit. vol. VI, p 240. 397 Depoimento de Otília de Oliveira, recolhido em 2009. 398 Fernando Dacosta, op. cit., p. 31. 399 Idem, ibidem, p. 27. 400 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 401 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 161. 402 Fernando Dacosta, op. cit., p. 353. 403 Idem, ibidem, p. 230. 404 Depoimento de David Reis, recolhido em 2009. 405 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 198. 406 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 407 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 408 In Franco Nogueira, Um Político Confessa-se, p. 159. 409 Franco Nogueira, Salazar, vol. VI, p. 109. 410 In Correspondência Marcello Mathias/Salazar - 1947/1968, p. 546. 411 Idem, p. 551. 412 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 413 Fernando Dacosta, op. cit., p. 325. 414 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 166. 415 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 416 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 240. 417 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit. p. 270. 418 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 181. D. Maria, companheira de Salazar 267

Capítulo 11 / O crepúsculo:

419 Idem, ibidem, p. 184. 420 Christine Garnier, op. cit., pp. 346-347. 421 In Christine Garnier, op. cit., p. 345. 422 Em português no texto original em francês. 423 Christine Garnier, op. cit., p. 347. 424 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 425 Fernando Dacosta, op. cit., p. 303. 426 José Paulo Rodrigues, op. cit., p. 251. 427 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 392. 428 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 429 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 378. 430 Idem, ibidem, p. 394. 431 In Fernando Dacosta, op. cit., p. 306. 432 Fernando Dacosta, op. cit., p. 316. 433 Cf. Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 398. 434 Cf. Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 398 e José Paulo Rodrigues, op. cit., pp. 254-255. 435 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 436 Franco Nogueira, Um Político Confessa-se, p. 313. 437 Franco Nogueira, Salazar, vol. VI, p. 399. 438 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 439 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 186-187. 440 Costa Brochado, op. cit., p 480. 441 Cf. José António Saraiva, Salazar - A Queda de uma Cadeira que Não Existia. 442 In Diário de Notícias, 10 de setembro de 1968. 443 José Paulo Rodrigues, op. cit. p. 251. 444 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 378. 445 Idem, ibidem. 446 Fernando Dacosta, op. cit., p. 227. 447 Idem, ibidem, p. 228. 448 In Diário de Notícias, 11 de setembro de 1968. 449 Fernando Dacosta, op. cit., p. 304. 450 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 268 A Governanta

451 In Jaime Nogueira Pinto, op. cit., pp. 43-44. 452 Fernando Dacosta, op. cit., p. 232. 453 Idem, ibidem, p. 21. 454 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 186-187. 455 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 456 Christine Garnier, op. cit., p. 139. 457 Idem, ibidem, p. 348. 458 Idem, ibidem, p. 349. 459 Cf. Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, pp. 421-422. 460 Fernando Dacosta, op. cit., p. 308. 461 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 424. 462 José Paulo Rodrigues, op. cit., p. 263. 463 Fernando Dacosta, op. cit., p. 224. 464 Em português no original francês. 465 Christine Garnier, op. cit., pp. 349-350. 466 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 467 José Paulo Rodrigues, op. cit., p. 263. 468 In Fernando Dacosta, op. cit., p. 309. 469 Franco Nogueira, vol. VI, p. 425. 470 Costa Brochado, op. cit, pp. 482-483. 471 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 472 José Paulo Rodrigues, op. cit., p. 264. 473 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 474 In Fernando Dacosta, op. cit., p. 309. 475 Costa Brochado, op. cit., pp. 481-482. 476 Idem, ibidem, p. 484. 477 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 188. 478 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 479 Idem. 480 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 435. 481 Depoimento de Cecília Supico Pinto, recolhido em 2008. 482 Fernando Dacosta, op. cit., p. 41. 483 Idem, ibidem, p. 312. 484 Franco Nogueira, op. cit., vol. VI, p. 435. 485 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 190-191. D. Maria, companheira de Salazar 269

486 Idem, ibidem, pp. 191-192. 487 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009.

Capítulo 12 / Purgatório:

488 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 489 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 195-196. 490 Manuel Guimarães, Idem. 491 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 196. 492 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 493 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 196. 494 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 495 Fernando Dacosta, op. cit., p. 363. 496 Fernando Dacosta, op. cit., p. 362. 497 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2009. 498 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 499 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 500 Depoimento de Cecília Supico Pinto, recolhido em 2008. 501 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 196. 502 Depoimento de Fátima Cértima, recolhido telefonicamente em 2009. 503 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., pp. 196-197. 504 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 505 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2009. 506 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 507 Depoimento de David Reis, recolhido em 2009. 508 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 509 Cf. Mário Soares, Portugal Amordaçado, Arcádia, 1974, p. 33. 510 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 511 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., p. 197. 512 Depoimento de Otília Oliveira, recolhido em 2009. 513 António Melo, «As banhistas da praia do Estoril», Público, 18 de abril de 2000, p. 22. 514 Depoimento de José Paulo Rodrigues, recolhido em 2008. 515 Fernando Dacosta, op. cit., p. 233. 516 Christine Garnier, op. cit., p. 140. 270 A Governanta

517 Costa Brochado, op. cit., p. 176. 518 Fernando Dacosta, op. cit., p. 354. 519 In Fernando Dacosta, op. cit., p. 353. 520 In Fernando Dacosta, op. cit., p. 226. 521 Fernando Dacosta, op. cit., pp. 298-300. 522 Idem, ibidem, p. 233. 523 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 524 Fernando Dacosta, op. cit. p. 235. 525 Idem, ibidem, p. 235. 526 De­poimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 527 Idem. 528 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido em 2008. 529 In Fernando Dacosta, op. cit. p. 362. 530 Fernando Dacosta, op. cit. p. 234. 531 Depoimento de Maria da Conceição de Melo Rita, recolhido telefonicamente em 2009. 532 Idem. 533 Maria da Conceição de Melo Rita/Joaquim Vieira, op. cit., 199. 534 Depoimento de Maria José, recolhido em 2009. D. Maria, companheira de Salazar 271

Bibliografia consultada

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Artigos:

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Joaquim Vieira (n. 1951), jornalista, ensaísta e documen- tarista, ocupou cargos diretivos no Expresso, RTP e Grande Reportagem e foi provedor do leitor do Público. Assinou a obra Portugal Século XX – Crónica em Imagens (em 10 volumes) e dirigiu uma série de fotobiografias de figuras nacionais do século XX, tendo redigido as de Salazar, Marcello Caetano, Almada Negreiros e Benoliel. Entre outros títulos, escreveu: Mário Soares – Uma Vida; Álvaro Cunhal – O Homem e o Mito; Mocidade Portuguesa – Homens para um Estado Novo; Só um Milagre nos Salva; De Abril à Troika – Quatro Décadas de De- mocracia que Transformaram Portugal; Francisco Pinto Balsemão – O Patrão dos Media que Foi Primeiro-Ministro; José Saramago – Rota de Vida; e História Libidinosa de Portugal. Foi coautor de Os Meus 35 Anos com Salazar; Mataram o Rei! – O Regicídio na Imprensa Internacional; República em Portugal! – O 5 de Outubro Visto pela Imprensa Internacional; Nas Bocas do Mundo – O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional; 150 Perguntas & Respostas Essenciais sobre a História de Portugal; e Caso Sócrates – O Julgamento do Regime. Em 2020 escreveu Bolsonaro, um capitão no Planalto, para distribuição com a revista Sábado. Servi a Pátria e Acreditei no Regime Servi a Pátria e Acreditei © António Rosa Casaco, A governanta em São Bento, por volta de 1960.

ampliada revista & biografia «foi a verdadeira, apesar de oculta, primeira-dama do estado novo.» fernando dacosta Joaquim Vieira D. Maria, companheira de Salazar de companheira D. Maria, A Governanta A

D. Maria, companheira de Salazar Joaquim Vieira A Governanta vol. 1 António de Oliveira Salazar O nome de Maria de Jesus Caetano Freire – ou simplesmente Maria, Menina Menina Maria, simplesmente – ou Freire Caetano de Jesus nome de Maria O Maria, Senhora como a Maria ou Dona conhecida tornou Maria –, se que menção em qualquer de Salazar, não possui governanta da residência menos uma muito Novo», do «Estado de história dicionários nenhum dos colaborou durante mais mulher, no entanto, quem Foi esta entrada própria. tempo e mais de perto com o ditador: até Lisboa, quando o acompanhou-o tão até chamaram para entrar no Governo, serviço e manteve-se ao seu sair de São Bento dentro de destacado protagonista do século XX português desen- se missão a sua que certo É meio século. ao fim de quase um esquife, nos responsabilidade qualquer sem pessoal, privado e âmbito no rolou mas importará questionar planos político, governativo ou administrativo, em pesado ter poderá de Jesus de Maria presença ponto a constante que até pelo presidente do Conselho. algumas das opções governativas seguidas «É, enfim, pela Maria que me chegam os murmúrios do os murmúrios que me chegam pela Maria «É, enfim, de até – palavra secretos, e os rumores mais exterior, um prisioneiro. Sim, [...] Sou um algumas críticas. honra! – isso anos. Mas para Estado há 23 Governo o prisioneiro. mim.» me governasse a que alguém era preciso