III SEMINÁRIO INTERNACIONAL EM MEMÓRIA SOCIAL Memória e turismo: roteiros, trajetórias, discursos e subjetividades em construção

Locais do Evento: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Centro Cultural José Bonifácio Instituto Europeu de Design 2019

ISSN 2448-1114

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Instituição Promotora Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro http://www.memoriasocial.pro.br/proposta-area.php

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Projeto e diagramação Ana Lívia de Matos (16) 98113-0352 [email protected] Coordenação Geral Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Maria Amália Silva Alves de Oliveira Lobelia da Silva Faceira Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Leila Beatriz Ribeiro Manoel Ricardo de Lima Neto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Glenda Cristina Valim de Melo Miguel Angel de Barrenechea Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Diana de Souza Pinto Regina Abreu Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Ricardo Salztrager André da Costa Gonçalves Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade das Forças Armadas Sérgio Luiz Pereira da Silva Comissão Local - UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Amir Geiger Sofia Débora Levy Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Andréa Lopes da Costa Vieira Vera Dodebei Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Denise Maurano Mello Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Comitê Científico André da Costa Gonçalves Edlaine de Campos Gomes Universidade da Força Aérea Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Artur Cesar Isaia Evelyn Goyannes Dill Orrico Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Branca Falabella Fabrício Francisco Ramos de Farias Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Edlaine de Campos Gomes Glaucia Regina Vianna Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Evelyn Goyannes Dill Orrico Javier Alejandro Lifschitz Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Fábio Sampaio Josaida Gondar Centro Federal de Educacional Tecnológico Celso S. da Fon- Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro seca

José Ribamar Bessa Freire Francisco Ramos de Farias Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Sandra de Sá Carneiro Universidade Estadual do Rio de Janeiro Glaucia Regina Vianna Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Sofia Débora Levy Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Jonas Henrique Oliveira Universidade Federal do Piauí

Jorge Eremites de Oliveira Universidade Federal de Pelotas

Karla Estelita Godoy Universidade Federal Fluminense

Leila Beatriz Ribeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Liliana Cabral Bastos Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Lyslei Nascimento Universidade Federal de Minas Gerais

Louise Prado Alfonso Universidade Federal de Pelotas

Lucas Graeff UnilaSalle

Luiz Alexandre Mees Universidade Federal Fluminense

Maria Renilda Nery Barreto Centro Federal de Educacional Tecnológico Celso S. da Fon- seca

Marília Giselda Rodrigues Universidade de Franca

Marta Rosa Borin Universidade Federal de Santa Maria

Paulo Melgaço da Silva Junior Faculdade Gama Souza

4 A MEMÓRIA DA GASTRONOMIA E O TURISMO NA INTRODUÇÃO BRAGANÇA AMAZÔNICA A gastronomia é um elemento importante no contexto do Turismo Cultural, permitindo ao visitante aproximar-se Cecília Nascimento Ferreira1 - UNOPAR [email protected] da localidade visitada, vivendo experiências sensoriais e Helena Doris de Almeida Barbosa2 - FACTUR/UFPA também culturais. Desta maneira, é entendida como um [email protected] segmento que pode agregar valor ao turismo. E além disso, Sandreson Marcelo Pereira da Silva3 - PPLSA/UFPA podendo ser um segmento do turismo que envolve desde a [email protected] matéria prima, o agronegócio, trade turístico e cultura. A diversidade cultural do país é entendida como um RESUMO: O objetivo deste trabalho é discutir como a diferencial na construção de roteiros turísticos, na qual cada memória do saber fazer gastronômico pode se inserir como estado tem sua gastronomia peculiar expressa nos seus pra- um produto turístico para além do mercado, trabalhando a tos. Logo esse segmento tem despertado interesse naqueles vivência cultural e patrimonial de populações rurais do nor- indivíduos que tem um relacionamento mais próximo com deste paraense, que têm como ponto comum o cultivo e uso o patrimônio natural e cultural brasileiro e que de fato são de derivados da mandioca (Manihot utilissima) enquanto ele- fatores relevantes para o turismo. Assim, a gastronomia vem mento básico da alimentação amazônica. A pesquisa permitiu se destacando em vários estados Brasileiros como demonstra a elaboração de um roteiro gastronômico alternativo para o Junior (2005) em seu livro Roteiros do Sabor Brasileiro – turis- município de Bragança, tomando-se como protagonistas mo gastronômico, na qual revela as peculiaridades de várias do mesmo os moradores das comunidades de Camutá (Sítio regiões do Brasil em sua culinária, dentre esses, são citados, Grande), Japetá, Curuperé (área rural) e a sede do município. Belém, Marajó, Macapá e Manaus, São Luís, Lençóis mara- O trabalho foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica, nhenses, Parnaíba e Teresina, Petrolina e Juazeiro e Rota do documental e de campo com o registro do saber fazer dos vinho entre outros. investigados. Observou-se que os sujeitos da pesquisa en- No que se refere aos festivais, tem-se no Norte um dos tendem que a “cozinha do dia a dia” é um testemunho da mais expressivos festivais gastronômicos do pais, que é o Ver- memória cultural e que deveria ser percebida, divulgada e o-Peso da Cozinha Paraense, realizado pelo Instituto Paulo valorizada. Os entrevistados são representantes da gastrono- Martins e criado pelo Chef Paulo Martins, que se destacou mia bragantina, cujo produto é herança perpassada por ger- no cenário nacional e mesmo internacional com ingredientes ações a partir de conhecimento empírico e da memória social típicos do Norte, em uma cozinha tradicional e regada de local. Conclui-se que, apesar da gastronomia local ainda não traços indígenas, o que rendeu a capital paraense o título ser levada ao patamar de significante turístico e sim apenas de Cidade Criativa da Unesco, destaque para a gastronomia. coadjuvante do mesmo, pode vir a se tornar a base para a O festival nas últimas três edições, teve presença da cozinha implementação de um possível turismo de base comunitária. tradicional do município de Bragança, no nordeste paraense, distante 210 quilômetros de Belém, capital do estado do Pará. Palavras-chave: Gastronomia. Turismo. A gastronomia bragantina existente nas localidades de Ja- Memória. Mandioca. Bragança petá, Camutá/Sítio Grande e Curuperé (onde foi realizada esta pesquisa), possuem um potencial turístico muito grande, sig- 1 Bacharel em Turismo, pela Universidade Federal do Pará-UFPA. Grad- nificativamente peculiar, pelo fato de suas produções serem uanda do curso de Nutrição pela Universidade Norte do Paraná - Unopar. bem mais expressivas que nas demais localidades do municí- 2 Doutora em Desenvolvimento Socioambiental, Pesquisadora e Docente pio, chegando até 75% dos casos, a serem a única a produzir da Faculdade de Turismo da Universidade Federal do Pará. determinado alimento, no entanto, em sua maior parte, não é 3 Licenciado em Letras Inglês, pela Universidade Federal do Pará. bem valorizada e por conseguinte não se efetivou ainda como Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes da produto turístico. De maneira geral, as regiões com potencial Amazônia –PPLSA/UFPA. Integrante do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudo Linguagem, Imagem e Memórias – LELIM. 5 turístico gastronômico, tem sua gastronomia reconhecida e vas possibilidades. De acordo com Pinheiro-Mariz e Oliveira valorizada através de seus produtos. (2012), a gastronomia é um lugar de memória e de poder, O patrimônio gastronômico do nordeste do estado do presente nas relações sociais e de dominação política e do Pará, se constitui fruto de uma herança deixada por povos saber fazer. Deve ser percebido como um produto cultural que indígenas, africanos e europeus que por esta terra passaram, se reinventa, se rememora enquadrando-se nas diversas for- durante seus mais de quatrocentos anos. É evidenciada pelos mas de turismo voltadas para as características gastronômi- derivados da mandioca (Manihot utilissima), planta cas de cada região. típica da região amazônica, tais como farinha, mandicoeira, Para tal é preciso entender o porquê, dessas característi- tapioca e beijú, esses, combinados a um cardápio praiano a cas diversificadas, o porque cada comunidade, localidade base de peixes, mariscos e frutos do mar bem como frutas ou grupos populacionais próximos, têm características gas- tropicais; como o açaí (Euterpea oleracea), bacuri (Pla- tronômicas diferentes, levando a satisfação alimentar do ser tonia insignis), taperebá (Spondias mombin), Cup- humano, apenas como necessidade de sobrevivência e sua, uaçu (Theobroma grandiflorum), entre outras. posterior, evolução para chegar às diferenças atuais, aos rit- Com toda esta diversidade de produtos o município de uais de integração e prazer que a gastronomia proporciona, Bragança ainda é tímido no que tange a entrada no mercado às novas experiências de vivencia através dos sabores. Como turístico gastronômico. Porém nesta perspectiva o crescente afirma Azambuja, regionalismo da cozinha moderna abre caminho à gastrono- Ao conhecer novas culturas, alimentos e sa- mia bragantina para que se insira neste patamar. E esta bores, o homem tem a necessidade que esse procura por novos saberes, memórias e culturas exóticas faz momento seja um evento especial, como se da gastronomia de Bragança um produto com grande poten- fosse um ritual de prazer, ou seja, o mesmo cial turístico. alimento, saboreado sozinho (sem outras Assim percebe-se que o indivíduo em busca de novos pessoas), não teria o mesmo sabor, ou não conhecimentos, seja experimentando diferentes sabores, proporcionaria o mesmo prazer. Isso mostra presenciando distintas culturas, a gastronomia, pode ser um a importância dos rituais gastronômicos dos principais motivos para se conhecer determinado lugar. para o ser humano, são novas descobertas. Assim, tem-se vários exemplos de lugares para onde as pes- (AZAMBUJA, 2001. p. 87) soas se deslocam para vivenciar e usufruir da cultura daquele lugar como por exemplo o Chile com suas vinícolas e seus As viagens e a gastronomia sempre fizeram parte da vida pescados, Tailândia e Japão com exotismo da gastronomia do homem, seja por necessidade de sobrevivência, satisfação oriental, França com sua gastronomia requintada e tradicion- ou desejos de novas experiências, ou mesmo por imposição al. No Brasil pode-se citar a gastronomia Baiana, a nordestina da sociedade, por questões religiosas, cultural e econômica e a amazônica. dependendo do período histórico em que se encontra o in- No entanto, com a globalização, essas trocas de experiên- divíduo. Assim, Ferro (2013) afirma que é da crescente con- cias ficaram mais fáceis. Hoje é possível conhecer quaisquer scientização da importância que estas atividades causam na alimentos de todas as culturas, sem precisar conhecer as suas essência da construção do indivíduo, que surge a oportuni- respectivas localidades, está quase tudo a alcance da mão. dade de usar estes dois conceitos como meios de atividade Porém, somente conhecer sem mesmo está presente naquele econômica, isto é, gerar renda a partir da gastronomia e do determinado local para muitos isso não é o suficiente, então é turismo, o turismo gastronômico. Acrescenta Fagliari (2005) a partir daí que o turismo gastronômico torna-se um diferen- que do ponto de vista da demanda consiste em toda viagem cial e abre um leque de possibilidades. a principal motivação que é o prazer de degustar alimentos É importante compreender a gastronomia, não só do e bebidas e conhecer elementos gastronômicos de uma nova ponto de vista do turismo. Como um produto ou como um localidade. atrativo de uma determinada localidade, pois apresenta no-

6 Assim complementa Oliveira (2011) quando diz que porque exige de quem a faz conhecimento, surpreendentemente, este tipo de turismo torna-se cada vez habilidade e técnica. É uma arte ou ciência mais importante, aumentando consideravelmente o número que exige conhecimento e técnica de quem de viajantes motivados pela gastronomia. Justificado por a executa e formação do paladar de quem Pires (2005) quando diz que se turismo é sair do seu mun- a aprecia. do para entrar no mundo do outro, um dos caminhos mais prazerosos é gastronomia. Para Mascarenhas e Matias (2007, Assim, Savarin (1995, p. 23) ressalta que o conceito de p. 249) o turismo gastronômico é um, gastronomia engloba o ato de comer, já que esta ciência “é conhecimento fundamentado de tudo que se refere ao [...] significativo na representação da iden- homem na medida em que ele se alimenta”. Schlüter (2006) tidade de uma comunidade e constitui-se afirma está intrinsecamente relacionado à identidade de um parte integrante da cultura, estando presen- povo e que para preservá-lo é necessário ter conhecimento e te na memória da sociedade. Por isso, deve compreensão de suas origens, além de acompanhar todas as ser preservada como patrimônio intangível transformações que o compõem. dos povos, ressaltando as particularidades da gastronomia que são percebidas na Cada sociedade alimenta-se através de diferentes com- escolha dos ingredientes e temperos; no binações de alimentos, ritos, mitos, sistemas de produção e modo de preparo e serviço dos alimentos e transformação alimentar fazem parte de seu modo alimentar na determinação de quando, como e onde que vão caracterizar os modos de ser e fazer com relação à deve ser preparado cada prato; se estes são gastronomia de cada grupo social. consumidos nas refeições diárias ou em oca- Os hábitos alimentares podem mudar siões especiais. inteiramente quando crescemos, mas Esta preservação de rituais da gastronomia de um povo a memória e o peso do primeiro apren- e toma-lo como produto cultural imaterial é, sobretudo, uma dizado alimentar e algumas das formas afirmação das tradições históricas e culturais deste mesmo sociais aprendidas através dele perma- povo, mais do que simplesmente uma expressão do paladar necem, talvez para sempre, em nossa e cultural que orienta escolhas individuais. consciência (…) (MINTZ, 2001, p. 32). E desta forma, por apropriar-se deste conceito, países como França, Espanha, reinventaram-se e apostaram no de- Sendo assim, é possível afirmar que nas sociedades hu- senvolvimento das potencialidades gastronômicas/culturais. manas a alimentação pode ser analisada pelas dimensões Entre outros aspectos, ocupam, hoje, a vanguarda dentro do biológica e nutricional, assim como também pelas dimensões turismo mundial, principalmente no que tange a gastronomia histórica, cultural e social. internacional moderna. Esta ao longo da primeira década do Para Cohen e Avieli (2004) a gastronomia local tende-se século XIX vem sofrendo grande influencias regionais, assim, a transformar-se em popular e atrativa quando interpretada abrindo margem para outras cozinhas, de certa forma, con- por um estabelecimento gastronômico direcionado para o sideradas mais exóticas. turista. Desta maneira a partir do encontro entre a cozinha Dentre as especificidades de um povo a gastronomia é nativa e as exógenas podem surgir novos pratos e inclusive um traço de sua própria identidade e memória coletiva Neste novas cozinhas. No entanto, não constitui uma mera fusão en- sentido é importante compreender o que é gastronomia. De tre elementos estrangeiros e locais, mas inclui uma inovação acordo com Braune e Franco (2007, p. 14): ou elemento criativo. De acordo com Jones e Jenkins (2002), o conceito de é uma disciplina que exige arte não so- mente de quem executa, mas também de alimentação incorporado ao turismo evolui desde suas raízes quem a consome ou usufrui. É artesanato, históricas até as mais gerais, associadas a indústria da hospi- talidade até o significado mais amplo de turismo de alimen- 7 tos, a ponto de converter os produtos alimentícios em uma muitas vezes em virtude de diversos fatores concretos, tais importante ferramenta para promoção de destinos turísticos. como, a disponibilidade de produtos e técnicas de preparo, Os alimentos são agora utilizados para desenvolver nichos bem como pela questão das condições econômicas. Neste de mercado, sustentar identidades regionais, desenvolver o sentido encontra-se o turismo, que pode ser um elemento turismo de qualidade e um turismo sustentável. E a exem- de compreensão das relações de interação entre o homem e plo do que vem ocorrendo nos países como França e Itália o espaço na produção de alimentos. As produções alimentares que reconhecem o valor de seus regionalismos, e defendem acabam gerando novas paisagens que podem ser utilizadas suas características e particularismos através de processos de pela atividade turística. reconhecimento e também com medidas de proteção. Corigliano (2002) ressalta que o turista gastronômico DESENVOLVIMENTO permite tanto entrar em contato com a natureza como com a cultura da região, estabelecendo laços com o passado, suas De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Es- tradições e seu patrimônio histórico cultural que se expressa tatística (IBGE), Bragança, conhecida como Pérola do Caeté, em sua agricultura, no entorno, nos padrões sociais e nas foi habitada por índios apotiangas da nação dos tupinambás, tradições de lavoura. Acrescentando a este ponto, Scarpato e está localizada à margem esquerda do rio Caeté. A cidade é (2002) diz que o turismo gastronômico reflete os aspectos uma das mais antigas do estado do Pará, com mais de quatro de sustentabilidade do turismo em geral. Mas, existe um séculos de história. Álvaro de Sousa, denominado fundador conjunto de elementos adicionais que também são impor- de Bragança, era português e trouxe para a cidade vários tantes, dentre eles a sobrevivência da produção local de ali- compatriotas que deram impulso à economia local e também mentos, pontos de venda e mercadorias de produtos frescos; influenciaram a cultura bragantina, bem como os índios e a viabilidade de preparação das comidas caseiras; o direito ao negros africanos, no decorrer da história. Da mesma forma prazer e a diversidade e não menos importante o impacto do esta miscigenação influenciou diretamente na culinária, que turismo sobre a autenticidade gastronômica e o bem-estar mesmo assim ainda é fortemente determinante dos traços comunitário. indígenas, primeiros habitantes da região hoje chamada Bra- Damatta (1987. p. 22) observa que a atenção dada à gança, na Amazônia brasileira. gastronomia no viés da cultura não deve ser encarada apenas A cidade de Bragança está localizada na Mesorregião do como mais uma ferramenta turística. Segundo ele, embora Nordeste Paraense e Microrregião Bragantina, com coordena- seja um significante atrativo, ela é capaz de perpetuar hábitos das geográficas 01º 03’15’’ de latitude Sul e 46º 46’ 10 “ de e modos de fazer de várias gerações e garante a continuidade longitude a Oeste de Greenwich, segundo o IBGE, tem uma das tradições de uma sociedade e, também, a sua história. área de 2.340 Km², 0,19% da área estadual, com densidade Os hábitos alimentares de uma sociedade denotam entre as demográfica de 54,13 hab/km2. O município limita-se ao cores e sabores outros valores que são de caráter social tais Norte com o Oceano Atlântico, ao Sul por Santa Luzia do Pará como: religião, etnia e história. e Viseu, a Leste pelo município de Augusto Corrêa e a Oeste O fortalecimento da ideia de pertencimento do lugar, que pelos municípios de Tracuateua e Capanema, conforme visu- contribui para reforçar a identidade de um povo e a abrangên- alizado na figura 1. cia da relação alimentação/cultura não se restringem so- mente aos processos de manipulação dos alimentos a serem ingeridos. Junto a eles estão os modos à mesa, bem como os locais e as maneiras com que a degustação ocorre. Fazendo com que o complexo fenômeno alimentar humano tenha marcas de mudanças sociais, econômicas e tecnológicas. Nesse sentido, deve-se lembrar que a introdução ali- mentar e/ou a modificação de um hábito alimentar acontece

8 duzir diariamente 100 kg de carne e 25 quilos de pata de ca- ranguejo. Bragança vive também do comercio varejista local. De acordo com o Inventário (BRAGANÇA, 2013) a gas- tronomia paraense é considerada a mais típica do Brasil. Apresenta, desta forma, grande diversidade, e pouca, ou nen- huma, alteração sofreu em relação às suas formas e raízes, eminentemente indígenas. Assim tem-se algumas das prin- cipais comidas e bebidas da Região Bragantina, tendo como base a mandioca. No que consiste a identidade gastronômica bragantina, Figura 1: Mapa de Bragança. Fonte: IBGE, 2018. pode-se dizer que representativamente a mandioca e seus derivados se constituem os alimentos mais consumidos e pro- O bragantino que vive da agricultura, um crescimento no duzidos no município. Bragança, nesta perspectiva, detém a suporte da agricultura familiar nos últimos anos, contudo ain- fama de possuir a melhor farinha do mundo, como os próprios da incipiente para o mercado externo, e tem como principal habitantes e principais consumidores deste alimento que ul- cultura a mandioca e a produção de seus derivados, como a trapassa as fronteiras locais, declaram. farinha4, tapioca, tucupi, beiju, bolo de massa, mandicoeira Além de toda a produção gastronômica tipicamente lo- entre outros, da qual se aproveita tudo. Uma cultura deixada cal, atividade desenvolvida 99% por agricultores familiares, pelos índios e até hoje é parte da economia e mesa do bra- que produzem apenas para sustento e/ou consumo próprio. gantino. A exemplos como o de Dona Selma do Rosário (figura 2) que A pesca é uma das principais economias do município, produz o exótico Tacacá6 de Caranguejo, o de Seu Antônio da desde a pesca artesanal, atividade desenvolvida por peque- Silva (figura 3) que assa uma fornada por semana de Bolin- nos pescadores a empresas de grande e médio porte. Estes hos7 de Massa para vender na feira aos domingos, e de Miguel desenvolvem atividades em alto mar e tendo como foco o Matos (Del) (figura 4) que produz mandicoeira8 de quinze em mercado externo, e o melhor de seu produto não fica na ci- quinze dias alternando com outros integrantes da família, dade. Bragança é o maior polo pesqueiro do Estado do Pará, e igualmente produtor do referido produto. Esses agricultores exportando sua produção principalmente para as capitais do (entrevistados neste trabalho), jamais tiveram cursos ou ori- Nordeste e do estado do Pará. entações de órgãos especializados, tem seus conhecimentos Há também grande atividade pecuária, extrativismo repassados por gerações, e que correm o risco de se perder a de caranguejos, na qual, segundo dados da Agência de Def- curto ou médio prazos. esa Agropecuária do Pará (ADEPARÁ)5, de acordo com (BRA- 6 O tacacá não é considerado uma refeição. É uma espécie de bebida GANÇA, 2013) possui a primeira fábrica regularizada do Brasil ou sopa, servida em cuias e vendida pelas “tacacazeiras”, geralmente a vender massa de caranguejo em conserva, chegando a pro- ao entardecer, na esquina das principais ruas das cidades paraenses, sobretudo Belém. Na hora de servir são misturados, na cuia, tucupi, goma de tapioca cozida, jambu e camarão seco. Pimenta-de-cheiro a 4 A farinha é o elemento mais frequente nas mesas de todas as classes gosto. Disponível em: < http://www.cdpara.pa.gov.br/tacaca.php> sociais de Bragança, o que justifica o fato da mandioca ser a principal Acesso em: 10 de maio de 2018. cultura agrícola em toda a história do município. 7 São comestíveis derivados da mandioca, com recheio ou cobertura de 5 A Agência Estadual de Defesa Agropecuária do Estado do Pará-ADE- coco ralado e queimado ao forno de lenha e que fazem parte da cultura PARÁ é uma entidade de Direito Público, criada através da Lei Estadual bragantina desde o tempo em que as margens do Caeté ainda eram Nº 6.482, de 17de setembro de 2002. A ADEPARÁ foi constituída sob a habitadas pelos índios que deram nome ao rio que banha o município. forma de autarquia, com autonomia técnica, administrativa e financeira, 8 Mingau feito da mandiocaba ralada, uma variação da mandioca, vinculada à Secretaria de Estado de Agricultura -SAGRI. A ADEPARÁ tem também conhecida como mandioca açucarada, com arroz vermelho, ou por finalidade executar a política de Defesa Agropecuária em todo o Es- tipo dois, pois segundo o produtor Miguel Iranildo de Azevedo Matos tado do Pará. (Disponivel em: < http://www.adepara.pa.gov.br/index. (Del), somente esses o grão abre para dá a forma do mingau final. php?adepara=nav/page&pagina=Perfil> Acesso em 23 mar. 2016) (Pesquisa de Campo, 2016) 9 técnica através do Chef Valfir, os mestres da cozinha bragan- tina (anteriormente mencionados) que cotidianamente de- senvolvem suas práticas tradicionais, ainda mesmo descon- hecidas por muitos bragantinos. Pois quem come bolinhos de massa, mandicoeira e mesmo o tacacá de caranguejo, prato de família de Dona Selma, criado pela sua avó há mais de 90 Figura 2: Dona Selma Figura 3: Seu Antonio Figura 4: Miguel Matos (Del). anos, não sabem como e porque cada um desses pratos é pro- Fonte: Cecília Nascimento, 2016. duzido e quais memórias trazem consigo. As comunidades selecionadas neste trabalho foram Tendo isso como impulso para o desenvolvimento deste Camutá (Sitio Grande), Japetá e Curuperé, (Figura 5) to- trabalho, busca-se na antropologia cultural e da história o en- das próximos ao centro urbano do município em média 7 a tendimento de como as sociedades, dos primórdios até hoje 8km. Durante a pesquisa foram encontrados vários pontos e em diferentes regiões do mundo, produzem, reproduzem e em comum entre as comunidades, desde sua formação que materializam o saber. Isto é, como as diferentes sociedades segundo cada um dos entrevistados são compostas na sua formam e transmitem o seu conhecimento acumulado ao maioria por familiares, dos quais foram os primeiros a habitar longo dos tempos. Dito de outra forma, como elas formam e a localidade, até mesmo o modo rustico de elaboração de seus transmitem a sua memória social (CONNERTON 1989; OLICK produtos. Cada comunidade pesquisada possui seu modo par- 2011). ticular de preparar cada um de seus produtos. Daí questiona-se qual é a relação da memória social com a identidade, a qual Halbwachs (1992), esclarece que a identidade reflete todo o investimento que um grupo faz, ao longo do tempo, na construção da memória. Portanto, a memória coletiva está na base da construção da identidade. Esta reforça o sentimento de pertencimento identitário o que, de certa forma, garante a unidade e coesão da continuidade histórica de um grupo. Justamente é o que se observa em todos os atores desta pesquisa os quais não tiveram acesso Figura 5: Mapa da localização das comunidades visitadas. a escola, ou curso qualquer de gastronomia que os fizessem Fonte: Adaptado por Cecilia Nascimento a partir de Goolgle Maps. aprender ou mesmo aprimorar seu produto. Contudo, a pro- dução é feita há décadas, perpassando gerações e atualizan- Um dos primeiros locais visitados na pesquisa foi o Ja- do-se sem mesmo perder a identidade, mantendo modelos petá, lugar aonde se produz Bolinho de Massa. (figura 6) O rústicos de preparo, à sua época. senhor Antônio Andrade da Silva, de 58 anos, com apenas Por outro lado, falar da gastronomia amazônica e par- o ensino fundamental menor (antigo ginásio) bragantino, aense, vem em destaque o nome de Ofir Oliveira, nascido casado, agricultor e é residente na comunidade a 44 anos. Ele em Calçoene, no Amapá e criado em Bragança, terra que o aprendeu a produzir os bolinhos de mandioca com a sogra adotou. Segundo Ofir Oliveira, sua mãe foi a primeira profes- Dona Orlandina, ainda viva, porém não produz mais. Segun- sora de gastronomia de Bragança e foi neste momento que do ela, aprendeu a fazer a iguaria com a mãe, e diz ser uma começou seu convívio com a cozinha. atividade que a mãe aprendeu com os índios. Semanalmente Além de Chef Ofir, o Chef Valfir Ribeiro, bragantino, -ex fabricam os bolinhos de mandioca, com sua esposa e sua filha erce este oficio a 23 anos, além de ser pesquisador da gas- que o ajudam na produção dos bolinhos demais parentes da tronomia regional. comunidade. Trabalha intimamente com a cozinha regional e tradi- cional. Para a realização deste pesquisou-se além da cozinha

10 davia admite sobreviver da venda dos produtos derivados da mandioca que ele mesmo planta. A mandicoeira é derivada da mandiocaba, um tipo de mandioca que não é toxica, e possui muita glicose e líquido, servindo até para matar a sede em meio a roça, e mesmo de alimento para animais. Hoje em Bragança, segundo Del, poucos são os produtores de Mandicoeira, muito comum nas noites da Iluminação, dia de finados, vendida na frente dos cemitérios da cidade, também chamado pela população como mingau dos mortos. Assim como, Seu Antônio, os saberes sobre a mandicoei- ra são heranças de gerações passadas. Aprendeu com seu avô Figura 6: Bolinhos de Massa. Fonte: Cecilia Nascimento 2016. Vital Matos, já falecido. Vital aprendeu a fazer o mingau na colônia onde morava, em Bragança, e também viviam índios, segundo Del, uma índia a ensinou. Seu Antônio, é agricultor e diz nunca ter feito nenhum Um fator místico, e muito importante, é que durante tipo de curso para aprimorar sua produção, nunca foi procura- todo o processo da produção da mandicoeira, uma outra pes- do e também não foi em busca de assessoria em órgãos que soa não pode chegar no meio do preparo que pode levar tudo trabalham na área, Informa que até o presente momento pro- a perder. Somente quem começou desde o princípio o preparo duz seus bolinhos de forma bem rudimentar e tradicional, no pode participar da produção. Ás véspera da iluminação (dia 9 forno a lenha, usando folha da sororoca como forma para não de finados), é que se tem uma produção mais expressiva da queimar o bolinho. mandicoeira. É um período em que ocorre mais encomenda, Seu Antônio produz o bolinho semanalmente, começan- existe até uma roça feita especialmente para ser colhida para do desde sexta até a queima da fornada no sábado, com a produção desse dia. Há produção o ano inteiro, das oito o propósito de vender na feira de Bragança aos domingos famílias produtoras, é feito roça que atenda a todos durante pela manhã, além de comercializar também o produto pela o ano todo própria comunidade. Em média assa de 220 a 230 bolinhos A diferença entre a mandiocaba e a mandioca (braba) aos finais de semana, vendendo cada um a 1 real a unidade. é que a mandioca segundo Del, pode-se comer até crua já a A segunda localidade da pesquisa foi a comunidade do mandioca (braba) jamais pode ser consumida antes de fervi- Camutá, mais precisamente no Sítio Grande, uma divisão da da. Há um detalhe no preparo que é o fogo a lenha, não pode mesma comunidade. A comunidade do Camutá, faz fronteira ser em outro tipo de fogo e não se pode tampar o camburão com a comunidade da Vila Que Era e o bairro do Jiquiri. A co- na hora do cozimento, porque se tampar a mandicoeira fica munidade do Camutá/Sítio Grande é produtora de Mandicoe- com gosto de fumaça. Ao final do processo para estocagem do ira, destacando-se como um deles Miguel Iranildo de Azevedo produto é usado um pano fino amarrado com um fio lacrando Matos, conhecido como Del, 33 anos, casado, agricultor. Na a lata, a especificação do pano fino é para não suar com o va- comunidade oito pessoas produzem, a bebida quinzenal- por e o suor cair e desandar o mingau. mente, ou seja, a cada 15 dias uma família produz a mandi- O valor do copo de 300ml (Figura 7) custa dois reais, po- coeira. As vendas são feitas geralmente de quinta a domingo dendo também ser servido na cuia, pois para alguns consumi- na feira livre de Bragança, no centro da cidade, próximo a Loja dores na cuia oferece um sabor diferente, considerado melhor, Boas Novas Calçado. mais autêntico. O produto é vendido também em garrafas pet Del produz além da Mandicoeira outros produtos deriva- de um litro a três reais e em garrafas de dois litros a seis reais dos da mandioca, como tucupi, goma e tapioca. Del também a unidade. é pedreiro e isso torna-se uma complementação de renda, to- 9 Planta da família das musáceas. Disponível em: < http://www. priberam.pt/dlpo/sororoca> Acesso em: 29 ago. 2016. 11 Figura 8: Tacacá de Caranguejo. Figura 7: Copo de Mandicoeira. Fonte: Cecilia Nascimento 2016. Fonte: Cecilia Nascimento 2016.

Esta é uma receita de família, e Dona Selma relata que A última comunidade pesquisada foi a Curuperé, onde nunca produziu para vender para fora, com intuito de renda reside Dona Maria Selma do Rosário Santos, 65 anos, apo- extra, que além da aposentadoria produzem farinha e outros sentada, produz o exótico Tacaca de Caranguejo, assim derivados da mandioca, bem como a manutenção da própria chamado pela comunidade. Ela é a única que produz o prato roça. A partir desses saberes e fazeres, é possível, conhecer que aprendeu com a avó, que faleceu aos 92 anos de idade, um pouco da história do município, dos trabalhos tradicio- Com isso percebe-se que o prato pode ser uma herança cen- nais ainda praticados nas comunidades de Bragança. O que tenária e que segundo a autora ninguém mais se interessa se percebe é que os entrevistados sentem a necessidade de pela iguaria, mas quando ela faz quase toda a vizinhança reconhecimento ou mesmo aprimoramento de seus produtos, vem apreciar. O prato tem como ingrediente o caranguejo, contudo não possuem um assistência técnica, seja por não tomate cebola, cheiro verde e a goma, retirada da mandioca, ter tido a iniciativa de procurar auxilio, ou mesmo não ter e pimenta opcional. conhecimento dos programas desenvolvidos no município O prato é servido em cuia, quente, Dona Selma prepara para apoio nas atividades da agricultura familiar, turismo e dois tipos de complemento um com pimenta e outro sem. O empreendedorismo, Se faz necessário dar visibilidade as ativ- completo feito com o caranguejo e os temperos cortados e idades cotidianas desses homens e mulheres do campo que colocado junto a uma porção de goma. Fica a critério de quem muito tem a partilhar e contribuir com o município e troca de se serve querer mais ou menos goma. Durante a pesquisa saberes com outras técnicas e cozinhas. pode-se perceber que a maioria toma com porções de goma A proposta do Roteiro Gastronômico procura mostrar maior que o complemento do caranguejo. Pode-se perceber além das iguarias produzidas nas comunidades pesquisa- que diferente ao compor com o tucupi como é feito com a das, e suas memorias e identidades, os ambientes natural tacaca tradicional, onde um não se mistura ao outro, nesta e cultural disponíveis em cada um desses lugares. O roterio composição o caldo do caranguejo se mistura e fazendo com intitulado, Caminho da Mandioca, foi proposto para ser de- que o contraste da leveza da goma e o cítrico do caldo com senvolvido na cidade de Bragança, evidenciando os alimentos gordura do caranguejo deixe o tacacá de caranguejo saboroso que são produzidos com os derivados da mandioca correspon- (Figura 8). dentes às localidades do Camuta/Sítio Grande, apresentando a Mandicoeira, Japeta com o Bolinho de Massa, Curupere com o Tacaca de Caranguejo e finalizando com a cozinha do Chef Valfir Ribeiro (Figura 9).

12 do grupo para saboreá-lo. Com retorno às 18h do mesmo dia, com chegada no mesmo local de saída. No segundo dia, o grupo é levado a comunidade do Japetá, para conhecer a produção do Bolinho de Massa, por seu Antônio e família. O horário e local de saída perman- ecem os mesmos, o café da manhã é oferecido no local, que além dos bolinhos de massa é servido com frutas regionais, sucos, café, leite e chá de ervas da região, como capim-san- Figura 9: Mapa do Itinerário. Fonte: Adaptado por Cecília Nascimento a partir do Google Maps. to (Cymbopogon citratus), erva cidreira (Melissa officinalis) entre outros. O grupo após o café, presenciará todo o processo de produção dos bolinhos desde a preparação A partir da pesquisa de campo, observou-se que nessas da massa, modelagem e queima do produto, que poderá ser áreas há gastronomia tradicional e ainda viva até hoje, car- comercializado saindo do forno. regada de memorias e identidades bragantinas, na maioria Após todo o processo de produção dos bolinhos, por volta desconhecida por seus próprios habitantes. Desse modo, foi de 11h da manhã, o almoço será servido na comunidade do fundamental pesquisar na verificação do potencial que es- Curuperé, no bar à beira do rio do Curuperé, alguns quilômet- sas localidades têm, daí traçar um roteiro gastronômico por ros à frente do Japetá. O almoço será feito na presença dos essas comunidades é relevante para entender que cada uma visitantes, pelo Chef Valfir Ribeiro, que apresentará a Caçal- delas possuem suas peculiaridades de saberes e práticas de hoada, em sua cozinha bragantina de resgate. Após o almoço seus produtos. O acesso as comunidades referentes ao roteiro servido, será reservado um momento de lazer para um banho proposto nesta pesquisa possuem características campesina, nas águas do Curuperé. estrada de terra, de fácil acesso, principalmente no verão. Em Durante todas as visitas será oportunizado diálogos média, o deslocamento, dura em torno de 15 a 30 minutos do com os produtores em forma de troca de saberes e aberto pronto de partida, tomando como base o lugar mais distante a perguntas e diálogos durante o processo de produção das do roteiro. iguarias. A divulgação do roteiro será produzida em parceria O roteiro seguirá um itinerário que começa pelo Ca- com hotéis da cidade, agências de turismo, e panfletagem muntá/Sítio Grande, onde os visitantes participarão do pro- em pontos estratégicos, como Rodoviária, Aeroportos, Órgãos cesso de produção da mandicoeira, pelo produtor Miguel, governamentais do setor, restaurantes, táxis e redes sociais. mais conhecido como Del, a começar pelo início de dia a par- Em períodos de maior movimento turístico na cidade a divul- tir das 7h30min do dia visitado. O café da manhã é servido gação será feito de maneira ostensiva a panfletagem nas ruas. no hotel, o roteiro não integra este serviço no primeiro dia. A manhã será preenchida pela a participação dos primeiros CONCLUSÃO processos de produção do mingau. Este dia é todo vivido na região. O almoço é oferecido no balneário, que mantém a A gastronomia tem vários aspectos que incorporam todo gastronomia regional, a galinha caipira ou peixe, Paraiso dos o processo que envolve a alimentação. Pode-se, assim, dizer Paraiso dos Reis próximo do lugar, aonde o visitante poderá que este aspecto se transforma em um fenômeno cultural, desfrutar das águas claras do igarapé de água corrente. assim como enfatiza a preparação de alimentos e também No início da tarde uma volta pela Vila Que Era (Figura 73), se coloca no processo social que envolve o sentar-se à mesa onde visitarão o marco de fundação do município e a fábrica para comer. Assim, a gastronomia costuma associar um lugar de panela de barro e cestaria. Após está rápida visita, o grupo para desfrutar a comida e interagir socialmente. Simultane- volta para o processo final da mandicoeira, pois neste inter- amente, desenvolver outros serviços como a preparação da valo a mesma está em processo de cozimento. Na chegada à mesa, remover utensílios já utilizados, etc. É por isso que esta tarde no Sitio Grande, será feita a finalização do primeiro dia atividade deve enquadrar-se sempre como um processo que do roteiro com degustação do mingau que fica à disposição

13 tem muita relação com a forma de como os alimentos são segmentação turística, todas possuem potencial no que tan- preparados. ge a culinária. Sabe-se que, para que isso ocorra, precisa-se No Pará, a relação em que as pessoas têm a partir dos verificar os pontos positivos e negativos em questão, utilizan- derivados da mandioca é bastante significante. Em Bragança do os meios que possam vir a ser um fator considerável para não é diferente, ainda mais quando tem-se a melhor farinha a criação do roteiro. aqui produzida, porque pensar em comer sua comida todos Para a operacionalização do roteiro, no entanto, há que os dias e não ter farinha, para muitos indivíduos o almoço se investir em determinados aspectos. Dentre eles, ampliar não está completo, a sensação é de que sempre está faltando e melhorar a estrutura para receber o roteiro gastronômico, aquele complemento que enriquece os seus pratos. Além da melhorar o acesso, as vias e sinalização indicando cada comu- farinha, tem os bolinhos de massa, a mandicoeira, farinha de nidade, viabilizar cursos de aperfeiçoamento da produção aos tapioca, goma que é muito usada para fazer a tapioca, entre mestres da culinária, bem como esclarecer a importância da outros pratos que são criados a partir desse derivado. atividade turística para as comunidades envolvidas no roteiro. Partindo desse pressuposto, as indagações acerca Assim, pode-se frisar que é de vital importância a parceria do desse trabalho foram se intensificando à medida que as in- poder público/privado para o desenvolvimento eficaz destes formações foram sendo repassadas. Perceber cada história roteiros. contada por aquelas pessoas que foram entrevistadas na sua Portanto, é necessário que haja essa integração entre respectiva comunidade, entendendo e percebendo cada de- poder público e privado, e provocar esse conhecimento das talhe de como, onde e porque surgiram aqueles pratos, foi de comunidades distintas aqui existentes. Levar as pessoas a fundamental importância, porque até mesmo filhos e netos conhecerem os mestres da culinária, com informação a respei- não tomam para si esse conhecimento que foi adquirido por to desse potencial turístico aos residentes, incentivando-os a seus pais e avós. sair do cotidiano e desfrutar dos conhecimentos e experiên- Neste sentindo, as localidades do Japetá, Sítio Grande cias que são ofertadas pela cultura local e fomentada por situada na região do Camutá e Curuperé todas pertencentes órgãos e entidades do setor. Talvez, as pessoas permaneçam a região bragantina, são comunidades que produzem uma em suas zonas de conforto, por desconhecerem projetos de gastronomia única devido ao modo de preparo dos seus pro- assistência técnica e mercadológica, ou mesmo cursos de dutos, a forma, os ingredientes usados são peculiares entre aperfeiçoamentos, como os oferecidos por instituição como cada uma delas, cada um com seu ritual a ser seguido para SEBRAE. Percebeu-se que essas localidades têm de fato um que venha a obter um melhor resultado. Faz-se necessário grande potencial turístico gastronômico, que se for trabalha- entender e valorizar a identidade local no que tange aos seus do com zelo e participação das grandes esferas, Bragança se pratos, que ainda hoje permanecem vivos na vida cotidiana tornará também um polo gastronômico. dessas pessoas. É relevante ressaltar que uns usam seu produto como BRAGANÇA’S GASTRONOMIC MEMORY AND no caso da D. Selma (tacaca de caranguejo) somente para AMAZONIAN TOURISM consumo próprio, pois segundo ela outras pessoas nunca a procuraram, talvez por não saberem da existência desse pra- ABSTRACT: The objective of this work is to discuss how to, somente os próprios parentes que ali residem. Os demais the memory of gastronomic know-how can be seen as a tour- como Del (Sítio Grande) que produz mandicoeira, seu Antônio ist product beyond the market. The focus is on the cultural (Japetá) bolinho de massa de mandioca com coco e Chef Valfir and patrimonial experience of rural populations of Northeast- Ribeiro (Bragança) que criou seu prato intitulada caçalhoada, ern Pará, whose common point is the cultivation and use of comercializam para obterem renda extra. products derived from manioc (Manihot utilissima) as a basic Neste sentido, o roteiro proposto, intitulado Rota da element of the Amazon diet. The research allowed the elabo- Mandioca visa mostrar que nessas comunidades menciona- ration of an original gastronomic itinerary for the municipal- das, apesar de não serem tão conhecidas no que concerne a ity of Bragança, taking as its protagonists the inhabitants of

14 the countryside communities Camutá (Sítio Grande), Japetá CONNERTON, P. How societies remember. Cambridge, and Curuperé and of the seat of the municipality. The work Cambridge University Press. 1989. was elaborated from a bibliographical, documental and field research with the record of the know-how of the investigat- CORIGLIANO, A. The route to quality: Italian gastronomy ed ones. We observed that the participants of the research networks in operations. In HJALAGER, A. RICHARDS, G. (orgs.), understand the “daily cuisine” as an evidence of the cultural Tourism and gastronomy. London: Routlede, 2002. p. 166- memory and they think that it should be perceived, promoted 185. and valued. The interviewees are people who represent Bra- gança’s gastronomy. Its product is inherited by generations DAMATTA, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. In from empirical knowledge and local social memory. Although Rio de Janeiro. Volume 15. 1987. the local gastronomy is not yet carried to the level of touristic signifier, having just a supporting role in this activity, we con- FAGLIARI, G. Turismo e alimentação: análises intro- clude that it can become the basis for the implementation of dutórias. São Paulo: Roca, 2005. a possible community-based tourism. FERRO, R. Gastronomia e turismo cultura: reflexões sobre Keywords: Gastronomy. Tourism. Memory. a cultura no processo de desenvolvimento local. In: Contexto Manioc. Bragança da Alimentação: comportamento, cultura e sociedade. Sen- ac. São Paulo. Artigo, Vol. 2, nº2. 2013. REFERÊNCIAS HALBWACHS, M. On collective mem- AZAMBUJA, M. A gastronomia como produto turístico. ory. Chicago, University Chicago Press. 1992. In: CASTROGIOVANNI, A. (Org.). Turismo urbano. São Paulo; Contexto, 2001, p. 87. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTI- CA. Censo de Bragança, 2010-2015. Disponível em: BRAGANÇA. Departamento de Comunicação da Prefei- . Acesso em: 10 mar Bragança 400 anos. Bragança-PA. DECOM, 2014. 2016.

______Secretaria de Cultura, Desportos e Tu- ______Enciclopédia dos municípios brasilei- rismo. Inventário da oferta turística do município de ros. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/bibliote- Bragança. Bragança: Ministério do Turismo/ Secretaria de ca-catalogo.html?view=detalhes&id=227295. Acesso em: Cultura, Desportos e Turismo, 2013. 11 mar 2016.

BRAUNE, R. e FRANCO, S. O que é gastronomia. ______Paisagens do Brasil. Disponível em: < São Paulo (SP): Brasiliense, Col. 322, primeiros passos, 1ª http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/ edição,2007. GEBIS%20-%20RJ/paisagensdobrasil.pdf > Acesso em: 25 fev. 2016. BRAYNER, N. Patrimônio cultural imaterial: para saber mais - Brasília, DF: IPHAN, 2007. ______Revista brasileira de geografia. Dis- ponível em: < http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/ COHEN, E., AVIELI, N., Food in tourism. Attraction and im- periodicos/115/rbg_1961_v23_n3.pdf> Acesso em: 25 fev. pediment, Annals of Tourism Research, Vol.31, nº4, 2004. 2016.

15 JONES, A. JENKINS, I. A taste of Wales – blas ar gymru: ACERVO MEMÓRIA DO MUNDO: O ARQUIVO PES- institutional malaise in promoting Welsh food tourism prod- SOAL RUBENS GERCHMAN COMO PATRIMÔNIO ucts. In HJALAGER, A. M. RICHARDS, G. (Orgs.), Tourism and DOCUMENTAL gastronomy. London: Routlede, 2002. p. 125 a 144. Thayane Vicente Vam de Berg10 JUNIOR, C. Roteiros do sabor brasileiro – turismo Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro gastronômico. Rio de Janeiro. SEBRAE. 2005. (UNIRIO) [email protected] MARIZ-PINHEIRO, J; OLIVEIRA, M. A. A gastronomia na literatura: lugar de memória, Ssdução e poder. In: Todas as Resumo: O arquivo pessoal do artista plástico Rubens Musas. a 04 n 01 Jul-Dez 2012. Gerchman (1942-2008), no ano de 2015 foi nomeado Acervo Memória do Mundo pela UNESCO. Tal premiação reconhece a MASCARENHAS, R; MATIAS, L. Turismo, cultura ali- importância patrimonial deste acervo. O conjunto documen- mentar e fast food. In: Encontro Nacional de Turismo com tal que o compõe possibilita estudos sociológicos do sujeito Base Local, 10, 2007, João Pessoa. Anais. João e da coletividade, sendo relevantes para a construção da Pessoa: ENTBL, 2007. Disponível em: < http://www2. memória da arte contemporânea brasileira. Gerchman foi um pucpr.br/reol/index.php/turismo?dd99=pdf&dd1=15817. artista de vanguarda que fez parte do movimento artístico da pdf. Acesso em: 29 jul. 2016. década de 1960 denominado “nova figuração”, com propostas estéticas inovadoras para as artes plásticas, na qual a arte MINTZ, Sidney. Comida e antropologia. Uma breve re- abstrata cede lugar a uma linguagem pictórica crítica. Suas visão. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, obras estão em galerias e museus de várias partes do mun- SP, v.16, n. 47, p. 31-41. out. 2001. Disponível em: . Acesso do. Um dos objetivos deste estudo é analisar o processo de em: 29 abr. 2016. patrimonialização do arquivo pessoal de Rubens Gerchman (patrimônio documental) e os motivos de sua incorporação ao OLICK, J. The collective memory reader. Oxford, Ox- Programa Memória do Mundo. Trata-se de um estudo qualita- ford University Press. 2011. tivo e interdisciplinar, no qual será adotada uma abordagem metodológica que promoverá uma revisão de literatura, fun- OLIVEIRA, S. La gastronomía como atractivo turístico pri- damentada por meio de uma análise e discussão teórica, a mario de un destino. Estudios y Perspectivas en Turismo, partir do uso de bibliografia especializada sobre os temas e v.20, n.3. 2011. conceitos de memória e patrimônio, além da noção de arqui- vo pessoal. A pesquisa visa promover discussões que difun- PIRES, M. Prefácio. In: FAGLIARI, G. S. (Org.) Turismo e dam o conhecimento sobre o arquivo de Rubens Gerchman e alimentação: análises introdutórias. São Paulo: Roca, 2005, a importância de sua salvaguarda, não somente para a ma- p. 57-249. nutenção da memória do produtor, mas para a manutenção da memória coletiva e da memória da arte contemporânea SAVARIN, B. A fisiologia do gosto.Ed. Salamandra. São brasileira. Paulo.1995 10 Nome em citações bibliográficas: VAM DE BERG, Thayane Vicente. SCARPATO, R. Perspective of gastronomy studies. In: Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Memória Social da Uni- Tourism and gastronomy. London: Routledge. 2002. pp. versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UNIRIO). Mestra 51-70. em Gestão de Documentos e Arquivos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGARQ/UNIRIO). Graduada em Arquivologia e em História. Especialista em Preservação de Acervos pelo Museu de SCHLÜTER, R. Gastronomia e turismo. São Paulo (SP): Astronomia e Ciências Afins (MAST) e em História do Brasil pela Universi- Aleph. 2ª Edição. 2006. dade Federal Fluminense (UFF). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/3408246105121496. 16 Palavras-chave: Rubens Gerchman; Memória interesse das perguntas “o que” para “o como”, “da acumulação do Mundo; Arquivo pessoal; Patrimônio doc- de informação social, cultural, psicológica, política ou lin- umental. guística, para uma consideração de como esse material é cria- do, valorizado, trocado, como vive e opera dentro da cultura, INTRODUÇÃO por suas ações” (MENESES, 2010, p. 16). Com isso há uma re- A partir dos anos de 1980 a memória como fenômeno definição dos pressupostos sócio-históricos e das problemáti- social se torna interesse dos pesquisadores e surgem temas cas, com uma nova observação do objeto de pesquisa, ou seja, relacionados “a memória cultural, os lugares de memória, o foco se torna o sujeito histórico analisado no seu contexto. a memória virtual, a memória protética e a antimemória” Entende-se que as novas maneiras de produzir historio- (MENESES, 2010, p. 14). Nesse período ocorre “o boom da grafia mais que modificar as perguntas feitas ao documento, memória e a reemergência do sujeito nas ciências sociais” promoveram iniciativas de estudos acerca do indivíduo em (MENESES, 2010, p. 14). “O sujeito histórico antes diluído em outros aspectos que não eram investigados, como o crescente estruturas, mecanismos e processos históricos, [reabilita sua] interesse pela memória em suas diversas abordagens. intencionalidade, a justificação dos atores, a consciência da Os estudos históricos, sociológicos e antropológicos des- determinação do dizer/fazer” (MENESES, 2010, p. 16). pertaram a atenção por esse tipo de documentação que tem Esses novos estudos sobre o sujeito histórico e a memória um valor social e cultural imensuráveis, constituindo-se como 11 despertam o interesse por arquivos de pessoas. O pesquisador um valioso patrimônio documental . Oliveira (2012, p. 31) Christophe Prochasson (1998) contribui nesse debate esclare- afirma que “os arquivos pessoais e familiares passaram a se cendo que tal interesse crescente pelos arquivos privados de destacar quando entendidos como patrimônio a ser preserva- caráter pessoal decorreu, fundamentalmente, da mudança de do pela sociedade, ou seja, quando foi reconhecido o seu valor rumo nas práticas historiográficas. Para este autor, tal modifi- para o estudo histórico e como registro da memória da nação”. cação se deve a dois fatos: O patrimônio documental é um dos testemunhos da história, da cultura e da memória coletiva da humanidade. o primeiro é o impulso experimentado pela Com o intuito de divulgar, garantir a salvaguarda e con- história cultural e, mais particularmente, a scientizar os indivíduos acerca da importância de tais teste- multiplicação dos trabalhos sobre os inte- munhos, em especial aqueles presentes em documentos lectuais. O segundo está vinculado à mu- arquivísticos e bibliográficos foi criado no ano de 1992 o dança da escala de observação do social, Programa Memória do Mundo (Memory of the World – MoW) que levou, sobretudo pela via da micro- da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, -história e da antropologia histórica, a um Ciência e Cultura) (ZAMORA, 2013, p. 118). O MoW é interesse por fontes menos seriais e mais qualitativas (PROCHASSON, 1998, p. 110). uma iniciativa dessa organização interna- cional em prol da preservação e do amplo Nesse sentido os estudos históricos se orientam para en- acesso aos acervos documentais localiza- tender o indivíduo e suas particularidades, iniciando assim, a dos em arquivos, bibliotecas e museus. O fase dos estudos direcionados pela História Cultural e Social, título de Memória do Mundo, concedido que entendem as estruturas históricas como mutáveis. Esses 11 “O Patrimônio Cultural abrange tudo aquilo que possa representar estudos apresentaram caminhos alternativos para a investi- a cultura, a história, a memória e a identidade de um determinado gação histórica das realidades e experiências humanas. A pre- grupo, e deve ser preservado e transmitido tanto para a geração atual, ocupação da Nova História Cultural era entender os processos quanto para as seguintes. Nessa categoria podemos incluir o Patrimônio Documental” (SILVEIRA, 2013, p. 15). [...] “O patrimônio documental – se históricos e não descrevê-los e, para isso é necessário inserir o visto como patrimônio cultural - é muito mais do que um objeto com sujeito histórico na sua temporalidade. “valor de prova” e “valor informativo”. De tal modo que, o patrimônio O historiador Meneses (2010, p. 16) em seu estudo sobre documental constitui a memória coletiva, pois representa os elementos arquivos de artista identifica que houve um deslocamento de da cultura de uma sociedade” (JARDIM, 1995, p. 6 apud SILVEIRA, 2013, p. 56). 17 aos documentos cujas significâncias são propostas estéticas inovadoras para as artes plásticas, na qual valoradas pela Unesco a partir de critérios a arte abstrata cedeu lugar a uma linguagem pictórica crítica. preestabelecidos, é o aspecto mais visível A obra de Gerchman tem relação com o cotidiano, a vida diária do Programa; as obtenções desses registros e urbana de sujeitos comuns e e/ou nominações acontecem via editais pú- blicos, quando as candidaturas são apresen- revela uma continuidade em seu proces- tadas em formulários próprios. Segundo a so, não havendo dispersões de temas ou Unesco, todos os acervos reconhecidos como de procedimentos. Existe uma coerência: Memória do Mundo devem ter significância percepção do artista, inquietação sobre a mundial (PEREIRA FILHO, 2015, p. 04). realidade, recorrência ao universo urbano desdobrando-o numa composição plástica Desde sua implementação no Brasil, já foram nomeados própria, revelando o kitsch ou o mau gosto, mais de 90 arquivos com o título de memória do mundo, e dando-lhes um sentido crítico. Mas, acima de tudo, o homem tem sido a preocupação entre eles está o arquivo pessoal do artista plástico Rubens central de toda a obra do artista, o homem e Gerchman12. Tal premiação reconhece a importância patri- tudo aquilo que o envolve, principalmente, monial deste arquivo, pois este prêmio apenas é oferecido a a solidão como consequência de um certo acervos de interesse regional e/ou nacional, com a iniciativa tipo de vida urbana e as faltas que a acom- de difundir e preservar o acervo. Segundo Silveira panham (ROSA, 2007, p.14). para que um patrimônio documental tenha a sua inscrição em um Registro da Memória Ao retratar o indivíduo comum e a vida cotidiana a obra do Mundo, deve-se avaliar a sua impor- de Gerchman valoriza a memória coletiva e as representações tância para a humanidade, devendo ser sociais de uma época. Na sua arte ficaram registradas a sua in- autêntico, único e insubstituível. Deve-se terpretação acerca da diversidade e da dinâmica social, políti- considerar, ainda, cumprir um ou mais dos ca e cultural dos fatos que retratou. Por isso este patrimônio seguintes critérios: tempo, lugar, pessoas, documental proporciona a visualização de panoramas con- assunto e tema, e forma e estilo. (SILVEIRA, textuais da sociedade brasileira, algo que é objeto de inter- 2013, p. 60). esse dos novos estudos sobre patrimônio que problematizam contextualmente esses registros. Tais critérios podem ser identificados no arquivo pessoal Rubens Gerchman (1942-2008) foi um artista plástico de Rubens Gerchman, uma vez que a arte deste artista é at- da arte contemporânea brasileira, de relevante destaque 13 emporal, com forte simbolismo e crítica social . Gerchman foi nacional e internacional. Nos seus mais de 50 anos de car- um artista de vanguarda que fez parte do movimento artísti- reira produziu mais de 7 mil obras e participou de mais de 14 co da década de 1960 denominado “nova figuração” , com 240 exposições (coletivas e individuais). Recebeu mais de 5 12 Inscrição, no Registro Nacional do Brasil do Programa Memória do prêmios nacionais e internacionais, dentre eles a importante Mundo da UNESCO. Ministério da Cultura. Portaria nº 102, de 13 de bolsa de estudos da Fundação Guggenheim. A documentação outubro de 2015. por ele produzida e acumulada possui um alto valor informa- 13 Obras produzidas por Gerchman entre os anos de 1960 e 1970: Desa- tivo e cultural15, o que a confere relevância social. Suas obras parecidos, Não há Vagas, Moradias Coletivas, os ônibus, o Carnê Fartura, Marmitas, Trabalhador Morreu com Maconha na Mão, Elevador Social, Vai tion pretende designar o retorno à figuração, na qual se observa o trata- Comer e Morar um Ano de Graça com Toda Família, Assegure seu Futuro, O mento livre da figura, fora dos moldes realistas e descritivos tradicionais, Rei do Mau Gosto, Revólver de Brinquedo. a partir de lições retiradas do informalismo, do expressionismo abstrato 14 “Intimamente ligada aos rompimentos da pop art, a nova figu- e da arte pop”. Disponível em: < http://memoriasdaditadura.org.br/ ração consiste em mudar o tratamento da figura, após o esgotamento da movimentos-artisticos/nova-figuracao/>. Acesso em: 29 abr 2018. abstração geométrica e informal. Os artistas oscilavam entre usar como 15 O arquivo pessoal de Rubens Gerchman tem fontes importantes para objeto da obra de arte motivos de crítica e de neutralidade ideológica. a realização de estudos em várias áreas do conhecimento, tais como Cunhado pelo crítico Michel Ragon, em 1961, o termo nouvelle figura- a história, sociologia, antropologia, artes plásticas, crítica literária, 18 são fontes relevantes para o testemunho da história da arte fontes originais e singulares que descortinam novas descob- contemporânea brasileira e dos acontecimentos do cotidiano ertas acerca das manifestações artísticas daquele momento social referentes ao contexto histórico por ele vivenciado. Por histórico. isso tais documentos, mais que serem traços da memória in- dividual do artista, também contribuem para a construção da memória coletiva. O arquivo pessoal de Gerchman é formado por docu- mentos originais e únicos, o que lhe confere raridade e integ- ridade, critérios essenciais para um conjunto documental ser nomeado Memória do Mundo. Integram o arquivo pessoal de Rubens Gerchman doc- umentos dos gêneros audiovisual, eletrônico, iconográfico e textual (manuscritos, impressos, datilografados). Mas o acervo, como um todo, é bastante diversificado, pois além das correspondências, fotografias, cromos, negativos, slides, Da esquerda para a direita: Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, filmes VHS/super-8, escritos do artista, recortes de jornais, Carlos Vergara, Antonio Dias e Pedro Escosteguy na exposição Pare, catálogos, certificados, cartões postais, ou seja, documen- realizada na Galeria G-4 em 1966. tos tradicionalmente compreendidos como arquivísticos, Fotografia do Acervo do Instituto Rubens Gerchman também faz parte do acervo: as obras de arte; a biblioteca particular; os materiais de trabalho do artista como pincéis e tintas; objetos tridimensionais, como condecorações e medal- has, referentes a prêmios e homenagens que o artista rece- beu; e obras de outros artistas, colecionadas por Gerchman (GERCHMAN, 2015). A documentação textual possui aprox- imadamente 30 metros lineares; a audiovisual e eletrônica 44 itens; a iconográfica mais de 20.000 itens; e a biblioteca particular possui obras especializadas em artes plásticas, outros assuntos de interesse do artista e livros produzidos por ele, contabilizando aproximadamente mais de 1.200 obras bibliográficas; já as obras de arte por ele produzidas são constituídas de variados suportes e técnicas, como desenhos pincelados a carvão, gravuras, colagens, fotopinturas, acríli- cos sobre tela, serigrafias, objetos deslocáveis, entre outros (GERCHMAN, 2015). Nestes registros estão presentes as transformações artísticas brasileiras de uma das mais importantes gerações de artistas plásticos do país. Nele há documentos de artistas contemporâneos a Rubens Gerchman, como Hélio Oiticica, Carlos Vergara, Lygia Clark, entre outros. A preservação e divulgação do legado documental de Rubens Gerchman são indispensáveis para a memória da arte brasileira, pois este Correspondência de Hélio Oticica para Gerchman. 1969. arquivo contempla um uma variada fonte informacional, com Acervo do Instituto Rubens Gerchman arquivologia, museologia, e inúmeras outras. 19 Estes são alguns dos motivos pelos quais no ano de 2015 artista. Diante da grande dimensão deste acervo, a família o arquivo pessoal Rubens Gerchman foi premiado com o selo do artista decidiu fundar o IRG, com o objetivo e a missão de “memória do mundo” da Unesco, sendo o primeiro artista bra- preservar, conservar, restaurar, disseminar, promover e divul- sileiro contemplado com tal prêmio. gar o acervo e a memória do artista de forma a viabilizar o Porém antes do arquivo pessoal Rubens Gerchman obter acesso à sua história e produção artística (GERCHMAN, 2015, tal titulação, uma série de ações políticas culturais para bens p. 44 - 45). patrimonializados foram efetuadas pelo Instituto Rubens O passo inicial referente à organização do acervo foi dado Gerchman (IRG) com o intuito de proteger e garantir a ma- pela própria família, numa tentativa de inventariar as obras nutenção da memória do artista por meio da preservação e descobrir o que continha nos documentos. Entre as moti- desse patrimônio documental. Uma das propostas deste ar- vações para se empreender a preservação do acervo estava o tigo é apresentar tais ações realizadas no arquivo pessoal de entendimento de que Rubens Gerchman, de modo a ser possível visualizar todos os a dimensão do legado deixado por Ger- procedimentos e esforços empreendidos para assegurar a sua chman não se tratava somente de uma salvaguarda e divulgação. O processo de patrimonialização herança para seus filhos, mas sobretudo deste arquivo e o entendimento do mesmo como patrimônio de um acervo a ser cuidado como fonte de documental estão relacionados aos motivos de sua incorpo- inspiração para novas gerações. Motivados ração ao Programa Memória do Mundo. por este entendimento, reunimos todas as Trata-se de um estudo qualitativo e interdisciplinar, no suas obras numa coleção única e criou-se qual será adotada uma abordagem metodológica que pro- o Instituto Rubens Gerchman. Preservar moverá uma revisão de literatura, fundamentada por meio de sua memória e difundir sua obra exigiu um uma análise e discussão teórica, a partir dos temas: memória, mergulho profundo num material tão vasto patrimônio, arquivos de artista e arquivo pessoal, permeada e diversificado como o que encontramos. pela descrição e análise do corpus dialogando com a bibli- Tantos eram os quadros, esculturas, gravu- ografia teórica/metodológica. A pesquisa, portanto possui ras, postais, papéis, pincéis, tintas e uma in- cunho exploratório e epistemológico, sendo primordialmente finidade de livros, fotografias e documentos. qualitativa. Este estudo visa promover discussões que difun- Enfim, material para catalogação de 66 anos dam o conhecimento sobre o arquivo de Rubens Gerchman e de uma vida. a importância de sua salvaguarda, não somente para a ma- nutenção da memória do produtor, mas para a manutenção Sem qualquer noção de como conservar este da memória coletiva e da memória da arte contemporânea legado, o primeiro passo precisou ser bas- brasileira. tante intuitivo. Da observação e bom senso, foram estabelecidas prioridades e iniciados Trajetória de um legado: da organização e trata- os preparativos para a organização do acer- mento técnico do arquivo pessoal Rubens Gerch- vo. Os objetos e a memória representativos man à titulação como Memória do Mundo do Rubens-pai precisavam se separar e dar A custódia do arquivo pessoal de Gerchman é de natureza espaço à grandiosidade do Rubens-artista. privada e pertence ao Instituto Rubens Gerchman (IRG)16, fundado em 2010, dois anos após o falecimento do artista. Junto à curiosidade pessoal de nos apro- A família herdou um vasto acervo que incluía não apenas as fundarmos em cada uma daquelas obras de obras de arte, mas também uma imensa documentação que arte surgia também a necessidade de mape- formava o conjunto correspondente ao arquivo pessoal do ar a dimensão da coleção em sua totalidade. [...]. Todo dia lidávamos com a ausência e a 16 Site do Instituto Rubens Gerchman . artista Rubens Gerchman.Começamos pelas 20 pinturas. Elas foram as primeiras obras do encontrava-se de maneira caótica, dispersa e acondicionada acervo a serem verificadas uma a uma e in- de modo incorreto, o que de início não permitia compreender ventariadas. Logo que esse processo se ini- a sua riqueza. ciou percebemos que ele precisaria de muito mais que apenas a dedicação comprometida dos filhos. Foi preciso profissionais com do- mínio técnico para medir, fotografar e fazer um registro adequado. Quando chamamos a museóloga, verificamos urgências de res- tauração e tomamos ciência dos riscos que as obras estavam correndo sem devido cui- dado, expostas a clima e temperatura pouco adequados.

Passada essa primeira etapa de tomada de Situação na qual se encontrava a documentação e a obra de Rubens conhecimento do acervo museológico, veio Gerchman no ano de 2010. o acervo iconográfico. Foram nove meses de Fonte: Instituto Rubens Gerchman imersão para conhecer o universo de 20.000 cromos, slides, fotografias e negativos acu- mulados em cinco décadas (INSTITUTO RU- A partir da percepção da importância da documentação BENS GERCHMAN, 2013(c), p. 03-04). deixada por Gerchman, a família buscou orientação técnica dos especialistas do Arquivo Nacional e do Instituto Brasileiro Percebe-se neste relato que a este arquivo foi conferido de Museus (IBRAM) com o intuito de obter auxílio e infor- num primeiro momento um valor afetivo e sentimental por mações sobre como preservar corretamente o acervo. Nesse conta da relação familiar e particular existente com os herdei- momento foram realizadas visitas técnicas ao IRG ros de sua obra. Mas logo em seguida eles foram capazes de para inspeção de condições de guarda e se- perceber a singularidade que havia no conjunto herdado, pois gurança, bem como a orientação de uso dos mais que a memória do Gerchman pai, ali também estava materiais de limpeza e acondicionamento configurado vestígios, memórias e histórias intrinsecamente mais adequados para cada suporte encon- relacionadas com a produção da arte brasileira. Ou seja, trado no acervo. Além de [receber orienta- houve a percepção de que mais que lembranças familiares, ção especializada] quanto às adequações aquele acervo tinha potencial para ser considerado um pat- necessárias a serem feitas na sede do IRG rimônio cultural nacional, o que levou, a partir de então a para seu novo uso: o de guarda de um acer- busca pela salvaguarda do mesmo. vo e não mais o atelier de um artista (INS- Na imagem abaixo é possível observar a situação, na TITUTO RUBENS GERCHMAN, 2013(c), p. 05). qual se encontrava a documentação e as obras, antes da in- tervenção de profissionais especializados, e percebe-se como Essas visitas técnicas reforçaram nos herdeiros a per- elas estavam expostas a inúmeros riscos e danos17. Naquele cepção inicial que já tinham da importância histórica e artísti- momento, a documentação do arquivo pessoal de Gerchman ca deste acervo, o que tornava imprescindível cuidar e aplicar nele o tratamento adequado. Para a realização daquilo que se tornou a missão do IRG, 17 Comprometiam a preservação do arquivo: a alta umidade relativa do ar e temperatura inadequada, insetos, acondicionamento e armazena- e diante da dimensão do acervo, iniciou-se uma busca por mento inadequados, entre outros. Não havia nenhum tipo de ordenação, verba através de projetos que incentivassem a cultura e as seja física ou intelectual, o que obviamente prejudicava a possibilidade artes plásticas. Um dos primeiros passos para a salvaguarda de recuperação de qualquer informação. 21 do acervo18 ocorreu no ano de 201019 com a elaboração de Gerchman. Ressaltando que, vários dados um projeto20 para que o acervo concorresse ao Prêmio Pr- foram acrescentados ao longo do desen- oCultura de Estímulo às Artes Visuais da Fundação volvimento da atividade de identificação Nacional de Artes (FUNARTE)21, na categoria Acervo de Ar- documental. tista. Ganhar este projeto foi fundamental para dar o passo inicial ao efetivo tratamento técnico do patrimônio documen- Após a análise dos dados biográficos de Ru- tal. Este prêmio possibilitou a organização, descrição, acondi- bens Gerchman, foi iniciada a identificação cionamento e restauro das obras de arte e dos documentos do documental, ou seja, o conhecimento de arquivo pessoal do artista. Nesse projeto participaram duas todos os documentos tanto do contexto, equipes, uma de arquivistas, responsável pelo arquivo pessoal quanto de conteúdo e forma. Por questões de Rubens Gerchman – que englobava os documentos tex- operacionais, o procedimento foi iniciado tuais, iconográficos, filmográficos –, e outra de museólogos, pelo acervo iconográfico, pois o projeto responsável pela catalogação das obras de arte. contemplava várias frentes de trabalho, entre elas a conservação deste acervo que Para a organização do Arquivo Rubens foi realizada, ao longo do projeto, por uma Gerchman, inicialmente foi realizada uma empresa especializada. Essa primeira etapa pesquisa da trajetória pessoal e profissional de identificação teve o objetivo de identifi- do artista, através de pesquisa bibliográfica, car e quantificar todo o acervo iconográfico, documental, além de entrevistas com al- especificando cada suporte fotográfico com guns familiares. Nesta pesquisa buscou-se o objetivo de manter o controle de entrada e identificar as atividades realizadas pelo ti- saída dos lotes para a empresa contratada, tular do arquivo, pois isso [possibilitou] uma a compra do material de acondicionamento melhor contextualização dos documentos e a elaboração de um arranjo preliminar, produzidos e acumulados pelo titular. Com considerando os assuntos, o contexto e a a análise dos dados levantados foi possível relação dos documentos ente si. produzir a árvore genealógica, a cronolo- gia e a rede de sociabilidade de Rubens Na identificação do acervo audiovisual, ele- 18 No ano de 2009 ocorreu a primeira tentativa de organização do trônico e textual o procedimento adotado acervo, mas dando-se prioridade às obras, com a participação apenas de museólogos. Ver MACHADO, Anelise. De ateliê à instituição: musealização foi a leitura e análise de cada documento, do acervo do artista Rubens Gerchman. 2011. 71p. Trabalho de Conclusão com o objetivo de identificar data, assun- de Curso – Curso de Bacharelado em Museologia. Universidade Federal to, tipologia, tradição documental além de do Estado do Rio de Janeiro, RJ. verificar a organicidade do conjunto, assim 19 Este projeto ocorreu entre abril de 2012 e abril de 2013. como a atividade que o gerou (INSTITUTO 20 Este projeto foi elaborado pelo IRG em parceria com a G11 (Asso- RUBENS GERCHMAN, 2013(c), p. 06). ciação para o Progresso e Desenvolvimento Arte e Cultura). Site da G11. Disponível em: < http://www.g11.org.br/>. 21 Prêmio Edital FUNARTE Procultura para as Artes Visuais 2010. Este prê- mio é do Ministério da Cultura em parceria com a Funarte e a Secretaria No que se refere ao arquivo pessoal de Rubens Gerch- de Fomento e Incentivo à Cultura, e visa reconhecer e estimular iniciati- man, o mesmo além do tratamento arquivístico referente à vas que promovam a valorização das artes visuais, a partir da pesquisa, identificação e organização, também recebeu procedimentos produção, circulação, formação e informação. O arquivo de Gerchman ganhou o prêmio na categoria “Pesquisa de Acervos Artísticos (Obras de e intervenções da área de conservação preventiva e restau- Referência)”. Disponível em:< http://www.funarte.gov.br/wp-content/ ração. As fotografias, os cromos, os negativos e os slides foram uploads/2011/11/Resultado-final_Premio-Procultura-de-Estimu- higienizados e restaurados por uma equipe especializada22 lo-as-Artes-Visuais.pdf>, . Acesso em: 28 abr 2018. 22 Por conta do estado de conservação das fotografias, dos negativos, 22 A ordenação da documentação iconográfica envolveu a identificação e a separação dos tipos e suportes fotográficos: provas fotográficas, negativos, diapositivos (cromos e slides), fotolitos; a ordenação das imagens de acordo com os temas, assuntos e eventos representados no arranjo; bem como a se- Reforço com papel japonês Higienização do verso leção de documentos para a eliminação23, devido ao estado avançado de deterioração e cópias (INSTITUTO RUBENS GER- CHMAN, 2013(a).

Remoção de fita adesiva Substituição por fita adequada Procedimentos de conservação preventiva no acervo iconográfico. Fotografias de Nazareth Coury e Márcia Mello. INSTITUTO RUBENS GERCHMAN. Relatório da equipe de conservação – Caderno de Imagens. 2013(b). Identificação e organização das fotografias Identificação e separação dos tipos por assunto/evento e suportes fotográficos Fotografias de Thayane Vicente Vam de Berg

A definição do acondicionamento de cada documento levou em consideração questões como a natureza do acervo, o tipo de suporte, o estado de conservação, as condições de uso, a facilitação do manuseio24. Todos esses critérios definiram as opções de armazenamento e acondicionamento da docu- mentação que foi planejada a partir de uma avaliação técnica. Foram utilizadas embalagens com qualidade arquivística para proteger os documentos, tanto física quanto quimicamente, e Acondicionamento dos slides, cromos, negativos e fotografias em impedir o contato direto com outros elementos que poderiam jaquetas de poliéster. ser nocivos aos documentos. Fotografias de Thayane Vicente Vam de Berg. dos cromos e slides foi necessária a intervenção de uma equipe especializada no tratamento de conservação de acervos fotográficos. 23 A eliminação ocorreu sob a supervisão da direção do IRG e apenas Dentre as etapas de conservação do acervo iconográfico destacam-se: atingiu documentos que nem as práticas restauração poderiam “higienização com borracha; remoção de resíduos no suporte; remoção recuperá-los; bem como cópias, cujos originais foram localizados. Não se de fitas adesivas; remoção de imagens aderidas em cartões ou papéis trata de uma eliminação sem critérios. ácidos; substituição por fitas de material inerte; remoção de sujidades 24 A documentação textual recebeu os seguintes tratamentos de como poeira e excremento de insetos, resíduos de papel adesivo, conservação preventiva: “higienização mecânica com o uso de trinchas etiquetas, tinta, grafite, manchas; tratamento de fungos; uso de lixas para remover as sujidades superficiais; higienização com pó de borracha; para remover imperfeições e resíduos no suporte; consolidação de remoção de clipes e grampos metálicos; remoção de fitas adesivas; áreas delaminadas; consolidação de emulsão fragilizada; correção de utilização de lápis 6B (quando necessário fazer inscrição no documento); perfurações, rasgos, amassamentos, vincos; consolidação e reforço do consolidação do suporte com cola carboxi metil celulose e/ou fita suporte com fitas de papel japonês; secagem; prensagem; acondicion- adesiva especial para conservação e restauro de papel; elaboração de amento em material inerte (jaquetas de poliéster, envelopes de papel caixas/envelopes especiais para os documentos de grande dimensão; neutro e caixas adequados aos formatos dos originais); armazenamento acondicionamento da documentação em papel neutro; armazenamento dos documentos em armários de aço” (INSTITUTO RUBENS GERCHMAN. dos documentos em caixas polionda e estantes de aço” (INSTITUTO Relatório da equipe de conservação – Caderno de Imagens. 2013(b). RUBENS GERCHMAN. Relatório da coordenação arquivística. 2013(a). 23 Outrossim, foi realizada a identificação de cada docu- Apenas após o levantamento de todas essas informações que mento do arquivo, desse modo começaram a ser cruzadas as a documentação começou a ser arranjada intelectualmente. informações obtidas nas bibliografias, com outras presentes Por meio da identificação preliminar foi possível mapear os apenas na documentação. O objetivo dessas ações era mapear contextos, as atividades e funções inerentes a vida de Gerch- a maior quantidade de informações possíveis sobre a rede de man, e assim os documentos começaram a ser reunidos, de relacionamento e dados sobre Gerchman. Assim começou a modo a representar a organicidade do arquivo. ser elaborado um arranjo preliminar para a possível organ- Finalizadas as etapas descritas anteriormente e ização da documentação. A cada etapa novas informações encerrando-se o período de duração deste primeiro projeto, eram coletadas, o que ampliava o conhecimento sobre o ac- o IRG buscou novas parcerias com o intuito de dar prossegui- ervo e, obviamente sobre o artista. É por meio dessa atividade mento e avançar nas atividades que ainda precisavam ser de identificação documental, que começou a ser percebida desenvolvidas. Assim foi iniciado no ano de 201425 o Projeto mais claramente, as conexões entre os documentos e as obras, de Digitalização do Acervo do Instituto Rubens Gerchman com com o entendimento de que esse conjunto formava um único verba do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), fundo. do Ministério da Cultura (MinC), que contemplava a digi- Esse mapeamento proporcionou identificar a rede de talização26 de parte do arquivo pessoal de Gerchman, mais sociabilidade do artista, ou seja, verificar quais eram os su- especificamente as fotografias, as correspondências e a jeitos que mantiveram contato e qual o nível desse contato hemeroteca, bem como os cadernos de artista e alguns itens com Gerchman (familiar, amizade, profissional, casual, entre do acervo museológico, como os painéis do Parque Lage. Ain- outros). Esse estudo viabilizou compreender a estrutura e o da em decorrência deste segundo projeto também foi criada contexto de produção do seu arquivo. uma base de dados27 onde foram inseridas as imagens digi- talizadas. Outrossim foi dada continuidade à organização, hi- gienização, acondicionamento e descrição do arquivo pessoal na base de dados28.

25 Este projeto ocorreu entre março e dezembro de 2014. 26 Os representantes digitais foram produzidos nos formatos JPEG 72 dpi, JPEG 300 dpi e TIFF MASTER sem compressão (INSTITUTO RUBENS GERCHMAN. Relatório da coordenação arquivística. 2013(a). 27 Base Dados do Shopia Acervo. Disponível em: < http://cloud01. prima.net.br:81/6083/>. 28 Inúmeras questões foram discutidas para realizar o tratamento arquivístico, desde decisões tomadas quanto: à metodologia; à clas- sificação; à separação dos documentos; à possibilidade de eliminação Rede de ramificações relacionadas com os mais variados contextos do de documentos; à quantificação; à padronização dos tamanhos e o produtor. Fonte: a autora acondicionamento ideal; à padronização das transcrições de alguns documentos; os aspectos de conservação preventiva inseridos no dia-a- dia no ambiente de guarda, como o monitoramento climático; os custos A cada etapa era realizada uma análise e tabulação dos envolvidos no tratamento e guarda do acervo, como os dimensionamen- dados levantados, o que propiciou o mapeamento e estudo do tos de recursos humanos e materiais; as adequações ao cronograma dos projetos; a definição dos descritores; a elaboração, desenvolvimento e conteúdo, dos temas e assuntos presentes na documentação. adequação da base de dados, entre outras. 24 restauradores, conservadores, historiadores, fotógrafos, pro- dutores, curadores. Era essencial essa parceria interdisciplinar. As ações descritas anteriormente se articularam com a missão do IRG, uma vez que o objetivo das intervenções e uso de procedimentos, das metodologias e técnicas das áreas da arquivologia, da conservação e da museologia, no acervo era fundamentalmente garantir a salvaguarda deste patrimônio, possibilitando assim que os registros do artista pudessem estar disponíveis para os pesquisadores. Sem essas ações, o acervo corria imensos riscos de se deteriorar. Portan- Digitalização das fotografias do arquivo pessoal Rubens Gerchman. to, podemos dizer que os procedimentos aplicados estavam Fotografia de Maria Oliveira concatenados com os objetivos do IRG de preservar, difundir a memória do artista, disseminar e democratizar o acesso aos seus documentos e obras, vista a importância histórica de Independentemente do suporte, gênero ou categoria Gerchman para a arte contemporânea brasileira. Tais obje- de acervo (arquivístico ou museológico), a conexão entre os tivos dialogavam, outrossim, com os objetivos do Programa documentos era realizada por meio da descrição dos assuntos, Memória do Mundo da UNESCO. que foram interligados na base de dados através do campo Podemos concluir que as práticas de conservação e or- ‘Contexto’. Esse campo funciona como um descritor e têm ganização do arquivo pessoal de Gerchman possibilitou a uma função semelhante às palavras-chave. São terminologias salvaguarda do acervo, a maior facilidade de acesso, com a que definem amplos conjuntos de assuntos, através dos quais recuperação da informação de forma mais eficiente e eficaz, uma obra de arte específica e um documento, podem ser re- bem como o aprofundamento do conhecimento acerca da cuperados e associados. obra e da vida de Rubens Gerchman. Os termos29 definidos para o campocontexto formam uma espécie de vocabulário controlado e estão diretamente relacionados aos grandes temas que retratam a obra, a car- CONCLUSÃO reira e a vida de Gerchman. Estes termos, inclusive, são assim O arquivo pessoal de Rubens Gerchman é um testemu- definidos pela crítica artística e também pelo próprio artista nho, produto de experiências oriundas da criação artística ao explicar e interpretar a sua obra. cultural do artista e representa processos e dinâmicas soci- Percebe-se a magnitude do trabalho de organização do ais do indivíduo comum imerso na vida social cotidiana. Tal acervo, que envolvia várias etapas, profissionais de diferentes testemunho se relaciona com a memória e com o patrimônio, áreas e conhecimentos diferenciados para lidar com as es- e possui um valor significativo para a memória da arte con- pecificidades do acervo, tais como: arquivistas, museólogos, temporânea brasileira. Este arquivo contempla uma singu- laridade, um valor simbólico, pois as obras de Gerchman re- 29 Foram criados os seguintes contextos: arte gráfica, autorretrato, beijo, bicicleta, caixa de fumaça, caixa de morar, carro, carteira de tratam os indivíduos em suas múltiplas funções sociais, assim identidade, elevador social, erótico, Escola de Artes Visuais, estudo de como permeiam suas experiências individuais e coletivas. Tais corpo, exposição, família / amigos, futebol, geométrico, Índia, joia, documentos permitem um diálogo com a sua obra, no tempo multidão, Nova Geografia, julgamento, personagens femininas, poesia e no espaço, sendo sua arte uma extensão do próprio artista. visual, político, Triunfo Hermético. Um mesmo documento/objeto pode ser incluído em mais de um contexto e caso necessário, novos contextos No arquivo pessoal de Gerchman estão fontes com in- podem ser criados. Vale destacar que no caso particular do acervo de formações por ele próprio coletadas e acumuladas ao longo Gerchman a palavra-chave é suficiente para fazer as conexões entre da sua vida, ou seja, o conjunto de documentos produzidos o acervo e dar sentido a organicidade dos registros como a obra e o e guardados pelo artista, que são resultantes das suas ex- processo do artista. O uso de tais palavras-chave, definidas a partir de um vocabulário controlado, atende as necessidades de integração das periências, das suas atividades profissionais, dos seus inter- obras e dos documentos presentes no arquivo pessoal do artista. esses de estudo, etc. 25 As ações de preservação e divulgação do arquivo do mentary set that composes it makes possible the sociological artista Rubens Gerchman coadunam com os procedimentos studies of the subject and of the collective, being relevant for políticos culturais de bens patrimonializados e podem ser the construction of the memory of contemporary Brazilian vistas como um referencial para direcionamento teórico e art. Gerchman was an avant-garde artist who was part of prático para a gestão de outros arquivos de artistas, pois to- the 1960s movement called “new figuration,” with innovative das as ações realizadas pelo IRG estão em compasso com as aesthetic proposals for the visual arts, in which abstract art políticas patrimoniais da atualidade, visto que perpassam por gives way to a critical pictorial language. His works are in práticas preservacionistas que englobam a gestão do acervo, galleries and museums from various parts of the world. One sua conservação e acesso. of the objectives of this study is to analyze the process of pat- A partir do que foi exposto percebe-se que o percurso rimonialisation of the personal archive of Rubens Gerchman trilhado pelo Instituto Rubens Gerchman para empreender (documentary heritage) and the reasons for its incorporation a salvaguarda do arquivo pessoal do artista envolveu ações into the Memory of the World Program. It is a qualitative and patrimoniais políticas e culturais, com a obtenção de verba interdisciplinary study, in which a methodological approach e patrocínio público-privado. O arquivo pessoal Rubens Ger- will be adopted that will promote a literature review, based chman possui valor patrimonial inegável e ao receber a titu- on a theoretical analysis and discussion, based on the use lação do Programa Memória do Mundo da UNESCO, tal valor of specialized bibliography on the themes and concepts of foi ratificado. memory and patrimony, in addition to the notion of personal É válido ressaltar o empenho e o caráter social do Insti- archive. The research aims to promote discussions that dis- tuto Rubens Gerchman na preservação deste arquivo, pois ao seminate knowledge about Rubens Gerchman ‘s archive and efetuar a salvaguarda do mesmo não se estava protegendo the importance of its safeguard, not only for the maintenance apenas a memória individual deste artista, mas também a of the producer’ s memory, but for the maintenance of collec- memória coletiva da história da arte contemporânea brasilei- tive memory and the memory of contemporary Brazilian art. ra, pois os registros presentes no arquivo de Gerchman são o resultado das experiências do artista no tempo e espaço, ou Keywords: Rubens Gerchman; Memory of the World; Personal archive; Documentary seja, é um misto da sua vivência individual e em sociedade. heritage A premiação do IRG ao ganhar incentivos fiscais para a real- ização da organização, conservação e digitalização do acer- vo por meio dos projetos patrocinados pela FUNARTE e pelo REFERÊNCIAS MinC, bem como o título recebido pelo Programa Memória do FUNARTE (Fundação Nacional das Artes). Prêmio Procul- Mundo confirmam tal valia. Porém mais que a boa vontade e tura de Estímulo as Artes Visuais – resultado final. Disponível o entendimento da importância desse patrimônio documen- em:< http://www.funarte.gov.br/artes-visuais/premio-pro- tal é preciso apoio financeiro não apenas para dar início as cultura-de-estimulo-as-artes-visuais-%E2%80%93-resulta- ações empreendidas, mas também para mantê-las. do-final/>. Acesso em: 05 mai 2018.

GERCHMAN, Clara. Gestão de acervo artístico privado no ARCHIVE MEMORY OF THE WORLD: THE RUBENS Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2015. GERCHMAN PERSONAL ARCHIVE AS DOCUMEN- TARY HERITAGE INSTITUTO RUBENS GERCHMAN. Relatório da coorde- nação arquivística. 2013(a). Abstract: The personal archive of the plastic artist Rubens Gerchman (1942-2008) in the year 2015 was named INSTITUTO RUBENS GERCHMAN. Relatório da equipe de the Memory of the World by UNESCO. This award acknowl- conservação – Caderno de Imagens. 2013(b). edges the heritage importance of this collection. The docu-

26 INSTITUTO RUBENS GERCHMAN. Relatório final do Projeto ALÔ, ALÔ, AMIGOS!: O IMAGINÁRIO MUSICAL Funarte. 2013(c). DOS CASSINOS

MACHADO, Anelise. De ateliê à instituição: musealização Antonio Tostes Baêta Vieira do acervo do artista Rubens Gerchman. 2011. 71p. Trabalho de Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Conclusão de Curso – Curso de Bacharelado em Museologia. Memória Social (PPGMS-UNIRIO) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, RJ. A memória é a única via de se alcançar o passado, de MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Arquivos de artista, mu- forma desordenada, mesmo no espaço acadêmico. Pesquisar seus e pesquisa: reflexões de um historiador. In: Seminário sobre os cassinos brasileiros, a partir de memórias pessoais e Internacional Arquivos de Museus e Pesquisa. São Paulo, 9 – 10 de outras “vividas por tabela”, traz um rememorar musical que nov. 2009. Magalhães, Ana Gonçalves org. Anais... São Paulo: relaciona o imaginário dos cassinos a diversas canções. Músi- MAC USP, 2010. cas que criam novas memórias e constroem uma relação dos frequentadores das casas de jogos e música popular (no sen- OLIVEIRA, Lucia Maria Velloso de. Descrição e pesquisa: tido da que está inserida na indústria fonográfica). O primeiro Reflexões em torno dos arquivos pessoais. Rio de Janeiro: samba gravado Pelo telefone contava a história de uma roleta Móbile, 2012. no Largo da Carioca, a história tem equívocos, mas não é o que nos importa, mais interessante é analisar as construções, PEREIRA FILHO, Hilário Figueiredo. A Patrimonialização apropriações e processos de memoração. Por isso o título com de arquivos brasileiros: a UNESCO e os editais do ‘Memória do a interjeição alô que nos remete ao telefone, aparelho mod- Mundo’ no Brasil. In: XXVIII Simpósio Nacional de História. erno que dialoga com a época do auge da jogatina no país Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios. 27 a 31 de (1933-1946). Interjeição que também passa pelo título da an- julho de 2015, Florianópolis, SC. p. 01 – 17. imação Alô, Amigos! de Walt Disney (1942) que traz o Rio de Janeiro com os cassinos Atlântico, Copacabana e Urca ao som PROCHASSON, Christophe. Atenção: Verdade!Arquivos de Aquarela do Brasil. Esta última, fez parte de uma peça do Privados e Renovação das Práticas Historiográficas. In: Revista teatro de revista do Cassino da Urca Joujoux e Balangandans Estudos Históricos, v.11, nº 21, Arquivos Pessoais. Rio de Janei- (1941). E assim vamos rememorando os cassinos até che- ro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contem- porânea do Brasil - CPDOC/FGV, 1998. garmos à televisão e ao programa do apresentador Abelardo Barbosa, Cassino do Chacrinha, e um conhecido jingle: ‘Alô, alô, ROSA, Jocély Peixoto Osório da. A Materialidade Artística Teresinha, é um barato o Cassino do Chacrinha’. de Rubens Gerchman: polêmica inventiva frente à realidade Palavras-chave: Cassino, Música, Memória brasileira. In: Revista Agora, Vitória, n. 6, 2007, p. 1-17. social, Patrimônio cultural

SILVEIRA, Catarina Heralda Ribeiro da. Patrimônio Docu- mental e Políticas Públicas: o que reflete a literatura, o que se in- INTRODUÇÃO screve nos documentos. (Dissertação de Mestrado apresentada Um encadeamento de histórias, uma memória que puxa ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da outra, um assunto que se fragmenta e cria arestas. Arestas Universidade Federal Fluminense). Niterói, RJ: Universidade que nos parecem muito mais interessantes e nos conduzem a Federal Fluminense, 2013. outras narrativas. Assim é, se lhe parece, parodiando o título da obra de Luigi Pirandello, nossas lembranças plurais e a im- ZAMORA, Rosa Maria Fernandez de. El patrimonio docu- possibilidade de se chegar a uma verdade única alcançando mental iberoamericano y el programa memoria del mundo de uma linearidade. Pierre Bourdieu em A Ilusão Biográfica Unesco, una mirada histórica. In: Acervo, Rio de Janeiro, v. também afirma a impossibilidade de um discurso coerente e 26, nº 2, p. 117-122, jul/dez 2013. 27 linear, já que o real é descontínuo e cheio de imprevistos. E por mour, dinheiro, fortuna, alta sociedade, prédios imponentes, que nossas pesquisas, sendo mais uma das funções que exer- corrompido instantaneamente pelo vício do jogo, alcoolismo, cemos em nossas vidas, gozariam de uma linearidade acadê- prostituição, ruína. E as músicas de apelo junto às grandes mica? A ordem essencial de introdução, desenvolvimento e massas, o samba que adentra o espaço do Golden-room conclusão, há de se aplicar, não a refutamos, mas a trajetória do Copacabana Palace. Os artistas negros que não frequenta- para se alcançar tais resultados passam por todos os tropeços, vam os salões, mas se apresentavam nos palcos. revelações e ramificações, em suma, desordenada. Essa seria a orientação para a leitura do presente texto para o qual há PELO TELEFONE uma organização, tal qual o sopro de um Zéfiro encantado quando de sua redação, mas não de sua imaginação. Enquanto pesquisadores, somos tomados por nossos Outro ponto importante a ser dito para este trabalho: a trabalhos. Sendo este um assunto que também toca minhas memória, suas terminologias derivadas e conceitos perpas- memórias afetivas, sinto-me duplamente afetado e encan- sam a obra do filósofo Paul Ricœur, A memória, a história, tado. São longas horas dedicadas a uma vasta pesquisa que o esquecimento (La mémoire, l’histoire, l’oubli) para o qual a sequer aparece na redação final, contudo, no campo pessoal, representação do passado nos parece ser a de uma imagem. é a parte que assumidamente mais me apraz. Horas inter- Costuma-se dizer uma imagem quase visual e auditiva. A mináveis nos acervos dos mais diversos periódicos, leituras memória, se reduzida à lembrança, passa forçosamente pela de histórias que parecem contos das Mil e Uma Noites, mas imaginação. E logo, ao passar pelo imaginar evoca-se tam- que evidentemente devem ser confirmadas, mesmo as mais bém o lembrar-se. Partindo de conceitos de Henri Bergson e críveis e referenciadas, senão este não seria um trabalho sua distinção entre rappel laborieux e rappel instan- acadêmico. A título de exemplo, dentre muitas outras obras, tané, Ricœur faz uma digressão para abordar Husserl em sem pretendermos ser julgadores, apontamos a história do Leçons pour une phénoménologie de la cons- samba Pelo telefone. Diz-se que a versão posterior ao samba cience intime du temps onde é feita uma distinção a partir de uma paródia da história dos jornalistas que colo- entre retenção ou souvenir primário e reprodução ou sou- caram uma roleta no Largo da Carioca para verificar a falta de venir secundário. Retoma-se então a questão da tempora- repreensão ao jogo na cidade foi a mais conhecida. De fato, lidade, já que a percepção continua até o presente e é o que em minhas memórias pessoais, também o eram, sobretudo nós temos como memória. Portanto, devemos nos questionar a partir da famosa versão de Gilberto Gil na letra de Pela In- a respeito da temporalidade. O que é a duração temporal? ternet (GIL, 1997) na qual ouvimos “o chefe da polícia carioca Sem esquecer que tais perguntas implicam vocábulos tais avisa pelo celular que lá Praça Onze tem um videopôquer para como: durar, continuar (demeurer) e persistir. A duração se jogar”. Mas essa já é uma outra história de uma memória temporal é subjetiva e é esta duração que nos leva à distinção encadeando outra. Voltando ao samba Pelo telefone, em Mu- entre retenção (lembrança imediata) e reprodução (lembran- tações: elogio à preguiça organizado por Novaes (2012) lemos ça secundária). E o pivô desta dualidade é o presente, o pre- que a matéria era posterior e seu título na capa do jornal era sente está sempre se renovando, o presente tem um ‘toda vez’ “O jogo é livre no Rio de Janeiro”. Curiosamente, essa é uma (chaque fois); podemos tomar como exemplo a reprodução reportagem que constava em nossas pesquisas. de uma música instrumental, onde ficamos atentos às notas Seus título e chapéu (no jargão jornalístico brasileiro novas que se reproduzem no instante presente. Mas todas as aquilo que está acima do título) são “O Jogo é franco, uma ações de continuar, durar, permanecer (demeurer) e cessar, só roleta em pleno Largo da Carioca” (BIBLIOTECA NACIONAL, existem porque existe o momento começar. E neste começar A Noite, 2 maio 1913, p. 1). Na reportagem lê-se a notícia introduzimos nosso ponto inicial pela primeira interjeição de que como o jogo era franco, os repórteres montaram uma do título desse trabalho: alô e as músicas dessa reprodução banca em plena praça para que todos pudessem jogar quase (lembrança secundária) que muitas vezes se sobrepõe ao ao meio-dia, assim como se toma sorvetes ou refrescos. Um nosso imaginário de cassinos brasileiros. O imaginário de gla- guarda civil se aproximou dez minutos depois e pediu para que fosse retirada a roleta, o falso croupier argumentou que 28 o jogo era permitido. O guarda insistiu para que a roleta fosse forma, seja qual for a versão, todas são narrativas fascinantes retirada e levada a outro lugar, ao que aparece um moleque e e posse de uma memória coletiva. Mesmo os periódicos nos lhe pergunta “Mas afinal, quem é o Sr.?”. A quem o guarda diz trazem narrativas e, como nos diz Benjamin, “metade da arte não dever satisfações. Um outro passante grita para o fotó- da narrativa está em evitar explicações” (BENJAMIN, 1994, p. grafo da Carioca “Oh, seu photographo, tira um retrato desse 203). Mesmo Caribé da Rocha, que trabalhou muitos anos imbecil!”. O moleque com medo de ser fotografado, correu, no Copacabana Palace, revela em seu depoimento (ROCHA, segundo a reportagem, “velozmente como um batedor de 1993) que em sua coluna jornalística sobre os shows dos carteira vulgar”. Outro ainda grita que aquilo é um descara- cassinos, muitas vezes inventava que determinado frequen- mento e uma falta de pudor. Os que paravam, riam. Meia hora tador tinha dito tal coisa a respeito do show para escrever depois apareceu o comissário Ribeiro de Sá do 3º distrito, de ‘suas’ impressões. No livro Apostas encerradas: o breve império acordo com o texto, apareceu “desembolado parecendo um do Cassino Quitandinha, Flávio Neves também relata alguns tenor que ia salvar a mãe infeliz”. E com ele vários praças da equívocos e lendas do Quitandinha como a visita de Orson cavalaria. O texto diz que então a “cousa ia ser preta” porque Welles e também de Tyrone Power. o comissário iria interromper o jogo, desrespeitando o Chefe da Polícia. “O senhor quer dar explicações, vai dá-las lá na del- ALÔ, AQUARELA DO BRASIL! egacia”, disse o comissário. Enquanto isso um “ponto” jogou três mil no treze, número do azar. “O treze deu”. O banqueiro No Rio de Janeiro as lembranças se remetem especi- mandou cobrar o dinheiro do Chefe da Polícia que estava com ficamente aos três maiores cassinos da cidade: o Cassino a roleta, logo seria o dono da banca. Aumentou a gritaria. O Copacabana Palace, o Cassino Atlântico e o Cassino da Urca, comissário Ribeiro de Sá deu voz de prisão para mostrar ener- que juntos formavam o que denominamos “trio de luxo”. Es- gia e mandou o soldado prender um entusiasmado. O preso tes três cassinos estão eternizados no filme Alô, amigos, escapou. O soldado vendo que o comissário estava desmoral- produzido por Walt Disney no ano de 1942, no qual seus le- izado, desrespeitado e troçado resolveu ir embora e o tumulto treiros piscam na cena final em que o Pato Donald dança o se apaziguou por volta das treze e trinta. E os fotógrafos, co- samba junto à silhueta de Carmen Miranda ao som da música legas dos jornalistas, tiraram instantâneos. No final a roleta Aquarela do Brasil de Ary Barroso, enquanto as imagens voltou para a redação e estaria disponível para uma nova “fez- finais abrem, em um panorama, uma pintura em aquarela da inha” caso o Chefe da Polícia continuasse a fazer declarações cidade do Rio de Janeiro. “tão patetas”. Aquarela do Brasil de Ary Barroso, composta na década Ao que parece essa foi a reportagem de 1913 que daria de 1930, trazia a exaltação de ‘Esse coqueiro que dá coco’, um origem ao primeiro samba gravado, anos antes de seu regis- dos pleonasmos mais conhecidos da música brasileira e verso tro (que aconteceu em 1916). A respeito dessa confusão de famoso por muitas vezes ser motivo de piada, como quando datas e autores de Pelo telefone, Donga diz em sua en- Ary esteve no programa de Flávio Cavalcanti, Um instante, trevista (DONGA, 1969) que o samba é de todo mundo, como Maestro na TV Tupi do Rio de Janeiro (cuja sede ocupava uma criação artística, coletiva e boêmia. Quanto às matérias o prédio do antigo Cassino da Urca). Flávio, em tom crítico, citadas por outros autores como a que informamos acima perguntou: “O que mais um coqueiro pode dar, Ary?” (CASTRO, indicada por Novaes (2012), não as encontramos. Por isso, 2015, p. 423) exaltando o autor; além de ser o verso de uma afirmaríamos que a ideia de que o ‘Chefe da Polícia avisa pelo das músicas “da mais famosa peça do teatro de revista de telefone que na Carioca tem uma roleta para se jogar’ teria a 1941, Joujoux e Balangandans” (PERDIGÃO; CORRADI, 2012, data de 02 de maio de 1913. Talvez Donga não tivesse visto a p. 243) que teve sua estreia no Theatro Municipal do Rio de roleta e nem lido a reportagem, mas certamente ouviu falar Janeiro como uma encomenda beneficente da primeira-dama o que fez com que este evento “por tabela” (POLLAK, 1992, p. D. Darcy Vargas e posteriormente foi apresentada no Cassino 201) fizesse parte de sua memória. Mais de cem anos depois, da Urca. a história é de que a alteração da letra veio depois. De toda Este recorte faz parte de nossas memórias pessoais e, sem que isto seja banalizado, seguindo afirmação de Andreas 29 Huyssen, “não podemos discutir memória pessoal, geracion- O Rio de Janeiro se abria em panorama ao mundo bus- al ou pública sem considerar a enorme influência das novas cando mostrar-se moderno às grandes nações desenvolvidas, tecnologias de mídia como veículos para todas as formas de sobretudo com as duas grandes exposições internacionais da memória.” (HUYSSEN, 2000, p. 20-21). O filme-animação cidade em 1908 e 1922. Desta última, inclusive, instaura-se o Alô, Amigos, em hipótese sem profundas análises sociais, primeiro cassino oficial carioca de que temos registro: Casino exalta valores que em muito agrada brasileiros, sobretudo, Copacabana Palace. Curiosamente encontramos um álbum de cariocas. Após este recorte, ainda considerando as tecnolo- um conjunto de cartas de baralho denominado Souvenir do gias de mídia, e, no caso dos cassinos, é enorme a influência Centenário da Independência do Brasil - 1922, dentre as car- no cinema, na televisão, na música, fotografias, exposições e tas o três de espadas: Copacabana. A relação do bairro com o outras formas que constroem nosso imaginário. jogo e o café-society inaugurada com o Copacabana Palace em A despeito dessa primeira imagem que nos ocorre 1923 (em atraso para o evento da Exposição de 1922), solidifi- do panorama da cidade do Rio de Janeiro na animação de cou-se com o Cassino Atlântico em 1935. Walt Disney, pensamos nos conceitos “modernos” franceses indicados por Walter Benjamin (1985) em Paris: Capital do TCHAU, BEJO Século XIX, no qual os panoramas são tomados pela pintura, literatura e fotografia para fazer uma imitação perfeita da Os cassinos foram proibidos pelo presidente Eurico natureza com os novos aparatos técnicos. Gaspar Dutra em abril de 1946. As razões que o levou ao Decreto Lei nº 9 215 (BRASIL, 1946) são divergentes. Alguns Os panoramas anunciam uma revolução no afirmam que Dutra tivera financeira dos donos dos relacionamento da arte com a técnica e são, cassinos em sua campanha eleitoral, em especial de Joaquim ao mesmo tempo, a expressão de um novo Rolla, mas mesmo assim – por pressão da imprensa e da Ig- sentimento de vida. O morador da cidade, cuja supremacia política sobe o morador do reja Católica que considerava a exploração de jogos um mal campo tantas vezes se manifesta ao longo para a moral e os costumes da sociedade – assinara o decre- do século, tenta trazer o campo para a ci- to. Apoiado politicamente por Getúlio Vargas, Dutra de certo dade. Nos panoramas, a cidade se abre em modo dividiu o ‘peso’ da interdição com o então Ministro da paisagem, como mais tarde ela o fará, de Justiça Carlos Luz e com o general Góis Monteiro (um dos maneira ainda mais sutil, para o flâneur. líderes do movimento militar contrário a Getúlio Vargas). Po- (BENJAMIN, 1985, p. 34, grifo do autor). liticamente, as razões que levaram Dutra a tomar tal decisão não são até hoje esclarecidas, bem como o momento político Nesse panorama da animação de Disney, o Rio de Janeiro da época, já que Getúlio Vargas sabia que Dutra havia apoiado em uma aquarela, com o cavalete reforçando a ideia de que o movimento contrário ao Estado Novo, mas mesmo assim aquilo é uma pintura, mas ao mesmo tempo em uma obra dera apoio ao general Dutra no intuito de não ser exilado. de ‘realidade’ cinematográfica é a congruência de duas artes Após assumir o governo, Dutra, porém, fora conivente com os onde o “pintor observa em seu trabalho uma distância natural políticos contrários a Vargas. entre a realidade dada e ele próprio, ao passo que o cinegraf- Os cassinos eram, de certo modo, vinculados à imagem ista penetra profundamente no tecido dessa realidade” (BEN- de Vargas, pois fora ele quem liberara a exploração dos mes- JAMIN, 2012, p. 202). A ‘realidade’ da animação é vista nos mos em 1932, além de seu irmão Benjamim Vargas, o Bejo, últimos fotogramas nos quais as imagens dos três cassinos ser frequentador assíduo dos cassinos e famoso nos salões por cariocas se sobrepõem à medida que a visão do ‘cinegrafista’ lançar tiros de revólver para o alto quando “traído” pela roleta. vai se afastando da cidade, para finalmente transpormos essa Bejo deposita seu revólver na mesa da role- ‘realidade’ no fotograma em que se desvela esse distancia- ta, a título de aposta, e anuncia em alto e mento que Benjamin afirma ser natural ao pintor. bom som – “Preto, dezessete!” Todos pren- dem a respiração. As apostas das outras me-

30 sas são interrompidas como em um passe de A vida honra tudo mágica. O silêncio só é quebrado pelo ruído Num lance ele arriscou... da bolinha girando na roleta. A tensão subia à medida que o intervalo do som da bolinha “Jogo...jogo...feito! Preto 17!” tocando nas palhetas da roleta aumentava. Deu preto dezessete Depois de alguns longos segundos a boli- nha caprichosamente cai no número nove. Nem um cão entre os amigos encontrou! Bejo desfigurado estica o braço para pegar (GONÇALVES, 1956) a arma. Mas, o crupiê, saca mais rápido, e oportunamente apregoa: “Preto, Dezessete”. Outra versão associada ao decreto de Dutra diz respeito à Todos suspiram. Alívio geral. (COHEN; GOR- religiosidade de sua esposa Carmela Dutra, a D. Santinha. Con- BERG, 2009, p. 107) trária à jogatina, D. Santinha considerava os cassinos lugares do pecado e fizera com que o marido a prometesse que, se A história do irmão do presidente ficou famosa e virou o eleito, fecharia todos os cassinos do país. Independentemente tango de Herivelto Martins e David Nasser: Vermelho 27 da veracidade desta última versão, o apoio da Igreja a alguns (GONÇALVES, 1956), conhecida na voz de Nelson Gonçalves. políticos era necessário ou, pelo menos, a não oposição à Ig- Jogo no pano... jogo... feito! Vermelho 27!” reja Católica. Conforme levantamento de fontes, em arquivos públicos e museus, verificamos que apenas o jornal O Globo Esse homem que hoje passa maltrapilho de Roberto Marinho noticiou, no próprio dia de assinatura do Fracassado no seu traje furta-cor decreto, reportagens completas sobre o fechamento dos cas- sinos e com duras críticas aos mesmos. Outros jornais, mesmo Um dia já foi homem, teve amigos os de edição noturna, tais como a Folha da Noite de São Paulo Teve amores, mas nunca teve amor e o Diário da Noite do Rio de Janeiro, apenas em suas segun- Soberano da roleta e da campista das edições faziam breve menção ao decreto proibitivo. Getúlio Vargas, frequentemente mencionado nos jornais, Foi sua majestade o jogador! voltou à pauta do dia após a proibição do jogo. Seu governo foi Vermelho vinte e sete duramente criticado e acusado de facilitar a corrupção e des- moralizar o Brasil. Alguns chegavam a afirmar que o país, com Seu dinheiro mil mulheres conquistou toda a sua grandiosidade e força trabalhadora, não precisava Vermelho vinte e sete da jogatina dos cassinos para a manutenção de sua economia e de emprego a seus trabalhadores. Sem a roleta finalmente Seu dinheiro tanta gente alimentou o país reconstruiria sua moral e poderia retomar o seu lugar Um rio de champagne sorrindo derramou e status junto às ‘nações cultas’ do mundo. Diminuir a força da imagem de Getúlio Vargas, associar seu governo E sua mocidade em fichas transformou à corrupção, apontar suas proximidades ao regime fascista “Jogo no pano...jogo...feito! ... Vermelho de Mussolini, anunciar que ele se afastara do cenário políti- 27!” co da capital, transparecer que ele envelhecera etc., eram, Vermelho vinte e sete conforme verificamos em periódicos da época, algumas das notícias veiculadas pela imprensa desde a sua saída em 1945. Quando a sorte caprichosa o abandonou Quando os jogos foram proibidos em 1946, o mundo saía da Vermelho vinte e sete Segunda Guerra Mundial e conhecia os horrores dos regimes fascistas, ao qual Getúlio Vargas era acusado de associação, Cada amigo num estranho se tornou sobretudo com o italiano. O país buscava, segundo alguns Os ossos do banquete aos cães ele atirou políticos e jornalistas, uma moralização. O Jornal do Brasil do

31 dia seguinte ao decreto de Dutra trazia em sua sétima página bica. O Cassino do Chacrinha era um programa de auditório o título “Extinto o jogo e início da campanha de repressão ao onde um misto de luxo e popularidade se fazia presente. O comunismo: foram essas as principais resoluções tomadas apresentador se permitia o uso de figurinos extravagantes ontem, pelo governo, na reunião de ministros realizada no com cartolas e casacas bordadas de paetês; suas dançarinas Guanabara, sob a presidência do General Eurico Gaspar Dutra” – as chacretes – faziam alusão às coristas dos cassinos. Vale (BIBLIOTECA NACIONAL, Jornal do Brasil, 01 maio 1946, p. 7). ressaltar que antes de se fixar em 1982 na Rede Globo, Cha- O diretor dos Diários Associados e jornalista Austregésilo de crinha passara pela TV Excelsior, TV Tupi, TV Globo e TV Rio, Athayde publicou no Diário da Noite uma carta condenando a e nesta última teve seu programa dirigido por Carlos Manga, jogatina no país e exaltando o ato moralizador de Dutra. um frequentador do Cassino da Urca, e quem de fato formu- Curiosamente Austregésilo de Athayde era dos Diários lou o espaço cênico de Chacrinha e trouxe mais destaque às Associados, pertencente a Assis Chateaubriand, que por sua chacretes. vez, era amigo de Joaquim Rolla, o magnata dos cassinos no Ao voltar para a TV Rio, apesar de o auditó- Brasil. Chateaubriand ganhava muito dinheiro com os anúnci- rio ser menor, Chacrinha viu seu programa os dos shows dos cassinos em seus espaços de rádio e jornal. ganhar um formato que lhe traria um ano Nesta mesma página do Diário da Noite, junto à publicação depois o sucesso nacional: ele agora podia de Austregésilo de Athayde, havia, curiosamente, uma outra se movimentar melhor no cenário, graças à publicação em maior destaque cujo título era “Inaugurou-se passarela inventada por Carlos Manga en- no Hotel-Termas Quitandinha a exposição de pintura de Tiber- volvendo o palco, com as chacretes em cima io: o restaurador da tradição africana na arte negra, segundo dos platôs. Manga ficou encantado com o a opinião do prof. Arthur Ramos” (BIBLIOTECA NACIONAL, animador. (BARBOSA; RITO, 1996, p. 70). Diário da Noite, 03 maio 1946, p. 2). Até então, normalmente as notícias que víamos nesse mesmo jornal sobre o hotel, trat- A mesma emissora de televisão recriava em 1990 o ava-o de Hotel Quitandinha ou simplesmente Quitandinha. Cassino da Urca para a minissérie A.E.I.O...Urca, isso porque Após a publicação no Diário Oficial – um dia depois do o prédio onde funcionou o cassino foi remodelado e seu in- decreto que proibia os cassinos no Brasil – muitos eram os ar- terior usado para as gravações, segundo informação do site tistas, técnicos, garçons, crupiês e outros tantos que estavam Memória Globo (2012). desempregados. No dia do fechamento os cassinos totaliza- Para que as apresentações musicais no Cas- vam 65 unidades em todo o território nacional e emprega- sino da Urca chegassem mais próximas da vam, segundo algumas fontes, 40.000 empregados sendo essência que se buscava capturar, as cenas que alguns chegam a afirmar 79 unidades e mais de 60.000 foram gravadas no próprio local, construído empregados diretos e indiretos. A imprensa de uma forma em 1927, que recebeu uma reforma espe- geral apoiava a proibição aos jogos dando pouco espaço ao cialmente para as gravações. (MEMÓRIA desemprego gerado, a sociedade não contestava principal- GLOBO, 2012). mente por razões religiosas mesmo que muitos continuassem a fazer pequenas apostas no jogo do bicho, por exemplo, e na Ainda segundo consta no site Memória Globo, o autor Doc Loteria Federal que continuava a lançar propagandas diárias Comparato (que escreveu a minissérie juntamente com Anto- nos meios de imprensa da época. nio Calmon), interessou-se pela história através dos relatos de Carlos Manga (diretor de cinema e televisão no Brasil) que foi ALÔ, TERESINHA frequentador do cassino. A minissérie A.E.I.O...Urca, recriava um cenário político, Em 1982, o comunicador Abelardo Barbosa, o Chacrinha, artístico e social para aquele período, através de um roteiro estreava o seu Cassino do Chacrinha na Rede Globo de Tele- que interligava seus personagens. visão, segundo as autoras Florinda Barbosa e Lucia Rito (1996) na biografia do apresentador Quem não se comunica se trum- O Cassino da Urca, ainda em plena ativi- 32 dade na passagem dos anos 1930 para os torturado pelas forças policiais; um espião nazista (person- 1940, foi palco de uma história repleta de agem de Raul Cortez) vem ao Brasil em busca de informações romance, suspense e glamour. Localizado que colaborariam ao governo de Hitler; e os artistas nacionais no Rio de Janeiro, na época capital federal, reverenciam o apoio que o então presidente Getúlio Vargas os e sob o tenso clima internacional gerado concedia. pela Segunda Guerra Mundial, o cassino Em janeiro de 2010, mais uma vez o cassino é recriado promoveu a aproximação dos personagens para uma minissérie da Rede Globo, Dalva e Herivelto, uma Tide (Carlos Alberto Riccelli) e Sílvia (Débora canção de amor. Nesta minissérie o cassino também era re- Bloch), que passam a viver um complicado criado com bastante luxo e com um aparato técnico excelente caso de amor, enfrentando desafios como para a época retratada. Dalva de Oliveira e Herivelto Martins espionagem política, desencontros e, até mesmo, mortes. Com a intenção de conse- eram os cantores personagens principais da minissérie que, guir a libertação do pai, Frederico Donazzi juntamente com Nilo Chagas, formaram e apresentaram o (Ivan Cândido), comunista e prisioneiro Trio de Ouro no Cassino da Urca. A minissérie também apre- político, Sílvia deixa a cidade de São Paulo senta cenas nas quais os personagens atravessam a Baia de e vai para o Rio de Janeiro, onde passa a Guanabara em uma linha marítima que ligava os cassinos da trabalhar como corista no Cassino da Urca, Urca e de Icaraí na cidade de Niterói (ambos propriedade de de Joaquim Rolla (Mário Borges). Ao conhe- Joaquim Rolla). As cenas que se passavam no Cassino da Urca cer o croupier Tide, ela se envolve com o foram gravadas no antigo Cassino Quitandinha. rapaz, e a paixão entre os dois passa a ser Os principais shows, que na vida real foram o fio condutor da trama, que acontece entre realizados no extinto Cassino da Urca, foram 1939 e 1946. [...] No cassino, diferentes per- gravados no Palácio Quitandinha, em Petró- sonagens ajudam a reconstruir o universo polis, que ganhou um projeto cenográfico da época retratada. Lá, Sílvia conhece Olga para as gravações. Também são cenários da Luíza (Renata Sorrah), figurinista do cassino história os teatros Carlos Gomes e João Ca- e famosa modista, que a ajuda a se tornar etano, além do auditório da Rádio Mayrink uma das grandes beldades da noite carioca. Veiga. O diretor de arte da minissérie, Mário Olga tem como parceiro o nazista Jofre (Raul Monteiro, tem uma ligação especial com o Cortez), que passa a chantagear a heroína Cassino da Urca porque é um cenário cons- em troca da liberdade de seu pai [...]. (ME- truído com a ajuda do material de trabalho MÓRIA GLOBO, 2012). de seu pai, Alcibíades Monteiro Filho, e de seu avô, Alcibíades Monteiro, ambos ar- Na minissérie, conforme o trecho anteriormente citado, quitetos e cenógrafos. Monteiro Filho foi o glamour do cassino era recriado em seus shows e frequen- cenógrafo do cassino, e também trabalhou tadores/jogadores. Mesmo os oriundos das classes populares, no projeto do Hotel Quitandinha, em Pe- quando jogadores, travestiam-se de alguma história que trópolis. Seu acervo pessoal, portanto, foi fizesse com que eles pudessem participar do núcleo social fundamental na elaboração da cenografia. dos cassinos, como as personagens do ator Marcos Paulo – Segundo Mário Monteiro, a estrutura e o um boêmio da Lapa que se vestia elegantemente quando padrão dos dois cassinos era a mesma, pois ia ao cassino, e da atriz Beatriz Segall que interpretava uma ambos tinham o mesmo dono, Joaquim condessa moradora do Copacabana Palace, mas que no fim se Rolla. A principal diferença era o palco, revelava detentora de nenhum título de nobreza. que, no Cassino da Urca, era avançado e A minissérie também faz alusão ao período sob o gov- iluminado, cobrindo a pista de dança. Essa erno do ex-presidente Getúlio Vargas, no qual um comunista adaptação foi feita no Quitandinha com a (personagem de Ivan Cândido) é repreendido, encarcerado e inclusão de uma pista de acrílico. O projeto

33 cenográfico levou dois meses para ser ela- CONCLUSÃO borado e duas semanas para ser construído. (MEMÓRIA GLOBO, 2012). No âmbito artístico, os cassinos recebiam com toda pom- pa cantores internacionais, mas no seu cotidiano eram os arti- Ao compararmos as duas minisséries, obviamente, o stas nacionais que faziam os espetáculos. Numa época anteri- brilho, as luzes e os espelhos do palco do Cassino da Urca são or à Bossa Nova, a cultura brasileira era bastante difundida no elementos presentes nos cenários que o representam. Porém, exterior, sobretudo, conforme indica Ruy Castro (2005), com a dado ao apelo popular que os cantores retratados possuem, ida de Carmen Miranda aos Estados Unidos e com a presença em Dalva e Herivelto, uma canção de amor, os shows de Ary Barroso como músico do estúdio cinematográfico de do cassino, sobretudo dos dois artistas que deram nome à Walt Disney. Notifica-se inclusive a presença do próprio Dis- minissérie, não eram tão elegantes quanto em A.E.I.O...Urca, ney no Cassino da Urca quando de sua visita ao Brasil. o que corresponde melhor aos shows anunciados em periód- Buscando recriar o luxo dos famosos cassinos estrangei- icos da época encontrados em nossas pesquisas. Contudo, ros, estes três grandes cassinos cariocas deram um status percebemos nas duas minisséries citadas que as histórias das de show business aos nossos artistas. Por qual motivo apresentações televisionadas apesar de fictícias, foram recri- valeria tanto a pena investir em artistas nacionais para apre- adas a partir do que se conhecia. Sendo o cassino de A.E.I.O... sentações de estilos de músicas que em muitas das vezes Urca recriado, conforme vimos, a partir das memórias do dire- eram conhecidos do grande público – dado aos programas de tor Carlos Manga e Dalva e Herivelto de uma pesquisa oriunda rádio – como Carmen Miranda e Orlando Silva, entre tantos do próprio acervo dos artistas título da minissérie. De fato os outros, quando o que se tinha era um público da alta socie- cassinos tiveram em seus shows a presença dos mais varia- dade, predominantemente – como percebemos em algumas dos estilos de músicas e shows, inclusive de apresentações fotografias – branca? circenses. Chacrinha, A.E.I.O...Urca, Dalva e Herivelto, uma canção [...] se os cassinos enchiam seus palcos de de amor, são espetáculos que recriam as facetas de um mes- belos cantores, dançarinos e acrobatas ne- mo lugar. Festa, alegria, luxo, glamour, paetês, jogo, música, gros ou mulatos, não se viam os dignos re- show, baile, dança, celebridade, poder etc., tudo isso é recria- presentantes da cultura brasileira sentados do e como veiculado pela televisão, sobretudo, pela emissora nas elegantes mesas dos salões. Até mesmo televisiva de maior abrangência no país, acreditamos que Grande Otelo relatou que, certa vez, quis en- colabore no imaginário dos cassinos que existiram no Brasil. trar com um amigo no Cassino da Urca, mas “O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, in- o outro, por não ser artista, teve que entrar discutível e inacessível. Sua única mensagem é ‘o que aparece pelos fundos. Otelo, que obviamente tinha é bom, o que é bom aparece’.” (DEBORD, 2003, p. 17). carta branca, conta ainda o susto que levou Sabemos também que não apenas a televisão constrói junto com seu amigo, quando ao passarem pelo salão de jogos escutaram o crupiê esse imaginário sobre os cassinos. Em uma escala mais am- gritar: “Preto dois!” (PERDIGÃO; CORRADI, pla, o cinema também deve ser considerado. Parvulesco 2012, p. 242). (2008) considera que o cinema, sobretudo hollywoodiano, cristaliza o imaginário de cassino, vistos como ambientes Perguntamo-nos o que permitia a inclusão e aceitação que envolvem crimes, dinheiro sujo, noites exageradamente de artistas de grande popularidade junto às classes menos mundanas e luxuriosas, portanto extremamente sedutoras. nobres e, em muitos casos, os próprios artistas oriundos dos “O cinema tem sido terreno fértil para o espetáculo, com Hol- subúrbios, da Lapa e das favelas. Muitos artistas internacio- lywood insinuando um mundo de glamour, publicidade, nais fizeram apresentações memoráveis nos cassinos, como moda e excessos.” (KELLNER, 2006, 129). Josephine Baker, Jean Sablon e Henri Salvador, contudo, con- forme indica Castro (2005), os nomes mais ovacionados eram

34 “O Rei da Voz”, “O Rei das Multidões” e a “Pequena Notável”, o ABSTRACT que poderia haver de mais popular? Memory is the only way to reach the past, in a disordered Os artistas que se apresentavam nos cassinos, sobretu- way, even in the academic space. Researching about Brazilian do os cantores, eram conhecidos do grande público, prin- casinos, from personal memories and some other ones “lived cipalmente pelo fato desta época (anos 30/40) o rádio ser by ricochet”, brings us a musical remembrance that relates the um grande veículo de comunicação e propaganda, inclusive imaginary of the casinos to several songs. Songs that create política (SEVCENKO, 2002). E muitos artistas que se apre- new memories and build a relationship of the regulars of the sentavam no rádio também se apresentavam nos cassinos, gambling houses and popular music (in the sense of that sendo inclusive, alguns programas de rádio transmitidos di- which is inserted in the music industry). The first recorded retamente dos cassinos. Dado isto, ao longo deste trabalho a samba Pelo telefone told us the story of a roulette in Largo da apropriação que fizemos do termo popular, bem como de cul- Carioca, that story has misconceptions, but it does not matter tura popular, não está associada a “uma concepção de mundo to us; it is more interesting to analyze the constructions, das classes subalternas, como o é para Gramsci” (ORTIZ, 2006, appropriations and processes of memorization. That is why p. 72), também não o associamos à ideia de folclore, tampou- the title with the interjection Alô (hello) that refers us to co a uma forma de consciência política, como o é para os que the telephone, a modern device that dialogues with the pensam em cultura popular como uma forma de militância era of the casino›s gambling in the country (1933-1946). política. A apropriação feita de popular, ao tratarmos de tais Interjection that also happens through the title of the live- músicas e seus artistas, associa música popular e/ou artista action animation Saludos, Amigos! from Walt Disney (1942) popular àquele que tem prestígio junto à massa em virtude that brings Rio de Janeiro with the Atlântico, Copacabana and do veículo de comunicação, o rádio, e que é de interesse com- Urca casinos under the sound of Aquarela do Brasil. The latter ercial da indústria fonográfica e demais beneficiados por esse one, was part of a revue in Casino da Urca Joujoux e Balan- mercado. gandans (1941). And so we go back to the casinos until we Os grandes cassinos foram palcos de muita plurali- get to the television and the show of the presenter Abelardo dade onde se valorizava a presença de clientes oriundos de Barbosa, Cassino do Chacrinha, and a well-known jingle: ‘Alô, boas famílias da sociedade, mas também recebia os menos alô, Teresinha, it’s a nice thing the Chacrinha’s Casino’. afortunados ambiciosos de qualquer fortuna (CASTRO, 2005).

Funcionando inclusive em dias de semana, geraram muitas Keywords: Casino, Music, Social memory, rendas, muitos empregos, revelaram talentos, exigiam em Cultural heritage certos dias traje black-tie. Mas, todo esse faz de conta dos cassinos era, pensamos, a porta de entrada dos fundos (basti- dores) para que artistas do rádio, mesmo os negros (a exemp- lo de Grande Otelo), chegassem à boca de cena. REFERÊNCIAS As notas sociais das revistas e jornais da época destaca- ALÔ, AMIGOS. Direção: Walt Disney. DVD, Animação. Es- vam a elegância e boa frequentação de seus salões, mas ao tados Unidos: Walt Disney Home Entertainment, 1942. 42”., mesmo tempo as denúncias e críticas ao jogo, ao vício e aos son., color.. prazeres mundanos praticados também eram presentes. Os jogos eram legalmente permitidos no Brasil, mas as propa- BARBOSA, Florinda; RITO, Lucia. Quem não se comuni- gandas e convites veiculados não faziam nenhuma alusão ao ca se trumbica: biografia de Abelardo Chacrinha Barbosa. jogo, às possibilidades de ganhos e às estruturas do que esta- São Paulo: Globo, 1996. va diretamente relacionado ao carteado e à roleta, o grande BARBOSA, Marialva Carlos. Imaginação televisual e os chamariz eram seus shows. Certamente, o que nos leva a primórdios da TV no Brasil. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; rememorar seus artistas e músicas, permitindo-nos este en- SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (orgs.). História da tele- cadeamento de lembranças. visão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010.

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37 SANT’ANA, Thais Rezende da Silva de. A Exposição AS CIDADES-MONUMENTO DE GILBERTO Internacional do Centenário da Independência: Mod- FREYRE E JORGE AMADO ernidade e Política no Rio de Janeiro do início dos anos 1920. 2008. 172f. Dissertação (Mestrado em História) – Universi- Leonardo Ramos de Toledo dade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Doutor em Estudos Literários (UFJF) Humanas, Campinas, SP. Disponível em: Acesso em: 27 dez. 2012. RESUMO Este trabalho discute o modo como Gilberto Freyre e SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos Jorge Amado buscam construir itinerários e ressignificar e ritos do Rio. In: ___. (org.). História da vida privada no monumentos das cidades de Recife e Salvador nas obras Guia Brasil: República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934) e Companhia das Letras, 2002. p. 513-619. Vol 3. Bahia de Todos-os-Santos (1945), respectivamente. Ao con- struir leituras que articulam a descrição de atrativos turísticos a elementos da cultura popular, esses autores suplementam a ordem sígnica dessas cidades. Esse processo tem início no pensamento ordenador, arbitrado pelas entidades oficiais de poder, mas se transforma continuamente por meio das tradições populares que ali tomam lugar. Dessa forma, seria possível compreender as referidas obras como tentativa de demarcar uma identidade local e conferir às duas cidades um sentido de lugar antropológico.

PALAVRAS-CHAVE: lugar antropológico, monumento, itinerário, guia de viagem

THE MONUMENT TOWNS OF GILBERTO FREYRE AND JORGE AMADO

ABSTRACT This paper discusses how Gilberto Freyre and Jorge Ama- do try to build itineraries and re-signify monuments of Recife and Salvador cities in the books Guia prático, histórico e senti- mental da cidade do Recife (1934) and Bahia de Todos os Santos (1945), respectively. In constructing readings that articulate the description of tourist attractions to elements of popular culture, these authors supplement the order of sign of these towns. This process begins in the official entities of power, but is continually transformed by the popular traditions that take place there. In this way, it would be possible to understand these works as an attempt to demarcate a local identity and give the two cities a sense of anthropological site.

38 KEYWORDS: anthropological site, monument, uma identidade regional, diante de um cenário que envolvia a itinerary, travel guide decadência econômica local, o aumento do poder econômico e de influência cultural das capitais do Sudeste e, também, INTRODUÇÃO da adoção de modelos estrangeiros de urbanização e estilo de vida. Seria possível, assim, identificar no escritor – e, mais “Onde estará mesmo a verdade quando ela se refere à especificamente, em seu guia – a tentativa de delimitação de cidade da Bahia?” (AMADO, 2012, p.16), questiona Jorge um lugar antropológico, no sentido atribuído por Marc Augé. Amado no verbete que abre o livro Bahia de Todos os Santos Onze anos depois de publicado o guia de Recife, Jorge (1945). A pergunta enfatiza a prevalência do imaginário so- Amado realizaria seu guia de Salvador, obra que se revela con- bre a realidade cotidiana das ruas, em um posicionamento vergente ao texto de Freyre em muitos aspectos, sobretudo na coerente com uma obra que se propõe como guia turístico de tentativa de preservar uma identidade local que, por vezes, Salvador, mas que parece, na verdade, realizar uma espécie parecia prestes a se desfazer. O próprio autor, aliás, chegou a remodelação simbólica das atrações turísticas da cidade. As- registrar as mudanças na capital baiana nas atualizações do sim, o autor procede uma leitura peculiar de elementos ar- livro, publicadas entre as décadas de 1970 e 1980. quitetônicos e monumentos da capital baiana em um tipo de discurso que reavalia a história oficial a partir da valorização de elementos da cultura popular. Trata-se, conforme o autor, Desenvolvimento de um manual de “ruas e mistérios” da Bahia, portanto de Na percepção de Renato Cordeiro Gomes, uma visão algo que pode ter utilidade prática para o viajante, mas que totalizadora da urbe estaria sempre destinada ao fracasso. também revela segredos. Ao contrário, parte-se sempre de um olhar parcial, articulado De modo semelhante, Gilberto Freyre inicia seu Guia através de certos recortes de espaço topográfico, pelos quais prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934) esse indivíduo transita, e também a um tempo definido e, alertando o viajante que chega à capital pernambucana por ainda, a uma rede de relações sociais específicas. Assim, mar a não se iludir com as primeiras impressões que a cidade não seria plenamente possível uma escrita “da cidade”, mas oferece. O verdadeiro caráter da cidade estaria reservado de “uma cidade” dentre outras tantas coexistentes. (GOMES, àqueles capazes de desvendar as diferentes camadas de 2008) significados presentes no frontispício de seus sobrados, no Nesse aspecto, poderíamos compreender o proclamado traçado peculiar de suas ruas cortadas por muitas pontes e “mistério” da cidade da Bahia, na obra de Amado, como apelo em seus monumentos. Recife, assim, “prefere namorados a um tipo de sensibilidade mais aguçada por parte do visi- sentimentais a admiradores imediatos” (FREYRE, 2007, p.23). tante. O misterioso intrigaria o viajante e o estimularia a de- A introdução dessas duas obras – publicadas em um in- scobrir os segredos locais, fazendo com que ele apure os sen- tervalo de pouco mais de uma década e influenciadas direta tidos para elementos que não estão expostos concretamente ou indiretamente pelo movimento regionalista nordestino nas ruas, mas que estariam disponíveis aos mais atentos ou – evidenciam a preocupação de Amado e Freyre em oferecer àqueles previamente alertados pelo autor. aos leitores uma visão de Salvador e Recife que escape à mera A evocação do “mistério”, desse modo, parece esboçar enumeração de atrativos turísticos. Ao contrário, os autores uma via de acesso à dimensão cultural, e por que não, mítica parecem elevar elementos da fisionomia urbana à condição de Salvador, ambas participantes do que Angel Rama de- de marcos identitários, capazes de revelar as particularidades nomina “cidade dos signos”. Por essa noção, o autor entend- culturais e a legitimidade de um caráter local autônomo. eria uma instância abstrata, composta por marcos de ordem Considerado um dos primeiros guias de cidades bra- simbólica e pelo imaginário construído historicamente. O sileiras publicadas no país, o livro de Gilberto Freyre reflete sígnico coexistiria com a cidade material e, ao mesmo tempo, a preocupação do autor em demarcar sua cidade natal como atuaria em sua organização: local único no mundo. Disposição essa que revela as preocu- pações do sociólogo com a possibilidade de apagamento de

39 As cidades desenvolvem suntuosamente Passados mais de quatro séculos de sua fundação, Sal- uma linguagem mediante duas redes dife- vador ainda exibe os rastros de tais ordenações coloniais. O rentes e superpostas: a física, que o visitante núcleo original da cidade, de 1549, possui as marcas do mod- comum percorre até perder-se na sua multi- elo tipicamente português, com o traçado regular a partir de plicidade e fragmentação, e a simbólica, que uma praça central, onde se organizam os principais núcleos a ordena e interpreta, ainda que somente de poder. Localizada no topo da Cidade Alta, fronteiriça ao para aqueles espíritos afins, capazes de ler mar, a praça Tomé de Souza conserva a Casa de Câmara e Ca- como significações o que não são nada mais deia e o Palácio do Governo, que, apesar de terem passado por que significantes sensíveis para os demais, remodelações ao longo do tempo, conservam-se no mesmo e, graças a essa leitura, reconstruir a ordem. local desde o século XVI. Pouco adiante, ao Norte, localiza-se o (RAMA, 1985, p.53) Largo da Sé, onde até 1933 erguia-se a antiga Catedral da Sé. A partir de tal disposição urbanística, seria possível Rama atribui a essa ordem dos signos uma ênfase políti- perceber a concepção de uma distribuição que tem como ca, no sentido de que esta constituiria um aparato ordenador núcleo um conjunto de edifícios representativos dos poderes do processo de urbanização. Assim, uma cidade seria feita de oficiais da coroa portuguesa e da religião católica. Tal config- números, nomes, decretos e outras atribuições da vida prática uração remete à leitura antropológica do espaço urbano real- em sociedades que procuram dar sentido a um espaço ge- izada por Marc Augé. Localizada na confluência de diferentes ográfico concreto. Para tanto, traçam-se coordenadas, delim- itinerários que cruzam a cidade, a praça se configura como itam-se fronteiras, contabilizam-se habitantes, casas, escolas, “centro”, espaço simbólico de ordem, definidor de posições hospitais e toda sorte de variáveis que delimitam a existência sociais, dominante não só na vida prática dos habitantes, mas política (enquanto território autônomo demarcado no mapa) também no imaginário desses. Angel Rama elucida a relação e cotidiana (a realidade prática dos cidadãos) de uma zona entre o desenho da cidade e o exercício simbólico do poder: urbana. No caso específico da América Latina, esse aspecto Antes de ser uma realidade de ruas, casas e simbólico assumiria caráter prevalente na concepção das praças, que só podem existir e ainda assim cidades, uma vez que essas foram edificadas em função da gradualmente, no transcurso do tempo his- ideologia colonial. Esses núcleos urbanos ultramarinos seri- tórico, as cidades emergiram já completas am originados a partir de um pensamento ordenador prévio, por um parto da inteligência nas normas relativo a seu traçado original. Segundo Rama, a implan- que as teorizavam, nos atos fundacionais tação das cidades coloniais representa não só uma tentativa que as estatuíam, nos planos que as dese- de acomodar os colonos nas terras a serem exploradas, mas nhavam idealmente, com essa regularidade um projeto a ser seguido, tendo em vista uma perspectiva de fatal que espreita os sonhos da razão (...). (RAMA, 1985, p.32) futuro para essa sociedade. Desse modo, o autor acredita ser possível compreender certos aspectos de uma cidade a partir De acordo com Luís Antônio Cardoso, seria possível iden- da leitura de seu mapa: tificar a tradição urbanística portuguesa na própria divisão [As cidades] Tiveram que se adaptar dura e entre Cidade Alta e Cidade Baixa, sendo a segunda dedicada gradualmente a um projeto que, como tal, às funções portuárias e comerciais e a primeira, de maiores não escondia sua consciência racionaliza- dimensões, direcionada à residência, administração e vida dora, não lhe sendo suficiente organizar os religiosa. Essa questão não é indiferente a Jorge Amado, em homens dentro de uma repetida paisagem Bahia de Todos os Santos. urbana, pois também requeria que fossem moldados com destino a um futuro (...) Entre o mar e o morro, a Cidade Baixa é do (RAMA, 1985, p.23) grande comércio. As casas exportadoras, os representantes das firmas de outros estados

40 e do estrangeiro, os bancos, as sociedades itante (ou visitante), a cidade não constitui um corpo único, anônimas, a Associação Comercial, o Institu- mas um somatório de existências humanas em permanente to do Cacau. (...) A Cidade Alta, excetuando tensão com a urbanidade física das ruas. Cada uma dessas as ruas centrais do comércio, é residencial, “vivências”, em particular, e também o conjunto das “ex- desdobrando-se em bairros a caminho do periências” – no sentido que Walter Benjamim atribui a essas mar, subindo colinas e encostas (AMADO, duas palavras30 –, seria igualmente constitutivo da cidade, o 2012, p.28) que permitiria se falar de muitas cidades dentro da mesma. Na percepção de Gomes, a reflexão sobre uma liter- No livro A Bahia de Jorge Amado, Jacques Salah destaca atura que tem a cidade como tema deve perseguir, portan- que a Cidade Alta e Cidade Baixa são referenciadas na obra to, não um sentido definitivo, unificador. Ao contrário, seria de Amado, sobretudo, em relação ao aspecto social, indicando recomendável a concepção de uma espécie de arquivo geral uma cidade dividida entre uma parte rica e outra pobre, mas da cidade, aberto permanentemente à suplementação. que se complementam mutuamente. A distinção proposta Resultado de um trabalho coletivo, o “Livro de registro da pelo crítico faz sentido tendo em vista o plano histórico de cidade” seria preenchido por documentos, ordens, inventári- fundação da cidade e seus primeiros séculos de história. A os, mapas, diagramas, plantas, fotografia, crônicas e outras partir do final do século XIX, no entanto, essas áreas se rede- manifestações da literatura. Esse conjunto representaria, finem: o Centro Histórico passa a ser progressivamente aban- simultaneamente, um tipo de materialização da história da donado pelas classes dominantes e ocupado pela população cidade e o resguardo de sua memória coletiva: mais vulnerável. As zonas de desenvolvimento avançam para o Corredor da Vitória e a Barra, enquanto muitos casarões do O texto é o relato sensível das formas de Pelourinho se transformam em cortiços, como aquele que ver a cidade; não enquanto mera descrição Amado torna figura central, em Suor. física, mas como cidade simbólica, que cruza Constituída a partir de um projeto que tenta se esta- lugar e metáfora, produzindo uma cartogra- belecer como ordenação modeladora da sociedade, a cidade fia dinâmica, tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado de existências colonial é pensada não apenas em seu aspecto físico, mas humanas. Essa cidade torna-se um labirinto também simbólico. Não só o desenho urbano poderia ser de ruas feitas de textos, essa rede de signifi- compreendido como racionalização do espaço. Esse exercício cados móveis, que dificulta a sua legibilida- de poder dar-se-ia, ainda, a partir da constituição de uma de. (GOMES, 2008, p.24) série de elementos que formariam o “imaginário da cidade”, da qual fazem parte os marcos geográficos, monumentos e Assim, a escrita do urbano se daria por meio de dois pro- também diferentes modalidades de escrita sobre essa cidade: cessos complementares: a desmontagem e a remontagem. A ordem deve ficar estabelecida antes de Toda leitura de uma cidade tem início pela identificação de que a cidade exista, para impedir assim símbolos, a partir de fragmentos e rastros que se misturam toda a futura desordem, o que alude à pe- e se sobrepõem. Em sequência, realiza-se a seleção desses culiar virtude dos signos de permanecerem elementos e a construção de uma leitura particularizante inalteráveis no tempo e seguir regendo a da cidade, muito calcada na vivência que o autor tem desse mutante vida das coisas dentro de rígidos lugar. “Ler a cidade consiste não em reproduzir o visível, mas marcos. (RAMA) torná-lo visível, através dos mecanismos da linguagem. (...)

Além dos elementos arquitetônicos, a escrita contribui 30 Walter Benjamim utiliza a “experiência” para indicar práticas de senti- para a composição da ordem dos signos de uma cidade. Rena- do coletivo, referentes a tradições compartilhadas por um determinado to Cordeiro Gomes ressalta a impossibilidade de uma leitura grupo e indicativas de um âmbito social, o que implicaria em relações de pertencimento. A “vivência”, por sua vez, é vinculada a um tipo de totalizante da urbe, visto que essa se constitui de modo frag- memória ou sensibilidade obtida a partir de situações vividas individual- mentado. Vivenciada de forma individualizada por cada hab- mente, sendo, portanto, de caráter particular e restritivo. 41 Esse sujeito (re)constrói a cidade enquanto texto e se inscreve Mais adiante, no verbete “Nassau e outros heróis es- nele, engendrando, em meio a este amontoado de signos da quecidos pelo Recife”, Freyre reivindica a inauguração de um superfície da folha pergaminho, um traçado possível de legib- busto em homenagem ao holandês para que sua contribuição ilidade.” (GOMES, 2008, p.35) ao Recife seja continuamente rememorada pela população:31 A história do Recife vincula-se indissociavelmente à condição de porto de Olinda. A cidade foi tema do segundo De Maurício de Nassau – nórdico com algu- guia editado por Freyre, em 1939, mas merece um verbete na ma coisa de príncipe da renascença e que publicação de 1934, denominado “Passeio a Olinda e Igaraçu”, amou o recife com olhos de artista europeu seduzido pelos trópicos – é pena que não em que é chamada “mãe do Recife” (FREYRE, 2007, p.89). exista na capital de Pernambuco estátua ou Na ilha do Recife Antigo, situa-se a praça do Marco Zero, busto; é homenagem que não seria exagero considerada o local onde a cidade pernambucana teve seu algum da parte da cidade (hoje metrópole início, como indica o próprio nome. Embora abrigue edifícios de uma região inteira amada toda ela pelo monumentais, pertencentes a instituições bancárias, não é fidalgo) para com um dos homens que mais possível perceber a mesma configuração típica da colonização concorreram para a sua urbanização. Um he- portuguesa que se encontra em Salvador, por exemplo. Muito rói recifense. Isso em dias remotos. (FREYRE, provavelmente, isso se deva ao fato de que o centro do poder 2007, p.136) colonial ser irradiado para o Recife a partir de Olinda. Talvez por esse motivo, não há no Guia do Recife Consuma-se, desse modo, a acepção do monumento descrição pormenorizada desses núcleos históricos. Ao que enquanto dispositivo residual de um passado que se deseja parece, Freyre cede prevalência a outro momento histórico perenizado no presente, ou como “expressão tangível da per- que parece ter assinalado período de crescente importância manência”, nas palavras de Marc Augé. (AUGÉ, 2012, p.87) política econômica da cidade em relação a sua vizinha, hab- Assim, o refinamento de Nassau, manifestado nas realizações itada pelos senhores de terra portugueses. Com a invasão da urbanísticas e culturais de seu tempo, parece digno de ser Companhia das Índias Ocidentais, o Recife torna-se o centro monumentalizado em uma estátua, percebida aqui como em- do domínio holandês, contra Olinda, que permanece como blema de um passado nobre, mas também como qualidade centro de resistência – ao menos simbólico – do colonizador positiva, desejável de ser assimilada pelo recifense contem- lusitano. Dessa forma, seria possível identificar no período de porâneo. “Os mitos partem de componentes reais mas não são gestão de Maurício de Nassau, uma espécie de mito fundador obviamente traduções do funcionamento da sociedade, e sim do Recife. Esse imaginário, ancorado em um suposto período dos desejos possíveis de seus integrantes.” (RAMA, 1985, p.82) de progressos urbanísticos e culturais, aparece em mais de um José Murilo de Carvalho destaca a força da identidade momento no guia de Freyre, evocado sempre em função de pernambucana, maior que a brasileira até a década de 1930. uma herança que se deseja rememorar: Conforme o historiador, o sentimento era devido a um pas- Um outro Recife (...) onde no século XVII o sado de conflitos. “A identidade pernambucana fora gerada Conde Maurício de Nassau, com seu séquito durante a prolongada luta contra os holandeses, no século de homens louros – dos quais ainda não se XVII. Como vimos, guerras são poderosos fatores de criação vêem descendentes – levantou o primeiro de identidade.” (CARVALHO, 2013, p.25) A evocação desse observatório astronômico da América, o pretenso passado heróico do povo pernambucano é celebrado primeiro jardim zoológico e dois palácios à por Freyre na enumeração dos vestígios deixados pelos com- beira do rio, um deles – O Vrijburg – cercado bates históricos e que se perenizaram na memória coletiva de coqueiros e das mais altas árvores dos sob a forma de monumentos: trópicos; onde, no tempo mesmo de Nassau, 31 Atualmente, há um busto de Maurício de Nassau no centro da Praça floresceram pintores como Franz Post (...) da República, situada no bairro histórico de Santo Antônio. Ao redor (FREYRE, 2007, p.24) da praça, estão o palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, e o Teatro Santa Izabel. 42 Aliás toda aquela boa zona está cheia de re- monumentos e outros tipos de marcos arquitetônicos poderi- cordações do tempo dos holandeses. No Alto am ser entendidos como artifícios capazes de materializar a do céu, um obelisco marca o lugar do Forte memória coletiva, em uma afirmação dos laços que integram Real do Bom Jesus ou Arraial velho, funda- as gerações e evocação da identidade que justifica o pertenci- do por Matias de Albuquerque e que opôs mento do habitante àquela cidade. heróica resistência aos invasores; no Morro Na perspectiva do autor, pensar o homem em seu “lugar da Conceição, ou Morro de Bagnuolo, uma antropológico” seria importante ao levarmos em consideração lápide assinala o sítio onde os holandeses que ele é uma expressão desse meio. Aprendemos que não se bombardearam o forte pernambucano. (...) pode atribuir um caráter absoluto à identidade cultural, pois No bairro do recife, encontrará o turista uma as culturas jamais constituem totalidades acabadas, mas igrejinha católica, a do Pilar, firme e triun- fante sobre as ruínas de um forte holandês; tampouco devemos desprezá-la, já que certa representação na Estância, fica outra igrejinha ligada à do vínculo social seria consubstancial ao homem. Mesmo em Guerra Holandesa: a de Nossa Senhora das sua individualidade, o indivíduo não pode ser dissociado de Fronteiras, mandada construir, em paga- seu meio, pois devemos considerar suas relações de heredi- mento de promessa, pelo negro Henrique tariedade, semelhança e influências em relação a seus pares. Dias, que era devoto de Nossa Senhora. Segundo Augé, tratam-se de “categorias por meio das quais (FREYRE, 2007, p.133) se pode apreender uma alteridade complementar e, mais ain- da, constitutiva de toda individualidade.” (AUGÉ, 2012, p.23) No objetivo de garantir a continuidade das gerações, o O monumento pode, ainda, demarcar o espaço vazio monumento constituiria espécie de materialização simbólica deixado por uma construção histórica que deixou de existir, de determinado projeto ideológico. “Sem a ilusão monu- mas que se deseja preservada na memória afetiva da popu- mental, aos olhos dos vivos, a história não passaria de uma lação. No centro histórico de Salvador há dois exemplos con- abstração.” (AUGÉ, 2012, p.58) Dessa forma, realiza-se a ar- tundentes desse artifício simbólico: a “Cruz Caída” e a “Fonte ticulação entre a “ordem dos signos”, referente ao significado da rampa do mercado”, ambos de autoria do artista Mário desse marco, e a “ordem material”, meio pelo qual se apre- Cravo. Localizado no Largo da Sé, o primeiro foi construído no senta como significante. lugar onde antes existia a antiga Catedral da Sé de Salvador, A instituição de marcos simbólicos seria um expediente demolida em 1933, após grande polêmica entre a população característico do “lugar antropológico”, na definição de Marc e a Companhia Linha Circular de carros da Bahia. O segundo, Augé. O “lugar”, nessa acepção, seria o espaço da natureza na Praça Visconde de Cairu, ocupa o lugar do antigo Mercado cultivada, um local que ganha sentido em função dos si- Modelo, destruído em um incêndio na década de 1960. gnos que a ele são atribuídos. Ele é habitado por uma rede de relações humanas pela qual são atribuídos significados, O atual Mercado Modelo, situado na praça constituindo-se como “construção concreta e simbólica do Cairu, ao lado da grande escultura de Mário espaço.” (AUGÉ, 2012, p.51) Nesse sentido, esses locais estari- Cravo, uma fonte de Oxalá, ocupa um gran- am atribuídos de critérios identitários, históricos e relacionais, de e belo prédio onde funcionou durante em oposição ao que Augé chama de “não lugares”32. Assim, séculos a Alfândega. Substitui o antigo Mercado Modelo, de inesquecível memória, 32 A ideia de não-lugar, defendida por Augé, está ligada à noção soci- engolido pelo fogo em incêndio ao que tudo ológica de lugar, que supera a mera questão geográfica e adquire signifi- indica, proposital. (AMADO, 2012, p.347) cação social por se referir a uma cultura localizada no tempo e no espaço. Dessa forma, o não-lugar seriam os espaços nos quais o indivíduo não Além dos monumentos e dos centros, o “lugar conseguiria estabelecer relações sociais. Augé relaciona a multiplicação desses não lugares aos excessos da supermodernidade. “Os não lugares antropológico” seria caracterizado pela existência de itin- são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos, rodoviárias, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais.” 43 erários e cruzamentos, categorias também representativas de mas reeditado com acréscimos e supressões até 1986, Bahia comportamentos sociais. “A identidade e a relação estão no de Todos os Santos traz as marcas dessa trajetória em suas cerne de todos os dispositivos espaciais estudados classica- sucessivas versões. A contraposição entre itinerários de ricos mente pela antropologia”, como ressalta Augé. (AUGÉ, 2012, e de pobres é mantida no guia. O Corredor da Vitória e a Barra p.56) são apresentados como roteiros da elite baiana, enquanto os Na concepção do antropólogo, os itinerários poderiam bairros populares que se sucedem em direção à Península de ser entendidos como caminhos que conduzem de um lugar Itapagipe são destinados aos viajantes que desejam conhecer ao outro, implicando não só em uma rota de deslocamento, a face miserável da cidade. mas em certas distinções de grupos sociais. Em Bahia de To- Citando Benjamin, em Infância em Berlim por volta de dos os Santos e no Guia do Recife não há sugestão de roteiros 1900, Gomes endossa a percepção dos itinerários não em turísticos propriamente. Em ambos os casos, a sequência dos um sentido direcionador, mas em função de uma experiência verbetes se dá por afinidade temática e não em função de um emocional. Dessa forma, o percurso privilegiaria o fluxo das percurso topográfico. reminiscências, que vão sendo montadas de maneira frag- No guia pernambucano, Freyre parece mais preocupado mentária, a partir de imagens descontínuas, fora de ordem em enumerar e descrever igrejas, parques, teatros e restau- cronológica. (GOMES, 2008) Em Benjamin, os passeios pelos rante do que propriamente situá-los na cartografia do Recife parques de Berlim despertam a memória de sensações: chei- ou estabelecer um roteiro conveniente ao viajante. Em suas ros, sons, texturas que trazem de volta um passado adorme- indicações, salta livremente de uma região da cidade a outra, cido, ao modo proustiano. Dessa forma, a memória afetiva do aparentando empenho em realizar um inventário completo sujeito concatena-se à memória da cidade. das atrações e destacar determinadas peculiaridades dignas No guia de Freyre, o aspecto sensorial em um passeio da atenção do visitante. Poderíamos perceber, nesse sentido, pelas ruas da capital pernambucana é descrito com ênfase: que o manual de viagem parece manifestar uma espécie de “O Recife cheira a fruta madura” (FREYRE, 2007, p.48), sali- salvaguarda da memória urbana, em que o registro escrito enta. No verbete “Vendedores de ruas e feiras”, o autor não só serve para perpetuar a fisionomia da cidade e salvá-la do indica onde estão os principais pontos de venda das iguarias esquecimento. Tal atitude revela-se coerente à militância re- locais, como menciona o nome das vendedoras, realizando gionalista a que o autor dedicava-se à época da publicação do uma aproximação que denota intimidade pessoal com essas Guia do Recife. atrações da cidade: Na obra de Jorge Amado, os diferentes itinerários citados Pelas esquinas das velhas ruas de São José são descritos principalmente em função da experiência etno- – do Passo da Pátria, da Direita, da Tobias gráfica que podem proporcionar ao visitante. Isso poderia ser Barreto – que outrora teve o grande nome notado, por exemplo, na oposição entre a Rua Chile e a Baixa de Rua dos Sete Pecados Mortais – até do Sapateiro, bastante enfatizada por Jorge Amado. Na rua da poucos anos se encontravam negras de fo- Cidade Alta, “se estabelece o comércio mais elegante”, sendo gareiro vendendo milho, tapioca, peixe frito. o local onde “mulheres mostram seus vestidos novos, exibem A negra Elvira. A Joana. Sinha Maria. (idem, as bolsas caras, em passeio diário.” (AMADO, 2012, p.77) No p.51) segundo logradouro, ao contrário, “a pequena burguesia se abastece, se calça, se veste.” (idem, p.83) A culinária de rua é destacada de maneira semelhante Jorge Amado deixou a militância política em 1955, em Bahia de Todos os Santos, porém com maior ênfase na quando rompeu sua ligação com o Partido Comunista. No proximidade entre o autor e a cena descrita. No verbete “Mad- entanto, certos aspectos da ideologia socialista parecem ter rugada na Praça Castro Alves”33, Jorge Amado também de- permanecido em obras posteriores a esse período, sob a for- ma de um humanismo de forte coloração social, mas sem o 33 O verbete foi suprimido nas edições a partir da década de 1970 tom panfletário de antes. Publicado originalmente em 1945, por conter referências à Segunda Guerra Mundial, sendo, portanto, considerado anacrônico. 44 marca a experiência coletiva dos frequentadores do tabuleiro em primeiro lugar, de sua denominação. da cozinheira Maria José. Mais do que o sabor da comida pro- (SALAH, 2000, p.92) priamente, procura-se enfatizar o ambiente de sociabilidade que se estabelece ao redor do fogareiro da mulata, em perfei- Em outras circunstâncias, Amado manifesta aberta- ta harmonia com a fisionomia da cidade: mente a preferência pelo mito popular à versão oficial dos fatos. Em Bahia de Todos os Santos, são apresentados episódi- Apenas um tabuleiro de vatapá e caruru, os aparentemente inexplicáveis, que podem se referir aos de frigideira e xinxim, de efó e moqueca, milagres da religião, aos saberes populares que teimam em as latas de querosene cheias de mingau e mungunzá. Na liberdade da Praça com desmentir números e estatísticas ou aos feitos de persona- os choferes, os boêmios, os condutores de gens folclóricos. bondes. Ao fundo a estátua de Castro Alves. O narrador, assim, prefere a vertente popular, que atribui Em torno do poeta os choferes discutem a 365 igrejas a Salvador, uma para casa dia do ano. “Dizem os guerra. (AMADO, 1960, p.111) amigos dos números exatos que entre as igrejas e capelas elas somam 76. Pouco importa. Talvez os que falam em 365 Espaço de encontro dos habitantes, a praça é percebida computem igrejas já desaparecidas mas que ainda vivem na nesse fragmento como cruzamento, zonas de intercâmbio memória do povo.” (AMADO, 2012, p.106) onde se dão relações de ordem social e econômica. É o caso, De forma semelhante, os segredos e as lendas populares também, dos mercados e feiras, como Água de Meninos e parecem importar mais dos que muitas das histórias oficiais. O a rampa do mercado modelo, muito valorizados no guia de que parece valer não são os registros presentes nos documen- Amado como local de encontro de tradições populares de tos, mas as lendas que passam de uma geração a outra, fixan- diferentes origens, retomando a ideia desses locais como do-se de modo perene ao imaginário popular, um imaginário “universidades do povo”. De forma semelhante, os largos de tão presente que parece modificar a percepção que os habit- Salvador são contemplados como local ocupado pelo povo antes têm de edifícios e monumentos arquitetônicos. Assim, durante as festas, celebrações essas que merecem descrição o Convento da Lapa deve ser lembrado não pela memória de minuciosa, em 12 verbetes, reunidos no capítulo “O povo em sóror Joana Angélica, morta em 1823, ao defender o local das festa”, nas edições mais recentes. tropas portuguesas. Mais importantes para o narrador, pare- Como Salah observa, a evocação das ruas na obra de cem ser as histórias de dezenas de jovens enclausuradas pelos Jorge Amado não é feita por uma caracterização meticu- pais para acobertar a perda da castidade ou evitar casamento losa. Pelo contrário, os nomes de ruas trazem referências indesejado, contra a vontade da família. de lugares, traçando uma topografia de Salvador, sem, no entanto, que esses locais sejam descritos em seus detalhes. CONCLUSÃO O nome e a exatidão dos itinerários parecem constituir uma A cartografia, para Rama, poderia ser compreendida estratégia de verossimilhança que contribui decisivamente como utopia de uma ordem, seja no desenho original de uma para a atmosfera em que os personagens transitam. Ele fala vila erguida a partir da natureza bruta, ou de uma cidade que do uso poético de certos nomes de rua, muito mais evocativos é remodelada para melhor se adaptar a determinada finali- de certa atmosfera do que propriamente descritivos, caso da dade. Nesse sentido, eventuais políticas de reurbanização sig- Rua dos Quinze Mistérios ou da Rua da Cabeça: nificariam a possibilidade de projetar uma cidade ideal. Isso Melhor do que uma rica descrição, o nome poderia ser verificado de modo exemplar nas grandes trans- da rua evoca uma atmosfera ou uma situ- formações ocorridas no centro do Rio de Janeiro, no começo ação que a linguagem escrita não saberia do século XX, durante a gestão do prefeito Pereira Passos. Na criar. No caminho da elaboração mítica, a perspectiva de legar à cidade um semblante mais moderno e poetização dos objetos da banalidade co- mais próximo ao das capitais europeias, centenas de antigos tidiana é uma etapa essencial e depende, casarões foram demolidos e as antigas ruas estreitas arras-

45 adas para dar lugar a avenidas mais amplas, com destaque madas, assim, em testemunhas desse passado escravagista e para a Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Segundo também da decadência desse espaço aristocrático que se viu Renato Cordeiro Gomes, por trás do plano de revitalização transformado em zona de meretrício no início do século XX. urbanística, projetava-se a crença de uma pretensa superação “Cansada de ver: viu ontem os escravos no tronco, vê hoje do passado colonial. O legado de atraso seria deixado para as rameiras nas portas e janelas das casas coloniais que os- trás com a remodelação urbana e o banimento dos indese- tentam os brasões das ordens religiosas proprietárias desses jados habitantes dos cortiços para regiões periféricas. Nesse imóveis.” (AMADO, 2012, p.74) caso, uma política pública aparentemente progressista e bem A memória, segundo Augé, redime a cidade moderna intencionada revela-se indicativa de um caráter justamente da perda de relações humanas, individuais e coletivas, que a oposto, quando consideramos o que representa na ordem dos tornam um “lugar” no sentido antropológico. Ao contrário dos signos. Afinal, como reforça o autor, “as transformações não espaços da supermodernidade, concebidos para garantir es- devem ser vistas apenas enquanto empreendimento, mas trita funcionalidade na oferta de serviços, as cidades estariam pelo viés da comunicação simbólica.” (GOMES, 2008, p.114) preenchidas de referências capazes de despertar recordações A partir disso, seria possível perceber que a “ordem de experiências coletivas e vivências pessoais. Dessa maneira, material” das cidades estaria mais sujeita a mudanças do nas palavras de Renato Cordeiro Gomes, “a memória apre- que a “ordem dos signos”. O aspecto físico das zonas urbanas senta-se como resistência à dispersão do homem urbano nos estaria sujeito a mudanças constantes, entre demolições e compromissos da vida cotidiana que não deixa traços mne- reconstruções periódicas. Haveria, portanto, uma cidade que mônicos” (GOMES, 2008, p.70) se remodela no exercício dos poderes oficiais (do político) e Diante da constatação de que a “ordem dos signos” in- extra-oficias (da especulação econômica). O simbólico, entre- flui sobre a “ordem material”, seria forçoso admitir que uma tanto, permanece como estrutura que pode se renovar, mas ação efetiva sobre a realidade concreta das ruas deve passar de forma bem mais lenta e gradual. por uma remodelação do simbólico. Conforme o raciocínio de Torna-se possível observar, no entanto, que as remod- Rama, alterar o projeto de uma cidade implicaria, necessari- elações da cidade raramente são capazes de cumprir total- amente, em intervir em suas ordenações sígnicas, ou em seu mente seu objetivo de apagar o passado. Este sobrevive por “livro de registro”, para usar o termo de Gomes: meio de rastros identificáveis na paisagem urbana, fazendo O sonho de uma ordem servia para com que se mantenha presente de algum modo no imag- perpetuar o poder e conservar a estrutura inário da população. Ao modo de um palimpsesto, as camadas sócio-econômica e cultural que esse poder simbólicas seguem se sobrepondo em uma mesma superfície. garantia. E, além disso, se impunha a qual- A leitura e a escrita da cidade, portanto, ocorrem de modo re- quer discurso opositor desse poder, obrigan- sidual, em que se busca “um traçado de uma possível legibil- do-a a transitar, previamente, pelo sonho idade” em meio a um “amontoado de signos da superfície da de uma outra ordem. (RAMA, 1985, folhapergaminho.” (GOMES, 2008, p.39) P.32) O tronco onde escravos eram castigados publicamente no Centro Histórico de Salvador não existe mais, mas sua Ao modelar a cidade a partir de suas ideologias, seja memória permanece perpetuada no nome Largo do Pe- na perspectiva de uma cultura regionalista ou na utopia so- lourinho. Mesmo após a revitalização dessa área, na década cialista, Jorge Amado e Gilberto Freyre parecem propor um de 1990, o estigma de épocas passadas continua sendo evo- novo projeto para Salvador e Recife, sonhando “outra ordem” cado pela força simbólica do nome popularmente atribuído em seus respectivos guias. Procedendo dessa forma, evocam e incorporado oficialmente. Jorge Amado metaforiza essa memórias a partir da enumeração de determinados monu- memória pela menção das pedras negras que pavimentam o mentos, revitalizam a história local e, sobretudo, inscrevem logradouro, mas que refletiriam cor de sangue ao sol do meio no “livro de registro” da cidade novos nomes e tradições antes dia. As janelas dos sobrados ao redor do largo seriam transfor- ignoradas pela escritura oficial dos círculos de poder.

46 A descrição do Recife no guia de Freyre é pontuada de universidades estrangeiras para o não de todo inútil movi- comentários que reivindicam uma intervenção a favor da mento de restauração ou conservação de nomes antigos de preservação das tradições locais. Nesse caso, é preciso consid- ruas do Recife, assim como para a conservação de árvores da erar que a produção do livro articula-se à atuação do escritor região.” (FREYRE, 2007, p.46) Como se sabe, o conhecido texto nos jornais pernambucanos, em artigos em que procurava de- foi encomendado por Freyre para compor o Livro do Nordeste, fender os mesmos ideais da cultura regionalista. Em 1934, o de 1925. sociólogo era bastante conhecido dos leitores, em decorrência Teríamos, portanto, a concepção de uma cidade que se de seu prestígio intelectual e de sua participação contundente coloca entre o âmbito do registro etnográfico, com objetivo de nas polêmicas da administração pública. Devemos considerar, preservação da memória urbana, e a perspectiva de uma ci- ainda, sua experiência nos trâmites práticos da política local, dade que se projeta para o futuro, previsão essa que se insinua visto que havia sido chefe de gabinete do governador deposto de modo otimista, na expectativa de uma materialização do Estácio Coimbra. projeto utópico. Em 1945, confiante na revolução socialista, O tom, por vezes, resvala no publicismo jornalístico, Amado encerra seu guia na crença de que “Um dia a miséria modalidade textual a qual Freyre estava amplamente habit- não mais manchará tanta beleza, tanta poesia, o mistério da uado em sua atuação nos periódicos do Recife. Dessa manei- cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos.” (AMADO, ra, critica-se abertamente o descaso das autoridades com a 2012, p.359) Se o comunismo não prevaleceu, a esperança do preservação do patrimônio histórico, assim como a mental- autor em um amanhã mais justo parece não ter esmaecido, idade dos setores adversários do pensamento regionalista. uma vez que o capítulo final do livro não sofre qualquer alter- Registra-se também o elogio franco às ações do Centro Re- ação nas edições seguintes. gionalista do Nordeste que, segundo o autor, estaria intervin- do positivamente na paisagem da cidade: Desde então muito se tem feito no Recife a REFERÊNCIAS favor da doçaria tradicional da cidade, re- AMADO, Jorge. Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e presentada pelas pretas de tabuleiro e por mistérios de Salvador. 40ª edição. São Paulo: Companhia das sua arte não de todo perdida de quituteiras Letras, 2012. urbanas; a favor dos móveis de jacarandá de fabricação recifense (...); em prol de áreas de recreio para as crianças pobres do Recife ______. Suor. São Paulo: Companhia das Letras, em que se conservassem jogos e brinquedos 2011. tradicionais regionais como as gangorras ou jangalamastes ou caxipins; a favor da re- AUGÉ, Marc. Não lugares: Introdução a uma antropologia gionalização do Parque de Dois Irmãos que da supermodernidade. 9ª edição. Campinas: Papirus, 2012. passaria a ser para a população do Recife um parque com árvores, plantas e animais BANDEIRA, Manuel. Evocação do Recife. In: Livro do Nor- da região ou aqui aclimatadas. Trabalho em deste (edição comemorativa do centenário do Diário de Per- grande parte, dos regionalistas-modernis- nambuco). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1925. tas desde 1923 ou 24 em ação no Recife. (FREYRE, 2007, p.46) CARDOSO, Luís Antônio. Salvador, BA. In: PESSÔA, José; PICCINATO, Giorgio. Atlas de centros históricos do Brasil. Rio Em algumas passagens do guia, o sociólogo chega a de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. fazer menções veladas a sua própria atuação em favor do ideário regionalista. Ao se referir ao poema Evocação do Re- CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo cife, de Manuel Bandeira, ressalta que foi escrito a pedido de caminho. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. “outro recifense que vinha concorrendo desde estudante em

47 FREYRE, Gilberto. Guia prático, histórico e sentimental da ARTE E CIDADE: O CAMINHAR COMO cidade do Recife. 5ª edição. São Paulo: Global, 2007. CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

______. Livro do Nordeste (edição comemorativa do Anna Thereza do Valle Bezerra de Menezes1 centenário do Diário de Pernambuco). Recife: Companhia Edi- Colégio de Aplicação – UFRJ tora de Pernambuco, 1925. [email protected]

2 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: lite- Marilane Abreu Santos Colégio de Aplicação – UFRJ ratura e experiência urbana. Rocco, Rio de Janeiro, 2008. [email protected]

RAMA, Angel. A cidade das letras. Tradução: Emir Sader. RESUMO São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. Artistas, poetas, pensadores e pessoas comuns camin- SALAH, Jacques. A Bahia de Jorge Amado. Salvador: Fun- ham. Caminhar é uma ação que se aprende nos primeiros dação Casa de Jorge Amado, 2008. meses de vida e pode se tornar uma forma de transformar a paisagem. O ato de caminhar é uma ocupação / apropriação ______. A cidade como personagem. In: Ciclo de pa- do espaço e a cidade mostra-se potente e aberta à experimen- lestras: a Bahia de Jorge Amado (1.: 1995: Salvador). Bahia, a tação. Ao caminhar pela região central do Rio de Janeiro, suas cidade de Jorge Amado. Organização: Myriam Fraga. Salvador: estruturas evidenciam-se mostrando um processo permeado Fundação Casa de Jorge Amado/ Museu Carlos Costa pinto, por remoções, apropriações e construções discursivas, en- 2000. tremeando temporalidades. A cidade se constrói a partir de suas camadas de histórias e relatos verificados em seus ras- tros. Como o caminhar pode ser também compreendido como ato de resistência? Qual o lugar possível e para quem?

Palavras-chave: arte, cidade, caminhar, re- sistência, memórias

Um artista caminha de Governador Valadares até Nova Iorque. Em seu percurso coleta histórias, notícias de jornal, realiza fotografias. Coloca-se no espaço de distintas formas, realiza experimentações e ações. Concretiza suas vivências a partir de anotações, folhetos e postagens em blog. Ele escreve, registra em desenho as notícias e fotografias pre- sentes nos jornais por onde passa (imagens que já existem no mundo), escreve sobre suas memórias pessoais atrelada aos espaços da cidade (no trabalho Lo que llevo en mi memoria)

1 É doutoranda em Ciências Sociais pela UERJ, mestre em Museologia e Patrimônio pela UNIRIO e atua como professora de Artes Visuais na Edu- cação Básica e na Formação docente no Colégio de Aplicação da UFRJ. 2 Possui doutorado em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, me- strado em Memória Social pela UNIRIO e atua como professora de Artes Visuais na Educação Básica e na Formação de Professores no Colégio de Aplicação da UFRJ. 48 e realiza inúmeras fotografias nas quais entre outros, lê- se: sendo parte de um processo maior, como o próprio trabalho “vendo minha imagem de homem exótico”. Seu ateliê é, por- de performance com seus registros subsequentes, ou como tanto, a rua, a casa de quem lhe acolhe pelo caminho. Para uma proposta artística coletiva. Fazem parte da caminhada a Nicolas Bourriaud, em seu breve texto sobre o artista na con- noção de deslocamento, de ida à campo e de se surpreender temporaneidade: com o que novas rotas e um olhar distraído podem oferecer. Ao lado de Paulo Nazareth, cujo trabalho está fortemente o ateliê perdeu sua função inicial: ser “O” lugar de fabricação de imagens. Como re- atrelado ao deslocamento, encontram-se tantos outros ar- sultado, o artista se desloca, vai para onde tistas com distintas formas de registro e de percurso. Juan as imagens são feitas, insere-se na cadeia Downey videoartista chileno, entre 1973 e 1977 realizou seu econômica, tenta interceptá-las. O ateliê, trabalho Trans Americas, resultado de diversos deslocamen- portanto, não é mais o lugar privilegiado da tos pela américa latina além de uma estada mais demorada criação, ele é apenas o lugar onde se centra- ao lado dos Yanomamis, registrando suas vivências tanto no lizam as imagens coletadas por toda a parte. contexto urbano como com os povos indígenas. De forma (2003, p. 77). semelhante, há alguns artistas que se deslocam, por terra, com as próprias pernas ou não. O coletivo teatro dodecafôni- Paulo Nazareth segue esse mesmo ritmo e entende a co3, antes de caminhar, colocar pé pós pé, pensa o espaço do cidade como extensão da mesa de trabalho, a cidade como corpo no espaço urbano, do que faz andar e do que faz parar. espaço potente de criação. A partir de suas andanças recon- Trabalha com a noção da deriva que para o coletivo “é toma- strói aquilo que o mapa não contempla e, simbolicamente, da como uma prática de errância urbana onde o corpo está diz carregar a terra que fica nos rasgos da sola do pé de um presente num espaço-tempo determinado, engajado em uma território a outro. atitude experimental, lúdica e construtiv” (COLETIVO, 2016). Essas caminhadas, realizadas por Paulo Nazareth, evi- Em paralelo com o ato da caminhada outros artistas ocupam denciam que o espaço da rua é repleto de conhecimento, in- o espaço urbano, reconstruindo-o com faixas, cartazes lam- coerências, visualidades, camadas de vivências e construção be-lambe e intervenções. O grupo Poro traz questionamentos de poder. O ato de caminhar é uma ocupação / apropriação sobre a especulação imobiliária, sobre o caráter público do deste espaço e, em alguma instância, evidencia que este es- espaço urbano, sobre o uso do tempo, e sobre a reinvenção do paço nos forma e molda (nossas relações, ritmo, usos, etc) tal espaço a partir de sua prática. Essas pequenas intervenções como a pedra que carrega o rio consigo: “será que o rio não atuam no olhar do caminhante e são, talvez, resultantes do tem como projeto nos revelar a essência, a qualidade mais olhar de outros andantes. pura, a mais secreta, a densidade extrema de cada elemento Realizar uma outra forma de vivenciar a cidade a partir da pedra?” (PENONE apud DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 49). de práticas artísticas parece ser um exercício de cavar as dis- Segundo Rebecca Solnit, a prática do caminhar como tintas superfícies (do corpo do sujeito; do corpo da cidade). um ato consciente e cultural tem início com Rousseau. O Observam-se possibilidades de narrativas que atravessam os pensador, com seus 15 anos, abandonou sua terra natal e indivíduos, incluindo-os no espaço urbano e vice-versa. Tais partiu sem rumo em busca de experiências de um andar- possibilidades são, talvez, ainda mais reforçadas com a práti- ilho pensante: “se fico num só lugar, mal consigo pensar; ca do caminhar. O arquiteto italiano Francesco Careri (2013, meu corpo precisa estar em movimento para acionar minha p.27) afirma que o caminhar é uma forma de intervenção ur- mente”. (ROUSSEAU apud SOLNIT, 2016, p. 43, 44) Como um bana, uma prática estética que constrói e cria paisagens. “Foi exercício de simplicidade e contemplação, Rousseau encontra caminhando que o homem começou a construir a paisagem a solidão necessária para desenvolver seus pensamentos e natural que o circundava. Foi caminhando que, no último libertar seu espírito. século, se formaram algumas categorias com as quais inter- No âmbito da produção artística contemporânea, a 3 coletivo formado por Beatriz Cruz, Felipe Julian, Hideo Kushiyama, Lui- caminhada aparece como uma ação solitária do artista, sa Hokema, Monica Lopes Galvão, Natália Coehl, Olívia Niculitcheff, Papá Fraga, Pedro Galiza, Sandra Ximenez, Vânia Medeiros, Verônica Veloso 49 pretar as paisagens urbanas que nos circundam”. Tais práticas ocupação do espaço que se quer público e a urgência em se artísticas possibilitam assumir outras formas de habitar o reconstruir narrativas. mundo e de se relacionar com os percursos percorridos, crian- Entender a vivência cotidiana no espaço da cidade como do olhares outros para o espaço circundante e estabelecendo um elemento potente de reflexões, já que é carregado de relações ancestrais com o caminhar. conflitos, marcas e vestígios, foi um dos princípios que nos Ao andar pela cidade do Rio de Janeiro, suas novas e já levou a elaborar o projeto Laboratório Poético4, anteriormente negligenciadas estruturas evidenciam-se. A cidade viveu nos denominado Em Trânsito nos Museus, no Colégio de Aplicação últimos anos um processo que não é novo. Permeado por da UFRJ, que desde 2017 tem uma vertente de desenvolvi- remoções, apropriações e construções discursivas baseadas mento de caminhadas abertas ao público. Ao desenvolvermos num suposto desenvolvimentismo, e voltadas mais para fora percursos exploratórios pela cidade, voltados para o público do que para dentro, a cidade se constrói a partir de suas cam- em geral, nos deparamos com esses vestígios e incoerências adas de histórias e relatos verificados em seus rastros. Essas de tomadas de poder, além de trocarmos as variadas ex- evidências apontam para uma repetição de políticas públicas periências sobre o espaço da cidade. O ato do caminhar é visto nas quais a remoção é uma constante e a privatização, alarga- e praticado como uma forma de vivenciar a cidade e a necessi- da para além das calçadas, quase uma regra. dade, muitas vezes, de “resistexistênciar”. Como afirma o ital- A partir de 1903 a Collecção de Leis Municipais e Vetos, iano Adriano Labucci (2013, p. 10), o caminhar é uma “forma publicada pelo Conselho Municipal, e no âmbito da abertura elevada de (r)e(s)xistência”, sendo ainda um meio alternativo da Avenida Central, inaugurou um conjunto de medidas que e subversivo de pensar e agir. “Caminhar é uma modalidade viriam a restringir e delimitar o uso do espaço público, tor- do pensamento” e quem caminha, sempre caminha em um nando-o menos público e exclusivo a pessoas brancas e ricas. contexto. Essa inserção do andarilho na cidade, ativando out- ros olhares para o espaço urbano, o leva a fazer perguntas e a Leis que proibiam os mercadores de leite de conduzir as vacas pelas ruas (...) ou que questionar os lugares por onde passa re-velando e des-velan- proibiam a venda ambulante tanto de miú- do memórias e esquecimentos. dos de rezes como de bilhetes de loteria (...). A prática da errância já foi teorizada por muitos autores e Na tentativa de implantar a civilização por não é uma especificidade da arte, sendo exercida por filósofos decreto, passou a ser proibido cuspir na rua e pensadores como nos apresenta Solnit (2016): Nietzsche, ou nos bondes e andar descalço no períme- Kierkegaard, Kant, Jeremy Bentham, Stuart Mill e até mesmo tro urbano. (CAMARGO, 2009, p. 52 e 53) os peripatéticos, cada um com sua especificidade. A flanerie benjaminiana, a deriva dos situacionistas, as deambulações Atualmente a ocupação das ruas pelas empresas de Oiticica e tantas outras dão a ideia de como essa prática privadas substitui a palavra impressa no papel. Juan Carlos ativa outras apropriações do espaço percorrido, propician- Romero, artista argentino, em um de seus trabalhos, realizou do transformações internas e externas no caminhante. Ao cartazes lambe-lambes onde se lê: Resitexist: las palabras se perceber que a cidade vai além de seus edifícios suntuosos pudren sobre el papel. Ao colá-los nas ruas relembra a todos e envidraçados, que existe a possibilidade de lentidão con- que a resistência provoca existência, e que, por outro lado, trariando a velocidade e o tempo das máquinas, que há in- em alguns casos, o simples fato de seguir existindo é um ato visibilizações por trás dos outdoors comerciais, o andarilho de resistência. Nos recentes acontecimentos do Rio de Janei- é tomado por questões que o levam a questionar a ordem ro, as palavras impressas no cartaz de Romero ecoam: qual estabelecida. Caminhar, entregar-se aos pés, permite outros a história que se escreve no papel e qual é a que parece ser olhares para a cidade, suas histórias e memórias. mais representativa da sua e para a sua população? O Museu das Remoções na Vila Autódromo é, talvez, um importante 4 O projeto de Pesquisa, Ensino e Extensão Laboratório Poético, coorde- marco de Resistexistência, demonstrando a importância da nado pelas autoras, a partir de caminhadas poéticas, investiga a cidade e o resultado dessas ações e reflexões está disponível em: laboratório-po- etico.blogspot.com.br 50 Quem caminha é inevitavelmente levado a sofridas devido aos grandes eventos esportivos de 2014 e examinar o que encontra, a aguçar o enge- 2016 – Copa do Mundo e Olimpíadas. Ambos percursos, de nho, a desenvolver o senso crítico que induz alguma maneira, foram atingidos pelos eventos esportivos. A a fazer comparações e a perguntar o porquê avenida Rio Branco tem seu início na praça Mauá, espaço que e o como das coisas que nos circundam (LA- recebeu dois museus públicos com administração privada e BUCCI, 2013, p.34). que se tornaram símbolos da cidade: a valorização da “cultura institucional” enquanto propaganda política. A Praça Mauá O caminhar é uma prática poético-política, que ati- também representa um marco nas obras apelidadas de Porto va outras percepções e produz novos sentidos. Tomar a cidade Maravilha, que buscaram transformar a região portuária da como esse campo potente de possibilidade construtivas nos cidade em um grande complexo empresarial. Pela Avenida lançou às ruas com o intuito de promover o diálogo da escola também foi implementado o sistema de transporte de Veícu- com seu extramuros. Como os espaços culturais e a cidade lo Leve sobre Trilho (VLT), alterando por completo o fluxo de podem ser compreendidos como espaços de construção do carros e pedestres, valorizando-se, somente em um pequeno conhecimento e não apenas de lazer ou passagem? Como o trecho, a caminhabilidade. Já o entorno do que foi um dia o caminhar pode ser também compreendido como ato de re- Morro do Castelo sofreu diversas modificações, sendo a mais sistência na construção dessa relação escola-cidade-sujeito? significativa a derrubada da perimetral, a retirada de terminal Em duas propostas de percursos revivemos o morro do Castelo rodoviário de ônibus que se destinavam à zona oeste do mu- pelos pés, ressignificando a palavra impressa no letreiro no nicípio e à baixada fluminense. Em seu lugar há uma grande ônibus, já não encontrada na paisagem. Percorremos também praça, constantemente vazia e fortemente vigiada, com mo- a avenida Rio Branco, encontrando fragmentos do morro da biliário urbano novo e revestimento em pedraria. Viúva, observando a imponência dos prédios construídos na O Rio viveu em sua antiga Avenida Central os tempos da abertura da avenida Central, a influência estadunidense re- belle époque parisiense de Haussmann - o “artista demolidor”. cente nas fachadas de vidro e relembrando, em ambos os ca- As transformações promovidas por Pereira Passos no momen- sos, o constante processo de remoções. Qual o lugar possível to de sua abertura, no início do século XX, se replicaram na para quem? contemporaneidade na atual Av. Rio Branco, com os desman- A primeira questão que se coloca é a própria cidade como dos do ex-prefeito carioca. Sugestivamente, na inauguração espaço investigativo. Inspirado nas propostas poéticas dos ar- das grandes obras do Porto, em 2012, Eduardo Paes, então tistas, o projeto deu início às pesquisas e encontrou no espaço prefeito, esteve ao lado de um ator representando o Pereira urbano um locus de conflitos e potências. A ideia inicial da Passos. Tornou-se evidente que, reservados os distintos con- pesquisa surgiu pelo interesse em promover uma reapro- textos e épocas, há ainda modos semelhantes de fazer da priação cultural dos espaços. A pesquisa se desenvolve a par- reforma urbana uma marca política. tir de visitas de campo, discutindo questões relacionadas aos Os percursos pela Avenida Rio Branco e Morro do Castelo modos de viver; os espaços seguros e proibidos; lugares invis- revelaram camadas de memórias através de seus edifícios e ibilizados e lugares turísticos; as mudanças arquitetônicas e ruínas, calçadas e calçamentos, postes e árvores, fachadas da paisagem ao longo dos anos; o que se deseja preservar; o e letreiros, ambulantes e instituições financeiras, pedestres interesse da iniciativa privada sobre a cidade; e as diferentes e máquinas. Uma cidade cindida surgiu dos antigos mapas percepções que se podem absorver na observação do espaço. e dos recentes vídeos promocionais das revitalizações; re- Os percursos eleitos – Av. Rio Branco (antiga avenida Central) moções de ontem e de hoje saltaram aos olhos evidenciando e Morro do Castelo – trouxeram histórias que conectam pas- injustiças e abandonos; diferentes escalas se configuraram sado e presente e questionamentos sobre relações entre o pú- nas fachadas dos prédios apresentando uma história de so- blico e o privado que também se repetem ao longo do tempo. breposições de imagens de uma cidade desigual. Em certas Dividido em “Camadas” e “Domínios”, as caminhadas fachadas nomes facilmente encontrados em capitais do estimularam reflexões sobre questões que perpassam as dis- Brasil e do mundo também nos lembram da homogenei- cussões recentes relativas às transformações urbanas cariocas

51 dade comum aos “não-lugares” (AUGÉ,1994), produzidos no tecido urbano sem um projeto político de assistências às por uma globalização crescente, com regras semelhantes, famílias afetadas. Segundo o Dossiê sobre megaeventos e onde a presença de uma memória específica se mistura a um violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro, realizado modo comum quase universal, que descaracteriza os lugares pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas (2015, p. 22-37), e suas especificidades históricas e afetivas. A pasteurização para a construção da transcarioca, transoeste e transolímpica dos espaços, com seus modelos urbanos, acaba por constru- com finalidade de atender os jogos mundiais, foram afeta- ir cidades homogeneizadas. Ao mesmo tempo, convive-se das inúmeras comunidades não restritas ao centro da cidade com uma fantasmagoria sugerida por vestígios em letreiros (Campinho, Arroio Pavuna, Restinga, Vila Harmonia, Vila Rec- dos ônibus e nas ruas inacabadas, em calçamentos e placas reio II, Vila Azaleia, Asa Branca e Vila Autódromo, apenas para antigos, nas grandes praças desabitadas pós-reformas, nos citar algumas). Do mesmo modo, a Aldeia Maracanã, localiza- velhos edifícios empoeirados que marcam a paisagem. O an- da em espaço doado ao governo federal para a construção de tigo Morro do Castelo, desmontado e espalhado pelos aterros um centro de investigação da Cultura Indígena e que já sediou da cidade sobrevive nas marcas do seu contorno, na brisa que o Museu do Índio, também foi fortemente atacada, relem- ainda sopra na Avenida Graça Aranha, nas lendas que ainda brando uma vez mais quem tem ou não direito à moradia. No circulam e na história de remoções que se repete. Morro da Providência, na zona central da cidade, próximo e As revitalizações urbanas não são práticas contem- atingido pelas recentes obras do Porto, a construção de um porâneas, mas tornaram-se um processo mundialmente teleférico ameaçou mais de 500 famílias. De cunho turístico, disseminado fazendo da população mais vulnerável sempre fazia parte de mais um projeto de estetização e espetacular- aquela que sofre as consequências de forma mais direta. As ização da cidade. O citado morro tem sua história atrelada à remoções rompem os laços de afeto com as casas, vizinhos e Guerra de Canudos, tendo sido ocupado inicialmente pelos bairros ao retirarem de seus lares os moradores desses locais seus remanescentes. afetados. Foi assim nas remoções da Av. Presidente Vargas, Vale ressaltar que a ocupação de áreas periféricas, de um dos pontos observados no percurso da Av. Rio Branco, risco e precarizadas ocorre de modo constante na cidade do no desmonte do Morro do Castelo e na própria construção Rio de Janeiro. A ausência de preocupação com o destino das da Avenida Central. Recentemente, essa prática se atualizou, famílias removidas e com um desejo de localizá-las em es- deslocando famílias para possibilitar aberturas de grandes paços de exclusão não é novidade e nem se limita aos frágeis praças, criação de novos museus e construção de um boule- e, em alguns casos, duvidosos projetos como o Minha Casa vard olímpico. A gentrificação, conceito criado pela sociólo- Minha Vida, muitas vezes associados à construtoras envolvi- ga Ruth Glass em 1964, é estudado em áreas distintas como das em esquemas de corrupção e interesses políticos pessoais o urbanismo, a sociologia e a antropologia, mas poderia ser (op. cit., p. 12). Em 1906, as 105 unidades habitacionais resumido como uma ação de revitalização em áreas urbanas construídas pela Prefeitura do Distrito Federal na rua Salvador consideradas degradadas, mas com grande potencial, nor- de Sá, no bairro do Estácio, foram as primeiras moradias pro- malmente realizada através de uma parceria público-privada movidas pelo setor público no país (BONDUKI, 2004, p. 71). e que estabelece problemas sociais como remoções das Foram feitas para abrigar as milhares de pessoas desalojadas famílias de baixa renda e a especulação imobiliária. Interess- pela construção da Avenida Central. Certamente insuficiente es privados se sobrepõem ao público em uma cidade dividida, em quantidade, restam como um exemplo da ausência de desigual e espetacularizada. uma garantia do direito à moradia. O ocorrido hoje e no início do século se assemelham Nesse mesmo sentido é interessante notar o edifício gar- não tanto pela proporção de removidos, embora em número agem Menezes Côrtes, localizado no que seria um dos contor- bastante significado no presente. No passado do Bota-Abaixo, nos do Morro do Castelo. Ressalta a desigualdade social ao ev- representou uma parcela, proporcionalmente, ainda maior da idenciar que há quem garanta a moradia para seu automóvel população. Porém, em ambos os casos, a presença do Esta- enquanto há pessoas sem moradia. E mais, a necessidade do do se deu de modo a definir a localização das classes pobres carro talvez reflita a ausência de um transporte público efi-

52 ciente, integrado e acessível. Sua localização também retoma são os altos prédios de concreto e, mais recentemente, vidro, o questionamento sobre os 4.200 habitantes que viviam no antes era uma outra topografia, feita de terra e pedra, casas Morro do Castelo quando do seu total desmonte na década simples e construções históricas. de 20, que foram provisoriamente alojados em barracos Os prédios dessa nova paisagem refletem diversos mo- na praça da Bandeira (Jornal do Século, atual do Brasil, dia mentos e pensamentos arquitetônicos e urbanísticos que 09/03/1921). No dia 1o de maio deste ano, um incêndio teve convivem simultaneamente no espaço urbano. Tais momen- como consequência o desabamento do edifício Wilton Paes tos vão desde a escolha dos revestimentos por questões jus- de Almeida, no centro de São Paulo. Construído nos anos tificadas num bem estar social, sua funcionalidade ou ainda 60 e tombado em 1992, recebia o nome de um banqueiro. fatores estéticos e econômicos. Os argumentos utilizados para Na televisão, imagens de moradores, que viviam no prédio justificar a derrubada do Palácio Monroe, que se localizava ao ocupado, foram exaustivamente mostradas. Por um lado, final da Avenida Rio Branco, evidenciam a passagem de uma reforçavam a existência de abrigos na cidade e, nos poucos vertente urbanística a outra, de um projeto de cidade a outro. momentos em que foi dada voz a esses moradores, muitos Lucio Costa (COSTA apud. SANTOS, 2009) em seu parecer de deles trabalhadores, reiteravam que esses espaços de suposta defesa à demolição do Palácio Monroe afirma que “Pereira acolhida não os contemplavam. Alguns lembravam que quem Passos com sua desenvoltura demolidora teria sido o primeiro vinha dando acolhida era apenas a FLM (Frente de Luta pela a tirar dali o aviltado Pavilhão Monroe, cuja presença estor- Moradia). Em alguns programas televisivos humanizava-se o vante já não se justifica.” O arquiteto também avalia de forma prédio, retraçando a sua biografia, importância, abandono e negativa que a abertura da avenida Central “deu oportuni- “morte” e culpabilizava-se, desumanizando os moradores. Al- dade à consagração do ecletismo arquitetônico de fundo guns contra-discursos surgiram de modo a lembrar que essa acadêmico”, período da história da arte que considera como inversão retirava os indivíduos já penalizados pela moradia um hiato. precária, de sua condição de vítima. O terrível jargão “há mais Juntamente com o palácio Monroe, estava também casas sem habitantes do que habitantes sem casa” ecoou. em discussão a proteção dos edifícios do Derby e do Jóquei Enquanto caminha-se pelo centro, não apenas reflexões Clube. Ambos, posteriormente substituídos por altos edifícios sobre a desigualdade social, explicitadas aqui de forma mais empresariais, ficaram de fora do tombamento realizado em detida no caso das remoções e o direito à moradia, são fomen- fevereiro de 1973 que garantiu a permanência da Biblioteca tadas. Imaginar sobre que solo o pé pisa, e quantas camadas Nacional, do Teatro Municipal, do Clube Naval, do Tribunal de terra, pedra, asfalto se sobrepõem nos remete para a con- de Justiça, do Obelisco, da Assembleia e do prédio que atual- strução da paisagem da cidade. Se, por um lado, o Morro do mente abriga o Museu Nacional de Belas Artes. Claro está que Castelo se ausenta da paisagem, por outro amplia horizontes somado ao parecer de Lúcio Costa outras vozes fizeram coro de terra. O mesmo pode-se dizer sobre o Morro de Santo para a demolição do Monroe, com ou seu evidente motivo: Antônio e variados outros que foram dando lugar a grandes destaca-se a construção da linha metroviária na Cinelândia e avenidas, praças, edificações e possibilitaram a ampliação dos uma disputa de poder entre o presidente Geisel e Rafael de limites da cidade. Imagina-se de quais materiais são feitos, Souza Aguiar, filho do Marechal Francisco Marcellino de Sou- quantos restos de construção, fragmentos de objetos, históri- za Aguiar – político, engenheiro e autor do projeto do Palácio as, músicas e vivências restam ali assentando museus, mon- Monroe. umentos, jardins e ruas. Refletir sobre quais deslocamentos O obelisco que se mantém ao lado do Monroe, além de terra e pedras estão ali presentes, de algum modo toca, de ser um referencial do limite terra-mar de outrora foi um mesmo que de forma simbólica, no pequeno gesto de Pau- presente de Antônio Januzzi, o principal construtor, junta- lo Nazareth de transportar terra pela sola do pé. Do mesmo mente com seu irmão José Januzzi, responsável por edificar modo, mostra como as fronteiras e construção de espaço são parte considerável dos palacetes da Avenida Central. Januzzi, flexíveis e políticas. Coloca ainda em perspectiva, outras bar- que vivia no Morro da Viúva, tinha ali sua pedreira, extraindo reiras e composições visuais existentes na paisagem: se hoje parte dos revestimentos em gnaisse utilizado em suas con-

53 struções. Não curiosamente o primeiro prédio a ser concluído e paredes de mármore, ou quando há uma rua - das poucas na Avenida Central foi o que sediaria a empresa dos irmãos ainda existentes - onde a brisa do mar chega sem barreiras. Januzzi (PREFEITURA, 2002, pg. 15). A reconfiguração da A mudança do espaço público para o privado confunde-se paisagem da cidade, no final do séc. XIX e primeiros anos do quando se caminha sob as marquises que avançam sobre as século XX, passou de algum modo pela sociedade com seu calçadas até o maior limite possível do privado e se demarca irmão. O presente dado por Januzzi à cidade, um obelisco, de forma mais evidente quando as portas estão fechadas por símbolo comemorativo, com origem na louvação do (deus) completo. A presença de grades, guardas, câmeras de vigilân- Sol e atrelado à uma simbologia fálica, crava, assim, seu nome cia se torna ostensiva em certos pontos, sobretudo naqueles na mais importante avenida, recém-inaugurada, da cidade; próximos às embaixadas e consulados, numa demarcação uma representação de poder, portanto. Pensar hoje nas prin- clara de fronteiras. O olhar pode ser que mude, que desvie, e o cipais construtoras atuantes no Brasil - Odebrecht e Camargo corpo responderá ao espaço. Correa, para citar algumas - e seu envolvimento em inúmeras Na caminhada a percepção não se dá apenas com olhos. construções públicas e com desvios de verba mostra que há, O calor, o vento, o som, o medo, a sensação de reconhecimen- também, uma relação de poder bastante evidente. Ironia ou to e pertencimento, as texturas, o toque, o contato com o out- não, um busto em homenagem à Antônio Januzzi foi inaugu- ro, o cheiro possibilitam ter uma vivência que amplia as re- rado em junho de 2012, na Avenida Rio Branco (antiga Cen- flexões sobre o espaço e, por meio do questionamento, fazem tral) esquina com rua Sete de Setembro. Em janeiro de 2016, compreender que, no processo de construção, ao menos do devido às obras do VLT, o Januzzi foi recolhido e colocado em Rio, mais casas serão derrubadas, mais espaços de exclusão se repouso no depósito da prefeitura. Tal fato põe luz a efemer- formarão, outros bustos serão inaugurados e depois retirados idade e inconstância do espaço urbano, suas remodelações e para que se coloquem outras cabeças para se homenagear. interesses sobrepostos. Apesar da retirada do busto, Januzzi Compreende-se também que o discurso oficial, institucional permanece simbolicamente enquanto houver obelisco. nem sempre - ou quase nunca - vai ao encontro do grosso da Os exemplos e relações construídos neste texto são re- população. Aquilo que se escolhe dar visibilidade muitas vez- cortes de caminhadas realizadas em 2017. O tempo do pisar, es não é o que poderia ter maior representatividade em ter- nos permite observar a cidade com certa calma, contrariando mos de acontecimentos que envolveram afetivamente uma suas grandes avenidas que exigem a aceleração da passa- maior parcela da população. Fabricam-se marcos identitários. da. Permite observar detalhes na proximidade de um dedo, Em 2016 elegeram-se dois fundos para registros fo- e tocá-los, ter mais certeza das escalas das coisas, observar tográficos: o Museu do Amanhã e o painel do artista Kobra. revestimentos, entalhes, nomes em placas. Conhecer prédios, A combinação #cidadeolimpica, escrita com letras grandes suas funções e atividades contidas, anotar acontecimentos na paisagem, direcionada ao Museu do Amanhã, projeto de e incoerências. O estar na rua, na deambulação e, vez por autoria do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, limitava o outra, se permitindo uma parada contemplativa, causa um olhar, tornando invisível o edifício Joseph Gire, mais conheci- nó no fluxo constante de gente, gera um olhar atento ao do como A Noite. Marco arquitetônico e primeiro arranha-céu gesto, às cenas corriqueiras como o jogo do bicho de cada da América Latina sediou um importante Jornal (A Noite) e esquina, o vendedor com o tabuleiro de doce, o morador de a Rádio Nacional - da qual ainda resta a placa indicativa na rua e o voluntário do greenpeace que tenta a sorte com var- fachada -, principal veículo de comunicação das décadas de iados transeuntes. O silêncio atento também faz perceber os 40 e 50. Apagado da paisagem, o que nos anos 20 foi um sons da cidade, os vendedores ambulantes e seus jargões, as marco do progresso, tal como o busto de Januzzi, é substituí- sinalizações sonoras, os artistas de rua, alguém que fala ao do por novos aparatos discursivos de identidade “nacional / celular e outros que discutem calorosamente sobre o futebol, regional”. O Museu do Amanhã seguindo o que ocorreu em e o silêncio de uma grande massa atravessado por buzinas e outros países com áreas públicas reformadas - para evitar o apitos nos horários de grande fluxo de automóveis. Há o calor termo re-vitalizadas - é assinado pelo mesmo arquiteto que da rua que se ameniza ao se entrar em uma galeria de chão realizou obras em semelhantes situações em Buenos Aires

54 Argentina, Espanha e . Já o painel do Kobra, trazen- errantes, assim como para os habitantes ordinários, a cidade do fenótipos mundiais, longe de discutir aqui seus aspectos deixa de ser um projeto espetacularizado com regras defini- estéticos, escondia a precariedade dos armazéns da zona por- das e passa a ser território de experiências. “... no momento tuária e o contraste significativo entre as ruas internas local- em que a cidade - o corpo urbano - é experimentada, esta izadas no limite dos bairros Saúde e Gamboa e a Av. Rodrigues também se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, so- Alves, reformada, pintada e arborizada para a construção da brevive e resiste no corpo de quem a pratica” (JACQUES, 2008). infraestrutura do VLT. Quase em frente à enorme pintura do A experiência do contato com os espaços urbanos, através dos Kobra, um armazém denominado de Utopia nos relembra processos de errância, ativam e atualizam lembranças, pro- o poder da palavra de criar um imaginário e de forjar uma duzindo outras memórias e questionamentos sobre a consti- quase-realidade. tuição da própria cidade. Uma faceta da realidade cotidiana da grande metrópole O espaço urbano espetacularizado, produtor de corpos é composta de velocidade, agitação e ruídos. O tempo da domesticados, passa a sofrer intervenções que alteram sua máquina se impõe sobre a lentidão dos corpos e se permitir visualidade e suas regras. Como afirma Jacques (2008), “os es- vivenciar a experiência da desaceleração torna-se um ato de paços menos espetaculares da cidade resistem, assim, nesses resistência e crítica reflexiva. Os habitantes ordinários, como corpos moldados pela sua experiência [...] uma vez que esses definiu Milton Santos, aqueles que não se limitam a usar o corpos denunciam, por sua simples presença e existência, a que lhes é imposto, mas criam exceções e inventam novas for- domesticação dos espaços mais espetacularizados”. Dessa mas de habitar, possibilitam a criação de outras relações com maneira, o caminhar como prática estética é uma forma de a cidade, como comenta Paola Berenstein Jacques (2008). se produzir fissuras no espaço urbano rompendo com certas Segundo a arquiteta e urbanista: institucionalizações. Esse processo compreende a criação de outras memórias e histórias, que atualizam o passado e inte- Os praticantes ordinários das cidades atua- lizam os projetos urbanos e o próprio urba- gram temporalidades e espacialidades, possibilitando reflex- nismo, através da prática, vivência ou expe- ões críticas a respeito do espaço que habitamos. riência dos espaços urbanos. Os urbanistas Ressalta-se aqui que a memória é tomada como um indicam usos possíveis para o espaço proje- conceito que abarca singularidades, conforme Gondar aponta tado, mas são aqueles que o experimentam em seu texto Quatro proposições sobre a memória no cotidiano que os atualizam. São as apro- social (2005). Sendo polissêmica, transversal e transdisci- priações e improvisações dos espaços que plinar, ela comporta diversas significações e se abre a uma legitimam ou não aquilo que foi projetado, gama de sistemas de signos fazendo emergir um novo campo ou seja, são essas experiências do espaço do saber que é atravessado por diversos outros, o que possi- pelos habitantes, passantes ou errantes que bilita um diálogo entre eles e a criação de outros objetos que reinventam esses espaços no seu cotidiano produzem deslocamentos e rompem limites disciplinares. A (JACQUES, 2008). memória também é ética e política, “tecida por nossos afe- tos e por nossas expectativas diante do devir” e concebida É no processo de desaceleração, definido pelo próprio como um “foco de resistência no seio das relações de poder”. caminhar, que se constrói outras relações com o entorno Dessa forma, ela não se destina à manutenção dos valores percorrido levando à diferentes interações com a cidade. de um grupo, mas é tecida na interseção de escolhas como Surge, dessa maneira, a possibilidade de se produzir narra- uma montagem apresentando-se processualmente, ou seja, tivas que rompem com os discursos instituídos e que estabe- como uma construção social fruto das relações de poder. Tal lecem outras relações com a memória. Essa produção envolve “processo é a própria alteração, mais do que aquilo que dela fatalmente memórias - da cidade, do sujeito e do próprio cor- resulta; um movimento de tornar-se mais do que a coisa tor- po. A relação que se estabelece nesse ínterim ativa a criação nada” (GONDAR, 2005, p. 20). A memória então, não se reduz no atravessamento de vivências mobilizadas pelo contato à representação, encontrando-se em constante movimento, e pelas percepções despertadas através da errância. Para os 55 criando tensões e disputas num jogo de forças complexo. ART AND CITY: WALKING AS A SENSITIVE CON- Considerando as condições processuais de sua produção, vê- STRUCTION se que ela se exerce também em uma esfera irrepresentável que comporta “modos de sentir, modos de querer, pequenos ABSTRACT gestos, práticas de si, ações políticas inovadoras” (GONDAR, 2005) que podem romper com os modos de subjetivação Artists, poets, thinkers and ordinary people walk. Walk- predominantes. ing is an action that is learned in the first months of life and As relações construídas no espaço urbano são atraves- can become a way of transforming the landscape. The act of sadas pela memória, pela história e pela arte e consequen- walking is an occupation / appropriation of space and the temente as constrói, retroalimentando-se. Em sua própria city is potent and open to experimentation. When walking estrutura articulam-se à educação em seu sentido lato per- through the central region of Rio de Janeiro, its structures are mitindo compreender a cidade como espaço de construção evidenced by a process permeated by removals, appropria- do conhecimento. A experimentação, a vivência, o question- tions and discursive constructions, interspersing temporali- amento, a reflexão crítica e a produção de novos sentidos são ties. The city is built from its layers of stories and narration processos que perpassam o campo educacional e, por isso, verified in its traces. How can walking also be understood as permitem a conexão da escola com seu extramuros através an act of resistance? What’s a possible place and for whom? da arte. Key words: art, city, walk, resistance, mem- Essa conexão inter/transdisciplinar, tão característica da ories memória, da arte e da cidade está presente em produções artísticas contemporâneas. Gilberto Tomé em seus livrosci- REFERÊNCIAS dades acompanha o percurso de rios e córregos da cidade de São Paulo, muitos deles canalizados e invisíveis aos transe- AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropo- untes. Nesta série de trabalhos retraça o fluxo das águas col- logia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994 ando cartazes lambe-lambe em suas margens com imagens e textos retirados de arquivos públicos e particulares de distin- BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no BRasil: tas épocas, visualidades e vivências destes espaços. Segundo arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa o artista ele registra “uma leitura mais subjetiva e afetiva da própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004 cidade e de sua história, tentando estimular visões de futuro através da memória” (TOMÉ, s/d). De forma semelhante, Guga BOURRIAUD, Nicholas. O que é um artista (hoje)? In: Arte Ferraz, no Rio de Janeiro, demarca o espaço do mar desen- & Ensaios n.10, Revista do Mestrado em História da Arte da hando seus antigos limites com sal grosso. Em frente à igreja Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Ja- Santa Luzia no início do século XX ainda era possível ouvir e neiro, 2003. ver o mar à sua porta. O Morro do Castelo, antes às suas costas, passa a residir na sua frente, como aterro. Guga Ferraz recria CAMARGO, Rosane Feijão de Toledo. Reflexos da ci- os desenhos da cidade lembrando que sob a rua santa luzia dade na moda: relações entre transformações urbanas e atravessando a Avenida Presidente Antonio Carlos, chegava aparências pessoal no início do século XX no rio de Janeiro. a baía da Guanabara. Evidencia assim, as distintas camadas Dissertação /9/mestrado em Comunicação Social) - Pontifícia de história que uma cidade comporta. O artista, assim como Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009 os caminhantes com seus percursos, refaz a cidade, operan- do com uma memória, reescrita da história e criando novas CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como visualidades. prática estética. Tradução Frederico Bonaldo. São Paulo: G. Gilli, 2013.

56 COLETIVO Teatro Dodecafônico. Elástico: O que te faz an- AVENIDA PAULISTA, DO LOTEAMENTO À VER- dar? O que te faz parar?. São Paulo: Conspire Edições, 2016, TICALIZAÇÃO: UMA NARRATIVA LITERÁRIA E documento não paginado. URBANÍSTICA

COMITÊ Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro. Fabíola Löwenthal Lopes34 Dossiê: Megaeventos e Violação dos Direitos Humanos Jane Victal Ferreira35 no Rio de Janeiro. nov, 2015. Disponível em: http://www. childrenwin.org/wp-content/uploads/2015/12/Dossie-Com- RESUMO it%C3%AA-Rio2015_low.pdf. Acesso em: abril/2018 O presente artigo tem como proposta analisar a tra- DIDI-HUBERMAN, Georges. Ser Crânio: lugar, contato, jetória da Avenida Paulista, examinando a congruência de pensamento, escultura. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. temporalidades distintas nos espaços urbanos e apresentan- do a Literatura como uma ferramenta de auxílio no entendi- GONDAR, Jô e DODEBEI, Vera (orgs). O que é memória mento da história da cidade e instrumento de aproximação social?. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/Programa de das narrativas múltiplas. Para tanto, o recorte temporal Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Ferderal utilizado inicia-se desde sua inauguração em 1891, até as do Estado do Rio de Janeiro, 2005. décadas de 1950/1960, quando se intensificou o processo de verticalização da área. A presença de manifestações literárias JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas. In: é demonstrada permeando o percurso da história urbana. Revista Arquitextos. ano 08, fev. 2008, documento não Palavras-chave: Historiografia urbana. paginado. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/re- Avenida Paulista. Modernismo. Literatura. vistas/read/arquitextos/08.093/165. Acesso em: mar/2018. Urbanismo.

JORNAL DO SÉCULO. Rio de Janeiro: [1921]. Diário. INTRODUÇÃO LABUCCI, Adriano. Caminhar, uma revolução. O entendimento da história de uma cidade, sua urban- Tradução Sérgio Maduro. São Paulo: Martins Fontes, 2013. ização, e a própria história do urbanismo perpassa por múl- tiplas possibilidades de olhares. Os diálogos entre a literatura PREFEITURA da cidade do Rio de Janeiro. Memória da e história urbana trazem novas formas de se compreender as destruição: Rio- uma história que se perdeu (1889-1965), relações existentes entre espaço/tempo e realidade histórica. Rio de Janeiro, 2002. Almandoz (2003), em seu artigo: Historiografia Urbana en Latinoamerica: del positivismo al postmodernismo, levanta SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. Lucio Costa: Problema a questão da importância do diálogo entre os vários campos mal posto, problema reposto. Revista Arquitextos, dez. de estudo, para um melhor entendimento do Urbanismo. Fala 2009. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/ ainda, da necessidade de ampliar o olhar, para além de textos read/arquitextos/10.115/2. Acesso em: abr/2018. técnicos e especializados. Afirma que a Literatura nos mostra a subjetividade do urbano, “La ciudad emocional”, dimensão SOLINIT, Rebecca. A história do caminhar. Tradução essencial para compreender o espaço e sua ocupação. O autor Maria do Carmo Zanini. São Paulo: Martins Fontes, 2016. refere-se a esta importante e necessária ligação interdiscipli- nar, citando que a visão subjetiva da cidade emocional está mais próxima à realidade - à essência do urbano – do que a

34 POSURB PUC-Campinas - [email protected] 35 POSURB PUC-Campinas - [email protected] 57 representação e organização urbanísticas racionais impostas A subjetividade existente no ato do homem ocupar por funcionários estatais. Vejamos como o autor refere-se a seu espaço envolve estamentos que englobam identidade, esta importante e necessária ligação interdisciplinar: memória, relações políticas, elementos estes que escrevem a experiência temporal na cidade, e cuja narrativa pode ser lida As utopias e os mitos urbanos, assim como a literatura, com frequência têm anteci- por meio das diversas camadas do espaço urbano. O homem pado a evolução conceitual dos processos registra sua presença no espaço, seja por letras, palavras, urbanísticos com maior agudeza que as imagens ou edificações. Constrói sua identidade através de aproximações supostamente “técnicas” ou signos que podem ser decifrados para refletirmos a respeito “especializadas”, tal como advertiu Henri Le- dessa narrativa. febvre em A revolução urbana (1970). Neste Assim, como ponto de convergência inevitável entre sentido, Paolo Sica também insistiu sobre a Literatura e Urbanismo, encontra-se justamente a narrativa. relevância da literatura como “reserva im- Através desta, ambos os campos buscam registrar a presença portante de meditação”, afirmando que a humana no espaço, suas ações e desenvolvimento de sua cidade recriada na obra literária volta-se a si história. Seus registros e transformações ficam marcados, mesma “uma das dimensões da cidade real”. seja nos atos dos personagens e desenrolar do enredo, nas No meu caso particular, estas inquietudes ações poéticas do “eu-lírico”, ou nas configurações (e recon- têm alimentado a necessidade de buscar no figurações) do espaço urbano real. “A prática do urbanismo pensamento humanístico em geral, mais do quase sempre adquiriu sentido em uma narrativa”. (SECCHI, que na literatura urbanística especializada, 2006, p.21). as chaves das mudanças e transformações Secchi (2006) também aproxima estes dois campos de impostas pela urbanização moderna nas estudo, a Literatura e o Urbanismo, ao apropriar-se das fig- sociedades ocidentais. Talvez por isso, sem uras de linguagem para identificar as figuras do urbanismo, abandonar uma concepção também aberta à representação técnica do urbano, concor- que podem ser formas de pensamento ou em um sentido do com Rob Shields que a “cidade emocio- mais extremo e menos abstrato, formas das cidades, suas nal” está “mais próxima à realidade - à es- estruturas, e arquiteturas. Ou seja, a “leitura” deve ser feita, sência do urbano – do que a representação e a partir de seus signos presentes no espaço, assim como a organização urbanísticas racionais impostas “escrita” irá projetar as expectativas do novo personagem no por funcionários estatais. ((ALMANDOZ, cenário real ou ficcional. 2003, p.14 - Trad. Fabíola Lowenthal)36 As formas concretas, arquitetônicas ou de ocupação do espaço urbano se constroem a partir da (e para a) trajetória 36 Las utopías y los mitos urbanos, así como la literatura, con frecuencia humana. A Literatura de certa forma percorre o mesmo han anticipado la evolución conceptual de los procesos urbanísticos caminho, trazendo a reconstrução dessas formas e tempo- con mayor agudeza que las aproximaciones supuestamente “técnicas” ralidades para estabelecer trajetórias de personagens hab- o “especializadas”, tal como lo advirtió Henri Lefebvre en La révolution itantes dessa mesma realidade, porém de maneira ficcional, urbaine (1970). En este sentido, también Paolo Sica insistió sobre la relevância de la literatura como “reserva importante de meditación”, afir- ou ainda, representações poéticas dos desejos e anseios de mando que la ciudad recreada en la obra literaria se vuelve en sí misma uma época. Podemos assim partir do princípio de que a Liter- “una de las dimensiones de la ciudad real”. En mi caso particular, estas atura nos fornece sinais diretos e indiretos sobre a sociedade inquietudes han alimentado la necesidad de buscar en el pensamiento humanístico en general, antes que en la literatura urbanística especial- a qual pertenceu, ou pertence assim como a cidade. Tais si- izada, las claves de los cambios y las transformaciones impuestas por la nais também são fontes de leitura para analisarmos a história urbanización moderna en sociedades occidentales. Quizás por ello, sin cultural urbana, já que esta mantém estreita relação com os abandonar una concepción también abierta a la representación técnica estudos culturais de diversos campos disciplinares, debruçan- de lo urbano, reconozco con Rob Shields que la “ciudad emocional” está “más cercana a la realidad - a la esencia de lo urbano - que la do-se sobre o imaginário e suas representações. A Literatura representación y el ordenamiento urbanísticos racionales impuestos por assim ajuda a escrever a história da “La ciudad emocional”. funcionarios estatales. (ALMANDOZ, 2003, p.14) 58 A proposta deste artigo é traçar paralelos entre a tra- cos. Foram abertas também alamedas transversais e longitu- jetória da Avenida Paulista, localizada na cidade de São Paulo, dinais. (TOLEDO, 1987). e a produção literária que acompanha essa trajetória, bus- Na planta a seguir de 1891, podemos observar a divisão cando convergências entre as narrativas literárias e urbanas. original da chácara Bela Vista, com um parcelamento em Como recorte temporal, é focado o período desde a inaugu- grandes lotes. ração da Avenida em 1891 até o período de verticalização, ini- ciado nos anos finais da década de 1950. A Literatura mostra- se presente, como um registro das transformações sociais e revelando tendências estéticas e mudanças de paradigmas, como um elemento transversal importante na história da cidade.

ORIGENS DE UM PLANEJAMENTO Inicialmente projetada como um loteamento, em um lo- cal alto, plano e aprazível, a Avenida Paulista preenchia todos os quesitos da nova ordem urbanística que se implantava nas capitais brasileiras da Nova República. Ordem, beleza, salu- Figura 1 Planta Abertura Avenida Paulista 1891. (TOLEDO, 1987). bridade, circulação eram os princípios seguidos pelos admin- istradores públicos nos melhoramentos urbanos. As habitações também eram foco das preocupações Para a arborização e ajardinamento, Eugênio de Lima urbanas, e no caso do loteamento da Avenida Paulista, o trouxe do Rio de Janeiro o paisagista francês Paul Villon, rep- parcelamento em grandes lotes ia ao encontro da ideia de resentante de uma nova corrente de realizadores urbanísti- construção dos palacetes, localizados no miolo do lote, possi- cos, que entendiam a cidade como representação de ordem bilitando distanciamento da via pública, construção de jardins e beleza, símbolo do progresso. No tocante ao paisagismo, e quintais. A representação da separação de classes sociais já entendia-se a natureza dominada pelo homem e como fonte se configurava no planejamento de novos bairros e dentro de lazer, salubridade e socialização de uma elite. Assim, Villon dos casarões que emergiam na nova região de expansão da trabalhou com arborização como ornamentação e embeleza- cidade. mento das vias, mantendo ao mesmo tempo parte da vege- O projeto, que se originou de um empreendimento im- tação original da Mata restrita a um lote, que veio a se trans- obiliário de alto luxo, visava principalmente as famílias en- formar no parque Trianon, na época designado Parque Villon. riquecidas com os negócios do café e da nascente indústria paulista. Formava-se ali um impressionante espigão de trinta AS FACES DA EUROPEIZAÇÃO E DO IDEÁRIO URBANO DO FINAL DO SÉCULO XIX e oito metros de largura, homogêneo, retilíneo, distante cerca de três quilômetros do centro histórico. O empreendimento Ordem, beleza, salubridade, fluidez faziam parte do ocorreu como iniciativa do engenheiro nascido em Montevi- ideário civilizador adotado para diversas cidades importantes deo em 1845, Joaquim Eugênio de Lima, que estabeleceu as do período. Tal ideário positivista do progresso tomou força características do projeto que mudaria a face da região mais e foi difundido principalmente a partir do Plano de Hauss- alta da cidade, onde se encontrava ainda parte da Mata Atlân- mann para Paris (1853-1859), onde se reproduziu no espaço tica. (TOLEDO, 1987). os reflexos das mudanças sociais. No Brasil, além do Plano de A ideia original da via foi dividir seus dois mil e oitocen- Reformas Urbanas no Rio de Janeiro (1903-1906) de Pereira tos metros em três faixas, destinadas ao bonde (de tração Passos, outro exemplo foi a ação “regeneradora” de Antônio animal), às carruagens e aos cavaleiros. Plátanos e magnólias Lemos na cidade de Belém, no estado do Pará (1897–1911); separavam as pistas, pavimentadas com pedregulhos bran- Ordem, progresso, técnica e método eram as palavras-chave

59 para a intervenção na cidade, seguindo os moldes do novo o recanto preferido das pessoas de bom gôsto e tornar-se um governo republicano positivista. A ideia de um trabalho civ- lugar aristocrático por excelência” (FINA, 195237), de acordo ilizador e aproximação com a modernidade europeia, afa- com o discurso do prefeito, ao encerramento da solenidade. stando-se de vez do passado colonial ou mesmo monárquico, A imagem a seguir apresenta uma pintura em aquare- fez com que as principais cidades brasileiras nos anos finais la (1891) do pintor Jules Martin retratando a inauguração do século XIX e início do século XX sofressem transformações da Avenida Paulista. A obra foi presenteada a Eugênio de estruturais profundas. “(...) aformoseava-se a paisagem cit- Lima, pela ocasião da solenidade de abertura e representa as adina, criando uma imagem moderna, à maneira das mais grandes dimensões da avenida. desenvolvidas capitais europeias”. (ANDRADE, 1998, p. 4). Na cidade de São Paulo, a “Europeização” trouxe mod- ificações estéticas e de infraestrutura a muitos bairros e a completa reconstrução do centro histórico, tendo como uma das consequências a segregação social nos bairros operários. Diversas intervenções urbanas marcaram esse período, como as de Teodoro Xavier (1872-1875) e João Alfredo Correa de Ol- iveira (1885-1886). Também a se destacar a gestão de Antô- nio de Queirós Teles (1886-1887), que trazia um programa de construção de grandes edifícios institucionais na capital, delegando a Ramos de Azevedo seus projetos, o que marcaria a nova face da cidade. Ramos de Azevedo também projetaria Figura 2 Jules Martin / Reprodução: José Rosael / Museu Paulista - USP diversas residências para a elite paulistana, inclusive alguns palacetes da Avenida Paulista. (SALGADO; BERTONI, 2010). AS TRANSFORMAÇÕES URBANAS E MUDANÇAS DE No entanto, dentro da nova configuração proposta pelas PARADIGMAS NA LITERATURA políticas de intervenção urbana das décadas finais do século Paralelamente, a Literatura passava por transformações XIX, a Avenida Paulista despontava não como uma recon- que se assemelhavam às urbanas. Os românticos, após ex- strução da cidade, mas como expansão urbana, pois visava o trapolarem seus sentimentos e seguirem por caminhos con- futuro da metrópole. doreiros38, começavam a se enfraquecer como movimento, e O término e entrega das obras foi alvo de grande cele- as novas ideias filosóficas e científicas, como o Positivismo, o bração, pois representava um avanço para a cidade pela ex- Determinismo e o Cientificismo, influenciavam diretamente pansão, proposta de embelezamento e valorização de novas as produções literárias. Os ideais do Romantismo39 davam áreas. lugar ao Naturalismo40 determinista e à crítica social do Re- 37 FINA, Wilson Maia. Rainha Destronada in Revista Acrópolis nº 173, IMPACTOS DA SOLENE INAUGURAÇÃO: DE CHÁCARA A 1952 apud MORAES, 1995. PARCELAMENTO EM ACRÓPOLE 38 Referente a Condoreirismo, escola brasileira de poesia, da última fase Em 08 de dezembro de 1891, após cerca de dois anos romântica (c1860-c1870), de caráter social e político e que divulgava e defendia ideias igualitárias, cujo principal representante foi o poeta de construção, foi inaugurada a Avenida Paulista. Em uma Castro Alves. (CEREJA; MAGALHÃES, 2013) grande solenidade, com a presença de autoridades e grande 39 Movimento artístico, político e filosófico surgido nas últimas décadas parte de populares, revela-se à cidade o início de uma grande do século XVIII na Europa que se estendeu até as décadas finais do sécu- transformação. O lugar antes conhecido como uma chácara, lo XIX. Caracterizou-se como uma visão de mundo libertária e reflexiva. agora possuía um parcelamento em acrópole com amplos (CEREJA; MAGALHÃES, 2013) lotes e uma grande avenida, eixo central de uma malha ortog- 40 Movimentos literários que surgem na Europa em meados do século XIX, contrapondo-se ao Romantismo, resgatando o objetivismo e a de- onal cortada por alamedas abertas guarnecidas por melhora- scrição detalhada com cunho científico e realista. (CEREJA; MAGALHÃES, mentos urbanos, formaria um novo bairro, “[...] fadado a ser 2013) 60 alismo41. Estes novos movimentos, de ordem ideológica, re- mais intensiva da avenida, com a construção de residências fletiam as novidades nas orientações das reformas urbanas. em seus terrenos. Higienismo, civilidade, melhoramentos, segregação social, eram temas que apareceriam nas narrativas nas últimas dé- OUTROS PERSONAGENS ENTRAM EM CENA: OS cadas do século XIX. CASARÕES DA PAULISTA No início do século XX, a Avenida Paulista já contava com PARNASIANISMO E SIMBOLISMO: REPRESENTAÇÕES NA ART-NOUVEAU cerca de 50 casas, implantadas no centro dos lotes e manten- do amplos recuos. O estilo eclético despontava: neoclássico, No final do século XIX, surgia um movimento artístico, toscano, florentino, egípcio, neorromano, Art-nouveau, todos com variações estilísticas em diversos países europeus, a os estilos apresentavam-se lado a lado no decurso da Avenida chamada Arte Nova ou Art-nouveau. Na Europa, as manifes- metricamente arborizada. (DANON & TOLEDO, 1974). tações deste estilo na arquitetura ocorreram desde as duas últimas décadas do século XIX até as vésperas da Primeira Guerra Mundial, em 1914, mas suas influências nos demais continentes perduram um pouco mais. Os projetos eram car- acterizados por curvas assimétricas, com a presença de for- mas botânicas, angulares, além dos motivos florais. Neste final de século, na poesia havia ainda o Parna- sianismo com o culto à forma, busca da estética, valorização da lapidação (da palavra ou das figuras) e beleza exata, e o Simbolismo, com sua subjetividade, ideias etéreas e referên- cias mitológicas. Ambos os movimentos, principalmente no tocante à estética e forma, refletiam os novos estilos ar- quitetônicos presentes nas reformas e planos de expansão urbana. O Simbolismo em especial, aproximava-se à Art-nou- Figura 3 Guilherme Gaensly. Avenida Paulista, c. 1902. São Paulo, SP / veau, com a valorização da fruição da beleza, uso de temas Acervo FBN decorativos florais, além de formas e estruturas referenciando a natureza e idealizações. Segundo Danon & Toledo (1974), a variedade de estilos A mesma Art-nouveau que poderia ser considerada uma arquitetônicos também poderia ser explicada pela diversi- reação à arte acadêmica do século XIX proporcionaria um dade de proprietários que eram atraídos para o empreendi- cenário propício ao prenúncio de uma nova literatura a de- mento. Além dos barões do café, muitos estrangeiros enri- spontar no Brasil, o Modernismo. quecidos com comércio e indústria nascente se interessaram Diante de tantas influências estéticas e mesmo de teor em ter como residência um local tão atraente e de moradores filosófico e ideológico, “O fin-de-scècle no Brasil encontrará selecionados. A Avenida Paulista, assim começou a tornar-se uma república nascente e uma atitude filosófica de concil- referência para a elite Paulistana. iação: o ecletismo” (DANON & TOLEDO, 1974, p.7), o que fora vivenciado também pela arquitetura. Assim, a Avenida Pau- lista assistiu a construção de seus palacetes concretizados em O MODERNISMO NASCENTE sua maioria no estilo arquitetônico eclético. Na Literatura, Mário de Andrade, em seu manifesto mod- O novo século trouxe consigo a chegada dos bondes ernista de 1922, a obra Paulicéia Desvairada, apresenta a críti- elétricos, o que fez com que ocorresse em 1900, a ocupação ca aos detentores do dinheiro, que ainda mantinham padrões conservadores e segregadores. Neste trecho do poema Ode ao 41 Idem nota 7. Burguês, o qual foi lido durante a Semana de Arte Moderna, 61 no Teatro Municipal, podemos observar a quem se dirige o primeiro prefeito republicano da cidade de São Paulo de 1899 poeta e sua revolta transgressora: a 1910 e fez importantes reformas na cidade, reorganizando a administração municipal e criando a Diretoria de Obras. O Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, administrador pretendia manter na cidade o aspecto de cen- O burguês-burguês! tro de negócios para o modelo agroexportador: a capital do A digestão bem-feita de São Paulo! café. Em 1900, assim era conhecida a cidade de São Paulo, “A Metrópole do Café”, conforme citado por Maria Cecília Naclério O homem-curva! O homem-nádegas! Homem, na obra em que analisa as formas urbanas de morar O homem que sendo francês, brasileiro, da elite cafeeira, O Palacete Paulistano. (HOMEM, 1996). italiano, Deste modo, é possível ver como a Avenida Paulista foi palco para as transformações da sociedade burguesa brasilei- é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! ra da Primeira República, seja em um viés artístico-literário, Eu insulto as aristocracias cautelosas! como também no tocante ao modo de vida urbano. Novamente, pode-se observar a coexistência de tem- Os barões lampiões! os condes Joões! poralidades, o passado do campo, o dinheiro do café, “a in- Os duques zurros! dústria agrícola” indiretamente impulsiona as vanguardas Que vivem dentro de muros sem pulos; modernistas, com visão futurista e estéticas progressistas. O espaço compreende as temporalidades, as camadas urbanas E gemem sangues de alguns mil-réis fracos são registradas, e os personagens tomam parte da narrativa. Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês CENÁRIO DE PASSEIO E ADMIRAÇÃO E tocam os “Printemps” com as unhas!(AN- A sofisticação e multiplicidade das construções atraia a DRADE, 2016, p.16) população da cidade, que através das linhas de bondes elétri- cos fazia da região cada vez mais, local preferido para passei- Pode-se claramente identificar os primeiros proprietári- os, nos quais admiravam os belos palacetes. As discrepâncias os dos casarões da Avenida Paulista como alvo das críticas do entre o modo de vida da elite da Avenida Paulista e as popu- poeta modernista. No entanto, mesmo sendo crítico da ma- lações dos bairros pobres e operários tornava o local como um nutenção do pensamento burguês retrógrado, Mário de An- atrativo, que se por um lado, representava a concretização das drade, assim como todos os idealizadores da Semana de Arte desigualdades criadas pelo sistema vigente, por outro forjava Moderna, reunia-se em um palacete da Paulista, localizado uma imagem de desejo maior para ascensão de classes. Este na esquina da Alameda Ministro Rocha Azevedo, a Vila Fortu- processo pode ser encontrado em algumas narrativas da lit- nata, de propriedade da família Thiollier. Ocorriam encontros eratura da época. para organizar o movimento, e René Thiollier, morador da Como por exemplo, podemos observar no conto Ar- mansão, filho de um rico importador francês, Alexandre Hon- mazém Progresso de São Paulo, publicado em 1927, na obra oré Marie Thiollier e de Fortunata de Sousa e Castro Thiollier, Brás Bexiga e Barra Funda, do autor modernista Alcântara irmã da Baronesa de Itapetininga, era amigo pessoal de Mário Machado. No conto em questão, nos é apresentada uma nar- de Andrade, sendo um dos mentores e patrocinadores da Se- rativa, na qual os personagens são comerciantes de um bairro mana de 22. (SOUKEF JUNIOR, 2002). de imigrantes italianos. Na história, o italiano Natale, propri- Outro representante da elite paulistana, que teve papel etário do armazém, ao prosperar com seu negócio ameaçava marcante para os movimentos modernistas foi Paulo da Silva levar à falência a tradicional confeitaria do português Paiva Prado, descendente de uma das mais influentes famílias pau- Couceiro. Dona Bianca, esposa de Natale, na expectativa da listas, filho primogênito do conselheiro Antônio Prado, im- portante cafeicultor paulista e eminente político, o qual foi o

62 prosperidade iminente, nos é apresentada com o sonho de 22. E não eram somente corridas motorizadas que partiam do morar na Av. Paulista: local, em 1921 dá-se ainda a 1ª Corrida de São Silvestre. (REIS FILHO, 1994). Dona Bianca deitou-se sem apagar a luz. Olhou muito para o Dino que dormia de boca aberta. Olhou muito para o Santo Antonio di Padova col Gesù Bambino bem no meio da parede amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino que mudara de posição. E fechou os olhos para se ver no palacete mais caro da Avenida Paulista. (MACHADO, 2012, p.59)

Outro escritor registra suas impressões sobre a cidade como um flaneur, no melhor estilo baudelauriano, e obser- va as transformações da cidade burguesa. João do Rio, nas crônicas sobre as visitas a São Paulo, mostra sua admiração Figura 4 Avenida Paulista 1910 – http://brasilianafotografica.bn.br/ pelo modo de vida paulista, que chama de progressista e brasiliana/handle/bras/980. autenticamente europeu, e a elegância sóbria e civilizada de seus habitantes. Admira com empolgação, o crescimento NOVOS RUMOS DE UM ENREDO: A VERTICALIZAÇÃO econômico da cidade e a origem europeia dos imigrantes. Na coletânea João do Rio, um dândi na Cafeilândia (SCHAPOCH- A crise de 1929 muda consideravelmente o cotidiano NIK, 2004), é possível vivenciar o universo frívolo e luxuriante dos habitantes da Paulista. Muitos empresários do café se em que vivia a elite paulistana, em seus palacetes, reuniões e veem obrigados a vender seus imóveis em função dos pre- festas luxuosas, mas também nos é apresentado o lado das juízos decorrentes da queda do preço do produto na bolsa especulações, dos investimentos financeiros e articulações de valores. Muda-se o perfil dos novos proprietários, que se políticas. São Paulo crescia e se enriquecia, e os resultados mostram mais interessados nos terrenos do que nas con- refletiam no modo de vida urbano. struções existentes. (SOUKEF JUNIOR, 2002). João do Rio também relata o momento em que a cidade é tomada pelo automóvel, um novo modo de transporte que MUDANÇAS NO CENÁRIO saía dos trilhos, induzindo reformas rodoviaristas na cidade e na mentalidade urbana. (SOMEKH & CAMPOS, 2002). A A verticalização como tendência mundial, tendo como Avenida Paulista à época consolidou-se como local de eventos referência Nova York e Chicago, começa a adentrar o pensam- automobilísticos, desde competições de corridas até corsos ento urbano vigente. No Brasil, as décadas de 1920/30 servem carnavalescos. como palco de discussões sobre a cidade com destaque para Muitas atrações ocorriam na Avenida Paulista. O Parque engenheiros especializados como planejadores urbanos, Trianon, à época chamado de Villon, era local preferido da como Ulhôa Cintra, Prestes Maia e Anhaia Melo. (SOMEKH & elite para passeios e em 1916 é inaugurado, no outro lado da CAMPOS, 2002). Avenida o Belvedere Trianon, projeto de Ramos de Azevedo, É interessante analisar que em 1922, com a Semana onde mais tarde foi construído o MASP. Do alto do Belvedere de Arte Moderna, escritores, artistas e intelectuais em geral era possível avistar o Vale do Anhangabaú e o centro histórico lançam um movimento que traz questionamentos a respeito da cidade. O local passou a ser ponto de encontros para chás da identidade da sociedade brasileira, o que terá consequên- da tarde. Nos salões eram realizados banquetes e solenidades cias em diversos setores do país. Neste momento também, oficiais, conferências e reuniões políticas. Foi palco também na arquitetura e urbanismo, podemos verificar importantes de reuniões do grupo de artistas e intelectuais da Semana de modificações nas cidades, com continuidade nas décadas seguintes, transformando a paisagem urbana. No caso da

63 Avenida Paulista, demolições dos casarões, a verticalização caminho para outras construções similares. Projeto dos ar- com modificações morfológicas e funcionais alteram a im- quitetos cariocas Marcelo e Milton Roberto, pioneiros no uso agem desse ícone urbano. de materiais inovadores, concretizava a estética e os ideais Um ano antes da realização da Semana de Arte Moderna, modernistas. Em diversos aspectos o edifício simbolizou uma intelectuais reuniram-se em um salão do Belvedere, e Oswald modificação extrema na imagem das construções da Paulista, de Andrade lançou o manifesto do Trianon, um olhar sobre a acostumada com o ecletismo das mansões. Erguido sobre pi- cidade e seu futuro: lotis, com fachada dinâmica pelo uso de esquadrias, simetria nas formas retas e harmonia das proporções. (SOUKEF JUN- Estamos no Trianon, devassando a cidade panorâmica no recorte desassombrado das IOR, 2002). suas ruas de fábricas e dos seus conjuntos Entre demolições e construções, molda-se a imagem de palácios americanos. É a cidade que, nas da Avenida, constrói-se um cenário para atuação de novos suas gargantas confusas, nos seus desdobra- personagens. Além dos casarões remanescentes, edifícios mentos infindáveis de bairros nascentes, na residenciais começam a localizar-se ao lado de construções ambição improvisada das suas feiras e na multifuncionais. O Conjunto Nacional é um dos exemplos des- vitória dos seus mercados, ulula uma des- sa nova forma de se construir. No mesmo espaço, um edifício conhecida harmonia de violências humanas, que abrigasse apartamentos residenciais, restaurantes, bares, de ascensões e desastres, de lutas, ódios e cinemas e lojas foi o projeto do arquiteto David Libeskind, que amores, a propor, às receptividades de escol, ao ser concretizado, tornou-se um marco da arquitetura dos o riquíssimo material das suas sugestões e a anos 50 em São Paulo. (SOUKEF JUNIOR, 2002). persuasão imperativa das suas cores e linhas. As novas formas que a paisagem da cidade tomava refle- Oswald de Andrade. “O Discurso do Trianon”. tiam-se também as propostas da Literatura Modernista. O po- 09-01-1921. in: BRITO, 1978, p. 177.) eta modernista Guilherme de Almeida ilustra em seu poema ao estilo haicai “Os Andaimes” (1925) os novos elementos da A narrativa arquitetônica da Avenida caminha assim, paisagem urbana, que viriam com a verticalização e também junto aos novos rumos do país, e a Literatura produzida à as novas situações sociais: “Na gaiola cheia / (pedreiros e época, reflete as questões que o Modernismo traz. carpinteiros) / o dia gorjeia.” (ALMEIDA, 1955, p. 15). Bachelard (2000) em A Poética do Espaço, utiliza exem- TROCA DE PROTAGONISTAS: SAEM DE CENA OS plos literários para analisar o espaço e sua relação com a ex- CASARÕES, ENTRAM OS EDIFÍCIOS istência humana, demonstrando a proximidade da literatura com o espaço. O autor diz pretender tomar o espaço “como Após a crise, e com a retomada nos investimentos na um instrumento de análise para a alma humana” (2000, p. Avenida Paulista, os terrenos onde antes havia os casarões, 20), nesse sentido, a presente pesquisa também pretendeu muitos demolidos, tornaram-se altamente valorizados, para relacionar tempo, espaço e literatura, propondo uma análise a construção de edifícios. A verticalização ocorre com inten- entre as temporalidades envolvidas no recorte espacial estu- sidade nas regiões centrais da cidade. A Paulista em especial, dado, e destacando a importância da criação literária na tra- apresentava-se com grande potencial de investimentos, pois jetória espaço-temporal do lugar. era local nobre com via larga e infraestrutura consolidada. Na ilustração feita por Renata Priore Lima, visualizamos (MORAES, 1995). o impacto que a verticalização causou na paisagem urbana Nos anos finais da década de 1930, foi criada uma lei da região. municipal autorizando a construção de grandes edifícios resi- denciais na Avenida Paulista, o que viabilizou a construção do Edifício Camille Sabagh com sete andares, primeira obra nest- es padrões. Em 1941 ergueu-se o Anchieta, primeiro edifício residencial e marco arquitetônico para a Avenida, abrindo

64 A Literatura presencia e registra as ações e idealizações da sociedade, podendo desse modo ser utilizada como im- portante ferramenta para entendimento e reflexões a res- peito da narrativa urbana. O espaço, como território, possui o importante papel de cenário dessa narrativa. No entanto, este próprio espaço pode atuar como personagem de um en- redo traçado ao longo do tempo, vivenciando e transmutando Figura 5 A Avenida Paulista nos anos 20 e a situação atual. a imagem da cidade, revelando ainda a cidade emocional. O Fonte: LIMA, 2014. tempo por sua vez, como um dos itens indispensáveis em uma narrativa, sempre se mostra presente, podendo apresentar-se CONSIDERAÇÕES FINAIS de forma linear, ou mantendo nichos atemporais como regis- tros de um passado presentificado. As mudanças na paisagem da Avenida Paulista são acompanhadas pelas novas apropriações do espaço, ressig- ABSTRACT nificações dos lugares e suas identidades. A cidade mostra suas formas sobrepostas por permanências e modificações. The purpose of this article is to analyze the Paulista E nesse fluxo, a trajetória literária corta transversalmente Avenue trajectory by examining the congruence of distinct a cidade, apresentando a subjetividade do urbano, que se- temporalities in urban spaces and presenting Literature as an gundo Massaud Moisés, “desenvolve-se por ondas, em que a auxiliary tool in understanding the history of the city and as continuidade e a ruptura se alternam, se cruzam e imbricam”. an instrument for the approximation of multiple narratives. (MOISÉS, 1992, p.173). For this purpose, the temporal cut used began from its inau- A partir de um percurso histórico, sob uma perspectiva guration in 1891, until the decades of 1950/1960, when the diacrônica, é possível refletir a respeito da construção espacial process of verticalization of the area intensified. The presence e cultural em determinado território. Segundo Benedito Lima of literary manifestations is demonstrated permeating the de Toledo (1997), “O diacronismo é um fenômeno da vida course of urban history. urbana” (p. 8), dessa forma, a cidade constrói sua trajetória no espaço em grande escala, sendo necessário muito tempo Keys-words: Urban historiography. Paulista para que tenhamos a percepção exata do evento e seus des- Avenue. Modernism. Literature. Urbanism. dobramentos. Além disso, a própria cidade é uma narrativa onde é REFERÊNCIAS possível observar temporalidades em um só espaço, porém que se completam no decorrer da história. Esta narrativa é de ALMANDOZ, Arturo. Historiografia urbana en lati- caráter dinâmico e processual, sempre a reconstruir-se sobre noamerica: del positivismo al postmodernismo. si mesma. Os vestígios deixados pelas marcações temporais Disponível em: http://rodolfogiunta.com.ar/Historia%20 assumem a forma de um palimpsesto, com sobreposições de urbana/Historiografia%20Urbana%20en%20AL%20%28Al- narrativas urbanas. mandoz%29.pdf Acesso em: 15/03/2016. No estudo da produção literária, destacando-se obras que se relacionassem com a cidade de São Paulo, como do ALMEIDA, Guilherme de. Toda a poesia. 2. ed. São Pau- autor modernista Mário de Andrade, é possível demonstrar lo: Livr. Martins, 1955. como a Literatura pode funcionar como uma ferramenta de auxílio no entendimento da história da cidade e instrumento ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de Andrade. Barry de aproximação das narrativas múltiplas da cidade. Parker: um arquiteto inglês na cidade de São Paulo. São Pau- lo: FAU USP, 1998. (Tese de Doutorado).

65 ANDRADE, Mário. Paulicéia Desvairada. Projeto Livro MOISÉS, Massaud. Literatura: Mundo e Forma. São Livre, 2016. Paulo: Cultrix, 1992.

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MACHADO, Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. São Paulo: EDUNESP, 2012.

66 COLEÇÃO, MEMÓRIA E MELANCOLIA: que trabalhamos/propomos é o ato criativo do/no colecionar. ENTRELAÇAMENTOS Estabelecemos uma relação, pelo prisma da memória, entre coleção e melancolia, identificando na primeira tanto um Kelly Castelo Branco da Silva Melo lugar de expressão da segunda, como um recurso estabiliza- Professora Assistente I (UNIRIO), Doutoranda e me- dor da mesma. Pretendemos reforçar a coleção como criação stre em Memória Social (PPGMS/UNIRIO), bacharel e como espaço de dinâmicas de memória e construção subje- em biblioteconomia (UNIRIO); tiva; e explorar a melancolia a partir de suas relações com a Leila Beatriz Ribeiro criação e a memória. Professora Associada II (UNIRIO), doutora e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ), bacharel em História (UFRJ); Palavras-chave: Coleção. Memória. Melancolia. Francisco Ramos de Farias Professor Associado (UNIRIO), Secretário Geral da ANINTER-SH, Doutor em Psicologia (Psicologia INTRODUÇÃO Cognitiva, FGV), Mestre em Psicologia (Motivação Podemos qualificar a ligação homem/objeto, como algo e aprendizagem, FGV), Especialista em Psicologia Clínica (UFRJ), Bacharel e Psicólogo (UFRJ), Bolsis- “entranhado” – no sentido de “arraigado”, “radicado” (raiz, ta de Produtividade em Pesquisa 2 (CNPq) que traz para a terra, que sustenta), “íntimo”, “profundo”, das entranhas, visceral (HOUAISS, 2009). Ao buscarmos pelas RESUMO origens, definições e limites qualificatórios do que é (o) hu- mano, encontramos fundamentalmente suas/as coisas, uma O presente trabalho é desdobramento de um projeto de vez que a presença dos artefatos é a única prova irrefutável tese, que conta com orientação na linha de Memória e Pat- de/da humanidade (LEROI-GOURHAN, 1983), o que significa rimônio, e coorientação na linha de Memória, Subjetividade dizer que os objetos marcam a grande virada da fronteira e Criação. Ele propõe a investigação teórico-conceitual da do humano. A originalidade orgânica da humanidade está Coleção como campo de dinâmicas de memórias e de melan- intrinsecamente atrelada à produção de artefatos (INGOLD, colia. A concepção de melancolia utilizada é a pré-freudiana, 2015; LEROI-GOURHAN, 1983), que confere existência tanto que entende o termo não como uma designação de ciclos ao homem quanto aos objetos. É o lascar da pedra que faz, da depressivos, ou seja, da ordem da patologia, mas como um mão, humana, ao mesmo tempo em que é a mão humana que estado no qual os indivíduos experimentam certa dose de lasca a pedra e a faz ponta de lança (LEROI-GOURHAN, 1983). inconstância e vazio, para a qual seria possível encontrar Sendo assim, a criação e a utilização de artefatos podem ser certo equilíbrio, ou uma ‘boa mistura’. Percebemos o colecio- entendidas como processos de dupla incorporação: tanto pe- nar como oscilação/movimentação entre lembrar e esquecer, los desdobramentos que elas acarretam in corpus, quanto como relação encantada com as coisas, processo de criação e pelo incorporar no sentido de tornar parte de si por meio de renovação, como um viver de nós dentro dos objetos, e dos seu uso, como prolongamentos do corpo e da ação do corpo objetos em nós. No jogo de rememoração do colecionar, co- no mundo. existem o ganhar (cada objeto é chave para o que precede e Constitutivos do que é ser(-)humano, as coisas atuam sucede o presente, um elemento de invocação, um passaporte como mediadoras (meio) e/ou como ‘o(s) outro(s)’ impre- transtemporal), e o perder (cada lembrança traz o que scindível(eis) nas mais diversas áreas das vidas das pessoas. não volta mais, confronta com o tempo que passou/passa, Desde o momento em que acordamos, até a hora em que atesta a efemeridade do agora e da existência), a possibili- vamos dormir – e além, nos sonhos –, desde o instante do dade de transcendência e a finitude. Esses pares de opostos nosso nascimento, até a chegada da nossa morte – e no entrelaçam coleção e melancolia, visto que a segunda pode pós-morte, nos rituais, nas representações, nos trabalhos de ser compreendida como expressão de vida diante da morte. luto, herança, lembrança... – estamos cercados, imersos, (re) Dos dispositivos possíveis/disponíveis para atingir uma saúde cobertos por objetos, que existem por/por meio de/para nós. da/na melancolia, ou de uma ‘boa dose de inconstância’, o

67 Nós lhes conferimos existência e, em retorno, eles asseguram, que nos aproximam de outro ponto chave de nossa análise: conferem, possibilitam e participam da nossa. a melancolia. Dentre as muitas manifestações/relações promovidas Este trabalho propõe a investigação teórico-conceitual pelo par homem/objeto, o presente trabalho discorre sobre da Coleção, não só como campo de dinâmicas de memórias, coleções, compondo a produção do Programa de Pós-grad- como também de melancolia, entendendo esta última como uação em Memória Social (PPGMS/UNIRIO). Ele é desdobra- uma das experiências humanas vivenciadas no âmbito col- mento de um projeto de tese que conta com orientação na ecionista, e/ou a qual a coleção responde como recurso. Por linha de Memória e Patrimônio, e coorientação na linha de conseguinte, para tratar das questões melancólicas, privile- Memória, Subjetividade e Criação. Mais especificamente, ele giamos a abordagem romântico-filosófica de raiz aristotéli- se situa no âmbito do projeto Mais do que posso contar: ca. Ou seja, utilizamos o termo não como uma designação coleções, imagens e narrativas, que objetiva contribuir de ciclos depressivos, da ordem da patologia, mas como um para o enriquecimento dos estudos de/sobre coleção, levando estado no qual os indivíduos experimentam certa dose de em consideração suas dinâmicas de construção, o(s) relacion- inconstância e vazio, para o qual seria possível encontrar amento(s) forjado(s) entre o colecionador e seus objetos, e certo equilíbrio, ou uma ‘boa mistura’ (ARISTÓTELES, 1998; seus lugares instituintes no mundo contemporâneo (RIBEIRO, PIGEAUD, 1998). Dos dispositivos possíveis/disponíveis para 2014). atingir uma saúde da/na melancolia, ou esse estado de ‘boa Adotando a perspectiva benjaminiana, percebemos o dose de inconstância’ (CHAUÍ-BERLINCK, 2008; KEHL, 2014; colecionar como oscilação/movimentação entre lembrar e es- PIGEAUD, 1998), o que trabalhamos é o ato criativo: aqui, o quecer, como paixão que confina com o caos das lembranças, criar com objetos que é o colecionar. Também pode se relacio- como uma relação encantada com as coisas, como processo nar a melancolia a um questionar de si mesmo, à uma busca de criação e renovação, como um viver dentro dos objetos de sentido para a vida, que promove abertura para criar (FARI- (BENJAMIN, 1995). Nessa visão também está implícita uma AS, 2013). Assim, podemos pensar a coleção como espaço de relação com a perda, com resquícios de uma vida vivida, en- expressão/experiência melancólica, entendendo que o mel- cerrada no passado, mas que não tem limites (nem fim) se e ancólico é aquele que busca por sentido, e a coleção é uma quando rememorado (BENJAMIN, 2014a, 2014b; GAGNEBIN, das formas de produzi-lo/conquista-lo, uma vez que “colecio- 2006). Rememorar vem então como renovar, visto que o que nar é uma maneira de viver no caos, transformando-o, breve- é rememorado não é, absolutamente, o que se viveu. No jogo mente, em sentido42” (PEARCE, 1993, p. 55, tradução nossa). (colecionista) de rememoração, portanto, coexistem o ganhar Tomamos a coleção como um território de construção/ – cada objeto é um elemento de invocação, uma chave para criação subjetiva, uma maneira de acessar/criar uma forma tudo o que precede e sucede o presente, um passaporte tran- de habitar o/no mundo, um narrar com objetos, uma forma stemporal – e o perder – cada lembrança traz o que não tem de construir para si um lugar de pertencimento (o que nec- mais volta, confronta-nos com o tempo que passou/passa, e essariamente implica estar-se diante de um sentimento de atesta a efemeridade da existência. Na coleção encontramos não pertencer). Nessa concepção, coleção é um espaço de a tensão – que é tensão criativa – vivida não só pelo cole- (tentativa de) (des)ordenação de mundo, de (des)(re)arranjo cionador, como pela memória: de experimentar ao mesmo de si mesmo, de guardar a si mesmo e se lançar ao porvir feito tempo, a “presença do presente que se lembra do passado cápsula do tempo – mas uma cujo preparo nunca se dá por desaparecido” e “a presença do passado desaparecido que finalizado (algo escapa... há alguma coisa que se pressente, faz sua irrupção em um presente evanescente” (GAGNEBIN, que se fareja, mas que nunca se alcança). Ela se trata, portan- 2006, p. 44). De forma que, cada objeto de coleção é um pon- to, de um fazer-se constante e não de um já feito. Para quem to dessas irrupções, de convergência presença-ausência, de observa, pode parecer tratar-se do que já foi construído, mas, rememoração. Sendo assim, colecionar é, ao mesmo tempo, para o colecionador, é o em curso da construção e, diante da uma maneira de lutar contra o esquecimento e uma forma de reconhecer seu poder – o poder da morte –, elementos 42 Do original em inglês: “Collecting is one way of living within chaos and transforming it, briefly, into sense”. 68 impermanência e da finitude inevitáveis, um modo de per- tivas. Foi coletando e diferenciando elementos que grupos manecer. Coleção é lugar de denúncia da presença ausente e primitivos estabeleceram classificações sobre as coisas de da ausência presente, um lugar onde se “inscreve a lembrança um ambiente que precisava ser compreendido e, em certa de uma presença que não existe mais e que sempre corre o medida, dominado. As percepções e taxonomias resultantes risco de se apagar definitivamente” (GAGNEBIN, 2006, p. desse selecionar/coletar, por sua vez, levaram ao colecionar 44), rastro. Uma vez rastro, além de possibilitar que sigamos não apenas de coisas, como de formas de entendimento, aco- vestígios da nossa vida e/ou da de outros, as coleções nos modação e apropriação (ELSNER; CARDINAL, 1997; MENEGAT, permitem experimentar vivências compartilhadas, recupera- 2005), e, também, de sons e sinais organizados de modo a das/reconstruídas a partir daquilo que fica das experiências comunicar (MARSHALL, 2005). Por meio da apropriação de e trocas de pessoas, grupos e/ou objetos, como marcas ves- mundo promovida pela apropriação das coisas do mundo, tigiais (RIBEIRO, 2016). Coleção é ponte para o invisível (PO- teve início a modelagem do universo que permitiu sua com- MIAN, 1984) onde habita uma memória (ou possibilidades preensão. A partir do momento em que o homem passa a fab- de construção de memória) que, sem o colecionador (e para ricar artefatos, ele começa também, de forma não intencional, qualquer outro que não ele), é enigma – e que talvez o seja a produzir suportes físicos de memória. O aparecimento dos mesmo para ele. Nos colocamos então diante desse enigma primeiros semióforos – objetos investidos de significado, para estabelecer uma relação, pelo prisma da memória, entre inseridos em trocas interacionais entre dois ou mais agentes coleção e melancolia, identificando na primeira, tanto um e entre as dimensões do que se pode e não se pode ver –, lugar de expressão/experiência de melancolia – pela relação no Paleolítico superior, marca uma alteração fundamental na com a finitude, com o tempo que passa/passou, com essa vida humana e, segundo Pomian, talvez a mais importante grande presença do ausente – como um recurso estabilizador desde o controle do fogo (1984). Ela inaugura o tempo no para os colecionadores que estão/são melancólicos. qual, não apenas a vida material dos homens passa a extrap- olar o visível, mas as dimensões do visível e do invisível, do material e do simbólico, passam a se interpenetrar. O recolher TECENDO (SOBRE) COLEÇÕES e, principalmente, o produzir de objetos representantes do in- Embora tenha sido no Renascimento que o colecionismo visível, sinalizam a emergência da cultura (POMIAN, 1984) e, encontrou um cenário/contexto favorável para despontar por conseguinte, do colecionador como um agente de cultura como atividade consciente – quando o individualismo mod- e de memória, tanto individual como coletiva. Nesse sentido, erno nascente e o desenvolvimento do comércio possibili- a história do colecionismo –­ uma trajetória de mais de seis taram a expansão e a popularização de sua prática (JANEIRA, milênios (POMIAN, 1984) – é a história da humanidade em 2005; PEARCE, 2013) –, ele é um fenômeno bastante anterior. seu esforço para acomodar e se apropriar de percepções, clas- A instituição colecionista contemporânea e a acumulação sificações e sistemas de conhecimento (ELSNER; CARDINAL, pré-histórica estão intimamente relacionadas, não apenas 1997). no tocante à prática de reunião de objetos, como também Os vestígios mais antigos nos quais é possível identificar em termos de mentalidade (MARSHALL, 2005; PEARCE, 2013; funções homólogas ao que hoje entendemos como coleções – POMIAN 1984), podendo a primeira ser entendida como ou seja, reunião intencional/especial de objetos com o objeti- reverberação cultural da segunda. Sendo assim, o colecion- vo de cumprir um papel social ou psíquico particular – datam ismo contemporâneo carrega consigo um grande lastro de do Neolítico (entre 6500 e 5700 a.C.) (POMIAN, 1984). Desde experiências, aprendizados e memórias acumulados pela então, até os dias atuais, as coleções seguem como institu- humanidade em um arco temporal de milênios (MARSHALL, ições universalmente difundidas e trans-culturalmente prat- 2005). icadas ao redor do globo, assumindo diferentes formas em Ao colecionar estão/são implícitas a seleção e a coleta, cada momento histórico, em um sistema plástico e complexo que constituem não apenas uma forma de relacionamento de funções e finalidades. com as coisas do mundo, como também atividades cogni-

69 Como conjunto de objetos, coleções são atos de imagi- que o colecionador lança a sua coleção enxerga – e enxergará nação (ligação entre coleção e criação/ato criativo), em parte sempre – muito além do que o de qualquer outro. Objetos de individuais e em parte coletivos (que convergem), que têm a coleção são objetos do afeto e inspiram “uma relação muito intenção de criar significados que auxiliam na formação da misteriosa com a propriedade” (BENJAMIN, 1995, p. 228) na identidade individual (e pode-se também falar de identidade qual a função utilitária é suprimida pela de serem possuídos e coletiva se pensarmos em coleções como o patrimônio de a posse é empreendimento de totalização abstrata que afasta um país, por exemplo) e na construção de visão(ões)/enten- o colecionador do mundo – o mundo da dimensão prática, do dimento(s) de/do mundo. Coleções são objetos reunidos de objeto funcional – e que faz com que o objeto, o ‘objeto puro’ acordo com propósitos específicos e transpostos do universo tome um estatuto estritamente subjetivo: o estatuto de obje- de meras mercadorias para um de significação especial, do to de coleção (BAUDRILLARD, 2012). O olhar que um colecion- âmbito do sagrado, ou da sacralidade do/no profano, no sen- ador lança aos seus objetos, portanto, é um que enxerga para tido daquilo que é precioso e misterioso para cada um. Dessa além da materialidade e do presente, é um que percebe em forma, a coleção cumpre um importante papel em processos/ cada um deles uma enciclopédia mágica (BENJAMIN, dinâmicas de construção de valor, podendo engendrar um 1995, 2006). Coleções são narrativas plurais, visto que narram valor externo, para o mundo – valor de troca – ou um interno, com o que está para além do dizível. Embora a voz dominante particular, que só existe em termos subjetivos e conectado à seja a do colecionador, ele a constrói a partir de outras: aque- afetividade. las trazidas por cada um dos objetos, ou seja, à narrativa que o colecionador constrói com a coleção, somam-se aquelas trazidas pelos objetos que a compõem – cada objeto já é COLEÇÃO, MEMÓRIA E MELANCOLIA: TECIDO DE VI- mensagem e mensagem social (MOLES, 1981), emite história DA-MORTE “objeto-temporal” (OLIVEIRA; SIEGMANN; COELHO, 2005, p. Independente dos motivos que levam à sua composição, 114). Essa informação contida nos objetos, também não é uma coleção será sempre a parte mais visível de processos estanque, mas se transforma e é transformada de acordo com de (des)construção de memória. Este pode tanto ser do col- as relações (também em constante mutação) estabelecidas ecionador – tomando a sua coleção como obra, como a sua entre indivíduos, grupos e coisas. dinâmica de produção de sentido, como a sua escrita de si –, O novo significado informacional transmiti- quanto de algum outro agente que, ao observar a coleção, a do pelo objeto é, assim, o resultado de um toma como ponto de partida de um construir mnemônico. processo de construção, de acordo com a Vale ressaltar que, enquanto, para o colecionador, a coleção sua trajetória histórica e através do caminho é sempre o durante dessa construção, ou seja, o construir/ percorrido, A informação está sempre em desconstruir/reconstruir da coleção é, já em si mesmo, o processo de construção. Na coleção, essa construir/desconstruir/reconstruir mnemônico, para outro construção se dá com a própria introdução observador/agente ela será sempre o início, o portal, o pon- do objeto ao acervo, na medida em que ele to de partida de uma (des)construção de memória ainda absorve as informações do olhar do colecio- por vir. E que, muito embora esse observador possa ter por nador e da relação que ele passa a construir objetivo recuperar uma memória moldada/construída pelo com os outros objetos colecionados (RIBEI- colecionador ((re)construir uma suposta memória do colecio- RO, 2016, p. 296). nador), seus processos nunca serão os mesmos e, portanto, a memória construída também não. Há aqui também uma Ainda como coisas comuns, anônimas, os objetos com- diferença importante no olhar: uma vez que “o que se observa plementam sínteses socioculturais (COSTA, 2013) na medida depende do observador43” (MATURANA, 1987, p. 61), o olhar mesmo. Dessa maneira, como não podemos separar nossas visões de nós 43 Sobre a influência do pensamento kantiano em Benjamin, princi- mesmos, nunca alcançamos o objeto em si. Aqui, o raciocínio é análogo: palmente no que diz respeito a suas reflexões acerca do trabalho de um se não podemos separar nossas visões de nós mesmos, o que se observa/ tradutor/de tradução: dizer algo sobre um objeto é dizer algo sobre si enxerga depende de quem olha. 70 em que a compreensão de suas funções e significados no na pluralidade dos objetos – cada um deles, aliás, também âmbito das sociedades que os produzem e das redes por onde faz parecer unidade toda uma sucessão de eventos: todas as circulam, elucidam aspectos técnicos, econômicos, culturais e jornadas empreendidas pelo colecionador até cada um deles sócio-históricos (COSTA, 2013). Objetos são criados para at- assim como todos os caminhos percorridos por cada um deles ender a necessidades coletivas, de forma que sua existência até o colecionador. Porque se os objetos têm seu destino, para remete, como chave de entendimento, a essas demandas, o colecionador este é uma de suas estantes (ou armários, ou que, por sua vez, remetem ao contexto (acontecimentos, sótãos, ou gavetas...) (BENJAMIN, 1995, 2006). desdobramentos, condições) que gera tais demandas, e assim O colecionador trafega pelo mundo como caçador, em sucessivamente, rumo ao “infinitamente social” (BARTHES, busca de seu próximo objeto de coleção. Por vezes, porém, 2001, p. 208). Nesse sentido, cada um deles é suporte de não é o colecionador que o encontra, mas o objeto que vai ao memória em si, aspecto que é potencializado no conjunto seu encontro, que encontra seu caminho até ele. Este não nec- e que converge sempre para o colecionador. Ao relacionar essariamente atende à lógica que rege os critérios da busca do coleção e narrativa, reforçamos a relação entre memória e colecionador, mas ainda assim o chama porque tem lugar jun- coleção, afinal, o comportamento narrativo é o ato mnemôni- to a ele (BENJAMIN, 2006, 1995, 2012; OS RESPIGADORES44, co fundamental (LE GOFF, 2012). 2000): um lugar misterioso. Como os objetos obsoletos das Por se constituir para fora das palavras, a narrativa col- Yard Sales (DEBARY, 2015), o colecionador vislumbra, ecionista é construída em chave cifrada – “há sabidamente em algo que no senso comum poderia ser entendido como uma linguagem dos selos [coleções], que está para a lin- “porcaria”, algum valor que talvez ressoe da oportunidade de guagem das flores como o alfabeto Morse está para o escrito” capturar o tempo que passa e da de lembrar (DEBARY, 2015). (BENJAMIN, 2012, p. 61). Assim como a criação não está ap- O evento desse encontro – ou reencontro, como ocorre com enas nas palavras, mas também no esforço de pôr em palavras Walter Benjamin em seus desempacotamentos e desembrul- (GEIGER; GONDAR, 2015), na coleção ela não está somente hares (1995, 2006), que é um conhecer-reconhecer – desloca nos objetos, mas também no arranjo, na busca, no processo – o eixo e cria algo novo, potencializa a singularidade tanto do o que implica não apenas a disposição física, mas também o colecionador quanto da coleção e causa abertura para a entra- critério, padrão (aceitação, resistência, subversão ou quebra), da da subjetividade: é a partir de cada objeto, de inseri-los ou intenção, dinâmicas e trânsitos de valor/valorização, escolha retirá-los do conjunto, que o colecionador interfere na estru- (do colecionador e/ou do objeto). Nela os objetos, mais do que tura e se torna a consciência ordenadora de sua organização. exercerem seu papel de componentes, constituem um mapa Com ‘estrutura’ e ‘organização’ nos referimos às consider- a guiar passeios inferenciais pelos bosques das lembranças ações de Maturana acerca de sistemas. Diz ele: “uma entidade, e experiências do colecionador: cada um, fragmento e um/o qualquer coisa que possamos distinguir de alguma maneira, todo em si. Eles são o ponto onde passados, presentes e fu- é uma unidade” (MATURANA, 1987, p. 64-65). Uma coleção turos – de cada um dos objetos e do colecionador – se mis- é, portanto, uma unidade do tipo composta, por se constituir turam. Por conseguinte, a coleção, como projeto de memória de componentes distintos e separáveis que se relacionam. que se lança ao porvir, nunca será integralmente bem-suce- A estrutura dessa unidade pode variar – e por estrutura en- dido porque algo dessa complexidade sempre se perde, per- tende-se tanto os componentes quanto as relações entre eles manece no inacessível – ou talvez, ao contrário, o projeto seja –, mas ainda assim a organização se mantém, ou seja, aquilo integralmente bem-sucedido justamente por isso, uma vez que mantém/faz da unidade coleção, permanece, ainda que que à memória é inerente o que escapa, o que se esquece, o todos os seus componentes se alterem. que se perde, o que a renova. A coleção condensa uma mul- Assim como ocorre com seres vivos, pode-se alterar com- tiplicidade de estímulos e experiências, sensações e afetos, pletamente a estrutura da coleção sem que sua organização fazendo-os aparecerem juntos, como unidade, promovendo se perca e, enquanto isso se mantiver e for possível, a coleção um progresso do passado no presente, ou antes, abolindo as fronteiras temporais. Tal multiplicidade não está apenas 44 Há uma produção de DVD do filme mais recente do que a que utilizamos, na qual o título foi alterado para Os catadores e eu. 71 estará viva. E ela sofrerá mudanças para adaptar-se às novas pertencer no sentido de não provocar mais pertencimento, conformações e necessidades de seu colecionador, pois, assim o que leva ao não pertencer por suspensão da posse). Dessa como na biologia, a adaptação é uma invariável nas coleções forma, é possível afirmar que a força mais relevante para essa (enquanto vivas) e, por conseguinte, as mudanças na es- organização é a escolha. trutura também o são. Essa adaptação é essencial, porque Escolha é palavra-chave desse processo por implicar, a coleção só tem propósito enquanto houver identificação/ ao mesmo tempo, o processo de seleção e o de valorização autorreconhecimento, enquanto o colecionador puder recon- (PEARCE, 1993), que fazem convergir o individual e o coletivo. hecer que é dele o reflexo devolvido pelo espelho multifac- É no processo de escolha – seu ponto de atualização – que etado que seus objetos compõem. Se colecionar é uma forma habita a negociação do colecionador entre as normas sociais, de escrita de si45, a organização – que faz da unidade coleção os significados e valores previamente estabelecidos das coi- – só se sustenta enquanto o colecionador puder se ler – se sas, e suas possibilidades de acumulação – e aqui, o termo enxergar – no que escreve/está sendo escrito. ‘acumulação’ usado não no sentido de ‘amontoar’ (no tocante à mania, como o bibliômano que acumula livros indiscrimi- Surge no horizonte, a relação do colecionar com o ato criador e o subsequente deslo- nadamente), mas no de ‘associar’, ‘aliar’, ‘juntar’ (LUFT, 2011, camento da coleção, não como o já feito, p. 34) – para a construção de um sentido próprio. Tal aspecto mas como o fazer-se constantemente, e do também se relaciona com a memória porque, se o sentido da colecionador, não como o capitalista acumu- existência é criado, ele só atua de fato no sujeito se estiver lador, mas como um artista que guarda re- inserido culturalmente, ou seja, a produção de sentido pre- gistros temporais [...], os registros por onde cisa estar inscrita na cultura. Se a coleção permite produção passou e que constituem sua história (OLI- de sentido é porque ela obedece ou confronta uma lógica VEIRA; SIEGMANN; COELHO, 2005, p. 114). externa social e previamente sustentada. Isto é, se podemos pensar a coleção como uma forma válida de moldagem da re- E como o colecionador também é organização (organ- alidade, ela o é por ser socialmente aceita como tal, e porque ismo) para a qual a adaptação e as mudanças na estrutura existe uma lógica externa que assim a institui e reconhece. são uma invariável, as mudanças e transformações de um Se tal lógica opera em nós e/ou é operada por nós (seja no ir e de outro – ou de um sobre o outro – são espelhadas e se de acordo ou no ir contra), e assim permanece no (de)correr retroalimentam. Uma coleção, portanto, é um todo, cuja das gerações, é porque existe (resiste, persiste) tanto dentro adaptação é promovida pelos itens novos que lhe são incor- de nós (arraigado, entranhado, incorporado) como fora, na porados e por itens antigos que lhe são retirados. Mudanças nuvem46 da/que é a memória coletiva, e que permite que cer- e transformações sofridas pelo colecionador ao longo de sua tos hábitos e práticas se mantenham e se sustentem, mesmo vida podem ser sinalizados na coleção por meio da dispersão cessados os tempos de vida daqueles que os praticavam. Se do que não pertence mais e da incorporação do que passa a perduram também, é porque há uma lógica social na qual es- pertencer. Dito de outro modo, se a morte sinaliza a desinte- tão inscritos, sancionados, que os considera apropriados para gração e dispersão daquilo que foi um indivíduo (MARGULIS, os fins e papéis que desempenham, e os perpetua interna e 1997), as metamorfoses sofridas pelo colecionador ao longo externamente. Muito embora as coleções não sejam entes de sua vida são sinalizadas, através da/na coleção, pela desin- passivos e exerçam forte e ativa influência nesses processos, tegração e dispersão daquilo que já não mais lhe pertence (e são as sociedades que impõem os contornos semânticos espe- 45 Relação com Foucault (2012), tanto considerando as cadernetas – cíficos que elas assumem – seja por irem de acordo ou contra junção criteriosa daquilo que não é de si para constituir a si –, quanto as correspondências – certa maneira de se manifestar para si e para os 46 Referência ao Cloud Computing (Computação em nuvem), que se outros (a coleção, assim como a carta, torna-se a presença imediata do refere à utilização da memória e da capacidade de armazenamento colecionador, mesmo em sua ausência); como escrever, colecionar é “se e cálculo de forma interligada por meio da Internet. Nesse sentido, o mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (FOU- armazenamento de dados é feito em serviços que poderão ser acessados CAULT, 2012, p. 152), até porque à coleção é inerente um observador: ela de qualquer lugar do mundo, ou seja, a “memória” está armazenada em sempre se dirige ao olhar de outro (POMIAN, 1984). um lugar externo àquele de onde ela é acessada. 72 – ao longo da história. É por esse motivo que nos é possível construção cheia de castanhas espinhosas produzir sentido a partir do colecionar e, em certa medida, é que são maças medievais, papéis de es- por isso que a coleção toca o colecionador, afeta-o, instiga-o e tanho que são um tesouro de prata, cubos lhe permite construir a sensação de pertencimento. de madeira que são ataúdes, cactos que são No desenvolvimento humano, a fase ativa de coleciona- tótens e tostões de cobre que são escudos. mento situa-se entre os sete e doze anos de idade, e, por meio No armário de roupas de casa da mãe, na bi- dela se manifestam as primeiras tentativas de domínio, arran- blioteca do pai, ali a criança já ajuda há mui- jo, classificação e manipulação do mundo exterior (BAUDRIL- to tempo, quando no próprio distrito ainda é sempre o anfitrião inconstante, aguerrido LARD, 2012). Esse aspecto do colecionismo infantil é bastante (BENJAMIN, 1987, p. 39, grifo do autor). presente em Benjamin (1987, 2012), que enxerga na criança colecionadora o impulso de ir à captura do mundo e evidencia Nas relações estabelecidas pela criança colecionadora, é como a coleção, no universo infantil, serve como instrumento possível identificar o intuito de ordenação, o apropriar como o de apropriação, exploração e compreensão do externo: (des)conhecer-reconhecer, o desvendar como (de)senfeitiçar, Cada pedra que ela encontra, cada flor co- os objetos que são mais que objetos. Abreu (2016), em um lhida, cada borboleta capturada já é para artigo sobre os itinerários poético-conceituais da memória ela princípio de uma coleção, e tudo que social, parte da história de um livro para crianças – Guil- ela possui, em geral, constitui para ela uma herme Augusto Araújo Fernandes (FOX, 2003) – para abordar coleção única. Nela essa paixão mostra sua as potências criativas da memória. Para fazê-lo, ela evoca o verdadeira face, o rigoroso olhar índio, que, poder do colecionismo infantil, da criança e dos objetos, não nos antiquários, pesquisadores, bibliôma- só como guardiões, mas como agentes capazes de desvelar o nos, só continua ainda a arder turvado e ma- que habita o reino do esquecimento. Na história, um menino níaco. Mal entra na vida, ela é caçador. Caça é confrontado, em um asilo, com a figura de uma senhora que os espíritos cujo rastro fareja nas coisas; en- perdeu a memória. Para ajudá-la, ele reúne uma série de ob- tre espírito e coisas ela gasta anos, nos quais seu campo de visão permanece livre de seres jetos – uma coleção – que ele associa com os diferentes con- humanos (BENJAMIN, 1987, p.39). ceitos que lhe foram apresentados sobre o que era memória: “conchas guardadas há muito tempo, a marionete que sempre Percebe-se aqui que o movimento de colecionamento da fizera todo mundo rir, a medalha que seu avô tinha lhe dado, criança equivale ao capturar do mundo. Mundo esse do qual a bola de futebol que para ele valia ouro, um ovo fresquinho ela obtém pedaços através dos objetos que ‘caça’. Nela já está ainda quente retirado debaixo da galinha” (ABREU, 2016, p. presente o olhar do colecionador adulto – ou, ao contrário, 41). Reunido o tesouro, ele vai ao encontro da senhora, com é o olhar infantil, o olhar fresco, arejado, curioso, renovado, o propó””sito de restituir-lhe a memória. Com a ajuda dos a capacidade de ‘farejar o espírito’ das coisas, que pode ser objetos e do menino, Dona Antônia vai voltando a lembrar: novamente experenciado pelo adulto por meio do criar e do o ovo a leva a contar sobre um ovinho azul pintado que havia colecionar. encontrado em um ninho no jardim de sua tia. A concha, en- costada ao ouvido, a fez lembrar de uma ida à praia. A medal- Para ela tudo se passa como em sonhos: ela ha a fez lembrar de um irmão morto na guerra e, a mario- não conhece nada de permanente; tudo lhe nete, de uma outra que mostrara para a irmã, fazendo-a rir acontece, pensa ela, vai-lhe de encontro, com a boca cheia de mingau (ABREU, 2016; FOX, 2003). Uma atropela-a. Seus anos de nômade são horas dinâmica muito semelhante é encontrada no curta brasilei- na floresta do sonho. De lá ela arrasta sua ro Dona Cristina perdeu a memória (2002). Nele novamente presa para casa, para limpá-la, fixá-la, de- encontramos a infância diante da velhice em interação, como senfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas e zoológico, museu criminal e começos/finitude, lembrança/esquecimento que se encaram, cripta. “Arrumar” significaria aniquilar uma como alegorias da memória. No filme, um menino, Antônio, 73 encontra, na cerca que separa o quintal de sua casa do de um Coisa. Assim, Antônio se torna guardião da memória de Dona asilo – também, como no livro de Fox (2003), um lugar de Cristina, papel que ele aceita prontamente, assegurando-a de destituição do sentido do eu, serializante, des-subjetivante –, que guardará suas coisas em um lugar bem especial, para que uma senhora, Dona Cristina. Dia após dia, ela vem até a cerca, ela possa se lembrar sempre que quiser. O lugar escolhido por lhe pergunta o nome, e as respostas do menino – ‘Antônio’, a ele é um recipiente, como uma caixa, entre as rodas traseiras princípio, mas que ao longo dos dias se transforma – a levam do seu triciclo, onde, nas primeiras cenas no filme, ele aparece a narrar fatos contrastantes sobre sua vida. A passagem do organizando, com todo o cuidado, alguns de seus objetos: a tempo é marcada por um brinquedo, um pato de madeira, sua coleção – que a memória de Dona Cristina passa a incor- cujo som do movimento lembra o de um relógio (evocação porar. da relação dos objetos com o tempo que passa). A dinâmica A palavra ‘caçar’, que é bastante utilizada na literatura entre os dois segue como hábito, até que um dia Dona Cris- colecionista para descrever a busca do colecionador pelo tina diz: “Sabe, essa gente, ali, onde eu moro, estão dizendo próximo objeto de coleção, também ilustra o movimento da que eu perdi a memória, mas não é verdade. Eu tenho tudo “impregnação do objeto no indivíduo” (RENDEIRO, 2015, p. bem guardadinho” (DONA..., 2002, 10:39-10:46 min.). Nesse 41) e do indivíduo no objeto, de entrar na coisa e trazê-la para momento ela põe a mão do bolso e de lá retira uma série de dentro de si. No fragmento Caçando borboletas (BEN- objetos, apresentando cada um deles: uma concha, que fi- JAMIN, 2012), encontramos a ideia de caça como transmu- cou de um dia na praia; uma caixa onde ela havia ganhado tação, ou seja, para caçar algo, você deve se tornar aquilo que seu primeiro batom; um aviãozinho que ela havia dado ao caça. O que necessariamente implica que, no processo de se filho; um pregador que ganhara de presente do marido; um tornar aquilo que caça, a caça se torna você. No fim, capturar a monóculo com uma foto do filho; um Santo Antônio. Cada um borboleta é a única maneira de se tornar humano novamente. desses objetos a leva a falar com clareza e lucidez de sua vida, No ato de colecionar como caça, portanto, podemos identi- das circunstâncias nas quais essas coisas a encontraram, de ficar uma tentativa de “aprisionar o milagre e a grandeza das certa forma alinhavando todas as outras histórias que havia coisas para abarcar tudo dentro dos domínios de nossos bens contado ao menino, narradas com pequenas diferenças, mas pessoais” (SOUSA, 2013, p. 296), e assim, dentro de nós mes- de mesma essência. Esse aspecto criativo e necessário da mos, transmutando-nos em milagre e grandeza, e, as coisas, memória é sinalizado por Dona Cristina quando a passagem em um ‘nós’ externo ao corpo, expandido. de um avião a faz contar sobre o filho que havia ido estudar na Ao discorrer sobre a arte contemporânea como aquela Alemanha para ser aviador. “Um dia, ele voou tão alto, que de- que cria obras para além do objeto – uma vez que nela, nem sapareceu no céu...”. E completa: “Claro que essa história não tudo está contido no objeto, e o que falta nele nos obriga a é bem assim. Mas é isso que eu guardo na minha memória, retomar a palavra para contar a obra –, Debary (2016) a car- para não ficar muito triste” (DONA..., 2002, 09:05-09:10 min.). acteriza como uma arte de passagem à palavra, uma “arte de Quando termina a apresentação de sua coleção, de suas conversão”47. Pensando então na ‘arte de colecionar’, sugeri- relíquias, como ela diz – “relíquia é uma coisa muito velha que mos que, assim como a contemporânea, ela pode ser também não tem importância pra ninguém, só pra gente” (DONA..., percebida como uma arte de conversão, mas uma cuja op- 2002, 09:30-09:34 min.) –, Dona Cristina pede a Antônio que eração é dobrada: ela não só converte objeto em palavra – as guarde para ela, “porque, sabe, se alguém vier dizer que narrativa –, como também converte restos (ASSMANN, 2011; eu perdi a memória, eu vou dizer que não” (DONA..., 2002, DEBARY, 2016) em rastros (DERRIDA; SPIRE, 2008). 11:47-11:52 min.). E existir é deixar/ter deixado rastro (FARIAS, 2013). Nesse sentido, estabelecendo um paralelo com o pensa- Ao tornar-se rastro, um processo que corre simultanea- mento de Eco e aquele de Léon Deubel apontado por Benjamin mente em duas direções opostas se desdobra: a coleção trata em O colecionador (2006) – “Eu creio... em minha alma: de nossa condição de mortalidade/finitude, ao mesmo tempo a Coisa” – diante das dinâmicas colecionistas e entre Dona em que promete e assegura transcendência, nesse sentido Cristina e Antônio, dizemos: Eu creio... em minha memória: a 47 Do original em inglês: “art of conversion”. 74 elas operam como ferramenta de reunião e captura de pas- Uma partida sem volta, que não vai para o vazio (LÉVI- sado e presente (RENDEIRO, 2015) e projeção de vivência/per- NAS, 2009), mas para o devir, a coleção é Ser-para-um-tem- manência/reminiscência futura. Esse aspecto colecionista é po-que-é-sem-o-colecionador, ser para um tempo posterior abordado por Calvino (2010) em suas considerações acerca de ao do colecionador, é o “Ser para a morte a fim de ser para uma coleção de areia que pôde observar em uma exposição o que vem depois” (LÉVINAS, 2009, p. 46) que a coleção tor- em Paris. Diante de vários vidrinhos com os mais variados na possível ao colecionador, e/ou que o colecionador cria ao tipos de areia capturados de diferentes partes do mundo, colecionar. Calvino se vê diante do inexplicável mistério do ordinário e da infinidade de coisas que o silêncio aprisionado nas ampolas CONCLUSÃO parecia dizer, visto que, e ele afirma, toda coleção é um diário, de experiências, sentimentos... e, principalmente, da agitação Uma vez que os indivíduos têm dificuldade em lidar com gerada pela necessidade deter o escorrer da própria existên- o fato de que morrem, coleções são alguns dos recursos dis- cia, transformando-a ou depositando-a em um conjunto de poníveis aos homens para responder a isso, a essa angústia: a objetos salvos da dispersão (CALVINO, 2010). A salvo do es- angústia irremediável da finitude. Elas não apenas expressam quecimento. Salvaguardado da morte. coisas por nós, como também nos apaziguam ao assumir o Na mitologia grega, é pelo beber das águas do Lethe compromisso de contar para o mundo de nós, emprestan- (em grego, literalmente, ‘esquecimento’) – o que promovia o do-nos seu tempo superior de vida para deixarmos uma mar- apagamento de qualquer registro de existência anterior, ou ca de passagem na Terra. Ao fazê-lo, elas também afirmam seja, de qualquer memória –, que se consolida a morte. Nesse nosso fim (futuro ou concluído). Logo, coleções são, sincroni- sentido, conservar a memória é transcender a mortalidade camente, um passaporte para a imortalidade e um atestado (ABREU, 1996). de finalidade, mas um com o qual podemos lidar, ou um por Lévinas (2009) e Gagnebin (2006) tratam do deixar meio do qual é possível lidar: “coleções para reter a vida” rastro, vestígio, como modalidade do Ser. Nela se encaixa (SOUSA, 2013, p. 294) que nos escapa/escapou. Coleções para o Ser-com-objetos e o Ser com objetos que gera/produz a ter recurso para lidar com a vida que nos escapa/escapou. coleção como obra, ou que nela/a partir dela se manifesta. Pelo espelho da coleção, podemos contemplar nossa condição Obra aqui também entendida como a concebe Lévinas (2009): mortal refletida sobre a possibilidade de permanecer. Por/ como o ser-para-além-da-morte, a projeção do ser para um para sermos lembrados. De alguma forma. tempo sem ele mesmo, o visar de um/o mundo sem ele, e o visar um/o tempo além do horizonte do próprio tempo. Obra ABSTRACT como expressão de/da vida diante da morte, em “um movi- mento do Mesmo que vai em direção ao Outro e que jamais This paper derives from a thesis project developed in the retorna ao Mesmo” (LÉVINAS, 2009, p. 44). Ou seja, melanco- Memory and Heritage line, in partnership with the line of lia, segundo a seguinte concepção de Pigeaud: Memory, Subjectivity and Creation. It proposes the theoreti- cal-conceptual research of the Collection as a field of memory Mas o que seria a expressão da melancolia? and melancholy dynamics. The concept of melancholy used is [...]. A morte e a vida se entreolhando. O pre-Freudian, which understands the term not as a designa- olhar da morte diante do olhar da vida. Ou tion of depressive cycles, that is, of the order of pathology, but um só olhar que vê a vida e a morte. Onde se as a state in which individuals experience a certain amount encontra expressão da melancolia? No olhar of inconstancy and emptiness, for which it would be possi- do cadáver? Na expressão da morte? Mas a melancolia não é sinônimo de morte. Ela é ble to find some balance, or a ‘good mix’ of unbalance. We a expressão da vida diante da morte (PIGE- perceive Collecting as an oscillation/movement between re- membering and forgetting, as an enchanted relationship with AUD, 2009, p. 20). things, as a process of creation and renewal, as living within the objects and objects within us. In the recollection game of

75 Collecting, we find the coexistence of winning (each object is BARTHES, Roland. Semântica do objeto. In: ______. A key to what comes before and after the present, is an element aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. of invocation, a transtemporal passport), and losing (each 205-218. remembrance brings what cannot return, confronts us with time that passed/passes, attests to the ephemerality of the BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos objetos. 5. ed. 1. now and of the existence), and the possibility of transcend- reimpr. São Paulo: Perspectiva, 2012. ence and finitude. These pairs of opposites interweave Collec- tion and melancholy, since the latter can be understood as the BENJAMIN, Walter. Ampliações: criança desordeira. In: expression of life before death. Among the possible/available ______. Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: resources one can have in order to attain a ‘health’ of melan- Brasiliense, 1987. choly, or a ‘good measure of inconstancy’, the one we explore is the creative act of Collecting. We establish a relation, from ______. Desempacotando minha biblioteca: um dis- the perspective of memory, between Collection and melan- curso sobre o colecionador. In: ______. Obras escolhidas choly, identifying in the first both a place of expression of the II: rua de mão única. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. second, and a stabilizing feature of it. We intend to reinforce the Collection as creation and as a space of memory dynam- ______. Experiência e pobreza. In: ______. Obras ics and subjective construction; and to explore melancholy escolhidas I: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre through its relations with creation and memory. literatura e história da cultura. 8. ed. 2. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2014a. Keywords: Collection. Memory. Melancholy. ______. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: ______. Obras escolhidas I: magia e REFERÊNCIAS técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, cultura. 8. ed. 2. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2014b. história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. ______. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Obras escolhidas I: Magia e ______. Memória social: itinerários poético-conceitu- técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da ais. In: DODEBEI, Vera; FARIAS, Francisco Ramos de; GONDAR, cultura. 7. ed. 10. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 1996. Jô (Org.) Por que Memória Social? Revista Morpheus: estu- dos interdisciplinares em Memória Social, Rio de Janeiro, v. 9, ______. Obras escolhidas II: rua de mão única. 6. ed. n. 15, p. 41-66, 2016. São Paulo: Brasiliense, 2012.

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78 DESMEMÓRIAS DE UM PATRIMÔNIO SOCIOESPA- o templo de consumo moderno (CARLOS, 2015) etc. Ao adi- CIAL: O CASO NOVA AMÉRICA cionarmos a informação de que este shopping center também é um patrimônio cultural de uma cidade certamente mais Renan Caldas Galhardo Azevedo pensamentos surgirão em nossas mentes, buscando entender Graduando em Licenciatura e Bacharelado o quanto o recorte espacial em questão busca a valorização em Geografia pela de uma determinada cultura e/ou um determinado momen- Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) [email protected] to histórico ocorrido no local. Entretanto, podemos dizer a junção de um espaço de consumo e lazer com um patrimônio cultural pode ser mais complicado do que aparenta ser. RESUMO Na cidade do Rio de Janeiro uma antiga fábrica de teci- dos tombada como patrimônio cultural da cidade atualmente A cidade do Rio de Janeiro resguarda sua memória ur- abriga um shopping center. Apesar do tombamento, o atual bana de diversas maneiras. Uma delas consiste no processo empreendimento existente no local omite o passado pro- de “patrimonialização” de antigos espaços produtivos que dutivo que envolvia toda uma territorialidade sobre os fun- ainda existem na cidade. Apesar do processo, algumas das cionários da fábrica. A administração fabril não dispensava antigas fábricas existentes na cidade ainda não contam com ações para ordenar o espaço ao seu redor, buscando controlar o resgate das diferentes práticas socioespaciais ocorridas em e influenciar seus funcionários em suas práticas produtivas seus espaços produtivos. A sede da Cia. Nacional de Tecidos das mais diversas formas possíveis. Nesta perspectiva o dev- Nova América é um exemplo. Por mais que atualmente a ido trabalho tem por objetivo a análise da omissão dos fatos antiga fábrica seja altamente frequentada pela população ocorridos na antiga sede da Cia. de Tecidos Nova América, hoje carioca (por abrigar um shopping center) este patrimônio compreendida como um importante shopping center e pat- cultural da cidade ainda não é totalmente conhecido e/ou rimônio cultural carioca. reconhecido pela população local. As antigas práticas de Como metodologia preferimos seguir a ideia da dia- controle do operariado suburbano ocorridas na fábrica du- cronia espacial, método que busca comparar o passado e o rante a década de 1940 não fazem parte da memória social presente de um mesmo recorte espacial (SILVA, 2007). Neste local, permanecendo omitida para aqueles quem transitam caso aplicamos o método buscando resgatar o passado do pela antiga fábrica de tecidos atualmente. Logo, o presente recorte espacial escolhido por meio de um levantamento trabalho busca demonstrar como os atuais usuários da fábri- bibliográfico e documental sobre o atual patrimônio carioca ca não reconhecem as memórias existentes sobre a mesma, existente no Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil rememorando as práticas de controle laboral ocorridas na e no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. O resgate doc- Nova América durante a década de 1940 e expondo para seus umental busca demonstrar: como ocorria a territorialidade atuais usuários. O resultado da pesquisa traduz a omissão e/ da administração fabril da Cia de Tecidos Nova América no ou a alienação existente sobre os diferentes espaços na cidade recorte espacial em que se encontrava inserida; como eram as responsáveis pela memória urbana carioca. relações de trabalho e o controle laboral existente produzido pela mesma administração; e quais eram as demais formas Palavras chave: Geografia; Memória; Operar- de territorialidades presentes na vida dos operários da Nova iado; Patrimônio Cultural. América no período compreendido entre 1944 e 1945. Para a análise do atual momento da fábrica, como shop- INTRODUÇÃO ping center e patrimônio cultural da cidade, preferimos por utilizar de registros fotográficos feitos por meio de trabalhos Nos espaços de lazer e consumo, como os shoppings de campo, a fim de demonstrar como a mais recente função centers, diferentes tipos de pensamentos surgem em nos- presente no local se apropria do recorte espacial e quais são sas mentes: fazer compras, encontrar amigos, se alimentar as suas práticas e ações de marketing envolvendo a antiga na praça de alimentação, ir ao cinema, venerar e vivenciar fábrica.

79 O objetivo central do trabalho parte da premissa de Das fábricas instaladas nos bairros ditos anteriormente, que há uma omissão do controle laboral ocorrido na antiga podemos destacar a General Eletric em 1921, a Cisper em fábrica e que a sua mais recente função não ajuda no resgate 1917, a Companhia Progresso Industrial do Brasil (conheci- da memória do patrimônio cultural em questão. O atual em- da também como Fábrica Bangu) em 1889, e a Companhia preendimento existente no local conta com um marketing Nacional de Tecidos Nova América, no ano de 1924 (ABREU, cultural que busca resgatar em partes, mas não em sua total- 2006). idade, o passado fabril. Dessa forma, dividiremos o trabalho O setor têxtil acabou sendo um expoente dentre as novas em três partes: a cidade do Rio de Janeiro e a sua expansão fábricas e indústrias que surgiram nos subúrbios, buscando urbana em direção aos subúrbios; o surgimento da Cia. de se instalar em terrenos extensos e com particularidades que Tecidos Nova América e as suas práticas de controle laboral; e, visavam beneficiar suas atividades. Esse processo de escolha por fim, a troca de função e a omissão do trabalho e controle obedecia a certo padrão de organização espacial, buscando laboral ocorridos no patrimônio cultural da cidade. instalar as fábricas “junto às fontes de energia hidráulica e de águas límpidas necessárias às suas diversas operações fabris” DESENVOLVIMENTO (CORRÊA, 1995, p. 53). Após a instalação nos subúrbios, as fábricas e indústrias O Subúrbio Carioca e o Surgimento de um Território passaram a exercer influência nas áreas em que ocuparam, Fabril transformando o modo de vida local e introduzindo novos Durante décadas a cidade do Rio de Janeiro se limitou à elementos ao espaço, sendo responsáveis pela urbanização e sua área central, sendo delimitada fisicamente pelos morros pelo controle de um subúrbio que ainda era visto como rural de São Bento, Castelo, Conceição e Santo Antônio. Mesmo (CARVALHO, 1990). tendo sido capital da colônia e do país durante décadas, o seu A ausência de ações do Estado sobre os subúrbios e so- crescimento e expansão enquanto cidade pode ser datada a bre as atividades fabris que passaram a surgir neste recorte partir do século XIX, quando deixa de se localizar preferen- da cidade acabou gerando uma liberdade para que as ativi- cialmente em sua área central, indo em direção a novas lo- dades produtivas urbanizassem e controlassem os subúrbios calidades presentes nos subúrbios da cidade (ABREU, 2006). de acordo com a sua própria lógica produtiva. Foi nesta per- Uma das principais mudanças ocorridas na cidade, a par- spectiva que a administração da Cia. de Tecidos Nova América tir do final do século XIX e início do XX, foi o rápido surgimen- fundamentou sua produção, urbanizando e controlando o to das atividades fabris nos subúrbios da capital fluminense, espaço em que a fábrica estava inserida de acordo com a sua buscando os melhores espaços possíveis para estabelecerem própria lógica fabril. seus processos produtivos (Ibidem, 2006). O direcionamento A Cia. de Tecidos Nova América foi uma fábrica têxtil cri- dessas fábricas para o subúrbio da cidade acarretou trans- ada no antigo distrito de Inhaúma (figura 1), zona norte da formações diretas no espaço suburbano, possibilitando a cidade do Rio de Janeiro, durante o ano de 1924. O modelo construção de uma nova imagem e identidade para as locali- arquitetônico da fábrica apresentava características que lem- dades beneficiadas pela criação destes espaços fabris. bravam às antigas fábricas manchesterianas do final do sécu- A partir desta lógica não podemos esquecer que as fábri- lo XIX, com grandes fachadas em alvenaria e tijolos aparentes cas desempenharam um papel importante ao possibilitar a (DEZEN-KEMPTER, 2012), características estas que podem ser abertura de novos espaços “urbanos”, criando bairros fabris percebidas na figura 2. sobre as antigas chácaras e engenhos existentes na área sub- urbana da cidade. Bairros como Jacarezinho, Maria da Graça e Del Castilho são exemplos, assim como Bangu, este último retratado por Oliveira (2006), foram pioneiros fabris dentro do subúrbio da cidade.

80 produzido e distribuído pela administração da fábrica para seus operários entre as décadas de 1940 e 1950. Ele busca- va relatar tanto os acontecimentos do momento na fábrica como, também, resgatar os acontecimentos ocorridos no es- paço fabril em décadas anteriores à sua circulação.

Figura 1: Distrito de Inhaúma Fonte: acervo pessoal do autor.

Figura 2: A Cia. Nacional de Tecidos Nova América. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil.

A Nova América acabou sendo “não somente a maior fon- te de emprego do bairro como, também, o eixo comunitário a partir de onde surgiu uma vila operária, escola, ambulatório, posto policial, áreas de lazer etc.” (VIEIRA, 2008, p.3). Figura 3: Capa de um dos exemplares do Boletim Nova América. Não diferentemente das outras fábricas têxteis de seu Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil. período, os fundadores da Nova América também buscaram instalar a fábrica em um espaço em que pudesse beneficiar A ferramenta comunicativa apresenta em suas matérias, sua produção, utilizando da hidrografia existente no subúrbio reportagens e colunas algumas das práticas de controle di- da cidade. Neste caso a fábrica acabou sendo criada em um retos e indiretos feitos pela administração fabril sobre o seu ponto estratégico que era próximo dos rios Faria-Timbó e Jac- operariado. Sob esta lógica podemos dizer que o boletim era aré (ABREU, 2006). Outro motivo que influenciou a instalação uma ferramenta importante para fortalecer o território disci- da mesma em Inhaúma foi a proximidade que a fábrica teria plinador criado pela fábrica. com a linha férrea Rio D’ouro. Este era um fator locacional im- Todo território é “fundamentalmente um espaço defini- portante para manter a produção. do e delimitado por e a partir de relações de poder” (SOUZA, A ausência de uma fiscalização do Estado sobre as ativ- 2014 p.78). Para Haesbaert não muito diferente, idades suburbanas permitiu que a administração da Nova Tem a ver com poder, mas não apenas ao América criasse um território de controle e disciplina laboral tradicional “poder político”. Ele diz respeito sobre o recorte espacial em que estava inserida. Essa carac- tanto ao poder no sentido mais concreto, terística da fábrica pode ser percebida por alguns documen- de dominação, quanto ao poder no sentido tos ainda existentes, como o periódico fabril “Boletim Nova mais simbólico, de apropriação. (HAES- América” (figura 3). O boletim foi um periódico informativo BAERT, 2007, p.20-21)

81 Pelos motivos descritos anteriormente pelos autores era necessário disciplinar a mão de obra existente na fábri- podemos dizer que a estratégia territorial era a utilizada ca, demonstrando aos operários quais atos poderiam e não pela Nova América para controlar seus trabalhadores, sendo poderiam ser executados pelos mesmos no recorte espacial reforçado a partir das informações contidas em seu boletim. controlado pela administração fabril. A tática de utilizar boletins e/ou periódicos informativos Para reforçar a tendência anteriormente descrita os como instrumento de fortalecimento de um território criado primeiros números do boletim traziam entrevistas com anti- por uma empresa também foi observada por Corrêa em seu gos funcionários da fábrica (que poderia já estar aposentados trabalho sobre uma indústria tabagista brasileira. Segundo o ou não), ficando disposta na coluna “Velha Guarda”. A função autor, da coluna era bastante objetiva: contar a história ou a “biogra- fia laboral” de um antigo trabalhador exemplar da fábrica que Na preservação do território fumicultor várias práticas são postas em ação. Uma servisse de exemplo para os demais. delas consiste na distribuição gratuita aos Em uma das primeiras entrevistas encontradas no bo- produtores de fumo do jornal O produtor letim o destaque foi para o já aposentado mestre de oficina, de fumo, fundado em 1982 e editado pelo pois “elê, calmo por sua natureza e silencioso por tendência, Departamento de Fumo da Souza Cruz lo- que nunca provocou a menor agitação durante os vinte anos calizado em Florianópolis. Em 1989 foram de trabalho permanente”48. Além de alegar sua passividade distribuídos 76 mil exemplares a cada dois como uma característica exemplar, o boletim também julga a meses, abordando temas ligados à fumicul- aposentadoria do mestre de oficina merecida, já que a mesma tura e assuntos variados como notas sociais foi “um prêmio a sua atuação exemplar durante os vinte anos de trabalho perfeito”49. passatempos. (CORRÊA, 1998, p.253) Em outra entrevista disposta na “Velha Guarda” o fun- cionário entrevistado é indicado pelo boletim como “fiel, A existência dos boletins informativos da Nova América atento e intransigente noção do cumprimento do dever”. O consistia na mesma tática descrita anteriormente pelo autor: mesmo funcionário comenta rapidamente na entrevista que preservar o território criado, controlando e influenciando a presenciou punições físicas em algumas fábricas suburbanas vida de seus operários no mesmo ritmo produtivo dos teares para aqueles que não atendessem ao que era exigido, mas (PIMENTA, 2007). garante que em toda sua vida laboral: “jamais sofri a menor Demonstraremos então, a seguir, trechos extraídos do punição, mesmo a de simples advertência”50, complementan- Boletim Nova América com algumas das práticas e estratégias do com “estas costas, porém, a correia nunca lambeu”51. Esta criadas pela antiga administração fabril buscando o controle frase demonstra a existência de castigos mais severos sobre parcial e/ou total das ações de seus funcionários sobre o re- os funcionários que não seguissem as ordens dadas pelas ad- corte espacial em que estava inserida. Podemos adiantar que ministrações fabris. Apesar do antigo operário afirmar que o essas práticas não serão as que levarão ao tombamento da caso não ocorreu na Nova América não podemos excluir a id- fábrica como um patrimônio cultural carioca e nem mesmo eia contida na entrevista: os operários não deveriam reclamar serão lembradas após o tombamento. das condições de trabalho que tinham, já que existiam piores condições de trabalho em outras fábricas. Contestar a admin- Funcionário exemplar não recebe punições istração fabril seria um erro da parte do operariado. A principal característica do Boletim Nova América era a de ser um veículo mediador entre a fábrica e operaria- do, buscando fortalecer os laços entre os dois pontos chave 48 Boletim Nova América, N.1, 1945, p.5. de funcionamento da mesma. Entretanto, o instrumento 49 Boletim Nova América, N.1, 1945, p.5. informativo possuía também a característica de cativar 50 Boletim Nova América, N.3, 1945, p.5. seus funcionários para serem “bons” operários. Para isso 51 Boletim Nova América, N.3, 1945, p.8. 82 A intimidação direta sobre os funcionários A matéria continua criticando outros setores pelas per- das produtivas. Na fiação, por exemplo, o boletim justifica No boletim existiam também informes que objetivavam que os trabalhadores são culpados pela perda de, aproximad- intimidar os funcionários sobre as atividades que os mesmos amente, “dois anos, oito meses e dez dias de afastamento do cumpriam dentro do espaço fabril, demonstrando como eles trabalho!”55. prejudicavam a fábrica ao deixarem de trabalhar, principal- Para forçar os operários a trabalharem com mais “dis- mente devido aos acidentes de trabalho. Uma das táticas ciplina”, a administração fabril intimida-os utilizando das usadas naquele momento para retirar a responsabilidade da perdas salariais como um argumento para não deixarem de administração fabril sobre os acidentes de trabalho era a de trabalhar, já que “os próprios acidentados sentem o prejuízo culpar os funcionários pelos acidentes, já que o boletim jus- que sofrem, quando comparam o que perceberiam no seguro tifica que seus trabalhadores não se comportavam adequad- e o que receberiam, se estivessem trabalhando”56. Por fim, a amente nos momentos de labor como a fábrica determinava. administração pede que seus trabalhadores não esqueçam a Comprovando esta ideia, em uma das matérias de capa o principal norma existente na fábrica, essencial para manter a periódico ressalta que “nas horas de serviço devemos pensar ordem, a disciplina e não causar distúrbios financeiros e pro- só no trabalho”52. A mesma tática ocorre em uma das entre- dutivos: “QUEM TRABALHA COM ATENÇÃO GANHA BEM O SEU vistas na coluna “Velha Guarda”, onde uma antiga funcionária FEIJÃO” 57. A matéria pressionando os operários a trabalhar- da fábrica conta o seu sucesso como profissional: em com mais disciplina e a norma descrita anteriormente Durante o tempo todo nunca sofri o menor demonstram o quanto a fábrica dispunha do boletim como acidente de trabalho, o menor arranhão que uma ferramenta de poder utilizada para controlar e intimidar seja. Isto porque, trabalho atentamente, seus operários durante os momentos de labor. Era preciso sem desviar a minha atenção para outros moldar a massa produtiva para gerar mais lucros e menos assuntos.53 distúrbios no espaço produtivo.

O mesmo pensamento também foi reforçado no boletim Os mestres dos setores enquanto vigilantes da ad- número cinco (1944), impondo aos funcionários que não per- ministração fabril dessem o foco no trabalho, mantendo a produção em dia e Uma das recomendações feitas pela fábrica em um dos evitando possíveis afastamentos da produção. Para isso era números do boletim foi incentivar o uso de uniformes nos preciso que o operário trabalhasse de forma atenciosa para diferentes setores fabris visando diminuir os acidentes de que não gerasse mais perdas produtivas que a fábrica já tinha: trabalho que ocorriam na Nova América. Não obstante, o que Você por exemplo, colega da tecelagem - em chama a atenção neste informe não é a idéia expressa sobre o sua secção, durante o ano findo, foram per- uso dos uniformes, mas o papel dos mestres de setores dentro didas a bagatela de 9378 horas de trabalho da fábrica: (...) se dividirmos estes números em dias de O uniforme traz todas as vantagens sobre trabalho, chegaremos a um resultado curio- a confusão de vestimentas que todos os so: perderam-se durante o ano, que tem 365 dias, algumas das quais pitorescas e outras, o equivalente a 1172 dias de trabalho [que não indecentes, apenas porque há, neste correspondem a aproximadamente] três particular, uma permanente vigilância dos anos e dois meses de completa inatividade! 54 mestres. 58

52 Boletim Nova América, N.4, 1945, p.1. 55 Boletim Nova América, N.5, 1945, p.6. 53 Boletim Nova América, N.6, 1945, p.5. 56 Boletim Nova América, N.5, 1945, p.6. 54 Boletim Nova América, N.5, 1945, p.6. O destaque na citação é do 57 Boletim Nova América, N.5, 1945, p.6 autor do artigo. 58 Boletim Nova América, N.7, 1945, p.6. 83 A “permanente vigilância dos mestres” é o ponto chave. Em 1945 houve uma final de campeonato de futebol em Esse trecho indica que os mestres dos setores fabris eram que ocorreu uma grande confusão entre os jogadores e os os responsáveis pelo controle dentro dos setores da fábrica, torcedores que estavam presentes. Segundo o boletim, tanto incluindo até mesmo as vestimentas dos funcionários. Logo, os jogadores como os torcedores eram, em sua maioria, op- o papel dos mestres de setores era o de vigiar os diferentes erários da fábrica. Apesar da não explicação sobre o que levou espaços pertencentes à administração fabril, reproduzindo o ao conflito, os redatores do periódico fabril fizeram questão poder e a territorialidade da mesma nos diferentes setores da de afirmar que os envolvidos na confusão sofreram punições. fábrica. Segundo o boletim,

O controle no contexto familiar Não queremos comentar o castigo imposto aos colegas punidos (...) de vez que acre- Outra coluna existente nos primeiros boletins era a “Pá- ditamos que, já foi para os faltosos muito ginas Femininas”. Nesta a administração da fábrica buscava penoso (...) apenas os mal intencionados orientar suas leitoras nas atividades laborais e do lar. Torna-se discordarão do critério adotado pela admi- importante frisar que muitos dos operários tinham filhos nistração do club. As penalidades impostas e estes poderiam seguir o mesmo caminho dos pais: serem foram justas e necessárias. 60 futuros funcionários da Nova América. Em uma das matérias existentes na “Páginas Femininas”, a coluna faz a seguinte ad- O boletim afirma que as punições sofridas pelos fun- vertência para as mães operárias: cionários envolvidos foram necessárias sem dizer quais Não permita que seu filho se habitue a ver punições foram estas e quais motivos levaram as mesmas. satisfeitos todos os seus desejos. As crianças No entanto, a matéria faz questão de demonstrar o poder da muito mimadas são quase sempre teimosas, administração fabril, revelando o controle e a disciplina pre- desobedientes e respondonas (...) satisfei- sentes até mesmo nas atividades fora do contexto produtivo. tas em todas as suas vontades, tornam-se Em síntese, pôde-se perceber que a administração da rebeldes, quando qualquer coisa lhes é ne- Cia. de Tecidos Nova América apresentava um forte controle gada. 59 laboral sobre seu operariado, não dispensando ações que visassem reforçar a sua territorialidade no cotidiano de seus Este fragmento demonstra como o controle fabril per- trabalhadores em diferentes atividades laborais ou não. meava os lares, buscando intervir no comportamento daque- Nenhuma das características anteriores foram resgata- les que poderiam ser os futuros funcionários da fábrica desde das ou levadas em consideração durante o tombamento da cedo. A disciplina deveria ser trabalhada desde o berço. fábrica enquanto um bem cultural carioca. Logo, buscaremos agora demonstrar a troca de função ocorrida na fábrica e a omissão de parte do passado fabril que revelamos neste tra- Punições nas atividades de lazer balho. As atividades de lazer também não escapavam ao con- trole fabril. Os momentos de lazer do operariado ocorriam A Troca de Função e a Omissão do Controle Laboral na Associação Atlética Nova América, um de clube destinado em um Bem Cultural ao lazer dos trabalhadores. A Associação Atlética incentivava A Cia. de Tecidos Nova América continuou suas atividades os operários a praticarem atividades físicas em prol da saúde na cidade do Rio de Janeiro até o início da década de 1990. coletiva, organizando campeonatos internos de diferentes No ano de 1991 a fábrica finalizou sua produção na capital esportes entre os setores da fábrica. fluminense, sendo transferida para o município de Duque de Caxias, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro.

59 Boletim Nova América, N.4, 1945, p.8. 60 Boletim Nova América, N.4, 1945, p.14. 84 Apesar do fim das atividades produtivas a estrutura fabril permaneceu no mesmo espaço, o que foi o suficiente para atrair uma nova função para a localidade: um shopping center. Com o surgimento da nova função a estrutura fabril fora preservada, contando agora com novos elementos liga- dos ao setor comercial e de lazer. A antiga fábrica acabou tor- nando-se mais um exemplo do fenômeno urbano denomina- do refuncionalização, processo que consiste naTransformação de funções de elementos arquitetônicos de um determinado processo histórico pretérito. A refuncionalização é uma con- sequência natural da própria reestruturação socioespacial de determinada cidade, liderada por alguns grupos sociais. Figura 6: A fábrica e um anexo pós moderno. Na frente maquinários da Dependendo da força dos grupos sociais e de suas inten- Nova América expostos. Fonte: acervo pessoal dos autores cionalidades, esse processo pode abranger escalas distintas, como edifícios, bairros, cidades ou mesmo regiões. (SOTRATTI, No ano de 2015 mais uma característica foi inserida ao 2016) local: a antiga fábrica foi tombada como um bem patrimonial No caso estudado neste trabalho, o antigo estabelec- da cidade do Rio de Janeiro61. Neste processo foi considerado imento produtivo atraiu investidores que viram na fábrica que o antigo estabelecimento fabril é um bem de inestimável alguns fatores locacionais importantes: proximidade de duas valor arquitetônico, arqueológico, cultural e histórico presente grandes vias de circulação de automóveis e a presença de no subúrbio carioca, ajudando a preservar a memória fabril uma estação de metrô próxima, atualmente conhecida como da cidade. “Nova América / Del Castilho”. Ambos os fatores garantiram Torna-se importante frisar também que, não só as for- ao empreendimento fácil acesso, alimentando a nova função mas, como todo o recorte espacial pertencente à antiga cia. com usuários provenientes de diferentes regiões da cidade. de tecidos passaram a ser protegidos pelo tombamento. Des- Atualmente o shopping conta com mais de vinte anos de ta forma, a antiga fábrica tornou-se uma rugosidade presente existência e o sucesso enquanto empreendimento comercial na cidade, trazendo para aqueles que a vivenciam atualmente concretizou a nova funcionalidade da antiga fábrica, que hoje a ideia de como era a vida laboral em um período pretérito. conta com um prédio em anexo pós moderno, um condomínio Todavia, essa vivência ocorre sem resgatar a totalidade dos residencial, um hotel de luxo e uma universidade privada. acontecimentos ocorridos no recorte espacial. Sendo assim, a patrimonialização da antiga fábrica não foi acompanhada por um resgate memorial dos fatos anteriormente citados neste trabalho, omitindo parte de um passado ainda obscuro e que não nos é lembrado. Hoje a antiga fábrica é utilizada enquanto um aparelho urbano cultural de lazer e consumo, interpretada de uma nova forma por aqueles que visitam e/ou trabalham no lo- cal. Houve então a sua reinterpretação simbólica, importante para manter a vitalidade do novo empreendimento, já que o passado do espaço em questão guarda alguns aspectos que

Figura 5: o shopping e os novos elementos na paisagem da antiga 61 Disponível em:. Acesso em: 08 de Nov. de 2016. 85 podem não agradar a todos. O controle laboral acabou sendo istente no local. Hoje ela se apresenta como um “novo” ícone omitido para beneficiar a sua mais recente função. Podemos na cidade que representa o passado fabril carioca em sua dizer que forma, mas sendo reinterpretada graças a sua nova função.

A fachada e o interior de um prédio podem CONCLUSÕES ser remodelados, alterando-se a sua icono- grafia de acordo com a intenção de quem O presente trabalho demonstrou como um patrimônio pretende reciclar seus significados sobre o cultural de uma cidade pode omitir seu passado, apesar de ser passado, ‘apagando’ a iconografia cuja in- um ícone presente em uma cidade representando a cultura e tenção era a de gerar outra interpretação. a memória da mesma. Mais do que uma estátua ou memorial, De forma crítica podemos entender que a Geografia real- um prédio apresenta uma flexibilidade que mente está em toda parte (COSGROVE, 2012). No entanto, a permite uma refuncionalização simbólica. Geografia do nosso cotidiano guarda um passado que nem (CORRÊA, 2007, p. 13) sempre nos é revelado, omitindo grande parte dos acontec- imentos ocorridos em um determinado recorte espacial. Desta forma, a antiga fábrica foi ressignificada dentro A Fábrica da Cia. de Tecidos Nova América representa a do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro por meio do novo cultura suburbana carioca que surgira no início do século XX empreendimento existente no local, que buscou uma nova e por este motivo foi tombada como um bem cultural da ci- interpretação para a localidade. dade. No entanto, os processos de patrimonialização precisam De fato, o mais recente empreendimento no local utiliza ser mais críticos e reflexivos. Pôde-se perceber que o simples do espaço fabril para seu próprio marketing, sendo possível uso de um patrimônio cultural não deve ficar somente em sua ver isso em suas diferentes propagandas e chamadas pub- representação, mas deve ser usado de forma que possa auxil- licitárias, reforçando que a fábrica é uma das poucas formas iar no entendimento das ações ocorridas no local. ainda existentes na cidade que representam o passado e a cul- Não podemos deixar de destacar que nosso trabalho tura fabril carioca. No entanto, estas estratégias de marketing também busca um mundo melhor em relação às práticas lab- são limitadas somente à ideia de utilizar um bem patrimonial orais. Que todo tipo de atividade laboral não possa ser omiti- da cidade para fortalecer o sucesso do empreendimento at- da, nem mesmo as práticas que foram feitas para controlar ualmente presente no espaço em questão e não resgatam a os trabalhadores. Estas últimas são exemplos que devemos totalidade dos fatos ocorridos na mesma fábrica onde hoje se sempre relembrar para que não sejam reproduzidas nova- apresenta o shopping center. Surge então um espetáculo so- mente. Aqui fazemos uma espécie de papel “ordinário”, como bre o antigo espaço fabril, onde “o que aparece é bom, o que diz Certeau (1994). é bom aparece” (DEBORD, 1997, p. 16-17), eliminando assim A pesquisa em questão continuará, buscando mais fatos os aspectos ruins do passado fabril em questão. Desta forma, e informações sobre os acontecimentos ocorridos na antiga nos juntamos ao pensamento de Lefebvre (2015): “a cotidian- fábrica para comparar com a nova atividade presente no local. idade parece um conto de fadas” (p.32). Esperamos com este trabalho contribuir não só para a Geo- Dos poucos resgates existentes no estabelecimento es- grafia Urbana da cidade do Rio de Janeiro bem como para um tão presentes dois mini memoriais: um deles traz algumas olhar mais crítico sobre os patrimônios culturais e as práticas fotos de como ocorreu a refuncionalização do local, não de controle laboral que ocorreram e ainda ocorrem sobre os aprofundando sobre o passado da fábrica; o segundo conta trabalhadores em diferentes espaços laborais em pleno século com máquinas utilizadas pela Cia. de Tecidos (figura 6), sem XXI. acrescentar maiores informações. De forma objetiva, a Nova América passou a ser um ter- ritório diegético, um recorte espacial que lembra simbolica- mente (mas não totalmente) o antigo território produtivo ex-

86 DISMEMBERMENTS OF A SOCIO-SPATIAL CARVALHO, Delgado de. História da Cidade do Rio de PATRIMONY:THE NOVA AMÉRICA CASE Janeiro. Rio de Janeiro: Secret. Mun. de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, 1990. 126p. Renan Caldas Galhardo Azevedo Graduating in Geography by University of the State CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes of Rio de Janeiro (UERJ) de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. [email protected] CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução Abstract Teresa Castro.Lisboa: Editora Edições 70, 2000. 245p. The city of Rio de Janeiro protects its urban memory in several ways. One of them consists of the process of “patrimo- ______. O Urbanismo: utopias e re- nialization” of old productive spaces that still exist in the city. alidades, uma antologia. São Paulo: Editora Perspectiva, Despite the process, some of the old factories in the city still 1979. 350p. do not have the rescue of the different socio-spatial practices that take place in their productive spaces. The headquarters of CORRÊA, Roberto Lobato. Formas Simbólicas e Espaço: the National Company of Textiles New America is an example. Algumas Considerações. Revista GEOgraphia,Niterói: UFF, Although today the old factory is highly frequented by the v.9, n. 17, p.7-18, 2007. people of Rio (because it houses a mall), this cultural heritage of the city is not yet fully known and / or recognized by the ______. O Espaço Urbano. 3ª Ed. São local population. The old practices of control of the suburban Paulo: Editora Ática, 1995. 87p. workmanship that took place in the factory during the 1940s are not part of the local social memory, remaining omitted for ______. Territorialidade e Corporação: those who transit through the old tissue factory today. There- um exemplo. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia.; fore, the present work seeks to demonstrate how the current SILVEIRA, Maria Laura (Org.). Território: globalização e users of the factory do not recognize the existing memories of fragmentação. 4ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. the factory, recalling the labor control practices that occurred p.251-257. in New America during the 1940s and exposing them to their current users. The result of the research reflects the omission COSGROVE, Denis. A Geografia Está em Toda Parte: cultu- and / or existing alienation about the different spaces in the ra e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, Roberto city responsible for the urban memory of Rio. Lobato.; ROSENDAHL, Zeny (org.). Geografia Cultural: uma antologia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p.219-237. Keywords: Geography; Memory; Factory Worker; Cultural Heritage. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Ja- neiro: Editora Contraponto, 1997. 240p. REFERÊNCIAS DEZEN-KEMPTER, Eloisa. Territórios Fabris Resilientes: ABREU, Maurício de A. A Evolução Urbana do cinco casos a considerar. In: Anais do VI Colóquio L. Amer- Rio de Janeiro. 4ª Ed. Rio de Janeiro: IPP, 2006. icano sobre Recuperação e Preservação do Patrimônio 156p. industrial, Vol.1, 2012, São Paulo. p.1-22. CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Cidade. 9ª Ed. 2ª Reim- FRIDMAN, Fania. Freguesias fluminenses ao final do Se- pressão. São Paulo: Contexto, 2015. 98p. tecentos. Revista IEB, São Paulo, n.48, p.91-143, 2009.

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88 ENTRE O MITO E O MÚSCULO: Palavras-chave: Palavras-chaves: Método GDS; Exu; Dança afro-brasileira; Cultura EXU É BRASILEIRO! afro-ameríndia; Formação profissional.

Wanja Bastos Mestra em Saúde Pública, pela Escola Nacional INTRODUÇÃO de Saúde Pública Sérgio Arouca, pesquisadora no campo da motricidade humana, terapeuta corporal e Ser tocado pelas coisas da vida é uma forma de professora de dança afro-brasileira. aprendizado decorrente da experiência. Diferentemente dos [email protected] tradicionais métodos científicos ou da reflexividade crítica, ambos fontes geradoras de informação/opinião da atuali- RESUMO dade, a experiência acontece pela via da sensibilização. Como Este trabalho é parte da pesquisa “Entre o mito e o estratégia pedagógica, neste artigo serão adotadas imagens músculo : dança dos orixás e cadeias GDS” – na qual rela- que estimulem a imaginação dos leitores, tendo em vista ciono a dança afro-brasileira, criada por Mercedes Baptista, à ressaltar a importância dos aspectos sensíveis no cuidado proposta da fisioterapia, Método GDS. Essa união foi forjada a do corpo. É nessa ordem que adotamos, no decorrer da apre- partir de uma memória familiar, vivida em um terreiro de um- sentação, a expressão popular: “Para bom entendedor banda, onde os santos católicos e as entidades afro-amerín- pingo é letra”. “Ler pingos” é aprender com a experiência. dias conviviam no cantar-dançar-batucar, como explica Zeca O presente trabalho foi idealizado a partir de uma Ligiéro. Neste artigo, apresento o relevo do corpo diaspórico memória individual, ou seja, uma memória caracterizada africano no Brasil, potente e insubmisso, tal e qual o corpo das como experiência interior e subjetiva, à qual faltaria a di- danças na mitologia de Exu. Esse deus iorubá, transgressor mensão visível e tangível da memória social: o documento. por excelência, é fisicamente apresentado como aquele capaz (Gondar, 2006, p.3). A associação das memórias individuais, de gestos rítmicos e transitórios, devido às ações dos quad- em campos distintos,forjou a proposta de uma outra ed- ríceps, ilio, psoas, escaleno, entre outros da cadeia muscular ucação para a motricidade humana, no espaço universitário. anteroposterior, do Método GDS. Em uma leitura específica Assim, estudos de biomecânica voltados para a cultura af- desse método, é essa cadeia muscular que realiza movimen- ro-ameríndia, no Brasil, foram alimentados pelas lembranças tos, como: a ginga da capoeira, o samba dos passistas, o drible da autora: nas aulas de dança afro-brasileira, nas classes de do craque e o ritmo falado de Riobaldo, em “Grande Sertão formação do Método GDS e principalmente na infância vivida Veredas”. A partir disso, defendemos que Exu é brasileiro! Mu- no terreiro de umbanda de seus avós. niz Sodré é a referência para o questionamento de uma edu- Bondía (2002) propõe uma nova forma de pensar a ed- cação colonizadora que se empenhou em apagar a identidade ucação, onde “O saber de experiência se dá na relação entre o de uma cultura miscigenada e que nos dias de hoje ainda conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma segue o caduco modelo pedagógico europeu, desde sempre, espécie de mediação entre ambos.” (p. 26). Nesse sentido, um paradigma intolerante a impor uma disciplina sobre cor- entendemos o corpo como o espaço da experiência identifi- pos que buscam sua expressividade. Trazemos uma proposta cado, portanto, como um importante canal para o acesso de de estudo que ressignifique a educação do movimento e sua saberes. Ainda, o autor espanhol sugere as palavras experiên- expressividade, a partir de Exu, pois é com ele que tudo se cia/sentido para pensar a educação, uma vez que o saber transforma ou inicia. Sugerimos, assim, a inserção de saberes, pode ser compartilhado por uma experiência estética. Nesse gestos e expressões da cultura afro-ameríndia nas universi- sentido, ele afirma que para ser tocado pelo mundo é preciso, dades para que os profissionais graduados reconheçam, res- principalmente, de tempo e não de excesso de informação. O peitem e disseminem, uma cultura diversa, em detrimento de saber da informação não é o mesmo saber da experiência. um pensamento único eurocêntrico. As primeiras experiências vividas pela autora, referentes ao tema desenvolvido neste trabalho, aconteceram no meio familiar, especificamente com os avós maternos, Francisco

89 e Iracema. Eles moravam em um apartamento no Conjunto Somados aos sons dos instrumentos, havia as músicas e Residencial IAPI da Penha, onde o Terreiro Caboclo Curupari os passos de dança, pois alguns toques servem para mais de também se assentava. Um lugar cheio de sons, danças, chei- um orixá. E não eram apenas os movimentos dos santos dos ros e cores, tudo relacionado à macumba carioca. O entendi- terreiros, tinham as danças populares brasileiras como jongo, mento acerca daquele apartamento 401, como uma rica fon- coco, samba, lundu e frevo. Todas as danças que tocavam os te de conhecimento, parecido com as casas que têm estantes corpos dos dançarinos chegavam antes de qualquer reflex- repletas de livros, se deu décadas mais tarde. Por causa da val- ão ou informação. Em inúmeras ocasiões, essas informações orização dos saberes ocidentais e ao mesmo tempo devido à aconteciam de maneira intuitiva, o professor nem precisava vergonha dos rituais de sua religião, demorou muito para que falar que na dança de Ogum era para se projetar mais para a neta de dona Iracema entendesse como as outras famílias frente; Xangô era pra cima; na de Obaluaê, o Velho, o corpo da década de setenta se organizavam. voltava-se para chão. De tanto dançar, os “pingos eram lidos” Em sua casa, além de não estar vivendo com o pai, for- com o corpo todo. agido político, a comunicação acontecia de uma forma espe- Associando os dois espaços produtores de subjetividade, cial, pois nem tudo era escrito ou lido, às vezes era sonhado, o terreiro e as aulas de dança afro-brasileira, Simas e Rufino intuído, jogado nos búzios. O sentimento de ignorância era (2018, p.63) explicam que: “O tambor também é livro e o agui- presente e a menina se achava ‘meio burrinha’, por não ter re- davi – vareta sagrada que percute o couro – é caneta poderosa cebido muitas informações dos livros e por não ter dado tanta para contar as aventuras do mundo.” importância aos conhecimentos da escola. Anos mais tarde, As experiências da autora nas primeiras aulas de for- porém, ela reconheceu ter sido uma criança feliz que brincava mação do Método GDS são descritas como desagradáveis, por com a molecada na rua, e amava aqueles momentos repletos ela não acompanhar certos raciocínios sobre temas propos- de histórias mágicas. tos pela equipe. Ao mesmo tempo, ela relata que tudo o que Achei o meu umbigo na Dança Afro! Apesar dos primei- era apresentado fazia sentido. E dar sentido às coisas da vida ros quinze anos vividos no terreiro de umbanda, a cultura dos também é uma forma de pensar. orixás só foi percebida pela autora, como cultura africana, na A paixão é uma das condições para se passar pela ex- fase adulta, quando iniciou suas aulas de dança afro-brasilei- periência estética. Na paixão, o sujeito apaixonado não possui ra com o professor e coreógrafo Charles Nelson, herdeiro da o objeto amado, mas é possuído por ele.” (Bondía, 2002, p. Escola de Dança Afro-brasileira de Mercedes Baptista.Então, 26). Com mais de trinta anos de “leitura de pingos” o incer- mais uma vez, ela foi tocada por um mundo de novos saberes, to e inatingível não geravam mais tanta angústia. E foi sob o e reiniciou a“leitura de pingos”. encantamento da performance do professor Ivaldo Bertazzo, As aulas de dança despertavam os sentidos e exigiam durante as primeiras quatro horas das aulas das sextas-fei- muita atenção do corpo. Para compreender qual o gesto prior- ras, quando explicava tudo com a ajuda das histórias sobre itário que realizariam nas aulas, ou apresentações, os dança- a cadeia muscular, que a formação ganhou seriedade. Para rinos ficavam atentos aos sons do toque do atabaque. Os sons associar os aspectos do corpo a atitudes comportamentais conduziam os dançarinos para lugares distintos; a marcação específicas, que é uma das propostas do método, ele contava do opanijé, por exemplo, demandava uma entrega ao solo histórias e dramatizava como ninguém. O segredo dele era (opanijé é o toque de Obaluaê, o Senhor da Terra); as varetas ensinar como tratar de pessoas expressivas com impedimen- (aguidavis) quando começavam a tocar o quebra-pratos, ou tos maiores ou menores, mas nunca tratar apenas de corpos ilu de Iansã (a deusa dos ventos e das tempestades), exigiam de pessoas. movimentos físicos intensos: pular, levantar os braços e des- O pertencimento aos três lugares teve em comum a locamentos rápidos. O toque de ijexá (de Oxum, a deusa dos vivência de experiências, não apenas a execução de práticas. rios, do amor e da beleza) era o momento em que os prati- Para além das informações e reflexões, a memória individual cantes dessa dança aproveitavam para descansar e expressar da autora permitiu uma nova narrativa, com um novo sentido a delicadeza dos gestos. a ser compartilhado.

90 DESENVOLVIMENTO procurar entender, se for para fazer algo em relação a ele, é O mito preferível mimar e acompanhar, até porque, nesse aspecto, Exu se parece com Riobaldo. Desde o início do livro Grande Exu é o início de qualquer movimento, o que transforma. Sertão: Veredas, uma obra com a narrativa tão espinhosa, Ele é o “entre”, o comum, é a própria comunicação. quanto deliciosa, um caminho bom para seguir é não tentar Os mitos sobre este orixá falam do seu aspecto con- entender o Riobaldo ao pé da letra. Esse ‘cabra’ é bom de traditório, são histórias onde encontramos uma divindade acompanhar no ritmo dele: “O corpo não traslada, mas muito potente, capaz de criar e realizar as maiores confusões, mas sabe, adivinha se não entende”.(Rosa, 2001, p. 45). É isso, basta ao mesmo tempo de solucionar os mais difíceis problemas. acompanhar no ritmo! A constante mudança como sua característica fundamental No mundo sagrado dos iorubás, antes de quase todos os cria um terreno fácil para Exu assumir, por um lado, a postura ebós (oferenda) serem entregues, tem que ter Exu! Out- inteligente, repleta de astúcia e sutileza, optando por camin- ro aspecto presente nas lendas dos orixás é a obrigatoriedade hos indiretos, sem entrar em confrontos, fazendo lembrar os que os homens e as divindades têm de alimentar Exu antes capoeiristas que gingam para lá e para cá, confundindo o de qualquer pedido ou festa. Somente depois de alimentado seu adversário, e do nada sai um golpe inesperado e certeiro e agradado, ele se torna parceiro, pronto para mediar a comu- (figura 1). Por outro lado, o orixá que mora nas encruzilhadas, nicação dos homens com os orixás e entre eles também. Exu é nas portas e nos caminhos, pode, de uma hora para outra, a Boca que Tudo Come. tornar-se incontrolável em sua ira. São os momentos em que ele abandona as gentilezas e age com obscenidade, violência, Oxalá é ajudado por Exu divertindo-se em provocar discórdia e disputas entre amigos. No livro Mitologia dos Orixás (Prandi, 2001, pág. 40-41), um dos mitos é Exu ganha poder sobre as Encruzilhadas, onde são resaltados dois assuntos referentes ao orixá: a comida e a morada. Exu era pobre, sem ocupação, perambulava pelo mun- do, não havia qualquer compromisso que o prendesse a uma atividade ou região. De uma hora para outra, Exu passou a frequentar a casa de Oxalá, que paulatinamente foi ficando cada vez mais ocupado com a tarefa de fabricar seres hu- manos para povoar o Aiê (Terra). Mesmo sem muito tempo, o velho orixá recebia muitas visitas que levavam ebós e se encantavam com sua criação e, portanto, Exu não era o único Fig. 1 Mestre Leopoldina - http://velhosmestres.com/br/destaques-26 a frequentar aquela casa. Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos. Por ser a própria comunicação e o gerador de movimen- to, suas alterações repentinas dificultam qualquer tentativa Exu prestava muita atenção na modelagem de defini-lo. Fazendo uma exuzice com as palavras dos Titãs, e aprendeu como Oxalá fabricava Exu “não é o que não pode ser...mas é.” Por essas e outras, é bom agradá-lo, tê-lo próximo como parceiro, e desistir desse as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens negócio de entender Exu. O que precisamos saber é que sem ele nada se altera, somente Exu pode transformar. Um dito as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina muito comum do povo de santo é: Exu é aquele que mata das mulheres uma ave ontem, mas com a pedra que atirou hoje. Melhor nem

91 Durante todo esse tempo, sem fazer qualquer pergunta atleta de futebol como Mané Garrincha (figura 16), quando ao nosso criador, Exu colocava-se sempre atento a cada detal- criava aquele instante preciso que escancarava a defesa do he, até que aprendeu tudo. adversário, e este, sem saber o que fazer direito, se resignava a assistir o Mané de pernas tortas, bola presa em seus pés, Um dia Oxalá disse a Exu para ir postar-se na encruzilhada driblando e avançando em direção ao gol. No momento em que Garrincha (fig.2) pegava a bola o estádio urrava de prazer; por onde passavam os que vinham à sua antes mesmo de começar o show de dribles, todos já sabiam casa. da relação de intimidade entre eles. Coincidência ou não, exu Para ficar ali e não deixar passar quem não em iorubá significa esfera. Nelson Rodrigues, em 1966, dis- trouxesse se que O jogador medíocre faz futebol de primeira, o craque, o virtuoso, o estilista, prende a bola como uma orquídea de luxo. uma oferenda a Oxalá. (Rodrigues, 1993, p.119) Exu é Mojubá! A saudação exalta o reconhecimento da Cada vez mais ocupado na produção de homens e mul- grandeza de Exu! heres, Oxalá pôde se dedicar melhor ao seu trabalho graças à ajuda de Exu. Por causa do grande zelo que teve ao cumprir seu papel, recebendo ebós e oferendas, protegendo a casa, além de ter o conhecimento necessário para contribuir no trabalho de Oxalá, este o presenteou por gratidão e reconhe- cimento. Ao entrar e sair da casa do velho orixá, o visitante teria que dar algo a Exu, que estaria lá guardando a casa de seu mestre. Armado de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar a sua vigilância. Exu trabalhava demais e fez dali a sua casa, Figura 2 ali na encruzilhada. Em cursos ministrados por Antônio Simas e Luiz Rufino, Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu em 2016, assim como Sodré (1998), os três pesquisadores lugar, sua casa. versam sobre a maneira como a pausa entre dois tempos do Exu ficou rico e poderoso. samba (tum! – tum!) pode ser preenchida alegremente por sons e passos, de maneira que somos levados a movimentos, Ninguém pode mais passar pela encruzilhada dos mais amplos até o discreto batucar de dedos. Bem difer- sem pagar alguma coisa a Exu. ente da relação estabelecida com o tempo binário de alguns toques marciais. Tais autores chamam a atenção para a forma Exu, como estamos vendo, é a corporificação do entre, do como os sambistas, impulsionados por Exu, agem nessa in- comum; ele é a relação entre tudo que há no Orum (morada ventividade sonora e corporal, preenchendo os períodos ‘entre dos orixás) e no Aiê. Ou seja, é a entidade que está em todos tuns’ com batucadas e músicas, numa frenética e harmoniosa os lugares onde houver comunicação e movimento transfor- explosão de pés, bundas, pernas, braços, peitos, tudo mani- mador, o que leva e traz, fazendo ajustes entre todos. festado em séria alegria. Nos seres humanos, o arquétipo ou o padrão desse Ligiéro (2011) também realiza um quê de exuzice orixá é encontrado, por exemplo, na jogada genial de um na elaborada explanação sobre a cultura afro-ameríndia.

92 Para ele, ao empregar a palavra motriz em vez da costumeira africana de nascença (colônia belga - Congo) e artista plásti- matriz africana, para se referir às riquezas das performances ca (retratista), o método começa a ser semeado quando ela brasileiras, o professor-artista ressalta a diversidade e o di- passa a frequentar a Escola de Belas Artes de Bruxelas, onde namismo entre os elementos culturais africanos, em combi- aspectos da morfologia e psicologia humana são estudados. nação com os de outras culturas, em território brasileiro. Por- Bem mais tarde, atuando como fisioterapeuta, Godelieve ad- tanto, as motrizes africanas são as relações vivas entre várias ota o desenho dos pacientes como uma ferramenta poderosa culturas de uma Diáspora Negra. para a avaliação terapêutica. De frente, de costas e de perfil, Exu é a recombinação de forças que impulsionou a nossa os inúmeros desenhos feitos por Godelieve chamaram a at- formação, os negros que chegaram ao Brasil eram de origens enção da artista-terapeuta para a forte relação entre o corpo étnicas diferentes, aqui eles se reinventaram para fortalecer e os aspectos do comportamento, ou seja, da expressividade e preservar suas culturas. Assim, várias transformações pre- humana. cisaram ser incorporadas aos elementos culturais africanos Ela percebeu (foi tocada pela experiência) que o cor- no Brasil. O mesmo autor (2011, p. 170) afirma que para o po humano era dividido em seis famílias de músculos com africano que aportou no Brasil, não era novidade a troca com funções específicas. Por exemplo: famílias de músculos que outras culturas como forma de desenvolvimento e fortaleci- rodam os braços e pernas para fora, famílias de músculos mento da sua própria cultura. É assim que Exu age, no eterno responsáveis pela verticalização do corpo, ou ainda, famílias descontínuo. de músculos responsáveis pelo equilíbrio. Segundo Godelieve, as famílias musculares mais frequentes e atuantes nos nossos O MÚSCULO corpos imprimem certas características em nossos comporta- mentos. Não é uma condição física determinando os compor- tamentos, mas há uma relação de mão dupla entre aspectos físicos e atitudes comportamentais. O Método GDS batiza de Cadeia Anteroposterior (AP) os músculos responsáveis pela passagem de tensão que circula entre as cinco cadeias musculares. Esse fenômeno infinito no corpo vivo e responsável pelo movimento, acontece graças à articulação de tensão que existe entre as seis cadeias mus- culares. Além da circulação de energia, a cadeia AP também atua nos ajustes posturais, coordenando o equilíbrio de nossa bipedia, e é esse o ponto que pretendo destacar durante a dupla Exu-AP. Inclusive, no trabalho do projeto original, Entre o mito e o músculo: dança dos orixás e cadeias GDS, todas as cadeias tem um orixá correspondente. Observando a figura 3, percebemos que o equilíbrio dinâmico - cabeça (massa cefálica), parte superior do tron- co (massa torácica) e bacia (massa pélvica), sobre pernas e pés que não param e dois braços sempre em busca de coisas mais distantes - requer um fogo que gere energia para todo Fig.3 Cadeia Anteromediana - GDS o corpo. Fogo este que é o símbolo da cadeia AP, cuja função é gerar movimento para que aconteçam os ajustes posturais O Método GDS é uma proposta da fisioterapia que asso- que equilibram o nosso corpo. (fig. 3) cia leitura corporal, conscientização do movimento e cuidados fisioterapêuticos. Criado por Godelieve Denys-Struyf (GDS),

93 Na inspiração (PA) - três movimentos são realizados ao mesmo tempo. No primeiro é importante empurrar o chão com os calcanhares, dedinhos e dedões62. No segundo estende-se os joelhos, não permitindo que o sacro suba (cos- tumo propor aos alunos que sintam com as mãos a posição desse osso mantendo-o na vertical). No último posiciona-se o ponto mais alto da cabeça para o teto, deixando o pescoço reto, como se tivesse equilibrando algo sobre a mesma. Na inspiração ocorre uma retificação da coluna: pescoço, torácica (altura das costelas) e lombar (altura da cintura/umbigo). É justamente na inspiração que alguns pequenos músculos ao se contraírem, elevam o corpo no sentido contrário à força da gravidade. Na expiração (AP) - ainda de pé, há um afrouxamento de joelhos, musculatura abdominal e escalenos. Ou seja, há uma acentuação das curvaturas da cervical e lombar, deix- Fig. 4 Equilíbrio entre as massas GDS eajustes das intermassas ando o joelho livre para realização de ajustes necessários áreas de AP(Exu) para a recuperação do equilíbrio. Quando os músculos que suspendem o corpo deixam de agir, é preciso que essa família de músculos sustente o corpo e dê equilíbrio dinâmico, para A cadeia AP é uma estrutura que desempenha uma realização de ajustes necessários a cada alteração de postura. função rítmica. Nessa mesma estrutura também habita a ca- Neste caso, podemos dizer que a função principal da cadeia deia PA (Xangô). Para o presente trabalho é necessário apenas AP é a de sustentar e regular as novas posições do corpo. informar que duas cadeias musculares do Método GDS têm Além das alterações entre inspiração e expiração, o corpo a mesma estrutura (mesmos músculos), mas exercem duas passa por frequentes e inúmeras variações posturais. Dessa funções distintas.Observe a figura 4, onde os mesmos múscu- maneira, os músculos da Cadeia AP, que atuam na recuper- los atuam nas cadeias Exu-AP e Xangô-PA. ação do equilíbrio a qualquer alteração postural, precisam ficar alertas. São os músculos Exu-AP que entram em funcion- amento para que o corpo volte ao eixo63 vertical ascendente (de novo, entra em ação a Cadeia PA, com a seta para cima, elevando o corpo). O jogo entre as famílias AP e PA se esta- belece numa alternância imperceptível, dessa maneira, sem que percebamos, subimos e descemos em oscilações infinitas. Simplificando a explicação, quando as duas cadeias famílias de músculos se encontram equilibradas, Xangô-PA apaga e Exu-AP acende, durante toda a nossa existência. A Cadeia AP, com sua característica de impedir o enrijec- imento em determina postura ou comportamento, nos leva

62 “Calcanhar, dedinho, dedão” é um mantra falado em quase todas as minhas aulas. Tem o objetivo de lembrar aos alunos dos três apoios necessários para realização de uma boa marcha, ou seja, organização dos membros inferiores e da bacia, durante a caminhada. 63 Quando você está de pé uma reta imaginária passa no meio do seu Fig. 5 Vermelho inspira (PA) e rosa expira.(AP) - Philippe Campignion corpo, no sentido da cabeça aos pés: o eixo vertical. 94 a apresentar outra característica do Método GDS: a ideia de cia de uma certa tensão, capaz de afetar organicamente o corpo pulsão ou simplesmente, motivação. Tal conceito explica as humano.” Podemos entender a emoção de maneira análoga, mudanças necessárias na postura de cada pessoa, pois a ex- como a energia que circula no campo psíquico e não pode ser pressividade do sujeito está em relação com as alternâncias tocada, nem vista. Ou seja, é uma força que age na dimensão da vida diária. O corpo entendido como linguagem, carece do pensamento, dos afetos e dos sentimentos. Portanto, a de uma coordenação motora que leve à criação do gesto. emoção para o método GDS, pode ser vista - quando se man- Denys-Struyf (1995, p. 17) comenta que “Com a ajuda de um ifesta no corpo - por meio da circulação de tensão entre as corpo cujas ‘cadeias’ ainda flexíveis circulam de uma ponta à cadeias musculares, permitindo ao corpo a criação de gestos outra, da cabeça às mãos e aos pés, para fazer e desfazer as expressivos. posturas, a mímica e os gestos em múltiplas expressões, ricas Nas escolas brasileiras, de um modo geral, as crianças são em mobilidades, vida e sentido.” (en)formadas segundo um modelo de educação utilitária. São A ideia do corpo plástico do indivíduo e não uma unidade instituições formatadas para a produção e o consumo de bens biológica uniforme, ainda é pouco entendido nos espaços e de informações. É de causar espanto o grau de reprodução de formação acadêmica. Talvez por isso, o ‘corpo esculpido’, que os pequenos realizam, sem que os mesmos tenham um matéria prima dos profissionais formados pelas Escolas de arcabouço cognitivo e mesmo emocional, para lidar com os Educação Física busquem determinada forma na qual um pa- discursos proferidos. Emissoras de massa, voltadas para um drão consiga se fixar. O sujeito que articula informações para público consumidor mediano, exibem crianças disciplinadas forjar um corpo enformado (em si ou no outro), preocupado e organizadas em fileiras de mesas e cadeiras (5-6 anos), ex- com a rigidez, pouco se aproxima da experiência. Portan- planado sobre a composição nutricional de alimentos. Desde to, a cadeia AP precisa ser conhecida como um conjunto de muito cedo, os afetos, ou seja, aquilo o que realmente nos músculos com uma biomecânica capaz de ajustes rápidos e toca é abafado e substituído por discurso de especialista. O necessários para, por exemplo, a criação dos dribles mágicos que deixamos como uma questão a ser pensada é: quais os do Garrincha. efeitos para o indivíduo de uma vida privada de percepção? Os músculos quadríceps, psoas, íleo, quadrado lombar, Crianças desejando um delicioso bolo se transformou em pecado contemporâneo. É essencial que autoridades impon- diafragma, esplênio, e escaleno estão diretamente associa- ham limitações a jovens e crianças, no entanto, as proibições dos aos ajustes necessários às alterações de postura, ou seja, foram transformadas em discursos produtivos, racionali- ajustes que nos permitem envergar e não quebrar. O compos- zantes e higiênicos. No caso específico das escolas, as infor- itor Lenine escreveu sobre uma possível atitude AP: mações/saberes de especialistas que são passados aos alunos, Em tempos de tempestades transferem para os pequenos a responsabilidade do cuidado de si. A ideia de instituições de educação agindo como repro- Diversas adversidades dutoras de modelos estrangeiros pelo país afora, precisa ser Eu me equilibro, e requebro questionada nas universidades. Para o cientista baiano Muniz É que eu sou tal qual a vara Sodré (2012, s/n): “Educar é socializar, individualizando, isto é, primeiramente inscrever a criança no ordenamento social Bamba de bambu-taquara desejado e depois criar condições cognitivas e afetivas para sua Eu envergo mas não quebro. autonomia individual como adulto”. O presente trabalho, ao sugerir a inserção de saberes, ges- Emoção e movimento na educação tradicional eu- tos e expressões da cultura afro-ameríndia nas universidades, rocêntrica tem como objetivo a formação de profissionais graduados que reconheçam, respeitem e disseminem, uma cultura diversa. Sodré (2006, pag. 28-29) define emoção como: “um Sobre a presença dos estudos de Biomecânica na graduação ‘movimento energético ou espiritual desde um ponto zero ou em Educação Física; Porto, Almeida, Araújo e Gurgel (2017, um ponto originário na direção de um outro, como consequên- p.5) afirmam que: “Os grandes desafios na pesquisa e cresci-

95 mento da Biomecânica serão a transdisciplinaridade e a união de esforços no sentido de racionalizar investimentos, e a real- ização de pesquisas conjuntas, multidisciplinares, para que as abordagens sejam mais corretas e completas. Acreditamos que pesquisadores desta área começaram um movimentos sério em busca da descolonização em relação ao caduco modelo pedagógico europeu, infelizmente presente nos espaços de graduação de Educação Física. A memória individual vinculada aos saberes adquiridos pelas experiências, não apenas das letras escritas, foram responsáveis por um estranhamento tardio. Apesar de na origem familiar da autora ter grupos éticos diferentes e ela Fig. 7: Dona Ivone Lara dizendo no pé com elegância. http://www. ter sido formada dentro de um terreiro, até os vinte três anos, patuadiscos.com.br/noticias-2/senhora-do-samba/ os santos do altar não eram orixás, não eram negros, eram europeus. Nos ensaios do grupo de dança afro-brasileira, o Ol- ubajé, no qual a autora deste trabalho participou como Exu-AP no corpo do brasileiro dançarina, havia ocasiões em que era necessário repetir inúmeras vezes determinados movimentos, fato comum às A escolha de Garrincha como o maior exemplo de Exu-AP companhias de dança. Certa vez, foi necessário o uso de jo- no corpo do brasileiro, se deve ao conjunto de elementos que elheiras, porque as articulações dos joelhos ficavam apoiadas o homem-atleta-artista reunia: deformações e grande assi- no chão por muito tempo e, ainda eram realizados giros sobre metria no membros inferiores (pernas tortas), os dribles ina- elas. Era uma montagem coreográfica de Exu. creditáveis que realizava com a bola nos pés (as entortadas) e, A inconstância própria do orixá manifesta-se durante também, pela vida autêntica e apaixonada que levou - A vida toda a dança, às vezes são executados movimentos lentos, torta de Mané Garrincha (Mayrink, 2013). quase caricaturais, insinuando obscenidades, principalmente quando o bailarino simula o porrete de Exu em forma fálica, o ogó. Os gestos eram executados com o antebraço rígido na frente do corpo, palma da mão virada para cima e fecha- da. Em outros momentos, os passos realizados para o orixá das transformações e da comunicação, demandavam muito dinamismo das dançarinas, que realizavam corridas, saltos, repetidas flexões dos joelhos, tudo isso para deixar a bacia solta, em performances de excessiva ginga ou requebros sen- suais. A expressão “jogo de cintura”, com o sentido figurado de Figura 6: http://trivela.uol.com.br/quando-garrincha-quase-tro- ajustes necessários para a realização de alguma tarefa, pode cou-o-alvinegro-botafogo-pelo-da-juventus/ ser percebida e analisada na mecânica do movimento. Vimos anteriormente que a família de músculos responsáveis pela realização de ajustes no corpo fazem parte da Cadeia AP. ‘A memória inscrita no corpo’, ‘a linguagem do corpo’, en- Era frequente a realização de danças com variações de tre outras expressões adotadas e aceitas nos espaços acadêm- passos do plano médio para o plano alto, e sempre de manei- icos, “já eram muito conhecidas da tradição afro no Brasil há ra vigorosa. Expressões que cobravam dos bailarinos intenso pelo menos cem anos, daí o ditado popular “tem que dizer apoio de joelho no chão, ou de repetidas flexões e extensões no pé”, usado para definir a performance de bom sambista. dessa articulação, isso, para gerar impulsão e o artista ganhar (Ligiéro, 2011, 111).

96 as alturas. Os joelhos e a musculatura da coxa, especifica- tura estilos diferentes e exige dos dançarinos um requintado mente o quadríceps, sofrem demais. O quadríceps é um po- gestual e ritmicidade. A partir de reuniões onde todos con- tente conjunto de músculos responsável por aguentar o corpo tribuem para as coreografias, os jovens criaram uma dança na hora da descida. Além de impedir a queda (articulando os brasileira. Portanto, Exu-AP continua transformando e ali- joelhos), o quadríceps facilita o molejo no corpo que favorece mentando o desejo de que outras esferas possam ser tocadas o deslocamento do dançarino pelo espaço. pela nossa cultura e reinventem o país. O outros movimentos realizados em coreografias, conta- vam a história do Orixá da Comunicação e da Magia. Um deles era soprar as palmas das mãos em alusão ao pó que carrega em suas cabacinhas. Quando deseja, Exu sopra e lança seus feitiços pelo mundo. Em algumas composições de dança dedicadas a Exu, out- ras entidades também podem ser mencionadas por meio de gestos de mulheres sedutoras, requebrando e flertando com a plateia. Ou, homens representando malandros que sambam ou gingam, sempre com muito jogo de cintura. Nos espe- Fig. 8: http://www.anf.org.br/funk-ocupa-espacos-tradicionais-do-rio/ táculos onde são feitas danças de Exu, orixá que representa o excesso, a falta de limites, como os bêbados, as danças têm BETWEEN MYTH AND MUSCLE: passos que brincam excessivamente com o desequilíbrio e EXU IS BRAZILIAN! equilíbrio dinâmico. Exu balança, mas não cai, e como diz a música de Vinícius e Baden: E se um dia ele cai, cai bem! ABSTRACT O mito Exu e os músculos da Cadeia AP falam do jogo de cintura e da emotividade, daquilo que não pode ser pego, This work is part of the research “Between muscle and como o fogo. A dupla Exu-AP é a corporificação do ‘entre’ e se myth: dance of the orixás and GDS chains” - in which I relate manifesta nos seres humanos desde sempre; é, portanto, uma the Afro-Brazilian dance, created by Mercedes Baptista, to divindade que nos oferece o ritmo e nos convida à dança, já the proposal of physiotherapy, Method GDS. This union was nos primeiros movimentos realizados em nossa concepção. forged from a family memory, lived in anterreiros (meeting places) for Umbanda, where Catholic saints and Afro-Amer- indian entities lived together in singing-dancing-to-beat, as CONCLUSÃO ZecaLigiéro explains. In this article, I present the relief of the A finalização do trabalho ressalta a importância de se African diasporic body in Brazil, powerful and nosubmissive, retomar o conhecimento das coisas do mundo - ideias, pes- just like the body of the dances in the mythology of Exu. This soas, objetos, tudo o que afetar o corpo - pela experiência. E Yoruba god, transgressor par excellence, is physically present- que a reinvenção da educação, título do livro de Muniz Sodré, ed as the one capable of rhythmic and transient gestures, due seja pensada seriamente por pesquisadores, cientistas e pe- to the actions of the quadriceps, ilium, psoas, and scalene, los atores que disseminam o conhecimento na formação de among others of the anteroposterior muscle chain, of the GDS novos profissionais. Sugerimos que a diversidade simbólica, Method. In a specific reading of this method, it is this mus- também, venha a ocupar o espaço de criação na esfera da cular chain that performs movements, such as the capoeira Educação Nacional, descolonizando relações monoculturalis- ginga, the samba of the passistas, the dribble of the player tas. A sociedade oprimida por uma elite que se emprenha em and the rhythm spoken of Riobaldo, in “Grande SertãoVere- apagar a memória e as diferenças de um país continental, se das”. From this, we defend that Exu is Brazilian! Muniz Sodré torna insensível às questões éticas. is the reference for the questioning of a colonizing education A história do Passinho (figura 8), uma dança criada por that has endeavored to erase the identity of a mixed culture jovens moradores de comunidades, transgride a ordem, mis- and that still today follows the expired European pedagogi- 97 cal model, since always, an intolerant paradigm to impose a Rodrigues, N. À Sombra das Chuteiras Imortais: crônicas discipline on bodies that seek their expressiveness. We bring de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. a study proposal that re-signifies the education of the move- ment and its expressiveness, from Exu, because it is with him Rosa J. G. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Nova that everything changes or begins. We suggest, therefore, the Fronteira, 2001. insertion of knowledge, gestures and expressions of Afro-Am- erindian culture in the universities so that graduated profes- Simas, L.A. e Rufino, L. A Ciência Encantada das Macum- sionals recognize, respect and disseminate a diverse culture, bas 2018, p.63). to the detriment of a single Eurocentric thinking. Sodré, M Reinventando a Educação: diversidade, descol- Keywords: GDS method; Exu; Afro-Brazilian onização e redes. Petrópolis: Editora Vozes. 2012. dance; Afro-Amerindian culture; Professional qualification. ______Samba, o Dono do Corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. REFERÊNCIAS Bondía, JL. Notas sobre a experiência e o Saber de Ex- ______As Estratégias Sensíveis: Afeto, Mídia e periência. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/ Política. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. n19/n19a02.pdf Acesso em: 23 abr.2018. Rev. Brasileira de Educação. 2002.

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Prandi, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

98 HERANÇA AFRICANA E MEMÓRIA DA ES- INTRODUÇÃO CRAVIDÃO: PATRIMÔNIO, ESPAÇO E DINÂMI- Como já abordaram vários autores, o pensamento social CAS POLÍTICAS NA ZONA PORTUÁRIA DO RIO sobre a cultura afrobrasileira iniciou-se no século XIX forte- DE JANEIRO mente marcado por valores eurocêntricos e racistas vigentes no período, no contexto da discussão de uma identidade Hannah da Cunha Tenório Cavalcanti nacional brasileira que pretendia direcionar o país a uma Universidade Federal do Rio de Janeiro evolução civilizatória, cujas consequências não foram supera- [email protected] das. No centro desses debates esteve a questão do patrimônio nacional, que foi tratada de diferentes formas, sempre liga- RESUMO das ao contexto político do período. Entretanto, observam-se O presente artigo pretende discutir a partir do atual con- permanências, que dizem respeito a controle, seletividade, texto da zona portuária do Rio de Janeiro como o espaço da memória e esquecimento. região vem sendo reelaborado em torno das reivindicações da Como bem aponta Cardoso (2012, p. 31) memória da escravidão e da herança africana, bem como do O Poder de Estado no Brasil tem se apropria- resgate da história da chamada “Pequena África”, que ultra- do, de forma explícita, do patrimônio histó- passa as fronteiras do espaço portuário, revigorando debates rico e artístico nacional e, de forma difusa, políticos ligados à memória social regional, nacional e ao dos meios de comunicação, dos livros didá- patrimônio afro-brasileiro. O eixo principal do artigo estará ticos, do mercado da memória brasileira. As no reconhecimento do Cais do Valongo como patrimônio da festas nacionais, as comemorações solenes, humanidade pela Unesco e na construção inicial do projeto o tombamento de monumentos, pretende- do Museu da Escravidão e Liberdade (nome provisório inicial- ram ritualizar o passado, ocultando aspectos mente anunciado), sem esquecer sua interligação com outras não oficiais dos acontecimentos. A ocultação questões que ocorrem paralelamente. Assim, pretendemos é um dos procedimentos mais correntes problematizar o processo vivido pela região dando um pano- nesse dispositivo de controle. Os conflitos - rama geral do seu desenvolvimento e das discussões políti- escravidão, guerras coloniais e imperialistas cas em torno da história, memória e patrimônio que foram - estão entre os temas favoritos dessas ope- sistematicamente apagadas naquele espaço, que ao mesmo rações redutoras. A memória popular quase tempo que se transforma urbanisticamente, também se sempre é expropriada, porque não dispõe transforma simbolicamente, e essas transformações geram de marcos físicos que lhe respaldem o teste- novas relações sócio-espaciais e territorialidades. A intro- munho.Para os negros e os povos indígenas no Brasil, o direito a um passado próprio se dução vai tratar desse percurso partindo do achado do sítio confunde com o direito de existir hoje. arqueológico do cemitério dos pretos novos; a segunda seção abordará o silenciamento operado sistematicamente no espa- Patrimônio, nacionalidade e poder sempre estiveram ço portuário e como vem emergindo cada vez mais histórias correlacionados na história. Como expõe Fonseca (2017, p. 83) e memórias; a terceira seção discutirá a construção inicial do a temática do patrimônio e das práticas de patrimonialização projeto do Museu da Escravidão e o significado desses aconte- começam a ocupar centralidade no debate de intelectuais e cimentos, na dimensão sócio espacial e política. artistas, especialmente aqueles ligados ao modernismo, que Palavras-chave : zona portuária, patrimônio elaboraram os principais conceitos de patrimônio que seriam afro-brasileiro, espaço, memória social. adotados. Modernistas empreenderiam viagens afim de co- nhecer diferentes expressões da cultura brasileira e participa- riam ativamente dos debates acerca do que seria considerado como cultura nacional.

99 Por outro lado e no mesmo contexto, como coloca Lima cimentos das últimas duas décadas, o processo de reivindica- (2012, p. 26) “Políticas educacionais, por exemplo, foram ções políticas, culturais, simbólicas relativas à memória social elaboradas com base na eugenia nos anos 20 e ganharam da região. Como coloquei, as primeiras atividades portuárias força principalmente no governo de Getúlio Vargas, momento do Rio se dão na região do Castelo, Praça XV e Uruguaiana no político em que também é criado um órgão específico para o Centro, assim como o primeiro núcleo de tráfico de africanos/ trato do patrimônio cultural no Brasil, o Serviço do Patrimônio as que seriam escravizados/as; posteriormente, já em fins do Histórico Nacional – Sphan”. É justamente nos anos 30 no con- século XVIII, esse núcleo é transferido para a região dos bairros texto do governo autoritário do Estado Novo que são criados que se chamariam Saúde e Gamboa, aonde foi construído um dispositivos legais relativos ao patrimônio nacional. Embora a expressivo complexo comercial escravista (HONORATO, 2008) . equipe e colaboradores do Sphan não fossem necessariamen- Em 1996, é descoberto o sítio arqueológico dos Pretos Novos, te simpáticos ao regime, e embora alguns modernistas como uma parte de um dos maiores cemitérios para pessoas escra- Mário de Andrade, tivessem outras concepções distintas das vizadas da América Latina. Essa descoberta desencadeou di- que foram adotadas, o paradigma eurocêntrico predominou versas consequências e questionamentos sobre a memória e no trabalho do Sphan, que iria focar a patrimonialização na história da região portuária e do Rio de Janeiro, especialmen- cultura material da presença luso-brasileira principalmente, te a partir da criação do Instituto dos Pretos Novos em 2005, construções ligadas ao poder colonial, consideradas de gran- que possibilitou novas pesquisas, portanto novos discursos, de valor arquitetônico, segundo os cânones da historiografia e a difusão através de uma série de atividades pedagógicas, da arquitetura do período. de variados elementos das culturas africanas e afrobrasilei- Curiosamente, o SPHAN foi composto pela contradição ras. O Instituto dos Pretos Novos se tornou o novo lócus da essencial de ser criado em um governo autoritário, tendo emergência não só de descobertas históricas, antropológicas como membros várias pessoas que estavam criando um e arqueológicas, mas também, importante agente dentro das movimento cultural que promovia a liberdade de expressão dinâmicas que ocorrem na cidade em relação a essas desco- e pretendia romper velhos paradigmas. Nos veículos da ideo- bertas e a reivindicações de políticas de memória. Em torno logia do regime, como a revista Cultura Política, “as tradições do IPN já existia a Associação Recreativa Afoxé Filhos de Gan- culturais brasileiras eram invocadas para legitimar o regime” dhi, contemporâneo do afoxé baiano, o mais antigo do Rio em (FONSECA, 2017, p. 88). Encaixam-se aí discussões acerca da atividade; alguns mestres de capoeira angola antigos e asso- identidade articulada a nacionalidade, que já foram ampla- ciações como a ACIMBA - Associação Cultural Mestre Benedito mente realizadas. Das mais diversas formas e em diferentes de Angola; rodas de samba, que ganharam maior visibilidade contextos, a cultura é utilizada como instrumento de legiti- na volta das rodas da Pedra do Sal; a escola de samba Vizinha mação de imaginários de nação, nacionalidade, para produzir Faladeira,uma das mais antigas da cidade; blocos carnavales- consensos e pertencimento. A narrativa identitária construída cos como o Escravos da Mauá; enfim uma série de expressões a partir do chamado “mito da democracia racial”, também culturais, que nos anos 90 já não estavam tão bem articula- gestada no período acima citado, é para Kabengele Munanga das, nem tinham tanto alcance e incentivo. (1999), o principal desafio e o paradigma que deve ser mais Vários acontecimentos mudariam o curso dessa história, combatido para a construção da verdadeira igualdade racial , entre eles podemos destacar: o fortalecimento do Instituto assim como o mais combatido atualmente pelos movimentos dos Pretos Novos e do sítio arqueológico como referências negros. concretas da memória social na região; a formação do Em minha dissertação (CAVALCANTI, 2016) discorri sobre grupo de Remanescentes do Quilombo Pedra do sal e seu a construção social do espaço denominado “zona portuária” reconhecimento ( em 2005); a emergência das ruínas (bem do Rio de Janeiro, atualmente delimitado pela prefeitura aos conservadas) de parte do Cais do Valongo, a partir de escava- bairros Gamboa, Saúde e Santo Cristo, e sobre sua historici- ções realizadas no local (já em 2010). T o m a m dade longa e complexa, que remete à própria formação da corpo, no período 2005-2018, uma série de articulações entre cidade. Meu eixo de análise tem sido discutir à luz dos aconte- esses e outros diversos agentes, que estabelecem definitiva-

100 mente a referência da “Pequena África” em seu repertório não É preciso levarmos em conta a (re?) significação política, como volta ao passado, mas como atualização desse passado simbólica e religiosa desse território para os cidadãos cario- num presente – e como forma de resistência/contraposição cas, principalmente para aqueles que vêem na afirmação ao apagamento da memória das culturas africanas/ afrobrasi- dessa identidade cultural afrobrasileira ou afrocarioca uma leira e à história da escravidão pelo imponente projeto Porto estratégia de resistência dentro da histórica negação de di- Maravilha. As reinvindicações em torno do reconhecimento reitos vivenciada pela população negra no país. Sobre o pro- do espaço portuário como significativo na história da diáspora cesso de tombamento da Pedra do Sal Ferraz (1997, p. 333) africana vinha de décadas anteriores. No que diz respeito a pa- explica que Evidentemente, representações de origem negra trimonialização, a Pedra do Sal, localizada na subida do morro já haviam sido aceitas por diversos segmentos artísticos e da Conceição na Saúde, foi um marco no reconhecimento do culturais e, mais do que isso, festejadas como autênti- patrimônio afrobrasileiro, tendo sido tombada como patrimô- cos signos de nossa mais profunda personalidade como nio material do Rio de Janeiro em 1987, e envolvido anos de nação; mas cabia a elas, tão-somente, servirem de tema ou engajamento de importantes figuras do movimento negro, inspiração. Como produções em si mesmas, permaneciam entre os quais foi decisiva a contribuição nesse processo, de fora do ciclo da história, cabendo-lhes a atemporalidade Joel Rufino dos Santos (FERRAZ, 1997). mítica do folclore. Portanto, ao incluir em sua lista de bens a A Pedra do Sal é hoje uma parte da formação rochosa, serem protegidos um “monumento negro”, a instituição reav- que no século XVII-XVIII era próxima ao mar (antes chamada aliava o papel dos negros como produtores de bens culturais “Pedra da Prainha”) e dividia uma parte do bairro da outra. Na e, simultaneamente, procedia à crítica de seus pressupostos região existiam nesse período trapiches de sal, estaleiros de teóricos. comércio diversos além de outras construções como a fortale- Assim, é essencial tanto conhecer a história quanto za da Conceição, o Palácio do Bispo, a Igreja de São Francisco e situar o atual contexto pelo qual passa a zona portuária e o a Cadeia do Aljube, para onde iam os escravos que cometiam Rio de Janeiro para entender as dinâmicas que ocorrem em crimes e os quilombolas. A circulação e fixação neste pedaço torno da cultura e patrimônio na região. do bairro de afrodescendentes libertos e escravizados que já Para se ter uma ideia, no Morro da Conceição, localizado na existia aumentou consideravelmente no século XIX e especial- Saúde, alguns bens foram tombados já em 1938; em fins dos mente após a abolição (MARQUES, 1999). anos 70 e início dos 80 outros projetos de preservação foram Naquele perímetro estabeleceu-se no início do século XX desenvolvidos pelo IPHAN. Em 1986 (IPHAN, 1986), uma um complexo cultural, que englobava muitas formas de ma- portaria de determinação sobre as intervenções na arquite- nifestação cultural e redes de sociabilidade (MOURA, 1986). tura dos imóveis já tombados (não só no Morro da Conceição Não podemos esquecer que essas manifestações passaram a mas em ruas próximas, no centro) foi lançada e com o projeto ser duramente perseguidas pelo Estado brasileiro até a pri- Porto Maravilha, nos anos 2000 novamente o IPHAN produziu meira metade do séc. XX, e todas as representações e referen- pesquisas e projetos com o intuito de tombar integralmente o ciais culturais afrobrasileiros igualmente marginalizados do morro, o que gerou discussões intensas; em 2013 uma nova ponto de vista museal ou patrimonial, como diz Lody: portaria determinava sobre construções no entorno (IPHAN, 2013). O valor histórico atribuído ao patrimônio do Antes de aceitações ou mesmo de reco- nhecimento, por parte de um público intér- Morro da Conceição está fortemente ligado à memória colo- prete e também usuário extra-comunidades nial e luso brasileira. Porém, no que tange à formação social, dos terreiros ou de outros locais consagra- muitas histórias podem ser contadas e narrativas podem ser dos pelo trabalho e produção, como de reelaboradas a partir do seu espaço. referência e/ou afro-brasileira, é sabido que por longo período pós-abolição a me- TENSÕES, CONFLITOS E NEGOCIAÇÕES mória e a visualidade do negro brasileiro As tensões desencadeadas pelo projeto de revitalização sofreram perseguições política e policial . da zona portuária, não giram em torno apenas – não como

101 se fosse pouco – de políticas de memória mas também de históricos, de que ele estaria localizado na rua Barão de Tefé, condições concretas de sobrevivência, como moradia, saúde bairro da Saúde, e foram solicitadas por Tania Andrade Lima e educação, visto que a região não recebia investimentos sig- (arqueóloga que acompanhava as obras) escavações no local. nificativos nas mais diversas áreas. Porém questões relaciona- De fato, as ruínas vieram a tona, além de muitos artefatos e das à cultura e à memória social tem concentrado atualmente fragmentos de objetos do período colonial dos quais ainda a atenção dos movimentos, e o caráter do processo tem sido não se tem conhecimentos precisos. O único cais oficialmente muito direcionado por atores ligados a entidades institucion- reconhecido naquele local era o Cais da Imperatriz, construído alizadas existentes dentro do próprio aparato estatal, como o sob o cais do Valongo em 1843 especialmente para receber COMDEDINE (Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do a princesa Teresa Cristina, que viria se casar com Dom Pedro Negro), a SUPIR (Superintendência de Promoção da Igual- II, embora se soubesse como colocado, por documentos e dade Racial), a CEPPIR (Coordenadoria Especial de Políticas pesquisas, sobre a existência do outro cais. Pró-Igualdade Racial), a Fundação Palmares e o CEDINE Em torno dessa referência, da zona portuária como “Pe- (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Negro). quena África”, vão se reconstruir narrativas identitárias sobre As instituições regionais, tanto em nível municipal quanto es- a região, a partir dos anos 80, que tomam nova dimensão tadual, enfrentam a dificuldade de falta de verba e de autono- durante o processo de “revitalização” da área, formalmente mia, e apesar de fundamentais no alcance de algumas reivin- iniciado em 2009. Nesse período de redescoberta do cais do dicações, muitas vezes precisam ceder de forma significativa Valongo novas pesquisas vinculadas ao Instituto dos Pretos para que essas conquistas parciais ocorram, de modo que o Novos já haviam oferecido mais elementos sobre a história do que vem sendo desencadeado é uma sucessão de políticas de comércio de africanos na zona portuária (HONORATO, 2008; apagamento que se dizem políticas de memória. PEREIRA, 2007), e a partir da pressão das referidas entida- Pois bem, voltemos a 2010, quando outro sítio arque- des, junto a militantes negros, educadores e pesquisadores, ológico de grande importância foi descoberto: uma porção do foi criado o Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Cais do Valongo, aonde desembarcaram milhares de pessoas Herança Africana em 2011, via decreto, que instituiu também trazidas de diferentes regiões da África para serem escraviza- o seu grupo curatorial. Como bem afirmou Marques (2015, das no Brasil, grande parte delas, para trabalharem no Vale p. 122) “O Cais do Valongo foi a “mola” que impulsionou a do Paraíba. Pelo referido cais, construído no início do século construção do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração XIX, chegaram centenas de milhares de pessoas de diversas da Herança Africana”. O circuito que abrange o Cemitério dos regiões do continente africano, tendo sido este cais um dos Pretos Novos, a Pedra do sal, o Jardim Suspenso do Valongo, principais pontos de desembarque do comércio escravista da o Cais do Valongo, o Centro Cultural José Bonifácio e o Largo América latina (SOARES, 1962). Os vários fluxos migratórios do Depósito já foi analisado na tese da pesquisadora na qual que ocorreram ao longo do tempo, e principalmente os que ela expõe o processo mais detalhadamente, os membros do houveram após a abolição da escravidão (especialmente forte Grupo de Trabalho curatorial, etc. da Bahia para o Rio) transformaram a região portuária em um Um dos lugares incorporados ao circuito é particular- reduto de população afrodescendente, que ali trabalhava em mente polêmico, mas também interessante para entender- funções direta ou indiretamente ligadas ao porto. No início do mos as dinâmicas políticas desse tipo de processo. século XX, esse reduto foi chamado de “Pequena África” por Esse local controverso é o Jardim Suspenso do Valongo, Heitor dos Prazeres (a maior parte da literatura atribui a ele a inaugurado pelo prefeito Pereira Passos no início do século expressão), célebre pintor e sambista; ali o samba foi elabo- XX, em um espaço aonde antes haviam casas de engorda e rado a partir dos ritmos africanos, aonde também a culinária, armazéns de venda de africanos escravizados. O prefeito em- a religiosidade e parte da cultura afrobrasileira é gestada preendeu um conjunto de intervenções urbanísticas na região (MOURA, 1995). que envolveu tanto a expulsão da população pobre moradora O cais emergiu no início das obras do Porto maravilha; dos cortiços quanto a abertura de avenidas, praças, modern- já havia uma forte especulação, baseada em documentos ização do cais do porto e construções inspiradas na atuação de

102 Haussman em Paris, no fim do século XIX. Ele representa por- mais altos no escalão governamental são os que detêm poder tanto a reforma modernizadora de Passos, que desarticulou a decisório, ainda que todos os agentes possuam um nível de Pequena África pela expulsão de muitos dos seus moradores exercício de poder. para as regiões periféricas da cidade. Muitas decisões ligadas ao patrimônio e memória na cidade são fortemente marcadas pelas negociações políticas que ocorrem entre representantes das institucionalidades públicas e os diversos agentes que a eles tem acesso, o que dificulta a transparência nos processos. No caso da zona por- tuária, o órgão fundamental nessas negociações é a CDURP, Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Por- to do Rio de Janeiro, de economia mista, criada com a lei complementar que a instituiu como a gestora da Operação Urbana Consorciada do Porto, dos serviços essenciais e de seus recursos patrimoniais. Jardim Suspenso do Valongo. É fundamental pensarmos nas possíveis estratégias Fonte:http://www.conexaocultural.org/blog/2014/03/jar- de controle que podem tentar neutralizar o significado de dins-suspensos-do-valongo patrimônios e memórias em disputa, para concretizar propostas que através da aparente produção de consensos, Interessante observar que o contexto durante o governo encobrem negociações decisivas para os agentes envolvidos de Passos também era de turbulência política e revoltas popu- e toda a população. No canal Rio Cidade Olímpica no Youtube lares - ainda que de caráter bem diverso daquelas vividas pela foi lançado o vídeo “Cais do Valongo: Porto Maravilha traz a França em fins do século XIX. Mesmo assim, segundo Benchi- história do Rio de volta à superfície¹” O vídeo parece já estar mol (1992, p.226) “A Avenida do Cais foi concebida também alinhado com as discussões historiográficas realizadas até como um instrumento de “policia” sanitária e militar para então, porém o título, conduz o espectador imediatamente uma das áreas mais perigosas do Rio de Janeiro”. Voltando ao a atribuir ao Porto Maravilha o mérito pela revelação do cais, circuito, ao longo de sete meses, foram realizadas reuniões quando na verdade, não havia qualquer intenção inicial de fa- desse grupo que geraram várias deliberações, muitas delas zê-lo nem pelos órgãos da prefeitura responsáveis, nem pelo até hoje não cumpridas; o Circuito tem sido promovido predo- Consórcio Porto Novo, segundo pessoas entrevistadas.Como minantemente pelo Instituto dos Pretos Novos, que o realiza nos alerta Munanga (2012, p 16) duas vezes por semana em dois horários, mesmo sobreviven- do há mais de um ano de doações. O discurso da identidade por parte do POLÍTICAS DE MEMÓRIA E DE ESQUECIMENTO movimento negro, assim como o da O abandono do circuito e do Instituto representam o pa- classe dominante, é sempre seletivo, drão da atuação do poder público no que tange às questões isto é, cristalizado nos marcos cujos raciais, e pode ser caracterizada, como política de esqueci- conteúdos permitem a realização dos mento. Como sabemos, não existe memória sem esquecimen- objetivos políticos. Essa seleção pode to, e é com esse binômio complementar que parece operar o criar conflitos sociais se não corres- tempo todo as estratégias dos governos do Rio de Janeiro. ponder aos interesses da maioria, Porém é preciso frisar que a denominação “poder público” não como também pode oferecer à classe é homogênea, e que órgãos são por vezes representados por dominante material que sua ideologia pessoas que são alocadas para assumir um papel de mediação precisa para manipular a luta dos opri- entre esse poder institucional e a sociedade civil, e podem di- midos. recionar de diferentes formas os conflitos que se apresentam. Porém a estrutura é fortemente hierárquica, ou seja, os cargos 103 Hall (2008) discutiu as diásporas formadas pelo colonia- mentos ao espaço e a sociabilidade da região, baseados ainda lismo, o hibridismo cultural e a inadequação das culturas po- na retórica modernizadora, de promoção da integração ao pulares negras tanto ao paradigma da modernidade quanto núcleo econômico do centro da cidade etc. da pós-modernidade. As reelaborações, tensões e conflitos Da perspectiva da memória social e do patrimônio afro- que permeiam a formação cultural de populações ligadas a brasileiro, tomam corpo, no período 2005-2016, uma série de processos de migração forçada e escravização, como ocorre- articulações entre diversos agentes alguns deles já citados, ram em toda a América implicaram na atualidade em uma que estabelecem definitivamente a referência da Pequena série de conceitos reparadores que norteiam políticas públi- África em seu repertório não como volta ao passado, mas cas multiculturalistas de várias vertentes, que para o autor como atualização desse passado num presente – e como for- vão do multiculturalismo liberal, comercial e corporativo ao ma de resistência/contraposição ao apagamento da memória crítico e revolucionário. Ele ressalta que os movimentos liga- da cultura africana/ afrobrasileira e à história da escravidão dos ao pós-colonialismo abriram novos caminhos para abalar pelo imponente projeto Porto Maravilha. Ou seja, o cais do as estruturas homogêneas de dominação político-cultural. (p. Valongo carrega uma memória traumática, a memória da 201). Esses movimentos influenciaram a formação de novas escravidão, que denuncia uma história que é frequentemente correntes em fins do século XX. manipulada, neutralizada e/ou esquecida. Mais recentemente, conceitos como o de “colonialidade Ricoeur (2007) ao refletir sobre os abusos da memória, do poder” elaborado por Quijano a partir de Wallerstein (2000) ou abusos do esquecimento, destaca duas das dimensões e que vem sendo desdobrado e desenvolvido por outros, é desses abusos, a “memória impedida”, que gera patologias in- útil para pensarmos como o projeto civilizatório eurocêntrico dividuais e coletivas, obstruções; os abusos da “memória ma- está sedimentado nas categorias do pensamento social, na nipulada” que “resultam de uma manipulação concertada da educação, nas práticas culturais e nas políticas públicas, para memória e do esquecimento por detentores do poder” (p.93). citar alguns exemplos. Relacionando essa discussão ao tema Para ele, “Pode –se falar em traumatismos coletivos e em feri- específico aqui apresentado, um dos focos aqui está nas ree- das da memória coletiva, não apenas num sentido analógico, laborações e resistências em torno da ideia de “Pequena Áfri- mas nos termos de uma análise direta” (p. 92). Reconhecendo ca” que provocaram uma transformação expressiva na zona a conexão indissociável entre memória e identidade, o autor portuária, através principalmente da ocupação dos espaços aponta entre as causas da fragilidade da memória e da identi- públicos por grupos de jongo, capoeira, teatro, música, dan- dade “a herança da violência fundadora”. ça, culinária, artesanato, e demais expressões que se propõe Ele afirma: ligadas a tradições afrobrasileiras – e que acreditamos ser um O que celebramos com o nome de aconte- processo que cria fraturas na colonialidade do poder estabele- cimentos fundadores, são essencialmente cido no contexto da revitalização da zona portuária. Na visão atos violentos legitimados posteriormente de Quijano, a colonialidade do poder opera justamente por por um Estado de direito precário, legitima- um sistema de classificação social que articula classe e raça, dos, no limite, por sua própria antiguidade, ou seja ele coloca o racismo no centro dessa estrutura social por sua vetustez. Assim, os mesmos aconte- que produz a desigualdade social e a mantém (QUIJANO, cimentos podem significar glória para uns 2000). As três dimensões da colonialidade (a colonialidade do e humilhação para outros. À celebração, de poder, do saber e do ser) são faces do processo colonizador um lado, corresponde a execração, do outro. e da modernidade e portanto se articulam com a literatura É assim que se armazenam, nos arquivos da antiracista e com a perspectiva negra (BERNARDINO-COSTA e memória coletiva, feridas reais e simbólicas GROSFOGUEL, 2016) (p. 95). Esses conceitos são úteis para o caso da zona portuária, visto que o projeto de “revitalização”, realizado de forma ver- Essas considerações se encaixam muito bem no tema, ticalizada pelo poder público, impõe determinados ajusta- uma vez que a experiência da escravidão, vivida por gerações anteriores, não foi superada do ponto de vista social, e essa 104 não superação está presente no racismo em suas variadas ex- do museu. Debates públicos tem sido promovidos e lotado pressões; essa experiência está incrustada na formação social auditórios de espaços culturais e universidades, com presença do Brasil, mas existe um esforço institucional, pelo menos no de membros de movimentos negros, pesquisadores, artistas, âmbito municipal e estadual do Rio de Janeiro, para que ela agentes culturais, professores, bem como cidadãos em geral não seja problematizada de forma aprofundada. A escravidão de outras áreas identificados com a questão. Foram cria- não é celebrada oficialmente, mas o silêncio reproduzido dos também grupos de trabalho e formulári- sobre o assunto é conveniente na medida em que pretende os online de consulta. A participação nesses debates ocultar suas consequências e permanências no presente. me fez dimensionar a importância das discussões desenca- Pois bem, a emergência do cais do Valongo gerou uma deadas. Uma quantidade expressiva de pessoas está envolvi- repercussão significativa em agentes culturais, pesquisadores da com a questão, especialmente de movimentos negros. e membros de movimentos sociais negros; recentemente es- As discussões giram em torno de recontar a história, superar tes se organizaram para preparar o dossiê de candidatura do conceitos e referenciais eurocêntricos, valorizar as realizações Cais do Valongo a patrimônio mundial da UNESCO. De fato o culturais e intelectuais dos afrodescendentes brasileiros, dar sítio arqueológico recebeu a inscrição na lista de patrimônios visibilidade às resistências políticas dessa população. São mundiais em julho de 2017. O Cais se afirma assim como o muitas as reivindicações e anseios que tem sido postos nos mais importante lugar de memória da diáspora africana no debates promovidos. Por isso compreendi que o museu e Brasil e um dos mais importantes no mundo. suas representações tratam de algo muito importante para a memória da cidade e até do país.Vale ressaltar que dentro do MUSEU DA ESCRAVIDÃO: UM NOVO PONTO DE DIS- âmbito cultural, as âncoras do projeto Porto Maravilha são PUTAS PELA MEMÓRIA o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, que receberam e recebem grandes aportes financeiros públicos e Definitivamente, não se pode dissociar memória de po- privados. Este fato reitera a noção de que os museus são der, e por isso mesmo, tampouco podemos dissociar os dois relacionados a projetos de modernização ou revitalização, últimos dos museus e demais instituições culturais. Como diz como símbolos de desenvolvimento e cultura. Sánchez (2001, p.35) : “as representações que os sujeitos têm Em dois eventos importantes em que foi discutido o Mu- do real influem na construção da realidade ao mesmo tempo seu da escravidão, surgiram tensões sobre diversas questões. que as práticas materiais são a base para novas representa- Um deles foi realizado pelo laboratório de História das Expe- ções do real”. Em 2017, mesmo período em que o Cais do Va- riências Religiosas (LHER - UFRJ), em parceria com o CEAP - longo foi reconhecido patrimônio mundial pela UNESCO, uma Centro de Articulação de Populações Marginalizadas em maio das contrapartidas estabelecidas no processo de candidatura de 2017, e aglutinou pesquisadores, representantes do proje- foi a criação de um museu, cujo nome definido inicialmente, to do museu, estudantes e ativistas negros. É importante frisar foi “Museu da Escravidão e Liberdade”. Um grupo de trabalho que a platéia deste evento se compunha predominantemente foi criado por decreto pela secretaria municipal de cultura, por pessoas negras, o que é bastante significativo, quando fa- constituído por integrantes da própria Secretaria, do Instituto lamos de um espaço acadêmico, socialmente restrito. Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), do Arquivo Geral da Primeiramente, foram debatidos aspectos sobre os acha- Cidade do Rio de Janeiro, da Companhia de Desenvolvimento dos arqueológicos da região. Foi questionado o tratamento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), do Insti- dado a esses objetos, suas condições de acondicionamento e tuto Pereira Passos (IPP), da Procuradoria Geral do município e andamento das pesquisas. Em segunda mesa, passou-se ao da Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habi- debate cujo tema era “Musealização: escravidão ou herança tação,e de alguns convidados vinculados a instituições repre- africana?” que rendeu mais uma mesa no segundo dia do sentativas como o Museu do Negro. De imediato, inúmeras evento. Pois bem, o tema sintetiza uma das principais discus- discussões públicas começaram a serem levantadas sobre o sões acerca do museu, que começou em torno de seu nome, museu e o nome estabelecido, assim como sobre a partici- “Museu da Escravidão e Liberdade”. Muitos participantes, pação da sociedade em geral na construção das concepções

105 afirmaram que não reconheciam um museu cujo foco seja para essa tensão é a incorporação desses locais em um museu na escravidão e desconfiam do significado da palavra “liber- de território cuja sede será o novo museu. dade”, visto que, nem se veriam representados como ex-es- Ainda sobre o evento da oficina participativa, no segun- cravos, nem gostariam de afirmar o pós abolição como uma do bloco, os participantes foram divididos em 3 grupos para conquista integral de liberdade. Quase todos os parti- discutir o museu e tirar três opções de nome, já que essa foi cipantes que se expressaram criticaram o nome, afirmando a primeira modificação mais levantada desde a publicação do que ele deveria ser trocado antes de qualquer coisa. A ênfase, decreto. Foram lidos os principais pontos colocados pelos três segundo eles, deveria estar na ideia de diáspora e na herança grupos, que giraram em torno de: recontar a história de forma africana, ainda que fosse logicamente abordado o processo da crítica; expor as principais expressões culturais elaboradas por escravidão, mas afirmando o escravo como sujeito que produ- afrodescendentes; expor as resistências políticas à escravidão ziu conhecimento e cultura mesmo em sua posição social. Ou e ao racismo; e expor alguns dos mais importantes conheci- seja, o eixo, deveriam ser as resistências e o legado africano mentos técnico-científicos desenvolvidos por africanos ou em nosso território, ocorridos durante e depois da escravidão. afrodescendentes na cidade e no país. Foram citadas também as contribuições científicas, artísticas, Fica perceptível portanto a complexidade das demandas sociais de africanos e afrodescendentes nunca divulgadas. Al- apontadas e das expectativas em relação ao museu, que di- guns afirmaram que a escravidão deveria sim ser contada mas ficilmente poderão ser alcançadas, sem um trabalho sólido, sob uma outra ótica, e verdades deveriam ser ditas que foram colaborativo e aprofundado. silenciadas para a maioria da população, como a participação da igreja católica na legitimação da escravidão. Foram horas MEMÓRIA E ESPAÇO, NOVAS CONFIGURAÇÕES de discussão acaloradas, que refletiram o teor das discussões em debates posteriores, como a oficina participativa orga- Sánchez (2001) desenvolve análises sobre a nova forma nizada pela Secretaria Municipal de Cultura que ocorreu em de produção do espaço urbano e dos projetos de revitalização, setembro do mesmo ano, no Centro Cultural José Bonifácio, em muitos casos realizados em regiões portuárias. Ela de- cujo tema foi “Por um museu sobre a verdade”. nomina de “reinvenção das cidades”, um processo no qual Neste evento, no qual compareceram cerca de 150 pes- grande parte das políticas públicas são definidas em função soas, entre elas figuras expressivas na área da temática, teve dos eixos de mercado e da projeção da imagem da cidade como programação, exposições sobre o trabalho dos GT´s que como bem gerida, moderna e desenvolvida para a atração de vinham se reunindo desde março; fala de Nilcemar Noguei- mais investimentos. Em suas palavras: ra, atual secretária de cultura, sobre o tema “Por um Museu Através da análise de alguns processos de sobre a Verdade”; depois foi a vez do ator e produtor cultural reestruturação urbana da década de 90, em Haroldo Costa abordar o tema “A África de Todos os Tempos”; sua relação com os respectivos governos de e por fim a professora Mônica Lima falou sobre “Escravidão e cidade e suas políticas urbanas, é possível Escravizados”. A proposta existente até o momento é a de um identificar interessantes convergências. museu de território, com sede no prédio Docas Pedro II, que Essas convergências dizem respeito às es- fica em frente ao cais do Valongo. Isso se deu porque as outras tratégias utilizadas pelo poder político para instituições existentes na região, reivindicaram o fato de não “vender” as cidades. De fato, a partir de um estarem recebendo incentivos do poder público, e para que determinado momento histórico, aqui iden- o Circuito de Herança Africana não continue sendo negligen- tificado com os anos 90, as cidades passa- ciado. A indagação desses atores é, por que investir milhões ram a ser “vendidas” de modo semelhante, em um novo museu se os equipamentos existentes estão o que sugere que o espaço das cidades se sucateados, se um sítio arqueológico de importância interna- realiza agora enquanto mercadoria. (2001, cional como o do cemitério dos pretos novos vive de doações p.33). de apoiadores? Por isso, a solução encontrada até o momento

106 É de fundamental importância a discussão sobre como gu” (espaços de sociabilidade e culturas afrodescendentes o espaço da zona portuária tem se reconfigurado a partir de do início do século XX) que existiam por exemplo no Largo 2009; Munanga (2012, p. 17) focaliza o binômio espaço-i- da Prainha aonde hoje existe a Casa do Nando; as diversas dentidade cultural como fundamental no entendimento de atividades do Instituto dos Pretos Novos, incluindo o Circuito dinâmicas criadas a partir de diásporas historicamente reco- Histórico e Arqueológico da Herança Africana realizado com nhecidas. Ele afirma: escolas, educadores, pesquisadores semanalmente; o Centro Cultural Pequena África; e a Casa da Tia Ciata, em homenagem Ter uma identidade coletiva significa ter a consciência de pertencer a uma única an- à importante ayalorisá, entre outros locais e manifestações. cestralidade que se materializa não pelos A compreensão de diversos atores envolvidos é que todo “mortos comuns”, mas sim pela consciência o território portuário abriga história e memória, em diferen- de ter um território físico comum. Os escra- tes construções e locais, e que esses locais esquecidos, preci- vizados foram arrancados pela força do seu sam ser evidenciados. Um museu de território possibilitaria a território físico enquanto terra e espaço físi- inclusão do sítio arqueológico do cemitério dos Pretos Novos, co de seus ancestrais fundadores; territórios da Pedra do Sal, do Largo do Depósito (aonde se localiza hoje e terras que constituíam um patrimônio a sede do Afoxé Filhos de Gandhi Rj), do Museu do Negro e social inalienável e não uma propriedade outros locais, estando inclusive incluídos nessa proposta, es- coletiva alienável. No Brasil, como em todas paços na Providência e no Morro da Conceição. Pois bem, o as Américas onde foram transplantados e que entrou em oposição no espaço portuário, foi a necessida- escravizados, a memória de seus territórios de de reafirmação desse espaço identitário com um projeto étnicos foi sistematicamente destruída. que previa o apagamento dessas memórias. Como bem coloca Da memória territorial dos escravizados e Sánchez, seus descendentes sobrou apenas a África enquanto continente negro. Por isso, essa As novas formas de ação no espaço vêm África enquanto continente que sobrou criando nas cidades os chamados “espaços como lembrança indestrutível continua a ser de renovação”, cada vez mais homogêne- recriada, reinventada e idealizada em todos os no mundo todo porque são moldados os discursos identitários da diáspora. a partir de valores culturais e hábitos de consumo do espaço tornados dominantes Consideramos que é impossível analisar o que ocorre na escala mundo. Esses espaços domi- atualmente na zona portuária sem ter em mente que a ques- nados, parcelas da cidade, determinam tão do espaço é fundamental para aqueles que atuam pelo novas especializações, impõe modos de reconhecimento da história e memória da “Pequena África”, e apropriação e comportamentos apoiados em representações que, em alguns casos, que este reconhecimento inclui acima de tudo, reatualizá-la, reforçam e, em outros, determinam novas torná-la viva, ativa e conectada com o restante da cidade. Ou formas de inclusão e exclusão de grupos seja, novas configurações espaciais são construídas quando sociais (2010, p. 47-48). este espaço é novamente apropriado como referência de uma série de processos históricos – culturais que envolvem não só Cada esfera vai colocar seus objetivos e interesses, que a cidade como o país, e que elaboram novas narrativas sobre no caso da região portuária do Rio é permeada por conflitos a nação. Assim, diversas iniciativas recriam essas memórias e e negociações constantes. Ainda que a forma como certas as atualizam: as rodas de jongo, tambor de cuba, capoeira no situações são conduzidas pelos órgãos públicos possa ser con- cais do Valongo; as oficinas, os ensaios, eventos e cortejos do siderada como autoritária, fica claro um esforço de construção afoxé Filhos de Gandhi pelas ruas do entorno; a divulgação de uma aparente democracia, que procura sempre aplacar os da “culinária de terreiro” e diversos aspectos culturais a ela ânimos, ceder para ao mesmo tempo impor. ligados pela Casa Omolokum; a referência às “casas de Zun-

107 CONCLUINDO... com a cultura popular do Rio, mas ao mesmo tempo, cria um decreto lei extremamente restritivo a suas manifestações. O O avanço dos movimentos negros, das políticas públicas jogo da mediação de conflitos, que dá enquanto tira, per- e das concepções de patrimônio após os anos 80 trouxeram manece.Concluímos com a fala de Cardoso (2012, p 34) so- novas possibilidades de recontar a história e reconhecer as bre a predominância do eurocentrismo em nossa sociedade, diversas manifestações culturais e intelectuais da população ancorado nas opressões políticas e econômicas que insistem afrobrasileira. Ainda assim as dificuldades são muitas para em subalternizar a população negra, estruturais do sistema manter vivas expressões culturais tão valiosas como o Afoxé capitalista: Filhos de Gandhi, o Instituto dos Pretos Novos, entre tantas outras. Mesmo com toda a repercussão e movimentação que No Brasil, o eurocentrismo ainda mantém vem ocorrendo na região portuária do Rio, o Instituto está na sua hegemonia na orientação cultural das iminência de ser fechado por falta de verbas, e o Afoxé so- classes dominantes e de seus dirigentes nas brevive do envolvimento voluntário de pessoas que acreditam instituições educacionais, vocacionais e re- na sua importância. Ainda que o poder público ceda algumas ligiosas; nas agências culturais, nas organi- vezes a pressões populares, e que algumas conquistas tenham zações corporativas do mundo do trabalho, sido alcançadas nesse processo extremamente rico, vemos nas corporações midiáticas; nos grupos inte- lectuais;bem como, nas classes médias. Mas que ele é permeado de forças estruturais sociais, que se reve- não menos entre significativa parte dos seg- lam múltiplas faces do racismo. O reconhecimento do Cais do mentos mais oprimidos da sociedade, com Valongo como patrimônio da humanidade pela UNESCO abre implicações trágicas em nossa história. O um novo horizonte de visibilidade das questões discutidas, ao eurocentrismo impede o reconhecimento da mesmo tempo em que assume a prefeitura do Rio Marcelo riqueza espiritual da diversidade, porque só Crivella, sobrinho do pastor Edir Macedo e membro antigo a admite como justificativa da desigualda- da igreja Universal – que coloca como secretária de cultura de. Desse modo, bloqueia a capacidade de Nilcemar Nogueira, mulher negra neta do sambista Cartola, reconhecer as especificidades de diferentes da Mangueira – e institui o polêmico decreto-lei 43.219/17 experiências históricas e de suas implicações que estabelece um novo sistema para autorização de eventos para o conhecimento e para a ação. na cidade. Este decreto considera evento “todo exercício tem- porário de atividade econômica, cultural, esportiva, recreati- AFRICAN HERITAGE AND MEMORY OF SLAV- va, musical, artística, expositiva, cívica, comemorativa, social, ERY: PATRIMONY, SPACE AND POLITICAL DY- religiosa ou política, com fins lucrativos ou não, que gere: I - NAMICS IN THE PORT AREA OF RIO DE JANEIRO concentração de público, em áreas abertas ou fechadas, particulares ou não [Crivo nosso] [...] V - aglomera- Hannah da Cunha Tenório Cavalcanti ções transitórias em qualquer edificação ou estabelecimento, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro tais como festas, comemorações, espetáculos musicais e con- [email protected] gêneres, feiras, convenções, congressos, seminários e simila- res”. Ou seja, o decreto pretende aumentar o controle sobre ABSTRACT o uso do espaço público e até mesmo de espaços privados, e This article intends to discuss from the current context os grupos de cultura popular da cidade, predominantemente of the port area of ​​Rio de Janeiro how the area of ​​the region ligados a expressões negras, estão sentindo os seus impactos. has been recreated around the demands of the memory of Rodas de samba tem sido impedidas de ocorrer ou persegui- slavery and the African heritage, as well as the rescue of the das, assim como eventos em favelas e regiões periféricas da history of the so-called “Little Africa”, which goes beyond cidade. the borders of the port area, reinvigorating political debates Quando o prefeito nomeia Nilcemar para a secretaria de linked to the regional, national and Afro-Brazilian heritage. cultura, parece estar querendo demonstrar que quer dialogar

108 The main axis of the article will be the recognition of the Va- ENTRE PASSADO E FUTURO: MEMÓRIA SOCIAL longo Quay as a patrimony of humanity by Unesco and in the DO QUILOMBO DO ROSA initial construction of the Museum of Slavery and Freedom project (provisional name initially announced), not forgetting David Junior de Souza Silva its interconnection with other issues that occur in parallel. Professor da Universidade Thus, we intend to problematize the process lived by the re- Federal do Amapá – UNIFAP. Doutorando em Geografia pelo Instituto de Estudos gion giving an overview of its development and the political Socioambientais da Universidade discussions around the history, memory and heritage that Federal de Goiás – IESA/UFG were systematically erased in that space, which at the same time that becomes urbanistic, also becomes symbolically, RESUMO and these transformations generate new socio-spatial rela- O Quilombo do Rosa iniciou, assim como muitas comuni- tions and territorialities. The introduction will deal with this dades quilombolas no Amapá, o processo de reconhecimento course starting from the discovery of the archaeological site quilombola e titulação territorial no início do século XXI. Não of the new black cemetery; the second section will address lhe sendo garantido acesso imediato aos seus direitos con- the systematically operated silencing in the port space and stitucionais, a efetivação de sua cidadania depende de uma how more and more stories and memories have emerged; the mobilização política por parte da comunidade. O objetivo da third section will discuss the initial construction of the Muse- pesquisa é interpretar o significado da memória social da co- um of Slavery project and the significance of these events in munidade na sua contemporânea mobilização por reconheci- the socio-spatial and political dimension. mento de sua cidadania. Busca-se assim interpretar o lugar do passado na construção do futuro da comunidade. A metodo- KEYWORDS: Port area, Afro - Brazilian herit- logia adotada foi a da etnografia junto à comunidade, mais age, Space, Social memory. precisamente a modalidade da “etnografia histórica” (Sahlins, 1993), e sob o referencial teórico que explica as relações en- REFERÊNCIAS tre memória e espaço (Halbwachs, 2006). Como resultados, identificamos que o passado é fonte de força política da BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramon. De- comunidade, não apenas no sentido de dele emanar a legit- colonialidade e perspectiva negra. Revista Sociedade e imação do direito reivindicado, mas também de dele emanar Estado – Volume 31, Número 1, Janeiro/Abril 2016. a motivação, o sentido e a força moral para a luta. No passado CARDOSO, Marcos Antônio. Patrimônio Cultural Ne- recente, o assassinato de Benedito, patriarca da comunidade, gro-Africano: Desafios Contemporâneos. In:____. NOGUEI- produziu o elemento emocional que é a principal fonte de RA, João Carlos; NASCIMENTO, Tânia Tomázia do (orgs.). Pat- força política da comunidade. Este assassinato está vivo na rimônio cultural, territórios e identidades. Florianópolis consciência e na estrutura afetiva dos seus filhos. Diante da dor e do impacto desta injustiça, hoje o sentido de defender : Atilènde, 2012, Cap. 1, p. 21-40. o território mistura-se com o sentido de proteção de Maria Geralda, a matriarca, viúva de Benedito. No outro extremo, CAVALCANTI, Hannah da Cunha Tenório. Espaços mu- a memória do passado mais longínquo, alcançado quase que seais e memórias sociais na zona portuária do Rio: o exclusivamente pela imaginação, sua ancestralidade africa- Instituto dos Pretos Novos (IPN). Dissertação de Mestrado na, desempenha papel fundamental na sintaxe da luta por em Memória Social – Universidade Federal do Estado do Rio direitos, pois é a fonte de legitimidade e de sentido da mais de Janeiro, 2016, 133 p. significativa estratégia de territorialização contemporânea da comunidade: sua auto-identificação como quilombola. FERRAZ, Eucanaã. O tombamento de um marco da africanidade carioca. Revista do Patrimônio Histórico e Palavras-chave: Movimento Quilombola; Ci- dadania étnica; Conflitos Territoriais; Amapá; Artístico Nacional, 1997, n. 25, p.335-339. Amazônia.

109 INTRODUÇÃO O objetivo da pesquisa é interpretar o significado da memória social da comunidade na sua contemporânea mo- A comunidades remanescente quilombola do Rosa lo- bilização por reconhecimento de sua cidadania. Busca-se caliza-se na zona rural do município de Macapá, estado do assim interpretar o lugar do passado na construção do futuro Amapá, distante 20km do centro da cidade. O Rosa iniciou, da comunidade. Identifica-se, inicialmente, a memória como assim como muitas comunidades quilombolas no Amapá, o fonte do sentido para a defesa territorial e do modo de vida, e processo de reconhecimento quilombola e titulação territorial a memória como legitimação da luta. no início do século XXI, sendo a abertura do processo datada A metodologia adotada foi a da etnografia junto à co- do ano 2003. munidade, mais precisamente a modalidade da “etnografia Hoje, 15 anos do início do processo, seu território ainda histórica” (SAHLINS, 1993), e sob o referencial teórico que ex- não foi titulado, por conta de muitas adversidades e obstácu- plica as relações entre memória e espaço (RATTS, 1996; HAL- los à titulação pelo caminho. O processo da comunidade BWACHS, 1990), e que desenvolve as relações entre memória encontra-se hoje parado na última etapa, chamada etapa e poder (POLLAK, 1989, 1992). da desintrusão, em que o INCRA, órgão responsável pela de- Ao longo do texto, veremos diferentes elementos do marcação e titulação das regras quilombolas no Brasil, deve passado, um mais longínquo, outros mais próximos, estão desapropriar e indenizar posseiros residentes no território da vivos na memória da comunidade, e dão o sentido, a força comunidade. Esta etapa está parada em razão da ausência de moral-subjetiva, e a legitimação para a luta da comunidade. recursos federais para realizar a desintrusão e indenização dos posseiros. Diante dos muitos obstáculos enfrentados para efeti- MEMÓRIA COLETIVA: CONCEITO vação do direito ao território vividos pelo Rosa, e pelas co- Comunidade afetiva: o substrato da memória social munidades quilombolas e geral - malgrado seja um direito constitucional, respaldado em acordos internacionais assina- Neste artigo, uma primeira abordagem à memória social dos pelo Brasil -, a garantia dos direitos étnicos quilombolas do quilombo do Rosa, e sua relação com os desafios vividos – tanto quanto os indígenas - só se efetiva com mobilização pela comunidade ao longo dos seus 120 anos de história, uti- política intensa por parte das comunidades. Assim sendo, a lizaremos inicialmente como referencial teórico os trabalhos ação do Rosa no sentido da efetivação de seus direitos étnicos de Maurice Halbwachs (1990) e Michael Pollak (1989, 1992). tem sido, desde o início do período em questão, da natureza Ao realizar a conceituação da memória coletiva, Hal- de uma mobilização sociopolítica, caracterizada por difer- bwachs faz seu pensamento girar em torno de algumas entes estratégias, desde a defesa direta do território contra categorias centrais, que podem passar desapercebidas pelo invasores e violências, o acionamento administrativo das leitor, todavia identificáveis; são elas: comunidade afetiva, instancias responsáveis pela regularização do direito quilom- imagem de si, continuidade (e seu atributo: ‘apaziguante’, bola, como Incra, ao acionamento de instâncias jurídicas es- sua natureza: ‘ser desejada, buscada’ pelos seres humanos’), tatais, como Ministério Público Federal e Polícia Federal, for- maneira de ser, imagem do meio exterior e consciência - e a mação de alianças com atores da sociedade civil e utilização relação de mutua constituição entre estas duas últimas. de espaços públicos para denúncias, bem como elementos de O primeiro elemento que está na base da estruturação 1 luta simbólica, nos quais a comunidade tem de responder às da memória social de um grupo : a comunidade afetiva, como tentativas de desqualificação exercidas por adversários e bus- substrato da relação de afinidade (que está na base da for- car a legitimação de sua demanda. mação de grupos, famílias, sociedades). Não sendo, pois, garantido ao Rosa acesso imediato aos Para que nossa memória se auxilie com a seus direitos constitucionais, a efetivação de sua cidadania depende de uma mobilização política por parte da comuni- 1 Grupo é a terminologia básica com que Halbwachs se refere às uni- dade. dades sociais de análise, como famílias, instituições, e diferentes tipos de grupos. O autor não fala em comunidades, porém aplicaremos sua análise para estas, seguindo o caminho já iniciado por Alex Ratts (1996). 110 dos outros, não basta que eles nos tragam falar da perda de seu pai. Não obstante, isto não é feito com seus depoimentos: é necessário ainda que frequência, e nunca sem muita emoção. ela não tenha cessado de concordar com Nos filhos de Benedito e Geralda, esta perda produziu suas memórias e que haja bastante pontos uma forte união em torno de sua mãe, e uma dedicação in- de contato entre uma e as outras para que finita à proteção desta. Esta assertiva é verificada em falas dos a lembrança que nos recordam possa ser filhos do casal, como a dita por um de seus filhos: “aqui nós reconstruída sobre um fundamento comum. fazemos de tudo para blindar mamãe”. Como se a presença Não é suficiente reconstituir peça por peça a da perda de seu pai colocasse os filhos do casal num cotidiano imagem de um acontecimento do passado intranquilo, constantemente alerta à possibilidade de novas para se obter uma lembrança. É necessário ameaças. que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encon- O sentido de defesa territorial dos filhos da matriarca tram tanto no nosso espírito como no dos confunde-se com o sentido de defesa de sua mãe. O sen- outros, porque eles passam incessantemen- tido da defesa do Rosa para esta, é defender, por sua vez, a te desses para aquele e reciprocamente, o memória de sua mãe. que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (HAL- Memória e História BWACHS, 1990, p. 34). Definida internamente nesse conjunto de categorias que A comunidade afetiva, assim, é o fundamento comum orbitam em torno da comunidade afetiva, externamente, que interliga as diferentes memórias individuais. A lembrança Halbwachs define a memória coletiva diferenciando-a de compartilhada, pois, é somente aquela formada por dados, história. noções e afetos presentes no espírito dos diferentes sujeitos A memória coletiva se distingue da história do grupo, para que possam intercambiar-se reciprocamente, pelo menos sob dois aspectos. É uma corren- e, mais, para que haja condição de possibilidade da te de pensamento contínuo, de uma conti- reciprocidade de lembranças, ou ainda, de reconheci- nuidade que nada tem de artificial, já que mento mútuo das lembranças. retém do passado somente, aquilo que ain- Para o caso do Rosa, a comunidade afetiva é formada da está vivo ou capaz de viver na consciên- pelos laços de parentesco e consanguinidade, que não ex- cia do grupo que a mantém. Por definição, istem sem remeter fortemente à ancestralidade familiar co- ela não ultrapassa os limites deste grupo. mum. Porém esta comunidade afetiva tem um sentido forte Quando um período deixa de interessar ao igualmente da consciência de ser uma comunidade que está período seguinte, não é um mesmo grupo sendo sistematicamente alvo de violências, como um caso de que esquece uma parte de seu passado; há, racismo ambiental, e tentativas de esbulho territorial, como na realidade, dois grupos que se sucedem. as tentativas de grilagem e a presença de posseiros em suas (HALBWACHS, 1990, p. 81-2). terras, nos últimos anos. Sua comunidade afetiva, todavia, é mormente marcada A memória social está intimamente ligada a uma socie- pelo sentido da perda. Um evento trágico, de dor imensurável, dade; de tal forma que se muda algo da configuração social, na história da comunidade marca o sentido de sua comunidade os elementos do passado recortados e visibilizados pela afetiva: o assassinato do patriarca da comunidade. A perda memória social também mudam. violenta e injusta de Benedito, para Geralda, sua esposa, Para o caso do Rosa, pela extensão temporal da pesquisa e para seus filhos, marca uma forte emoção, presente até até o momento, de apenas um ano e meio, não se pôde ma- hoje, na vida comunitária. À comunidade não é um tabu pear eventuais transformações de longo período na memória social da comunidade. Todavia, pode-se identificar as relações

111 entre a memória coletiva e os desafios sociais vividos pela co- Existe uma disputa da narrativa feita por N2 e sua família, munidade no presente. posseiros residentes na vila da comunidade, porém esta é Antes de prosseguirmos, devo enfatizar que não estou feita de fora da comunidade, uma vez que na definição das alheio à tradição teórica a qual pertence Halbwachs e nem às fronteiras do Rosa aquela família é exterior à comunidade. críticas, que consideramos muito pertinentes, a essa abord- Às precauções metodológicas é fundamental acrescentar agem feitas por Michael Pollak: a asserção de Ratts, sobre a natureza multidirecional e fragmentária da memória. Na abordagem durkheimiana, a ênfase é dada à força quase institucional, dessa me- A memória é multidirecional, o que pode ser mória coletiva, à duração, à continuidade e observado em microprocessos de constru- à estabilidade. Assim também Halbwachs, ção e de incidência: indivíduos com diver- longe de ver nessa memória coletiva uma sos pontos de vista e interesses, alterações imposição, uma forma específica de do- na tradição, modos de comunicação oral minação ou violência simbólica, acentua e outros canais de transmissão; ênfases e as funções positivas desempenhadas pela esquecimentos. Não existe uma totalidade memória comum, a saber, de reforçar a monolítica e os fragmentos podem ser ar- coesão social, não pela coerção, mas pela ticulados tanto pelo observado, como pelo adesão afetiva ao grupo, donde o termo que observador. (RATTS, 1996, p. 5-6). utiliza, de “comunidade afetiva”. (POLLAK, 1989, p. 3) A articulação dos fragmentos da memória, no que con- siste em geral o procedimento metodológico deste ramo de Estou ciente, portanto, das relações entre memória e pesquisas, não é privilégio do pesquisador. Já é um trabalho poder, e como o poder estabelecido trabalha para impor a realizado, menos ou mais sistematicamente, pelas moradores memória que lhe legitima e contribui para reproduzir seu das comunidades. A pretensão de uma totalização completa poder, e apagar ou silenciar lembranças que sejam inconven- deve ser deixada de lado, porque mesmo a reconstituição ientes à sua reprodução. científica da memória de uma sociedade não poderá recu- Todavia, para o caso assinalado, de uma comunidade perá-la completamente. A totalidade monolítica não existe tradicional que não só tem, mas busca a coesão interna, na realidade, e não poderá existir no papel. busca erigida sobre um intenso afeto (o amor por Geralda, e a comunhão dos irmãos entre si), e sobre preocupações co- Memória e identidade muns compartilhadas, entre todos, a defesa de seu lar, entre os filhos, a defesa de sua mãe. No caso da comunidade em dentidade em contextos multiétnicos de contato análise, não existe uma coerção em torno a compartilhar os Uma preocupação, mesmo inconsciente, com a identi- mesmos valores e sentimentos; ao contrário, a existência dade só se coloca no contato com o outro. Contextos pluriét- destes precede qualquer coisa, e anda lado a lado com os nicos de intenso contato colocam situação singular para os laços sanguíneos, e de parentesco e afinidade - não obstante, arranjos identitários. Além das influências do contexto, terri- as fronteiras do grupo em relação ao exterior, e inclusive a tório e memória incidem sobre a dimensão identitária da vida outros ocupantes do território da comunidade, seja muito comunitária. bem delimitada. Em suma, no interior da comunidade não há uma disputa por sua memória, não há diferentes narrativas A relação entre coletividade e espaço, em disputando a hegemonia. O intenso afeto compartilhado e um contexto pluriétnico de intenso contato, recíproco é o fundamento comum da memória. não se resume aos limites visíveis das terras ocupadas. Se, como propõe George Marcus, a produção de identidades é “multilocaliza-

2 Nome fictício. 112 da e dispersa”, mesmo quem trabalha numa p. 4). Para o caso do Rosa, esta distinção existe, e ela se agre- pesquisa “localizada” pode observar esse gam outras. processo por outro ângulo que não aquele O primeiro elemento desta estrutura é a África. Esta apa- da comunidade sólida e homogênea. Em rece como imagem da origem de todos. pequenos grupos, numa área delimitada, Em seguida, o tempo dos primeiros antepassados, onde se espera uma harmonia entre o gru- o tempo em que viveu Venina, que era tão antiga que “falava po, a memória coletiva e o território, aconte- arrastado o africano ainda” (Erasmo, filho da matriarca). Este é cem vários processos, às vezes conflituosos, também o tempo do mocambo do C-riaú, local de resistência de incidência do passado, construção da à escravidão. E também é o tempo de Josino Valério, ancestral auto-representação e do território. (RATTS, mais antigo da comunidade. 1996, p. 4). Em seguida, há o tempo de Maria Nazaré. Mãe de Geralda, avó de seus filhos. Também é o tempo da construção Para o caso do Rosa, processos conflituosos, à medida da estrada de ferro. que vêm ao primeiro plano na consciência da comunidade e Por último, o tempo presente, abrangendo as duas demandam um estado de consciência especifico bem como primeiras décadas do século XXI. Iniciado com a tentativa de uma configuração social determinada, com um conteúdo depósito de rejeito de manganês nas terras do Rosa por uma político específico e radicalmente novo na história do grupo, mineradora. Este é o período de imposição de novos desafios incidem na construção da auto-representação da comunidade ao Rosa, quando intensificam-se, além do episódio narrado, e de seu território. Os processos conflituosos vividos pelo Rosa as tentativas de esbulho territorial e violência sofridas pela ativaram determinados elementos, antes em segundo plano, comunidade. É o período do tempo recente, caracterizado de sua identidade, exigiram uma nova relação com o espaço, pela mobilização política da comunidade em torno da defesa antes de apropriação segundo um uso e sentido tradicionais, de si, seu território e seu modo de vida. agora sendo acrescentado um sentido importante de defesa. O tempo presente é caracterizado por esta mobilização As ameaças externas e violências sofridas e potenciais são os política. Esta mobilização marca grande parte da vida con- fatores que exigiram como resposta uma nova relação entre temporânea da comunidade, e é diretriz para muitas decisões coletividade e espaço, sob pena de seu desaparecimento. e condutas do seu cotidiano atual. Todavia, ela não se con- Nestes processos, o passado, nos termos da citação de funde com a identidade do Rosa. Seu movimento sociopolíti- Ratts, ou se se preferir, a memória, incide como principal el- co é uma estratégia de defesa territorial, e não engloba tudo o emento estruturante da identidade. Não se trata de uma es- que o Rosa é. Seu ser é muito mais amplo que isto. colha nem de uma estratégia. A comunidade se volta natural- Como fonte decisiva do sentido de identidade da comu- mente para isto. Em momentos critérios como este, emerge o nidade, sua memória é formada por muitos outros elementos, ser mais íntimo da comunidade. No caso do Rosa, e de outras a maior parte deles alheio a sentidos políticos ou de defesa comunidades negras rurais, o ser remanescente de escravo, de territorial. Halbwachs tem uma explicação que dialoga com par com a ancestralidade africana. este fato: Distinções temporais na memória e elementos con- (...) na memória, as similitudes passam, stitutivos do território negro: um diálogo com Alex entretanto, para o primeiro plano. O grupo, Ratts no momento em que considera seu passado, Tempo sente acertadamente que permaneceu o mesmo e toma consciência de sua identida- Alex Ratts, identifica e assinala certa recorrência de uma de através do tempo. (...). É então o tempo estruturação da memória da comunidade na categorização decorrido no curso do qual nada o modificou de tempos distintos: “Entre os Caetano existe uma distinção profundamente que ocupa maior espaço em entre o passado recente e os primeiros tempos”. (RATTS, 1996, sua memória. (HALBWACHS, 1990, p. 87).

113 Os períodos de continuidade são os que marcam mais desenho original de Conceição, e deve incluir esse território intensamente a memória e a identidade da comunidade. A extenso que se fundamenta na memória, nos percursos dos memória e o ser do Rosa não são sua mobilização política. A antepassados” (RATTS, 1996, p. 22). estratégia e ação política é somente uma parte da memória e Para o caso do Rosa, este percurso e este parentesco da identidade da comunidade. existem na lembrança. Uma lembrança afetuosa, porém Neste tempo presente, uma nova territorialidade vem se não incorporada ao sentido de território contemporâneo da incorporar à territorialidade do Rosa. Incorporar-se, não sub- comunidade. stituir, engendrando uma multiterritorialidade. É a territorial- A lembrança por exemplo do mocambo, esconderijo idade da decisão ativa de defender o território. dos escravos que conseguiam fugir do trabalho forçado na Acontecimentos pontuais não conformam a identidade Fortaleza de São José. Na memória da comunidade, este mo- do grupo. Todavia, na reflexão de Halbwachs, há aconteci- cambo aparece eivado de afeto, como o local onde seus ante- mentos que, por sua magnitude ou qualidade, fazem nascer passados se abrigaram para fugir da escravidão. Localizava-se um “novo grupo” do grupo antigo. nas matas do C-riaú, que a época eram bem mais fechadas, inacessíveis ao colonizador, possibilitando esconderijo seguro. Se o acontecimento pelo contrário, se a iniciativa de um ou de alguns de seus mem- Os antepassados são sempre lembrados com afeto. Des- bros, ou enfim, se circunstâncias exteriores de Josino Valério, fundador da comunidade, que conseguiu introduzissem na vida do grupo um novo libertar-se da condição de escravo, viveu no mocambo do elemento, incompatível com seu passado, C-riaú, depois fundou o Rosa, até a mãe de Geralda, lembra- um outro grupo nasceria, com uma me- da com carinho, e cujas lembranças suscitam momentos de mória própria, onde subsistiria apenas uma risos, como quando ela “emprestou” parte de sua terra para lembrança incompleta e confusa daquilo construção de uma ferrovia, na expectativa de que, quando que precedeu esta crise. (HALBWACHS, não usassem mais, lhe devolveriam a terra. 1990, p. 87-8). Estas lembranças existem, marcadas por um intenso afe- to, todavia pairando sobre elas uma resignação. A resignação Em termos geográficos, poder-se-ia dizer que não é tanto em relação ao passado e aos locais do passado, lemb- um novo grupo, mas uma nova territorialidade que nasce. rados com amor, porém inacessíveis mais por terem ou de- E, dados os vínculos entre memória, espaço e território, esta saparecido pela ação de outros ou apropriados por outrem; e nova territorialidade tem influência sobre os elementos da tanto em relação aos parentes, que, sendo de outras comuni- memória que serão trazidos ao primeiro plano. dades, escolheram um destino diferente em relação ao Rosa. Para o caso do Rosa, a tentativa de depósito de rejeito de E um sentido básico desta noção de destino é a escolha pelo manganês pela mineradora e a morte violenta do patriarca, trabalho pelo seu território, e a produção do sentido deste. É Benedito, são acontecimentos que levaram a comunidade a como se cada um e cada comunidade fosse responsável pelo disposição de uma nova territorialidade. Aos elementos da trabalho de produção – o que inclui defesa – de seu território; memória da comunidade identificados ligam-se lembranças e deste território produzido emanasse o sentido que diz o des- que portam efeitos de legitimação de sua mobilização pela tino – e o ser identitário – de cada um. Não há discriminação, efetivação de sua cidadania, lembranças tanto de momentos não há hierarquia. Mas há a consciência e aceitação tácita de de luta e resistência como da ancestralidade africana. destinos diferentes. E a certeza de que cada um é responsável por seu destino. Espaço Os parentes nas outras comunidades são no geral lem- brados com afeto. São sempre convidados para as festas. Isto Alex Ratts indica que o percurso dos antepassados e o vale também para alguns agregados que vivem em Macapá. parentesco são elementos constitutivos do território negro Este afeto, apesar de real e constitutivo do modo de ser comu- para a comunidade de Conceição dos Caetano. “Quem dese- nidade, que não pode passar sem ele, todavia, não tem des- ja entender o território negro não pode se limitar ao 114 dobramentos territoriais. Ou seja, este afeto pelos parentes cam têm muita significação. Não estávamos não incide sobre o sentido de território da comunidade. O errados ao dizer que estão em torno de nós sentido de território é formado por aqueles que decidiram como uma sociedade muda e imóvel. Se não vincular seu destino a ele, ou seja, aqueles que decidiram falam, entretanto os compreendemos, já viver naquela terra. Não se expande necessariamente para que tem um sentido que deciframos fami- outros lugares onde há o parentesco ou a memória, porque liarmente. (...) (HALBWACHS, 1990, p. 133). uma pretensão como esta não se legitimaria pelo desvínculo do destino, ou da vida, com aquele território – não obstante o Destarte, a materialidade produzida pela sociedade não afeto inegável entre os parentes. é aleatória ou arbitrária. Ela é plena de sentido e coerente Outrossim, aqueles que ligaram seu destino ao território com os significados culturais e relações sociais da sociedade do Rosa, mesmo não tendo origem nele, ou vínculos consan- que a produz. Na apropriação específica do espaço engendra- guíneos, foram pela comunidade incorporados a ele. É o caso da por cada sociedade estão expressas suas relações sociais de pelo menos quatro pessoas: Macico, Bacabinha, Rogério e constitutivas. O espaço não poderia ser apropriado de outro Adriano. A escolha destes três de ligar sua vida ao Rosa, e a jeito que não por meio dos critérios fornecidos pelo código efetivação desta ligação ao longo de suas vidas, no caso dos sociocultural. dois últimos, tendo se casado com mulheres quilombolas do Outrossim, o espaço apropriado impõe de volta uma Rosa, levou a comunidade a incorporá-los ao seu território. O imagem à consciência do grupo – que se identificará nesta que não significa, como veremos adiante, direito ao território. imagem. A estabilidade do alojamento e de seu as- MEMÓRIA COLETIVA E ESPAÇO pecto interior [em termos conceituais, do mundo material com suas qualidades intrín- Não sendo uma sua função, a memória social relacio- secas, porém organizado pelos seres huma- na-se diretamente com o território e a territorialidade da co- nos em sociedade] impõem ao grupo a ima- munidade. Numa via de mão dupla: tanto a memória é fonte gem apaziguante de sua continuidade. subjetiva onde está a inscrição do território da comunidade e (...). Não está totalmente errado. Quando de sua territorialidade, tal como estudado por Ratts (1996), um grupo está inserido numa parte do tanto é do espaço apropriado que ela retira as imagens que espaço, ele a transforma à sua imagem, ao formam sua substância, como nos diz Halbwachs (1990). mesmo tempo em que se sujeita e se adapta Ao falar da relação entre o mundo externo e o mundo às coisas materiais que a ele resistem. Ele se interno, ou, se se preferir, o mundo material e o mundo men- fecha no quadro que construiu. A imagem tal, das representações, Halbwachs argumenta que não é co- do meio exterior e das relações está- incidência a harmonia que se nota entre as pessoas (e tudo o veis que mantém consigo passa a pri- meiro plano da ideia que faz de si mes- que é próprio das pessoas, representações, relações sociais) e mo. Ela penetra todos os elementos de os lugares (aqui entendido como sua materialidade). É uma sua consciência, comanda e regula sua mútua determinação que está em jogo. evolução. A imagem das coisas participa da Não é uma simples harmonia e correspon- inercia destas. (HALBWACHS, 1990, p. 133). dência física entre o aspecto dos lugares e das pessoas. Mas cada objeto encontrado, Esse mundo exterior transformado à imagem do grupo e o lugar que ocupa no conjunto, lembram- que nessa porção do espaço vive incide sobre a auto-repre- -nos uma maneira de ser comum a muitos sentação que o grupo faz de si e os demais elementos de sua homens. (...) (HALBWACHS, 1990, p. 132). consciência. O mundo externo transformado tem sua imagem refletida na consciência do grupo que o produz. Espaço e con- De fato, as formas dos objetos que nos cer- sciência se determinam mútua e reciprocamente.

115 A imagem imposta de volta à consciência pelo espaço ao local para impedir a mineradora de continuar fazendo e incidirá igualmente sobre a memória social; as imagens espa- expulsá-la. ciais farão parte e darão matéria para a memória social. Na ação, a comunidade destruiu toda a estrutura mon- tada pela mineradora para realizar o depósito, impedindo-a Assim se explica como as imagens espaciais desempenham um papel na memória cole- de seguir com seu plano. Neste episódio, seus vínculos com tiva. (...) O lugar recebeu a marca o lugar vieram à tona mais fortemente. E sua atitude face ao do grupo, e vice-versa. Então, to- mundo externo também. Após este episódio a comunidade das as ações do grupo podem se traduzir em fundou sua primeira associação, a Associação dos Moradores termos espaciais, e o lugar ocupado por eles e Produtores do Quilombo do Rosa, e iniciou seu processo é somente a reunião de todos os termos. administrativo de reconhecimento como comunidade re- Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em manescente quilombola e de regularização fundiária como si mesmo tem um sentido que é inteligível tal junto ao Incra. Uma atitude de defesa ativa do território, apenas para os membros do grupo. Porque então, configurou-se com termos próprios. todas as partes do espaço que ele ocupou Pode-se dizer, pois, que este evento, como um “acontec- correspondem a outro tanto de aspectos di- imento excepcional” em que “os vínculos que o ligavam ao ferentes da estrutura e da vida de sua socie- lugar se tornaram mais claros, no momento em que iam se dade, ao menos, naquilo que nela havia de romper” (Halbwachs, loc. cit.), disparou uma transformação mais estável. (HALBWACHS, 1990, p. 134). na territorialidade do grupo e uma nova territorialização. Halbwachs prossegue em sua ênfase de como aconteci- Tanto o lugar recebe a marca do grupo, como este incor- mentos excepcionais transformam o grupo e sua relação com pora a marca daquele em sua consciência. o lugar. Nesta dialética, os acontecimentos singulares têm lugar: podem tanto transformar a relação do grupo com o território, Porém um acontecimento realmente grave quanto, sem necessariamente modificar, evidenciar os víncu- sempre causa uma mudança nas relações los que o ligam a esta porção do espaço apropriada. do grupo com o lugar, seja porque modifi- que o grupo em sua extensão, por exemplo, Certamente, os acontecimentos excepcio- uma morte ou um casamento, seja porque nais também têm lugar neste quadro es- modifique o lugar, quer a família enriqueça pacial, mas porque na ocasião certa o grupo ou empobreça, quer o chefe da família seja tomou consciência com mais intensidade convocado para um outro posto ou passe a daquilo que ele era desde há muito tempo e ter outra ocupação. A partir desse momento, até este momento, e porque os vínculos que não será mas exatamente o mesmo grupo, o ligavam ao lugar se tornaram mais claros, nem a mesma memória coletiva; mas, ao no momento em que iam se romper. (HAL- mesmo tempo, o ambiente material não BWACHS, 1990, p. 134). será mais o mesmo. (HALBWACHS, 1990, p. 134). O quilombo do Rosa viveu uma exata experiência que lhe fez evidenciar seus vínculos com o lugar. O episódio de Para o caso do Rosa, o acontecimento mais grave e mais injustiça ambiental sofrido a partir de uma mineradora da traumático, ocasionador da maior transformação na história região. Neste episódio, a mineradora cavou doze imensas recente da comunidade, foi a perda violenta do patriarca da valas no território da comunidade, onde estava depositando e comunidade, assassinado a mando de um grileiro da região. iria enterrar rejeito tóxico da mineração. Quando a minerado- A perda violenta de Benedito trouxe a sua esposa e seus ra tinha preenchido já uma das células com o rejeito da min- filhos a consciência de que a violência contra a comunidade eração, a comunidade do Rosa descobriu a ação e dirigiu-se era uma certeza; que estavam em uma posição vulnerável,

116 demandando uma posição ativa frente a este mundo que se são realçados; e à medida em que o ambiente social em que apresentava agora violento com a comunidade. se insere a comunidade é reavaliado conscientemente, diante Ao mesmo tempo, junto à dor e a saudade, a perda de dos fatos novos que se apresentam, a representação do es- Benedito trouxe uma mudança no estado de espírito da co- paço - de seu território e dos movimentos de territorialização munidade, para uma disposição espiritual agora permanen- exteriores que porventura cruzam seu território ou compro- temente alerta e atenta à possibilidade de novas ameaças metem de algum modo sua autonomia territorial, também reais. altera-se, incorporando estes acontecimentos excepcionais, Diante de fatos históricos novos que se impõem a vida co- que por sua natureza e magnitude, não podem não ser incor- munitária e a agridem, uma transformação na vida escritural porados. e territorial se processa, em que se relacionam representação A representação do espaço depende do estado da vida do mundo, auto-representação de si, tradição e memória, de social: ou seja, das relações sociais, do código cultural, e do um lado, e espaço e território, de outro. movimento político. Tradição e memoria tem papel motriz e diretor no novo rearranjo: tanto são energia para a mudança e novo movi- ALGUMAS IMAGENS DA MEMÓRIA ESPACIAL DO mento necessários, quanto são alicerce de estabilidade para ROSA continuidade como comunidade. Esta seção reúne alguns elementos da memória social do Um grupo, ao contrário, não se contenta em Rosa, por meio do vínculo discutido entre memória e espaço. manifestar que sofre, em indignar-se e pro- Apesar de os moradores do Rosa, como a maioria dos testar na hora. Resiste com todas as forças quilombolas em áreas rurais do amapá, serem também pes- de suas tradições, e essa resistência não per- cadores e saberem locomover-se pelos rios quando precisam, manece sem efeito. Procura e tenta, em par- em sua vida comunitária nas terras da comunidade as prin- te, encontrar seu equilíbrio antigo sob novas cipais vias de locomoção são terrestres. Uma rodovia e uma condições. (HALBWACHS, 1990, p.137). estrada de chão, ambas cruzando a vila da comunidade; uma ligando-a a área urbana de Macapá, a outra ao Rio Matapi. São pois ao mesmo tempo que energia e sentido para Pela rodovia circulam veículos particulares, transportes co- a mudança necessária, fonte da estabilidade e do sentido de letivos e carretas de transporte de mercadorias; pela estrada continuidade. que vai da rodovia ao Rio Matapi, cruzando a vila, passam Das comunidades étnicas, boa parte da força e do sentido veículos particulares, de pessoas de outras regiões indo aos para a resistência vem da tradição. A reflexão de Halbwachs balneários que são acessados por meio do rio. nos indica que esta também se liga e é conservada pelo es- Este ramal, como é chamado, era de uso dos moradores paço criado pelo grupo. do Rosa para acesso ao Rio Matapi e igarapés, para pesca, o desígnio dos antigos homens tomou acesso à mata para coleta de açaí, bacaba, manga e laranja. corpo dentro de um arranjo material, quer Também era acesso à parcela do terreno da comunidade os dizer, dentro de uma coisa, e a forca da tra- antigos tiravam pedra para vender para a construção civil. dição local veio da coisa, da qual era a ima- Fazia parte da economia do Rosa, até uma geração atrás, a gem. (HALBWACHS, 1990, p.136-7) extração de pedras para vender para construtoras. O último morador que se tem lembrança de trabalhar tirando pedra é Território e territorialidade mudam diante e aconteci- Benedito, esposo de Geralda. mentos excecionais. Neste processo, memoria e representação Na lembrança de Geralda, este ramal que liga a rodovia do espaço acompanham esta mudança. A medida em que ao Rio Matapi “era um caminho de andar a pé. Depois quan- determinadas emoções são despertadas diante de certos do começou a ter carro para ir até o rio que carro começou a acontecimentos, e ao serem projetadas incorporaram-se no passar aí e virou esse ramalzinho. Na beira do rio tinha um espaço, involuntariamente diferentes elementos da memória lugar para atracar as canoas, naquela época era tudo canoa à

117 remo, depois que o povo foi aumentando lá para atracar mais Esse peão que mora aqui [fazendo alusão canoas aí virou aquele porto”. ao cunhado de Geralda, viúvo de sua irmã Este “caminho de andar a pé” esteve associado à repro- Leanor] arrancou muita pedra daí, vendeu dução econômica da comunidade. Macico conta que no pas- muita pedra. Outro senhor arrancou muita sado andava muito nesse caminho, a pé, até a beira do Rio pedra daí, cearense, Jaime o nome dele. Matapi, para pescar, uma época em que dava muito peixe. Saía para aí de manhã e só chegava final E recorda também a diferença nos instrumentos de pesca: da tarde. Passava o dia para aí arrancando “Naquele tempo era tudo no remo, hoje que tem muita ra- pedra. Pedra para fazer piso, levantar casa. Naquele tempo tinha valor, hoje eu não vi beta”. mais ninguém comprar pedra. A memória do passado como um tempo de fartura apa- rece. “Hoje tem menos peixe, mas eu dou razão. O povo não Macico explica então porque a atividade decaiu. respeita o rio”. (Macico) Ainda sobre sua reprodução econômica, é este trecho Depois que inventarem esse seixo não vi que dava caminho à região do território onde se extraíam os mais ninguém comprar pedra nem pissarra. bens da terra. O extrativismo durante muito tempo foi impor- Se vende é muito pouco, porque a gente tante atividade econômica do Rosa. quase não vê. O seixo vem ali da beira do Além do peixe, açaí e bacaba, coletava-se muita manga Araguari, que é tirado na água. A fundura nesse trecho das terras da comunidade. Macico recorda: “Isso dos buracos que esses homens arrancavam aí uns anos atrás dava muita manga. O pessoal levava muita pedra. A fundura que você caía lá dentro quase não aparecia de fundo que era. É um manga, mas não vencia. Dava muita laranja, limão galego. trabalho duro o de arrancar pedra. Maltra- Mas aí foi se acabando. Hoje em dia não tem mais nada”. ta muito o peão. Já pensou todo dia o cara O Rosa já não pode contar com o extrativismo para com- fazer poço. por sua reprodução econômica, visto que o tempo de fartura de bens da natureza esgotou-se. Josielson, 30 anos, filho de À esta altura da recordação, Macico lembra de Benedito, Geralda, explica que à medida que mais pessoas de fora da marido de Geralda. “O pai dela [apontando para, Joelma, uma comunidade, vindas de carro, usavam essa rodovia, os frutos das filhas de Geralda] arrancou muita pedra também. Aquele da terra escassearam. Hoje, não se encontra mais as terá da homem era muito trabalhador. O serviço dele era roça mes- comunidade açaí, peixe, manga ou laranja. A bacaba encon- mo; tirava pedra nas horas vagas”. O extrativismo artesanal de tra-se só em poucas épocas do ano, e mesmo assim, as poucas pedra complementava a economia de trocas da comunidade. vassouras (como são chamados os cachos da fruta) tem de ser Macico conta como na época de estudo das crianças, disputados com moradores de fora, que acessam as terras da Benedito cuidava sozinho do Rosa. “Quando chegava o tempo comunidade para colher da fruta. da escola das crianças, ela [Geralda] se bandeava com as cri- Além dos moradores do Rosa, no passado e no presente, anças pra cidade; ele [Benedito] ficava aqui sozinho, mas dava os moradores da beira do Rio Matapi e igarapés adjacentes conta do recado. Passavam a semana pra cidade, aí quando usavam e usam também o ramal. “O pessoal que morava aí na era fim de semana vinham com elas”. beira do rio Matapi vinha de pé aí pra rodovia pra pegar carro. Sobre o tempo de estudar das crianças, Macico relembra Vinha de pé lá da beira do rio pra cá” (Macico). da inexistência de escolas nas proximidades da comunidade, Macico lembra bastante dos tempos de arrancar pe- e o esforço de Geralda para garantir que os filhos estudassem. dra no Rosa, como parte expressiva das atividades econômi- “Pelo interior era a coisa mais difícil ter escola. Na época dela cas da comunidade, como uma movimentada atividade em [da Geralda] ela e o irmão dela iam na Campina Grande estu- tempos anteriores. “Arrancaram muita pedra aí pra dentro, aí dar. Iam de pé lá estudar. Aqui podia ter escola, mas não tem. tinha muita pedra. Vinha caminhão, caçamba, comprar pedra Tem na Campina Grande, pularam aqui, e no Mel tem outra”. a í ”.

118 A diferença geracional no acesso à educação formal está hecer alguém é conhecer sua origem e seu parentesco, seus presente: “A tia Teófila nunca estudou. Não sabia ler. Na época familiares. Desconhecer isso é não conhecer uma pessoa. que ela nasceu era mais difícil escola”. E também o reconheci- Há uma reprovação da conduta de Benedito na convivên- mento de alguns problemas que geram dificuldade na oferta cia com a comunidade. de educação aos quilombos. “Hoje os professores que estão na O cara vai para a terra dos outros, não se dá cidade não querem vir por interior”. com os donos da terra, como é que vai viver Sobre a rodovia que liga a comunidade à área urbana de assim. Uma vez ele disse pra mim que não Macapá, Macico lembra que o trajeto era feito pelos quilom- gostava do povo daqui. Era para se tratar bolas faziam a pé. bem. Vamos se unir, deixar de ser orgulhoso. O velho Joaquim quando era vivo ia a pé pra Ele nunca foi uma pessoa de chegar e con- Macapá. Naquela época quase não tinha versar com o dono da terra. Sempre viver carro. Pra você pegar um carro era muito afastado. difícil. Era três horas a pé daqui pra Macapá, no bom andar. Ia na época de fazer as com- O orgulhoso assim é o sujeito que não se mistura. Expres- pras dele, as despesas dele, é que ele ia. Aí sa a auto-atribuição de um valor humano maior do que o dos depois começou a da r mais carro, aí pro convivas. caboclo fica mais fácil. Sobre a família de N, Macico também expressa desagra- do. Especialmente sobre o fato de tentarem se impor e tomar Eram três horas a pé, para adquirir alguns produtos man- conta da comunidade. ufaturados, a ‘despesa’. Apesar do trajeto ser feito a pé com Esse pessoal tão metido a gato do mato naturalidade, há o reconhecimento de que o carro (veículos com a Geralda, mas não adianta, eles são de transporte coletivo em geral, ônibus, vans), hoje, facilita tudo emprestado, a terra é dela, eles estão a ida à cidade. aí emprestado. Ainda querem ser bonzão. Esta rodovia tinha uma importância significativa para to- Pode bancar o valente pra quem não conhe- dos moradores do entorno do município de Macapá, pois era ce, não sabe. Mas para mim não. Esses aí da o único acesso também a um quilombo vizinho, o quilombo frente [aponta para a família de Vitalino], e do C-riaú. “Quando não tinha a rodovia do C-riaú (AP 070), o esses aí de trás. povo tinha que vir até aqui (Km 25 da BR156) para pegar o ramal para ir até lá. O lago não era aterrado. Quem ia por lá A fundação da legitimidade do direito ao território está era de remo” (Bacabinha). expressa nesta fala, que ademais indica a estrangeiridade da Estão presentes também imagens de descontentamento família de N. expressa no termo “emprestado”. e desgosto na memória da comunidade, sobre algumas pes- A relação de força pura, como vemos, não tem vez. soas que causam ofensa ou magoa Qualquer pretensão territorial de força tem se sustentar obje- Sobre T.3, marido da finada Maria. “Agora esse aí nin- tivamente. Deve ter legitimidade. A valentia tem que ter um guém sabe de onde ele é”. Macico diz isso referenciando o lastro na objetividade. As pretensões existem, mas precisam fato de não saberem de que local vem e quem é a família de ter base, uma base reconhecida no sistema de legitimidade Benedito. A expressão de desconhecimento permanece não da comunidade. obstante a convivência de longa data com ele: “Muito tempo No caso, as pretensões da família de N. não se sustentam: nós trabalhamos juntos na roça”. E anda lado a lado com a ex- São valentes à toa, porque ela não está no pressão do desconhecimento, apesar da convivência de longa que é deles. Ela está no que a mãe deixou data: “Eu até nem sei lhe dizer qual é a terra que ele era”. Con- pra ela. Com ela não tem papo furado. Se ela der bobeira, eles estavam por cima da situação. Querem fazer questão de terra que 3 Nome fictício 119 não é deles. O caso deles é vender terra, não Neste meio tempo, algumas memórias as quais estão é trabalhar não. Principalmente esse aí da associados elementos importantes do código cultural da co- frente: se ele tomar conta, ele vende tudo. munidade. Memória da fundação da comunidade, por Josino Valério, que dá existência ao Rosa e legitima sua autonomia Macico relembra a participação de N. no episódio da territorial. E a memória da mãe de Geralda, de onde vem o mineradora. “Foi um pega pra capar desgraçado. Queria fazer direito à terra, importante porque é a memória que fornece os uma embolança pra comunidade. Eu digo que ele não pode critérios que determinam quais descendentes têm esse direto. fazer isso. O terreno nem é dele, como é que vai fazer?!”. Estas palavras denotam a existência de um sistema de legitimidade já estabelecido na comunidade. Todavia, as pa- BETWEEN PAST AND FUTURE: SOCIAL MEMORY lavras “eu digo” denotam igualmente uma luta para defender OF QUILOMBO DO ROSA e para fazer valer esse sistema. O sistema de legitimidade da comunidade não pareceu em nenhum momento estar The Quilombo do Rosa started, as well as many quilom- ameaçado, todavia um processo de luta simbólica não está bola communities in Amapá, the quilombola recognition ausente. process and territorial titling at the beginning of the 21st Além das imagens associadas a estes elementos espa- century. Not being guaranteed immediate access to their con- ciais e as atividades econômicas – portanto, também, mate- stitutional rights, the realization of their citizenship depends riais- da comunidade, há a saudade e o efeito como alicerce on a political mobilization on the part of the community. The de imagens da memória. A lembrança de Benedito, esposo purpose of the research is to interpret the meaning of the de Geralda, está presente, uma imagem com forte conteúdo social memory of the community in its contemporary mobi- emocional. lization by recognition of its citizenship. It seeks to interpret the place of the past in the construction of the future of the CONCLUSÃO community. The methodology adopted was that of ethnogra- phy with the community, more precisely the mode of “histor- Como resultados, identificamos que o passado é fonte de ical ethnography” (Sahlins, 1993), and under the theoretical força política da comunidade, não apenas no sentido de dele framework that explains the relations between memory and emanar a legitimação do direito reivindicado, mas também space (Halbwachs, 2006). As results, we identify that the past de dele emanar a motivação, o sentido e a força moral para is the source of political strength of the community, not only a luta. in the sense that it emanates the legitimation of the right No passado recente, o assassinato de Benedito, patriarca claimed, but also of emanating the motivation, meaning and da comunidade, produziu o elemento emocional que é a prin- moral force for the struggle. In the recent past, the murder cipal fonte de força política da comunidade. Este assassinato of Benedito, patriarch of the community, produced the emo- está vivo na consciência e na estrutura afetiva dos seus filhos. tional element that is the main source of political strength Diante da dor e do impacto desta injustiça, hoje o sentido de of the community. This murder is alive in the conscience and defender o território mistura-se com o sentido de proteção de affective structure of their children. Faced with the pain and Maria Geralda, a matriarca, viúva de Benedito. the impact of this injustice, today the sense of defending the No outro extremo, a memória do passado mais longín- territory mixes with the sense of protection of Maria Geralda, quo, alcançado quase que exclusivamente pela imaginação, the matriarch, widow of Benedito. At the other extreme, the sua ancestralidade africana, desempenha papel fundamental memory of the more distant past, almost exclusively achieved na sintaxe da luta por direitos, pois é a fonte de legitimidade e by imagination, its African ancestry, plays a fundamental role de sentido da mais significativa estratégia de territorialização in the syntax of the struggle for rights, since it is the source contemporânea da comunidade: sua auto-identificação como of legitimacy and meaning of the most significant strategy quilombola. of contemporary territorialization of the community : his self-identification as a quilombola. 120 Keywords: Quilombola Movement; Ethnic Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/pub- citizenship; Territorial Conflicts; Amapá; licacao/RevPat25_m.pdf acesso em 20 Jan. 2017. Brazilian Amazon. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio no Bra- REFERÊNCIAS sil. In:____. O patrimônio em processo: trajetória da MARÇAL, Diogo Cirqueira. 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122 IMAGEM, TURISMO E EXPLORAÇÃO imagem; exploração sexual; crianças; gestão estratégica da SEXUAL DE CRIANÇAS informação e atuação em redes. Parte-se do princípio que o turismo é uma atividade que Carla Ferreira Cruz64 quando bem desenvolvida não gera violação aos direitos sex- uais das crianças e sim desenvolvimento econômico e social.

RESUMO A cadeia produtiva do turismo66 deve mobilizar-se para pre- venir a exploração de crianças. Portanto, todos os envolvidos A atividade turística é frequentemente associada ao direta ou indiretamente com a atividade turística devem desenvolvimento econômico e a geração de emprego e compor e fortalecer uma rede que assegure a proteção das distribuição de renda. No entanto, se esta atividade não for crianças e a sustentabilidade do turismo. planejada com parâmetros que respeitem os direitos hu- manos, seu caráter positivo pode ser superado por aspectos nocivos com, por exemplo, a exploração sexual de crianças. No DESENVOLVIMENTO Brasil, o imaginário construído por meio da mídia turística foi TURISMO, SUSTENTABILIDADE E IMAGEM responsabilizado por atrair para o país uma demanda turísti- A Organização Mundial de Turismo (OMT, 2003) concei- ca com interesse em vivenciar experiências sexuais exóticas. tua o turismo como a atividade que as pessoas realizam ao Portanto, é imprescindível a discussão sobre o redireciona- deslocarem-se e permanecerem em destinos fora de seu local mento do imaginário, a fim de despertar outros interesses de residência habitual, por um período superior a 24 horas e na demanda e na oferta turística do Brasil visando garantir a inferior a um ano consecutivo, com fins de lazer, negócios e sustentabilidade dos destinos turísticos e a legitimação social outros. e política das ações de proteção às crianças no turismo. É válido ressaltar que, nesse conceito não estão incluí- Palavras-chave: cultura, imaginário, das atividades ilegais, antiéticas ou que incluam exploração. turismo, prevenção à exploração O segundo artigo do Código Mundial de Ética do Turismo sexual de crianças. afirma que: A exploração dos seres humanos sob todas INTRODUÇÃO as suas formas, principalmente sexual, e Este artigo foi desenvolvido a partir da dissertação “Re- especialmente no caso das crianças, vai con- des de prevenção à exploração sexual de crianças no turismo: tra os objetivos fundamentais do turismo e estudo de caso Belém-PA”65, defendida em 2009, no Programa constitui a sua própria negação. Portanto, e em conformidade com o Direito Interna- de Mestrado Profissional em Turismo, do Centro de Excelência cional, ela deve ser rigorosamente comba- em Turismo, da Universidade de Brasília, com orientação da tida com a cooperação de todos os Estados Profa.Dra. Maria Elenita Menezes Nascimento. Para sua elab- envolvidos e sancionada sem concessões oração buscou-se embasamento em autores que abordam pelas legislações nacionais, quer dos pa- diversas temáticas, tais como: turismo; sustentabilidade; íses visitados, quer dos países de origem dos autores desses atos, mesmo quando 64 Servidora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, estes são executados no estrangeiro. (OMT, na área de Educação. Trabalhou na Superintendência do IPHAN no Pará 1999, p. 07) (2010-2016). Desde junho de 2016, atua na Superintendência do IPHAN em Santa Catarina. Foi servidora do Órgão Oficial de Turismo do Estado do Pará (2006-2010). Bacharel em Turismo (2006). Mestre em Turismo (2009). Discente mestrado em Patrimônio Cultural (PEP/MP/IPHAN) 66 Cadeia produtiva do turismo é representada pelo conjunto de 2017-2019. Endereço eletrônico: [email protected] empresas e instituições que atuam de forma direta ou indireta na 65 Dissertação completa disponível no site: http://repositorio.unb.br/ atividade turística, tais como: agências de viagens, hotéis, locadoras de handle/10482/3910 automóveis, entre outras. 123 Percebe-se então que na realização ética do turis- prejuízos econômicos são inevitáveis, pois uma comuni- mo não deve ocorrer exploração. Portanto, sugere-se uma dade degradada pela exploração sexual de crianças possui análise a respeito da utilização do termo “turismo sexual” um ciclo de vida curto e, por conseguinte, os investimentos para designar as atividades relacionadas à exploração sex- realizados serão perdidos. ual de crianças no turismo. Um novo olhar sobre a atividade turística que contem- Frequentemente utiliza-se a terminologia “turismo ple toda a sua complexidade e valorize seus efeitos posi- sexual” para fazer referência à exploração sexual de cri- tivos é uma proposta que encontra ampla fundamentação anças no turismo, porém é interessante ressaltar que ao bibliográfica, sendo também legitimado pelo Ministério do utilizar-se a terminologia “turismo sexual” para designar as Turismo (MTur), que em seus textos constantemente afirma atividades de compra e venda de sexo com crianças dentro que a partir da sustentabilidade a atividade turística passa a da cadeia produtiva do turismo, pode-se confundir o ato ser um meio cuja finalidade é o desenvolvimento socioeco- criminoso de exploração sexual com categorias de turismo nômico com preservação ambiental das regiões turísticas. (turismo de eventos, rural, religioso, entre outros) formal- O sujeito da atividade passa a ser constituído pelos partic- mente trabalhadas no Brasil e potencialmente geradoras ipantes da cadeia produtiva (BRASIL, 2006). de desenvolvimento (social, cultural, econômico e natural) Para MONTORO (1997) o imaginário se configura em um sustentável. modo específico de perceber o mundo. A imagem é consid- A sustentabilidade é a utilização dos recursos (nat- erada elemento importante para o turismo devido a sua urais, sociais, culturais, econômicos, técnico-científicos e influência no processo de escolha entre destinos turísticos e políticos) de forma a garantir sua sustentação, ou seja, sua o seu poder de agregar ou não valor ao destino. O papel da existência para além da geração atual. imagem para a divulgação de destinos turísticos e também Nesse sentido, em relação à sustentabilidade no turismo para o incentivo, direto e indireto, da exploração de cri- o Ministério do Turismo afirma que: anças é exaustivamente discutido. A imagem pode ainda ser distinta ao estereótipo, pois a imagem é subjetiva e No aspecto ético-moral, como conseqü- ência do modelo de turismo sem sus- individual, enquanto que o estereótipo é mais generaliza- tentabilidade, a prostituição e a explo- do. (BIGNAMI, 2002) ração sexual de crianças e adolescentes A esse respeito, afirma-se que por meio do estereótipo, aumentam em todo território. Além disso, reproduzimos, relatamos e narramos o mundo do modo como o turismo pode conduzir processos de o entendemos e que imagens baseadas em estereótipos são exclusão social, econômica e cultural. E, comumente aceitas. (BIGNAMI, 2002) com isso, aferir dividendos somente para A construção da imagem de um lugar tem sido grandes empresas que vendem e lucram atribuída, principalmente, a dois fatores: assimilação prévia com a exploração da região, do território de conhecimentos sócio-culturais e influências da mídia. – ambos de natureza coletiva (BRASIL, Independente de qual a origem, entretanto, a imagem 2006, p. 10). está relacionada à como as pessoas se vêem e sentem, bem como aos ambientes e produtos que as envolvem. O Verifica-se então que, em localidades onde ocorre ex- processo de autoconhecimento e valorização se fazem, ploração sexual de crianças, não está sendo desenvolvido então, importante quando se pensa em formular políticas turismo sustentável, e sim um turismo predatório que, como e estratégias de criação, transformação e consolidação de qualquer atividade econômica mal direcionada, acarretará, uma imagem, principalmente quando se trabalham destinos em curto ou longo prazo, em prejuízos sociais e até mesmo turísticos. econômicos, principalmente para as comunidades receptoras. Sob essa perspectiva, deve-se ter especial atenção em Os prejuízos sociais podem ser percebidos no aumen- relação à imagem que uma determinada localidade com to dos casos de gravidez precoce, doenças sexualmente vocação turística apresenta, uma vez que esta pode tanto transmissíveis, criminalidade e desestruturação familiar. Os 124 agregar valor ao seu produto quanto torná-lo repulsivo ou culturais para se desenvolverem de forma saudável. Sendo pouco atrativo à sua demanda potencial, conforme seja pos- assim, as crianças, independentemente da faixa etária, não itiva ou negativa. devem ser exploradas sexualmente. Essa idéia de imagem, entretanto, tem sido mais uti- A Convenção da ONU de 1989 (2004), em seu artigo lizada pelas teorias mais recentes para se referir às narrativas 34, instituiu o compromisso dos “Estados Partes” de prote- visuais, enquanto o termo imaginário tem sido empregado ger as crianças de todas as formas de exploração e abuso para retratar o conjunto de idéias sobre algo, ou seja, uma sexual. Anteriormente, o artigo 19 do mesmo documento de- forma específica de perceber o mundo e alterar a realidade. talha essa responsabilidade quando afirma que: (MONTORO, 1997) Os Estados Partes adotarão todas as medi- A veiculação de informações pela mídia influencia a con- das legislativas, administrativas, sociais e strução da imagem de destinos turísticos e, por conseguinte, educacionais apropriadas para proteger a pode influir de forma positiva ou negativa na sustentab- criança contra todas as formas de violência ilidade desses destinos e também na mobilização da física ou mental, abuso ou tratamento negli- sociedade para a prevenção à exploração sexual de crianças. gente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual. (ONU, 2004, p. 10) CRIANÇA Em 1990, o Brasil sancionou o Estatuto da Criança e do O referido compromisso é ratificado pelo Estatuto Adolescente (ECA) para assegurar os direitos das crianças e da Criança e do Adolescente em seu Art. 18, segundo o adolescentes do país. O ECA instituiu que são consideradas qual “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do crianças aquelas pessoas até doze anos de idade incomple- adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento de- tos, e adolescentes pessoas entre doze e dezoito anos de idade sumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. incompletos. (ECA, 2005, p. 12) Contudo, para este estudo, será empregada como referência a definição da Convenção das Nações Unidas EXPLORAÇÃO SEXUAL sobre os Direitos da Criança de 1989, que utiliza o termo “criança” para designar todos os seres humanos com até Em 2003, o relator da ONU, ADDENDUM (2003, p. 08), dezoito anos de idade incompletos, ou seja, seres humanos esteve no Brasil e afirmou que “a Exploração Sexual Com- em processo de formação e desenvolvimento. ercial converge com outros problemas sociais, como pobreza, Neste estudo será utilizado o termo “criança”, visto que, exclusão social, trabalho infantil, discriminação de gênero por meio de pesquisa empírica, observou-se que a divisão e violência”. entre crianças e adolescente cria um gap capaz de mudar Observa-se então que a exploração sexual de crianças é o foco do debate do campo da “proteção”, para outros debates, um problema multifacetado, portanto o seu enfrentamen- tais como: to deve abranger diversos aspectos, entre eles o aspecto • A partir de qual idade um indivíduo está apto para econômico e o cultural. Neste contexto, ADDENDUM (2003) decidir sobre a venda do seu corpo? ou destaca a discriminação de gênero como um dos fatores que contribuem com a exploração sexual, essa discriminação é • Qual faixa etária merece maior proteção?67 materializada nas relações de poder desiguais que valorizam Neste trabalho será considerado que todos os seres os homens e desvalorizam e enfraquecem as mulheres.Dis- humanos, em especial, aqueles em formação, devem ser criminação de gênero é uma causa arraigada da Exploração protegidos e devem receber condições econômicas, sociais e Sexual, relações de gênero favoráveis aos homens, onde o poder na família e na sociedade é basicamente mantido; 67 Existem diversos códigos e ou referências utilizados por exploradores e aliciadores para identificar se uma criança está apta para o sexo, entre representações estereotipadas da mulher como sendo um eles destaca-se o peso e a menarca, porém essa discussão não será objeto sexual cujos corpos são tidos como mercadorias à dis- aprofundada neste estudo. 125 posição do homem e divisões desiguais das responsabilidades cultura. Ele destaca os elementos que direcionam o papel familiares, que em camadas mais pobres forçam as mães a do homem e da mulher na sociedade. Segundo esse se submeterem à prostituição para garantir a sobrevivência autor, existe uma legitimação sociocultural da supremacia dos filhos; todas estas são manifestações de desigualdades masculina e, por conseguinte, a sexualização dessa domi- de gênero que têm ligação direta com a exploração sexual. nação intui o direito de o homem usar a mulher como (ADDENDUM, 2003, p.10) objeto para satisfazer seus desejos sexuais. Segundo ADDENDUM (2003, p. 10), a exploração sex- Os valores e prerrogativas culturais que de- ual de crianças está associada a um conjunto de macro e finem o papel sexual masculino tradicional microelementos. Os macroelementos são: são o poder, a dominação, a força, a virilida- • Tolerância e justificativa da sociedade em de e a superioridade. Os valores e prerroga- relação ao abuso sexual e violação dos direitos tivas culturais que definem o papel sexual da criança e do adolescente ao extremo; feminino são a submissão, a passividade, • Programas sociais não englobam famílias em situ- a fraqueza e a inferioridade. A tradição da ação de extrema miséria e exclusão social; supremacia masculina ensina rapazes e ho- • Relações de gênero que reforçam o poder em favor mens que os traços femininos são sem valor; do homem; são sem mérito; e as mulheres devem ser • Raça e etnia como determinantes da exclusão tratadas com inferioridade ou menos bem social; que os homens. Com o estereótipo da su- • Representação do corpo como objeto de consumo premacia masculina os homens aprendem apresentado na mídia; a ter expectativas sobre seu nível de ne- • Crianças iniciando sua vida sexual cada vez mais cessidades sexuais e sobre a acessibilidade cedo; feminina. A dominação e a subordinação • Oportunidades limitadas de trabalho a pessoas são sexualizadas, o que leva à idéia de que os homens têm o direito aos serviços sexu- com acesso a educação precária. ais da mulher. Implicitamente o abusador Enquanto que os microelementos desse processo de assume que é sua prerrogativa fazer sexo exploração são: famílias desestruturadas; laços familiares com qualquer mulher que ele escolha. Ele desfeitos; evasão escolar; engajamento com grupos so- tem o direito de usar as mulheres como 68 cialmente excluídos, nesse contexto o cafetão passa a ser objeto para seu prazer. Uma vez que o uso a pessoa de referência, substituindo o vazio deixado pela das mulheres como objeto pelos homens ausência da família. esteja legitimado ou enraizado na cultura, o ADDENDUM (2003) destaca ainda fatores psicológicos terreno está preparado para todas as formas que fazem parte desse processo, a saber: baixa auto-esti- de tráfico, prostituição, sexo turismo e abuso ma; ruptura do plano de vida e de perspectiva de futuro; sexual de crianças e adolescentes do sexo fe- sentimento de culpa; indiferença a emoções e afeto; e inter- minino e de mulheres. A idéia que a criança nalização de uma identidade estigmatizada. ou a mulher tem o direito ao próprio corpo FALEIROS (1997) cita uma exposição de Kathelen Ma- não cabe na ideologia supremacia masculi- honey69 que reforça a interligação entre exploração sexual e na. (FALEIROS, 1997, p. 04)

68 O cafetão (ou cafetina) atua como intermediário na rede de A visão acerca das normas culturais que envolvem as exploração, e desempenha diversos papéis, realizando o aliciamento, relações sexuais, assim como a tendência a desumanização oferecendo abrigo e “proteção” aos indivíduos explorados e realizando a das vítimas de abuso também é analisada por FALEIROS negociação com os clientes. (1997, p. 04): 69 Exposição apresentada no Seminário Contra Exploração sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, que ocorreu em Brasília em abril de 1996. 126 As definições legais, sociais e religiosas que DAVIDSON E TAYLOR (2007) analisam criticamente a ex- vêem a mulher como propriedade mas- ploração sexual de crianças pelo viés dos aspectos legais do culina e o sexo como uma troca de “bens”, problema, do comportamento dos “militantes dos direitos legitima e enraíza ainda mais na cultura a das crianças”, da demanda por esse produto e das crianças ideologia supremacista masculina. De acor- envolvidas. As referidas autoras afirmam que leis mais do a tais normas culturais as mulheres são severas do que as que existem atualmente não resolveriam valorizadas primordialmente por sua beleza o problema, segundo elas, o que é urgente é a aplicação da e exclusividade sexual. Isto se torna óbvio legislação já existente. na forma como as prostitutas são tratadas nas obras religiosas e na literatura clássica Assim, os advogados e os acadêmicos for- e popular. Uma vez que a mulher é estig- necem freqüentemente análises muito matizada como prostituta ela é considerada detalhadas e técnicas de como a violação como desviante, de baixo valor e em tempo dos princípios dos direitos humanos entram de guerra, quando o abuso sexual, o estupro em conflito com as normas estabelecidas e a gravidez forçada são usados por seus em convenções internacionais, declarações abusadores como estratégia de guerra. Esta e protocolos, sem prestar da mesma forma forma de desumanização retira da vítima do muita atenção ao contexto social, econô- abuso a simpatia pública e distrai a atenção mico e político em que essa violação dos sobre o abusador. (FALEIROS, 1997, p. 04) direitos ocorreu. (DAVIDSON E TAYLOR, 2007, p. 119) Em relação ao turismo, FALEIROS (1997) destaca argu- mentos equivocados que deslocam o foco do problema, tais DAVIDSON E TAYLOR (2007) avançam discutindo como a melhoria de vida que o dinheiro pode proporcionar à questões referentes a ações de enfrentamento à exploração criança explorada. afirmando que se faz necessária a realização de ações com objetivo de alterar a conjuntura social e econômica das Outros, que querem legitimar o abuso de crianças exploradas. crianças no sexo turismo, argumentam que a prostituição faz parte da cultura do país Não se trata de falta de respeito à lei, mas anfitrião e que eles estão simplesmente gostaríamos de discutir uma questão em utilizando a estrutura existente. Dizem que particular: a necessidade urgente de ampliar estão “ajudando” a melhorar as condições o foco do ‘ativismo’ para planejar medidas de vida de mulheres e crianças em situação direcionadas às normas sociais e políticas e de prostituição. Esses “analistas”, entretan- às estruturas econômicas que condicionam to, se equivocam, porque uma parte muito a situação social das crianças envolvidas no reduzida dos ganhos fica com a prostituta, comércio do sexo, assim como seus clientes. que deve contar com proxenetas70 e cafetões (DAVIDSON E TAYLOR , 2007, p. 120) para ter segurança e dinheiro. Além do sta- tus de mulheres “decaídas” elas são econo- FALEIROS (2003, p. 20), compartilha dessa visão, visto micamente desfavorecidas, sem opções de que, “é neste caldo de cultura da cumplicidade e da escolha de formas alternativas de emprego. impunidade que a violência sexual, por vezes hipocrita- (FALEIROS, 1997, p. 05) mente rejeitada, é pouco assumida pela sociedade como um crime e como uma grave violação de direitos humanos”.

70 Proxeneta pode ser considerado um sinônimo de cafetão ou cafetina. O proxenetismo é o ato de obter lucro, financeiro ou não, por meio da prostituição ou exploração sexual de outra pessoa. 127 EXPLORAÇÃO SEXUAL E TURISMO SEXUAL Na lógica comercial, para que uma relação comercial seja efetivada, são necessários A Secretaria Especial de Direitos Humanos também tanto o produto a ser vendido quanto o considera, na categoria “Exploração Sexual Comercial”, comprador interessado (oferta/demanda). outros dois tipos de violência: a prostituição e o turis- Assim, mesmo que uma criança/adolescen- mo sexual. Serão analisados os conceitos que envolvem te esteja disposta a oferecer-se sexualmen- essa categorização, afinal diversos autores afirmam que a te, em troca de dinheiro ou outros favores “prostituição” é uma profissão e que uma criança envolvi- (alimento, roupa, carona, etc.), se não hou- da no mercado do sexo está sendo explorada, pois a criança vesse quem estivesse disposto a comprar tal é um ser humano em formação e não possui completa serviço, a situação de exploração sexual não maturidade física e psicológica para decidir qual profissão se estabeleceria. De fato, lidar na prática deseja exercer e não deve realizar atividades periculosas ou profissional com crianças e adolescentes insalubres como a venda do próprio corpo. vítimas de abuso (intra e extra familiar) já Em relação à utilização do termo “turismo sexual” vale é por si só complexo. Incluir nessa relação destacar que alguns autores utilizam essa expressão para a “lei da oferta e da procura” da exploração designar viagens nas quais o turista busca experiências sexual comercial torna a situação ainda mais sexuais, não necessariamente ilícitas, como, por exemplo, complexa. (PADILHA e CERQUEIRA-SANTOS, 2007, p. 145) um turista que contrata uma prostituta com mais de 18 anos de idade, nesse caso o turista não está cometendo um crime. O turismo é uma atividade econômica, portanto ba- Outros autores, no entanto, referem-se ao “turismo seia-se nas leis do mercado para exercer suas interrelações sexual” para designar o crime de exploração sexual de cri- entre a oferta e a demanda. No entanto, o setor turístico anças no turismo. Porém, indica-se que este termo deva ser deve interferir e redirecionar essa demanda se ela influir evitado, pois um crime não deve ser categorizado dentro de negativamente na sustentabilidade dos destinos turísticos, uma atividade, sob pena de confundir os turistas, a pop- ou seja, a comunidade e os turistas devem ser mobilizados ulação local e os profissionais do setor turístico, tendo a oferecer e demandar produtos turísticos que contribuam em vista que, já existem diversas categorias no turismo, tais para a sustentabilidade do destino turístico e prevenir a ex- como: turismo de aventura, turismo rural, turismo de pesca, ploração sexual de crianças. entre outros. Nesse contexto, a informação veiculada no turismo e as A dificuldade conceitual da questão e sua imagens utilizadas para ilustrar essas informações devem ser precária avaliação quantitativa devem-se ao instrumentos para a mobilização da sociedade para a pre- fato do mercado do sexo ser extremamente venção a essa exploração. Porém, se esses instrumentos poderoso economicamente, florescente, forem utilizados inadequadamente o efeito pode ser con- que se recicla constantemente, ser ilegal, trário, ou seja, eles podem servir como instrumentos para criminoso e dominado por máfias, o que faz aprofundar o preconceito em torno da temática ou ainda com que o conhecimento e as pesquisas so- incentivar a erotização feminina no turismo. bre essa problemática sejam extremamente difíceis e até mesmo perigosos. (FALEIROS, 2000, p. 18) A EXPLORAÇÃO SEXUAL E A IMAGEM NO TURISMO MAFFESOLI (apud GASTAL, 2005) afirma que o imag- Pode-se, ainda, somar a essa discussão a análise de inário produz a imagem, ou seja, a imagem é o resultado PADILHA e CERQUEIRA-SANTOS (2007), esses autores dest- do imaginário. A partir dessa afirmação, analisa-se que acam que na lógica do mercado, na qual está inserida a o conjunto de imagens utilizadas para vender destinos exploração sexual de criança, para que exista oferta é turísticos compõe o imaginário da população dessa des- preciso existir a demanda.

128 tinação turística, sendo assim, um reflexo de como esses “civilização”, tais como: a moralidade, a legalidade indivíduos identificam seu modo de viver. Então, a imagem e outros aspectos da conduta social considerados de um país será tão positiva quanto o povo desse país acredite “civilizados”; que sua identidade é positiva e, portanto, as mudanças na • Lugar do sexo fácil, um paraíso onde se pode imagem devem iniciar-se por alterações nas crenças que o vivenciar o “pecado original”, pois as imagens di- próprio país possui. vulgadas remetem a mulheres exóticas, sensuais BIGNAMI (2002) afirma que um conceito adquire força e de fácil acesso; na medida em que é reconhecido em vários discursos. • Brasil do brasileiro, no qual se ressaltam carac- Dessa forma, a imagem é construída por um conjunto de terísticas consideradas típicas dos brasileiros, tais discursos que afirmam as mesmas idéias. Assim, formam-se como a musicalidade, a hospitalidade, a alegria e os estereótipos (opiniões preconcebidas, difundidas entre a malandragem; os elementos de uma coletividade) encontrados nos meios • País do carnaval, festa que permite o esqueci- de comunicação de massa. mento de todos os problemas sociais e pessoais, Desta forma, eventos de cunho pedagógico, como cur- uma fuga para um mundo de permissividade e sos e seminários, são úteis para a orientação dos agentes luxúria, exaltando-se a sensualidade do povo bra- sociais e na difusão de instrumentos para a análise dos es- sileiro. Nessa categoria, também incluíem-se as tereótipos em voga na sociedade, e a mídia possui um papel manifestações sociais e culturais veiculadas pelos importante na formação da opinião pública sobre questões meios de comunicação para fins essencialmente como a exploração sexual de crianças. turísticos; • O lugar do exótico e do místico, no qual o mágico A violência sexual contra crianças e ado- lescentes é uma questão ética e cultural, se manifesta e é interpretado pelo olhar do turista e as ações de prevenção a serem adotadas como inexplicável, contrastante, rítmico e sensual. devem ter como alvo, prioritariamente, a opinião pública e a mídia, visando à mudan- EXEMPLIFICANDO A AÇÃO DA MÍDIA ça de valores e a educação sexual de toda Analisando a reportagem “Turismo sexual: Brasil, terra 71 a população, de todas as idades. Trata-se, do sexo fácil e barato. Até quando?” (LEINER, 2007) in pois, de envidar todos os meios para que a Revista Marie Claire (Abril, 2007, p. 72-83; vide Anexo A) sociedade como um todo supere a acomo- percebe-se um exemplo de como a mídia pode reforçar, de dação e o pacto do segredo e da impunida- forma intencional ou não-intencional, o modelo sócio-cul- de existentes sobre essa problemática, para tural que justifica e aceita a exploração sexual de crianças e que os cidadãos adultos assumam seu papel adolescentes. de protetores, e para que não se deposite • A referida reportagem, que inicialmente parecia principalmente nas crianças e adolescentes buscar a adesão social para o enfrentamento da a responsabilidade de se defenderem de exploração sexual no turismo, estampa na capa o adultos violentadores sexuais (FALEIROS, slogan “Turismo sexual – a vergonha que contam- 2003, p. 22). ina nossas praias – você pode ajudar a mudar esse cenário”. Poder-se-ia até ignorar o fato de a ativi- Segundo BIGNAMI (2002), em termos de atratividade dade turística estar sendo associada à exploração turística a imagem do Brasil se qualifica em cinco categorias sexual, porém imagina-se que ao menos a report- que são interligadas entre si: agem irá mostrar aos leitores como identificar o • Brasil paraíso, no qual se exalta a grandiosidade problema e como agir diante dele demonstrando das florestas e a existência do “bom selvagem”, motivando o turista a viajar para um lugar ideal, 71 Disponível em http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,699 longe das dificuldades reais experimentadas na 3,EML1503174-1740,00.html, pesquisa realizada em 07/05/2018. 129 o quão grave é a exploração sexual no turismo. • Foco da reportagem no sensacionalismo, por meio Porém, ao ler a reportagem é possível ob- de imagens e palavras, que causam impacto no lei- servar que ela reforça paradigmas relacionados à tor, no entanto, pouco colaboram para a adequada exploração sexual de crianças, tais como: mobilização social para a resolução do problema: • No Brasil nada dá certo, configurando-se em uma “Elas usam gestos para se comunicar com os ‘grin- “terra sem lei”; gos’. Se não funciona, arriscam um ‘Fuck you, baby!’ • Pessoas exploradas são “más” e são exploradas por que querem e gostam; A informação possui um papel fundamental para o turis- • Os cidadãos “bons”, em especial as mulheres, pre- mo e para a prevenção à exploração sexual de crianças, uma cisam proteger seus maridos das pessoas “más” que vez que por meio da informação, é que os destinos turísti- querem seduzi-los; cos são conhecidos e também a população e empresários • Talvez esse não fosse o objetivo da reportagem, são mobilizados para desenvolver um turismo sustentável porém a partir da leitura do texto verifica-se o for- com respeito aos direitos humanos. talecimento de preconceitos e o pouco direciona- A mídia, por sua vez, auxilia na construção da imagem mento para a mobilização social e esclarecimentos de destinos turísticos e também na mobilização social, por- para as causas e consequências da exploração de tanto deve buscar utilizar informações que direcionem a crianças e adolescentes no turismo. Além disso, o mobilização social para a prevenção à exploração sexual de que é possível perceber de forma marcante na re- crianças, de forma a evitar abordagens segregacionistas ou portagem é: que reforcem a discriminação a essas crianças. • Utilização de depoimentos que reforçam a situação Nesse contexto, a fim de buscar transcender a prob- de exploração sem oferecer outras perspectivas, lemática da exploração sexual de crianças, torna-se rele- reforçando no imaginário social que a exploração vante aprofundar a discussão sobre a prevenção a essa sexual é algo comum e aceitável: “Drogas e mul- exploração, tendo em vista que a exploração sexual nega heres têm na Europa, mas, aqui no Brasil, sexo é à criança um direito humano e deixa “cicatrizes profundas”, mais fácil e barato”; então deve prioritariamente ser prevenida por todos os in- • Utilização de depoimentos de crianças exploradas divíduos e setores da sociedade. reforçando a imagem de pessoas “más” e “decaí- das”, exploradas por não quererem ter outro tipo ESTÃO ESTRATÉGICA DA INFORMAÇÃO de vida. Essa visão reforça o preconceito social e não considera que esses indivíduos são o reflexo Por meio da gestão estratégica da informação a rede dos instrumentos sócio-culturais que receberam de prevenção poderá fortalecer-se e ampliar suas ações no para comportarem-se em sociedade: “Na beira da sentido de: praia, turistas se excitam com as meninas, que, • Sensibilizar a população, disponibilizando infor- sem qualquer inibição, buscam clientes”; mações acerca da exploração sexual de crianças: • Foco refratário em relação às iniciativas de proteção como identificar e como reagir diante desse prob- à criança que existem no Brasil e estão obtendo re- lema; sultados positivos; • Formar uma rede de informações nessa área, de • Associação da exploração como uma solução para modo a fortalecer as ações de instituições que tra- problemas financeiros: “O turista [...] gera empre- balham focalizadas na proteção da criança; go, faz a sua parte. As meninas são pobres, não têm • Divulgar notícias atualizadas sobre os avanços o que comer. Qual é o problema de elas conhecer- conseguidos, fortalecendo a rede de proteção e em alguém que pague coisas boas?” fomentando a ampliação dos trabalhos. • Ampliar os espaços para denúncias sobre sites, salas de bate-papo, ou outros recursos virtuais que 130 estão sendo utilizados para aliciar ou explorar sex- e comunidades, visto que os grandes centros possuem infor- ualmente crianças. mações que podem auxiliar as ações de comunidades mais isoladas e estas possuem conhecimento empírico que deve A primeira lei de KRANZBERG (1993) afirma que a tecno- ser respeitado, valorizado e utilizado durante a execução logia não é nem boa, nem ruim, e também não é neutra. de ações planejadas nas capitais para o interior. Nesse sentido, é perceptível que os recursos fornecidos A Internet pode facilitar a construção de “pontes” pela tecnologia da informação podem ser utilizados tanto para entre indivíduos, e estes podem constituir-se em elos de fortalecer a rede de proteção às crianças no turismo, como uma rede on-line de proteção às crianças. Dessa forma, pela rede de exploração, então, é responsabilidade de toda com a rapidez da Internet é possível mobilizar mais indivíduos a sociedade agir a fim de potencializar as características a abrir “portas” e desenvolver ações concretas de descon- positivas dos avanços tecnológicos sobrepondo-as à utilização struir paradigmas sociais, políticos, culturais e econômicos negativa desses recursos. que alimentam a exploração sexual de crianças. Nesse contexto, a gestão estratégica da informação Por algum tempo, as ações de prevenção à exploração torna-se um instrumento essencial para a seleção e dis- e proteção de crianças, em especial no turismo, foram re- tribuição adequada das informações necessárias para o for- alizadas de forma isolada e pautaram-se na repressão aos talecimento da rede de prevenção à exploração de crianças exploradores, por meio de campanhas publicitárias e outras no turismo. ações. Analisando-se os resultados obtidos neste trabalho A necessidade de fortalecer e ampliar o alcance da di- observou-se que as ações de proteção tornam-se mais efe- fusão de informações a respeito da importância da proteção tivas quando alguns paradigmas são desconstruídos, entre da infância é consenso entre os atores sociais envolvidos no eles destacam-se: processo. Para a realização efetiva da comunicação, os meios • Ações realizadas de forma isolada; utilizados são importantes, mas o fundamental é a intenção • Ações que buscam identificar “vilões” e “mocin- e a sensibilização para a importância de determinada men- hos”; sagem ser difundida. • Planejamento de ações sem determinar as fontes Porém, enquanto as informações a respeito da do recurso para a execução e; proteção de crianças não representarem instrumentos • A caracterização de ações de proteção como assist- estratégicos, não conseguirão transpor barreiras ideológicas encialismo ou boa vontade. e culturais socialmente aceitas. Essas barreiras podem manifestar-se das mais variadas formas, podendo ser por Em relação à realização de ações isoladas, desta- meio de negação, a aceitação e a negligência: ca-se que algumas instituições enfrentam dificuldades na • A negação: muitos cidadãos ainda afirmam comunicação e ações com foco semelhante são realizadas que no Brasil não existe exploração sexual de cri- nos mesmos períodos sem haver diálogo, o que enfraquece anças; a ação e os resultados. Uma das causas para que se- • A aceitação: algumas pessoas afirmam que a jam realizadas ações isoladas está associada à questão dos exploração sempre existiu e que por isso nunca vai “egos”, ou seja, indivíduos ou instituições sobrepõem inter- acabar; esses individuais aos interesses coletivos, chegando até ao • A negligência: para uma parte da sociedade ponto de condenar e negar apoio a boas iniciativas. Tor- é mais cômodo fingir que não vê o problema; na-se importante exercitar o trabalho em rede, pois são obtidos melhores resultados quando ocorre o fortalecimento Nas comunidades onde já existem acessos à Internet, e ampliação da rede de proteção de crianças. Dessa forma, as redes on line podem ser instrumentos estratégicos será possível que diversas instituições, governamentais e para mobilização e qualificação, uma vez que possibilita não-governamentais, atuem em suas funções específicas com o intercâmbio de informações e experiências entre indivíduos um objetivo em comum.

131 A realização de ações buscando identificar os “vilões” A PREVENÇÃO À EXPLORAÇÃO E A MOBILIZAÇÃO PARA e os “mocinhos” configura-se em uma postura que pode SUSTENTABILIDADE NO TURISMO dificultar a construção de uma base sólida de proteção, pois A mobilização é um instrumento para a articulação des- pode estigmatizar os agentes sociais envolvidos. Em alguns sa rede de proteção e, segundo MONTORO (2003): casos, por exemplo, justifica-se a exploração considerando que a “vilã” é a criança má que seduz o turista, enquanto [...] a comunicação mobilizadora para sus- que o foco deveria ser a prevenção do problema, a punição do tentabilidade no turismo deve fazer parte agressor e a proteção da vitima. O mais produtivo seria dire- da agenda pública brasileira, em termos de cionar o foco das discussões para a garantia da preservação promover a capacitação de pessoal para o dos direitos sexuais das crianças e adolescentes e do de- setor, passando pela legislação e chegando senvolvimento social sustentável, pois a exploração sexual aos instrumentos de publicização de ações e delineamento de estratégias de formação está associada a inúmeras seqüelas sócio-culturais e pode da opinião pública (mudança de mentalida- ser o elemento incentivador ou causador de diversos prob- de). (MONTORO, 2003, p. 24) lemas, a saber: tráfico de seres humanos, tráfico de drogas, gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, entre MONTORO (2003) destaca também que a mobilização outros. para o turismo sustentável passa pela formação de uma O planejamento de ações sem definição de fontes de re- mentalidade na sociedade civil, para que esta perceba em cursos é contraproducente, pois alguns planos são excelentes, si a capacidade para transformar a ordem social existente porém não alcançam os resultados esperados devido à e sinta- se motivada para ser atuante nessa transformação. falta do recurso necessário para a execução do projeto. DAVIDSON E TAYLOR (2007, p.135), em consonância O planejamento das ações deve ser realizado prevendo os com a visão de MONTORO, sugerem que o setor turístico em recursos, técnicos, financeiros e estruturais, necessários conjunto com o governo utilize como ação inicial o inves- para a realização das ações e a manutenção dos trabalhos timento em projetos que promovam alternativas econômicas propostos, garantindo assim a continuidade das ações. sustentáveis para as crianças envolvidas no mercado do Crianças exploradas sexualmente, comumente, necessi- sexo. Em longo prazo, sugerem o desenvolvimento de es- tam dos recursos financeiros oriundos da exploração para tratégias com foco na transformação dos valores sociais e atender suas necessidades básicas de sobrevivência, então políticos dos países que são coniventes com a exploração os planos de enfrentamento desse problema devem fazer sexual de crianças. menção a fontes de recursos para bolsas de auxilio e cursos de Esses valores sociais e políticos estão interligados com capacitação, inserção no mercado de trabalho e acompanha- os padrões de consumo da sociedade contemporânea, nos mento psicopedagógico. quais o turismo não é somente o deslocamento de pessoas Em relação à caracterização de ações de proteção como ou a utilização do tempo livre. O turismo também envolve assistencialismo ou boa vontade destaca-se que estas devem relações de consumo, um consumo que transcende a ser entendidas como ações de garantia de direitos humanos compra e venda de bens físicos, passando pelo consumo e não como ações de assistencialismo ou de boa vontade. de bens culturais e simbólicos, nos quais também estão os Nesse sentido, a exploração deve ser analisada como crime usos e costumes da população e em alguns casos relações contra os direitos humanos e como tal deve ser diagnostica- sexuais com indivíduos da população local. da e erradicada. A discussão em todas as esferas da socie- dade é de fundamental importância e deve ser realizada no O turismo deve ser encarado com uma ativi- centro e na periferia garantindo a troca de informações e dade que ultrapassa uma simples forma da experiências e a apropriação pela população da temática. utilização do tempo livre, do ócio, e que se aproxima cada vez mais de um novo tipo de consumo, de um consumo cultural ao qual nada escapa: nem situações, nem lugares,

132 paisagens, pessoas, culturas. A mercantili- participação de todos deve ser valorizada. Destaca-se que o zação da cultura e da natureza é, portanto, processo de mobilização inicia-se com o despertar para a parte integrante e característica do de- necessidade da mudança e posteriormente torna-se ação. senvolvimento do turismo nas sociedades CASTANHA (2007, p. 18) argumenta que a mobilização contemporâneas. Bens culturais, simbóli- para o fortalecimento de uma rede de proteção de crianças cos, meio ambiente natural, pessoas, tudo não é o “ajuntamento” de pessoas, e sim “fazer com que passa a ser incorporado como mercadoria cada pessoa, agindo em seu contexto, compartilhe com vendável com irresistível apelo turístico. outras pessoas de outros contextos um mesmo propósito e (MENDONÇA, 2003, p. 40) seja sensibilização pela mesma motivação”. Com base no trabalho desenvolvido por MONTORO A ampliação do consumo, da produtividade e do lucro (2003), serão detalhadas a as fases das ações de comunicação tende a ser o objetivo principal dos empresários do setor para a mobilização. Nesse trabalho o foco da mobilização será turístico, mas esse objetivo deve considerar a sustentabili- a prevenção a exploração de crianças no turismo, a saber: dade do destino turístico e o “bem estar” da população • Divulgação das informações, a fim de difundir local. Nesse sentido, MONTORO (2003) afirma que um mu- amplamente a estreita ligação entre a prevenção à nicípio produtivo em relação ao turismo deve produzir, além exploração de crianças e a garantia da sustentabil- de dinheiro, riqueza. A riqueza pressupõe o benefício de todos idade no turismo, assim como as desvantagens do e o lucro financeiro e social contínuo, enquanto que o dinheiro desenvolvimento de um turismo predatório; obtido por meio do lucro predatório e da centralização dos • Realização de um diagnóstico pró-ativo, baseado recursos compromete a sobrevivência da geração atual e das em dados e experiências, que aponte as esferas gerações futuras. do problema e também as alternativas para en- A construção de um turismo sustentável com respeito frentá-lo; às gerações futuras requer a atuação em rede e esta, por • Construção de um imaginário no qual seja possível sua vez, passa pela mobilização dos atores sociais direta e visualizar, por meio de ações e fatos concretos, a indiretamente ligados à atividade, para tanto MONTORO importância e viabilidade da proteção às crianças, (2003) sugere que a comunicação ocorra em três esferas, em especial pelo setor turístico; a comunicação de massa, a comunicação macro e a comu- • Transcender o desejo individual pela mudança da nicação micro: realidade na qual crianças são exploradas no turis- • Na comunicação de massa, a infor- mo, para a disposição para realizar ações coletivas mação é dirigida às pessoas como indivíduos para desenvolver um turismo sustentável; anônimos e deve fundamentar um imaginário • Os indivíduos visualizam possibilidades e agem que desperte a vontade de desenvolver um com o objetivo de contribuir para a proteção das turismo sustentável como um exercício de ci- crianças e a sustentabilidade do turismo. dadania; • A comunicação macro é segmentada A mobilização deve ser um dos alicerces das ações de e deve ser dirigida às pessoas utilizando os prevenção à exploração sexual de crianças e o foco dessas códigos de sua profissão ou ocupação social, en- ações deve ser ampliado para além da violência. O foco quanto que; também deve abranger as causas do problema, tais como • A comunicação micro é dirigida a grupos as desigualdades socioeconômicas e os padrões, normas e ou pessoas considerando sua especificidade ou tradições que envolvem a sexualidade. Para tanto, segundo diferença. o CECRIA (1997), as estratégias devem ser: a sensibi- lização, a democratização, a articulação, a capacitação, a A mobilização é uma convocação de vontades e requer avaliação, a pesquisa e a descentralização. participação de todos para atingir um objetivo, portanto a

133 CONCLUSÃO IMAGE, TOURISM AND SEXUAL Analisando-se esses paradigmas que permeiam a EXPLOITATION OF CHILDREN exploração sexual de crianças é importante destacar o papel da mídia, pois a mídia possui poder de dissem- ABSTRACT inar a informação que será absorvida por grande parte Tourism activity is often associated with economic de- da população brasileira. Comumente a população absorve velopment and the generation of employment and income essas informações sem questioná-las ou refletir sobre a distribution. However, if this activity is not planned with mensagem contida nas entrelinhas. Verifica-se então a parameters that respect human rights, its positive character importância de sensibilizar a mídia acerca da importância de can be overcome by harmful aspects with, for example, the obter e difundir informações fidedignas e que contribuam sexual exploitation of children. In Brazil, the imaginary con- realmente para a formação de opinião pública contra a structed through the tourist media was blamed for attracting exploração sexual de crianças. to the country a tourist demand with interest in experiencing Não se faz a comunicação porque se têm meios para co- exotic sexual experiences. Therefore, it is essential to discuss municar ou porque se dispõe de bons instrumentos de the redirection of the imaginary in order to awaken other in- comunicação. A comunicação existe porque há vontade de terests in the demand and the tourism offer of Brazil in order comunicar, e só há vontade na medida em que a comuni- to guarantee the sustainability of tourist destinations and the cação pode beneficiar a quem comunica; o que explica que, social and political legitimation of actions to protect children certas informações constantemente repetidas não passam, in tourism. enquanto outras ultrapassam barreiras aparentemente in- Keywords: culture, imaginary, tourism, prevention of transponíveis. (CROZIER, 1983) sexual exploitation of children. Portanto, percebe-se que enquanto as informações a respeito da proteção de crianças não representarem instru- REFERÊNCIAS mentos estratégicos, não conseguirão transpor as barreiras ideológicas e culturais socialmente aceitas. Nesse contexto, a informação, a qualificação e a mo- ADDENDUM, Juan Miguel Petit. Direitos da criança: bilização dos elos identificados nas redes configuradas Relatório realizado pelo Relator Especial da ONU sobre a nesse trabalho, assim como a inserção da comunidade venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil. nesse processo, são instrumentos importantes para o for- Tradução de Fabiana Lobo Sá. [Brasília]: Fundabrinq, 2003. talecimento das redes de prevenção à exploração sexual de crianças. Destaca-se que, embora esse “empoderamento BIGNAMI, Rosana. A Imagem do Brasil no Turismo: social” requeira um espaço temporal extenso para se con- construções, desafios e vantagem competitiva. São Paulo: solidar, deve-se buscar fortalecer a comunidade e fornecer-lhe Aleph, 2002. instrumentos para “poder” direcionar o seu desenvolvimen- to de forma sustentável, contrariando assim os interesses BRASIL, MEC. Estatuto da Criança e do Adolescente. políticos e econômicos que visam, predominantemente, Brasília: MEC, ACS, 2005. soluções imediatas, mesmo que estas sejam paliativas. Os esforços no sentido de mobilizar e qualificar os in- CASTANHA, Neide (Org). Plano Nacional de Enfrenta- divíduos são importantes para o fortalecimento dos elos mento da Violência Sexual Infanto-Juvenil: Uma políti- institucionais das redes de prevenção à exploração de cri- ca em movimento. Relatório de monitoramento 2003-2004. anças, pois se considera que indivíduos mobilizados absor- Brasília: Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual vem a qualificação de forma otimizada e tendem a transfor- contra Crianças e Adolescentes, 2007. mar as informações adquiridas em conhecimento aplicável às suas vivências diárias.

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135 MEMÓRIA COLETIVA, PRÁTICAS IDENTITÁRIAS E Por fim, pode-se identificar que o aporte teórico da memória ETNOMETODOLOGIA NA ECONOMIA SOLIDÁRIA coletiva e das práticas identitárias e o uso da etnometodolo- gia oferecem, cada um a seu turno, um importante meio de Ana Lerida Pacheco Gutierrez72 aproximação sobre a compreensão dos aspectos multifac- UNIVERSIDADE LA SALLE/ UFRGS, etados que envolvem os grupos sociais no contexto de em- [email protected] preendimentos econômicos solidários, a fim de investigar as Maria de Lourdes Borges73 contradições e mediações encontradas neste campo. UNIVERSIDADE LA SALLE [email protected] Palavras-chave: Memória coletiva; práticas identitárias; etnometodologia; economia RESUMO solidária. Este trabalho propõe uma discussão teórica sobre as relações entre memória coletiva, práticas identitárias e et- INTRODUÇÃO nometodologia, especialmente pensando-as em um contexto Estes primeiros dezoito anos do século XXI têm apre- de economia solidária. O referencial teórico baseia-se em sentado como características marcantes as profundas Russel (2006), que aborda a memória coletiva antes e depois transformações nas sociedades pós-modernas, fomentadas de Halbwachs, bem como Apfelbaum (2010), que destaca principalmente pela revolução tecnológica. Esse movimento as propriedades sociais da memória. Candau (2010, 2014) originado no período pós-guerra irradiou-se nas últimas dé- aprofunda as relações entre memória e identidade, uma vez cadas do século XX e permeia, na atualidade, todos os campos que é a memória que a fortalece, de forma que restituir a da atividade humana, e em especial o campo do trabalho. Em memória do indivíduo equivale a restituir sua identidade. A meio a uma profunda incerteza quanto aos futuros desdobra- etnometodologia (GARFINKEL, 1967; LEVINSON, 1983; COU- mentos da substituição de mão-de-obra humana por siste- LON, 1995; SILVERMAN, 1998; BISPO; GODOY, 2012) se mostra mas informatizados e robôs, e em um movimento que busca coerente com tais abordagens teóricas, pois ela visa entender construir novas soluções e respostas a tantas incertezas, a o que as pessoas realmente fazem, como elas realizam ou não economia solidária tem se mostrado como um campo fértil ações, no caso, em suas cooperativas ou coletivos de trabalho de experiências, abrindo-se a muitas possibilidades de inves- e como constituem sua realidade social. Para isso é preciso tigação. No campo de experiências coletivas que a economia que o pesquisador observe o que as pessoas estão fazendo, solidária propõe, a etnometodologia, a partir de seu apara- incluindo como percebem as suas ações e as das outras pes- to teórico-metodológico, pode contribuir para um melhor soas, como fazem sentido delas; enfim, que olhe as ações entendimento deste contexto. A etnometodologia surge no detalhadas realizadas pelas pessoas enquanto constituem o final dos anos 1960 nos Estados Unidos com a perspectiva seu dia a dia para entender que métodos usam para construir sociológica de compreender os métodos (por meio de ações suas ações e suas vidas nos empreendimentos coletivos da visíveis) que os sujeitos utilizam para construir a própria re- economia solidária. Dentro dessa perspectiva, considerar o alidade social. nível micro e estudar a vida ordinária das pessoas para en- Neste contexto, propõe-se uma discussão teórica sobre tender como elas realizam, criam, fazem e transformam seu as relações entre memória coletiva, práticas identitárias e et- cotidiano pode trazer um novo entendimento de como e por nometodologia, especialmente pensando-as em um contexto que as ações que formam as cooperativas solidárias ocorrem. de economia solidária. Teoricamente são consideradas as con- tribuições de Russel (2006), sobre a memória coletiva antes e 72 Doutoranda junto ao PPG em Memória Social e Bens Culturais, UNILASALLE. Mestra em Memória Social e Bens Culturais, UNILASALLE depois de Halbwachs, e de Apfelbaum (2010), que destaca as e técnica administrativa na UFRGS. propriedades sociais da memória. As estreitas relações entre 73 Docente permanente do PPG em Memória Social e Bens Culturais, memória e identidade são aprofundadas por meio de Candau UNILASALLE. Doutora em Administração e Líder do Grupo de Pesquisa (2011, 2014) e Hall (2006), enquanto a etnometodologia Tecnologia Social, Inovação e Desenvolvimento (GP Tessido). 136 é abordada através de GARFINKEL, 1967; LEVINSON, 1983; emergência da lembrança, ou “rememoração pessoal”, que COULON, 1995; ARMINEM, 2006; e BISPO; GODOY, 2012. A situa-se no “entrecruzamento das redes de solidariedades discussão focaliza a articulação destes conceitos teóricos em múltiplas” que envolvem os indivíduos: “Nada escapa à trama uma dinâmica contemporânea, a partir da qual são tecidas as sincrônica da existência social atual, [sic] é da combinação considerações finais. desses diversos elementos que pode emergir aquela forma que chamamos lembrança, porque a traduzimos em uma lin- ABORDAGENS TEÓRICAS guagem” (DUVIGNAUD, 2003, p.12). Russell (2006, p.792-793) parte de uma simples dis- Ao introduzir e presente abordagem teórica, optou-se tinção elaborada por Paul Ricoeur, no livro Memória, História por segmentá-la em três partes, para delimitar de forma pre- e Esquecimento, entre memória individual e coletiva, segundo liminar os campos teóricos da memória coletiva, das práticas a qual, quando uma lembrança é atribuída a uma pessoa, ou identitárias e da etnometodologia, e posteriormente proced- seja, a “minha lembrança de dado evento” estaria associada à er sua articulação com a economia solidária. memória individual; enquanto a lembrança atribuída a mais de uma pessoa, ou seja, a “nossa lembrança de dado evento” A MEMÓRIA COLETIVA seria uma memória coletiva. Russel (2006) argumenta que apesar de não fornecer qualquer informação sobre as relações O conceito de uma memória que ultrapassa a duração da entre memória individual e coletiva, ou sobre as funções da mente e do corpo individual, associada a um grupo, pode ser memória coletiva, esta definição é o ponto de partida para identificado difusamente em textos que remontam à cultu- analisar o processo de formação de um conceito de memória ra grega arcaica (Russell, 2006). Foi Maurice Halbwachs, no coletiva antes e depois de Halbwachs. começo do século XX, quem aprofundou essa noção e a no- Russell (2006) analisou textos franceses dos séculos meou como Memória Coletiva, a partir do livro “Os Quadros XVI a XVIII, definindo o período como “pré-halbachsiano” Sociais da Memória”, de 1925, e do livro póstumo “A Memória ou “moderna memória coletiva”, e encontrou em expressões Coletiva”, publicado em 1950, abrindo “um novo caminho como “memória dos homens”, “memória perpétua ou eterna” para o estudo sociológico da vida cotidiana” e para o exame de referências que demonstravam que a memória de grupos situações concretas da “trama da vida coletiva” (DUVIGNAUD, poderia ser transmitida de uma geração a outra e que sobre- 2003, p.7 e p.15). viveria além da existência individual, mesmo que não hou- Tanto Russell (2006) quanto Duvignaud (2003) mencion- vesse referência explícita ao termo “memória coletiva”, o que o am uma certa desconexão entre a experiência vivida e sua for- diferencia do conceito descrito por Halbwachs. A natureza da ma de expressão na linguagem como prenúncio de mudanças memória coletiva antes de Halbwachs descreve uma dinâmica culturais que propiciam o surgimento de um novo pensar e que mantém dependência ao conteúdo do que é lembrado, seus meios de expressão. Dito de outra forma: “a inadequação sem associar este conteúdo a um grupo que lembra; ou seja, dos termos científicos à realidade que procura reaver” e o re- é o conteúdo da memória coletiva que determina sua forma, curso a textos e à linguagem literária como meio de aquisição e este consiste basicamente em pessoas e seus esforços (RUS- de um novo vocabulário capaz de dar conta destas realidades SELL, 2006). Nos textos analisados pelo autor, há referência, emergentes de novas experiências, das quais não se tem de que somente determinadas pessoas e objetos se inscrever- domínio (DUVIGNAUD, 2003, p.10). iam eternamente na memória da humanidade, através de Desde a publicação da obra póstuma de Halbwachs, o grandes feitos e descobertas, cuja explicação reside na ideia conceito de memória coletiva gerou múltiplos entendimentos de que figuras exemplares do passado serviriam de modelo e definições (Russell, 2006). Duvignaud (2003) destaca dois para uma conduta ética (RUSSELL, 2006). aspectos que fundamentam o conceito de memória coletiva Para Russell (2006), a memória coletiva garante “vida a partir da perspectiva de Halbwachs: o depoimento de uma eterna” aos atos e pessoas por ela preservados, na tradição testemunha, que só faz sentido se o indivíduo pertence a um ocidental. Desde a Grécia antiga, memória e imortalidade rel- grupo e partilha um evento em comum com o mesmo; e a

137 acionam-se estreitamente, como metáfora: não eram apenas sua própria memória coletiva e que esta difere da memória os heróis e os artistas que se tornavam imortais, mas seus no- coletiva de outros grupos. (RUSSELL, 2006, p.796) mes, reputações e realizações que se perpetuavam. Essa asso- A memória é flexível e multinível, na visão de Apfelbaum ciação entre memória coletiva e imortalidade é significativa, (2010, p.86), e um terreno móvel no qual a importância e conforme o autor, pois dizer que a memória é imortal significa posição relativa da recordação dependem das afiliações cam- dar-lhe independência e transcendência diante da incerteza biantes. e finitude da existência humana, já que a memória pessoal Embora os dois sistemas analisados por Russell sejam é tão efêmera. Assim, a “moderna memória coletiva” deriva coerentes, a natureza dos dois é bem diferente, já que cada de valores éticos e estéticos que lhe atribuem posteridade e a um menciona tipos diferentes de memória individual como sustentam (RUSSELL, 2006, p.793-794). modelo para a conceituação da memória coletiva. Passados Em resumo, Russell (2006, p.794) observou que nos trinta anos, desde a publicação póstuma da obra de Hal- textos analisados do período anterior a Halbwachs, as lem- bwachs, neurocientistas identificaram três tipos distintos de branças não são vistas como associadas a um grupo específico memória individual: i) procedural, que envolve a habilidade e parecem ser independentes deles; não fica claro quem se de repetir determinadas performances, tais como nadar e lembraria das personalidades e feitos exemplares, se estas dançar; ii) semântica, que envolve o estoque de informações lembranças seriam eternas, ou se existiriam além do âmbi- abstratas e fatos independentes de uma experiência tempo- to de uma experiência de vida singular de um indivíduo ou ral, tais como fórmulas matemáticas; e iii) episódica, que per- grupo específico. A frase “vivre dans la mémoire des mite ao indivíduo lembrar das experiências de seu passado e hommes” (viver na memória dos homens), alude a uma reconstruir mentalmente o tempo passado, sendo altamente vaga memória da humanidade, o que não significa que cada pessoal e subjetiva, ao contrário da memória semântica, que indivíduo preservará uma memória dada, mas que esta con- pode ser aprendida (RUSSELL, 2006). tinuará a existir em uma parte inespecífica da humanidade. Candau (2014) analisa a memória enquanto faculdade e Através dos livros, a memória garantiu o status e a autono- representação, e atualiza a nomenclatura, sob a perspectiva mia adquirida, e os exemplos encontrados com frequência antropológica, a respeito dos três tipos de memória como: i) na literatura moderna e no discurso intelectual contribuíram protomemória, que merece atenção por representar saberes e para a percepção de que a memória coletiva é autossus- experiências resistentes e compartilhadas pelos membros de tentável e que não está sujeito à transitoriedade da existência uma sociedade; ii) memória de alto nível, que é a memória de e da memória humana (RUSSELL, 2006, p.794). recordação; e iii) metamemória, que é a “representação que Por outro lado, a abordagem teórica da memória coleti- cada indivíduo faz de sua própria memória” (CANDAU, 2014, va feita por Halbwachs difere significativamente desta, pois p.23). Porém, este autor observa que tal distinção é válida quem lembra e como isso ocorre tornam-se questões centrais. quando se trata da memória individual, e que o mesmo não No capítulo intitulado “Memória Coletiva e Memória Individ- seria válido ao se tratar de grupos ou sociedades, de modo ual” do livro “A Memória Coletiva”, Halbwachs argumenta que que “um grupo não recorda de acordo com uma modali- toda lembrança depende da dinâmica dos grupos e que são dade culturalmente determinada e socialmente organizada, as interações sociais dos indivíduos nestes grupos o fator de- apenas uma proporção maior ou menor de membro desse terminante de como as experiências passadas são lembradas, grupo é capaz disso” (CANDAU, 2014, p.24). Neste contexto, a e do que seus integrantes lembram. Assim, as experiências memória coletiva seria uma representação ou metamemória do passado são reconstruídas coletivamente pelos grupos e entendida pelo autor como um enunciado relativo à descrição apesar do indivíduo apresentar uma perspectiva particular de um “compartilhamento hipotético de lembranças”, pro- nesta reconstrução, ele não tem uma memória independente duzido pelos membros de um grupo sobre uma memória desse passado. Em outras palavras, a natureza específica da “supostamente comum a todos os membros” (CANDAU, 2014, experiência do grupo gera uma memória e uma identidade p.24-25). compartilhadas, tendo como resultado que cada grupo tem

138 A memória coletiva descrita por Russell como anterior tempo, compatível com a memória episódica. Esta segunda à Halbwachs parece aproximar-se da memória semântica, definição de Lavabre não limita a memória coletiva à ex- já que não está ligada à memória e à identidade de nenhum periência vivida, mas a relaciona a um senso de identidade e grupo ou indivíduo em particular e funciona como informação continuidade, que são resultados da memória episódica. abstrata. Já a memória coletiva descrita por Halbwachs asse- Assim como Russell (2006), Apfelbaum (2010) percebe melha-se à memória episódica, pois pertence a grupos es- essa dualidade da memória: vestígios remanescentes de lon- pecíficos, tem a experiência vivida como objeto, é parte da ga duração inscritos de forma profunda e permanentemente identidade do grupo e não pode ser transferida de um grupo sem que se perceba, tais como em tradições, costumes, mo- a outro. Por isso, são consideradas por Russell (2006) duas dos de operação, ou seja, um contexto cultural comum que in- formas muito diferentes de pensar sobre a memória coletiva, troduz uma noção de duração e continuidade dos próprios el- como produtos de seus contextos: o interesse na memória ementos culturais; e a relação dos sujeitos com uma memória semântica manifestado em textos da Antiguidade, da Idade coletiva a partir dos vários grupos nos quais eles se filiam em Média e Moderna definiu a noção de memória coletiva ante- uma trama mediada pela identidade. rior ao século XX, da mesma forma que no início do século XX Para Russell (2006), ao estudar grupos ou sociedades o interesse na memória episódica estruturou o pensamento de determinada época é importante pensar criticamente de Halbwachs e influenciou a continuidade dos estudos, en- sobre a memória coletiva como uma ferramenta de análise. fatizando a identidade de grupos e a experiência vivida. Mais O modelo episódico de memória coletiva de Halbwachs afas- recentemente, outras articulações da memória de grupos tou-se do discurso intelectual francês do início do século XX. apresentam-se de forma diferente, tais como o trabalho com Por fim, Russell chama atenção ainda para o quadro concei- oralidade e com a literatura, incluindo informação abstrata e tual e cultural com que estas sociedades operam quando conhecimento prático, ou seja, a memória semântica como descrevem as memórias coletivas que produzem e indica que parte da memória coletiva (RUSSELL, 2006, p.799). para compreender como os grupos lembram coletivamente Apfelbaum (2010, p. 88), destaca o papel determinante é necessário utilizar tanto conceitos culturais como transcul- da linguagem e da comunicação para o processo de interação turais. e construção da memória e da identidade. A proximidade in- Para Apfelbaum (2010), o legado de Halbwachs ul- terpessoal e afetiva é a condição necessária a nível individual trapassa a questão da memória, pois explora a dinâmica para que a comunicação interpessoal se torne possível e para interpessoal da memória individual e suas conexões com estabelecer um diálogo significativo e que ajude os sujeitos um contexto histórico e social em mutação, evidenciando o a processar suas experiências em memórias vividas e facilitar peso da cultura, tais como tradições regras, normas, novos seu armazenamento e recuperação, apesar de reprimidas ou imperativos políticos; e fornecendo um referencial teórico esquecidas. para compreender a complexidade e as flutuações do com- Atualmente os estudos se dividem entre autores que portamento social dos indivíduos. O foco de Halbwachs na abandonaram Halbwachs, optando exclusivamente por ana- experiência vivida e sua descrição da memória coletiva, como lisar a memória como um fenômeno individual; e autores que, parte da identidade de um grupo, estão inter-relacionadas, como Halbwachs, percebem a memória como um fenômeno porque a identidade pessoal está ligada a esse tipo particular coletivo (RUSSELL, 2006, p. 799). Conforme Marie-Claire Lav- de memória. O grupo torna-se consciente de sua identidade abre (citada por Russell, 2006, p.799), pode-se identificar dois através da percepção do próprio passado: quando a natureza usos para o termo memória coletiva no final do século XX: i) da memória coletiva do grupo muda, o próprio grupo se dis- experiência vivida pertencente a um grupo específico, que solve, e seus membros formarão outros grupos com novas são duas características da memória episódica; ii) e a partir identidades. (RUSSELL, 2006, p.787) da distinção entre história, constituída de fatos equivalente Candau (2010, p.45) considera que uma das razões à memória semântica, e memória com uma dimensão subje- para o movimento memorialista contemporâneo seria o tiva, que cria um senso de identidade que persiste através do “medo do vazio de sentidos” presente nas sociedades atuais,

139 especialmente por meio da marca do individualismo. Nesse veiculada pelo discurso metamemorial, entendido como sentido, a multiplicação de “dispositivos memoriais” visaria representação. E que “é a permanência e o compartilhamen- à manutenção do sentimento de um laço social possível de to desse discurso que conferem certo conteúdo à afirmação ser compartilhado. Para este autor, a construção de uma identitária” (CANDAU, 2014, p.200). memória coletiva ocorre somente se as memórias individuais As práticas identitárias apresentam estreita relação com são capazes de abrirem-se “umas às outras visando objetivos a construção da memória, sofrendo a intervenção das culturas comuns, tendo um mesmo horizonte de ação” (CANDAU, que a formam. Para Hall (2006), a estabilidade do sujeito está 2014, p.48). no foco da discussão sociológica, devido à fragmentação do Dessa forma, Candau (2014, p.49) afirma que toda sujeito moderno. O autor apresenta três concepções de iden- memória é social, porque permite o apoio das memórias tidade e a mudança do seu entendimento, conforme ocorrem individuais umas nas outras, mas nem sempre coletivas, as mudanças sociais, apresentadas como: a do sujeito do pois apenas sob certos casos e condições permitem uma “in- Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno, con- terpenetração” e “concordância mais ou menos profunda de forme apresentado no Quadro 1. memórias individuais”. Apenas quando ocorre a “permeabili- Conforme sistematizado no Quadro 1, a concepção de dade” e a convergência de representações do passado é que se identidade a partir do sujeito do Iluminismo baseava-se no pode falar em memória coletiva. entendimento do ser humano como unificado, integrado, com plena capacidade de razão, consciência e ação. A partir do seu AS PRÁTICAS IDENTITÁRIAS nascimento, a sua essência era entendida como contínua e era o centro da sua identidade. Era uma concepção individualista, Candau (2014) e Hall (2006) procuraram entender as tanto do próprio sujeito (masculino) como da sua identidade. identidades e práticas identitárias sob diferentes pontos de A noção de sujeito sociológico, por sua vez, duvidava vista. de que o núcleo interior do sujeito seria autônomo e autos- A identidade se apresenta como uma construção social suficiente. Entendia a cultura como mediadora de valores, que ocorre a partir de uma “relação dialógica com o Outro”. sentidos e símbolos, formada na relação com outras pessoas Sem memória, não há identidade, pois a primeira reforça o importantes para ele, constituindo uma concepção interativa sentimento de continuidade pessoal e social (CANDAU, 2010, da identidade e do eu, baseado em autores do interacionis- p.45-46). Refletindo sobre o que seria essencial neste proces- mo simbólico como Mead e Cooley. A partir da perspectiva so, Candau (2010) identificou uma preocupação com a narra- do interacionismo simbólico, que veio a tornar-se clássica, a tiva de si, por vezes individual e por vezes coletiva: “identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade” (HALL, 2006, p. 11). Finalmente, na concepção de identidade do sujeito Cada indivíduo estima ter uma essência pós-moderno, o sujeito não é entendido como apresentando e a maior parte do tempo ele estima que uma identidade, mas várias identidades (inclusive algumas o grupo ao qual pertence também tenha contraditórias). Essa variabilidade é entendida a partir das uma, ele se preocupa com isso e porque ele se preocupa, se esforça em colocá-la em mudanças estruturais e institucionais da sociedade, o que faz sua narrativa (sua identidade narrativa e eu com que o processo de identificação (com as identidades cul- serei tentado a dizer: sua essência narrativa) turais) tenha se tornado provisório, variável e problemático. A que ganhará em grandeza, em nobreza se identidade passa então a ser “formada e transformada contin- ele pode se inserir numa narrativa coletiva.” uamente em relação às formas pelas quais somos representa- (CANDAU, 2010, p.47-48) dos ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006 [1987], p.13). Em diferentes momentos, o sujeito Candau (2014) enfatiza que a afirmação identitária an- assume diferentes identidades, por meio de identificações corada em permanência e compartilhamento é uma ilusão continuamente deslocadas. O sentimento de uma identidade

140 Quadro 1 – Concepções de identidade

Características da Conceito de identidade Perspectiva Influências Identidade -Nascia com o sujeito e não se modificava; Racionalismo - Identidade é o centro es- Individualista; Sujeito do Iluminismo -Pessoa integrada e con- Kant sencial do eu. Sexista. sciente de seus atos; Descartes - Domínio da razão. - Identidade era formada na relação com outras pessoas - Pessoas externas med- iavam para o sujeito ele- Identidade preenche o mentos culturais: valores, - Identidade é formada na Interacionismo simbólico espaço entre o mundo Sujeito sociológico sentidos e símbolos; interação entre o eu e a Mead pessoal e o mundo público. Concepção interativa da sociedade. Cooley. identidade e do eu; Sentimentos subjetivos são alinhados a lugares objetivos no mundo social e cultural. o - Sujeito apresenta várias identidades (inclusive con- traditórias); -Processo de identificação Constantes mudanças com identidades culturais Identidade está em con- sociais estruturais e in- provisório; stante modificação devido - Fluida stitucionais Sujeito pós-moderno - Diferentes momentos às mudanças dos sistemas - Mutável Giddens formam diferentes iden- culturais Harvey tidades; Laclau -Sentimento de identidade unificada é fantasia fruto de uma narrativa do eu.

Fonte: Embasado em Hall (2006) unificada se deve à uma fantasia, à uma “confortadora narra- por sua vez, descreve esse mesmo fenômeno, enfatizando a tiva do eu”. Tal fluidez se deve ao constante movimento e mul- perspectiva das “memórias fragmentadas” e a individual- tiplicação de sistemas de significação e representação cultural ização como resultado do abandono das grandes memórias. que apresenta inúmeras possibilidades de identidades. Assim, “não podendo tudo guardar, é despertado em nós um A partir do que foi apresentado, entende-se, portanto sentimento de dispersão, de esfacelamento daquilo que é que Candau (2014) e Halls (2006) observaram processos de impossível captar em sua totalidade” (CANDAU, 2014, p.189). mudança que parecem deslocar estruturas e processos so- A memória alimenta a identidade, e ambas se entre- ciais que ocasionaram certa desestabilização do quadro de cruzam e se reforçam mutuamente, de modo que restituir a referências individuais. Hall (2006) dedica-se à análise do que memória de um indivíduo equivale a restituir sua identidade. chama de “crise da identidade” decorrente do declínio das vel- (CANDAU, 2014, p.16 e p.19). Essas relações podem ser mel- has identidades homogeneizantes e sua substituição por uma hor compreendidas a partir da etnometodologia abordada a nova identidade de um sujeito fragmentado. Candau (2014), seguir.

141 ETNOMETODOLOGIA sados para buscar o verdadeiro sentido naquele momento analisado, por meio de dispositivos de verificação (como pedi- A etnometodologia surgiu nos Estados Unidos, nos anos dos de confirmação, p. ex.) e (iv) análise interacional, inclusive 1960, como uma nova abordagem sociológica, vista para além tentando entender expressões e gestos. de tornar-se uma teoria, mas uma perspectiva de pesquisa e O pesquisador deve procurar compreender ao máximo uma outra postura intelectual (COULON, 1995). A etnometod- a linguagem comum entre os membros (competência social ologia privilegia compreender como as pessoas constroem a da coletividade estudada), por meio de observações, vendo sua própria realidade social por meio das interações em que se e ouvindo o que pode, embasado na confiança (com autor- engajam com outras pessoas. Sem nos darmos conta, ao int- ização antecipada para a realização daquela pesquisa). Além eragirmos com as outras pessoas, usamos, na maioria das vez- disso, deve-se “descrever os acontecimentos repetitivos e as es, uma miríade de regras e normas que foram internalizadas atividades que constituem as rotinas do grupo que se estuda”. (cada um a seu modo) no nosso processo de socialização. A (COULON, 1995, p.91). Nesse sentido, as anotações do pesqui- diferença para a etnometodologia é que “a relação entre ator sador durante as observações são vitais, devendo constituir o e situação não se deverá a conteúdos culturais nem a regras, seu caderno de campo. Documentos e anotações realizadas mas será produzida por processos de interpretação” (COULON, pelos pesquisados podem servir como dados, pois segundo 1995, p.10). Por isso, o que colocamos em prática durante as Hester e Francis (2010, p.188), as anotações podem ser enten- nossas ações na sociedade é o nosso próprio entendimento do didas como “interação por meio de artefatos”, pois constituem processo de socialização sofrido (HUTCHBY; HOOFFITT, 1998). um meio primário de comunicação. Enfim, as fontes de dados O que importa para a etnometodologia é a maneira como para uma pesquisa etnometodológica são: observação direta cada um torna aparente/visível as ações sociais (com base e participante, conversas informais, entrevista individual e/ nos recursos culturais que tem em comum com o outro inter- ou coletiva, diário de campo e análise de documentos (BISPO; agente) (COULON, 1995) e não se preocupa com as intenções GODOY, 2010). Além disso, Bispo e Godoy (2012), baseados ou causas daquelas ações. O entendimento (mútuo entre os em autores como Garfinkel (2006) e Rawls e Garfinkel (2008) interagentes) de “como” as ações sociais acontecem permite entre outros, sugerem as seguintes estratégias de pesquisa a construção da própria vida social. O que interessa resgatar para coleta de dados de pesquisas etnometodológicas, mas em uma pesquisa etnometodológica é o ponto de vista dos não restrito a elas: “observação direta, observação partici- interagentes. Ou seja, nas palavras de Coulon (1995, p.15), é pante, diálogos (conversas informais), entrevistas, gravações preciso considerar ”o ponto de vista dos atores, seja qual for o em vídeo, projeção do material gravado para os próprios objeto de estudo, pois é através do sentido que eles atribuem atores (participantes), gravações em áudio, notas de campo, aos objetos, às situações, aos símbolos que os cercam, que os além de debates com os participantes sobre os materiais pro- atores constroem seu mundo social”. duzidos” (p.697). Os procedimentos metodológicos não se distanciam Mesmo que a etnometodologia não discuta a identi- dos tradicionais quando se vai a campo para uma pesquisa dade, já que para ela não interessa o que acontece em termos etnometodológica. Eles incluem técnicas qualitativas como: cognitivos ou em termos de intencionalidade, há aspectos em grande quantidade de observações (privilegiando as ano- comum, pois para ela, há uma orientação moral dos partic- tações do pesquisador) de eventos sociais que ocorreram ipantes nas interações. Essa orientação moral, que pode ser naturalmente no mundo real (situações que ocorreriam sem visualizada na sequencialidade da conversa e das atitudes, a presença do pesquisador) e gravações de vídeo e/ou áudio mostra que os participantes se orientam para possíveis in- dos eventos (COULON, 1995). ferências dos interlocutores na busca por afastar possíveis De posse destes dados, o pesquisador precisa então se retaliações morais (SILVERMAN, 1998) e assim “impactanto pautar por quatro princípios (COULON, 1995): (i) os dados em uma constante (re)construção da sua identidade” (DEL estarem disponíveis (áudio e/ou vídeo); (ii) exaustividade no CORONA, 2011, p 67). tratamento dos dados e maneira de sistematizar (de maneira detalhada); (iii) buscar interpretar os dados junto aos pesqui-

142 Como a etnometodologia visa o entendimento sobre as Nos contextos dos empreendimentos solidários, a au- práticas individuais, de forma a identificar o que as pessoas togestão é um pressuposto, ou seja, pode ser vista como um realmente fazem, como elas realizam ou não ações e como ‘tipo ideal weberiano’. O tipo ideal weberiano é caracterizado constituem sua realidade social, ela se torna interessante per- por ser uma idealização que dificilmente vai ser encontrada spectiva para a compreensão dos processos que ocorrem no na prática, tal como aparece em termos teóricos ou abstratos. contexto da economia solidária, tópico apresentado a seguir. Porém, mesmo assim, serve como um norte, para onde os membros dos empreendimentos orientam-se em sua busca diária (CANÇADO; PEREIRA; TENÓRIO, 2013). O CONTEXTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Para Cançado, Pereira e Tenório (2013), um elemento A economia solidária é uma abordagem que explica que sinaliza como as práticas sociais de autogestão estão se um sistema produtivo que se diferencia do tradicional pela comportando dentro de cada empreendimento, pode ser feita presença de empreendimentos que procuram implantar por meio da análise de como é realizado o cálculo do paga- práticas produtivas autogestionárias que contemplam a mento dos membros, pois é motivo de lutas internas quando participação e a cooperação das pessoas envolvidas no tra- alguns recebem valores diferentes dos demais. Há outros balho como um modo de sobrevivência e sustento (PARENTE; elementos que caracterizam a economia solidária, os quais GOMES, 2015). Os empreendimentos econômicos solidários serão apresentados na discussão, a seguir. são formados, em sua maioria, por pessoas com alta vulnera- bilidade social e com dificuldades econômicas, muitas vezes, DISCUSSÃO inviabilizadas de participar do mercado formal de trabalho Todo indivíduo busca se situar no mundo a partir da (com carteira de trabalho assinada). Muitos deles são cooper- representação que faz dele próprio, ou seja, sua identidade ativas ou associações. No Brasil, ainda em 2013, havia quase individual, bem como procura nos outros uma identificação 20 mil empreendimentos de Economia Solidária registrados comum, ou uma identidade coletiva, mediante associação em (SIES, 2014). grupos.. A partir do entendimento da memória coletiva como A abordagem da economia solidária começou com a cri- o movimento dinâmico entre lembranças e esquecimentos se brasileira dos anos 1980, quando trabalhadores de fábricas compartilhados por um grupo ou coletividade e da identidade falidas assumiram a gestão e produção das mesmas, pautan- como meio de afirmação individual e coletiva de um grupo do-se, paulatinamente, por um modelo de autogestão, ao que compartilha suas memórias, as práticas identitárias po- invés da hetero gestão. Em outros países como na França, a dem ser analisadas com o aporte da etnometodologia, en- economia solidária surgiu ainda no século XIX. Foi Paul Singer tendida como um aparato teórico-metodológico que procura (1932-2018), economista e doutor em sociologia, ativo nas entender como as pessoas (re)constroem a própria realidade causas sociais e participante do ambiente político, quem ini- em meio às interações, enquanto fazem sentido de suas ações ciou com os debates sobre esse novo ‘movimento’ no Brasil. sociais. Segundo o próprio Singer (2008, p.289), a economia solidária De maneira sintética, observamos algumas convergên- é “um modo de produção que se caracteriza pela igualdade. cias entre memória coletiva, práticas identitárias e et- Pela igualdade de direitos, os meios de produção são de posse nometodologia, as quais são apresentadas no Quadro 2. coletiva dos que trabalham com eles – essa é a característica A síntese apresentada no Quadro 2, permite um olhar central”. Além desse, outro elemento da economia solidária em perspectiva através do tempo, acompanhando um mov- é a autogestão. Quando são os próprios trabalhadores que imento de convergência de ideias que resultou nos campos fazem a gestão coletiva do empreendimento de maneira in- de estudo da memória coletiva, da etnometodologia e das teiramente democrática, onde todos têm direito a voto e a ser práticas identitárias. ouvido, sendo que neles, “se são pequenas cooperativas, não No plano individual pode-se perceber que a neurociência há nenhuma distinção importante de funções, todo o mundo possibilitou avanços no estudo dos tipos de memória individual faz o que precisa.” (SINGER, 2008, p.289). e no entendimento de seus mecanismos complexos. Enquanto

143 Quadro 2 – Elementos de discussão Aspectos Memória coletiva Práticas Identitárias Etnometodologia (EM) Época Início século XX (1920) Anos 1980 e posteriores Anos 1960 e posteriores Como (método) cada um torna Foi perdendo terreno para o aparente (visível) as ações sociais entendimento da identidade Individual Tipos de memória individual com base nos recursos culturais como dependente das interações que tem em comum com o outro sociais. interagente (COULON) Identidade é fruto de relação dialógica com o outro (CANDAU). As ações sociais são orientadas Coletivo Insere o caráter grupal e depend- Identidade é variável, depende para o sentido que é construído Grupo ente para a memória das interações sociais e das coletivamente. mutáveis identificações (HALL). Resultam de trama existencial que emergem na lembrança Mudanças constantes nos e se traduzem em linguagem sistemas culturais, provocam Por meio da linguagem e comuni- Linguagem (DUVIGNAUD) a identidade a ser formada e cação as pessoas (re)constroem a Comunicação Papel determinante para a transformada continuamente. realidade social continuamente. construção da memória e da (HALL) identidade (APFELBAUM) Considera ”o ponto de vista dos Apenas quando ocorre a “perme- Mudanças sociais (dos sistemas atores, pois é através do sentido abilidade” e a convergência de culturais) ocorrem tão rápido que que eles atribuem aos objetos, Social representações do passado que a forma “identidades” (múltiplas e às situações, aos símbolos que os memória social torna-se memória até contraditórias). cercam, que os atores constroem coletiva. seu mundo social”. (COULON) Resgatar o ponto de vista dos interagentes, dos membros de Memória coletiva de grupo não se cada empreendimento solidário Sentimento de dispersão e Contexto da economia limita à experiência vivida, mas estudado, para entender o sentido esfacelamento da identidade, solidária sim a um senso de identidade e que eles atribuem aos objetos, diante de mudanças constantes. continuidade (LAVABRE; RUSSEL) às situações, aos símbolos que os cercam para entender como constroem seu mundo social. Fonte: Elaborado pelas autoras. isso, a etnometodologia dirigiu seu foco para o modo pelo qual etnometodologia, as ações sociais orientam-se para o sentido os indivíduos mobilizam recursos culturais em comum na inter- que é construído coletivamente, a partir destas experiências. ação social, tornando visíveis as ações sociais, ao mesmo tempo Já as práticas identitárias se modificaram, a partir do enten- que (re) constroem o próprio mundo social. E o campo das práti- dimento de que a identidade é construída de forma relacional cas identitárias apresentou o entendimento de que a formação e dialógica com o outro, tendo uma característica variável e da identidade depende das interações sociais. dependente das interações sociais e mutáveis. No plano dos grupos e coletividades, passou-se a in- No âmbito da linguagem e da comunicação, a memória vestigar a memória como um fenômeno social, construído coletiva resultante de uma trama existencial emerge através coletivamente a partir das experiências vividas e das lem- da lembrança expressa na linguagem, desde a literária até branças compartilhadas pelos grupos. Da mesma forma, na a linguagem cotidiana. A linguagem é determinante para

144 a construção da memória e da identidade, e para a (re)con- Tendo por base as reflexões apresentadas, pode-se strução da realidade social. Quanto às práticas identitárias, evidenciar o papel da linguagem enquanto elemento fun- são as mudanças constantes nos sistemas culturais que provo- damental de mediação entre as categorias abordadas. Ela cam a identidade a ser compor e recompor continuamente. se apresenta como narrativa, enquanto memória individual No âmbito de uma sociedade, toda memória é social, mas ou coletiva; como discurso, enquanto prática identitária; e apenas quando ocorre a “permeabilidade” e a convergência de como elemento constituinte da vida social e analítico para representações do passado é que se pode falar em memórias a etnometodologia. Através da linguagem, das práticas de coletivas. À etnometodologia interessa a perspectiva de como memória coletiva e identitárias pode-se identificar fissuras, os sujeitos constroem seu mundo social a partir do sentido disjunções, problematização e novas ações que indicam as que atribuem ao que os cercam, tais como acontecimentos, mudanças culturais em curso. situações, símbolos e objetos, por exemplo. As práticas iden- Pode-se afirmar que o aporte teórico da memória cole- titárias apresentam como foco as rápidas mudanças sociais, tiva e das práticas identitárias aliado ao uso da etnometod- derivadas dos sistemas culturais, que propiciam a formação ologia oferecem, cada um a seu turno, um importante meio de identidades múltiplas e até contraditórias. de aproximação sobre a compreensão dos aspectos multifac- Por fim, no contexto da economia solidária, a memória etados que envolvem os grupos sociais no contexto de em- coletiva torna-se um meio de acesso ao grupo que vai além preendimentos econômicos solidários, a fim de investigar as da experiência vivida, com vistas à propiciar a reflexão so- contradições e mediações encontradas neste campo. bre a identidade e a continuidade do grupo. Ao passo que a Percebe-se que uma abordagem transdisciplinar per- etnometodologia auxilia no resgate do ponto de vista dos mite uma aproximação mais enriquecedora aos objetos de membros dos empreendimentos solidários estudados, para estudo. Nesse sentido, a presente reflexão pretende somente entender como constroem seu mundo social a partir do senti- fomentar o debate e motivar novas contribuições. do atribuído ao ambiente que os cercam. Quanto às práticas identitárias, a fragmentação das identidades, longe de repre- REFERÊNCIAS sentar um aspecto negativo, pode oportunizar novos entendi- mentos e descobertas, diante de mudanças constantes. Estas APFELBAUM, Erika. Halbwachs and the Social Properties reflexões podem ser levadas ao contexto das cooperativas of Memory. In: RADSTONE, S.; SCHWARZ, B. Histories, The- ou coletivos de trabalho da economia solidária. Para isso, é ories, Debates. New York, EUA: Fordham University, 2010. preciso que o pesquisador observe o que as pessoas estão Stable URL: http://www.jstor.org/stable/j.ctt1c999bq.9. fazendo, incluindo como realizam as suas ações por meio Acessed: 01, march, 2018. da linguagem e as das outras pessoas, (e como respondem a elas) e consequentemente, como produzem sentido para elas BISPO, M.; GODOY, A. A etnometodologia enquan- próprias e para o outro; enfim, que olhe as ações detalhadas to caminho teórico-metodológico para investigação da realizadas pelas pessoas enquanto constituem o seu dia a dia aprendizagem nas organizações. Rev. adm. contemp., Cu- para entender que métodos usam para construir suas ações e ritiba, v. 16, n. 5, p. 684-704, Oct. 2012 suas vidas sociais nos empreendimentos coletivos da econo- CANÇADO, A.; PEREIRA, J. TENÓRIO, G. Gestão social: mia solidária. epistemologia de um paradigma. Curitiba: Ed. CRV, 2013 CANDAU, J. Bases antropológicas e expressões mundan- as da busca patrimonial: memória, tradição e identidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Revista memória em Rede, Pelotas, v.1, n.1, dez. 2009/ O objetivo deste artigo foi o de propor uma discussão mar. 2010. teórica sobre as relações possíveis entre memória coletiva, práticas identitárias e etnometodologia, especialmente pen- CANDAU, Joël. Memória e Identidade. Tradução Maria sando-as em um contexto de economia solidária. Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2011, 2014.

145 COULON A. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995. SIES, 2014. Sistema de Informações em Economia DEL CORONA, Márcia de Oliveira. O universo do 190 Solidária. Disponível em: http://sies.ecosol.org.br/atlas. Aces- pela perspectiva da fala-em-interação. 2011. 252 f. so em: 07 mai. 2018. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade do Vale SILVERMAN, David. Harvey Sacks: social science and do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2011. conversation analysis. New York: Oxford University Press, 1998. DUVIGNAUD, J. Prefácio. In: HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. SINGER, Paul. Entrevista: Economia Solidária. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v.22, n. 62, p. 288-314, 2008. GARFINKEL, H. Studies in ethnomethodology. Cam- bridge: Polity Press, 1967. COLLECTIVE MEMORY, IDENTITY AND HALL, S. A identidade em questão. In: HALL, S. A Identi- PRACTICES ETHNOMETHODOLOGY ON dade Cultural na Pós-Modernidade. 11.ed. Rio de Janeiro: SOLIDARITY ECONOMY DP&A, 2006. ABSTRACT HESTER, F.; FRANCIS, D. Orders of Ordinary Action: Re- This paper proposes a theoretical discussion about the specifying Sociological Knowledge. Aldershot, UK: Ashgate, relationship between collective memory, identity and prac- 2010. tices ethnomethodology, especially thinking about them in a context of solidarity economy. The theoretical framework is HUTCHBY, I.; HOOFFITT, R. Conversation analysis: prin- based on Russell (2006), which deals with collective memo- ciples, practices and applications. Cambridge: Polity Press, ry before and after Halbwachs, as well as Apfelbaum (2010), 1998. which highlights the social properties of memory. Candau (2010, 2014) deepens the relationship between memory LEVINSON, S.C. Pragmatics. Cambridge: Cambridge and identity, since it is the memory that makes it stronger, University, 1983. so that to restore the memory of the individual amounts to restore your identity. The ethnomethodology (GARFINKEL, PARENTE; C.; GOMES, A. Reciclando vidas: a forca de em- 1967; LEVINSON, 1983; COULON, 1995; SILVERMAN, 1998; preendimentos solidarios na integraço social pelo trabalho. BISPO; GODOY, 2012) shows consistent with such theoretical Otra Economía, v. 9, n. 16, p. 79-93, 2015. approaches, because it seeks to understand what people ac- tually do, as they perform actions or not, in this case, in their RAWLS, Anne; GARFINKEL, Harold. Ethnomethodology cooperatives or collective work and how are your social reali- and workplace studies. Organization Studies, v. 29, n. 5, p. ty. For this it is necessary that the researcher notice what peo- 701-732, 2008. ple are doing, including how to understand his actions and those of other people, how to make sense of them; in short, RUSSELL, N. Memory before and after Halbwachs. The look at the detailed actions carried out by people while your French Review, v.79, n.4, mar., 2006, p.792-804. Stable are the day to day to understand what methods they use to URL: http://www.jstor.org/stable/25480359. Acessed: 01, build their actions and their lives in the collective endeavors march, 2018. of solidarity economy. Within this perspective, consider the micro level and study the ordinary life of the people to under- stand how they perform, create, make and turn your every- day life can bring a new understanding of how and why the

146 actions forming the solidarity cooperatives occur. Finally, one MEMÓRIA E IDENTIDADE: A (RE)CONSTRUÇÃO can identify the theoretical contribution of collective memory DA VIDA POR INTERMÉDIO DA ESCRITA LIT- and identity practices and the use of ethnomethodology of- ERÁRIA DE HERTA MÜLLER fer, your turn, an important means of bringing about under- standing the multifaceted aspects that involve the groups in Adriana Yokoyama the context of social solidarity, economic enterprises in order Doutoranda (Bolsista Capes) em Estudos Literários to investigate the contradictions and mediations encountered na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). in this field. [email protected]

Keywords: collective memory; identity prac- Rosani U. K. Umbach tices; ethnomethodology; solidarity economy. Professora titular do Departamento de Letras Es- trangeiras Modernas na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rosani. [email protected]

RESUMO A construção de narrativas baseadas no contexto ditato- rial tem como suporte um dos elementos fundamentais para essa composição: a memória. Nesse sentido, o embate entre as obras Fera d’alma (2013) e Tudo o que tenho levo comigo (2011), de Herta Müller, tem como objetivo apresentar a re- memoração dessas experiências, ainda que de maneira frag- mentada, calcada por uma arte representada pela veracidade, sem a omissão dos fatos, e pela sobrevivência. Essas obras, trazendo à tona assuntos como as representações elaboradas por meio de uma linguagem fraturada, traumática, que expõe as feridas não cicatrizadas de subjetividades em crise, subm- ersas em dores e angústias, sobretudo pela imposição do au- toritarismo, trazem à cena literária não apenas os discursos produzidos pelo outro, como também muito das experiências desse contexto repressivo vividas pela própria escritora, con- tudo, de maneira ficcionalizada por acreditar que só a ficção é capaz de dar conta desse absurdo. Nesse sentido, objetiva- mos refletir sobre como essas memórias contribuíram para a arquitetura de uma escrita dissidente e resistente; apontar os tipos de fenômenos memorialísticos apresentados pela escritora na composição das obras mencionadas; buscar, nesse percurso, a estruturação da memória e a construção de identidades mediante o contexto apresentado, além de descrever como ocorre o processo de criação da realidade por intermédio dos textos literários. Sendo assim, o ato de narrar e a força de reelaboração do trauma, pela palavra escrita, é uma tentativa de (re)construção da identidade e do equilíbrio

147 pessoal que ocorre a partir da (re)organização da memória no Müller teve a sua liberdade cerceada e, por este motivo, viveu fluxo do tempo. em completa anulação de sua subjetividade. Mas, embora cir- cundada pelo medo e pelas incertezas da vida e dos relacion- Palavras-chave: Herta Müller. Ditadura. amentos humanos, Herta Müller utilizou-se da linguagem, Memória. Identidade. ainda que fraturada, como um recurso de sobrevivência. Por intermédio de uma escrita fragmentada, ela expõe as feridas INTRODUÇÃO não cicatrizadas de um sentimento não apenas individual, mas também coletivo de indivíduos que foram arruinados As narrativas da vida têm, em sua essência, o auxílio pelo regime. de um fenômeno de suma importância para a reconstrução Dessa forma, o trabalho pretende abordar, por inter- dos fatos: a memória. É por intermédio dela que inúmeras médio dos estudos memorialísticos, a relação entre memória histórias puderam ser reconstituídas e, sobretudo, reavalia- e seus processos organizacionais e subjetivos, na construção das, pois, rememorá-las não implica somente o resgate dos de suas narrativas, evidenciando-a como um processo essen- acontecimentos, mas também de perceber a relevância de sua cial para a reconstrução da identidade. Além disso, a temática significação. Assim, ao longo de toda a história da humani- da violência e do autoritarismo, tema central da obra mülleri- dade, inúmeros acontecimentos, principalmente os mais dev- ana, irá circundar nossas análises refletindo, não apenas sobre astadores, marcaram significativamente as civilizações de seu os processos da memória, mas também da visível relação en- tempo. Foi, portanto, através da associação entre a memória tre ficção e realidade que estabelece pontos de contato entre e a linguagem que tais eventos vieram à tona e puderam ser as obras. Nesse sentido, a narrativa busca, pela força da pala- dimensionados e ressignificados no presente. Tal atividade vra, a (re)construção da identidade e do equilíbrio pessoal por encontrou no século XX, motivada pelas duas grandes Guerras intermédio da memória individual e coletiva. Mundiais, um enorme potencial para a produção de uma mul- tiplicidade de narrativas, ainda que dolorosas, relacionadas às atrocidades deste período, sobretudo, ao exercício desta práti- OS DESENVOLVIMENTOS DA MEMÓRIA E SEUS PRO- ca nos contextos ditatoriais e totalitários. Nesse sentido, as CESSOS DE RESGATE obras Tudo que tenho levo comigo (2011) e Fera d’alma (2013), A arquitetura da obra mülleriana traz, antes de tudo, a de Herta Müller trazem ao cenário literário narrativas produzi- formatação de uma escrita política e resistente que caminha das sob a intolerância desses sistemas corrosivos e devastado- lado a lado a inúmeras temáticas abordadas pela literatura, res de subjetividades. Munida de uma reflexão aprofundada ainda que esta não seja a sua premissa. Sua narrativa é fruto sobre os fatos, por ter sido uma vítima do regime ditatorial, a de um sistema opressor e violento que evoca as memórias escritora registra em suas obras as dores, as angústias e os re- e as observações de um sujeito marcado e aniquilado pelo flexos desse sistema sobre os indivíduos, mesclando-se entre regime, mas que tenta organizar, equilibrar e (re)construir a as suas experiências e a do outro. sua subjetividade, além de relatá-las para evitar a reincidên- Nascida na Romênia, Müller radicou-se na Alemanha, cia. Nessa direção, a narrativa de Tudo que tenho levo comigo em 1984, aos 34 anos de idade, na tentativa de se libertar (2011) traz ao cenário literário um dos relatos mais intensos da ditadura comunista de Nicolae Ceausescu (1965-1989) e referentes a este período. A ideia principal do romance está recusando-se a trabalhar como espiã para Securitate (polí- calcada nas experiências de seu amigo e poeta, Oskar Pastior, cia secreta). Norteada pelas intransigências de um governo durante os cinco anos em que foi obrigado a viver no campo ditatorial, ela viveu sob a constante vigilância e ameaça de de trabalho forçado, auxiliada pelas experiências de tantos um sistema corrosivo e autoritário que não hesitava em punir outros sobreviventes, objetivando pontuar a crueldade huma- com violência os cidadãos contrários ao regime. Na tentati- na e descrever os efeitos de um sistema autoritário e violento. va de silenciar e moldar esses indivíduos, prisões, torturas e Um projeto pensado para ser escrito a quatro mãos, mas, in- assassinatos eram os recursos utilizados pelo Estado para a felizmente, durante o processo de criação Müller é obrigada a manutenção do poder. Assim, asfixiada por essa atmosfera,

148 dar continuidade a partir de uma escrita solitária, devido ao a incerteza da vida circundam, a todo momento, os aconteci- falecimento de seu amigo. mentos diários mais corriqueiros. Dessa forma, Tudo que tenho levo comigo (2011) de- Estruturada por um discurso doloroso, mas intensa- screve a história ficcional de Leopold Auberg, um jovem de mente metafórico e poético a obra denuncia, não apenas a dezessete anos, homossexual e pertencente a uma família implantação de um governo ditatorial no país, mas especial- de minoria alemã, na Romênia. A obra marca o ano de 1945, mente o processo desumano de aniquilação direta ou gradual final da Segunda Guerra Mundial, para descrever o início de de subjetividades. A implementação de tais práticas tornava o sua trajetória, quando Leo, assim como era chamado por seus ambiente obscuro, assustador e passível de inúmeras dúvidas familiares, foi levado para um campo de trabalho forçado. Ini- em relação às interações humanas. No caso dos amigos, em- cialmente, em seu desejo de libertação, sobretudo, por conta bora suas relações de contato fossem essenciais para as suas da sexualidade, ele via nesse deslocamento a oportunidade sobrevivências, esses jovens cultivavam entre si a desconfi- de uma vida independente, sem ter a consciência do que lhe ança, ou ainda, a fraqueza aceitável, diante das barbáries a seria imposto. O reconhecimento de um movimento repressi- que eram expostos, de suas delações. Era a presença do medo vo só começou a ser percebido por ele durante a longa viagem que os rondava a todo momento, colocando em xeque a in- de trem, até se deparar com o seu destino. Diante dessa per- tensidade de um constante paradoxo: o desejo de liberdade e cepção, a obra se desvela a partir da caracterização minuciosa o medo da vida. É dessa maneira que Fera d’ alma (2013) das condições desumanas a que era submetido. A dureza dos nos apresenta os seus conflitos: pautada pelas lembranças campos, altamente marcada pela violência e pela miséria de tempos sombrios e pela forma, muitas vezes fatal, de o humana, trazia em sua essência a forma mais concreta e regime sinalizar as consequências da não obediência. Assim, deliberada da capacidade do ser humano em exercer a cruel- os romances aqui expostos aproximam-se não somente pela dade. Sobreviver nesses espaços também era uma questão de atmosfera opressiva de seus contextos, mas pela forma de sorte, mas, principalmente, de habilidade, pois era necessário elaboração de um discurso que, auxiliada pelos processos driblar constantemente um de seus piores inimigos: a fome. memorialísticos, encontram-se intrinsecamente relacionados Nos momentos de fraqueza, Leo lembrava-se das palavras de em suas formas de atuação e (re)construção identitária pela sua avó, no momento de sua despedida, dizendo-lhe: “Eu sei associação da memória individual e coletiva. que você vai voltar”, na tentativa de sobreviver. Assim, após Sendo assim, na esteira dessa organização discursiva, cinco anos, Leo retorna para o seu lar, mas aos poucos ele caracterizada pelo materialismo da língua através da escrita, percebe que o Leo que retorna jamais será o mesmo. Müller marca a sua entrada na cena literária com a utilização Ancorada nessa rede de representações, Müller apre- da memória como ars, da memória como arte, segundo senta-nos em Fera d’alma (2013) as experiências repressivas retoma Aleida Assmann em sua obra Espaços da recordação: sofridas por uma jovem e mais três amigos de faculdade, da formas e transformações da memória cultural (2011), refer- ditadura de Nicolae Ceausescu. Embora marcada por uma indo-se à memória como “técnica”. Tal processo, compreen- escrita autobiográfica, já que muitas de suas produções con- dido como mnemotécnica, retoma uma antiga concepção fundem-se com a sua própria vida, assim como nesta obra, a da memória, na qual registra os acontecimentos como “uma escritora utiliza a ficção para tentar dar conta de um período espécie de escrita mental, a partir de elementos dos locais e em que a violência e o obscurantismo estavam incorporados imagens (loci et imagines), com a qual se pode escrever na ao sistema político-social do país. Permeada por um discur- memória como em uma folha em branco” (ASSMANN, 2011, so fraturado, a obra descreve as dificuldades de quatro jov- p. 31). Nesse contexto, o fenômeno da memória muda da ens pobres e provincianos, que decidiram buscar melhores audição para a visão a fonte principal da memória, fixando condições de vida na cidade. Sob a ameaça de um regime conhecimentos e textos por meio das imagens. Assim, as in- comunista e ditatorial, as imagens retratadas, neste romance, formações visualizadas são recuperadas e armazenadas por são norteadas pela situação de um controle intensivo e devas- meio de uma atividade idêntica e confiável. Portanto, isto não tador de liberdades, pois, a vigilância, a sensação de medo e significa dizer que a audição esteja eliminada do fenômeno

149 de armazenamento, mas ela se torna um elemento auxiliar cultar a recuperação da informação, nesse caso, remetendo a para o processo. possibilidade de esquecimento, ou bloqueio, como resultado Entretanto, a partir dos estudos da pesquisadora Dames da repressão, ela pode também ser “controlada pela inteligên- Frances Yates, em sua obra The Art of Memory, na década de cia, pela vontade ou por uma nova situação de necessidade, 60, a técnica mnemônica foi recuperada, possibilitando a sua e proporcionar uma nova disposição das lembranças” (ASS- associação com teorias mais avançadas, entre elas, a inter- MANN, 2011, p. 34). Deste modo, o ato do armazenamento é textualidade e a psicanálise. Nesse sentido, Assmann (2011), um fenômeno que ocorre contra o tempo e o esquecimento, ao considerar essa possibilidade de uma nova atuação da porém, as recordações acontecem dentro do tempo, partici- memória, sobretudo, no que se refere à inserção das ciências, pando ativamente desse processo e mantendo estreita suas ela faz a distinção de suas funções. Assim, a memória como relações. vis, um dos caminhos pelos quais se bifurcam os estudos Portanto, ainda que de maneira inconsciente1, os literários, corresponde a ideia de rememoração, enquanto a fenômenos memorialísticos müllerianos assumem-se como memória como ars diz respeito à função de armazenamento. um elemento essencial para a composição de suas obras. Ape- Para ela, enquanto esta última refere-se à ideia de acúmu- sar de sua escrita contar efetivamente com a colaboração das lo, a outra informa a ideia de uma recordação, (remetendo a experiências do outro, é inegável o entrelaçamento de suas concepção de Nietzsche em relação a memória e identidade) lembranças na criação de suas obras. Segundo a pesquisadora ligando-a a uma espécie de vigor. Para Assmann (2011): Rosvitha Blume (UFSC), em seu artigo Herta Müller e o en- saísmo autobiográfico na literatura contemporânea em língua A recordação procede basicamente de forma construtiva: sempre começa do presente e alemã (2013), Müller em seus ensaios emprega uma inten- avança inevitavelmente para um desloca- sidade autobiográfica tão impactante que o leitor, ao lê-los, mento, uma deformação, uma distorção, “se defronta ora com trechos de uma narratividade altamente uma revaloração e uma renovação do que artística, ora com momentos em que a autora compartilha, foi lembrado até o momento de sua recupe- de modo muito direto e por vezes espantosamente franco, ração. Assim, nesse intervalo de latência, a as mais diversas experiências de sua vida” (BLUME, 2013, p. lembrança não está guardada em um repo- 56). Em seus relatos, ela nos informa que seu pai era um in- sitório seguro, e sim sujeita a um processo tegrante da SS, que foi ela mesma foi ameaçada de tortura e de transformação. A palavra ‘potência’ indi- morte pela polícia secreta do país, que pensou em suicídio, ca, nesse caso, que a memória não deve ser por conta da perseguição, e, por muitas vezes, roubou lojas compreendida como um recipiente protetor, na Romênia para compensar a liberdade roubada pelo Esta- mas como uma força imanente, como uma do. Desnudando-se, ela retoma inúmeras vezes a pequenas energia com leis próprias (ASSMANN, 2011, cenas do cotidiano de sua infância “que lhe servem como im- p. 33-34). agens para falar sobre os processos da linguagem e sobre a sua criação poética” (BLUME, 2013, p. 56). Uma das passagens Na trilha dessas difusões literárias, essa divisão das de Fera d’alma (2013) nos ajudam a compreender tal aproxi- funções da memória pontua duas tradições discursivas: a mação: mnemotécnica e a tradição psicológica que direciona os es- tudos à teoria de Nietzsche, entendendo a memória com uma O mundo não esperou por ninguém, pensei. das três faculdades psíquicas (ao lado da razão e da fantasia). Eu não precisava andar, comer, dormir e Enquanto a primeira objetiva organizar o conhecimento, a se- amar alguém com medo. Antes de existir, eu gunda refere-se à interação da memória com a imaginação e não precisava de cabeleireiro, nem de tesou- rinha de unha e nem perdia nenhum botão. a razão, relacionando memória e identidade, além de pontuar Papai ainda estava ligado à guerra, vivia de a dimensão temporal no processo de recordação (UMBACH, 2008, p.19). Diante de tais considerações, Assmann (2011) 1 Embora as considerações psicanalíticas não façam parte de nossas revela que ao mesmo tempo em que essa energia pode difi- análises, o termo refere-se ao conceito freudiano do inconsciente. 150 canções e de tiros no capim. Ele não preci- a escrita de Müller esteja marcada por traços muito aproxi- sava amar. O capim deve ter ficado com ele. mados as suas experiências de vida, transformada em obras Pois, quando em casa, olhou para o céu do ficcionais, ela não se faz de maneira individual. Há nessa rep- vilarejo, um camponês cresceu novamente resentação, uma incontestável relação da memória individual sob sua camisa e recomeçou sua lida. O re- possibilitada pela memória coletiva, pois, a partir da saída gressado fazia cemitérios e teve de me gerar desses acontecimentos do domínio da insignificância, no (MÜLLER, 2013, p. 40). momento da lembrança, a sua reconstrução se dará por inter- médio “de dados e de noções comuns aos diferentes membros Deste modo, a escrita mülleriana faz parte de um “pro- da comunidade social” (DAVALLON, 2010, p. 25). 2 jeto autobiográfico” indissociável de sua literatura, não por Sendo assim, a compreensão de uma memória como uma via intencional, mas sim por uma conexão estabelecida ars transita no diálogo entre a captação da imagem e a entre a vida e a arte impossível de se desfazer. De acordo com significação de sua representação simbólica. Contudo, ainda Blume (2013), no seu ensaio, Aqui em casa, na Alemanha, que, inicialmente, ela ocorra de maneira individualizada, publicado em 2003, Müller diz que alguns críticos solicitavam ganhará vigor no processamento coletivo, na troca de infor- uma mudança em sua temática: eles desejavam que ela pu- mações. Isto porque, além da constatação da imagem como desse abandonar o seu passado romeno, o período ditatorial operadora de simbolização, ela se estabelece em uma relação de Ceausescu e a repressão sofrida, e voltasse a sua produção de reconhecimento e compreensão de sentidos, e isto inclui literária para o país em que vive há mais de vinte anos, ou os mecanismos da enunciação. Tal percepção só é possível a seja, a Alemanha. Diante deste fato ela afirma: partir de uma conjunção da língua, unindo, nessas imagens, Ao escrever, tenho de me manter ali onde oposições formais à instâncias textuais e enunciativas sob estou mais ferida interiormente, senão é várias perspectivas. Daí a relação entre mensagem, inter- claro que não precisaria escrever e, [q]uanto locutor e receptor, conservando assim as forças das relações mais olhos eu tenho para a Alemanha, mais sociais (DAVALLON, 2010, p. 28-31). É, portanto, no contexto o atual se conecta com o passado (MÜLLER, de Tudo que tenho levo comigo (2011) que as marcas 2003, apud BLUME, 2013, p. 58). interativas da memória como ars são claramente acentua- das. Ao final do livro, a escritora trafega por suas memórias A declaração de Müller deixa clara a necessidade vital para relatar o início de sua composição, descrevendo-o da de sua escrita. É nas feridas do regime, do seu passado rom- seguinte forma: eno de intensos momentos de degradação humana, que as recordações se tornam as aliadas de um processo de transfor- Em 2001, comecei a registrar por escrito as conversas com pessoas do meu vilarejo que mação no presente, assim como mencionado por Assmann haviam sido deportadas. Eu sabia que Oskar (2011). Em uma entrevista concedida no ano de 1988, Herta Pastior também fora deportado e contei-lhe Müller afirmou que o tema de sua escrita não era uma escol- que queria escrever-lhe sobre isso. Ele quis ha, era uma busca do tema por ela; uma imposição da vida ajudar-me com suas lembranças. Nós nos que lhe foi atribuída e, por este motivo, uma está condiciona- reuníamos com regularidade: ele falava e eu da a outra. (HAINES/LITTLER, 1998, apud BLUME, 2013, p. 58). anotava. E logo surgiu o desejo de escrever Deste modo, vida e escrita fundem-se para compor a o livro juntos. especificidade de uma obra que busca, por intermédio das memórias, resgatar o passado na tentativa de organizar e reestruturar a vida. É importante ressaltarmos que, embora Quando, em 2006, Oskar Pastior morreu repentinamente, eu tinha quatro cadernos 2 Em sua tese de doutorado, Astrid SCHAU interpreta a obra de Müller repletos de anotações manuscritas, além “em sua totalidade como um projeto autobiográfico”. SCHAU, Astrid. de esboços para alguns capítulos. Depois Leben ohne Grund. Konstruktion kultureller Identität bei Werner Söllner, de sua morte, fiquei como paralisada. A Rolf Bossert und Herta Müller. Bielefeld: AisthesisVerlag, 2003. 151 proximidade pessoal que as anotações pro- coletivo de sujeitos dessubjetivados. Por intermédio de uma piciavam fez com que a perda se tornasse prática de rememoração, suas personagens são enredadas ainda pior. no jogo memorialístico e ficcional da autora, na intenção de retratar um período doloroso para a história da humanidade, Somente depois de um ano, consegui obri- buscando identificar, denunciar e não permitir que este fato gar-me a despedir do ‘nós’ e escrever este se repita. O trecho em destaque, que retoma as lembranças romance sozinha. Porém, sem os detalhes da morte obscura de uma das personagens de Fera d’alma de Oskar Pastior sobre o cotidiano no campo (2013), clarifica a nossa compreensão: de trabalho, eu não teria conseguido fazê-lo Ainda não consigo imaginar um túmulo. Só (MÜLLER, 2011, p. 298). um cinto, uma janela, uma noz e uma corda. Para mim, cada morte é como um saco. É com esse fôlego que somos tomados pelas palavras de Müller para explicitar uma parte do funcionamento desta E, quando penso nisso, é como se cada atividade, aos moldes da menmotécnica atualizada. A tra- morto deixasse para trás um saco cheio de jetória dessa construção tem como parte dessa cadeia os sen- palavras. Sempre me lembro do barbeiro tidos da visão e da audição, além do auxílio de teorias avança- e da tesourinha de unha, já que os mortos das. Diante do relato, podemos perceber a atividade de outro não precisam mais deles. E de que os mortos caminho da memória em constante atuação no jogo das rep- nunca mais vão perder um botão (MÜLLER, resentações memorialísticas. A percepção da memória como 2013, p. 7). vis, como uma potência capaz de transformar o presente, tem presença aguçada no projeto mülleriano. Pois, ao mesmo Dessa maneira, os espaços percorridos pela autora car- tempo em que essa energia pode reprimir a recuperação da acterizam uma escrita política e dissidente que insiste em informação, ela pode também usar a inteligência a favor de resistir aos efeitos da repressão. A linguagem fraturada de uma legitimidade própria: materializando esse fenômeno. suas narrativas, apesar de sua estreita relação com a ficção, denota a arquitetura de um discurso realizado por um nar- O CONTINNUM DA MEMÓRIA: CORPO, IDENTIDADE, rador asfixiado pela crueldade humana, trazendo no corpo FICÇÃO E REALIDADE as marcas dessa violência. Dimensionando reflexões aprox- No estabelecimento dessas forças, a configuração da es- imadas, Aleida Assmann (2011) refere-se a essa ideia como crita, além de ser definida como um suporte da memória, ela uma espécie de memória corporal para dar conta desses é uma das formas mais eficientes de preservação e ressignifi- traumas representados pelo corpo. O silenciamento, a difi- cação da história. De acordo com Assmann (2011), “a escrita culdade de expressão, bem como algumas falhas funcionais é a codificação da língua em forma de signos visuais” (ASS- de processos psicológicos e psíquicos, sofridos pelas vítimas MANN, 2011, p. 226), possibilitando a comunicação interpes- da repressão, são elementos que vão caracterizar tal especi- soal “para além dos abismos do esquecimento”. Ela auxilia a ficação da memória. Nesse contexto, essa memória retoma construção de ideologias validadas pela consciência, possibil- as lembranças de maneira involuntária; é o corpo que surge itando um diálogo mútuo entre passado, presente e futuro. “como metáfora, como repositório da memória de experiên- São os diálogos temporais de uma consciência crítica, de um cias traumáticas” (UMBACH, 2008, p. 18). passado acumulado, muitas vezes sombrio, acionados pelo Assim, a memória corporal, em sua atuação involuntária, processo funcional da memória; presentificando, codificando pode ser reconhecida através do relato de Leopold Auberg, e eternizando os rastros deixados pela atividade da escrita. na obra Tudo que tenho levo comigo (2011), após retornar do Nesse sentido, a escrita mülleriana, representada pelo campo. Pois, embora livre, ele percebe que carrega consigo as corpus de nossa pesquisa, retoma um passado individual e marcas da opressão.

152 Desde que voltei, em meus tesouros já estivesse sob a constante vigilância do regime. Pois, em suas não consta: ALI ESTOU EU, nem EU ESTIVE medidas repressivas, a prisão impõe uma reorganização das ALI. Em meus tesouros está inscrito: DE LÁ funções do corpo em uma dimensão tanto fisiológica quanto NUNCA MAIS SAIREI. O campo se estende semântica” (KIFFER, 2006, p. 263-264). Mas, embora “preso” cada vez mais da têmpora esquerda para a às armadilhas repressoras, ele ainda encontra um ponto de têmpora direita. [...]. Não há como prote- salvação: a compulsão pelo trabalho em liberdade. Se com- ger-se, nem pelo silêncio nem pela palavra. preendermos o projeto literário de Herta Müller como um Exagera-se tanto num como noutro. Mas EU jogo de significações, que trabalha com a ideia de uma es- ESTIVE LÁ não existe em nenhum deles. E crita que possa contribuir para a organização e o equilíbrio tampouco há uma medida certa. do indivíduo vitimado pela violência, podemos interpretá-la e reconhecê-la a partir de quase todas as suas personagens, [...] ainda que revestidas da ficção. No caso de Leo, a própria Meu oblíquo esvaziar-me às colheradas, formatação de um discurso produzido pelas recordações do por sentir-me acostumado por fora e vazio protagonista da obra, retoma a prática do ato de narrar como por dentro, desde que não tenho mais que uma forma de organização individual, mas, sobretudo, por passar fome um sentimento de humanidade. É como se nesses relatos, fôs- semos apresentados, de maneira metafórica, a um sujeito que Minha transparência lateral, por meio da mesmo inserido no contexto social e político fora dos padrões qual eu me desfaço ao caminhar para den- ditatoriais, precisasse, a todo momento, reconhecer-se para tro. afirmar e reconstruir a sua identidade e, nesse caso, ousamos estender essa percepção não apenas aos personagens, mas Minhas tardes pesadas: o tempo desliza de- também a própria autora. vagar comigo entre os móveis. Ancorada nessa representação, a escritora traz à tona os relatos do terror de forma contundente, pontuando as marcas Meu profundo desamparo. Preciso de muita deixadas pelo regime ditatorial em seus personagens, mas proximidade, mas não me deixo levar pela também as de sua vida. São as cicatrizes deixadas pela dor da mão. Domino o sorriso sedoso ao retroceder. violência, que faz da escrita de Herta Müller o material mais Desde o Anjo da Fome, não permito que nin- profundo para a composição de suas obras. De acordo com guém me possua. Assmann (2011),

O mais pesado de meus tesouros é a mi- As escritas do corpo surgem através de lon- nha compulsão pelo trabalho. É o avesso ga habituação, através de armazenamento do trabalho forçado e uma troca salvadora. inconsciente e sob a pressão da violência. Em mim vive o Domador da Compaixão, um Elas compartilham a estabilidade e a inaces- parente do Anjo da Fome. Ele sabe como sibilidade. Dependendo do contexto, serão adestrar todos os outros tesouros. Sobe-me avaliadas como autênticas, persistentes ao cérebro e me empurra para o feitiço da ou prejudiciais. Quando se trata de descre- compulsão, porque me assusta ser livre vê-las, a estrutura material da memória desempenha papel essencial (ASSMANN, (MÜLLER, 2013, p. 294-295). 2011, p. 260) O desenvolvimento sutil e poético da descrição, traça o É, pois, pelo processo de materialização dessas memóri- paralelo de um sujeito que não mais se reconhece em sua vida as que nosso acesso a tais informações tornam-se possíveis. anterior. Seu corpo, o repositório de suas memórias traumáti- Esta atividade, que se faz por caminhos complexos, faz par- cas, reage de maneira involuntária como se fisicamente ainda

153 te da aspiração de um dos fundamentos que contribui para Pairando sobre os recursos da escrita literária de Müller, amalgamar o embasamento teórico deste trabalho: pensar a tais discussões fazem parte de um anseio político que repre- memória e a escrita como fenômenos que podem atuar con- senta uma sincronização com os elementos que compõem juntamente para, “conservar o velho, mas também, ao mes- uma das práticas de resistência. Nesse percurso de apro- mo tempo, ocasionar o novo” (ASSMANN, 2011, p. 209). Tal priação da história da humanidade, pela literatura, evidencia- percurso, amparado pela literatura, é conduzido por um sen- mos a proposta da constituição de nossas histórias, de nossas timento busca, mas ao mesmo tempo de luta. Dessa maneira, memórias e de nossa identidade, em uma atividade conjunta. ela recobre de poesia os inúmeros relatos dessa história sob Michael Pollak, em seu ensaio Memória e identidade a perspectiva dos desapossados, dos indivíduos que viveram social (1992), descreve o movimento dessas relações propi- e ainda vivem às margens de uma cultura caracterizada pela ciadas pelos indivíduos da seguinte forma: expressão da violência humana. Tal manifestação, de acordo Se assimilamos aqui a identidade social à com Walter Benjamin (2012), em seu ensaio Sobre o con- imagem de si, para si e para os outros, há ceito da história (2012), busca encontrar uma solução um elemento dessas definições que ne- coletiva ou, pelo menos, uma tentativa, para a dissolução do cessariamente escapa ao indivíduo e, por conformismo. Em suas palavras: extensão, ao grupo, e este elemento, obvia- Articular historicamente o passado não sig- mente, é o Outro. Ninguém pode construir nifica conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’. uma auto-imagem isenta de mudança, de Significa apropriar-se de uma recordação, negociação, de transformação em função como ela relampeja no momento de um dos outros. A construção da identidade é um perigo. Para o materialismo histórico, tra- fenômeno que se produz em referência aos ta-se de fixar uma imagem do passado da outros, em referência aos critérios de acei- maneira como ela se apresenta inesperada- tabilidade, de admissibilidade, de credibili- mente ao sujeito histórico, no momento do dade, e que se faz por meio da negociação perigo. O perigo ameaça tanto a existência direta com outros (POLLAK, 1992, p. 5). da tradição como os que a recebem. Ele é um e o mesmo para ambos: entregar-se às Tendo em vista que nessas interações, sejam classes dominantes, como seu instrumento. elas a partir da oralidade ou em sua formatação Em cada época, é preciso tentar arrancar a tradição ao conformismo, que quer apode- de uma linguagem escrita, o compartilhamento rar-se dela (BENJAMIN, 2012, p. 243-244). desenvolve simultaneamente experiências sin- gulares, possibilitando, de maneira imaginária, Para Benjamim (2012), essa relação que promove a ar- ticulação histórica com o passado deve possibilitar um alerta a nossa atuação nesses espaços habitados pelo para o sujeito vitimado, sob pena de mergulhar no conformis- outro, fica claramente perceptível a necessidade mo. Logo, a escritura mülleriana, longe da simplicidade de re- desse outro (do contato com suas experiências produção dos acontecimentos, tece a narrativa da vida ques- empíricas) para que os conflitos individuais pos- tionando o seu sentido, aprofundando a sua própria trajetória e elevando-a a um nível maior, que não se reduz a conflitos sam ser compreendidos em sua totalidade. É so- políticos, mas sim a um sentimento de humanidade, no intu- mente através da capacidade de formulação das ito de tornar as pessoas mais humanas. O cumprimento desse memórias, que poderemos apreender a realidade constante exercício de integração com o outro, amplia a sua social de cada indivíduo, permitindo, assim, por visão profundamente ética a partir da condição dos invisíveis, dos indivíduos despossados de suas subjetividades. meio do reconhecimento de si e do outro, que o sentimento de humanidade prevaleça.

154 No âmbito literário, ainda que as ações e os relaciona- dadeiro. Assim, esse conceito “percepção in- mentos humanos possam estar representados pela ficção, o ventada”, em um primeiro momento, parece processamento dessas informações e, consequentemente, denotar uma contradição em si. Entretanto, a compreensão da significação da arte como tal, também ele serve a Müller justamente para explanar pode ocorrer por essa via. Isto porque, na literatura o papel a relação entre realidade e ficção, que em da ficção assume estreita relação com a realidade. Pois, a pro- sua obra é tão importante justamente por dução ficcional, compreende o campo de inúmeras ciências, ter uma base tão marcadamente autobio- tais como história, psicologia, antropologia, sociologia, entre gráfica (BLUME, 2013, p. 62). outras, como um espaço rigoroso de análise e produção do conhecimento humano. Nesses espaços, o material humano O conceito mülleriano, utiliza a realidade como um ponto exerce sobre a ciência um verdadeiro fascínio em relação aos de partida para a “percepção inventada”, explicando a não lin- processos sociais e humanos. O teórico Wolfgan Iser, (1993) earidade de suas produções. Pois, segundo a autora: defende a ideia de que a ficção e a realidade possuem em si A percepção que se inventa, não para quie- uma via de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que nos ta. Ela ultrapassa os seus limites lá onde ela textos ficcionais encontram-se elementos da realidade, nos se segura. Ela não é intencional, não quer textos não-ficcionais podemos encontrar também elementos dizer nada definido. É embalada pelo acaso. ficcionais (ISER, 1993, apud UMBACH, 2008, p.13). Dessa for- No entanto, a sua imprevisibilidade acerta a ma, a escrita mülleriana exemplifica bem tal característica. única escolha possível quando ela se escolhe É sabido que o processo criativo de Müller não se distan- (MÜLLER, 1991, apud BLUME, 2103, p. 63). cia de sua trajetória. Este fato, caracterizado por uma multipl- icidade de informações pessoais, agregadas a seus romances, Imprevisível, o projeto de uma “percepção inventada”, auxilia-nos a compreensão de algumas especificidades da ainda que sua expressão seja contraditória, é norteado pela vida da escritora. Segundo Blume (2013), embora a escritora perspectiva de que o inventado é percebido e tomado como afirme a importância do dado autobiográfico em suas com- verdadeiro. Blume (2013), retoma em um dos ensaios de posições, ela explica a sua compreensão sobre a inserção de Depressões (1991), de Herta Müller, a sua explicação em suas experiências na literatura, utilizando o ensaio Como relação ao limite que faz o texto literário tornar-se verdadeiro: se inventa a percepção, resultado de sua docência na “[eu] só percebo que há situações que mais tarde saem das Universidade de Paderborn. A coletânea que reúne ensaios frases que eu escrevi e vão para a realidade” (MÜLLER, 1991, dessa docência foi intitulada: O diabo está sentado no apud BLUME, 2013, p. 64). A importância deste conceito para espelho, um dado autobiográfico. Esta titulação deve-se à a estruturação e entendimento de suas obras, torna clara a lembrança das palavras de sua avó ao vê-la sentada em frente relação intensa e indissociável de Herta Müller com a ficção e ao espelho. A frase capta duas compreensões: a primeira de a realidade. Assim, acompanhada constantemente pela som- uma advertência à vaidade; a segunda da proibição de uma bra dessa percepção, Müller percebe que essa forma de lidar percepção de si mesma ou de uma realidade externa, longe com a literatura, além de ser a única maneira de dar conta dos padrões desejáveis ao vilarejo (BLUME, 2013, p. 6). É a de inúmeros absurdos, é também “a única possibilidade de partir dessa informação, que a escritora constrói o seu con- mudar o mundo a seu redor” (MÜLLER,1991, apud BLUME, ceito de “percepção inventada”. Deste modo, Blume (2013) 2018, p. 64). explicita: Algo inventado é, por princípio, algo não CONCLUSÃO real nem verdadeiro. Já a percepção advém Ancorada nessas representações, a escritora, optando por justamente de uma impressão despertada pelo real, por aquilo que foi ouvido, visto, amalgamar a vida experienciada, apresenta a força de uma sentido, portanto, algo que deveria ser ver- escrita que aposta na recordação/memória como elemento

155 essencial para a compreensão do presente. É por intermédio of memorialistic phenomenon apresented by the writer in the de um discurso, produzido no limiar de suas experiências e da composition of the works mentioned; to seek, in this course, constante observação de si e do mundo, que a escritora decide the structuring of memory and the construction of identi- contribuir para o não apagamento dessa história. Essa atitude ties through the presented context, besides describing how que marca a sua singularidade, insere no espaço literário uma the process of creation of reality occurs through the literary escritora que faz desses relatos uma história de e para a vida. texts. Thus, the act of narration and the force to reconstruct É para que não haja a reincidência de um dos maiores crimes the trauma by the written word is an attempt to (re)construct contra a humanidade, que a escritora se insere no mundo com the identity and personal balance that occurs from the (re) sua escrita política e dissidente. organization of memory in the flow of time. Portanto, a atitude de Müller em narrar o que parece inenarrável cerca-se, antes de tudo, da necessidade primor- Keywords: Herta Müller. Dictatorship. Memo- ry. Identity. dial de sobrevivência, mesmo sob as marcas dos regimes ditatoriais. Pois, o ato de narrar pontua a estrutura de uma obra que consiste em trazer a veracidade dos fatos, embora REFERÊNCIAS de forma ficcionalizada, como uma tentativa de contribuir ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas para a (re)construção da identidade e do equilíbrio pessoal e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. desses indivíduos que, dessubjetivados, se veem às margens Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012. da sociedade. BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito da história. In: BEN- MEMORY AND IDENTITY: THE (RE)CONSTRUC- JAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios TION OF LIFE THROUGH THE LITERARY WRIT- sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasil- iense, 2012. p. 241-252. ING OF HERTA MÜLLER BLUME, Rosvitha Friesen. Herta Müller e o ensaísmo ABSTRACT autobiográfico na literatura contemporânea em língua The construction of narratives based on the dictatorial alemã. Pandemonium, São Paulo, v. 16, n. 21, p.48-78, jun. context is supported by one of the fundamental elements for 2013. Disponível em: . Acesso em: 9 maio 2018B. ma (2013) and Tudo que tenho levo comigo (2011), of Herta Müller’s, aim present the remembrance of these experiences, although in a fragmented way, based on an art represented DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte da memória? In: by truthfulness, without omission of facts, and by survival. ACHARD, Pierre et al. Jean Davallon: Jean-Louis Durand. 3. These writings, bringing to the fore issues such as the rep- ed. São Paulo: Pontes, 2010. Cap. 2. p. 23-37. resentations elaborated through a fractured, traumatic lan- guage, exposing the unhealed wounds of subjectivities in cri- KIFFER, Ana. Corpo, memória e cadeia: O que pode sis, submerged in achsandpains, especially by the imposition o corpos escrito? Alea: Estudos neolatinos, Rio de Ja- of authoritarianism, bring to the literary scene not only the neiro, v. 8, n. 2, p.263-280, 3 maio 2006. Disponível em: discourses produced by the other, as well as much of the ex- . Acesso em: 9 maio however, in a fictionalized way believing that only fiction is 2018. capable of accounting for that absurdity. In this sense, we aim to reflect on how these memories contributed to the architec- MÜLLER, Herta. Fera d’alma. Trad. Claudia Abeling. 1ª ture of dissident and resistant writing; to point out the types ed. São Paulo: Globo, 2013.

156 ______. Tudo que tenho levo comigo. Trad. Clau- MEMÓRIA, TRABALHO E EDUCAÇÃO: dia Abeling. 1ª ed. São Paulo: Globo, 2011. NARRATIVAS DE ALUNOS TRABALHADORES DA EJA POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. Maria Luiza Ferreira Duques Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/ Doutoranda em Memória: Linguagem reh/article/view/1941/1080 Acesso em: 7 de amio de 2018B. e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB E-mail: [email protected] UMBACH, Rosani Úrsula Ketzer. (Organizadora) Memóri- as da repressão. Santa Maria: UFSM-PPGL- editores, 2008, Cláudio Eduardo Félix dos Santos p.13-22. Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Professor adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB E-mail: [email protected]

Aline Soares de Lima Mestranda em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB E-mail: [email protected]

RESUMO As reflexões no âmbito da relação entre Trabalho e Ed- ucação, apontam essas conexões como uma condição da humanidade. Tal premissa ancora-se na ideia do trabalho enquanto essencial na constituição do homem como ser co- letivo que produz os bens necessários para sua sobrevivência e a educação, por conseguinte, é tida como instrumento es- sencial para a reprodução da força de trabalho. Eis que essas percepções, atreladas à condição de emancipação atribuída aos processos educativos, remetem a modalidade de Ed- ucação de Jovens e Adultos-EJA, voltada eminentemente para o conjunto de alunos trabalhadores. Nesse sentido, este estudo objetiva analisar, através das memórias, das trajetóri- as e narrativas, os sentidos e as implicações da EJA para o aluno trabalhador, levando-se em conta a configuração da educação nacional e sua função frente à formação daqueles que trabalham. No intuito de alcançar o objetivo definido, os caminhos metodológicos se assentaram na história oral com entrevistas de história de vida. O estudo teve comointerlocu- tores teóricosArroyo(2001); Haddad e Di Pierro (1994); Freire (1967) na discussão da EJA, Saviani (2007); Antunes (1995); Ciavatta (2005), no que concerne ao trabalho como princípio educativo, Alberti (1989); Grossi; Ferreira (2001) no que con-

157 cerne à história oral; Ricoeur (2007) no âmbito da memória, luta emancipatória, não poderia senão restabelecer os víncu- dentre outros. A pesquisa revelou que as memórias da escola los entre educação e trabalho, como que afirmando: diga-me e do trabalho se entrelaçam com a trajetória dos alunos da onde está o trabalho em um tipo de sociedade e eu te direi EJA. Os alunos que frequentam a EJA, para além de perce- onde está a educação. Para este autor, o sistema educacional, berem na escola um espaço formativo indutor de dignidade sobretudo público, deve estar a serviço da luta contra a alien- humana, vislumbram através dela, melhorias nas formas de ação, deve contribuir para ajudar a decifrar os enigmas do trabalho e possibilidades de modificação dos meios de vida, mundo, essencialmente o que versa sobre o estranhamento tanto no sentido material como cultural, compreendendo, de um mundo produzido pelos próprios homens. pois, o conhecimento, assim como as formas de sociabilidade. Eis que essas percepções, atreladas à condição de eman- As narrativas dos educandos revelaram que o principal sen- cipação atribuída aos processos educativos, nos remetem a tido da EJA está na promoção dadignidade e no exercício da modalidade de Educação de Jovens e Adultos-EJA, voltada cidadania pelo empoderamento capaz de promover. eminentemente para o conjunto de alunos trabalhadores e que vem passando por alterações devido a articulação entre Palavras-Chave: Memória. Narrativas. Alunos educação e trabalho. da EJA. Trabalho. O acompanhamento das dificuldades manifestas pelos alunos trabalhadores, atrelado ao forte e contraditório dese- INTRODUÇÃO jo que eles apresentam em permanecer na escola de EJA, despertou a inquietação que desemboca na problemática As reflexões no âmbito da relação entre trabalho e ed- dessa investigação: À luz das memórias,qual o sentido e as ucação, apontam essas conexões como uma condição da implicações da educação de jovens e adultos para os alunos humanidade. Tal premissa ancora-se na ideia do trabalho trabalhadores, que mesmo diante de todas as adversidades enquanto essencial na constituição do homem como ser cole- demonstram persistência para estudar e trabalhar? tivo que produz os bens necessários para sua sobrevivência e Tomando como passo inicial a inquietação posta, o estu- a educação, por conseguinte, é tida como instrumento essen- do pretendeu analisar, através das memórias e das trajetórias cial para a reprodução da força de trabalho, que num enfoque pessoais e profissionais, os sentidos e as implicações da Edu- mais ideológico assume um lugar de reprodução da lógica cação de Jovens e Adultos para o aluno trabalhador, levan- capitalista. do-se em conta a configuração da educação nacional e sua Atrelada às discussões no âmbito da educação e do tra- função frente à formação daqueles que trabalham. balho, entendemos ser necessária a incursão da relação en- Alcançar o escopo do estudo demandou um empreendi- tre esses dois termos e a memória, já que para efeito dessa mento de um esforço teórico metodológico que apresentam- proposta, a memória se apresenta como parte integrante os no tópico que se segue. Para melhor organização das ideias dessa relação ao emergir nas reminiscências do passado, que dialogam nessa produção, apresentamos, após o percurso relembrada na confluência das relações estabelecidas nos metodológico, momentos que se imbricam na tessitura textu- tempos atuais, marcados por um passado ainda presente nas al. Tratamos do elo entre o trabalho e a educação e, em segui- interfaces entre trabalho e educação. da, discutimos o lugar do aluno da EJA nesse processo. Nas A humanidade, considerada em sua dimensão natural, considerações do estudo, acoplamos em um mesmo tópico os sempre buscou meios de produzir sua subsistência, de modo resultados e as impressões deixadas pela pesquisa de modo que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele a apresentarmos de modo mais contundente os sentidos e produzida (SAVIANI, 2007), e nessa modificação da natureza implicações da EJA para o aluno trabalhador. como mecanismo de sobrevivência, emerge o trabalho e im- bricado nele, a educação. Essa vinculação da educação ao trabalho e deste àquela, PERCURSO METODOLÓGICO EMPREENDIDO encontra legitimidade nas afirmações de Sader (2008), quan- Entre o paradoxo estabelecido entre a educação que al- do ele assevera que ao pensar a educação na perspectiva da iena e a educação que liberta, os alunos da EJA encontram nas 158 reminiscências do passado, sustentação para perseguirem o A oportunidade de conversar com os alunos tra- objetivo da inserção no universo da educação. Através de balhadores da EJA, nos conduziu à adoção da metodologia de memórias e esquecimentos (RICOEUR, 2007), os alunos tra- história oral, por entendermos, ancoradas em Alberti (1989, balhadores assinalam suas histórias marcadas por eventos p.5), que a “peculiaridade da história oral decorre de toda que ainda não passaram e por processos de dominação ainda uma postura com relação à história e às configurações soci- não esquecidos. oculturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme A narração emanada dos sujeitos que atravessaram um concebido por quem viveu”. Nesse sentido, as memórias pos- passado de lutas e resistências, como é o caso dos alunos tra- suíram a capacidade de triunfar sobre a história oficial apre- balhadores da EJA, costuma ser resultado de uma seleção, de sentada por uma sociedade que apaga os rastros e bloqueia os uma tensão colocada entre a lembrança e o esquecimento dos caminhos das lembranças. Quem conta sua história, acaba por fatos. Como colocam Grossi e Ferreira (2001, p.28), individualizar as lembranças coletivas, clareando lugares e es- paços abandonados pelo esquecimento, apontando a face de pode tornar-se interdito à memória lembrar histórias que nos colocam em situação de uma sociedade marcada por ações excludentes, de exploração desonra, de impotência e de perda. Dessa e silenciamentos. forma, ajustes na memória, em termos de Para realização da investigação com ênfase nos tra- esquecimento, podem ajudar ‘um retorno balhadores baianos da EJA, adotamos, dentre os ramos da ao passado, de forma que possamos, mais história oral, a história oral de vida com recorte temático, por facilmente, assumir o que somos hoje’. essa adoção metodológica privilegiar a coleta de relatos orais, buscando clarificar um assunto específico, previamente esta- A memória se apresenta, portanto, como um processo belecido. Nesse viés, a narrativa abarcou alguns aspectos da vivido, em evolução e que se entrelaça no tempo, disseminan- vivência dos informantes, o que ajudou a reconstruir acontec- do seus fragmentos, como a própria vida que sustenta a ex- imentos ou problemáticas do passado, sem necessariamente periência. Como assevera Nora (1993, p. 09), “a memória é um abarcar a totalidade da vida dos sujeitos trabalhadores. As fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente”. especificidades da vida pessoal dos entrevistados interessar- No processo da memória, se conjugam sentimentos am apenas quando relacionadas à temática da educação e do controversos que podem ser tanto de uma dívida históri- trabalho. ca para com outras gerações, quanto com o dever de fazer No intuito de alcançar os objetivos definidos e en- justiça. Somos devedores de parte do que somos aos que contrar respostas à problemática levantada, os caminhos nos precederam (RICOEUR, 2007). É no sentido de um res- metodológicos desenhados se assentaram nas entrevistas gate de memórias capaz de dar voz àqueles que sofreram de história de vida com recortes temáticos. Através dessa derrotas e humilhações, que entendemos serem as relações abordagem, foi possível mesclar informações emitidas pelos estabelecidas entre trabalho e educação, um terreno fértil de entrevistados aos aspectos vivenciais relacionados à sua tra- acontecimentos históricos que tencionam a memória coleti- jetória, centralizando o depoimento rumo à compreensão da va, a debater por justiça no campo de formação desses alunos problemática pesquisada. trabalhadores. Se o escopo dessa pesquisa foi analisar, através das Ao pensar sobre trabalho e educação, considerando memórias e das trajetórias pessoais e profissionais, os senti- os sujeitos sociais da EJA, entendemos ser interessante nos dos e as implicações da educação de jovens e adultos para o valermos das memórias desses alunos para entender, através aluno trabalhador, não foi possível a adoção de outra abor- das trajetórias de vida, quais os sentidos e as implicações da dagem senão àquela que considere a voz dos sujeitos que EJA para o aluno trabalhador, considerando a configuração interagem no tecido social da educação e do trabalho como a da educação nacional e sua função frente à formação dos principal fonte de informação. Isso não significa que, no limiar trabalhadores. da pesquisa não tenham sido considerados outros condicion- antes para que os resultados tenham sido alcançados. Como

159 afirma Lang (1996), é no indivíduo que a história oral encon- estruturantes de sentidos e significados para os indivíduos em tra sua fonte de dados, mas sua referência não se esgota nele, sua singularidade e para determinados grupos sociais. Nessas uma vez que aponta para a sociedade. Através da narrativa de e em outras questões reside a grandeza da história oral. Além uma história de vida, se definem as relações do narrador com de ser uma metodologia adequada para o estudo da subjetiv- sua profissão, com sua camada social, com a sociedade global idade e das representações, permite a reconstrução do passa- que compete ao pesquisador desvendar. do. A metodologia de história oral não serve simplesmente A opção por trabalhar com história de vida, que implicou para dar voz aos sujeitos que se encontram socialmente ex- em entrevistas, geralmente longas, nos conduziu a uma se- cluídos, mas procura interpretar os vários olhares sociais. leção de participantes que considerou a natureza da escolha metodológica. Desse modo, a pesquisa se incidiu sobre os O ELO ENTRE TRABALHO E EDUCAÇÃO alunos trabalhadores da EJA de escolas de municípios baianos que ofertam a modalidade, estando elas localizadas tanto Os homens se diferenciam dos animais pela capaci- nas sedes quanto nas zonas rurais de municípios da região dade de dominação sobre a natureza. Diferente dos animais, sudoeste baiana. Para que a amostra tenha sido a mais repre- vulneráveis às condições ambientais de sobrevivência, os sentativa possível da totalidade dos alunos trabalhadores da homens perceberam-se capazes de produzir instrumentos EJA, realizamos uma seleção que obedeceu a critérios previa- e utilizá-los a favor de suas necessidades, possibilitando as- mente definidos e que contemplou, ao final, 12 sujeitos dos sim, o domínio do ambiente natural e o seu desenvolvimento vários municípios envolvidos com o processo de pesquisa. físico e psíquico. Desse modo, ao contrário dos animais, que Entendendo que o caminho se faz no caminhar, consid- se adaptam à natureza, os humanos adaptam a natureza a eramos e lançamos mão de instrumentos auxiliares à coleta si próprios. Essa ação sobre a natureza transformando-a em de dados, como foi o caso da análise de documentos oficiais razão das necessidades humanas é o que conhecemos como e mesmo informantes complementares ao estudo, haja vistas trabalho. que, a pesquisa apontou para a necessidade de entrevistas É possível dizer, então, que a essência do homem é o com gestores, educadores e outros informantes que elucidar- trabalho, e essa essência não é dada ao homem, mas é por am a forma como a escola de EJA se comporta - por meio de ele produzida (SAVIANI, 2007). Sendo a existência humana seu currículo e de sua proposta pedagógica - frente ao aluno construída por meio do trabalho, o ser humano não nasce trabalhador, dotado de histórias e de saberes experienciais. sabendo produzir-se como homem, ele precisa, diante do As experiências de vida desses alunos não ocorrem de mundo natural, aprender a ser homem. Essa aprendizagem forma linear, por isso mesmo, as memórias dessas vivências da formação do homem constitui um processo educativo. não podem ser concebidas de forma estanque. As memóri- Dessa lógica, origina a educação como um processo concat- as da escola e do trabalho se entrelaçam com a trajetória de enado à origem do homem. Desse entendimento, é possível vida dos alunos da EJA, pois muitos desses alunos iniciaram perceber a conexão entre trabalho e educação como uma a vida laborativa sem passarem pela escola e alguns outros, relação de identidade. buscam a escola como mecanismo de melhoria de vida e de A aprendizagem da produção da existência humana trabalho. Existem ainda, os que percebem na escola uma pos- se dava no ato em si de produzi-la, de modo que o trabalho sibilidade de emancipação. Enfim, muitas foram as histórias foi aprendido trabalhando e a educação foi consolidada en- que se imbricaram na tessitura dessa investigação. Por isso, tremeando esses processos. Segundo Saviani (2007), a pro- foi necessário manter o equilíbrio dentro da imprevisibilidade dução da existência implicava o aperfeiçoamento de formas da colheita das memórias, concebendo-as como um processo e o desenvolvimento de conteúdos cuja validade era estabe- de construção social. lecida pela experiência, configurando, pois, um processo de Entender a memória, nesse sentido de construção social, aprendizagem. traçado com base na diversidade de interesses, lutas e contra- Estando o trabalho atrelado às necessidades humanas e dições nos ajudou a perceber as narrativas como elementos a organização das sociedades consolidadas historicamente, a educação também se imbrica nesse processo, como instru- 160 mento de socialização de saberes produzidos e repassados de es de estudar, seja natural que ocupem patamares cada vez uma geração à outra, já que na relação coletiva, os homens mais precarizados de existência. educavam a si próprios e as gerações vindouras. A forma como os trabalhadores se concebem diante da Vista nessa ótica, a educação poderia ser tomada em seu sociedade revela que, embora registrando mudanças ao lon- aspecto eminentemente libertador e nele permanecido, mas go dos séculos, os traços que marcam nossa cultura política contrariando essa lógica, os processos educativos, no decorrer tecida, desde os períodos coloniais, pelas forças dominantes, da história, agregam um caráter alienante e desumanizador, não foram superados. Somam-se, a essa história, os novos viabilizado pela própria estrutura social através da divisão do padrões de divisão do trabalho, em meados da década de trabalho. Ora, se a educação serve aos preceitos da sociedade, 1990, assim como os paradigmas de produção e competitiv- ela não se eximiria de ventilar os ideais capitalistas presentes idade. Nessa mesma década, o país enfrentou a redução dos na conjuntura política, social e econômica que se estrutura trabalhadores formalmente empregados e a consequente com o caminhar da humanidade. ampliação das formas de trabalho precário, o que incorreu em um quadro heterogêneo no campo do trabalho. Assim, pul- As determinações gerais do capital afetam profundamente cada âmbito particular com verizados em um contingente de sujeitos destituídos de sua alguma influência na educação, e de forma historicidade, os trabalhadores veem-se privados dos poucos nenhuma apenas as instituições educa- direitos duramente conquistados, assim como das condições cionais formais. Estas estão estritamente de conquistar patamares de direitos sociais (GRAMSCI, 1919). integradas na totalidade dos processos so- Desse processo, surge uma contraditória situação em ciais. Não podem funcionar adequadamente que ao passo que existia demanda por força de trabalho com exceto se estiverem em sintonia com as de- maior qualificação, diversos trabalhadores continuavam a terminações educacionais gerais da socieda- ser destinados à ocupações que demandavam ínfimos níveis de como um todo (MÉSZÁROS, 2008, p.43, de conhecimento (ANTUNES, 1995), contudo, a lógica em- grifos do autor). presarial do mercado continuava propagando a capacidade individual como mecanismo para assegurar melhorias nas Olhando por esse viés, a educação acaba por desencadear condições de vida, tendo a escola como um dos veículos de certa conformidade com as estruturas socialmente definidas. disseminação dessas ideologias capitalistas. O indivíduo, e nesse caso, o trabalhador, é “educado” desde a Ainda que a educação possa funcionar como um me- mais tenra idade para ter ciência do seu lugar na sociedade. canismo de reprodução, para os alunos trabalhadores da EJA Desse modo, a educação reproduz a lógica da sociedade capi- ela pode assumir outro papel, não eminentemente reprodu- talista na proporção em que inculca nos sujeitos sociais a ideia tivista, mas propulsor de liberdade e cidadania. A luta dos de que a ascensão ou o fracasso na vida social e econômica contrários através das organizações coletivas, dos sindicatos depende do sucesso individual. Com isso, propaga-se e cris- e da própria condição dos trabalhadores em romper com o taliza-se a premissa de que se os trabalhadores devem lutar analfabetismo que os aprisionam, levando-os a vislumbrar- por mudança, eles devem lutar individualmente, por meio de em possibilidades de participação efetiva na sociedade, já adequada qualificação educacional, e não por meio da organ- configura em sim, um caminho emancipatório. Nesse sen- ização em prol de interesses comuns a toda a sociedade. Eis tido, Gramsci (1919) apregoa que a escola é viva porque os aqui um dos aspectos vivenciados pelos alunos trabalhadores trabalhadores trazem para ela sua melhor parte, aquela que da EJA: a ideia de culpabilização pelo lugar hoje ocupado na o cansaço da fábrica não pode enfraquecer: a vontade de se vida social e econômica. Como aponta Rummert (2008), a tornarem melhores. tese da naturalização da pobreza e a recorrente negação de direitos, constitui base sólida para que, por um lado, jovens e adultos trabalhadores aspirem ofertas educativas e, por outro, reafirmem a crença no fato de que, por não terem sido capaz-

161 O LUGAR DO ALUNO DA EJA: ENTRE TRABALHO E desequilíbrios que têm sido historicamente assumidos pelas EDUCAÇÃO escolas em relação à formação do aluno trabalhador. Mediante as constantes modificações econômicas, políti- A condição de vida que os alunos estão submetidos, de cas, sociais, tecnológicas e culturais da atualidade, a escola certo modo, assinala o lugar que esses sujeitos ocupam no tem sido pressionada a se adequar às cobranças do mercado, processo de escolarização. Quando esses alunos chegam às o que influencia diretamente os processos educativos ofer- classes da EJA, trazem consigo uma trajetória de vida que, por tados. Com essas modificações, emergem novos desafios e a vezes, as instituições e seus currículos teimam em desconsid- escolarização passa a ser exigência no mundo do trabalho, o erar. Como colocam Haddad e Di Pierro (1994, p 12), que culmina no aumento da demanda da EJA. a escola terá que redimensionar o seu aten- A EJA, assegurada pelo artigo 37 da Lei de Diretrizes e dimento, encontrando modos que, sem Bases da Educação, nº 9394/96, constitui uma alternativa renunciar à sua função precípua de preser- para os cidadãos que não tiveram oportunidade de estudar vação, transmissão e produção do conheci- no tempo regular por motivos vários, dentre os quais, a ne- mento, possam efetivamente ir ao encontro cessidade de trabalhar. Enquanto modalidade da educação dos limites impostos pelas condições con- básica, a EJA deve considerar as especificidades dos alunos cretas de vida da população trabalhadora. envolvidos e suas trajetórias de vida, na maioria das vezes, marcada pelo trabalho e por exclusão social, característica As condições de vida dos alunos trabalhadores induzem que se confunde com a própria modalidade que sempre confi- à busca por um processo de escolarização que possa direcio- gurou como um campo historicamente precarizado. Segundo nar esses alunos para o mundo do trabalho, pois ainda que Arroyo (2001), os olhares conflituosos sobre a condição social, alguns alunos da escola noturna já estejam inseridos em política e cultural dos indivíduos aos quais se destina essa trabalhos formais, muitos trabalham em suas próprias casas, oferta educativa têm condicionado as distintas concepções de como é o caso de boa parte das mulheres. São essas mulheres educação que lhes são oferecidas. da EJA que na história do país foram privadas dos processos Depreende-se, pois, desse entendimento, que o espaço de escolarização, discriminadas e desrespeitadas, mas que destinado à EJA no conjunto das políticas públicas, se confun- nem por isso desistiram de perseguir a inserção no mundo da de com o lugar social endereçado aos setores populares da cultura escrita e consequentemente, no mundo do trabalho sociedade, essencialmente, quando “os jovens e adultos são qualificado. As histórias de sofrimento e exclusão presentes trabalhadores, pobres, negros, subempregados, oprimidos, nas memórias dessas mulheres não escamoteiam suas excluídos” (ARROYO, 2001, p. 10). aprendizagens vivenciais, ao contrário, revelam-se na grande Ao estabelecermos uma relação com alunos partici- seara dos saberes da vida. pantes da EJA, foi possível evidenciar que, o lugar social, A história de desamparo e exclusão que assinala o lugar político, econômico e cultural pretendido por esses indivídu- dos alunos trabalhadores, em alguns casos, reforça quadros os, contrapõe a história oficial enraizada para essa população de culpabilização em que os alunos se sentem culpados por de alunos trabalhadores. Mediante essas constatações e não terem estudado. Mas se por um lado a conjuntura políti- considerando as dificuldades enfrentadas pelos alunos tra- ca, econômica, social e mesmo educacional atribui a pouca balhadores que perseguem o direito à educação e que mesmo escolarização da maioria da população aos próprios indivídu- diante de todas as adversidades insistem em povoar as esco- os que vivenciam essa situação, por outro, existem estudantes las noturnas, é que lançamos um olhar sobre a memória, o trabalhadores que entendem a estada na escola como um trabalho e a educação de alunos trabalhadores que frequen- importante passo em direção ao seu desenvolvimento e que, tam a EJA em municípios baianos. por isso, enxergam na instituição de ensino um veículo de Ao indagar os significados da EJA para o aluno que tra- promoção de dignidade, de construção de conhecimentos, balha e as implicações que a escolarização noturna desenca- de possibilidades de inserção no mercado de trabalho e de deia na vida social dos alunos, não podemos desconsiderar os melhoria de vida pelo empoderamento capaz de promover.

162 Trazer à tona os condicionantes de vida e de trabalho foi possível constatar, durante a permanência no campo, o dos alunos da EJA é falar de questões que marcam a reali- forte desejo que os educandos apresentam em permanecer dade social. Esses jovens e adultos são, em sua maioria, tra- na escola de EJA. Desejo esse que é permeado por relações balhadores, produtos do capitalismo, que desde muito cedo conflituosas dentro da instituição e fora dela. trabalharam para sobreviver. São sujeitos de direito que go- Dentro do espaço escolar, percebemos que os maiores zam de poucos direitos, que vêm de classes populares e de entraves estão na dificuldade que os educandos apresentam origem muito humilde. em compreender os conteúdos sistematizados que advêm das Os alunos da EJA apresentam uma trajetória muito es- diferentes áreas do conhecimento e também na dificuldade pecífica, uma história de exclusão, opressão e marginalização. em lidar com os conflitos geracionais e de interesses presentes Buscam na escolarização perspectivas de liberdade e eman- em classe. cipação no trabalho e na educação. É essa especificidade Para além do espaço escolar, ficou evidente que os ed- da situação social, racial, cultural e econômica que precisa ucandos da EJA enfrentam dificuldades econômicas e sociais ser referência para a construção de um processo educativo que acabam por desmotivá-los, causando enfrentamentos que considere as interfaces presentes na vida do aluno tra- muito maiores na jornada cotidina. balhador. Nesse viés, a LDB 9394/96, em seu art. 37, trata Ouvimos na narrativa de uma aluna a manifestação real da EJA sublinhando a necessidade de que sejam oferecidas desses desafios: oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as Eu luto muito para estar aqui, pois se dentro características do aluno, seus interesses, condições de vida e da escola já é dificil, que dirá fora dela. A de trabalho. gente labuda de todo lado. Aqui a dificulda- O desafio posto para a educação, nesse sentido, é con- de é grande para acompanhar o que os pro- struir estratégias que considerem os saberes oriundos das ex- fessores passam, mas a gente insiste. O pro- periências dos alunos trabalhadores e ofereçam condições de blema maior é deixar os meninos pequenos reduzir as dificuldades que eles trazem, o que poderá corrobo- em casa e vim para a escola. Mas durante o rar com a permanência desses sujeitos no sistema educacion- dia tenho que defender o pão deles, então, al e com a consequente melhoria da atividade profissional só resta a noite para tentar ver se aprendo desses alunos. Dessa afirmação depreende-se a relação entre alguma coisa. Se eu te disser que é fácil es- o trabalho e a educação, mencionada por Ciavatta (2009), na tou mentindo porque não é. Às vezes, fico qual se afirma o caráter formativo do trabalho e da educação me achando fraca demais para os estudos, como ação humanizadora por meio do desenvolvimento de mas outras vezes percebo que nem todos os todas as potencialidades do ser humano. professores entendem nossa situação. En- tão, tem muita coisa que faz a gente querer desistir, faz a gente desanimar com a escola, ENTRELAÇANDO OLHARES E AMARRANDO OS NÓS mas eu não posso desistir porque, puxando DOS NOVELOS: SENTIDOS E IMPLICAÇÕES DA EJA pela memória, passei uma vida sem poder PARA O ALUNO TRABALHADOR ir na escola pra poder ajudar meus pais, só Como já enfatizado neste estudo, quando falamos dos pude estudar agora, então, não posso desi- educandos da EJA, estamos falando de trabalhadores, mesmo sitir e, para falar a verdade, eu gosto muito aqueles que não possuem uma ocupação formal são traba- daqui. (Educanda da EJA). lhadores, já que, as condições de trabalho que os mesmos enfrentam podem ser de várias ordens. Pelo testemunho da aluna, encabeçado pelas suas Como a população da Educação de Jovens e Adultos se memórias, percebemos a dupla ou tripla jornada enfrentada constitui, eminentemente, de alunos trabalhadores, esses pelas estudantes trabalhadoras, mulheres que se revezam en- alunos enfrentam dificuldades em permanecer na escola, tre o trabalho fora de casa, o trabalho doméstico, o cuidado em função dos empecilhos cotidianos enfrentados. Contudo, com os filhos e ainda a jornada escolar. Esse é o perfil da maio-

163 ria das mulheres da EJA, não diferindo muito do perfil dos atrás de direção para exigir nossos direitos homens da EJA, que passam o dia no trabalho, quase sempre aqui dentro, a gente negocia com profes- pesado, e ainda conseguem frequentar a escola noturna. sor... a gente se sente mais gente... sabe? E fora daqui a gente luta na associação, Acordo todos os dias de madrugada para nas reuniões do bairro e até no sindicato... trabalhar e passo o dia inteiro na lida. Quan- depois que aprendi a ler e a escrever foi que do chego em casa, mal dá tempo para comer fiz minha inscrição no mundo. Agora estou e já saio para a escola. O meu serviço é muito aqui e tenho voz. (Educanda da EJA). pesado e já chego na escola cansado, às ve- zes, aproveito pouco, porque a condição não As narrativas, carregadas de sentido, apontam o alcance deixa a gente concentrar no estudo. Tem que a educação possui em conferir visibilidadeaos sujeitos so- hora que dá vontade de deixar quieto esse ciais trabalhadores alijados de muitos direitos historicamente negócio de estudar, mas aí eu paro e penso que não quero passar o resto da vida anal- produzidos. Mediante a consciência da condição de cidadão, fabeto. Quando eu era pequeno não pude os alunos vislumbram através da educação, melhorias nas estudar, passei a vida na labuta e lembro formas de trabalho e possibilidades de modificação dos meios da humilhação que meus pais passavam de vida, tanto no sentido material como cultural, compreen- porque também eram analfabetos, como dendo, pois, o conhecimento, a criação material e simbólica, eu. É por isso que agora quero estudar, pra assim como as formas de sociabilidade. sair dessa vida de prisão. (Educando de EJA). Aqui (se referindo à escola) é o meio que tenho para conseguir um trabalho, porque É possível inferir que os alunos trabalhadores que fre- só estudando posso conseguir um diploma. quentam a EJA, para além de perceberem na escola um es- E não é só o diploma, é também o conhe- paço formativo indutor de dignidade humana, percebem no cimento que vai fazer com que amanhã espaço de escolarização formal um mecanismo de ruptura ou depois quando eu arranjar trabalho eu com as prisões cotidianas, e conferem a esses espaços a pos- possa saber o que fazer e possa continuar sibilidade de buscar emancipação e formação para a vida. A sempre trabalhando. O conhecimento é que narrativa de uma aluna da EJA legitima essa afirmação: “A faz com que eu possa ter um bom trabalho. pessoa analfabeta não é livre, ela é presa de tudo que é lado. E além do trabalho, o conhecimento que ad- O pior de tudo... Ela é presa dentro dela mesma. E por ela ser quiro é que vai me tornar melhor, é que vai presa ela não tem como libertar os outros... Ai vai ficando fazer com que eu não me abaixe diante das todo mundo na carreira da escuridão”. (Educanda da EJA). injustiças” (Educando da EJA). Como menciona Freire (1975), a educação pressupõe lib- ertação. No caso específico de estudantes trabalhadores, essa A comprovação dos sentidos que os alunos atribuem libertação pode emanar tanto na esfera individual, no sentido à EJA e as implicações da modalidade para a vida social e de transformação de cada aluno, quanto na esfera coletiva profissional desses alunos trabalhadores, poderá constituir através do empoderamento capaz de promover nos grupos. um instrumento validado e referendado para a instituição de Esses apontamentos foram reforçados durante a investigação políticas públicas educacionais e sociais que contemplem a quando percebemos iniciativas de organização dos grupos de educação em sua relação com o mundo do trabalho. estudantes tanto no sentido de melhoria das condições de É a partir do conhecimento, ainda que superficial e escolarização, quanto melhoria da comunidade circundante. passível de reinterpretação, das histórias de vida de alguns dos alunos trabalhadores e de como as relações entre trabalho Quando eu lembro que no meu tempo nin- e educação se dão em seu cotidiano promovendo implicações guém podia nem abrir a boca... Hoje tenho na construção de suas identidades pessoais e profissionais, outra visão, reúno os colegas, a gente vai que nos propomos, através dos achados dessa pesquisa,

164 colaborar para o desenvolvimento das políticas públicas no (2001); Haddad and Di Pierro (1994); Freire (1967) in the EJA campo da educação e do trabalho, visando às especificidades discussion, Saviani (2007); Antunes (1995); Ciavatta (2005), da condição do aluno trabalhador. regarding work as an educational principle, Alberti (1989); É preciso ter sensibilidade para desenvolver um trabalho Grossi; Ferreira (2001) regarding oral history; Ricoeur (2007) com os educandos que, para além das marcas de um processo within the memory, among others. The research revealed de escolarização interrompido ou nem mesmo iniciado, carre- that the memories of school and work intertwine with the gam consigo as marcas de realidades, quase sempre difícieis trajectory of the students of the EJA. The students who attend e permeadas por desafios. Diante dessa realidade, é imperio- the EJA, in addition to perceiving in the school a formative so lançar olhares sobre as especificidades socioculturais e as space that induces human dignity, see through it, improve- condições concretas de vida de quem chega à escola de EJA. ments in the forms of work and possibilities of modification Pensar na educação e no trabalho mediante esses ol- of the means of life, both in the material and cultural sense, hares sociais significa entender que tanto a educação quanto knowledge, as well as forms of sociability. The narratives of o trabalho são atividades que requerem cuidados e seriedade. the students revealed that the main purpose of the EJA is in “Nenhuma contingência histórica ou social justifica aligeira- the promotion of citizenship and the exercise of citizenship by mentos, protecionismos, rebaixamentos ou aviltamentos das the empowerment capable of promoting. condições e dos métodos dessas atividades” (NOSELLA, 1992, p.19). Essa afirmativa precisa ser considerada por aqueles que Keywords: Memory. Narratives. Students of pretendem que a educação de jovens e adultos trabalhadores the EJA. Job. seja algo para além de mera resposta às demandas do merca- do e às exigências da manutenção da hegemonia das classes REFERÊNCIAS dominantes. ALBERTI, Verena. História oral: a experiência do Cpdoc. RJ: FGV,1989. MEMORY, WORK AND EDUCATION: NARRATIVES OF EJA STUDENT WORKERS ARROYO, Miguel. A EJA em tempo de exclusão. Revista Alfabetização e Cidadania – Rede de Apoio à Ação Educadora ABSTRACT do Brasil, n. 11, abr. 2001. Reflections on the relationship between work and edu- cation, point to these connections as a condition of humanity. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as This premise is anchored in the idea of ​​work as essential in metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São the constitution of man as a collective being that produces Paulo: UNICAMP/Cortez, 1995. the goods necessary for its survival and education is therefore considered as an essential instrument for the reproduction of BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Esta- the labor force. It is these perceptions, linked to the condition belece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 20 of emancipation attributed to the educational processes, that dez. 1996. refer to the Youth and Adult Education modality (EJA), which is eminently focused on the group of working students. In this CIAVATTA, M. A formação integrada: a escola e o trabalho sense, this study aims to analyze, through the memories, the como lugares de memória e identidade. In: FRIGOTTO, G; CIA- trajectories and narratives, the meanings and implications of VATTA, M; RAMOS, M. Ensino médio integrado: concepções e the EJA for the working student, taking into account the con- contradições. SP: Cortez, 2005, p. 83 105. figuration of national education and its role in the training of those who work. In order to reach the defined objective, the FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de methodological paths were based on oral history with life his- Janeiro: Paz e Terra, 1975. tory interviews. The study had as theoretical speakersArroyo

165 GRAMSCI, Antonio. Sobre o ensino noturno. Tradução de Nosella (disponível em http://www.acessa.com/gramsci/ page=visualizar=440), 1919.

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166 ÍBAMÒ: A CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO plano e quais são os benefícios que a patrimonialização da ca- ÍBAMÒ: CAPOEIRA AS HERITAGE poeira trás para esta prática social e coletiva. Este artigo parte de nosso trabalho acadêmico desenvolvido no âmbito do Pro- Paulo Henrique Menezes da Silva grama de Pós-Graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade Mestrando do Programa de Pós-Graduação em da UFRRJ, onde estamos realizando o curso de mestrado. Pre- Patrimônio, Cultura e Sociedade/PPGPaCS/IM/UFR- tendemos aqui abordar os aspectos desta patrimonialização e RJ/Campus Nova Iguaçu Membro do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e quais as ações efetivas que este reconhecimento provoca em Indígenas - LEAFRO benefício da capoeira enquanto patrimônio cultural. Membro do Grupo de Estudo Patrimônio e Cultura Afro-Brasileira/GEPCAfro/CNPq PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural Mestre de Capoeira Imaterial. Ofício dos Mestres de Capoeira. [email protected] Roda de Capoeira. Salvaguarda da Capoeira. IPHAN. Otair Fernandes de Oliveira Professor do Programa de Pós-Graduação em Pat- rimônio, Cultura e Sociedade/PPGPaCS/IM/UFRRJ/ ABSTRACT Campus Nova Iguaçu Coordenador do Laboratório de Estudos Afro-Bra- In the last decade Brazil has been discussing, in a dem- sileiros e Indígenas/LEAFRO ocratic and transparent way, the elaboration of a National Grupo de Estudo Patrimônio e Cultura Afro-Brasilei- Plan to Safeguard Capoeira. This construction is the result of ra/GEPCAfro/CNPq dialogues that have been held for years among our popular [email protected] masters (central figures for the preservation of capoeira as cultural heritage), government and different segments and RESUMO social actors of capoeira. As a social strategy of enslaved O Brasil vem discutindo na última década, de forma Africans, capoeira was developed as a way of sociability democrática e transparente, a elaboração de um Plano Na- and solidarity, so that they could deal with the control and cional de Salvaguarda da Capoeira. Esta construção é fruto violence exercised by the State. The Brazilian struggle, after de diálogos travados há anos entre nossos mestres populares centuries of repression, becomes a symbol of the resistance (figuras centrais para a preservação da capoeira enquanto of the popular strata and Brazilian cultural diversity, and patrimônio cultural), o poder público e diferentes segmentos from the administration of the Minister Gilberto Gil at the e atores sociais da capoeira. Como estratégia social dos africa- head of the Ministry of Culture capoeira becomes one of the nos escravizados, a capoeira foi desenvolvida como um modo priorities of the policies directed for popular and traditional de sociabilidade e solidariedade, para que estes pudessem li- cultures. Recognized as Cultural Heritage of Brazil in 2008 by dar com o controle e a violência exercida por parte do Estado. IPHAN - Institute of National Historical and Artistic Heritage, A luta brasileira, após séculos de repressão, torna-se símbolo this article intends to address the Capoeira Safeguard process da resistência das camadas populares e da diversidade cul- in the state of Rio de Janeiro, how this process has been car- tural brasileira, e a partir da gestão do Ministro Gilberto Gil ried out and what problems and difficulties encountered by à frente do Ministério da Cultura a capoeira passa a ser uma capoeiristas in the construction of this plan and what are the das prioridades das políticas voltadas para as culturas popu- benefits that the patrimonialization of capoeira brings back lares e tradicionais. Reconhecida como Patrimônio Cultural do to this social and collective practice. This article is part of our Brasil em 2008 pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico academic work developed under the Postgraduate Program e Artístico Nacional, este artigo pretende abordar o processo in Heritage, Culture and Society of UFRRJ, where we are do- de Salvaguarda da Capoeira no estado do Rio de Janeiro, como ing the master’s degree course. We intend here to address este processo tem sido realizado e quais os problemas e difi- the aspects of this patrimonialization and what the effective culdades encontrados pelos capoeiristas na construção deste

167 actions that this recognition provokes in benefit of capoeira e das Secretarias da Identidade e da Diversidade Cultural e de as cultural heritage. Políticas Culturais, todas vinculadas ao Ministério da Cultura, cuja finalidade foi estruturar as bases do referido Programa e KEYWORDS: Intangible Cultural Heritage. como primeira iniciativa os Encontros Pró-Capoeira, realiza- Craft of the Masters of Capoeira. Wheel of Capoeira. Safeguarding of Capoeira. IPHAN dos em 2010, bem como todo o processo de construção da Salvaguarda da Capoeira no Rio de Janeiro, desde a criação do Grupo de Trabalho Interinstitucional, os encontros e con- INTRODUÇÃO ferências e a eleição e posse do Conselho de Mestres e os prin- Nascida em solo brasileiro, a Capoeira é uma expressão cipais pontos apontados como relevantes para a preservação cultural com suas raízes identitárias fincadas nas culturas da capoeira do Rio de Janeiro, o seu caráter identitário e a africanas e afro-brasileiras, demarcando, assim, o valor da importância da preservação das rodas de capoeira, visto que herança cultural africana em nossa sociedade. Íbamò, pala- “é um espaço profundamente ritualizado, congrega cânticos e vra africana de origem Yorubá, que significa “se eles soubes- gestos que expressam uma visão de mundo, uma hierarquia, 1 sem?” incorpora o título deste trabalho pois acreditamos que um código de ética [...]” . só conhecendo a importância de nossos patrimônios para a afirmação de nossa identidade cultural é que teremos mais MARCO LEGAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL responsabilidade em protegê-los. NO BRASIL Símbolo da cultura brasileira, a capoeira tornou-se Pat- Fundamentais para a afirmação da identidade dos di- rimônio Cultural do Brasil em 2008, tendo o Ofício de Mestres versos grupos formadores da sociedade brasileira, os bens de Capoeira inscrito no Livro dos Registros dos Saberes e a culturais de natureza imaterial (também chamados de bens Roda de Capoeira inscrita no Livro dos Registros das Formas intangíveis), foram contemplados pelos constituintes que de Expressão. Segundo o IPHAN “o objetivo destes registros foi incluíram, na Constituição Federal de 1988, artigo específico o de valorizar a história de resistência negra no Brasil, durante sobre este tema, apontando que: e após a escravidão” (IPHAN, 2017. p. 7). O presente artigo é parte de nossa pesquisa realizada Art. 216: Constituem patrimônio cultural no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio, brasileiro os bens de natureza material e Cultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio imaterial, tomados individualmente ou em de Janeiro - UFRRJ, Instituto Multidisciplinar - Campus Nova conjunto, portadores de referência à iden- Iguaçu, onde realizamos o curso de mestrado. A ideia central tidade, à ação, à memória dos diferentes deste trabalho é discutir o marco legal do patrimônio cultur- grupos formadores da sociedade brasileira, al imaterial no Brasil e as políticas implantadas pelo IPHAN, nos quais se incluem: o processo da Salvaguarda da Capoeira no estado do Rio de Janeiro e as ações realizadas para a construção de um Plano I - as formas de expressão; de Salvaguarda que atenda as demandas apresentadas pelos II - os modos de criar, fazer e viver; detentores deste bem cultural de natureza imaterial. Para tanto, serão analisadas as ações implementadas III - as criações científicas, artísticas e tec- pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – nológicas; IPHAN, nos anos de 2006 e 2007 com os encontros Capoeira como Patrimônio Imaterial do Brasil. Serão também objeto IV - as obras, objetos, documentos, edifica- de análise o Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à ções e demais espaços destinados às mani- Capoeira criado em 2009 pelo Grupo de Trabalho Pró-Capoeira festações artístico-culturais; - GTPC, instituído pela Portaria MinC nº 48/2009, coordenado pelo IPHAN com a participação da Fundação Cultural Palmares 1 Material de divulgação distribuído na ocasião da candidatura da Roda de Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. 168 V - os conjuntos urbanos e sítios de valor Vários foram os parceiros e sucessores de Mario de An- histórico, paisagístico, artístico, arqueoló- drade nesta tarefa, dentre eles Edison Carneiro, Luis da Câma- gico, paleontológico, ecológico e científico. ra Cascudo e Renato de Almeida. A Comissão Nacional do Fol- clore, criada em 1947, com ramificações em inúmeros estados § 1º - O Poder Público, com a colaboração brasileiros, teve, nos anos 50, uma grande mobilização por da comunidade, promoverá e protegerá o parte destes personagens. A Campanha de Defesa do Folclore patrimônio cultural brasileiro, por meio de Brasileiro, inclusive, teve como base para a sua criação, em inventários, registros, vigilância, tomba- 1958, este movimento. Esta campanha deu origem ao Centro mento e desapropriação, e de outras formas Nacional de Folclore e Cultura Popular - CNFCP, sediado no Rio de acautelamento e preservação. (BRASIL, 2 de Janeiro e hoje incorporado ao IPHAN. O CNFCP tem realiza- 1988 ). do relevante trabalho de conservação, promoção e difusão da cultura popular e tradicional, com ações de apoio, produção e Entendemos que, ao reconhecer os patrimônios culturais manutenção de importante acervo sobre o tema. imateriais a Carta Magna reforçou o que já estava previsto no A proposta embrionária de Mario de Andrade serviu de anteprojeto que deu origem ao SPHAN -Serviço do Patrimô- inspiração, nos anos 70 e 80, para as atividades desenvolvi- nio Histórico e Artístico Nacional, atual IPHAN - Instituto do das no Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC e na Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, elaborado pelo po- Fundação Nacional Pró-Memória, estas sob a liderança de eta modernista Mario de Andrade, um dos seus fundadores. Aloísio Magalhães. Aliás, um “dos grandes feitos de Aloísio Podemos afirmar, inclusive, que “os primeiros registros de Magalhães no comando do CNRC e, posteriormente da FNPM, bens culturais de natureza imaterial foram realizados naquele foi a proteção do Estado em relação ao patrimônio não-con- período, durante as expedições do escritor pelo nordeste bra- sagrado, vinculado à cultura popular e aos cultos afro-bra- sileiro, ocasião em que valioso material audiovisual e textual 3 sileiros” (IPHAN, 2008, p. 12). sobre danças e ritmos populares da região foi recolhido” . Contudo, foi a partir de 1997, com a realização, em O Ministro da Cultura, Gilberto Gil, no Relatório da Fortaleza, do Seminário Patrimônio Imaterial: estratégias Comissão e do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial, e formas de proteção, que “discutiu os instrumentos legais apontava esse pioneirismo de Mário de Andrade, dizendo que e administrativos de preservação dos bens culturais de na- A ideia de ampliar o raio de proteção, de pre- tureza imaterial” (IPHAN, 2008, p. 13) e resultou na Carta de servação, e de valorização dos bens simbóli- Fortaleza, que apontou a necessidade de criação de um grupo cos de nosso povo, foi, na verdade, sugerida de trabalho no Ministério da Cultura, sob a coordenação do por Mario de Andrade, no contexto do nas- IPHAN, “com o objetivo de desenvolver os estudos necessários cimento do IPHAN, quando a consciência de para propor a edição de instrumento legal, dispondo sobre preservação da memória nacional começou a criação do instituto jurídico denominado registro, voltado a se enraizar na sociedade brasileira.4 especificamente para a preservação dos bens culturais de na- tureza imaterial” (IPHAN,2006, p. 50). Segundo a Carta de Fortaleza, 2 BRASIL. Constituição Federal. 1988. Disponível em < http://www. O objetivo do seminário foi recolher sub- planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 30 de Abril de 2018. sídios que permitissem a elaboração de diretrizes e a criação de instrumentos legais 3 Publicado no Informe sobre o estado da proteção do Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Edição Iphan. Brasília, 2004, p. 01. e administrativos visando a identificar, pro- 4 Relatório final da Atividade da Comissão e do Grupo de Trabalho do teger e fomentar os processos e bens “porta- Patrimônio Imaterial. Em: O Registro do Patrimônio Imaterial: dossiê dores de referência à identidade, à ação e à final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho do Patrimônio memória dos diferentes grupos formadores Imaterial. Brasília. 4ª Ed., 2006, p.07. 169 da sociedade brasileira”, conforme previsto ebrações; Livro de Registro das Formas de Expressão e o Livro no art. 216 da Constituição Federal [...]5 de Registro dos Lugares. (IPHAN, 1997, p. 01). Sendo hoje o principal marco legal do Patrimônio Cultur- al Imaterial no Brasil, a aprovação e promulgação desse decre- Entendia-se que o Decreto-Lei 25/37, que instituiu o to pode ser entendido como um grande investimento político tombamento como instrumento jurídico de preservação, e intelectual feito pelos técnicos e dirigentes do IPHAN, ini- não se adequava a identificação e a valorização dos diversos ciado na cidade de Fortaleza com a realização do Seminário conjuntos de bens culturais até então não reconhecidos pelo Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção. Estado. Neste contexto era premente que o estado brasileiro Além de instituir o registro, o decreto criou o Programa criasse instrumentos legais e institucionais que permitissem Nacional do Patrimônio Imaterial - PNPI, que tem como es- atender o já previsto no art. 216 da constituição, pois a não tratégia viabilizar projetos de identificação, reconhecimento, inclusão da diversidade cultural brasileira nas políticas públi- salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimô- cas voltadas à preservação, difusão e fomento poderiam ser nio cultural. O programa tem “como principal objetivo imple- entendidas como exclusão social. mentar, no âmbito do Ministério da Cultura, política pública Portanto, como resultado das recomendações previs- de identificação, inventário e valorização desse patrimônio”. tas na Carta de Fortaleza, o Ministério da Cultura criou, em (IPHAN. 2012, p. 10). março de 1998, comissão que tinha como objetivo a elabo- Em 2004, na gestão do Ministro Gilberto Gil foi criado, ração de proposta que regulamentasse o acautelamento do através do Decreto 5.040 de 7 de abril, o Departamento do Patrimônio Cultural Imaterial. Neste mesmo ano foi criado o Patrimônio Imaterial - DPI, dando continuidade ao trabalho Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial – GPTI, composto por que já vinha sendo realizado pelo Departamento de Identi- técnicos do IPHAN, da Fundação Nacional de Arte – FUNARTE ficação e Documentação - DID. Ao ter incorporado o Centro e do MinC, que tinham como atribuição prestar assessoria à Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, em funciona- comissão. mento desde 1958, o DPI passa a coordenar a política de sal- Após estudos e discussões prévias, foi encaminhado à vaguarda dos bens culturais imateriais no IPHAN. Presidência da República documento denominado Exposição de Motivos e Texto Final do Decreto Presidencial, afirmando AS POLÍTICAS DE SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO CUL- que “a inclusão de bens culturais que referem os diferentes TURAL IMATERIAL NO BRASIL grupos formadores da sociedade brasileira no rol do nosso patrimônio cultural constitui uma demanda histórica.” (IPH- Com a aprovação do Decreto 3.551/2000, foi fortalecida AN, 2012, p. 12). Neste documento foi apresentado a proposta a ideia de patrimônio cultural e lançadas as bases de uma de instituição e regulamentação do Registro de Bens Culturais política consistente de fomento, buscando abranger toda de Natureza Imaterial, apontando, dentre outros dados, que a produção simbólica através de uma concepção que viria “a inscrição de um bem em um dos Livros de Registro terá orientar a política cultural do país, no que diz respeito ao sempre como referência sua relevância para a memória, a patrimônio cultural imaterial brasileiro, pois a “salvaguarda identidade e a formação da sociedade brasileira, assim como destes bens está orientada para a valorização do ser humano, sua continuidade histórica” (IPHAN, 2012, p. 13). para a garantia e para a melhoria das condições sociais, cul- No dia 4 de agosto de 2000 o presidente da república turais e ambientais que permitem sua permanência”. (IPHAN, sancionou o Decreto 3.551/2000 que instituiu o Registro de 2008, p. 5). Bens Culturais de Natureza Imaterial, criando os seguintes Portanto, vale ressaltar que as discussões acerca das livros: Livro de Registro de Saberes; Livro de Registro das Cel- políticas que instituíram o sistema brasileiro de salvaguar- da do patrimônio imaterial optou por utilizar o conceito de 5 A Carta de Fortaleza foi importante documento aprovado no Seminário “referência cultural”, que se tornou fundamental para a im- Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, realizado pelo IPHAN em 1997, no estado do Ceará, com a participação de represent- plementação das ações voltadas para a preservação do nos- antes da UNESCO. so patrimônio, pois “falar em referências culturais significa 170 dirigir o olhar para representações que configuram uma histórica e antropológica para identificar os aspectos iden- “identidade” da região para seus habitantes e que remetam titários da capoeira como prática cultural e que serviu como à paisagem, às edificações e objetos, aos “fazeres” e “saberes”, base para o registro e a salvaguarda da capoeira no Brasil. E é às crenças e hábitos” (FONSECA, 2000, p. 11). deste processo que passaremos a falar a seguir. Segundo o Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, O RECONHECIMENTO DA CAPOEIRA COMO PATRIMÔ- “Referências são edificações e são paisagens NIO CULTURAL naturais. São também as artes, os ofícios, as A capoeira, sendo uma expressão cultural afro-brasilei- formas de expressão e os modos de fazer. ra, se encontra presente em todos os estados brasileiros e São as festas e os lugares a que a memória e em mais de 160 países. Símbolo da identidade nacional, o a vida social atribuem sentido diferenciado: “Ministério da Cultura do governo do presidente Lula passa a são as consideradas mais belas, são as mais lembradas, as mais queridas. São fatos, ati- reconhecer essa prática como um ícone da representatividade 7 vidades e objetos que mobilizam a gente do Brasil perante os demais povos.” (GIL, 2004) . mais próxima e que reaproximam os que es- Com diversas características e variações por todas as tão longe, para que se reviva o sentimento regiões do país, foi desenvolvida, acredita-se, a partir das suas de participar e de pertencer a um grupo, de principais vertentes, a capoeira angola e a capoeira regional. possuir um lugar. Em suma, referências são Mas como a “capoeira é tudo que a boca come”8, muitas outras objetos, práticas e lugares apropriados pela formas e práticas foram aparecendo ao longo de sua existên- cultura na construção de sentidos de identi- cia, onde podemos citar como exemplo a capoeira utilitária do dade, são o que popularmente se chama de Mestre Sinhozinho9, no Rio de Janeiro. Mas capoeira também raiz de uma cultura”.6 é ginga e atitude afro-brasileira, que através das rodas, faz girar o mundo. Sendo um marco importante na metodologia de tra- Sendo dança, jogo, luta, filosofia de vida e expressão balho, o INRC “é um procedimento de investigação que se cultural dos negros escravizados no Brasil, a capoeira foi du- desenvolve em níveis de complexidade crescente e prevê três rante anos perseguida pela polícia do Estado Republicano, etapas”: levantamento preliminar; identificação e documen- considerada crime no Código Penal de 189010, e associada aos tação. (IPHAN, 2008, p. 23). mais diversos atos preconceituosos e discriminatórios, reve- Com a formulação do Inventário Nacional de Referências lando-se com um dos tristes exemplos de como eram tratadas Culturais (INRC), foi possível estabelecer as diretrizes da sal- e respeitadas as culturas brasileiras, principalmente as de ori- vaguarda, tendo em vista que a reprodução e a continuidade gens africanas, haja visto a perseguição sofrida também pelas dos bens culturais dependem efetivamente de seus deten- religiões de matrizes africanas. tores e produtores e por isso estes deveriam ser participantes Quanto a criminalização da capoeira, esta durou até ativos do processo de reconhecimento, identificação e apoio Getúlio Vargas assumir a Presidência da República na déca- nas ações de reconhecimento. da de 1930. A partir daquele momento e querendo dar um Dentre os bens reconhecidos pelo IPHAN como Patrimô- 7 Discurso do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Disponível em: < http:// nio Cultural do Brasil estão o Ofício dos Mestres de Capoeira, www.cultura.gov.br/discursos/-/asset_publisher/DmSRak0YtQfY/ inscrito no Livro de Registro dos Saberes e a Roda de Capoeira, content/ministro-da-cultura-gilberto-gil-na-homenagem-a-sergio-vie- inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão. Diferen- ira-de-mello-36642/10883>. Acesso em 26 de abril de 2018. temente de outros bens reconhecidos pelo Estado brasileiro, 8 Frase histórica proferida por Vicente Ferreira Pastinha (Mestre Pastinha). para o reconhecimento destes referenciais culturais não foi 9 Agenor Moreira Sampaio (Mestre Sinhozinho) era Mestre de Capoeira e utilizado o INRC, e sim o Dossiê realizado a partir da pesquisa tinha academia no bairro de Ipanema, RJ. 6 O INRC é um importante instrumento para o Plano Nacional do 10 O art. 402 do Código Penal de 1890 dava a capoeiragem um trata- Patrimônio Imaterial – PNPI. mento especifico criminalizando os seus praticantes. 171 cunho mais popular ao seu governo, ele passou a valorizar os consigo uma comitiva de 15 capoeiristas do Brasil e do mundo diversos elementos que compunham a cultura brasileira com e propôs a realização de uma roda de capoeira, como forma vistas a reforçar na sociedade o sentimento de nacionalismo de celebrar a paz mundial e estabelecer o diálogo entre difer- e enxergou na capoeira um importante instrumento de valor- entes povos”. (IPHAN, 2017, p. 09). ização desta cultura e assim a descriminalizou. Naquele momento foi anunciado pelo Ministro a criação Segundo Vieira, “desde o início da República, a postura de um Programa Brasileiro e Mundial da Capoeira, quando do estado brasileiro em relação à capoeira tem oscilado en- afirmou ser a capoeira uma das “grandes contribuições do tre a repressão e o desprezo”. Segundo este autor, “foi a partir Brasil ao imaginário do mundo”. (GIL, 2004)12. Ele propôs, ali, dos anos 2000 que tiveram início medidas com o propósito a criação de um calendário anual, nacional e internacional de reconhecer a importância do patrimônio cultural repre- da capoeira; criação de um Centro de Referência da Capoeira sentado pela capoeira e o conjunto de suas tradições” (VIEIRA, na cidade de Salvador; implementação nas escolas de todo o 2012, p. 133). país, através do Ministério da Educação, de programa consid- Foi a partir da gestão do Ministro Gilberto Gil, afirma ele, erando a capoeira como prática cultural e artística e não so- que “a capoeira foi eleita como uma das prioridades das políti- mente como esporte; criação de previdência social para artis- cas voltadas para as culturas populares”. A luta brasileira, após tas, com atenção especial aos capoeiristas; prestação de apoio séculos de repressão, diz: “torna-se símbolo da resistência das diplomático aos capoeiristas que vivem e atuam no exterior; o camadas populares e da diversidade cultural brasileira”. (VIE- reconhecimento do notório saber dos mestres de capoeira e o IRA, 2012, p. 143). lançamento de editais para fomentar projetos desenvolvidos Outra ação com vistas a apoiar o reconhecimento da tendo a capoeira como instrumento de cidadania e inclusão capoeira enquanto patrimônio cultural partiu da Deputada social. Federal pelo estado da Bahia, Alice Portugal (PCdoB), que so- Em outra frente e continuando com seus esforços para o licitou por meio da Indicação nº 2924 de 19 de maio de 2004, reconhecimento da capoeira, expressão cultural afro-brasilei- ao Ministro da Cultura, que fosse realizado, por intermédio do ra como “Patrimônio Cultural do Brasil”, a Deputada Federal IPHAN, o Registro da Capoeira. Alice Portugal (PCdoB/BA) envia ao Ministro da Cultura, no dia A partir desta indicação foi encaminhada ao IPHAN, 26 de janeiro de 2006, correspondência reiterando seu pedido através do Ofício nº 190/CG/SE/MinC, no dia 1º de setembro anterior, como segue: de 2004, da Chefe de Gabinete do MinC, a referida solicitação. [...] considero que existem todas as con- Embora pertinente o pedido, a direção do Departamento do dições para que a capoeira seja inscrita no Patrimônio Imaterial - DPI, encaminhou o Memorando nº “Livro de Registro” do Instituto do Patrimô- 223/04, de 14 de junho de 2004, informando ao Presidente do nio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN e IPHAN que para a abertura de processo do Registro da Capoe- reitero a Vossa Excelência o apelo para que ira era necessário que a sua instauração fosse solicitada por a indicação de minha autoria, aprovada parte legítima, conforme o estabelecido no art. 2º do Decreto pela Câmara dos Deputados, seja levada em nº 3.551/2000, sendo que membros do poder legislativo não conta pelo Ministério da Cultura, permitindo tem legitimidade para tal pedido11. assim que a Capoeira passe a ser considera- Apesar de todos os esforços para o reconhecimento da da um bem cultural imaterial devidamente capoeira, entendemos que o principal marco nesta direção registrado junto às instituições de proteção foi o evento ocorrido na sede da ONU, em Genebra, no dia 19 e preservação do patrimônio histórico e ar- de agosto de 2004, em homenagem ao embaixador Sérgio tístico de nosso país [...] (Grifo da autora). Vieira de Mello (morto em Bagdá, Iraque, junto com outras (CARTA DA DEPUTADA ALICE PORTUGAL, 22 pessoas) quando o Ministro da Cultura Gilberto Gil “levou 2006). 11 Conforme Parecer nº 31/2008-PF/IPHAN/AF da Procuradoria-Geral Federal - PGF, através do PROFER, Órgão Executor da PGF no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. 12 Id., Ibid. 172 Após a segunda carta encaminhada pelo gabinete da A documentação produzida através destes encontros e os parlamentar, o Ministério da Cultura, através de sua Chefia de abaixo-assinados recolhidos durante a realização dos debates Gabinete, encaminhou à presidência do IPHAN, no dia 13 de foi anexada ao processo de registro aberto pelo DPI, além de fevereiro de 2006 o Ofício nº 29CG/SE/MinC reiterando o teor material bibliográfico sobre a capoeira, dando anuência a do Ofício 190CG/SE/MinC, que solicitava o Registro da Capoei- todo o processo hora iniciado. ra, conforme carta da Deputada Alice Portugal. No parecer nº 31/08, de 31 de janeiro de 2008, da O Presidente do IPHAN, então, encaminha o Memorando antropóloga Maria Paula Fernandes Adinolfi, da Superin- GAB/PRES 0002/06, datado de 17 de fevereiro de 2006, solic- tendência do IPHAN na Bahia, é apontado que a itando a abertura, por parte do Departamento do Patrimônio proposição do registro da capoeira como Cultural Imaterial – DPI, do processo de registro da capoeira, patrimônio cultural do Brasil, feita por ini- apontando como justificativa a ciativa do Ministério da Cultura e apoiada [...] Valorização e reconhecimento de uma pelos capoeiras, representados por velhos e manifestação cultural expressiva da contri- respeitados mestres da Bahia, Rio de Janei- buição africana para a cultura do país, que ro, Pernambuco e outros locais do país, pode segundo pesquisadores, desenvolveu-se no ser bem mais compreendida ao considerá-la Brasil e constitui-se em referência marcante como parte integrante de um rol mais am- da cultura afro-brasileira, em função de sua plo de reivindicações de direitos culturais, origem e dos aspectos que a constituem, sociais e políticos pela população afro-bra- como forma de sociabilidade, saber e ex- sileira, que foram incorporados à agenda do pressão [...]13. (IPHAN, 2006). MinC, resultando na formulação de políticas de valorização e fomento desta prática cul- A partir daí é aberto o processo de Registro da Capoeira, tural (IPHAN/BA, 2008, p. 01). tendo como referências iniciais para este registro as cidades do Rio de Janeiro e Salvador. Tal decisão foi tomada a partir de Entendemos que, apesar da importância deste reconhe- reunião realizada em Brasília pelo MinC no dia 10 de junho de cimento, os detentores e praticantes que participaram deste 2005. No entanto, com a realização do III Encontro “Capoeira processo foram em número infinitamente inferior ao que se como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil”, na cidade de esperava, mas, claro, sem desconsiderar a importância da Recife, nos dias 15 e 16 de março de 2007, entendeu-se ser participação de cada um deles. necessária a inclusão da cidade nas pesquisas de instrução do Nos documentos que tivemos acesso no sítio eletrônico processo de registro. Além de Recife, os Encontros “Capoeira do IPHAN (www.iphan.gov.br), relacionados as assinaturas como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil” ocorreram nas que reconheceram o Inventário e Registro para a Salvaguar- cidades de Niterói, RJ; Salvador, BA e Duque de Caxias, RJ. da da Capoeira como Patrimônio Imaterial do Brasil, dando Segundo o IPHAN, anuência ao processo, verificamos que na Anuência 1, con- tinha apenas 96 assinaturas. O texto desta anuência dizia que: O objetivo destes encontros foi reunir mes- tres, alunos e pesquisadores para apresentar Eu, abaixo-assinado, reconheço o inventário o projeto do Inventário, discutir as possibili- e registro para a salvaguarda da capoeira dades de registro e fazer um levantamento como Patrimônio Cultural Imaterial do Bra- de pautas que seriam utilizadas como refe- sil, como uma iniciativa oportuna de reco- rências para a elaboração das Recomenda- nhecimento nacional de sua relevância e ções do Plano de Salvaguarda da Capoeira. contribuição para o país, de modo a apontar (IPHAN, 2007, p. 09-10). para políticas públicas que permitam o es- tabelecimento desta importante expressão 13 Em memorando de solicitação da presidência do IPHAN solicitando a da cultura brasileira. (ANUÊNCIA 1, 2006, abertura do processo de registro da capoeira ao DPI. p. 01). 173 Segundo Costa, “uma estratégia para o recolhimento das fosse registrada como ‘patrimônio cultural assinaturas foram os seminários que funcionavam a partir de afro-brasileiro’, ainda que não existisse um duas premissas: recolher as assinaturas para a anuência e ou- instrumento legal que permitisse tal prer- vir a comunidade da capoeira a respeito de suas demandas”. rogativa. O mestre chegou a organizar um (COSTA, 2016, p. 442). evento para discutir o assunto, convocando Quanto a Anuência 2, com 53 páginas, podemos perceber representantes do IPHAN, a coordenação que as assinaturas estavam em uma quantidade muito maior. do processo do registro, capoeiristas, inte- Acreditamos que este fato se deu porque a comunidade da lectuais e lideranças negras da Bahia. [...] (CASTRO E CID. 2016, p.185). capoeira pernambucana queria o reconhecimento por parte do Estado brasileiro do processo identitário da capoeira de Segundo o Dossiê que subsidiou o reconhecimento da Pernambuco e não, necessariamente, da capoeira de todo capoeira como patrimônio cultural imaterial do povo brasileiro o Brasil. Haja visto o texto em apoio ao INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais proposto no cabeçalho do O desafio do Inventário para Registro e Salva- abaixo-assinado que diz: guarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil, realizado entre 2006 e 2007, era Apoiamos que seja feito o INRC - Inventário construir um diálogo entre o tempo his- Nacional de Referências Culturais da Ca- tórico passado e o tempo presente. Como poeira em Pernambuco, para identificar e patrimônio vivo, a capoeira se mantinha reconhecer a Capoeira Pernambucana como no cenário atual através dos mestres que Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro no representavam o saber. Ao mesmo tem- Livro “Formas de Expressão” e posterior Sal- po, acumulava produção documental que vaguarda. (ANUÊNCIA 2, 2006, p. 01). atravessava os últimos três séculos. Havia a necessidade de reconstituir brevemente Analisando este documento, Costa diz que este “possui a história da capoeira e realizar um regis- anseios diferentes do primeiro”. Segundo ele, tro instantâneo de seu momento presente. Apesar desse movimento ser desencadeado (IPHAN, 2007. p. 08 – Grifos do Autor). a partir do III Encontro: Capoeira como Patri- mônio Imaterial do Brasil, a comunidade da Depois de todo o processo de instrução para o registro capoeira pernambucana não ficou satisfeita do Ofício dos Mestres de Capoeira e da Roda de Capoeira e, com autonomia, encaminhou seu próprio como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil; da publicação reconhecimento. (COSTA. 2016, p. 444). de aviso no Diário Oficial da União14; da relatoria, por parte do historiador Arno Wehlling, do Conselho Consultivo do IPH- Percebemos, então, que houveram diversos conflitos de AN, do parecer no qual solicita o reconhecimento da capoeira interesses neste processo de patrimonialização da capoeira. como patrimônio cultural brasileiro, foi aprovado no dia 15 de Podemos citar como outro exemplo o que aconteceu na Bahia, julho de 2008, no Teatro Castro Alves, na cidade de Salvador, quando um renomado mestre questionou o IPHAN dizendo o reconhecimento da capoeira como patrimônio cultural do que o reconhecimento da capoeira deveria levar em conta Brasil. que esta importante referência cultural brasileira também No parecer apresentado pelo Conselho Consultivo do fosse identificada pela sua origem africana, como nos infor- IPHAN foram apontados três aspectos que, para eles seriam ma Castro e Cid: muito relevantes: “a capoeira como prática de sociabilidade, já que forma redes de sociabilidade e constituição da identi- [...] durante o registro ocorreu de um reno- mado mestre baiano discordar do reconhe- cimento como patrimônio cultural do Brasil, 14 O referido aviso foi publicado no Diário Oficial da União no dia 13 de junho de 2008, cumprindo o que determina o art. 37 da Constituição na medida em que desejava que a capoeira Federal no que diz respeito à publicidade. 174 dade e da autoestima de grupos afro-brasileiros; como prática scentralizar as ações de salvaguardas da capoeira em todo cultural já que se constituiu num referencial do legado cultur- o país. Acreditamos, inclusive, que a suspensão do Termo de al africano e como estratégia identitária”. (PARECER CONSEL- Parceria entre o IPHAN e a OSCIP, que demorou a repassar os HO CONSULTIVO DO IPHAN, 2008, p. 05-06). dados coletados tenha ajudado na descontinuidade das ações Culminando com o processo do Registro da Capoeira, no propostas pelo Pró-Capoeira. Tanto que a Portaria que institu- dia 20 de outubro de 2008 o Ofício dos Mestres de Capoei- iu o GTPC expirou no dia 13 de dezembro de 2012 e com isso o ra foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes e a Roda de grupo foi extinto sem que o Programa Nacional de Salvaguar- Capoeira, no Livro de Registro das Formas de Expressão. Com da e Incentivo à Capoeira fosse implantado. Vale lembrar que amplitude nacional, estes registros tiveram como base as em um dado momento o Grupo de Trabalho Pró-Capoeira – pesquisas desenvolvidas nos estado da Bahia, Pernambuco e GTPC, foi transferido para a Fundação Cultural Palmares, que Rio de Janeiro. realizou dois Ciclos de Debates sobre a regulamentação da A implantação de políticas públicas para a capoeira, an- profissão do capoeirista. tes e após o seu reconhecimento, não param por aí e em 2009 Segundo o IPHAN, “a grande participação e o amplo o MinC cria o Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à debate promovidos pelos encontros apontaram a enorme Capoeira – Pró-Capoeira, do qual falaremos a seguir. diversidade de realidades e contextos da capoeira no Brasil, demostrando a impossibilidade de propor um Plano de Sal- O PROGRAMA NACIONAL DE SALVAGUARDA E INCEN- vaguarda Nacional para a Capoeira” (IPHAN. 2017, pág. 11). TIVO À CAPOEIRA – PRÓ-CAPOEIRA Foi a partir desta constatação que o DPI orientou as superintendências estaduais a conduzirem ações de mobi- Em 2009 o Ministério da Cultura criou, através da Por- lização, com encontros, seminários, conferências e reuniões, taria 48/2009, o Grupo de Trabalho Pró-Capoeira – (GTPC), para o mapeamento e identificação do universo da capoeira com a finalidade de formular a implementação do Programa em cada estado, descentralizando, assim, as ações de sal- Nacional de Salvaguarda e Incentivo à Capoeira. Coordenado vaguarda em todo o Brasil. pelo IPHAN, uma das primeiras iniciativas do GTPC foi a re- alização dos Encontros Pró-Capoeira, ocorridos nas cidades do Brasília, Recife e Rio de Janeiro. Para isto o IPHAN lançou A SALVAGUARDA DA CAPOEIRA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO o Edital de Concurso nº 01/2010 a fim de selecionar Organ- ização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP para No estado do Rio de Janeiro o processo da Salvaguarda gerir todo este processo. O vencedor do certame foi o Centro da Capoeira iniciou efetivamente a partir do Encontro dos Me- Cultural Internacional – INTERCULT, com sede em Brasília. stres de Capoeira do Rio de Janeiro, realizados pelo IPHAN nos O encontro do Rio de Janeiro, ocorrido de 27 a 29 de dias 14 e 21 de maio de 2013. Segundo o IPHAN, este encon- outubro de 2010, teve a participação de um número expres- tro teve como objetivo abrir espaço para discussões sobre a sivo de mestres e capoeiristas das regiões Sul e Sudeste e capoeira enquanto patrimônio imaterial do Brasil e definição foi dividido em seis eixos temáticos: Capoeira e Políticas de das ações que pudessem contribuir para o desenvolvimento Financiamento; Capoeira, Profissão, Organização Social e In- da salvaguarda. Reunir os detentores para saber destes o ternacionalização; Capoeira e Educação; Capoeira, Esporte e melhor caminho a seguir, buscando encontrar os pontos de lazer; Capoeira e Políticas de Desenvolvimento Sustentável e concordância entre as diversas vertentes da capoeira também Capoeira, Identidade e Diversidade. foram objetivos deste encontro. Apesar de ter promovido uma ampla mobilização da Apesar de ser um momento importante para a sal- comunidade da capoeira, permitindo debates sobre a sua vaguarda da capoeira no Rio de Janeiro, houveram vários salvaguarda, as demandas mapeadas durante o encontro questionamentos de como se deu o processo de convocação e tidas como importantes pelo detentores, não saíram do para a participação neste evento. Devido à importância deste papel. Ainda assim os resultados obtidos nas reuniões dos encontro, entendíamos que deveria haver um comunicado GT’s, acreditamos, apontaram para a necessidade de de- oficial direcionado à todos os interessados e ampla divulgação

175 na imprensa. Na qualidade de Conselheiro Nacional de Políti- foram colaboradores e parceiros atuantes ca Cultural também questionamos estes encaminhamentos, durante todo o processo administrativo, his- mas ainda assim fizemos questão de participar deste momen- tórico e científico que existe por trás desse to histórico para a capoeira. registro, que culminou com a elaboração Houve, ainda, um Manifesto dos Movimentos Populares do Inventário para Registro e Salvaguarda de Capoeira do RJ15 em que questionavam a legitimidade das da Capoeira como Patrimônio Cultural do ações propostas pelo IPHAN em relação à salvaguarda da ca- Brasil, em 2008. (MANIFESTO DOS MOVI- poeira do Rio de Janeiro. Eles diziam que MENTOS POPÚLARES DE CAPOEIRA DO RJ. 2013, p. 2). [...] tendo como base a forma como este processo vem sendo organizado e condu- Apesar dos descontentamentos apresentados, o processo zido pelo IPHAN, entendemos que a falta seguiu e como o estado de Minas Gerais estava mais avançado de transparência, assim como o acesso na construção da salvaguarda da capoeira, a Superintendên- privilegiado a informações em favor de um cia do IPHAN em Minas Gerais enviou a técnica Vanilza Jacun- grupo determinado de mestres/líderes, em dino Rodrigues que apresentou as ações que estavam sendo detrimento de outros, vai contra direitos desenvolvidas naquele estado e a experiência da criação de básicos da cidadania e do estado de direito. seu Conselho de Mestres. Desta forma, gostaríamos de alertá-los para Como resultado dos dois dias de debates, as principais o risco de desligitimização de toda e qual- quer ação e desdobramentos que venham a demandas apontadas foram: a criação do conselho de mestres acontecer a partir das correntes reuniões re- da capoeira; a descoberta dos parâmetros identitários da ca- lativas ao processo de Salvaguarda da Capo- poeira do RJ; a divulgação, identificação e o desenvolvimento eira no Estado do RJ. [...] (MANIFESTO DOS de pedagogias da capoeira; a troca de saberes sobre o ensino MOVIMENTOS POPÚLARES DE CAPOEIRA DO e transmissão da capoeira; a capacitação em elaboração de RJ. 2013, p. 2). projetos culturais; a criação de fóruns temáticos; de um centro de referência para a capoeira do Rio de Janeiro e a criação de Cabe ressaltar que representantes deste movimento espaço padronizado nas praças para a prática da capoeira, sob participaram deste encontro e tiveram a oportunidade de a responsabilidade de um mestre. se colocarem durante os debates. Participaram, ainda, da construção do Inventário para Registro e Salvaguarda da O grupo de trabalho da salvaguarda da capoeira no Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil16, na qualidade Rio de Janeiro de pesquisadores e não vimos, naquele momento, quaisquer questionamentos quanto a legitimidade daquele processo No encontro, que contou com a presença de mais de 200 onde se realizou diversos encontros Capoeira como Patrimô- mestres de capoeira, foi aprovada a criação do Grupo de Tra- nio Imaterial do Brasil com apenas 96 assinaturas de anuên- balho Interinstitucional para assessorar todo o processo a ser cia. Inclusive no próprio manifesto é apontado este momento, desencadeado pelos detentores. Instituído pela Portaria nº 66/2013, de 16 de dezembro, da Superintendência do IPHAN/ que, como dizem RJ, o GT tem entre suas atribuições a elaboração do Plano de [...] tem provocado também o desconten- Salvaguarda da Capoeira no estado do Rio de Janeiro. tamento entre aqueles que participaram e Formado por mestres de capoeira, praticantes, pesquisa- dores de universidades públicas e particulares e instituições 15 Este movimento tinha como signatários 15 grupos e associações de como a Fundação Cultural Palmares, o IPHAN e o INEPAC capoeira. – Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, o GT tem como 16 O IPHAN contratou diversos pesquisadores para darem suporte ao objetivo facilitar o desenvolvimento das ações necessárias processo de construção do inventário, realizando pesquisa histórico-doc- à consolidação do Plano de Salvaguarda, de modo que at- umental e de campo. 176 enda de maneira ampla os anseios dos capoeiristas e ainda, - 5ª Conferência Regional da Região do Médio Paraíba, mobilizar a comunidade da capoeira para a constituição do realizado no Escritório Técnico do IPHAN, na cidade de Vas- Conselho de Mestres de Capoeira do Rio de Janeiro. Para isto o souras no dia 10 de dezembro de 2013; primeiro ponto discutido pelo GT em reunião foi à organização - 6ª Conferência Regional da Região Metropolitana do da eleição para a formação do Conselho. Foi proposto, então, Rio de Janeiro, realizada no Centro de Referência do Samba o cadastramento de todos os mestres e a definição de uma Carioca no dia 16 de janeiro de 2014. agenda de trabalho. A conferência da Região dos Lagos foi a primeira reunião Foram criadas, ainda, três comissões que iriam subsidiar específica para tratar da eleição do Conselho de Mestres e todo o trabalho do GT: Comunicação, responsável por infor- ali foram apresentados os critérios criados pelo Grupo de mar aos mestres e a comunidade todas as ações do Grupo de Trabalho para as eleições, como o quantitativo ideal de rep- Trabalho; Editorial, responsável pela organização da produção resentantes. teórica sobre a história da capoeira e do roteiro para os depo- A proposta inicial seria um Mestre titular e um Mestre imentos dos mestres de capoeira do estado do Rio de Janeiro; suplente eleito por cada região abrangida pelos Escritórios e a Comissão Organizadora do encontro para a eleição do Con- Técnicos do IPHAN, que dariam um total de cinco Mestres selho de Mestres, responsável por divulgar em todo o estado titulares e cinco Mestres suplentes. Evander de Almeida Men- do Rio de Janeiro as iniciativas sobre o Plano de Salvaguarda, donça (Mestre Cavalo), presente à conferência, receoso de que o encontro e a eleição do Conselho. esses critérios propostos deixassem os Mestres do interior em desvantagem perante a maioria dos Mestres da Capital, suge- As conferências regionais riu que o número de Mestres eleitos por regiões atendidas pe- los Escritórios Técnicos, fossem de três Mestres titulares e três Para a eleição do Conselho de Mestres de Capoeira do Mestres suplentes, e não apenas um. A sugestão apresentada Rio de Janeiro foram necessárias a realização de diversas con- foi aprovada pelos membros do Grupo de Trabalho presentes ferências regionais. Por questões de logística e organização, a à conferência. Superintendência do IPHAN decidiu utilizar como referência A eleição contou com a participação de aproximada- para a realização destas conferências a abrangência de seus mente 300 Mestres e capoeiristas. Foram eleitos 30 consel- Escritórios Técnicos localizados nas regiões da Costa Verde, heiros titulares e 30 suplentes, 15 da região metropolitana e Médio Paraíba, Região dos Lagos, Região Serrana e Região 15 do interior do estado. Entre as atribuições do Conselho está Norte/Noroeste. a divulgação, identificação e desenvolvimento de pedagogias Com o objetivo de promover a construção do Plano de da capoeira e a criação de fóruns temáticos. Salvaguarda da Capoeira do Rio de Janeiro e eleger o Con- Após a eleição, realizada no dia 7 de junho de 2014, no selho de Mestres, as conferências regionais aconteceram nos Centro Cultural Cartola, houve a histórica cerimônia de posso seguintes dias e locais: dos membros do Conselho de Mestres de Capoeira no Theatro - 1ª Conferência Regional da Região dos Lagos, realizada Municipal do Rio de Janeiro, com a presença da presidente do em São Pedro da Aldeia, no dia 29 de julho de 2013. IPHAN, Jurema Machado, do Diretor Geral do INEPAC, Paulo - 2ª Conferência Regional, abrangendo as cidades do Vidal, de Néia Daniel, da Fundação Cultural Palmares; Célia Norte-Noroeste do Estado do Rio de Janeiro, realizada em Corsino, Diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial; Miracema no dia 12 de setembro de 2013; Ivo Barreto, Superintendente do IPHAN-RJ e Marcelo Velloso, - 3ª Conferência Regional na cidade de Paraty, abrangen- Chefe da Representação Regional do Ministério da Cultura. do as cidades da Costa Verde do Estado do Rio de Janeiro, real- Participaram, ainda, os seguintes membros do Grupo de izada no dia 17 de outubro de 2013; Trabalho: Julio Cesar Tavares, Marcelo Vilarino, Luniara Miran- - 4ª Conferência Regional, abrangendo as cidades da da, Mestre Paulão Kikongo, João Perelli, Maria Luiza Dias, An- Região Serrana, realizada em Petrópolis no dia 29 de outubro tonina Fernandez, Mestre Curumim, Monica Costa, Cristiane de 2013;

177 Nascimento, Luciane Barbosa, Mestre Columá, Mestra Sheila criarem instrumentos necessários de preservação de nossa e Mestre Levi. capoeira para as gerações atuais e futuras. Durante a assinatura da ata, os Mestres eleitos receber- am um Termo de Posse selando o seu compromisso de atu- REFERÊNCIAS ação na construção do Plano de Salvaguarda da Capoeira do Rio de Janeiro. ANUÊNCIA 1. Abaixo Assinado para o Inventário e Registro para a Salvaguarda da Capoeira Como Pat- rimônio Imaterial do Brasil. 2006. 7f. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta é uma pesquisa ainda embrionária e a construção ANUÊNCIA 2. Capoeira Pernambucana. 2006. 53f. e desenvolvimento de todo o processo da Salvaguarda da Capoeira se faz por e para os seus detentores, na busca de BRASIL. Constituição Federal. 1988. Disponível em < preservar o passado, valorizar o presente e alicerçar o camin- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitu- ho para as novas gerações de capoeiristas. Mas é preciso que icao.htm> Acesso em 30 de Abril de 2018. o estado brasileiro saiba dialogar com as comunidades da capoeira, com seus mestres, guardiões e figuras centrais na ______. Código Penal. Decreto nº 847 de 11 de preservação de nosso patrimônio cultural. outubro de 1890. Disponível em: Acesso: 30 poeira como patrimônio cultural afro-brasileiro é a afirmação de abril de 2018. da identidade das comunidades onde ela atua, valorizando seus rituais e a manutenção de seus cânticos e gestos que CASTRO, M. B. & VIDAL, C. G. 2016. “Processos de pat- expressam as suas visões de mundo, suas hierarquias e seus rimonialização e internacionalização: algumas reflex- códigos de ética, revelando companheirismo e solidariedade, ões iniciais sobre o caso da capoeira entre o nacional e sendo de suma importância a preservação de suas raízes ét- o global”. In CASTRO, M. B. & SANTOS, M. S. (eds.): Relações nicas e culturais. raciais e políticas de patrimônio. Rio de Janeiro: Azougue Ed- Os nossos mais de 35 anos na prática da capoeira, com itorial. participação ativa através de palestras, seminários, congres- sos, encontros, aulas e oficinas nos levam a ter ainda mais COSTA, Neuber Leite. A Capoeira na Pauta das Políti- comprometimento com as ações de salvaguarda da capoeira. cas Culturais: O Patrimônio. In: PIRES, Antônio Liberac Car- Sendo central na vida dos afro-brasileiros, a capoeira é doso Simões; FIGUEIREDO, Franciane Simplicio; FILHO, Paulo um importante instrumento de afirmação de nossa identi- Andrade Magalhães; MACHADO, Sara Abreu da Mata. (Org.) dade e perpassa, como diz Stuart Hall, por “tudo o que acon- et al. Capoeira em Múltiplos Olhares. Editora UFRB; Belo Hori- tece nas nossas vidas e todas as representações que fazemos zonte, Fino Traço, 2016. desses acontecimentos”. (HALL, 1997, p. 17-46). Ao comemoramos os 10 anos de reconhecimento do FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências Cul- Ofício dos Mestres de Capoeira e da Roda de Capoeira, pos- turais: Base para Novas Políticas de Patrimônio. IN: samos efetivamente apresentar às nossas comunidades con- Manual de Publicação do Departamento de Documentação e quistas e realizações, com fomento e preservação das rodas Identificação. MinC/Iphan, Brasília, 2000. de capoeira tradicionais em nosso estado e com a valorização do papel do mestre como transmissor de conhecimentos de HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: notas so- nossa ancestralidade. bre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Que os diversos atores sociais envolvidos no processo de Realidade. V. 22. Nº 2, Jul./Dez. 1997. salvaguarda da capoeira possam assumir o compromisso de IPHAN. Carta de Fortaleza. Ceará, 1997. 178 _____. Dossiê Inventário para o Registro da Ca- MEMÓRIA ORGANIZACIONAL NO CONTEXTO DE poeira como Patrimônio Cultural do Brasil. Brasília, UMA INCUBADORA TECNOLÓGICA DE COOPERA- 2007. TIVAS POPULARES

_____. Informe sobre o Estado da Proteção do José Francisco Ribeiro Lemos 74 Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil. Brasília: IPHAN, UNIVERSIDADE LA SALLE /UFRGS, 2004. [email protected] @ufrgs.br

_____. O Registro do Patrimônio Imaterial. Maria de Lourdes Borges75 Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de UNIVERSIDADE LA SALLE [email protected] Trabalho Patrimônio Imaterial. 4ª Ed. 2006.

Rita de Cassia da Rosa Sampaio Brochier _____. O Registro do Patrimônio Imaterial. UNIVERSIDADE LA SALLE Dossiê Final das Atividades da Comissão e do Grupo de [email protected] Trabalho Patrimônio Imaterial. 5ª ed. 2012.

_____. Relatório final da Atividade da Comissão RESUMO e do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial. Em: O O objetivo deste artigo é o de analisar como a memória Registro do Patrimônio Imaterial: dossiê final das atividades organizacional emerge no contexto de uma incubadora de da Comissão e do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial. cooperativas populares (ITCP) especialmente no período de Brasília: MinC∕Iphan∕Funarte, 2ª Ed., 2003. 2001 a 2010. A ITCP em questão, instalada em uma Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul, existe desde 2001, mas IPHAN. Salvaguarda da Roda de Capoeira e do sua atuação com projetos de pesquisa e extensão iniciou em Ofício dos Mestres de Capoeira. Brasília, 2017. 2003, acumulando aproximadamente 10 projetos no perío- do analisado. Rowlinson et al. (2010) compreendem que é Manifesto dos Movimentos Populares de Capoeira do RJ, importante buscar, aprender e entender porque o passado 2013. possui relevância para a construção da jornada presente e futura da organização. São seus integrantes que irão construir Parecer nº 31/2008-PF/IPHAN/AF da Procuradoria-Geral e nortear a identidade da organização e a sua memória or- Federal – PGF - PROFER, Órgão Executor da PGF no Instituto ganizacional (MARCHI; BORGES, 2017). Foi realizada uma do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. pesquisa qualitativa por meio de observações, entrevistas e analisados documentos, sendo que uma sistematização dos PORTUGAL, Alice. Indicação nº 2924. Câmara dos dados ocorreu por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, Deputados. Brasília. 2004. 2010). Os resultados das análises indicam que não houve uma preocupação por parte da organização pesquisada em or- PORTUGAL, Alice. Carta da Deputada Alice Portugal. ganizar suas informações, pois existem registros formais que Câmara dos Deputados. Brasília. 2006. podem contribuir na reconstrução de sua memória organiza- VIEIRA, Luiz Renato. A Capoeira e as Políticas de cional, porém não estão sistematizados e/ou organizados. Salvaguarda do Patrimônio Imaterial: legitimação Além disso, as contribuições de seus integrantes podem ser e reconhecimento de uma manifestação cultura de 74 Mestrando junto ao PPG em Memória Social e Bens Culturais, UNILA- origem popular. In: GONÇALVES, Alanson M. T. (Org.). Ca- SALLE e técnico administrativa na UFRGS. poeira em Perspectivas. Belo Horizonte. Editora Tradição 75 Docente permanente do PPG em Memória Social e Bens Culturais, Planalto. 2012. UNILASALLE. Doutora em Administração e Líder do Grupo de Pesquisa Tecnologia Social, Inovação e Desenvolvimento (GP Tessido). 179 fontes valiosas, servindo como um norte para esta construção, Diante do contexto exposto, percebe-se que há uma uma vez que a memória organizacional não deve ser rotulada lacuna sobre a memória organizacional da ITCP. A memória apenas como um conjunto de informações ou mesmo como organizacional pode ser uma ferramenta importante para os um reservatório de saberes que serve apenas para consultas. contextos empresariais, podendo se tornar um recurso inter- A organização existe devido às ações colaborativas das pes- no das organizações e assim orientar as decisões com o obje- soas que se comprometeram com metas e processos. Desta tivo de maximizar os resultados esperados (COSTA; SARAIVA maneira o conhecimento dos trabalhadores é decisivo para a et al 2011; LIMA; RIGO SANTOS, 2016). Para isso, o presente cultura e aprendizagens organizacionais (MARCHI, BORGES artigo tem como foco lançar luz sobre a memória organiza- 2017). Na ITCP em tela, há que se fazer esse trabalho de res- cional da ITCP da UFRGS. a partir da literatura sobre memória gate e sistematização das informações de maneira a tornar a organizacional (WALSH; UNGSON, 1991; ROWNLISON, 2010) sua memória organizacional viva e com condições de fomen- e da análise dos dados coletados (entrevistas e documentos). tar melhores decisões futuras (WALSH; UNGSON, 1991). O presente artigo apresenta inicialmente o referencial teórico sobre memória organizacional, em seguida o percurso Palavras-chave: Memória Organizacional; metodológico, as análises dos dados e finaliza com as consid- economia solidária; ITCP erações finais.

INTRODUÇÃO REFERENCIAL TEÓRICO O objetivo deste artigo é o de analisar como a memória MEMÓRIA ORGANIZACIONAL organizacional emerge no contexto de uma Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) no período de A memória organizacional serve para que as or- 2006 a 2010. A ITCP analisada é uma iniciativa da Univer- ganizações, instituições e coletivos possam tomar melhores sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A ITCP é um decisões, uma vez que estarão embasando-se em sua tra- projeto apoiado pelo Núcleo de Economia Alternativa (NEA) jetória, em seus acertos e erros do passado com vistas a um da UFRGS, grupo interdisciplinar com objetivo no ensino, futuro mais assertivo (WALSH; UNGSON, 1991). Neste ponto pesquisa e extensão, especialmente ancorado nos princípios de vista, relatórios, e-mails e atas de reunião, por exemplo, da economia solidária (ES), sediada na Faculdade de Ciências passam a ser recipientes de armazenamento de informações. Econômicas da (UFRGS). Eles podem vir a se tornar procedimentos, que poderão pro- Sabe-se que a ITCP da UFRGS atuou desde 2001 em di- mover o atingimento dos objetivos da organização. Nesse versas frentes, com relevantes trabalhos à comunidade por contexto, como evitar que os saberes dos trabalhadores se meio da operacionalização de projetos. Salienta-se que, em percam? Além disso, a memória organizacional serve como sua trajetória, a Incubadora em tela recebeu constante apoio base de pesquisa para buscar experiências passadas a fim da Pró Reitoria de Extensão da UFRGS. Porém, quando con- de melhor fluir o trânsito de informações dentro da empresa sultado seu histórico em sites e livros, ou mesmo na página (ROWLINSON et al. 2010). (site)76da Incubadora, poucas informações são encontradas. Uma sistematização da memória organizacional pode Diante disso, observa-se que a ITCP tem toda uma tra- esclarecer questões sobre a organização e também sobre o jetória que não está sistematizada, analisada e divulgada ambiente de atuação da organização, além de outros ganhos. adequadamente. Devido a esta lacuna em termos de sis- O armazenamento de informações, que incluem histórias e tematização e análise de sua trajetória, a sua importância lembranças, entre outros elementos, podem ser recuperadas nas ações de economia solidária e autogestão; os inúmeros para fins de divulgação da memória organizacional em uma aprendizados e ganhos sociais conquistados ficam ofuscados, organização. Para que a empresa ou organização possa tomar prejudicando o aprendizado para outras ITCPs como a sua decisões importantes em sua trajetória presente e futura ela continuidade em futuro mais promissor que o presente. pode se beneficiar ao se embasar em sua memória organiza- cional (WALSH; UNGSON ,1991). 76 https://neaufrgs.wordpress.com 180 Seguindo nesta lógica, Rowlinson et al. (2010) com- hora de passar a olhar a memória organizacional mais como preendem que é importante buscar, aprender e entender “memória coletiva” do que como “memória coletada”. porque o passado possui relevância para a construção da Para Rowlinson et al. (2010), é mais importante procu- jornada presente e futura da organização. Para Rowlinson et rar entender como as organizações se lembram e por que o al. (2010), são os integrantes que irão construir e nortear a passado possui relevância. Além disso, mais do que entend- identidade da organização e a sua memória organizacional er a instrumentalidade do passado e da memória, torna-se (MARCHI; BORGES, 2017). necessário entender a construção do senso de identidade Para Walsh e Ungson (1991), um fator determinante organizacional, vendo a memória organizacional como uma para o sucesso das organizações é a tomada de decisões, que condição histórica feita pelos membros das organizações. para os autores, deve estar apoiada na memória organiza- Para Rowlinson (2009) e Tedesco (2002), pode-se en- cional. Assim, por meio da memória organizacional é possível tender memória organizacional como o ato de evocação da construir um ambiente externo mais competitivo através de recordação social produzida através do compartilhamento das decisões mais assertivas. Nas próprias palavras de Whals e lembranças dos indivíduos que, em algum momento, fizeram Ungson (1991, p.61, tradução nossa) “A memória organiza- ou fazem parte da organização e, desse modo, contribuíram cional se refere a informações armazenadas a da história de para a construção dos acontecimentos vividos. uma organização, que pode ser recuperada para sustentar Foi Rowlinson et al. (2010) que compreenderam que é decisões presentes. Essa informação é armazenada como importante buscar, aprender e entender porque o passado uma consequência de decisões implementadas [...], pelas possui relevância para a construção da jornada presente e recordações individuais, e através de interpretações compar- futura da organização. São seus integrantes que irão construir tilhadas”. Além disso, no processo de compreender o fluxo da e nortear a identidade da organização e a sua memória or- informação dentro das empresas, o conhecimento retido nas ganizacional (MARCHI; BORGES, 2017). Além disso, para além organizações permite identificar três imperativos de memória de ser vista somente como um estoque de informações, a (WALSH, UNGSON 1991). memória organizacional envolve a movimentação do conhec- Segundo Walsh e Ungson (1991), os imperativos de imento dos trabalhadores, por meio da ação de compartilha- memória organizacional são: aquisição, retenção e recuper- mento das informações e conhecimentos (MARCHI; BORGES, ação, os quais são descritos a seguir: (i) a aquisição da 2017). informação refere-se aos processos internos de uma organ- Portanto, fica clara a importância da valorização da ização que fomentam à aquisição, armazenamento e recu- memória organizacional, a qual pode beneficiar os empreen- peração das informações; (ii) a retenção da informação dimentos de economia solidária, tópico apresentado a seguir. refere-se aos locais (físicos, digitais ou outros) da memória organizacional, ou seja, à estrutura de retenção (iii) a re- Economia solidária cuperação da informação refere-se à compreensão dos caminhos que a informação percorre quando da necessidade A economia solidária iniciou a partir da necessidade de seu uso e que poderá influenciar nos resultados e no de- de trabalhadores que ficaram desempregados e não con- sempenho da organização para depois recuperá-la. seguiram voltar ao mercado de trabalho e aqueles que de- Rowlinson et al. (2010) mantém uma crítica ao en- senvolveram uma atividade na informalidade. Isso aconteceu tendimento de Walsh e Ungson (1991, p. 75) pelo fato de em decorrência das crises econômicas das últimas décadas ele embasar-se em uma visão gerencialista que entende a que afetaram a economia das sociedades menos favorecidas. memória organizacional como um “processo de recuperação (LEITE, 2009). de informação que pode auxiliar a tomada de decisão” e não Ao falarmos de economia solidária no Brasil, Paul Singer procura entender o “significado da memória para os membros (1936-2018) foi o primeiro difusor de ideias e filosofia sobre da organização”. Rowlinson et al. (2010), entendem que é este tema. Ele foi Titular da Secretaria Nacional da Economia Solidária essa Secretaria foi criada no governo Luiz Inácio Lula

181 da Silva no ano de 2003 e passou a funcionar já no primeiro A economia solidária pode acontecer em um circuito semestre, permanecendo ativa durante 13 anos. fechado em que o objetivo é aproximar os produtores e con- Para ele, o processo distinto de produção, distribuição e sumidores, estabelecendo uma ligação em que o consumidor consumo é uma maneira de organizar as atividades econômi- sabe quem produz a sua comida e ao produtor é dada a possi- cas, recebendo assim o nome de economia solidária. A carac- bilidade de ouvir críticas, elogios e opiniões. Podemos eviden- terística marcante na economia solidária é que não existem ciar estas situações nas feiras de ES. (SINGER, 2011). as figuras do patrão e empregado, pois todos são donos e ad- A economia solidária também pode ocorrer em larga ministram em conjunto o empreendimento. (SINGER, 2011). escala. Há certa dificuldade em estabelecer a certificação dos O termo ‘cooperativa’ é uma forma clássica de economia produtos, que pode ser validado como justo e ecologicamente solidária a qual já existe há mais de 200 anos. No Brasil, ex- correto, gerando assim os selos verdes e vermelhos (SINGER, istem muitas barreiras que dificultam o registro de cooper- 2011) coerentes com a ES. ativas por pessoas menos favorecidas. Um percentual muito No Brasil há uma rede de economia solidária chamada pequeno consegue registro, pois o restante se dilui em asso- Ecovida (com sede no Rio Grande do Sul) a qual pratica um ciações e cooperativas informais. (SINGER, 2011). sistema de certificação participativa. Nesse sistema os dif- Paul Singer em seu o livro “Sem Patrão: Fábricas e Em- erentes empreendimentos se certificam mutuamente. A presas Recuperadas por seus Trabalhadores”, aborda a crise certificação da agroecologia se faz através da colaboração econômica argentina de 2001 sobre o viés da ES. Para ele, mútua entre agricultores. Neste tipo de certificação, não há relacionar essa experiência com as do Brasil não procede, pois tecnologia pré-definida (sem insumos químicos) onde a a economia solidária no Brasil remonta aos anos 1980. Além natureza, animais e outras plantas são utilizados para pro- disso, o pioneiro dessa atividade cooperativa foi o continente teger as plantas que irão ser cultivadas. Nada mais é do que Europeu na Inglaterra, no século XIX na experiência do mov- a produção orgânica para cada microclima específico. Para a imento em que os mineiros adquiriram as minas de carvão agroecologia, a conversa entre os trabalhadores é importante, para evitar seu fechamento. (SINGER, 2011). pois é onde ocorre a troca de experiências e conhecimentos. No que se refere ao comércio justo, Paul Singer explica (SINGER, 2011). que foi uma iniciativa de um empresário holandês para ajudar A economia solidária atua nos seguintes setores da financeiramente as pessoas mais pobres do terceiro mun- economia: agricultura, agricultura familiar, pequenas pro- do por parte de europeus e americanos. No Brasil o sistema priedades e cooperativas. É uma questão de sobrevivência nacional de comércio justo, vigorou por um decreto assinado para os trabalhadores se associarem em cooperativas para pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva . O decreto núme- combater o oligopólio dos que tem que comprar insumos e ro 7.358 de 17 de novembro de 2010 visava não cobrar o o oligopólio dos que vão industrializar o produto produzido preço de mercado, mas sim o preço justo beneficiando tanto o por eles. A economia solidária também tem representantes produtor como o consumidor. (SINGER, 2011). nos setores como os extrativistas, as quebradeiras de coco, As cadeias produtivas são formadas por cooperativas de garimpeiros, pescadores artesanais, seringueiros, artesanato: ES. A Justa Trama é um exemplo de cooperativa, formada por costura, cozinheiras, alimentos e brinquedos. (SINGER, 2011). produtores e cooperativas espalhadas por quatro regiões do Brasil. Uma cooperativa de economia solidária do Ceará pro- O CONTEXTO DAS ITCPS duz algodão orgânico. Outras cooperativas produzem fio e tecido, como as costureiras em Minas Gerais, bem como nos As ITCPs foram criadas em 1999. O cooperativismo e a estados do sul e sudeste são produzidas bijuterias roupas, autogestão foram os objetivos propostos para a propagação bolsas e calçados. Os produtos produzidos são vendidos para a das ITCPs e o desenvolvimento da ES. Foram várias ITCPs, ger- cadeia inteira com o objetivo de que todos os estados envolvi- almente construídas em universidades, gerando a Rede de dos usufruam do mesmo benefício. (SINGER, 2011). ITCPs. O produto da rede é a transferência de tecnologias soci- ais e de conhecimento nas incubadoras. (BORGES et al., 2014).

182 Outra linha da economia solidária pode ser vista no pro- mento, estabelecendo vínculos e assim conseguindo cumprir cesso de criação de uma incubadora. Ela visa fomentar ações com as suas funções. (GAIGER, 2011). para o desenvolvimento e sugestões que viabilizem o pleno Na economia solidária, as ITCPs visam atuar da seguinte desenvolvimento dos coletivos atendidos (FRANÇA FILHO; maneira: a) tirar da informalidade e capacitar os associados CUNHA, 2009). As ações de uma incubadora não se limitam só possibilitando uma renda; b) buscar nas políticas públicas em empreender no campo da ES, atuam na esfera pública das trabalho e renda; c) por meio de redes organizacionais reor- relações sociais, articulação das políticas públicas, no coletivo ganizar as ITCPs. (FRANÇA FILHO; CUNHA, 2009). e educação para a auto-gestão dos seus membros, produção e comercialização do que é produzido. PERCURSO METODOLÓGICO O papel da ITCP tem importância vital para os coletivos, pois visa capacitar o cooperado, legalizar o empreendimento, A metodologia utilizada nesta pesquisa é do tipo qual- gerar trabalho e renda através das políticas públicas, além itativa. Para Minayo (2002) uma pesquisa qualitativa é disso fomentar a responsabilidade ambiental. (FRANÇA FIL- direcionada para as ciências sociais, na qual o sujeito irá re- HO; CUNHA, 2009). sponder questões mais particulares englobando suas crenças, No ano de 2003, buscando a redução das aspirações, valores. Sendo assim não podendo ser quantifica- desigualdades, o governo brasileiro lançou programas para o da e sim apreciada. desenvolvimento social, há por todo o país uma proliferação Foi realizado um estudo de caso, uma vez que ele irá pos- de ações. Para Gaiger (2003), a economia solidária apresenta sibilitar a compreensão dos fenômenos individuais, organiza- um novo fator para a economia tradicional, gerando ganhos cionais, sociais e políticos, tornando-se dessa maneira uma por meio da cooperação e gestão nos meios sociais, urbanos ferramenta para as áreas de psicologia, sociologia, ciências e rurais especialmente para aqueles que estão à margem do políticas, administração, trabalho social, planejamento entre trabalho formal. outras (YIN, 2001, 2003). Sendo assim busca abordar a tra- Ao assumir a Presidência da República no ano de 2003, jetória da ITCP e de seus empreendimentos. De acordo Luís Inácio Lula da Silva, foi o primeiro operário a fazer tal com Yin (2003) as entrevistas podem aparecer de diversas for- façanha. Ele implantou interesses de cunho social e econôm- mas e nós devemos saber usá-las com cada tipo de pesquisa. ico com mudanças que impactaram na melhoria de vida da Uma das técnicas de pesquisa deste projeto será a entrevista população brasileira. Ações como o controle de inflação, o semiestruturada. A entrevista semiestruturada deve ser con- crescimento econômico, o aumento do salário mínimo e a duzida de uma maneira mais espontânea, na qual permite criação de projetos com foco na diminuição da pobreza e entrevistado e entrevistador trocar informações e dialogar miséria, tais como Fome Zero, Bolsa Família, Universidade sobre o tema de uma maneira mais simples. Permite assim ao para Todos (PROUNI), visavam a melhoria na qualidade de entrevistado relatar a sua opinião e até mesmo trazer novas vida e inserir o pobre na sociedade (SITE PRESIDENTES DO informações sobre o assunto. (YIN 2003). Devido à experiên- BRASIL). cia e contato com a ITCP o coordenador da ITCP, Sr. Gilmar Um viés importante para combater a desigualdade e Gomes é considerado um informante-chave desta pesquisa, a pobreza foi a criação da Secretaria Nacional de Economia também devido à abertura para a realização desta. As entre- Solidária que permaneceu ativa por 13 anos, tendo Paul Sing- vistas foram gravadas e depois transcritas integralmente. As er a frente desta secretaria como o seu maior membro atuante entrevistas gravadas com consentimento prévio e assinatura e propagador das ideias sobre economia solidária (Rede Brasil do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Atual, 2016). O uso de documentos como fontes de dados (YIN, 2001), Uma possível geração de renda e interação econômica especialmente quando se trabalha a memória organizacional vem pela ação da economia solidária. A reciprocidade é um é vital, porque são evidências que auxiliam no estudo de caso, elemento determinante entre os membros do empreendi- usando como base os documentos e os registros em arquivos. Porém as evidências apresentam pontos fortes e fracos. Tanto os documentos e os registros em arquivos podem ser revisa- 183 dos inúmeras vezes, também oferecem uma ampla cobertura cional são analisados, partindo-se das evidências apresenta- de tempo, eventos e ambientes distintos. Os pontos fracos dos das no item anterior. mesmos podem ser a baixa capacidade de recuperação, ten- dencioso se a coleta não estiver completa, ainda pode apre- TCP X TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DO SR. GILMAR sentar uma visão pré-concebida do autor e ser tendenciosa, O desenvolvimento da ITCP da UFRGS começou por último o acesso pode ser negado (YIN, 2001). Foi realizada em 2001 por meio de pequenas ações voltadas à organização uma análise documental da ITCP. Após contatos iniciais, este de projetos sociais que buscavam a melhoria das condições de pesquisador recebeu autorização para investigar os arquivos vida de grupos em situação de desigualdade sócio econômi- da ITCP, inclusive com autorização para entrar na sala da Incu- ca. Ao procurar informações, artigos, dissertações e outros badora a fim de fazer esta pesquisa. trabalhos sobre a ITCP da UFRGS no ambiente da rede de Portanto, os dados deste estudo fundamentam-se a par- computadores (internet), muito poucas informações foram tir da documentação, e das entrevistas realizadas no local da encontradas. ITCP na UFRGS, bem como observações não participantes de Ao buscar sistematizar a trajetória da ITCP em reuniões realizadas. Quanto às observações não participante, tela, observa-se que ela não pode ser desvinculada da tra- uma vez que elas “tratam de acontecimentos em tempo real jetória profissional do Sr. Gilmar Gomes, técnico administra- contextuais, ou seja, do contexto do evento” estudado, sem tivo da UFRGS, que é coordenador da ITCP, a sua pessoa de a interferência do pesquisador (YIN, 2001, p.108), as quais referência e que está próximo da aposentadoria. O envolvi- forma sistematizadas em formato de caderno de campo, onde mento com a ITCP fica evidente em suas palavras: são registradas as visitas realizadas. Foram realizadas entrevistas com o coordenador da ITCP “a gente entrou aqui garoto pra trabalhar na da UFRGS, bem como professores, técnicos da ITCP e também UFRGS, envolvido com sindicato, com Edu- alguns trabalhadores das cooperativas e associações que fo- cação de Jovens e Adultos, hã... depois com ram incubadas pela ITCP da UFRGS, conforme a indicação do projetos, hã... de extensão comunitários, coordenador. Ressalta-se que os dados principais que foram ajudar a construir associação de moradores, as lutas das comunidades. Até que a gente analisados são os documentos, seguidos em grau de im- chegou na economia solidária” (ENTREVIS- portância das entrevistas e por fim das observações, os quais TADO GILMAR, 2017). são analisados de maneira triangulada seguindo os preceitos da análise de conteúdo (BARDIN,2010; MINAYO, 2002). Se- Percebe-se que antes de começar a trabalhar com econo- gundo Minayo (2002) a análise de conteúdo pode ser dividida mia solidária, que ocorreu em 2000, o Sr. Gilmar apresentava em duas etapas sendo a primeira encontrar as respostas para uma trajetória de engajamento com as causas sociais. Ele as hipóteses formuladas, confirmando ou descartando as afir- também relata que o interesse pelo trabalho com econo- mações feitas no início da investigação. Na segunda etapa, mia solidária estava centrado em técnicos administrativos e refere-se a questões ocultas referente ao projeto, indo além que não foi fácil conseguir o engajamento de professores. A do que está sendo mostrado. própria visão sobre os técnicos administrativos tem se modifi- ANÁLISE DOS DADOS cado, como aparecem nas palavras: “Hoje, até o pessoal avançou bastante, em A análise dos dados é dividida em duas sub- relação aos técnicos. Eu coordeno projeto de seções. Inicialmente é apresentada a trajetória da ITCP, extensão, naquela época, não se coordena- porém diante da falta de uma sistematização dos 13 anos da va extensão. Mas, assim, tem outros limites trajetória da incubadora, observou-se que a trajetória profis- que até hoje existem. Por exemplo: eu não sional do Sr. Gilmar em muito mostra evidências que podem posso coordenar um projeto de pesquisa”. indicar caminhos para a construção daquela. Em um segundo (ENTREVISTADO GILMAR, 2017). momento desta análise, elementos da memória organiza-

184 Com o andamento do trabalho com economia solidária que eram trazidos pela UNISOL, que era e com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão, a “incubadora de uma outra entidade, que não incuba, mas técnicos com alunos” (GILMAR, 2017) foi se consolidando. Em que já tinha seus [trecho incompreensível], 2004, com a mudança da reitoria foram criados vários núcle- já chegaram meio prontos. Informais, mas os de extensão. A incubadora passou a integrar o Núcleo de meio prontos e a gente foi, hã, acompa- Economia Popular Solidária, atual NEA (Núcleo de Economia nhando esses grupos. E esses grupos tavam Alternativa) que foi radicado na Faculdade de Economia. “Até na base da origem do projeto Contraponto, hoje a gente é um núcleo, também, entendeu? É um negócio que é isso mesmo. A gente queria que ele fosse mais cultural, inclusive, que a comer- meio misturado, assim, é um núcleo, é uma incubadora” (GIL- cialização fosse uma das facetas. Mas, bem, MAR, 2017). O entrevistado toca em uma questão que remete ele tá respirando. Hoje ele tem uma gestão, aos aspectos identitários da ITCP, porque há um estranhamen- aqui, que [é] muito engajada, muito envol- to em relação à ITCP e ao NEA, havendo uma ambivalência vida com a economia solidária, tal. E que se presente em sites e blogs. Veja-se o site, considerado oficial, criam coisas, né. A feira começou com a cria- 77 mostra-se como NEA/ITCP , podendo estar indicando certa ção da incubadora, né. Não o formato dela, ambivalência que se remete à própria identidade daquela in- mas a possibilidade dela se integrar aqui e cubadora. Para Rowlinson et al. (2010) é importante verificar tal. Tanto que as comidinhas vêm, parte dos como as organizações se lembram e entender como o senso alimentos vem da feira, é uma coisa bacana” de identidade foi sendo construído com o passar do tempo. (ENTREVISTADO GILMAR, 2017). Nesse sentido, há evidências de que o senso de identidade da ITCP ainda mostra sinais de certa confusão em relação ao NEA. Nesse momento da entrevista Gilmar fala com certo or- Foi na Faculdade de Economia que o professor Schmitt gulho da loja Contraponto78 como um pai fala de um filho, a (comumente denominado de Ximitão) deu apoio à equipe da respeito da Loja. Esse orgulho pode ser verificado na própria Incubadora como professor pesquisador, descrição do empreendimento na página oficial da UFRGS: “[ele] me dava um respaldo [...]. Tipo assim, “O Contraponto – Entreposto de Cultura, ele cuidava das coisas do núcleo, Núcleo de Saúde e Saber é um espaço de comerciali- Economia Alternativa. ele propunha que a zação solidária, situado no Campus Central economia solidária seria uma das alternati- da UFRGS. Oferece produtos nos segmentos vas, mas teriam outras. [...] Mas, aí, o Schi- alimentação, privilegiando orgânicos e inte- mitt dava essa cobertura e eu tocava, assim. grais, artesanato e confecção.” (SITE DO NEA/ A gente começou devagarinho. Chegou em ITCP, 2018). 2004, 2005, já pintou a possibilidade de ingressar no PRONINC, né. E a gente bolou O documento digital mostra que a Contraponto não quer a ideia dessa loja [Contraponto]. (ENTREVIS- ser designada como uma loja, mas um entreposto de cultura, TADO GILMAR, 2017). saúde e saber, bem como ela é resultado de um forte trabalho interdisciplinar: O projeto da loja Contraponto, um espaço construído sob os preceitos do respeito ao meio ambiente bem no centro do [A Contraponto] surgiu a partir da demanda Campus Centro da UFRGS, o qual é considerado ‘a menina dos de comercializar os produtos de empreendi- mentos de economia solidária acompanha- olhos’ da ITCP e do NEA. Gilmar explica um pouco mais como dos pelo NEA/ITCP. Instiga reflexões sobre os ocorreu seu início. padrões de produção, circulação e aquisição, Foi uma sacação nossa, assim, né. Poxa, proporcionando novas formas de interação a gente acompanhava alguns grupos, hã, entre trabalhadores e consumidores no

77 https://neaufrgs.wordpress.com 78 https://www.ufrgs.br/neaitcp/contraponto/ 185 ambiente acadêmico. Visando à sustentabi- tematização da trajetória da ITCP. Esse aspecto aparece na fala lidade, a arquitetura do espaço – projetada do entrevistado: por arquitetos da UFRGS – foi concebida com a utilização de materiais e tecnologias O que faltou nesses, sei lá, 13 anos [...] al- sustentáveis, seguindo os conceitos da bio- guém que desse suporte administrativo. construção e da arquitetura efêmera. Objeti- Então, assim, eu tenho lá computadores va difundir princípios e valores da economia lotados de coisas, mas que não têm a solidária, como cooperação, comércio justo, menor lógica, porque eu nunca consegui consumo responsável, segurança alimen- montar. [...] então, assim, é, eu tenho esse tar, sustentabilidade e respeito ao trabalho problema. Nós não temos uma memória humano. É gerido coletivamente por repre- sistematizada... (ENTREVISTADO GILMAR, sentantes dos doze empreendimentos que 2017). integram o projeto e por membros do NEA/ ITCP. (SITE DO NEA/ITCP, 2018). Este trecho mostra uma percepção do entrevistado sobre a existência de várias informações, mas que não estão sistem- Apesar de todo o envolvimento da ITCP na época da atizadas e que acabam não fazendo sentido, porém o mesmo criação e construção da Contraponto, bem como de out- percebe a importância do trabalho sobre a memória, tal como ros projetos (anos 2005 a 2010), o técnico demonstra certo aparece na sua fala: “a gente, exatamente, ia tentar fazer um sentimento de solidão. “Mas, então, da incubação, eu fiquei tipo de trabalho, fazer uma memória da incubadora. Começar meio só. Eu sou o único funcionário...”. Além do sentimento de a catar, lá, as coisas”, referindo-se às demandas de pesquisa solidão em si, o técnico se ressente de não ter sistematizado deste trabalho e convida o entrevistador (primeiro autor deste a trajetória de tanto trabalho. Nesse sentido, ele questiona artigo) a garimpar as informações. sobre suas habilidades em termos de organização e registro. Nos primeiros momentos, a gente vai junto, Talvez eu também tenha de admitir tam- nessa garimpagem. Eu tenho certeza que bém, que não é meu perfil. Antes de eu nós vamos sair ganhando, porque nós va- trabalhar com extensão [...] nunca trabalhei mos enxergar coisas que eu não faria se eu necessariamente na burocracia. Mas eu lem- tivesse essa demanda, entendeu? E aquilo bro, aqui, onde eu fiquei dez anos aqui nessa que nós planejamos lá, que não deu certo, faculdade, tinha uma chefe minha, aquela que faltou bolsista, que é pra tentar fazer artista: [...] “Mas, Gilmar, tu não tem jeito uma memória sistematizada, pode ser que pra esse negócio administrativo. Tu não acha seja aí o caminho, né? (ENTREVISTADO GIL- nada no teu arquivo, tu é muito bagunçado, MAR, 2017). entendeu? Tu tem que fazer extensão”. Aí ela me botou no Vídeo [...] e me achei. Depois MEMÓRIA ORGANIZACIONAL NA ITCP fui acabar na extensão. (ENTREVISTADO Se memória organizacional pode ser entendida como o GILMAR, 2017). ato de evocação da recordação social (ROWLINSON, 2009; TE- DESCO, 2002) percebe-se que a trajetória do entrevistado Sr. Neste trecho da entrevista, aparecem aspectos de estilos, Gilmar e suas ações de criação, estruturação e resultados da pois para o entrevistado (e quem sabe para sua ex-chefe) per- ITCP, juntamente com outros professores, técnicos e bolsistas fis que tem sucesso na extensão não são bons organizadores, podem servir como norteadores de uma análise deste tipo de sistematizadores e quem sabe compiladores. Para além de memória. uma generalização de perfis, observa-se que este estilo do Muitas lembranças foram compartilhadas entre os entrevistado, além do fato de sua queixa de certa solidão na membros que fizeram parte em algum momento nos 13 anos Incubadora, pode ter ocasionado uma falta de registro e sis- da ITCP, os quais contribuíram para a construção dos acontec-

186 imentos vividos (ROWLINSON, 2009; TEDESCO, 2002). Ocorre rotulada apenas como um conjunto de informações ou mes- que, para que a memória organizacional possa cumprir seu mo como um reservatório de saberes que serve apenas para papel de fomentar a continuação e sucesso de organizações, consultas. A organização existe devido às ações colaborativas ela precisa ter possibilidade de ser retida e depois recuperada, das pessoas que se comprometeram com metas e processos. como argumentam Walsh e Ungson (1991). Desta maneira o conhecimento dos trabalhadores é decisivo Diante do que foi apresentado na seção anterior, ob- para a cultura e aprendizagens organizacionais (MARCHI, serva-se que os processos internos da ITCP que se referiram BORGES, 2017). à aquisição das informações e dos conhecimentos ocorreram E mais, o artigo mostra que, mesmo diante de contextos durante 13 anos, porém no aspecto de armazenamento, onde em que há falta de organização dos dados e informações, mas se pode incluir os elementos de conhecimento também, hou- quando há um desejo e uma valorização da memória, a busca veram falhas, uma vez que existem anotações, cadernos es- por uma (re)construção é válida e louvável e inclusive anima parsos, fichas, pastas e documentos digitais extraviados e de- aos pesquisadores para sistematizarem as informações pos- sordenados ou mesmo perdidos que constituem atualmente síveis a fim de buscar criar um sentido, juntamente com os as informações que se tem disponíveis para a sistematização pesquisados, de tais memórias. Essa acaba sendo um papel da trajetória da ITCP e que poderá ser organizada de maneira vital da academia para com o campo empírico. que faça sentido para a sua memória organizacional. Assim sendo, os locais físicos e digitais em que as infor- mações podem ser acessadas, da maneira como se encon- ORGANIZATION MEMORY IN A TECHNOLOGICAL tram, apresentam dificuldade para a retenção e recuperação INCUBADOR OF POPULAR COOPERATIVES da memória organizacional (WALSH; UNGSON, 1991). Por outro lado, o grande interesse do entrevistado em Abstract sistematizar a trajetória da ITCP, a qual significa com uma This article aims to analyze how organizational memory parte importante da sua vida profissional, bem como um emerged in an incubator of popular cooperatives (ITCP) from interesse institucional da UFRGS, mostra que a memória rep- 2001 to 2016. The ITCP in question began at the Federal Uni- resenta um significado importante para os participantes da versity of Rio Grande do Sul (UFRGS) in 2001, but started to ITCP, o que é essencial, mesmo diante de informações soltas, work with research and extension projects in 2003. By 2018 para poder fazer sentido do senso de identidade organiza- it had accumulated approximately 10 projects. Rowlinson et cional (ROWLINSON et al., 2010) da própria ITCP. al. (2010) argue that it is important to seek, learn, and un- derstand why the past is relevant for the construction of an CONSIDERAÇÕES FINAIS organization’s present and future. Its members will build and guide the organization’s identity and its organizational mem- O objetivo deste artigo foi o de analisar como a memória ory (MARCHI; BORGES, 2017). Qualitative research was carried organizacional emerge no contexto de uma incubadora de out through observations, interviews, as well analysis of doc- cooperativas populares (ITCP) especialmente no período de uments. It was then systematized through Content Analysis 2001 a 2010. Os resultados das análises mostram que não (BARDIN, 2010). Yet, the results of the document analysis houve uma preocupação por parte da organização pesquisada indicated that the organization was not interested in organ- em organizar suas informações, pois existem registros formais izing its information, but there were systematized and unor- que podem contribuir na reconstrução de sua memória or- ganized formal records that could be used to contribute to the ganizacional, porém não estão sistematizados e nem mesmo reconstruction of its organizational memory. In addition, the organizados. contributions of its members can be valuable sources, serving Além disso, as contribuições de seus integrantes podem as a valuable guide, since organizational memory should not ser fontes valiosas, servindo como um norte para esta con- be labeled as only a set of information or even as a reservoir strução, uma vez que a memória organizacional não deve ser of knowledge only for consultations. The organization exists

187 because of the collaborative actions of people who have da mobilização e organização social do Conjunto Palmei- committed themselves to goals and processes. Thus, workers’ ra. Administração Pública e Gestão Social, v. 8, n. 4, knowledge is decisive for culture and organizational learning p.235 – 246, out.-dez. 2016. Disponível em: . and systematizing information was done to make its organ- izational memory alive and able to foster better decisions in ROWLINSON, Michael et.al. Social Remembering and the future (WALSH; UNGSON, 1991). Organizational Memory. Organizational Studies, v. 31, n. 1, p. 69-87, 2009. Key words: Organizational memory; solidarity economy; ITCP SCHOLZ, R. H., ROSA, G. F., BORGES, M. L., Estratégia como prática e aprendizagem na interação dos sujeitos recicladores REFERÊNCIAS resultados da incubadora de empreendimentos solidários do centro universitário La Salle, Canoas, RS. Rev. Adm. UFSM, FRANÇA FILHO, Genauto C. ; LAVILLE, Jean-Louis. A Santa Maria, v. 7, edição especial, p.141-160, nov., 2014. Economia Solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre: UFRGS, 2004. Disponível em http://www.jean- SCHOLZ, R. H., ROSA, G. F., BORGES, M. L., Estratégia louislaville.fr/wp-content/uploads/2014/07/Economia-soli- como prática e aprendizagem na interação dos sujeitos re- daria.pdf. cicladores resultados da incubadora de empreendimentos solidários do centro universitário La Salle, Canoas, RS. Revis- GAIGER, LUIZ INÁCIO. A economia solidária e a revital- ta de Administração da UFSM, Santa Maria, v. 7, edição ização do paradigma cooperativo. Revista Brasileira de especial, p.141-160, nov., 2014. Ciências Sociais. [Online], v. 28, n. 82, p. 211-228, 2013. Disponível em: .. TV Senado. 2011. Youtube. Disponível em: < https://www. youtube.com/watch?v=Wt4PjlDFUtU> LEITE, M. P. A economia solidária e o trabalho associativo: teorias e realidades. RBCS: Revista Brasileira de Ciências Soci- WALSH, J.P.; UNGSON, G.R.. Organizational Memory. The ais, v. 24, n. 69, p. 31-51, fev./2009. Academy of Management Review, v. 23, n. 4, 1991. MARCHI, A. S. ; BORGES, M. L. . Memória, cultura e YIN. Robert K, Estudo de caso: planejamento e aprendizagem organizacional: mudar para que?. In: BORGES, métodos. Porto Alegre tradução Daniel Grassi 2ª. Edição ed- M.L.; TELLES, T.C.K.. (Org.). Memória e Gestão Cultural: itora Bookman. 2001. aspectos conceituais, competências e casos práticos. 1ed. Canoas: Unilasalle, 2017, v. 1, p. 123-144. Obs.: Agradecemos ao CNPq pelo apoio. MINAYO, M. C. S. . Pesquisa social teoria método e criatividade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.

PRESIDENTES do BRASIL. [20--]. Disponível em: .

RIGO, A.S; LIMA, B.C.C; SANTOS, M.E.P. Memória or- ganizacional e construção de identidade local: uma análise

188 MEMÓRIAS, PROFISSIONALISMO, RECONHECIMENTO: UNIVERSIDADES EM DANÇA - O CASO DA UFRJ

Isabela Maria A. G. Buarque - UFRJ81

RESUMO Estudar a profissionalização da dança cênica a partir das prerrogativas de memória é importante para o entendimento das configurações deste campo, pois amplia visões e estabe- lece diálogos com vistas a fomentar discursos e saídas para os principais desdobramentos encontrados.A implementação de uma graduação em dança em uma universidade pública, federal, pode representar um importante reconhecimento do campo profissional. O objetivo central desta comunicação é investigar o estabelecimento do curso de Bacharelado em Dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisan- do seus discursos para construção do campo profissional em dança, buscando as permanências e inovações, entendendo esta institucionalização como um Lugar de Memória (Nora, 1993). Os cursos universitários em dança, no Brasil, podem ser considerados muito recentes. A maioria dos cursos de graduação nasce na segunda metade da década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI. A UFRJ foi a primeira uni- versidade pública no Rio de Janeiro a oferecer uma graduação em dança. Entendemos que este pioneirismo é um Lugar im- portante para a memória histórica do campo, já que a criação de cursos de graduação em dança fortaleceria a formação e, consequentemente, o campo, de acordo com os atores soci- ais, pois ofereceriam os instrumentos necessários à formação do profissional que atuará futuramente no campo. Por isso, a criação das graduações foi algo muito importante para a implementação efetiva de um campo profissional em dança. As graduações em dança abriram o mercado acadêmico para alguns profissionais, configurando mais uma forma de atuar no campo. Contribuem também na qualidade da formação dos futuros profissionais que atuarão na dança cênica. Essas ações refletem a importância dos cursos de dança da UFRJ para a ampliação, o fortalecimento e a legitimação do campo profissional da dança.

Palavras - Chave: Memória; Profissionalis- mo; Dança

189 INTRODUÇÃO um campo recente, onde não há muitos registros e fontes que possibilitem estudar os pioneirismos. Pode-se dizer que, no Brasil, a dança ocupa espaço no Cabe ressaltar aqui que entendemos por profissional- cotidiano dos indivíduos: dança-se em festas, comemorações, ização a possibilidade de se estabelecer um processo de for- reuniões sociais. Este pode ser um importante ponto de par- mação continuada a fim de gerar a melhoria e o refinamento tida para iniciarmos as discussões acerca das tensões encon- das ações e práticas, onde o profissional atua na área gerando tradas quando pensamos a legitimação do campo profissional seu sustento. De acordo com Angelin (2010), a profissional- em dança. Quando afirmo que a dança está próxima do cotidi- izarão é uma marca de distinção nas sociedades modernas ano dos indivíduos, podemos pensar que de alguma forma a ocidentais. Algumas das principais teorias sociais sobre a população não especialista em arte ou em dança, se encontra profissionalização apontam sobre a importância de haver com as danças populares79, sejam elas tradicionais, folclóricas especificidades e atributos necessários a uma atividade para ou contemporâneas em diversas ocasiões sociais e festivas. que este fazer se torne profissional. Nesse caso, as festas e comemorações estão impregnadas de Se há uma dificuldade em conhecer, observar e problem- sentidos e significados. Destro deste ponto de vista, pode-se atizar os caminhos da dança profissional no Brasil, as memóri- dizer que, sim, a dança tornou-se linguagem conhecida. as podem contar as histórias e as trajetórias percorridas e as- Quando pensamos essa mesma relação no que diz respei- sim o conceito de “lugar de memória”, criado pelo historiador to ao reconhecimento dos profissionais que trabalham neste francês Pierre Nora82 na década de 1980, nos auxilia na busca campo, o vinculo é praticamente inverso. Há um grande est- de estratégias para elegermos quais seriam e onde estariam ranhamento sobre a Dança enquanto um campo profissional, esses lugares de memória na dança. Nora define estes lugares passível de atuação em diversos espaços. É possível sustentar da seguinte maneira: um espaço fechado em sua identidade, esta afirmação na medida em que verificamos que há falta de mas também aberto a outras significações que surjam em sua políticas públicas e de apoios para a criação, manutenção e extensão; não são necessariamente físicos e podemos dizer circulação de obras, bem como pouquíssima transmissão de que são locais nos quais a memória de acontecimentos, ações, espetáculos e performances em grandes veículos de comuni- ou seja, de um tempo específico se encontra, onde se concen- cação de massa, como a televisão80, por exemplo, já que não tra algo simbólico, identitário. se encontra grande público consumidor. Podemos também Cabe salientar que a noção de campo estabelecida nesta sustentar essa ideia observando os discursos81 acerca da escol- pesquisa está em diálogo com o conceito elaborado por Pierre ha da Dança como profissão, bem como o grande desconhe- Bourdieu83, bem como a utilização do termo poder simbóli- cimento sobre a existência de cursos de graduação em dança nas universidades públicas e privadas no Brasil. Mas mesmo diante deste cenário, a profissionalização 82 Nora pertence a chamada Nova História, tendo feito parte da terceira geração da Escola do Annalles. Nora problematiza as relações em dança vem passando por um importante processo de le- entre história e memória e para ele a história sozinha não faz sentido. gitimação. Entender o desenvolvimento da profissionalização É a memória que vai dar sentido à sociedade histórica: “a memória do campo da dança a partir dos discursos internos (isto é, se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A através das memórias dos artistas, pesquisadores, professores história só se liga a continuidades temporais, às evoluções, e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história o relativo” (1993, p. 9). e produtores) é extremamente importante, em função de ser Alguns estudos apontam para Nora como um teórico pessimista, pois ao problematizar a sociedade, que é fragmentada, fala em desaparecimen- to de memórias e diz que a história sozinha não dá conta dos objetos. 79 Entendemos aqui dança popular como manifestação dançada na qual De alguma maneira, penso que suas análises não são por si pessimistas, o povo faz participações ativas. Essas manifestações surgem a partir dos mas o autor tenta dar conta do espírito de uma época confusa, segmen- costumes e ideologias do próprio povo. tada. Com isso, pode-se dizer que Nora é nostálgico. 80 Em canais abertos há muito pouca divulgação para a dança cênica. 83 O autor desenvolveu muitos trabalhos que se ligaram à antropologia, Em canais fechados, ou seja, pagos, há programas que falam de arte e filosofia e sociologia e trouxe várias contribuições, dentre estas, alguns transmitem dança, o que já pode ser considerado uma distinção. conceitos que ainda hoje são importantes e dão conta de problemas e 81 Mais à frente serão apontados exemplos destes discursos comumente questões atuais. Seu conceito será problematizado e melhor relacionado encontrados. à dança no capítulo 1. 190 co. Para o autor, o campo representa um espaço simbólico, O objetivo central desta comunicação é investigar a con- no qual existem lutas internas e os agentes determinam strução do campo profissional em dança na cidade do Rio de posições, legitimam ideias e representações; na arte, esse Janeiro, a partir da implementação da graduação em dança poder determinaria simbolicamente o que é erudito ou pop- na Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisando os dis- ular, o que é da indústria cultural ou não. O poder simbóli- cursos dos atores, buscando permanências e inovações. A in- co, conforme Bourdieu (2003) apresenta, permeia todas as clusão da dança em uma graduação na UFRJ representa uma relações sociais e estabelece lutas, onde as classes envolvidas legitimação acadêmica e igualmente uma nova perspectiva buscam impor definições e o estabelecimento de regras, dis- de profissionalização e um novo campo de atuação. tinções e valores. Torna-se relevante ressaltar que esta pesquisa dedica-se A análise da memória também nos permite identificar o ao estudo da dança profissional “como um fenômeno result- potencial das histórias individuais e coletivas em diálogo com ante de uma rede de influencias e interferências” (Siqueira, Maurice Halbwachs (2006)84. A questão principal do autor 2006, p. 7), dialogando com diferentes áreas do conhecimen- consiste na tese de que a memória individual existe sempre to na tentativa de buscar referenciais teóricos para funda- a partir de uma memória coletiva e, assim, as lembranças mentação. Sendo a dança (e o corpo) objeto transdisciplinar são construídas no cerne de um grupo; não nega de forma é possível analisá-la dentro de premissas da memória, da veemente a memória individual, porém destaca a relação história, das ciências sociais. efetiva entre as lembranças e a coletividade. O campo da dança cênica tem uma história bastante rica, muitas tensões estabelecidas e conflitos de ordem diferenci- A história de uma nação pode ser entendida como a síntese dos fatos mais relevantes a ada, pois em função dos processos históricos sofridos é mais um conjunto de cidadãos, mas encontra-se valorizada em países europeus do que no Brasil, que a recebeu muito distante das percepções do indivíduo a com um grande anacronismo, se comparado a países como (HALBWACHS, 2006, p.84). França e Itália, por exemplo. A dança acompanha mudanças de paradigmas e des- (...) a lembrança é em larga medida uma ta maneira vai ampliando seu fazer; a cada mudança é reconstrução do passado com a ajuda de da- necessário que seja repensada, já que, como diz Denise Sique- dos emprestados do presente, e além disso, ira (2006), dançar significa tornar o corpo instrumento de preparada por outras reconstruções feitas demonstração de ideias e conceitos através de um determina- em épocas anteriores e de onde a imagem do código. A intenção é que a dança cênica seja pensada nesta de outrora manifestou-se já bem alterada pesquisa de acordo com as dinâmicas sociais estabelecidas ao (HALBWACHS, 2006, p.75). longo do tempo.

Esse pensamento seria coerente na medida em que os DESENVOLVIMENTO - PROFISSIONALISMO E AS UNI- indivíduos, necessariamente, frequentam grupos sociais, VERSIDADES EM DANÇA - O CASO DA UFRJ logo relacionam-se entre si. Vale ressaltar, porém, que esse relacionamento dos grupos obedece a dinâmicas e disputas, Em 1994 o curso de Bacharelado em Dança da UFRJ é não respeitando uma linearidade e Halbwachs pouco abordou criado, sendo a primeira graduação em Dança em universi- esta questão em seus estudos. dade pública na cidade do Rio de Janeiro. Este pioneirismo se deu em função da luta de alguns professores, especialmente de Helenita Sá Earp, professora Emérita e figura central para o 84 O sociólogo Maurice Halbwachs é considerado um dos precursores no estudo da Memória. Elaborou o que alguns estudiosos chamam de desenvolvimento da dança na UFRJ. Desde o início do século sociologia da memória coletiva e ainda hoje é estudado e discutido. XX buscou introduzir estudos em dança no ensino das univer- O autor deu uma grande contribuição para o campo no sentido de sidades brasileiras. pensar uma memória que tivesse um caráter coletivo. Dessa maneira o autor inaugurou uma nova categoria de pensamento, provocando um A história da dança na UFRJ inicia-se nos fins da década deslocamento nas abordagens da memória. de 1930, quando são inseridas nos cursos de Educação Física 191 as disciplinas Dança e Ginástica Rítmica. O trabalho da profes- A criação desses programas acadêmicos sora Helenita diferenciava-se em função de sua visão ampli- como centros de investigação fariam com ada sobre o corpo e suas potencialidades. Seus estudos eram que a dança crescesse e se consolidasse inovadores e relacionavam-se com tendências modernistas, o dentro da Universidade, sedimentando e que para a dança brasileira era uma novidade. consolidando os conteúdos ministrados nos O objetivo da professora na graduação em Educação Físi- programas existentes, promovendo um es- ca era, a princípio, criar coreografias de dança e apresentá-las paço constante de reflexão e crítica dentro em clubes, anfiteatros e ginásios, levando o nome da UFRJ. da UFRJ (p. 07). Naquele momento, já propunha inovações para a cena, para a forma de pensar e criar dança. Inicialmente enfrentou a falta Ou seja, as ações desenvolvidas pela professora Helenita de reconhecimento, mas com o tempo e a insistência na dança foram além da performance e promoveram o crescimento e moderna, foi conquistando espaços e tornando-se reconheci- legitimação da dança na UFRJ, criando e ocupando espaços da dentro da UFRJ. e estimulando a pesquisa, o aprofundamento na formação e A partir do momento em que a dança entra na univer- criação nos meios acadêmicos. De acordo com Mayer (2012): sidade observa-se a disputa dentro do mercado acadêmico; Os cursos de especialização e as atividades realizadas dentro de instituições como universidades, o espaço para a no grupo de dança se tornaram uma espécie de núcleo de cientificidade é premissa. A arte, em um olhar superficial, não excelência, sedimentando pesquisas sobre fundamentos do se configuraria neste espaço. Segundo Mayer (2012) movimento e obras artísticas de qualidade na área da dança (p. 07). Nesta época, o tempo destinado à pratica As suas maiores contribuições, contudo, não se referem da dança no currículo da educação física era somente à ampliação de espaço para a dança na UFRJ e ao pequeno e insuficiente para o pleno desen- processo de legitimação dentro do âmbito acadêmico. Além volvimento do profissional de dança. Assim, de romper barreiras e abrir caminhos para a dança transfor- com o objetivo de aprofundar a qualificação mou sua luta em ações concretas para a formação do baila- dos professores e dos coreógrafos, passou a rino / intérprete da dança que buscava um aprofundamento ministrar cursos de especialização lato sen- e profissionalização: criou da Teoria Fundamentos da Dança su e simultaneamente criou o Grupo Dança (TFD), antes chamada de Sistema Universal de Dança - SUD, (p.06). bem como o grupo de dança da UFRJ, que deu origem à at- ual Cia. de Dança Contemporânea da UFRJ. Essas iniciativas Desta forma, ao longo dos anos, surgem o Grupo de possibilitaram o encaminhamento para a criação da primeira Dança da UFRJ e também o primeiro curso de especialização graduação em dança em universidade pública na cidade do em dança. A este respeito Motta (2007) comenta: Rio de Janeiro: o Bacharelado em Dança. De acordo com Mota Restrita, inicialmente, ao âmbito da cadeira (2007): de Ginástica Rítmica, começa a necessitar de um espaço que dê suporte às investigações Há sessenta anos, a professora Helenita Sá e que possa fomentar o desenvolvimento Earp, na UFRJ, inicia uma pesquisa que se da pesquisa. Em 1943, é aberta, então, a constrói sob uma síntese interdisciplinar dos primeira Especialização em Dança e Coreo- aspectos do saber e fazer em dança; criando grafia dentro do Curso de Educação Física. a Teoria Fundamentos da Dança. Para que as pesquisas teóricas e práticas pu- dessem ser intensificadas e intercambiadas Apesar de desenvolver toda uma estrutura com a estrutura curricular da especialização lógica de ensino e criação para a dança, é criado, simultaneamente, a Cia. de Dança extremamente rica em minuciosidades e da UFRJ, que se transforma num polo de com um arcabouço profundo, nunca teve pesquisa. 192 seu conteúdo organizado numa publicação. ca rítmica, disciplina curricular do curso de Isso não significa que seu estudo veio se per- graduação em educação física, o desenvolvi- dendo ou enfraquecendo ao longo dos anos, mento de um persistente trabalho de ensino contrariamente, manteve-se vivo, dinâmico e pesquisa, fez com que a professora Hele- – abrindo, inclusive, o espaço para a criação nita, criasse as condições para que a dança de uma graduação em dança na UFRJ . se tornasse primeiramente uma disciplina autônoma (MAYER, 2012, p. 80). Tal processo de transmissão parte da pre- De acordo com as memórias e depoimentos, observa-se missa de que o conhecimento a ser divul- gado não se constitua como um conjunto que a Teoria Fundamentos da Dança foi uma importante cristalizado ou cristalizante de informações; criação para a formação profissional dos bailarinos, fator que mas de um conhecimento íntegro, que se fortaleceu o campo da dança profissional, pois possibilitou permita ser atualizado e dilatado, por meio ampliação dos processos de ensino, aprendizagem e criação de referenciais que atravessem essa dilata- a partir da dilatação do olhar sobre o corpo e suas relação ção, na medida em que são transmitidos/ com os parâmetros (Movimento/Espaço e Forma/ Dinâmica e vivenciados (p.08). Tempo). Embora não seja difundida amplamente, essa forma de trabalho é estudada e divulgada nos cursos de graduação Os estudos de Helenita constituem-se como caminhos a em dança da UFRJ. serem percorridos para o entendimento sobre o próprio corpo Os depoimentos dos atores sociais, nota-se que a teoria e o corpo do outro, observando potências e limites, dialogan- Fundamentos da Dança não extrapolou de maneira muito do com o ambiente e com outras linguagens do conhecimen- abrangente os muros da universidade em função de diversos to. A professora relacionou à dança estudos de matemática, motivos tais como: não organização de material teórico so- dialogou com princípios e preceitos filosóficos, se aproximou bre esta teoria; distanciamento físico (o campus que abriga de discursos de bailarinos modernos, como Rudolf Laban85, os cursos é geograficamente isolado, a ilha do Fundão, o que para tentar dar conta de organizar parâmetros de estudos faz com que a produção, especialmente no início do grupo de para que se ampliassem as formas de ensino e criação da dança, não circulasse muito pela cidade); dificuldade de pen- dança. O estudo do corpo é algo fundamental para que este etração nos meios de mercado, pois houve uma disputa e uma corpo em movimento se torne poético. certa separação entre quem estava atuando dentro e fora das universidades. Pode-se observar que houve, por parte do nú- Helenita buscou uma inter-relação de con- cleo de docentes e do corpo administrativo uma inabilidade teúdos com as ciências e a filosofia, de modo para dialogar com o campo de forma mais abrangente, pois que estas áreas de conhecimento forneces- sem subsídios para a instauração de novos buscava-se a conquista de espaços legítimos internamente, eixos de estudo e de compreensão da pró- para que posteriormente fosse possível romper barreiras e ul- pria dança, em suas especificidades, ressal- trapassar os muros da universidade. Este parece ser o momen- tadas por Liana Cardoso na citação abaixo, to em que este movimento aumenta. Os próprios atores do onde se pode igualmente relacionar ciência campo, inicialmente não entendiam (e muitos ainda não en- e dança através de parâmetros ligados à me- tendem) o porquê de uma formação universitária em dança: dicina, física e matemática. Não acho que alguém pode ensinar um adulto de 18, 19 anos a ser professor. Você Ainda que, no início de sua carreira, a dança não aprende nada, tem que ter uma base. estivesse encapsulada na cadeira de ginásti- Agora, dar uma idéia do que é a dança, uma ilustração, tudo bem. Dança moderna tam- 85 Bailarino, professor e coreógrafo, considerado um dos maiores bém requer estudo, tem gente que diz que a teóricos da dança no século XX. dança moderna qualquer um faz. Tem uma 193 base acadêmica moderna também, com vá- oral ou apoiada em material carente de um rios estilos: Martha Graham, Cunningham, tratamento mais cuidadoso (Depoimento). Limón… Todos professores muito impor- tantes que eram intérpretes de companhias Cabe salientar que em 2014 houve o lançamento do doc- e que depois tiveram seus alunos. Agora a umentário “Dançar”, vida e obra de Helenita Sá Earp, a partir dança, como aqui se chama dança contem- principalmente das investigações do professor André Mayer, porânea, pode se chamar dança no momen- docente nas graduações em dança na UFRJ, ex-integrante to em que a pessoa sabe dançar. Mas o que do grupo de dança e um dos coordenadores da Cia. de Dança se vê no palco são moças, senhoras, rapazes Contemporânea da UFRJ. “O filme é parte de um todo que não têm ideia do que é dança, em seu que pretende, segundo seus autores, suprir essa sentido estético, não sabem se movimentar. necessidade do campo” (Roberto, entrevista, 2014). O Klauss Vianna fez um comentário certa vez No documentário são mostrados depoimentos de artistas, e eu fui contra, achei que poderia ser mal in- terpretado. Ele disse que qualquer brasileiro alunos e professores que acompanharam a trajetória da pro- dança. Sim, é verdade… Mas não dança de fessora durante todo o percurso na UFRJ. Esforços têm sido uma maneira profissional, com qualidade feitos para dar visibilidade e este documentário dentro e fora cênica. De fato o brasileiro tem jeito pra do meio acadêmico. dança, alguns têm até talento, físicos alon- Contudo, ainda que hoje exista dificuldade em sistem- gados, lindos… Mas físico não basta, você atizar e divulgar a os fundamentos da dança apontados por tem que moldá-lo ( LESKOVA, entrevista, Helenita Sá Earp, cabe aos alunos e profissionais que frequen- 2010, idanca.net). taram seus cursos a divulgação do trabalho da professora. Os cursos de especialização, as disciplinas e o próprio grupo de A dificuldade em divulgar e organizar materiais sobre dança da UFRJ foram celeiros de formação e disseminaram os a obra da professora Helenita, como mencionado anterior- pensamentos modernos que a professora trazia à dança. mente, é uma crítica bastante comum feita nos cursos de A partir da possibilidade de estudo com a emérita pro- graduação em dança da UFRJ. Como uma figura relevante fessora nos cursos ministrados por ela, outros profissionais para a Universidade e especialmente para a dança pode ter buscaram formação e introduziram as práticas vivenciadas suas memórias pouco difundidas? A este respeito, o professor na UFRJ em outros locais do país desde a segunda metade Frank Wilson Roberto (2014) diz: do século XX. Pode-se citar como exemplo as professoras Eva Tiommo, que após estudar com Helenita foi ensinar a Teoria Sua importância [de Helenita] pode ser medida pelo reconhecimento como profes- Fundamentos da Dança em Minas Gerais e também a profes- sora emérita da UFRJ, fato restrito a grandes sora Lenir Miguel de Lima, passou a ministrar a cadeira da Rít- trajetórias pessoais e acadêmicas dentro da mica na escola de Educação Física da ESEFECO, dentre outras. Universidade. Naturalmente, com o passar dos anos, a teoria de Hel- enita dialogou com diversas outras tendências e técnicas, construindo redes e ampliando mais ainda as possibilidades Uma crítica que se faz é que a obra de He- de estudos, pesquisas e criação em dança. Obviamente a teo- lenita teve poucos registros capazes de ria Fundamentos da Dança tem limites e tensões mas é uma garantir sua perpetuação enquanto obra teoria forte, estabelecida e com muitas potencialidades que acadêmica. Muitas coisas (escritos, registros continuam a ser exploradas de formas inovadoras e criativas. fotográficos, vídeos, etc.) ficaram restritos Além da Teoria Fundamentos da Dança, outras con- aos familiares. O processo de constituição enquanto teoria ou mesmo metodologia de tribuições foram importantes para a dança na UFRJ: a criação ensino e criação em dança se fragilizava na do Grupo de Dança, na década de 1940, hoje Companhia de dependência de uma transmissão quase que Dança Contemporânea - UFRJ e a criação do Departamento de

194 Arte Corporal, que hoje coordena os três cursos de graduação giu em um momento de estímulo à criação em dança da UFRJ. Segundo Mayer (2012): de cursos noturnos pelo MEC. Devido aos prazos exíguos, não houve tempo para as A companhia representou artisticamente articulações e aprovações pela Faculdade a universidade nos espaços onde a dança de Educação para a criação de uma licen- brasileira é lugar de destaque. Na sua tra- ciatura em Dança, o que seria mais natural jetória, acumula centenas de apresentações devido à presença da dança aproximada a entre eventos nacionais e internacionais, um curso de licenciatura em Educação Fí- com várias premiações em significativos fes- sica. Assim, optou-se pelo Bacharelado em tivais no Brasil, onde destacam-se: as turnês Interpretação e Coreografia, pela agilidade realizadas nos Estados Unidos, Portugal e do processo, com a perspectiva de futura Holanda em 1951 e 1959 respectivamente; implementação da licenciatura (ROBERTO, demonstração de Dança Contemporânea no depoimento, 2014). Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1959; participação no I Festival de Es- Ao ingressar no curso, o bacharelando pode atuar em dis- colas de Dança do Brasil na Universidade do tintas atividades que se estendem além da graduação, como Paraná em Curitiba em 1962; no Congresso Mundial de Educação Física e Desportos em por exemplo: Programa de Iniciação e Profissionalização Madrid em 1965, além de inúmeras apre- artística em Dança - Cia Helenita Sá Earp; Programa de Ini- sentações em várias capitais do país pelo ciação e Profissionalização artística em Danças Folclóricas da Plano de Ação do MEC em 1973 ( p. 94). Cia Folclórica do Rio. A importância destes programas e projetos é a possib- Embora o Grupo de Dança da UFRJ tenha criado muitas ilidade de aprofundamento oferecido na formação do corpo ações e atuado em diferentes oportunidades, não recebeu discente. É a partir da participação em pesquisas que o aluno forte reconhecimento social fora do campo da dança, ou pode dedicar mais tempo à universidade e às oportunidades seja, por mais que o grupo circulasse por grandes festivais e que advém dos estudos e pesquisas iniciadas dentro dos pro- fosse convidado a apresentações, o seu fazer diferenciava-se jetos e programas, recebendo, em muitos casos, bolsa para se de uma companhia de dança de escolas por ter uma relação manter e se dedicar às pesquisas. direta com a universidade e os processos políticos - pedagógi- Após a implementação da graduação de Bacharelado cos do ensino, aprendizagem e criação em dança. O Grupo de em Dança, os professores que formavam o núcleo de técnica Dança da UFRJ sofreu uma pausa quando criou-se a gradu- da dança tornaram-se coordenadores da então Companhia ação em Bacharelado em Dança, pois a grande maioria dos de Dança Contemporânea da UFRJ, que integra o programa bailarinos tornou-se professor da graduação. de iniciação e profissionalização artística em dança. Esta or- Seguindo o curso dos acontecimentos, a ampliação e le- ganização é mantida atualmente. Cada núcleo da companhia gitimação da dança na UFRJ e o crescimento de uma deman- desenvolve projetos que oferecem aos alunos bolsas (de ini- da por formação em dança, levaram, em 1994, à criação do ciação artística, científica, dentre outras) para que aprofun- curso de Bacharelado em Dança, curso noturno, com duração dem estudos e desenvolvam pesquisas. de cinco anos, dez períodos, nos primeiros anos, e hoje, após Com o crescimento da demanda pelo curso (e a criação reestruturação curricular, com duração de quatro anos e meio, de mais duas graduações) a companhia passou a ser uma das nove períodos. Neste contexto, possibilidades de aprofundamento na profissionalização, mas não mais a única. A partir, aproximadamente, do ano de 2008, Já existia uma demanda pela criação de um com a entrada de professores diversos e ampliação de linhas curso específico de dança, apontada pela de pesquisas, estabeleceram-se projetos de pesquisa que trajetória de crescimento e solidificação de estão para além da companhia. Hoje encontram-se mais de um espaço próprio do Departamento de trinta projetos de pesquisa estabelecidos e aprovados no De- Arte Corporal da EEFD. A oportunidade sur-

195 partamento de Arte Corporal, que comporta alunos dos três anos. A procura por esta graduação é grande, ou seja, as va- cursos de graduação em dança. gas são preenchidas sem sobra, o que legitima a importân- A importância dos projetos é exemplificada na fala dos cia desta graduação, já que há demanda e mercado, pois os próprios discentes que cursam as graduações em dança na profissionais que se formam na universidade em licenciatura UFRJ. Em depoimentos colhidos, dez alunos que frequen- em dança vão ocupar principalmente as escolas e também as taram um dos projetos de pesquisa oferecidos no DAC, alguns academias e cursos livres. Desta forma, espera-se que daqui que contam com bolsa PIBIAC - Programa de Iniciação Artísti- a alguns anos sejam sanados alguns dos principais proble- ca e Cultural - e outros sem bolsa apontaram a relevância das mas em relação ao ensino da dança, especialmente no que pesquisas para o aprofundamento na formação profissional: diz respeito à falta de formação profissional dos atores que frequentam o campo. A graduação em bacharelado em Teoria da Dança Os projetos de pesquisa permitem aos também seguiu os passos da graduação em Licenciatura em alunos conhecerem mais intimamente um tema que desejam estudar tanto na prática dança, sendo implementada em 2010, a través do REUNI. quanto na teoria e também experimentar Contudo, esta graduação é bastante recente no Brasil; é o modelos e convivências possíveis em sua primeiro curso da América Latina e por ser um curso novo e vida profissional. Além disso, é possível ter inovador, a procura vem crescendo paulatinamente. A gradu- uma relação mais próxima com um profes- ação em Teoria seria uma tentativa de fortalecer essa área do sor e seus conhecimentos aprofundados, campo e democratizá-la. aumentando as possibilidades de troca de Houve claramente mais uma disputa de espaço acadêm- conhecimento. É o momento de explorar, ico a partir da década de 1990, pois havia, então, mais dois pesquisar, conhecer, ampliar horizontes (B, cursos de graduação em dança na UFRJ e a carreira acadêmica depoimento, 2014). passou a ser um mercado para os profissionais em dança. O perfil dos alunos da graduação em dança na UFRJ hoje A participação nesses projetos me permite é de alunos da zona norte e zona oeste em sua maioria, fator ter consciência do panorama dos espetácu- que certamente tem um significado: a dança cênica chegou los da dança carioca, vivências e aprendiza- a zona norte e se popularizou em forma de cursos livres e do de cena. As vivências de cena vêm após academias de dança. Os bailarinos que desejam aprofunda- o aprendizado e treino (...) (L., depoimento, mento e buscam uma formação mais ampla e sólida buscam 2014). a graduação. A grande maioria busca a UFRJ em função de ser gratuita e da legitimidade que a universidade federal ainda tem socialmente. Os projetos auxiliam no processo de for- As graduações da UFRJ visam democratizar a formação mação do aluno (...) O graduando pode ser e o acesso à dança. Pessoas que não poderiam pagar por formar sem passar por projetos de pesquisa, mas a não participação limita suas experi- cursos livres e/ou universidades privadas podem buscar for- ências para além da faculdade (A., depoi- mação em dança gratuita na UFRJ. Para o ingresso no curso mento, 2014). de Bacharelado, no entanto, existe o teste de habilidade espe- cífica (THE)86, regra da universidade para ingresso nos cursos A graduação em Licenciatura em Dança é mais recente de arte, e dificilmente uma pessoa que não tenha nenhuma e foi incentivada e impulsionada por políticas públicas edu- cacionais que foram debatidas e implementadas a partir da 86 Neste sentido, uma parcela do campo poderia trazer a seguinte ponderação: se há um teste até que ponto, então, se democratiza? Esta década de 1990 no Brasil. Em função do REUNI, no ano de questão é bastante complexa e envolve discussões e conhecimentos dif- 2010 foi implementada a licenciatura em dança, também erenciados; é uma problemática bastante discutida internamente pelo com curso noturno, com duração de oito períodos ou quatro departamento de arte corporal. Apesar de ser um ponto importante, não cabe na discussão estabelecida aqui. 196 vivência anterior com a dança, terá interesse em ingressar busca por memórias da dança na UFRJ. Parece, a partir das neste curso. falas dos atores, que as graduações em dança na referida uni- A partir da criação de graduações em dança no Brasil, versidade impulsionaram discussões e problematizações. A percebe-se que há um mercado profissional em dança que dança passou a ocupar espaços acadêmicos científicos; estes, cresce e se adapta às diferentes realidades e contextos soci- inclusive, passaram a ser um mercado para a dança. O fato de ais. O papel das universidades vai além do “abastecimento” haver formação superior em dança em universidades públicas de um mercado de bailarinos e coreógrafos. As universidades e privadas aponta para um reconhecimento oficial e social- preocupam-se também com a ampliação de espaços para a mente a profissão se certifica, já que o Estado concedeu a dança e formação de profissionais capacitados que possam criação de cursos superiores. Isto ocorreu porque se entendeu atuar nos mais diferentes espaços: pedagógicos, na saúde, que havia demandas para tal, isto é, a formação profissional a companhias, criação, mídia, dentre outros. nível superior é possível porque há demandas sociais. Recentemente houve uma série de concurso públicos Buscou-se referenciais que apontassem a importância da contemplando a área da dança, notadamente em prefeitu- criação de cursos de graduação em dança, especialmente da ras do estado do Rio de Janeiro, como Nova Friburgo, Angra UFRJ, para a legitimação profissional da dança cênica. Clar- dos Reis, Duque de Caxias, Niterói, e em estados como Porto amente observa-se que há muitas barreiras e dificuldades, Alegre, Fortaleza, dentre outros. Este fato mostra o reconhec- todavia é perceptível o avanço que o campo da dança ganha imento social que a profissão começa a ter e a necessidade de ao entrar no mundo acadêmico. É importante ponderar que o graduações que formem os especialistas. campo é sempre muito dinâmico; ele se reorganiza e se molda Atualmente as graduações em dança da UFRJ enfrentam de acordo com os contextos e possibilidades. uma série de entraves, alguns desde a implementação da A partir das informações e ponderações apresentadas, é primeira graduação - o Bacharelado -, mas é possível afirmar possível apontar alguns caminhos a um questionamento: as que com todas as dificuldades encontradas continuam com universidades em dança na cidade do Rio de Janeiro repre- uma demanda crescente a cada ano. Em relação ao ano de sentam um reconhecimento profissional do campo? Obvia- 2010, por exemplo, a relação candidato/vaga era 3,71 após mente o fato de a dança ter “entrado pela porta da frente” em o THE e no ano seguinte, o número chegou a 3,81, de acordo uma universidade federal, como no caso da UFRJ, significou a com a Pró - reitoria 1. Em relação a tabela do SISU, a relação legitimação deste campo como importante área do conheci- candidato/vaga no ano de 2011 para os cursos de dança foi mento. Legitimação no sentido do reconhecimento da dança bastante alta, 20,08, sendo um dos cursos mais procurados, como possibilidade de investigação, estudo, pesquisa. Como especialmente o curso de licenciatura. A dança da UFRJ apa- um caminho profissional possível. Claramente este fato con- rece como um curso de ampla concorrência. Este fato aponta tribui de forma significativa para o fortalecimento do campo para a possibilidade de democratização do ensino superior da dança, pois possibilitou a formação de profissionais e em dança na medida em que a relação candidato vaga é ele- democratizou, de certa forma, o acesso a quem deseja espe- vada e o perfil dos alunos do SISU majoritariamente refere-se cializar-se e obter formação. De acordo com o professor Frank a quem não pode pagar por formação. Wilson Roberto, coordenador do curso de Bacharelado em Atualmente, em função do crescimento e da ampliação Dança da UFRJ, o perfil dos alunos da graduação atualmente dos cursos, a maior dificuldade é o espaço físico, fato que im- pode ser representado da seguinte forma: pulsiona embates e disputas tênues com a área da educação física, local onde as graduações em dança são abrigadas. Estas Boa parte dos candidatos a alunos procuram tensões se intensificam ou se diluem de acordo com o contex- os cursos por alguma história pessoal de to político da universidade. envolvimento com a dança ou com alguma O foco desta comunicação é perceber de que forma os arte dita “cênica”. Por serem cursos notur- cursos de dança foram importantes para a ampliação e for- nos, têm atendido a uma parcela de popula- mação do campo profissional em dança na cidade, a partir da ção que trabalha. Isso aponta para um perfil

197 socioeconômico dos mais desfavorecidos, dar conta de demandas que pretendem segundo índices do setor de acesso à gradu- atender não somente ao mercado tradicio- ação da UFRJ. nal de carreiras, mas de carreiras que nas- cem marginais, e estão sempre em busca de reconhecimento. A batalha que se trava Muito alunos vêm de outros estados ou pode ser continuada pois teve ressonância mesmo de outras cidades do estado do Rio dentro da UFRJ. Há um indicativo interes- de Janeiro. A faixa etária se aproxima da sante que é a quantidade de cursos de dan- média dos demais cursos, prevalecendo com ça que surgiram através do programa REU- entrada em torno dos 18 anos (ENTREVISTA, NI. Foi uma das carreiras que mais recebeu 2014). propostas de criação de cursos de graduação em diversas partes do Brasil. Ressalto que a Pode-se observar que o fato dos cursos de graduação maioria é de licenciatura em dança. Esses em dança na UFRJ serem noturnos oportunizam o acesso a dados foram relatados pelo professor Mar- grupos sociais que não teriam condições de cursá-los em cus Vinícius Machado, em pesquisa ao MEC outro turno, por diferentes motivos. Nesse sentido, há uma (ENTREVISTA, 2014). abertura de possibilidade a um maior número de pessoas. A média de faixa etária para a entrada na graduação, contudo, Entende-se que a quebra do paradigma de que a dança reflete que os jovens buscam atuar no mercado de trabalho é muito frágil como campo profissional em função da falta de ainda antes de cursar graduações e especializações. formação não é repentino, ao contrário, é paulatino. Mas os Desta forma, não se pode deixar de salientar que o cam- passos iniciais foram dados principalmente no que diz respei- po da dança e sua relação com a academia é recente e por isso to ao ensino superior. Os futuros licenciados em dança, saídos enfrenta batalhas cotidianas para se estabelecer e diminuir das universidades, poderão contribuir de forma significativa diferenças em relação a áreas do conhecimento que já são para a mudança na formação de crianças, adolescentes, adul- estabelecidas. Certamente a criação de cursos de graduação tos, profissionais, assim como os demais profissionais das em dança e o claro aumento de cursos de dança no país são outras graduações em dança. Resta investir na qualidade da um indicativo de que o campo se fortalece;,ainda que exista formação nas graduações, nos espaços físicos das universi- muito desconhecimento (inclusive dentro dos próprios limites dades, cada vez mais sucateados, na fiscalização, na ampli- da universidade) sobre as graduações em dança. ação de possibilidades, na divulgação e na criação de políticas Klauss Vianna, em seu livro A Dança, afirma que “Toda específicas para a dança. deformação da dança, no Brasil, começa no en- De acordo com os alunos entrevistados das graduações sino” (p.75), já que há uma constante desorganização, de- em dança da UFRJ, a universidade amplia horizontes e camin- sconhecimento de possibilidades. As universidades são uma hos profissionais de forma contundente: forma de romper com este contexto e investir na formação, para que este não seja mais um dos motivos da deformação Dentro da universidade pude conhecer diversas outras possibilidades de mercado do campo profissional da dança. A importância de uma uni- de trabalho que esse campo oferece e a versidade federal, como a UFRJ, oferecer cursos de graduação importância da dança em um circuito que em dança fica marcada na fala do professor Frank Wilson não pertence somente àqueles que fazem Roberto: dança. A universidade me deu um leque de Acredito que o papel das universidades pú- possibilidades, que apesar de certas dificul- blicas é desbravar novos espaços de saber dades para acessá-lo, oportuniza que o pro- e solidificar ações que não encontrariam fissional seja reconhecido em diversas áreas. espaço onde o interesse econômico está em primeiro plano. Só assim a sociedade pode

198 Não acredito que será um mercado aberto, relatos nesse sentido), na área do turismo uma vez que, nesta área geralmente não é (navios, casas de show), atividades com- obrigatório ter a graduação para trabalhar plementares em escolas, escolas de samba, (...) Hoje, com o reconhecimento das gra- musicais e companhias de dança. Alguns duações em dança, não só na UFRJ, mas bacharéis fundaram seus próprios espaços por todo o Brasil, quem possui este diploma de dança (há relato de quatro egressas) (DE- torna-se um diferencial no mercado de tra- POIMENTO, 2014). balho, não decisivo, mas como em todas as áreas, o nome da Universidade carrega um Se em tempos anteriores não havia praticamente merca- grande peso (M., Teoria da Dança, entrevis- do acadêmico para a dança no Brasil, há hoje esforços, como ta, 2014). demonstrado neste estudo, para que daqui há alguns anos (ou décadas) não se tenha tanta insegurança na escolha da Acredito que sim, terá mercado de trabalho dança como opção profissional e acadêmica. Para Arnaldo aberto e será difícil encontrá-lo, no entanto. José Siqueira Júnior, docente e coordenador da licenciatura Os espaços de trabalho na dança são restri- em dança da UFPE, tos e mal divulgados (...) Acredito que mi- É inquestionável a contribuição que uma nha graduação na UFRJ ajudará no sentido formação acadêmica pode oferecer à co- de ter aberto o leque de possibilidades para munidade de dança (...) Com certeza haverá mim, pelas experiências que lá tenho (L., uma mudança na mentalidade, vinda com o Bacharelado em Dança, entrevista, 2014). aprofundamento de estudos teóricos. Tam- bém existirão ganhos com a institucionali- A universidade conseguiu mostrar que pos- zação da formação profissional das pessoas so atuar/dialogar com mais áreas que para que atuam na área (MOTTA, 2008) mim eram desconhecidas (A., Bacharelado em Dança, entrevista, 2014). As graduações em dança abriram o mercado acadêmico para alguns profissionais, configurando mais uma forma de Através da fala do professor Frank Wilson Roberto é atuar no campo. Contribuem também na qualidade da for- possível verificarmos que ainda há um longo caminho a ser mação dos futuros profissionais que atuarão na dança cênica. percorrido para que o campo profissional da dança, notada- Essas ações refletem a importância dos cursos de dança da mente o ensino em dança, se fortaleça, mas, efetivamente, já UFRJ para a ampliação, fortalecimento e legitimação do cam- há avanços e profissionais atuantes em diferentes frentes de po profissional da dança. trabalho após o egresso nos cursos de dança da UFRJ, o que aponta a importância destes cursos, bem como um investi- CONCLUSÃO mento na profissionalização; há, então, lacunas que se abrem no mercado de trabalho para o profissional qualificado e com A partir do estudo acerca da formação das graduações formação específica: em dança na UFRJ é possível dizer que há uma relação di- reta entre ensino e qualidade de formação para ampliação O campo para o profissional de dança ainda do campo profissional da dança. Percebe-se que o campo transita entre a ocupação pelo profissional profissional da dança é multifacetado e não há uma delim- formado em nível técnico, através de diver- itação específica no fazer profissional. Este fato mostra como sas escolas que ainda existem em grande o campo profissional da dança encontra brechas para a sua número no Brasil e o profissional com for- mação superior. Isso indica que é um campo própria manutenção. em construção. Os bacharéis formados na As falas e memórias de diversos atores sociais revelaram UFRJ atuam em projetos sociais (há muitos como o campo profissional ainda carece de estrutura para 199 se tonificar cada vez mais e conquistar espaços simbólicos, fatores que certamente fizeram com o que campo se dilatasse sociais, físicos. Já foram dados importantes passos, estes, os e brechas fossem abertas a partir de empenho de artistas. Há primeiros de uma longa jornada. muito para ser feito, mas o campo já alcançou vitórias no sen- As memórias apresentadas aqui podem permitir a tido de intensificar ações para a ampliação e democratização seguinte afirmação: se em geral as profissões ligadas à do acesso à dança. arte são sujeitas a estranhamentos e à dúvidas, no caso dos profissionais que escolhem a dança estas condições não fo- gem a esse paradigma. A vida profissional do artista/intelec- MEMORIES, PROFESSIONALISM, RECOGNI- tual que investe na dança depende de muitas peculiaridades TION: UNIVERSITIES IN DANCE - THE CASE OF como a ampliação de vivências e experiências que ajudem UFRJ a amplificar a capacidade criativa, física, intelectual, etc., e se relaciona diretamente com investimentos em aulas, Isabela Maria A. G. Buarque - UFRJ ensaios, eventos acadêmicos, dentre outros. Esse aprofun- damento nas investigações e conhecimentos sobre a dança, ABSTRACT muitas vezes, não pode ser amplamente desenvolvido pois Studying the professionalization of scenic dance from o profissional precisa se dedicar à diferentes formas de ação the prerogatives of memory is important for understanding e atuação fora do campo da dança para sobreviver. Esta for- the configurations of this field, as it broadens visions and mação requer tempo e dedicação e uma grande quantidade establishes dialogues with a view to fostering discourses and de alunos não pode ter dedicação exclusiva a tal formação. outputs for the main unfolding found. The implementation Este fato enfraquece o campo profissional. of a dance degree at a public, federal university can repre- Em contrapartida, parece haver uma contradição, um sent an important recognition of the professional field. The paradoxo: se o campo se fragiliza por um lado, já que é difícil central objective of this communication is to investigate the garantias de um trabalho fixo e estável em dança, há diversas establishment of the Bachelor of Dance course at the Federal formas de permanecer nele. Ampliaram-se os espaços de atu- University of Rio de Janeiro, analyzing its discourses for the ação, pois o trabalho com dança foi absorvido em meios antes construction of the professional field in dance, seeking the não ocupados, como o Carnaval, Companhias de dança para permanences and innovations, understanding this institu- shows de cantores, dentre outros. tionalization as a Place of Memory (Nora , 1993). Ainda que as possibilidades de atuação profissional ven- University dance courses in Brazil can be considered very ham se ampliando, pouco se modificaram as mentalidades recent. Most undergraduate courses are born in the second sobre o fazer em dança na prática, principalmente por parte half of the 1990s and in the early years of the 21st century. do poder publico, do Estado, que continuaram a não investir UFRJ was the first public university in Rio de Janeiro to offer na dança. A rede privada (escolas, produtoras, etc.) cresceu e a dance degree. We understand that this pioneerism is an im- ofereceu espaços à dança, mas, de fato, até agora não houve portant place for the historical memory of the field, since the uma mudança que permitisse ao campo uma reestruturação creation of graduation courses in dance would strengthen the que possibilite o fortalecimento da sua estrutura. Não é formation and, consequently, the field, according to the social possível crescer e se expandir, sem ações de fomento, sem actors, since they would offer the necessary instruments for educação para e pela arte (desde a formação até a atuação the formation of the who will work in the field in the future. profissional). Therefore, the creation of graduations was very important for Embora haja uma série de tensões e fragilidades, o the effective implementation of a professional field in dance. campo da dança cênica é profissional, pois movimenta um Graduations in dance opened the academic market for some mercado, é autônomo, possui institucionalização. Mas falta professionals, configuring yet another way of acting in the a ele divulgação, democratização, investimento. É bastante field. They also contribute to the quality of the training of fu- marcante o empenho dos profissionais e a paixão pela dança, ture professionals who will perform in the scenic dance. These

200 actions reflect the importance of the UFRJ dance courses for ROBERTO, Frank Wilson. Depoimento da autora. Rio the expansion, strengthening and legitimation of the profes- de Janeiro, 2014. sional dance field. LESKOVA, Tatiana. Eu ensino Dança. Reportagem. 2010. Disponível em Acesso em 7 mar 2014. VIANNA, Klauss. A dança. São Paulo: Summus, 2005. REFERÊNCIAS (Endnotes) ANGELIN, Paulo Eduardo. PROFISSIONALISMO E 1 Doutora em Memória Social - UNIRO (2014). Professo- PROFISSÃO: TEORIAS SOCIOLÓGICAS E O PROCESSO DE PROFIS- ra adjunta dos cursos de Dança da UFRJ. SIONALIZAÇÃO NO BRASIL. REDD – Revista Espaço de Diálogo e Desconexão, Araraquara, v. 3, n. 1, jul/dez. 2010.

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201 NOVOS OLHARES SOBRE A COLEÇÃO DE OB- INTRODUÇÃO JETOS SAGRADOS AFRO-BRASILEIROS SOB A Este artigo é resultado de pesquisa empreendida no GUARDA DO MUSEU DA POLÍCIA Mestrado em Memória Social (PPGMS/UNIRIO), sob orien- tação da Professora Doutora Edlaine de Campos Gomes e Pamela de Oliveira Pereira defendida em março de 201787. Desenvolvida ao longo de Doutoranda em Memória Social (PPGMS/UNIRIO) [email protected] dois anos, começou a ser gestada em 2013, quando estive em contato pela primeira vez com a temática da reivindicação por repatriação dos objetos sagrados Afro-brasileiros. Os meios A coleção de objetos sagrados atualmente sob a guarda que possibilitaram a formação da coleção já eram alvo de do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro for- discussões ao longo da graduação em Museologia, entretanto mou-se a partir do cumprimento dos artigos 156, 157 e 158 somente no ano em questão tomei conhecimento da luta em- do código penal de 1890 que criminalizava a prática ilegal preendida pela devolução dos objetos. da medicina, a magia e o charlatanismo. O valor do con- Neste período, participei do Grupo de Trabalho sobre o junto foi reconhecido em 1938 através de seu tombamento antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, atual (DOPS), integrante da recém criada Comissão Estadual da Ver- IPHAN, completando 80 anos de tombamento em 2018. É o dade (CEV/Rio). O objetivo deste grupo foi reunir esforços en- primeiro registro do livro de tombo Arqueológico, Etnográfico tre profissionais da área de Cultura, militantes por Memória, e Paisagístico, denominado Museu de Magia Negra. As múlti- Verdade e Justiça, entre eles, pessoas que estiveram presas plas classificações nas quais os objetos foram categorizados em consequência de perseguições políticas, e membros da evidenciam sua biografia cultural. Entretanto, é o caráter sociedade civil para a criação de um Memorial da Resistência sagrado que será ressaltado e, principalmente, a relação dos e dos Direitos Humanos no ex-DOPS, edifício monumental lo- objetos com o povo de santo, representado por Mãe Menina- calizado na esquina das Ruas da Relação e Inválidos no bairro zinha de Oxum, ialorixá do Ilê Omolu e Oxum em São Mateus, da Lapa, no centro da cidade do Rio de Janeiro88. Este prédio São João de Meriti. Apresenta-se, assim, a reivindicação por abrigou ainda o museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, atual repatriação dos objetos, inserindo a inciativa em um panora- detentor da coleção de objetos sagrados Afro-brasileiros. ma nacional e internacional dos debates sobre propriedade Ao analisar a formação do museu da polícia, vimos que cultural. seria necessário, ainda, aproximar ao debate sobre o prédio o Palavras-chave: Coleção, Museu, Re- tema da coleção de objetos sagrados o que trouxe a atenção patriação, Candomblé, Mãe Meninazinha de para uma camada de memória, anterior à ditadura civil-mil- Oxum itar vivida no Brasil: a da repressão aos cultos afro-brasileiros e de práticas culturais associadas aos negros como o samba e a capoeira. A partir das atividades realizadas no grupo de “A memória, onde cresce a história, que por trabalho, identifiquei a possibilidade de aprofundar a análise sua vez a alimenta, procura salvar o passado do processo reivindicatório referente aos objetos sagrados, para servir ao presente e ao futuro. Devemos tendo em vista a reduzida produção bibliográfica específica trabalhar de forma a que a memória coletiva sobre o tema. sirva para a libertação e não para a servidão A metodologia do trabalho baseou-se em levantamento dos homens” bibliográfico sobre as religiões de matriz africana no Brasil, Le Goff, 1996, p. 47 87 O resultado preliminar da pesquisa foi publicado na Coletânea Pat- rimônio Religioso do Rio de Janeiro, organizado por Edlaine de Campos Gomes e Paola Lins (2016). 88 Para mais informações sobre os processos de disputa em torno do antigo prédio do DOPS/RJ, ver PRADAL, 2017. 202 sua conformação e perseguições sofridas ao longo do sécu- de tombamento, atualmente localizado no Arquivo Noronha lo XX que propiciaram a formação da coleção em questão. Santos. Logo, busca-se no primeiro capítulo analisar as insti- Empregou-se ainda a análise documental referente ao tom- tuições que circundam e influenciam a coleção: instituições bamento dos objetos. Ademais, foi realizada entrevista com jurídico-burocráticas, a polícia, o Museu que a contém e o Mãe Meninazinha de Oxum, ialorixá do Ilê Omolu e Oxum, órgão de Preservação que a salvaguarda. liderança religiosa que se destaca na luta pela repatriação No segundo capítulo, retoma-se a classificação original dos objetos sagrados. Por fim, realizou-se comparações do dos objetos sagrados a partir de sua relação com o povo de caso analisado com outras situações de repatriação brasilei- santo, representado por Mãe Meninazinha de Oxum. Apre- ra e estrangeiras e, ainda, análise de tratados internacionais senta-se as noções de memória (POLLAK, 1989, 1992) e bi- sobre o tema. ografia (BOURDIEU, 1996) relacionado-as à trajetória de Mãe Foram identificadas questões norteadoras para a pesqui- Meninazinha. Apresenta-se a análise dos objetos da coleção sa, entre elas: A quem pertencem os objetos? Quais são as feita pela ialorixá em entrevista, assim como do processo questões éticas que atravessam a relação entre o museu reivindicatório do qual participou. detentor da coleção e os grupos que reivindicam sua pro- Esta coleção, envolta em muitos mistérios desde o priedade? E, ainda, anterior a todas essas questões: como princípio de sua formação, e sendo de difícil acesso a pesqui- denominar esse conjunto de objetos? A coleção de objetos sadores nas últimas décadas, sai totalmente de cena com o fe- sagrados afro-brasileiros recebeu a denominação coleção chamento do museu. Ao menos é esta interpretação que prev- de Magia Negra, oficializada através do tombamento do alece, já que não é só fisicamente que se torna invisibilizada, conjunto em 1938. O título recebido é reflexo do momento mas também, tendo em vista que em 2014 ocorre a retirada histórico em que se formou e será abordado e problematizado de qualquer referência a estes objetos do site institucional do adiante. Entretanto, em contato com lideranças do campo re- MPCRJ. Isto é, por parte do museu a coleção é invisibilizada ligioso Afro-brasileiro, percebe-se que esse título é renegado, em contraposição à disputa pela posse dos objetos, que con- por manter o caráter desqualificador que proporcionou sua tinua em vigor com a entrada de outros atores como, por ex- denominação há oitenta anos atrás. Por isso, optou-se por emplo, de profissionais do Museu Nacional da Universidade designá-la coleção de objetos sagrados Afro-brasileiros. Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), que demonstraram A dissertação estruturou-se em três capítulos. O primeiro interesse em incorporá-la ao seu acervo. capítulo é referente à revisão bibliográfica sobre a coleção, O processo reivindicatório dos objetos sagrados é inseri- onde pretende-se, num primeiro momento, analisar as es- do em contexto mais amplo de solicitações por restituição e pecificidades históricas que permitiram a sua formação. Para repatriação de objetos no Brasil que tem início no imediato tal, debruça-se no contexto de conformação das chamadas período pós-ditadura civil-militar no país. São apresentados religiões mediúnicas no Brasil e a relação com o processo de neste capítulo os casos de restituições bem sucedidas de ob- laicização do Estado brasileiro nas primeiras décadas do sécu- jetos indígenas - a machadinha Krahô (1986) e os Basá-Busá lo XX. Pretende-se, ainda, analisar a trajetória dos objetos a (2008) - e os pedidos de repatriação do Manto Tupinambá, partir da noção de biografia cultural das coisas (KOPYTOFF, atualmente de posse do Museu Histórico de Copenhague, 2008), compreendendo as múltiplas classificações e catego- formulados nos anos 2000. Apresenta-se ainda a trajetória rias nas quais os objetos foram enquadrados. Em seguida, são dos objetos da coleção Estácio de Lima que, tendo sido alvo apresentadas as características de seu tombamento, realiza- de disputas, atualmente integra o acervo do Museu Afro-Bra- do em 1938 por parte do Serviço do Patrimônio Histórico e sileiro da Universidade Federal da Bahia (MAFRO/UFBA). Por Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio fim, expõe-se a recente restituição de um objeto ritual de re- Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Nesse sentido busca-se ligião de matriz africana, a cadeira de Jubiabá, em Salvador esclarecer os motivos que proporcionaram à coleção ser o ocorrido em 2015. primeiro registro no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográf- O terceiro capítulo é referente à ampliação do debate ico e Paisagístico, quando é feita ainda a análise do dossiê sobre repatriação quando apresenta-se o panorama internac-

203 ional das discussões sobre propriedade cultural. Através da ar- cações num mundo incerto de categorias cuja importância gumentação destacada por Karen J. Warren (1999), contrários se desloca com qualquer mudança de contexto” (KOPYTOFF, ou favoráveis às reivindicações por Restrição, Restituição e 2008, p. 121). Isto é, para além de possibilitarem esta ligação Direitos por grupos de origem, percebe-se que a reivindicação entre passado e presente, há que ter em conta de que forma efetuada pela comitiva de ialorixás e babalorixás e aqui repre- os objetos foram entendidos em diferentes tempos. Narrar sentada por Mãe Meninazinha compartilha argumentos com como foi construída a biografia dos objetos da coleção de outras iniciativas ao redor do mundo. Apresenta-se, ao longo objetos sagrados é trazer à tona as múltiplas classificações do texto, inúmeros exemplos nesse sentido. Evidencia-se, e categorias nas quais estes foram enquadrados ao longo de entretanto, os objetos apreendidos pelo Estado canadense quase um século, assim como o papel de sujeitos, instituições por ocasião de um Potlach, em ocasião que a prática era con- jurídico-burocráticas, museológicas e de preservação. siderada ilegal. Analisa-se a reivindicação destes objetos em Enquanto objetos de coleção podem desempen- comparação à coleção do Rio de Janeiro. har a função de mediadores entre espectadores e as práticas policiais no início do século XX, porém não mais cumprem sua DESENVOLVIMENTO função original de mediação no circuito religioso onde origi- nalmente estavam inseridos. Esta é uma questão norteadora A memória tem relação direta com os vestígios deixados da pesquisa empreendida e será retomada adiante. por épocas passadas, sejam eles materiais, como documen- Antes de iniciar a análise da formação da coleção, tos, fósseis, artefatos, obras de arte, ou imateriais como, por faz-se necessário contextualizá-la no momento quando há exemplo, experiências, vivências, etc. Krzysztof Pomian ded- a intenção de retirada da religião do espaço público, isto é, icou-se a esmiuçar essa relação que é de interdependência, no processo de laicização do Estado brasileiro que teve início tendo em vista que entende o lembrar enquanto uma recon- na República, Segundo Montero, esse processo acompanha strução do passado a partir da compreensão desses vestígios. a própria formação das religiões mediúnicas a partir de uma Para o autor: lógica hierarquizante: “parecia haver um consenso silencioso A memória é, em suma, o que permite a um de que aquelas (práticas) associadas aos negros – chama- ser vivo remontar no tempo, relacionar-se, das genericamente de “macumba”, “magia negra”, “feitiço” sempre mantendo-se no presente, com o agravavam o ilícito por implicar benefícios materiais e muitas passado: conforme os casos, exclusivamente vezes incidir em crime ou dolo” (MONTERO, 2006, p. 53). Isto com o seu passado, com o da espécie, com é, a denominação “magia negra” carrega em si o estigma rel- o dos outros indivíduos. No entanto, essa acionado às práticas consideradas mais perigosas e propensas subida no tempo permanece sujeita a limi- ao crime e, portanto, a coleção também o faz. tações muito restritivas. É sempre indireta; A autora aponta que, apesar de num primeiro com efeito, entre o presente e o passado momento todas as manifestações mediúnicas estarem sob a interpõem-se sinais e vestígios mediante os denominação genérica de “espiritismo”, havia evidente dif- quais – só deste modo - se pode compre- erenciação no tratamento dado pelo Estado entre as práticas ender o passado; trata-se de recordações, religiosas espíritas e às relacionadas aos negros, o que influ- imagens, relíquias. (POMIAN, 2000, p. 508) enciou sua institucionalização (MONTERO, 2006). A legislação referente às práticas religiosas que Compreende-se que a coleção de objetos sagrados tinha como intuito “disciplinar o espaço público” (MONTERO, Afro-brasileiros sob a guarda do museu da polícia pode ser 2006, p. 51) teve papel essencial não só na conformação das relacionada à noção de vestígio apresentada por Pomian. chamadas religiões mediúnicas, mas também do próprio Entretanto, a mesma se complexifica ao levarmos em consid- campo religioso no Brasil, de maneira mais ampla. A espe- eração o conceito de biografia cultural dos objetos cunhado cialização policial no que diz respeito ao combate ao baixo por Igor Kopytoff: “uma biografia rica de uma coisa é a história espiritismo é resultado do cumprimento dos artigos 156, 157 de suas várias singularizações, das classificações e reclassifi-

204 e 158 do Código Penal de 189089 que versavam sobre a prática da listagem original90, apresentada ao Serviço do Patrimônio ilegal da medicina e do curandeirismo, da magia e de seus Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1938, para o tom- sortilégios. bamento da coleção, fato que será tratado mais adiante. O cumprimento dos referidos artigos permitiu Na listagem encontram-se dados quantitativos a acumulação de objetos provenientes de cultos afro-bra- sobre o material, além de informações sobre algumas peças. sileiros em coleções. Tal prática antecede à República, e tem Por exemplo, há a identificação de guias de acordo com os como caso exemplar a coleção conhecida como “Africana”, do Orixás aos quais são dedicadas, onde se lê: Museu Nacional (MN/UFRJ). Esta coleção possui, entre outros “(…) itens, um conjunto de objetos doados pela Polícia da Corte em apreensões às “casas de dar fortuna”, antiga denominação 1 Guia (guiame) de Iamanjá (Oxum nagua) para candomblés, registrado já em 1880 (SOARES, LIMA, 1 “ “ de Nanã-Buraque (Linha de 2014). Segundo Soares e Lima há informações contraditórias Nagô) sobre a forma de aquisição destes objetos em correspondên- cias da instituição e no livro do tombo onde estão registrados. 1 “ “ de Eixú e Oxalá (guia mestra) A procedência dos objetos também segue desconhecidas uma 1 “ “ de Oxum e Oxalá(...)” vez que não se sabe se foram feitos na África e trazidos para o Brasil ou se aqui produzidos (Ibidem). Mostra-se, assim, que há conhecimento dos rit- Vale ressaltar que esta não foi a única coleção uais por parte do responsável pela elaboração da lista, Dem- brasileira formada nestes moldes no período citado, pelo con- ocrito de Oliveira, 1º Delegado Auxiliar da Seção de Tóxicos, trário, outras coleções semelhantes foram criadas a partir da Entorpecentes e Mistificações. Fato que não é incomum tendo conexão entre cultura e religiões de matriz afro-brasileiras e em vista que os laudos dos peritos, que verificavam os indícios o crime e à patologia. O museólogo Raul Lody cita algumas do uso para o mal dos objetos apreendidos, juntamente com o dessas coleções em seu livro “O negro no museu brasileiro” auto da apreensão e as testemunhas, eram as principais pro- (2005). A título de exemplificação, o autor menciona: Museu vas utilizadas nos processos (MAGGIE, 1994). Antropológico Estácio de Lima (Coleção Nina Rodrigues – Salvador/BA), Casa de José de Alencar (Coleção Artur Ramos – Fortaleza/CE), Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas O TOMBAMENTO (Coleção Perseverança – Maceió/AL), Museu do Estado de Como já dito, a coleção de objetos sagrados foi tombada Pernambuco (Coleção de objetos de cultos afro-brasileiros – pelo SPHAN em 1938, completando em 2018 oitenta anos Recife/PE) (LODY, 2005). As coleções são formadas em sua sob a tutela do órgão preservacionista. Criado por intelectuais maioria por objetos de religiões afro-brasileiras semelhantes modernistas, o órgão surge no bojo da construção do Brasil às da coleção carioca. enquanto nação e tem por finalidade preservar e definir uma A coleção de objetos sagrados do museu da polí- identidade e memória nacionais. Nesse sentido, o “patrimônio cia é composta por objetos rituais dos mais diversos, como: é concebido como uma ‘expressão’ da identidade nacional em Atabaques, estatuetas (imagem de São Jorge, Ogum, e São sua integridade e continuidade. Ao mesmo tempo, o patrimô- Jerônimo, Xangô, por exemplo), penachos, quadros com rep- nio é concebido, numa relação metonímica, sendo a própria resentações de caboclos e orixás, vestimentas, anéis e outros realidade que ele expressa” (GONÇALVES, 2002, p. 32). Papel ornamentos, guias, pembas, vara da guiné, talismãs, apenas essencial no processo e legitimação do que foi considerado para citar alguns e possibilitar ao leitor uma noção ampla patrimônio terão os intelectuais responsáveis pela criação do deste conjunto museológico. Esta breve lista é um compêndio órgão como, por exemplo, Rodrigo Melo Franco de Andrade, seu diretor. No dossiê de tombamento da coleção de Magia 89 O Código Penal de 1890 completo está disponível em: http://www2. camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-out- 90 Documento integrante ao Dossiê de Tombamento. Processo nº ubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html 35_T_SPHAN/38. Arquivo Noronha Santos/IPHAN 205 Negra há troca de correspondências entre o intelectual e os O fato da coleção ser o primeiro tombamen- responsáveis pelo Museu da Polícia, onde Andrade afirma to etnográfico do país leva o autor a buscar compreender o o “excepcional valor da referida coleção para o patrimônio que o termo etnográfico significava em 1938 levando em histórico e artístico nacional”.91 consideração a abordagem conceitual que servia como base Apesar de tombada, Alexandre F. Corrêa (200) aponta para essa classificação. Além disso, Corrêa observa que essa para um importante fator: a coleção não figura nas listagens classificação poderia refletir uma noção pejorativa, tendo em do órgão de proteção até a década de 1980, isto é, passa vista que os bens religiosos católicos figuravam nos livros de aproximadamente quarenta anos até ser novamente recon- tombo Histórico e de Belas Artes, ao passo que os bens religio- hecida e divulgada pelo IPHAN como um bem a ser preser- sos de origem Afro-brasileiros estavam inseridos na categoria vado. A hipótese para tal “esquecimento” da coleção gira em etnográfica. torno do interesse inicial do SPHAN em proteger a arte e ar- quitetura coloniais, o patrimônio de “pedra e cal” em busca de “E A GENTE CONTINUA PRESO...” forjar uma identidade nacional. Dessa forma, o tombamento da Coleção Museu da Magia Negra não se encaixa conceitual- Mãe Meninazinha de Oxum, nascida Maria do Nasci- mente ou mesmo diretamente no Decreto-Lei Nº25/37 que mento, é ialorixá do Ilê Omolu Oxum, localizado no bairro de cria e regulamenta o SPHAN, pois abarcava apenas: São Matheus, município de São João de Meriti. Seu nome de registro, Maria do Nascimento, não é tão conhecido quanto o dispositivos convencionais que se limitavam que recebeu ao ser iniciada por sua avó, Iyá Davina. Através à salvaguarda jurídica de objetos e prédios de entrevista realizada, buscou-se mapear os principais argu- materiais e tangíveis, e não à preservação de objetos e peças que remontam seu sig- mentos dos que reivindicam a devolução nesse processo de nificado simbólico à dimensão imaterial e disputa de memória e demonstrar o encontro entre biografi- intangível de conjuntos rituais, mágicos e as e biografias das coisas. Os objetos, analisados a partir das religiosos. Todo um pensamento conven- mais diversas categorias já apresentadas – provas de crime, cional e tecnocrático se preservava precon- bens patrimonializados, retomam aqui o seu valor e uso orig- ceituosamente de qualquer contágio no inais de objetos sagrados. trato desse conjunto museológico. (CORRÊA, A ênfase dada na relação entre as pessoas e o sagrado, 2009, p. 28). aqui representada pela relação que a ialorixá possui com os objetos roubados, sequestrados pela polícia, termos usados Apesar de a temática de cultura popular e etnografia por ela durante entrevista realizada para esta pesquisa e, estarem presentes no Anteprojeto de criação do órgão apre- também, em outros meios. Mais amplamente, demonstra-se sentado por Mario de Andrade em 1936, é só a partir da dé- o lugar dos objetos sagrados no Candomblé, já que os objetos cada de 1980 que os assuntos referentes aos bens imateriais são usados pelos orixás em suas visitas ao Aiê e são a própria serão postos em evidência pelo IPHAN, o que se reflete no materialização do sagrado, do axé: retorno da Coleção aos Resumos de Bens tombados em 1984 No candomblé a palavra axé tem muitos (CORRÊA, 2009). A busca pelo esclarecimento sobre o tom- significados. Axé é força vital, energia, prin- bamento dessa coleção baseia-se em hipóteses já que não era cípio da vida, força sagrada dos orixás. Axé é uma prática do SPHAN, em seu período inicial, a produção de o nome que se dá às partes dos animais que laudos técnicos e pesquisa de material, sendo assim impor- contêm essas forças da natureza viva, que tantes informações como, por exemplo, a justificativa para o também estão nas folhas, sementes e nos registro da coleção foram perdidas. frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimen- to, votos de boa-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de 91 Documento integrante ao Dossiê de Tombamento. Processo nº objetos que representam os deuses quan- 35_T_SPHAN/38. Arquivo Noronha Santos/IPHAN do estes são assentados, fixados nos seus 206 altares particulares para serem cultuados. membro do grupo – quer se trate de família ou de nação – São as pedras (os otás) e os ferros dos ori- o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência.” xás, suas representações materiais, símbo- (1992, p. 207). O autor aponta que a noção de unidade e con- los de uma sacralidade tangível e imediata. tinuidade aparece mesmo no uso dos pronomes empregados (PRANDI, 2001, p. 103) pelos entrevistados:

A reivindicação por devolução dos objetos sagrados sob Com essa análise do estilo e dos prono- guarda da polícia reflete o significado que os mesmos pos- mes pessoais colocados em relação com suem no sistema de valores do candomblé: o que foi roubado situações e acontecimentos, a história de vida – esta é a minha hipótese – ganha não é apenas material, a apreensão dos objetos indica a prisão um indicador muito fidedigno do grau de do próprio sagrado, do Axé, ou seja, da força vital e sagrada domínio da realidade. O predomínio de de- dos orixás. terminados pronomes pessoais no conjunto A fala sobre as violências cometidas pelo Estado, organ- de um relato de vida seria uma medida, ou izada nos testemunhos funcionam então como um trabalho um indicador, do grau de segurança interno de enquadramento da memória que pode, por vezes, deses- da pessoa (POLLAK, 1992, p 215). tabilizar a memória coletiva organizada de uma sociedade majoritária (Pollak, 1992). O que será analisado daqui em A noção de coletividade e de ancestralidade perpassa diante se refere a esse processo, a partir do exercício de reflex- a fala de Mãe Meninazinha, muitas vezes igualando os dois ão feito por Mãe Meninazinha com relação à repressão sof- pronomes que englobam os antepassados, o povo de san- rida pelos praticantes das religiões de matriz africana e que to de uma maneira geral e os objetos. O “nós” refere-se às resultou na formação da coleção. A experiência não se refere apreensões vividas na casa de Mesquita que é a casa de sua apenas àquela vivida por ela, já que elementos constitutivos avó, com quem há uma marcante ligação familiar consan- da memória, individual ou coletivamente, são acontecimen- guínea e religiosa. tos vividos pela própria pessoa ou pelo grupo no qual esta A luta, como denominado por Mãe Meninazinha, se deu se insere. Estes são nomeados por Pollak como “vividos por através de reivindicações pela devolução dos objetos seques- tabela” (1992). No escopo dessa última classificação estão trados que configuram uma disputa mais ampla por repa- ainda os acontecimentos herdados, quando há a identificação ração do Estado nos campos da memória e da representação, com situações vividas pelo grupo e passadas adiante por so- para através do protagonismo de lideranças religiosas fazer cialização: com que os objetos retornem ao âmbito do sagrado. A memória é em parte, herdada, não se re- fere apenas à vida física da pessoa. A memó- AS REIVINDICAÇÕES ria também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em Há registro de uma proposta efetuada em 1978, por que ela está sendo expressa. As preocupa- estudantes pertencentes ao Grupo de Trabalho André Re- ções do momento constituem um elemento bouças (Universidade Federal Fluminense/UFF), de devolução de estruturação da memória (POLLAK, 1992, dos objetos da coleção a seus respectivos donos. A intenção p. 204). era entrar em contato com as mães e pais de Santo, e criar uma base de dados que possibilitasse o levantamento de As preocupações do momento contemporâneo vivido informações sobre a origem de cada objeto apreendido, para por aqueles que compartilham suas memórias, no caso, devolvê-los aos terreiros. Caso não fosse possível, havia ainda através de entrevistas, afetam o enquadramento da memória a proposta de que a própria universidade ficasse responsável e também a construção de identidades que para Pollak se de- pela guarda dos objetos (MAGGIE, CONTINS, MONTE-MÓR, finem como “Todos os investimentos que um grupo deve fazer 1979: 75). Entretanto, não há maiores detalhes sobre as infor- ao longo do tempo, todo o trabalho necessário para dar a cada mações levantadas nesse processo. 207 O primeiro registro de pedido de devolução dos objetos saber pra onde vai. Tem que voltar pra nossa pertencentes à coleção por parte daqueles que reivindic- [casa]. Não tem que ficar lá presos. Por quê? am sua propriedade original encontra-se no livro Medo do É a mesma coisa que eu, eu, meu povo tives- Feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. A autora con- se preso lá. Nós estamos presos. Enquanto sidera-o inviável: “Houve um momento em que algum setor aquilo não sair de lá, não vou me sentir livre. do movimento negro tentou levantar como bandeira de luta a Nosso, é nosso. Pertence a nós.(grifo nosso) devolução das peças a seus legítimos donos, os pais-de-san- to. É impossível tal operação” (MAGGIE, 1994: 263). Apesar de Ao descrever a apreensão dos objetos, Mãe Men- apresentar poucas informações sobre o pedido, a afirmação inazinha caracteriza o ato como roubo, o que se estendeu por de Maggie emerge em um momento no qual a devolução toda a entrevista. Logo, há a subversão do entendimento de seria improvável. Segundo a autora, porque os objetos con- crime: se nas primeiras décadas do século XX os objetos foram stituíam prova do uso do feitiço para o mal e, assim, “como classificados pelo Estado como provas do crime de magia, ninguém se autodefine como feiticeiro, ninguém quer ser vis- hoje os mesmos objetos são, para aqueles que reivindicam to como dono dos objetos” (Ibidem). Porém, passados vinte e sua propriedade, provas do crime cometido pelo Estado con- dois anos, é preciso rever esta declaração, já que o contexto de tra as religiões afro-brasileiras. Assim, o uso do termo roubo reivindicações por direitos à memória se modifica, sobretudo define o posicionamento de denúncia com o qual toda a fala em decorrência das políticas empreendidas a partir da Con- de Mãe Meninazinha estará comprometida. stituição de 1988, das diretrizes internacionais e organização Outra noção trazida pela ialorixá, que é aqui destacada, dos movimentos sociais. é o entendimento de que os objetos, por estarem no Museu Nas décadas de 1990 e 2000, foram efetuadas reivindi- da polícia, estão presos. Não há dúvidas de que essa consid- cações por lideranças religiosas, em sua maioria da Baixada eração está diretamente atrelada ao fato de os objetos terem Fluminense. Sobre isto, Mãe Meninazinha comenta: sido evidências de crimes no século passado. O fato de contin- uarem sob tutela da instituição policial faz com que o signifi- Já procuramos a polícia para devolução, por- cado das apreensões reverbere ainda hoje a partir da conexão que todas aquelas imagens não deveriam com aqueles que possuíam os objetos ou, ainda, numa não estar em um museu, mas nas nossas casas distinção entre objetos e pessoas. Percebe-se, assim, a força e terreiros. A política trata como acervo, da conexão entre as pessoas e seus objetos sagrados. Mãe mas para a gente é sagrado (MENINAZINHA Meninazinha ressalta que há muitos anos procura trazer a D’OXUM, Relatório Parcial da Comissão da pauta da devolução dos objetos. Verdade do Rio, 2015, 69) A fim de buscar alternativas a essa situação, ocorre a for- mação de uma comissão que esteve em contato direto com Quando questionada sobre o que significa para ela que a Polícia a fim de debater o futuro dos objetos apreendidos. os objetos estivessem no Museu da Polícia, Mãe Meninazinha Mãe Meninazinha ressalta que a ida foi possibilitada por Coro- é categórica: nel Ubiratan, responsável pelo acervo no período e que estava Uma coisa horrível, uma coisa nossa. Coisa prestes a se aposentar. A comissão era formada por Mãe Beata que vieram de África, nossas, religiosas. Sa- de Iemanjá, Torody de Ogum e Tânia de Iemanjá92: gradas. Na Polícia? Como que eu me sinto? Como meus ancestrais, minha avó e outros Fomos numa comissão, eu, alguns babalori- se sentiam. Como se sentiram quando a xás, ialorixás. Fomos lá no museu da Polícia. casa foi invadida, roubada. Como é que eles Ubiratã, Coronel, né? Ele já saiu há muito se sentiram? Eu sinto a mesma coisa. Eles tempo (…) Mas nada adiantou Porque passaram aquele mau momento (…) E eu eles alegavam que não tinha, que nós não hoje, por ter sido roubada, hoje não vou fa- zer nada? Aquilo é nosso. Eles não tem que 92 Mãe Meninazinha indica ainda a possível presença de um babalorixá – Pai Zézito. 208 temos um outro museu, que nós não temos A terceira alternativa para a saída dos objetos um outro local pra poder abrigar, como eles do museu da polícia recai na noção de direito nas decisões disseram, o acervo, como eles se referem. do futuro dos objetos. Há três anos o Museu Nacional tem “Esse acervo pra sair daqui tem que ir pra demonstrado interesse em receber os objetos em seu acer- outro lugar”, mas claro que nós não estamos vo. Na perspectiva de Mãe Meninazinha a transferência dos reivindicando pra tirar pra deixar na rua, objetos para o Museu Nacional significaria uma etapa para o não. Tem lugar para estar, tem lugar pra fi- retorno ao povo de santo, provavelmente pelas relações que o car. Eles têm que voltar pra origem, eles tem Museu mantém com o Ilê Omolu Oxum. Em projeto de 2004, que voltar pra casa de Candomblé. Lugar os cantos entoados no terreiro foram gravados em CD, como deles não é no museu da polícia. Isso é uma resultado de pesquisa e parceria com a instituição, sendo que humilhação pra gente. O lugar deles não é aqui [no museu da polícia], o lugar deles é alguns pesquisadores também eram integrantes de terreiros, 93 na casa de Candomblé. inclusive filhos de santo de Meninazinha.

Surge aqui a primeira alternativa ao futuro dos objetos: CONCLUSÃO o retorno às suas casas de origem. Como tratado no primeiro O debate sobre os objetos da coleção de objetos sagrados capítulo deste trabalho, fica evidente que o retorno dos ob- sob a guarda do museu da polícia está inserido em um con- jetos seria dificultado ou impossibilitado por, ao menos, três texto de mudanças históricas, que marca significativamente questões. A primeira diz respeito às lacunas de informações o campo da Museologia e do Patrimônio. A reivindicação de sobre cada objeto. Mesmo que se tenha todas os dados como, objetos retirados de seus contextos originais, principalmente por exemplo, local e data da apreensão, nomes das testemu- no período colonial, para integrarem coleções de museus, nhas presentes sendo elas membros da comunidade, entre apresenta-se latente há pelo menos cinco décadas. Trata-se outros, seria possível identificar para onde os objetos iriam? de uma questão controversa que atinge vários museus ao re- Seguramente, um sem número de terreiros dos quais os ob- dor do mundo, principalmente àqueles Etnográficos (SLEEP- jetos foram retirados já não mais existem nos mesmos locais ER-SMITH, 2009; NASON, 1997). e sob a mesma liderança. Assim, outra questão é levantada: a Vale ressaltar que a multiplicidade de identi- legitimidade de reivindicação de uma liderança que seja da dades na pós-modernidade ou contemporaneidade é um mesma linhagem espiritual da detentora dos objetos origi- dos fatores que permite a formação desse contexto, baseia- nalmente. do na disputa por protagonismo nas narrativas e que tem a Uma segunda alternativa surge. Na visita da comissão de memória como fator legitimador, no contexto do pós-coloni- lideranças ao museu da polícia a resposta dada à solicitação alismo. É o que Gomes e Vieira afirmam: de devolução dos objetos foi negativa e a justificativa basea- va-se na ideia de que os objetos só sairiam da instituição para Nesse cenário de “guerra” no qual são dispu- um outro museu. Entretanto, os já existentes memoriais de tados espaços, posições e visões de mundo, terreiro parecem não ter sido levados em consideração no há um ponto evidente: a memória “explode”, momento dessa decisão. É o caso do Memorial Iyá Davina, fragmenta-se e se torna um arsenal, utili- fundado no Ilê Omolu Oxum em 1997, terceira iniciativa do zado por atores e grupos sociais. Trata-se tipo no Brasil até aquele momento, tendo sido precedido pelo de um uso sinuoso da memória que, por Memorial Mãe Menininha do Gantois e o Ilê Ohum Lalai, am- um lado, permite elementos de reivindica- bos em Salvador. Sensível às questões associadas à memória ção por demandas, valorização de grupos e ressignificação da própria história, como e ao patrimônio, Mãe Meninazinha fundou em homenagem à no caso dos movimentos negros e indígenas sua avó, a partir de extenso levantamento histórico no Rio de no Brasil, das denúncias do Holocausto em Janeiro e Salvador. 93 Atualmente um novo campo de disputas em relação à coleção está colocado, o que será pontuado na conclusão deste trabalho. 209 países europeus, dos movimentos sociais de cia traz-se ao debate Piotr Bienkowski (2014), pesquisador e denúncia dos crimes das ditaduras militares consultor na área dos Museus que se dedicou a assessorar o na América Latina (GOMES,VIEIRA, 2016, p. compartilhamento de autoridade entre instituições culturais 269). e comunidades no Reino Unido. Quem está autorizado a falar pelo grupo de Como tratado por Gomes e Vieira é em momentos de origem? Este aspecto é ponto relevante para compor a com- “controvérsias públicas” que as narrativas se reestruturam, plexa relação de atores envolvidos nos processos de restitu- quando “é relevante a ‘eliminação das ambiguidades’, por ição/repatriação. Davon A. Mihesuah96 (2000) reflete sobre o meio de esquecimentos produzidos pelas narrativas, orais ou tema, observando que, nos casos de repatriação, mesmo os escritas, que fixam e transmitem acontecimentos e persona- grupos se reconfiguram e podem ocorrer alianças políticas gens, portadores das marcas identitárias” (GOMES, VIEIRA, entre grupos distintos em busca por um fim em comum. A re- 2016,p. 274). Compreende-se que reivindicações por re- flexão apontada pela autora colabora com questões relativas patriação configuram “controvérsias públicas”, como no caso à coleção aqui apresentada, , formada por objetos original- da coleção de objetos religiosos aqui tratado. mente pertencentes a casas de Candomblé e de Umbanda, A repatriação tem comumente sido encarado a partir da porém reivindicada por lideranças do Candomblé, questão já ideia de conflito, ressaltada por muitos autores como inerente anunciada no capítulo anterior e aqui aprofundada. ao campo (WARREN, 1999; MIHESUAH, 2000). Entretanto, Casos internacionais se mostram úteis para a outros horizontes teóricos emergem como possibilidades presente análise, entre eles os objetos apreendidos no ano de para a compreensão do fenômeno, como, por exemplo, as 1992, em Village Island, em virtude de um grande Potlach97 noções de contato (CLIFFORD, 2003, 2016) e de perspectiva reprimido pelo governo canadense. O que estes objetos e os 94 integradora (WARREN, 1999). Tais posições integram a prob- da coleção do Rio de Janeiro compartilham é o fator comum lematização que a pesquisa traz sobre a coleção de objetos de que ambas foram coletadas através de atos repressores do religiosos, que será explorada adiante. Estado à práticas religiosas e culturais. Outro debate importante diz respeito às impli- A disputa em torno da coleção de objetos sagra- cações entre as noções de propriedade cultural e repatriação. dos Afro-brasileiros ampliou-se consideravelmente no último Dois posicionamentos contrastantes são identificados: fa- ano. Novos atores e instituições demonstram interesse em vorável e contrário às devoluções. É partir destas posturas an- sua guarda e exposição, novas lideranças religiosas deman- tagônicas que são listados os principais argumentos utilizados dam a saída dos objetos do museu da polícia. O lançamento em favor da devolução de objetos – para os respectivos gru- da campanha Liberte Nosso Sagrado, com a participação de pos de origem - e contra a repatriação (países estrangeiros ou os atuais detentores dos objetos). O levantamento efetuado 96 Mihesuah é professora do Programa de Humanidades da Universi- por Karen J. Warren95 (1999), amplia a noção de repatriação, dade do Kansas e descendente Chickasaw incluindo-a no que nomeia “os 3R’s”: restitution, restriction e 97 Ver análise sobre Potlach em Marcel Mauss, Ensaio sobre o Dom rights (restituição, restrição e direitos). (2001). Apresento os significados do Potlach a partir de definição do site do Centro Cultural de U’mista: “We dance to celebrate life, to show A noção de valor também se insere no escopo dos we are grateful for all our treasures. We must dance to show our history, 3R’s. A forma como se valora os objetos musealizados – como since our history is always passed on in songs and dances. It is very religiosos, bens patrimonializados, esteticamente belos etc. - important to tell the stories in exactly the same way. We put our stories configura um dos campos de disputa entre grupos de origem into songs and into dances so they will not change. They will be told the same way every time. We use theatre and impressive masks to tell our e detentores dos objetos. Tendo como ponto de partida a ancestor’s adventures so the people witnessing the dance will remember coleção de objetos sagrados sob a guarda do museu da polí- it. The ceremony to tell our stories and to show social changes such as birth, marriage, name giving, standing up a new chief and death is called a Potlatch. In the Chinook language it means ‘to give’. The people 94 Integrative perspective we invite are not only guests. They are also witnesses of our Potlatch and 95 Warren é autora de diversos livros sobre Eco-feminismo e Filosofia, e we give them presents for being a witness”. Disponível em: http://www. professora na Universidade Macalester, EUA umista.ca/exhibits/index.php. Acesso em 15 de fevereiro de 2017 210 lideranças religiosas, deputados estaduais e sociedade civil Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, assim como do documentário intitulado Nosso Sagrado, pela 1998. p. 183-191. Quiprocó Filmes, reacendeu a disputa pública em relação aos objetos sagrados apreendidos pela polícia. A análise do CORRÊA, Alexandre Fernandes. O Museu Mefistofélico e a processo de repatriação dos objetos, que parece tomar for- distabuzação da magia: análise do tombamento do primeiro ma mais concreta nos últimos meses, será tema da pesquisa patrimônio etnográfico do Brasil. São Luis: EDUFMA, 2009. empreendida nos próximos quatro anos no Doutorado em Memória Social (PPGMS/UNIRIO). CLIFFORD, James. “Museologia e contra-história: viagens pela Costa Noroeste dos Estados Unidos”. In: Abreu, R. & Cha- ABSTRACT gas, M. (orgs.). Memória e patrimônio. Ensaios contemporâ- neos. RJ: DP & A Editora, 2003. The collection of sacred objects currently under custody of Rio de Janeiro State’s Civil Police Museum has been built up GOMES, Edlaine Campos. VIEIRA , Andréa Lopes da Costa. based on the articles 156, 157 and 158 of the 1890’s Brazilian Novos Contextos, antigas questões em memória. In: Por que Criminal Code that criminalized the illegal practice of Medi- Memória Social? Geiger, Amir ...(et al.) DODEBEI, Vera, FARIAS, cine, Magic and Charlatanism. The importance of the set was Francisco R., GONDAR, Jô (org.). Rio de Janeiro: Híbrida, 2016. endorsed in 1938 by, at the time called, Historic and Artistic Patrimony Service, currently IPHAN, when listed as Protect- GONÇALVES, José Reginaldo dos Santos. A retórica da ed Patrimony. It is the first record in the book of Archeolog- perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de ical, Ethnographic and Landscape Preservation, named Black Janeiro: Editora UFRJ, IPHAN, 2002. Magic Museum. The fact that such objects have been catego- rized in multiple classifications only reveals its cultural biog- KOPYTOFF, Ygor. A biografia cultural das coisas: A mer- raphy. It is its sacred nature, however, and, mainly, its relation cantilização como processo. In.: APPADURAI, Arjun (org). A with the sacred people represented by Mãe Meninazinha de vida social das coisas: As mercadorias sob uma perspectiva Oxum, ialorixá of Ilê Omolu and Oxum, that will be pointed cultural. EdUFF, 2008. out. The claim for repatriation of the mentioned material is therefore proposed, placing the matter in the national and LODY, Raul. O negro no museu brasileiro: construindo international debate regarding cultural property. identidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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212 O CINEMA E A REPRESENTAÇÃO DA RELIGIOSI- sidade popular amazônica, enquanto produto da memória DADE POPULAR DA AMAZÔNIA PARAENSE98 coletiva.

Sandreson Marcelo Pereira da Silva99 – PPLSA/ Palavras-chave: Cinema. Religiosidade Popu- UFPA – [email protected] lar. Ficção. Amazônia Paraense.

Helena Dóris de Almeida Barbosa100 - FACTUR/ INTRODUÇÃO UFPA – [email protected] Para contextualizar a pesquisa é necessário fazer um RESUMO pequeno panorama do cinema mundial até chegar no que temos de expressivo do cinema nacional. Desta forma, retor- A religiosidade popular amazônica possui peculiaridades namos na história até o final do século XIX, quando surgiu o derivadas da diversidade e sincretismo herdados dos povos que Costa (2005) chamou de primeiro cinema, mais precisa- negros africanos, nativos – índios – e europeus. Esses cos- mente entre os anos de 1889 a 1895. Segundo Costa (2005) tumes, tradições de manifestação da religiosidade evidenci- as primeiras exibições de filmes com uso de um mecanismo adas por crenças e rituais, se misturaram evoluindo no que intermitente aconteceram entre 1893, por Thomas A. Edison hoje transversaliza-se entre sacros e profanos, imaginário e com quinetoscópio, um instrumento de projeção inter- misticismos, gerando assim fortes influências nas relações na de filmes inventado por William Kennedy Laurie Dickson, sociais e com a natureza do povo amazônico, inclusive inserin- engenheiro chefe dos Laboratórios Edison em 1891, e 28 de do-se associado a novos usos, dentre eles o turismo cultural. dezembro de 1895, quando os irmãos Louis e Auguste Lu- O cinema paraense, em sua maioria curtas-metragens, nos mière realizaram em Paris a famosa demonstração, pública e últimos vinte anos, traz consigo muito do seu povo, sobretudo paga, de seu Cinematógrafo. Na ocasião foram exibidos film- a religiosidade amazônica, com forte viés no sincretismo, mis- es curtos como “La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895)” e ticismo, ritualístico, simbólico, muito característico de crenças “L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat (1895)”, considerados populares, podendo se constituir em possíveis veículos de os mais icônicos dos irmãos. divulgação e atratividade turística. O objetivo do trabalho é Os primeiros filmes produzidos e exibidos eram docu- identificar como a religiosidade popular amazônica paraense mentários curtos, destinados à promoção do cinematógrafo. está sendo representada no audiovisual ficcional no estado do Os documentários, eram registros contínuos da realidade dos Pará e seu reflexo a partir da práxis local para o global. Desta Lumières, planos fixos e gerais. De acordo com Costa (2005), maneira vem-se analisando as imagens, formas, cores, mov- tempos mais tarde Georges Méliès, também francês, sendo imentos, símbolos que dão sentido em uma perspectiva de este visto como o pai do cinema de ficção e dos efeitos visuais, narrativa fílmica ficcional de um universo cultural real. Para um teatrólogo que aperfeiçoou a linguagem acrescentando o desenvolvimento do estudo, estão sendo compiladas cenas narrativa ao recém-nascido cinema. Este aperfeiçoamento de filmes paraense lançados nos últimos vinte anos sendo apresentou dinâmica as imagens em movimento por meio de analisadas em sequência e planos específicos, observando a cortes, porém os planos continuavam distantes do objeto de temática abordada na pesquisa, a representação da religio filmagem. Planos gerais e fixos. Costa (2005) destacaum dos filmes mais conhecidos de Méliès é “Le voyage dans la Lune 98 Este artigo emerge das reflexões que vem sendo dinamizadas no (1902)”. âmbito do Projeto de Dissertação submetido ao Programa de Pós-Gradu- ação em Linguagens e Saberes na Amazônia. No período de transição, Mascarello (2006) ressalta os 99 Licenciado em Letras Inglês, pela Universidade Federal do Pará. anos entre 1907 e 1913-1915, nos quais foram desenvolvidas Atualmente mestrando no Programa de Pós-Graduação em Linguagens as técnicas de filmagem, atuação, iluminação, enquadra- e Saberes da Amazônia –PPLSA/UFPA. Integrante do Grupo de pesquisa mento e montagem no sentido de tornar mais claras para o Laboratório de Estudo Linguagem, Imagem e Memórias – LELIM. espectador as ações narrativas. Neste período estabeleceu-se 100 Doutora em Desenvolvimento Socioambiental, pesquisadora e a linguagem cinematográfica que se coonhece hoje. Neste docente da Faculdade de Turismo/Universidade Federal do Pará. 213 momento do cinema, aparece um cineasta norte americano erado o cineasta mais influente do cinema brasileiro e é um chamado de D. W. Griffith, o qual criou o conhecido plano dos grandes nomes do cinema novo, o mesmo produziu filmes americano, colocando a câmera mais próximo do ator, e us- como “Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)” e “Terra em transe ando closes, e o uso mais frequente da montagem em seus (1967)” filmes. Em 1915 Griffith lançou o primeiro longa-metragem o A presença do cinema no Pará, teve seus primeiros reg- polêmico “The Birth of a Nation” istro no final do século XIX para o início do século XX. Como De 1985 a 1926 é um período considerado como cine- objeto fílmico a realidade do povo amazônico era retratado ma mudo. Apenas em 1927, com o filme “O Cantor de Jazz” nas películas dessa época. Contudo, o que predominava como produzido pela Warner Bros, com o sistema sonoro Vitaphone, temática dos registros, além da vida ribeirinha, da política era o qual permitiu acoplar a imagem, o som. Assim, este filme a religiosidade. Dentre estas, há em vários registros o Círio de foi considerado o primeiro filme falado, contendo trechos do Nazaré retratado por cineastas radicados no Pará, tais como o filme com som direto. paulista Líbero Luxardo, o catalão Ramon de Baños e o Ital- Bilharinho (1997) relata que a primeira exibição de cin- iano Nicola Parente. ema no Brasil aconteceu em 8 de julho de 1896, no Rio de Nos primórdios do que afirma ser o cinema paraense, Janeiro, por iniciativa do exibidor itinerante belga Henri Pail- Veriano (1999) afirma que a religiosidade no Pará já tinha lie. Foram exibidos por volta de oito documentários curtos. representação nas películas. O cinema documental, forte nos No entanto, os primeiros filmes brasileiros foram rodados por primeiros anos do cinema mundial, e implantado mais tar- volta de 1897-1898, entre eles o intitulado “Vista da baia da de em 1897, coincide com o período dos primeiros registros Guanabara” filmado pelo cinegrafista italiano Affonso Segret- cinematográficos em Belém, muito, devido a chamadaBelle to. Époque1, no período da Borracha na região, inicialmente por Os primeiros filmes de ficção feitos no Brasil foram em Ramon de Baños, um catalão, que se transformou no mais im- sua maioria reconstituições de crimes já explorados pela portante cineasta a trabalhar o Pará durante o cinema mudo. imprensa. Desta forma a realidade da época desencadeou a De acordo com Autran (2008) mais tarde o cineasta Libero produção do cinema ficção da época. Médias metragens como Luxardo, foi o primeiro a filma r um longa-metragem roda- “Os Estranguladores”, de Francisco Marzullo (1906), “O Crime do em Belém, mas antes dirigiu documentários curtos, que da mala”, de Francisco Serrador (São Paulo, 1908) e “Noivado seguiam a mesma lógica local dos primeiros filmes na região, de Sangue”, de Antonnio Leal (Rio de Janeiro, 1909), foram ex- como a religiosidade e política. pressivos na produção cinematográfica brasileira. Segundo Nazário (2010) ao longo da história do cinema, No período pós segunda guerra mundial, tem-se um diversos artistas tentaram captar e transmitir o sentimento movimento expressivo conhecido como realismo italiano, metafísico de Deus, principalmente no que tange os aspectos neste período foram produzidos filmes como “Roma, Città morais da religiosidade. O sueco Ingmar Bergman projeta-se Aperta” (1945) e “Ladrões de Bicicleta (1948)”, os quais não nesse contexto como o estilista dos tormentos da alma. Berg- se furtavam em transparecer o cenário deixado pela guerra, man no filme A Fonte da Donzela (Jungfrukallan, 1959). em todos os aspectos, como forma de resistência. Segundo Bilharinho (1997) no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1970 1 A capital do Pará durante o período da belle-époque, compreendido surgiu o gênero conhecido como Cinema Novo, um movimen- entre as décadas de 1870 a 1910, passou por profundas transformações to cinematográfico brasileiro, que deu ênfase em temáticas em sua paisagem urbana [...] para se tornar a Belém moderna. “A economia da borracha determinou alterações acentuadas na estrutura como a igualdade social e intelectualismo, isso tudo, em re- social de belenense. [...] tentativas de adaptação aos modernos cos- sposta à instabilidade racial e classista no Brasil. Movimento tumes europeus, num profundo contraste com a realidade amazônica, influenciado pelo neorrealismo italiano e pela Nouvelle Vague além das tensões sociais geradas por uma nova ordem social capitalista francesa, filmes produzidos sob a ideologia do Cinema Novo emergente. [...] O cenário central da cidade vai ser transformado em ‘es- paço elegante e chique’, por onde deveria desfilar a burguesia exibindo se opuseram ao cinema tradicional brasileiro, o qual tinham o seu poder, luxo e riqueza. O resultado dessa modelação da cidade é como base o estilo hollywoodiano. Glauber Rocha é consid- a elitização do espaço urbano com a erradicação dos setores populares para as áreas mais distantes do centro”. (SARGES, 2002) 214 Nele, uma virgem é violentada e morta por salteadores, mas origem do catolicismo que dá ênfase ao culto aos santos, às tem sua santidade reconhecida por Deus, que faz brotar no festas de santos e grupos organizados para realizar festivi- local do crime uma fonte milagrosa, retrata a visão que esta- dades. Tinhorão (2000) descreve com riqueza de detalhes o belece a religiosidade de um indivíduo no cinema. ritual religioso da primeira missa e o contato dos portugueses Nesta mesma perspectiva, na qual a religiosidade está recém chegados com os indígenas. expressa na linguagem de realizadores de cinema, Nazário Datado do século XVII, a vinda de missões jesuítas para a (2010) traz a evidencia o espanhol Luis Buñuel, que preferiu Amazônia e o contato com os indígenas, suas crenças e suas ocupar-se das heresias religiosas. Devido à violenta repressão devoções, agregado a fenômenos que mais tarde vieram a sexual Buñuel começou a associar a morte ao erotismo, bem contribuir para o atual formato da religiosidade popular no como a fé, e toda essa temática é vivida em toda sua obra. Brasil. Dentro dessa realidade, Saraiva (2010) afirma que De diversas maneiras, segundo Nazário (2010) o escritor tem-se os santos padroeiros como figuras de relevada im- e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini aborda o Sagrado, e para portância dentro do universo das devoções das comunidades, tanto, projeta o sentimento de transcendência na história de dessa maneira a figura de Deus e Jesus Cristo como entidades um ladrão miserável, enfoca as personagens como figuras de sagradas não se destacam tanto, como no contexto de pop- arte sacra e encerra o filme com um sinal da cruz. Para este, ulações urbanas. Ainda segundo Saraiva (2010), a figura da um aparato de sacralização também utiliza para contar a Virgem Maria assume a imagem de Nossa Senhora que nas história de uma prostituta que se esforça para melhorar de comunidades ribeirinhas aparece revestida sob a identidade vida e oferecer ao filho uma oportunidade de vencer, tendo de santas de devoção de grupos de mulheres e de algumas suas esperanças destruídas pela realidade em Mamma praticantes de cultos místicos como as benzedeiras e reza- Roma (1962). Depois de reler Platão, relata Nazário (2010), deiras, bem como as parteiras tradicionais que se pegam em Pasolini encontra uma nova maneira de abordar o agrado, re- oração às suas santas de devoção na hora da realização de seu fundindo a realidade contemporânea na mitologia clássica e ofício, o parto. substituindo a dialética hegeliana da eterna superação pelo No que tange a religiosidade amazônico paraense, é confronto de oposições irreconciliáveis. muito comum, a presença do sagrado e o profano. Esses Atualmente, de acordo com Nazário (2010) o di- destacados por Eliade (1992) como modos distintos de ser no namarquês Lars von Trier renova a estética do Sagrado: mundo, capazes de promover mudanças espaciais. Contextu- anacrônicos e modernos, seus filmes integram a dimensão alizado por Rosendahl (1996) o sagrado e o profano se con- metafísica à visão racional do mundo, dimensionando um stituem formadores e modificadores do espaço seja de uma cinema que nega a realidade em busca da existência da alma. comunidade ou de uma cidade. Em 1998, o cineasta trouxe a público o manifesto Dogma Desta maneira, pode-se definir manifestações da religi- 95, propondo, com seu vocabulário religioso, um fazer cin- osidade popular, a partir de Maia (1999, p. 204) que afirma, ematográfico despojado, liberto da estética de Hollywood. “manifestações culturais que se caracterizam, entre outros Para o autor, o conteúdo prevalece sobre a técnica, ignora o aspectos, por serem eventos efêmeros e transitórios, perdur- belo na imagem e reivindica os valores, o qual revela uma ando algumas horas, dias ou semanas”. Nesse espaço é que transcendência metafisica sem temer o público ou a crítica. aparecem os elementos constitutivos explícitos da identidade Diante do exposto sobre a religiosidade no cinema, a das festas de santos e rituais amazônicos. realidade deste tema no Brasil iniciou-se desde os primórdi- Nesta perspectiva de realidade religiosa popular os da chegada dos portugueses. Ao introduzir o catolicismo amazônico paraense representada em filmes na categoria de diante de uma terra onde já habitavam nativos, intitulados ficção, é que o trabalho de pesquisa vem sendo desenvolvido. indígenas, o sincretismo, a mistura era inevitável, posteri- A princípio, se fez um levantamento das produções paraense ormente com os negros e assim outros que migraram para nos últimos vinte anos, as quais em seu enredo tenha traços da o Brasil, como é o caso das correntes migratórias do início religiosidade popular amazônico paraense, sincrética e cheia do fim do século XIX e início do XX, os quais colaboram para de seres místicos. Em um primeiro momento, após elencar as

215 produções com características em comum dentro da perspec- em âmbito nacional e local tem-se o Festival Internacional de tiva da pesquisa, caberá uma interpretação, assim é realizado Curta Metragens de São Paulo, em sua 28 edição, o Festival do um estudo de percepção da obra fílmica e posterior análise Rio, Festival de Brasília e um dos mais conhecidos, o Festival crítica levando em consideração os traços verissímil com a de Gramado. No Pará já tivemos festivais mais grandiosos no realidade da crença amazônico paraense. Após sintetizar esta início dos anos 2000, como o Curta Pará Cine Brasil, hoje não analise a pesquisa partirá para os atores desse processo de mais realizado, contudo outros em escala menor, não menos produção, trabalhando desta forma a tradução, levando em importantes, vem se consolidando como o Mostra Curta Pará, consideração a assimilação da ideia até a tela, tendo como com duas edições, o Festival do Filme Etnográfico, ainda com base os relatos dos atores sociais destas produções. uma edição apenas, esse realizados na cidade de Belém e o Para assim compreender, até onde a mimesis da real- Festival Internacional de Cinema do Caeté (FICCA), realizado idade retratada nessas produções revelam os traços desta em Bragança no Pará, com quatro edições, religiosidade identificada neste trabalho de pesquisa, e quais Tais iniciativas permitem não só a divulgação da pro- influencias tais produções operam perante o espectador que dução fílmica contemporânea, como também a divulgação da através da tela tem um primeiro contato com tal cultura, ou cultura e atrativos de uma dada realidade. Assim fomenta-se traços de identidades locais, distante de quem recebe o filme o interesse e a divulgação turística de uma localidade e/ou como um ato de imitação da realidade. Desta maneira o cine- prática cultural, dentre elas a religiosidade, incentivando as- ma veicula não só o local em que foi produzido, mas também sim a prática do turismo cultural. Este artigo traz as reflexões culturas e ambientes naturais, levando ao, despertar do inter- preliminares que estão sendo desenvolvidas no Programa de esse do imaginário em conhecer tais representações fílmicas Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia, no qual se em loco, contribuindo assim para o turismo cultural. “Esse pretende realizar uma análise do processo de tradução e rep- imaginário, por sua vez, envolto por um contexto midiático resentação da religiosidade popular amazônico paraense no de constante retroalimentação, pode inclinar os sujeitos a se cinema ficcional do Pará. deslocarem turisticamente, a fim de experienciar o que antes vislumbraram através das telas” (ALMEIDA, 2015). DESENVOLVIMENTO Toma-se o turismo cultural enquanto segmentação da atividade turística e que se apresenta como um dos maiores Belém conhecida inicialmente como Santa Maria de crescimentos no turismo global e que cada vez mais, diversifi- Belém do Grão Pará é um município brasileiro, capital do ca-se a partir de produtos e destinos acrescidos de elementos estado do Pará, situado na região Norte do país. A cidade foi de cultura “popular”, como a gastronomia, o cinema, os es- fundada em 12 de janeiro de 1616 pelos portugueses, desen- portes e a religião (RICHARDS, 2009). Desse modo é possível volvendo-se às margens da baía Guajará (Paraná-Guaçu). É afirmar a importância que as imagens cinematográficas tem uma cidade histórica e portuária, com o clima equatorial, in- como influência sobre as pessoas para o processo de escolha fluenciada diretamente pela Amazônia. A cidade possui uma de destinos de viagens, bem como a necessidade da utilização área de 1 059,458 km² e uma altitude de dez metros ao nível desta ferramenta, o cinema, para promoção de destinos médio do mar (IBGE, 2017). turísticos. A exemplo disse, são os festivais que fomenta o É o município mais populoso do Pará e o segundo da fluxo de pessoas durante seu período de realização. região Norte com uma população de cerca de 1.452.275 hab- Hoje, com o crescimento e diversificação da atividade itantes, segundo estimativa do IBGE, em 2017, e o 12º mu- turística, é percebido pelo aumento da realização de festivais nicípio mais populoso do Brasil, com IDH de (0,746), (IBGE, de longa e curta metragem e de eventos e acadêmicos cul- 2017) turais que tem o cinema como principal produto. Como ex- Belém possui um dos cinemas mais antigos em atividade emplo pode-se citar o Festival de Curtas-metragens de Cler- do Brasil, com 106 anos, o Cine Olympia inaugurado em 24 mont-Ferrand, que se encontra em sua 40º edição, o Festival de abril de 1912, durante o governo de Antônio Lemos. Desta Biarritz América Latina, em sua 27º edição, ambos na França, forma o cinema por mais tímido que seja a produção cine- matográfica no estado, em comparação com o produzido no 216 eixo Rio-São Paulo, possui uma expressiva importância na estabelecido por filmes produzidos no final dos anos de 1990 construção do cinema no Brasil. Dentro deste panorama do e início dos anos 2000, até a atualidade, período no qual a cinema, o norte também está presente no processo de in- produção cinematográfica paraense obteve crescimento sig- trodução da sétima arte no Brasil. Segundo Veriano (1999), nificativo se constituindo na plataforma desta neste primei- Belém recebeu em 1896, o Vitascope, um projetor de cinema ro momento. Entre produtos e fazedores que integram este comercializado pelos Laboratórios de Thomas A. Edison. Mas período no qual foi alavancado o cinema na Amazônia par- o mesmo não repercutiu tanto na cidade por questão de de- aense, tem-se, o icônico filme Açai com Jabá, dos diretores ficiência técnica. Alan Rodrigues, Marcos Daibes e Walério Duartefeito em Veriano (1999), apesar de não conseguir identificar a 2002, autoria dos primeiros filmes realizados em Belém, afirma que Fernando Segtowick, que apesar de gostar de retratar a com a chegada do cinematógrafo na região a possibilidade de Belém como uma cidade metrópole, escreveu e dirigiu o filme filmagem e projeção era real, porém o autor atribui à ação de Matinta em 2010, estrelado pelos atores paraenses Adriano Nicola Parente, nas primeiras filmagens no Pará. Parente, era Barroso, também roteirista do curta, e Dira Paz, premiada no italiano e foi quem primeiro exibiu filmes, no ano de 1897, us- Festival de Brasília com o filme. Luiz Arnaldo Campos, Jorane ando o aparelho dos irmãos Lumière, “mas não deixou provas Castro que dirigiu entre outros o curta, Mulheres Choradeiras concretas do trabalho” (VERIANO, 1999, p. 13-14). de 2000 que participou do Festival de Cannes, divulgando o Por outro lado, em 1911 foi exibido os primeiros docu- Pará em sua película, bem como Juliana Contra o Jambeiro mentários filmados por Ramon de Baños em Belém, intitula- do Diabo pelo Coração de João Batista, produzido em 2012, dos Embarque do Eminente Dr. Lauro Sodré, O Cyrio e o Dia dos de Roger Elarrat, que doze anos mais tarde voltaria as telas Finados em Santa Izabel (BAÑOS, 1991, p. 67). Baños assumiu francesas. as filmagens da empresa de Llopis, The Pará Films, voltada Ambos os filmes com teor místico e cheio de traços cul- não somente para produção de películas publicitárias, mas turais e de religiosidade popular amazônica, transitaram en- outros registros, com teor político e religioso, como o círio de tre a representatividade local e o âmbito global. Nazaré. O cinema paraense, em sua maioria curtas-metragens, Dando um salto na história e surge Libero Luxardo, pau- nos últimos vinte anos, traz consigo muito do seu povo, so- lista de Sorocaba, o qual chega a Belém em 1939, para filmar bretudo a religiosidade amazônica, com viés forte no sincretis- o I Congresso Amazônico de Medicina. Luxardo, estreou na mo, misticismo, ritualístico, simbólico, muito característico de direção em 1932 no filme Alma do Brasil. Em 1941, passa a di- crenças populares, que podem ser observadas no Quadro 01. rigir documentários curtos como O Círio (1941) e Belém Saúda Uma primeira interpretação acerca do teor dos filmes Getúlio (1942). Foi, também, um renovador da cinematogra- elencados nesta pesquisa aponta a necessidade de reflexão fia nacional com o curta metragem Aruanã e os longas, Um mais ampla acerca de tais produções. O filme Chama Ve- Dia Qualquer, Marajó, Barreira do Mar (1964) e Um Diamante e requete (2002), (Figura 1) apesar de ser classificado como Cinco Balas (1970), sobre o garimpo paraense, dos quais par- documentário, o curta de 18 minutos de duração, conta um ticiparam apenas atores locais, e com os quais deu origem à pouco a trajetória do Mestre Verequete, personagem funda- indústria cinematográfica local. Não esquecendo que Luxardo mental do carimbo raiz do Pará. O filme possui uma carga foi o primeiro cineasta a filmar longas com técnicos e atores bem expressiva de traços da cultura religiosa, sincrética da paraenses, privilegiando temas amazônicos em seus roteiros. região norte, precisamente a afro, estabelecida no Pará. A As trilhas sonoras de seus filmes também exaltavam a música começar pelo título, o ponto cantado no terreiro de Mina das do Pará, destacando artistas como o maestro Waldemar Hen- áreas periféricas de Belém deu origem ao apelido de Augus- rique e o compositor Paulo André Barata. to Gomes Rodrigues, cantor e compositor nascido em 1916, Mais recentemente, final do século XX, início do século em Quatipuru, na região bragantina, no nordeste paraense, XXI, a produção cinematográfica no Pará cresceu, e assim el- Verequete, que foi um dos responsáveis pela popularização e enca-se o que se denomina de “levante do cinema paraense”,

217 Quadro 01: Produção Cinematográfica com Traços da Religiosidade Popular.

Produtor ou Diretor/ Nome Categoria Ano Enredo Roteiro Documentário poético sobre Mestre Verequete, Curta-metragem personagem fundamental da história do ritmo raiz do (Documentário com fortes Rogério Parreira e Luiz Chama Verequete 2002 Pará, o Carimbó, que legitimou e divulgou pelos quatro interferências da ficção na Arnaldo Campos cantos do Brasil. O curta é carregada de cenas acerca da composição da obra) religiosidade peculiar paraense. João Batista é um homem frio, lacônico. Ele não con- segue nem dormir nem comer direito, e principalmente demonstrar seus sentimentos pela fotógrafa Juliana, a única pessoa que se interessou por alguém tão estranho e misterioso. Mas agora, João Batista acredita que perdeu Juliana contra o sua alma em uma brincadeira de moleque na infância Jambeiro do Dia- Curta-metragem 2012 e por isso está morrendo. Assim, o casal parte em uma Roger Elarrat bo Pelo Coração jornada ao interior do Pará, durante o carnaval de boi de de João Batista máscaras. Independente se as crenças de João são reais ou não, para Juliana esta pode ser a única chance de rec- onciliação, enquanto que para ele a jornada será a última oportunidade de confronto com o Diabo que espera e espreita escondido entre as máscaras de carnaval. O filme conta a história de desejo, traição e revolta, tendo como pano de fundo a procissão do Círio de Nazaré, em Marta Nassar e Clem- Quero Ser Anjo Curta-metragem 2001 Belém do Pará, uma das maiores festas religiosas do ente Schwartz Brasil e do mundo. Mostra a vida de uma família ribeirinha, uma curandeira Matinta Curta-metragem 2010 e a personificação da Matinta Pereira em uma trama Fernando Segtowick passional. Fonte: Pesquisa de Campo (2018). difusão do ritmo Carimbó em escala nacional nas décadas de O filme em diversos momentos, apresenta expressões 1970 e 1980. da religiosidade amazônico paraense, como os terreiros de Mina, as festividades de santos, que possuem uma ligação com o sincretismo religioso, como São Benedito e São Jorge. Todo esse teor de religiosidade está atrelado ao profano, que a dança do carimbo pode representar. Contudo, o foco do filme não é a religiosidade, porém, é expressivamente representa- da na tela. Como afirma Galvão (1976, p, 31) “Acredita-se firmemente que, se o povo não cumprir com sua obrigação ao santo, isto é, festejá-lo na época apropriada, ele abandonará a proteção que dispensa. Aqueles que custeiam as despesas das festas têm a convicção que o santo retribuirá esse sacrifício”. No filme Juliana Contra o Jambeiro do Diabo pelo Coração de João Batista (Figura 2) de 2012, um curta de 21 minutos de Figura 1 – Festa de São Benedito em comunidade ribeirinha. duração, conta é relatada a história de João Batista, que tem Fonte: Frame retirado do filme.

218 um conflito interno, que o atormenta desde a infância, liga- posse de arma e sentimentos universais como inveja e traição, do a religiosidade popular amazônica. O enredo se passa em por exemplo. Belém, porém apoia-se em tradições de outros lugares como o Boi de Máscara de São Caetano de Odivelas, cidade do nor- deste do Pará. Esta manifestação é comum no mês de junho, compõe a brincadeira, os cabeçudos, o boi com dois miolos2 e demais brincantes mascarados. Todo esse empréstimo foi para dá alegoria aos demônios que perseguem a alma de João Batista. Juliana, namorada de João, personagem dinâmico na trama, o ajuda a superar esse trauma.

Figura 3: Cena do Carro dos Anjos no filme de Marta Nassar. Fonte: Frame retirado do filme.

A tradicional festa religiosa paraense, que homenageia Maria, para o cristianismo a mãe de Jesus, o Círio de Naz- aré, é uma festa católica cristã com fortíssimos elementos sincréticos e simbólicos da região, como a corda que puxa a Berlinda, redoma que carrega a imagem da Santa durante Figura 2 – O mascarado do Boi de Máscara e Juliana. a procissão, ou mesmo a própria história da aparição da im- Fonte: Frame retirado do filme. agem, encontrada pelo caboclo Plácido, e o pagamento de promessas. Desta maneira, estando ligadas à religiosidade e A trama não deixa de ter um enfoque psicológico, com a costumes, tradições, Rosendhal (1999, p. 61), destaca que traços riquíssimos de cultura e religiosidade popular, crenças, ”a prática religiosa de ‘fazer’ e ‘pagar’ promessas constitui uma superstições, pois todo o conflito do protagonista está atrela- devoção tradicional e bastante comum no espaço sagrado do a perda do primo quando criança após terem apanhado e dos santuários católicos”. Nesta mesma linha Galvão (1976), comido frutas vermelhas em plena sexta-feira santa, a fruta diz que a relação entre o indivíduo e o santo baseia-se num em questão trabalhada foi o Jambo e consequentemente o contrato mútuo, a promessa. “Nesta perspectiva, acredita-se Jambeiro. Durante todo o filme, a composição fílmica foi agre- que determinadas imagens tenham poderes especiais, ca- gada de inserts de símbolos religiosos cristãos e fragmentos pacidades de milagres e de maravilhas que outras idênticas de elementos utilizado na história, como o fruto do jambeiro não possuem” (GALVÃO, 1976, p. 29- 30). representando o coração de Cristo, cruz, velas entre outros O pagamento de promessa é o gatilho para a trama ac- suportes religiosos que fizeram parte da construção da trama. ontecer. Ser anjo era o desejo dessas meninas, ultrapassava Quero ser Anjo (figura 3) de 2001, tem como plano de o ato de fazer promessa. Nesta linha de pensamento, Galvão fundo o Círio de Nazaré o pagamento de promessas no Carro (1976, p. 31) diz que cumprindo aquele sua parte do contra- dos Anjos3, apesar de tratar de temas transversais, como a to, o Santo fará o mesmo. Promessas “são pagas” adiantad- amente, para se obrigar o Santo a retribuir sob a forma do 2 Miolo é chamado a ou as pessoas que dançam embaixo do boi. benefício pedido. 3 São treze os carros que fazem parte da procissão do Círio de Nazaré, Matinta (figura 4) de 2010, trabalha a vida ribeirinha e além da berlinda que leva a imagem. [...] Os outros carros do Círio são: a lenda da Matinta Pereira, personificada e entrelaçada em Carro do Caboclo Plácido, o Barco dos Escoteiros, a Barca Nova, Carro do Anjo Custódio, Barca com Velas, Carro do Anjo Protetor da Cidade, a de promessas, enquanto voluntários do grupo dos Carros dos Anjos Barca Portuguesa, o Carro dos Anjos I, Barca com Remos, Carro dos An- levam os demais, garantindo a segurança das crianças cujos pais pagam jos, o Carro da Santíssima Trindade e o Cesto das Promessas. Alunos das promessas. Disponível em: < http://cirio.pa.gov.br/ciriopedia/?p=38> escolas públicas e privadas de Belém ajudam com a condução dos carros Acesso em: 10 de maio de 2018. 219 um triangulo amoroso, entre ritos de pajelança e morte. No bem mais peculiar a religiosidade popular reúne crenças, triangulo amoroso está Valquíria, a personificação da Matinta práticas, rituais, narrativas, símbolos originários de outras e Felício que é casado com Antônia. A lenda no curta tem uma fontes que não àquelas aceitas por lideranças religiosas, linha no gênero suspense, no amor e no misticismo. porém toleradas, embora tidas como errôneas. Nesta linha de pensamento, Sanchis (1997) descreve a configuração da religiosidade popular no Brasil como sendo profundamente sincrética, mesmo dominado pelo catoli- cismo durante séculos, o país sempre teve uma estrutura religiosa sincrética de um modo peculiar. Para Jung (1990) o que caracteriza a religiosidade é a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numi- noso, aquilo que é influenciado, inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade. Reforçado por Cassirer (1994), quando afirma que a própria noção de homem está estrita- Figura 4: São Jorge no oratório de Nazaré, mãe de Felício. Fonte: Frame retirado do filme. mente vinculada a uma noção de religio. Assim, Tal conceito, naturalmente, é deveras amplo, abrangendo não somente as Além da figura mística da Matinta, a mãe de Felício, religiões instituídas como também formas mais “pessoais” de possui saberes tradicionais de pajelança e cultua Santos como religiosidade, por assim dizer. Podemos encontrar tal ideia São Jorge, muito presente em outras manifestações religiosas de religio também em outros autores clássicos. Cícero tinha no Pará e na Amazônia. Como afirma Galvão (1976) que al- opinião semelhante: “religião é aquilo que nos incute zelo e guns destes Santos, representados por suas imagens fazem o um sentimento de reverência por uma certa natureza de or- papel de protetores ou patronos de alguns ofícios desenvolv- dem superior que chamamos divina” (JUNG, 1990 p. 93). idos pela comunidade. São Sebastião como santo dos pesca- Nesta linha de pensamento, Eliade (1992) diz que o dores é um exemplo desta devoção. homem religioso assume um modo de existência específico Em determinado momento do filme a mulher de Felício no mundo naquilo que é sempre reconhecível. Seja qual for está doente de cama, supostamente foi atacada pela Matinta, o contexto histórico em que se encontra, o homo religioso que na trama quer roubar seu marido, moradores da comu- acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagra- nidade local, precisamente mulheres rezam sobre a presença do, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, san- da mulher adoentada na rede, com intuito de curá-la. Assim, tificando-o e tornando-o real. A religiosidade do paraense é pode-se estabelecer ligações entre os filmes apresentados no composta principalmente do cristianismo popular, resultado que tange a representação da religiosidade popular amazôni- de um processo histórico, na qual o povo foi o seu próprio co paraense em suas histórias. Retrata o real, representa o doutrinador e responsável por sua fé. Para Azevedo (2008) a real, imita a realidade do paraense de forma fílmica. Usando Amazônia, após a expulsão dos jesuítas por Marquês de Pom- de aporte fílmico, da linguagem cinematográfica para tornar bal entre 1757 e 1758, ficou por anos desprovida de religiosos, verossímil o que é abordado como trama principal, secundária e o povo que lá estava, construiu sua fé. E em alguns lugares ou mesmo o pano de fundo do enredo. o cristianismo adquiriu uma característica regional, por conta O que se observa no caso da realidade fílmica amazônica dos povos indígenas, em outros teve como representação os paraense, é a constante presença de aspectos relativos a práti- santos, sofrendo uma influência afro, já em outros, há exal- cas religiosas. Segundo Xavier (2006) o conceito de religião é tação da figura de Maria, como é o caso do estado do Pará. bastante próximo ao de religiosidade, pois é considerado um Vergolino (1973) revela mudanças no nível ideológico, elemento vivo, e, portanto, somente existente no contexto da na qual se encontra a existência de uma crença e uma prática experiência do indivíduo. A religiosidade, em uma perspecti- de pajelança cabocla; por outro lado nos centros urbanos esse va mais ampla, evidencia o sentido de transcendência de uma cristianismo popular se dilui na adesão às religiões mediúni- pessoa ao refletir sobre a espiritualidade. E em um contexto cas, sejam elas de fundo evangélico pentecostal, kardecista/

220 espiritismo e sincrética/afro-brasileiro. Assim, expõe (MAUÉS, se constituir em um vetor de busca de novas experiências e 2005 p. 262). lugares a partir da vivencia com o outro. Sob a perspectiva sócio histórica demonstra-se como Os encantados, ao contrário dos santos, são seres humanos que não morreram, mas se os filmes, mesmo sendo de ficção operam um recorte da “encantaram”. Essa crença tem certamente realidade, direcionam o olhar para algumas perspectivas do origem européia, estando ligada às concep- real, e podem incentivar viagens eqou a busca por novas real- ções de príncipes ou princesas encantadas idades. A proposta de Eisenstein (2002) dentro da formação que ainda sobrevivem nas histórias infantis de sentido no contexto da montagem cinematográfica é clara de todo o mundo ocidental. Mas foi influen- ao ponto que se aproxima da pintura do cinema através do ciada por concepções de origem indígena, que para ele é fundamental dentro da arte de editar. Assim, de lugares situados “no fundo”, ou abaixo da observa-se também a concepção compartilhada por Aumont superfície terrestre, e provavelmente tam- (2004) quando diz que uma imagem se olha por meio de um bém por concepções de entidades de ori- percurso, de uma série de movimentos, rápidos e de fraca am- gem africana, como os orixás, seres que não plitude, do globo ocular. se confundem com os espíritos dos mortos. O efeito advindo deste percurso é comparado ao causado pela montagem, ambos atribuindo à imagem uma espécie de Tomando-se por perspectiva fílmica em um contexto sentido que vai além do registro do suporte, possibilita uma amazônico a religiosidade popular é bastante relevante nas narrativa. Desta maneira, partindo da teoria de tradução de narrativas construindo um universo crível revelando a identi- Derrida (1982) que diz que não designa tão-somente os atos dade de um povo. Para tanto Wolfart (2012) afirma ser impor- de transferência de uma língua para outra, nem unicamente tante este produto midiático elaborado distante da grande in- as transferências internas a uma mesma língua, estabelece-se dústria, desta forma, relacionando-se mais intimamente com o processo de concepção daquilo que quer se representar com a realidade social e o imaginário a ele ligado revelando-se tradução. A lógica do transporte, da transferência, da trans- uma conexão com a imagem do sagrado. posição, é extensiva a toda produção de conhecimento. Para Goliot-Lété e Vanoye (1994) o filme opera escolhas, As teorias de Heidegger (1993) e Gadamer (2002) per- organiza elementos entre si, detalhar no real e no imaginário, mitem compreender que a hermenêutica do homem está constrói um mundo possível que mantém relações complexas intimamente ligada com o mundo e sua historicidade, sen- com o mundo real. do essa última, condição e possibilidade de compreensão. Dessa maneira, pode-se dizer que um filme: Nesse sentido tem-se a importante lição quando trata da é um produto cultural inscrito em um de- linguagem fílmica como transformação do simbólico para a terminado contexto sócio-histórico. Embora realidade: que de acordo com Fink (1998) “ao neutralizar o o cinema usufrua de relativa autonomia real, o simbólico cria a ‘realidade’, a realidade entendida como como arte (com relação a outros produtos aquilo que é nomeado pela linguagem e pode, portanto, ser culturais como a televisão e a imprensa), os pensado e falado”. A “construção social da realidade” implica filmes não poderiam ser isolados dos outros em um mundo que pode ser designado, alado e almejado com setores de atividade da sociedade que os as palavras fornecidas pela linguagem de um grupo social produz (quer se trate da economia, quer da veiculadas também pelo cinema e pelo turismo. política, das ciências e das técnicas, quer, é claro, das outras artes). (GOLIOT-LÉTÉ; VA- NOYE, 1994 p. 54). CONCLUSÃO A realidade da Amazônia paraense, seja ela como No sentido em que Umberto Eco o entende, é possível metrópole ou como floresta, revelada em crenças, ritos ou utilizar o filme com intuito de analisar uma sociedade (GO- como imaginário místico popular, seja em qualquer campo LIOT-LÉTÉ; VANOYE, 1994 p. 55). Associado ao turismo pode de atuação, é representada no cinema produzido no Pará, da 221 ficção ao documental. Tal realidade tem o poder de romper correu até chegar na tela. Em suma, a pesquisa, está em an- distâncias e incitar o desejo de vivenciar novos espaços e cul- damento, e pode tomar rumos desconhecidos, à medida que turas como explicita Almeida (2015, p.3) “permiti um desloca- aprofunda-se na temática e no objeto de estudo. Assim, este mento simbólico, cria e/ou alimenta o desejo dos sujeitos por é uma expressão do que foi levantado até o presente momen- mover-se fisicamente a fim de obter seu próprio olhar sobre to e a mostra destes filmes, que carregam consigo toda uma determinado espaço e, com isso, manter em construção o de- carga regional, de identidades de localidade e ou indivíduos. senho de sua cartografia sentimental”. De maneira coletiva o cinema pode se configurar em um instrumento de marketing veiculando culturas e espaços. THE CINEMA FROM PARÁ AND THE REPRESENTA- Estudos que tem como escopo a sétima arte são realiza- TION OF AMAZONIAN POPULAR RELIGIOSITY dos constantemente, sobretudo no que tange questões técni- cas e filosóficas. Todavia, esta trabalho de pesquisa se atem ABSTRACT a identificar o processo de tradução e representação da re- Amazonian popular religiosity has peculiarities derived ligiosidade popular amazônico paraense em filmes de ficção from the diversity and the syncretism inherited from the black produzidos no estado do Pará, que apesar de todo o histórico African, native indigenous, and European peoples. These de mais de cem anos de registros de produção na região, es- customs and traditions of manifestation of religiosity are colheu-se, com base nos traços presentes da religiosidade e evidenced by beliefs and rituals, and develop a transversal- modalidade técnica, quatro filmes produzidos no final do ity between sacred and profane, imaginary and mysticisms. século XX e início de século XXI, até a primeira metade da It generates strong influences in the social relations with segunda década dos anos 2000. Sendo esses filmes produz- the nature of the Amazonian people, including the connec- idos em película e digital. Além disso compreender como se tion with new uses, among them cultural tourism. The cin- apresentam como possibilidades de veiculação de realidades ema from Pará, mostly formed by short films, over the last e produtos culturais associados ao turismo. twenty years have provided a snapshot of people from this O estudo ainda é embrionário, pois a parte mais analíti- state’s lives. Concerning the Amazon religiosity and popular ca será feita ca partir de entrevistas com os realizadores e beliefs and their syncretistic, mystical, ritualistic, symbolic equipe técnica que compôs cada um dos filmes, procurando nature, they can constitute vehicles of touristic promotion compreender qual o processo adotado para chegar até a re- and attractiveness. The objective of this work is to identify alização dos curtas. Enfocando desde a concepção da ideia, how Amazonian popular religiosity is represented in the o processo para compor cada cena, quais métodos utilizaram fictional audiovisual production in the state of Pará and its para chegar no resultado final. reflection from the local praxis to the global one. In this way, O uso dos termos Tradução e Representação, por mais we analyze the images, forms, colors, movements, symbols parecidos que sejam, tem perspectivas diferentes, pois um that give meaning in a fictional film narrative perspective to tem como estudo o receptor e ou outro o emissor, e interli- a real cultural universe. For the development of the study, we gando isso, o produto fílmico e sua temática. Neste primeiro are compiling scenes from Paraense films released over the momento identifica-se os filmes, compreende-os, analisa-os, last twenty years and then we are analyzing them in specific interpreta-os dentro de uma linguagem, antropológica e sequence and planning, observing the representation of Am- quais os desdobramentos destes agem no social, o que instru- azonian popular religiosity as a product of collective memory, mentos essas imagens são ou contribuem para outras áreas which is the theme addressed in this research. de atividades, como o turismo, e de que maneira fortalecem o resgate da memória social. Keywords: Cinema. Popular Religiosity. Fic- Dentro desta perspectivas, a partir de cada filme, serão tion. Amazônia. Pará. realizadas analises críticas e reflexões. Segue-se então o caminho que a representação da religiosidade popular per-

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224 MEMÓRIA GERACIONAL E AS RELAÇÕES ENTRE turistas associados aos segmentos. Destaca-se nesta comuni- TURISMO E GASTRONOMIA cação narrativas de diferentes gerações sobre suas memórias e percepções acerca da gastronomia e, em especial, do café Alexandra Marcella Zottis colonial, como atrativo turístico gastronômico. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle/ Canoas-RS, bolsista Capes/Prosup. Professora de DESENVOLVIMENTO Turismo e de Gastronomia da Universidade Feevale. Principal polo turístico do Rio Grande do Sul, a Serra Gaú- [email protected] cha abriga contextualizações diversas. No processo de plane- jamento territorial do Governo Estadual, a Região Metropoli- RESUMO tana da Serra Gaúcha foi instituída pela Lei Complementar nº A proposta desta participação é abordar a Memória 14.293 de agosto de 2013, sendo constituída por 13 municí- Geracional a partir da perspectiva das suas relações com o pios.1 A Região corresponde à antiga Aglomeração Urbana do Turismo e a Gastronomia. Integra parte dos estudos de tese Nordeste criada em 1994 e acrescida dos municípios de Antô- em andamento que tem como como objetivo geral investigar nio Prado, Ipê e Pinto Bandeira, este último emancipado de a contribuição da oferta gastronômica associada aos fatores Bento Gonçalves e instalado em 2012. Apresenta como polo étnicos e identitários à invenção do imaginário turístico Ser- a cidade de Caxias do Sul, maior centro urbano da Região e ra Gaúcha considerando-se as memórias e as percepções de um dos mais populosos do Estado. O conjunto dos municípios profissionais e turistas associados aos segmentos. Destaca-se abriga uma população de mais de 700 mil habitantes. nesta comunicação narrativas de diferentes gerações sobre Institucionalmente, também há distinções no que se suas memórias e percepções acerca da gastronomia e, em es- entende por Serra Gaúcha, mesmo se tratando de órgãos pú- pecial, do café colonial, como atrativo turístico gastronômico. blicos estaduais. nquanto para a Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão do Estado abrange 13 municípios e se Palavras-chave: Memória, Turismo, Gastrono- configura como Região Metropolitana da Serra Gaúcha, para mia, Imaginário Turístico, Serra Gaúcha. a Secretaria de Estado, Turismo, Esportes e Lazer (Sedactel) o entendimento é outro. INTRODUÇÃO A organização dos municípios de acordo com as diretrizes O apelo de mesa farta e de pratos que carregam a da Sedactel segue o processo de regionalização do Ministério do Turismo dividindo o Estado em 27 regiões turísticas. A tradição de imigrantes alemães e italianos, é frequente nos 2 esforços promocionais da oferta gastronômica relacionada à Serra Gaúcha promovida pela Setel contempla municípios Serra Gaúcha, principal polo turístico do Rio Grande do de pelo menos quatro regiões, de características geográficas, Sul. O mote da fartura e da tradição herdada é recorrente no históricas, sociais, econômicas e culturais diversas: Uva e Vin- café colonial, espécie de refeição composta, geralmente, por ho, Hortênsias, Campos de Cima da Serra e Paranhana. No produtos como bebidas quentes, pães, cucas, bolos, tortas, atual mapeamento, não há uma região denominada especifi- geleias e embutidos,- ofertado em cidades como Dois Irmãos, camente Serra Gaúcha. (RIO GRANDE DO SUL, 2018) Morro Reuter e Gramado. Essa denominação evidencia-se mais no processo Esse artigo propõe-se a abordar a Memória Geracional a de promoção, especialmente do mercado turístico. A CVC, a partir da perspectiva das suas relações com o Turismo e a Gas- tronomia. Consiste num recorte dos estudos de tese em anda- 1 Antônio Prado, Bento Gonçalves, Carlos Barbosa, Caxias do Sul, mento que tem como objetivo geral investigar a contribuição Farroupilha, Flores da Cunha, Garibaldi, Ipê, São Marcos, Nova Pádua, Monte Belo do Sul, Santa Teresa e Pinto Bandeira. da oferta gastronômica associada aos fatores étnicos e iden- 2 Antônio Prado, Bento Gonçalves, Bom Jesus, Cambará do Sul, Canela, titários à invenção do imaginário turístico Serra Gaúcha con- Carlos Barbosa, Caxias do Sul, Flores da Cunha, Garibaldi, Gramado, siderando-se as memórias e as percepções de profissionais e Igrejinha, Nova Petrópolis, Parobé, Picada Café, São Francisco de Paula, Três Coroas, Vacaria, Veranópolis e Vila Flores. 225 maior operadora de Turismo do Brasil, tem no destino Serra mo dos CTGs até as comemorações da Revolução Farroupilha Gaúcha o principal produto de venda relacionado ao Rio e o aniversário de Porto Alegre). Portanto, com a coordenação Grande do Sul. do Serviço de Turismo (Setur), órgão do governo do Estado, foi criado um projeto que buscasse um elo de ligação para Um Brasil com cara de Europa te espera no sul do país, com paisagens de tirar o fôlego, destacar, através de uma série de eventos, as diversas etnias gastronomia rica, muito vinho e – claro – o como formas representativas do multiculturalismo gaúcho. O friozinho característico das montanhas, com projeto se transformou no decreto nº. 22.410, de 22 de abril direito a neve de vez em quando. Formada de 1973, pelo qual se institui o Biênio da Colonização e Imi- por dezenas municípios do Rio Grande do gração. Os autores destacam o discurso do então governador Sul, a Serra Gaúcha possui dois núcleos Euclides Triches, no lançamento: turísticos principais: na Região das Hor- Queremos reavivar a lembrança e exaltar tênsias estão Gramado, Canela e Nova os feitos dos desbravadores, especialmente Petrópolis. No Vale dos Vinhedos, fi- para as novas gerações, para as crianças, cam Bento Gonçalves, Garibaldi e Car- para os jovens, aos quais entregaremos um los Barbosa. Próximas uma da outra, sepa- dia o Rio Grande. Queremos mostrar que os radas por cerca de uma hora e meia de carro, seres humanos passam, mas permanece in- é possível conhecer estas duas regiões em delével o ideal de construir uma civilização poucos dias de viagem. A 130 quilômetros sólida e sadia e que vise, acima de tudo, o da capital Porto Alegre, a cidade de Ben- bem-estar da pessoa humana, a sua forma- to Gonçalves é o paraíso dos amantes do ção e a sua realização plena. (Hohlfeldt e vinho, com parreiras carregadas de outubro Valles, 2008, p. 38) a dezembro. As famosas Gramado e Ca- nela possuem maior infraestrutura para o Percebe-se, então, no processo de comunicação turística turismo, com muitos hotéis, restaurantes, promovido pelo Setur, os esforços em ressignificar a imagem museus e festivais. Visite estes cenários lindos e encante-se! (CVC, 2017, grifos da dos imigrantes e seus descendentes. Para dar conta dos diver- autora) sos eventos e demais atividades programadas para o biênio são montadas comissões e subcomissões. O jovem jornalista Além do atributo gastronomia rica, subentendida como Oswaldo Goidanich, primeiro atendente do Setur, é nomeado farta, importa destacar também os adjetivos europeizantes, como representante da comissão para o estabelecimento de presentes no texto do site. Conforme Gastal e Castro (2008), o contatos com a Alemanha, Itália, Áustria e Portugal, o que primeiro Plano Plurianual de Turismo desenvolvido pela Sec- implicava na realização de diversas viagens a esses países. retaria de Estado do Turismo, na década de 1970, incluía a Ser- Para Moesch (1997), o desenvolvimento do projeto ra Gaúcha entre as nove zonas turísticas, que consideravam o biênio contribuiu especialmente para o surgimento do culto reconhecimento o território e de seus atrativos. ao vencedor, com a realização de eventos diversos, como as Em termos institucionais, as estratégias do Estado para festas temáticas, mescladas com danças e gastronomia típi- promover a imagem turística do Rio Grande do Sul não es- cas, demonstrando aos turistas e visitantes o sucesso do em- tão restritas aos governos mais recentes. A partir da década preendimento migratório. A autora destaca ainda o trabalho de 1970, em especial com os preparativos para as comemo- de valorização cultural de Luis Carlos Barbosa Lessa, durante a rações do sesquicentenário da imigração alemã e o centenário sua gestão na Secretaria Estadual de Cultura, com a divisão do da imigração italiana, há uma gradual mudança dos valores Estado em 12 regiões turísticas. Segundo a autora, ao lançar o relacionados às questões étnicas. Hohlfeldt e Valles (2008) projeto Os 12 Rio Grandes, Lessa abalou os alicerces dos tradi- ressaltam que a política de preservar as raízes culturais do cionalistas, introduzindo na folheteria turística o gaúcho loiro, estado já se estendia por alguns anos (desde o tradicionalis- de olhos azuis, que toma mate, come galeto com polenta e

226 delicia-se com o café colonial, num contraponto ao mito do O imaginário turístico é constituído, dessa gaúcho fronteiriço. (MOESCH,1997) forma, de representações compartilhadas, Na oferta gastronômica da Serra Gaúcha é persistente alimentadas por - ou associadas à - imagens a oferta da mesa farta, numa espécie de cumprimento da materiais (postais, cartões, blogs, filmes e promessa presente no imaginário relacionado à Cocanha, país vídeos, guias turísticos, folhetos, revistas de imaginário onde a abundância de alimentos é um dos temas viagem, e também objetos artesanais e ou- mais frequentes. O historiador Franco Júnior (1998) aponta tros artefatos), e imateriais (lendas, contos, que é na América que a localização da Cocanha alcançou mais relatos, discursos, anedotas, memórias…), trabalhadas pelo imaginário e socialmente sucesso. Para comunidades europeias assoladas pela fome, compartilhadas pelos turistas e/ou pelos como as situadas na Itália e na Alemanha, a identificação da atores turísticos (inclusive, às vezes, por uns América com a Cocanha, ainda que a soubessem inverossímil, ou por outros, ainda que o sentido dado não pode ter sido um fator estimulante. seja o mesmo).(Gravari-Barbas e Graburn, A fartura prometida na Cocanha está disponível, então, 2012, p.2) na América? Entende-se que a oferta gastronômica com os atributos de mesa farta e tradição exerceu uma contribuição Para o sociólogo argelino Rachid Amirou em seu livro Im- relevante na invenção do imaginário turístico gastronômico. aginário turístico e as sociabilidades de viagem (2012) as ima- As discussões referentes ao Turismo se concentram neste gens turísticas não estão limitadas às que são incorporadas trabalho aos estudos sobre imaginário turístico. Entende-se pela produção iconográfica, artística ou publicitária. Avançam que o imaginário turístico Serra Gaúcha é um processo de para o universo das imagens mentais, abarcando, inclusive, invenção histórica, cultural e social, com grande contribuição os mitos. Amirou (p.17) reforça que “as imagens colectivas da oferta gastronômica baseada na fartura e na tradição rela- são legadas pela tradição, difundem-se de uma cultura para cionada à germanidade e à italianidade. outra e atravessam, em diagonal, classes e sociedades. Re- Sobre imaginário turístico Gravari-Barbas e Graburn o censeá-las de forma exaustiva seria um imenso desafio.” definem como o imaginário espacial no que se refere à poten- A questão da alteridade permeia a principais abordagens cialidade de um lugar enquanto destino turístico. É também sobre o imaginário turístico. Nos estudos de Gravara-Barbas o elemento agregador que permite a transição entre o aqui e Graburn é abordada como a “desconfiança em encontrar-se e o distante, o conhecido e o desconhecido, interferindo de com o Outro”, materializada nas relações entre a comunidade forma decisiva na viagem. Desta forma, o papel do imaginário receptora e o turista. Amirou (2012) expressa esse inquieta- turístico é incontornável, uma vez que ele permite aos mento como a “procura de si mesmo e do Outro”. Ele ressalta indivíduos aproximar-se do lugar turístico em suas várias que mesmo que cada época tenha definido à sua maneira as dimensões, sem que seja perdida sua dimensão material e formas de mobilidade humana, a procura é o elemento co- simbólica. (GRAVARI-BARBAS e GRABURN, 2012) mum que atravessou a trajetória das viagens e permanece na Outros elementos importantes nos estudos do imag- modernidade: inário turístico são as imagens, as significações e os símbo- los. Para Gravari-Barbas e Graburn (2012), a relação entre as Turismo, férias, viagem, peregrinação são imagens e o imaginário serão sempre dinâmicas e mutáveis, fenómenos que têm em comum o facto oscilando entre correspondências e dissonâncias, confir- de exprimirem uma procura. Procura de si mesmo, do Outro, de um lugar onde re- mando a proximidade ou a separação entre o real e a sua nascer (talvez mesmo de saúde pelo movi- representação. Similares ou em desacordo, flutuam entre mento e pelo afrontamento do espaço)- eis satisfação ou indisposição, conforto ou desconforto. Desta os temas, as imagens, as significações e os forma, imagem e imaginário turístico interferem no processo símbolos que atravessam diagonalmente as imaginativo do turista e da comunidade local, possibilitando mobilidades humanas. Ao estudar os três distintas leituras imagéticas, criando e recriando lugares. «aspectos» da mobilidade humana, que são

227 o turismo, a viagem e a peregrinação, o meu imagens materiais e imateriais estão presentes desde o objetivo consiste em sublinhar a relação do surgimento do Turismo e exercem nos dias atuais um papel sujeito consigo próprio, com o espaço e com importante diante de uma sociedade caracterizada pela oni- os outros, que tal experiência consubstan- presença da imagem. Entre as imagens materiais, os artefatos cia. A relação com esses três «objectos» é culturais ou étnicos contribuem para um jogo onde as popu- mediatizada pela cultura e pelas tradições. lações locais buscam produzir e por a venda aspectos das suas (AMIROU, 2012, p.17) próprias tradições que podem ser geradoras de imaginário turístico, capazes de atender às expectativas dos turistas. O imaginário turístico promove o desejo de conhecer (GRAVARI-BARBAS e GRABURN, 2012) um destino turístico e influencia no processo de escolha. Por Gastal (2005) alerta que trabalhar no turismo exige um outro lado, um imaginário turístico que represente fatores esforço que não pode estar restrito às propostas de market- negativos, pode repelir, fazer com que o turista evite esse ing e que é preciso reforçar e inovar os imaginários, sempre destino. Isto evidencia a importância dos estudos acerca dinâmicos e renováveis a cada temporada. Ao imaginário não dos imaginários no Turismo. Como um processo de invenção importa a autenticidade, mas a atender as expectativas dos histórica, cultural e social, o imaginário turístico Serra Gaú- turistas por ele atraídos. cha é também mutável, dinâmico, multidimensional. Para Gravari-Barbas e Graburn (2012) o imaginário turístico deve Muitos dizem, em nome de uma suposta levar em conta toda a cadeia de produção do turismo. autenticidade, que “na Alemanha não é Embora umas das primeiras referências ao imaginário assim”, que Gramado não é a Alemanha. turístico aponte para uma localização geográfica (que E de fato não é. Quem olhar do ponto de também pode ser imaginária) onde ocorre a atividade turísti- vista do imaginário poderá responder: não faz diferença, porque não estamos falando ca, não poderá estar circunscrito somente a esta dimensão. da realidade concreta, mas da realidade dos Deverá considerar as práticas relacionados ao imaginário imaginários. E o compromisso dos imaginá- dos turistas, dos empreendedores e dos profissionais dos rios, repetimos, é com as necessidades que segmentos relacionados, configurando-se, portanto, como estão no coração de cada turista, e é a isso multidimensional. É também fruto da imaginação do turista, que devemos procurar atender, não apenas tanto como produtor do imaginário quanto dos elementos ao seu possível conhecimento de história e imaginados, que avançam para além dos estereótipos: geografia. (GASTAL, 2005, p. 88) Julgamentos estereotipados do turista, de suas práticas, de seu modo de vestir-se e A proposição de analisar o imaginário turístico da Ser- comporta-se, tem produzido desde há mui- ra Gaúcha se impõe como necessariamente interdisciplinar to tempo uma imagem forte e carregada, através da compreensão do turismo na sua contemporanei- que inspira abordagens e análises. De outro dade. Considera-se que se trata de um processo de invenção lado, as imagens relacionadas com as comu- histórica, social e cultural. Entende-se que nessa invenção há nidades receptoras são igualmente molda- a contribuição significativa da oferta gastronômica, baseada das por objetos ou pela produção imaterial em fatores étnicos e identitários, nos apelos da fartura e da do imaginário. Ela caracteriza e classifica as tradição, a partir também das percepções e memórias dos pessoas e, da mesma forma, as prepara, an- turista, empreendedores e profissionais dos segmentos rel- tecipando ou provocando a desconfiança no acionados. turista em encontrar-se com o Outro. (GRA- Para Candau (2014) memória e identidade estão indis- VARI-BARBAS; GRABURN, 2012, p.2) soluvelmente ligadas, se conjugam, se nutrem mutuamente, e se apoiam uma na outra para produzir trajetórias de vidas, O risco dos estereótipos pode atingir também a forma histórias e narrativas. O autor considera que a memória é a como são elaborados produtos e serviços no Turismo. As identidade em ação e que ela pode ameaçar e até arruinar o 228 sentimento de identidade, como se constata nas lembranças atuais, como os livros, sites e blogs virtuais. Ela defende que de traumas e tragédias. O jogo da memória e da identidade, apesar da diversidade das formas comunicacionais, a forma então, é feito de lembranças e esquecimentos. Na “iden- mais imediata de transmissão do saber culinário, a partir da tidade étnica”, pode ocorrer a assimilação dos indivíduos tradição oral, ainda persiste. Nesse caso, quem aprende a pela sociedade que os acolhe, desde que o esquecimento fazer ou faz acompanhando, assistindo ou lembrando-se de de suas origens não tenha ocorrido por completo. Por outro quem faz. Os manuscritos culinários incorporam um saber co- lado, a demanda identitária pode reativar a memória, numa letivo, familiar, local, regional e um saber vivido, da expressão reapropriação que se manifesta de diversas formas como a e experiência pessoal. Para Dutra, o conjunto de saberes e revitalização de línguas e culturas e de programas televisivos. práticas envolvidos na cozinha de uma sociedade ou grupo (CANDAU, 2014) integra a herança cultural, é um marcador da experiência do Para Candau, a memória genealógica ou familiar pertencimento, de fronteiras identitárias. Situa-se no campo abrange em torno de duas a três gerações, é uma memória da configuração histórica e cultural, no processo de constitu- curta, relacionada diretamente às questões identitárias. Há ição de marcas duráveis da tradição. uma busca incessante em conhecer a trajetória dos pais e É um registro de uma forma diferente de narrativa. avós como forma de autoconhecimento e entendimento de Conforme Dutra (2014), os manuscritos culinários, onde se suas origens. Por outro lado, a memória geracional ultrapassa inserem os cadernos de receitas, envolvem os processos de o núcleo familiar e prolonga-se por várias gerações, de duas criação e transmissão no jogo entre experiência pessoal e formas: a antiga e a moderna. Na antiga, é “”a consciência autoria coletiva. Como papéis intergeracionais, acolhem a de pertencer a uma cadeia de gerações sucessivas da qual o escrita coletiva, com suas alterações e acréscimos. Permitem grupo ou o indivíduo se sente mais ou menos herdeiro.” Na uma leitura de hábitos alimentares e do contexto histórico moderna, a memória geracional não tem a vocação de ser de cada época. A autora cita Maria Stella Christo, que com- transmitida, e “é própria dos membros de uma determinada pilou receitas oriundos de cadernos de senhoras mineiras no geração que se autoproclama guardiões e está fadada a desa- período entre 1850 e 1950. Os nomes atribuídos aos pratos parecer com o último deles.” (CANDAU, 2014) prestam homenagens, como Gelatina Rei Alberto ou Biscoito Sobre memória e gastronomia, o caráter durável das Dom Pedro I e, também referenciam acontecimentos como recordações culinárias não é alheio ao papel que eles desem- Bom-Bocado Legalista e Pudim Republicano. penham no sentimento de identidade pessoal ou cultural. A As receitas manuscritas possuem também poder de alimentação exerce um papel fundamental. Ao emigrar para evocação. Dutra (2014) destaca ainda obra de Bárbara Kir- um outro país, o indivíduo mantém por mais tempo os seus shemblatt-Gimblett (1989), Objects of memory: material hábitos alimentares de origem do que a sua língua. (CANDAU, culture as life review, que relembra as páginas dos diários 2005, p.201) das prisioneiras do campo de concentração Terezin, na antiga Candau (2014) cita Anne Muxel, para quem a memória Tchecoslováquia, dedicadas ao registro de pratos suntuosos, familiar serve de princípio organizador da identidade do su- significantes de suas vidas anteriores. Essa autora chama a jeito em diferentes modalidades, entre elas, destaca-se a que atenção para se entender os objetos com foco no seu uso, e dialoga melhor com esta proposta de estudo: a conservação não somente na originalidade da sua criação, valorizando seu coletiva de saberes, de referenciais, de recordações familiares poder de evocação. e de emblemas (objetos, fotografias, nomes próprios, receitas Para Amon e Menache (2008), a comida e as práticas de de cozinha, odores, lugares.). Essa modalidade relaciona-se alimentação podem se constituir uma narrativa da memória com a memória gastronômica, também entendida como social de uma comunidade. Elas partem da ideia de que o al- memória de cheiros, sabores e temperos.(CANDAU, 2014) imento é natural à sobrevivência da espécie humana e que a Dutra (2014) analisa o papel dos cadernos de receitas sua dimensão cultural é posta em relevo pela ação social. Ba- como instrumento de transmissão de saberes, dentro de um seiam suas reflexões nas experiências vividas por uma família contexto de competição com outros recursos de registro mais judia sefardi radicada no Brasil a partir de duas receitas de

229 comidas cotidiana e discutem como uma comunidade pode Convém destacar aqui as reflexões de Candau (2014, p. manifestar na comida emoções, sentimentos de pertença, 122) sobre invenção, ao afirmar que o ato de memória que se significados, relações e sua identidade coletiva. O ponto de manifesta no apelo à tradição consiste em expor, inventando partida é um momento de vida de uma das autoras, que ao se se necessário, “um pedaço do passado moldado às medidas deparar que o falecimento das matriarcas da família, se sente do presente” de tal maneira que possa se tornar uma peça do impelida em registrar a história familiar em um caderno de jogo identitário. As temáticas tradição, invenção e invenção receitas, para distribuição posterior aos familiares. Escreve, da tradição serão retomadas mais adiante na perspectiva de então, uma carta registrando essa intenção a uma tia-avó, a outros autores. (CANDAU, 2014) única ascendente feminina viva. Em resposta, a tia-avó reg- A exteriorização da memória vai permitir a transmissão istra em carta que recebeu o pedido com estranheza, e tece memorial. É primordialmente humano a preocupação em uma narrativa da trajetória da família. As receitas, já não deixar traços, “fazer memória” seja ela explícita, como a cir- lembra mais, e sugere que a missivista copie outras, coletadas cunscrita aos objetos, animais, seja a mais complexa, aquela junto às integrantes da Women’s International Zionist Organi- das formas, das abstrações e dos símbolos. Em uma socie- zation, organização de mulheres judias dedicadas a trabalhos dade onde as possibilidade de estocagem e de difusão do voluntários. Moradora em Porto Alegre, a sobrinha-neta se saber memorizados são enormes e a quantidade de infor- apercebe que apesar de pouco ter frequentado a sinagoga ou mações abundantes, selecionar o que deve ser conservado e participado dos rituais judaicos, tinha na mesa cotidiana um transmitido passa a ser um desafio. Selecionar, escolher e es- universo próprio, em muito diferente do arroz, feijão, bife e quecer pode, então, ser doloroso. Nas sociedades tradicionais salada de suas colegas “brasileiras”. A familiaridade com a co- a transmissão da memória se faz sem mediação, no contanto mida judaica estava no cotidiano, na repetição, mesmo com a entre as pessoas. Nas sociedades modernas, a transmissão, ou ausência de reflexão. É uma comida que narra as vivências de boa parte dela, é mediatizada. (CANDAU, 2014) uma comunidade, construindo e mantendo a memória social As relações entre Memória Geracional, Turismo, Gas- de um grupo. tronomia e Imaginário Turístico situam-se, então, neste Diante da possibilidade de descontinuidade desse rep- cenário midiático, de profusão de informações e de imagens. ertório alimentar, já que a terceira geração nada sabia sobre Antes da Serra Gaúcha transformar-se num polo turístico as o preparo dos pratos, a autora se sente compromissada a (re) experiências gastronômicas iniciavam-se no deslocamen- contar a trajetória alimentar de sua família a partir do cader- to, especialmente de Porto Alegre às cidades serranas. Pelo no de receitas. Há igualmente uma dimensão comunicativa caminho, municípios como Morro Reuter agregavam um na relação entre comida e memória, que terá como base a simbolismo extra ao trajeto, com a parada obrigatória para cultura. abastecer e restabelecer com um café com mistura, ou com- A transmissão, considerada por Candau como a mo- prar frutas frescas e flores. Urbim (2003, p.28-29) destaca a bilização da memória, o que permite a socialização e a ed- relação da rodovia BR 116 com o desenvolvimento de Morro ucação, recebe atenção especial do autor. A transmissão, Reuter. A implantação da estrada inicia em 1937, junto com então, está no centro de qualquer abordagem antropológica a instalação da energia elétrica. Em 1942, há a inauguração da memória. Portanto, deverá pontuar as discussões deste simbólica da ligação entre Porto Alegre e Caxias do Sul, com projeto, na medida em que reconhece-se que a transmissão a presença do presidente Getúlio Vargas. O asfalto e chegaria jamais será pura ou uma autêntica transfusão memorial. Para somente a partir de 1956, mas apesar disso a estrada federal atender às estratégias identitárias, terá que atuar no jogo da era a passagem para todos os que saíam do Rio Grande do Sul reprodução e da invenção, da restituição e da reconstrução, da para chegar ao centro do país. lembrança e do esquecimento. Não há um imaginário turísti- Ao longo desse trajeto, surgem empreendimentos como co Serra Gaúcha acabado, mas alimentado constantemente, a Estação Rodoviária, com amplo restaurante, e que passa a reproduzido, inventado e reconstruído. (CANDAU, 2014) ser um local estratégico. O “subir a Serra” incluía as paradas, uma espécie de prévia da viagem, constituindo parte indis-

230 sociável da experiência para viajantes e turistas. Para os mo- O dentista e empresário Jaime Prawer é considerado radores, a oportunidade de ganho extra, acrescendo ao valor o idealizador do café colonial em Gramado. Dornelles (2001, simbólico do deslocamento o fator econômico. Para Urbim p. 67) relata que a inspiração para o negócio teria partido (2003, p.73), Gramado e Canela deram fama ao café colonial, das experiências de Prawer em visita a pacientes residentes mas que “foi em Morro Reuter, à beira da estrada federal, que na “colônia”, que recebiam o dentista como uma autoridade, nasceu o simplesmente chamado café com mistura, origem oferecendo o que tinham de melhor da sua produção casei- do que veio a se tornar atração turística”. ra de alimentos. Percebendo a potencialidade das saborosas Em 1935, a família Schäfer construiu a parte inicial do iguarias produzidas no interior, Prawer coloca em prática a prédio de um restaurante, no quilômetro 216 da BR-116. ideia de oferecer aos turistas uma refeição diferenciada, com- Nesse espaço, a Distribuidora Shell instalou a primeira bomba posta por pães, geleias, frios, tortas, salgados, suco e bebidas manual de gasolina da região. Por volta de 1950, a família quentes (café e chá), servida com a mesma fartura que encon- Feltes adquiriu o posto e o restaurante, ampliou a construção, trava nas suas visitações ao meio rural. Em 1972, manda con- colocou uma bomba de gasolina mecânica e reinaugurou struir uma casa de madeira ornamentada com elementos da o estabelecimento com o nome de Galeto Copacabana. Os arquitetura imigratória europeia para abrigar o Café Colonial que trafegavam pela estrada federal paravam para saborear Bela Vista, que anunciava a proposta de servir a tradicional galeto, massa caseira, polenta e saladas. Com movimento de mesa farta e saborosa dos imigrantes italianos e alemães. clientes, os Feltes passam a oferecer, além dos almoços, um Em 1973, Prawer convida Lira Caliari, que trabalhava café com acompanhamentos caseiros de produção própria de empregada doméstica, para assumir junto com o marido o como pães de trigo e milho, rosca de polvilho, cucas, queijo, Café Colonial Bela Vista. A sua experiência inicial no empreen- linguiça, queijo de porco, nata, requeijão, mel, salsicha bock, dimento havia sido como assistente e pouco tempo depois rabanete e pepino. O café com mistura era servido também passou a atuar como doceira. É dela a autoria da maior parte nas mesas dos restaurantes da Rodoviária e do Turista. Em das receitas que ainda hoje compõem o cardápio, seguido nas 1982, os proprietários decidem fechar o Galeto Copacabana. três unidades- duas em Gramado e uma em Porto Alegre, ad- (URBIM, 2003) ministradas atualmente pela filha e pelo genro. Se a construção da BR 116 contribuiu para o desenvolvi- Mesmo afastada da rotina diária dos negócios, Lira é mento de Morro Reuter e, de certa forma, para o surgimento a responsável pela transmissão das receitas, personificando a do café colonial, o surgimento de outra estrada impacta no memória familiar. É a ela a que a filha recorre para ensinar à cenário econômico do município. Urbim (2003) destaca que equipe de doceiras, por exemplo, a forma de preparo de uma ao final da década de 1960 ficou totalmente asfaltada a BR- das tortas. 101, entre Osório e Torres. Com isso, a maior parte das empre- A transmissão, conforme Candau (2014), é então a sas de ônibus interestaduais optou pela nova ligação junto ao mobilização da memória, o que permite a socialização e a ed- litoral, especialmente a partir da inauguração da freeway, ucação. Dona Lira se declara orgulhosa, ainda, de ter ensina- em 1973. A finalização do asfalto que também leva à Serra, do a maioria das atuais doceiras que trabalham em Gramado, entre Portão e São Vendelino, intensificou a redução do fluxo transmitindo seus saberes. (CANDAU, 2014) de viajantes.(URBIM, 2003) O termo invenção é recorrente nas recordações de Dona Já na década de 1970, Gramado passa a oferecer o café Lira nos mais de 40 anos de sua trajetória no comando do colonial. O município é um dos principais destinos turísticos empreendimento. Narra que a maioria das tortas foram in- da Serra Gaúcha e está localizado em torno de 12 quilômetros ventadas por ela, que para garantir o sucesso entre os clientes, de Porto Alegre, capital do Estado. Em conjunto com Canela, Nova Petrópolis, Picada Café e São Francisco de Paula, compõe ideia de criar uma rota turística com cidades de colonização predomi- a Região das Hortênsias. Também integra a Rota Romântica3 nantemente alemã, inspirada na Romantische Strasse, na Alemanha. Além de Gramado, é integrada pelas cidades de São Leopoldo, Novo com outras 13 cidades. Hamburgo, Estância Velha, Ivoti, Dois Irmãos, Morro Reuter, Santa Maria do Herval. Presidente Lucena, Linha Nova, Picada Café, Nova Petrópolis, 3 A Rota Romântica é uma associação de municípios que surgiu com a Canela e São Francisco de Paula. 231 repetia o preparo quantas vezes fossem necessárias. Das tão sonhada pelos imigrantes europeus é comercializada. opções de salgado, que inicialmente se resumiam a croquete Come-se à vontade, muito, e por preço único. e rissole, novos itens eram acrescidos ano a ano, coisas a mais inventadas por ela. Hobsbawm (2006) observa que muitas GENERATIONAL MEMORY AND RELATIONS das tradições que parecem ou são consideradas antigas são BETWEEN TOURISM AND GASTRONOMY bastante recentes, quando não inventadas. Conforme o autor termo tradição inventada é utilizado num sentido amplo, que ABSTRACT inclui tantos as tradições realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto às que surgiram de The proposal of this participation is to address the Gen- maneira mais difícil de localizar num período determinado e erational Memory from the perspective of its relations with limitado de tempo. Tourism and Gastronomy. It integrates a part of the thesis A partir de 1980, o cardápio do Bela Vista passa a ter studies that are in progress and have as general objective to 80 itens, marco comemorado inclusive no site do empreendi- investigate the contribution of gastronomic offer associated mento. As narrativas das novas gerações passam a estar en- with ethnic and identity factors to the invention of Serra tão, materializadas nas estratégias promocionais. No espaço Gaúcha tourist imagination considering the memories and destinado a relatar a história do empreendimento, os atuais the perceptions of professionals and tourists associated with gestores, destacam o termo “tradição de dar água na boca.” the segments. Narratives of different generations about their Outras referências nesse sentido: “produtos da fazenda”, “feito memories and perceptions about the gastronomy stand out na hora”, “tradição a mesa” e “mesa farta- mais de 80 delícias”, in this communication and, especially, the colonial coffee, as reforçam o discurso da tradição e da fartura como marca e gastronomic tourist attraction. diferenciais. Key words: Memory, Tourism, Gastronomy, Há também em outros municípios da Serra Gaúcha Tourist Imaginary, Serra Gaúcha. uma busca pela retomada de referências históricas. Em Mor- ro Reuter, a Prefeitura, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a Emater promoveram o 1º Café da Colônia, nos dias 19 e REFERENCIAS 20 de agosto de 2017. O evento ocorreu no entorno da Praça AMIROU, Rachid. Imaginário turístico e sociabil- Municipal, onde foram dispostas mesas com toalhas. O kit idades de viagem. Lisboa, Portugal: Estratégias Criati- café composto por pão, cuca, rosca de polvilho, bolo, linguiça vas, 2007. e torta, acompanhados de schimiers, nata, mel e café, foi comercializado a R$ 17,00. A composição de alimentos foi AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como nar- destacada pelos organizadores como “gostosuras que não po- rativa da memória social. Revista Sociedade e Cultura, Vol. dem falta no tradicional “café com mistura”. (PREFEITURA DE 11, n. 1. p. 13-21. Jan-Jun, 2008. MORRO REUTER, 2017) CAFÉ COLONIAL BELA VISTA. Disponível em: http://be- CONSIDERAÇÕES lavista.tur.br/. Acesso em 15 de março de 2018.

A mesa farta tão relacionada ao imaginário turístico CANDAU, Jöel. Antropologia da memória. Lisboa, Serra Gaúcha, se reinventa para além das tradições, como es- Portugal: Instituto Piaget, 2005. paço simbólico da comensalidade, mesmo que inserida numa oferta comercial. É a materialização de simbolismos presentes CANDAU, Jöel. Memória e identidade. 1ª ed. São Pau- nas receitas, adaptadas e reinventadas para atender aos lo: Contexto, 2014. paladares dos turistas consumidores atuais. A tradição e a fartura unem as narrativas, dos guardiões de receitas aos apelos promocionais do Marketing. A Cocanha 232 CVC. Bom vinho e belas paisagens estão na Serra RIO GRANDE DO SUL. Regionalização Turística RS- Gaúcha. Disponível em: http://www.cvc.com.br/destinos/ 2017. Secretaria Estadual da Cultura, Turismo, Esportes e brasil/serra-gaucha.aspx. Acesso em: 14 de agosto de 2017. Lazer. Disponível em: http://sedactel.rs.gov.br/regionaliza- cao-turistica-2017. Consulta em 15 de março de 2018. DUTRA, Rogéria Campos de Almeida. Registro, memória e transmissão cultural: os textos culinários e URBIM, Carlos. Morro Reuter: de A a Z. Porto o caderno de receitas. Anais da 29ª Reunião Brasileira de Alegre: RBS Publicações, 2003. Antropologia. 03 a 06 de agosto de 2014, Natal, RN. ENTREVISTA FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um CALIARI, Lira. Entrevista realizada no dia 22 de março de país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 20127, em Gramado, Rio Grande do Sul.

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233 O CONCEITO DE MEMÓRIA EM H. ARENDT

André Luis de Souza Alvarenga PPGMS/UNIRIO Pesquisa financiada pela CAPES Membro Pesquisador do IPHAR [email protected]

RESUMO A pesquisa tem como objetivo pensar os pressupostos e os limites do campo discursivo da Memória Social na teoria política de Hannah Arendt em dois momentos de sua obra: a CRIACAO e a CONSERVACAO. Inevitavelmente, encontrare- mos um terceiro tema transversal em sua obra: a TRADICAO. Através de uma análise imanente das obras da pensadora, visa-se produzir uma crítica ontológica a respeito da ideologia arendtiana e de seu suporte historiográfico.

Palavras-chave: Memória. Política. Totalita- rismo.

INTRODUCAO / DESENVOLVIMENTO É importante ressaltar, antes de tudo, que a Memória Social pode ser entendida como a construção do processo dinâmico da vida social, um campo conflituoso onde se sit- uam inúmeros processos de articulação de lembranças e es- quecimentos, bem como processos traumáticos, dos distintos atores sociais, semelhante ao campo da política, pensado pela filósofa. A importância do uso da Memória Social man- ifesta-se na medida em que as [...] práticas mnemônicas sempre existiram ao longo de todo o processo da humanida- de. Ao mesmo tempo, a memória social é um construto em voga na contemporanei- dade, marcada por relações efêmeras nas quais há um constante jogo de visibilidade/ invisibilidade, na tensão entre a lembran- ça e o esquecimento, na sua relação com o passado, o presente e o futuro, passado concebido ora de forma retrospectiva e/ou melancólica, ora prospectiva, aberto à im- previsibilidade. [...] com seu poderoso filtro de lembrar e esquecer, [a memória] recons- trói tais experiências de modo que o Homem 234 produza alternativas de, a partir do passado, válido ressaltar que, durante uma palestra a respeito da sua vislumbrar o horizonte futuro.101 vida acadêmica, Arendt afirmou que nunca esteve realmente interessada em agir, mas que devia seu respeito àqueles Porém, antes de investigarmos a relação da Memória So- que estavam interessados em fazer alguma coisa. Voltava a cial com a teoria política de Hannah Arendt, que gira em torno afirmar que a brutalidade dos regimes totalitários desafiava da temática do totalitarismo, devemos entender brevemente os padrões tradicionais, por conta de sua inovadora “política uma parte importante do caminhar pessoal e intelectual da da morte” e, por isso, deveriam ser compreendidos acima de autora. Por este motivo, é possível perceber que o ano de 1943 tudo. foi decisivo no caminhar pessoal e intelectual de Hannah A compreensão da filósofa a respeito da ascensão dos Arendt. O choque que viveu ao tomar conhecimento dos cam- regimes totalitários na Europa não constituiu, como se costu- pos de extermínio nazistas naquele ano constituiu o ponto de mava dizer na época, em um excesso de autoridade política, partida e a motivação de toda a sua obra. Origens do Totali- mas sim, em seu contraponto, na sua ausência. Para ela, a tarismo, escrito nos anos subseqüentes de sua perturbadora identificação do totalitarismo como uma forma de autorita- descoberta, em 1951, representou, naquele instante, de acor- rismo estava associada com uma visão distorcida da política, do com a própria autora, a única saída viável para lidar com visão muito corrente no período do pós-guerra. A população, essa experiência. Em um relato em A Dignidade da Política, no principalmente a europeia, que mantinha viva a lembranças capítulo Compreensão e Política, rebatendo as críticas que re- dos horrores praticados durante a guerra, reconhecia na ex- cebeu naquele momento, afirmou que compreender o totali- pansão do aparato estatal um aumento da autoridade, lo- tarismo não significava perdoá-lo. Disse que a compreensão, calizando o Estado como sendo a sede da política. Partindo que é um esforço intelectual que nunca cessa, felizmente, não desta perspectiva, é natural que a oposição ao totalitarismo era uma condição para uma urgente luta contra os regimes estivesse acompanhada de alguma forma de repúdio à totalitários. Apesar disso, afirmou, também, que a ausência política. Hannah Arendt acusa que a crescente figura de um da compreensão dos crimes praticados pelo totalitarismo im- Estado apolítico, nas décadas seguintes, acompanhada pela possibilitaria a reconciliação com o mundo como uma morada expansão das sociedades de consumo, foi responsável pela al- habitável para a humanidade. Para a filósofa, a vida seria mais teração e mudança em relação aos assuntos políticos. A inter- insuportável se o pensamento não pudesse atribuir um peso e pretação da filósofa a respeito do totalitarismo era diferente, um significado a esses acontecimentos, até então inéditos, de para não dizer distante. Para ela, os movimentos totalitários acordo com suas análises. obtiveram sucesso, juntamente com as ideologias do racismo, Para Arendt, a reconciliação com o mundo possui um movidas pelo imperialismo, e o antissemitismo, o ódio con- sentido de inovação, de um novo começo, termo que lhe cus- tra judeus, no caso alemão, pois souberam tirar proveito do tou caro. A busca pela reconciliação de Arendt com o mundo, vazio de poder deixado pela falência da autoridade política em Origens do Totalitarismo, de 1951, chamou a atenção do tradicional que, na prática, vinha sendo garantida desde a público e a sua repercussão foi imediata. Críticos apontavam fundação de Roma. uma conotação emocional na obra. No entanto, essas críticas De acordo com Hannah Arendt, para existirem enquanto não impediram de ser reconhecida a firmeza argumentativa tais, os regimes totalitários necessitam buscar a massificação do livro. Respondendo às críticas, Hannah Arendt afirmava da população, liquidando todas as formas tradicionais de as- que toda atividade intelectual tem o seu início no contato sociação humana, como os grupos de interesses, classes, etc. com os acontecimentos reais. Tratava-se, antes de tudo, de Para ela, o surgimento das massas no cenário político do sécu- embates do pensamento com os incidentes da experiência lo XX, século do surgimento das ideologias totalitárias, possui concreta, dos quais não poderíamos extrair uma verdade de- íntima relação com o processo de alienação do mundo que finitiva e, menos ainda, alguma teoria para a vida prática. É atravessou toda a Era Moderna desde o seu início, sobretudo, após a queda da autoridade religiosa, como fator que ofere- 101 FARIAS, F. (org). Apresentação. In: ______. Novos aponta- cia certa durabilidade e estabilidade às coisas do mundo. O mentos em memória social. Rio de Janeiro: 7letras, 2012. 235 processo de alienação na Era Moderna pode ser entendido surgiu uma vasta camada de homens desprovidos de laços e através da gradual inserção da esfera privada na esfera pú- “interesses comuns”, os quais se tornaram o centro nevrálgico blica, principalmente, da esfera econômica na esfera política. do totalitarismo.” Em vista disso, é importante demarcar, de acordo com Arendt, É, neste momento, em que a filósofa faz a distinção entre os passos que levaram ao processo de alienação e, conse- os conceitos de “isolamento” e de “solidão”. Segundo Hannah quentemente, de massificação, dos homens, na Era Moderna, Arendt, a vida dos homens no isolamento é caracterizada possibilitando a chegada ao poder das ideologias totalitárias pela vivência em regimes tirânicos e/ou ditatoriais, onde os na Europa. Segunda a autora, em A Condição Humana, de homens se escondem do tirano e/ou do ditador em seus lares. 1958, três eventos (a Reforma, a descoberta do Novo Mundo Já na solidão, a filósofa afirma ser sentida, semelhantemente, e a invenção do telescópio) marcaram o início da Era Moderna na velhice e na proximidade com a morte, representada na im- e sua consequente, e inicial, alienação do mundo, que viria potência política e pela retirada, ou seja, o desaparecimento, se intensificar nos séculos seguintes. A Reforma, encabeça- do mundo das aparências onde todos podem ser vistos e ouvi- da por Lutero, na atual Alemanha, alcançou consequências dos. Neste sentido, o conceito de solidão é chave fundamental impensáveis em sua época, ultrapassando as questões te- para entendermos os regimes totalitários, que adentram até ológicas e políticas que a moveram naquele instante. Acabou mesmo o espaço privado dos homens, controlando-os de to- contribuindo, para a alienação do mundo, de acordo com das as maneiras possíveis com suas técnicas, impossibilitando Arendt, com a expropriação dos bens monásticos da Igreja. qualquer espécie de julgamento e, por isso, de diálogo, ativ- Essa expropriação levou ao empobrecimento uma enorme idades necessárias para a ação política. Resumidamente, as massa de camponeses, que foram deixados à míngua, em tiranias e/ou as ditaduras provocam medo nas populações uma situação que, destituídos de um lugar próprio no mun- que buscam se resguardar em seus espaços privados, mesmo do, foram expostos, às necessidades da vida, isto é, à questão não participando da vida política. Diferentemente das tiranias social. Essa exposição às imperatividades da vida forçou essa ou das ditaduras, o totalitarismo é mais difuso e eficaz do que, massa de camponeses a vender a sua força de trabalho para como afirma Arendt, uma arma apontada contra alguém. Af- garantir sua sobrevivência. Essa massa, em seguida, veio a inal, o totalitarismo rompe, de acordo com a pensadora, com a instrumentalidade da violência, conceito trabalhado em servir de mão-de-obra para estimular a Revolução Industrial Sobre a Violência, de 1970. O totalitarismo produz aquilo que em meados do século XIX, primeiro na Inglaterra e, posterior- Arendt chamou de “terror”. Para a pensadora, mente, no restante da Europa e do mundo. Além disso, essa massa fora abrigada, posteriormente, no final dos oitocentos o terror não é o mesmo que a violência; ele e início dos novecentos, de forma precária, em nacionalidades é, antes, a forma de governo que advém europeias, servida como peça nos projetos nacionalistas. quando a violência, tendo destruído todo o Foi essa população, segundo Hannah Arendt, de homens poder, em vez de abdicar, permanece como solitários, sem um espaço que poderiam chamar de “seu”, controle total. Tem sido observado que a efi- sem um vínculo com alguma comunidade que lhe garantisse ciência do terror depende quase totalmente seus direitos básicos, comprimidos uns contra os outros, isto do grau de atomização social. Toda forma é, desprovidos de proteção privada, como os apátridas, que de oposição organizada deve desaparecer constituiu alvo principal das doutrinas empregadas pelos antes que possa ser liberada a plena força do terror. Essa atomização [...] é sustentada movimentos totalitários nos anos subsequentes. O totalitaris- e intensificada por meio da ubiquidade do mo apareceu para esses homens e mulheres como uma opor- informante, que pode se tornar literalmente tunidade de fuga da realidade, que foi, de acordo com Arendt, onipresente porque já não é mais um mero uma fuga suicida. Desse modo, as ideologias totalitárias fo- agente profissional a soldo da polícia, mas, ram capazes de motivar emocional e intelectualmente uma potencialmente, qualquer pessoa com mobilização política. Para André Duarte, comentador de quem se tenha contato.102 Arendt, este período “[...] produziu o “espaço vazio” em que 102 ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das 236 No totalitarismo, também, a tradicional visão a respei- apagada. O passo seguinte da implantação do “domínio total”, to das leis, como uma forma de estabilidade em um mundo de acordo com Arendt, foi a destruição da moral dos indivídu- incerto das ações humanas, de acordo com a filósofa, é trans- os. A própria organização e logística dos campos incentivavam posta por uma Lei Superior, que reflete uma suposta neces- e, muitas das vezes, levavam à colaboração, à delação e, até sidade histórica ou da natureza. Em outras palavras, reflete mesmo, obrigavam os próprios prisioneiros a participarem uma “conservação”103. Neste sentido, a afirmação da supe- das execuções de seus respectivos companheiros. Neste sen- rioridade de um grupo humano sobre outro não foi apenas tido, o senso de comunidade, a consciência moral, fora desa- possível, como era inevitável. Para Arendt, o aspecto doutr- fiada intensamente, e fazer o bem, se tornou quase impos- inador de uma ideologia, que se caracteriza pelo desprezo sível. O terceiro e último passo do “domínio total” apontado da experiência concreta, parte de uma única ideia que deve pela filósofa, que visava à transformação de indivíduos em ser, como relatado em Origens do Totalitarismo, obra de 1951, “mortos-vivos”, foi a destruição da própria individualidade “suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de e, consequentemente, da espontaneidade humana, requis- pessoas e bastante ampla para orientá-las nas experiências ito fundamental para a liberdade política. Não é por menos e situações da vida moderna”. O movimento realizado pela que Hannah Arendt ficou impressionada com as cenas de, brutalidade das ideologias deve, segundo Arendt, fornecer como ela afirma, em Origens do Totalitarismo, obra de 1951, mecanismos para a realização de uma Lei da História, elimi- “procissões de seres humanos que vão para a morte como nando todos os seus entraves no caminho de sua realização, fantoches”. A destruição de toda a capacidade de reação e, como ocorreu com os judeus na Alemanha nazista. Na per- consequentemente, a inevitável promoção do automatismo, spectiva de André Duarte, para Arendt, “o grande risco dessa começava no transporte dos prisioneiros nos trens de carga, concepção da história [...] é a de que ela pode implicar a sub- passando pela uniformização do tratamento nos campos, re- ordinação do homem [...] a forças e tendências inexoráveis e cebendo seu desfecho no assassinato em massa nas câmaras incontroláveis”. Desta forma, o regime totalitário é capaz de de gás. Os condenados à morte se multiplicavam idênticos, promover, através do movimento da Lei da História, que é, sem que se pudesse discernir entre eles qualquer traço de in- por sua vez, proclamado pela sua brutalidade, o que a autora dividualidade ou espontaneidade. De acordo com a filósofa, chamou de “domínio total”. A eliminação dos indesejados nos com a arbitrariedade produzida no totalitarismo, campos de extermínio totalitários, principalmente nazistas, [...] vemos a tentativa quase deliberada de acontecia, de acordo com a filósofa, em três etapas. construir, em campos de concentração e Em um primeiro momento, ocorria a morte jurídica do câmaras de tortura, uma espécie de Inferno Homem. Neste instante é importante pensarmos, como um terreno, cuja diferença principal em relação exemplo, inclusive, vivido e proposto por Hannah Arendt: a às imagens medievais do Inferno reside figura do apátrida. Semelhantemente, a anulação jurídica do em melhorias técnicas e na administração Homem nos regimes totalitários pôde ser percebida na efígie burocrática - mas também em sua falta de do “criminoso que não cometeu crime” algum, muito menos eternidade.104 um crime político. Sem nenhuma acusação formal, no total- itarismo, as pessoas indesejadas eram enviadas aos campos Assim, do ponto de vista prático, a chegada das ideolo- de concentração e, até mesmo, de extermínio, para que a gias totalitárias no poder foi possível por conta da adoção de ideologia totalitária fosse garantida. A anulação da figura ju- critérios instrumentais nas atividades humanas durante toda rídica do Homem favoreceu a invisibilidade que se passava no a Era Moderna, culminando nas elaboradas técnicas dos cam- interior dos campos de extermínio. Ao ingressarem em uma pos de extermínio. Na perspectiva de Arendt, do ponto de vis- dessas “fábricas da morte”, apagavam-se os últimos laços que ta do pensamento político, a subida do totalitarismo ao poder os indivíduos possuíam com o mundo, sua presença estava deu-se por conta da crise da tradição e, consequentemente,

Letras, 1989. 104 ARENDT, H. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 103 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. 2002. 237 de sua autoridade política, categoria mais antiga do pensa- Maquiavel e restauradas com as experiências dos movimentos mento político do Ocidente, nascida, em sua concretude, du- revolucionários durante a Era Moderna, como fora mostrado rante a fundação de Roma, e que possibilitava, desde então, em Sobre a Revolução, de 1963, principalmente na França, so- uma referência ao Homem, no que diz respeito às tomadas bretudo após o emblemático ano de 1848, e, posteriormente, de decisões na sociedade. Hannah Arendt também buscou es- na União Soviética. Segundo a pensadora, clarecer, mas não conservando ou invalidando, os aspectos a [...] existem muitas maneiras de interpretar respeito da tradição, mencionada em suas obras: sua crise, do a configuração histórica em que teve apare- ponto de vista do pensamento político, e seu desdobramento cimento o incômodo problema de um abso- na direção mencionada dos regimes totalitários, do ponto de luto. Quanto ao Velho Mundo, mencionamos vista prático. Neste sentido, para a filósofa, a continuidade de uma tradição que parece já não podemos nos dar ao luxo de extrair nos conduzir diretamente aos últimos sé- aquilo que foi bom no passado e simples- culos do Império Romano e aos primeiros mente chamá-lo de nossa herança, deixar séculos do cristianismo, quando, depois que de lado o mau e simplesmente considerá-lo o “o Verbo se tornou carne”, a encarnação de um peso morto, que o tempo, por si mesmo, um absoluto divino na Terra foi represen- relegará ao esquecimento. A corrente sub- tada inicialmente pelos vigários do próprio terrânea da história ocidental veio à luz e Cristo, pelo bispo e pelo papa, aos quais se usurpou a dignidade de nossa tradição. Essa sucederam os reis que invocavam direitos é a realidade em que vivemos. E é por isso divinos para a realeza, até que por fim à que todos os esforços de escapar do horror monarquia absoluta se sucedeu a soberania do presente, refugiando-se na nostalgia por não menos absoluta da nação.106 um passado ainda eventualmente intacto ou no antecipado oblívio de um futuro me- Finalmente, de acordo com Hannah Arendt, a autori- lhor, são vãos.105 dade política tradicional, que caminhara, em sua concretude, desde a fundação de Roma, veio à falência no pensamento De acordo com a filósofa, rastrear quando a política foi do mundo contemporâneo. O esgotamento da autoridade no concebida como um estatuto, isto é, como uma referência, pensamento político fora, na visão da filósofa, apenas uma dotada de um fim pré-estabelecido, significaria rastrear parte de uma ampla crise que atravessou toda a Era Moder- o aparecimento da noção da autoridade, de uma regra, e o na. Em A Condição Humana, obra de 1958, no capítulo A Vita desaparecimento da dignidade na tradição do pensamen- Ativa e a Era Moderna, a filósofa afirma que o advento da Era to político ocidental. No ensaio O Que é Autoridade, na obra Moderna resultou no aparecimento de um homem alienado Entre o Passado e o Futuro, de 1961, a filósofa aborda o apa- de seu mundo, que antes lhe era comum. Segundo ela, essa recimento e a genealogia da autoridade na tradição do pen- alienação pode ser descrita de duas formas: uma prática; e samento político ocidental, que culminou, em sua ruptura, na outra teórica. De um lado, na prática, o avanço das ciências subida ao poder das ideologias totalitárias. Em sua análise, deslocou o ponto de referência da compreensão de toda a Hannah Arendt encontrou as primeiras formas centradas na realidade da Terra para um Universo infinito - a invenção do experiência de uma referência e, por isso, de um absoluto, em telescópio por Galileu, já citada, teria sido responsável por A República, do filósofo grego Platão, mais especificamente, isso. Além disso, a descoberta dos novos continentes, um dos no mito da caverna que, posteriormente, foram colocadas em momentos inaugurais da Era Moderna, segundo a filósofa, prática após a fundação de Roma e, em seguida, repensada conduziu o Homem para o avanço da técnica e da instru- com a Igreja Católica, sendo legadas pela filosofia de Nicolau mentalidade, encurtando distâncias e possibilitando a real- ização de façanhas nunca antes imaginadas. De outro lado, 105 ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das 106 ARENDT, H. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, Letras, 1989. 2011. 238 teoricamente, o pensamento político moderno, por conta do a Era Moderna, ocorreu, de acordo com Hannah Arendt, por ganho de notoriedade da dúvida, voltou a sua mentalidade meio dos aparatos técnicos, possibilitando o surgimento daq- e atenção do mundo exterior para o interior do homem, uilo que a autora chamou de Homo Faber, isto é, um homem acentuando o individualismo e o subjetivismo nas tomadas voltado, especificamente, para a atividade do trabalho. O de decisões na sociedade. Os acontecimentos descritos acima, Homo Faber, para ela, duvidoso a respeito da apreensão da juntamente com a Reforma, também já citada e explicitada, e realidade, estaria seguro apenas ao conhecer aquilo que ele outros, que não ganharam menção nas obras de Arendt, pos- mesmo fabrica, compreendendo o acesso a verdade como um sibilitaram a perda de confiança da capacidade receptiva dos ato de intervenção na realidade, através dos aparatos técni- sentidos humanos e, consequentemente, da recepção de uma cos. Neste período que, de acordo com a filósofa, a posição verdade que os conduzisse no mundo, resultando no surgi- de autoridade na Terra, que antes era legada aos deuses e/ mento da dúvida como um ponto de partida para as tomadas ou ao inalcançável, foi transmitida ao ser humano e à técnica. de decisões no mundo. Esse momento histórico ficou marca- Não é por menos que, o trabalho, juntamente com seu produ- do, segundo a autora, pela frase do filósofo René Descartes, to prático, a fabricação, destacou-se como a mais admirável onde o Homem moderno teria “caído em águas muito profun- atividade do Homem. Apesar disso, a figura do Homo Faber das da dúvida, sem poder nadar nem firmar os pés no fundo”. foi, para Hannah Arendt, rapidamente substituída por outra Desde então, a dúvida assombrou toda a história da Era Mod- com a chegada dos movimentos totalitários na contempora- erna. Essa preocupação, de acordo com Hannah Arendt, não neidade: o Animal Laborans. Para a filósofa, se oHomo Faber cessaria nos séculos seguintes e a incerteza de garantias, de é um homem voltado à atividade do trabalho que, do ponto que aquilo que se tomava como verdade não fosse uma mera de vista politicista, não é espontâneo, mas sujeito teleologica- ilusão, tomou conta do Homem. Tal sentimento de instabil- mente para atingir metas previamente determinadas de um idade possibilitou com que o Homem buscasse a tradicional produto ou uma obra, o Animal Laborans, por sua vez, estaria referência cognitiva que, desde a filosofia platônica, estava sujeito à manutenção e reprodução da vida, em seu termo alicerçada na contemplação de um mundo transcendente e/ estrito e, desta forma, representando uma parte da cadeia ou de um tempo adâmico, com aquilo que, em sua época, es- evolutiva das espécies animais, que é presa ao ciclo vital da tava ao seu alcance - a técnica e a instrumentalidade. Por este sobrevivência e propensa à imortalidade. Neste instante, de motivo, Hannah Arendt ressalta que acordo com Hannah Arendt, com a chegada das ideologias to- talitárias ao poder, como o nazismo na Alemanha, a atividade o fim de uma tradição não significa neces- sariamente que os conceitos tradicionais do labor fora elevada à posição da atividade mais valiosa da tenham perdido seu poder sobre as mentes vita ativa do Homem. Por fim, a autora, em suas obras, chega dos homens. Pelo contrário, às vezes pare- à conclusão de que, ao mesmo tempo em que a Era Moderna ce que esse poder das noções e categorias definiu a atividade do trabalho como uma referência para a cediças e puídas torna-se mais tirânico à orientação dos homens, em seguida, acabou por arruiná-lo, medida que a tradição perde sua força viva com a chegada dos mecanismos e das ideologias totalitárias, e se distancia a memória de seu início; ela cedendo espaço à atividade do labor. Em meio a essa entro- pode mesmo revelar toda sua força coerciva pia na política, a solução deste impasse, desta busca por uma somente depois de vindo seu fim, quando estabilidade, foram as monstruosidades cometidas pelos re- os homens nem mesmo se rebelam mais gimes totalitários. contra ela.107 Para a pensadora judia, contrária a toda determinação imposta pela ideologia totalitária, manifestada, principal- A busca por estabilidade em um mundo de constantes mente, na Alemanha, no início do século XX na Europa, es- transformações, de mudanças/reacionarismos, como fora tava a espontaneidade e, consequentemente, a liberdade política, faculdades exclusivas do Homem. Esta última, só 107 ARENDT, H. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, pode ocorrer quando os homens estão reunidos, em pé de 2002. 239 igualdade, em um espaço público, praticando a atividade da Eduardo Jardim, na proposta política arendtiana, a “vida do ação, a matéria da vida política, diferente das atividades do espírito”, isto é, a vita contemplativa, “[...] retira-se do mundo trabalho e do labor, possíveis no isolamento. A atividade da pelo pensamento e, em seguida, retorna a ele pelo juízo”, cat- ação, para Arendt, só pode se efetivar e, consequentemente, egorias inexistentes em Eichmann, atestadas pela pensadora amparar a política, na medida em que o Homem aprimora a em Jerusalém. sua capacidade de conscientização, isto é, seu pensamento e Neste sentido, devemos pensar a atividade política, que julgamento, do mundo, atividades da vita contemplativa, tra- é sustentada pela ação, de acordo com a filosofia de Hannah balhadas em A Vida do Espírito, obra publicada post-mortem, Arendt. Poderíamos optar por vários caminhos, de certo. No encontrando-se com outros homens também livres em um entanto, em sua obra O que é Política, publicada dezoito anos espaço público, ou seja, na pólis. Posto que, é na pólis que após a sua morte, no ano de 1993, é um dos caminhos pos- encontramos o agonismo de duas forças de pensamento que síveis. A filósofa escreveu a obra com o intuito de desconstruir resultam em um juízo, que caminha ao futuro indeterminado: os preconceitos em relação à política. A situação política de sua época, em meados dos anos 1950, favorecia uma aval- [...] As duas forças antagônicas são, ambas, ilimitadas no sentido de suas origens, vindo iação negativa da política, por conta da desilusão a respeito uma de um passado infinito, e outra de um do progresso. Afinal, vivia-se o ressentimento da destruição futuro infinito; no entanto, embora não te- causada pela Segunda Guerra Mundial e o medo do fim do nham início conhecido, possuem um térmi- mundo com a disputa pela hegemonia global, durante a Guer- no, o ponto no qual colidem. A força diago- ra Fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Segunda a au- nal, ao contrário, seria ilimitada no sentido tora, na época, acreditava-se que os males causados por esses de sua origem, seu o seu ponto de partida momentos históricos eram resultado de uma hiperinflação o entrechoque das forças antagônicas, se- do âmbito político que, por sua vez, causara uma supressão ria, porém, infinita quanto a seu término, de todos os outros âmbitos da vida dos homens, sobretudo, visto resultar de duas forças cuja origem é a liberdade. Portanto, de acordo com Hannah Arendt, a situ- o infinito. Essa força diagonal, cuja origem é ação a respeito da política deveria ser debatida e colocada em conhecida, cuja duração é determinada pelo exame. Em seu exame, para o pensamento corrente da época, passado e pelo futuro, mas cujo eventual as liberdades individuais deveriam ser resguardadas e prote- término jaz no infinito, é a metáfora perfeita gidas do aparato estatal. Ademais, acreditava-se que a políti- 108 para a atividade do pensamento. ca possuía um caráter moralista, baseado na crença de que liberdade seria sinônimo do livre-arbítrio, concepção oriunda Além disso, Hannah Arendt, é importante lembrar, do credo cristão, e de que a sociedade deveria ser movida pelo participou de debates que mexeram com o mundo político sentimento do amor, o mais íntimo e menos mundano sen- da sua época, envolvendo-se no, até hoje, polêmico caso do timento, ao invés da amizade, sentimento assegurador dos julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, no ano de pactos políticos, de modo que os líderes políticos evitariam 1960. Envolvimento que possibilitou a elaboração de uma de o fim do mundo por uma questão de caráter e não por um suas obras que, basicamente, pode ser explicada com o seu debate de natureza propriamente política. De acordo com a subtítulo - Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, publicada autora, alguns acreditavam que a política estava associada à em 1963. A banalidade, segundo a filósofa, seria a ausência violência: tanto por parte dos que temiam o desastre de uma de pensamento e de julgamento, pressupostos para a ação guerra nuclear como daqueles que enxergavam na violência que, por sua vez, é matéria da vida política. De acordo com a uma forma de libertação. Tais movimentos foram, de acordo filósofa, a banalidade estaria acompanhada de um burocrat- com a filósofa judia, reacionários, na medida em que localiza- ismo, ou seja, de uma vida sem questionamentos, amnésica, vam a política em meio à violência. A filósofa afirma que estes seguindo ordens pré-estabelecidas. Por isso, de acordo com movimentos estavam presos aos velhos códigos tradicionais do pensamento político. Vejamos em suas palavras: “quan- 108 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. 240 to mais forte é o apego dos homens ao antigo código, mais liberação. A liberdade necessitava, além da ansiosos estarão para assimilar o novo; a facilidade com que mera liberação, da companhia de outros ho- tais inversões podem se dar em certas circunstâncias sugere mens que estivessem no mesmo estado, e de fato que todos estão adormecidos quando elas ocorrem. “ também de um espaço público comum para Diante deste cenário, Arendt afirma que a pergunta que encontrá-los - um mundo politicamente or- se levantava na época era se a humanidade não se voltaria ganizado, em outras palavras, no qual cada para a razão e se livraria de vez da política, para não ser, de homem livre poderia inserir-se por palavras 109 uma vez por todas, destruída por ela. A resposta que Hannah e feitos. Arendt gostaria de responder em seu livro O que é Política, como vimos, já tinha uma conotação negativa em seus pos- Por esta razão, para a filósofa, a postulação de um fim síveis e futuros leitores. E, nesse sentido, os preconceitos en- determinado na política torna-se um obstáculo para sua raizados sobre a política impediam qualquer espécie de julga- própria realização, que é espontânea, assemelhando-se ao mento a respeito do tema. Nestes casos, na visão de Arendt, as fim previsto da uma obra e/ou do ciclo vital das espécies ideias de política e de liberdade entram em conflito. Em suma, animais. Durante a história do pensamento político ociden- por um lado, havia aqueles que acreditavam que a liberdade tal, afirma Hannah Arendt, no decorrer de seus livros, que, só poderia ocorrer longe do Estado e, por isso, da política. De lamentavelmente, a visão utilitarista da política se expandiu outro, existiam aqueles que acreditavam que a liberdade de- e passou a prevalecer no mundo contemporâneo. Ademais, veria suceder da política que, por sua vez, era um instrumento de acordo com a filósofa, o que define a promessa da liber- violento na direção de um fim previsto, sua plena libertação. dade é a distinção entre organismos políticos, alicerçados na No entanto, para Hannah Arendt, que possuía uma pluralidade humana, e apolíticos, aprisionados em um estado grande influência dos gregos, estava convicta de que a liber- natural e mítico das coisas, como as sociedades primitivas de- dade é o produto do intra-espaço humano, onde os homens pendentes de fenômenos naturais considerados deuses que colocam-se em posição de igualdade, em um espaço público, puniam ou abençoavam os seres humanos. distintamente, do espaço pré-político, onde os homens visam Não é por menos que, no capítulo O Que é Liberdade, em à satisfação das suas vontades, como em seus espaços priva- seu livro Entre o Passado e o Futuro, de 1961, a autora afirma dos. O ingresso para a vida política dependia da satisfação das que, a ação, que é matéria da vida política, “deve ser livre, por necessidades básicas do Homem, suas carências em relação à um lado, de motivos, e, por outro, de um fim intencionado manutenção da vida. Sua convicção em relação à inovadora com um efeito previsível”. Isso não significava que motivos política ateniense rendeu-lhe inúmeras críticas de estudiosos deveriam estar ausentes na ação, mas antes que a ação se materialistas, que a classificam como uma pensadora ideal- torna livre na medida em que é capaz de transcendê-los. É ista, colocando-a em uma matriz atenocêntrica e apontando importante lembrar que a defesa da política feita pela filósofa os limites dos desdobramentos práticos de sua teoria. Em sua não pressupõe que as distintas perspectivas não possam ser obra Entre o Passado e o Futuro, de 1961, a autora recorda que, corrigidas e/ou que não haja um critério político para serem para o pensamento político grego, julgadas. Não é por menos que a lógica do espaço dialogal grego permitiu a mediação das forças políticas em função da [...] a liberdade era entendida como o es- pólis. Por isso, o diálogo político, por oposição ao poder ab- tado do homem livre, que o capacitava a soluto, exige que umas e outras forças sejam igualmente sub- se mover, a se afastar de casa, a sair para o metidas à prestação de contas no espaço público em que se mundo e a se encontrar com outras pessoas constitui a pólis. Porém, quando falamos em pólis, em nada em palavras e ações. Essa liberdade, é claro, estamos tentando submeter nossas análises às cidades-Es- era precedida da liberação: para ser livre, o tado gregas e em seu espaço físico propriamente dito, mas à homem deve ter-se libertado das necessida- des da vida. O estado de liberdade, porém, não se seguia automaticamente ao ato de 109 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. 241 formação do intra-espaço humano no qual a liberdade pode da espécie, isto é, do produto final e/ou da sobrevivência, o vir a operar. Homem que pratica a ação só aparece na medida em que Como já dito, Hannah Arendt lamentou e, por este mo- está no intra-espaço humano, isto é, no espaço público, onde tivo, buscou compreender, o rumo que tomou a política no todos os homens demonstram como, de fato, são. Por isso, Ocidente, desde quando Platão, desapontado pela morte de segundo Hannah Arendt, a ação é a única atividade capaz de Sócrates, pensou A República, valendo-se da analogia dos sublinhar a identidade do indivíduo, dotando-o de dignidade. ofícios na vida prática. Neste sentido, as “formas” pré-visu- Acrescenta ainda que, a ação, diferente do trabalho e do la- alizadas das obras são reproduzidas por meio de um esforço bor, possui um caráter inconversível. Os processos que a ação mimético do artista, de um demiurgo. Com isso, as “formas” produz podem ser sentidos muito depois do indivíduo que a tornam-se um padrão constante, isto é, um absoluto, para causou ter deixado o mundo, ou seja, a pólis. o sucesso ou fracasso humano. Enfim, a analogia platônica Hannah Arendt afirma também que, para lidar com essa reproduz “[...] o comportamento moral e político no mesmo imprevisibilidade da ação, é necessário o uso do recurso da sentido em que a “ideia” de uma cama em geral é o padrão promessa. A promessa é a base sob a qual pactos e tratados para fabricar qualquer cama particular e julgar a sua quali- são estabelecidos, representando uma aposta no valor do dis- dade”. Para a filósofa, o mito do rei-filósofo inaugurou um curso humano e uma garantia de estabilidade, mesmo que caráter instrumental nos assuntos políticos, sendo perpet- por um tempo previsível, nos assuntos humanos. Para ela, uado e retomado durante toda a tradição, mesmo depois de o valor do conceito da promessa foi, teórica e inicialmente, seu esgotamento. Com isso, podemos destacar dois perigos reconhecido na poesia épica do Gênesis, na Bíblia, quando causados pela instrumentalidade da política apontados pela Abraão firmou seu pacto com deus e, que mais tarde, gan- filósofa: o primeiro seria o impedimento no reconhecimento hou forma jurídica, e prática, nas leis romanas. Enquanto a cognitivo da dimensão da pluralidade humana no mundo; e, promessa era uma segurança contra a imprevisibilidade da o segundo, seria a impossibilidade das estruturas sociais dar- ação, o recurso do perdão, de acordo com ela, teria a ver com em conta da espontaneidade e imprevisibilidade e, portanto, o seu caráter inconversível, assegurado pela faculdade de ini- da ação humana. ciar algo novo dos homens. Por esta razão, o perdão, por pro- O exame da filósofa a respeito das três atividades hu- porcionar a liberdade tanto de quem perdoa como de quem é manas da vita ativa está descrito em sua obra A Condição perdoado, é diferente da vingança, que aprisiona ambos em Humana, lançada em 1958. As três atividades são: o trabalho, um passado. A filósofa ainda afirma que, por conta do concei- o labor e a ação. Para tanto, Hannah Arendt destaca a obra to de perdão ter tido origem religiosa, com os ensinamentos do autor, como sendo o Homo Faber, que produz ou fabrica de Jesus, seu reconhecimento na política foi dificultado du- seu produto no isolamento, tendo um fim imaginado. Do rante toda a História. ponto de vista político, o autor, que fabrica seu produto no É possível notar, em seus escritos, que Hannah Arendt isolamento, é o tirano, que conduz, de forma isolada, a so- repudiava a política como uma forma de associação com ciedade de acordo com suas próprias necessidades. Da forma a técnica, que reduz a primeira em mera governança e/ou semelhante, segue a atividade do labor, que é sentida e administração, como ocorreu no mundo contemporâneo. A produz a manutenção da vida no isolamento. Em contraste filósofa também negava a subordinação da política à moral, com as atividades produtivas e laborais, está a atividade da forma associativa de origem cristã, pelo fato de ter restringido ação, que não possui um fim previsto e que sempre precisa da a liberdade ao âmbito pessoal do livre-arbítrio. No entanto, presença de outros homens para se realizar. Desta maneira, foi com Agostinho de Hipona, um dos pais fundadores da a atividade da ação, que só ocorre entre os homens, produz Igreja, que sua inspiração para a formulação do conceito de uma teia de relações políticas; mesmo que se reconheça que a “criação”110, de um novo começo, em suas obras, aconteceu. atividade da ação precisa ser despontada por uma pessoa es- De acordo com Hannah Arendt, o conceito de “criação”, fun- pecífica. Enquanto todo o processo produtivo e laboral se es- conde para o aparecimento da obra e/ou para a manutenção 110 BERGSON, H. Consciência e vida. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores). 242 damentado exclusivamente na ação, matéria da vida política, CONCLUSÃO PARCIAL está intimamente ligado com a noção de milagre. A noção Visa-se examinar a pólis grega, o caminhar de uma nor- de milagre, apesar de ter origem religiosa, consiste em uma ma sustentada pelo fio condutor da tradição e sua ruptura intervenção abrupta que altera o curso dos acontecimentos que, de acordo com a pensadora, resultou na subida do to- e faz nascer algo de novo, como quando os homens nascem talitarismo ao poder na Europa no início do século XX. Para e passam a existir e desafiar um mundo já posto a eles. Arendt, a pólis era o local da memória democrática, onde o Além disso, a filósofa demonstrou que o milagre aconteceu, local “entre” os homens, libertos de suas necessidades, pos- também, no plano dos processos naturais da vida no Universo. sibilitava o exercício da liberdade. Neste sentido, o agonismo As súbitas alterações que trouxeram o surgimento da Terra, possibilitava o encontro dos diferentes e valorizava o aspecto da vida orgânica e, consequentemente, do próprio Homem, inventivo do Homem. Aspecto criativo que fora esquecido com devem, de acordo com Arendt, serem vistos como verdadeiros o surgimento daquilo que a autora chamou de “absoluto”: um milagres. Esse conjunto de desdobramentos (da matéria em “quadro referencial” meramente contemplativo capaz de ori- vida e desta em consciência) trata de ocorrências inesperadas entar os Homens dentro da lógica do comando-obediência. em ambientes que os processos naturais são plenamente Referência que se esgota na passagem para a Era Moderna e previsíveis e condicionados. Na mesma direção, portanto, no impulsiona os indivíduos a buscarem um outro refúgio, en- âmbito humano, o milagre recebeu um aspecto próprio, com a contrado nos movimentos totalitários. Desta forma, concre- obtenção de seu instaurador, daquele que faz os milagres, isto tizava-se o “absoluto” nos campos de extermínio. A ideologia é, o próprio Homem. Afinal, de acordo com Hannah Arendt, as totalitária por trás dos campos outorgava uma Lei da Natureza chances são esmagadoras do hoje ser igual ao amanhã: que reduzia a pluralidade humana em uma ampla burocracia. A história, em contraposição com a natu- Esse fenômeno fora denominado pela filósofa de “banalidade reza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do mal”. do acidente e da infinita improbabilidade Entretanto, nas análises de Hannah Arendt, percebe-se ocorre com tanta frequência que parece es- um politicismo que produz uma retórica que deixa de lado tranho até mesmo falar de milagres. Mas o uma narrativa de análise concreta e objetiva da História (sis- motivo dessa frequência está simplesmente tema imperialista e escravista ateniense, o desfecho da via no fato de que os processos históricos são prussiana do capital, etc). Desta forma, desvela a miséria de criados e constantemente interrompidos uma racionalidade-manipulatória e romântica de apologia pela iniciativa humana [...].111 à decadência ideológica burguesa e à estrutura sociome- tabólica do capital, perversas ao potencial da produção social O Homem, como um agente de iniciativas, suprime a genérico-humana. Sua obra é refratária à racionalidade e continuidade histórica e traz consigo a novidade, destruindo desloca o Homem como agente do processo histórico; nega a monotonia e implacabilidade da natureza. Para Arendt, es- a historicidade. A autora procura resgatar a liberdade estrat- sas iniciativas humanas são o fruto da liberdade, que perman- ificando a realidade em elementos demiúrgicos e práticas ecerá sendo o exclusivo dom humano, enquanto a condição discursivas, que negam a objetividade historicamente dada, humana não for alterada. A obra da Hannah Arendt, tendo sugerindo um anti-humanismo. Afinal, é urgente à função como base a criação e a possibilidade de um novo mundo, social do historiador modificar o mundo, e nunca o passado, aparece-nos como um raio de luz que parece iluminar o que como faz Arendt. ela chamou, e que foi tema de um de seus livros, publicado Neste sentido, a filosofia de Arendt é fruto do ardil do no ano de 1968, de “tempos sombrios”. O esforço intelectual ventre nebuloso de um capital agonizado e da insubstancial- de Arendt no resgate de uma política supostamente esque- idade prática e teórica de uma esquerda organizada. Em suas cida nos questiona o seguinte: que realidade é pensada pela obras, a autora não visa modificar o mundo. Produz o ilógico: autora? ignora a realidade e modela-a em uma filosofia pré-estipula- 111 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. da. De passagem, oferece uma proposta vazia (“não esquecer 243 o passado”, “resgatar a dignidade da política”, “reconciliação ______. Sobre a revolução. São Paulo: Com- com o mundo”, etc) através de uma leitura inocente e false- panhia das Letras, 2011. adora da história. Na medida em que os pressupostos objeti- vados na pesquisa se mostram viáveis no plano subjetivo, de ______. Sobre a violência. São Paulo: Com- discursos “soltos nas nuvens”, de uma “nau dos insensatos”, panhia das Letras, 2013. aponta um grave limite do ponto de vista prático, realizando, de forma sutil e até indireta, a manutenção de uma realidade BERGSON, H. Consciência e vida. São Paulo: Abril Cul- que não pode ser capturada objetivamente e que é assolada tural, 1979. (Os Pensadores). pelo capital. A pesquisa está em andamento e aberta a novas possibilidades. CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.

THE CONCEPT OF MEMORY IN H. ARENDT DUARTE, A. O pensamento à sombra da ruptura. São Paulo: Paz e Terra, 2000. ABSTRACT The research aims to think the assumptions and limits of FARIAS, F. (org). Apresentação. In: ______. No- the discursive field of Social Memory in the political theory of vos apontamentos em memória social. Rio de Janeiro: Hannah Arendt in two moments of his work: CRIATION and 7letras, 2012. CONSERVATION. Inevitably, we will find a third transversal theme in his work: TRADITION. Through an immanent anal- HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vér- ysis of the works of the thinker, it is intended to produce an tice, 1990. ontological critique of the arendtian ideology and its histo- riographic support. HARDT, M. NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. Key-words: Memory. Politics. Totalitarism. JARDIM, E. Hannah Arendt: pensadora da crise e de REFERÊNCIAS um novo início. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011.

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Fo- MARX, K. O Capital: crítica da economia política. rense Universitária, 2007. Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2017.

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______. Entre o passado e o futuro. São Pau- lo: Perspectiva, 2013.

______. Origens do totalitarismo. São Pau- lo: Companhia das Letras, 1989.

244 O CONJUNTO ARQUITETÔNICO PORTO DAS BAR- reconhecimento e valorização nesses espaços e que a partir CAS E AS AÇÕES DO PODER PÚBLICO MUNICIPAL disso ele seja incorporado pelo Turismo através de uma in- NA CIDADE DE PARNAÍBA, PIAUÍ – BRASIL tegração entre poder público, privado e comunidade. Outros estudos relacionados ao planejamento são necessários para Amanda Maria dos Santos Silva112 compreender o papel da administração municipal da cidade Universidade Federal do Piauí Parnaíba, sua inércia em tomar uma posição com os atores [email protected] locais e com a turistificação desse espaço.

Antônia Beatriz Ribeiro Araújo113 Palavras-chaves: Patrimônio Histórico. Políti- Universidade Federal do Piauí ca Pública Municipal. Conjunto Arquitetônico [email protected] Porto das Barcas. Parnaíba. Piauí

Luciano Souza Oliveira114 INTRODUÇÃO Universidade Federal do Piauí [email protected] A atividade turística tem se desenvolvido ao longo dos anos através dos atrativos que cada comunidade possui. Isso RESUMO tem chamado a atenção dos empreendedores do turismo, que O presente artigo tem por finalidade investigar as políti- utilizam de seus atrativos como motivador do deslocamento cas públicas voltadas a utilização do patrimônio histórico turístico para fins lucrativos. Atualmente procura-se utilizar cultural em um âmbito municipal, definindo como objeto de do turismo como forma de preservação das características estudo o Conjunto Arquitetônico do Porto das Barcas situado culturais, através do segmento de turismo cultural na busca na cidade Parnaíba, Piauí – Brasil. Como base metodológica de vivenciar novas experiências conhecendo o passado de utilizou-se revisão bibliográfica, a partir de autores como Dias determinado local e assim atribuindo novas funções para es- (2006), Hall (2011), Barreto (2001) e pesquisa de campo en- ses espaços históricos. Por isso, o presente artigo tem como volvendo a superintendência de Cultura do município. Desse objetivo identificar as ações do poder público municipal no modo, busca-se refletir sobre a responsabilidade dos órgãos processo de gestão do patrimônio, na cidade de Parnaíba. públicos em relação ao planejamento organizado e sustentáv- O Conjunto Arquitetônico Porto das Barcas, atualmente é el do território turístico. A partir da revisão de literatura, apresentado como um importante espaço de memória do Es- quando traça-se um paralelo entre as formas de utilização tado do Piauí-Brasil, sendo um dos pontos turísticos mais visi- do patrimônio com o objeto da pesquisa, percebe-se que o tados na cidade Parnaíba, a segunda maior cidade do Estado. uso dado ao espaço ainda é precário, quase inexistente, não De acordo com Oliveira (2014), no livro “Parnaíba: a se caracterizando como um atrativo comercializado. Percebe- pérola do litoral brasileiro”. O Porto das Barcas fica próximo se ainda que o IPHAN não é só responsável pela preservação à ponte Simplício Dias que liga a cidade de Parnaíba ao Bair- e tombamento do patrimônio histórico, no caso o Porto das ro de Ilha Grande de Santa Isabel, na margem direita do rio Barcas, mas também pelo registro das informações que são Igaraçú, primeiro braço do Delta do rio Parnaíba, de onde nos encontradas e catalogadas para o acesso do público a sua cul- tempos áureos, quando Parnaíba era a fortaleza da economia tura. A ação do município é fundamental para que a haja um piauiense, escoava a produção agrícola e comercial, e por onde entravam mercadorias transacionais com outros estados brasileiros e com a Europa. 112 Mestre em Educação Brasileira (UFC); Bacharel em Turismo (UFPI) e Licenciada em História (UESPI). Atualmente é professora auxiliar da O porto na realidade se originou das charqueadas de Universidade Federal do Piauí. Simplício Dias da Silva, que preparava o charque estendendo 113 Graduanda do curso de Bacharelado em Turismo da Universidade a carne no sol para secar, até ficar completamente desidrata- Federal do Piauí. da. Era intenso o movimento das embarcações que ligava a 114 Graduando do curso de Bacharelado em Turismo da Universidade cidade ao mar, marcando para sempre os séculos XVIII e XIX, Federal do Piauí. 245 tendo sido de grande importância para a criação da Vila São muns para o viajante. A utilização desses atributos, também João da Parnaíba que teve a sua elevação a cidade em 1844 chamados de patrimônios, atiçam a curiosidade do indivíduo [...]. que sempre busca conhecimento, novidade e diversidade. O O Porto das Barcas atualmente é considerado como um desejo de conhecer a cultura do outro muito mais que a in- patrimônio histórico-cultural tombado pelo IPHAN em 2008, ternet, que possibilita comunicação com o indivíduo do outro sua estrutura foi restaurada, em grande parte, seus armazéns lado do mundo, o turismo possibilita vivenciar a cultura tan- foram transformados em casas comercias de artesanato, res- givelmente. O intercâmbio cultural estabelece uma sintonia taurantes, bares, sorveteria, auditório, palco ao ar livre, pou- para cada destino turístico, fazendo com que haja o fortaleci- sada e agências de viagens e turismo, e atualmente recebe mento e a preservação da identidade de uma localidade. turistas nacionais e internacionais. O turismo cultural apresenta um aspecto Por este fato, é conhecido como um dos atrativos turísti- duplo: pode apresentar-se como um cami- cos que compõem o centro histórico de Parnaíba, quem tem nho para a obtenção de fundos necessários domínio administrativo pela maior parte do Conjunto, é a à preservação da herança cultural e como Associação Comercial de Parnaíba. Possibilitando hoje a uti- uma ferramenta para proporcionar o desen- lização dos pequenos armazéns como lojas de artesanatos, volvimento econômico, local, regional e até bares, restaurantes, pousadas, agências de viagens e turismo. mesmo nacional. (DIAS, 2006, p.36) Dessa forma, este trabalho busca-se fazer refletir sobre a val- orização patrimonial desse espaço destacando as principais Atualmente, essa atividade turística se encontra como vertentes de atuação do poder público municipal. necessária, a globalização e consequentemente a tecnologia Como base metodológica da pesquisa, foi feito o levan- absorve o homem e nesse instante o desejo de retornar as tamento bibliográfico sobre as novas funções dos patrimônios origens é necessário. A sociedade determina aquilo que a car- dentro do crescimento das cidades, através de livros e artigos acteriza, o patrimônio vai além de uma forma de capital, ele científicos, além de meios de virtuais de comunicação, utili- adquiriu uma posição de referencial para o ser humano. Assim zando como base (DIAS, 2006). Para possibilitar a pesquisa, como as pinturas rupestres que apresentam o modo de vida foi realizada entrevista com o Superintendente de Cultura da do homem anterior a sociedade capitalista e fazem o homem cidade de Parnaíba, na gestão (2016-2021). atual repensar em como evoluiu. O patrimônio apresenta um legado que representa o homem em seus diferentes estados DESENVOLVIMENTO evolutivos. O turista pode se deslocar do seu local de origem com TURISMO PATRIMONIAL a expectativa de vivenciar o seu passado e compara-lo ao O turismo é uma atividade que se desenvolve absorven- presente. Mas nada disso seria possível sem a presença de do as características do ambiente em que se inicia. Possui objetos que podem fazê-lo viajar em sua própria história. A um propósito, geralmente econômico que motiva muitos diversidade de experiências que podem ocorrer através desses empresários e novos empreendedores a investir nas ativi- locais traz uma riqueza de conhecimento no qual o visitante dades turísticas. Segundo Dias (2006, p. 3) “O turismo é setor não terá ressentimento nenhum. Porém para haver turismo é da economia que mais cresce, de modo a superar setores preciso a valorização do patrimônio e da identidade do povo. tradicionais como a indústria automobilística, a eletrônica O autêntico atrai o viajante, que cansado do artificial prepa- e a petrolífera, também é considerado a principal atividade rado para recebê-lo, busca o contato real. E ser autêntico no econômica mundial”. mundo atual é um grande desafio, a interação do visitante Para que haja um desenvolvimento da atividade turística com o viajante pode impactar seu modo de agir, assim como e consequentemente da lucratividade é preciso um motivador de toda a comunidade. para a saída do turista de seu local de origem. Cada ambi- Segundo Getz (2001, p. 54) ente turístico utiliza características e atrativos que são inco-

246 Quando os festivais e outros eventos espe- O PATRIMÔNIO COMO RECURSO ECONÔMICO ciais são desenvolvidos conscientemente e promovidos como atração turística, há o ris- A cultura de um povo é determinada também pelas co de a comercialização se chocar com a ce- atitudes que o homem fez em seu passado. Mesmo que as lebração; do entretenimento ou espetáculo influências modernas desconstruam hábitos herdados de ocupar o lugar dos significados mais profun- seus antepassados, ainda há objetos ou construções deixadas dos da comemoração. Em outras palavras, o como legado para as gerações posteriores. Esses objetos se turismo pode destruir a autenticidade cultu- encarregam de ser um lembrete constante das nossas raízes ral, o principal objetivo que os turistas atuais e se nós desenvolvemos ou regredimos nesse intervalo de parecem buscar. O dilema, contudo, é que os tempo. Isso nos leva a compreensão de Ballart (1997, p. 78) benefícios obtidos com o turismo também quanto a esses objetos. fornecem os meios para criar ou expandir os festivais, restaurar e cultivar tradições e Todos aqueles objetos materiais que produ- fomentar e repartir o espirito comunitário. zem as sociedades e que permanecem no tempo e que se transformam em elementos venerados e valorizados e que contribuem Dessa forma as atividades turísticas culturais devem para se compreender outras formas de vida, estar interligadas a preservação do patrimônio. Do contrário, costumes, cultura etc. Ou seja, este conjunto todas as atrações que anteriormente eram para ressaltar a de objetos que uma sociedade herda de seus cultura do povo passarão a ser o calcanhar de Aquiles em uma descendentes para possuí-los efetivamente comunidade. Onde o propósito será distorcido e as gerações e fazer o uso que mais lhe convenha, esse futuras viverão das migalhas da sua própria cultura. Mesmo legado se denomina patrimônio. que haja os recursos vindos dessa atividade atrativa, não haverá mais atrativo a ser exposto ao público e consequente- Esse legado é o objeto de consumo dos turistas que tem mente não haverá mais recursos. sede de conhecimento e buscam experiências novas nos locais A autenticidade de um local está muito envolvida com a visitados. O patrimônio, não só natural, mas também histórico forma como um povo responde as suas raízes. O patrimônio é um grande recurso atrativo para uso turístico, além de abrir também proporciona a construção social, a exploração e a va- os olhos da comunidade turística para investir em tais cons- lorização da estrutura histórica do Complexo arquitetônico do truções. O legado dos nossos ancestrais é um marketing muito Porto das Barcas na cidade de Parnaíba- PI pode nos ensinar a produtivo, porque o que há em uma localidade, não é igual ter atitudes diferentes, construir um novo caráter. Muito mais o que há em outra. A diversidade de saberes e patrimônios que lucro, o complexo abriga conhecimento que representa nos garante a possibilidade de formas de exploração turística. a cidade de Parnaíba e o povo que nela habita que necessita despertar a sua autenticidade. Atribuir uso turístico a um território implica O que torna o Porto das Barcas diferente dos diversos utilizar um espaço, público ou privado de lazer, para uma atividade econômica que se patrimônios da cidade é a sua importância para o crescimento transforma em mercadoria e pode, portan- da cidade. O poder público se mantém alheio as necessidades to, ser comercializada. É nessa perspectiva e riquezas do local e a sociedade parnaibana espera o agir que o turismo coloca-se como um setor pro- dos governantes. Nesse impasse, perdemos tempo de agre- dutivo. (DIAS, 2006, p.189) gar uma grande riqueza para a nossa economia e um grande conhecimento para as nossas gerações. A cidade de Parnaíba O processo de uso turístico possui diversas associações deve ao complexo mais do que sua origem, como também a tanto do poder público quanto do privado, com iniciativas sua autenticidade, dele se iniciou uma trajetória de marcos de fiscalização, restauração e a estruturação de venda des- econômicos e sociais que ultrapassam fronteiras possibilitan- ses espaços sem atingir as características culturais de forma do a comunicação com outros países. negativa. Esses espaços fazem do patrimônio uma riqueza

247 invejada e valorizada não só por quem se desloca de seu local justificado se retornarem em lucro para o de origem para conhecer como também quem mora próximo mercado imobiliário ou turístico. Muitas a esses locais. O fato de nossa sociedade ser fortemente ca- vezes, esse modelo adota, na restauração pitalista faz com que só valorizamos algo quando possui um do patrimônio, uma estética que privilegia a valor de mercado. E quando o patrimônio passa a ser uma exibição como espetáculo, com o objetivo de mercadoria o seu uso é determinado pelo o órgão que mais se aumentar o rendimento econômico. beneficia desse recurso. Para muitos, esse investimento é uma perda, porém esta O valor de troca, impresso no espaço-mer- é uma visão reduzida do potencial que a estrutura da cidade cadorias, se impõem ao uso do espaço, e pode alcançar. Subestimando a riqueza de sua própria local- assim os modos de apropriação passam a idade e perdendo a credibilidade turística, pois os viajantes ser determinados cada vez mais pelo mer- não se locomoverão sem uma imagem positiva formada da cado. Dessa forma, o acesso ao espaço se localidade. A preservação desses ambientes é essencial para realiza pela mediação do mercado, o que manter o fluxo turístico e para estabelecer uma posição para impõe profundas mudanças nos modos de a cidade determinada, uma posição econômica e social para uso e consumo, como o aprofundamento da o restante do mundo, com uma característica diferenciada separação entre espaço público e privado. (SÁNCHEZ, 2003, p. 190) formada a partir do patrimônio. Como foi dito anteriormente, é o que move o turista do Quanto a essa divisão do público para o privado, gera um seu local de origem para absolver a cultura do outro. É uma distanciamento da comunidade turística que deve ser resolvi- forma de desconstruir estereótipos e memorizar o passado do de imediato para que a localidade não perca o contato com cultural do indivíduo receptor. Além disso, a comercialização sua cultura e faça com que o consumismo transforme a auten- de cultura através do turismo patrimonial é um imã para o ticidade do povo em outro produto turístico artificial somente fluxo de demanda podendo envolver milhares de pessoas para a satisfação do turista. O patrimônio primeiramente deve todos os dias para a atividade turística, estabelecendo uma atender ao habitante do local que herdou as manifestações indústria cultural. culturais para que seja repassada para as gerações poste- Gonzáles (2002, p.54) denomina isto como: riores. E em segundo lugar deve atender aos visitantes que Resultado direto do caráter massivo da cul- buscam por conhecimento e reconhecem as diversidades cul- tura do consumo, que incorporou a prática turais como riqueza social. social de amplas camadas de população a A cidade que possui o patrimônio deve estar no controle noção de que viajar e conhecer lugares di- desse contato do legado e o público, pois a comunidade con- ferentes não somente é possível como dese- strói a imagem que deseja passar para os visitantes. Esta im- jável e necessário para ter acesso a um estilo agem resulta do investimento na preservação do patrimônio, de vida melhor. sua estrutura física e intelectual, levantando suas origens de forma autêntica, sem se deixar levar pelo artificial turístico O turismo comercializado sem um acompanhamento que mais destrói do que desenvolve. Para Dias (2006, p.94), estruturado pode ter influências midiáticas que o transfor- da concepção mercantilista este investimento na preservação mam em algo artificial, preparado apenas para o turista, isto traz retorno econômico. se torna um risco tremendo, pois primeiramente o local deve atingir a comunidade que o representa. Assim a estrutura do Na concepção mercantilista é o destino local vai ter significado e passará a ser preservada pelo mora- econômico do patrimônio que guia os cri- dor por entender a essência das suas raízes. Essa forma de agir térios empregados em todas as ações de será o primordial para comercializar o produto turístico, a pre- preservação. Portanto, os gastos exigidos ocupação do morador pelo patrimônio reflete no ambiente para a preservação serão um investimento turístico. “É interessante observar que, na medida em que os 248 atrativos turísticos são valorizados, o espaço turístico constitui ra impedindo a sua degradação e oferecendo a comunidade um espaço produtivo, ou seja, há um mercado turístico dis- uma forma de desfrutá-lo e de construir sua identidade social. posto a consumi-los”. (DIAS, 2006, p.191). Claro que quando falamos em consumo, é algo que pos- PATRIMÔNIO COMO IDENTIDADE SOCIAL sui um planejamento e infraestrutura para tal. Requer um controle da parte daqueles que estabelecem empreendimen- A nossa sociedade é baseada pelo que nos é contado das tos e fazem parte do entorno do patrimônio cultural. As ações nossas gerações. Sabemos como chegamos até os dias atuais que serão feitas em um legado social engajam o morador através da nossa história, de pessoas que decidiram avançar e e o viajante que de acordo com o fluxo turístico possuem a construir um legado para que outras à frente do seu tempo pu- necessidade de absolver conhecimento a partir do que lhe é desse ver sua marca nesse mundo. Isso fala de identidade que apresentado. queremos deixar para nossos filhos, netos e bisnetos. As pes- O espaço será consumido, não o recurso em si, por isso soas que vieram antes de nós tinham a mesma necessidade os estabelecimentos que fazem parte do entorno farão seus que temos hoje, de ser reconhecidos pelos nossos esforços. serviços que por mais que não sejam totalmente tradicionais A necessidade de ser lembrado, de ter ajudado a construir a da região serão consumidos porque fazem parte daquele local história, isso é gravado na memória do povo e a memória con- cultural. Para que isso ocorra de forma planejada será preciso strói a identidade do mesmo. Queremos procurar o sentido em existir uma relação de parceria entre a comunidade, os em- nossos traços e naquilo que foi deixado para nós. preendimentos e os órgãos que gerem o patrimônio. Esses A identidade nasce dessa procura e permanece quan- são atuantes no campo social podem estimular a recuperação do um grupo de indivíduos decidem reivindicar sua cultura das origens de um povo e a melhoria de um espaço cultural. O ancestral. Ao reivindica-la, a identidade cultural de uma retorno seria despertar outras modalidades de turismo, sain- comunidade é formada, e quando formada semelhanças e do do tradicional turismo de aventura e voltando a face do diferenças são encontradas e questionadas. Dias (2000, p.50), público para as suas raízes. observa que: O legado de cada povo é uma possibilidade de oferta Quando se busca a identidade cultural, pro- turística diferenciada, nem todos pensam de uma mesma cura-se identificar aqueles que apresentam forma ou agem de um mesmo jeito. O patrimônio ocorre da traços em comum, que se identificam entre mesma maneira, cada povo tem suas características que são si, o que fortalece o sentimento de solidarie- passadas de geração em geração, essas tradições possuem dade grupal. No entanto, delimitar um gru- valor de uso no mercado turístico. Na cidade de Parnaíba em po de iguais implica distingui-lo de outros; relação ao conjunto do Porto das Barcas podemos observar desse modo, a construção da identidade as riquezas de conteúdo pronto para ser lapidado no merca- tem um aspecto aparentemente contradi- do turístico, além de ser uma alavancada para o local em se tório, por levar, necessariamente, ao esta- tratando de preservação e reutilização do espaço. belecimento de diferenças em relação aos Como investimento em projetos de renovação desse pat- membros de outras comunidades. rimônio poderia se tornar novamente o centro da economia da cidade como no passado. Esse aproveitamento do espaço Essa solidariedade grupal, descrita acima, mantém as possibilita um grande retorno econômico e possivelmente características de uma comunidade e repassam os traços o desenvolvimento organizado da comunidade. Se assim para as gerações posteriores, unindo propósitos e integran- compreendido pelos municípios que os agregam, pode ala- do a cultura no cotidiano, fazendo dela o cartão de visitas vancar o entorno turístico, gerar renda e preservar o legado. para as demais comunidades. Ao determinar as diferenças e Visualizar o patrimônio no mercado turístico não o faz ser semelhanças, os indivíduos herdeiros desses traços fazem da apenas uma mercadoria, mas sim dar um uso a sua estrutu- sua localidade algo original, que constrói uma imagem social. Essa construção pode trazer à tona conflitos na relação social, assim observa Maria Nazareth Ferreira (2001, p.16).

249 Fazer festa significa colocar-se diante do Os espaços histórico-culturais acabam sendo trans- espelho, procurando a si mesmo e á sua formados e remodelados para atender a perspectiva atual identidade; é buscar reencontrar as garan- e globalizada, não apenas para a uma demanda turística, tias histórico-culturais, reconfirmando-as mas principalmente para preservar e revelar o potencial da na força da representação, no ato comuni- própria identidade do povo. Criando novas atribuições para cativo e comunitário. Esta ação de resgatar esses espaços eles passam a ser mais significativos para a a própria identidade é fundamental para comunidade. Inicia-se nesse momento a continuidade desse encontrar-se a si mesmo e recuperar um legado, aprimorando a noção de identidade conforme o con- equilíbrio que pode estar ameaçado. Este tato com a alteridade, a identidade se estabelece como um resgate, entretanto, é um ato conflitivo, processo histórico que não se estabiliza apenas se intensifica, porque significa incorporar novos valores àqueles tradicionais. isto é, reflexo da alteridade. Quando existe esse choque com as diferenças o indivíduo procura o seu igual e estabelece seu Nesse contexto podemos pensar em um turista que ao padrão social, a identidade. ter contato com a comunidade receptora, aparenta ser difer- As identidades são construídas por meio ente dos demais. Nessa ocasião, as diferenças são explícitas da diferença e não fora dela. Isso implica o em comparação com a comunidade receptora, estabelecendo reconhecimento radicalmente perturbador a posição de cada sujeito e definindo quem é quem. O turis- de que é apenas por meio da relação com o mo apresenta essas diferenças e as fortalece usando o turista Outro, da relação com aquilo que não é, com como um sujeito que se conecta com a cultura do outro, direta precisamente aquilo que falta, com aqui- ou indiretamente, dessa forma ambos reforçam seus traços lo que tem sido chamado de seu exterior culturais. constitutivo, que o significado ‘positivo’ de Em uma determinada situação, quando se trata de um qualquer termo – e, assim, sua ‘identidade’ turista curioso que se depara com as construções arquitetôni- – pode ser construída (HALL, 2011, p. 110). cas, ele se questiona quanto ao início daquela construção e os No momento que sabemos o que falta no outro podemos materiais pela qual foi feita, o turista sem perceber estabelece reconhecer nossos atributos tanto positivo quanto negativo e as diferenças em relação a comunidade receptora, até na sua intensificá-los na necessidade de se destacar dos demais. A engenharia ancestral, a distinção transforma a mentalidade sociedade atual procura algo que o represente para os demais de cada um dos envolvidos, tanto do turista quanto da comu- e que seja procurado por isso. A partir da utilização do pat- nidade receptora, em relação a compreensão de que tudo aq- rimônio podemos estabelecer essas diferenças, a região Sul uilo que sabemos e aprendemos não é absolutamente tudo. do Brasil não possui os mesmos atributos históricos da região A realidade social de um confronta a do outro, estimulando Nordeste, pensando assim um morador do Sul pode visitar a curiosidade em saber as demais identidades desconheci- o Nordeste atrás do diferente, da alteridade do outro. Assim das. Para Dias (2006, p.52), as interações culturais possuem também o morador do Nordeste procura no Sul as diferenças funções muito além dos originais. culturais. O impacto de identidades reflete as características As interações recíprocas entre os membros sociais positivas que são aquelas que permanecem como im- da comunidade e os novos atores – os turis- agem social para as demais comunidades. tas – podem provocar modificações na ma- A identidade não é só a divulgação de uma região pelo nifestação cultural, as quais, se bem condu- turismo, é a posição que um povo toma perante aos out- zidas, serão decisivas para a continuidade, ros. Defendendo suas características e preservando valores em outro tempo, da manifestação original, que estão empregados em seus monumentos históricos, que pode ser determinada historicamente, na sua cultura deixada pelos antepassados, naqueles que porém transformada e com novas funções. construíram a sociedade atual da qual hoje é essencial que

250 participem. Há muito o que mostrar de uma comunidade, político, de que eles vejam o potencial dos espaços históricos. tradições, valores e saberes que moldam sua posição social e A lei brasileira vê o potencial do patrimônio de acordo com que não podem ser esquecidos. A degradação do patrimônio o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, Art. 1º da comunidade pode acarretar em sérios problemas para as constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o con- próximas gerações, os descendentes do que podia ser uma junto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja cultura rica e cheia de saberes acabam embarcando na atu- a conservação seja de interesse público, quer por sua vincu- alidade sem raízes que os ajudem a se posicionarem com um lação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu legado produtivo. excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico Como Margarita Barreto (2001, p.104) afirma que ou artístico. A lei brasileira estabelece a preservação muito além A manutenção e recuperação do legado cultural fazem parte de um processo maior, de espaços arquitetônicos, foi este projeto lei que norteou a que é a conservação e recuperação da me- forma como o patrimônio seria visto dali diante. A criação do mória, graças à qual os povos mantêm sua IPHAN em 1937, anteriormente chamado de SPHAN, com o identidade. Monumentos e prédios históri- objetivo de preservar o patrimônio histórico artístico nacional cos, danças e culinária, ditados populares e muda a perspectiva de como vemos o nosso cotidiano. Quan- cerimônias mantém a continuidade cultural, do se constrói leis entendemos a importância daquilo que são o nexo dos povos com o seu passado. sabemos sobre nós mesmo e sobre a nossa cultura. O IPHAN possui um papel decisivo nas políticas de preservação patri- A necessidade de estabelecer raízes é um desejo invol- monial, pois através deste órgão federal foi estabelecida a lei untário da natureza humana, por isso necessitamos resgatar de tombamento que para o IPHAN pode ser entendido como: na memória aquilo que por descuido foi perdido, mesmo [...] um ato administrativo conduzido pelo que o processo de globalização acabe nos transformando, os Poder público com o objetivo de preservar, monumentos e prédios históricos estão ali para nos lembrar por intermédio da aplicação de legislação de que temos um passado que merece ser preservado. Por específica, bens de valor histórico, cultural, isso que quando o parnaibano, personagem em questão, se arquitetônico, ambiental e também de valor depara com o Porto das Barcas ele passa a questionar: O que afetivo para a população, impedindo que aquilo tem a ver com quem eu sou? venham a ser destruídos ou descaracteriza- Quando a identidade passa a ser percebida como parte dos. (INSTITUTO DE PATRIMONIO HISTÓRICO de onde vivemos, observamos o local em busca de carac- E ARTISTICO NACIONAL- IPHAN, 2004) terísticas peculiares que possam nos representar. Algo que se possa levar para qualquer lugar e poder dizer com muito O tombamento é aplicado aos bens móveis ou imóveis orgulho de que aquilo é parte de quem eu sou. Isto faz com que fazem parte da cultura de um povo. Essa lei facilita a o que o patrimônio seja refletido de forma positiva, ou seja, preservação de prédios e estruturas históricas que podem a imagem do povo é disseminada. Porém, para que o legado ser engolidos pela expansão descontrolada das cidades, as- possa ser preservado e a comunidade compreenda que é sua sim também como a perda de características históricas que identidade é preciso estabelecer a posição governamental são incomuns atualmente com o processo de modernização. quanto a importância do patrimônio para o poder público. Mesmo que o local já seja habitado, o seu proprietário deve se submeter a lei de tombamento. A PERSPECTIVA GOVERNAMENTAL NA CIDADE DE O processo de tombamento pode ser feito pelo governo PARNAÍBA, PIAUÍ estadual ou pelas administrações municipais. Esse processo de tombamento requer como primeiro passo o pedido de pro- Quando se fala em preservação patrimonial mandamos cesso feito por iniciativa de qualquer cidadão ou instituição uma seta primeiramente para o poder público. Procuramos pública. O processo passa por uma avaliação técnica e poste- uma ação efetiva daqueles que nos representam no pódium 251 riormente é submetido a deliberação dos órgãos responsáveis lização do legado histórico sem perder suas raízes e havendo pela preservação. Caso seja aprovado, é expedida uma notifi- um órgão que controla e planeja esses espaços. cação ao seu proprietário. A partir desse momento o bem já Apesar do IPHAN ser um órgão federal, não é só a ação se encontra legalmente protegido. O processo termina com a do Estado, mas o Estado como nação em todos os níveis, es- inscrição no Livro de tombo do patrimônio correspondente. taduais, regionais e municipais, que devem estar engajados (INSTITUTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIO- com esses processos de utilização do patrimônio. Os projetos NAL-IPHAN, 2017) devem ser divulgados de forma a atingir todas estas vertentes Esse mesmo processo foi incorporado pelo IPHAN ao governamentais. Essa divulgação desperta o interesse de todo Conjunto Arquitetônico do Porto das Barcas que delimitou o mundo, o patrimônio de uma comunidade atingi um campo as ações de transformação do espaço, restringindo os comer- amplo de culturas, todos temos o direito de ter acesso ao le- ciantes que lá trabalham em suas reformas ou na tentativa de gado do outro quebrando estereótipos. modernizar o espaço. A estrutura foi pouco afeta pelo tempo, Segundo Possamai (2000, p. 16) as telhas feitas nas coxas das escravas, as paredes construí- O patrimônio hoje é preocupação de um das com cal, conchas e óleo de baleia devem permanecer. Faz número expressivo de países em todo o parte da engenharia que nossos antepassados recorriam e mundo, reunindo profissionais de diversas que desafiam em resistir o tempo. Esses são alguns dos traços áreas que compartilham os postulados téc- deste patrimônio que não podem ser descaracterizados. nicos e teóricos relacionados a essas tarefas. Além disso, o IPHAN também é responsável por agrupar As discussões sobre o patrimônio abran- as informações que cada patrimônio apresenta, sua origem, gem um grande número de aspectos, que quais os materiais foram utilizados para a construção do mon- vão desde a identificação de um conjunto umento arquitetônico, quem o construiu e a finalidade de sua cada vez mais abrangente de bens cultu- construção. Essas mesmas questões são levantadas quanto ao rais – incluindo não apenas monumentos, patrimônio artístico e natural. Tudo que puder ser levantado mas também natural e etnológico – até quanto ao patrimônio, é registrado e organizado com a finali- o gerenciamento e sustentabilidade dos dade de possibilitar o acesso dessas informações a população, patrimônios junto as comunidades locais. facilitando o entendimento da mesma em relação a própria cultura, retirando o povo da ignorância e o incorporando den- Quando se refere aos profissionais, são aqueles que tro dessa esfera de preservação. atuam dentro desses patrimônios como guias de turismo, O mesmo ocorre em relação ao Porto das Barcas, toda comerciantes ou pesquisadores da cultura local que estão a sua trajetória e o marco que deixou na economia mundial inteiramente conectados com as questões necessárias para anteriormente foi registrado para o conhecimento não só da a diversidade e valorização do legado da comunidade. Esses comunidade, mas também aqueles fora dela. Essa é a posição personagens podem pertencer a localidade ou podem ser de liderança que o poder público deve tomar para engajar a de outro espaço que buscam o conhecimento das diferenças comunidade nesse processo de reconhecimento histórico, cri- etnológicas, como o turista. Isso desperta para a procura por ando projetos e soluções para estabelecer uma utilização para gerenciamento dos ambientes históricos em questão de de- os determinados patrimônios das comunidades. senvolver o uso do patrimônio de forma sustentável. Em se Possibilitando oportunidades de desenvolvimento edu- tratando do poder público os municípios estão mais próximos cacional para os moradores do local e trazendo para o povo das necessidades da localidade em proteger seu legado, do mais riqueza social. Podemos quebrar a resistência gerada que as outras vertentes do governo. pelo processo de globalização em unir o passado ao presente, O poder público municipal possui uma comunicação essa união é essencial para o processo de reconhecimento da mais direta com os atores locais como empresários, funcio- identidade social e da construção da imagem de uma local- nários públicos ou a comunidade, o que facilita construir idade. Possibilita determinar em conjunto com o povo a uti- parcerias que viabilizem a utilização do patrimônio de forma

252 mais estruturada. Essa comunicação é essencial para desen- Muitas das micro e pequenas empresas que se insta- volvimento do território. Na concepção de Dias (2006, p.181): laram no Porto das Barcas tem potencial para transmitir informações sobre o valor histórico cultural do ambiente Os municípios têm um papel mais ativo e articulado, cujas as estratégias visam o de- onde se encontram. Ao investir na capacitação desses atores senvolvimento integral do território. Assim, em transmitir a cultura de uma forma integra-la dentro do orientam-se em uma perspectiva de desen- seu contexto comercial, podemos desenvolver a educação volvimento sustentável, com o objetivo de sustentável e promover o local de forma mais produtiva. De- realizar uma exploração responsável de seus senvolvendo o empreendedorismo local para a exploração de recursos, o que permitirá a manutenção de recursos endógenos e controlar a utilização dos recursos da sua capacidade de renovação. localidade. Esse investimento parte da associação dos órgãos públicos em despertar a cidadania da comunidade em relação Essa iniciativa por parte dos municípios estabelece a a sua própria cultura. E assim voltar os olhos do mundo para comunicação com esses agentes de atuação compartilhando a vastidão de conteúdo que nosso patrimônio possui, a nossa a administração do âmbito patrimonial. O desenvolvimento imagem social divulgada para o mundo. local se torna mais dinâmico e promove o avanço da econo- Procuramos obter uma perspectiva da parte da admin- mia, porque ao dividir a responsabilidade de administrar o istração municipal de Parnaíba através de um questionário território cultural abre o entendimento desses atores sociais subjetivo feito a gestão 2016-2021 da Superintendência de e amplia a necessidade de organização da comunidade para Cultura da cidade que tem a função de preservar e ressaltar as reforçar a identidade social. características culturais da cidade afim de que seus cidadãos O conjunto arquitetônico do Porto das Barcas se encon- estejam cientes da sua herança cultural. Partimos do princípio tra em âmbito federal, porém também é responsabilidade se a Superintendência de Cultura teria conhecimento do valor do poder municipal reintegrá-lo a comunidade através das cultura do conjunto arquitetônico do Porto das Barcas, segun- possíveis parcerias que podem ser feitas com as agências do seus correspondentes “ O Complexo do Porto das Barcas, que utilizam do Porto como ponto comercial, com os bares e assim como todo o conjunto histórico e paisagístico de Parnaí- restaurantes que também utilizam do espaço e juntamente ba é importante para a compreensão da identidade histórica com os artesãos que tem o papel de passar as características da cidade”. Essa compreensão deve partir de uma divulgação culturais da comunidade através de seus produtos artesanais. das características culturais de uma comunidade, a partir do Para isso as administrações municipais devem se posicionar momento que a Superintendência de cultura tem conheci- em outro aspecto dinamizador, a capacitação dos agentes mento da relevância das características culturais da cidade construtores desse diálogo cultural. será preciso divulgar, envolver os habitantes nesse processo de reconhecimento cultural. Um outro aspecto referente a esse papel Tentamos obter um parecer das ações culturais da Su- dinamizador das administrações munici- perintendência de Cultura para atrair os visitantes para a pais é a realização, por iniciativa própria ou por parcerias, de ações de formação e valorização do espaço do Porto das Barcas, porém tivemos capacitação profissional, apoio e promoção uma resposta vaga, no caso, apenas “Festivais multiculturais”. da micro e pequenas empresas que buscam Como a superintendência de cultura pretende conscientizar os aumentar a integração entre os diversos fa- cidadãos e envolvê-los em sua cultura, se não compartilham tores endógenos – tais como os ambientais, de seus projetos para com o povo. É preciso transparência para sociais, culturais, econômicos –, com vistas desenvolver a identidade de uma comunidade, se o público ao desenvolvimento socioeconômico local. não tem conhecimento do que fazer ou o que representar, (DIAS, 2006, p.182) como poderia participar de manifestações culturais? Apesar de não divulgados as ações da administração municipal, buscamos entender se a mesma está envolvida

253 na preservação do ambiente e sua estrutura, segundo o in- com o Iphan, o Conjunto histórico e paisagístico tombado formado “No momento o Complexo do Porto das Barcas está pelo Iphan, em 2011- contém cerca de 830 imóveis divididos sob o domínio do governo estadual, por conta da obra de re- em 5 setores: Porto das Barcas, Praça da Graça, Praça Santo vitalização. Essa nova gestão municipal não colocou em práti- Antônio, Estação Ferroviária e Avenida Getúlio Vargas. Essa ca nenhum dos projetos para o local”. Além disso, também fragmentação foi definida de acordo com as características foram questionados sobre as parcerias que são fundamentais arquitetônicas e urbanísticas de cada monumento. (INSTITU- para estruturar as características culturais da comunidade, TO DE PATRIMONIO HISTÓRICO E ARTISTICO NACIONAL-IPHAN, como parcerias com o Iphan, segundo a administração públi- 2017) ca “Programa de Financiamento para a recuperação de prédi- Recentemente foi possível estabelecer essa diferenciação os públicos e privados, PAC 2”. das características estruturais dos patrimônios dentro da ci- Assim como com as agências de viagens para atrair dade, porém se um setor público e responsável por resguardar turistas no conhecimento sobre o Porto das Barcas. Que a cultura de um local não sabe diferenciar ou ainda apresenta também segundo eles “A parceria entre Gestão Municipal e a comunidade em que atua uma divisão fora dos padrões Trade turístico se faz através a Superintendência Turismo”. Ao patrimoniais. Como podemos compreender nossa própria obter essas respostas pode-se observar que diferentemente influência cultural? Cada espaço que faz parte do Conjunto do que deveria ser a administração pública de uma cidade, histórico e paisagístico de Parnaíba apresenta condições para em conjunto e interligada seja qual for a função de um setor receber eventos e cada um destes possui sua característica público, na realidade esses setores se encontram dispersos e própria que merece ser ressaltada. desorganizados em relação a preservação das heranças cultu- Procuramos obter mais parecer sobre as estraté- rais da cidade a qual administram. Quando as administrações gias que a Superintendência em questão possuía para en- municipais se posicionam encontramos uma cidade motivada volver os habitantes na própria cultura, de acordo com esse a preservar sua história e a valorizar suas raízes, segundo Dias setor “ Parceria com a Seduc: Educação patrimonial e Turismo (2006) afirma sobre o posicionamento das administrações pedagógico”. As duas possibilidades apresentadas pelo setor municipais. municipal têm um aspecto positivo quando bem desen- volvido dentro do ambiente educacional. A Educação para o Um dos movimentos iniciais das adminis- trações locais é sensibilizar a população Patrimônio e Turismo pedagógico se complementam, pois a relativamente aos seus valores culturais, a primeira desperta a relevância do patrimônio na comunidade fim de conscientizá-la sobre a importância e a segunda leva para a prática o conhecimento adquirido de- de conhecer e de proteger esses valores. É scobrindo “o tesouro perdido”. preciso provocar uma atitude ativa que des- Para estabelecer uma identidade e a valorização perte a autoestima dos habitantes, os quais da herança cultural de um local devemos atingir primeira- se identificarão com um legado cultural que mente os que herdaram esse legado do ambiente histórico, antes lhes parecia distante. principalmente aqueles que moram próximo do local, os mo- radores do Bairro Nossa Senhora do Carmo. A superintendên- Já que nos planos da administração cultural da cidade cia de cultura foi questionada sobre isso e de acordo com o seu tem diversos festivais multiculturais, foram questionados ponto de vista “Não só os moradores do Bairro do Carmo. Mas também em relação aos espaços utilizados no Complexo do de todos os bairros da cidade, já que com a Educação Patrimo- Porto das Barcas, segundo eles “O Conjunto histórico e pais- nial e Turismo Pedagógico atingiremos as escolas municipais”. agístico é dividido em cinco setores: Complexo Porto das Bar- Isso é possível se os dois projetos em questão se desenvolver- cas, Praça da Graça, Praça Santo Antônio, Estação Ferroviária e em de forma saudável e a educação dentro da cidade, prin- Avenida Getúlio Vargas. Todos os lugares são propícios para al- cipalmente nas regiões carentes do Centro histórico, serem guma ação cultural”. A gestão da superintendência não possui estabilizadas para que seja possível desperta uma geração conhecimento da divisão do patrimônio da cidade. De acordo melhor do que a atual.

254 E por último questionamos sobre o potencial econôm- Isso desperta a necessidade de estabelecer uma identi- ico do Porto das Barcas, já que anteriormente era um polo dade social a partir do que se absorve da própria cultura e das econômico conhecido internacionalmente, foram questio- diferenças que são estabelecidas ao se deparar com a cultura nados em relação se uso do Porto das Barcas tem alguma do outro. As semelhanças definem em que grupo social per- influência na economia da cidade atualmente segundo a tencemos e desenvolve a curiosidade em saber quais as outras Superintendência de cultura “Sim, pois além de ser um atra- que ainda há para se ver. No momento que reconhecemos o tivo histórico-cultural, temos lá instaladas empreendimentos que falta no outro podemos intensificar o lado positivo da comerciais”. Apesar de haver empresas que realmente influ- nossa cultura, usando desse choque etnológico para o forta- enciam na forma como os visitantes e turistas veem a cidade lecimento da nossa identidade social. elas se tornam essenciais para o contato com essas pessoas Quando comparamos as formas de utilização do patri- passando a imagem da comunidade. mônio com o objeto da pesquisa, o Porto das Barcas, enten- Contudo, anteriormente destacamos uma função impor- demos que o uso dado ao objeto de estudo ainda é precário, tante que as administrações municipais devem apresentar, quase inexistente. Este patrimônio possui conteúdo e estru- parceria com os atores locais que fazem parte do entorno, turas ricas para o desenvolvimento do turismo. Porém, não sem uma comunicação se torna questionável a imagem que é o local mais divulgado da região ao qual pertence. Como passamos para aqueles chegam visitam a cidade de Parnaíba. foi dito anteriormente, o IPHAN não é só responsável pela preservação e tombamento do patrimônio histórico, no caso CONCLUSÃO o Porto das Barcas, mas também pelo registro de todas as informações que são encontradas e catalogadas para o acesso A prática do turismo nos leva a ir muito além do desen- do público a sua cultura. volvimento econômico de uma cidade, mesmo que do ponto O poder municipal possui uma comunicação mais de vista de muitas empresas esse seja o foco. O turismo nos acessível e repleta de possibilidades de parcerias com as in- faz olhar para o que leva o turista até nossa localidade, o que stituições privadas que utilizam do entorno como ponto com- há de incomum que o motiva a se deslocar de seu local de ercial. A ação do município é um papel importante para que o origem. É nisso que devemos investir no turismo, os aspectos cidadão entenda que sua cultura é procurada e que agora pre- culturais da comunidade citada, o ponto inicial da história de cisa ser vista e incorporada a comunidade para estabelecerem um indivíduo que é representado pelo patrimônio que sua juntos, poder público e comunidade, a sua identidade social cidade possui. Assim como forma de recurso econômico esse para o mundo. Ainda há muito o que se pensar em relação as patrimônio deve ser entendido como um espaço renovado administrações municipais da cidade Parnaíba, sua inércia em para alcançar não só a comunidade, mas ao público em ge- tomar uma posição com os atores locais só afasta e subestima ral. Ao engajar o patrimônio nessa esfera econômica é preciso o potencial de uma comunidade que atualmente procura uma faze-lo como cartão de visitas da localidade, dessa forma o imagem para passar para os visitantes que não seja apenas o turista entenderá que a estrutura possui valor para o morador famoso Delta das Américas. e buscará por mais do local. O lado cultural nunca foi tão procurado quanto na THE ARCHITECTURAL COMPLEX “PORTO DAS atualidade, com a globalização que retira todo o conteúdo BARCAS” AND THE ACTIONS OF THE MUNICIPAL dos indivíduos, os mantendo reféns da era tecnológica. Essas mesmas pessoas recorrem ao passado, uma época onde tudo PUBLIC POWER IN THE CITY OF PARNAÍBA, era mais tranquilo, usando o passado como rota de fuga. O PIAUÍ. BRAZIL turismo patrimonial se desenvolve aos poucos devido a essa necessidade de fuga, as interações com um entorno que não ABSTRACT pertença ao cotidiano é uma tentação para aqueles consumi- The present article has for purpose to investigate the dos pela globalização. returned public politics the use of the cultural historical

255 patrimony in a municipal extent, defining as study object ______, Turismo e patrimônio cultural: recursos the Architectural Complex of “Porto da Barcas” placed in the que acompanham o crescimento das cidades. São Paulo: Sa- city Parnaíba, Piauí. Brazil. As methodological base was used raiva, 2006. bibliographical revision, starting from authors as Dias (2006), Hall (2011), Barreto (2001) and field research involving the FERREIRA, Maria Nazareth. As festas populares na ex- superintendency of culture of the municipal district. This way, pansão do turismo: a experiência italiana. São Paulo: Arte e is looked for to contemplate about the responsibility of the Ciência-Vilipress, 2001. public organs in relation to the organized and maintainable planning of the tourist territory. Starting from the literature GETZ, Donald. O evento turístico e o dilema da aut- revision, when a parallel one is drawn among the forms of enticidade. In: THEOBALD, William F. (Org). Turismo global. use of the patrimony with the object of the research, it is no- Tradução de Anna Maria Capovila, Maria Cristina Guimarães ticed that the use given to the space is still precarious, almost Cupertino e João Ricardo Barros Penteado. São Paulo: Senac, inexistent, if not characterizing as a marketed attraction. It is 2001, p. 54. noticed although IPHAN is not alone responsible for the pres- ervation and tombamento of the historical patrimony, in the GONZÁLES, Pedro Monreal. Turismo como indústria case Porto of the Boats, but also for the registration of the in- cultural: Hacia uma nueva estratégia de desarrollo turístico formation that you/they are found and classified for the pub- em América Latina y el Caribe. Foro de Ministros de Cultura y lic’s access his/her culture. The action of the municipal district Encargados de Políticas Culturales de América Latina e el Cari- is fundamental for there is her a recognition and valorization be, Cuenca, 6-8 nov. 2002. in those spaces and that starting from that he is incorporate for the Tourism through an integration among being able to HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, public, private and community. Other studies related to the Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis, planning are necessary to understand the paper of the mu- RJ: Vozes, 2011. nicipal administration of the city Parnaíba, his/her inertia in taking a position with the local actors and with the turistifi- IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Na- cação of that space. cional. Cartas patrimoniais. Brasília: Ministério da Cultura/ Keywords: Historical Patrimony. Municipal Iphan, 1995 (Caderno de Documentos n.° 3). Public Politics. Architectural Complex “Porto das Barcas”. Parnaíba. Piauí ______, – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. http://portal.iphan.gov.br acesso em REFERÊNCIAS 10/01/2018.

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DIAS, Reinaldo. Sociologia aplicada ao comercio ex- SÁNCHES, Fernanda. A reinvenção das cidades para terior. 2. ed. Campinas: Alínea, 2000. um mercado mundial. Chapecó: Argos, 2003. ______, Turismo e patrimônio cultural: recursos que acompanham o crescimento das cidades. São Paulo: Sa- raiva, 2006. 256 O ETNOTURISMO EM TERRAS DE NEGROS: UMA ABSTRACT ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO SOCIOECO- The present study aims to define the question of the NÔMICO NO QUILOMBO DO C-RIAÚ territorial strategy adopted by a remaining quilombola com- munity in Amapá, the quilombo of C-riaú. Faced with the Barbara da Costa Amoras contradictions inherent in the capitalist mode of production Acadêmica de Políticas Públicas - Universidade Federal Fluminense/ UFF and impinged on a relationship with the mode of production [email protected] and life in it. The activity appeared in the analysis will be com- munity-based tourism, developed by the quilombo of C-riaú, Mikaela Moreno Vasconcelos Araujo in the city Macapá. Ethnodevelopment activities, considered Mestrado profissional em Culturas Africanas, da as territorialized, will be analyzed here without contradicto- diáspora, e dos povos indígenas - PROCADI - Uni- ry character, having a characteristic sociobiodiversity, since versidade de Pernambuco/ UPE [email protected] the strategy had no environmental impact besides being an economic viability. The construction of the stone was partic- RESUMO ipatory, defined together with a community in Quilombo of C-riaú. It was found that the tourism activity provided appre- O presente estudo tem por objetivo refletir acerca do ciation and recognition of the culture and social memory of etnodesenvolvimento como estratégia territorial adotada Quilombo do C-riaú. The proposal of a basic tourist route to por uma comunidade remanescente quilombola no Amapá, carry out social exercises is necessary for the construction of o quilombo do C-riaú. Colocada diante das contradições iner- the social policy that is sustainable, participatory and that entes ao modo de produção capitalista e impingidas a se rel- recognizes the knowledge and the social memory of Quilom- acionar com esse modo de produção e viver nele. A atividade bo of the C-riaú. aqui colocada em análise será o turismo de base comunitária, desenvolvido pelo quilombo do C-riaú, na cidade Macapá. Keywords: Quilombo C-riaú. Ethnodevelop- As atividades de etnodesenvolvimento, abordadas como ment. Amazon estratégias territoriais, serão aqui analisadas no seu caráter contraditório, tendo como característica a sociobiodiversi- INTRODUÇÃO dade, visto que a estratégia realizada não ocasiona impacto ambiental além de possuir viabilidade econômica. A con- O etnodesenvolvimento apresenta-se como um im- strução da metodologia foi participativa, definida em conjun- portante instrumento de desenvolvimento econômico face to com a comunidade no Quilombo do C-riaú. Constatou-se a diversidade cultural, ratificando o reconhecimento do que a atividade de turismo proporcionou valorização e recon- Estado pluri-étnico pela Constituição de 1988 que figura-se hecimento da cultura e da memória social do Quilombo do como uma conquista dos povos indígenas e da população C-riaú. A proposta de roteiro turístico de base comunitária re- afro-americana. alizada possui os pressupostos necessários para a construção Ao apresentar como delimitação temática o etnotur- de uma política pública que seja sustentável, participativa e ismo como estratégia de desenvolvimento socioeconômico que reconheça os saberes tradicionais e a memória social do sustentável em terras tradicionalmente ocupadas por rema- Quilombo do C-riaú. nescentes quilombolas no extremo norte da Amazônia, este trabalho alça a autonomia cultural como pressuposto para a Palavras-chave: Quilombo C-riaú; Etnodesen- inserção dessa comunidade na lógica moderna de mercado. volvimento; Amazônia A etno-identificação quilombola representa a recon- strução do negro através da sua integração na sociedade de direitos, como sujeitos políticos. E sobretudo, apresenta a ter- ra como acesso à cidadania, uma vez que o direito coletivo às

257 terras ancestrais possibilita a permanência da sua existência e Ao retomar a trajetória histórica da presença negra na salvaguarda do patrimônio material e imaterial negro. região de Macapá, que no período colonial correspondia a Os quilombos enquanto espaço permanente de luta, capitania do Grão-Pará e atual estado do Amapá, eviden- configuram-se como “resistências teimosas”115 frente a desu- cia-se a relevância do negro no processo de formação da manização da escravidão que acabou por tornar invisíveis du- identidade amapaense. No entanto, o objeto de estudo desse rante um longo tempo tais comunidades. Sendo, justamente trabalho – o C-riaú, permanece invisível aos olhos da maioria essa invisibilidade sentida pelos remanescentes quilombolas da população do referido estado. do C-riaú, que ainda lutam pelas pretensas reparações históri- Uma vez que, pouco se conhece sobre a história e sua cul- cas através da viabilização de políticas sociais. tura, seu modo de vida, sendo comum a construção de uma Essa invisibilidade também se reflete especialmente nos imagem pejorativa e preconceituosa, e sobretudo a falta de estudos sobre a história negra na Amazônia, que considerava valorização, pertencimento e reconhecimento dos símbolos insignificante em termos quantitativos a presença escrava, identitários negros. Grande parcela da população de Macapá uma vez que a força de trabalho na Amazônia se desenvolveu enxerga o Cria-ú como espaço apenas de lazer, e seus ritos de maneira diferenciada quando comparada com outras e costumes como algo exótico, preferindo estabelecer laços regiões do Brasil. Nesse sentido, se silenciava a presença do com o passado colonial português. negro enquanto sujeito histórico. A luta pela manutenção física e cultural dos quilombolas No entanto, reconstruir o processo de formação dos persiste e pode ser percebida pela representação do quilombo quilombos no estado do Amapá, apresenta-se como recon- nos dias atuais, que se apresenta como resultado dos conflitos hecimento da importância do negro na região. A migração à étnicos em acordo com as reivindicações pelo reconhecimento procura da liberdade, inquietava as autoridades coloniais, e do seu território, autonomia cultural e valorização histórica. não passava despercebida, a partir do momento no qual os As “terras de preto”118 vistas como a resistência teimosa escravos manipulavam a ordem a seu favor. que se reconfiguram no espaço e tempo, deixam de ser terri- Pois, tinham conhecimento dos conflitos na região de tórios isolados e abrigo de negros fugidos e passam a refletir fronteira entre as possessões de Portugal e França. Sendo, as novas relações entre campo-cidade. O Curiaú de antigas então o Amapá o cenário principal para a proliferação de localidades dispersas longe da cidade, com as transformações “aquilombamentos” tais como as “cabeças das hidras”116 da impostas pela modernidade como o acelerado crescimento mitologia grega e a circulação e interpretação das ideias de urbano, se apresenta atualmente localizado no limite urbano liberdades dos ditos “bumerangues africanos”117. O que pos- de Macapá e é considerado um dos pontos turísticos mais vis- sibilitou criar estratégias de sobrevivência a partir das trocas, itados do estado. contatos e redes de solidariedades em torno dos quilombos. No entanto, a exuberante sociobiodiversidade119, beleza natural do C-riaú representada por uma diversidade de paisa- 115 Termo utilizado pelo historiador E.P. Thompson ao considerar a gens naturais, como cerrado, floresta de várzea, mata de gale- cultura e os costumes como resistências populares. Este concede voz ria, campo alagado, potencial hídrico e um rico patrimônio de a história dos “vencidos”, entre os vencidos pode-se considerar os plantas medicinais contrasta com a condição socioeconômica remanescestes quilombolas. dos remanescentes quilombolas do Curiaú. 116 Termo utilizado pelo Historiador Flávio dos Santos Gomes ao analisar os aquilombamentos na Amazônia. Uma vez que, os quilombos nessa região eram como as hidras da mitologia grega, quando destruídos surgiam “mais fortes e avassaladoras”, comparação também aferida em 118 Denominação referente a formação histórica das diferentes documentos históricos por autoridades de outras regiões da América modalidades de territorialização, de identidade étnica relacionada ao Escravista. território, enquanto espaço de luta, proposta por Alfredo Wagner Berno 117 Termo contextualizado para a realidade amazônica proposto por de Almeida. Flávio dos Santos Gomes com base nos pressupostos de Peter Linebaugh, 119 A diversidade cultural humana aliada a manutenção do espaço que considera os bumerangues africanos como um movimento de “ida físico natural, interpretada por meio de práticas sociais, estabelecidas e volta” das informações acerca das rebeliões e liberdades no mundo entre o modo de vida das populações e a relação com o meio ambiente escravista. (Albagli,1998) 258 Conforme pesquisa realizada anteriormente por Superti Os problemas apontados refletem o abandono da comu- e Silva (2013), apresenta situação econômica primária e incip- nidade por muitos dos seus habitantes que vão para bairros iente, com renda média de um salário mínimo formada essen- da cidade de Macapá em busca de empregos, e melhores cialmente pelos benefícios sociais como a Bolsa Família e o condições de saúde e educação, o que talvez explica a evi- Renda para Viver Melhor, imprescindíveis para a manutenção dente desproporção entre o menor número de residentes nos da vida das famílias pertencentes ao núcleo social quilombola. dias de semana quando comparado aos finais de semana e No que se refere a infraestrutura urbana é notável a pre- feriados. cariedade, com baixos índices de escolaridade, uma precária Sem esquecer da conquista dos “novos movimentos soci- infraestrutura de saneamento básico e o risco alimentar e nu- ais”, sendo o C-riaú o primeiro quilombo do estado, e segundo tricional, com prevalência de doenças crônico degenerativas do Brasil a sustentar o reconhecimento formal do seu terri- não transmissíveis, caracterizando um estado de vulnerabil- tório, a pretensa autonomia cultural necessita da operacion- idade social. alização de formas de integração da comunidade tradicional A ineficácia de políticas públicas estatais condizentes ao desenvolvimento socioeconômico moderno. com as condições específicas das comunidades tradicionais O desenvolvimento das comunidades tradicionais não quilombolas não permite que esses sujeitos de direito ten- deve recair em anacronismos e dicotomias, mas combinar ham acesso aos seus direitos básicos, como saúde, educação crescimento econômico e valorização da diversidade cultural, e saneamento básico. necessitando para isso de alternativas sustentáveis de desen- Ademais, em que pese o ordenamento jurídico brasileiro volvimento socioeconômico, como o etnoturismo. garantir o reconhecimento do direito de propriedade dos re- Diante disso, o presente trabalho tem como problema manescentes quilombolas concedendo a titulação da terra por de que forma o turismo pode ser utilizado como estratégia eles ocupadas, acabou por criar a Área de Proteção Ambiental qualitativa de desenvolvimento socioeconômico e inserção do Curiaú120 sem a preocupação de aliar o desenvolvimento da comunidade tradicional quilombola na lógica moderna de social à proteção do meio ambiente (CANTUÁRIA, 2011). mercado, sobretudo dada as especificidades da comunidade Isso gerou conflitos propiciados pela ocupação desorde- tradicional? nada do território protegido e o redirecionamento, limitação Esta pesquisa tem como hipótese inicial que o etnoturismo e/ou proibição de atividades predatórias, já que as restrições é uma importante ferramenta de inserção econômica de pop- ambientais impostas pela criação da Área de Proteção Ambi- ulações tradicionais quilombolas ao mercado regional e apre- ental – APA desde 1992 limitam uma série de atividades pro- senta-se como uma alternativa compatível com as complex- dutivas tradicionalmente desenvolvidas pela população do idades da territorialização do quilombo enquanto espaço de quilombo, como o desmatamento para fazer roças, e criação resistência, sobrevivência da identidade e valorização cultural. de pastos inadequados. É possível ver substancial fonte de renda para a Merece destaque ainda a alternativa imediata de comunidade do Curiaú aliada a proteção do meio ambiente obtenção de renda pela comunidade que realiza festas de e fortalecimento da cultura quilombola local. Logo, o objetivo aparelhagem com o objetivo de levantar fundos para a ma- do trabalho é verificar a viabilidade do etnoturismo enquanto nutenção das festas tradicionais dos santos cultuados pelos estratégia qualitativa de desenvolvimento socioeconômico remanescentes quilombolas em questão, porém ocasiona para a comunidade quilombola do C-riaú, no Amapá. transtornos como poluição sonora, atos de vandalismo, brigas Para o alcance deste objetivo será analisado o potencial e excesso de álcool, além de influenciar negativamente no da sociobiodiversidade na região, contemplada por elemen- ânimo dos mais jovens para dar continuidade as atividades tos socioculturais, econômicos e históricos do quilombo do produtivas tradicionais, especialmente a produção de farinha C-riaú; deverá ser verificada a viabilidade do Etnoturismo de mandioca. Regional do Curiaú como alternativa sustentável de desen- volvimento, propondo-se um turismo de base comunitária; 120 Convenção moderna dada ao nome da comunidade a partir da por fim, diagnosticar como o Etnoturismo pode auxiliar na variação linguística na região 259 melhoria da qualidade de vida da comunidade quilombola A conquista da Constituição de 1988 ao reconhecer do Curiaú. quilombo enquanto atribuição de direitos territoriais é funda- Importante salientar que o etnoturismo de base comu- mental, mas não necessária a segurança do território. Afinal, nitária foi muito bem recebido pela comunidade em questão, sua população segue lutando contra o racismo, agora também sendo que essa prática se demonstra viável pois independe ambiental representado pelas constantes ameaças ao seu ter- da mobilização de órgãos governamentais e já possui em- ritório tradicionalmente ocupado e lugar de memórias, cultu- basamento científico para sua implantação, a exemplo dos ra e vida negra. estudos desenvolvidos pelo laboratório de Geografia Cultural A ameaça da crescente expansão urbana da e Turismo da Universidade Federal de Uberlândia, os apon- cidade de Macapá coloca em risco suas ca- tamentos para o etnodesenvolvimento local abordado por racterísticas naturais e sócio-culturais. Este Litlle (2002), a viabilidade pelo turismo de base comunitária perigo, reveste duas formas: por um lado, segundo Costa Novo (2011), a complexa e problemática reali- uma forte especulação imobiliária por parte dade das comunidades quilombolas apresentadas por Treccan principalmente da classe política e empre- (2006). E quanto aos estudos regionais que justificaram a sarial de Macapá, querendo tirar proveito proposta aqui apresentada, destacam-se a análise de Superti das belas paisagens naturais. Por outro lado, e Silva (2014), o plano de manejo da APA do Curiaú elaborado a invasão de alguns elementos da classe bai- pela Secretaria de Meio Ambiente – SEMA, e as publicações xa utilizando terras pertencentes à APA para de Silva (2015), criauense e referência fundamental sobre o sua moradia (AMAPÁ, 2010, p. 77). quilombo em análise. TERRITÓRIO QUILOMBOLA: ENQUANTO ESPAÇO PER- Essa ameaça é sentida pelo Curiaú enquanto quilombo MANENTE DE LUTA E O DIREITO ÉTNICO À TERRA urbano, que teve parte de suas terras tomadas pelo cresci- Reconstruir os caminhos da liberdade trilhados pelos mento urbano da cidade de Macapá. O que gerou preocu- escravos na Amazônia é reescrever o negro enquanto agente pação em função dos riscos ao patrimônio natural, formado histórico e sua influência na sociedade que se inseria, o que pela riqueza de ecossistemas, assim como pela necessidade é evidente ao reparar a população negra atual do estado de garantia a territorialidade da comunidade tradicional e do Amapá, e a sobrevivência das suas relações tanto sociais consequentemente assegurar a integridade da história e raíz- quanto culturais. O que demonstra que os quilombos assim es etno-culturais. como no passado continuam a ser espaço de manifestação de A face concreta manifesta-se, por exemplo, resistência, e que esses estavam bem longe de ser invisíveis nos empreendimentos públicos e privados ou isolados. (ferrovias, hidrelétricas, portos etc.); com- plexos turísticos; monoculturas (eucalipto, soja, palma africana etc.) que impactam, no caso brasileiro, principalmente, áreas urbanas com população negra, os territórios quilombolas e indígenas, trazendo o conflito ambiental, ou seja, a violação de direitos e princípios de respeito à autonomia e digni- dade humana (SILVA, 2014, p.155).

Nesse sentido, frente ao racismo ambiental121 sofri- do pelo território tradicionalmente ocupado pelos rema-

Figura 1- Mapa das 28 comunidades certificadas pela FCP. 121 Termo surgido nos Estados Unidos, por reivindicação do movimento Fonte: Superti e Silva (2014). negro tornou-se programa de ação do governo federal norte-americano, sendo através da Environmental Protection Agency – EPA. O conceito 260 nescentes quilombolas, o ordenamento jurídico brasileiro de hortaliças. Extrativismo animal, pela pesca artesanal, ex- com o intuito de garantir o reconhecimento do direito de pro- trativismo vegetal representado pela extração de madeira e priedade dos remanescentes quilombolas e a conservação do coleta de açaí, sendo que este representa uma importante meio ambiente, concede a titulação da terra por eles ocupa- alternativa sustentável de renda familiar, uma vez que o açaí das, bem como, a criação da Área de Proteção Ambiental, den- é uma das bases da alimentação na Região Norte. tro de um plano de etnodesevolvimento para manutenção e De modo geral, o que caracteriza a comuni- sobrevivência dessa população. dade do Curiaú é o sistema de uso da terra Como reflexo dessa política em 1992 fruto do processo – base essencial para um modo de vida nor- de negociação entre a SEMA/AP e a Associação dos Moradores teado por valores, em que os laços de con- da Comunidade do Curiaú – AMCC, é criada pelo Decreto sanguinidade e compadrio têm relevância Nº1417 a APA do Rio Curiaú. E ao mesmo tempo declarada com cumprimento de ritos recebidos dos an- pelo Decreto Nº141992 como Patrimônio Cultural do Amapá, tepassados. Nesse contexto, a principal ati- e apresenta como objetivo “proteger e conservar os recursos vidade econômica da comunidade continua ambientais e os ecossistemas naturais ali existentes, visando sendo o cultivo da terra e de outras formas a melhoria da qualidade de vida das populações residentes, de produção, como a pecuária, a avicultura e principalmente da comunidade do Curiaú, remanescentes do a suinocultura – todas com o foco principal antigo quilombo afro-brasileiro”. na subsistência. Mas a presença da cidade já No entanto, as políticas sociais de reparação voltadas influência no quadro das ocupações profis- para os afro-brasileiros não refletem em melhoria da quali- sionais, com um número representativo de dade de vida. O que pode ser percebido pelos recentes estu- pessoas com emprego fora da comunidade dos locais de Superti e Silva (2013) e pelo Plano de Manejo (SUPERTI E SILVA, 2013). realizado pela SEMA/AP, que corroboram estudos a nível na- cional sobre a condição socioeconômica das comunidades de No entanto, mesmo sendo criada pela reivindicação remanescentes quilombolas brasileiras, como os relatórios de da comunidade do Curiaú a APA apresenta uma série de re- processos sociopolíticos para a luta e garantia de seus direitos, strições as atividades tradicionalmente exercidas pela comu- tais como: criação da Fundação Cultural Palmares (1988); da nidade, especialmente no que se refere a pesca e ao método Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAC) de roça-derrubada-queima realizado na comunidade. O que (2000); da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade pode ser percebido nos estudos sobre o racismo ambiental Racial (SEPPIR) (2003); assinatura do Decreto nº 4887 (2003), e a problemática gerada pela sobreposição de comunidades o qual regulamenta a titulação dos territórios quilombolas; e tradicionais quilombolas e UC. criação do Programa Brasil Quilombola (PBQ) (2004). Essa expressividade no cenário regional e Quanto ao objeto de estudo, o Curiaú apresenta-se lo- nacional coloca as comunidades quilombo- calizado ao norte de Macapá, distante 14km do centro da ci- las diante de vários problemas. Dentre eles, dade. Com população média de 2.000 habitantes distribuídos o fato de estarem sobrepostas a unidades em cinco (05) comunidades: Curiaú de Fora, Curiaú de Dentro, de conservação ambiental, tanto em nível Casa Grande, Curralinho e Mocambo. estadual quanto federal, o que causa impas- A economia dessas comunidades baseia-se na criação ses jurídicos ao processo de titulação. Como de gado (bovino e bubalino) e na agricultura de subsistência. exemplos, devem ser mencionados Parques Os principais produtos cultivados são a mandioca e cultivo Nacionais, Florestas Nacionais, Reservas Biológicas, Estações Ecológicas e Parques refere-se a vulnerabilidade na qual as etnias, especialmente a negra se Estaduais (Tambor – AM, Curiaú – AP, Rio encontra frente as injustiças sociais e ambientais que apresentam-se de Trombetas – PA). Além disso, os avanços forma desproporcional quando comparadas com a condição de vida da sobre as florestas para fins de exploração população branca. No Brasil pesquisas, debates e encontros trabalham madeireira e mineral, aos rios para obras com a injustiça ambiental sofrida pelas comunidades tradicionais. 261 hidroelétricas e por fim a ação predatória o que propicia muitos conflitos entre as comunidades. Quanto da pesca e garimpo dificultam o cenário a infraestrutura existe apenas um posto de saúde na comu- quilombola amazônico (SILVA,2014, p. 162). nidade, que segundo os moradores só funciona durante os finais de semana, conta com apenas uma enfermeira, sem Os conflitos ambientais e especialmente a omissão do estrutura, remédios, médicos e aparelhos de emergência. estado frente aos crimes é alvo de intensas críticas dos hab- No entanto, a mesma população que denúncia a falta de itantes do Curiaú. Pois, este racismo ambiental é sentido estrutura médica na comunidade, reconhece que muita coisa pelas palavras de alguns moradores que relatam que o “povo melhorou ao longo dos anos como a construção da escola, de fora da comunidade” é que destrói o meio ambiente, pois telefone, água tratada e energia elétrica. Fato esse, que ex- é comum a prática de caça ilegal da fauna silvestre, como o erce atração e o retorno da população que está voltando para abate de cutia, tracajá e paca que são iguarias consumidas a comunidade. pela população local, assim como a pesca predatória. Relacionado a esse retorno destaca-se que o Curiaú seg- E que, no entanto, quem sempre é acusado pela mídia ue como refúgio da população negra mesmo na atualidade, de destruição de tal patrimônio é a população da comunidade percebida pela especulação imobiliária em bairros tradi- estudada. Sendo defendida pelas palavras de William um dos cionalmente negros, como o Laguinho que abrigou os negros moradores de que “o Curiaú só existe até hoje porque os anti- que foram expulsos do centro da cidade pela reurbanização e gos moradores sabendo da importância do lugar para a sua política de remanejamento implementada por Janary Nunes sobrevivência o mantiveram todo esse tempo preservado”, na década de 40. além de reconhecer o crescimento da cidade de Macapá como Dessa forma, essas famílias acabam por vender suas principal ameaça ao patrimônio natural e cultural do Curiaú. propriedades no Laguinho – que agora é parte do centro da Soma-se a isso, outros agravantes que poderiam ser cidade – e retomar ao território de seus antepassados. Ainda evitados se existissem no Curiaú ações voltadas à educação sobre as condições de vida no Curiaú em pesquisa recente di- ambiental, conscientização e programas que propiciassem o vulgada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, atestou melhor uso dos recursos naturais pela população da comuni- que áreas ocupadas por remanescentes quilombolas apre- dade. Quanto aos problemas ambientais existentes no Curiaú, sentam risco nutricional, como a prevalência de desnutrição destacam-se a agricultura extensiva de técnicas rudimenta- infantil que é maior 76,1% do que a média brasileira. res, falta de manejo e assistência técnica, áreas de várzeas E segundo a secretária de Políticas Afrodescendentes Nú- substituídas por pastagens, a grande degradação pela criação bia de Souza, destacou que “existem no Amapá, comunidades de búfalos122, e queimadas e desmatamentos. afrodescedentes que estão na extrema pobreza, com baixo As condições socioeconômicas do Curiaú apresentam um índice de desenvolvimento humano”. quadro “bastante deficiente”, no qual a falta de infraestrutura e acesso a serviços básicos são precários e/ou inexistentes, o Apesar dos avanços registrados, povos e comunidades tradicionais continuam a que não assegura condições adequadas de vida à população representar ampla parcela das populações afroamapaense. mais pobres e socialmente mais vulnerá- Nesse caso, destaca-se além desse quadro a falta de veis do país, com graves consequências no organização da comunidade, como a não legitimidade da que se refere a sua segurança alimentar e presidente da Associação dos Moradores do Curiaú – AMCC, nutricional e garantia do direito humano a alimentação adequada. Neste momento 122 A bubalinocultura constitui-se como grave problema ambiental histórico, em que o Brasil comemora a que- na APA, por ocasionar a contaminação dos recursos hídricos pelas fezes dos animais, erosão hídrica regressiva, redução dos estoques naturais da expressiva dos índices de desnutrição e de peixe no Rio Curiaú e destruição da vegetação. Sendo denunciado mortalidade infantil é inaceitável que, entre por seu Sabá como um problema “vindo de fora”, pois essa criação não os Povos e Comunidades Tradicionais, estes faz parte do modo de vida tradicional, sendo incorporada no Curiaú em índices permaneçam absurdamente altos, 1970 e que hoje representa o predomínio sobre as criações bovinas. 262 como ocorre, em especial, entre as popu- Interessante analisar que o desemprego e a necessidade lações indígenas e de ascendência negra de buscar novas alternativas de emprego e fonte de renda (BRASIL, 2008, p. 3). apresentam-se como problemas comuns à todas as comuni- dades do Curiaú. O que acaba por resultar em um verdadeiro Sobre a constituição do quadro de vulnerabilidade social êxodo das famílias para Macapá, sobretudo de jovens do sexo no qual se apresenta as populações tradicionais brasileiras, masculino, que abandonam a comunidade em busca de estu- inclusive os moradores do Curiaú, ressalta-se a renda familiar do e oportunidades de emprego. Problema ocasionado, pela média que não ultrapassa um (01) salário mínimo, sendo que inexistência de escolas de Ensino médio na comunidade. mais da metade dessa população (57,5%) vive em lares com O que reflete diretamente quanto ao nível de escolar- renda total menor que R$207 por mês. Sendo esse quadro idade da população mais velha que dentro de um universo melhor visualizado pelo quadro, abaixo. de 415 adultos, apenas uma pessoa apresenta nível superior.

Quadro 2: Quadro dos Problemas Sociais Problemas Comuns à Casa Grande Curiaú de Dentro Curiaú de Fora Curralinho Mocambo todas as comuni- dades Falta de posto Falta de um posto Falta de posto Falta de posto Falta de escola; Desemprego; médico; médico com maior médico. médico; Falta de telefone Necessidade de se bus- Falta de escola; estrutura; Condições precárias público; car novas alternativas Falta de Telefone Falta de ensino do ramal que dá Falta de posto de emprego e renda Público. médio na Escola José acesso a comunidade. médico. na APA. Bonifácio. Figura 2 – Quadro dos Problemas Sociais. Fonte: : adaptado de Amapá (2010).

Sendo, que a maioria dos moradores mais velhos é analfabe- o desenvolvimento socioeconômico da comunidade quilom- ta. Soma-se a isso a ineficiência do transporte público que op- bola do Curiaú. era na APA, existido apenas uma linha de ônibus, o que gera Somado, a falta de aplicação na prática de projetos como horas de espera nas paradas, e consequentemente o abando o de ecoturismo e o plano de manejo voltados para esta Uni- da escola por muitos moradores, quando estes têm que ir até dade de Conservação – UC. Que no caso do dos açaizais, que à cidade para cursar o ensino médio. constituem uma atividade rentável para a população carece As condições de vida expostas por trabalhos anteriores, de um plano de manejo e sofre com constantes queimadas e a confirmação pela pesquisa em questão durante a vivência e desmatamento e problemas de escoamento da produção, no Curiaú expõem a ineficácia de políticas públicas estatais que dificulta a expansão agrícola atividade fundamental da condizentes com as condições específicas das comunidades comunidade. tradicionais quilombolas que não permitem que esses sujeitos Outro fator observado durante a pesquisa de campo foi a de direito tenham acesso aos seus direitos básicos, como saúde, falta de ações de fomento para a produção agrícola de órgãos educação e saneamento básico. Nesse sentido, se faz urgente a como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EM- aplicação na prática do plano de manejo, de ações educativas e BRAPA e o Instituto de Desenvolvimento Rural do Amapá – sobretudo de alternativas de etnodesenvolvimento. RURAP, constantemente lembrados e criticados pela falta de Dessa forma, a Lei do Sistema Nacional de Unidades ações na comunidade. de Conservação – SNUC objetiva harmonizar a coexistência Ainda, nesse sentido muito moradores para comple- de preservação ambiental e a sobrevivência da comunidade mentar a renda comercializam derivados da mandioca, como quilombola. Corroborado por Campos (2012), a omissão es- tucupi e molho de pimenta, sendo que pela falta de incen- tatal na fiscalização de políticas públicas eficazes inviabiliza tivos, acabam comprando esses derivados em feiras na cidade

263 para temperar e revender para as pessoas que cruzam a estra- vo e comercialização. Sendo, que a maioria acaba comprando da EAP-070 que liga a cidade aos “terrenos”, localidades fre- farinha nas feiras da cidade. A extinção de atividades tradi- quentadas nos finais de semana como retiro e divertimento. cionais assim como o abandono da terra, propicia a perda da Relacionado as propostas voltadas ao patrimônio natural identidade negra, uma vez que a sua sobrevivência se encon- do Curiaú em 1997, uma parceria entre Governo do Estado, tra ligada ao território tradicionalmente ocupado. Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE/AP, Outro agravante percebido pelos conflitos entre mod- Instituto de Desenvolvimento do Amapá – IRDA e Associação ernidade e tradição, é o referente as festas de aparelhagem de Moradores do Curiaú cria-se o Projeto de Ecoturismo a APA realizadas nas comunidades que integram a APA. As festas do Rio Curiaú, com a execução do poder público, por inter- de aparelhagem que contam com uma infraestrutura de som médio do Instituto de Desenvolvimento Estadual do Turismo moderna e de alta potência são realizadas em diversos bares – DETUR e a Superintendência da Zona Franca de Manaus - e sedes no Curiaú com o objetivo de angariar fundos para a SUFRAMA com o objetivo de gerar emprego e renda para a realização das festas tradicionais de santo, que apresentam comunidade em questão. extenso calendário anual. Para a execução desse projeto foi construída uma in- No entanto, a realização dessas festas divide os mora- fraestrutura necessária para a pretensa atividade turística, dores do Curiaú, sendo alvo de vários processos na justiça como a construção de um Deck Panorâmico, espaço para frente a Promotoria de Justiça de Meio Ambiente, Conflitos restaurante, loja de artesanato e adequação de um salão de Agrários, Habitação e Urbanismo pela poluição sonora, per- beleza afro; um Centro de Cultura (livros, vestuários, instru- turbação do sossego que segundo os moradores mais antigos mentos, musicais), concebido como um local de Múltiplo Uso. propiciam apenas atos de vandalismo no local, como rachas, E ainda, barco para passeios no Rio Curiaú, sinalização acidentes, bebedeiras, brigas, prostituição e violência, geran- turísticas, guaritas de fiscalização e cavalos para a realização do lucro apenas para os proprietários dos estabelecimentos de trilhas. No entanto como atesta no plano de manejo da que promovem esse tipo de festa “profana”. SEMA, o projeto “tem sido desenvolvido de maneira anárquica Por causas modernas, estamos perdendo dia e desordenado”, sendo que parte dessa estrutura foi perdida, a pós dia a nossos hábitos, costumes e nos- a loja de artesanato está fechada e o Centro de Cultura serve sa maneira de ser. Por falta de um trabalho de posto policial, o que recebe muitas críticas dos moradores rígido e uma conscientização para os nossos do Curiaú. jovens, estamos perdendo a nossa cultura A precária infraestrutura, somada as imposições decor- folclórica para os aparelhos sonoros; esta- rentes do avanço da cidade sobre o Curiaú, sentida pela mos deixando aos povos a agricultura e pas- destruição de áreas que anteriormente eram destinadas a sando para o comércio de bebidas, atraindo produção agrícola foram invadidas e se transformaram em o vandalismo, destruição e a marginalidade, habitações. Nesse decurso da história, com o advento da mod- que vêm causando problemas que são casos ernidade o campo é relegado ao segundo plano. de polícia (MENEZES, [2006?] data provável, E a vida rural parece ser ameaçada de extinção pelo fascí- p. 33). nio do progresso das cidades. Não só o encanto como a busca por melhores condições de vida pode ser considerado quando A insatisfação em relação as festas de aparel- a população mais jovem do Curiaú não se identifica com os hagem não configuram como um consenso. Dona Josefa, costumes do campo, o que como anteriormente citado oca- uma das líderes da Comunidade Casa Grande eventualmente siona o êxodo dessa população e o abandono de atividades realiza tais festas para levantar fundos para as festas de san- tradicionais como a produção de farinha, derivado da mandi- to, como a tradicional festa de São Francisco, que consta com oca e base da alimentação na região norte. ladainhas rezadas em latim e todos os ritos presentes nas Como a produção de farinha artesanal demanda muito festas tradicionais “sagradas”, como as danças de Marabaixo trabalho e tempo, poucos moradores se dedicam ao seu culti-

264 e o Batuque123. E relata que “para a manutenção da cultura mento econômico. O Etnoturismo se configura como proposta precisa recorrer as festas de aparelhagem”, pois o governo de inserção da comunidade de forma ativa no processo de “não ajuda em nada”, e que as “festas são seguras, pois con- valorização e promoção da sua identidade cultural. Sendo im- tratamos segurança particular pra evitar tumulto”. portante ressaltar a existência do turismo cultural no Curiaú. Comprovado por precípua pesquisa de campo no mês de O ETNOTURISMO NO QUILOMBO DO C-RIAÚ: O ET- novembro de 2014 com alguns dos moradores mais antigos NODESENVOLVIMENTO COMO DIRETRIZ PARA O DE- da comunidade sobre a viabilidade do Etnoturismo para as SENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL pessoas que têm interesse em conhecer sua cultura. Ficou constatada a aceitação dos entrevistados, uma vez que não O Curiaú pelas suas potencialidades tanto naturais houve oposição a essa modalidade de turismo. quanto histórico-culturais apresenta-se como um dos pon- Pois, foi evidenciado o orgulho de contar as histórias de tos turísticos mais frequentados pela população de Macapá. formação do quilombo, bem como as tradições familiares, Sendo constantemente procurado por conta dos diversos bal- culturais e, sobretudo a “luta sem fim” que no passado era neários e bares, esse turismo acaba por gerar renda apenas contra a escravidão e hoje permanece contra a invisibilidade para uma parcela pequena dessa comunidade, e gera prob- e exclusão social, e reconhecimento e valorização do povo ne- lemas como a poluição do Rio Curiaú. Além de constituir um gro como sujeito de direitos e histórias. turismo sazonal, pois pelo regime de seca da região, os bal- “Como a nossa história que para permanecer viva, tem neários ficam secos durante metade do ano, o que inviabiliza que ser contada”. A reivindicação da memória para a sobre- essa modalidade de turismo. vivência da identidade e história afroamapaense muito bem Sendo importante ressaltar que esse turismo regional é rememorada por Francisca Antônia Ramos, a (Tia Chiquinha). fortemente incentivado por órgãos públicos do Estado. Diante da necessidade de alternativas dinamizadoras da economia O Turismo de Base comunitária surge a par- que possibilitem coadunar desenvolvimento socioeconômico tir de diferentes modalidades do turismo, e valorização e preservação histórico-cultural e territorial, o além de combinar características de outros Etnoturismo se apresenta como estratégia qualitativa de in- conceitos evidenciados como de ecoturismo, serção das comunidades quilombolas na lógica moderna de turismo sustentável, turismo cultural, etno- turismo, turismo comunitário, sustentável, mercado. turismo de base local, turismo rural, comu- Mais recente, são as propostas e as fortes tendências do nitário, dentre outros. Esse conceito valoriza turismo em comunidades quilombolas como os estudos de- as dimensões social e territorial dessa práti- senvolvidos pelo laboratório de Geografia Cultural e Turismo ca. (COSTA NOVO, 2011, p.24). do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uber- lândia. O entrelaçamento de modernidade e tradição é eviden- Fundamentado em tais apontamentos, e considerando o ciado também nas manifestações religiosas, nas festividades contexto regional da comunidade quilombola do Curiaú, na e, especialmente no desenvolvimento de atividades turísti- qual a atividade turística faz parte da dinâmica de desenvolvi- cas. Atualmente a atividade turística no Curiaú é represent- 123 O Marabaixo e Batuque danças afrodescendentes que expressam a ativa nos balneários da região. E se apresenta como fonte identidade étnica do negro amapaense. Tais expressões são manifes- complementar de renda e emprego. tadas nas festas de catolicismo popular no Curiaú que acontecem ao longo do ano. Contando com um calendário Afrorreligioso e Cultural, Para que o etnoturismo seja sustentável em sendo os santos cultuados (São Sebastião, São Lazáro, São José, Santa nível ecológico e cultural, é importante que Maria, Santo Antônio, São Joaquim, São Francisco, e Nossa Senhora da a comunidade informe aos visitantes os cos- Conceição. As cerimonias são sempre acompanhadas por ritos como as ladainhas cantadas em latim. As danças são cantadas em ladrões – tumes locais, as possibilidades de contato, histórias cantadas, acompanhadas por um banquete como café, almoço, celebrações religiosas, hábitos e expectati- matança de bois, porcos, e muita gengibirra – bebida tradicional feita vas da população quanto ao processo de vi- com cachaça, gengibre e açúcar. 265 sitação, inclusive sobre possíveis problemas A amostra foi definida pela escolha intencional dos a serem gerados na relação entre moradores pesquisados, ou seja, dos moradores mais antigos da comu- e visitantes. Nesse sentido, é imperioso que nidade em questão. A medida estatística aplicada foi de per- a população que a população local reconhe- centis, realizada pela regra de três simples. E optou-se pela ça e valorize a identidade étnica, incluindo apresentação dos dados na forma de tabelas. suas línguas, tradições organizacionais, Utilizou-se a história oral como metodologia ao permitir técnicas de produção, ocupação da terra uma confluência da história com as demais ciências sociais, e recursos naturais, na perspectiva de um optou-se pela coleta de depoimentos. Quanto as técnicas convívio pacífico através do intercâmbio cul- práticas para a coleta de dados de acordo com Marconi e Laka- tural que o etnoturismo é capaz de propiciar. tos (2013), corresponde a documentação indireta, que foi re- (NOGUEIRA et al. 2013, p. 126). alizada através do levantamento documental e bibliográfico de livros, artigos científicos e sítios eletrônicos. O turismo em territórios culturais por sua complexidade Quanto a documentação direta, se deu por meio da ob- e possíveis contradições exige reflexões e planejamento dos servação direta intensiva e extensiva. Nesse caso, as técnicas seus possíveis impactos inerentes da atividade econômica. No utilizadas foram a observação, exame do contexto socioeco- entanto, experiências acerca do Etnoturismo, sobretudo o em nômico da população do Curiaú; participante de caráter ex- sociedades indígenas na América Latina apontam caminhos ploratória, a partir da vivência na comunidade quilombola possíveis de desenvolvimento sustentável e preservação do pesquisada. A documentação direta, nesse caso a vivência foi patrimônio natural, cultural e tradicional. fundamental para a constituição de confiabilidade entre os interlocutores dessa história e os pesquisadores. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS E descritiva ao relacionar estudos precípuos com as novas O referencial metodológico foi desenvolvido através hipóteses levantadas nessa pesquisa. Utilizou-se como delin- de pesquisa de campo aplicada na comunidade tradicional eamento a pesquisa bibliográfica, documental, de levanta- quilombola do Curiaú, situada na área urbana de Macapá, mento com a aplicação de formulários com perguntas abertas no estado do Amapá. Composta por cinco (05) comunidades, e fechadas (ver apêndice A), e fundamentalmente entrevistas apresenta população média de 2.000 pessoas. Para a aferir tanto padronizadas como não estruturadas com longas con- sobre a possibilidade de aplicação do pressuposto por essa versas e diversos encontros. pesquisa sobre a viabilidade do etnoturismo como proposta A vivência no Curiaú foi fundamental para o desenrolar de etnodesenvolvimento. da pesquisa e pela possibilidade de buscar familiaridade, Utilizou-se métodos de procedimentos pertinentes a ultrapassando o limiar do visitante, sendo essa convivência natureza do objeto pesquisado, que corresponde as ciências iniciada em agosto de 2014, com os primeiros contatos com sociais, a partir da investigação pelo histórico da formação as lideranças da comunidade, como registrado no caderno de dos “aquilombamentos” Amazônia, especialmente nas pos- campo. sessões do Cabo Norte; método comparativo da presente Ademais, como pressuposto levantado por Demo (1995), pesquisa com pesquisas anteriores acerca da mesma temática passar da familiaridade para à intimidade, tornando-se parte e estatístico quando a partir da coleta de dados se obteve per- do fenômeno estudado é preciso necessária vivência. O que centuais relacionados a pesquisa de opinião. foi alcançado durante esse projeto, quando houve a partici- A pesquisa de campo foi realizada no período de agosto pação dos pesquisadores em eventos familiares da comuni- de 2014 a agosto de 2015. Apresentou uma abordagem visan- dade pesquisada, fundamental para a aceitação e adesão do do a complementaridade entre os métodos qualitativos e proposto pela pesquisa. quantitativos, com análise interpretativa e dimensionamento probabilístico dos dados levantados acerca da implementação do etnoturismo.

266 CONSIDERAÇÕES ____.ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio – uso comum e conflito. In: O Etnoturismo apresentou-se como uma estratégia ca- HÁBETTE, J; CASTRO, Edna (org.). Na trilha dos grandes paz de gerar renda a comunidade tradicional quilombola do projetos. Belém: NAEA/UFPA, 1989. Curiaú, preservando o patrimônio tanto natural quanto cul- tural, de acordo com as exigências de etnodesenvolvimento AMAPA. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Plano pensadas para comunidades tradicionalmente ocupadas. de manejo da Área de Proteção Ambiental do Rio Cu- Sendo capaz de aliar desenvolvimento socioeconômico sus- riaú. Macapá: SEMA, 2010. tentável compatíveis com a complexidade e especificidades de territorialização do quilombo como espaço de resistência, BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e sobrevivência da identidade, visibilidade, valorização e mel- Combate à Fome. Pesquisa de Avaliação da situação de horia da qualidade de vida dos remanescentes quilombolas, segurança alimentar e nutricional em comunidades quilom- apresentando-se como proposta eficaz de viabilização de bolas tituladas. Brasília, 2013. políticas sociais para a população afroamapaense. Em virtude dos fatos mencionados neste artigo, tendo BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e em vista os aspectos empregados e as políticas sociais apre- Combate à Fome. Cadernos de Resultados 3 anos – Plano sentadas e possibilidades de serem alcançadas na comuni- Brasil Sem Miséria. Brasília, 2014. dade faz-se necessária a efetuação do Etnoturismo como proposta viável para solidificação do progresso social das co- CLAVAL, Paul. A geografia cultural. Tradução de Luiz munidades tradicionais quilombolas da Amazônia como for- Fugazzola Pimenta e Margareth de Castro Afeche Piment. 2 ma de garantir o princípio das especificidades de autonomia ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. quilombola em um contexto territorial e social atribuídos aos aspectos comunitários e autonomia cultural de organização COSTA NOVO, C.B.M. Turismo de base comunitária da mesma. na região metropolitana de Manaus (AM): caracter- Dessa forma, verificou-se que o etnoturismo se apre- ização e análise crítica. 2011. Dissertação (Mestrado) – Fac- senta como uma ferramenta capaz de gerar renda a comuni- uldade de Filosofia, Letra e Ciências e Humanas, Universidade dade quilombola do Curiaú, preservando o meio ambiente e de São Paulo, SP, 2011. valorizando a cultura negra, confirmando a hipótese levanta- da pela pesquisa, na qual evidenciou que o Etnoturismo como DEMO, Pedro. Metodologia Cientifica Em Ciências Sociais. estratégia de inserção econômica de populações tradicionais São Paulo: Atlas, 1995. quilombolas apresentou-se como uma alternativa compatível com as complexidades da territorialização do quilombo como GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: espaço de resistência, sobrevivência da identidade e valor- Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janei- ização cultural. ro-Século XIX. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1995 HALL, Stuart. A identidade Cultural na Pós- Modern- REFERÊNCIAS idade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. ACEVEDO, R. Quilombos no Brasil. Revistas Palmares, Rio de Janeiro: DP&A, 2005. n.5. Brasília, Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cul- tura, 2000. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1994. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos: Rep- ertório Bibliográfico de uma Questão Redefinida . Rio de Ja- LAKATOS, E.M., MARCONI, M. de A. Fundamentos de neiro, 1997. metodologia científica. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1991.

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SEAFRO. Discute proposta de melhoria alimentar para comunidades afrodescendentes.Tv Amapá, 31 jul. 2015 Disponível em:

268 APÊNDICE A 8. Você concorda que esses aspectos citados acima precisam de divulgação? Por quê? QUESTIONÁRIO ( ) Não por que a cultura e o turismo não tem toda essa im- 1. Qual o seu grau de escolaridade? portância ( ) Fundamental ( ) Médio ( )Superior ( ) Não, pois o turismo já é uma realidade da comunidade ( ) Sim por que parte da população não valoriza a cultura 2. Você recebe algum benefício do governo federal? local por falta de esclarecimento. ( ) Sim, principalmente para mostrar para os outros estados ( )Sim ( )Não que o estado do Amapá também possui cultura.

3. Quais as atividades que você realiza para subsistência? 9. Existe um planejamento da comunidade para o desenvolvi- mento da atividade turística no Curiaú? ( ) Atividades Primarias (Agricultura, Pecuária...) ( ) Turismo ______( ) Funcionalismo Publico ______( )Outros ______

4. Você é favorável às práticas turísticas na comunidade? 10. E quanto a políticas de incentivo ao turismo histórico- -cultural. Existe propostas institucionalizadas voltadas para ( ) Sim ( ) Não o Curiaú?

______5. Qual a sua opinião a respeito do turismo no Curiaú? ______( ) Muito Movimentado ______( ) Satisfatório ( ) Pouco Movimentado 11. Você acredita que o turismo cultural pode ajudar a desen- ( ) Precário volver o Curiaú?

6. O processo turístico no Curiaú é debilitado em que aspecto? ______( ) Estrutura ______( ) Incentivo Politico e Empresarial ( ) Divulgação 12. Quais são as maiores dificuldades para a atividade turís- tica no Curiaú?

______7. Em sua opinião o Curiaú possui uma boa estrutura turística? ______( ) Sim ( ) Não

269 O MAPEAMENTO DA POLÍTICA DA PAISAGEM NO INTRODUÇÃO PORTO MARAVILHA: O CAIS DO VALONGO Nos últimos anos, alguns autores vêm demarcan- do o crescimento da paisagem como fenômeno e objeto de Gabrielle Alves Reis interesse público (RIBEIRO, 2013), o que vem intensificando Graduanda em Geografia pela UFRJ, sua aplicação diferentes estratégias e instrumentos de gestão [email protected] do território. Um reconhecimento importante por parte de algumas dessas ações está no fato de que, mais do que RESUMO “apenas” estética e beleza, a paisagem compõe uma parte Através de um discurso de “requalificação” e/ou “revi- importante da qualidade de vida da população, (NETO, 2010 talização”, a Zona Portuária carioca sofreu grandes transfor- apud GONÇALVES, 2015). A partir disso, cresce a ideia de que mações na gestão do prefeito Eduardo Paes, através do projeto a garantia da qualidade de vida está relacionada à garantia de “Porto Maravilha”. A partir de um discurso que colocava aque- direitos e do direito à paisagem. la área como “decadente”, “obsoleta” e “vazia” elaborou-se a Com os grandes eventos sediados pela cidade do Rio de ideia de necessidade de intervenção, que se constituiria como Janeiro, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, podem-se um transformador da paisagem, tanto no seus aspecto mate- observar intensas transformações na cidade. Na segunda rial quanto simbólico. A paisagem torna-se assim um elemen- metade do século XX, a área central da cidade, sobretudo a to estruturador das intervenções, mas também dos discursos zona portuária, viveu certo esvaziamento, devido a fatores e práticas de resistência, revelando uma complexidade de como a mudança da capital federal, o esvaziamento das ativ- agentes e práticas. Assim, o objetivo geral deste trabalho é idades administrativas no Centro, a intensificação da descen- analisar a forma como a paisagem tem sido mobilizada por tralização residencial, a consolidação de áreas de expansão na diferentes agentes na zona portuária em suas práticas e os in- direção sul da orla oceânica e o crescimento das favelas (RAB- strumentos e espaços nos quais esses conflitos emergem e são HA, 2006). No entanto, nos últimos dez anos, a área central colocados em discussão, constituindo aquilo que chamamos carioca recebeu diversos incentivos, que agregam novas inter- de política da paisagem (RIBEIRO, 2013). Entendendo a políti- pretações ao espaço. Esse ciclo de declínio do centro e retorno ca da paisagem a partir da tríade Representação/Governo/ a ele é uma característica das diversas cidades ocidentais, nas Contestação, desenvolvida por Vanolo e Rossi (2012), esta quais junto a ele há um processo importante de ressignif- pesquisa tem como objetivo compreender de que forma a cação, que inclui novos sentidos para as paisagens. Portanto, paisagem tem sido operacionalizada no conjunto de ações de este trabalho buscará mapear os diferentes pontos de inter- diferentes grupos e agentes atuantes na região do Porto Mar- esse do projeto mais recente de transformação da paisagem avilha. Para alcançar esse objetivo, o trabalho procura realizar central da área carioca, o Porto Maravilha, além de pontuar um mapeamento dos agentes, discursos, práticas, utilizando os pontos onde a paisagem é um dos principais discursos para bibliografia e trabalho de campo na região portuária do Rio manutenção ou mudança do local. Ainda será realizado um que envolvam a retórica da paisagem, além de realizar um es- estudo de um novo ponto importante para a paisagem car- tudo de caso acerca do Cais do Valongo, dada a sua importân- ioca, o Cais do Valongo, analisando a tríade Representação/ cia para a construção da memória negra na região, com mo- Governo/Contestação em três diferentes momentos: a criação mentos como a construção do Circuito da Herança Africana, do Circuito da Herança Africana, a patrimonialização do Sítio sua patrimonialização pela UNESCO e a atual construção do Arqueológico Cais do Valongo e a recente criação do Museu da Museu da Escravidão e da Liberdade, ao identificar agentes, Escravidão e da Liberdade. discursos e conflitos destes momentos. Abreu (1998) já destacava a valorização do passado das cidades pelas sociedades modernas. Nora (1993) chama a at- Palavras-chave: Cais do Valongo; Política da enção para a busca incessante por vínculos identitários, que Paisagem; Patrimônio; Políticas Públicas; Geografia Política o autor chama de “síndrome arquivística”, nessa tentativa de preservar qualquer vestígio do passado. Ainda assim, é pos-

270 sível observar que a memória é seletiva, por passar por um Escravidão e da Liberdade, pelo decreto nº 43.128, de 12 de processo de escolha (o que deve e o que não deve ser lemb- maio de 2017, no local que hoje abriga o Galpão da Ação e rado). Por isso, o fenômeno da memória pode ser entendido Cidadania, sede da ONG idealizada pelo militante político He- como uma ação política. bert José de Sousa Betinho, leva-nos a refletir sobre a relação Outro ponto a ser destacado é a “revitalização” de áreas entre elementos antigos e novos na paisagem carioca. centrais das cidades, que sofreram um esvaziamento nos últi- Duncan (1990) destaca que a paisagem, apesar de pos- mos anos. Os planos urbanísticos, desde o Império, possuem suir múltiplos sentidos de acordo com o olhar do observador, como objetivo organizar e controlar o território, caracterizan- é capaz de transmitir informações em contextos que são pro- do uma evolução da cidade e sua sociedade, como um reflexo duzidos por meio de um discurso intencional, a partir de ideo- de uma época de mudança no pensamento (REIS, 2017). A logias expressas na paisagem. Nesse sentido, as discussões do Zona Portuária da cidade do Rio de Janeiro, com influência dos conceito de paisagem são baseadas no entendimento da pais- megaeventos da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas agem como um objeto de intervenções públicas urbanas, que de 2016 sofre algumas mudanças. Decorrente disso, a área possui um sentido político, uma intencionalidade (DUNCAN, lida com mudanças materiais e simbólicas e, com isso, novos 2004). Segundo Cauquelin (2007), a paisagem é inventada e lugares de memória são criados (CRUZ, 2016). Alguns desses está vinculada a quem a apreende e, portanto, nesse caso, a locais são capturados para serem importantes para a memória identidade negra é reforçada no local. É importante destacar negra, na tentativa de lembrar a escravidão com sensibilidade ainda que é necessário uma vontade de paisagem, que pode e como um momento que não deve ser esquecido, por ter sido ser dividida entre paisagem como consumo (como é o caso da uma área com intensa chegada de escravos, agregando forte construção de torres) e paisagem como recurso político (que apelo. Assim, alguns grupos são mobilizados para trabalhar será trabalhado nesse projeto, com base na ideia de cidadania espaços voltados para a valorização da cultura e memória a partir da paisagem), de acordo com Ribeiro (2017), artic- afrodescendente, como é o caso do Cais do Valongo. O direito ulados por mobilizações sociais e lutas por reconhecimento, à memória compõe uma construção da identidade social. O no desejo de se ver representado na paisagem com “suas Cais do Valongo, “redescoberto” em 2011, é considerado um marcas territoriais e expressões simbólicas reconhecidas e dos maiores portos de escravo do mundo, com a chegada de valoradas” (BARBOSA, 2017, p. 10). Novos espaços estão cerca de 500 mil escravos (UNESCO, 2016). Segundo membros sendo apropriados e, a partir disso, percebe-se a invenção do Conselho Consultivo da Proposta da Candidatura do Cais de novas paisagens. Com isso, é possível retornar à mesma do Valongo a Patrimônio da Humanidade, o local é o sítio questão dos lugares de memória: qual é a ideia predominante de memória da escravidão mais completo que se conhece e, na paisagem? A mundialização das cidades altera a forma por isso, importante para a história brasileira, como nação, e como a paisagem é produzida. Ao mesmo tempo em que o mundial. capitalismo tende a uma homogeneização do mundo, há um Com base em estudos de Carrión (2001), o Cais do Va- viés que destaca a estética da paisagem como uma preocu- longo não passa de um lugar de encontro para um lugar de pação de cidadania e democracia, com expressões como o “di- trânsitos e fluxos. Pelo contrário: a circulação de bens, pessoas reito à paisagem”, presente no Plano Diretor da Cidade do Rio e serviços que outrora ocupavam o lugar, em uma grande de Janeiro. Gonçalves (2015) destaca que a paisagem é um avenida, é substituída por um espaço com grande central- interesse público primário e da coletividade (bem comum e idade histórica, apesar da ideia original do projeto Porto indivisível), devido sua constituição social, histórica e proces- Maravilha para o local abrigar um boulevard. A descoberta do sual. Assim, pode-se considerar a paisagem como uma ferra- Cais do Valongo é tomada como importante para a memória menta de gestão do território (RIBEIRO, 2011), já que atribuir negra e passa a ser entendida como a vertente cultural do novos sentidos à espaços com pouca visibilidade torna-se projeto Porto Maravilha, associado a locais como o Morro da uma estratégia na gestão das cidades (CRUZ, 2016). A política Providência e o Cemitério dos Pretos Novos, havendo, assim, da paisagem, portanto, é um instrumento para tornar visível um encontro de interesses. A atual construção do Museu da

271 o invisível e (re)afirmar identidades e a paisagem é política, sentação diz respeito a quem é representado e quais narra- pois revela escolhas. tivas são construídas. Essa compreensão é fundamental para Com o projeto Porto Maravilha, a zona portuária do Rio entender as decisões do governo, como um jogo de interesses de Janeiro vem sofrendo intensas transformações e novas ap- e produções, debate passou por diversas correntes geográfi- ropriações. A descoberta do Cais do Valongo durante as obras cas. O segundo pilar, o governo, corresponde aos agentes que no porto, após 200 anos, trouxe à tona novas discussões ac- deliberam, instituições, decretos e ferramentas utilizadas erca da memória negra, por meio de debates entre agentes pelo poder público, com base nas ideias de Foucault de gov- institucionais, intelectuais, grupos sociais e governo, iniciado ernamentalidade (1979). O terceiro aspecto, a política como com o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da contestação, aborda os conflitos. Herança Africana, que não constava no projeto original do A política como representação está voltada a produzir programa cultural. Com isso, antigas formas do cais ganham discursos acerca da cidade, ao criar imagens atrativas, ao pro- novos significados e a paisagem do local torna-se importante duzir símbolos, e, assim, influenciando na gestão das cidades. na construção da narrativa do projeto Porto Maravilha. A A representação é um processo importante na obtenção de partir disso, surge a demanda de novos instrumentos e novas capital político como um recurso político. Para obter visibili- políticas para valorização e manutenção da lembrança afri- dade nos espaços políticos e conseguir capital, determinados cana. A patrimonialização do Cais do Valongo pela UNESCO grupos são capazes de criar estratégias de resistência a partir e a criação do Museu da Escravidão e da Liberdade conferem da ocupação de espaços políticos e transformação de identi- mais questões ao debate sobre a nova política da paisagem no dades. Enquanto isso, a política como governo busca identific- Porto Maravilha, com a memória tornando-se um importante ar as ações do Estado e como são definidas, ao apontar difer- elemento na narrativa. Com isso, o objetivo deste trabalho é entes instrumentos e escalas. Como governo e população não entender os novos sentidos da paisagem da Zona Portuária possuem uma visão única, é possível caracterizar conflitos no carioca, com o projeto Porto Maravilha, além de entender espaço, que podem ser dentro ou fora do governo, em espaços como a Geografia Política Urbana é trabalhada e de que forma públicos ou não, sendo caracterizados por movimentos visan- a paisagem tem sido operacionalizada no conjunto de ações do o ordenamento da cidade. Nesse ponto, o Cais do Valongo de diferentes grupos e agentes atuantes na região do Porto engloba reivindicações que dizem respeito ao direito à cidade Maravilha. e ao direito à paisagem. A partir dos três pilares para compreender a Geografia Política Urbana, apresentados por Rossi e Vanolo (2012), Quadro 1 – Metodologia de análise com base em Rossi e Vanolo (2012). surgem outras questões chave do trabalho: Que atores dis- Organizado pela autora. putam o espaço? Que elementos e escalas são capazes de Representação Governo Contestação compor um simbolismo na paisagem? Que discursos são Atribuições, Agentes, apresentados para justificar a paisagem? Que mudanças, tan- Dados funções, normatização, Conflitos to espaciais quanto simbólicas, podem ser observadas? Onde significado organização estão esses espaços de disputa? Para isso, busca-se mapear Decretos, leis, Decretos, leis, Eventos, jornais, ações empreendidas por um discurso de paisagem, a fim de Fontes dossiês, site, dossiês, site, dossiês, repre- entender, por fim, diferentes concepções de paisagem nas jornais jornais sentantes Entrevista, Entrevista, políticas públicas, tomando o Cais do Valongo como um es- Entrevista, pesquisa docu- pesquisa docu- Instrumentos análise docu- tudo de caso. mental, trabalho mental, trabalho mental Para compreender a nova Geografia Política Urbana, este de campo de campo trabalho incorporará a obra de Rossi e Vanolo, Urban Po- Quadro 1 – Metodologia de análise com base em Rossi e Vanolo (2012). litical Geographies: a global perspective (2012). Organizado pela autora. Assim, a política da paisagem será compreendida pelos três pilares: Representação, Governo e Contestação. A repre-

272 Nesse ponto, é fundamental entender a prática da cidada- sentações (RIBEIRO, 2018), pode ser vista no Rio de Janeiro, no nia, que apresenta conflito, transformação e preservação, na caso do Porto Maravilha. No mapa a seguir, são apresentados luta por novos direitos e pressão social por justiça, com base todos os pontos de interesse do projeto de 2009, classificados em um novo imaginário político e, a partir disso, mostra-se de acordo com as três áreas possíveis de serem trabalhadas importante entender os agentes que mobilizam a paisagem, na política da paisagem: meio ambiente e sua preservação; que pode ser tomada como o reconhecimento de cidadanias ações de preservação do patrimônio cultural (verde); e in- (BARBOSA, 2017). Assim, o reconhecimento de cidadania tervenções urbanas (vermelho). Por não haver pontos de tem como base a recomposição de identidades a partir da interesse sobre o meio ambiente, o mapa divide-se em duas paisagem. O poder público e o patrimônio são capazes de categorias, com 33 pontos em verde e 22 correspondendo a ressignificar e dar voz a grupos de menor representatividade, intervenções urbanas. por meio da construção de narrativas, a partir da relação en- tre marca e retórica. Com isso, o governo é capaz de criar o espaço, entendendo a paisagem como texto (DUNCAN, 2004), ao construir uma narrativa. A materialidade e o simbolismo são processos de transformação ao longo do tempo, em um dinamismo frágil e susceptível a novas intervenções.

PAISAGEM E PATRIMÔNIO NO CAIS DO VALONGO O conceito de paisagem ganha importância Mapa 1 - Rio de Janeiro: Pontos de interesse do Projeto Porto Maravilha (2009). Elaborado pela autora dentro e fora da Geografia, renovado pela Geografia Cultural, ganhando novas aplicações e entendimentos. Duncan (2004) aponta que a paisagem pode ser entendida como texto, já que Pensando nos pontos destacados pelo Projeto Porto Mar- ela pode ser lida de diferentes formas de acordo com o olhar avilha indicados, sejam pela sua aparição no projeto ou em do observador, implicando em múltiplos sentidos. O autor apresentações disponíveis online fornecidas pela Prefeitura mostra que a paisagem é um dos elementos centrais em um e discursos, pode-se identificar, dentre esses pontos, alguns sistema cultural, sendo um conjunto ordenado de objetos e que possuem a paisagem como um dos principais compo- atuando como um sistema de significação, que é comunica- nentes na sua remodelação ou construção, apresentados no do, reproduzido, experimentado e explorado (DUNCAN, 1990, mapa a seguir. Foram destacados 11 pontos. São eles: Pedra p. 17). Duncan, assim como Smith (2003), também opta por do Sal (1), Morro da Conceição (2), Museu de Arte do Rio (3), mostrar como a política opera a partir da paisagem. Smith Cais do Valongo e Cais da Imperatriz (4), AquaRio (5), Museu (2003) aponta ainda que experiência, percepção e imagi- do Amanhã (6), Morro da Providência (7), Avenida Rio Branco, nação, a partir de ações e objetos materiais orientam ações associada à construção do VLT (8), Moinho Fluminense (9), sobre a paisagem, a paisagem política. Orla Conde(10), e Via Binário do Porto, em relação ao trabalho Cruz (2016) destaca que, no campo do patrimô- nos Galpões da Gamboa (11). Esses pontos são destacados nio, ao observar a paisagem cultural e seus múltiplos senti- como elementos associados à política da paisagem, enten- dos, fica a questão acerca de qual sentido deve ser privilegia- dida como “um conjunto de dispositivos, governamentali- do. Pollak (1989) afirma, por sua vez, que o esquecimento e dades, ações e conhecimentos, que visam regular sujeitos o silêncio de memórias são processos que fazem parte das e territórios, com diferentes objetivos, que se desenvolvem ressignificações. A política da paisagem, entendida como o a partir de diferentes práticas e formas de conhecimento” conjunto de dispositivos, governamentalidades, ações e con- (RIBEIRO, 2018, no prelo). Ainda segundo o autor (2018, no hecimentos, a fim de regular sujeitos e territórios, com base prelo, p. 1), em diferentes objetivos, práticas e formas de conhecimento, atingindo diferentes grupos, intencionalidades e repre- 273 Falamos em política da paisagem quando que funcionava desde 1779 no Largo do Depósito, atual Praça ela é mobilizada por diferentes grupos, com dos Estivadores. diferentes intencionalidades, a partir de di- Em 1843, no entanto, com a chegada da então princesa ferentes representações, seja do espaço em Thereza Cristina para se casar com o imperador D. Pedro II, o questão, seja da própria ideia do que é uma cais é reformado e embelezado e passa de um lugar de penúria paisagem, visando algum tipo de ação e/ou e desprezo a um lugar da realeza, conhecido como Cais da de controle. Imperatriz. A Câmara Municipal, para marcar a chegada da imperatriz, associada à Academia de Belas Artes, ergueu um monumento-chafariz em cantaria na então Praça Municipal, hoje Praça Jornal do Comércio. Entre 1850 e 1920, a área no entorno do Cais do Valongo, onde Heitor dos Prazeres intitu- lou de Pequena África, foi tomada por negros escravos ou lib- ertos. No início do século XX, com as reformas urbanísticas no Centro da cidade do Rio de Janeiro com o prefeito Pereira Pas- sos, o local foi aterrado, e volta à tona em 2011, como um dos maiores portos de escravos do mundo, tendo recebido cerca de 500 mil escravos, de acordo com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, com a descoberta de dois ancoradouros durante escavações realizadas para obras de revitalização da zona portuária da cidade a 100 metros do mar. O projeto Porto Maravilha, instituído em 2009, buscou, de acordo com a Prefeitura da cidade, promover o Mapa 2 - Rio de Janeiro: Elementos associados à política da paisagem reencontro da Região Portuária com a cidade, a partir da no Projeto Porto Maravilha (2017). Elaborado pela autora. requalificação de 5 milhões de metros quadrados, nos bairros da Gamboa, Santo Cristo e Saúde, morros do Pinto, Conceição, Na tentativa de novas construções de paisagens por Providência e Livramento e parte do Cajú, São Cristóvão, diferentes grupos, a forma do Cais do Valongo é alterada ao Cidade Nova e Centro, buscando beneficiar moradores e fre- longo do tempo. No caso do Cais do Valongo, os sentidos pais- quentadores da região, além de preservar sua identidade agísticos são tanto geossimbólicos quanto sociais, tanto pela cultural e arquitetônica. De acordo com a lei complementar paisagem panorâmica quanto pelo debate mobilizado neste 101/2009, pelo menos 3% dos recursos arrecadados com espaço. O local, porém, já passou por outras intervenções que Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) influenciaram diretamente no significado da sua paisagem. devem ser aplicados na recuperação e valorização desse pat- Em 2011, 200 anos após a sua criação, a redescoberta do Cais rimônio e no fomento à atividade cultural. A Prefeitura criou, apresenta formas de dois momentos distintos e duas paisa- então, pela lei complementar 102/2009, a Companhia de De- gens distintas em um mesmo espaço: o Cais do Valongo e o senvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (Cdurp), a Cais da Imperatriz. gestora da prefeitura na Operação Urbana Consorciada Porto O Cais do Valongo foi construído em 1811 pela Intendên- Maravilha, com a finalidade de promover a articulação entre cia Geral de Polícia da Corte da Cidade do Rio de Janeiro, com a os demais órgãos públicos e privados e a Concessionária Porto Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, para atender a antiga de- Novo, que realiza obras e serviços na Área de Especial Inter- terminação do Vice-Rei, o Marquês de Lavradio, desde 1779, esse Urbanístico (Aeiu) da Região do Porto do Rio. A Cdurp com o intuito de transferir a chegada dos escravos, antes re- implantou o Programa Porto Maravilha Cultural, no qual os alizada na Rua da Direita, atual Primeiro de Março, próximo à recursos são aplicados na restauração de bens tombados, em Praça XV, para um local mais próximo do mercado de escravos, ações do poder público e no apoio a iniciativas de valorização

274 do patrimônio da região, como a restauração do Centro Cul- Africana e formação da sociedade brasileira. Dessa forma, o tural José Bonifácio. Para implementar as ações, a Cdurp tra- Porto Maravilha, possui mudanças tanto materiais quanto balha em parceria com instituições públicas, sociedade civil simbólicas. e setor privado. De acordo com o Porto Maravilha124, entre as Com os achados arqueológicos, em 29 de novembro de principais linhas de ação do Porto Maravilha Cultural, estão: 2011, no mesmo ano em que este ponto de chegada dos escravos completa 200 anos e ano internacional contra a - Preservação e valorização da memória e das manifestações culturais discriminação racial, foi criado o Grupo de Trabalho Curatori- al do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, através do Decreto Municipal 34.803, a fim de “construir co- - Valorização do patrimônio cultural imate- letivamente diretrizes para implementação de políticas de rial valorização da memória e proteção deste patrimônio cultural” (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 2011), atenden- - Produção e difusão de conhecimento sobre do a uma antiga reivindicação do Movimento Negro. a memória da região A criação do circuito da Herança Africana, realizada em 2011, apresenta uma representação gráfica destacando seis pontos principais, cada um escolhido por um motivo. São eles: - Recuperação e restauro material do patri- 1) Cais do Valongo e Cais da Imperatriz, porto de chegada dos mônio artístico e arquitetônico escravos africanos na Rio de Janeiro; 2) Pedra do Sal, destaca- do como o espaço de construção da população negra, localiza- - Exploração econômica dos patrimônios da aos fundos da senzala, onde era realizado o desembarque material e imaterial, respeitados os princí- de trapiches de sal; 3) Jardim Suspenso do Valongo, con- pios de integridade, sustentabilidade, inclu- struído no início do século XX para alargamento da via, pelo são e desenvolvimento social prefeito Pereira Passos, originalmente projetado para em- belezar a cidade e restaurado pelo Projeto Porto Maravilha, A princípio, a descoberta do Cais do Valongo não estava anteriormente abrigava lojas que vendiam escravos e artigos prevista nas obras do Porto Maravilha, apesar da arqueóloga relacionados à escravidão na antiga Rua do Valongo, hoje Rua responsável, Tânia Andrade Lima, afirmar que havia suspeita Camerino, que ligava o Cais do Valongo ao Largo do Depósito de que o Cais do Valongo estava ali. Segundo ela, “sabíamos e, neste caminho, havia barracões conhecidos como casas de que o Cais do Valongo se encontrava neste local, mas não engorda, onde escravos recém-chegados eram alocados para esperávamos encontrar muita coisa e foi absolutamente sur- ganhar peso e valorizar seu preço no mercado, além de serem preendente a forma como se preservou, em função da grande expostos a possíveis compradores; 4) Largo do Depósito, que profundidade em que está”125. abrigava armazéns de negociantes que controlavam o tráfico A partir disso, os estudos e escavações arqueológi- negreiro; 5) Cemitério dos Pretos Novos, sítio arqueológico cas, que contavam com técnicos da Secretaria Municipal de que funcionava como cemitério de escravos e considerado o Obras, além de historiadores e arqueólogos supervisionados maior cemitério de escravos das Américas; 6) Centro Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional José Bonifácio, primeira escola pública da América Latina, a (IPHAN) para o Projeto Porto Maravilha foram aproveitadas Escola Pública Primária da Freguesia de Santa Rita, sugestão não apenas para a modernização da área, mas também para do imperador para levar educação às comunidades pobres transformá-la em um polo da memória escravocrata presente da cidade, onde, em 1994, após grande reforma, tornou-se o no Rio, auxiliando na compreensão do processo de Diáspora Centro de Referência da Cultura Afro-Brasileira. 124 http://portomaravilha.com.br/porto_cultural 125 https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2017/07/01/ interna_internacional,880636/cais-do-valongo-a-porta-de-entrada- dos-escravos-reaberta-em-nome-do-p.shtml 275 Sendo assim, dentre os principais discursos a serem tra- balhados e que justificam a criação do Circuito da Herança Af- ricana estão a importância histórica e cultural, a socialização dos sítios arqueológicos da região, a segurança e conservação da área por meio do agenciamento urbano, a lembrança da Diáspora Africana e celebração da Cultura Afro-Brasileira. Além disso, 2011, ano que foi criado o Circuito, foi considera- do o Ano Internacional dos Afrodescendentes, decretado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, além de completar 200 anos da construção do Cais do Valongo, datada de 1811. Figura 1 – Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana. No entanto, alguns conflitos podem ser destacados nessa Disponibilizado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (2011) construção são o “branqueamento” da Pedra do Sal, tomada e apropriada pela população branca, segundo alguns mov- Os atores nomeados pelo GT de criação do Circuito da imentos negros, e a tentativa da manutenção e criação de Herança Africana estão destacados no gráfico a seguir, por outros circuitos por movimentos negros ou outros órgãos, tal ordem de aparecimento no próprio decreto, incluindo mem- qual o IPN (Instituto Pretos Novos), incluindo locais como o bros fixos e membros convidados. De acordo com o decreto, Largo de São Francisco da Prainha, Morro da Conceição, Cen- os membros fixos são a vice-presidente do COMDEDINE-RIO, tro Cultural Pequena África, Casa da Tia Ciata, Armazém Docas Dulce Mendes de Vasconcellos, o representante da CDURP, Al- Dom Pedro II, Casa de Machado de Assis, Revolta da Vacina e berto Gomes Silva, e o Coordenador Especial de Promoção da Prata Preta. Política de Igualdade Racial (GP/CEPPIR), Amaury Oliveira da Silva, todos representando a esfera municipal. A esfera da so- ciedade civil, marcada por atores como mães de santo e outros de movimentos negros representam quase 43% dos partici- pantes do grupo de trabalho. Enquanto isso, a esfera federal acumula 3 integrantes e a esfera municipal possui boa par- ticipação, com 5 componentes, dois além dos membros fixos. No entanto, pode-se identificar a ausência da escala estadual.

Gráfico 1 – Atores no GT Circuito da Herança Africana (2011). Organizado pela autora Mapa 4 – Roteiro adaptado do Circuito da Herança Africana proposto pelo IPN. Elaborado pela autora (2018)

276 Com o projeto Porto Maravilha e a refuncionalização com o historiador e diplomata Alberto da Costa e Silva, mem- da Pequena África, o branqueamento ocorre através das re- bro do Conselho Consultivo para elaboração da proposta de moções materiais e simbólicas que se instalaram no local e, candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade, apesar do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africa- em 2014, na, a área que constituía a Pequena África foi reduzida, onde O Cais do Valongo merece ser considerado as tradições africanas eram mais evidentes. De acordo com pela UNESCO patrimônio da humanidade Ribeiro (2014), o circuito traz a herança africana em moldes porque é o sítio de memória da escravidão turísticos e cristalizando a trajetória do negro na região por- mais completo que se conhece. Ele tem im- tuária, já que o projeto Porto Maravilha está associado a refor- portância não apenas para a história brasi- mas urbanas de limpeza social, a partir de remoções na zona leira e, portanto, para a nossa vida como na- portuária e no Morro da Providência. Alguns autores chegam ção, mas também para a história do mundo. a apontar que a própria reconstrução de narrativas busca reor- ganizar o negro na cidade e excluí-lo de espaços que recebem O Sítio Arqueológico do Cais do Valongo tornou-se Pat- grandes investimentos urbanos em cultura e moradia. Dentre rimônio Mundial em julho de 2017, com base na decisão de as visitas guiadas por agentes do IPN ao longo do Circuito, os 22 nações que compõem o Comitê do Patrimônio Mundial. É pesquisadores destacam a reelaboração e ressignificação da visto como o mais destacado vestígio do tráfico negreiro no cultura, através da memória da herança africana. No entanto, continente americano, além de ser reconhecido como um lo- chamam a atenção para a construção da identidade negra cal único no mundo, que, apesar do processo escravagista e como associada à escravidão, enquanto o samba, a boêmia, e do sofrimento, agregou contribuição dos africanos e seus de- o candomblé são os legados que devem ser destacados. scendentes à formação e desenvolvimento cultural, econômi- A patrimonialização do Cais do Valongo pela UNESCO co e social do Brasil. O título também marca o valor excepcion- se baseia em seu valor excepcional, atendendo ao sexto dos al do local, como memória da violência contra a humanidade, dez critérios estabelecidos no Guia Operacional para a Im- da resistência, liberdade e afirmação.126 plementação da Convenção do Patrimônio Mundial: estar Ribeiro (2018) destaca que alguns grupos tratam o diretamente ou materialmente associado a acontecimentos e Cais do Valongo como um sítio sagrado a ser reverenciado, tradições vivas, ideias ou crenças, obras artísticas e literárias enquanto outros referem-se ao local como símbolo do “hol- de significação universal excepcional. Além disso, se localiza ocausto africano” e resistência. Outra possibilidade é o Cais do em duas categorias: sítio histórico de caráter sensível, já que a Valongo como futura fonte de renda como ponto turístico: a história da escravidão de africanos tem entre os seus elemen- Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2015, previa o Cais do Valon- tos definidores a violência e o tratamento desumanizador das go recebendo tantos turistas quanto o Cristo Redentor, princi- suas vítimas, e sítio de memória e patrimônio material e ima- pal ponto turístico da cidade, em 2020. Outros ainda marcam terial, uma vez que a extensa e intensa presença da escravidão o local como “qualificante cultural para um empreendimento africana no mundo ocidental, em termos espaciais, temporais comercial como eram as obras do Porto Maravilha” (RIBEIRO, e culturais, está expressa em objetos e monumentos construí- 2018). Dessa forma, a patrimonialização do Cais do Valongo é dos e no denso conjunto de documentos que se tornaram realizada rapidamente. fontes para o conhecimento dessa longa história. Porém, as Dentre os atores presentes no Dossiê de Candidatura da evidências da história dos africanos submetidos ao cativei- UNESCO, para proposta de inscrição na lista de patrimônio ro ultrapassam os limites da cultura material e escrita e se mundial, destaca-se a esfera federal, com 43 atores presentes, projetam como conteúdo em diversos aspectos da memória com 9 diferentes órgãos. O IPHAN é fundamental, com 16 pes- social e na expressão de tradições e práticas culturais das so- soas presentes na discussão, além de universidades federais. ciedades do continente americano. Em seguida, identifica-se a esfera municipal como muito pre- De acordo com o Dossiê de Candidatura do Cais do Valon- sente, como pode ser visto no gráfico a seguir. go a Patrimônio Mundial pela UNESCO (2017, p. 3), segundo 126 http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/4188/cais-do-valon- go-rj-pode-se-tornar-patrimonio-mundial 277 No grupo de trabalho responsável pela preparação da econômicas ou sociais, a fim de conservar, valorizar e promov- candidatura, estão presentes Milton Guran, antropólogo e co- er o patrimônio. ordenador; José Pessoa, arquiteto; Monica Lima, historiadora Dentre os principais conflitos, estão os diferentes inter- e Rosana Najjar, arqueóloga. esses e pontos de vista, ao questionar como o passado deve ser interpretado e quem tem legitimidade para fazê-lo. Além disso, há um “consenso negociado”, um discurso eleito pelo Estado para criar um imaginário acerca daquele local. O ques- tionamento da veracidade histórica é outro fator que causa conflito: alguns historiadores e arqueólogos questionam se ali foi o maior porto de chegada de escravos, enquanto outros questionam ainda se ali realmente foi um porte de chega- da de escravos. A secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira afirma que o título é “uma etapa essencial para o reconhecimento de uma memória que precisa ser revelada e, principalmente, reparada”. Além disso, a secretária desta- ca que “este momento marca o início de uma nova fase em Gráfico 2 – Atores na Patrimonialização do Cais do Valongo relação ao reconhecimento de uma história que, por mui- tas décadas, esteve nos subterrâneos do que oficialmente conhecemos do nosso país”. Nilcemar adiantou ainda, logo O Plano de gestão proposto pelo dossiê de candidatura após o reconhecimento do Cais do Valongo como Patrimônio é dividido em três níveis de ação: normativa, que diz respeito Mundial pela UNESCO, que a primeira medida a ser tomada à legislação e seus respectivos procedimentos administra- seria a instalação de um centro de referência no Cais do Va- tivos, necessários para garantir os atributos que constituem longo, para que os próprios brasileiros conheçam, seguindo o Valor Universal Excepcional do bem, com os instrumentos recomendações da UNESCO. O principal trabalho destacado é vigentes dando um bom suporte para tal; operacional, que o Museu da Escravidão e da Liberdade, nome ainda provisório, trata sobre o conjunto de ações voltadas para a conservação no armazém Docas Pedro II, tanto por sua proximidade como do sítio arqueológico e dos imóveis de valor histórico cultural por seu valor simbólico, construído por André Rebouças, existentes na zona de amortecimento, dentre elas a requalifi- engenheiro afrodescendente e sem mão de obra escrava, cação e promoção do sítio e de sua zona de amortecimento; e que hoje abriga a ONG Ação da Cidadania. De acordo com de monitoração, que incidem sobre as três dimensões do bem a secretária, “o que se preconiza é um museu vivo, de uma (arqueológica, urbanística e social, econômica e cultural) e relação experiencial e de conscientização do indivíduo.” sua zona de amortecimento. Dentre alguns responsáveis para O Decreto 42.929, de 10 de março de 2017, cria um grupo garantir a conservação e promoção do sítio, pode-se listar a de trabalho para a realização de oficinas participativas para Concessionária Porto Novo, a CDURP, o IRPH, a Light, a RioTur, consultoria pública sobre o nome do museu, além de fazer um a CEDAE, a Secretaria Municipal de Habitação, IPHAN, INE- mapeamento nos arquivos, coleções, programas, ações, legis- PAC,SEBRAE, além da sociedade civil e da própria Prefeitura lação e projetos existentes no âmbito dos órgãos da Prefeitura da cidade. da Cidade do Rio de Janeiro, os quais referem-se ao tema da Dessa forma, o Comitê Gestor, exigido pela UNESCO, escravidão e da herança africana. Em 12 de maio de 2017, deverá ser criado por decreto do Prefeito da cidade e será re- o decreto 43.128 cria o Museu da Escravidão e da Liberdade sponsável por coordenar a gestão do Sitio Arqueológico Cais com sede no Centro Cultural José Bonifácio, edifício tombado do Valongo, sua Zona de Amortecimento e o Circuito Histórico municipal, localizado na Rua Pedro Ernesto nº 80, Gamboa, já e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, por meio sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura, que pratica a de consultas e deliberações na proposição de políticas, pro- preservação e divulgação da história do povo negro no Brasil, gramas, projetos e ações educativas, culturais, turísticas,

278 através de estudos multidisciplinares e manifestações artísti- Para a construção do Museu, é considerada a Década cas, de acordo com o decreto. Para a Prefeitura do Rio de Ja- Internacional de Afrodescendentes pela ONU, intitulada en- neiro, o maior desafio da construção do Museu da Escravidão e tre 2015 a 2024. A ideia da construção do museu é a criação da Liberdade é como tratar o legado da escravidão sob a ótica de um museu dedicado à história e legado da escravidão, da verdade e da reconciliação e deverá seguir a lógica de con- para problematizá-la e ressignificá-la. Ao mesmo tempo, strução conjunta com a população. se história da escravidão remete à privação de direitos hu- O Decreto 42.929, de 10 de março de 2017, cria um grupo manos e cidadania, dá também testemunho da resiliência de trabalho para a realização de oficinas participativas para e indestrutibilidade do espírito humano e agência pessoal. consultoria pública sobre o nome do museu, além de fazer um A partir disso, o museu tentará trabalhar com uma temática mapeamento nos arquivos, coleções, programas, ações, legis- sob duas vertentes distintas: perspectiva passado e presente, lação e projetos existentes no âmbito dos órgãos da Prefeitura e celebração de suas influências na construção da cultura da Cidade do Rio de Janeiro, os quais referem-se ao tema da afro-brasileira pela perspectiva da “unidade na diversidade”. escravidão e da herança africana. Em 12 de maio de 2017, Além disso, a construção deve funcionar como um vetor de o decreto 43.128 cria o Museu da Escravidão e da Liberdade autoestima, desenvolvimento, oportunidades socio-educati- com sede no Centro Cultural José Bonifácio, edifício tombado vas e impactos duradouros, além de ser um local de recon- municipal, localizado na Rua Pedro Ernesto nº 80, Gamboa, já ciliação e cura pela memória, “verdades” diversas, e infinitas sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura, que pratica a potencialidades. A atuação do Museu se dá em diferentes preservação e divulgação da história do povo negro no Brasil, escalas, como apresentado na representação gráfica a seguir, através de estudos multidisciplinares e manifestações artísti- disponibilizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, com base na cas, de acordo com o decreto. Para a Prefeitura do Rio de Ja- importância e localização dos locais. neiro, o maior desafio da construção do Museu da Escravidão e da Liberdade é como tratar o legado da escravidão sob a ótica da verdade e da reconciliação e deverá seguir a lógica de con- strução conjunta com a população. Dentre a atuação governamental, no decreto que delib- era o GT do Museu da Escravidão e da Liberdade, é possível identificar 24 atores no total, sendo 21 na esfera municipal em 9 órgãos - o grupo mais representado é a Secretaria Mu- nicipal de Cultura, com 5 atores, enquanto engloba apenas 1 na esfera estadual, pela Secretaria Estadual de Cultura, e 2 na esfera federal, presentes com o IPHAN. Figura 2 – Escalas do Museu da Escravidão e da Liberdade. Disponibilizado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (2017)

O Núcleo Focal engloba locais como o Sítio Arqueológico Cais do Valongo, Docas Pedro II. C.C. José Bonifácio e LAAU. O Núcleo Local abriga locais tais quais Circuito Herança Africana. C.C. José Bonifácio, IPN, Jardins do Valongo, Casa da Tia Ciata, C.C. Pequena África, Largo do Depósito, Sede do Afoxé Filhos de Gandhi, Pedra do Sal O Local expandido abrange Morro da Providência, Morro da Conceição, Igreja Santa Rita, Praça da Harmonia, Cidade do Samba, enquanto Núcleos regionais compreendem Praça XV, Igreja N. Sra. Do Rosário e S. Benedi- Gráfico 3 – Atores no GT Museu da Escravidão e da Liberdade (2017)

279 to dos Homens Pretos, Igreja Sta. Efigênia e S. Elisbão e Praça no Armazém Docas Dom Pedro II, pautado no discurso de ter Onze. sido um prédio construído pelo primeiro engenheiro negro, No entanto, um novo projeto de Museu da Escravidão André Rebouças, prédio sem mão de obra escrava. No entan- Negra no Brasil é colocado em pauta. A lei 7.851/18, que to, o local hoje abriga o Galpão da Ação e Cidadania, fundação define diretrizes para construção do espaço, foi sancionada contra a Fome e a Miséria. Abaixo, segue um quadro de com- em 16 de janeiro de 2018, pelo governador do Rio de Janeiro, paração dos discursos da Prefeitura e da Ação da Cidadania. Luiz Fernando Pezão. Ficou estabelecido que o novo museu será centro de referência para estudos sobre a contribuição PREFEITURA AÇÃO DA CIDADANIA da população negra para o desenvolvimento do estado, com- Em 2015, a ONG realiza mudança na posto, a princípio, por peças de religião de matriz africana, O museu é um instrumento para estrutura e reformas no local agregar espaço de memória, através apreendidas em coleções tombadas pelo IPHAN, que estão Possui um projeto de instalação de de oficinas/consultas públicas um Memorial da Diáspora Africana sob a guarda da Polícia Civil e inacessíveis ao público, além Aborda como tratar o legado da no prédio desde 2015 de arquivos históricos e coleções, fotografias, documentos, escravidão sob a ótica da verdade e IPHAN não tem recursos sequer para da reconciliação pinturas e utensílios que possam reconstituir a história e os cuidados dos museus que estão sob Fortalecimento à inscrição do Cais do sua responsabilidade costumes dos descendentes de africanos. O objetivo é incenti- Valongo ao título de Patrimônio da Se entitula como um local de var e contextualizar estudos sobre o período, além de formar Humanidade, concedido pela Unesco entidade apartidária, de diálogo O galpão perdeu as características/ professores. De acordo com o texto ainda, um dos objetivos amplo e responsável por projetos de objetivos que tinha e passou a ser um extrema importância para o país, do museu também é auxiliar as escolas no ensino da história “centro de festas” e da cultura afro-brasileira, conforme determina a Lei Federal independente de governos. 9.394/96, divulgando a contribuição dos afrodescendentes Quadro 2 – Discursos da Prefeitura e da Ação da Cidadania acerca do para o desenvolvimento do estado e do Brasil. De acordo com Armazém Docas Dom Pedro II. Organizado pela autora (2017) Geraldo Pudim (MDB), deputado que conduziu a aprovação da lei, o Museu “será um local para as pessoas buscarem a ver- Apesar da Ação da Cidadania afirmar a existência de um dadeira história da escravidão.”127 projeto de instalação de um Memorial da Diáspora Africana, Duas opções de endereço para o Museu da Es- os dados dos eventos localizados no galpão apontam outro cravidão Negra no Brasil estão em discussão: na antiga sede rumo. do Museu da Imagem e do Som, no Centro, ou no Centro Cul- tural José Bonifácio, próximo ao Valongo, onde estão outros importantes sítios históricos, e onde já funciona provisoria- mente o Museu da Escravidão e da Liberdade (MEL), gerido pela prefeitura do Rio. Em março de 2017, o espaço recebeu a primeira peça, um cadeado de ferro utilizado na senzala de uma fazenda no Vale do Café. A Secretaria Municipal de Cultura informou que não foi consultada pelo governador do estado para abrir o museu. Segundo Pudim, “o que pretend- Gráfico 4 – Eventos no Galpão da Cidadania (jan/2016-jun/2017). Organizado pela autora emos, na verdade, é unir os dois projetos”, sobre os museus estadual e municipal. Dessa forma, podemos perceber uma Durante o período de janeiro de 2016 e junho de 2017, disputa pelo discurso que abordará a escravidão no Brasil en- período de patrimonialização do Cais do Valongo e com in- tre as esferas estadual e municipal. formações mais disponíveis, 83,4% dos eventos não estão O principal conflito, por sua vez, puramente ge- relacionados ao tema do museu. São eles: “África, Cinema – ográfico: a localização do Museu. A ideia da Prefeitura é alocar Um olhar contemporâneo”, entre 26/01/2016 e 30/01/2016, com exibição de oito filmes dos principais nomes do cinema 127 http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2018-01/inaugura- atual realizados na chamada “África Negra”, região ao sul do cao-de-museu-sobre-escravidao-no-rio-marcara-130-anos-da-abolicao 280 Saara, uma das mais carentes do mundo; O Porto Ainda DUNCAN, James. A Paisagem como sistema de criação samba, no dia 04/05/2016, com a apresentação de um cur- de signos. In: CORRÊA, Roberto Lobato. & ROSENDAHL, Zeny ta documentário que investiga as interseções do surgimento (orgs). Paisagens, textos e identidade. Rio de Janeiro: da região portuária com o nascimento do samba no Rio de EdUERJ, 2004. 180p. Janeiro; Roda de conversa: mulheres e ativismo, realizada no dia 15/09/2016, com assuntos sobre mulher, classe e raça; DUNCAN, James. The city as text: the politics of Cineclube em Ação, com o tema da Diáspora Africana, em landscape interpretation in the KandyanKingdon. 12/12/2016. Cambridge: Cambridge Press, 1990.

CONCLUSÃO FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: Microfísi- ca do Poder. Rio de Janeiro: EdiçõesGraal, 1979. Com base na discussão e nos dados apresenta- dos, pode-se concluir que o imaginário da “modernização” GONÇALVES, Fábio Christiano Cavalcanti. A paisagem remete também ao desejo de se “preservar” alguns lugares de como fenômeno e objeto de interesse público: com que direi- memória. A paisagem está sendo apropriada pelas políticas to? Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 34, ago. 2015, urbanas e de patrimônio: é utilizada na gestão das cidades e p. 99-116. Disponível em: . Acesso em: 15 de junho de Assim, o patrimônio e sua abordagem são objetos de tensão 2017. no espaço e os elementos da paisagem são construídos a partir de conflitos. No entanto, o que mais chama a atenção HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Trad. de é como a memória no espaço pode ser construída por objetos Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribu- de disputa. Dessa forma, a política está presente na relação nais, 1990. Tradução de: La mémoirecollective. entre memória e paisagem. NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos REFERÊNCIAS lugares. Projeto História, v. 10, n. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamen- ABREU, Maurício de Almeida. Sobre memória das ci- to de História da PUC-SP, dez 1993. Tradução Yara AunK- dades. Revista Território. Rio de Janeiro: v.3,n.4, jan/jun, houry. 1998. POLLAK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos BARBOSA, David Tavares. Cidadania Paisagística. In: V Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Seminário Espaço, Cultura e Política. Recife, 2017, 16p. RABHA, Nina Maria de Carvalho Elias. Centrodo Rio. BESSE, Jean Marc. O gosto do mundo: exercícios de Perdas e ganhos na história carioca. 2006. Tese (Douto- paisagem. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014. rado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geo- grafia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. São Pau- lo: Martins, 2007. REIS, Gabrielle Alves. Política da Paisagem na Zona Portuária carioca: reinvenções, olhares e interpre- CRUZ, A.G. Paisagem e Memória no Cais do Valon- tações na Praça Mauá. In: V Seminário Espaço, Cultura e go: Novas Narrativas na Região Portuária do Rio de Ja- Política. Recife, 2017, 12p. neiro. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015. 47 p.

281 RIBEIRO, Lisyanne Pereira. O processo de branqueamento landscape becomes a structuring element of the interven- do território da pequena áfrica: os movimentos de resistên- tions, but also of the discourses and practices of resistance, cia ao projeto Porto “Maravilha”. In: Anais do I Congresso revealing a complexity of agents and practices. Thus, the gen- Brasileiro de Geografia Política, Geopolítica e Gestão eral objective of this work is to analyze how the landscape has do Território, 2014. Rio de Janeiro. Porto Alegre: Editora been mobilized by different agents in the port area on practic- Letra1; Rio de Janeiro: REBRAGEO, 2014, p. 1270-1277. ISBN es and on the instruments and spaces in which these conflicts 978-85-63800-17-6 emerge and are put into question, constituting what we call landscape policy (RIBEIRO, 2013). Understanding landscape RIBEIRO, Rafael Winter. A política da paisagem em policy from the Representation/Government/Contestation cidades brasileiras: instituições, mobilizações e rep- triad developed by Vanolo and Rossi (2012), this research resentações a partir do Rio de Janeiro e Recife. In: I aims to understand how the landscape has been operation- Congresso Ibero Americano em Estudos de Paisagem, Sintra, alized in the set of actions of different groups and agents 2018. No prelo. operating in the region of Porto Maravilha. In order to reach this objective, the work seeks to map the agents, discourses, RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem, Patrimônio e Democ- practices, using bibliography and fieldwork in the port region racia: novos desafios para políticas públicas. In: CASTRO, Iná of Rio that involve the rhetoric of the landscape, as well as Elias de; RODRIGUES, Juliana Nunes, RIBEIRO, Rafael Winter to carry out a case study about the Cais do Valongo, given its (orgs.). Espaços da Democracia: para a agenda da geo- importance for the construction of the black memory in the grafia política contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand region, with moments such as the construction of the African Brasil, 2013. Heritage Circuit, the patrimonialization by UNESCO and the current construction of the Museum of Slavery and Freedom, RIBEIRO, Rafael Winter. Possibilidades e limites da cat- identifying agents, speeches and conflicts of these moments. egoria de paisagem cultural para a formação de políticas de patrimônio. In: Cureau, Sandra; et al.(orgs.). Olhar multidis- Keywords: Cais do Valongo; Landscape Policy; ciplinar sobre a efetividade da proteção do patrimônio Patrimony; Public politic; Political Geography cultural. Belo Horizonte: Forum, 2011, p. 254-267.

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THE MAPPING OF POLICY OF THE LANDSCAPE IN THE WONDERFUL PORT: THE PIER OF VALONGO

Through a speech of “requalification” and/or “revitaliza- tion”, the Carioca Port Area underwent major transformations in the management of the mayor Eduardo Paes, through the project “Porto Maravilha”. From a discourse that placed that area as “decadent”, “obsolete” and “empty”, the idea of inter​​ - vention was elaborated, which would constitute a transform- ative of the landscape, in material and symbolic aspects. The 282 O PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO FLUMINENSE: (IPHAN). The intention is to investigate how the application REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA DE of the public policies of preservation has been directed to the PRESERVAÇÃO Federal Railroad Corporation assets. Such policy derives from the legal attributions imputed to IPHAN due to Law n. 11,483, st Raquel Beatriz Silva dated on May 31 of 2007. The railway assets preservation Mestrado Profissional em Preservação do Patrimô- guidelines are of national scope, however the study has as its nio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e delimitation the Rio de Janeiro state. The main data sources Artístico Nacional were the administrative processes that ground the inscription [email protected] of goods in the Railways Cultural Heritage Listing. One of the documentary research central goals is the investigation RESUMO of how municipal governments operationalize the railway O presente artigo visa apresentar as discussões que goods destinations and what would be the uses proposed in constituem a pesquisa em andamento no programa interdis- the interventions. Such discussion is one of the central axes of ciplinar de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimô- the work since we shall inquire whether the preponderance of nio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico projects as cultural equipment acts in the sense of ennoble- Nacional – IPHAN. Pretende-se investigar como tem sido a ment of such spaces and of an incongruous way of the local aplicação das políticas públicas de preservação direcionadas context. ao espólio da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – RFFSA. Tal política decorre das atribuições legais imputa- Keywords: Railway Heritage, Railway Cultural Heritage Listing, uses, interventions, ennoble- das ao IPHAN em razão da Lei nº 11.483, de 31 de maio de ment. 2007. As diretrizes de preservação dos bens ferroviários são de abrangência nacional, entretanto o estudo tem como de- limitação o estado do Rio de Janeiro. As principais fontes de INTRODUÇÃO dados foram os processos administrativos que fundamentam O presente trabalho visa apresentar as discussões que a inscrição de bens na Lista de Patrimônio Cultural Ferroviário que constituem a pesquisa em andamento no âmbito do – LPCF. Um dos objetivos centrais da pesquisa documental é a programa interdisciplinar de Mestrado Profissional em investigação de como prefeituras municipais operacionalizam Preservação do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimô- as destinações dos bens ferroviários e quais seriam os usos nio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN128. A natureza propostos nas intervenções. Tal discussão é um dos eixos cen- profissional do programa alia o as práticas de preservação trais do trabalho uma vez que problematizaremos se o pre- realizadas nas unidades institucionais do IPHAN com o conhe- domínio de projetos enquanto equipamentos culturais atua cimento teórico-medologico à pesquisa, por isso a definição no sentido de enobrecer tais espaços e de forma desarticulada do tema de pesquisa tem como ponto de partida questões do contexto local observadas no cotidiano em cada unidade. As práticas supervionadas ocorreram no Escritório Médio Palavras-chave: Patrimônio ferroviário, Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, usos, Paraíba – ETMP localizado em Vassouras no estado do Rio de intervenções, enobrecimento Janeiro. De maneira que a definição da temática de pesquisa teve origem na demanda de trabalho acerca do patrimônio ferroviário pelo escritório técnico devido a sua localização em ABSTRACT um polo agrário do século XIX, cujo principal produto era o The present work focuses on showing the discussions that constitute the research in progress in the interdisciplin- 128 A publicização das discussões dessa pesquisa, ainda em curso, tem ary program of Professional Masters in Preservation of Cul- sido efetuadas em eventos acadêmicos de forma que esse trabalho é tural Heritage of the National Historic and Artistic Institute um desdobramento do artigo intitulado A Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário: possibilidades e entraves no contexto fluminense. 283 café e uma das prerrogativas para seu desenvolvimento foi a de enfatizar os remanescentes da Revolução Industrial, po- renovação dos meios de transporte. rém, rapidamente vieram as críticas devido à dificuldade de O objeto de estudo é a política de preservação direciona- precisar a passagem do artesanato para a indústria e pelas da ao espólio da Rede Federal Sociedade Anônima – RFFSA diferenças temporais da industrialização em outros países. desenvolvida em nível nacional pelo IPHAN. Com o propósi- No processo de construção da conceituação de arqueologia to de compreender a atuação institucional se fez necessário industrial os embates giraram em torno do uso da palavra analisar os processos administrativos que subsidiaram as “arqueologia” uma vez que estudiosos questionavam a per- inscrições na Lista de Patrimônio Cultural Ferroviário – LPCF tinência do termo em situações onde não eram necessários realizadas pela superintêndencia do estado do Rio de Janeiro. o emprego de técnicas arqueológicas, em especial as escava- O conjunto de processos avaliados abrangeu um total de 15 ções. Porém, a autora argumenta que se deve olhar o termo municípios, sendo que a organização dos dados foi realiza- de forma ampliada associando-o com o estudo de fases pas- da por meio de um cadastro geral dos processos e planilhas sadas das manifestações humanas. complementares que já indicavam questões para serem abor- O processo de amadurecimento nas definições relativas dadas. Por fim, foi realizado uma planilha síntese dos conflitos ao patrimônio industrial é perceptível através da análise dos observados nesse estudo da documentação. conceitos do termo presentes nos textos de referência inter- O trabalho desenvolve-se nas seguintes etapas: (i) apre- nacionais - Carta de Nizhny Tagil (2003) e Os Princípios de Du- sentação dos princípios teóricos do patrimônio industrial; (ii) blin (2011). Em relação à conceituação do que se compreende investigação de como tem sido efetuada a inscrição na Lista como patrimônio industrial percebe-se que na documentação de Patrimônio Mundial; (iii) contextualização da implantação mais recente foi incorporada a dimensão imaterial explicitada e desenvolvimento do transporte ferroviário no Brasil; (iv) pelo saber fazer técnico, a organização do trabalho, práticas análise da atuação institucional através do tombamento; sociais e culturais. Em relação a arqueologia industrial a Carta (vi) análise dos processos de valoração da LPCF e em segui- de Nizhny Tagil (2003) considera a mesma como um método da algumas reflexões possíveis de serem efetuadas até esse interdisciplinar. momento. As definições de patrimônio industrial e arqueologia in- dustrial expressas pela a Carta de Nizhny Tagil (2003): PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: PRINCÍPIOS TEÓRICOS O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem É preciso compreender os bens culturais ferroviários valor histórico, tecnológico, social, arquite- inseridos dentro do campo de estudo do patrimônio industrial. tônico ou científico. Estes vestígios englo- Beatriz Mugayar Kühl (2009) pontua o interesse pelo patrimô- bam edifícios e maquinaria, oficinas, fábri- nio industrial dentro dos processos de alargamento daquilo cas, minas e locais de processamento e de que é reconhecido como bem cultural. O tema passou a re- refinação, entrepostos e armazéns, centros percutir em um público amplo a partir dos anos 60, quando de produção, transmissão e utilização de importantes edifícios industriais como a Estação Euston em energia, meios de transporte e todas as suas Londres e Coal Exchange de Bunning foram demolidas, houve estruturas e infraestruturas, assim como os também casos em que as manifestações conseguiram impe- locais onde se desenvolveram atividades so- dir as demolições como a ponte de Telford localizada no País ciais relacionadas com a indústria, tais como de Gales. De forma que a Grã-Bretanha foi o primeiro país a habitações, locais de culto ou de educação. começar a refletir sobre o patrimônio da industrialização. Em relação ao estudo do legado industrial Kühl (2010) A arqueologia industrial é um método avalia que ocorreram grandes debates em torno dos conceitos interdisciplinar que estuda todos os “patrimônio industrial” e “arqueologia industrial”. A respeito do primeiro termo o questionamento recaiu sobre a delimi- vestígios, materiais e imateriais, os do- tação do recorte cronológico e inicialmente houve a intenção cumentos, os artefatos, a estratigrafia e 284 as estruturas, as implantações humanas técnico, práticas cotidianas sendo importante compreender e as paisagens naturais e urbanas, cria- que essa dimensão afeita ao campo da memória consideran- das para ou por processos industriais. do assim os ex-trabalhadores, filhos, netos e a comunidade A arqueologia industrial utiliza os mé- do entorno. A segunda esfera refere-se à necessidade de todos de investigação mais adequados preservação dos acervos documentais, maquinários, fer- para aumentar a compreensão do pas- ramentas, peças de reposição e acervos artísticos. Por fim a sado e do presente industrial. dimensão arquitetural do patrimônio industrial abrangendo bens edificados de variadas tipologias. E por fim segue a definição mais abrangente e amadure- Sobre à dimensão arquitetural os grandes desafios dizem cida de patrimônio industrial que aborda a dimensão imate- respeito a escala urbana, como pontua José Manuel Lopes rial conforme estabelecido na documentação Os Princípios de Cordeiro (2011) há situações de antigas instalações fabris Dublin (2011): ocuparem grandes extensões e estarem localizadas em áreas centrais, ou seja, essas regiões são atrativas para a especula- 1. Definição: O patrimônio industrial abran- ção imobiliária responsável pela demolição de muitos exem- ge os sítios, estruturas, complexos, territó- plares. Mas há também casos de abandono de regiões indus- rios e paisagens, assim como os equipamen- triais que constituem problemas urbanos. O autor avalia que tos, os objetos ou os documentos relaciona- nos casos em que se constate o valor patrimonial deveria ser dos, que testemunhem os antigos ou atuais assegurada a preservação do bem e áreas adjacentes, sendo processos de produção industrial, a extração que os programas de requalificação deveriam ser fundamen- e a transformação de matérias-primas, e as tados em avaliações profundas sobre o potencial econômico e infraestruturas energéticas ou de transpor- te que lhes estão associadas. O patrimônio cultural do patrimônio de forma a conectar a preservação com industrial revela uma conexão profunda as políticas urbanísticas. entre o meio cultural e natural envolvente, Em relação à chancela de áreas industriais como pat- enquanto que os processos industriais - quer rimônio cultural e as intervenções efetuadas nesses espaços sejam antigos ou modernos - dependem de de alta carga simbólica em grande parte das vezes são cap- recursos naturais, de energia e de redes de turados pelas estratégias de promoção da imagem urbana transporte, para poderem produzir e distri- através de projetos urbanos fundamentados na “tríade cultu- buir os produtos a amplos mercados. Este ra-lazer-turismo” (JACQUES, 2003). Ambos processos podem património compreende ativos fixos e va- provocar desequilíbrios sociais através da especulação, ex- riáveis, para além de dimensões imateriais, pulsão da população local para áreas carentes de infraestru- tais como o saber-fazer técnico, a organiza- tura urbana e de equipamentos públicos (transporte, escolas, ção do trabalho e dos trabalhadores, ou um atendimento médico, oferta de trabalho). complexo legado de práticas sociais e cultu- rais resultantes da influência da indústria na vida das comunidades, as quais provocaram A FERROVIA COMO PATRIMÔNIO MUNDIAL decisivas mudanças organizacionais em so- O recente trabalho de Maria Emília Lopes Freire129 ciedades inteiras e no mundo em geral. (2017) define o patrimônio ferroviário como complexo dev- ido a sua própria natureza enquanto rede articuladora de Ao abordar o patrimônio industrial como tema de pesquisa Cristina Meneguello (2011, p. 1819) considera que 129 Esse trabalho possui um ponto de vista que o difere de grande o campo abrange três dimensões “a memória do trabalho, parte das demais produções que abordam os bens ferroviários e seu o estabelecimento e proteção de acervos e a presença das processo de patrimonialização, uma vez que a autora atuou no campo edificações industriais na trama urbana”. A preservação da da preservação da própria RFFSA (1985 a 2006) e no IPHAN desde 2006. Tal situação permite um alto conhecimento técnico em relação às memória do trabalho incluindo o aspecto imaterial do saber especificidades técnicas da operação ferroviária. 285 diversas unidades industriais. A autora entende o patrimônio iros. No Quadro 1 foram sintetizados os principais dados131 ferroviário como processos que abrangem fluxos de circulação desses processos de reconhecimento de valor cultural e os (mercadorias, informações e pessoas) os quais ocorrem por critérios da inscrição132. meios materiais (linhas ferréas, equipamentos, estruturas e Soto (2012) avalia que as inscrições tem em comum o edificações) de forma interligada. Através da Figura 1, a au- fato de serem linhas ferroviárias de montanha e portanto im- tora demonstra as intereções entre os as diversas unidades ersas em paisagens espetaculares. Nesse sentido para o autor industriais e as ferrovias de forma a evidenciar o maior grau sobretudo no caso de Semmering, o foco é a arquitetura. É de complexidade tanto funcional quanto estrutural da rede perceptível também a atribuição dos critérios (ii) e (iv) como ferroviária. norteadores das inscrições. A inscrição na LPM deve considerar o reconhecimento do Valor Universal Excepcional133 e o bem deve cumprir as condições de integridade e/ou autencidade sendo previsto um sistema de proteção e gestão. Embora o foco desse trabalho

131 A Lista de Patrimônio Cultural Mundial está disponível no site institucional da UNESCO. Disponível em:< http://whc.unesco.org/en/ list/>. Acesso em 07 de maio de 2018. 132 De acordo com o Manual de Referência do patrimônio Mundial (2013) são dez os critérios para inscrição como Patrimônio Mundial: (i) Representar uma obra prima do gênio criativo humano. (ii) Exibir inter- câmbio de valores humanos que teve impacto sobre o desenvolvimento da arquitetura, ou da tecnologia, das artes monumentais, do urbanismo Figura 1 – Esquema demonstra a intereção entre rede ferroviária, ou do paisagismo.(iii) Apresentar um testemunho único ou pelo menos unidades industriais e cidades. Fonte: Freire (2017, p. 41). expecional de uma tradição cultural ou de uma civilização viva desa- parecida.(iv) Ser exemplar excepcional de um tipo de edifício, conjunto O raciocínio construído por Freire (2017) avalia que o arquitetônico ou tecnológico ou paisagem que ilustre (um) estágio (s) significativo (s) da história humana.(v) Ser exemplar excepcional de um patrimônio ferroviário detém uma natureza própria advin- assentamento humano tradicional, udo da terra ou do mar que seja rep- da do tracaçado linear, quantidade e diversidade de bens resentativo de uma cultura (ou culturas), ou até mesmo uma interação (interdependes, conetados e adpatáveis), multiciplidade de humana com o meio ambiente, especialmente quando ele se tornou vul- nerável sob o impacto de mudanças irreversíveis. (vi) Estar diretamente funções devido a operação de trens. O último aspecto tratado ou materialmente associadao a acontecimentos ou tradições vivas, é a lógica funcional existente no comando e controle da rede ideias ou crenças, obras artísticas e literárias de segnificação universal ferroviária. Tais características evidenciam o caráter complexo excepcional. (vii) Representar fenômenos naturais notáveis ou áreas de e sistêmico desse patrimônio e avaliação da autora é que o excepcional beleza natural e importância estética (viii) Ser um exemplo excepcional e identificar de estágios na história da Terra, incluindo os campo do patrimônio tem que considerar tais peculiari- registros da vida, de processos geológicos significatiso em curso no dades130. desenvolvimento das forams terrestres, ou de elementos geomórficos ou Diante de um objeto tão complexo nos parece relevante fisiográficos significativos. (ix) Ser um exemplo excepcional de processos compreender como tem sido o reconhecimento das ferrovias ecológicos e biológicos significativos em curso na evolução e desenvolvi- mento de ecossistemas e comunidades de plantas e animais terrestes, no âmbito mundial. As análises das inscrições de ferrovias na de água doce, costeiros e marinhos (x) Conter habitatats naturais mais Lista de Patrimônio Mundial-LPM de José Luis Lalana Soto relevantes e significativos para a conservação in sito da diversidade bi- (2012) trazem questões pertinentes. As inscrições dessa tipo- ológica, incluindo os que contém espécies ameaçadas, de Valor Universal logia são quatro, sendo três linhas e uma estação de passage- Excepcional do ponto de vista da ciência e da conservação. 133 A tese de doutorado desenvolvida no âmbito do programa de Pós- -graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) de Ana Paula M.de Bitencourt da C. Lins (2015) 130 Uma das principais contribuições deste trabalho foi a construção de analisa a questão do valor universal excepcional. O trabalho intitula-se uma metodologia de seleção dos bens de interesse cultural específica As Ferrovias como Patrimônio Cultural Mundial: Os Estados-partes, a para o patrimônio ferroviário. UNESCO e o Valor Universal Excepcional. 286 Quadro 1 – Bens ferroviários reconhecidos como Patrimônio Mundial.

Fonte: Raquel Beatriz (2017) sobre dados da Lista de Patrimônio Mundial. não seja a discussão profunda a respeito desses conceitos as Respecto a la gestión, el patrimonio ferro- considerações de Soto (2012) demonstram os limites dos con- viario (al menos el que sigue en servicio) se ceitos de integridade e autenticidade quando aplicados sobre encontraría ante el viejo problema, plantea- as ferrovias, principalmente as operacionais que passam por do ya por Gustavo Giovannoni para el patri- constantes manutenções. O autor utiliza como exemplo o monio urbano, de los “límites aceptables del caso de Semmering cuja avaliação sobre a autenticidade não cambio”. En el fondo se trata de una cuestión foi em relação aos bens materiais, mas, sim o impacto da linha difícil, que está lejos de ser resuelta: intentar sobre a paisagem sendo a integração entre a arquitetura e a desentrañar cuál es el valor que deseamos proteger (el VUE en el caso del Patrimonio paisagem alpina elencada como fator de integridade. Mundial), que generalmente será un valor Ao avaliar as inscrições de linhas ferroviárias na LPCM complejo e intangible, comprender median- percebe-se que todas se mantem em uso. Soto(2012) ressalta te qué atributos materiales se manifiesta, que a avaliação considerou a continuidade de uso, integração que constituyen los elementos sobre los que ao entorno (territorial, paisagística e cultural) como critérios podemos formular criterios de intervención, favoráveis a inscrição. A prerrogativa da continuidade de uso de forma que puedan adaptarse a las nuevas permite a seguinte reflexão do autor: necesidades sin comprometer el valor esen- cia. (SOTO, 2012, p. 9)

287 Essa reflexão se mostra pertinente sobretudo ao pensar- em 1830 com uma locomotiva a vapor ligando as cidades de mos as políticas de preservação direcinadas ao patrimônio fer- Manchester a Liverpool. roviário no Brasil, uma vez que há muitos trechos e bens não A introdução do transporte ferroviário no Brasil teve operacionais os quais sejam reconhecidos como portadores como marco inicial o Decreto nº 987, de 12 de junho de 1852 de valores históricos, artisticos e culturais deverão ter novos que concedeu a Irineu Evangelista o privilégio de explorar usos compatíveis com os valores que se pretende preservar. uma linha de navegação pela Baia de Guanabara partindo do Contudo é necessário reconhecer que a manutenção da ativ- Porto da Prainha (atual Praça Mauá) até um ponto na Praia de idade de transporte sobretudo de passageiros representa o Mauá (atual Município de Magé). A partir desse ponto hou- cenário ideal para a comunicação do cotidiano da operação ve a permissão para a construção de uma linha férrea até a ferroviária. localidade de Fragoso próximo à Raiz da Serra de Petrópolis, Em relação a abordagem do legado ferroviário na escala porém o termo estabeleceu que essa autorização se tornaria mundial, Soto (2012) assim como Freire (2017) avalia que sem efeito se não fosse concluída em dois anos e por isso em a ferrovia na ótica patrimonial é um tema complexo pela 1854 foram inaugurados os trechos iniciais dessa via férrea. relação com outros patrimônios (industrial, natural e urbano). Finger (2013) avalia que a introdução da ferrovia no As especificidades funcionais e espaciais também devem ser Brasil teve dentre suas motivações iniciais a necessidade de compreendidas pelos pesquisadores e no caso do patrimônio transporte agrícola e exportação de matéria prima para a industrial esses atributos são a expressão máxima dos mes- indústria europeia. Posteriormente, passa-se a compreender mos uma vez que possuem uma lógica peculiar. Por fim, o a ferrovia como um elemento que poderia interligar o territó- autor coloca a necessidade de superar a visão monumental rio brasileiro visando à consolidação da ocupação no interior, clássica a fim de considerar as diversas tipos de elementos contudo essa possibilidade sempre esbarrou nos interesses integrantes do sistema ferroviário e orienta o uso de instru- das elites locais que foram na maioria das vezes preponde- mentos patrimoniais que salientem a relação entre esses bens rantes. A autora ainda destaca a especificidade do panorama e aspectos imateriais uma vez que o autor (2012, p. 14) define brasileiro, ao contrário da Europa cuja vida urbana vinha a ferrovia como “sistema socio-técnico”. sendo construída desde a Idade Média, no Brasil os núcleos populacionais eram povoações com número reduzido de ca- CONTEXTUALIZAÇÃO DO TRANSPORTE FER- sas e estabelecimentos comerciais cujos hábitos e formas de ROVIÁRIO NO BRASIL trabalho eram vinculados à produção agrícola. Finger (2013) demonstrou que em relação aos instru- De forma abreviada demonstraremos a introdução da mentos de incentivo utilizados ao longo do tempo, a primeira ferrovia no Brasil evidenciando os interesses e mudanças de modificação ocorreu através do Decreto nº 2.450 publicado percepção ao longo do tempo sobre esse meio de transporte. em 24 de setembro de 1873, que instituiu a “subvenção qui- Diante dessa itenção através do estudo das regulamentações lométrica” como alternativa ao antigo sistema de garantia de do transporte ferroviário foi possível compreender as per- juros, de forma que o governo passou a pagar uma quanti- cepções sobre tal transporte do ponto de vista das políticas dade fixa sobre cada quilômetro construído. Outra questão públicas ao longo do tempo. que desde o início esteve presente nas regulamentações das O transporte ferroviário tem sua origem imbricada com concessões ferroviárias foi a definição de critérios para indicar o processo da Revolução Industrial ocorrido inicialmente na quando a competência era do Governo Imperial ou das Pro- Grã-Bretanha no século XIX. No que se refere à técnica Joseph víncias e até mesmo cumulativa, assunto definido através do Rykwert (2004, p. 44) informa que o primeiro financiamento o Decreto nº 5.561 em 28 de fevereiro de 1874. As províncias para a construção de uma ferrovia funicular ocorreu por vol- regulamentavam as concessões dentro de seus limites, po- ta de 1750, pelo empresário e construtor Ralph Allen com o rém, no caso de ligação entre grandes centros a portos a com- objetivo de transportar pedras até a cidade inglesa Bath. A petência era cumulativa entre ambas instâncias e o tempo inauguração de um serviço de transporte regular ocorreu dessas permissões era de 90 anos.Tais condicionantes de um

288 longo período para a exploração e incentivo por quilômetro mínimo pelos governos estaduais, conforme estabelecido construído de fato tornaram a ferrovia um negócio atrativo. pelo Convênio de Taubaté (1906) (FINGER, 2013). Porém, como a referida autora analisa tais incentivos também No governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) a tôni- trouxeram problemas como a má execução de obras e traça- ca definitivamente passou a ser o investimento no setor auto- dos mais longos que o necessário para obter maior lucro. mobilístico. Nesse período também houve a produção de dois O terceiro período (1888-1919) foi marcado pela abo- Planos Viários Nacionais provisórios, um rodoviário e outro lição da escravidão e início do Governo Republicano. Nesse ferroviário com o objetivo de direcionar as ações constantes momento a ferrovia passa a ser percebida como um potencial em seu Plano de Metas. Em relação à organização da malha instrumento de articulação territorial e por isso eram cons- ferroviária, o marco do período foi a criação da Rede Ferroviá- tantes as críticas em relação a distribuição das malhas cuja ria Federal – RFFSA através da Lei nº 3.115, de 16 de março de implantação ocorria de forma não planejada. Para corrigir as 1957, como uma sociedade de economia mista. distorções, o Decreto nº 159 de 15 de janeiro de 1890, consti- De acordo com Raimunda Alves de Souza e Haroldo Fia- tuiu uma Comissão de Viação Geral para elaborar o Plano Na- lho Prates (1997) nos anos 90, em meio a uma gestão neo- cional de Viação para o país, porém a mesma foi extinta antes liberal, o presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) da conclusão de seus trabalhos e um fruto desses trabalhos foi inclui a RFFSA no Programa Nacional de Desestatização con- o Relatório que reiteirou a necessidade de planejamento para forme o Decreto nº 473, de 10 de março de 1992. A primeira a implantação da malha ferroviária (FINGER, 2013). etapa desse processo foi a licitação do transporte ferroviário As primeiras décadas do século XX são caracterizadas de carga por um prazo de 30 anos as etapas subsequentes pela emergência dos Estados Unidos como potência hege- envolveram a reorganização das malhas objetos da desesta- mônica o que resultou nos primeiros investimentos ferroviá- tização e procedimentos administrativos. rios com capital americano, a exemplo da companhia Brazil O último marco normativo dessa operação foi o Decreto Railway, que atuou em diversas regiões do Brasil e destacou- nº 3.277, de 07 de dezembro de 1999, que declarou o fim da -se no Norte no contexto econômico da exploração da borra- etapa de dissolução e liquidação da empresa além de convo- cha com a ferrovia Madeira-Mamoré (FINGER, 2013). car a assembleia de acionistas. Lucina Ferreira Matos (2015) Outras transformações do período são demonstradas por considera que as ações da liquidação duraram até 2007 com Jorge Luís Alves Natal (1991, p. 85) tais como: superação da a Medida Provisória nº 353, de 22 de janeiro de 2007, na qual Inglaterra em vários campos (comercial, industrial, tecnoló- foi decretada a extinção da RFFSA seguida pela fase de inven- gico e outros) pelos “países de industrialização retardatárias”; tariança com o objetivo de levantar os bens, direitos e deveres mudanças nas relações capitalistas que passam a ser expres- da empresa extinta e transferi-los para a União. No mesmo sas pelo capital financeiro (fusão entre os monopólios indus- ano a MP nº 353 foi convertida na Lei nº 11.483 de 31 de maio triais e bancários); no campo tecnológico a matriz deixa de ser de 2007, que dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário mecânica para ter suporte da química e eletricidade. No setor e através do artigo 9º atribui ao IPHAN a função de receber dos transportes, há o esvaziamento do modal ferroviário e a e administrar os bens móveis e imóveis de valor histórico e emergência do setor automobilístico. cultural. O quarto período (1919-1957) é caracterizado pelo “su- cateamento e estatização”. Esse momento tinha origem na O IPHAN E A PROTEÇÃO DE BENS FERROVIÁRIOS crise europeia pós-guerra, quando as importações de pro- ATRAVÉS DO TOMBAMENTO dutos primários brasileiros estavam em queda influenciando também a lucratividade do setor ferroviário. A autora argu- Até 2007 o principal instrumento de preservação utiliza- menta que apenas a Região Sudeste principalmente a malha do pela instituição em relação ao patrimônio ferroviário era o paulista se manteve fora deste processo de endividamento tombamento regulamentado pelo Decreto Lei nº 25/37. Por devido ao foco do mercador consumidor ser os Estados Unidos meio do levantamento dos números de processos de tom- e pelo sistema de compra de excedentes de café a um preço bamento de bens ferroviários, tendo como fonte a Lista dos

289 Bens Tombados e Processos em Andamento (1938 - 2018)134 bida, enquanto heranças vinculadas ao pro- disponível no site institucional, foi possível detectar um total cesso de industrialização. Aspectos vincula- de 50 solicitações com a seguinte classificação e quantifica- dos à sua expressão estética, à sua monu- ção: Processos em instrução - 20, Bens indeferidos (não foram mentalidade e à sua importância histórica tombados) - 15, Tombamento provisório - 01, Bens tombados no desenvolvimento nacional foram os que rerratificados - 02, Processos com pendências - 02 e os Bens justificaram os tombamentos. (LOPES, 2017, tombados - 11. p. 95, grifo nosso) Freire (2017) analisou as demandas de preservação de bens ferroviários através do tombamento indicando que a Freire (2017) avalia que os critérios de qualidade ar- maioria das solicitações foram provocadas pelo programa quitetônica, expressão estilística, singularidade e excepcion- da PRESERFE, por políticos, pelo próprio IPHAN e raramente alidade não deveriam subsidiar a seleção e preservação dos sociedade civil organizada. A autora se deteve nos seguintes bens ferroviários. É importante uma reavaliação da prática processos de tombamento: trecho ferroviário Mauá-Fragoso de preservação do patrimônio ferroviário de forma a incluir no Rio de Janeiro (0506-T-54)135, Estação Lassance em Minas os aspectos funcionais, tecnológicos e modos de produção. Gerais (1143-T-85), trecho ferroviário da Estrada Oeste de Mi- Outra questão observada pela autora em relação ao conjunto nas entre o Complexo Ferroviário de São João Del Rei e o Com- de tombamentos é a ausência da preservação de bens móveis plexo Ferroviário de Tiradentes (1185-T-85) e por fim o Pátio e integrados enfatizando que há nessa categoria importantes Ferroviário da E.F. Madeira-Mamoré (1220-T-87). Por meio informações que poderiam ampliar o conhecimento das desse estudo evidencia algumas problemáticas em relação a funções exercidas anteriormente. preservação do patrimônio ferroviário: PESQUISA DOCUMENTAL: ENTRE E ATRAVÉS DOS De imediato observa-se que a valorização PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DE VALORAÇÃO DO recai sobre a materialidade dos bens, vistos PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO NO IPHAN/ RJ isoladamente do seu contexto socioespacial, mesmo quando tratados como “conjunto Conforme já exposto a partir da conversão da MP nº arquitetônico” ou “conjunto urbano”. Nesses 353/2007 na lei nº 11.483/2007, a atuação do IPHAN na ges- tombamentos raramente são consideradas tão desse espólio passou a ser regulamentada pelo seguinte as relações, assim como os segmentos li- artigo: nha por onde os fluxos circulam. Realçá-los como atributos físicos, além de resgatar a Art. 9° Caberá ao Instituto do Patrimônio leitura sistêmica da rede ferroviária e do Histórico e Artístico Nacional - IPHAN rece- seu papel estruturador dos espaços urbanos ber e administrar os bens móveis e imóveis e territoriais, os afirmariam como um bem de valor artístico, histórico e cultural, oriun- cultural resultante do processo de industria- dos da extinta RFFSA, bem como zelar pela lização. sua guarda e manutenção.

§ 1°Caso o bem seja classificado como ope- Outra questão evidenciada diz respeito aos racional, o IPHAN deverá garantir seu com- critérios utilizados nos tombamentos desses partilhamento para uso ferroviário. bens, nos quais a ausência da observância dos aspectos funcional e técnico foi perce- § 2° A preservação e a difusão da Memória 134 Disponível em:< http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126>. Ferroviária constituída pelo patrimônio ar- Acesso em 27 de março de 2018. tístico, cultural e histórico do setor ferrovi- 135 Entre parantêses a indicação do número do processo de tom- ário serão promovidas mediante: bameno estruturado da seguinte forma: número do processo – T – ano de abertura. 290 I - construção, formação, organização, por ofício. Em 2008, foi criada a Coordenação Técnica do Pat- manutenção, ampliação E equipamento rimônio Ferroviário – CTPF integrada ao Departamento de de museus, bibliotecas, arquivos e outras Patrimônio Material / DEPAM-IPHAN. Dois anos depois, foi in- organizações culturais, bem como de suas stituido por meio da Portaria nº 113, de 05 de abril de 2010, o coleções e acervos; Grupo de Trabalho/GT com previsão de duração de 18 meses e participação de integrantes dos estados com bens ferroviários II - conservação e restauração de prédios, da RFFSA. O objetivo era definir os procedimentos que seriam monumentos, logradouros, sítios e demais implementados sobre o patrimônio ferroviário. Um dos prin- espaços oriundos da extinta RFFSA. cipais produtos desse GT foi a elaboração de uma minuta de Portaria direcionada para os bens ferroviários integrantes do § 3° As atividades previstas no § 2o deste espólio da RFFSA. artigo serão financiadas, dentre outras O marco regulatório que consolidou os procedimentos formas, por meio de recursos captados e canalizados pelo Programa Nacional de para a preservação do patrimônio ferroviário foi a Portaria nº Apoio à Cultura - PRONAC, instituído pela 407, de 21 de dezembro de 2010, que estabelece os parâmet- ros de valoração dos bens ferroviários e procedimentos ad- Lei. 8.313, de 23 de dezembro de 1991. ministrativos para a inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário - LPCF. O processo de inclusão na LPCF passou a O espólio da RFFSA acarretou uma grande carga de tra- ter como item obrigatório o parecer técnico justificando a balho para o IPHAN. O artigo elaborado por José Cavalcanti , decisão de incluir ou não os bens na LPCF. A Lista de Patrimô- Fernanda Carneiro e Ana Clara Giannecchini (2012) demon- nio Cultural Ferroviário – LPCF foi posteriormente tornada strou o quantitativo desse conjunto de bens: pública pela Portaria nº 441, de 13 de dezembro de 2011. A Os dados preliminares da Inventariança da regulamentação dos procedimentos realizados em conjunto extinta RFFSA apresentados ao IPHAN em com a Secretaria de Patrimônio da União – SPU ocorreu pela 2007 afirmavam que esse universo é com- Portaria Interinstitucional nº 1 de setembro de 2011. posto por 52.000 bens imóveis, 15.000 bens Ao estabelecer um estudo comparativo entre a LPCF e classificados pela RFFSA como históricos, o tombamento Cavalcanti; Carneiro e Giannecchini (2012) 31.400 metros lineares de acervo documen- enumeram os seguintes pontos de convergência: a inscrição tal, 118.000 desenhos técnicos, 74.000 itens é realizada por meio de um documento legal que evidencie bibliográficos, e um incalculável número os bens com reconhecido valor cultural na Lista de Patrimô- de bens móveis espalhados nos escritórios nio Cultural ou Livros do Tombo; ambos os processos são regionais da RFFSA, em almoxarifados, de- fundamentados em documentações técnicas que postulam a pósitos e pátios. Além destes, também são importância e relevância da preservação dos bens, avaliação objeto de análise e avaliação por parte do IPHAN os bens concedidos durante o pro- da documentação pela Comissão ou no caso do tombamento grama de desestatização da RFFSA. (CAVAL- o Conselho Consultivo. Os pontos divergentes são: o objeto de CANTI; CARNEIRO; GIANNECCHINI, 2012, p.4) aplicação da Portaria é restrito aos bens do espólio da RFFSA; no caso dos bens móveis valorados é realizada a transferên- Frente a essa nova demanda foi necessário a estruturação cia da propriedade ao IPHAN. Em relação ao controle de in- dos procedimentos administrativos para prosseguir com os tervenções e aplicação de penalidades o tombamento o DL trabalhos de inventário, seleção, reconhecimento e gestão 25/37 já estabelece como prerrogativa que os bens tombados desses bens ferroviários. O período inicial caracterizou-se pela não podem ser demolidos ou mutilados sem anuência do IP- busca de critérios de seleção dos bens e enquanto a institu- HAN, porém, em relação a preservação dos bens inscritos na ição se organizava para padronizar as ações de preservação LPCF essa questão não é abordada e tais garantias ocorrem as primeiras valorações do patrimônio ferroviário ocorreram somente com os Termos de Compromisso de utilização dos

291 bens, assinados em parceria com governos locais ou asso- Uma observação que se faz pertinente refere-se à apresen- ciações civis. tação dos dados com denominações genéricas como por Na visão de Matos (2015) a Lista possibilita uma maior exemplo: edificação sem identificação ou terreno sem identi- agilidade no processo de valoração, mas é também mais ficação, não permitindo assim a localização dos bens. Durante frágil. A autora constrói essa argumentação a partir de duas as análises dos processos foi perceptível que tais situações são situações: a primeira é que o cancelamento de tombamento influenciadas pelas informações cadastrais do bem produzi- está previsto no Decreto nº 3.866, de 29 de novembro de das pela RFFSA. Nesse sentido é importante prever a disponi- 1941, isto é, atendendo a motivos de interesse público, o Pres- bilização das coordenadas geográficas dos bens também na idente da República pode cancelar o tombamento, enquanto Lista para facilitar a sua localização por parte dos interessados o cancelamento da inscrição de bens ferroviários na LPCF é em geral. realizado pelo presidente do IPHAN. Dentre as principais documentações que compõem os Uma das características dos trâmites processuais rel- Processos Administrativos de Valoração – PAV destacamos ativos à preservação do patrimônio cultural ferroviário do os Pareceres Técnicos- PTs que padronizaram o processo de espólio da RFFSA é a grande diversidade de instituições públi- atribuição de valor cultural dos bens ferroviários integrantes cas e privadas. Esse dado pode ser olhado como uma grande do espólio da RFFSA, tanto nos casos em que há esse reco- potencialidade de aprendizado para a Instituição, advindo das nhecimento quanto para as situações de indeferimento dos parcerias decorrentes da necessidade de diálogo em todas as pedidos. O exame dessa documentação permite observar al- etapas dos processos. A experiência adquirida nessas pactu- gumas indicações de como tem sido trabalhada essa questão ações, podem ser muito úteis para o campo da preservação. no âmbito institucional. Através do fluxograma apresentado no Figura 2, demonstra Foi possível identificar que as descrições arquitetônicas as diversos agentes e ações direcionadas ao espólio da RFFSA. (estilo, tipologia e técnicas construtivas) são ainda centrais Com o objetivo de compreender como o IPHAN-RJ tem no processo de atribuição de valor. Percebemos também a efetuado a patrimonialização desses bens, utilizamos como recorrência de avaliações que qualificam se o bem ou técni- fonte de pesquisa os Processos Administrativos de Valoração - cas construtivas são ou não excepcionais, caso exemplificado PAV dos bens inscritos na LPCF no estado do Rio de Janeiro. As pelo parecer da estação ferroviária Dores de Macabu (PT nº análises desses processos procuraram evidenciar os limites e 27/2011) localizada em São Fidélis. Em relação às instalações as potencialidades das políticas de preservação do espólio da utilitárias ligadas ao cotidiano do trabalho algumas análises RFFSA. Outra questão que também norteou essa investigação de pareceres pontuaram a ausência da excepcionalidade e foi a necessidade de avaliar como as prefeituras articulavam o de atributos estéticos como no caso da avaliação da garagem reuso desses bens. que integra o Conjunto Ferroviário de Santo Antônio de Pádua Diante de um conjunto de processos referentes aos (PT nº 8/2009) situado na cidade de mesmo nome, indicando bens inscritos na LPCF e tendo em vista o tempo disponível uma incompreensão dos aspectos funcionais e sociais ligados para a pesquisa documental foram excluídos os casos com a memória do trabalho que tais imóveis possuem. as seguintes características: alta complexidade, informações Em relação aos bens ferroviários operacionais, ou seja, equivocadas entre a LPCF e o PAV assim como atribuição mu- aqueles ainda ativos no transporte de carga, como no caso do seal consolidada. Os integrantes desse conjunto são: Bens fer- Conjunto Ferroviário de Barra do Piraí cujo Parecer Técnico nº roviários localizados em Magé, Museu do Trem, Estação Fer- 007/2010 avalia como detentor de valor cultural o Conjunto roviária Barão de Mauá (Leopoldina), Estações de Mussurepe de Manutenção, destacando a Rotunda de Locomotivas, cons- e Santa Cruz localizadas Campos dos Goytacazes e Estação truída em 1891 e ainda em funcionamento. Contudo na LPCF Ferroviária de Ipiíba localizada em São Gonçalo. Os processos as inscrições abrangeram apenas os bens (estação e imóvel de valoração analisados podem ser verificados no Quadro 3. vizinho) não operacionais. Nessa situação o questionamento O ponto de partida das análises foi a própria LPCF que pode ser realizado é em que medida a política de pre- compreendendo-a como um documento de consulta pública. servação direcionada ao espólio da RFFSA perde ao desconsi-

292 derar os valores culturais que podem ser atribuídos aos bens Através dos dados verificamos que na maioria dos casos operacionais? as proposições de uso são para a constitução de equipamen- Devido o foco da pesquisa em andamento ser a discussão tos culturais. sobre o uso, um dos objetivos centrais era averiguar como tem A partir desses dados é lícito questionar a efetividade sido a apropriação desses bens pelos municípios e moradores de propostas não subsidiadas por diágnosticos tampouco dessas localidades. Inicialmente destacamos que as munici- processos participativos. As proposições de museus, centros palidades manifestam o interesse pelo bem através de um de memória dentre outros não estariam privilegiando os ofício136 com os itens gerais solicitados pela instituição que possíveis turistas em detrimento do habitante local? Nesse são: histórico do bem, contextualização local, justificativa, sentido Paulo Peixoto (2003) traz algumas considerações proposta de uso, projeto e indicação de viabilidade financeira. importantes sobre as intervenções no patrimônio edificado: De forma que fica explicita a relação entre o reconhecimento Nesse sentido, torna-se pertinente pergun- do valor cultural e a potencialidade de reuso do bem, situação tar até que ponto um espaço preferencial- abordada no trabalho de Lucas Neves Prochnow (2014, p. 39) mente voltado ao turismo e ao consumo, que questiona se o IPHAN “ órgão responsável pela valoração eventualmente repulsivo às actividades e pela seleção do que seja representativo da e para a cultura quotidianas e aos cidadãos locais, permite brasileira, transformou-se em uma agência de uso e gestão sustentar que estamos perante um espaço para bens ferroviários?” público? Além disso, do ponto de vista da É possível também problematizar a centralização do sustentabilidade financeira, o turismo, devi- ofício como único instrumento que apresenta o uso proposto, do à sua sazonalidade e à sua enorme sensi- uma vez que tais decisões deveriam ser efetuadas de forma bilidade a efeitos de conjuntura, está longe participativa com os moradores da região. De maneira que de constituir uma opção capaz de suscitar apenas esse documento nos parece ser insuficiente como um consenso amplo. (PEIXOTO, 2013, p. 22) instrumento de articulação da reinserção destes bens nas di- nâmicas atuais. Esse quadro é ainda agravado pela ausência POSSÍVEIS REFLEXÕES de diagnósticos para compreender as dinâmicas urbanas e As reflexões apresentadas nesse trabalho evidenciam sociais do local. a complexidade de trabalhar o patrimônio ferroviário em Conforme o exposto havia o interesse de compreender concordância com os preceitos teóricos do patrimônio in- qual a tônica das intenções direcionadas para esses bens. De dustrial considerando a natureza complexa dessa categoria forma que os usos encontrados foram classificados conforme de bens. Essa observação coloca-se tanto no panorama 137 Gráfico 1 . mundial através da análise de ferrovias reconhecidas como Patrimônio Mundial quanto no contexto nacional nas ações de reconhecimento e proteção empreendidas pelo IPHAN com os instrumentos de tombamento e da Lista de Patrimônio Cul- 136 A Superitêndencia do IPHAN elabou uma carta aberta aos municí- tural Ferroviário. pios no qual explica os trâmites de gestão do patrimônio ferroviário do Ao enforcarmos as ações de preservação direcionadas ao espólio da RFFSA e itens que devem constar no ofício elaborado pelas prefeituras. Disponível em:< http://www.prrj.mpf.mp.br/sala-de-im- espólio da RFFSA em consonância com a Lei nº 11.483/2007 prensa/eventos-e-audiencias/documentos-relacionados-as-audiencias/ destacamos como potencialidades da mesma o aprendizado relacionados-o-acesso-a-informacao-no-licenciamento-ambiental/ que pode advir da necessidade de diálogo com várias institu- carta-aos-prefeitos-sobre-patrimonio-ferroviario/at_download/file>. ições e agentes contribuindo para uma prática compartilhada Acesso em 02 de maio de 2017. entre União, Estado e Municípios. Porém, a partir da análise 137 A classificação denominada bens não considerados no projeto de intervenção: refere-se aos bens que integram conjuntos ferroviários de um conjunto definido de bens inscritos na LPCF foram valorados mas que não foram contemplados nas propostas de forma que percebidos alguns entraves sendo um dos principais a asso- as propostas privilegiam o edificio de maior destaque, na maioria das ciação do reconhecimento desses bens ao interesse prévio das vezes são as estações. 293 municipalidades, situação essa que não tem permitido um CAVALCANTI , J. R. N.; CARNEIRO, F. G.; GIANNECCHINI , avanço em relação ao desenvolvimento e aplicação de critéri- A. C. Avanços e desafios na preservação do patrimônio fer- os de seleção uma vez que o reconhecimento passa a ser um roviário pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico ato puramente administrativo. Nacional. Anais do VI Colóquio Latino Americano sobre A análise dos pareceres técnicos demonstrou a urgência recuperação e preservação do Patrimônio Industrial, de reavaliar a centralidade dos aspectos estéticos dos bens no São Paulo, p. 1-18, 2012. processo de atribuição de valor. As orientações da Carta de Nizhny Tagil (2003) evidenciam a importância de valorizar os CORDEIRO, J. M. L. Desindustrializaçao e salvaguarda do elementos funcionais, aspectos tecnológicos, modos de pro- patrimônio industrial: problema ou oportunidade? Oculum dução assim como os aspectos imateriais (saberes técnicos, Ensaios: revista de arquitectura e urbanismo, Campi- memória do trabalho). Ou seja, salienta-se a necessidade de nas, 13, n. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, contrabalançar os pesos que subsidiam o discurso em relação Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Janeiro-Junho a esses bens. 2011. 154-165. Por fim, um aspecto fundamental para o campo da CORDEIRO, J. M. L. Desindustrialização e salvaguarda do preservação como um todo é a necessidade de incorporar patrimônio industrial: problema ou oportunidade? Oculum práticas participativas desde a identificação até a intervenção Ensaios: revista de arquitectura e urbanismo, Campi- em si. Tal medida pode equilibrar o campo de forças que at- nas, 13, n. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, uam sobre os bens e áreas urbanas reconhecidas como pat- Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Janeiro-Junho rimônio. Se de fato essa participação se tornasse uma prática 2011. 154-165. recorrente, talvez as ações sobre bens edificados fossem mais integradas com outros programas sociais (habitação de inter- FINGER, A. E. Um Século de Estradas de Ferro – Ar- esse social, geração de renda, creches, postos de saúde dentre quiteturas das ferrovias no Brasil entre 1852 e 1957. outros) que de fato privilegiariam o morador. Ademais com Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília. Brasília, p. 465. todas as questões paradoxais que constituem o campo do pat- 2013. rimônio é importante ressaltar que a preservação se conecta com a constituição de cidades mais sustentáveis uma vez que FREIRE, M. E. L. Patrimônio ferroviário: a a manutenção de estoques edificados reconhecidos como preservação para alem das estações. 2017. 263 f. Tese portadores de valores culturais significa sobretudo, poupar os (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) - Universidade recursos naturais. Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Re- cife. 2017. REFERÊNCIAS _____. Patrimônio ferroviário: a preservação BRASIL. Lei Nº 11.483,de 31 de maio de 2007. Dispõe para além das estações. 2017. 263 f. Tese (Doutorado em sobre a revitalização do setor ferroviário, altera dis- Desenvolvimento Urbano) - Universidade Federal de Pernam- positivos da Lei no 10.233, de 5 de junho de 2001, e dá buco. Centro de Artes e Comunicação. Recife. 2017. outras providências, maio 2007. _____.; LACERDA, N. 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PEIXOTO, P. Centros históricos e sustentabilidade cultural das cidades. Sociologia : Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, v. 13, p. 211-216, 2013.

295 O VALONGO VIVO: DA TANGIBILIDADE between the tangible, exposed in the materiality of the space DO ESPAÇO À INTANGIBILIDADE that was the old slave market in Rio de Janeiro, the Valongo, in DO TERRITÓRIO – REFLEXÕES SOBRE the neighborhoods of Saúde and Gamboa, through the places of memory of the African diaspora in the region as marks of its SUBJETIVIDADES IDENTITÁRIA Identity construction, and the intangible, through the subjec- (THE VALONGO LIVELY: TANGIBILITY FROM SPACE tivities of everyday cultural practices that give meaning to the TO INTANGIBILITY OF THE TERRITORY – REFLEC- place, territorializando it and making it alive. TIONS ON SUBJECTIVITIES IDENTITY) Me. João Maurício Bragança Garcia Lopes138 Key words: Porto Maravilha Project, tangi- PPCULT/UFF bility, intangibility, identity subjectivities, [email protected] territorialization

RESUMO INTRODUÇÃO: O LUGAR REENCONTRADO Este artigo é um recorte de um trabalho de pesquisa ini- Graças à memória, o tempo não está perdi- ciado em 2008 e defendido através da dissertação de mestra- do, e, se não está perdido, também o espaço do do Programa de Pós-graduação Stricto-senso em Cultura e não está. Ao lado do tempo reencontrado, Territorialidades-PPCULT/UFF, em 2016. Busco aqui refletir a está o espaço reencontrado139 relação entre o tangível, exposta na materialidade do espaço que era o antigo mercado de escravos no Rio de Janeiro, o Em 17 de Janeiro de 2011, após o início das escavações Valongo, nos bairros da Saúde e Gamboa, através dos lugares do Cais do Valongo, um manifesto intitulado a Carta do de memória da diáspora africana na região como marcas de Valongo pedia o lançamento de uma pedra fundamental sua construção identitária, e o intangível, através das subje- do memorial da diáspora africana naquele local. Assinaram tividades de práticas culturais cotidianas que dão sentido ao a carta, Paulo Roberto dos Santos - Paulão, então presidente lugar, territorializando-o e o tornando Vivo. do Conselho Estadual dos Direito dos Negros – CEDINE; Carlos Alberto Medeiros, responsável pela Coordenadoria de Políti- Palavras-chave: Proj. Porto Maravilha, tangib- cas de Promoção de Igualdade Racial da Prefeitura do Rio de ilidade, intangibilidade, identidades subjeti- Janeiro; Benedito Sergio de Almeida Alves, representante re- vas, territorialização gional da Fundação Palmares; Mercedes Guimarães, presiden- te do Instituto Pretos Novos e outros membros pesquisadores; ABSTRACT Tânia Lima, arqueóloga do Museu Nacional e coordenadora This article is a clipping of a research paper initiated in das escavações do sítio arqueológico do Cais do Valongo. Esse 2008 and defended through the master’s dissertation of the documento foi assinado por pessoas que reconheceram não Stricto-sense graduate program in culture and territoriali- só a importância do cais para a história, mais também a de ty-PPCULT/UFF in 2016. I seek here to reflect the relationship todo um território marcado pelo estigma da escravidão. A relevância não é apenas seu conteúdo propriamente dito, mas sim, a de que é um documento intitulado com o nome de um 138Fotógrafo e Pesquisador com atuação nas áreas da Comunicação Social e Cultura, com foco no Espaço Urbano e na Memória Social através território que não existia mais oficialmente desde 1870. da linguagem visual; Premiado pelo IPHAN no concurso Olhares Sobre o Até começarem as obras do Projeto Porto Maravilha, Patrimônio Fluminense em 2011; Mestre em Cultura e Territorialidades e posteriormente as escavações arqueológicas, as únicas – UFF/2016; Graduado em Fotografia - UNESA/2010; Especializado em referências que restavam do Mercado do Valongo na região Fotografia: Imagem, Comunicação e Memória - UCAM/2011; e em Arte, Cultura e Sociedade no Brasil - UVA/2011. Compôs a equipe técnica do IPHAN para elaboração do dossiê de candidatura do Cais do Valongo 139 (ABREU, Maurício de Almeida. Sobre a Memória das Cidades. Revista como patrimônio da humanidade pela UNESCO, em 2014. TERRITÓRIO, ano III, nº 4, jan./jun. 1998) 296 eram a Pedra do Sal, berço do samba, o recém descoberto Ce- de Gandhi. Além disso, foi pedido a inclusão em curto prazo mitério dos Pretos Novos (1995), e outros locais que guarda- dos seguintes locais: a) O Centro Cultural Pequena África, vam do Valongo apenas o nome: Jardim Suspenso do Valongo, cujo trabalho pretende resgatar e preservar valores históri- o Observatório do Valongo, o Morro do Valongo140, a Ladeira cos e culturais, além de celebrar personalidades centrais da do Morro do Valongo; e os lembrados, Largo do Depósito, a at- ancestralidade da região outrora conhecida como Pequena ual Prçª. dos Estivadores, e a antiga Rua do Valongo que é a at- África; b) as Docas D. Pedro II, obra erguida pelo engenheiro ual Rua Camerino. Sendo assim, a partir desta carta o espaço negro André Rebouças que não permitiu o uso de trabalho sentido passa ser praticado como um território. O Valongo escravo em sua construção; atualmente cedidas como sede da reaparece oficialmente através do documento como um lugar organização não governamental Ação da Cidadania; c) o Afoxé de memória (Nora, 1981). O documento reivindica ao mesmo Filhos de Gandhi, um dos primeiros blocos afro do Rio de Ja- tempo reafirma a herança local. No espaço, o lugar sentido neiro, fundado em 1951. Por fim, as recomendações seguiam se territorializa, nos seus patrimônios, em suas festas, cele- o entendimento que “o resgate dessa memória e a quebra do brações e expressões. Um Valongo oficial, um Valongo vivo. ciclo de amnésia social contribuem para o enfrentamento e Posteriormente, em 2012, foi confeccionado outro doc- a redução das desigualdades erdadas do sistema escravista” umento, Carta de Recomendações do Valongo, reafirmando o (Carta de Recomendações do Valongo, 2012). território e listando uma série de reivindicações, apontadas como recomendações para gestão do espaço. Neste caso, a carta foi feita em papel timbrado com a logomarca da prefei- tura e agenciado pela Subsecretaria de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Designer, através do Grupo de Trabalho Curatorial do Projeto Urbanístico e Arquitetônico Circuito Histórico e Arqueológico do Circuito de Celebração da Herança Africana, indicado pelo decreto Municipal 34. 803 de 29 de novembro de 2011, “para construir coletivamente as estratégias de valorização da memória e proteção deste importante patrimônio” (Carta de Recomendações do Va- longo, 2012). O grupo ficou responsável pela elaboração do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, delimitando a partir de três tipos de sítios: a) Sítios arqueológicos – constituídos pelo patrimônio material de natureza arqueológica, histórica e simbólica. Integram este conceito os sítios arqueológicos Cais do Valongo e Cemitério dos Pretos Novos; b) Sítios históricos – constituídos pelo pat- rimônio material, com valor histórico e simbólico. Integram este conceito os sítios Jardim do Valongo, Largo do Depósito, Pedra do Sal, Centro Cultural José Bonifácio e Docas D. Pedro II; c) Sítios vivos – manifestações, organizadas institucional- mente ou não, que preservam tecnologias, conhecimentos e Figura 1 – Sítio Arqueológico do Cais do Valongo e Cais da Imperatriz: celebrações, predominantemente imateriais, também com Escavações Arqueológicas na Praça Jornal do Comércio, Saúde. valores histórico e simbólico. Integram este conceito os sítios Emergindo do passado. Como no caminho do herói, volta do submundo Centro Cultural Pequena África, a Pedra do Sal e o Afoxé Filhos com sua segunda pele e objetos mágicos. Foto: João Maurício. 140 O Morro do Valongo é uma denominação local para a face do Morro da Conceição que é exposta para região do antigo mercado de escravos da cidade do Rio de Janeiro. [nota do autor] 297 A MEMÓRIA, O LEGADO E AS REMINISCÊNCIAS vergência das intervenções urbanas na cidade, aglutinando ações distintas do poder público e do investimento privado, Os projetos de reformas urbanísticas e patrimonial- da mídia e da especulação imobiliária. (ibidem, 2009). Como ização dos centros históricos são oportunidades estratégicas explicam os autores: na administração pública. Diante da degradação urbana da cidade, este processo passa ser um importante elemento de O hipercentro exige um investimento cole- uma ideologia de um espaço público ordenado, higienizado tivo que reveste um caráter mais ou menos e minimizado dos seus conflitos (LEITE e PEIXOTO, 2009). sagrado, mais ou menos venerável, mais ou Disfarçados de “promessa redentora” (ibid, 2009: 94), estes menos festivo, mais ou menos extraordiná- projetos também fomentam novos significados provocando rio. Nessa medida, procurando contrastar reapropriações ou novas formas de apropriações coletivas com o seu papel recente e com o seu entorno dos bens culturais. Os centros históricos transmitem uma urbanístico, os centros históricos são alvo de intervenções destinadas a torná-los protóti- visão culturalista e procuram simbolizar um passado comum pos da vida urbana e são mediatizados como compartilhado por diferentes tradições, onde condensam as 141 lugares exemplares. Por essa via, enraizados primeiras experiências coletivas nas cidades . numa iconografia patrimonial, acabam por preencher a função de imagem profética de um futuro diferente para a cidade de que fazem parte, participando no desígnio maior de qualquer comunidade. Ou seja, a capacidade em criar e em manter lugares de centralidade que possam ser propostos aos locais e aos estranhos como lugares a admi- rar e a venerar. (LEITE e PEIXOTO, 2009, p. 96)

A preservação da história e da herança cultural, na sua dimensão material, como um monumento e também imateri- al, como uma prática local expressa na tradição de um grupo, Figura 2 – Vista aérea do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo e Cais não só é uma forma de transmissão da memória coletiva, da Imperatriz. Composto por dos sítios, o mais antigo em calçamento colonial (conhecido como piso pé-de-moleque) é o Cais do Valongo como também, forma um valioso suporte para a construção (1771), cais do antigo mercado de escravos do Valongo; o outro posterior identitária de um lugar (Abreu, 1992). Um lugar tombado é o do Cais da Imperatriz, composto por calçamento em pedras lavradas ou um monumento pretendem transmitir intencionalmente e o obelisco com a esfera armilar, representando o império e as 3 setas uma memória coletiva ou uma versão da história. A fabri- em referência a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, obra de Gran Jean de Montini (1848). Foto: João Maurício Bragança, Dossiê do Cais do cação simbólica do patrimônio cultural produz artifícios para Valongo/UNESCO, Ano 2014 reforçar um sentimento de pertencimento para se religar a um passado definido como comum, e que é preciso guardar Esses espaços potencializam o turismo, o consumo e o para transmitir, ressignificando o lugar no presente (Nora, lazer, através do turismo cultural de sua paisagem históri- 1981). No espaço, o lugar passa ser, assim, um lugar de lem- ca142, do consumo dos bens patrimoniais e de expressões do brança, um lugar de memória. Dessa forma, Pierre Nora expõe patrimônio imaterial como as celebrações e os festejos. Tor- as características que definem um lugar de memória: nam-se hipercentros, na medida em que é um ponto de con- É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante, ao 141 (LEITE E PEIXOTO apoud SIMMEL, 2009, p. 94) mesmo tempo, a cristalização da lembrança 142 ARANTES, A. A. O patrimônio imaterial e a sustentabilidade de sua salvaguarda. RESGATE-Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 1, n. 13, e sua transmissão; mas simbólica por defini- 2004, p. 11-18. ção visto que caracteriza um acontecimento 298 ou uma experiência, vivido por um pequeno de uma identidade em busca dela mesma, número de uma maioria que deles não par- a exumar, a “bricoler”, e mesmo a inventar. ticipou. (NORA, 1981, p13). Nesta acepção, o patrimônio define menos o que se possui, o que se tem e se circunscreve Compondo a paisagem, o patrimônio preserva a história mais ao que somos, sem sabê-lo, ou mesmo em meio as transformações urbanas. Musealizando o espaço, sem ter podido saber. O patrimônio se apre- possibilitam uma interação diferente com a concretude da senta então como um convite à anamnese cidade, mantendo viva a história em meio a circulação cotid- coletiva. Ao “dever” da memória, com a sua iana (HERTOG, 2006), e assim também, consequentemente recente tradução pública, o remorso, se teria à visualidade do espaço. A partir dessas transformações ur- acrescentado alguma coisa como a “ardente banas e da preservação dos centros históricos, “produziu-se obrigação” do patrimônio, com suas exigên- cias de conservação, de reabilitação e de lugares de patrimônio urbano para construir a identidade comemoração. (HERTOG, 2006, p. 266) escolhendo uma história, que se torna a história, a da cidade ou do bairro: história inventada, reinventada ou exumada, de- pois mostrada” (HERTOG, 2006: 268). Sendo assim, segundo François Hertog (2006): O privilégio da definição da história-me- mória nacional tem a concorrência ou é contestado em nome de memórias parciais, setoriais, particulares (de grupos, associa- ções, empresas, coletividades, etc.), que querem se fazer reconhecer como legítimas, tão legítimas, até mesmo mais legítimas. O Estado-nação não impõe mais os seus valo- res, mas preserva mais rápido o que, no pre- Figura 3 – O monumento, composto dos dois sítios, em sua vista frontal pode ser admirado como um só. Foto: João Maurício Bragança, Dossiê do sente, imediatamente, mesmo na urgência, Cais do Valongo/UNESCO, Ano 2014. é tido como “patrimônio” pelos diversos atores sociais. O próprio monumento tende No Valongo três lugares se destacam pela carga simbólica a ser suplantado pelo memorial: menos que representam: a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos No- monumento do que lugar de memória, vos e o Cais do Valongo. Esses lugares existem através de uma onde se esforça para fazer viver a memória, a mantê-la viva e a transmiti-la. (HERTOG, materialidade, um valor simbólico atribuído e uma funcion- 2006, p. 270) alidade praticada. São patrimônios de uma história vivida, monumentos de uma memória presente, sendo assim, estão Por estarem associados à memória coletiva, estes pat- carregados da imaterialidade simbólica da herança cultural. rimônios monumentais estão ligados ao território local, oper- Representam uma das funções essenciais do Ser, a capacidade ando mutuamente como eixos na configuração de uma iden- de lembrar, somado a capacidade de instruir. Monumentos tidade (Hertog, 2006). Uma identidade produzida e moldada que comparados aos documentos são provas materiais de 143 interruptamente, que segundo o autor: um passado que existiu (Le Goff, 1990) . Sendo assim, os três lugares monumentais são representativos na história da Mas, trata-se menos de uma identidade região, além disso, tem valor atribuído a memória coletiva dos evidente e segura dela mesma do que de afrodescendentes, não só dos residentes da região portuária, uma identidade que se confessa inquieta, arriscando-se de se apagar ou já ampla- 143 LE GOFF, Jacques. História e Memória. [Tradução: Bernardo Leitão]; mente esquecida, obliterada, reprimida: Coleção Repertórios, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1990. 299 mas de todos que carregam em suas memórias as marcas e os Esses elementos envolvem a fisionomia do lugar e fo- estigmas desta história. mentam percepções valorativas sobre o espaço. Compõem uma ambientação, onde complementa os sentidos de pert- encimento e apropriação dos lugares, através do que é sentido e praticado. Nesta relação entre o tangível e o intangível, os lugares estão constituídos de recortes visuais que podem ser percebidos por características que os singularizam. São frag- mentos materiais do tempo carregados de memória, formas identitarias da paisagem e imaginário do lugar. Este passado reexposto, e novamente visível, a partir das escavações do Cais do Valongo, passou a fomentar no- vas práticas cotidianas. Num cenário de produção cultural mundializada, os processos de patrimonialização propiciam um enraizamento, em uma perspectiva local, dos sentidos Figura 4 – Pedra do Sal e o Largo João da Baiana. globais de lugar144, “sentidos esses que dialogam, deslocam Foto João Maurício Bragança, Anos 2009. e interagem com as representações de identidade, memoria e tradição, e com as práticas a elas associadas” (ARANTES, 2004: 13). Estimulando a criação e circulação de todo tipo de pro- dução de sentido de lugar e diferença (ibid, 2004). A participação no espaço fica na condição de uma as- sociação com alguém mais antigo ou na possibilidade da negociação de novas regras, sem comprometer os costumes vigentes. Entretanto, nem todos os papéis são permeáveis, outros mais específicos estão bloqueados, “a cultura separa e junta, distância e aproxima, constrói fronteiras e passagens, relacionando ‘uns’ e ‘outros’ segundo as regras de cada grupo social” (ARANTES, 2004: 15). Mas depende da capacidade Figura 5 – Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos/IPN. de incorporar símbolos e atores externos, atualizando-se ao Foto João Maurício Bragança, Ano 2013. mesmo tempo em que matem as bases de apoio das organ- izações e cosmologias locais. A articulação socioeconômica de forma supra-local de uma indústria cultural, identificado com um exotismo particular, afeta os grupos sociais que vivem no território. O turismo e o empreendimento imobiliário trazem novos atores, “desejando validar a sua condição de novos membros da comunidade” (ibid, 2004: 14). [...] certas atividades são mais carregadas de sentido de identidade do que outras. São es- tas as que conferem à performance cultural a condição de símbolo ativo da comunidade, espelhando o que o grupo considera ser sua Figura 6 – Cerimônia de inclusão do sítio arqueológico do Cais do ‘tradição’. E são exatamente esses aspectos Valongo no projeto Rota do Escravo da UNESCO. mais marcados e marcantes da vida, os en- Foto João Maurício Bragança, Ano 2013. 144 ARANTES, op. cit., p13 300 tendidos como ‘referências’ das identidades sociais, os que usualmente se encontram na mira das políticas culturais de modo geral e nas de patrimônio em particular. (ARANTES, 2004, p. 15)

O passado, real ou forjado, representado num monu- mento ou numa prática salvaguardados, incentiva à longev- idade e força do costume ou de uma ideologia de uma cultura frente aos processos transformadores da sociedade no tempo. Há uma ambivalência nos bens patrimoniais que singulariza e territorializa um espaço, torna possível a participação seletiva Figura 7 – Lavagem do Cais do Valongo. Apresentação do Grêmio Rec- reativo Escola de Samba Império Serrano durante os festejos d lavagem e condicional de personagens externos. É o que valoriza no simbólica do Cais do Valongo. Foto João Maurício Bragança, Ano 2014. mercado cultural, pois, o valor agregado está no que é viven- ciado pelo grupo local e de como é apresentado para o público A presença de elementos modernos, padronizados para enquanto “culturas autênticas” (ARANTES, 2004: 15). um grande público, podem transmitir uma ideia de não-aut- Essa ambivalência é o que possibilita o uso entico em relação a um passado idealizado ou como uma do patrimônio como capital simbólico na degradação provocados pelos processos de mercantilização. produção de sentidos reconhecíveis e contí- Este “mito do outro autentico” (Cravatte, 2009) está presente nuos de um lugar, tanto para um mercado nas avaliações do público visitante oferecendo sinais do mito em expansão, quanto para a comunidade pré-existente. local, pondo em marcha o assim chama- Por não ter acesso ao real, mas sim, do local do seu ar- do processo de reinvenção das tradições. mazenamento temporário. A representação poderá ser ana- (ARANTES, 2004, p. 16) lisada como falso, criada para turistas, porém, pode se tornar reconhecido como autentico pela população local. Este fator Esta noção de autenticidade está relacionada com o sen- demonstra o caráter emergente do autentico e permite aos timento de pertencimento de uma comunidade, e de como moradores de renegociar as fronteiras sociais em que suas este grupo se relaciona com os visitantes do espaço. Esta práticas adquirem novos significados. Assim, a mercantil- noção é que vai padronizar uma distinção do que é verdadeiro ização, não conduz necessariamente a uma perda da auten- ou falso nas relações interpessoais, buscando ditar de como as ticidade, mas poderia ser também uma forma de torná-las impressões dos outros sobre o que é, ou não é encenado nas mais vivas. interações com a vida cotidiana do espaço. Do ponto de vista Questões como a interioridade que demonstra a coesão turístico, esse ideal de autenticidade pode ser caracterizado do grupo, e singularidade, expressa através das especifidade pela nostalgia de que outras formas de vida que correspon- que os diferencia estão envolvidos na percepção sobre os dem ao passado seriam mais puras, romantizadas na exal- praticantes do espaço. Somado a isso, a sinceridade de como tação de sentimentos, sensações e espontaneidade, fazendo as manifestações deste grupo é reconhecido pelo público contraponto com a vida diária racionalizada. Uma autentici- (Cravatte, 2009). dade existencial, pessoal, relacionada com a experiência cor- Forjada no presente com o auspício do passado, for- poral ou de autorealização fora da rotina diária. Realidade ou necendo recursos discursivos de sobrevivência, “elas são encenação estão em questão, a autenticidade pode ser vista reações a situações novas ou assumem a forma de referência como parte da mobilização de expressão do grupo ou como a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado” mero artificio turístico. Influencia na percepção de sinais que (HOBSBAWN, 1997: 10), através da legitimação ou estabelec- podem ser reconhecidos como autentico (Cravatte, 2009). imento da coesão social, admissão de um grupo comunitário;

301 através da legitimação ou estabelecimento de instituições ou desprestigiada pelo tempo e inaugura uma época totalmente relações de autoridade; e, através daquelas que socializam e nova [...] marcam retoricamente uma profunda ruptura com o inculcam ideias, sistemas de valores simbólicos e padrões de mundo existente (ibidem, 2008: 264), e aquilo que foi suplan- comportamento (ibid, 1997), “na medida em que há referên- tado no passado retorna como novo. Num jogo onde os mo- cia com o passado histórico, as tradições inventadas caracter- mentos de sua fundação são encarados como peculiar e único, izam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante espetacularizando-o. Com isso, através da divulgação mídia artificial” (ibidem, 1997: 10). e da literatura referente a singularidade histórica da comuni- dade contribui na sua solidificação e legitimação. Assim, a partir da imaginação de um passado comum, ela passar ser moldada, transformada e fabricada. Criam-se limites e fronteiras guiadas pelo eixo da história comum. A partir disso, usa-se o censo para justificar suas origens, legiti- mar suas descendências e quantificar sua abragência. Delim- itam-se fronteiras através de mapas, e criam-se museus para contar sua história e manter viva sua memória. Elegem-se os símbolos e narrativas inquestionáveis, pro- liferam nos discursos oficiais a história coletiva, propagando o sentimento comum. E fazem das práticas coletivas políticas Figura 8 – 4ª Lavagem do Cais do Valongo. Grupo Recreativo Afoxé em prol desta união (ANDERSON, 2008). Filhos de Gandhi compõem a cerimônia e o festejo durante a lavagem simbólica do cais. Foto João Maurício Bragança, Dossiê do Cais do Valongo/UNESCO, Ano 2015.

Essa artificialidade advém do processo seletivo do que será lembrado e do que será esquecido, e não do que é falso ou verdadeiro. Segundo Benedict Anderson (2008), na busca de uma coesão deve “‘já ter esquecido’ tragédias que precisam ser incessantemente ‘lembradas’ revela-se um mecanismo Figura 9 – Mãe Edezuita e Mãe Beata depositam flores em oferenda no típico [dessa] construção” (ANDERSON, 2008: 274). Neste Cais do Valongo durante a lavagem simbólica. Figura 10 – Mãe Celina processo, o grupo social envolvido na eleição do que será com buquê de flores na roda durante a oferenda no cais. patrimônio ou não, irá moldar a memória coletiva a fim de Fotos: João Maurício Bragança, ano 2014. uma coesão histórica comum produzida através de um eixo ideológico identitário. Para Anderson (2008), “a consciência de estarem inseri- das no tempo secular e serial, com todas as implicações de continuidade e, todavia, de ‘esquecer’ a vivência dessa con- tinuidade [...] gera a necessidade de uma narrativa de ‘identi- dade’ (ibid, 2008, p. 279). Figura 11 – Guias do Ogam durante a cerimônia. Figura 12 – Mãe Celina São imaginadas e fabricadas para si fazerem conhecer descalça sobe as escadarias do cais Figura 13 – folhas de louro / práticas e serem reconhecidos através daquilo que vos representam culturais. Fotos: João Maurício Bragança, ano 2013. naquilo que faz sentido para alma, constituído pelos dese- jos e projeções coletivas. Excluindo aquilo que não vos rep- resentam da temporalidade cronológica de sua narrativa histórica. Assim, com diz o autor, “abole a velha designação

302 durante os anos de 1821, 1822 e 1823. Percebe-se as carac- terísticas sobre a paisagem e fisionomia do lugar.

Figura 16 – Vista da Rua Camerino (antiga Rua do Valongo, rua principal do mercado do Valongo) para o centro da cidade. Figura 17 – Vista do centro da cidade em direção para o Valongo. Ao fundo o prédio dos Figura 14 – Meninas observam uma passista do Império Serrano no Cais Hospital dos Servidores do Estado que fica ao lado do Cais do Valongo. do Valongo durante a lavagem simbólica. Figura 15 – Filha e neta da Local Rua Camerino. Foto João Maurício Bragança, Ano 2008. Mãe Celina de Xangô dançando no Cais do Vaçongo. Foto: João Maurício Bragança, ano 2014 / 2013 Assim, as narrativas mencionadas são construídas através de documentos ou relatos, fornecendo pistas para Segundo Gadamer (2012), “somente pela capacidade de compreender os vestígios sobre o lugar. Dos sobrados que se comunicar que unicamente os homens podem pensar o compõem em grande parte o local, como também alguns comum” (GADAMER, 2012: 174). A partir disso utilizamos, por galpões145 usados como estacionamento, ao observador várias formas, múltiplas narrativas que dizem sobre um mes- percebe o lugar – mesmo fragmentado – entretecido por mo contexto. A partir das narrativas sobre um lugar, podemos essas histórias, contribuindo para configuração do lugar perceber ou sentir sua presença. Faz parte da ambientação do sentido. Através da prefiguração146 da história através da espaço a história da sua formação e as transformações pelo memória que alimenta o imaginário, fomentando uma pro- qual ele passou. Esta história pode ser percebida pela cultura dução de subjetividade147, o lugar é refigurado pela prática do material que compõe a sua arquitetura e suas características seu sentido, configurada em outras narrativas sobre o lugar. urbanística. Os elementos arquitetônicos, como fachada, A configuração das narrativas constitui-se assim, como uma detalhes estilísticos e o tipo de calçamento expressam não só uma historicidade, mas também uma narrativa própria. Embora o local faça parte da cidade multiforme, é possível 145 Difícil fazer uma classificação do tipo de construção que são estes estacionamentos, muitos deles são sobrados de dois pavimentos na através desses elementos juntar as pistas sobre a vida social fachada, porém em sua parte térrea são grandes e compridos, a ponto na construção histórica do espaço. Essas narrativas sobre o de terem algumas dezenas de carros dentro deles. lugar a partir desses indícios materiais constroem um imag- 146 RICOEUR, P. Tempo e narrativa. In____: A Tríplice Mimese. São inário, permitem visualizar algo que não está mais presente, Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. mais que impõe presença através da lembrança. Alimentando 147 Segundo Guatarri, “A subjetividade é produzida por agenciamentos a memória essas narrativas são fontes sobre o lugar, como de enunciação. Os processos de subjetivação, de semiotização - ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica - não são centrados exemplo, a partir do documento oficial sobre a formalização em agentes individuais (no funcionamento de instancias intrapsíquicas, do local e de suas funções - “ao sítio do Valongo, onde se con- eg6icas, microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos são servarão, desde a Pedra da Prainha até a Gamboa e lá se lhes duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de maquinas de dará saída e se curarão os doentes e enterrarão os mortos”, e expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individ- ual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, dos testemunhos de alguns que visitaram o espaço, em im- ecológicos, etnológicos, de mídia, enfim sistemas que não são mais agens como Jean Baptiste Debret, ou anotações como o da imediatamente antropológicos), quanta de natureza infra-humana, inglesa Maria Graham “vi hoje o Val Longo. É o mercado de intrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de autom- são depósitos de escravos.”, em seu diário de viagem ao Brasil atismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.)” (GUATARRI, 1996, p27). 303 mediação entre o lugar prefigurado, que fornece inteligibili- Assim, no espaço, a produção de sentidos territorializam dade para o reconhecimento, e a própria refiguração através pela subjetivação sobre o lugar. Pela linguagem, a semi- da leitura e da interpretação que transfiguram e configuram o otização compõe narrativas que dão sentido ao território e a lugar (RICOEUR, 2010, p 85). uma identidade. Um conjunto de sentidos, valores e práticas É na reminiscência associada ao contexto cultural daque- que o grupo se reconhece compõe o processo de construção de le passado que esta produção de subjetividade vai utilizar uma identidade coletiva, uma subjetivação nas produções de formas de expressões em meio à linguagem148 para se man- sentido, fomentada nas relações de afeto e na afirmação dos ifestar no espaço através dos agenciamentos de enunciação valores, onde além de se reconhecerem se fazem conhecer. que configuram o sentido do lugar através de um processo de Para Pollak, o trabalho memorial é um campo de disputas ingularização. Esta produção de “subjetividade é essencial- para a produção de consensos circunstancias, usos políticos mente fabricada e modelada no registro do social” (GUATARRI, do passado. “A memória – flutuante, seletiva, mutável – é um 1996, p31). Através da semiotização em formas de narrativas elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto in- que são “adjacente[s] a uma multiplicidade de agenciamen- dividual como coletiva, na medida em que ela é também um tos sociais, a uma multiplicidade de processos de produção fator extremamente importante do sentimento de continui- maquínica, a mutações de universos de valor e de universos dade e de coerência” (POLLAK, 1992: 204). Tem como função históricos” (ibid, 1996: 32), como pontos de singularidades “manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que em que os “processos de singularização são as próprias raízes um grupo tem em comum [...] duas funções essenciais da produtivas da subjetividade e de sua pluralidade” (ibidem, memória comum” (ibid, 1989: 9), segundo o autor, é também 1996: 52). uma maneira de uma comunidade seletivamente se recon- hecer e também de se representar: [...] a imagem que uma pessoa (ou grupo, pensado socialmente149) adquire ao longo de uma vida referente a ela própria, a ima- gem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser perce- bida da maneira como quer ser percebida pelos outros. [POLLAK, 1996, p. 204]

Na contemporaneidade, as contradições e as diferenças estão em pauta constante nas discussões sobre identidade. Para os descendentes de africanos, pensar em identidade é re- pensar a diáspora africana: “a questão de interpretar a ‘África’, Figura 18 – um Stencil da fotografia de Alberto Henschel (sec. XIX) na Av. Venezuela, na Saúde, ao lado do Cais do Valongo. reler a África, do que a África poderia significar para nós hoje, Foto João Maurício Bragança, 2012 depois da diáspora” (HALL, 2013: 44). Segundo Hall:

148 “Existe a linguagem como fato social e existe a individuo falante. A Possuir uma identidade cultural nesse senti- mesma coisa acontece com todos os fatos de subjetividade. A subjetiv- do é estar primordialmente em contato com idade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela e essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas 149 Na ligação da memória com a identidade, Pollak ao comentar ao existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa Hawbachs sobre a memória coletiva, comenta que “a memória deve ser subjetividade oscila entre dois extremos: uma re1ação de alienação e entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno social, ou seja, opressão, na qual o indivíduo ‘se submete a subjetividade tal como a re- como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, cebe, ou uma re1ação de expressão, e de criação, na qual o indivíduo se transformações, mudanças constantes”. POLLAK, Michael. Memória e reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo Identidade Social; Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol 5, n. 10, 1992, que eu chamaria de singularização” (ibid, 1996, p 29). p.200-212. 304 um núcleo imutável e atemporal, ligando ao sobre um passado compartilhado e sobre o lugar sentido e passado o futuro e o presente numa linha sobre a identidade cultural coletiva. interrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”, cujo teste é a fide- CONSIDERAÇÕES FINAIS lidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua “autenticidade” O Valongo enquanto território reconhecido como pat- (HALL, 2013, p. 32) rimônio cultural se mostra e se manifesta através dos seus lugares de memória: o Cais do Valongo, o local da Este conjunto tenso e seletivo de valores, sentidos, chegada; a Pedra do Sal, o local dos encontros; e o Cemitério práticas e lugares que o grupo historicamente se reconhece dos Pretos Novos, o local dos mortos. Em torno desses lugares, compõem o processo de construção da identidade coletiva no as práticas e as produções de sentidos estão ligadas a um espaço territorial, onde além de se reconhecerem se fazem forte sentimento de identidade coletiva afinado nas disputas conhecer. A construção de uma identidade coletiva de um e narrativas como herança comum. Está expressa em música, grupo, formadas através de articulação em rede e coesão festas, danças, datas comemorativas, na arte urbana, e em coletiva150, indica que a relação de significado e experiência novos rituais, como a Lavagem do Cais do Valongo. comum é alimentada pelo sentido individualizador do grupo. Com as escavações na Praça Jornal do Comercio e a de- Este sentido, direcionado por uma identidade primária estru- scoberta do Cais do Valongo, o reconhecimento da história da turante “autossustentável ao longo do tempo e do espaço” região ligada à escravidão, ganhou força. A partir das trans- (CASTELLS, 1999: 23), modela os significados, e assim, os sen- formações urbanas promovidas na região, foi confeccionado tidos e os costumes. Este processo, realizado por atores sociais a Carta do Valongo, manifesto de entidades sociais e que selecionam, interpretam e transmitem seus significados. institutos de pesquisas, com a participação da arqueóloga Mas para os descendentes de africanos, a questão da negri- responsável pela escavação do cais, Tânia de Andrade Lima, tude “permanece, apesar de tudo, o segredo culposo, o código que ao mesmo tempo, como já se viu, é texto que reivindica oculto, o trauma indizível [...] é a ‘África’ que a tem tornado e certifica o território. Também foi criado o Grupo Curatorial ‘pronunciável’, enquanto condição social e cultural de nossa de Elaboração do Circuito Histórico e Arqueológico de Cele- existência” (HALL, 2013: 46). bração da Herança Africana, englobando a Pedra do Sal e o Através da preservação da história e da manutenção de Cemitério dos Pretos Novos, além destes, o Centro Cultural uma herança cultural, expressa na tradição modelada pelos José Bonifácio, o Jardim Suspenso do Valongo e o Largo do interesses de um grupo, na forma material como um monu- Depósito. Através deste grupo foi elaborado, em 2012, a lista mento ou também imaterial como uma prática local, possi- de recomendações sobre o território exposta na Carta de bilita não só a transmissão seletiva / recriação da memória Recomendações do Valongo. Esses documentos são coletiva, mas também, forma um valioso suporte para a con- marcos temporais do ressurgimento do Valongo como um ter- strução identitária de uma comunidade. Na materialidade do ritório oficial dentro da cidade. espaço, o monumento cria dispositivos para transmissão de Neste processo de legitimação do território, a oficial- uma memória, estabilizando lembranças e celebrações. Pois, ização dos sítios arqueológicos como bens patrimoniais for- ao solenizar um acontecimento, um personagem ou um lugar mam um valioso suporte para memória coletiva da região fomenta co-memorizações e legitima um recorte simbólico e para uma identidade local, reafirmando sua história e re- do território. Consequentemente, marca uma identidade sistindo perante as transformações impostas pelo tempo e cultural praticada no espaço. Sendo assim, o monumento ou pelo Estado. Além da Pedra do Sal, tombada como patrimônio local patrimonializado formam uma ponte entre o tangível, na década de 1980, e o tombamento dos outros sítios no lo- na sua materialidade, e o intangível, no que é sentido, insti- cal, como o Cemitério dos Pretos Novos, o Cais do Valongo e gando práticas que relembram e complementam narrativas Cais da Imperatriz, a Docas PII, o Jardim Suspenso e o Largo 150 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. [Tradução: Klauss do Depósito, todos aglutinados no circuito turístico da cidade, Brandini Gerhardt]; São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, Vol. II. em 2013, o Cais do Valongo foi incluído como bem patrimo- 305 nial do projeto A Rota do Escravo, da UNESCO. E a partir de GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método. (Vols 1 e 2). 2014 passou a ser candidato a Patrimônio da Humanidade Petrópolis. Ed. Vozes. 2012. pela UNESCO. A identidade territorial marcada pela herança africana, GUATTARI, Felix. Revolução molecular. São Paulo. Ed. exposta através das práticas coletivas e pelas expressões Brasiliense. 1987. (ROLNIK, Sueli) Micropolícas: cartografias artísticas, está relacionada com a produção e jogo de senti- do desejo. dos, desejos e disputas na interação dos principais atores da região, dentro os quais são aqueles que fazem do território, HALL, Stuart. Da Diáspora: identidade e mediações cul- o Valongo, vivo. turais. 2ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. Por fim, além dos três lugares de memórias apontados, destaco mais um local como um lugar de memória: o Largo LE GOFF, Jacques. História e Memória. [Tradução: Ber- do Depósito, como o local de comércio, mas também marcado nardo Leitão]; Coleção Repertórios, São Paulo: Editora da pela luta coletiva através dos primeiros grupos sindicais. Em- UNICAMP, 1990. bora incluso no circuito turístico, sua apropriação por atores sociais da região na promoção do local em eventos culturais, LEITE, Rogério Proença; PEIXOTO, Paulo. Políticas urbanas como o Afoxé Filhos de Gandhi, ainda é incipiente. Sendo as- de patrimonialização e sim, estes quatro locais autenticam e reafirmam a história dos contrarrevanchismo: o Recife Antigo e a Zona Histórica afrodescendentes na região. Fomentam sentimento de pert- da Cidade do Porto. Cadernos encimento e apropriação que faz do Valongo um território Metrópole. ISSN (impresso) 1517-2422;(eletrônico) vivo, e também um símbolo de resistência. 2236-9996, n. 21, 2009.

BIBLIOGRAFIA NORA, Pierre. Entre Memória e História: a Problemática dos Lugares. [Tradução: Yara Aun Khoury]; Revista do Progra- ABREU, Maurício de Almeida. Sobre a Memória das Ci- ma de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamen- dades. Revista TERRITÓRIO, ano III, nº 4, jan./jun. 1998. to de História da PUC – São Paulo-SP, 1981.

ANDERSON, Benedict R. Comunidades Imaginadas: re- POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. flexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo / Benedict [Tradução: Dora Rocha Flaksman]. Estudos Históricos, Rio de Anderson; tradução Denise Bottman. – São Paulo: Compan- Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. hia das Letras, 2008. ____ Memória e Identidade Social; Estudos Históricos, ARANTES, A. A. O patrimônio imaterial e a sustentabili- Rio de Janeiro, Vol 5, n. 10, 1992, p.200-212 dade de sua salvaguarda. RESGATE Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 1, n. 13, 2004, p. 11-18. RELPH, Edward. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência de lugar. In.____ CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. [Tradução: Klauss Brandini Gerhardt]; São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999, MARANDOLA, Eduardo, HOLZER, Werther, OLIVEIRA, Lívia Vol. II. de (Orgs)..:____Qual o espaço do lugar?: geografia, episte- mologia, fenomenologia. São Paulo. Ed. Perspectiva. 2012. CRAVATTE, Céline. L’anthropologie du tourisme et l’au- thenticité. Catégorie analytique ou catégorie indigène ? Cahiers d’études africaines [En ligne], 193-194 | 2009, mis en ligne le 25 juin 2009, consulté le 27 septembre 2017. URL: http://etudesafricaines.revues.org/18852.

306 PAISAGEM CULTURAL NO SERTÃO: O ESTUDO DA ed in the city of Pombal, in the State of Paraíba, through the FAZENDA SÃO JOÃO, POMBAL - PB application of the concept of Cultural Landscape as a way of understanding the relationship between this heritage and FERREIRA, Bruna Raíssa Santos151 the natural landscape where it is inserted. In this way, it was Especialista em História do Nordeste do Brasil pela verified that the intrinsic relationship between the people Universidade Católica de Pernambuco, e Graduada and the caatinga was determinant in the formation of this em Turismo pela Faculdade Santa Helena. [email protected] society, reaffirming the importance of this patrimony as an expressive document in the culture of the sertanejo people. RESUMO Keywords: Sertão, Cultural Landscape, Rural Retratos do processo de ocupação do semiárido brasilei- Heritage. ro, as fazendas de gado nortearam a expansão territorial do sertão simbolizando um dos mais representativos exemplares INTRODUÇÃO do patrimônio sertanejo. Relegadas ao esquecimentos dos órgãos patrimoniais, essas fazendas vêm perdendo espaço No Brasil, a ideia de sertão ligado a uma região interiora- para o desenvolvimento urbano, levando com elas a repre- na, inóspita e sem lei se desenvolveu ainda durante os primei- sentatividade de um importante período da história bra- ros anos da colonização, criando uma divisão entre o sertão e sileira. Logo, essa pesquisa apresenta a análise da Fazenda o litoral, tido como o lugar do civilizado, e os sertões como o São João, localizada no município de Pombal, no Estado da lugar do selvagem (SILVA, 2006). Paraíba, através da aplicação do conceito de Paisagem Cultur- Necessários quase dois séculos para o processo de al como forma de compreender a relação existente entre esse povoamento dos sertões tomar força, com a expansão do patrimônio com a paisagem natural onde está inserido. Dessa criatório de gado e do cultivo agrícola como motivação para forma, constatou-se que a relação intrínseca entre o sertanejo as entradas, os colonizadores encontraram nos sertões a sin- e a caatinga fora determinante na formação dessa sociedade, gularidade de um clima semi-árido, de pouca chuva e alta reafirmando a importância desse patrimônio como documen- temperatura, onde a flora desconhecida somada a uma dis- to expressivo no que consta a cultura do povo sertanejo. tribuição geográfica contrastante nortearam um processo de adaptação que se faz inerente ao seu tempo e espaço. Palavras-chave: Sertão, Paisagem Cultural, Ao apurar o processo de reconhecimento e proteção do Patrimônio Rural. patrimônio rural sertanejo nos deparamos com uma vasta distinção nas ações voltadas à salvaguarda de seus exem- Abstract plares. Portraits of the process of occupation of the Brazilian A pouca importância que, com frequência, semi-arid, the farms of cattle guided the territorial expan- e atribui a economia dos Sertões do Norte é similar ao desmerecimento da vida social e sion of the sertão, symbolizing one of the most representa- da cultura material praticada nessas áreas. tive examples of the sertanejo patrimony. Relegated to the Tornou-se a vida dos engenhos como uma forgetfulness from the patrimonial organs, these farms have metáfora da sociedade colonial, a sua ex- been losing space for the urban development, taking with pressão mais constitutiva e efetiva, sendo a them the representativeness of an important period of Bra- vida nos sertões - e nas fazendas de abaste- zilian history. Therefore, this research presents the analysis of cimento - legada a um eclipse quase total. a representative of this patrimony, the São João Farm, locat- (DINIZ, 2013, p.38).

151 Especialista em História do Nordeste do Brasil pela Universidade O acanhado reconhecimento das edificações ligadas a Católica de Pernambuco, e Graduada em Turismo pela Faculdade Santa economia do gado e a indiferença ao valor histórico que elas Helena. 307 carregam apontam uma negligência existente no que cons- em campo a observação desses bens edificados e a seleção de ta ao patrimônio edificado das zonas rurais do sertão, palco um exemplar que os representasse. Após a visita a algumas do processo de expansão territorial do país, protagonistas de fazendas na região nos deparamos o casarão da Fazenda São uma economia que movimenta o sertão desde suas primeiras João, uma edificação imponente em relação às demais que se entradas. mantém íntegra as características que nortearam a edificação Cientes de que a economia do gado foi um elemento de fazendas de gado no sertão. Entrando em contato com a essencial na formação cultural sertaneja e atentos ao valor família sob o intermédio do pesquisador paraibano Verneck da caatinga como um bioma exclusivamente brasileiro, bus- Abrantes, foi possível ter acesso a estrutura e a história que camos analisar o patrimônio tomando como base o seu en- esta representa, recebendo de José Dantas, neto do fundador torno, o ambiente que moldou no sertanejo as suas peculiar- da fazenda, um livro de sua autoria onde o mesmo narra suas idades e incutiu nos seus costumes as ranhuras dessa relação experiências na propriedade e de forma minuciosa apresenta homem-natureza. as estruturas que um dia fizeram parte da fazenda até a sua Logo, fundamentamos na aplicação do conceito de constituição atual, nos servindo como fonte de análise entre a paisagem cultural a análise dessas estruturas, como forma edificação durante o tempo e o que se fez possível encontrar de compreender essa relação do sertanejo com a caatinga, no hoje, durante a pesquisa de campo. observando o seu processo de edificação e a sua estruturação Compreender as influências dessa estrutura domiciliar como um “testemunho do trabalho do homem, de sua relação na construção socioeconômica e cultural do sertão nordestino com a natureza, como um retrato da ação humana sobre o possibilita evidenciar a história dessas edificações, o seu val- espaço ou ainda como panorama e cenário” (WINTER, 2007, or arquitetônico, cultural e, na sua junção, paisagístico, tido p.14). o seu protagonismo na formação do sertão elucidando o seu Ao compreender que, de acordo com as práticas estatais valor como um importante objeto de estudo para a historio- de preservação patrimonial no Brasil, a relação da paisagem grafia e demais campos de estudo. com o bem cultural só ganhará valor após a sua associação ao bem arquitetônico (WINTER, 2007), buscamos analisar as NOÇÕES DE PATRIMÔNIO: A PAISAGEM CULTURAL edificações que concretizaram a economia do gado cientes COMO CONCEITO da extrema importância dessas edificações para o estudo da paisagem sertaneja. Surgido originalmente do latim patrimonium - que se- Fugindo da dicotomia patrimonial do tangível e in- gundo Choay (2001: 17) “deriva de monere (“advertir”, “lem- tangível, encontramos nas nuances existentes da relação brar”) aquilo que traz à lembrança alguma coisa”, o conceito entre a natureza e o homem uma forma representativa cul- de patrimônio viria a ser diferentemente empregado em di- turalmente de uma determinada sociedade materialmente. versos campos do conhecimento com o passar do tempo, po- Compreendendo o valor do domicílio como um importante dendo ser compreendido sob diferentes sentidos, apresentan- objeto de estudo, nos direcionamos a casa-sede da Fazenda do na ideia de pertencimento o norte para a sua conceituação São João utilizando-o como documento de análise no qual nas mais diversas áreas. a aplicação do conceito de paisagem cultural potencializa a Gonçalves (1996: 81) atribui ao patrimônio a ideia de leitura da estreita relação do sertanejo com o espaço natu- “propriedade herdada do pai ou de outro ancestral”, um ral, possibilitando assim a leitura dessa relação e a sua con- sentido que conduzirá a construção de conceitos voltados tribuição nos costumes que deram forma a cultura do sertão ao patrimônio no âmbito cultural, cujas práticas encontrarão como a conhecemos hoje. reforços na edificação da identidade nacional, buscada desde A partir do levantamento de dados realizados inicial- a formação do Estado moderno, ainda no século XIX, onde as mente, configuramos o recorte espacial baseando-se na im- ações voltadas à preservação do patrimônio cultural no Bra- 152 portância do município para a historiografia paraibana, nos sil serão intensificadas durante o período do Estado Novo, dirigindo ao município de Pombal com o objetivo de realizar 152 Os primeiros projetos de lei voltados a preservação do patrimônio histórico no Brasil datam da década de 1920, quando são datados os 308 gestado por Getúlio Vargas, sob a proposta de unificar o povo Defendida por pesquisadores como o geógrafo Rafael brasileiro utilizando seus monumentos históricos (MARINS, Winter, que apresenta o estudo da paisagem cultural como 2016), fundando, em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico uma categoria “que expressa a relação do homem com o seu e Artístico Nacional, o SPHAN (atual Instituto do Patrimônio meio natural, mostrando as transformações que ocorrem ao Histórico e Artístico Nacional). longo do tempo” podendo ainda “ser lida como um testemu- Em seus primeiros anos de ação, ao privilegiar o tomba- nho da história dos grupos humanos que ocuparam determi- mento como instrumento jurídico preservacionista, o SPHAN nado espaço” (WINTER, 2007, p. 9), o conceito de paisagem consagra “uma memória nacional vinculada apenas a deter- passou por diversos processos de construção e experiências minados segmentos da sociedade e a um estilo arquitetôni- até chegar à concepção de paisagem cultural difundida at- co predominante, no caso, o barroco” (FERNANDES, 2010), ualmente, onde o valor da paisagem como documento é atribuído como símbolo de uma arte e cultural tipicamente defendido por especialistas em patrimônio cultural e natural, brasileira, edificadas a partir do modelo europeu. como Mechthild Rossler, diretora da Divisão do Patrimônio e A preponderância da preservação de bens materiais de do Centro do Patrimônio Mundial, ao afirmar que: natureza arquitetônica pode ser explicada, segundo Winter As paisagens culturais são particularmente (2007, p. 73), pela “predominância dos arquitetos na Insti- vulneráveis às mudanças sociais, econômi- tuição” tendo sido “poucos os tombamentos que visavam as cas e ambientais. A manutenção do tecido áreas naturais ou aspectos que revelassem relações entre o das sociedades, dos conhecimentos tradicio- natural e o cultural”, como aponta Marins: nais e das práticas indígenas é vital para a A canonização da arquitetura monumental, sua sobrevivência. Em muitos casos, as pai- do barroco e da mestiçagem como evidên- sagens culturais e os sítios naturais sagrados cia do ethos nacional chegará à década de são de importância vital para a proteção dos 1980 ainda plena de vitalidade, assim como valores e do patrimônio intangíveis. [...] a herança autoritária e excludente das práti- São locais onde podemos aprender sobre cas de eleição patrimonial, concentrada nos a relação entre as pessoas, a natureza e os técnicos e na aparente neutralidade de suas ecossistemas e como isso molda a cultura, a escolhas, derivadas sobretudo da descrição identidade e enriquece a diversidade cultu- formalista e estilística dos monumentos ar- ral e, em alguns casos, biológica. (ROSSLER, 2004, p. 7). tísticos. (MARINS, 2016, p. 11). Logo, a paisagem cultural é fruto da interação do homem Essa construção identitária do patrimônio encontrará com o meio natural de forma intrínseca e coexistente, exer- novas abordagens a partir de 1980, durante o processo de cendo nesse patrimônio o testemunho do processo evolu- redemocratização do Brasil, com a inserção de edificações cionário da sociedade diante do ambiente no qual está inseri- referentes a grupos étnicos que deram forma ao país, como do e como essa interação influencia a cultura local. os afro-brasileiros e imigrantes, até então consideradas pelas vertentes classistas da arquitetura como “expressões exóticas” em relação às tradições advindas do período colonial brasilei- DO LITORAL AO SERTÃO: A EXPANSÃO TERRITORIAL ro (MARINS, 2016, p. 12), tomando um impulso ainda maior PARAIBANA quando a desconstrução da visão dicotômica do patrimônio, Entre as tantas razões levantadas para a formalização dividido entre o material e o imaterial, encontra uma nova do processo de povoamento sertanejo, é sob o pretexto de perspectiva nos novos conceitos e experiências que passam a proteção do território que Portugal fortalece a necessidade surgir tomando um novo elemento determinante na leitura de adentrar os sertões, cientes da presença dos gentios, cuja do patrimônio cultural, a paisagem. independência do domínio português passa a ser um risco diante da parca influência da coroa nas áreas interioranas do primeiros projetos de lei a esse respeito, (PINHEIRO, 2006). 309 Brasil, onde Guedes (2005) aponta a fragilidade diante dos já não se davam apenas percorrendo o leito inimigos estrangeiros como impulso para a viabilização da dos rios, mas estradas já existiam desde os colonização dos sertões, buscando assegurar a posse destas primeiros anos dos setecentos, exemplo da áreas assim como criar nelas mecanismos de defesa. referência acima de 1703. E estas primitivas É a partir desse processo de expansão territorial que os estradas tinham como um dos seus pontos sertões do norte passam a ser ocupados, e a concessão de de convergência a própria Povoação de sesmarias e a criação dos currais culminam na formação do Nossa Senhora do Bom Sucesso (Pombal), sertão nordestino atual tendo como um de seus primeiros nú- que se articulava com a cidade da Parahyba, sede da capitania, e com os núcleos de po- cleos urbanos o município de Pombal, no interior da Paraíba, voamento das capitanias de Pernambuco, que com seus 223 municípios em meio a uma área de 56.468 da Bahia, do Ceará e do Rio Grande do Norte. km dá forma a um dos menores estados do Brasil. (SARMENTO, 2007, p. 110). A atual cidade de Pombal foi o primeiro povoado do sertão paraibano e uma das pri- Elevada à condição de cidade e sede municipal sob a de- meiras do interior nordestino, formado pela nominação de Pombal em 21 de julho de 1862, “a economia então expedição exploratória de Teodósio de da Paraíba se resumia à agricultura e à pecuária, com exceção Oliveira Ledo. Aclamado como “o desbrava- de Pombal, onde acontecem feiras de gado, movimentando dor do sertão”, sua missão, além da explora- o comércio da região” (DINIZ, 2013, p. 107), sendo esta uma ção e reconhecimento das terras desconhe- das razões pela qual até 1960 a população da zona rural cidas, também foi a de “domesticar” índios sobrepunha a urbana no município - a população da zona e construir povoações no interior, estratégia urbana era de pouco mais de 8 mil habitantes, enquanto a para expandir e consolidar o poder coloniza- população rural chegava próximo aos 40 mil - segundo Sousa dor sobre as terras até então desconhecidas. (2017). (SANTANA, 2016, p. 75) Tomados pelo discurso de memória a ser preservada, o centro urbano da cidade de Pombal fora tombado a nível A história do município de Pombal se entrelaça à for- estadual pelo IPHAEP153 no ano de 2002, justificando seu “sig- mação dos sertões do norte da Paraíba, onde o protagonismo nificativo valor histórico, artístico, arquitetônico, cultural, am- da pecuária e da agronomia, através das fazendas e engenhos biental e paisagístico, para a memória daquela coletividade construídas durante o processo de ocupação territorial, fora sertaneja, destacando-se também como referencial para a determinante na formação da cultura sertaneja tal como a memória paraibana”. conhecemos hoje. Para Cabral (2005) os bens tombados pelo órgão repre- Tendo como marco inicial a construção da capela levan- sentam uma elite que busca resguardar fatos e personagens tada em taipa no ano de 1701, sob a denominação de Nossa de uma história tida como oficial e importante na construção Senhora do Bom Sucesso devido ao ‘bom sucesso’ encontrado da História do Estado. por Teodósio na luta contra os índios que habitavam a região, Ao analisarmos as diferentes formas com as quais o o crescimento da população e a ampliação da articulação com sertão se permite ser abordado e estudado, observamos a o litoral passa então a demandar uma maior estruturação na formação da paisagem sertaneja como um importante doc- região, o que culmina na construção de estradas que ligavam umento da sua construção cultural. Nos afastamos então do o então Arraial ao litoral da Paraíba, de Pernambuco e demais centro urbano pombalense e seguimos em direção a sua zona estados do nordeste. rural em busca de estruturas que contemplem a formação Verifica-se que o percurso desenvolvido dessa paisagem ao longo dos anos. entre a Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Pombal) e os pontos de povoa- 153 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba, mento, com os quais a mesma se articulava, órgão responsável pela fiscalização e proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural paraibano. 310 A COMUNIDADE DO SÍTIO SÃO JOÃO como casas de farinha, engenhos de ca- na-de-açúcar, armazéns etc., harmoniosa- Tendo na sua origem pertencido ao Frade Jesuíta Manoel mente relacionadas com a paisagem em de Arruda Câmara, recebendo menção nos documentos de volta. (DINIZ, 2013, p. 145) sesmarias, o sítio é formado pelo conglomerado de residên- cias que se apresentam como sítios do Sítio São João, estando Seguindo a descrição da arquiteta Nathália Diniz, esses a 8km da sede do município (SOUSA, 2017). elementos caracterizam um estilo de construção que se dis- Com pouco mais de 400 habitantes, as propriedade con- seminou nos Sertões do Norte desde o seu processo de ocu- struídas à margem do Rio Piranhas se voltam para a cultura pação, se fortalecendo ao longo dos séculos a partir da busca do criatório como principal fonte de renda de seus moradores, por materiais mais resistentes e com o desenvolvimento da destacando-se pela produção de alimentos como milho, fei- sociedade sertaneja. jão, batata doce, arroz, banana e etc., assim como a bovino- A implantação desses casarios nesse ambiente contou cultura de leite e de corte, e a criação de caprinos e ovinos, desde o início com a interação direta do homem com a sua que são realizadas no entorno das propriedades objetivando o paisagem, no caso do desenvolvimento rural (neste caso no armazenamento desses insumos e a comercialização do exce- sertão nordestino), utilizando a arquitetura vernacular, onde dente na feira realizada semanalmente no centro de Pombal. a matéria prima para edificação desses bens é encontrada na Das menores casas de taipa aos casarões das antigas fa- própria natureza que a cerca, como técnica de construção. zendas construídas em tijolos de barro cozidos na região, se Essas edificações reforçam apontamentos como os de destaca a relação intrínseca da matéria prima encontrada na Rossler (2004, p. 46) ao se qualificar como “locais onde po- região no processo de edificação das residências e estruturas demos aprender sobre a relação entre as pessoas, a natureza complementares com a produção agrícola e pecuária, que se e os ecossistemas e como isso molda a cultura, a identidade e destacam pela sua resistência às ações do tempo. enriquece a diversidade cultural”. É ainda mais evidente essa relação ao avaliarmos as dis- Essa interação é reforçada pela arquiteta Claudia Teixeira tinções arquitetônicas entre as residências de construção mais ao afirmar que “A arquitetura vernácula representa uma ex- recente quando comparadas a antigos casarões, construídos pressão coletiva que vêm da vivência do povo e que se desen- com tijolos e telhas de barro cozidos na região pelos propri- volve sem propostas teóricas, sem vanguardas intelectuais” etários das terras (muitas vezes utilizando da mão-de-obra (TEIXEIRA, 2008, p. 35), ou seja, o povo passa a ser protagoni- fornecida pelos quilombolas) para a edificação de casas altas, sta na edificação, literalmente, de seus monumentos, diferen- de largos alpendres e da presença constante do sótão, sím- ciando-se da arquitetura tida como erudita, âmago das ações bolos da arquitetura rural sertaneja, erguida sob essas carac- de proteção dos órgãos patrimoniais brasileiro. terísticas estilísticas até a metade do século XX. A distinção entre arquitetura erudita e não- Implantadas em altiplanos próximos a -erudita, ou vernácula, não reside nas ca- riachos ou a arroios perenes que, posterior- racterísticas do edifício em si, mas no modo mente, serviriam à construção de açudes, pelo qual foram concebidos e executados. as casas de fazenda de gado dispunham, Em outras palavras, o sentido de erudição ao seu redor, de um grande terreno, o que ou não erudição diz respeito a espécie de possibilitava tanto a identificação de movi- conhecimento empregada no processo de mentos estranhos nas proximidades quanto produção da arquitetura considerada. [...] É a visão dos currais, sempre localizados nas importante enfatizar que a condição de ser suas imediações. Essa implantação privile- ou não erudita não implica automaticamen- giada permitia ao fazendeiro controlar sua te uma evidência de qualidade arquitetôni- propriedade e afirmar o seu domínio. Em ca ou precariedade construtiva (SILVA, 1994, algumas fazendas, ao redor da casa-sede p. 136). construíam-se as edificações de produção,

311 Para Weimer (2012) apud Oliveira (2014), o termo que lhe garantiu a alcunha de ‘Profeta das Chuvas154’ e o prestígio melhor se emprega a este tipo de construção, seria arquitetu- de fazendeiro bem sucedido na região. ra popular, já que este termo designa aquilo que é próprio do conhecido como um homem rico, fazendeiro povo e que por ele é realizado, o que apenas reforça o valor vindo de Santa Luzia e instalou-se naquele desse patrimônio não apenas como um elemento incorpora- sítio São João, onde passou a ter grandes do à paisagem, mas como parte dela, possibilitando o estudo amigos e ser admirado por todos; vendia dessas edificações como documentos dessa relação ao longo remédios, a exemplo da dose de arnica, uma do tempo, como afirma Winter (2007): herança da mãe que também vendia e doa- A paisagem pode ser lida como um docu- va remédios aos pobres; tornou-se curador mento que expressa a relação do homem de animais no pasto; sua casa era sempre com o seu meio natural, mostrando as de fartura, um homem simples e inteligen- transformações que ocorrem ao longo do te, de caráter, firmeza, com exemplos nos tempo. A paisagem pode ser lida como um conselhos e opinião, num raciocínio lógico testemunho da história dos grupos huma- de pensar, planejar, sendo trabalhador e nos que ocuparam determinado espaço. organizado. (DANTAS, 1998, p. 131). (WINTER, 2007, p.9) Natural de Santa Luzia, Severino Mascena Dantas chegou Para tanto, partiremos da análise de uma edificação rural a região no ano de 1928 em busca da abundância de água no alto sertão paraibano objetivando a obtenção de resulta- prometida pelo Rio Piranhas, edificando no mesmo ano a ca- dos no tocante à maneira que essa paisagem foi modificada sa-sede da fazenda onde ao lado de sua esposa, Maria José, pelo homem ao longo dos anos e como o sertanejo encontrou formou uma numerosa prole de vinte filhos, dos quais pros- na paisagem natural os materiais necessários para desenvolv- peraram quinze. er não apenas as suas edificações, como também a própria cultura de um povo marcado pela resiliência em meio a um bioma singular no nordeste do Brasil. Tomando como base o protagonismo histórico da econo- mia do gado tal como precursor do desenvolvimento socio- cultural nos sertões, encontramos na casa sede de uma antiga fazenda do município de Pombal um objeto de estudo da paisagem cultural sertaneja, visando através da leitura desse bem desenvolver um modelo de análise que venha a possibil- itar novos estudos voltados a essas estruturas e que tragam a tona o seu valor histórico dentro de parâmetros que ultrapas- Figura 1 - Casa-sede da Fazenda São João. sem a dicotomia patrimonial existente no Brasil. Fonte: Autoria de Verneck Abrantes, 2004.

PAISAGEM E PATRIMÔNIO: DO CONCEITO À PRÁTICA A casa-sede da Fazenda São João se encontra à direita da estrada de solo arenoso margeada pelo Rio Piranhas. Um sob- Pertencente, ainda hoje, à família Mascena Dantas, a Fa- rado cujas características estruturais se destacam em relação zenda São João fora uma das principais propriedades do Sítio às demais residências na região por se enquadrar no estilo São João, destacando-se pelo êxito na produção de açúcar, al- arquitetônico comum a estas edificações até as primeiras dé- godão, fumo e criação de gado. Sucesso este creditado ao con- hecimento de seu patriarca no tocante às técnicas de plantio, 154 Homens e mulheres da zona rural nordestina que elaboram de irrigação e sobretudo a sua relação com à natureza, o que previsões sobre as chuvas a partir da observação da natureza, dos corpos celestes, das mudanças no ecossistema e demais métodos. 312 cadas do século XX, conforme descreve Lamartine (apud 1996 Para Dantas (1998, p. 54) “A casa era muito segura com apud DINIZ, 2013, p. 42) janelas e portas feitas de cumaru e com travas de madeira, para evitar assalto de ladrões e de cangaceiros”, segurança Assentada no alto, para melhor aproveitar a fresca dos ventos [...] era de construção só- essa que fora reforçada através da fixação de grades de ferro bria, alpendrada, de duas águas e levantada nas janelas, buscando proteger a residência das volantes de com madeira, pedra, tijolo e telha da própria cangaceiros que assolavam a região. fazenda. Não oferecia a beleza artística dos casarões de açúcar, de grades de ferro tra- balhado e arabescos de argamassa e pedra. Nenhum enfeite transparecia de sua arqui- tetura e seu conforto maior parecia residir no frio das lajes do alpendre ou na carícia da rede armada no quarto do sótão de ferra- gens grosseiras, chaves que, algumas vezes, Figuras 2 e 3 - Fotografias do casarão no ano de 1998. mediam um palmo. Em muitas, os próprios Fonte: Acervo de José Dantas, neto de Severino. armadores das redes eram de madeira. As janelas de duas bandas quase sempre se fe- O amplo terreno em frente à residência, comumente chavam em traves. (LAMARTINE, 1996 apud conhecido nos sertões como terreiro, é delimitado por uma DINIZ, 2013, p. 42) mureta construída ainda nos primeiros anos da família na fa- zenda, seguindo as mesmas técnicas construtivas do casarão. Seguindo os apontamentos de Lamartine sobre a es- A mureta, além de proteger contra o acesso de animais no truturação das edificações rurais sertanejas, analisamos o espaço, servia como delimitação espacial da propriedade casarão da família Dantas e as estruturas anexas que deram frente às constantes visitas, posto que segundo Alcides forma a antiga fazenda como um exemplar de uma paisagem Dantas, bisneto de Severino, o casarão “servia de abrigo pra que tomou forma a partir dessas edificações, de uma relação os viajantes que transportavam cereais a época a lombo de intrínseca da comunidade com a natureza sob o qual o objeto burro pra Campina Grande”. Bem recebidos na propriedade, material seguiu as necessidades e prioridades de seus edifi- como de costume na cultura sertaneja, era comum que estes cadores. visitantes pernoitassem na fazenda e seguissem viagem no Erguido num ponto elevado da região, o seu posiciona- dia seguinte. mento voltado para a margem do Rio Piranhas lhe garantia No lado direito da casa sede, as ruínas do antigo curral o resfriamento dos ventos que alcançam a edificação, onde o construído em pedra e madeira resistem às ações do tempo 155 acréscimo de uma cumeeira alta permitia aos moradores e do abandono, serviam para “separar os bezerros das vacas, gozarem de um conforto térmico, mesmo situados em meio para tirar o leite, vacinar e ferrar o gado”, como afirma José ao clima quente e seco do sertão. Dantas, neto de Severino, “tanto o curral como a casa eram A alvenaria feita em adobe, material vernacular que pintados à cal” (DANTAS, 1998, p. 54). antecede os tijolos de barro cozido em olarias, utilizava barro branco e água encontrados nas proximidades para sua con- Ainda na lateral da casa grande fica- fecção, podendo ser adicionado à mistura outros materiais vam dois currais enormes, feitos com pilares encontrados na localidade, como esterco, palha e etc. Para de alvenaria, num ficavam as vacas leiteiras, o revestimento da casa fora utilizado uma mistura de barro no outro os bezerros que eram separados branco e cal, posteriormente sendo somado o cimento na prá não mamar; pela manhã, o vaqueiro ou seus próprios filhos tiravam o leite que era elaboração da argamassa. desnatado na desnatadeira, depois faziam queijos e manteigas com abundância que 155 Parte mais alta do telhado onde se apoiam os caibros. 313 serviam para o consumo e também para As duas largas salas, a primeira chamada comumente vender na feira de Pombal. Do lado di- de “sala da frente” e a segunda tratando-se da sala de jantar, reito e esquerdo do casarão existiam dois eram lugares de descanso, convivência e também de pernoite, armazéns, um para guardar os rolos de sendo oferecidas também aos visitantes e viajantes que cheg- fumo e o algodão, no outro uma espécie de avam a fazenda como local para descanso, onde a elevada almoxarifado onde guardavam as ferramen- existência de armadores (alguns em madeira, mais antigos tas utilizadas na agricultura, além do milho, e raros de se encontrar nos dias atuais devido o advento dos feijão, batata e etc. (DANTAS, 1998, p. 54, ganchos de ferro) evidenciam a predominância das redes em grifo do autor) relação à camas. Segundo Diniz (2013, p.) “no que diz respeito a estabe- A mobília da casa grande era simples lecimento de produção, cada tipo de atividade econômica e modesta, 2 bancos de madeira no alpen- implica uma determinada necessidade arquitetônica”, razão dre, na sala, os tamboretes ou cadeira co- essa que norteará a instalação de anexos e de determinadas berta de couro, no quarto 1 cama de ferro estruturas em pontos estratégicos da propriedade, como é o e 2 baús, na sala de jantar, 1 enorme mesa caso dos currais que eram construídos próximos à casa, facil- de madeira com 2 bancos, onde sentavam itando a observação e os cuidados do proprietário, e do roça- mais de 30 pessoas que faziam refeições, durante quatro vezes por dia: café da do, cultivado próximo aos açudes e rios, visando a qualidade manhã, almoço, jantar e ceia; num do terreno bem irrigado. recanto ficava o petisqueiro onde guardava Quanto à estruturação da casa-sede, se faz típico dessas as louças e no outro a desnatadeira edificações o largo alpendre na entrada onde, visto o elevado que desnatava o leite quando chegava do número de ganchos fixados na parede, é possível perceber curral. Na cozinha existiam 2 potes de barro que tinha como utilidade não apenas como espaço para rece- para a água de consumo, 1 pilão de madeira ber e estar, funcionando também como ponto de observação onde 6 mulheres, cada uma com uma mão da fazenda e de descanso dos seus trabalhadores, como apon- de pilão, pisavam milho torrado, milho zaro- tado por Diniz (2013). lho ou de molho com o que faziam o cuscuz ou angu para os trabalhadores comer com Implantadas em altiplanos próximos a leite ou coalhada adoçada com rapadura. O riachos ou a arroios perenes que, posterior- xerém ficava para os pintos e papagaio. mente, serviriam à construção de açudes, (DANTAS, 1998, p. 53). as casas de fazenda de gado dispunham, ao seu redor, de um grande terreno, o que possibilitava tanto a identificação de movi- A cozinha, vão posterior à sala de jantar, dispõe de um mentos estranhos nas proximidades quanto fogão a lenha também construído em adobe, posteriormente a visão dos currais, sempre localizados nas sendo substituído por um fogão de tijolos cozidos e que at- suas imediações. Essa implantação privile- ualmente se apresenta rebocado com cimento. Configurando giada permitia ao fazendeiro controlar sua um dos principais instrumentos da cultura sertaneja, o fogão propriedade e afirmar o seu domínio. Em a lenha, posteriormente recebendo a adesão do forno, é uti- algumas fazendas, ao redor da casa-sede lizado até hoje na zona rural sertaneja, mesmo com a chegada construíam-se as edificações de produção, da energia elétrica e o advento da industrialização. como casas de farinha, engenhos de cana- Os dois quartos da residência eram reservados para o -de-açúcar, armazéns etc., harmonio- casal e para as filhas, os filhos dormiam nas salas, oferecidas samente relacionadas com a também aos visitantes e viajantes que chegavam à fazenda, paisagem em volta. (DINIZ, 2013, como local para descanso. Confeccionadas pelas mulheres da p.145, grifo nosso).

314 família, as técnicas utilizadas na elaboração das redes eram gado era modesto em relação aos agricul- perpetuadas de mãe para filha. tores. Mas, tal como na Capitania do Rio O primeiro quarto, próximo a entrada frontal da residên- Grande do Norte, o número de escravos era cia, tem acesso às duas salas e era reservado ao chefe da bastante elevado. (DINIZ, 2013, p. 99) família e sua esposa, Severino e Maria José, onde segundo Dantas (1998, p. 53) “havia uma cama de cano de ferro; as Em 1925, Severino viria a construir um açude a aprox- demais pessoas da família dormiam na rede”. O quarto das imadamente 1km na parte posterior da residência, utilizan- filhas, que dá acesso à sala de jantar, serve de passagem para do de cerca de 300 jumentos alugados, importante meio de o sótão, dispondo de uma escada que leva até o tabuado que produção no sertão. O açude foi cavado pelos trabalhadores tinha como função: da fazenda e a terra fora transportada pelos animais até as margens, para formar uma espécie de barreira de contingên- armazenar o arroz, a rapadura, um enorme cia para a água. caixão com farinha produzida na fazenda, as armas como: cravinote, mausa, munições e espada, as montarias: sela, silhão, esteira, espora, arreios para o cavalo, o chapéu de couro com abas levantadas à frente e atrás, gibão e colete de couro, perneiras, joelhei- ras, luvas e botas. (DANTAS, 1998, p. 53)

A estrutura da casa fora elevada por madeiras encontra- das na região, como o miolo de angico e de aroeira, servindo de base para a edificação e também na confecção de linhas Figura 4 - Visão superior de um recorte da Fazenda São João. para a cobertura da mesma, mantendo-se, mesmo depois de (A) casa-sede da fazenda, (B) localização do antigo engenho, (C) casa quase um século. Os brabos156 de aroeira e angico no telhado de farinha, (D) Ponte São João. (1) Açude Severino Mascena, (2) e (3) em duas águas, típico da região, tendo sido trocada a cober- açudes menores da propriedade. Fonte: Google Maps com alterações feitas pela autora. tura pela última vez em 1998, substituída por materiais mais novos. O alpendre ainda dispõe das madeiras de sustentação O açude serviu como fonte de irrigação da fazenda, suas originais, assim como o piso feito em adobe se mantém orig- margens dispondo de solo de qualidade para a produção inal até os dias atuais. agrícola, abrigando em suas proximidades a casa de máquina A construção da casa sede, assim como as demais estru- e a casa de caldeiras do engenho da fazenda, onde segundo turas anexas da fazenda, fora realizada utilizando como mão Dantas (1998, p. 52) “O equipamento era composto de uma de obra alguns dos moradores do quilombo da região, se dest- bolandeira (roda de madeira dentada), almanjarra com duas acando a importância do senhor Biró do Sul157, com quem o linhas de madeiras movidas pela força animal, ou seja, pela patriarca viria a desenvolver uma grande amizade. A presença junta de bois”. O engenho ainda dispunha de uma terceira de grupos quilombolas na região é decorrente do elevado casa onde era armazenada a rapadura e funcionava a cozinha número de escravos presentes no sertão paraibano durante os onde as comidas eram preparadas para os trabalhadores que séculos XVIII e XIX, como afirma Diniz (2013). chegavam a um contingente de 100 pessoas durante o perío- No caso da Capitania da Paraíba, a ocupação do de moagem (DANTAS, 1998). da maioria da população estava vinculada Ainda utilizando o açude Severino desenvolveu um sis- à agricultura, e o número de criadores de tema de irrigação encanada que distribuía a água represada aos demais locais da propriedade, entre eles a residência 156 Madeiras envergadas responsáveis pela sustentação do teto. da família e os anexos que se instalavam no seu entorno, se 157 O nome faria referência a seu lugar de origem no continente africano. destacando a facilitação do abastecimento nos currais que 315 contava com a criação de gado bovino, caprino e, até os anos A propriedade que inicialmente dispunha de cerca de 1970, ovelhas. Segundo Dantas (1998) as áreas de cultivo se 500 hectares de terras, hoje se encontra com aproximada- encontravam na: mente 130 hectares divididos entre os herdeiros. O casarão foi habitado pelo neto de Severino, Arquilau Dantas e sua vazante e barreira do Rio, 1ª faixa da mar- gem do rio, 2ª faixa (mais afastada) da esposa Auxiliadora (Dodora) até os primeiros anos do século margem do rio - roçado da frente, 3ª faixa XXI, quando os mesmo saíram da antiga casa sede da fazenda emendada com o serrado, vazante do açu- e foram morar em outra residência da família, ainda no Sítio de, e altos e lombadas próximos ao açude, São João. mais afastado - meio da manga e beira de Com o fim do engenho a sala da frente passou a sediar riachos. (DANTAS, 1998, p. 29) a fabricação da farinha, onde encontramos o forno utilizado para mexer a farinha enquanto é cozinhada e a prensa de ma- A dieta, a base de milho, farinha, doces e diversos tipo deira construída a mão com madeira trazida do Pará, ambas de carne preenchia as mesas da família e dos trabalhadores, as peças foram construídas no ano de 2002. como cuscuz, buchada, arroz da terra com leite, rubacão, feijão machucado misturado com nata, manteiga e coentro, bolo de mandioca e os demais alimentos típicos da região (DANTAS, 1998), incutindo nas receitas as necessidades fisi- ológicas do povo que, devido o trabalho constante e extenso na lavoura, demandava um regime que suprisse a demanda energética por um longo período de tempo, utilizando os in- grediente cultivados na própria terra. Figuras 5 e 6 - Forno e Prensa da Fazenda São João. O destaque do algodão e da cana de açúcar no setor Fonte: Acervo da Autora econômico paraibano se mantém até hoje, onde a produção dessas culturas contribuiu para o êxito da fazenda como uma Hoje a estrutura da fazenda se limita ao casarão, as ruínas importante produtora na região, somada também ao cultivo dos currais, e o armazém ao lado direito da casa que, um dia de farinha, milho, feijão, arroz vermelho, batata doce, jerim- reservado para os materiais da lida do gado, hoje se encontra um, mandioca, macaxeira, amendoim, fumo e outras mais. vazio e em processo de arruinamento. Há muito vazios. Não Segundo Dantas (1998, p.51) “Outra fonte de economia na encontramos evidências físicas do segundo armazém, edifi- fazenda era a produção de rapadura que fazia tanto para con- cado no lado esquerdo do casarão, como apontado por José sumo como para vender”. Dantas (1998). Ao contrário das capitanias do Ceará e do Na lateral direita ficava o armazém com Rio Grande do Norte, a principal renda dos 3 quartos, para guardar o fumo, batata, je- cofres paraibanos, em geral, estava relacio- rimum, o feijão e o milho que eram guarda- nada à cultura de cana-de-açúcar e do algo- dos nos silos de zinco. No lado esquerdo dão, cabendo à criação de gado um papel o outro armazém servia para guardar as secundário, embora contribuindo de forma cangalhas dos burros e as ferramentas uti- significativa. (DINIZ, 2013, p. 110). lizadas na agricultura: enxada, foice, facão, alavanca [...] além dos apetrechos da caça e A fazenda, seguindo o apontamento acima, era uma im- pesca: espingarda, arapuca, arataca, anzol, tarrafa e landuá. (DANTAS, 1998, p. 54, grifo portante produtora de rapadura, fumo e algodão, voltando-se do autor) para a subsistência e para a comercialização dos produtos na feira realizada no centro de Pombal. Após o falecimento de Severino em 1986, aos 81 anos de idade, a fazenda foi passada aos herdeiros que seguiram com

316 a produção de mandioca, milho e demais culturas cultivadas potencial desses bens como objetos de estudo da história, na propriedade, além da criação de gado bovino e caprino. transpondo o seu valor arquitetônico e alcançando as junções Porém, se pela ausência dos saberes de seu patriarca ou pe- dessa cultura na formação de um patrimônio paisagístico, las variações climáticas que assolaram a região, a produção visto que essas residências nortearam o processo de extensão da fazenda passou a cair tanto na quantidade quanto na territorial no sertão. qualidade, chegando em 2004, após uma cheia do Rio Pira- A aplicação do conceito de paisagem reafirma, a partir nhas que inundou toda a produção de mandioca mantida às de seus resultados, o valor desse patrimônio não apenas como margens do rio, a encontrar dificuldades na manutenção da um símbolo da economia do gado, mas como um documento fazenda que veio a finalizar suas atividades no ano de 2009. a céu aberto das nuances que deram forma ao sertão como o As estruturas que davam forma ao engenho dos Dantas compreendemos hoje, tal como a importância da inclusão da desapareceram no tempo, porém a sua importância para a paisagem como um elemento determinante na constituição história da fazenda e do Sítio São João como um todo estão patrimonial. presentes nos costumes, rituais e características que tomaram A relação tênue entre o homem, aqui retratado por Sev- forma na correlação dos moradores com o espaço edificado, erino, e o meio no qual está inserido, reforçam a importância seja ela a partir do trabalho no engenho, na lida do gado ou da análise do objeto tomando como referência o objeto edifi- na vida cotidiana dessa família e das demais famílias sertane- cado e o seu entorno, dando forma a uma paisagem cultural jas que encontram nessas práticas o seu gênese cultural. que permeia a ideia de sertão difundida até hoje, um sertão Foi essa interação que deu forma à sociedade no sertão rural que contrapõe as ações dos órgãos responsáveis pela e que se apresenta como testemunho da evolução dessa so- evidenciação do seu patrimônio, já que as práticas protecion- ciedade no decorrer do tempo, tendo a paisagem como um istas ainda se limitam aos centros urbanos, com exceção ao importante elemento de leitura dessa construção social e conjunto de casa, capela e sobrado da Fazenda Acauã, único patrimonial. representante da arquitetura rural nordestina. Da edificação da casa a atribuição de anexos que somar- CONCLUSÃO am funções a fazenda durante os anos que se seguiram, a utilização da matéria prima encontrada na propriedade rep- Tendo em vista os aspectos observados durante a resenta uma relação que se mostra essencial na constituição pesquisa conclui-se que no tocante ao patrimônio analisado a da fazenda. Ciente de que esse bem representa um estilo de atuação da natureza foi essencial para a edificação das estru- edificações cujo potencial instiga o encontro de novos saberes turas materiais que deram forma ao patrimônio tal como ele nos mais diversos campos de estudos, podendo ele ser ana- é, onde a relação do indivíduo com o seu entorno se mostrou lisado a partir de uma visão arquitetônica, arqueológica, vital para a construção não apenas dos bens edificados, mas antropológica, entre outros. também na sua formação cultural e da sociedade ao redor. O potencial desse patrimônio se apresenta não apenas É de extrema importância que estudos voltados para o como objeto de estudo, mas também como um produto cul- patrimônio sertanejo encontrem formas de compreender tural passível a visitação e promoção, cujo potencial turístico a sua formação ultrapassando a dicotomia patrimonial se mantém inexistente. Ações que elenque esses bens ao do tangível e do intangível, encontrando nas nuances circuitos turísticos servem de forma muito mais efetiva na existentes da relação entre ambos uma forma representativa relação de reconhecimento dessas edificações tanto pelo pú- culturalmente dessa sociedade que desenvolveu-se em meio blico visitante, quanto pela própria sociedade sertaneja que ao semiárido de forma sistêmica, utilizando de saberes que passa a relacionar o valor atribuído a essas edificações a um não podem ser resumidos ao acaso, mas sim a técnicas bem empoderamento dessas estruturas como parte determinante elaboradas e difundidas pela sociedade sertaneja como um da história do sertão. todo. Logo, a difusão do seu reconhecimento e valorização é A influência da estrutura domiciliar na construção so- necessária não apenas para que esse patrimônio possa encon- cioeconômica e cultural do sertão nordestino evidência o 317 trar o devido espaço na categorização do patrimônio nacional, Programa de Pós- graduação em Geografia da Universidade mas para que também possa ampliar as visões e práticas no Federal da Paraíba. João Pessoa, 2006. que tange a concepção do patrimônio sertanejo. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da REFERÊNCIAS Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996 . CABRAL, Ana Karina Pereira. Políticas de Preservação do Patrimônio Histórico no Brasil e na Paraíba: o IPHAN, MARINS, Paulo César Garcez. Novos patrimônios, um o IPHAEP e o Turismo Cultural. 2005. novo Brasil? Um balanço das políticas patrimoniais federais após a década de 1980. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CHOAY, Françoise. 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Tese (Doutorado em História e Fundamentos da Ar- Arquitetura, Faculdade Damas, Recife, 2014. quitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. ROSSLER, Mechtild. Linking Nature and Culture: doi:10.11606/T.16.2013.tde-02072013-120148. Acesso em: World Heritage Cultural Landscapes. In: UNESCO; UNIVERSITY 2017-05-08. OF FERRARA (orgs). Cultural Landscapes: The challenges of conservation, Workshop. 11-12 Nov. 2002. (World Heritage ______. Velhas fazendas da Ribeira do Seridó. Papers, n. 7, 2003, p. 10-15). 2008. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura SANTANA, Flávio Carreiro de. Pombal moderna: ci- e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. dade, memória e oralidade (1930-1950). Sorocaba: Editora doi:10.11606/D.16.2008.tde-04032010-143402. Acesso em: Recanto das Letras, 2016. 2017-05-08. SARMENTO, Christiane Finizola. 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318 XVI-XVII). Estudos Ibero-americanos, Rio Grande do Sul, PATRIMÔNIO, TURISMO, MEMÓRIA v. , n. 2, p.43-63, dez. 2006. E IDENTIDADE NA REGIÃO MISSIONEIRA NO RIO GRANDE DO SUL SOUSA, Verneck Abrantes de. Um olhar sobre Pombal antiga (1906 a 1970). João Pessoa: A União, 2002. Vânia Gondim158 ULHT ______. Prefácio. In: SANTANA, Flávio Carreiro de. [email protected] Pombal moderna: cidade, memória e oralidade (1930 - 1950). 2016. RESUMO Este trabalho examina os resultados preliminares da ______. Verneck Abrantes. de (2017). POMBAL - PB. pesquisa para o doutoramento em Museologia Social da Uni- No prelo. versidade Lusófona em Lisboa. Investiga o Ponto de Memória Missioneiro, localizado em São Miguel das Missões/ TEIXEIRA, Claudia Mudado. Considerações sobre ar- RS. Tem como objetivo geral compreender o modo como a quitetura vernacular. Minas Gerais: Ed. PUC MINAS, 2008. tradição missioneira é reinventada e reelaborada a partir de UNESCO. Introducing UNESCO. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. específicos são: 1) Mapear diferentes narrativas que envolvem 2017. a construção de uma tradição e identidade missioneiras; 2) Descrever e reconstruir os diferentes elementos oriun- WINTER, Rafael. Paisagem Cultural e Patrimônio. dos das tradições indígenas e católicas que compõem essas Rio de Janeiro: Iphan/copedoc, 2007. narrativas; 3) Compreender como, a partir dessas narrativas, se estabelece uma tradição fundante missioneira; e, 4) Apresentar o desenvolvimento da história das políticas patri- moniais materiais e imateriais, em especial as dos séculos XX e XXI ali estabelecidas com os remanescentes materiais do legado jesuítico-guarani, tanto pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, quanto do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM. Para uma visão mais abrangente, esse texto foi subdividido nos seguintes tópicos: 1) uma introdução para indicar resumidamente o teor dos tópicos subsequentes; 2) antecedentes históricos da colo- nização na região sul da América Latina; 3) a trajetória do pat- rimônio cultural na região missioneira; 4) as primeiras inicia- tivas rumo ao turismo em São Miguel; 5) o turismo histórico na região transfronteiriça das Missões Jesuíticas-Guarani; 6) o surgimento do Ponto de Memória Missioneira, alguns desdobramentos e o atrela- mento ao turismo. Por fim, são feitas algumas considerações pertinentes ao modo como o turismo, a história, a identidade 158 Atualmente, desenvolve pesquisa no Doutorado em Museologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa, com orientação da Profª Drª. Antropóloga Regina Abreu. É Mestre em Memória Social e Bens Culturais, na Linha de Pesquisa “Memória e Linguagens Culturais”. 319 e a memória têm sido exploradas na região transfronteiriça, e O presente texto foi dividido em cinco partes. A primei- destacadas as confluências e divergências das políticas públi- ra contém alguns momentos da história da colonização na cas de patrimônio e o constante movimento de reinvenção e região, por ser bastante ilustrado na formação da identidade reconstrução da identidade em São Miguel das Missões. e da memória da população local. A segunda parte se dedica a refletir a trajetória do patrimônio cultural na região mis- Palavras-chave: Patrimônio; Memória; Identi- sioneira; após a guerra guaranítica e a implementação de dade; Turismo; Ponto de Memória Missioneira. um novo projeto de ocupação na região; na terceira parte, a ênfase reside nas primeiras iniciativas rumo ao turismo em INTRODUÇÃO São Miguel, debruçando-se sobre as possibilidades que tais ações públicas locais, regionais, nacionais e internacionais Este trabalho visa colocar em evidência o modo como oferecem nos dias atuais para a comunidade em termos de o turismo vem se desenvolvendo na região missioneira. No ganhos simbólicos e financeiros; na quarta, o foco reside decorrer do presente estudo, a ênfase é dada nas políticas de no turismo histórico na região transfronteiriça missioneira patrimônio ligadas aos remanescentes materiais e imateriais cujo mote consiste em uma reflexão acerca da região onde existentes e reconhecidos oficialmente pelas instituições das se encontram as ruínas históricas das Missões e onde se de- esferas governamentais federais, estaduais e municipais, em senvolvem diversos projetos turísticos atrelados aos países especial, aquelas que se encontram na região do município de pertinentes que compõem o Mercosul; na quinta seção, o foco São Miguel das Missões, no Estado do Rio Grande do Sul e que está especificamente naquilo que é meu objeto de tese, qual têm com o turismo certos atravessamentos. seja, o Ponto de Memória Missioneira e onde realizo algumas Nesse sentido, São Miguel tem nas suas ruínas do antigo amarrações com a finalidade de pensar a intersecção dessas povoado jesuíticoguarani um cenário historicamente propício múltiplas dimensões a fim de, no item seguinte, realizar al- para as implementações das políticas do patrimônio material, gumas considerações pertinentes ao modo como o turismo, a que inicialmente foram reconhecidas como patrimônio públi- história e a memória têm sido explorados na região enquanto co do Estado do Rio Grande do Sul, nos anos de 1920, depois produto a ser consumido pelo visitante. como patrimônio nacional em 1938 e como patrimônio mun- dial pela UNESCO em 1983. Desde o final do século passado, ocorreu uma ampliação ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA COLONIZAÇÃO NA do conceito de patrimônio, quando foram incorporadas as REGIÃO SUL DA AMÉRICA questões imateriais. São Miguel das Missões acompanhou Como muitos estudos mostram, toda a colonização da em 2014, o reconhecimento de suas ruínas como lugar de América sempre esteve atrelada à existência de uma linha referência para o povo Guarani, onde cotidianamente põem imaginária que dividia a região e que teve sua gênese no à venda aos turistas seus artefatos no alpendre do Museu das chamado Tratado de Tordesilhas, o qual deu base para toda a Missões. disputa que envolveu o povoamento da região que entre Nessa perspectiva, ao longo dos anos, o referido mu- os séculos XVII e XVIII culminou, depois de muitos entreatos, nicípio tem incentivado a atividade turística, atraindo para a na chamada Guerra Guaranítica (Kern, 1994; Baptista, 2009; região milhares de turistas dos mais longínquos recantos do Santos, 1991). planeta, que buscam através do turismo cultural e histórico Nesse sentido, foram múltiplos os aspectos a serem con- explorar esse outro lado de São Miguel que, grosso modo, está siderados na defesa do interesse expansionista hispânico com para além das belíssimas paisagens geográficas e do simples a ocupação do território, transformando esses índios reduzi- turismo recreativo e que é muito mais experiencial e envolve dos em milícias indígenas que deviam fazer a defesa de suas aspectos ligados à história, ao patrimônio, à cultura, ao misti- fronteiras, fixando-os em reduções. Tais reduções con- cismo, à religiosidade missioneira, conjunto impossível de ser sistiram em 30 aldeamentos fundados pelos jesuítas espan- reproduzido fora de seu contexto de origem. hóis, sendo 23 localizados na margem direita do rio Uruguai, em territórios que hoje pertencem ao Paraguai e à Argentina

320 e sete localizados na margem esquerda do rio, em território cos, de modo que São Miguel passou a ser o primeiro pat- hoje situado no Rio Grande do Sul. rimônio histórico oficial reconhecido no Estado (NASCIMENTO, Contudo, para além da mera questão expansionista, hav- 2007). ia o fato de que a Espanha queria a Colônia de Sacramento sob Nesse sentido, o Regulamento de Terras do Rio Grande seu domínio e a navegação do Rio da Prata, e propõe a Portu- do Sul assegurou que as ruínas de São Miguel Arcanjo ficas- gal a troca pelos Sete Povos das Missões através do Tratado de sem definidas como sendo de domínio público, uma vez que Madri, em janeiro de 1750, com a finalidade de determinar os elas se caracterizavam por ser um lugar notabilizado por fa- limites das fronteiras na América Meridional. Nesse sentido, tos relevantes da evolução histórica do Estado. O curioso do por mais estranho que isso possa parecer, Portugal trocava, Regulamento é que ele não mencionava as ruínas como sendo por meio do Tratado de Madri, terras espanholas por terras es- um monumento e sim como lugar, expressão que, no final do panholas, visto que ambos se encontravam do lado esquerdo século XX, adquire novo significado, especialmente no que da linha de Tordesilhas. diz respeito à ideia de identidade e pertencimento (MEIRA, Todavia, o Tratado de Madri previa o translado dos Gua- 2007). rani, que não aceitaram ceder suas terras àqueles que haviam Na década seguinte, tanto a Argentina quanto o Brasil capturado seus ancestrais, no caso, os portugueses, venden- passaram a pensar a região praticamente no mesmo perío- do-os como escravos, de modo que era impraticável aceitar do, no final dos anos de 1930, para o fortalecimento de seu sem revolta a perda de todos os seus bens. Assim ficou impos- patrimônio cultural, com a criação da Comisión Nacional de sível fazer a mudança pacificamente e, apesar das tentativas Museos, Monumentos, y Lugares Históricos (CNMMLH) e do de interromper o acordo, os jesuítas não conseguiram deter o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), conflito entre as coroas ibéricas e os índios guarani, culminan- respectivamente. Sendo assim, através de ações preserva- do na Guerra Guaranítica, no período de 1753-1756. cionistas, buscava-se criar um conjunto de referências iden- titárias voltadas à constituição de uma identidade e de um A TRAJETÓRIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA pertencimento nacional, uma das principais metas do Estado REGIÃO MISSIONEIRA Novo. No decorrer do século XIX, vários foram os via- jantes-pesquisadores tais como Saint-Hilaire (1820), Nicolau Dreus (1817-1839), Roberto Avé-Lallemant (1858), Arsène Is- abelle (1833-1834), Hemetério José Veloso da Silveira (1855- 1886) entre outros que estiveram na região das Missões, para avaliar as oportunidades de desenvolvimento. Porém, como mostrado por alguns autores (MARCHI; SILVA; DEZORDI, 2015, p. 149), somente na segunda metade do século XIX, ou seja, ainda no império, foi implementada, através da lei de terras, a recolonização, inicialmente em sua maioria por descend- entes de portugueses. Posteriormente, famílias de imigrantes Figura 1: Igreja nas Ruínas de São Miguel Arcanjo. Fonte: Internet. de diversas etnias repovoaram a localidade no entorno dos remanescentes do antigo povoado missioneiro, que admin- No entanto, após a restauração das ruínas nos dois países istrativamente conformava um distrito de Cruz Alta e poste- através das instituições preservacionistas criadas, nem San riormente de Santo Ângelo. Ignacio nem São Miguel conseguiram impulsionar o turismo, No entanto, a primeira providência oficial com relação continuando baixo o movimento nas primeiras décadas, o que aos sítios históricos missioneiros ocorreu através do Regula- só veio a se modificar a partir dos anos de 1970/80, com a mento de Terras do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, crise econômica desse período, tema que será desenvolvido em 1922, institucionalizando a categoria de lugares históri- mais detalhadamente na próxima seção. Além disso, como

321 alternativa de superação da crise, foi criado um movimento sobrepostos aos originais que articulam a memória local. de reconhecimento do passado reelaborado a partir dos in- Nesse sentido, a memória é considerada a partir de uma di- teresses do presente. mensão cultural e imaginária da sociedade, uma vez que as Com base nesse argumento, foi feito um arranjo iden- representações do passado são criadas e/ou recriadas e pro- titário especial, levando-se em conta a história do passado jetadas nesses espaços. jesuítico-guarani, para embasar uma nova representação como forma de enfrentar as adversidades decorrentes da situ- AS PRIMEIRAS INICIATIVAS RUMO AO TURISMO EM ação criada pela crise. E, a partir de então, inicia-se a criação/ SÃO MIGUEL resgate de uma certa identidade missioneira, no noroeste do Rio Grande do Sul. Algo que é muito bem registrado no Es- Na década de 1960, São Miguel era um distrito do Mu- petáculo Som e Luz que será mais bem detalhado no tópico nicípio de Santo Ângelo e contava em seu censo com uma seguinte. população de 5.611 habitantes, sendo apenas 310 calculados É, portanto, com a perspectiva de atrair investimentos como moradores urbanos que habitavam próximos ao sítio e estimular o crescimento econômico que alguns municípios histórico. e mesmo algumas regiões buscam elementos locais para a Sua economia estava baseada no agronegócio com afirmação de sua identidade, que é colocada em evidência no destaque para a produção de milho, trigo e pecuária. referido espetáculo. É nesse período que o prefeito de Santo Ângelo, Odão Assim, na contracorrente do processo de massificação Felippe Pippi, solicitou tanto a Rodrigo M. F. de Andrade, en- cultural imposto pela globalização dos mercados, o Brasil, a tão diretor do SPHAN, como ao ilustre conterrâneo missionei- partir de diferentes identidades regionais, começa a produzir ro, o Presidente da República João Goulart, providências para uma tradição identitária inventada159, que se firma no âmbi- que intercedesse pela aprovação da liberação de recursos para to de diferentes culturas e tradições locais e que, no caso da a construção de uma pousada que viesse a contribuir para o região das missões no Rio Grande do Sul, culminou na criação apoio ao visitante que já se fazia presente na região. daquilo que comumente denominam, na literatura especial- Os recursos foram aprovados em 1965 pelo Ministério izada, de “missioneirismo”. da Indústria e do Comércio e o SPHAN designou um arquite- Com esse objetivo, foi produzido um tipo de missioneiro to para orientar as obras iniciadas em 1967. No entanto, no caracterizado pela identidade regional, o que Pommer (2009) relatório da vistoria constavam irregularidades que implica- diz ser perceptível em dois níveis de produção simbólica: os vam o descumprimento do projeto inicial por parte da pre- monumentos representativos do passado histórico reducio- feitura. Como não houve liberação do restante da verba para nais que compõem a paisagem missioneira original e outros a conclusão do empreendimento, esse, mais tarde, tornou-se monumentos e elementos agregados intencionalmente160, um restaurante que funcionou por muitos anos. Esse local hoje sedia a Secretaria Municipal de Turismo (MARCHI, 2018). 159 Nesse sentido, Hobsbawm e Ranger (2015, p. 8) explicam “tradição Embora essa experiência frustrada através da prefeitura inventada”, como “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por municipal não tenha sido positiva, as administrações posteri- regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento ores não desistiram de pleitear através de políticas públicas através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continui- os melhoramentos para o desenvolvimento da localidade dade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se (MARCHI, 2018, p. 160). Assim, a prefeitura cria nesse período estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado”. uma série de órgãos municipais161 com o intuito de desen- 160 No ano de 1973, aconteceu a comemoração do Centenário de eman- cipação políticoadministrativa de Santo Ângelo. Estas comemorações foram eventos constantes em vários municípios gaúchos nesse período inal que está no Museu em São Miguel, no trevo de acesso à cidade em e articulavam referenciais da identidade local com temas referentes à Entre-Ijuís. A cruz como símbolo e monumento seguiria sendo replicada realidade do período. As comemorações ocorriam no auge do período em diferentes lugares pela cidade e região. (MARCHI, 2018, p. 165). desenvolvimentista brasileiro e o passado jesuítico-guarani era manip- 161 COMTUR e DETUR são exemplos de órgão municipais apontados por ulado no sentido de reforçar a pujança e o progresso. [...] Nesse sentido, Marchi (2018, p. 160); o COMTUR traçava as diretrizes turísticas para o foi instalado um monumento, com uma réplica da Cruz Missioneira orig- município, enquanto o DETUR tinha o papel da execução. 322 volver o turismo na região através da captação de recursos do Brasil, que desejava criar um elo com Argentina e Uruguai” da esfera federal como é o caso da “recém fundada Empresa e que fossem resolvidas as principais dificuldades de in- Brasileira de Turismo (EMBRATUR)162”. fraestrutura existentes, bem como, que se implementasse um Desse trabalho conjunto com vários Ministérios re- produto turístico que atraísse visitantes para a região e que sultaram algumas ações, tais como a criação de uma “linha culminou na produção do espetáculo de “Som e Luz”. de ônibus até Posadas na Argentina, interligando a região das Desde então, o espetáculo acontece todas as noites após missões bem como propostas de leis de isenção de tributos o fechamento para a visitação do Parque Histórico Nacional municipais para criação de hotéis em Santo Ângelo” e ainda das Missões, que momentos depois é reaberto ao espectador o Projeto Transnacional da Missões de 1969, que objetivava visitante, que da arquibancada localizada a 100 metros das a “integração turística das Missões brasileiras, argentinas e ruínas vislumbra, sob o efeito das luzes e do som transmitido paraguaias” que levava em conta “seu aspecto monumental, a céu aberto em qualquer das estações, a silhueta das ruínas e como o maior conjunto de ruínas conservadas da América do das árvores centenárias e experimenta, ao som natural de gri- S u l ”. los, do piado das corujas, do grito aguçado dos quero-queros, Nesse sentido, fazia-se necessário apoio financeiro que o fascínio da imaginação percorrendo a história, a memória, foi conseguido através da Organização dos Estados Amer- a identidade e a transformação patrimonial cultural daquela icanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas para a região. Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), com o intuito de incrementar “obras de infraestrutura no aspecto de trans- portes, comunicações, hotelaria e urbanização”, constituindo “o embrião dos avanços das políticas de proteção que desen- cadeariam futuramente na candidatura à lista do patrimônio mundial” para o sítio arqueológico de São Miguel. Vale ressaltar que, nos anos de 1960, a Unesco deu destaque ao turismo cultural “como atividade de promoção, desenvolvimento e sustento do patrimônio cultural” sendo que, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) percebeu que poderia tirar proveito em agregar as- sistência técnica e financeira para a preservação e a recuper- Figura 2: Espetáculo Som e Luz nas Ruínas de São Miguel. ação do patrimônio na relação turismo e patrimônio (LEAL, Fonte: Internet. 2008, p. 19). Assim, veio um consultor da Unesco, o arquiteto francês Assim, o espetáculo transcendeu a condição de atrativo Michel Parent, que esteve no Brasil no período de 1966/1967 turístico a partir do patrimônio e se transformou, ele mesmo, com o objetivo de desenvolver “sua missão pelo Brasil após num patrimônio agregado a este. Pois, há quarenta anos, a Recomendação de Paris de 1962, a qual tratava de um ele faz parte do cotidiano da pequena comunidade, que de processo de reformulação de estratégias de atuação das suas casas vê os reflexos das luzes e escuta os sons todas as políticas patrimoniais frente aos desafios do crescimento noites163, realçando “os bens materiais através de uma história urbano e obras de infraestrutura que ameaçavam a pais- 163 Desde 1978, o espetáculo conta a saga jesuítico-guarani com uma agem” (MARCHI, 2008, p. 161). Dessa consultoria resultou a trilha sonora e o apagar e acender de luzes coloridas projetadas na indicação de São Miguel entre as cinco prioridades regionais fachada das ruínas, datadas do século 17. Embora a gravação continue a para o turismo para o “plano de desenvolvimento econômico mesma há 38 anos – com texto e roteiro de Henrique Grazziotin Gazzana e narração dramática dos atores Fernanda Montenegro, Lima Duarte, 162 A autarquia hoje conhecida como Instituto Brasileiro do Turismo, li- Paulo Grancindo, Juca de Oliveira, Rolando Boldrin, Maria Fernanda e gada ao Ministério do Turismo, é responsável pela execução das políticas Armando Bógus –, a atração teve toda a parte técnica renovada. A tec- de turismo no Brasil Foi criada pelo decreto-lei nº 55 de 18 de novembro nologia analógica foi substituída pela digital e os amplificadores foram de 1966, durante o regime militar (MARCHI, 2018, p.160). trocados. Além disso, a trilha passou por uma remasterização, para tirar 323 romantizada que dá sentido ao lugar e que reforça os laços de Assim, merece destaque o fato de que o Estado do Rio identidade” daquela região missioneira do Rio Grande do Sul Grande do Sul está integrado ao Mercosul e que possui “um (MARCHI, 2018, p. 193). histórico de experiências de cooperação transfronteiriça com o Uruguai”, com uma fronteira povoada o que reforça o seu O TURISMO HISTÓRICO NA REGIÃO TRANSFRON- destaque no bloco. Acrescente-se ainda que a área fronteiriça TEIRIÇA DAS MISSÕES JESUÍTICAS-GUARANI das Missões Jesuíticas-Guarani do Estado do Rio Grande do Sul se destaca por ser transpassada por seis rotas turísticas: O Município de São Miguel está situado na região trans- Rota das Missões, Rota do Rio Uruguai, Rota do Yucumã, Rotas fronteiriça das Missões Jesuíticas-Guarani, integrado aos das Terras, Rota das Estâncias Hidrominerais e Rota da Serra. 164 “Sete Povos” pelo lado brasileiro, no noroeste do Rio Grande Essas rotas turísticas contam como “passeios no campo, do Sul. Além disso, há os quinze povos na província argentina camping, aventuras, culinária, patrimônios culturais como de Misiones e oito povos nos departamentos paraguaios, re- atrações de entretenimento ao turista”, ligadas, portanto, sultado do conjunto de remanescências materiais dos “Trinta “às belezas naturais e ao resgate e transmissão dos valores Povos das Missões”, decorrentes do processo de colonização culturais e regionais às futuras gerações; à valorização e na porção sul da América Latina durante os séculos XVII e preservação do patrimônio regional; e ao fomento de uma XVIII. Foram declarados como Patrimônio Histórico da Huma- alternativa para o desenvolvimento regional” (CARNEIRO e nidade os sítios arqueológicos de São Miguel Arcanjo (Brasil); SANTOS, 2012, p. 155). San Ignácio Miní, Nuestra Señora de Loreto, Santa Ana e Santa No entanto, a história missioneira e seus remanescentes Maria la Mayor (Argentina); Jesus de Tavarangue e La Santísi- têm um papel fundamental tanto para o Estado do Rio Grande ma Trinidad del Paraná (Paraguai). do Sul, como para o Paraguai e para a província argentina de Carneiro e Santos (2012, p. 152) enfatizam que “uma Misiones, através de suas esculturas, músicas e arquiteturas região transfronteiriça como a missioneira pressupõe a originadas do contato entre as culturas indígenas e euro- análise dos efeitos de uma fronteira na interação econômica peias, razão pela qual as ruínas das Missões Jesuíticas foram entre Estados vizinhos”. E ainda que “tais efeitos dependem declaradas como patrimônio da humanidade pela Unesco. da natureza dessa fronteira no que diz respeito: ao seu nível A partir de 2012, a Secretaria Estadual de Turismo do Rio de abertura; às diferenças linguísticas, culturais e raciais; à Grande do Sul, em pesquisa realizada, identificou os princi- intensidade das relações políticas entre as respectivas zonas pais atrativos do turismo de fronteira: fronteiriças; e ao nível de disparidade econômica” (referência • O turismo histórico-cultural das Missões Jesuíticas; 165 a ANDERSON; WEVER, 2003) . • O turismo de compras nos free shops uruguaios; • O turismo ecológico do Parque Estadual do Turvo, onde fica o Salto do os ruídos. O som também ficou mais envolvente, com a instalação de quatro caixas de som atrás da plateia, além das oito à frente (GaúchaZH, Yucumã; 2016). Assim, eEm abril de 2016, o Som e Luz foi reinaugurado, depois • A pesca no rio Uruguai; de passar por um processo de requalificação, com investimento federal: • Os festivais de música de diversas cidades de fronteira, verbas do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) (MARCHI, 2018, a Fenadoce, a p. 193). degustação de vinhos na Campanha Gaúcha; e, 164 As sete povoações fundadas na margem oriental do Rio Uruguai foram: São Francisco de Borja (1682), São Nicolau (1687), São Miguel • Os cassinos uruguaios e argentinos localizados em Arcanjo (1687), São Luiz Gonzaga (1687), São Lourenço Mártir (1690), cidades gêmeas como Santo Tomé (ARG), Paso de los Libres São João Batista (1697) e Santo Ângelo Custódio (1707). 8 ANDERSON, (ARG), Rivera (URU), Artigas (URU) e Chuy (URU). Joan; WEVER, Egbert. Borders, Border Regions and Economic Integration: One World, Ready or Not. In: Journal of Borderlands Studies. Volume 18, No entanto, a exploração do potencial turístico na região No. 1, Spring, 2003. é realizada pelas autoridades de cada país envolvido que mui- 165 ANDERSON, Joan; WEVER, Egbert. Borders, Border Regions and Eco- nomic Integration: One World, Ready or Not. In: Journal of Borderlands to pouco interagem visando à construção de estratégias de fo- Studies. Volume 18, No. 1, Spring, 2003. mento ao turismo que levem em conta os sítios existentes no 324 Brasil, na Argentina e no Paraguai como um todo. O turismo O acervo era destacado por objetos que referendavam na região missioneira tem sido realizado de forma desconec- a presença da colonização jesuítica-guarani e de posteri- tada, o que dificulta o planejamento do turista na medida em ores povoadores. Na medida em que o acervo se ampliava, que praticamente inexistem pontes, rodovias e aeroportos a população condicionava a doação dos bens e objetos “ao que interliguem e fomentem o turismo nos municípios da compromisso de manter o empreendimento livre de relações referida região. Outros problemas correlatos são que a ativ- clientelísticas”, ou seja, distanciado de favoritismo de políti- idade turística envolve os altos custos de estadia e a dificul- cos locais. Esse movimento se caracterizou pela construção dade de deslocamento, a ausência de uma moeda de fluxo e de “uma consciência crítica em relação ao gerenciamento aceitação comum na região (CARNEIRO e SANTOS, 2012). Con- do patrimônio cultural na região missioneira”, uma vez que tudo, para atender a região missioneira, o Rio Grande do Sul condicionavam as doações à isençãode possíveis acordos inaugurou em 2017 um aeroporto em Santo Ângelo, embora político-partidários (VIVIAN, 2012, p. 1201). com preços bastante abusivos. Vale salientar ainda que a criação da Exposição da Cultu- ra Missioneira surgiu pela insatisfação da comunidade com as O SURGIMENTO DO PONTO DE MEMÓRIA MISSIONEI- políticas oficiais de preservação dos bens culturais existentes RA, ALGUNS DESDOBRAMENTOS E O ATRELAMENTO em São Miguel, uma vez que a população se sentia alijada das AO TURISMO decisões sobre o patrimônio que fazia “fronteira com o quintal de suas casas” (SILVA, 2009, p. 6), e que, cercado para Data de 1926, a criação de um loteamento urbano nos visitação, deixava-a de fora. Diante disso, a Exposição da Cul- arredores do antigo templo de São Miguel Arcanjo que re- tura Missioneira apresentou-se para os moradores da região povoou a região e constituiu um distrito do município de San- como uma alternativa que permitia à comunidade criar um to Ângelo e se emancipou político-administrativamente em espaço de memória que lhe possibilitava falar de si e divulgar 1988, através da Lei Estadual nº 8.584. Logo em seguida, foi seu patrimônio e sua história. iniciada a obra de pavimentação do recém-criado município Em função disso e desse crescente interesse da popu- de São Miguel das Missões. lação pela exposição, houve, em 2010, uma aproximação da Durante a abertura das ruas surgiram vestígios mate- Exposição da Cultura Missioneira com o Setor de Pesquisa do riais do período das reduções jesuíticas-guarani existentes Museu das Missões, que identificou o Programa de Pontos de ali, decorrentes dos séculos XVII e XVIII, os quais foram em Memória166 do Ministério da Cultura - MinC como uma grande parte coletados pelos moradores e guardados em suas política que poderia ajudar a fortalecer essa ligação e a “colab- residências e/ou amontoados em terrenos baldios. oração entre o Museu das Missões, a Coordenação de Museo- Não se sabe ao certo o destino de todos os objetos en- logia Social e Educação do IBRAM (COMUSE/IBRAM) e o contrados naquela ocasião. No entanto, fica evidente o inter- empreendimento comunitário miguelino” (VIVIAN, esse da população que, cuidando desses vestígios materiais, 2012, p. 1204). Esse movimento culminou na aprovação do acabou por contribuir para o esclarecimento da história da projeto Ponto de Memória Missioneira em 2011 e na partic- colonização e de povoamento da região. ipação deste no Edital do Programa Pontos de Memória do Assim, no princípio do século XXI, um miguelino chama- IBRAM com o Prêmio Pontos de Memória167. do Valter Braga procurou na comunidade objetos que refer- endassem a história da região e de seus habitantes, organi- 166 Desenvolvido pelo IBRAM em parceria com o Programa Mais zando-os para compor a Exposição da Cultura Missioneira. Do Cultura e Cultura Viva do Ministério da Cultura (MinC), com o programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) do Ministério ponto de vista prático, pode-se dizer que os primeiros anos da da Justiça (MJ) e com a Organização dos Estudos Ibero-Americanos exposição foram importantes para a conquista de certa visibi- (OEI), o Programa Pontos de Memória tem como objetivo básico atender lidade social e pelo reconhecimento de que a exposição era (e os diferentes grupos sociais do Brasil que não tiveram a oportunidade poderia ser) um espaço de memória, e isso contribuiu para o de expor suas próprias histórias, memórias e patrimônios nos museus, estando em sintonia com as diretrizes que sustentam a própria Política aumento de doações por parte da população. Nacional de Museus. 167 Vale salientar que a institucionalização do Ponto de Memória 325 Contudo, o Ponto de Memória Missioneira, antes mesmo Por fim, o Dindinho Missioneiro chega ao seu destino de sua institucionalização, já se utilizava de práticas museais final de visitação, que é o Ponto de Memória Missioneira, de natureza comunitária e popular, buscando recuperar, onde Valter Braga convida o turista a adentrar na memória e preservar e divulgar valores que fortaleciam a identidade da identidade missioneira através do acervo existente. Ele desen- região de São Miguel das Missões (VIVIAN, 2012). volve um cronograma que inclui o acendimento do Tatarandê, Em julho de 2017, no momento de pesquisa de campo homenagem feita, na Semana Farroupilha, pelos cavalari- de doutoramento, encontrei um novo empreendimento em anos ligados aos Centros de Tradições Nativistas e Centros de São Miguel das Missões. Uma iniciativa turística, comandada Tradições Gaúchas que cruzam a região em busca da Chama por um jovem criado desde a infância brincando nas ruínas, Crioula; na programação do Gaitaço Missioneiro em 18 de ouvindo suas histórias, fábulas e causos. O jovem Robson, co- novembro, evento oficial do município que referenda o Dia nhecido na cidade pelo codinome de Binho, o qual comprou do Músico e à Santa Cecília sua padroeira, segundo a tradição um caminhão e uma jardineira com capacidade de transpor- da igreja católica. Esses elementos, como mostra a imagem tar em torno de 18 pessoas, com a finalidade de percorrer de abaixo, perpassam a própria imagética que envolve o modo terça a domingo, os principais pontos turísticos, históricos e como o referido ponto de memória foi construído e concebido relevantes para a comunidade. por seu idealizador. Entre os pontos situados no entorno urbano da cidade que o “Dindinho Missioneiro”, nome dado à jardineira, conduz o turista, estão: as ruínas do sítio arqueológico onde faz uma parada para uma pequena explicação da história e uma foto do grupo que o mesmo disponibiliza na rede social virtual do Facebook. O trajeto segue para o Centro de Tradições Nativis- tas Sinos de São Miguel, depois mostra o centro comercial e o apoio logístico, como comércio, farmácias, igrejas, cafés, restaurantes e disponibiliza uns 20 minutos para que os mes- mos façam um lanche e comprem souvenirs do comércio central. Seguindo viagem, Binho mostra uma das casas onde é Figura 3: Vista aérea do Ponto de Memória Missioneira em realizado o ritual de benzimento através de ervas e orações e São Miguel Arcanjo. Fonte: Internet. explica que caso alguém queira fazer uso desse serviço, poder CONSIDERAÇÕES FINAIS ir à casa do benzedor ou solicitar a ida do mesmo ao hotel. Aqui vale ressaltar que essa atividade chama a atenção Do exposto, percebe-se que, ao longo dos anos, a ativ- de dezenas de visitantes homens e mulheres que chegam à idade turística tem sido um dos principais motes da admin- cidade para utilizar esse ritual, pois é notória a presença de istração pública com vistas ao fomento do desenvolvimento cerca de 40 benzedores na pequena São Miguel. E, por essa regional. Contudo, há ainda na região uma carência de razão, Silva (2015, p. 12) afirma que a prefeitura do municí- infraestrutura que facilite o trânsito de turistas e o próprio pio desenvolve um evento denominado “Encontro de Benze- acesso desses aos municípios da região. Todavia, é fato que dores” (desde o ano de 2006), bem como várias estratégias de isso não é um problema que envolve somente o lado bra- promoção turística focadas nessa prática. sileiro, mas também os municípios localizados no Paraguai, na Argentina e no Uruguai. Pouco ou nenhum esforço é feito Missioneira carrega consigo os preceitos estratégicos das políticas visando ao desenvolvimento de estratégias comuns entre os públicas da área (a Política Nacional de Museus,o Plano Nacional de quatro países, de modo que ainda não prosperou a referida in- Cultura, O Plano Nacional Setorial de Museus, o Estatuto de Museus –Lei 11.904/2009 e o próprio Programa Pontos de Memória), especialmente tegração pressuposta pelo Mercosul, pelo menos entre os mu- no que tange à garantia de condições para o efetivo exercício do Direito nicípios da região. Mas se do ponto de vista estatal as coisas à Memória pelas comunidades historicamente excluídas. 326 andam a passos lentos, do ponto de vista sócio-antropológico how based on these narratives it is established a missionary isso não é verdade, na medida em que, como apontam mui- tradition and 4) present the historical development of mate- tos trabalhos, entre os quais inclui-se a tese que dá origem rial and immaterial patrimonial policies especially those of a esse texto, há um constante movimento de reinvenção e the 20th and 21st centuries that were established with the reconstrução da identidade da região onde práticas religiosas remaining materials of the Jesuit-Guarani legacy, both by the e culturais de outrora, tais como o benzimento e a benzeção, National Artistic Heritage Institute (IPHAN) and the Brazilian são retomadas através do chamado Ritual de Purificação Institute of Museums (IBRAM). For a more comprehensive – conhecido entre os Guarani como o “Ritual do Caá” –, no view, this text has been subdivided into topics as follows: 1) qual a erva-mate, elemento comum a identidade indígena, an introduction to point out the following topics; 2) historical assume papel central na defumação do ambiente – da cham- background of the colonization in southern Latin America; ada Opy, como mostra a imagem a seguir com a qual encerro 3) the trajectory of the cultural patrimony in the missionary o presente texto. region; 4) the first initiatives towards tourism in São Miguel; 5) historical tourism in the cross-border region of the Jesu- it-Guarani Missions; 6) the emergence of Mission Memory Point and some developments that are linked to tourism. Finally, personal considerations are made regarding the relevance of the way in which tourism, history, identity and memory have been exploited in the region.

Keywords: patrimony, memory, identity, tour- ism, Missionary Memory Point

REFERÊNCIAS Figura 4: Opy – Réplica da Casa de rezas dos Guarani idealizada por Valter Braga BAPTISTA, Jean. Dossiê Missões Vol I, Vol II e Voluma III. São Miguel das Missões. Museu das Missões, 2009. PATRIMONY, TOURISM, MEMORY CARNEIRO FILHO, Camilo Pereira; SANTOS, Christiano AND IDENTITY IN THE MISSIONARY REGION Ricardo dos. O turismo histórico na região transfronteiriça OF RIO GRANDE DO SUL das Missões Jesuíticas. In: Revista Eletrônica de Humani- dades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, (n. 5, p. ABSTRACT 151-164), Macapá: UNIFAP, 2012. This work examines the preliminary results of the re- search for the PhD thesis in Social Museology of Lusofona GAÚCHA ZERO HORA. Comportamento. RS: University - . It investigates the missionary point of 01/05/2016. Diário. Disponível em: https://gauchazh.cli- memory, located in São Miguel das Missões/RS. The main aim crbs.com.br/comportamento/noticia/2016/05/espetacu- of this study is to understand the way in which the missionary lo-som-e-luzestreia- com-nova-tecnologia-em-sao-miguel- tradition is reinvented and re-elaborated from a museological das-missoes-5790699.html. Acesso em 08 mai. 2018. space under construction. The specific goals here are: 1) Map different narratives that involve the development of a ission- HOBSBAWM Eric; RANGER Terence (Orgs.). A invenção ary tradition and identity; 2) Describe and reconstruct the das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. different elements derived from the indigenous and catholic traditions that composes these narratives; 3) Understand

327 KERN, Arno Alvarez. Utopias e Missões Jesuíticas. Silva, W. F. (2009). Patrimônio a contragosto: a Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 1994. presença de bens culturais na vida cotidiana de São Miguel das Missões/ RS. Dissertação (Mestrado) – Pro- LEAL, Claudia F. Baeta. A missão de Michel Parent no grama de Pós- Graduação em Museologia e Patrimônio, Brasil. In: PARENT, Michel; LEAL, Claudia Feierabend Baeta. As Unirio/ Mast: Rio de Janeiro. Acesso em 24 de março de 2018, missões da Unesco no Brasil: Michel Parent. IPHAN, 2008. em . da; DEZORDI Estelamaris. Silva, Juliani Borchardt da. Benzimentos: estudo sobre Patrimônio, turismo, práticas culturais e identidades na a prática em São Miguel das Missões (RS). (140 p.). Santo Ân- região das Missões no Rio Grande do Sul, In: Rev. Arqueo- gelo: FuRI, 2015. logia Pública. v.9 Nº. (11) p.147-156. Campinas: UNICAMP, 2015. VIVIAN, Diego Luiz. Ponto de Memória Missioneira: Ini- ciativas comunitárias e populares de preservação e promoção MARCHI Darlan de Mamann. O patrimônio antes do do patrimônio Cultural em São Miguel das Missões. In XI patrimônio em São Miguel das Missões: dos Jesuítas à Encontro Estadual de História. ANPUHRS. Rio Grande UNESCO. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em (RS): FURG – Universidade Federal do Rio Grande, 2012. Memória Social e Patrimônio Cultural do Instituto de Ciências Anais Eletrônicos (pp. 1199-1210). Acedido em 08 abr de Humanas da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas: Ufpel, 2018, em http://www.eeh2012.anpuh-rs.org.br/resources/ 2018. anais/18/1346206977_ARQUIVO_PontodeMemoriaMis- sioneira_apresentacao_anpuh_FINAL.pdf. MEIRA, Ana Lúcia Goelzer. A trajetória do IPHAN nas Missões. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy; GOELZER, Ana Lúcia (org.). Fronteiras do mundo ibérico – patrimônio, ter- ritório e memória das Missões. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

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328 POLÍTICAS PÚBLICAS, MUSEUS E AÇÕES EDU- sibilidade ilusória. A história das políticas culturais no Brasil, CATIVAS: A UTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO COMO foi marcada por períodos de sistematizações mais intensas, INSTRUMENTO PARA A CIDADANIA paradoxalmente, nos períodos autoritários. A noção contem- porânea de uma política cultural democrática e participativa Gabriela Santos da Silva168 começam a ser colocados em prática, a partir da Constituição Sidélia Santos Teixeira169 de 1988, quando a cultura passa a ser reconhecida como di- reito civil. Porém, ainda com algumas contradições, visto que RESUMO durante um período, operava a lógica neoliberal no Brasil, sendo a cultura um produtor a ser consumido. No início do Diante da visão de que os museus se configuram como governo do presidente Lula, em 2003, podem-se perceber espaços de produção e divulgação do conhecimento, dest- alguns avanços, assim como, a participação da sociedade civil aca-se nesse artigo o breve histórico da formulação das para formular novas políticas, principalmente, em relação as políticas públicas voltadas para a área da cultura no Brasil, políticas voltadas para Museus. salientando os interesses e jogos de poder que envolvem a Com o objetivo de analisar o processo de transformação cultura e o patrimônio. O artigo aborda de que forma os mu- ocorrido nas políticas para Museus, inicialmente será exposta seus foram adaptados para atender aos interesses dos grupos uma rápida reconstituição das políticas culturais no Brasil. Tal hegemônicos, as mudanças ocorridas ao longo do século XX estratégia possibilitará fazer uma análise da importância dos nas políticas culturais e na museologia e sua conformidade museus para a sociedade, bem como refletir sobre a possib- com as demandas sociais, e por último, uma reflexão em tor- ilidade reivindicação social para uma maior participação da no das ambições que as ações educativas podem despertar, sociedade civil das decisões do Estado a partir dos mesmos. sua importância para o exercício da cidadania, no sentido da possibilidade de reivindicação dos direitos sociais que foram suprimidos pelas políticas públicas, propiciado através da ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS relação entre museus e educação. Santos (2007), apresenta reflexões importantes para o entendimento da relação entre Estado, sociedade e políticas Palavras-chave: Políticas públicas; políticas culturais; museu; educação; cidadania. públicas. O autor, formula o conceito de “emancipação social” de forma que esse se adapte as recentes demandas sociais e políticas. Para tanto, são pensadas estruturas epistemológicas INTRODUÇÃO capazes de ressignificar a denominada sociologia insurgente, A proposta deste artigo é a de fazer uma breve análise decomposta em sociologia das ausências e sociologia das das políticas culturais no Brasil a partir do período em que o emergências. Dessa forma, a sociologia das ausências diz re- Estado Brasileiro passa a ter uma preocupação com os bens speito ao silenciamento é fabricado socialmente, e, portanto, patrimoniais, que data de 1937 com o decreto lei 25 de 1937 deve se abrir para colaborações de grupos sociais historica- no qual é criado o SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico mente excluídos das políticas públicas. Já a sociologia das Artístico e Nacional - até a formulação das políticas culturais emergências, trilha uma lógica inovadora e revolucionária, voltadas para museus, a PNM – Política Nacional de Museus. visando um futuro concreto, fabricado e idealizado. Na obra Compreender política cultural como um campo no qual desse autor, são apontados seis espaços estruturais, nos quais necessita operar o poder público e os múltiplos setores da diferentes aspectos do poder são reproduzidos. Dando ênfase sociedade civil, durante muito tempo representou uma pos- especial ao “espaço tempo da cidadania”, que para Santos (op. cit) é o chamado espaço público, onde há uma relação hierar- quizada entre o Estado e os cidadãos, ou seja, as políticas pú- 168 Aluna do curso de Mestrado em Museologia da Universidade Federal da Bahia. Email: [email protected] blicas, desde sua criação são marcadas por sua verticalidade, 169 Professora Adjunta do Departamento de Museologia da Universi- que restringe a participação de grupos sociais marginalizados dade Federal da Bahia. Email: [email protected] pelo processo histórico. A cultura, portanto, é parte de uma 329 hegemonia social, em que estão em jogo as demandas e in- como “privados” e sociedade política (ou Estado), possui teresses de um determinado grupo. função de “hegemonia”, que o grupo dominante a exerce em As instituições museológicas, por sua vez, acabaram toda a sociedade (GRAMSCI, 2004). Assim, Gramsci destaca representando um veículo para tal finalidade. Segundo o que, no âmbito da sociedade política, as classes procuram ex- mesmo autor, quando o Estado se abre para novas formas de ercer sua hegemonia buscando aliados para os seus projetos organização e representações sociais, econômicas e políticas através da direção política e esta, funciona como um “aparel- trazidas pela heterogeneidade dos grupos existentes irá ocor- ho de coerção estatal que assegura legalmente a disciplina rer uma ampliação simbólica da sociedade. dos grupos (GRAMSCI, 2000, p. 334). Os museus, configuram-se como um produto das tensões O conceito de hegemonia desenvolvido por Gramsci e conflitos existentes entre Estado e sociedade, que ao lon- e a diferença entre hegemonia e dominação é explicado da go do tempo se ocupou de guardar relações e interesses dos seguinte forma: grupos hegemônicos. Porém, sendo uma instituição que Segundo Gramsci, a hegemonia estabelece contribui para a informação, comunicação e educação, este um complexo sistema de relações e de me- também pode atuar como um espaço de reflexão no sentido diações, uma capacidade e uma vontade de de contribuir com as identidades ameaçadas, trazendo à tona direção. Com isso, não existiria um poder questões emergentes, configurando um novo cenário cultural. capaz de se impor apenas pelo uso da for- ça. Para a dominação, a força é de eficácia MUSEUS E A LEGITIMAÇÃO DO PODER restrita. O exercício do poder implica, pois, um conjunto de atividade culturais e ideoló- O museu é uma instituição social e política, sua relação gicas – no âmbito das quais os intelectuais com o poder está sujeita aos interesses que orientam o Esta- são protagonistas – por meio das quais se do, as alianças, a conjuntura política e aos projetos culturais organiza o consenso e se torna possível o e sociais. O Estado que é historicamente caracterizado pela desenvolvimento da direção da sociedade. centralização do poder, utilizou-se de instituições culturais, a (MORAES, 2010, p. 10) exemplo dos museus, para o estabelecimento de projetos que atendessem suas expectativas. Segundo Chagas (2009) Sendo assim, para Gramsci, o poder hegemônico tem a capacidade de direção, ou seja, norteia os aspectos moral, O poder em exercício amplia a sua rede de intelectual e cultural de uma sociedade, sendo capaz de influ- relações, produz novos sentidos, estabele- ce linhas de pensamento, determina o que enciar e instituir hegemonias através de alianças com deter- deve ser conhecido, multiplica as institui- minados grupos, tornando legítimo os seus interesses, o que ções de memória (e de esquecimento) atri- produz uma nova ordem social: elementos específicos de um buindo-lhes um papel de fonte de saber, de grupo passam a ser assimilados pela coletividade. “luz” e “esclarecimento”. (p.49) É impossível compreender a relação Estado e Museu, sem levar em consideração as necessidades e interesses da Para compreender os aspectos que regem as relações sociedade política. Faz-se fundamental captar os objetivos e entre Estado e Sociedade, recorre-se ao pensamento de os recursos utilizados, para atingir tal finalidade. Desse modo, Antônio Gramsci, cujo conceito-chave gira em torno do Bloco entende-se que hegemonia é processo no qual os grupos Histórico. O autor afirma que a sociedade é uma totalidade, dominantes visam obter o consentimento daqueles sobre os sendo “a união entre a natureza e o espírito (estrutura e su- quais exercem o controle. perestrutura), unidade dos contrários e distintos” (GRAMSCI, Portanto, “poder e o museu não existem em si, mas são 2002, p. 26). Ou seja, as duas esferas que compõem o Bloco construções e estão sujeitos às mudanças e as ressignifi- Histórico são a sociedade civil e a sociedade política. Socie- cações colocadas pela conjuntura, são parte estratégicas na dade civil, portanto, é o conjunto de organismos designados construção e estruturação de hegemonias sociais.” (MORAES, 2010, p. 10). 330 Ao longo da história ocidental, o que inclui o caso bra- é possível reforçar processos identitários e, remarcar posições sileiro, os patrimônios foram sendo legitimados de forma que e interesses diante da sociedade, conforme expresso nos os grupos hegemônicos cristalizassem uma memória favoráv- artigos 215 e 216 da Constituição Federal que garantem os el à sua perpetuação nos espaços de poder, comprovando-se direitos culturais, a valorização, a difusão das manifestações com a postura adotada pela Igreja Católica na Idade Média e culturais e a diversidade do patrimônio cultural brasileiro. com a burguesia após a Revolução Francesa. Jacques LeGoff Porém, nem sempre foi possível perceber esse movi- (1994), faz a seguinte reflexão mento de reivindicação social a partir das políticas públicas no Brasil. O Estado durante décadas, operou como produtor A evolução das sociedades na segunda me- de uma cultura nacional que não admitia que algumas ex- tade do século XX clarifica a importância do pressões culturais tivessem espaço. Assim, a partir da análise papel que a memória coletiva desempenha. das primeiras iniciativas preservacionistas oficiais, é possível Exorbitando a história como ciência e como perceber que havia uma clara intenção em expressar uma culto público, ao mesmo tempo a montante enquanto reservatório (móvel) da história, determinada identidade cultural visto que, “a emergência da rico em arquivos e em documentos/mo- noção de patrimônio histórico nacional, se deu no âmbito da munentos, e a aval, eco sonoro (e vivo) do formação dos Estados-nações e na ideologia do nacionalis- trabalho histórico, a memória coletiva faz mo. ” (FONSECA, 1997, p. 79). De acordo com Chauí (1995), parte das grandes questões das sociedades a cultura no Brasil foi tratada de quatro formas diferentes de desenvolvidas e das sociedades em vias de acordo com o contexto político: desenvolvimento, das classes dominantes e • A liberal, que identifica cultura e belas- das classes dominadas, lutando todas pelo -artes, estas últimas consideradas a partir poder ou pela vida, pela sobrevivência ou da diferença clássica entre artes liberais e promoção. (p. 475) servis. Na qualidade de artes liberais, as be- las-artes são vistas como privilégio de uma Para melhor entendimento da relação entre museu e elite escolarizada e consumidora de produ- legitimação do poder, evidencia-se a importância do estudo tos culturais. da formulação das políticas públicas, de forma que haja uma reflexão em torno de quem tem o poder de estabelecê-las e • A do Estado autoritário, na qual o Estado se conduzi-las. apresenta como produtor oficial de cultura e censor da produção cultural da sociedade civil. POLÍTICAS PÚBLICAS, CULTURA E MUSEUS NO BRASIL A diversidade de culturas no Brasil, a partir da chamada • A populista, que manipula uma abstração Constituição Cidadã, está pautada nas atuais políticas de pre- genericamente denominada cultura popu- servação do patrimônio e da memória nacional. Salvaguardar lar, entendida como produção cultural do memórias diversas, encontra repercussão na convergência de povo e identificada com o pequeno artesa- interesses e ideias que, associando-se às políticas culturais, nato e o folclore, isto é, com a versão popu- encorajam formas de organização cultural, contribuindo para lar das belas-artes e da indústria cultural. participação de grupos sociais historicamente excluídos. Al- • A neoliberal, que identifica cultura e guns desses grupos puderam participar da construção de polí- evento de massa, consagra todas as mani- ticas públicas voltadas para a cultura resultando por dar espa- festações do narcisismo desenvolvidas pela ço a grupos sociais excluídos e invisibilizados historicamente, mass midia, e tende a privatizar as institui- como por exemplo na valorização da participação das “comu- ções públicas de cultura deixando-as sob a nidades indígenas e afro-descendentes no gerenciamento e responsabilidade de empresários culturais. promoção dos seus patrimônios.”(BRASIL, 2006, p. 15). Assim, (p. 11)

331 Com o passar do século XX e suas transformações sociais instrumento que legitima o indivíduo em direitos e deveres, a e políticas, com a influência da Indústria Cultural e o neoliber- partir da construção de uma subjetividade, reconhecidos nos alismo, a cultura passou a ser produto a ser consumido: elementos culturais que a diferenciam de outros grupos. Se- gundo o autor, identidade é algo crucial para o estudo do ter- [...]no Brasil, uma política cultural torna-se inseparável da invenção de uma cultura po- ritório cultural, pois reúne dentro de si elementos simbólicos lítica nova e que assinalem as dificuldades de um grupo de tal modo que garante a sua soberania como ou o desafio para implantá-la.[...] No caso nação. O Estado, portanto, tem o poder de mediar a relação específico da política cultural, não é possível entre os bens culturais e os cidadãos, como forma de domi- deixar na sombra o modo como a tradição nação e controle da sociedade, se utilizando das instituições oligárquica autoritária opera com a cultura, governamentais. a partir do Estado, se se quiser inventar uma O movimento modernista da década de 1920 permitiu nova política. (CHAUÍ, 1995, p. 80) que o nacionalismo pensasse novas estratégias para con- solidação dos seus objetivos, isso se deu pela valorização da Para compreender como a lógica neoliberal se impõe no diversidade cultural existente no Brasil. Projeto pensado pela campo da cultura, o termo indústria cultural foi desenvolvido elite intelectual, tudo que se julgava contrário aos objetivos por Adorno e Horkheimer, em 1947. Na visão dos autores, o políticos era banido das políticas públicas. O Estado teve seu conceito de indústria cultural aponta para o caráter deter- papel como ativo neste processo de construção da identidade minado dos produtos culturais oferecidos como mercadoria recorrendo a aspectos da cultura popular para criar o senti- aos seus consumidores. Assim, as mercadorias culturais da mento de unidade nacional, empenhando-se no sentido indústria se orientam para sua comercialização, e ainda “im- de utilizar as manifestações da cultura popular como canal pede a formação de indivíduos autônomos, independentes, de disseminação da ideologia oficial. Foi possível verificar a capazes de julgar e de decidir conscientemente.” (ADORNO, criação de diversos órgãos encarregados desse propósito 2002, p. 295). Portanto, pode-se perceber, que a indústria [...] tem-se a criação de legislações para o ci- cultural objetiva valorizar os “produtos culturais” pensados e nema, a radiodifusão, as artes, as profissões elaborados pelos grupos hegemônicos, e a cultura dos grupos culturais etc. e a constituição de inúmeros que não foram contemplados pelas políticas públicas (devi- organismos culturais, tais como: Superin- do a um processo histórico excludente), fica em um segundo tendência de Educação Musical e Artística; plano, muitas vezes reduzidos ao que se chama se “popu- Instituto Nacional de Cinema Educativo laresco”, nesse quesito, entram as manifestações culturais (1936); Serviço de Radiodifusão Educativa afro-brasileiras, indígenas, periféricas, etc. (1936); Serviço do Patrimônio Histórico e Nos períodos autoritários, foram os momentos em que o Artístico Nacional (1937); Serviço Nacional Brasil vivenciou políticas culturais mais sistemáticas. Nestes de Teatro (1937); Instituto Nacional do Li- períodos, o Estado assumiu um papel mais ativo, a exemplo vro (1937) e Conselho Nacional de Cultura das ditaduras do Estado Novo (1937 – 1945) e dos militares (1938). (RUBIM, 2008, p. 187) (1964 – 1985), que em houve uma intervenção culturais sig- nificativa, estando atrelado a isso, o objetivo de “instrumen- O golpe militar de 1964, ratificou a tradição da relação talizar a cultura, domesticar seu caráter crítico, submetê-los cultura e autoritarismo. Os militares pensaram e instituíram aos interesses autoritários, buscar sua utilização como fator projetos para reconfiguração da cultura no Brasil. Durante de legitimação das ditaduras e, por vezes como meio para esse período, houve investimentos no desenvolvimento das conformação de um imaginário de nacionalidade.” (RUBIM, indústrias culturais no país 2008, p. 187). Em ambas as ditaduras, foi possível verificar [...] a ditadura militar, a exemplo do Estado esforços no sentido de criar identidades nacionais através Novo, também esboçou legislações culturais de políticas culturais. Para Brant (2009) a identidade é um e criou inúmeros organismos no campo cul-

332 tural. O Conselho Federal de Cultura (1966); tural democrática (atributo que tanto os o Instituto Nacional de Cinema (1966); a profissionais liberais quanto os socialistas Empresa Brasileira de Filme – EMBRAFILME defendem em suas propostas) implica (1969); a Fundação Nacional das Artes – FU- numa atuação necessariamente mais ativa NARTE (1975); o Centro Nacional de Refe- e abrangente do Estado. Trata-se não só de rência Cultural (1975); a RADIOBRÁS (1976); defender determinados valores, como criar o Conselho Nacional de Cinema (1976) etc. condições para implementá-las em uma (RUBIM, 2008, p. 188) sociedade onde os direitos mínimos de cida- dania, na prática, são exercidos por poucos. A constituição de um campo concreto e democrático Ou seja, considerar todos cidadãos como de política cultural no Brasil, passa essencialmente pela es- homens de cultura, assim como propunha truturação de uma cultura política nova, que encerre com o Gramsci, em condições de exercer direitos histórico opressor e arbitrário que regem as políticas culturais culturais, é atuar no sentido de converter no país: esse princípio – que no caso do Brasil, é ain- da um ideal de realidade. (p.44) [...] tomar a cultura como um direito foi criar condições para tornar visível a dife- Para a autora, as políticas voltadas para cultura, apre- rença entre carência, privilégio e direito, a sentam-se como um instrumento ideológico de legitimação dissimulação das formas da violência, a ma- do poder estatal. As políticas públicas deveriam ser pensadas nipulação efetuada pela mídia e o paterna- a partir de demandas suscitas pela sociedade, porém, mes- lismo populista; foi a possibilidade de tornar mo quando isso acontece, partem sempre dos organismos visível um novo sujeito social e político que do poder público, da sociedade política, que representam os se reconheça como sujeito cultural. Mas foi, sobretudo, a tentativa para romper com a grupos hegemônicos. passividade perante a cultura - o consumo Encarando os museus como resultado de práticas e pro- de bens culturais - e a resignação ao esta- cessos culturais, estes tornaram-se um produto das tensões belecido, pois essa passividade e essa resig- e conflitos existentes entre os interesses do Estado e das nação bloqueiam a busca da democracia, sociedades, passando a ser considerado como um campo de alimentam a visão messiânica-mineralista lutas no sentido de legitimação manifestações culturais que da política e o poderio das oligarquias bra- não foram abarcadas pelas políticas públicas voltadas para sileiras. (CHAUÍ, 1995, p. 84) o campo da cultura, desse modo, observa-se que “o poder é semeador e promotor de memórias e esquecimentos. ” (CHA- O chamado período democrático, cujo o marco é GAS, 2009, p.44) a Constituição de 1988, apresenta-se engajado com os prob- As políticas públicas voltadas para a cultura, dão as dire- lemas sociais, estimulando a criação e divulgação de espaços trizes para as instituições museais. Sendo o Estado Brasileiro de participação social. Porém, muitas vezes, observa-se que o principal orientador e formulador, leva a uma a análise no esse campo ainda trabalha de forma centralizada, estando sentido de compreender os princípios políticos e doutrinários camuflado pelo discurso da democracia, as políticas públicas que têm guiado a política oficial do governo. ainda são regidas pela lógica do imediatismo. Utilizando o Em nome da construção de uma identidade nacional, conceito de Boaventura de Sousa Santos (2007), a ação dos foram muitas as tentativas de produção de uma narrativa to- grupos sociais através sociologia das ausências, vai ser funda- talizadora de povo enquanto unidade, como sujeito da nação. mental para uma mudança estrutural. O percurso que marca as políticas culturais no Brasil evidencia FONSECA (1997), considera que a tentativa de produzir uma memória nacional que servissem aos interesses legitimadores dos regimes políticos, isso ocorre [...] a formulação de uma política cul- de forma mais explicita nos períodos autoritários, o Estado

333 novo e a Ditadura Militar. Estes, vão intervir seletivamente Paris e Grenoble, cujo o tema deste foi “O Museu a serviço do na produção cultural, limitando determinadas produções homem, atualidade e futuro – O papel educativo e cultural”. contrárias aos princípios ideológicos, ao mesmo tempo em No Seminário Regional da UNESCO, o foco das discussões fo- que estimulou a produção cultural que atendia aos interesses ram atividades educativas dos museus no caráter de educação governamentais. Tal ação, por conseguinte, se constitui em formal e não-formal. Na IX Conferência Geral do ICOM, foi ex- ato de poder. posto um novo conceito de museu, o museu da vizinhança, O histórico das políticas públicas para a cultura no Brasil, cuja criação visava narrar a história da comunidade, abordan- colaboraram para que os museus pudessem se reinventar e do a sua identidade cultural, valorizando seus aspectos singu- repensar a sua missão na sociedade, e quiçá estar em confor- lares, com o propósito de trabalhar os problemas assolavam midade com as novas perspectivas da museologia. a comunidade em questão, afim de buscar soluções. Estes eventos propunham uma mudança estrutural nos museus, MUSEUS E MUSEOLOGIA: CONTEXO E TRANSFOR- pois, assumia um papel de não mais de simplesmente sal- MAÇÕES vaguardar o patrimônio, observa-se que era necessário um posicionamento crítico e reflexivo com participação ativa das Em 1972, com A Meda Redonda de Santiago do Chile, comunidades. encontro que propôs repensar o museu e sua missão na socie- A educação também passou por um momento de trans- dade, o conceito de Museu Integral é estruturado a partir dos formação nesse período, surgiram correntes pedagógicas que bens patrimoniais preservados e seu uso social. Os museus estavam alinhadas com as demandas dessa sociedade con- passam ser vistos como instituições que possuem uma função testadora. Segundo Primo (1999), havia duas concepções de social, sendo um marco fundamental na museologia, pois o educação até então: uma que se baseava na concepção das documento fruto da Mesa Redonda, a Declaração de Santiago diferenças individuais e, portanto, a educação deveria respei- do Chile, enfatizou a importância do contexto social, além de tar essas diferenças e adaptar seus métodos e técnicas para buscar a conscientização no que tange a formação das identi- educar diferentemente cada indivíduo, e outra que encarava dades nos discursos das instituições: o estudante como ser integrante de um grupo social e assim Que o museu é uma instituição a serviço sendo, o ato de educar deve priorizar a integração do indivíduo da sociedade, da qual é parte integrante e na sociedade. Em meio a esse contexto, surgem teorias que que possui nele mesmo os elementos que vão valorizar a construção do saber através de uma vertical- lhe permitem participar na formação da idade entre educador e educandos. É essa educação que visa consciência das comunidades que ele serve; a liberdade, o questionamento e reflexão que vai adentrando que ele pode contribuir para o engajamento os museus a partir da Declaração de Santiago, cuja influência destas comunidades na acção, situando suas maior foram as obras do educador Paulo Freire que defendia actividades em um quadro histórico que “uma educação para a decisão, para a responsabilidade social permita esclarecer os problemas atuais, isto e política”. (FREIRE, 1999, p. 88). Ainda, de acordo com o au- é, ligando passado ao presente, engajando- tor, o caráter da liberdade no processo de aprendizagem acon- -se nas mudanças de estrutura em curso e tece na medida em que o homem transforma o seu mundo e a provocando outras mudanças no interior si mesmo, despertando as possibilidades criadoras humanas. de suas respectivas realidades nacionais. Segundo Scheiner (2012), em 1972 Hugues de (MESA REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE, Varine-Bohan, o então diretor do ICOM, convida Paulo 1972, p.112-113) Freire para participar da Mesa Redonda de Santiago, o que não ocorreu devido as questões políticas que norteavam a Entretanto, dois episódios antecedentes sugeriam as América Latina naquele período. Contudo, fica evidente as mudanças que estavam por vir em relação ao caráter educati- contribuições do pensamento Freiriano no documento fruto vo dos museus: o Seminário Regional da UNESCO, em 1958 no da Mesa Redonda de 1972, cujo tema foi o papel social dos Rio de Janeiro; e a IX Conferência Geral do ICOM de 1971, em

334 museus na América Latina. A exemplo, pode-se citar a forma d) deverá ser utilizado na educação, graças a de encarar o indivíduo, que agora, passa a ser sujeito, além um sistema de descentralização, o material das propostas para a realização de trabalhos que envolvessem que o museu possuir em muitos exemplares; as comunidades. Os sujeitos, são seres que possuem saberes e manifestações culturais que merecem ser valorizados. e) as escolas serão incentivadas a formar Por essa influência, de educar através da liberdade de coleções e a montar exposições com objetos aprendizagem e criação, os museus passaram a ser encara- do patrimônio cultural local; dos como um espaço de educação não-formal. A educação não-formal, tem como característica uma maior flexibilidade f) deverão ser estabelecidos programas de em relação as metodologias de trabalho e possuem uma formação para professores dos diferentes ní- veis de ensino (primário, secundário, técnico abordagem interdisciplinar, favorecendo uma aprendizagem e universitário). (PRIMO, 1999). a partir das experiências pessoais dos indivíduos além de poder trabalhar com a diversidade étnica, social e de gênero, A partir de 1984, as novas formas do fazer museológico o que privilegia o debate e a participação de um público var- se legitimam, e, no ano seguinte se consolida o MINON – iado. Objetivava-se o desenvolvimento da consciência crítica, Movimento Internacional para uma Nova Museologia, sendo que ocorrerá juntamente com uma qualificação na forma de uma das principais características, a interdisciplinaridade que intervir, uma motivação para ação e transformação do mundo possibilita a formação de uma consciência crítica em relação (FREIRE, 2005). aos problemas enfrentados pelas comunidades. Segundo Na Declaração de Santiago é possível observar a possi- Chagas (2014), esta museologia que começa a ser delineada bilidade do museu como espaço educativo e que possibilita nas décadas de 70 e 80, futuramente chamada de Museologia a transformação social, por essa razão, o documento busca o Social, apresenta-se engajada nos problemas sociais: diálogo entre escolas e museus: está comprometida com a redução de injus- Que o museu, agente incomparável da edu- tiças e desigualdades sociais; com o comba- cação permanente da comunidade, deverá te aos preconceitos; com a melhoria de vida acima de tudo desempenhar o papel que coletiva; com o fortalecimento da dignidade lhe cabe, das seguintes maneiras: e coesão social; com a utilização do poder da memória, do patrimônio e do museu a fa- vor das comunidades populares, dos povos a) um serviço educativo deverá ser organi- indígenas e quilombolas, dos movimentos zado nos museus que ainda não o possuem, sociais, incluindo aí, o movimento LGBT, o a fim de que eles possam cumprir sua MST e outros. (CHAGAS, 2014, p.17) função de ensino; cada um desses serviços será dotado de instalações adequadas e de As atividades são voltadas fundamentalmente, para a meios que lhe permitam agir dentro e fora memória local, trabalhando com as comunidades, em seus do museu; territórios, alinhados com a construção da ideia de pertenci- mento, sendo a prioridade, o respeito a diversidade cultural e b) deverão ser integrados à política nacional de ensino, os serviços que os museus deve- a realidade local. rão garantir regularmente; Nesse sentido, o desenvolvimento de ações educativas nos museus surge como um importante instrumento cujo in- c) deverão ser difundidos nas escolas e no tuito vai muito além do simples chamamento de público, mas meio rural, através dos meios audiovisuais, de construção de conhecimento, possibilitando reconhecer e os conhecimentos mais importantes; mudar posicionamentos, bem como transformar a visão de mundo dos indivíduos.

335 POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS cipais questionamentos dos profissionais do campo. O debate foi em torno da necessidade de reconhecer os museus como A partir de 2003, inaugura-se uma nova fase para os mu- prioridade no plano das políticas públicas na área de cultura, seus brasileiros. O governo do ex-presidente Luís Inácio Lula contando com a participação de profissionais e estudantes da da Silva, juntamente com a atuação do Ministro da Cultura área. A partir deste momento, foram pensadas as maneiras e Gilberto Gil, foi marcado por uma série de ações no sentido de condições simbólicas e materiais das mudanças. valorização dos museus brasileiros e, em concordância, a par- A criação do Departamento de Museus e Centros Cultu- ticipação da sociedade civil na formulação de novas políticas rais (DEMU), dentro do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar- públicas mais democráticas. tístico Nacional (Iphan), representa uma ação de destaque na No que tange aos museus, pode-se perceber esforços no articulação e direcionamento político que alteraram o cenário sentido colocar em prática as transformações demandadas das instituições museológicas do Brasil pela Museologia, o que vai atingir diretamente as todas as atividades dos museus, “esse projeto exige e cria condições O DEMU foi um mecanismo institucional, no para novas relações entre museu, Estado e sociedade. ” (MO- formato de um Departamento do sistema RAES, 2009, p. 60) formado pelo IPHAN, que serviu para cata- A Política Nacional de Museus, tem como marcos estru- pultar o debate sobre o projeto, organizar as turantes, a criação do Departamento de Museus e Centros Cul- unidades existentes, homogeneizar ou in- turais (DEMU); a formulação e institucionalização do Sistema fluenciar os discursos, as ações e concepções Brasileiro de Museus (SBM); o estabelecimento do Estatuto do cotidiano das instituições museológicas, o ponto de partida das mudanças anuncia- dos Museus (EM); e, por fim; a aprovação e constituição do das.. (MORAIS, 2009, p. 62) Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Mudar a museologia, ou os museus, sig- Essas articulações feitas pelo DEMU foram determi- nificava modificar simultaneamente re- nantes para que as políticas públicas cogitadas no campo lações estruturantes, relações gerenciais, museológico se materializam, possibilitando uma articulação políticas, econômicas, sociais, relacionais e que no futuro culminaria na criação do Instituto Brasileiro de simbólicas. Significava repactuar, enfatizar, Museus (IBRAM). suavizar e aprofundar situações e interesses Além das mobilizações em torno da construção e im- que não pretendem ser contrariados, aban- plantação da PNM, houve a criação do Sistema Brasileiro de donados ou modificados. Era mover-se com Museus (SBM), uma das ferramentas mais cruciais para sus- consciência social e objetividade, era saber citar o diálogo com a sociedade e assim, estabelecer políticas que conflitos e tensões cotidianos ganharão públicas mais efetivas. A finalidade do SBM era e promoverão outras feições e possibilida- des. (MORAES, 2009, p. 61) [...] a promoção e integração entre museus brasileiros, o registro e disseminação dos co- A PNM visava propor ferramentas de fomento para mu- nhecimentos do campo museológico, a ges- seus, desenvolver ações no sentido de oferecer visibilidade tão integrada e o desenvolvimento de insti- e condições para valorização dos museus enquanto espaços tuições, acervos e processos museológicos e científico e profissional. Conforme expresso no documento, “a o desenvolvimento de ações de capacitação, revitalização dos museus brasileiros e do patrimônio histórico documentação, pesquisa, conservação e di- do país é uma das prioridades do Ministério da Cultura.” (BRA- fusão entre as unidades museológicas que o SIL, 2004, p.7) integram. (BRASIL, 2006, p.21) Uma das estratégias foi a realização do Fórum Nacional de Museus, em que foi apresentado e discutido visões da si- Dessa forma, o SBM representou um passo importante tuação do campo, encaminhamentos e soluções para os prin- na construção de uma nova política, seja no gerenciamen-

336 to das instituições, na articulação das instituições museais se realiza como direito de todos os cidadãos, tencionando a otimização dos recursos e dos procedimentos direito a partir do qual a divisão social das museológicos, o que representam ações que visavam o de- classes ou a luta de classes possa manifes- senvolvimento. tar-se e ser trabalhada porque no exercício Uma outra medida que merece destaque, é a formulação do direito a cultura, os cidadãos, como do Estatuto de Museus, promulgado em 2009 e, que repre- sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, sentou um importante instrumento jurídico. Apresenta-se um entram em conflito, comunicam e trocam novo conceito de museu, novas funções e novas atribuições suas experiências, recusam formas de cul- tura, criam outras e movem todo o processo que vão ser fundamentais para a expansão do campo, como a cultural. (p. 66) sugestão para a implementação de planos museológicos das instituições. Um recurso que permite planejamento das ações O patrimônio cultural é um referencial no exercício da dos museus, definindo metas, cronogramas e mecanismos de cidadania, segundo Santos (2008), faz-se necessário uma avaliação. prática museológica participativa para que os sujeitos se ap- E, por fim, a aprovação do Projeto de Lei 3591 que regu- ropriem dos patrimônios produzidos pelas sociedades na qual lamentava a criação do IBRAM juntamente com um pacote de estão inseridas. Cidadania, então, se refere a relação entre medidas que tinham o objetivo criar cargos públicos e direcio- direitos e deveres do indivíduo diante do Estado, ser cidadão nar recursos. E em 20 de janeiro de 2009 a então lei Nº 11.906 significa compreender de forma crítica os processos políticos, foi sancionada culturais e sociais que regem o país. Art. 1o Fica criado o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM, autarquia federal, dotada MUSEU, EDUCAÇÃO E CIDADANIA de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira, O entendimento dos processos autoritários que marcar- vinculada ao Ministério da Cultura, com am a constituição das políticas culturais voltadas para o pat- sede e foro na Capital Federal, podendo rimônio no país, vão corroborar para a compreensão dos mu- estabelecer escritórios ou dependências seus enquanto espaços de tensões e conflitos. Dessa forma, os em outras unidades da Federação. (BRASIL, museus, podem colaborar com mudanças sociais significati- 2009) vas. Ao serem encarado como um local de aprendizagem e di- vulgação cultural, os museus possibilitam o questionamento Com a criação do IBRAM, os museus ganham força no da memória cristalizada pelos grupos hegemônicos, e assim país, passando a contar com um órgão que se tornaria um os indivíduos podem olhar a sociedade e as relações nela esta- espaço de referência e normatização quanto às instituições belecidas de forma mais crítica, o que viabiliza possibilidades museológicas e seus profissionais. Com o IBRAM o Brasil entra de melhorias coletivas através da reivindicação dos direitos em uma nova fase de gestão de museus. sociais Pode-se perceber que o Brasil avançou nas suas propos- tas e ações práticas. A participação da sociedade ganha maior a relação entre museu e educação é intrín- notoriedade. Durante décadas, Estado esteve em um papel de seca, uma vez que a instituição museu não produtor de cultura, construindo identidades que atendes- tem como fim último apenas o armazena- sem aos interesses nacionais, processo no qual participaram mento e a conservação, mas, sobretudo, o entendimento e o uso do acervo preservado as diversas instituições culturais (incluindo os museus). Na pela sociedade para que, através da memó- contramão dos interesses do Estado, as políticas culturais ria preservada, seja entendida e modificada deveriam representar caminhos para o processo de cidadania. a realidade do presente. Nesse sentido, a Uma política cultural, de acordo com Chauí (2008), própria concepção do museu é educativa, pois o seu objetivo maior será contribuir

337 para o exercício da cidadania, colaborando dominante. No campo material, os museus se configuram para que o cidadão possa apropriar-se do como palco para postular garantias no sentido de se verem seu patrimônio e preserva-lo, assim ele representados nos espaços, até então, hegemônicos, e assim, deverá ser a base para toda a transformação garantir processos democráticos. que virá no processo de construção e recons- Portanto, faz-se necessário um novo fazer museológico trução da sociedade, sem a qual esse novo que esteja de acordo com os interesses da sociedade civil, e fazer será construído de forma alienante. não mais de acordo com os interesses da sociedade política (SANTOS, 1996, p. 16 -17) como outrora. É irrefutável a imprescindibilidade de se criar ferramentas educativas pautadas na utilização do patrimônio Como já discutido anteriormente, considerar a im- cultural como instrumento de aprendizagem, demonstrando portância da função educativa nos museus está associado as que salvaguardar, preservar e questionar a memória he- demandas da Museologia que começam a ganhar força na gemônica é fundamental para exercício da cidadania. Uma segunda metade do século XX, quando os museus vivenciam instituição museológica comprometida com sua função transformações em suas teorias epistemológicas. Foi a partir social contribui, através de suas exposições, privilegiam a da reflexão sobre a função social dos museus, que setores aprendizagem e o estímulo ao olhar crítico a memória edi- educativos começaram a ganhar maior espaço nessas institu- ficada pelas classes dominantes, possibilitando a criação de ições. No entanto, muitos setores da sociedade desconhecem novos significados e narrativas. as possibilidades de utilização de um museu como recurso Para tanto, é preciso formular diretrizes, que utilizem o didático. Quando há a possibilidade de contato direto com patrimônio cultural como um referencial para o desenvolvi- os objetos de estudo, pode-se falar em um processo de res- mento social. Através do patrimônio cultural, é possível a significação. Os objetos de acervo numa exposição deixam construção de uma outra memória em que os grupos invisibi- de exercer sua função original e passa a ser preservado com lizados apareçam como protagonistas da história. Além disso, o intuito de carregar informações acerca da memória e da caracteriza-se como um instrumento para a percepção crítica identidade de um povo ou grupo social. Dessa forma, as insti- da sociedade e a promoção de melhorias sociais, visto que os tuições que muitas vezes são vistas como espaços elitizados, museus podem contribuir para ressignificação e apropriação visto que durante muito tempo cristalizaram a memória do das identidades. Segundo FIGURELLI (2011) grupo hegemônico, podem também, serem encaradas como um local de aprendizagem e divulgação cultural. A partir dos O bem cultural composto de memórias, patrimônios, há a possibilidade do questionamento da con- significados e valores, provoca novas ideias strução de uma memória que beneficia os grupos dominantes e sentidos, diferentes emoções. E é através no processo histórico e assim, os indivíduos podem olhar a so- da implementação de ações museológicas ciedade e as relações nela estabelecidas de forma mais crítica, socialmente engajadas que o patrimônio o que viabiliza possibilidades de melhorias sociais. cultural cumpre uma de suas funções pri- mordiais: suscitar a criação de novos conhe- Nesse sentido, aproveitando o momento propício de for- cimentos. (p. 121) mulação de novas políticas culturais para o setor, é que se faz necessário, expandir e reelaborar todas as funções inerentes Para além de uma visita mediada, a ação educativa ne- aos museus, entre elas, as ações educativas, que representam cessita privilegiar o desenvolvimento de um olhar questiona- um importante elemento para mudanças no campo simbólico dor e investigativo através do contato com a instituição e os e material no que cerne ao entendimento do modelo social no objetos ali resguardados, visando expandir sua capacidade qual estamos inseridos, marcado pelas desigualdades sociais crítica. Em meio as várias contribuições das instituições mu- frutos do processo histórico. No campo simbólico, a socie- seológicas à sociedade, a função educativa legitima sua a dade civil, ao utilizar os museus como espaços de educação e utilidade social. aprendizagem, podem questionar os processos hegemônicos de manipulação da história e memória em favor do grupo

338 Segundo Santos (1987, 1990, 1996, 2008), estas ações forma, os grupos que outrora não foram abarcados pelas contribuem para o pleno exercício da cidadania, entendida políticas culturais de forma efetiva, encontram nos museus, como a capacidade de reinvindicação de direitos, de partici- a possibilidade de se reconhecerem enquanto sujeitos e pro- pação nas decisões políticas, colaborando assim para a con- tagonistas da história, podendo assim, reivindicar políticas stituição de uma sociedade democrática. A prática cidadania públicas mais democráticas. pode ser a estratégia, para a construção de uma sociedade menos desigual. PUBLIC POLICIES, MUSEUMS AND EDUCATION- AL ACTIONS: THE USE OF PATRIMONY AS AN CONSIDERAÇÕES FINAIS INSTRUMENT FOR CITIZENSHIP. No início do século XX a noção de patrimônio nacional estava intimamente ligada à necessidade de referenciais para ABSTRACT a constituição de uma identidade brasileira, o que pode ser About the point of view that museuns are considered percebido principalmente nos períodos autoritários: Estado spaces of production and spreadment of knowledge, its high- Novo e Ditadura Militar. Ao longo dessa trajetória, novas lighted in this article the short historical of the formulation of formas de formular políticas culturais vão se afirmando, com public policy on Brazilian culture, observing the interests and reconhecimento de que no contexto nacional existe uma di- games of power that involve culture and the patrimony. The versidade cultural, comportando diversas manifestações que article adresses how the museuns were adapted to perform são fruto do processo histórico, e assim, as diferentes práticas the interests of hegemonics groups, the changes that occured culturais começaram a ser vistos como patrimônio. along 20th on cultural policies and museology and its con- A Constituição de 1988 dá um passo fundamental no formity with de social demand and finally a reflection around que tange perceber a cultura como direito social. Desse modo, the ambitions that the educativies actions may arouse, its inclui a referência à identidade e à memória dos diferentes importance in the exercise of citizenship, in a way to make grupos formadores da sociedade brasileira. possible the claims of social rights that had been supressed by Nesse processo, as políticas culturais no Brasil, por al- public policies, propritiated by the relation between museuns gum tempo foram pautadas sob os princípios neoliberais, and education. e nos últimos anos, foi possível perceber a participação da Keywords: Public policies; cultural policies; museum; sociedade civil e a valorização do setor museológico. Essas education; citizenship. transformações, em parte, vão estar de acordo com as novas demandas da Museologia surgidas a partir da década de 70, REFERÊNCIAS na qual, são estruturadas diretrizes e bases epistemológicas para um museu que estivesse comprometido com os proble- ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. mas sociais. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Em meio as várias contribuições das instituições muse- ológicas à sociedade, destaca-se a função educativa, pois esta ______; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarec- legitima a sua utilidade social, visto que, colabora com recon- imento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. hecimento do indivíduo enquanto sujeito social, pois é através (Original publicado em 1947) de uma ação educativa que a utilidade do bem cultural é po- BRANT, Leonardo. O poder da cultura. São Paulo: tencializado, contribuindo para os processos de construção de Petrópolis, 2009. conhecimentos. Um fazer museológico comprometido com a sociedade contribui, através de suas exposições, experiências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Repú- que privilegiem a aprendizagem, estimulando a olhar critica- blica Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. mente a memória edificada pelas classes dominantes, possi- ______. Política Nacional De Museus. Relatório de bilitando a criação de novos significados e narrativas. Dessa Gestão 2003 - 2004. Brasília: MinC/IPHAN/DEMU, 2004. 339 ______. Política Nacional de museus: relatório de GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, volume 2. gestão 2003-2006. Brasília: MinC/IPHAN/ DEMU, 2006. Antônio Gramsci; edição e tradução, Carlos Nelson Coutinho; coedição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira – 4. ______. Lei nº 11.906, de 20 de janeiro de 2009. Cria ed.– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, DF, 20 ______. Antônio. Cadernos do Cárcere, volume jan. 2009. Seção I 3. Antônio Gramsci; edição e tradução, Carlos Nelson Coutin- ho; coedição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira CHAGAS, Mário. MEMÓRIA E PODER: DOIS MOVI- – 4. ed.– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MENTOS. Cadernos de Sociomuseologia, [S.l.], v. 19, n. 19, june 2009. ISSN 1646-3714. 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______. Maria Célia T. Moura. Introdução. Proces- A cidade do Rio de Janeiro possui um patrimônio com sos Museológicos e educação. Cadernos de Sociomuseologia potencial turístico, educativo e interpretativo que precisa nº7, 1996. ser (re)descoberto por moradores e turistas. No contexto do processo de turistificação, alguns setores da cidade do Rio de ______. Maria Célia T. Moura. Encontros muse- Janeiro foram negligenciados como, por exemplo, o Campo de ológicos: Reflexões sobre a museologia, a educação e o mu- Santana, apesar de sua beleza paisagística e testemunho de seu. Rio de Janeiro: Minc/IPHAN/DEMU, 2008, 256p. importantes acontecimentos históricos. O local possui, desde o século XIX até os dias atuais, uma significativa história de SCHEINER, Tereza Cristina. Repensando o museu in- entrelaçamento com a população, tendo sido um dos eixos de tegral: do conceito às práticas. Boletim do Museu Paraense expansão da cidade e palco de manifestações diversas, como Emílio Goeldi. Belém, v. 7, n. 1, p. 15-30, jan.-abr. 2012 a aclamação de D. Pedro II como Imperador (1822) e a Procla- mação da República por Marechal Deodoro (1889). O Campo de Santana foi considerado um dos primeiros espaços de lazer da cidade com o ajardinamento projetado por Glaziou (1873). Atualmente, no entorno do Campo de Santana, estão situa-

341 das importantes instituições, tais como: Corpo de Bombeiros; cidade com o ajardinamento projetado por Glaziou (1873). Estação Central do Brasil; Biblioteca Parque; Museu Casa de Com relação ao seu entorno, na atualidade estão situadas Deodoro; Arquivo Nacional; a Gafieira Elite; escolas públicas; importantes instituições, tais como: Corpo de Bombeiros; Palácio Duque de Caxias; centro de compras SAARA; Palácio Estação Central do Brasil; Biblioteca Parque; Museu Casa de do Itamaraty; Centro Cultural da Light; Casa da Moeda, dentre Deodoro; Arquivo Nacional; a Gafieira Elite; escolas públicas; outros. Cadastrado na Pró-Reitoria de Extensão e Cultura na Palácio Duque de Caxias; centro de compras SAARA; Palácio Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), do Itamaraty; Centro Cultural da Light; Casa da Moeda, dentre o projeto “Turismo Cultural no Campo de Santana e entorno’, outros. origina-se do projeto “Janelas abertas para a República”, co- O projeto de extensão “Turismo Cultural no Campo de ordenado pelo Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Santana e entorno” realizado pela Universidade Federal do Social (LTDS/COPPE/UFRJ), e dá continuidade às ações que Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), deriva-se da parceria com vêm sendo realizadas desde 2014. Tem por objetivo contribuir o Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS/ para a diversificação de atrativos culturais neste trecho do COPPE/UFRJ) que, entre 2014 e 2016 desenvolveu o projeto centro histórico da cidade. Os principais resultados do projeto “Janelas abertas para a República”. As ações foram continu- são a realização do Colóquio Turismo e Cidades que está em adas e expandidas, mantendo o objetivo contribuir para a sua quarta edição este ano, além de roteiros-aula e minicurso, diversificação de atrativos culturais neste trecho do centro bem como a criação de canais de comunicação e fortaleci- histórico da cidade. mento de rede entre as instituições ali presentes, buscando Nesse percurso, o projeto realiza ações direcionadas ao ampliar o acesso ao patrimônio cultural da cidade e promov- público interno e externo à UNIRIO, aliando ensino, pesquisa e endo o diálogo entre Universidade e atores sociais locais. extensão. Em continuidade à proposta que vem sendo desen- volvidas desde 2015, as ações previstas para 2018 incluem a Palavras-chave: Turismo; Cidade; Espaço organização do IV Colóquio Turismo e Cidades, que visa reunir Público; Visitação; Patrimônio; Campo de Santana (Rio de Janeiro - RJ). especialistas para debater, desde uma perspectiva científica, temas em interface com o objeto de estudo “Campo de San- tana”. O projeto inclui, ainda, em seu escopo, a realização de Introdução roteiros-aula com vistas a atender a turistas e transeuntes Os desafios contemporâneos para ampliação e consoli- e demais interessados em conhecer da região do Campo de dação do espaço turístico da cidade do Rio de Janeiro, notad- Santana, bem como a oferta de mini-curso a fim de colab- amente no período pós-2016, ou seja, após a realização de orar para a formação complementar de guias de turismo e megaeventos esportivos tais como, a Copa do Mundo de Fute- professores interessados em explorar o local. Outras ações são bol da Federação Internacional de Futebol - FIFA (ocorrido em dirigidas para a manutenção de canais de informação sobre 2014) e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos (ocorrido em 2016) o Campo de Santana e instituições do entorno, reforçando o são de várias ordens, incluindo assim aspectos relevantes do valor do patrimônio histórico-cultural e o fortalecimento de binômio turismo e cultura pelos vieses do patrimônio e da uma rede inter-institucional. Sendo assim, espera-se que o memória. Mas é preciso considerar que processos de turisti- projeto colabore para ampliar o acesso ao patrimônio cultural ficação negligenciaram algumas atrações culturais, como o da cidade e fortalecer o diálogo entre Universidade e atores Campo de Santana, apesar de sua beleza paisagística e teste- sociais locais. munho de importantes processos históricos. Nesse sentido, este artigo aborda os aspectos teóricos e Este espaço possui uma significativa história, tendo sido históricos sobre o objeto de estudo em questão, com ênfase um dos eixos de expansão da cidade e palco de manifestações no fenômeno turístico em espaços públicos urbanos, notad- diversas, tais como a aclamação de D. Pedro II como Imperador amente o patrimônio histórico-cultural via roteiros de visi- (1822) e a Proclamação da República por Marechal Deodoro tação. O trabalho está dividido em duas seções, além desta (1889). Foi considerado um dos primeiros espaços de lazer da Introdução e da Conclusão, sendo a próxima sobre aspectos

342 teóricos e conceituais norteadores e a terceira seção descreve longo da história muitos grupos dominantes e indivíduos têm a confluência entre ensino, pesquisa e extensão na perspecti- o desejo e a pretensão de ser senhores da memória. A história va das atividades desenvolvidas. enquanto campo do conhecimento trabalha com a questão da temporalidade e a reflexão acerca de diferentes processos históricos. Neste sentido, tanto as seleções com suas ênfases e TURISMO E NARRATIVA: CONECTANDO HISTÓRIA E MEMÓRIA POR MEIO DE ROTEIROS destaques no conteúdo a ser trabalhado quanto as omissões e negações produzidas permitem a construção e reconstrução Esta seção aborda inicialmente aspectos teóricos e con- do conhecimento de forma cotidiana. Segundo Nora (1993), ceituais que relacionam a tríade turismo, cidades e patrimô- a relação entre história e memória, que dialogam, se ali- nio, considerando as perspectivas da história e da memória mentam e se contrapõem, apresenta bem essa contradição. para a construção de narrativas (ver item 2.1). Posterior- Em linhas gerais, a memória é vida marcada pela dialética mente, foca-se nas narrativas e na abordagem de roteiros da lembrança e do esquecimento que podem ser produzidos como dinamizadores da relação entre turismo e cultura (ver de forma voluntária ou não. Em termos de temporalidade, a item 2.2.). memória é o presente sempre sendo um fenômeno atual. Por sua vez, a história é uma representação do passado a partir TURISMO, HISTÓRIA E MEMÓRIA de uma operação intelectual apoiada em análise e discurso crítico produzido pelo historiador. O turismo é fenômeno complexo que confluem espaços Segundo Nemi, Almeida e Pinheiro (2014), a transfor- e temporalidades específicas. Embora não seja a única forma mação da história em disciplina acadêmica garantiu a pop- de se tratar o turismo, a visão sistêmica é um paradigma ularização inédita da escrita histórica permitindo que os his- para o tratamento deste fenômeno e, nesse sentido, é pos- toriadores a partir do século XX se destacassem pela intensa sível destacar uma série de modelos, tais como o modelo de crítica à produção do conhecimento histórico. Por sua vez, em Leiper (1990), citado por Lohmann e Panosso Netto (2008), relação ao turismo, a construção de narrativas pode ser enten- que trata as regiões geográficas (origem, destino e trânsito) dida a partir planejamento dos roteiros turísticos. Para Ramos somados ao turista e a indústria de turismo e viagens cir- (2014), a compreensão de roteiros como produtos turísticos cundados por ambientes físico, tecnológico, social, cultural, inseridos no mercado precisam se constituir como itinerários, econômico e político. De outro lado, na perspectiva da criação ou seja, uma sequência de atividades e narrações, uma multi- de conhecimento sobre turismo, através do modelo de Tribe plicidade de interpretações que configuram uma experiência (1997) também citado por Lohmann e Panosso Netto (2008), turística. O próximo subitem aborda especificamente narrati- o turismo é considerado como um campo de estudo dividido vas e roteiros, na perspectiva de roteiros-aula. em duas partes “aspectos comerciais” e “aspectos não comer- ciais”, sendo que novos conhecimentos sobre esses aspectos são produzidos na Banda “K” (indicando o termo conhecimen- NARRATIVAS E ROTEIROS-AULA to quando grafado no idioma inglês) a partir de Disciplinas Outra perspectiva dialógica, é em relação à narrativa, é o “n” (Lohmann e Panosso Netto, 2008). Embora o estudo do que temos quando pensamos na articulação da memória pelo turismo não se resuma a esses modelos e sistemas, para viés da leitura individualizada, que pode ser feita de qualquer abordar turismo na perspectiva das cidades e do patrimônio, espaço ou coisa a despeito de seu contexto histórico no senti- é fundamental considerar tais aspectos epistemológicos para do coletivo, pois seu acionamento, neste caso, é impulsionado a reflexão que aporta a evolução do que se conhece sobre o pelo contexto histórico do indivíduo, num simulacro de histo- turismo, incluindo aí as discussões sobre história e memória. ricidade oficial. Assim, podemos entender, como nos ensina Assim, numa perspectiva dialógica, do lado da Lausberg (1993), que para a eficiência de uma narrativa, cujo historiografia, Le Goff (1990) afirma que a memória é uma cenário seja emoldurado por um espaço histórico, temos de representação do passado sendo histórica e social. O autor ter dois elementos capazes de lhes dar a forma convencional alerta que o tema da memória é importante uma vez que ao do discurso: A parte central do discurso tem como modelo 343 a sequência propositio + rationes [...]” (p. 92, grifo do autor). o processo de espetacularização dos espaços e das reali- Isto significa que o que garante a eficácia da narrativa como dades reais ou virtuais. Tudo isso, no entanto, não pode ser discurso é o grau de credibilidade que pode ser dimensionado apresentado apenas numa composição que resulte de uma pelo visitante de um determinado espaço. Sem dúvida, ape- soma de palavras e sinais de pontuação; são necessárias as sar de todo o contexto histórico oficial ser fundamental para a imagens para acionarem o imaginário que irá dar cor, cheiro, compreensão da importância daquele espaço no contexto da sabor e sentido àquilo que apresentamos aos visitantes dess- cidade e do país, como é o caso do Campo de Santana e seu es espaços, através de informações pontuais e enciclopédicas. entorno, será a proposição somada à razão que dará forma Só a palavra já não basta, é preciso que a imagem lhe este- à experiência vivenciada naqueles espaços. Somente assim ja próxima para que o visitante (que é espectador e ouvinte conseguimos sair do conhecimento enciclopédico para pen- ao mesmo tempo) consiga colocar em movimento todas os etrarmos no saber da população que circula por ali em busca, referenciais e todas as explanações capazes de lhe dar acesso muitas vezes, da afirmação da própria identidade de cidadão. à complexidade comum aos contextos históricos (coletivos e A natureza da proposição e da razão é abstrata; assim, individuais) através do que chamamos figura. para garantir a credibilidade do discurso é preciso que a nar- Modesto Carone, no prefácio da obra Figura, de Auer- rativa empreendida seja argumentativa. O papel da argumen- bach (1997, grifo do autor), explicando seu conceito, afirma “a tação é o de convencimento, seja pelo aspecto intelectual, figura é então algo real e histórico que anuncia outra coisa seja pelo aspecto afetivo. No caso de visitação ao Campo de que também é histórica e real (p. 8). O que é isso senão o dis- Santana e suas adjacências, temos a possibilidade de em- curso histórico de cada indivíduo somado ao discurso histórico preender ambos os aspectos e nisto reside a condição crível da tido como oficial? Assim, graças à compleição própria da fig- importância de resgate e preservação desses espaços uma vez ura, que representa, por um lado, a ideia de verdade; e por que eles permitem a elaboração tanto de um discurso histórico outro, a ideia de mímese (imitação), acaba por ondear entre elaborado oficialmente, quanto de um discurso histórico elab- a história e a estória. Assim, uma das formas de trabalho ad- orado na informalidade do dia a dia (ver seção 3). otada, justamente por permitir esse entrecruzar do discurso Sobre a elaboração, Lausberg (1993) afirma que a quarta oficial, porque documental, do Campo de Santana e seu en- fase da elaboração [...] é a memória (a memorização do dis- torno com o discurso memorial de indivíduos, é a realização curso) [...] e a quinta fase de elaboração é [...] a pronunciação de roteiros de visitação, que são simulacros da verdade e da de um discurso e os gestos concomitantes” (p. 93). Ora, quan- história, sejam elas individuais ou coletivas. do circulamos pelo Campo de Santana, pelas ruas da Alfân- A concepção de roteiro de visitação adotada neste tra- dega, Senhor dos Passos, do Lavradio, entre outras da região, balho e proposta para o Campo de Santana segue os enten- encontramos justamente esse conjunto de emanações narra- dimentos contidos na política nacional de turismo, através tivas que dão forma e, por conseguinte, vida e existenciali- do Programa de Regionalização do Turismo (ver seção 3), e dade ao contexto histórico oficial através da disposição e da também, dos aspectos conceituais de roteiro turístico/rotei- elocução individuais que misturam as histórias (oficial e pes- rização defendido por Cisne (2011, p. 359). Para este autor, soal), apropriando-se de ambas, porque se tornam também roteiro/roteirização constitui “(...) ferramenta de leitura da personagens dessas narrativas através de si mesmos ou de localidade visitada, considerando não apenas os atrativos, seus antepassados (ver seção 3). Aqui, o que há é o fundir mas também as relações interpessoais ali desenvolvidas, que saudável do discurso oficial, formal, ao discurso individual, in- são de profundo valor simbólico aos sujeitos que o praticam formal e é isso que mantém a espetacularização dos tempos (MOESCH, 2002). Ainda, ... o roteiro enquanto objeto autôno- e dos espaços; sejam eles historicamente documentados ou mo depende do Sujeito que o concretiza a partir da capaci- memorialmente relembrados, numa constante tessitura de dade de organizar sua mobilidade no tempo e no espaço... maravilhas, deslumbramentos, curiosidades e desejos. (CISNE, 2011, p. 364). A narrativa, o discurso, a argumentação, a elaboração a Cisne (2011), com base em Kluber (apud Santos, 2009), pronunciação, a credibilidade são elementos que percorrem propõe três coordenadas para compreender a produção do

344 espaço aplicada a um roteiro turístico contemporâneo, as e aspectos do cotidiano do espaço visitado, passam a ganhar quais envolvem: (1) lugar (espaço); (2) sequência (tempo) relevância dos participantes, podendo ser estes moradores ou e (3) experiência (sujeito/indivíduo). Conforme esta lógica, turistas. É com base nessa linha de interpretação, somado ao todo roteiro se materializa no espaço; e só existe no espaço conceito de Cisne (2011), que o Projeto de Extensão Turismo geográfico quando é praticado, ou seja, quando ganha a cer- Cultural no Campo de Santana e entorno desenvolve os rotei- tidão de empirização (CISNE, 2011, p.366). A segunda coorde- ros-aula. nada, a sequência, o autor entende que “(...) a duração física Os “roteiros-aula” constituem instrumento para, a partir de um roteiro não pode ser completamente conhecida com de uma abordagem interdisciplinar, a reflexão sobre diversas anterioridade, pois depende do comportamento dos Sujeitos temáticas arquitetura, urbanismo, mobilidade, história, artes, em tal espaço (...)” e “(...) a conexão existente entre os atra- gastronomia, paisagismo, políticas públicas para a cidade, tivos merecedores de serem visitados é dada pelo fluxo, ou dentre outras. O Campo de Santana, espaço negligenciando seja, pela empirização do tempo. Portanto, (...) o tempo teste- pelas políticas de turistificação da cidade do Rio de Janeiro, munha a materialidade do Roteiro, sendo, simultaneamente, torna-se espaço propício para tal, em que as professoras passado, presente e futuro” (CISNE, 2011,p. 366). Por fim, a vinculadas ao projeto provocam os participantes a lançarem terceira coordenada proposta pelo autor citado, a experiência, um olhar crítico sobre a complexidade da interface turismo depende da compreensão de tempo e da subjetividade de e cidades. cada indivíduo praticante desse roteiro; pois a cada instante Com base no aporte teórico conceitual tratado neste o valor intrínseco e os atributos que conferem experiência ao item 2, a próxima seção aborda as especificidades do trabalho indivíduo, mudam em função das percepções dele no tempo com o Campo de Santana e seu entorno na perspectiva das e no espaço. atividades de ensino, extensão e pesquisa. Os roteiros de visitação são comumente utilizados por agências de turismo receptivo, professores e guias de turismo O CAMPO NO CAMPO DE SANTANA: ATIVIDADES DE como ferramenta para apresentar o espaço urbano, destacan- ENSINO, EXTENSÃO E PESQUISA do não somente os atrativos icônicos da cidade em questão- mas, também, com o objetivo de trazer à memória de visi- Observa-se que, em geral, no Campo de Santana, local- tantes acontecimentos, causos, interpretações sobre o espaço. izado na cidade do Rio de Janeiro, as pessoas que circulam Desde uma perspectiva comercial-operacional, Tavares por lá, são portadoras de saberes e referências construídos (2002), afirma que apesar de roteiros de visitação assumirem nos seus grupos familiares, de amigos, de colegas de trabalho diferentes nomenclaturas no mercado turístico, mas pode- que cultivam, por exemplo, suas memórias de trabalhadores, se afirmar que constituem, em geral, itinerários de visitação das lutas diárias pela vida, dos momentos de lazer e diversão organizados, com a finalidade de apresentar a cidade e seus naquele espaço. Dessa forma, as construções identitárias dos principais diferenciais ao turista, a fim de despertar o inter- diferentes grupos são produzidas a partir de experiências cul- esse sobre os atrativos que poderão ser visitados de forma turais vivenciadas anteriormente. Entretanto, para a produção isolada posteriormente. do conhecimento histórico é necessário o questionamento de A partir de uma interpretação da Geografia, Tavares e verdades estabelecidas e a busca da compreensão da histori- Castro (2016) afirmam que os roteiros podem ser organizados, cidade da vida social como mencionado na seção 2. Em sín- oferecidos e fruídos visando a compreensão do contexto no tese, a cristalização que a memória pode produzir não deve espaço geográfico, são os “roteiros geo-turísticos”. Segundo os impedir a fluidez do conhecimento histórico produzido nas autores, os roteiros não se restringem aos aspectos comerciais sociedades. As tensões existentes entre história e memória, e, portanto, podem ser realizados em espaços considerados a construção de narrativas e roteiros são desafiadores nesse esteticamente inapropriados ou fora da noção do belo aos ol- sentido. hos do mercado convencional de turismo, mas que com base Essa parte do texto se subdivide com a finalidade de se nas narrativas que destacam o contexto histórico, a memória, apresentar num primeiro momento, o contexto relacionado ao planejamento e as políticas públicas que ensejam as re-

345 flexões sobre as espacialidades e temporalidades contidas Já na esfera municipal nota-se a relevância de se consid- no Campo de Santana e seu entorno (ver item 3.1) e, por erar aspectos do Plano Estrategico da Cidade do Rio de Janei- conseguinte, são apresentadas as atividades relacionadas a ro. Oliveira (2015) faz uma análise crítica do Rio Sempre Rio ensino, pesquisa e extensão, como resultados (ver item 3.2). (1996), Plano Estrategico II da Cidade do Rio de Janeiro: As cidades da cidade (2004) e dos Planos Estrategicos da Prefei- tura do Rio de Janeiro: Pos 2016 - O Rio mais integrado e mais BREVE CONTEXTO DO PLANEJAMENTO E DAS POLÍTI- CAS PÚBLICAS competitivo (2009 e 2012) que auxilia a perceber aspectos como competição interurbana e inserção global, bem como A partir da Constituição de 1988, através do artigo a imagem e a promoção da cidade. Nas considerações finais 180170, reconhece-se a importância da descentralização no do estudo a autora afirma que “Em todos os planos, espe- tratamento do turismo. Assim, antes de focar no Campo de cialmente nos de 2009 e 2012, considera-se o turismo como Santana, localizado na cidade do Rio de Janeiro, é mister estrategia economica” (OLIVEIRA, 2015, p. 274) e chama a at- recordar que a política nacional de turismo, através de docu- enção para a relevância de uma visão holística no tratamento mentos como os planos nacionais de turismo orientam para a do fenômeno. regionalização e consideram a elaboração de roteiros. Isto fica Em 2016, foi lançado o plano estratégico da cidade para evidente no Programa de Regionalização do Turismo (PRT), os próximos quatro anos e também com aspirações para até lançado em 2004 e focado na estruturaço e diversificaço da 2065 (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2016). De certa forma, oferta turistica (Mtur, 2013) e também nas atualizações dos ao voltarmos a analisar o Plano Nacional de Turismo (2018 mapas do turismo no Brasil (Mtur, 2017). -2022), ou seja, o mais atual, também compreenderemos a Ao se considerar o processo de categorização171 dos mu- relevância que parece assumir o viés econômico já que o foco nicípios nota-se que além da cidade do Rio de Janeiro fazer é em mais emprego e renda para o Brasil” (MTur, 2018b). parte da Região Turística Metropolitana junto a cidade de Nit- No que tange o âmbito municipal, a área de localização erói (Categoria B) e ter sido considerado um dos 65 destinos do Campo de Santana está inserida na região delimitada pelo indutores do turismo, este é categoria A, isto é, apresenta um Corredor Cultural, tal como estabelece a Lei nº 506 de 1984 melhor desempenho em relação os de categoria B, C, D e E que prevê a Preservação Paisagística e Ambiental do Centro (Mtur, 2017; MTur, 2018a). da Cidade do Rio de Janeiro, revista e ampliada pela Lei nº Em esfera estadual, nota-se a presença de investimen- 1.139 de 16 de dezembro de 1987, que além de estabelecer tos através do Prodetur-RJ, e destaca-se a importância da o tombamento de imóveis representativos na área, busca a cidade tanto para o polo Serra, quanto Litoral na confecção do manutenção dos trechos representativos do tecido urbano, Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável pretendendo a revitalização e o reuso dos espaços notáveis (PDITS) que constituí-se no orientador básico para futuros da região. investimentos na atividade turística no Estado, isto tanto do A região do Corredor Cultural abrange toda a área central lado do setor público, quanto possíveis parcerias e investi- histórica da cidade do Rio de Janeiro, conforme pode ser veri- mentos do setor privado (SETur-RJ, s.d.). ficado na Figura 1, a seguir:

170Art. 180. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico (BRASIL, 1988). 171 A categorização é um instrumento que mensura o desempenho da economia do setor nos municípios que figuram no mapa do turismo brasileiro. Para tanto, são consideradas quatro variáveis, sendo: quanti- dade de estabelecimentos de hospedagem, quantidades de empregos em estabelecimentos e hospedagem, quantidade estimada de visitantes domésticos, quantidade estimada de visitantes internacionais (MTur, 2017). 346 ra do Rio de Janeiro (2016), o Campo de Santana servia como , área de uso público destinada a pastagens, despejo de lixo, lavagem de roupas, funcionava como limite entre o urbano e o rural. Somente em meados do século XVIII, com a construção da Igreja de Santana em 1735 e o crescimento da urbe, que até então era limitada pela Rua Uruguaiana, o Campo de San- tana passa a ter uma visibilidade. Com a chegada da família Real no Brasil, em 1808, o Campo de Santana tem seu status elevado, e a área passa a ser usada para exercícios e manobras militares, bem como festas públicas populares como cavalha- das, touradas, batuques dos negros e sincretismos religiosos (AZEVEDO, MATTOS, BARTHOLO, 2015). Em meados do século XIX, o Campo de Santana, passa a Figura 1: Corredor Cultural da área central da cidade do Rio de Janeiro. Fonte: Multirio, 2018. ser um parque público. Ocorrem ali os festejos populares de acontecimentos oficiais e assim, o local adquire diferentes Desde 1970, a proposta do Corredor Cultural dava início a nomes correlatos a esses fatos históricos. Em 1822, passa a ser uma era de políticas públicas municipais voltadas à proteção chamado de Campo da Aclamação, por D. Pedro I ter sido proc- do ambiente construído. Além de preservar o centro histórico, lamado Imperador do Brasil; em 1889, com a Proclamação da o projeto também originou o modelo da APAC (Área de Pro- República, é denominado Praça da República. Outros marcos teção do Ambiente Cultural). Neste sentido, os conjuntos ar- importantes também tiveram palco no Campo de Santana: quitetônicos representativos das diversas fases de ocupação em 1841, a festa de coroação de D. Pedro II; em 1870, a festa da cidade contam aproximadamente com trinta mil imóveis da Guerra do Paraguai; e em 1888, a festa da Lei Áurea. Já integrando as atuais trinta e seis áreas urbanas protegidas no século XX, destacam-se fatos relacionados à reforma de (MULTIRIO, 2018). Pereira Passos, em que o Campo de Santana foi espaço para Nesse contexto, o Campo de Santana, tanto na esfera celebrações em apoio, como a Batalha das Flores (uma festa municipal, estadual e federal é considerado um dos parques para ricos com viés afrancesado para ocupar parques e praças históricos mais importantes do país e é a maior área verde no abandonadas pela população), e também de protestos, como centro da cidade do Rio de Janeiro. Assim, abordar a relação a Revolta da Vacina (AZEVEDO, MATTOS, BARTHOLO, 2015). entre ensino, extensão e pesquisa no Campo de Santana e seu O parque público foi projetado por Glaziou, o paisagista entorno pressupõe-se compreender instrumentos de plane- do Imperador, seguindo os moldes dos jardins ingleses, es- jamento e o ordenamento norteado pelas políticas públicas. pécies arbóreas distribuídas nas alamedas sinuosas e grandes áreas gramadas, formando contrastes de sombra e luz. Glaziou foi pioneiro no uso de árvores nativas no pais- CAMPO DE SANTANA E ENTORNO - ENSINO, EX- agismo, embora também tenha utilizado espécies exóticas. TENSÃO E PESQUISA O Campo de Santana resguarda algumas árvores centenárias, A área onde se localiza o Campo de Santana foi palco de tais como: as figueiras (Opuntia ficus-indica), ou “árvores que diversos feitos históricos, desde o período colonial. No contex- andam, trazidas da Índia; a árvore do Imperador (Chrysophyl- to histórico de formação da cidade, a área foi ocupada poste- lum imperiale), espécie atualmente ameaçada de extinção, e riormente, visto ser considerada como arrabalde, ou área dis- que adquiriu este nome popular pois seus frutos eram a pre- tante do centro urbano. A área era originalmente retangular, dileção dos Imperadores Pedro I e Pedro II. O Campo de Santa- colada aos morros da Conceição e Providência e cercada por na protege uma espécie dessa, que possui 20 metros de altura brejos, lagoas e mangues. Como bem cita o Guia da Arquitetu- e 150 anos. Além dessas espécies, destacam-se na paisagem

347 as palmeiras imperiais (Roystonea oleracea), que alcançam abordarem o modelo de Tribe (1997) é um grande desafio, até 50 metros de altura, e os baobás (Adansonia) considera- pois além de uma visão sistêmica paradigmática, é preciso dos sagrados para a religião do Candomblé. considerar uma perspectiva interdisciplinar. Nesse sentido, O paisagismo do Campo de Santana se completa com que o binômio turismo e cultura pelos vieses do patrimônio gruta, cascatas, diversos cursos d’água, pontes e “pedras”, e da memória se fazem presentes além da materialidade da todos construídos de alvenaria a partir da técnica Roicalle, elaboração de roteiros. A Figura 2 apresenta a área : buscando imitar a natureza. Também são um convite para o passeio as muitas obras de arte ali presentes, instaladas em diferentes épocas. Destacamos os quatro portões, um em cada eixo central do parque, e as fontes Stella, produzidas pela Fundição Val D´Osne, de 1888. Dias, Bueno e Acioli (2015) lis- tam também as esculturas e bustos, como o conjunto Inverno, Verão, Outono e Primavera, produzidos em mármore de Car- rara; o monumento em homenagem ao fundador da Repú- blica, Benjamin Constant, de 1926; e o busto em bronze do cantor Vicente Celestino e do sambista José Barbosa da Silva. Com um olhar atento, é possível observar a fauna e a flora, exóticos e endêmicos, protegidos pelo parque urbano. Nos Jardins e alamedas percorrem gansos, cisnes negros, Figura 2: Parque do Campo de Santana e instituições do entorno. patos, garças, gatos, pavão e cutias. Nos lagos fazem-se pre- Fonte: BARTHOLO, R., 2017. sentes cágados, tartarugas, tilápias e carpas. Nas árvores, escondem-se os gambás e morcegos, e outros pássaros, como Assim, a partir do diálogo entre diferentes campos do as garças e canários da terra exibem-se e complementam o saber, Turismo, História, Arquitetura, Urbanismo e Literatura, cenário. A presença de animais compõe a proposta de pais- o grupo de professoras do Departamento e Turismo da Univer- agismo de Glaziou. sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (DETUR-UNIRIO) Além de todos os aspectos históricos, seus monumentos, articulou atividades que integram os três acadêmicos, Ensino, o espaço, a fauna, o paisagismo, entre outros atrativos inter- Pesquisa e Extensão, apresentadas no Quadro 1. nos, o Campo de Santana complementa e interage com o seu Segundo, Bahl e Nische (2012. p.39-40), uma pro- entorno, contribuindo para a proposta do turismo cultural. O gramação pode ser elaborada e proposta em diferentes form- roteiro é complementado por importantes instituições e suas atos e objetivos extrapolando a ideia de viagem realizada arquiteturas, protegidas pela Lei do Corredor Cultural. Nesse para aproveitar apenas um período de férias, feriados ou fi- contexto, destacam-se o Quartel do Corpo de Bombeiros, nais de semana. Neste sentido, os roteiros turísticos propiciam prédio com estrutura metálica erguido em 1898; o Arquivo a oportunidade de se desenvolver uma série de produtos que Nacional, um dos maiores edifícios em estilo Neoclássico do atinjam âmbitos e escalas diferentes podendo possuir tanto a Rio que data de 1858, conforme cita Seara (2004); além do vinculação espacial local quanto englobar possibilidades de Palácio do Itamaraty e do palácio Duque de Caxias e a região cunho mais amplo em termos nacionais e internacionais. do Saara que formam uma diversidade de paisagens, conjun- A partir dessa consideração, desde 2015, o grupo de do- tos arquitetônicos, atrações, formando diferentes camadas centes do DETUR desenvolve diversas ações. Inicialmente, a históricas, passíveis de interpretação crítica sobre o patrimô- temática do turismo e cidades foi escolhida com eixo nortea- nio cultural urbano. dor para a realização do Colóquio Turismo e Cidades que conta O desafio de integrar ensino, pesquisa e extensão no desde então com comunicações e conferências de diferentes tratamento do turismo enquanto um campo do conheci- professores-pesquisadores de várias universidades nacionais mento, como citado por Lohmann e Panosso Netto (2008) ao e uma internacional (Universidade do Estado do Rio de Janei-

348 Quadro 1. Atividades e Resultados do projeto Campo de Santana e seu entorno Atividades Resultados Planejamento, organização e opera- cionalização pelos discentes, do evento anual denominado Colóquio Turismo Envolvimento dos discentes nos temas e Cidades, cujo objetivo é discutir a in- relacionados ao Projeto Campo de San- terface entre turismo, cultura e cidades, tana e entorno. Ensino relacionando, dentre outros espaços, o Abordagem do projeto como caso Campo de Santana e entorno. empírico em estudos sobre o fenômeno Palestras realizadas no âmbito de sala turístico. de aula com convidados, professores colaboradores e intervenções pontuais de alunos bolsistas do projeto. Revisão sistemática da bibliografia científica e não científica sobre o Campo Levantamento bibliográfico, histórico e de Santana e instituições do entorno. Pesquisa documental sobre o local. Banco de imagens e documentos. Produção de material para interpre- tação e narrativas nos roteiros. Participação da comunidade no roteiro Inserção e envolvimento das institu- de visitação à pé no Campo de Santana; ições situadas no entorno do Campo de no Colóquio Turismo e Cidades; Santana na elaboração dos roteiros e Elaboração de roteiro de visitação e Extensão nas reflexões teóricas e nas atividades narrativas. práticas relacionadas ao Campo de San- Formação, ainda embrionária, de rede tana e entorno. de instituições do Campo de Santana e entorno. Fonte: Elaboração própria. ro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Fed- oportunidade de conhecerem as pesquisas e reflexões de eral Fluminense, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, professores-pesquisadores a partir do diálogo entre turismo Universidade de São Carlos, Universidade de São Paulo e Cross e cidades pelo viés da cultura sendo que no caso daqueles que University- Austrália) que de alguma maneira dialogam com refletem sobre a cidade do Rio de Janeiro, o Campo de Santa- o tema proposto. na sempre é uma referência. Assim, os alunos do curso participam do evento de di- Por sua vez, de acordo com Bahl e Nitsche (2012, p.40), versas maneiras. Na condição de monitores de disciplinas um enfoque importante para a definição de um roteiro tem do Bacharelado ministradas por docentes envolvidos na fundamento na distribuição de atrativos turísticos, infraestru- atividade, alguns deles acompanham tanto o processo de turas e serviços dentro de um determinado espaço no qual elaboração da programação quanto sua execução do evento. fica evidente a demarcação de um itinerário. Neste sentido, Vale destacar que o evento também é aberto ao público em em relação à pesquisa, a consulta às referências bibliográficas geral que possa ter interesse nas discussões realizadas. Além (livros, artigos, sites e etc.) são fundamentais para poten- disso, muitos discentes participam como ouvintes tendo a cializar a atratividade do Campo de Santana permitindo o

349 conhecimento histórico, arquitetônico, urbanístico, literário, do patrimônio, do contexto das políticas públicas, das con- das questões relativas ao transportes (os bondes do passado, struções de narrativas e dos roteiros-aula de visitação. Os os trens da central do Brasil, a circulação do metrô e do veícu- desdobramentos deste trabalho podem ser futuras parcerias lo leve sobre trilho - VLT em tempos mais recentes). Como a entre a UNIRIO e outras instituições públicas ou não do Campo iniciativa tem sua origem na UNIRIO, a realização dos roteiros de Santana e seu entorno como, por exemplo, o Arquivo Na- na condição de um itinerário caracterizado por um ou mais cional, a Casa da Moeda, a Biblioteca Parque, a Faculdade de elementos que lhe conferem identidade como, por exemplo, Direito da UFRJ, a Escola Martins Pena. Certamente, futuros dos lugares de memória, da gastronomia, da República para projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão possam ser estabe- mencionarmos apenas algumas possibilidades ganharam lecidos permitindo a olhares múltiplos para a localidade cra- o formato de visitação coordenada pelos professores (rotei- vada no centro carioca. ros-aula de visitação). Neste sentido, novas perguntas podem ser construídas Por fim, a Extensão universitária deve ser compreendida visando articular a transformação do Campo de Santana de como o processo interdisciplinar educativo, cultural, científi- local de passagem, onde as pessoas pegam o trem, metrô co e político que promove a interação transformadora entre ou ônibus com as mais diversas finalidades, para adquirir a universidade e outros setores da sociedade. Dessa forma, nos condição de local da contemplação, aquisição e reformulação roteiros a pé pelo Campo de Santana e entorno, os professores de conhecimentos sobre a efervescente região central carioca e alunos da UNIRIO contaram tanto com pessoas que por sempre tão instigante quanto desafiadora para todos os en- motivos diversos têm interesse em conhecer a localidade de volvidos no processo. forma mais aprofundada quanto alunos da rede pública do Estado do Rio de Janeiro que acompanharam a programação EXTENSION PROJECT “CULTURAL TOURISM a partir dos locais de encontro previamente divulgados pelas IN CAMPO DE SANTANA” redes sociais e outras formas de divulgação. Assim, o conhec- imento produzido na Universidade passa a ser compartilhado ABSTRACT com a sociedade a partir de uma relação de retroalimentação entre as partes. The city of Rio de Janeiro has a heritage with tourist potential, educational and interpretive that needs to be (re) CONCLUSÃO discovered by residents and tourists. In the context of the touristification process, some sectors of the city of Rio de Ja- Nessa perspectiva, é mister destacar que os parques neiro were neglected, such as Campo de Santana, despite its públicos, no contexto mundial, estão inseridos na ideia da scenic beauty and testimony to important historical events. reurbanização das áreas antigas dos grandes centros, onde desenvolve-se o conceito do placemaking, ou seja, o uso dos From the nineteenth century until the present day, the site espaços públicos tornando os lugares como referência. Como has a significant history of intertwining with the popula- bem cita Jacobs (2014), os parques são locais efêmeros e tion, having been one of the axes of expansion of the city costumam experimentar extremos de popularidade e im- and the scene of various manifestations, such as the Pedro II popularidade. O Campo de Santana já experimentou todos os as Emperor (1822) and the Proclamation of the Republic by extremos, e por ter tantos atrativos necessita cada dia mais de Marechal Deodoro (1889). Campo de Santana was considered estudos detalhados para voltar a ter sua vitalidade máxima, one of the first leisure spaces of the city with the landscaping principalmente ligada ao potencial relacionado ao turismo designed by Glaziou (1873). Currently, in the surroundings of histórico e cultural. Campo de Santana, important institutions are located, such Com a realização deste projeto de extensão, bem como as: Fire Department; Central Station of Brazil; Library Park; sua sinergia com atividades de ensino e pesquisa, propiciam House of Deodoro Museum; National Archives; the Gafieira o próprio avanço do conhecimento sobre a interface entre tu- Elite; public schools; Duque de Caxias Palace; SAARA popular rismo e memória social por vieses variados, isto é, da história, shopping center; Itamaraty Palace; Light Cultural Center; Casa

350 da Moeda Museum, among others. Joined the Extension and BARTHOLO, R. Projeto PALÁCIOS DO RIO II: Turismo Culture Programs at the Federal University of the State of Rio cultural na Casa Histórica de Deodoro. Relatório técnico. Rio de Janeiro (UNIRIO), the project “Cultural Tourism in the Cam- de Janeiro: FAPERJ,2017. po de Santana and surroundings” originates from the project “Janelas abertas para a República”, coordinated by Labora- BRASIL (1988) Constituição da República Federal. tory of Technology and Social Development (LTDS / COPPE / Artigo 180. Disponível em website < https://bit.ly/2KdlgxZ > UFRJ), and continues the actions that have been carried out Acesso em 24 de abril de 2018. since 2014. Its objective is to contribute to the diversification of cultural attractions in this part of the historical center of CISNE, R. Por um pensar complexo do turismo: o ro- the city. The main results of the project are the holding of teiro turístico sob a lógica dos fluxos. Rosa dos Ventos, v. 3, n. the Colloquium on Tourism and Cities, which is in its fourth 3, p. 359-367, 2011. edition this year, as well as workshops and learning material, as well as the creation of communication channels and net- DIAS, V.; BUENO, A.; ACIOLI, J. - Os Monumentos do work strengthening among the institutions present, seeking Rio de Janeiro - Inventário 2015, Rio de Janeiro, Nau das to expand access to the city’s cultural heritage and promoting Letras, 2015. dialogue between the university and local social actors. JACOBS, J. Morte e Vida de Grandes Cidades - São Keywords: Tourism: City; Public place; Visi- Paulo, Martins Fortes, 2014 tation; Patrimony; Campo de Santana (Rio de Janeiro - RJ). LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. Agradecimentos: Agradecemos à Pró-Reitoria de Ex- tensão da Universidade Federal do Estado do Rio de Janei- LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Edito- ro pelo apoio no projeto de extensão Turismo Cultural no ra da Unicamp, 1990. Campo de Santana e entorno. Faz-se igualmente necessário uma menção de agradecimento aos bolsistas de extensão do LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: projeto, alunos vinculados à Escola de Turismo, no período de uma radiografia de nosso tempo e da nossa cultural. 2015 a 2017, nomeadamente: Flávia Caroline dos Santos; Yuri Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. dos Santos de Carvalho; Laudimira Insali Kambanque; Gabrie- la da Silva Ribeiro; e Antonio Gomes. LOHMANN, G.; PANOSSO NETTO, A. Teoria do Turismo: conceitos, modelos e sistemas. São Paulo: Aleph, 2008. REFERÊNCIAS MOESCH, M. A produção do saber turístico. 2ed. São AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. Paulo: Contexto, 2002.

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352 REGISTRO DE TRADIÇÕES DO CONGADO: A EX- do nesse contexto, bem como refletir sobre os processos de PERIÊNCIA DA GUARDA DE MARUJOS DE NOSSA patrimonialização das tradições da cultura popular de matriz SENHORA DO ROSÁRIO DE GENERAL CARNEIRO africana, em geral, e do Congado, em específico, que vêm se desenvolvendo nas várias esferas políticas. Rafael Antônio Motta Boeing Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Palavras-chave: Registro; Patrimonialização; Memória Social da UNIRIO Tradição; Congado. [email protected]

Regina Abreu INTRODUÇÃO Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO Em agosto de 2009, o Conselho Consultivo do Patrimônio [email protected] Cultural, órgão colegiado do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), emitiu parecer favorável à in- RESUMO strução de processo de registro das “Congadas de Minas”, visando seu reconhecimento como Patrimônio Cultural do No ano de 2009, o Conselho Consultivo do IPHAN emitiu Brasil. Desde então, o órgão federal se tornou mais uma in- parecer favorável à instrução de processo de Registro das stituição produtora de conhecimento cujas atenções têm se Congadas de Minas, visando seu reconhecimento como Pat- direcionado para essas manifestações da cultura popular, rimônio Cultural do Brasil. Desde então, paralelamente, os com a finalidade de realizar seu levantamento, identificação setores de patrimônio dos mais variados municípios mineiros e documentação em todo o estado de Minas Gerais. O pro- também vêm instruindo os seus próprios processos de Reg- cesso se tornou mais uma ocasião para a expansão do debate istro de festas, irmandades e/ou reinados de Nossa Senhora sobre a patrimonialização de festas, expressões e lugares de do Rosário, guardas de Congo, Moçambique, Marujos, comu- caráter sagrado dentro do estado, sobretudo aqueles (as) de nidades quilombolas, entre outros bens culturais imateriais matriz africana. Concomitantemente, os setores de patrimô- legados pelos africanos escravizados e seus descendentes nio dos mais variados municípios também vêm instruindo os na região das Minas Gerais. No ano de 2015, o município seus próprios processos de registro de festas, irmandades e/ de Sabará/MG, por exemplo, instruiu o seu Registro de uma ou reinados de Nossa Senhora do Rosário, guardas de Congo, tradição integrante do universo cultural do Congado: os Moçambique, Marujos, entre outros bens culturais imateriais Marujos. Visando o reconhecimento oficial das Guardas de legados pelos africanos escravizados e seus descendentes na Marujos de Sabará como Patrimônio Imaterial do Município, região das Minas Gerais. o instrumento de proteção foi proposto pela sociedade civil, Essas instituições, porém, estão se colocando diante de através do Ponto de Cultura Congado Sabarense, e se conso- um imenso desafio. O conjunto de tradições agrupado generi- lidou através de uma pesquisa histórica e etnográfica real- camente em torno do termo “Congadas”, ou “Congado”, possui izada com as seis guardas existentes no território municipal uma dinâmica extremamente complexa, híbrida, multifac- então, entre elas a Guarda de Marujos de Nossa Senhora do etada. Herdeiros das irmandades negras cristãs dos séculos Rosário de General Carneiro. A presente comunicação se ref- XVIII e XIX – as quais mantinham a prática da eleição, coro- ere a uma pesquisa que está sendo desenvolvida junto a este ação e cortejo de reis negros juntamente com a realização das grupo cultural-religioso específico, por meio do Programa de festas de seus santos padroeiros –, os “Congados” dos séculos Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. Elaborada a XX e XXI, de um modo geral, são frutos de processos de “des- partir de um recorte do projeto de pesquisa de Doutorado, a locamento sígnico”, nos quais a devoção aos santos católicos comunicação estará focada sobre as interações entre o grupo foi adaptada por uma gnosis ritual africana em sua concepção, em questão e o Município de Sabará, sobretudo a partir da estruturação simbólica e visão de mundo. A despeito de pre- instrução do Registro acima citado, buscando compreender star culto a entidades reconhecidas e difundidas pela Igreja as formas com que as relações de alteridade vêm ocorren-

353 Católica, essas tradições constituem uma alteridade cultural em ações de salvaguarda dessa manifestação, o presente au- para a população cristã, pois se fundamentam em uma cos- tor se sentiu motivado a elaborar um projeto de pesquisa de mologia que não é, propriamente, europeia. Não à toa, sua Doutorado com base nessas questões. transmissão ao longo do tempo ocorreu de maneira não har- Em primeiro lugar, percebemos a necessidade de de- moniosa, mas constantemente estorvada pelas mais diversas senvolver uma investigação aprofundada sobre as relações formas de repressão, empreendidas por parte não apenas da sociais estabelecidas entre as Guardas Marujos de Sabará e o Igreja Católica, mas também do Estado colonial, imperial e Estado, sobretudo enquanto Prefeitura, visando refletir sobre republicano. os processos de patrimonialização das tradições da cultura Somente no último meio século é que as instituições em popular de matriz africana, em geral, e do Congado, em es- questão vêm reconhecendo as memórias orais, corporais, rit- pecífico. Optamos então por trabalhar com um único grupo, uais do Congado como testemunho de uma história digna de a Guarda de Marujos de Nossa Senhora do Rosário de General ser documentada e patrimonializada. Na maioria das vezes, Carneiro, como ambiente dessa pesquisa, justificado pelas porém, não se tem considerado que essa memória não pode várias singularidades de sua trajetória histórica. Por um lado, ser lida apenas nos termos dessas instituições – cujas bases esses Marujos formam hoje o mais antigo grupo de Congado são geridas pela classe dominante e, logo, se assentam em em atividade dentro do município de Sabará. Por outro lado, uma visão de mundo europeia, branca, cristã –, mas sim de o grupo criou e se desenvolveu paralelamente a vários fluxos acordo com as categorias próprias de um povo que é, ao mes- migratórios, logo atua no município de Sabará sem estar pro- mo tempo, culturalmente distinto e historicamente reprim- priamente enraizado em seu território, uma vez que parte sig- ido, violentado, marginalizado, respeitando-se, sobretudo, o nificativa dos integrantes reside fora dele e a própria tradição seu tempo, a sua ancestralidade. recriada foi “importada” de outra região do estado de Minas No ano de 2015, o município de Sabará/MG instruiu o Gerais. A despeito disso, o grupo chama a atenção pelo vigor seu próprio processo de registro de uma tradição integrante de sua coesão interna, bem como de suas relações externas, do universo cultural-religioso do Congado: os Marujos. Visan- sendo hoje um dos grupos com maior número de integrantes do o reconhecimento oficial das Guardas de Marujos de Sa- e com melhores condições físicas, materiais e administrativas bará como Patrimônio Cultural do Município, o instrumento dentro do município. de proteção foi proposto pela sociedade civil, através do A pesquisa está hoje sendo desenvolvida dentro do curso Ponto de Cultura Congado Sabarense, e se consolidou através de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Memória de uma pesquisa histórica e etnográfica realizada com as seis Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janei- guardas existentes no território municipal então. A pesquisa ro (PPGMS/UNIRIO), sob a orientação da Prof.ª Dra. Regina resultou na elaboração de um dossiê aprovado pelo Consel- Abreu, e se encontra em fase de projeto. O presente artigo foi ho Deliberativo do Patrimônio Cultural e Natural de Sabará, construído a partir de algumas reflexões feitas pelo autor com órgão colegiado vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, base em casos e fontes trazidos de sua própria relação profis- e o “bem cultural imaterial” foi então inscrito no Livro de Reg- sional com os processos de registro em questão. istro das Formas de Expressão. Esse cenário de ações para o patrimônio imaterial AS POLÍTICAS DE PATRIMONIALIZAÇÃO nas três esferas de governo, de um modo geral, e no âmbito do município de Sabará/MG, em específico, suscita, para nós, Como se sabe, as políticas de proteção ao patrimônio um amplo conjunto de questões referentes aos sentidos do in- no Brasil foram inauguradas oficialmente no ano de 1937, ventário, registro e salvaguarda do imaterial, às leituras sobre com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico o patrimônio, às relações entre instituições e grupos da cultu- Nacional (SPHAN) – depois Departamento (DPHAN), e hoje ra popular de matriz africana, entre outras. Exercendo o cargo Instituto (IPHAN). Mário de Andrade foi um dos idealizadores de historiador dentro da Prefeitura de Sabará, participando da dessas políticas, tendo sido responsável pela elaboração do instrução do registro dos Marujos e trabalhando diretamente anteprojeto do órgão. Nele, adotava a perspectiva de um tratamento integral da cultura brasileira, que incluía tan-

354 to suas obras de arte, quanto suas práticas culturais – com instituído no Brasil pelo Decreto Federal nº 3.551, de 04 de destaque para “o povo brasileiro em seus costumes, usanças agosto de 2000, visando à identificação, reconhecimento e e tradições folclóricas, pertencendo à própria vida imediata, salvaguarda de Celebrações, Formas de Expressão, Saberes ativa e intrínseca do Brasil” (CHUVA, 2011, p. 154). Já sugeria, e Lugares de todo o território nacional. Desde então, o atual assim, a necessidade de abarcar seus elementos tangíveis e IPHAN vem se dedicando à pesquisa de diversas tradições intangíveis, na medida em que dependem um do outro. O da cultura popular de matriz africana. Entre as práticas que anteprojeto, no entanto, não foi levado em consideração na já foram patrimonializadas através desse mecanismo estão atuação do SPHAN durante sua fase inicial, também chamada o Samba de Roda do Recôncavo Baiano (2004), o Jongo no de fase “heroica”. Pelo contrário, até os anos 1970, o órgão de- Sudeste (2005), o Tambor de Crioula do Maranhão (2007) as senvolveu uma política de “pedra e cal”, isto é, exclusivamente Matrizes do Samba no Rio de Janeiro (2007), o Ofício dos Me- voltada para o tombamento de monumentos históricos ou stres de Capoeira e a Roda de Capoeira (2008), entre outras. artísticos, reconhecidos como patrimônio na medida em que As tradições do Congado, ou das “Congadas de Minas”, em estavam vinculados a fatos memoráveis da História do Brasil. breve deverão ser incluídas nesse rol do Patrimônio Cultural Assim, o inventário das tradições populares tal como proposto do Brasil. e iniciado pelo modernista em suas andanças pelo interior do A patrimonialização das “Congadas de Minas” em âmbito Brasil (a exemplo da Missão de Pesquisas Folclóricas) veio a se federal está, hoje, em sua fase de identificação e documen- desenvolver em outras instituições, a exemplo da Campanha tação. O processo de registro propriamente dito foi aberto a de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB). Criada em 1958, suas partir de uma solicitação feita pela Prefeitura de Uberlândia/ atenções estavam voltadas para o folclore enquanto síntese MG junto com outros cinco Municípios da região do Triân- das três matrizes formadoras da cultura brasileira (o branco, gulo Mineiro e com a Associação de Congos e Moçambiques o negro e o índio), não se restringindo, portanto, ao legado de Nossa Senhora do Rosário de Ibiá/MG, em novembro de do europeu. 2008. Os trabalhos de pesquisa, por sua vez foram inau- Durante muitos anos, as trajetórias do então DPHAN gurados em julho de 2012, a partir da contratação de uma e da CDFB correram paralelamente, reencontrando-se so- empresa para a produção do levantamento preliminar do mente na chamada fase moderna daquele, quando, a partir bem cultural em questão. Dada à amplitude do campo a ser das experiências do Centro Nacional de Referência Cultural estudado, ele foi dividido em duas etapas e prolongou-se até (CNRC), criado em 1975, as dimensões material e imaterial fins de 2014. Nesse momento, o IPHAN identificou, ao todo, da cultura foram reaproximadas. As noções de patrimônio 701 festas e 1.174 grupos associados ao universo das “Con- histórico-artístico e folclore foram revistas e substituídas por gadas”, distribuídos em 332 municípios do estado de Minas outras, tais como a de bem cultural. Assim, a década de 1980 Gerais (MOREIRA, 2015; SANTOS, 2016; RODRIGUES, 2016). presenciou sucessivas reformas nas instituições responsáveis Reconhecendo a complexidade da patrimonialização de um por políticas de proteção ao patrimônio, tais como a ampli- universo tão amplo, o órgão federal percebeu a necessidade ação da esfera de preservação, a democratização e horizon- de discutir as informações recolhidas diretamente com os talização das ações, a introdução de novos conceitos, métodos recriadores do bem cultural, por meio da organização de en- e instrumentos, etc. Um reflexo dessas mudanças foi, por ex- contros regionais de congadeiros. Inicialmente, a previsão era emplo, o tombamento do mais antigo terreiro de Candomblé de que esses encontros viessem a ocorrer entre novembro de do país, o Casa Branca, pela SPHAN, em 1984. Um mecanismo 2015 e fevereiro de 2016, pouco após a entrega dos resultados comum ao órgão, o tombamento, uniu-se à visão proposta da segunda etapa do levantamento. Nessa ocasião, porém, o pela CDFB, o reconhecimento de tradições de outras matrizes processo sofreu uma interrupção, aparentemente relaciona- que não apenas a católica luso-brasileira. da com problemas de orçamento da União, sendo retomado Na década de 2000, com a criação de um novo mecanis- somente em fins de 2017. O primeiro encontro regional veio mo de proteção – o registro –, esses exemplos se multiplic- a ser realizado nos dias 14 e 15 de abril de 2018, em Montes aram. O Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial foi

355 Claros/MG, com o objetivo de reunir as lideranças congadeiras reais), esse novo atributo serviu como um forte estímulo para da Região dos Vales do Mucuri e Jequitinhonha. que os municípios mineiros viessem a registrar suas culturas Paralelamente ao órgão federal, vários municípios do es- orais, populares e/ou tradicionais (CAMPOS, 2011). tado de Minas Gerais, com base em suas próprias legislações Sem a pretensão de avaliar os prós e contras dessa do patrimônio imaterial, têm desenvolvido processos de reg- política, cabe-nos observar o quanto ela contribuiu para a istro de manifestações locais do Congado. A partir da “Relação generalização (no sentido de propagação) de um olhar pat- de Bens Protegidos pelos Municípios (apresentados ao ICMS rimonialista sobre as tradições do Congado. Paralelamente, é Patrimônio Cultural), pela União e pelo Estado até o ano de bem provável que ela tenha vindo a reforçar igualmente uma 2017”, divulgada pelo portal do IEPHA/MG, pudemos identi- generalização (no sentido de abstração) das práticas conga- ficar que, de 2009 até hoje, mais de 70 municípios mineiros deiras em si. Uma quantidade significativa dos municípios já instruíram, aprovaram e homologaram registros de bens listados na “Relação de Bens Protegidos...” (acima citada) se culturais de natureza imaterial associados ao universo do Con- utiliza tão-somente do nome genérico de Congado para de- gado. De um modo geral, esses registros em esfera municipal nominar a celebração e/ou forma de expressão registrada. vêm ocorrendo de maneira bem distribuída pelo território e Ao contrário, são poucos os municípios que se apropriam de se dirigem a uma significativa variedade de manifestações, nomes mais específicos, que se refiram a uma das inúmeras porém sempre as abordando a partir das categorias de Formas tradições que compõem esse universo – tais como os Congos, de Expressão e/ou Celebrações. Coincidentemente, essa vasta os Moçambiques, os Marujos – ou mesmo às organizações em “onda” de registros se inaugurou justo no ano de 2009, através torno das quais ele se estrutura – tais como as guardas, os do reconhecimento de tradições do Congado em sete municí- reinados, as irmandades. pios pioneiros. Não é de se descartar que os processos que O registro das tradições do Congado em todo o estado vêm sendo instruídos de forma paralela nas esferas federal e de Minas Gerais tem sido uma importante ocasião para o de- municipal tenham suas intersecções. No entanto, é mais se- bate sobre a metodologia não apenas do INRC, mas aquelas guro afirmar que a “onda” teve suas principais motivações em usadas pelos órgãos de patrimônio em geral. É necessário uma política da esfera estadual: o ICMS Patrimônio Cultural. problematizar, por exemplo, a abordagem das performances Inaugurado pela Lei Estadual nº 12.040/1995, ou “Lei ou festas de caráter sagrado que muitas vezes as reduz a mod- Robin Hood”, o programa do ICMS Patrimônio Cultural se elos demasiadamente racionalistas, burocráticos, estanques, tornou um dos principais indutores da adoção de políticas sendo incapaz de captar os sentimentos, a devoção, a epifa- municipais para o patrimônio no estado de Minas Gerais. Na nia que estão em jogo. Embora tenham a “louvável” intenção medida em que estipulou a redistribuição de uma parcela do de fomentar a continuidade dessas manifestações, muitos Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadori- desses processos se relacionam com concepções, métodos e/ as e sobre Prestações de Serviço (ICMS) com base em critérios ou objetivos que trazem fortes riscos de “coisificação”, folclor- de preservação do patrimônio de cada município, o programa ização, mercantilização, desapropriação, ou mesmo de “desvi- veio incentivar diversas Prefeituras a desenvolverem ações de talização” das experiências às quais eles se dirigem. Um dos patrimonialização de bens culturais em nível municipal. Du- problemas intrínsecos ao gesto de documentar celebrações rante muito tempo, a noção de bem cultural do programa es- ou expressões de matriz africana – as quais se fundamentam, teve restrita à sua dimensão material. Com a aprovação da Lei sobretudo, na oralidade – diz respeito justamente ao pro- Estadual nº 18.030/2009, porém, a dimensão imaterial veio a cesso de “representa-lo” em suportes que não são próprios à ser reconhecida pelo programa, o qual começou a beneficiar sua memória, à sua temporalidade – quais sejam a escrita, a os municípios que viabilizassem registros em qualquer esfera fotografia, o audiovisual. É preciso reconhecer e questionar as de governo. Atualmente, os municípios podem obter de dois limitações desse gesto, que se constitui como uma tradução até quatro “pontos” apenas com a apresentação de dossiês e/ permeada por conflitos. Nesse sentido, antes de tratarmos es- ou relatórios de registro de bens imateriais. Considerando que pecificamente sobre o registro das Guardas de Marujos de Sa- cada um desses “pontos” se converte em uma quantia sig- bará, faremos alguns apontamentos sobre o que entendemos nificativa de dinheiro (que em geral varia entre dez e vinte mil por “tradições do Congado”.

356 AS TRADIÇÕES DO CONGADO dos, etc. Para Leda Martins, autora do livro Afrografias da memória, suas cerimônias traduzem a devoção a santos A definição de Congado, em primeiro lugar, tem suas var- católicos por meio de uma gnosis ritual africana em sua iações de acordo com o autor ou com a região onde o termo é concepção, sua estruturação simbólica e sua visão de mun- utilizado. Por vezes, Congado é definido como a totalidade dos do. Por um lado, seus ritos estão indissociavelmente vincu- ritos de eleição, coroação e cortejo de reis negros. Em outros lados à figura de Nossa Senhora do Rosário e às narrativas casos, é associado a apenas uma das guardas que compõem sobre sua aparição para os negros no contexto da sociedade esses ritos, as guardas de Congo. A partir de meados do século escravocrata ocidental. Por outro lado, eles são permeados XX, tornou-se comum o uso do termo para se referir aos feste- por uma filosofia telúrica que está densamente baseada na jos de devoção negra – em honra a Nossa Senhora do Rosário noção de ancestralidade, a qual constitui a essência de e/ou outros santos católicos – conduzidos por guardas – se- uma “visão negro-africana do mundo” (MARTINS, 2002, p. jam elas de Congo, Moçambique, Marujos, Caboclos, etc. –, 82). Transmitida de geração em geração por meio de rep- envolvendo irmandades ou não, possuindo reinados ou não. ertórios orais e corporais, naquilo que Leda Martins chama Seja como for, trata-se de um termo forjado no contexto de de “oralitura da memória” – os traços mnemônicos inscritos relatos sobre essas manifestações escritos por observadores na grafia do corpo em movimento e da vocalidade –, essa externos, não pertencentes àquele universo. visão de mundo mantém-se bastante presente entre os recri- As primeiras referências às “Congadas” aparecem ain- adores das tradições do Congado. Em sua performance ritual, da no século XIX na narrativa de viajantes estrangeiros que, os sujeitos atualizam o saber filosófico para o qual a vida de em suas andanças, presenciaram brevemente festas de reis cada indivíduo é uma extensão da vida dos antepassados, negros em diversas regiões do Brasil. Em seguida, folcloris- bem como uma preparação para que ela continue em seus tas brasileiros se apropriaram do termo nas suas descrições descendentes. Todo indivíduo é concebido como “expressão mais atentas e extensas sobre esses “autos”, enfatizando, no de um cruzamento triádico: os ancestrais (...), as divindades entanto, seu caráter dramático, isto é, as encenações de bat- e ‘outras existências sensíveis’, o grupo social e a série cultural” alhas entre reinos cristãos e pagãos em África, que ocorria (MARTINS, 1997, p. 37). Assim, suas experiências não estão dentro das chamadas “embaixadas”. Desde os anos de 1970, apartadas da memória coletiva ancestral, familiar ou étnica, porém, novas abordagens, elaboradas por antropólogos, do mesmo modo que o humano não está separado do divi- sociólogos, literatos, historiadores, etnomusicólogos, entre no, nem o terreno, do celeste, nem o corpo, da palavra, mas outros pesquisadores, vêm mostrando o quanto as tradições se complementam. No mesmo circuito fenomenológico, são congadeiras são complexas, dinâmicas e multifacetadas – incluídos os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, “con- sendo que a “embaixada”, tão destacada pelos folcloristas, é cebidos como anelos de uma complementaridade necessária, apenas um entre inúmeros elementos desse universo cultural em contínuo processo de transformação e devir” (MARTINS, e religioso. 2002, p. 84). Mesmo sendo marcada pelas formas de relação com Evidentemente, a concepção de tempo que subjaz o sagrado que foram impostas pela Igreja Católica ao longo essa visão de mundo se difere radicalmente daquela que de três séculos de escravidão africana no Novo Mundo, as fundamenta a sociedade ocidental moderna. Enquanto tradições do Congado possuem fortes raízes nas culturas da nossa sociedade se baseia em uma temporalidade linear, na África Centro-Ocidental, ou mais especificamente, dos povos qual passado, presente e futuro são instâncias distintas, que bantos172, tais como os bacongos, ambundos, ovimbun- não se misturam, diríamos que as tradições do Congado se 172 Banto é o nome atribuído genericamente, pelos desenvolvem em uma temporalidade curvilínea, ou espiral, ocidentais, ao conjunto de povos africanos falantes de na qual essas instâncias se habitam mutuamente. Nelas, línguas que têm uma origem comum. A denominação abarca, hoje, praticamente todos os grupos étnicos da grupos, os bacongos e ambundos – ocupantes da região África Centro-Ocidental, Oriental e Austral, em função dos rios Congo e Cuanza, respectivamente – foram os que não apenas de suas línguas, mas também de seus modos influíram mais diretamente na formação de tradições do de vida, determinados por práticas afins. Entre esses Congado no Brasil (LOPES, 2006). 357 “a primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, das principais cidades históricas mineiras do ciclo do ouro, o matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual município já possuía, nessa ocasião, uma forte demanda por os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em essas políticas, uma vez que guarda em seu território um sig- processo de uma perene transformação” (MARTINS, 2002, p. nificativo conjunto de bens materiais tombados nas esferas 84). Vinculando-se aos antepassados por meio da recriação federal e estadual. Desde o ano de 2002, por sua vez, o mu- periódica dos vestígios por eles legados, os congadeiros nicípio dispõe de uma legislação específica para a salvaguarda aderem ao “movimento curvilíneo, reativador e prospectivo” do patrimônio imaterial. Na esteira dos recém-criados progra- que vem se instituindo, por gerações e gerações, “do ances- mas de patrimônio imaterial das esferas federal e estadual, o tral ao performer e deste ao ancestre e ao infans”. Marcado município de Sabará instituiu o seu próprio Registro de Bens simultaneamente pela repetição e inovação, esse movimento Culturais de Natureza Imaterial, através do Decreto Municipal oblitera a noção de sucessividade temporal pela “reativação nº 410/2002. Por muito tempo, porém, esse mecanismo foi e atualização da ação similar e diversa, já realizada tanto no direcionado principalmente aos fazeres, celebrações e lugares antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento” da Sede do município – alguns deles, inclusive, associados ao (MARTINS, 2002, p. 85). centro histórico e seu patrimônio tombado –, desconsideran- Do mesmo modo, as relações estabelecidas com a do as inúmeras contribuições dos distritos e regionais para a memória se diferem consideravelmente. Enquanto as políti- formação da comunidade sabarense. cas de patrimônio em geral fabricam lugares de memória, isto O registro das Guardas de Marujos de Sabará foi en- é, vestígios materiais, funcionais ou simbólicos investidos por tão um caso excepcional, significativamente destoante um dever de memória – a exemplo dos arquivos, coleções e das tendências gerais das políticas municipais de cultura. dossiês – para que a transmissão da experiência acumulada Tradição congadeira vinda de fora, através da migração de pelos antepassados seja garantida, os congadeiros mantêm famílias do interior do estado para a região metropolitana os seus meios de memória, isto é, seus repertórios orais e cor- de Belo Horizonte, os Marujos constituem uma forma de porais através dos quais esse saber é transmitido de maneira expressão própria de bairros periféricos do município, não se espontânea173. Não se trata de uma memória registrada, ar- fazendo presente no Centro, mas sim no distrito de Ravena e tificial, inscrita na letra caligrafada, mas sim de uma memória nas regionais de Roça Grande e General Carneiro. Até o ano viva, orgânica, inscrita no corpo em performance. de 2015, essa manifestação só havia sido inventariada em Ravena, porém através de uma iniciativa da própria sociedade O MUNICÍPIO DE SABARÁ E SUAS GUARDAS DE civil, no âmbito do recém-criado Ponto de Cultura Congado MARUJOS Sabarense, ela veio a ser pesquisada em todos os seus terri- tórios e, logo em seguida, foi oficialmente reconhecida pelo O município de Sabará/MG vem trabalhando em prol da Conselho Deliberativo do Patrimônio por seu valor não apenas implementação de políticas municipais para o patrimônio histórico, mas, sobretudo, de memória e identidade – atribuí- desde, pelo menos, o ano de 1991. Reconhecido como uma do a grupos étnico-raciais historicamente excluídos daquilo que se convencionou nomear religião, patrimônio, ou mesmo 173 Nesse caso, apropriamo-nos, provisoriamente, das noções de lugar de memória e de meios de memória tal como concebidos por Pierre. O cultura. autor opõe essas duas noções considerando que “os lugares de memória Embora a efetiva inclusão dos Marujos em políticas mu- nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que nicipais de patrimônio tenha ocorrido apenas nessa ocasião, é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, notariar atas, porque essas operações não são naturais” (NORA, 1993, p. 13). as suas relações com o Estado já são frequentes há bem mais Estamos cientes, porém, de que as políticas de patrimônio e as tradições tempo. De certo modo, o processo de registro foi apenas a cul- do Congado não podem ser pensadas de forma tão binária, enquanto minância de uma longa trajetória de busca dos Marujos pela radicalmente opostas, uma vez que elas estão constantemente se valorização de sua tradição, empreendida principalmente entrecruzando – sobretudo essas últimas, que são essencialmente permeáveis, haja vista todo o processo de deslocamentos, adaptações através da reivindicação do apoio e suporte da Prefeitura às e ressignificações pelo qual elas se desenvolveram desde os tempos da várias atividades das guardas, com destaque para seus fes- escravidão até hoje. 358 tejos. Além disso, muitas lideranças das guardas em questão quando foi na década de 50, 50 e pouco, que já vinham participando direta ou indiretamente de eventos, eles mudaram pra aqui né? Mas já tinha, era ações e/ou movimentos para o reconhecimento, salvaguar- formada lá há muito, muito tempo. Isso aí da e fomento das manifestações do Congado no âmbito das eu nem posso te falar com você a data. (...) políticas públicas de cultura. Porque desde a época de eu garoto, o meu Para os fins desse artigo, concebemos os Marujos como pai [José Pedro Máximo Junior] já tava com grupos culturais e religiosos que compõem esse vasto univer- seus 40 e tanto, 50 anos, ele já era dançante, so cultural de matriz africana que gira em torno da coroação lá de frente da guarda. E ele começou dan- çando com sete anos na guarda, na época e cortejo de reis e rainhas negros, da reverência aos antepas- (SABARÁ, 2015). sados e da devoção a Nossa Senhora do Rosário. No entanto, essas guardas possuem formas de expressão (cantos, ritmos, A atual guarda foi refundada na nova terra sob a lid- danças, vestimenta, instrumentos) bastante particulares, que erança de mestres como os Srs. Raimundo Tobias, Clóvis as distinguem das demais, logo se diz que elas constituem Sudário, Roque Sudário, José Manoel Graciano e José Pedro uma tradição específica dentro do Congado. Máximo Junior. Apesar de nunca ter efetivamente morado em De um modo geral, as guardas de Marujos são encon- General Carneiro, o Sr. José Pedro esteve à frente da capita- tradas principalmente no interior do estado de Minas Gerais, nia da guarda por muito tempo, sendo um dos responsáveis não sendo muito comuns na região metropolitana de Belo por, junto a seus irmãos e demais parentes, conduzir as suas Horizonte, aonde prevalecem as guardas de Congo e Moçam- atividades até fins do século XX. É curioso observar que essa bique. O município de Sabará talvez seja uma exceção, porém guarda sempre teve a característica de reunir integrantes da com um motivo bem claro. Todas as guardas existentes no mu- mesma família espalhados por várias cidades. Com o tem- nicípio hoje foram refundadas ou trazidas de comunidades do po, essa dispersão aumentou, porém a grande maioria não interior. A regional de General Carneiro, por exemplo, foi um abandonou a tradição, continuando a sair de seus municípios território de Sabará que, em meados do século XX, recebeu (por exemplo, Barão de Cocais, Santa Bárbara, Belo Horizon- uma grande quantidade de migrantes, a maioria deles em te) para se encontrar em função das atividades da guarda. busca de oportunidades de trabalho em torno do complexo Atualmente, a guarda reúne descendentes de 2ª, 3ª e até 4ª ferroviário e industrial lá existente. Entre esses migrantes, geração dos (re)fundadores. estava um grupo de irmãos e primos de sobrenome Oliveira Formada hoje por mais de 50 integrantes, a guarda proveniente da área rural do município de São Sebastião do possui o seu próprio trono coroado de reis e rainhas, sua di- Rio Preto/MG. Lá se fixando, esse grupo trouxe consigo uma retoria, seu conselho, três capitães, além de pilotos, caixeiros, tradição herdada de seus mais longínquos antepassados. sanfoneiros, pandeireiros e dançantes. A guarda também A Guarda de Marujos de Nossa Senhora do Rosário de possui uma sede própria, localizada no bairro Vila São José. General Carneiro, objeto de nossa pesquisa, foi oficialmente Todo mês de julho, a guarda realiza o festivo levantamento fundada em 11 de outubro de 1966. O processo de sua (re) de sua Bandeira de São Pedro. Todo terceiro domingo do mês criação, no entanto, aconteceu a partir da década de 1950, de setembro, por sua vez, ela celebra a sua Festa de Nossa paralelamente às migrações da família em questão. A maior Senhora do Rosário, contando com a parceria da Paróquia de parte desse grupo de irmãos e primos se fixou na região de São Sebastião, da Comunidade da Vila São José e da Prefeitura General Carneiro, trazendo consigo uma rica tradição herda- de Sabará. da de seus mais longínquos antepassados. De acordo com Como já foi apontado, as Guardas de Marujos de Sabará o Sr. Marcílio Lourenço de Oliveira, filho de um dos antigos vinham se relacionando com o poder público municipal, di- capitães: rigindo-lhe reivindicações de apoio, fomento, proteção, desde Lá em São Sebastião do Rio Preto a gente muito antes do seu registro como patrimônio imaterial. O nem sabe a data. Porque isso aí veio dos grupo acima descrito não fugia à regra. Desde a década de meus avós, né, que foram passando. Aí 1980 (pelo menos), o grupo já interagia diretamente com

359 vereadores ou com o próprio prefeito, ainda que de forma Ao longo do período em questão, a equipe realizou descontinua, oscilando conforme a proximidade que seus pesquisa bibliográfica, produziu registros sonoros, fotográfi- membros tinham com aqueles que estavam no poder a cada cos e audiovisuais, acompanhou as festas de cada uma das mandato. Por vezes, essa interação resultou em significativos seis guardas, gravou entrevistas com as principais lideranças, benefícios para o grupo, tais como a locação de infraestrutura etc. O dossiê de registro foi terminado em novembro de 2015 para suas festas, a concessão de transporte para visita a festas e logo em seguida apresentado ao Conselho Deliberativo do de outras guardas e até a doação de um terreno para sua sede. Patrimônio, o qual confirmou sua posição favorável ao recon- O prévio conhecimento sobre essas relações entre Marujos e hecimento dos Marujos, inscrevendo-os em seu Livro de Reg- Estado anteriores à sua patrimonialização nos instiga a nos istro de Formas de Expressão. questionar, inclusive, em que medida o registro de bem ima- Considerando que não existe política de salvaguarda de terial trouxe alguma mudança efetiva para as suas condições uma cultura popular sem a efetiva participação de seus recria- e desdobramentos. O presente artigo, porém, não tem a pre- dores, podemos afirmar que os efeitos da patrimonialização tensão de buscar respostas para essa questão. Por hora, ca- dos Marujos começaram a aparecer somente em meados de be-nos apenas fazer alguns apontamentos sobre como essas 2016, a partir da ocasião em que suas lideranças vieram a relações se desenvolveram a partir da instrução do processo se apropriar diretamente desse instrumento para sua valo- de registro em questão. rização. Isso ocorreu, sobretudo, a partir da realização do 1º A instrução do processo de registro das Guardas de Maru- Encontro de Congadeiros de Sabará e da implantação de uma jos de Sabará ocorreu entre os meses de maio e dezembro de dinâmica de reuniões mensais entre funcionários da Secreta- 2015 por intermédio de funcionários da Gerência de Patrimô- ria Municipal de Cultura e representantes das guardas. nio Cultural (vinculada à Secretaria Municipal de Cultura) e Realizado no dia 31 de julho de 2016, no Museu do Ouro de uma empresa de consultoria licitada pela Prefeitura para de Sabará, o Encontro de Congadeiros veio concretizar uma elaboração do dossiê em conformidade com as exigências do proposta de formação continuada dos líderes e demais inte- programa do ICMS Patrimônio Cultural. grantes das seis Guardas de Marujos tal como formulada por Antes da instrução técnica propriamente dita, a Gerên- seu dossiê de registro, o qual incluía uma sessão destinada ao cia de Patrimônio Cultural organizou uma reunião com rep- planejamento da salvaguarda do bem cultural. Inicialmente resentantes das seis guardas a fim de que apresentar-lhes o pensado em formato de seminário, o encontro buscava, como mecanismo do registro de bem imaterial e mobilizá-los para um de seus objetivos, “empoderar as lideranças e demais in- que colaborassem e/ou se apropriassem dessa ferramenta de tegrantes dessas guardas para que reivindiquem, busquem e reconhecimento de suas tradições. A reunião, porém, não teve efetivem os seus direitos junto ao poder público municipal” uma adesão significativa – das seis guardas, apenas duas es- (SABARÁ, 2016, p. 17). Para que isto fosse minimamente tiveram representadas –, logo o processo do registro camin- atendido, a equipe da Secretaria Municipal de Cultura recon- hou, de certa forma, sem uma participação genuinamente heceu a necessidade de que o encontro fosse construído com ativa da comunidade de Marujos como um todo. A guarda a participação direta dos congadeiros, por meio de sua inte- estudada em nossa pesquisa, por exemplo, foi uma daquelas gração à comissão organizadora. que não enviou representante à reunião e, logo, não se ap- A escuta dos congadeiros logo trouxe uma demanda de ropriou da patrimonialização nesse momento inicial. A única adequação do formato inicialmente pensado para o encontro, liderança congadeira que acompanhou todas as etapas do qual seja o de seminário. Os recriadores foram unânimes em registro em proximidade foi o dirigente do Ponto de Cultura defender que mais do que um seminário, o encontro de- Congado Sabarense. De todo modo, todas as demais lider- veria se organizar enquanto uma festa própria do universo anças anuíram o registro de forma expressa, consentindo que mítico-ritual do Congado – mais do que palestras, debates, a equipe responsável pela instrução adentrasse seus espaços e informações, ele deveria se constituir de histórias, cantos, de- se inserisse em seus contextos para realizar a pesquisa. voções. Esse diálogo entre agentes públicos e lideranças con- gadeiras resultou então em um encontro bastante híbrido, no

360 qual as falas de técnicos, gestores e pesquisadores se interca- ao longo dos festejos (sobretudo por ocasião das missas), não laram com as narrativas de mestres, com os versos da tradição houve significativas menções discursivas ao aniversário de 50 e com a própria atuação das guardas, as quais, do início ao fim anos da guarda. O aniversário não foi lembrado por meio de do evento, cumpriram suas obrigações de trocar bandeiras palestras, conferências ou mesas-redondas. As alusões à data entre si, de saudar a reis, rainhas, capitães e demais autori- comemorativa ocorreram, sobretudo, através de elementos dades, de louvar Nossa Senhora do Rosário, de agradecer às próprios dos festejos. refeições, além de realizarem uma procissão com a imagem Todos os anos, os integrantes e colaboradores da guarda de sua santa padroeira até a igreja tricentenária consagrada a trabalham arduamente em cima da decoração dos andores, ela, localizada no Centro Histórico de Sabará. bandeiras e da sede como um todo para os diversos momen- Embora o encontro tenha contado com a presença de tos da festa. No ano de 2016, porém, essa decoração ocorreu apenas quatro guardas, ele funcionou, de certo modo, como com muito mais flores, fitas e bandeirolas. Todos os anos, ess- um “pontapé” inicial para uma mobilização mais efetiva dos es recriadores organizam um show pirotécnico para o levan- congadeiros do município em torno das políticas públicas tamento das Bandeiras de Promessa. No ano de 2016, porém, de patrimônio e dos seus recursos para a salvaguarda dos o espetáculo teve um aparato bem maior. Todos os anos, os Marujos. A guarda estudada em nossa pesquisa foi uma das festejos são conduzidos pelas expressões musicais próprias da que participou ativamente do encontro e veio então, a partir tradição dos Marujos. No ano de 2016, não apenas se execut- dele, a se apropriar de conceitos, discursos e ferramentas rel- aram ritmos, danças e cantos não usuais, os quais costumam ativos à sua patrimonialização. Esse processo se consolidou, ser recriados apenas em ocasiões especiais, como também se sobretudo, por meio de uma dinâmica de reuniões mensais presenciou a performance de veteranos que há muito tempo entre agentes públicos e lideranças congadeiras que veio a se não se reuniam com seus irmãos de devoção. Ao longo dos estabelecer logo após o encontro, a partir de agosto de 2016. vários meses de preparação para os festejos, as lideranças se Essas reuniões se tornaram então o principal espaço para dis- mobilizaram para viabilizar dois grandes “presentes” para o cussão dos problemas das Guardas de Marujos e para a busca aniversário da guarda. Primeiro, a formação de uma “guarda coletiva de soluções através dos instrumentos disponíveis no de ex-dançantes”, isto é, uma “segunda” guarda, composta campo do patrimônio cultural. majoritariamente por familiares que haviam se afastado da É importante observar que, nessa mesma época, parale- tradição (pelos mais diversos motivos), para atuar somente lamente às ações da Prefeitura de Sabará, muitas outras inici- durante os principais ritos dos festejos, juntamente com a ativas de valorização das memórias e identidades dos Marujos guarda “oficial”. Segundo, a promoção de momentos de in- vinham ocorrendo dentro do município. De um modo geral, teração entre as duas guardas (ou as duas versões da mesma podemos dizer que todas as festas em honra às santas padro- guarda) para a rememoração de velhas práticas – tal como eiras das guardas, organizadas anualmente entre os meses de ocorreu, por exemplo, durante o levantamento das Bandeiras agosto e outubro, representam iniciativas com esse caráter. de Promessa, na qual todos eles se reuniram para dançar a Para os fins desse artigo, porém, destacamos a mobilização “trançação de fita” ao redor dos mastros. Desse modo, a da Guarda de Marujos de Nossa Senhora do Rosário de Gen- comemoração dos 50 anos esteve diretamente associada a eral Carneiro em torno da comemoração dos seus 50 anos de uma perspectiva de reagregação da família (e da irmandade) fundação dentro do município de Sabará (1966-2016). e, a partir dela, de reverência aos antepassados (por seu le- A comemoração dos 50 anos ocorreu no âmbito da gado), realizando-se menos por discursos individuais do que própria festa organizada pela guarda em honra à sua santa pelo trabalho coletivo, menos por cerimônias oficiais do que padroeira, entre os dias 10 e 18 de setembro de 2016. De certo por vivências do sagrado, menos pela intelectualidade do que modo, não houve uma intervenção expressiva sobre a dinâmi- pela ritualidade. ca da celebração tal como ela ocorre todos os anos. A não ser Paralelamente à organização dos festejos, o tema dos por eventuais falas de um rei ou rainha, capitão ou pilota, ou “50 anos” foi levado à pauta de uma das reuniões mensais en- mesmo do padre local, feitas de maneira dispersa e pontual tre agentes públicos e lideranças congadeiras. As lideranças

361 da guarda solicitaram o apoio da Prefeitura à comemoração plo das próprias políticas de patrimônio – e se apropriar de sob variadas formas. De um modo geral, essa solicitação seus conceitos, práticas e discursos. Na verdade, a própria não se diferenciava muito das que foram apresentandas em categoria “tradicional” se tornou um recurso bastante estima- outras ocasiões – estava focada em demandas de infraestru- do pelos congadeiros em geral nas suas relações com outros tura, trânsito, segurança, etc. Uma das demandas, porém, foi grupos174, o qual vem sendo acionado como uma forma de bastante atípica. As lideranças se dirigiram aos funcionários autodefinição. Tal como observa Regina Abreu para outros da Secretaria Municipal de Cultura propondo a filmagem de casos de patrimonialização, reconhecemos que essa categoria um documentário comemorativo sobre as memórias da guar- está sempre a adquirir novos sentidos, contrastando, portan- da. Sua intenção era de que os funcionários agenciassem os to, “com uma visão até então cristalizada de uma linearidade equipamentos necessários para a gravação de entrevistas histórica, onde se privilegiava a ótica do passado como uma com mestres, de atividades da guarda, entre outras cenas. ‘remanescência’ da ‘comunidade primitiva’”. O “tradicional” A emergência dessa demanda nos sugere que, nesse mo- aparece, então, para nós, como uma categoria “social e politi- mento, as lideranças em questão já estavam se apropriando camente construída com base em conflitos, reivindicações e não apenas da ideia de sua tradição ser reconhecida como negociações em face do Estado” (ABREU, 2012, p. 32). É justo um patrimônio do município (e, logo, da própria política de o que observamos nessa visada inicial sobre a patrimonial- patrimônio), mas também dos instrumentos que viabilizaram ização dos Marujos. A reflexão sobre o processo de registro, de esse reconhecimento e, ao mesmo tempo, poderiam vir a con- organização do Encontro de Congadeiros e de comemoração firmá-lo, fortalecê-lo e difundí-lo perante a sociedade como dos 50 anos da guarda de General Carneiro, nos mostra que um todo. Cabe ainda observar que, entre tantos dispositivos, os recriadores da tradição em questão não se mantiveram eles optaram justo por aquele que se situa, até certo ponto, no passivos diante das iniciativas tomadas pelo poder público terreno da oralidade. em sua direção, mas, pelo contrário, interviram sobre elas Infelizmente, a Secretaria não dispunha então de recur- – afetando, em certa medida, os seus rumos –, bem como sos para tal empreitada. Mesmo assim, entre os meses de se apropriaram delas – mudando, em certa medida, a sua agosto e outubro de 2016, dois funcionários (um historiador própria caminhada. e uma jornalista) se organizaram para produzir alguns regis- tros audiovisuais, com equipamento amador. Ao todo foram CONCLUSÃO gravadas dez entrevistas individuais, uma roda de conversa e alguns momentos rituais. Os festejos do mês de setembro, por O reconhecimento da dimensão imaterial do patrimônio exemplo, foram parcialmente registrados. Posteriormente, trouxe junto consigo uma demanda de abertura das políticas esse material recebeu uma edição sumária, a fim de ser apre- públicas desse campo para a participação dos mais diversos sentado tão-somente aos integrantes da guarda. atores sociais – com destaque para os que estiveram previa- Esse suscinto relato dos desdobramentos da patrimo- mente excluídos delas. Cada vez mais, o trabalho de identifi- nialização das Guardas de Marujos de Sabará, sobretudo no cação, seleção e proteção de bens culturais não pode ser mais que diz respeito às experiências daquela de General Carneiro, concebido como atividade privilegiada de especialistas, mas nos induz a pensar essa tradição do Congado como sendo constituída por práticas culturais dinâmicas e, logo, sus- 174 Em sua reflexão sobre o processo de patrimonialização cetíveis a mudanças desde que elas estejam ancoradas em das “Congadas de Minas”, a cientista social do DPI/IPHAN, Corina Moreira, observa que a noção de “tradição” “possui uma oralidade, musicalidade, corporeidade que é própria da importância central no universo congadeiro” (MOREIRA, visão de mundo legada pelos antepassados. Estamos diante, 2015, p. 6). A mesma impressão teve o presente autor em portanto, de uma tradição que não está dada, mas em pro- suas interações com as Guardas de Marujos de Sabará. Nas cesso, um legado do passado que não se manifesta de forma conversas e entrevistas com as lideranças das guardas, é recorrente ouvi-los usando termos como “manter”, estanque, mas que se recria constantemente, permitindo-se, “seguir” ou “perder” a tradição – e na maioria das vezes inclusive, dialogar com regimes culturais distintos – a exem- eles estão se referindo a uma “tradição de Marujo(s)” (SABARÁ, 2015). 362 sim como uma prática social democrática, a incluir direta- ao encontro da reflexão de Regina Abreu sobre a importância mente todas as comunidades afetadas, envolvidas e/ou inter- de salvaguardar não apenas “os patrimônios” em sua diversi- essadas pelas políticas. Dentro das políticas para salvaguarda dade, mas o “sentido da alteridade”: de bens imateriais, tornou-se um consenso de que nenhuma A ampliação do conceito de Patrimônio decisão pode ser tomada sem que os detentores e/ou recri- abriu novas perspectivas para o século XXI, adores tenham voz ativa na própria leitura dos sentidos de seu mas também trouxe novas e inesperadas patrimônio e da patrimonialização (FONSECA, 2013). questões. Por um lado, o conceito tornou-se Paralelamente, é imperativo que as noções de per- mais inclusivo, começando a ser utilizado manência e autenticidade, fundantes do regime patrimonial, por camadas populares e comunidades sejam problematizadas e relativizadas a todo o momento, de tradicionais. Por outro lado, o discurso racio- acordo com as especificidades de cada grupo sociocultural, nalista com pretensão universal da ação pa- uma vez que os “bens culturais de natureza imaterial são trimonial com todos os seus códigos histori- dotados de uma dinâmica de desenvolvimento e transfor- camente constituídos, tem sido apropriado mação que não cabe nesses conceitos” (SANT’ANNA, 2003, de maneiras extremamente diversificadas p. 55). Desse modo, não deve haver mais espaço para uma entre as chamadas ‘comunidades tradicio- lógica patrimonial “calcada num mundo formado por muitos nais’. A relação entre universos discursivos patrimônios que devem seguir regras idênticas e universais” muito diferenciados tem despertado novas (ABREU, 2012, p. 36). Pelo contrário, cabe entender a patri- reflexões e, sobretudo, tem chamado a aten- monialização como tradução de conflitos, tensões e diálogos ção para a necessidade de preservar não entre regimes culturais distintos. Para as tradições de matriz apenas os patrimônios em sua diversidade, mas, sobretudo, a diversidade em si mesma, africana de um modo geral, isso significa, essencialmente, os ou seja, o sentido da alteridade (ABREU, encontros e intersecções entre uma visão de mundo fundada 2012, p. 36). na oralidade, sustentada pelo mito, e outra fundada sobre a escritura e sustentada por leis, pela razão, pelas “ciências”. É nesse sentido que a nossa pesquisa pretende camin- Nesse sentido, cabe lembrarmos as reflexões har, percebendo as tradições do Congado e, mais especifica- antropológicas sobre o patrimônio como categoria de pen- mente, dos Marujos como práticas culturais e religiosas que samento. De acordo com José Reginaldo Gonçalves, existe a se desenvolvem com base em “outras” memórias, as quais se possibilidade de transitarmos entre diferentes culturas com referem às (re)criações de grupos específicos (cada qual com a noção de patrimônio “desde que possamos perceber as suas particularidades), engendradas por meio das forças que diversas dimensões semânticas que ela assume e não natu- os afetam e pelas quais eles intervêm sobre o mundo, e que ralizemos nossas representações a seu respeito” (GONÇALVES, afirmam uma diferença quanto à memória patrimonialista, 2003, p. 27). Para a Prefeitura de Sabará, o reconhecimento da por exemplo. Não nos cabe agora, definir e/ou caracterizar tradição dos Marujos como um patrimônio imaterial é fruto essa memória, mas é imperativo reconhecermos que estamos da atribuição de um valor histórico, de memória e de identi- diante de uma memória oral, corporal, ritual, ou de uma “oral- dade a ela, em referência a populações afrodescendentes do itura da memória”, tal como propôs Leda Martins. Seja como município em geral. Para a Guarda de Marujos de Nossa Sen- for, cabe-nos acima de tudo estarmos atentos para o “sentido hora do Rosário de General Carneiro, por sua vez, a afirmação da diferença” dessas práticas, baseando-nos no pressuposto de sua tradição como um patrimônio pode compartilhar, de que “não existe memória social como única, unívoca, e gui- sim, dessa valoração, mas pode igualmente trazer consigo ada por um só caminho”, e observando a existência não ap- significações bem diversas. Diante disso, vislumbramos a ne- enas de “diferentes conteúdos de lembranças”, mas também cessidade de que a própria noção de patrimônio seja pensada “diferentes formas de lembrar” (ABREU, 2016, p. 44). etnograficamente, “tomando como referência o ponto de vis- ta do outro” (GONÇALVES, 2003, p. 32). Essa perspectiva vem

363 THE REGISTER OF CONGADO’S TRADITION: EX- REFERÊNCIAS PERIENCES OF GUARDA DE MARUJOS DE NOSSA ABREU, Regina. Memória social: itinerários poéti- SENHORA DO ROSÁRIO DE GENERAL CARNEIRO co-conceituais. In: DODEBEI, Vera; FARIAS, Francisco Ramos de; GONDAR, Jô. (Org.) Por que memória social? Rio de Janei- ABSTRACT ro: Híbrida, 2016. In 2009, IPHAN’s Advisory Council issued a favorable opinion for the recognition of “Congadas de Minas” as a Na- _____. Patrimônio: ‘ampliação’ do conceito e tional Cultural Heritage. Since then, at the same time, the processos de patrimonialização. In: CURY, Marília, VAS- heritage sectors of the most diverse municipalities of Minas CONELLOS, Camilo e ORTIZ, Joana (orgs). Questões indígenas Gerais have also been instructing their own registering pro- e museus: debates e possibilidades. ACAM Portinari: Museu cesses of brotherhoods of Our Lady of the Rosary, of groups de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo : of Congo, Moçambique and Marujos, among others cultural Secretaria de Estado da Cultura (SEC), 2012. practices bequeathed by enslaved Africans and their descend- ants through this region of Brazil. In 2015, the municipality CAMPOS, Yussef Daibert S. “A imaterialidade do patrimô- of Sabará/MG, for example, developed its register of one of nio cultural e a lei Robin Hood: a inserção da categoria ima- the many traditions that compose this religious and cultur- terial do patrimônio como pontuação para o repasse de ICMS al universe of Congado: the Marujos. Aiming to recognize cultural em Minas Gerais”. In: Revista CPC. São Paulo, nº11, “Guardas de Marujos de Sabará” as a Municipal Intangible p.87-102, 2010-2011. Heritage, the instrument of protection was proposed by the civil society, by a group named Ponto de Cultura Congado Sa- CHUVA, Márcia R.R. Por uma história da noção de barense, and was consolidated through a historiographic and patrimônio cultural no Brasil. Revista do Patrimônio ethnographic research carried out with the six existing groups Histórico e Artístico Nacional, n. 34. Brasília: IPHAN, 2011, in the municipal territory – among them, a group named p.147-165. Guarda de Marujos de Nossa Senhora do Rosário de General Carneiro. The present article refers to a research that is being FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra developed with this specific cultural-religious group through e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: UNIRIO’s Post-Graduation Program in Social Memory. Based ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: on a clipping of the doctorate research project, this article ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. will focus on the interactions between the group and Sabará’s Town Hall, especially since the beginning of the mentioned GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio process, seeking to understand the ways how otherness have como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHA- been occurring in this context, as well as reflecting on the GAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contem- patrimonialization processes of afro-brazilian and popular porâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. culture traditions, in general, and Congado’s traditions, in particular, that have been developing in the various political LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo spheres of Brazil. Horizonte: Autêntica, 2006.

Keywords: Register; Patrimonialization; Tradi- tion; Congado. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o re- inado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza; São Paulo: Perspectiva, 1997.

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NORA, Pierre. Entre memória e história: a prob- RESUMO lemática dos lugares. Projeto História, n. 10. São Paulo, dez. 1993, p. 7-28. Este trabalho propõe uma reflexão sobre os lugares de memória da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro e as RODRIGUES, V. J.. As nuances do trabalho do políticas públicas de patrimônio e turismo, encontrando na antropólogo nas políticas de Patrimônio Imaterial. In: análise de monumentos, mais especificamente no estudo 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2016, João Pessoa. comparativo entre três estátuas de personagens negras pre- Anais da 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2016. sentes no Centro do Rio: Zumbi (1986), João Cândido (2008) e Mercedes Batista (2016) seu objeto de estudo. Analisando SABARÁ. Dossiê de Registro das Guardas de Marujos de as obras tanto pelo contexto histórico, aspectos materiais de Sabará. Sabará: Prefeitura Municipal, 2015. suas instalações, espaços que ocupam na cidade, bem como seus usos pelo turismo cultural local, procuro entender o sen- ______. Relatório de Execução do Plano de Salvaguar- tido do monumento em seu contexto urbano atual. da das Guardas de Marujos de Sabará. Sabará: Prefeitura Mu- À luz da bibliografia sobre história e cultura afro- nicipal, 2016. brasileira e usando a experiência do ofício de guia de turismo cultural, procuro analisar as relações entre movimentos sociais SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio e Estado nos três casos, considerando os contextos distintos cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valor- para a imagem turística da cidade, os debates e embates ização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e envolvendo a construção dessas estátuas como elementos patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lampa- de “memoração”, e o processo histórico de construção de uma rina, 2009. memória social das identidades afro-brasileiras na cidade. Entendendo os conceitos de reparação e representatividade SANTOS, Francimário Vito dos. A política de registro como centrais para os movimentos sociais envolvidos, e em das congadas em Minas Gerais: mobilização, diálogos e busca de uma análise sobre o patrimônio histórico nas praças descontinuidades em Santo Antônio do Monte/MG. REVISTA públicas, entendo que as estátuas são um campo fértil para CPC (USP), v. 2, p. 242-266, 2016. reflexão sobre visibilidade e usos do passado.

PALAVRAS-CHAVE: Monumentos – Cultura Afro-Brasileira – Turismo Cultural

INTRODUÇÃO A memória social para se constituir em uma sociedade precisa de suportes materiais e imateriais. Entendidos como

365 documentos representativos do processo histórico da relação ao historiador usá-lo cientificamente, isto entre movimentos sociais e Estado, os monumentos (ou a aus- é, com pleno conhecimento de causa (LE ência deles) nos ajudam a pensar as relações políticas que as GOFF:1996) produzem tanto por sua localização espacial na cidade como por quem representam (e como o fazem), e analisar seu grau O estudo de monumentos que prestam homenagem de ressonância enquanto equipamentos urbanos feitos para nominal a pessoas notáveis pode ser visto como rica fonte recordar. de informação sobre as intenções contidas no processo de Lembramos sob influência de vários fatores: pelo que se criação da memória social, mas também da capacidade de convenciona ser objeto da disciplina histórica, pelo consenso ressonância desses suportes, ao notar que se comunicam de social expresso na memória oficial e nos seus ritos de reforço, forma mais direta com o público, inspirando mais interação e mas também pela persistência da histórias e culturas silen- identidade com o monumento175. ciadas, que se adapta e reinventa enquanto resistência cul- A partir da história urbana e da prática do guiamento tural. Nunca é demais reforçar o caráter político e seletivo da em turismo histórico-cultural, procuro refletir sobre a pat- memória, no qual a força da coletividade age intensamente, e rimonialização do espaço público através de monumentos, que a memória social é definida por relações de poder que se aqui entendidos como suportes imagéticos da memória desenham no processo histórico. social. Assim, interessa pensar a construção simbólica e ma- Marc Bloch nos recorda que a transmissão ou silenci- terial das personalidades patrimonializadas, observar como amento de uma memória não se dá por causas “naturais”, as representações operam sobre as construções da memória sendo antes de tudo um ato político que reflete os valores da e sistematizar os usos pelo turismo cultural enquanto lugar sociedade. Referindo-se aos documentos, comenta: de memória. A sua presença ou a sua ausência nos fundos Os lugares de memória nascem e vivem do dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, sentimento que não há memória espon- dependem de causas humanas que não tânea, que é preciso criar arquivos, que escapam de forma alguma à análise, e os é preciso manter aniversários, organizar problemas postos pela sua transmissão, lon- celebrações, pronunciar elogios fúnebres, ge de serem apenas exercícios de técnicos, notariar atas, por que essas operações não tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida são naturais (NORA, 1993: 13) do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a pas- Neste artigo176, aponto questões para análise sobre a sagem da recordação através das gerações” construção de espaços de memória afro-brasileira no Rio de (BLOCH:1941 apud LeGOFF:1996) 175 Diferentemente de obeliscos, arcos, pedras fundamentais e outros Graças à revolução documental do início do século XX, equipamentos que se referem a conceitos abstratos como “pátria”, “liberdade”, ou ainda à memória de eventos, os monumentos de person- temos a ampliação do sentido de documento. LeGoff ressalta alidades fazem referência à materialidade humana e têm forte poder de a importância de vê-lo documento como monumento do seu comunicação seja pela forma de corpo, cabeça ou busto, independente tempo, e da leitura crítica para depreendermos o seu sentido da verossimilhança com a pessoa representada. Para citar um exemplo para a memória social: conhecido, a estátua de Carlos Drummond de Andrade (Copacabana, 2002). O escritor mineiro está representado sentado em um banco da O documento não é qualquer coisa que fica orla de Copacabana. É possível sentar ao lado da estátua e é um dos por conta do passado, é um produto da so- monumentos mais fotografados pelos turistas que visitam a cidade. Sua instalação foi seguida por uma série de estátuas de artistas populares ciedade que o fabricou segundo as relações realizadas em tamanho real e acessíveis ao público: Ari Barroso II (Leme, de forças que aí detinham o poder. Só a aná- 2003), Braguinha (Copacabana, 2004), Dorival Caymmi (Copacabana, lise do documento enquanto monumento 2008) Renato Russo (Ilha do Governador, 2012), Tom Jobim (Arpoador, permite à memória coletiva recuperá-lo e 2014), Tim Maia (Tijuca, 2015) e Clarice Lispector (Leme, 2016). 176 Apresento aqui os resultados preliminares de uma pesquisa em 366 Janeiro, através do estudo de três monumentos de personali- sonalidades negras com diferentes graus de popularidade e dades negras instalados em áreas públicas na zona central do ressonância entre a população, em uma gradação que vai do Rio de Janeiro. São eles: Zumbi (1986), localizado no canteiro símbolo personificado de uma luta histórica a uma person- central da Avenida Presidente Vargas; João Cândido (2008), agem pouco conhecida. Cabem algumas notas sobre a histo- na Praça XV e Mercedes Baptista (2016) no Largo de São Fran- ricidade desses locais: cisco da Prainha, na Zona Portuária. A Avenida Presidente Vargas foi aberta na década de No que diz respeito ao sentido das homenagens, procu- 1940, em meio a uma das maiores operações de reforma ro entendê-las sob dois aspectos: apontando características urbana da cidade. A abertura da grande via destruiu a Praça materiais e simbólicas (dimensões, formas, estado de con- Onze, que há várias décadas abrigava importantes centros servação) e descrevendo os espaços públicos nos quais se en- religiosos de matriz africana. Ali morou a famosa Tia Ciata. contram enquanto lugares de memória (historicidade, usos) Nas décadas de 1920 e 1930 tornou-se o reduto de sambistas. e lugares turísticos (acesso, segurança, disponibilidade de Foi ali o primeiro desfile de Escolas de Samba organizado pela informações turísticas). Outro aspecto é levantar pontos para Prefeitura (1933). refletir sobre a dimensão política dessas obras, observada A linha reta entre o Rio Antigo e a Cidade Nova demoliu pela análise das relações de poder entre Estado e movimentos mais de 500 edificações, entre elas a colonial Igreja São Pe- sociais. dro dos Clérigos, e inscreveu no Rio as marcas do urbanismo A escolha destes três monumentos se dá pela repre- modernista. Contribuiu para criar uma divisão simbólica no sentatividade dos mesmos na construção de uma narrativa Centro: a oeste as áreas identificadas com o poder político e das relações de poder entre Estado e movimentos sociais que à história oficial como Praça XV, Castelo, Cinelândia, Praça procuram participação e representatividade. Entendo que Tiradentes, onde estavam os prédios governamentais, áreas cada uma das homenagens representa um momento distinto comerciais, teatros e a herança cultural luso-brasileira; a leste no diálogo entre movimentos sociais e setor público. ficam os bairros portuários Santo Cristo, Gamboa, Saúde e a Praça Mauá e o histórico Arsenal de Marinha, contíguo ao 1º DESENVOLVIMENTO Distrito Naval. A Praça XV é o principal ponto do corredor cultural criado A memória se ancora em espaços físicos e suportes ma- nos anos 1980 com vista à preservação da memória materi- teriais. Por sua importância simbólica, as regiões centrais do al do casco histórico da cidade. Desde o século XVIII, com a Rio foram historicamente pensadas pelo poder público como construção do Paço dos Governadores (hoje Imperial) se tor- vitrines de modernidade, através de processos de ressignifi- nou o centro político e irradiador da urbanização. Cenário do cação material como edificações, demolições, tombamentos, desembarque da Família Real e da assinatura da Lei Áurea, arrasamentos de morros e aterramentos mas também pelas foi ressignificado após o golpe de 1889, sem deixar de estar ausências e silenciamentos: “a memória, materializada nos associado às imagens de poder político e herança europeia. lugares de memória, é uma fonte inesgotável de re-seman- O Largo de São Francisco da Prainha fica entre a Praça tização do espaço geográfico, de reorganização dos territóri- Mauá e o Cais do Valongo, que fora a porta de entrada de os, e de conflitos de interpretação na seleção de paisagens” milhares de escravizados. Está aos pés do histórico Morro da (PAES: 2009, p.3) Conceição, que nos remete ao passado colonial, sendo um dos Os três monumentos em questão estão localizados em morros que serviram à fundação da cidade. Vizinho da Pedra áreas históricas do centro do Rio177, e homenageiam três per- do Sal, remete à herança cultural africana dos batuques oito- centistas, da capoeira e do trabalho portuário, sendo consid- ainda em curso sobre a criação de lugares de memória afro-brasileiros erado o berço do samba. em territórios em contínua ressignificação como o casco histórico do Rio. Agradeço à Profª Drª Alejandra Estevez (UFF) pelo estímulo e sugestões bibliográficas. e outros suportes. No Centro (incluindo também as regiões contíguas de 177 Segundo o Inventário de Monumentos do Rio, somente na cidade, Cidade Nova e Zona Portuária), são 108 desses monumentos, eviden- são 351 monumentos de personalidades, incluindo-se bustos, estátuas ciando a forte característica da região como lugar de memória 367 A EMERGÊNCIA DAS MEMÓRIAS NEGRAS do 13 de maio – dia da assinatura da Lei Áurea - pelo 20 de novembro – dia da morte de Zumbi dos Palmares, a ser trans- O patrimônio cultural afro-brasileiro sofreu por décadas formado em Dia da Consciência Negra. a perseguição e o silenciamento do Estado, tendo se preserva- do mais pela tradição e oralidade do que pedra, cal e bronze. No Brasil, a reivindicação do direito à dife- A Abolição da Escravatura, a 13 de maio de 1888, foi inscrita rença apresenta-se mais como rejeição à no calendário republicano com um sentido que não evocava a marginalização e busca de inclusão social memória histórica das lutas dos escravizados e descendentes do que como afirmação de uma identidade desde os tempos coloniais da eclosão de Palmares, mas re- exclusiva ou alguma forma de separatismo” forçava os festejos da figura da princesa redentora. (HEYMANN; ARRUTI, 2012:17) . Em meio à abertura “lenta, gradual e progressiva” da ditadura militar entre o fim dos anos 1970 e o início dos Ao analisar o processo de patrimonialização dos terreiros anos 1980, abre-se um ambiente que permite a emergência de religiões afro-brasileiras em Salvador, Serra nos remete ao das “memórias subterrâneas178” das populações negras. Com movimento político-institucional no início dos anos 1980, a a queda gradual da censura prévia, artistas, intelectuais e partir da criação da Fundação Pró-Memória, que promoveu movimentos negros circulam novas leituras sobre o papel do os estudos do tombamento da Serra da Barriga (AL), em negro na sociedade, representando as demandas de partici- 1985. Sugere a ideia de que o Estado, através de instituições pação política. de preservação e memória, foi um ator importante na valor- ização e preservação do patrimônio negro: Devido às características da transição demo- crática brasileira, os primeiros sinais de en- Mas, já em 1980, a primeira reunião do Me- fraquecimento do regime militar não evoca- morial deu início a um trabalho de resgate ram o debate sobre a violência praticada nos daquele sítio, originando uma romaria cívi- vinte e um anos de ditadura, mas a memória ca ao local em que teve sede o quilombo de secular das violências contra índios e negros, Zumbi. [...] desde aquela primeira reunião com raízes nos regimes pré-republicanos. de 1980, a peregrinação cívica a Palmares se Esta memória emerge com força crescente repete todos os anos, com a participação de e pontuada por alguns eventos espetacu- brasileiros de todos os quadrantes, e até de lares, ganhando, mais tarde, formulação e estrangeiros, que para lá convergem no dia institucionalidade específicas. (HEYMANN, 20 de novembro. O gesto pioneiro de 1980, ARRUTI:2012) início de uma campanha nacional, ajudou a fixar na memória do país a data de 20 de A partir de 1978, com a criação do Movimento Negro novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. (SERRA, 2008) Unificado, a crítica da memória oficial sobre a herança negra será uma das primeiras questões apontadas, acompanhadas Gilberto Velho, relatando a experiência como relator das demandas por identidade, memória e reconhecimento. do tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Teve início a longa campanha que propunha a substituição Salvador (1984), lembra que as instituições como o IPHAN ainda se baseavam na “pedra e cal” como patrimônio, e que 178 Ver Pollack (1989) chama de memória subterrânea aquelas que são a valorização da cultura negra enquanto bem demandou uma caladas na construção da “memória oficial” de um grupo por destoarem do projeto de construção de memória. Em prol da homogeneização da mudança na própria concepção de patrimônio, ampliando o memória estabelece-se, segundo este autor, um conflito entre memória entendimento. oficial e memórias subterrâneas. Enquanto a memória oficial é suficien- temente hegemônica o silêncio é mantido, o que para Pollack é uma O Conselho encontrava-se bastante dividi- estratégia de manutenção das memórias subterrâneas. “Desenterrá-las” do. Vários de seus membros consideravam só é possível quando alcançadas as condições que tornam as falas desproposital e equivocado tombar um subterrâneas “dizíveis”. 368 pedaço de terra desprovido de construções vamente na evocação das memórias das lutas de personagens que justificassem, por sua monumentali- silenciados da luta de Palmares como Ganga Zumba e Zumbi. dade ou valor artístico, tal iniciativa. Cabe lembrar que, até aquele período, o estatuto [,,,] os lugares de memória permitem que do tombamento vinha sendo aplicado, ba- uma coletividade atribua uma imagem a sicamente, a edificações religiosas, militares ela mesma, tanto para se reconhecer como e civis da tradição luso-brasileira. (VELHO, para se fazer reconhecer por sua singulari- 2006:237) dade em relação aos outros. Esta imagem funcionaria como uma mediação entre o grupo social e seu meio, lembrando que a E que o Estado, se bem é o agente central que normatiza produção de imagens pode ser tanto visual e executa a preservação da memória social, quanto discursiva. (PAES:2009, p.3) oscila em um jogo de interesses, em seus diversos níveis, entre atender esses valores e O 13 de maio de 1988, centenário da Abolição, é simbóli- essas expectativas preservacionistas e ceder co da transição entre o culto à redenção de Isabel e a Zumbi, aos interesses e às motivações de empresas o quilombola mártir das lutas do povo negro (ABREU, 2014). e indivíduos que colocam o mercado como referência básica, associado aos já citados À imagem da princesinha branca, libertando direito de propriedade e liberdade individu- por decreto escravos submissos e bem al. (VELHO, 2006:246) tratados, que durante décadas se difundiu nos livros didáticos brasileiros, passou-se Do ponto de vista das políticas de construção de espaços a opor a imagem de um sistema cruel e violento, ao qual o escravo negro resistia, de memória das culturas e memórias afrodescendentes na ci- especialmente pela fuga e formação de dade do Rio de Janeiro, o monumento a Zumbi dos Palmares quilombos. (ABREU; MATTOS:2011, p.2) na Praça Onze é um marco inicial importante. Graças à rep- resentatividade do Movimento Negro no debate político que Zumbi dos Palmares (1655? – 1695) foi um dos líderes antecedeu a Constituinte, o desenvolvimento das políticas do maior movimento de resistência coletiva à escravidão, o públicas para a área de cultura precisou romper com o silen- Quilombo dos Palmares. O crescimento das várias comuni- ciamento das memórias afro-brasileiras e criar formas para dades de resistência negra nos palmares da Serra da Barriga valorização e preservação. Nesse sentido, os monumentos (AL) se estendeu ao longo de todo século XVII, provocando impõem ao tecido urbano a materialidade que desloca o ol- uma série de esforços da administração colonial e repetidas har para lembrar daquilo que até então era silenciado. A con- expedições militares no sentido de debelar a resistência e res- strução dos três monumentos corresponde à ressignificação taurar a ordem do escravismo (GOMES: 2011). A última des- dos territórios da região central da capital fluminense que, em sas expedições militares capturou e executou Zumbi, exibindo três tempos distintos, procura delimitar espaços de memória sua cabeça como símbolo da vitória sobre o quilombo. da negritude no Centro. Ao longo do período imperial, em meio à construção Às vésperas do centenário da Abolição, e em meio à simbólica da identidade nacional brasileira, a luta de Pal- criação da Constituição Cidadã de 1988179, o Movimento Ne- mares foi um tema silenciado. Endossando a interpretação gro se fortalece enquanto movimento social, denunciando no da Abolição quase como uma graça da Princesa Isabel, a racismo cotidiano e os limites da Lei Áurea, reforçando a críti- memória oficial republicana também negava a historicidade ca à memória evocada com o 13 de maio como data-símbolo das populações negras brasileiras na construção da memória de liberdade (GOMES,2011). Para isso, se amparam progressi- nacional, não inserindo Palmares e revoltas escravas como 179 Reconhece o acesso às terras às populações remanescentes de representantes dos movimentos autonomistas brasileiros quilombos. No ano seguinte, pela lei Caó racismo foi considerado crime pela liberdade. inafiançável e imprescritível. 369 Gomes (2011) narra o processo de apropriação da novos grupos, entendidos como atores polí- memória de Palmares pela cultura ao longo do século XX, ticos que passam a ocupar lugar na mídia, observando o descompasso entre as produções acadêmicas e a estar representados em cargos públicos, a o processo de “memorização” da cultura negra que transfor- disputar espaço e recursos são correntes em maria Zumbi em herói símbolo da resistência do povo negro. praticamente todas as sociedades ociden- Entre os exemplos citados, destaco as publicações como O tais. (HEYMANN; ARRUTI, 2012) quilombo dos Palmares (1947), Ganga-Zumba (1961) e as obras do Teatro Experimental do Negro, colabo- Incorporando ao governo lideranças do Movimento Ne- rando para a difusão de novas abordagens sobre Palmares gro, o “socialismo moreno” de Brizola e Darcy inaugura uma e influenciando uma geração de intelectuais, artistas, mili- nova orientação política ao pensar o sentido simbólico da tantes políticos, inclusive não-negros. negritude na memória fluminense. Empreendeu a recriação Em 1971, o Grupo Palmares organiza o primeiro ato pú- simbólica da região da Pequena África, e na região da antiga blico de homenagem a Zumbi. Os estudos sobre zumbi se in- Praça Onze como locus de ressignificação da cultura negra, tensificam ao longo dos anos 1980 num processo histórico de através de obras públicas de grande visibilidade, como o 181 valorização da cultura negra e de difusão de um movimento Sambódromo (1984) e o monumento a Zumbi. político em unificação: Em 1984, a Passarela parecia ter se tornado Progressivamente o Movimento Negro cons- símbolo do Carnaval do futuro. Em 1986, trói uma relação. íntima entre o herói morto com a inauguração do Monumento a Zum- e a comunidade representada. O Instituto bi, a Passarela faz as pazes com o passado. de Pesquisa das Culturas Negras-IPCN, im- Passarela do Samba e Zumbi dos Palmares, portante entidade do Movimento Negro no frente a frente, irão desencadear um conjun- Rio de Janeiro, com frequência associa a luta to de ações por parte do governo do Estado do Movimento à dos quilombolas coloniais no sentido da constituição de um grande es- (SOARES, 1999:118) paço dedicado à negritude (SOARES, 1999:

O monumento a Zumbi dos Palmares na Avenida Presi- O antropólogo Darcy Ribeiro, vice-governador do Estado, dente Vargas é uma cabeça de 800 quilos de bronze, 3 met- se colocaria à frente da patrimonialização de memória negra ros de altura sobre pedestal de 4 metros, esculpida por João na cidade. É dele a decisão de representar Zumbi através de Figueiras Lima, Romeu Alves, sendo um importante marco uma ampliação de uma pequena escultura africana deposit- visual na construção de suportes de memória e cultura negra ada no Museu Britânico em Londres. Interessante estratégia no Rio. Foi inaugurada em 1986, durante o primeiro governo do antropólogo que, na ausência de documentos que dessem de Leonel Brizola180 (1983-1987) atendendo às demandas do conta da aparência física de Zumbi, apela para a reprodução Movimento Negro por representatividade negra na memória de uma peça de um dos mais tradicionais museus do mundo. social. Ao mesmo tempo contemporâneo e tra- dicional, esse gesto de Darcy Ribeiro é um Assim, processos de ressurgência de grupos feito importante, quase revolucionário, no sociais desaparecidos ou cuja existência não campo da arte e da cultura, pois atribui tinha visibilidade pública, ou de criação de 181 Atendendo às demandas das escolas de samba que atraíam cada vez 180 Histórico político trabalhista, recém retornado do exílio político, mais público para os desfiles de Carnaval, o Sambódromo idealizado por Brizola conquistara o apoio do movimento negro na eleição de 1982, Darcy Ribeiro e projetado por Oscar Niemeyer é pensado como espaço primeiro pleito para governador desde 1965. Seu governo incorporou democrático para valorização do samba como principal manifestação parte considerável das lideranças do Movimento Negro na construção afro-carioca Promove uma verdadeira revolução no mercado receptivo de novas políticas públicas de educação e segurança, em diálogo com as turístico da cidade, atraindo milhares de turistas internacionais e o demandas populares que buscavam participação política no cenário de desenvolvimento de uma indústria especializada, o que causa forte democratização. impacto na criação mesma do espetáculo. 370 valor positivo à produção artística africana, Ampliada para ser visível mesmo de longe em uma que era e ainda é pouco vista, sendo, por- avenida de intenso movimento, a representação do herói tanto, desvalorizada na sociedade brasileira. despojada de seu sentido histórico não parece ter causado (CONDURU, 2017) inconformidades em um primeiro momento: a inauguração se deu com música e festa, em clara associação na qual o Ao substituir a face desconhecida face de samba seria a expressão síntese da negritude. A presença de Zumbi pela face representada (e, portanto, monumentos de Zumbi e Duque de Caxias na mesma aveni- não menos desconhecida) de um africano, da é tomada como oposição de lados entre a luta negra e a Darcy Ribeiro substitui a individualidade opressão do Estado em 1988 (ABREU,2014). Em 1995, aos 300 do herói pela generalidade da raça. Através anos de sua morte, Palmares é uma memória presente. Dois da cabeça de bronze, Darcy Ribeiro conce- anos depois, seu nome é inscrito como herói nacional no livro be Zumbi como representante da “beleza de metal no Panteão da Pátria, em Brasília, se multiplica no- negra”. Ao destacar a problemática da raça meando espaços públicos, auditórios, etc. deixa em segundo plano o questionamento Nas últimas décadas, com a complexificação do Movi- sobre da escravidão (SOARES, 1999:134) mento Negro, o fato da cabeça monumental estar enfiada em uma lança, como o herói decapitado, tem sido objeto de críti- A decisão de instalar o monumento na Avenida e não cas no movimento, que chegou a propor a mudança de local no Largo da Carioca parece ter o sentido de dotar a região de para Lapa ou Largo da Carioca. Isso mostra que, apesar de equipamentos culturais que dessem sustentação à memória ainda ser uma referência, não há hoje o mesmo consenso so- da Pequena África, como reparação ao silenciamento das bre a ressonância do monumento junto às populações negras. identidades das populações negras que habitavam os bairros Isso talvez ajude a explicar um certo esvaziamento do local: portuários e as imediações da Praça Onze, meio século antes. apesar das lavagens religiosas e homenagens, a cabeça já não Na fala do Governo do Estado, já estão pre- é mais o ponto central de reunião nas comemorações de 20 sentes as vertentes da raça e dos direitos. de novembro. Entre as notícias recentes, repetidas referências Com a localização do monumento na Praça a funcionários da prefeitura limpando marcas de vandalismo Onze, a essas duas incorpora-se agora a racista182 e menor afluência de pessoas nas datas de comem- terceira vertente do discurso da negritude: a oração, que se dirigem a outros territórios de representativi- vertente da festa através do Carnaval e das dade, como Pedra do Sal, quadras de escolas de samba, etc. escolas de samba. (1999:127) A homenagem ao marinheiro João Cândido Felisberto (1880 – 1969), aclamado líder da Revolta da Chibata (1910) Segundo Soares, após o tombamento da Pedra do Sal 183, é um monumento de bronze com 2 metros de altura so- (1982), o governo se volta para a representatividade da negri- bre uma base de 1,5m de altura, instalado em frente à Baía tude e as formas do monumento de Zumbi foi secundada pela importância simbólica do novo local: 182 Em 2003 foram registrados 23 casos de vandalismo no monumento. Em 1984, na antiga disputa entre Saúde e Uma década depois, 6. Em 2014 uma suástica foi pichada na testa do monumento. Praça Onze, a primeira fica como lugar da 183 Foi uma das mais importantes manifestações populares do século negritude e segunda como lugar do Carna- XX: marinheiros se rebelaram pela abolição dos humilhantes castigos val. É assim que, por iniciativa do Conselho físicos aos quais eram submetidos, mantendo por dias a cidade do Rio Estadual de Cultura, dirigido à época por sob a mira dos poderosos navios de guerra. A força simbólica do racismo Joel Rufino dos Santos, importante lide- brasileiro e os próprios limites da cidadania se expressam na Revolta: rança do Movimento Negro, o governo do a composição negra e parda dos praças brasileiros em contraste com o racismo e elitismo do oficialato majoritariamente branco; a distância Estado tomba a Pedra do Sal. (SOARES, social e a violência institucional; os suplícios públicos das chibatadas 1999:125) associadas com os castigos dos escravizados, que ainda era memória recente. Ver: ARIAS NETO (2003); ALMEIDA (2011), entre outros. 371 de Guanabara, defronte à estação das Barcas na Praça XV. já estaria contribuindo para o processo de “patrimonialização” Foi doado à cidade pela Secretaria Especial de Políticas de da personalidade de João Cândido como o herói. Promoção da Igualdade Racial, criada em 2003 no âmbito Tendo vivido mais de cinco décadas de silenciamento da federal. memória da luta que liderara aos 30 anos de idade – quando O monumento, inaugurado a 20 de novembro de 2008, conduzira as exitosas negociações políticas e manobras navais no segundo governo Lula da Silva (2007-2010), é resultado que assustaram a capital do Brasil naquele novembro de 1910 de um processo de “memoração” de João Candido enquanto – Cândido falece aos 89 anos, sem ter sido anistiado pelo herói negro da luta pela cidadania no Brasil. Este teria sido Estado brasileiro. Até a fase madura, quando alcançou noto- iniciado em 1959, quando da publicação do livro A Revolta riedade pelo livro de Morel, tirou seu sustento no Mercado de da Chibata, de Edmar Morel. Grande sucesso de público, Peixe da Praça XV, bem em frente à mesma Baía de Guanabara foi bastante lido inclusive entre os jovens marinheiros pobres que testemunhara a luta pela cidadania na Armada. que se ressentiam de uma cidadania limitada e se identific- Em 1975, a canção Mestre Sala dos Mares, de João Bosco aram com a luta de seus antecessores pela cidadania, tendo e Aldir Blanc, apesar de censurada pela ditadura, lembra a na evocação da memória de novembro de 1910 o fio de con- luta dos negros contra a chibata, e denuncia que são somente tinuidade e pertencimento a uma mesma causa democrática “as pedras pisadas do cais” que lhe servem de monumento. nas forças militares. As noções de ampliação da cidadania e João Cândido, sem anistia e sem estátua, torna-se um herói a conquista de um lugar de respeitabilidade moral na socie- popular das lutas contra opressão185 e a memória da Revolta dade são pontos de contato entre as duas manifestações. da Chibata dá fôlego às lutas contra a ditadura. O esforço da Marinha em silenciar a revolta de 1910 não Paralelamente, o nome de João Cândido é impediu que, ainda em vida, João Cândido tenha sido lemb- reclamado por diferentes esferas do mo- rado e registrado como líder da Revolta da Chibata em pelo vimento social. Aproximadamente 1.500 184 menos duas importantes ocasiões : em março de 1964, a marinheiros expulsos da Marinha, dentre dias antes do golpe civil-militar, quando foi aclamado como os quais muitos foram presos e perseguidos herói e carregado nos braços pela marujada apoiadora do durante a ditadura civil e militar, se organi- presidente João Goulart que, em demanda de seus direitos zaram em duas associações – a Unidade de civis, se amotinou no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio. Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA) A partir de 1964, com a instauração da ditadura civil-mil- e o Movimento Democrático pela Anistia e itar, observa-se um esforço da Marinha em cassar os revolto- Cidadania (Modac). Pedem a anistia defini- sos, e negar as memórias sobre a Revolta da Chibata evocadas tiva e a reintegração na Marinha para eles nesse processo de “memoração”, inclusive com a proibição da mesmos, o que vêm conseguindo no quadro edição e a perseguição política ao autor (ALMEIDA, 2011). A dos últimos governos. Reclamam ainda, segunda ocasião foi em 1968: as memórias do já idoso João com a família de João Cândido, patrono de Candido foram registradas em entrevista ao Museu da Im- seus movimentos, a anistia definitiva ao agem e do Som. É expressa no documento sonoro a noção de marinheiro e a seus colegas, bem como as criação de registro histórico (ARIAS NETO, 2003), que por si só devidas indenizações. (ALMEIDA, 2011: 77)

184 João Cândido, que era natural de Rio Pardo (RS), passou a receber A primeira presidência de Lula da Silva (2003-2006) am- uma pensão do governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1959, o que plia o debate sobre a expansão das ações afirmativas, criando indica que ali já havia maior reconhecimento sobre sua luta e o sentido dois importantes dispositivos que atendem às demandas do de reparação financeira. Também foi mobilizada a instalação de um busto na cidade de Porto Alegre (RS), chegando a obra a ser esculpida. No entanto, graças à oposição dos oficiais do III Exército, o tributo foi 185 Em depoimento ao MIS, contrariando a visão de herói das inviabilizado. Há um busto em gesso representando o marinheiro no resistências que lhe era associada, em 1968 o velho João Cândido critica Museu Santo Ângelo, no município de onde teria saíra aos 14 anos a Rebelião dos Marinheiros de 1964 e demonstra confiança na condução para servir como grumete da Armada Nacional. Ainda não foi possível da política pelos militares que haviam assumido o poder após o golpe identificar se é o mesmo busto que seria exposto em Porto Alegre. civil-militar (ARIAS NETO:2003) 372 Movimento Negro: o programa Diversidade na Universidade É a personagem da qual dispomos de menos infor- que cria cotas raciais nas Universidades e a Lei 10639/2003, mações, uma evidência da “invisibilidade” de artistas mul- que institui o ensino de História da África e de cultura af- heres negras. As poucas notícias sobre a inauguração do ro-brasileira nos currículos escolares. O Estado, agora em monumento se resumem a divulgar a biografia da bailarina esfera federal, amplia as políticas de reparação em relação que produziu reconhecimento para a dança brasileira, mas à memória e identidade do povo negro, bem como amplia a não teve em vida a notoriedade que merecia. patrimonialização de suas manifestações culturais. Natural do interior fluminense, Mercedes sofreu racismo No segundo governo Lula, inicia-se uma série de atos no ambiente elitizado das artes eruditas e foi influenciada pe- públicos que estão ligados à noção de reparação. Em novem- las transformações sociais e identitárias de sua geração, par- bro de 2007, é inaugurada uma estátua em homenagem a ticipando do Teatro Experimental do Negro. Aproximou-se das João Candido nos jardins do Museu da República, no Catete. danças populares e desenvolveu um estilo próprio de dança Em julho do ano seguinte, é publicada a Lei 11756/2008 que afro-brasileira que ressignificava a dança de terreiro com el- anistia o marinheiro João Cândido186. A lei causa uma reação ementos coreográficos para que fosse apresentada em espe- enérgica da Marinha do Brasil em negar o heroísmo atribuído táculos. Fundou uma companhia de dança que teve sucesso a Cândido (CUNHA, 2011). internacional e trabalhou para que a dança afro fosse recon- Essa forma de pensar vai, no entanto, no hecida com seu valor cultural, ocupando espaços que foram sentido contrário às correntes historiográfi- historicamente negados à população negra. Nos anos 1960, cas atuais, ao movimento social e às próprias foi pioneira na criação da comissão de frente coreografada no ações dos últimos governos brasileiros. Ela Carnaval carioca, levando ao desfile do Salgueiro bailarinos revela a dificuldade que a Instituição militar negros dançando um minueto para abrir o enredo “Chica da naval encontra para resolver um conflito en- Silva”, de Fernando Pamplona. tre o esquecimento (a amnésia) e o perdão O monumento, doado por sua curadora, permite que a (a amnistia). Os marujos foram anistiados memória da bailarina não se restrinja ao nicho artístico da duas vezes pelas autoridades políticas, em dança afro, caracterizado pela transmissão oral de práticas e 1910 e em 2008, mas jamais pelas autorida- saberes, e, em suas formações mais tradicionais, pouco afeito des navais. (ALMEIDA, 2011:79) ao registro imagético. Representada em performance com trajes de dança afro, Em 20 de novembro de 2008, a estátua de João Cândido em escala humana e a pouca distância do chão, a estátua de é reinaugurada na Praça XV, que se torna novamente espaço Mercedes permite a interação e estabelece um elo identitário de conflitos de memória envolvendo militares: se desde 1894 entre os que ali também dançam ou assistem às danças dos a estátua de Osório marca a memória republicana, em 2008 grupos afro ou dos blocos de carnaval que fazem referência ao a Marinha brasileira não consegue repensar seu passado e passado portuário e escravo da região (Prata Preta, Escravos insiste em não aceitar o herói popular marinheiro. No cen- da Mauá). Sua forma contribui para o fortalecimento da val- tenário da Revolta, um navio da Transpetro ganha seu nome e orização de obras e artistas negros, e se torna herói estadual. O lugar de sua homenagem representa um importante Mercedes Baptista (1921 – 2014) foi a primeira bailari- passo no sentido de delimitação de um espaço para pertenci- na negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal e mento e identidade negra. No contexto da chamada “revi- a primeira mulher negra homenageada com monumento na talização” da zona portuária, emergem conflitos identitários cidade. Seu monumento está no meio do pequeno Largo, pas- importantes na região envolvendo grupos ligados ao recon- sagem obrigatória de acesso à histórica Pedra do Sal. hecimento da Pedra do Sal como quilombo e a Venerável Or- dem Terceira, proprietária de imóveis na região (GUIMARÃES, 186 A lei, de autoria da senadora Marina Silva (à época PT-AC), recebeu veto parcial, referente ao pagamento de promoções e rendimentos à 2014). família do anistiado. Há ainda outros projetos de parlamentares do partido para heroicizar o marinheiro. 373 O que se observa, então, em linhas gerais, é roteiros culturais, há prevalência na visitação de locais de a busca por reconhecimento e legitimidade memória luso-brasileira como as igrejas coloniais nos arre- por parte de grupos que, destacando-se na dores da Praça XV, o Mosteiro de São Bento e os locais asso- comunidade nacional, passam a definir-se ciados ao Rio europeizado pelas reformas do início do século a partir de novas categorias, sejam elas XX. Assim, a Cinelândia foi privilegiada como lugar central do étnicas, religiosas, de gênero etc. Nesse turismo cultural, e o Theatro Municipal seu ícone principal. À processo, estão em jogo novas formas de Praça XV e a zona portuária durante muitas décadas coube o autoidentificação das quais decorrem as lu- esquecimento de sua representatividade para a memória: tas por manter vivas memórias particulares, conquistando para elas espaço no discurso A valorização do patrimônio cultural para histórico oficial, por inclusão sem homoge- fins turísticos evidencia a associação entre o neização e, finalmente, por representação urbanismo e o planejamento do território na política e direitos. (HEYMANN; ARRUTI, produção de imagens e discursos que privi- 2012) legiam ou excluem determinadas memórias e paisagens do território. (PAES, 2008:3) Em um arranjo institucional liberal, a Prefeitura entregou ao consórcio Porto Maravilha a reforma e à conservação da Nos dois casos, há o problema de acesso e visibilidade, região portuária, colaborando para que a ressignificação intercalados: enquanto a cabeça parece ter sido feita para do espaço atenda ao simbolismo de futuro desejado pelo ser vista de longe, a estátua do marinheiro foi instalada em consórcio – expresso no polêmico Museu do Amanhã, na um canto da praça, em espaço de menor visibilidade se com- Praça Mauá – mais do que às memórias históricas da região. parado aos outros monumentos do local. A estação de VLT188 A Pequena África é simbolicamente reduzida ao “Circuito da instalada em frente ao monumento contribuiu para sua invis- Herança Africana”187, incompleto, pouco difundido, com foco ibilidade, separando o pequeno trecho da estátua da grande no escravismo, e que só chegou a ser produzido por conta das área da praça. Uma das laterais de granito do pedestal foi reti- pressões políticas exercidas por estudiosos do patrimônio. rada e não foi reposta. Uma placa com uma biografia ainda permanece afixada. Na estátua de Zumbi, não há placas contando sua bio- USOS DO TURISMO grafia, apenas com os representantes do Estado envolvidos na Pelas lentes da observação participante enquanto sua construção e reforma. Atualmente há quatro mastros com usuária dos equipamentos de memória como suporte ma- bandeiras, na altura da cabeça, dificultando a visualização terial do ofício, procuro entender o uso dos monumentos que se dá, pela falta de local para desembarque de passagei- enquanto espaço público utilizado no turismo, tanto pelos ros, do carro, em trânsito. trajetos das visitas quanto pela experiência do visitante. O fluxo da Avenida Presidente Vargas é intenso e a ex- As primeiras considerações são relativas às estátuas mais periência de transporte em veículo de turismo implica em antigas, das quais disponho de mais observações. Noto que demorados contornos para se deslocar da Saúde até o mon- estes monumentos são ainda pouco apontados por guias de umento de Zumbi ou deste para a Praça XV. Apesar do VLT turismo como símbolos da cultura negra, tanto por descon- ser uma inovação positiva para o turismo cultural a pé, suas hecimento histórico como pelas dificuldades técnicas que se duas linhas não se conectam e o sistema de bilhetagem nas apresentam. estações é precário. Chama a atenção que, apesar de fazer parte dos traje- Do ponto de vista do turismo pedagógico, encontramos tos dos roteiros como o famoso “Um dia no Rio”, a estátua de dificuldades em sistematizar a abrangência da Pequena Zumbi raramente é mencionada nos trajetos entre Maracanã 188 Veículo Leve sobre Trilhos é um sistema de transporte que conecta e a Igreja da Candelária, lugares de grande visitação. Nos as áreas históricas do Centro. Ver PL Nº 188/2017, de Tarcísio Motta (PSOL-RJ), que busca alterar o nome da estação VLT e a criação do Largo 187 Ver ABREU; MATTOS (2011) e MATTOS; ABREU; GURAN (2014). Almirante Negro. 374 África: faltam elementos de suporte técnico aos guias e pro- ber, a partir destas (e outras) obras, o engajamento no ato de fessores, como placas, totens, mapas e outros dispositivos “memoração” entre o setor público e a sociedade civil. de informação que relacionem as regiões. A zona portuária A noção de “dever de memória” (...) remete dá sentido histórico para o turismo cultural no Centro, inte- à ideia de que um imperativo social se ma- grando os tempos da cidade velha com a Cidade Nova, mas ali nifesta em relação a passados “sensíveis”, também faltam informações sobre o passado. indicando a obrigação de lembrá-los. Essa Este tipo de reabilitação centra esforços na obrigação não se baseia, apenas, no ideal de produção estética das paisagens atrativas manutenção de certa cultura histórica, mas, para o turismo, na produção do cartão-pos- fundamentalmente, na ideia de que essa tal fixo do patrimônio arquitetônico eleito, e lembrança produz uma forma de reparação homogeneíza as imagens em detrimento de em relação ao silêncio, à invisibilidade ou ao identidades culturais variadas que convivem sofrimento das comunidades que os viven- no espaço público urbano. (PAES,2008:4) ciaram (HEYMANN; ARRUTI: 2012, p. 96)

João Candido e Mercedes Baptista têm dimensões hu- Entendo que trabalhar a memória histórica da cultura manas, são (relativamente) acessíveis e têm suas atividades negra através dos monumentos implica na ampliação do ro- profissionais referenciadas na forma: enquanto o marinhei- teiro da “herança africana” para outro que pense as culturas ro segura um timão – alegoria da vida naval – a estátua de afro para além das imediações do antigo mercado de escra- Mercedes recria um momento registrado em fotografia no vos, tendo como desafios a representatividade, a visibilidade qual a bailarina desenvolve um movimento de dança afro. e o acesso à informação. Assim, o turismo cultural e pedagógi- Acredita-se que o monumento de Mercedes, pela localização co nessas regiões poderia ainda contribuir para o disposto na acertada e visibilidade, possa gerar mais ressonância e a de- lei 10638/2003, transformando-se num instrumento de di- manda por monumentos negros. fusão do patrimônio e da cultura negra.

CONCLUSÃO REPRESENTATIVENESS AND COMPENSATION Os esforços de conservação de memória e do patrimônio IN THREE MONUMENTS OF AFRO-BRAZILIAN material e imaterial negro se funde com a luta pelo fim do CULTURE IN RIO DE JANEIRO racismo, e em prol do reconhecimento social e das políticas de reparação. Essa luta se expressa na definição de territórios Fabiana Bandeira [email protected] de identidade e nas reações de outros grupos, numa longa disputa em espaços simbólicos que estão sempre em ressig- nificação. ABSTRACT Pensando no aspecto do relacionamento entre as de- This paper proposes an investigation about the places of mandas dos movimentos sociais e o Estado, observamos que memory of the Afro - Brazilian culture in Rio de Janeiro and a ação deste último variou conforme avançou a unificação the public politics of heritage and tourism, by in the analysis das pautas do movimento negro, mas também conforme a of monuments, more specifically in the comparative study orientação política dos governos. Quanto maior a presença de between three figures of black historical people represented lideranças do Movimento Negro nos governos, maior a patri- in Rio de Janeiro downtown: Zumbi (1986), João Cândido monialização da cultura afro-brasileira. (2008) and Mercedes Batista (2016). Analyzing the works Tendo consciência das limitações deste artigo, direciono both for the historical context, material aspects of their facil- a pesquisa o aprofundamento dos estudos sobre as noções de ities, which areas they occupy in the city, as well as their uses políticas de reparação e dever de memória, a fim de perce-

375 for local cultural tourism, I hope to understand the meaning AZEVEDO, Celia Maria Azevedo. Onda negra, medo of the monument in its current urban context. branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Rio Considering the bibliography on Afro-Brazilian history de Janeiro: Paz e Terra, 1987. and culture and using the experience of the expertise of cul- tural tour guide occupation, I analyze the relations between CUNHA, Paulo Ribeiro. O mestre-sala emerge dos mares social movements and the State in the three cases, consider- pede passagem. Revista ADUSP, jan. 2011 ing the different contexts for the city’s tourist image, the de- bates about the construction of these statues as elements of CONDURU, Roberto. Zumbi reinventado. Revista de memory, and the historical process of building a social mem- História, Set.2017, Disponível em: http://www.revistadehis- ory of Afro-Brazilian identities in the city. Understanding the toria.com.br/secao/perspectiva/zumbireinventado, acessado concepts of reparation and representativeness as central to em mar.2018. the social movements involved and looking for an analysis of historical heritage in public squares, I understand that statues CORREA, Roberto Lobato. Monumentos, política e espa- are a fertile field for research on visibility and past uses. ço. Geo Crítica / Scripta Nova. Barcelona: Universidad de Barcelona, vol. IX, núm. 183, 2005 REFERÊNCIAS FORTE, Ana Maria Siems. Turismo Cultural no Rio de Livros e artigos: Janeiro: um ponto de vista a partir do Theatro Muni- cipal do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, CPDOC/ ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Remanescentes das Co- PPGHBC Rio de Janeiro: FGV 2006. munidades dos Quilombos: memória do cativeiro, patrimônio GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por Uma Teoria cultural e direito à reparação. Anais do XXVI Simpósio Na- Interpretativa da cultura. In: A Interpretação das cional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011 culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. P. 3-21.

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377 RIO SÃO FRANCISCO E OS MOVIMENTOS EM invés de uma ação meramente estatal de proteção, discute-se DEFESA DO SEU PATRIMÔNIO. um conjunto de ações de caráter muito mais envolvente com as comunidades locais e seus interesses e necessidades a fim Jackelina Pinheiro Meira Kern189 de preservar esse patrimônio material e imaterial. Como re- Universidade de Coimbra/Universidade Federal curso metodológico, utiliza-se pesquisa documental a partir Fluminense de documentos, relatórios e uso de fotografias a respeito da [email protected] paisagem.

RESUMO Palavras-chave: Patrimônio; Paisagem Cultur- al Brasileira; Rio São Francisco. Este artigo pretende discutir as iniciativas tomadas para promover a candidatura do Rio São Francisco como Patrimônio Mundial, iniciado em 2001, e posteriormente, as RIO SÃO FRANCISCO AND MOVEMENTS IN movimentações para o chancelamento da porção que com- DEFENCE OF YOUR HERITAGE. preende a Foz do Rio São Francisco como Paisagem Cultural Brasileira. Tão antigo quanto a presença portuguesa em terras jackelina Pinheiro Meira Kern brasileiras, o rio São Francisco, passou a ser sistematicamente University of Coimbra, Portugal/Fluminense Federal explorado por navegadores, tendo mais tarde sido o meio University; de se chegar aos sertões de dentro, e assim se tornou parte [email protected] indissociável da história da ocupação do interior brasileiro. Cinco bens culturais já foram tombados como patrimônio ABSTRACT pela União. Nos cinco estados banhados pelo rio, registram-se This article will discuss the measures taken to promote 157 bens históricos e artísticos; 20 bens culturais imateriais; the candidacy of the São Francisco River as a world heritage seis áreas naturais de grande valor ambiental; cinco sítios site, started in 2001, subsequently moves to the approval of arqueológicos; oito comunidades típicas. As informações a the portion which includes the mouth of river São Francisco respeito da tentativa de reconhecimento como Patrimônio as Brazilian Cultural Landscape. As old as the Portuguese Mundial a ser solicitado a Unesco se enfraquecem com o presence in Brazil, the rio São Francisco, began to be syste- passar dos tempos, principalmente, com a constatação dos matically explored by browsers, later the way to reach the graves problemas de preservação encontrados ao longo de hinterlands of within, and thus became an integral part of the todo o rio. Para tanto, iremos inicialmente recuperar os mo- history of occupation the Brazilian interior. Five cultural assets mentos mais significativos da normatização internacional have been listed as world heritage site by the Union. Of the e nacional sobre Patrimônio, passando em seguida para as five States bordering the River, enroll 157 historical and ar- questões que envolvem o rio e detalhar o atual estágio das tistic goods; 20 intangible cultural heritage; six natural areas movimentações, onde o processo de Chancelamento como of great environmental value; five archaeological sites; eight Paisagem Cultural Brasileira da porção da Foz do Rio, mais re- communities. Information about the attempted recognition cente, foi organizado considerando entre outras coisas que, ao as a world heritage site to be prompted to Unesco if weaken with time, especially with the finding of serious problems of 189 Jornalista em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia preservation found throughout the river. To this end, we will (2008). Mestre em Desenho, Cultura e Interatividade pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2012). Foi aluna do Doutorado em Estudos initially recover the most significant moments of internatio- Africanos na Universidade Federal da Bahia. Doutoranda no curso de nal standardization and national patrimony, passing then to Patrimônios de Influência Portuguesa do Instituto de Investigação the issues that surround the river and detail the current stage Interdisciplinar da Universidade de Coimbra em cotutela com curso de História da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área of the movement, where the process on approval as Brazilian de Comunicação, Politicas Públicas, Artes, com ênfase em Comunicação, Cultural landscape of the portion of the mouth of the River, atuando principalmente nos seguintes temas: Comunicação, Linguagens latest, was organized considering among other things, rather Visuais, Artes, Fotografia, Patrimônio, Identidade e Memória. 378 than an action merely protection State, discusses a set of ac- tegração à paisagem, têm valor universal tions much more engaging with the local communities and excepcional do ponto de vista da história, their interests and needs in order to preserve this material da arte ou da ciência; os sítios: obras do and immaterial heritage. As a methodological resource, docu- homem ou obras conjugadas do homem e mentary research from documents, reports and photographs da natureza, bem como áreas, que incluem about the landscape os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, es- tético, etnológico ou antropológico. Keywords: heritage, Rio São Francisco, cul- tural goods, landscape. - os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por Introdução conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou Com a criação da ONU em outubro de 1945, após o final científico; as formações geológicas e fisio- da segunda grande guerra, e em novembro com a criação gráficas, e as zonas estritamente delimi- da Unesco, a ideia da formulação de mecanismos para a tadas que constituam habitat de espécies preservação dos patrimônios se fundamentou na preocu- animais e vegetais ameaçadas de valor pação com a sua degradação ou desaparecimento devido às universal excepcional do ponto de vista mudanças sociais e nas economias, na relativa incapacidade estético ou científico; os sítios naturais ou de muitas nações de sua preservação, dadas as necessidades as áreas naturais estritamente delimitadas financeiras, técnicas e científicas necessárias, e no excepcional detentoras de valor universal excepcional do interesse que despertam por ser únicos e insubstituíveis. Na ponto de vista da ciência, da conservação ou Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural da beleza natural.”191 e Natural, da Unesco, realizada em 1972, considerou-se como “(...) indispensável adotar novas disposições convencionais Entretanto, os resultados concretos da homologação de que estabeleçam um sistema eficaz de proteção coletiva do bens como Patrimônio Mundial permitem verificar a pro- patrimônio cultural e natural, de valor universal, excepcion- gressiva concentração dos mesmos nos locais já tidos como al organizadas de modo permanente e segundo métodos destinos turísticos no velho mundo a partir do final do século científicos e modernos”190. XX (Santos e Peixoto, 2013). Apesar do permanente discurso A Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, sobre a proteção de bens em risco, associado à ideia da pro- Cultural e Natural especificou, nos dois primeiros artigos, os moção do desenvolvimento das nações periféricas, a prática bens considerados de patrimônio cultural e de patrimônio mostrou-se inversa, haja visto a corrida pela obtenção da titu- natural tais como: lação de Patrimônio Mundial de inúmeras cidades europeias que certamente não se enquadrariam nessa tipologia. “os monumentos: obras arquitetônicas, Esta corrida se dá muito mais por interesses em promo- esculturas ou pinturas monumentais, ob- ver a indústria do turismo como forma de compensar a es- jetos ou estruturas arqueológicas, inscri- ções, grutas e conjuntos de valor universal tagnação por que passavam muitas das cidades dadas as suas excepcional do ponto de vista da história, dificuldades de geração de riquezas baseadas em modelos de da arte ou da ciência; os conjuntos: gru- desenvolvimento que paulatinamente vem sendo transferi- pos de construções isoladas ou reunidas, dos ao terceiro mundo, como a indústria e a agricultura. que, por sua arquitetura, unidade ou in- A obtenção do titulo de Patrimônio Mundial, ainda que não de forma automática ou linear, sem dúvida caminha de 190 UNESCO - Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, mãos dadas com o fortalecimento da indústria do turismo Cultural e Natural, 1972, p.1, 2. Disponível em http://www.unesco.org/ new/pt/brasilia/about-this-office/unesco-resources-in-brazil/legal-in- struments/international-instruments-clt/#c154460. 191 Idem. 379 (Santos e Peixoto, 2013). Em 1995 a Europa detinha 49,3% localizações em áreas menos favorecidas economicamente, das cidades classificadas como patrimônio histórico, sendo atenuando os males herdados do colonialismo e do subde- que em 2008 pulou para 55,7% 192, e que, em números ab- senvolvimento, a série de exigências impostas aos países solutos, mostraram uma variação de 71 cidades em finais dos candidatos, que implicam estruturas, recursos e garantias pe- anos oitenta para 164 dez anos depois (idem, p. 52). sadas demais aos países periféricos e de economias de pouca De toda forma, os supostos dividendos oriundos da ti- envergadura ou mesmo deficientes estruturas democráticas, tulação nem sempre se mostram àqueles propalados na can- terminou por afasta-los de possuir reais condições de sucesso. didatura. O engessamento do patrimônio reconhecido pode, Em paralelo a esse processo, a busca pela criação da por vezes, mostrar-se um obstáculo ao desenvolvimento, ou categoria de Patrimônio Imaterial, levada a efeito principal- ser rechaçado pela população, conforme descreve Peixoto (em mente pelos países fora do eixo Europa/América do Norte, texto publicado por conta de sua estada como professor visi- com destaque para o Brasil, que internamente estabeleceu tante na UERJ) na discussão sobre o caso da cidade alemã de a categoria de patrimônio imaterial antes mesmo da Unesco, Dresden cuja população optou em referendo pela construção ganhou força política em 1999, quando o japonês Matsuura de uma ponte, ainda que isso significasse o cancelamento do ocupou a cadeira de Diretor Geral da Unesco (Abreu e Peix- selo da Unesco de patrimônio mundial. oto, 2014, p. 4). Trabalhando na consolidação da ideia, criou Considere-se também que a lógica concentradora da em 2001 um mecanismo para o registro do Património Oral e montagem, avaliação e decisão dos processos de reconheci- Imaterial, que em 2005 já registrava 90 obras inscritas, todas mento por parte Unesco choca-se frontalmente com a ideia posteriormente incluídas na Lista do Patrimônio Imaterial de comunidade que deveria ser atingida por ser de seu próprio (idem, p. 5). interesse, tornando-se uma decisão que muda, e muito, a A argumentação dos países periféricos (latino-ameri- realidade local, reorientando os investimentos e as decisões canos e africanos) foi a de que os seus patrimônios estariam políticas com base em um porvir nem sempre realizável. muito mais ligados a rituais e expressões (por vezes efêmeras) Considero relevante ainda mencionar outra consequên- de pouca visibilidade ou mesmo consideradas de segundo cia do processo de patrimonialização dos chamados centros plano em contraposição às políticas patrimoniais claramente históricos. Segundo Leite e Peixoto (2009), os centros histó- colonialistas, tendo em vista o destaque dado aos monu- ricos das cidades antes do reconhecimento, muitas vezes são mentos deixados por esses. Através desta abordagem foi áreas degradadas e abandonadas pelo poder público. Uma formulado “(...) o conceito de “patrimônio cultural intangível das inserções durante o processo consiste na higienização do ou imaterial”, com a meta de abrir o campo do patrimônio local com o afastamento de seus usuários atuais. cultural para manifestações e expressões da cultura popular Problemas como consumo de drogas, prostituição, pe- ou tradicional.”194 quenos furtos, mendigos, precisam ser desalojados para dar Em 2003 a Unesco publicou a Convenção para a Sal- lugar ao destino turístico, que receberá o turista com infraes- vaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, assim definido, trutura adequada e segurança. Todavia, devido ao caráter “Entende-se por “patrimônio cultural imate- excludente e autoritário das medidas que por vezes retira dos rial” as práticas, representações, expressões, lugares de referência social o morador local, após a fase mais conhecimentos e técnicas - junto com os forte da intervenção, os espaços voltam a tornar-se vazios e à instrumentos, objetos, artefatos e lugares 193 espera de seus antigos habitantes. culturais que lhes são associados - que as De forma mais ampla, se na teoria a ideia seria a de pre- comunidades, os grupos e, em alguns casos, servar os sítios em condições menos favoráveis, dadas suas os indivíduos reconhecem como parte inte- grante de seu patrimônio cultural. Este pa-

192 Fonte: Organização das Cidades do Patrimônio Mundial (OCPM). 194 ABREU, Regina. Dez anos da Convenção do Património Imaterial: Citado em Santos e Peixoto, 2013, p. 52. ressonâncias Norte e Sul. Dez anos da Convenção do Patrimônio Cultural 193 Em trabalho de 2009, Leite e Peixoto trabalham os casos do Recife Imaterial: Ressonâncias, apropriações, vigilâncias. In: E-cadernos ces Antigo e da Zona Histórica da cidade do Porto. 21, 2014. 380 trimônio cultural imaterial, que se transmite desfiguração das práticas pelo viés econômico, são também de geração em geração, é constantemente riscos consideráveis. recriado pelas comunidades e grupos em Diante da importância deste tema, este artigo discute função de seu ambiente, de sua interação questões relacionadas a movimentação até então levada a com a natureza e de sua história, gerando efeito, no intuito de avançar na qualificação da pesquisa196 um sentimento de identidade e continui- que refere a identificação e avaliação do patrimônio imaterial dade e contribuindo assim para promover o e da paisagem cultural da extensa área banhada pelo rio São respeito à diversidade cultural e à criativida- Francisco, com vistas a candidatura do rio como Patrimônio de humana.”195 Mundial e ao chancelamento da porção da foz do rio, como Paisagem Cultural Brasileira. Utilizamos como metodologia a Com a convenção de 2003 uma nova lógica se opera. Se pesquisa bibliográfica, documentos, atas, relatórios e análise a categoria de património material adotada com a Convenção atenta do conteúdo em que buscamos elaborar uma con- de 1972 (principalmente a partir de meados dos anos 90) strução teórica acerca do tema. privilegiou os bens do velho mundo (Europa), sendo alvo inclusive de sistemáticas ilações de elitismo por ser “(...) claramente mais ocidental, mais estatal e representativo do A TRAJETÓRIA DO ORDENAMENTO NO BRASIL Estado-nação, mais urbano, mais monumental, mais passível No Brasil o primeiro ordenamento nas questões de pat- de ser musealizado (...)”, a categoria de património imaterial rimônio foi em 1937, com a publicação do Decreto-Lei Nº 25, mostrou-se “(...) bem mais oriental, mais comunitário, menos que em seu artigo 1º dizia: urbano, menos monumental, menos propenso à museal- ização e acolhe muito mais as heranças do chamado Novo “Constitui o patrimônio histórico e artísti- Mundo (Santos e Peixoto, 2013, apud Abreu e Peixoto, 2014, co nacional o conjunto dos bens móveis e p. 8)”. imóveis existentes no país e cuja conserva- Certamente há que se considerar que não é simples- ção seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história mente a lógica descrita acima que se manifestou com essa do Brasil, quer por seu excepcional valor convenção. Subvertendo a lógica do controle estatal sobre arqueológico ou etnográfico, bibliográfico os processos de patrimonialização, as comunidades onde os ou artístico.”197 bens se situam, ou que deles sejam as “detentoras” foram guindadas como partícipes indispensáveis do processo, e não O procedimento previsto no decreto era o tombamen- menos importante, da manutenção das condições que deram to, prevendo para isso quatro categorias, sendo o Livro do origem ao feito. Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (as coisas Ao invés de proteção a salvaguarda, pois não mais estáti- pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfi- cos são os patrimônios, são vivos e vivenciados, fluidos e por ca, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § que não dizer, frágeis. A sobrevivência do patrimônio imateri- 2º do citado art. 1º); o Livro do Tombo Histórico (as coisas al decorre de seu exercício. Todavia, conforme Abreu e Peixoto de interesse histórico e as obras de arte histórica); o Livro do (2014) persiste uma contradição intrínseca ao processo, pois Tombo das Belas Artes (as coisas de arte erudita, nacional ou em ultima instancia são os Estados que gerem a candidatu- estrangeira), e o Livro do Tombo das Artes Aplicadas (as obras ra junto ao organismo internacional, além do fato de que a 196 Cal, Barro & Luz: memória e registro visual das casas do sertão 195 Documento originalmente publicado pela UNESCO sobre o título da Bahia e Pernambuco, Brasil, séculos XIX e XX, a desenvolver no Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage, doutorado em Patrimônios de Influência Portuguesa, no Instituto de In- Paris, 17 October 2003. Tradução feita pelo Ministério das Relações vestigação Interdisciplinar do Centro de Estudos Sociais da Universidade Exteriores, Brasília, 2006, p. 4. Disponível em http://www.unesco.org/ de Coimbra. new/pt/brasilia/about-this-office/unesco-resources-in-brazil/legal-in- 197 DECRETO-LEI Nº 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937. Disponível em struments/international-instruments-clt/#c154460. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0025.htm 381 que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais segundo a qual o patrimônio cultural é ou estrangeiras). formado por bens de natureza material e No Brasil, o patrimônio material passou então a ser pro- imaterial, tomados individualmente ou em tegido pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artísti- conjunto, portadores de referência à iden- co Nacional), criado em 1934. Com a promulgação da sétima tidade, à ação, à memória dos diferentes constituição brasileira, a Constituição Federal de 1988, o leque grupos formadores da sociedade brasileira, foi ampliado trazendo em seus artigos 215 e 216, uma noção nos quais se incluem as formas de expres- de patrimônio cultural que reconheceu também a existência são, os modos de criar, fazer e viver, as cria- ções científicas, artísticas e tecnológicas, as de bens culturais de natureza imaterial estabelecendo outras obras, objetos, documentos, edificações e formas de preservação, como o Registro e o Inventário, uma demais espaços destinados às manifesta- vez que o tombamento se aplicava mais diretamente aos bens ções artístico-culturais, os conjuntos urba- materiais. nos e sítios de valor histórico, paisagístico, A partir de então o Iphan coordenou os estudos que re- artístico, arqueológico, paleontológico, eco- sultaram na edição do Decreto nº. 3.551, de 04 de agosto de lógico e científico.”199 2000, o qual instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imateri- Conforme RIBEIRO (2007), mesmo com o decreto de al (PNPI), consolidando o Inventário Nacional de Referências 1937 já havia interesse na paisagem como um bem patrimo- Culturais (INCR). nial, manifesta na criação do Livro do Tombo Arqueológico, Et- Em 2004, o Iphan criou o Departamento do Patrimônio nográfico e Paisagístico. Dessa forma, usamos essas referên- Imaterial (DPI), e em 2010 foi instituído o Inventário Nacional cias normatizadoras para problematizar a Foz do Rio como da Diversidade Linguística (INDL), utilizado para reconhec- patrimônio de Paisagem Cultural Brasileira, pelas questões imento e valorização das línguas portadoras de referência expostas a seguir. à identidade, ação e memória dos diferentes grupos forma- dores da sociedade brasileira. Nesse sentido, o Iphan se an- OS CAMINHOS DO RIO: AS MOVIMENTAÇÕES PARA tecipou a Unesco que, em 2003, publicou a Convenção para a PROMOVER A PATRIMONIALIZAÇÃO Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em março de 2006. Tão antigo quanto a presença portuguesa em terras Entretanto, como já a partir de 1992, a Unesco adotara brasileiras o rio São Francisco, assim batizado por ter sido o conceito de paisagem cultural como uma nova tipologia de localizado pelo navegador Américo Vespúcio na data de 04 reconhecimento dos bens culturais, tendo sido o Rio de Janei- de outubro de 1501, dia de São Francisco, passou a ser sis- ro a primeira área urbana do mundo a receber a titulação em tematicamente explorado por navegadores, tendo mais tarde 2012. Em 2009, o Iphan já havia publicado, no Diário Oficial da sido o meio de se chegar aos sertões de dentro. Habitado por União a Portaria 127, estabelecendo a chancela de Paisagem diversas nações indígenas, como Pankararu, Atikum, Kimbi- Cultural Brasileira, “(...) porção peculiar do território nacional, wa, Truka, Kiriri, Tuxa e Pankarare que em muito dificultaram representativa do processo de interação do homem com o a sua conquista, era chamado por esses de Opará, que signifi- meio natural, a qual a vida e a ciência humana imprimiram ca “rio-mar”. marcas ou atribuíram valores.”198 De forma mais detalhada, temos que: “(...) a conceituação da Paisagem Cultural Brasileira fundamenta-se na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,

198 http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/2445, consultado em 199 Portaria nº 127, de 30 de Abril de 2009. Disponível em http:// 07.02.2016. portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1236 382 Brasil, em especial da região nordeste, e apresenta extensa argumentação a respeito da vida, dos costumes e dos valores atribuídos por ele aos habitantes locais. Fundada na ideia de uma “civilização do couro”, proveniente do desbravamento da região pelos bandeirantes e sua posterior ocupação por cri- atórios de gado (DINIZ, 2013). Conforme Relatório do Iphan: “O rio se estende por 2.800 km da nascente à foz, atravessa cinco estados, em direção ao norte e às suas margens estão dezenas de cidades e vilas até a sua foz situada entre os Foz do Rio São Francisco200 estados de Alagoas e Sergipe, próxima à ci- dade alagoana de Piaçabuçu, onde encontra Duas décadas depois de seu descobrimento, em 1522, o Oceano Atlântico. Sua importância deve- o primeiro donatário da capitania de Pernambuco, o portu- -se ao grande volume de água que transpor- guês Duarte Coelho, fundou a cidade de Penedo, em Alagoas. ta para a região semi-árida do Nordeste, e Com a autorização da coroa portuguesa, em 1543 começou a à sua contribuição histórica e econômica na criação de gado na região, atividade econômica que marca a fixação das populações ribeirinhas e criação história do vale do São Francisco. das cidades que surgiram ao longo de seu vale.” 201 A ocupação ocorreu principalmente através das sesmari- as, tendo sido o São Francisco ocupado parte pela Casa da Quando em 1852 o Imperador Dom Pedro II contratou Torre de Garcia DÁvila e parte pela Casa da Ponte, de Antô- um engenheiro alemão de nome Heinrich Wilhelm Ferdinand nio Guedes de Brito. O primeiro, Garcia DÁvila, apossa-se das Halfeld para fazer um levantamento topográfico e batimétrico terras em 1573, sendo mais de 70 léguas entre o Rio São do Rio São Francisco, de Pirapora até a foz, preocupado com Francisco e o Parnaíba no Piauí. Com a descoberta de ouro em a navegação no rio, na época de grande importância para o seus afluentes nas regiões mais internas (atual Minas Gerais) império, não se discutia patrimônio, mas o relatório tornou-se a utilização do rio se intensificou. o primeiro legado sobre as coisas do rio e as gentes que hab- Ao longo dos tempos, as margens do rio e de seus aflu- itavam ao longo de suas margens e ilhas. O trabalho original entes foram sistematicamente sendo exploradas em busca de encontra-se hoje na sede da CODEVASF (Companhia de De- metais e pedras preciosas, por missionários religiosos em bus- senvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), em ca de catequisar almas pagãs, por apresadores de indígenas Brasília. para o trabalho escravo e por assentamentos de criação de Passados cento e cinquenta anos, o nome de Halfeld gado. volta às águas do Velho Chico, desta vez como nome de bat- Palco de invasões de holandeses, de surgimento de ismo de duas expedições realizadas nos anos de 2001 e 2002, quilombos, a trajetória da ocupação da bacia do rio seguiu produtos de uma campanha realizada pela Confederação das os passos de uma nação em formação, onde a figura do Associações Comerciais do Brasil e executada pela Federação sertanejo, com todas as suas peculiaridades irá se fixar na das Associações Comerciais, Industriais, Agropecuárias e de história e nas mentalidades ribeirinhas, sendo que a primeira Serviços do Estado de Minas Gerais, Federaminas, contando iniciativa de documentar a história dos “sertões de dentro”, com o apoio de diversas instituições públicas, dentre elas a como denominava a região em obra de 1907, Capistrano de Petrobras, o Ibama, o Governo de Pernambuco e o Ministério Abreu buscou construir uma identidade própria do interior do 201Ministério da Cultura - IPHAN Módulo 1 – Conhecimento M1 - Siste- 200 Alagoas. http://www.feriasbrasil.com.br/al/maceio/fozdoriosaof- ma Integrado de Conhecimento e Gestão. Disponível em http://portal. ranciscoepenedo.cfm iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Relat%C3%B3rio, p. 5. 383 da Integração Nacional no bojo da Campanha Rio São Francis- co Patrimônio Cultural da Humanidade.202 Na primeira etapa ocorrida entre 14 de outubro e 18 de novembro de 2001 foram percorridos em torno de 85% da extensão total do rio São Francisco, entre a cidade minei- ra de Pirapora e a foz, localizada no município alagoano de Piaçabuçu. Na segunda etapa, foi pesquisada a região do Alto São Francisco, entre os municípios mineiros de São Roque de Minas, onde está a nascente do rio, e Pirapora e ocorreu entre 28 de junho e 11 de julho de 2002. O objetivo principal das duas expedições foi a pesquisa e a documentação dos bens de valor histórico, artístico, cultural Pirapora/MG203 e natural existentes ao longo do rio e no seu entorno e a mo- bilização das populações ribeirinhas em defesa das águas do Já em 2009, em evento promovido pela Maçonaria na São Francisco e do patrimônio presente nos núcleos urbanos cidade mineira de Januária foi promovido um evento com a que se distribuem às margens do rio. participação do governador em exercício, Antônio Anastasia e As expedições contaram também com técnicos do IP- a presenças de prefeitos, vereadores, lideranças comunitárias HEA/MG objetivando analisar aspectos arqueológicos, históri- e toda a bancada de deputados federais e estaduais do Norte cos e geográficos da região ribeirinha, e contribuir para a de Minas., intitulado Ato Público em Defesa do Velho Chico, identificação dos bens culturais, arquitetônicos e ambientais com a finalidade imediata de revigorar o movimento lançado existentes ao longo do percurso. Além de sugerir medidas de em 2001 pelo reconhecimento do Rio São Francisco como Pat- proteção patrimonial da região, o órgão pretendeu subsidiar rimônio da Humanidade pela Unesco. a consolidação de documento a ser encaminhado à Unesco, Na época, em virtude de disputas políticas em torno da cujo reconhecimento criará possibilidades de busca de recur- questão da transposição das águas do rio, projeto tão antigo sos financeiros para a preservação da diversidade ambiental e quanto polemico, e que atualmente já evoluiu muito, o gover- cultural da região às margens do rio. nador assim se manifestou: De acordo com o Relatório de Participação Técnica da campanha ao longo de todo o rio cinco bens culturais foram “Para conquistar o título para o Rio São tombados como patrimônio cultural pela União. Quatro deles Francisco, é preciso, em primeiro lugar, a encontra-se em Penedo – AL e um em Matias Cardoso (Igreja preservação do Rio, a consciência da sua re- levância, e, mais do que isso, todos os níveis Matriz de Nossa Senhora da Conceição, tombada em 1954.). O de governo percebendo que o Rio deve ser Estado de Minas tombou como patrimônio cultural dois bens mantido como está e como nos foi doado na cidade de Pirapora, um em Januária – Brejo do Amparo pela natureza para aproveitarmos bem os (Igreja de Nossa Senhora do Rosário, tombada em 1988). seus dotes e todas as suas grandes rique- Dos cinco estados banhados pelo rio registram-se 157 bens zas. O processo de reconhecimento do Rio históricos e artísticos; 20 bens culturais imateriais; 06 áreas São Francisco como patrimônio exige uma naturais de grande valor ambiental; 05 sítios arqueológicos; série de medidas de preservação, a maior 08 comunidades típicas. reivindicação dos moradores das cidades banhadas por ele.” 202 TERRAZUL. Disonível em www.terrazul.org.br/Caminho1/RELATO- RIO1.pdf. 2001. TERRAZUL. Disponível em www.terrazul.org.br/Camin- ho1/RELATORIO2.pdf. 2002, e SANTOS, Marcio Roberto Alves dos dspace. almg.gov.br/Campanha+reafirma+unidade.Rio+São+Francisco. 203 Ponte Marechal Hermes que liga as cidades de Pirapora e Buritizeiro Revista do legislativo, Belo Horizonte, n. 34, p. 88-96, maio/ago. 2002. em Minas Gerais. Fotografia: Countrybox.info 384 204 Rio São Francisco/Pescador/APA Dunas da Barra Penedo/Alagoas

Em 2011 o Iphan promoveu um encontro para debater a Os representantes do Instituto pontuaram algumas preservação do patrimônio cultural na calha do Rio São Fran- observações sobre a história do rio e sua atualidade, demon- cisco, no auditório da Companhia de Desenvolvimento dos strando um quadro com sérias dificuldades a superar, haja Vales do São Francisco e do Parnaíba – Codevasf, em Petroli- vista as condições em que se encontra a bacia do rio. na, Pernambuco, nos dias 14 e 15 de junho, no Seminário do Patrimônio Cultural do Rio São Francisco,205 onde promoveu “Apesar de toda a riqueza de textos, do- o debate das ações conjuntas de proteção e preservação com cumentos, iconografias e obras de ficção, instituições federais, empresas públicas, governos e órgãos o inventário do Iphan revela o patrimônio estaduais e municipais, associações, e organizações não gov- natural deteriorado e o patrimônio históri- co e cultural descaracterizado, disperso ou ernamentais. submerso nas águas das represas formadas Na ocasião foi informado que havia sido feito um tra- ao longo do rio São Francisco. O agrava- balho de pesquisa e levantamento de dados nos últimos três mento desse quadro deve-se, em sua quase anos, revelando um vigoroso panorama da paisagem cultural totalidade, à concentração de renda que e natural expresso em unidades de conservação ambiental persiste e comprova o enriquecimento de que revelam a força dos biomas de Mata Atlântica, Cerrado determinados segmentos sociais. O objetivo e Caatinga, bem como “na extensão do seu patrimônio ar- do Iphan com o trabalho desenvolvido nos queológico; na riqueza arquitetônica do período colonial ou últimos anos é resgatar o que for possível e da art déco e eclética; no patrimônio naval e ferroviário; e na pactuar ações para impedir a perda do pa- singularidade de manifestações culturais, das festas religiosas trimônio cultural e natural da região, valo- e saberes populares.”206 rizando suas características e promovendo a integração com a população local.”207

Como resultado concreto desse encontro em Petrolina, Pernambuco, foi a elaboração de um documento chamado Declaração Nacional de Valor Cultural do Rio São Francisco, onde entre outras coisas defende que:

204 Fotografia: Carlos Omar “Qualquer forma de desenvolvimento pro- 205 Encontro debate preservação do patrimônio cultural. 2011. posta para áreas que interfiram no Rio São Disponível em portal.iphan.gov.br/.../encontro-debate-preserva- Francisco deve ter como condição a preser- cao-do-patrimonio-cultural. 206 Idem. 207 Idem. 385 vação de seus atributos naturais, culturais ministérios do Meio Ambiente, das Minas e Energia e da Pesca e ambientais. O Rio São Francisco deve ser e Aqüicultura, e com a Agência Nacional de Águas (ANA), após objeto de estudos; inventários, registros; apresentação do inventário de varredura dos patrimônios cul- propostas de tombamento e declaração turais, realizado entre 2008 e 2009 em cerca de 90 municípios como paisagem cultural; criação de do vale do rio, onde: unidades de conservação em níveis nacio- nal, estadual, municipal e local.”208 “(...) atestou a importância balizadora do rio para a interiorização da colonização euro- péia, cuja herança pode ser observada ainda hoje em edificações históricas, igrejas mis- sioneiras e no patrimônio rural. A partir da segunda metade do século XIX, os vapores, as estradas de ferro e as hidroelétricas mar- cariam o apogeu econômico do vale no sé- culo XX, cujo legado está presente em belos conjuntos urbanos de art decó e eclética. O inventário do Iphan revelou também a força do patrimônio imaterial, das manifestações culturais, festas religiosas, ao artesanato e Juazeiro/BA e Petrolina/PE209 patrimônio lingüístico.”211

Ainda no esteio deste processo, em 2013, o Instituto do Em 2012 começou outro movimento com relação ao rio. Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) participou A partir da criação da Chancela de Paisagem Cultural Brasilei- do Seminário Políticas de Proteção do Patrimônio Cultural, ra pelo Iphan, no esteio da criação da categoria de Paisagem em Matias Cardoso, cidade do Norte de Minas Gerais. No Cultural pela Unesco, iniciou-se movimento pelo reconheci- Seminário, foram abordados as questões sobre identificação, mento do trecho da Foz do Rio São Francisco nessa categoria, reconhecimento e salvaguarda do Patrimônio Imaterial, e na distanciando-se do projeto anterior. realiza seminário sobre questão da valorização do patrimônio cultural, a importância Paisagem e Patrimônio cultural no Baixo São Francisco. de Matias Cardoso na formação social do país, por ser uma das mais antigas do Brasil, com registro da passagem do grupo do bandeirante paulista Matias Cardoso desde 1612. A cidade é uma das mais antigas de Minas Gerais, às margens do rio, onde chamam a atenção o casarão dos padres e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, do XVII, com grossas paredes de pedras e talhas que teriam sido esculpidas por um defi- ciente físico.210 Em 2015, em uma reunião na sede do Ibama o Iphan pôs em discussão uma parceria com órgãos vinculados aos

208 Declaração nacional do valor cultural do rio são Francisco. Disponível Cânion do Rio São Francisco212 em: portal.iphan.gov.br/ Grifo nosso. 209 Ponte Presidente Dutra entre as cidades de Juazeiro na Bahia e 211 Patrimônio Cultural do Rio São Francisco é foco de projeto intergov- Petrolina em Pernambuco. Fotografia: Mauricio André. ernamental. Disponível em portal.iphan.gov.br/.../patrimonio-cultur- 210 Patrimônio do Rio São Francisco é tema de seminário. jornalbrasil. al-do-rio-sao-francisco. 03 de agosto de 2015. com.br/.../patrimonio-do-rio-sao-francisco-e-tema-de-seminario. 212 Localizado na cidade de Canindé de São Francisco, divisa entre Publicada em 12 de abril de 2013. os Estados de Sergipe e Alagoas. http://www.wikiwand.com/pt/Ri- 386 Em maio daquele ano o Iphan e o grupo Canoa de nização e posterior desenvolvimento econômico do país, para Tolda (Sociedade Socioambiental do Baixo São Francisco) um conjunto muito significativo de municípios e, principal- realizaram o seminário “Baixo São Francisco: Paisagem e Pat- mente com as inúmeras agressões ambientais que o curso rimônio Cultural”, na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), do rio sofreu, principalmente ao longo do ultimo século, os em Penedo. Conscientes das graves mudanças por que vem processos para sua preservação como patrimônio cultural são passando a região, a preocupação maior é a degradação do recentes, e encontram muitas dificuldades para avançar. patrimônio cultural, portanto foram discutidas políticas As informações a respeito da tentativa de reconheci- voltadas para a preservação, proteção e recuperação do pat- mento como Patrimônio Mundial a ser solicitado a Unesco se rimônio cultural vinculado à paisagem. enfraquecem com o passar dos tempos e creio, principalmen- O requerimento da chancela foi considerado mais eficaz te, com a constatação dos graves problemas de preservação em comparação ao processo de tombamento da foz, solicita- encontrados ao longo de todo o rio, devido ao descaso e as do anteriormente ao Iphan pela Canoa de Tolda, com a criação intervenções humanas com viés puramente econômico como de uma Área de Proteção Ambiental – APA na foz do rio São as barragens para geração de energia e a agricultura irrigada, Francisco. Na ocasião ficou definido o lançamento do edital obviamente sem desconsiderar a imensa importância dessas ainda em 2013, através do qual o Iphan contrataria equipe para as populações da bacia do rio. multidisciplinar integrada por arquitetos, geógrafos e cien- O processo de Chancelamento como Paisagem Cultural tistas sociais. Brasileira da porção da Foz do Rio mostra-se mais recente, Com relação aos tombamentos pré-existentes na região mas com maiores possibilidades de prosperar, considerando encontramos seis bens localizados em três municípios de entre outras coisas que ao invés de uma ação meramente es- Alagoas. Em Palmeira dos Índios, a casa do escritor Graciliano tatal de proteção discute-se um conjunto de ações de caráter Ramos. Em Piranhas, o sítio histórico e paisagístico da cidade. muito mais envolvente com as comunidades locais e seus in- Em Penedo, o conjunto histórico e paisagístico da cidade, as teresses e necessidades. igrejas de Nossa Senhora da Corrente e de São Gonçalo Garcia Ainda, gostaríamos de ressaltar a importância da conti- dos Homens Pardos, além do convento e igreja Santa Maria nuidade da busca pela patrimonialização da bacia do rio no dos Anjos. seu conjunto, ou mesmo de forma diferenciada, como no caso Em 2014, no Terceiro Colóquio Ibero-Americano foram da busca pelo reconhecimento como Paisagem Cultural da apresentados os resultados preliminares do trabalho de le- Foz, considerando a enorme gama de bens culturais, arqui- vantamento e análise prévia, feito pela empresa Memória tetônicos, paisagísticos e históricos presentes na bacia do rio. Arquitetura, de onde foram extraídas algumas questões como Porção única e de vital importância em toda a história do país o mapeamento dos setores da paisagem cultural da foz do rio e que atravessa nossa história desde o descobrimento aos dias e através da definição do recorte territorial e da escolha da atuais. Os aspectos de degradação do patrimônio certamente abordagem a ser aplicada sobre o território para particular- irão se intensificar se esse trabalho não prosperar. izá-lo.213 Por fim, cabe a indagação se o que falta talvez seja a vontade política no momento para prosseguir com tal tarefa, CONCLUSÕES uma vez que os trabalhos de levantamento e pesquisa, tanto da bacia do rio como de sua foz, coordenados pelo Iphan, já Em que pese a imensa importância do Rio São Francisco foram feitos de maneira bem aprofundada, conforme de- para as regiões sudeste e nordeste, para a história da colo- monstram os relatórios citados. É preciso estar sensível a essa patrimonialização até para proteger de desastres ambientais o_S%C3%A3o_Francisco como o ocorrido com o Rio Doce em Minas Gerais, provocado 213 ANÁLISE DA PAISAGEM CULTURAL DA FOZ DO RIO SÃO FRANCISCO pela destruição de uma barragem com resíduos da extração – PREMISSAS PARA O PLANEJAMENTO E PROTEÇÃO. 3ª colóquio ibero americano. Rennó, Fernanda. Teixeira, Rafael. Borim, Alexandre. 3 de minérios que levou a mortandade de peixes e degradação Colóquio - Caderno Programação. issuu.com/rdenubila/docs/3colo- do bioma. quio_caderno 387 BIBLIOGRAFIA é foco de projeto intergovernamental. 03 de agosto de 2015. Consultado a 04.02.2016. ABREU, Regina. « Dez anos da Convenção do Patrimônio Cultural Imaterial: Ressonâncias, apropriações, vigilâncias », IPHAN. http://portal.iphan.gov.br/pagina/deta- e-cadernos ces [Online], 21 | 2014, colocado online no dia 01 lhes/234. Consultado a 07.02.2016. Junho 2014. URL: http://eces.revues.org/1742; DOI: 10.4000/ eces.1742. 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Patrimônio Cultural do Rio São Francisco

388 RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimô- RUA DOS ANDRADAS, Nº 891/895: CONFLUÊN- nio – Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC. 2007. docplayer.com. CIAS ENTRE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO br/13396021-Serie-paisagem-cultural-e-patrimonio. Katherini Coelho SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Campanha+reafir- Bacharel em Artes Visuais - UDESC ma+unidade+Rio+São+Francisco. Revista do legislativo, Graduanda no curso de Museologia – CFH/UFSC [email protected] Belo Horizonte, n. 34, p. 88-96, maio/ago. 2002. dspace. almg.gov.br. 05.02.2016. RESUMO SANTOS, Myrian Sepúlveda dos e PEIXOTO, Paulo. Políti- O presente artigo consiste em observações realizadas a ca, Representação e Identidades Culturais. Patrimônios Mun- partir do acompanhamento técnico do processo de restau- diais: Fragmentação e Mercantilização da Cultura. Cultura ração da fachada arquitetônica da Casa de Azulejos da Rua Memoria e Poder, 2013. dos Andradas, a famosa e histórica Rua da Praia, no centro histórico de Porto Alegre/RS, assim como do interior da Igreja TERRAZUL. www.terrazul.org.br/Caminho1/RELATO- Nossa Senhora das Dores, com o objetivo de refletir sobre a RIO1.pdf. 2001. Consultado a 30.01.2016. importância das salvaguardas de construções históricas, em todos os seus âmbitos, da legislação à necessidade dos su- TERRAZUL. www.terrazul.org.br/Caminho1/RELATO- jeitos viventes dos locais mencionados, tendo como método RIO2.pdf. 2002. Consultado a 30.01.2016. a observação direta. Classificada como Imóvel Inventariado de Estruturação, datada por volta do ano de 1866, a Casa de UNESCO 1972 - Convenção para a Proteção do Patrimônio Azulejos é uma das cinco casas da cidade que são revestidas Mundial, Cultural e Natural. http://www.unesco.org/new/ por azulejos históricos. Conduz em seu histórico a diálogos pt/brasilia/about-this-office/unesco-resources-in-brazil/ que se ramificam para a representatividade na memória legal-instruments/international-instruments-clt/#c154460. em interações sociais relações entre patrimônio histórico e Consultado a 09/02/2016. narratividade do espaço urbano. Esses diálogos também se relacionam com a arte contemporânea gaúcha, a exemplo da UNESCO. Convenção Para a Salvaguarda do Patrimônio obra da artista plástica Ana Flores, que utiliza a reprodução Cultural Imaterial, Paris, 17 de outubro de 2003. Documento dos azulejos em outras formas plásticas como conceito poéti- originalmente publicado pela UNESCO sobre o título Con- co, fornecendo pauta para a discussão sobre esquecimento vention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Her- perante a memória. Voltando-se aos azulejos portugueses, itage, Paris, 17 October 2003. Tradução feita pelo Ministério permeados de historicidade e memórias, serão a base para das Relações Exteriores, Brasília, 2006. http://www. atravessamentos de vários campos, presentes nessa pesquisa unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/unesco-re- em uma perspectiva transdisciplinar que perpassa pela iden- sources-in-brazil/legal-instruments/international-instru- tidade e memória no contexto urbano. ments-clt/#c154460. Consultado a 09/02/2016. Palavras-chave: Patrimônio. Memória. Azule- jo. Cerâmica. Restauro.

INTRODUÇÃO Ruína em meio a mais famosa rua do Centro Histórico de Porto Alegre, a Rua dos Andradas, ou como é comumente chamada Rua da Praia, está uma construção repleta de ele- mentos arquitetônicos. Uma casa que reluz de acordo com

389 a luminosidade determinada pela posição do sol, ofertando descritivo. Aliado a isso, buscou-se um contínuo diálogo com diferentes nuanças, caminho que o sol percorre acima da lar- o Patrimônio Arquitetônico que a cidade expõe, especial- ga faixa de água que a torneia - paisagem urbana construída mente o recorte que sobreviveu ao tempo, mobilizado pela pelo único e peculiar revestimento de elementos vitrificados valoração existente, todo o seu conjunto e, precisamente, os pertencentes a essa rua, os azulejos portugueses do Sobrado azulejos restaurados. nº 891/895. Desta forma, toma-se como base informações do livro A cidade, detentora do Sobrado nº 891/895, território “Azulejo na cultura luso-brasileira”, de Alcântara (1997) - portuário, ainda que devido a um lago, conhecido como Rio bibliografia primordial em nível brasileiro - contudo, mais Guaíba, destaca-se entre outras pela presença dos objetos vit- voltada aos estados do nordeste e nordeste (o sul do país está rificados, e, mesmo que situada no sul do Brasil, precisamente mais defasado quanto ao registro das raízes históricas azule- no Rio Grande do Sul - distante de cidades como Olinda, Sal- jares); a dissertação de mestrado, “Azulejaria portuguesa no vador e estado do Maranhão - referências históricas do objeto patrimônio edificado do sul do Brasil”, de Curval (2009), que desse estudo, nos levará, brevemente, a um local de produção se utiliza de três cidades providas de portos para o seu levan- azulejar em Itaipava, distrito de Petrópolis, RJ. tamento histórico da cerâmica vitrificada: Rio Grande, Pelotas O principal objeto deste estudo - em sua matéria prima, e a capital, Porto Alegre. Recorre-se a Pelegrini (2009) para le- a argila - é também uma metáfora para ele, já que possui a vantar temas sobre o que coincidentemente intitula seu livro: característica da transformação da matéria, a possibilidade “Patrimônio Cultural: consciência e preservação”, entre outros. da mutação, não apenas na sua forma, ao tornar-se cerâmi- Sustentando a perspectiva transdisciplinar, arte, lite- ca, mas também porque, quando tornado objeto, torna-se ratura, patrimônio, legislação, memória e o que concerne à imbuído de significações, simbologias, historicidade e todas matéria azulejar, vêm à tona nesta reflexão. Esta última, ainda as memórias que nela se instauram, pelas relações que se fir- que em destaque, se desdobra para além do material cerâm- mam entre tempo, história, espaço e os sujeitos viventes, es- ico. Para isso, é necessário delimitar o percurso cartográfico tes, representados pelo trabalho da artista plástica Ana Flores. que aqui será discorrido: percorrendo da Praça da Alfândega à Dessa forma, os azulejos portugueses, permeados de Praça Brigadeiro Sampaio, intervalo onde se encontra um bo- historicidade e memórias, serão a base para atravessamen- teco histórico, hoje detentor do imóvel. Em seguida, adentra- tos de vários campos, presentes nessa pesquisa em uma pers- -se a Igreja das Dores, que recentemente foi restaurada, e que pectiva transdisciplinar. Termo último que abrange diferentes no momento da escrita deste artigo, torna-se palco da Bienal pontes teóricas, realizando diálogos que colocam em “xeque do Mercosul, com uma instalação sonora que repercute para a disjunção entre as disciplinas” e servem como suporte para a o exterior arquitetônico. Ao descer seus inúmeros e turísticos reflexão sobre memória social, valorizando-a, a ponto de que degraus, depara-se com os elementos a céu aberto do Museu sejam “capazes de atravessar os domínios separados” (GOND- do Percurso Negro. Sendo o objetivo, por meio desses atraves- AR, 2005, p. 14). samentos teóricos, o ensejo de obter uma interpretação do O desenvolvimento deste estudo sobre a importância patrimônio cultural, à luz ou reflexo dos vitrificados, bem das salvaguardas de construções históricas, em todos os seus como do Estado que o regula. âmbitos, da legislação à necessidade dos sujeitos viventes, a partir da restauração da fachada do sobrado, ou que dele restou, só foi possível a partir da execução da obra, com a contribuição de uma equipe pluridisciplinar214 de responsa- bilidade técnica, que foi sempre solícita no provimento de material fotográfico, documentos do projeto arquitetônico, diagnósticos, bem como com a disponibilização do memorial 214 “Os trabalhos devem ser realizados por uma equipe pluridisciplinar, cuja composição seja determinada pelo tipo e envergadura dos proble- mas verificadosin loco [...]” (TINOCO, 2007, p.7). 390 ELAS QUE AINDA ESTÃO: UM PRENÚNCIO NA RUA DA Luiz Custódio216, ao arquiteto especialista em restauração, PRAIA Lucas Volpatto217 - responsável técnico pela execução do projeto de restauração do sobrado. O objetivo da visita foi de conhecer a técnica utilizada pela artista no seu trabalho de azulejos, cujo viés do campo poético da arte contemporânea local - significativa para além do interior de exposições, mas emblemática para a cidade - faz com que ela se volte para as últimas cinco casas com revestimento azulejar que sobre- vivem no centro de Porto Alegre. À vista disso, a visita técnica ao ateliê da artista aconteceu no início da execução da obra de restauro. A artista, filha de pais historiadores, trabalha a partir de sua própria memória individual, sobressaindo o histórico da fachada, de modo a enaltecê-la. Assim, em sua criação de Totens, pode-se compreendê-la melhor, relacionando- -a ao termo Artista-Historiador. Como discorre Nora (1993), a história tem uma vocação universal e relativa, a memória por sua vez “se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (1993, p. 9). A artista atua como sujeito potencializador ao unir história e memória, pois se utiliza de azulejos presos a uma alvenaria como objeto, fonte de criação. Conforme Febvre Figura 1 – Fotografia da fachada nº 891/895, antes da obra de restauração. Fonte: Studio 1 – Arquitetura, 2017. (1949): Faz-se com tudo o que a engenhosidade do Diante de uma construção social pautada no retorno historiador permite utilizar para fabricar a uma preocupação como os monumentos antigos, diante o seu mel, quando faltam flores habituais: do contemporâneo, ou seja, da era das tecnologias, do des- com palavras, sinais, paisagens e telhas; cartável e do contexto urbano, a fachada nº 891/895 da com formas de campo e com más ervas; com Rua da Praia sobreviveu ao período do modernismo. Neste eclipses da lua e arreios; com peritagens de sentido, observa-se a atuação dos órgãos preservacionistas, pedra, feitas por geólogos, e análises de diante da desatenção delimitada pela carência de educação espadas de metal, feitas por químicos. Em patrimonial, para uma volta à atenção aos monumentos - suma, com tudo o que, sendo do próprio ho- período em que os artifícios de salvaguarda perpassam por mem, dele depende, lhe serve, o exprime, um jogo sinuoso, com apoio e entre brechas da lei, para que se torna significante a sua presença, atividade, gostos e maneiras de ser. (FEBVRE. 1949, alcance a conservação e preservação desses lugares. Concom- apud LE GOFF, 1990 p. 107). itantemente a isso, surgem novos campos de narratividade e memoração do social, possibilitando o uso para valorização dessas construções. Como parte desse processo, surge o trabalho da arti- 216 Professor Doutor da Universidade Uniritter e Coordenador da 215 sta Ana Flores . O acesso ao seu trabalho deu-se por oca- memória cultural da Secretaria da Cultura de Porto Alegre/RS. sião de uma visita à artista sugerida pelo Coordenador da 217 Arquiteto e Urbanista (UniRitter) – Especialista em Gestão e Memória Cultural, da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, Conservação de Edificações do Patrimônio Cultural pelo CECI – UFPE – Mestre em Arquitetura, Projeto e Edificações Culturais – UniRitter/ 215 Artista Plástica (UFRGS) – Mestre em Design - UFRGS Makenzie. Professor – UniRitter. 391 [...] diretamente naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontramos aquilo que expõe à destruição e, na verdade, ameaça de destruição, introduzindo a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento (DERRIDA, 2001, p.23).

Nora (1993) declara que “os lugares de memória são, an- tes de tudo, restos” (p. 12). Halbwachs, por sua vez, acredita que a multiplicidade de memórias pode existir sem conflitos; Figura 2 – Totens (2002). Série: Elas que ainda estão, 2002-2005. ambos enaltecem a criação deste espaço de construção da Protótipos. Fonte: acervo da autora, 2018. memória (GONDAR, 2005, p. 21). Em 2002, Ana Flores, ao perceber a fachada de azulejos não apenas como resto ou Dessa forma, a artista cria os Totens (2002), partindo lugar de perda, cria seu trabalho a partir de uma “dimensão do material que conhece muito bem, a argila. As artes visuais processual dessa construção” (GONDAR, p. 21), apoiando-se provêm de linguagens possíveis para a criação, não apenas no no material cerâmico para compor sua série; ela propõe um campo artístico, mas engendrando outros discursos. Portanto, diálogo entre memória e matéria. A matéria representada por se faz necessário, quando possível, pautar também aspectos meio do material cerâmico, fonte para os desdobramentos materiais, características e técnicas para que, aos poucos, se dessa série que perdura, e se mantém até os dias atuais. compreenda melhor a respeito do material utilizado, no caso, Mario Quintana viveu por muito tempo na Rua da Praia, engobe vidrado. Os totens são pintados com óxido de ferro, num antigo imóvel onde hoje funciona o Centro Cultural manganês e titânio. Os azulejos dos totens são colados com Mário Quintana, e por isso foi um exímio conhecedor dela. barbotina, cobertos com vidrados alcalinos, ou seja, sem Seu poema, intitulado “O Mapa” permite refletir sobre uma chumbo, estes, nas cores amarela e azul. rua singular com “tanta nuança de paredes”: A artista enaltece os azulejos a ponto de representá-los Olho o mapa da cidade como totens. Ao final da instalação, o desenho da composição Como quem examinasse da exposição os deixou emparelhados numa linha reta, com- A anatomia de um corpo... pondo cinco unidades, torneados de fotografias da cidade. Ainda, pendurado no bloco branco da galeria, estava o objeto (É nem que fosse o meu corpo!) antigo, o enaltecido azulejo de relevo - original, resto de uma demolição de uma casa da cidade de Pelotas, padrão (forma Sinto uma dor infinita do desenho que compõe) que se repete em Porto Alegre. Das ruas de Porto Alegre Deste modo, partindo de uma obra de Ana Flores, que ao Onde jamais passarei... ser criada amplifica a dimensão de visibilidade que opera o referido patrimônio material - mesmo que diferindo da tradi- Há tanta esquina esquisita, cional historiografia da arte e da arquitetura, isto é, operando Tanta nuança de paredes, em outra lógica - poder-se-ia pensar os artistas da atualidade Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei como ordinary historians, conforme Derrida (2001), (E há uma rua encantada que inconsciente ou não, criam novos documentos, como é o Que nem em sonhos sonhei...) caso da série Elas que ainda estão (2002), mais um a respeito da Rua da Praia. Este, por sua vez, arquivado como material [...] cerâmico, incidindo, de acordo com Derrida (2001): (QUINTANA, 1998, p. 143)

392 Estaria o poeta fazendo menção à Rua da Praia, quan- Diante disto, pode-se observar o que aconteceu com do escreve que “há uma rua encantada”? Encanto pela rua o seu antigo nome, quando ainda não havia preocupações que possui muitas reverberações, narrativas quanto as suas quanto às representatividades quase perdidas diante das significações para a cidade. Deste modo, necessitou-se de imposições, como demonstra a mudança do nome Rua da uma maior atenção quanto aos percursos dessa rua, como o Praia para Rua dos Andradas. Todavia, ainda é o antigo nome coração do centro de Porto Alegre, para melhor reconhecer a que predomina até os dias atuais, sendo a menção mais memória viva que ultrapassa os tempos. usual no cotidiano da cidade, ou seja, presente na narrativa É preciso compreender que a rua é o espaço onde se social. Mesmo depois da alteração do nome percebe-se na manifestam as diferenças entre os indivíduos, onde emergem relação com os moradores da cidade que prevalece o que foi as reinvindicações dos habitantes que se utilizam do espaço proveniente de uma memória social advinda de sua antiga público e que o Patrimônio Arquitetônico é um referencial de cartografia, quando ainda estava às margens do Rio Guaíba, construção de identidade social. antes do aterramento naquela região. Certeau, no livro “A invenção do cotidiano”, auxilia a ob- À vista disso, levanta-se a questão: qual o motivo para servar o espaço urbano de outra forma, quando diz que “a rua a mudança do nome da rua? Segundo Cunegatto (2009), a geometricamente definida por um urbanismo é transformada alteração do nome ocorreu no ano de 1865 em homenagem em espaços pelos pedestres” (2008, p. 202). O autor propõe aos feitos à cidade de Porto Alegre pelos irmãos de sobre- novas estratégias de leitura e interpretação do espaço urbano, nome Andradas. Entretanto, não sucedeu como esperado de modo à ressignificar e compreender suas singularidades, pela Câmara Municipal, agentes da referida mudança, pois realizando um deslocamento atemporal unido aos sujeitos prevaleceu a memória do primeiro nome, apesar das placas que constroem o espaço público. Já Ricoeur (2007), ao pensar pela rua que sinalizavam com sua nova denominação. Desta o espaço, o lugar, ressalta a problemática da geografia: forma, nota-se a força de uma memória já instaurada pelos Esse vínculo entre lembrança e lugar levan- sujeitos viventes da cidade, seus moradores, transeuntes ou ta um difícil problema que se tornará maior até mesmo ao flâneur218. na articulação da memória e da história, a qual também é geografia. Esse problema O ANTIGO SOBRADO DA RUA DOS ANDRADAS é o do grau de originalidade do fenômeno de datação, que tem como paralelo o pro- No que diz respeito ao antigo Sobrado nº 891; 895, que blema de localização. Datação e localização já estava presente quando o nome da rua foi alterado, há um constituem, sob esse aspecto, fenômenos ofício entregue ao Iphan, redigido pelo Coletivo Arqueologia solidários que comprovam o elo inseparável de Porto Alegre (2017), que trata da recente menção encon- entre a problemática do tempo e a do espa- trada sobre seu endereço. Nele consta que no local funcionou ço (RICOEUR, 2007, p. 58). a “sede das oficinas tipográficas do Jornal Comércio” (2017, p.01), datado do ano de 1866, século XIX. Apesar da alteração da numeração da cidade no início do século XX, a hipótese que se apoia na pesquisa do historiador Leandro Telles situa que “as primeiras casas de azulejos em Porto Alegre datam do surgimento do estilo neoclássico, ou seja, de lá por 1860” (TELLES, 1977, p.45, apud OFÍCIO IPHAN, 2017, p. 2). Neste viés, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988, artigo 216, parágrafo 1, declara que “O

218 De acordo com o dicionário Michaelis on-line, Flâneur (francês) Figura 3 – Fotografia do complemento da série Elas que ainda estão significa: pessoa que passeia ociosamente. Como também, um termo (2002) - Antigo mapa do centro de Porto Alegre. Fonte: acervo da literário utilizado no século XIX, ampliado por Walter Benjamin no século autora, 2018. XX, a partir das poesias de Charles Baudelaire. 393 poder público, com a colaboração da comunidade, promov- Segundo Choay (2001), duas categorias de valores pre- erá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de cisam ser estruturadas para análise do monumento: a de inventários, registros [...]” (BRASIL, 1988). rememoração, o que se relaciona ao passado e à memória, No Brasil, pensada ainda a preservação isolada de edifíci- quando o sentido de afetividade é o que a constrói e arma- os, a legislação que amparou os tombamentos baseou-se no zena, e o valor de contemporaneidade. Assim sendo, Porto Decreto-Lei nº 25, de 30 de janeiro de 1937, que visava a pro- Alegre, fundada por imigrantes açorianos no ano de 1772, teger o patrimônio nacional: “cuja conservação seja de inter- demonstra certo preciosismo quanto às fachadas revestidas esse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da de azulejar português, já que a tradição veio junto com esta história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico colonização que trouxe “a tradição azulejar e a implantou em ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” (BRASIL, 1937, p. interiores e fachadas de prédios civis” (CURVAL, 2008, p. 8). 1). Todavia, na década de 1970, a especulação imobiliária em A etimologia do termo “azulejo” vem do árabe Azze- Porto Alegre, ocasionou a destruição de fachadas revestidas lii ou A zuleycha, que significa “pedra pequena polida”, por azulejos, devido ao “crescimento urbano e ao consequente sendo quadrada e espessa, com uma das faces contendo o aumento da construção civil”. (CURVAL, 2008, p. 97). vidrado (BRANCANTI, 1982, apud CURVAL, 2008). Isto posto, a Devido a isso, um dos locus desta pesquisa é uma das tradição do revestimento cerâmico é por raiz árabe, conforme cinco últimas construções remanescentes com revestimento ressaltado por Freyre (1981), em seu livro Casa Grande & Sen- azulejar. Entretanto, conforme Curval (2009) em uma pesqui- zala, ao remontar aos primeiros artífices coloniais de cujas sa que realizou o levantamento de originais azulejares portu- “[...] mãos recolhemos a herança preciosa do azulejo, traço de gueses em edificações nas cidades de Pelotas, Rio Grande e cultura em que insistimos devido a sua íntima ligação com a Porto Alegre, contrário ao que sempre se acreditou, somente higiene e a vida de família em Portugal e no Brasil” (FREYRE, três dentre as cinco casas mencionadas são originalmente de 981, p. 222). azulejos portugueses, sendo que a casa da Rua da Praia é uma As três casas que integram o Inventário do Patrimônio delas; as outras duas estariam localizadas, uma na Rua Duque Cultural de Porto Alegre são de uso privado comercial, fato de Caxias (876) e a outra na Sete de Setembro (706/708). que faz com que essas edificações sejam geralmente aban- Em Porto Alegre, o órgão que regulamenta, pesquisa, donadas pelos proprietários, consideradas como um proble- documenta e faz a proteção legal do patrimônio cultural da ma imobiliário, realidade comum no Brasil. Segundo Pelegrini cidade é a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC). (2009), a fim de que se restaure, conserve e preserve, foram Foi somente em 2013 que o órgão classificou o Sobrado criados “incentivos fiscais que preveem a dedução de cerca de nº891/895 como Imóvel Inventariado de Estruturação, basi- 80% das despesas efetuadas” (p. 34). Com este sobrado não camente não podendo ruir; ele também já esteve inscrito no aconteceu de forma diferente, pois foi necessário um acordo Programa Monumenta do Iphan. Diferindo do Tombamento, entre as três partes que garantisse a restauração total do im- o Inventário preserva apenas a parte externa da arquitetura, óvel, quais sejam: o município de Porto Alegre, o Ministério explicação fornecida pela EPAHC (2014): Público Estadual e proprietário do imóvel. Conjuntamente, o O Tombamento busca preservar integral- acordo prescreve ser preciso realizar um painel que contenha mente as características originais de uma a história do imóvel e do projeto de restauro (PMP, 2017). edificação, externas e internas, de acordo com sua importância. O Inventário busca preservar as características externas de con- juntos ou edificações consideradas de inte- resse sócio-cultural para a preservação de espaços referenciais de memória coletiva, estruturadoras da paisagem e da ambiência urbana e rural do Município (EPAHC, 2014, p. 1).

394 UM RESTAURO NA RUA DA PRAIA – REFLEXÕES SO- fosse interditada pela Defesa Civil no ano de 2006, passan- BRE CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO do a sofrer ação de vândalos, o que lhe ocasionou inúmeros incêndios, acarretando grande perda da estrutura e deixando restar apenas a fachada com os seus azulejos portugueses em estado físico lamentável. Referindo-se à problemática sobre a conservação das cidades, Argan (1992) menciona que:

Com um rápido olhar pela vasta literatura urbanística, de fato, notamos facilmente que, quando ela não se limita a verificar a progressiva e rápida degradação das cidades atuais, imaginamos as cidades do futuro, como se a degradação das cidades depen- desse do destino e não da nossa incapacida- de de as conservar e como se a forma das ci- dades futuras dependesse de nós e não das gerações vindouras. (ARGAN, 1992, p. 225)

Figura 4 – Fotografia da fachada do Sobrado nº 891/895. Devido a essa problemática de se obter um des- Etapa final da restauração. Fonte: Acervo da autora, 2018. pertar de atenção ao patrimônio em relação ao que o cerca, é que esta pesquisa destaca sobre o termo que a intitula Reconhecer a história da casa dos azulejos se faz em complemento, a palavra “confluências”, pautada no ter- necessário para compreender que ela é intrínseca à mo “transdisciplinaridade”, isto é, para firmar o valor tanto história da Rua da Praia em suas memórias, reverberações, desta rua quanto à fachada com seus azulejos portugueses, representação de seus mistérios, relatos e significações, o que pois quando instaurados na memória social dos viventes da dará suporte para sua valoração. cidade, existirá uma maior probabilidade de que Patrimônio Ao pesquisar na internet a expressão “Rua da Praia”, um Material perdure. dos primeiros sites a aparecer nas buscas é o blog Porto Alegre Quanto ao processo de preservação, que deveria ter 219 Abandonada - veículo on-line porta-voz dessas edificações antecedido a restauração, no caso do referido sobrado, foi abandonadas, que se utiliza da escrita como forma de protes- completamente negligenciado, abandonado, ou pior, quando to e de remeter à memória da cidade, servindo como um vá- no momento de outra intervenção na construção, os azulejos lido e novo documento de testemunho. Como discorre Le Goff foram danificados - consequência de uma obra inábil quanto (1990), ao escrever que a sociedade produz o documento, este aos métodos de preservação do original. A preservação se inócuo para quem o produziu, como “[...] também das épocas instaura num campo de consequência de esforços multidis- sucessivas, durante as quais continuou a viver, talvez esqueci- ciplinares, quando o “somatório dessas disciplinas é requerido do, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que para dar conta de um mesmo objeto teórico [...], podendo pelo silêncio” (LE GOFF, 1990, p. 537). cada disciplina manter-se em sua própria esfera” (GONDAR, Cougo & Zat (2013) citam, entre outras edificações ano, p. 14). também fadadas à ruína devido à negligência, o Sobrado A restauração e a conservação, por sua vez, predominam nº891/895, a casa que já encerrou diferentes funções (como em campos pluridisciplinares de pesquisa, como por exemp- residência familiar, pensão, restaurante, fábrica), antes que lo; Arquitetura, Engenharia, Química, Biologia, etc., com foco 219 Disponível em https://portoalegreabandonada.wordpress. nas problemáticas relativas aos objetos de restauração. Neste com/2013/01/13/casarao-dos-azulejos-andradas-891892/. Acesso em sentido, se faz necessário que a equipe multidisciplinar de 24 mar. 2018. 395 restauro trabalhe “[...] conjuntamente desde as primeiras fas- (TINOCO, 2010, p. 29). Conforme as Definições de Uso, a edifi- es do projeto, assim como nos exames iniciais do lugar até a cação, pós-restauro, continuará a ser o que é atualmente, um verificação final na entrega dos serviços. ” (TINOCO, 2007, 31). bar, local comercial denominado de Boteco Histórico, referên- No caso da casa da Rua da Praia (Sobrado nº 891/895), cia à própria fachada, o que condiz com a memória boêmia a equipe de arquitetura Studio 1 assumiu o desafio da sig- relacionada a esta rua, mais um viés a se ressaltar sobre sua nificante e aguardada obra que salvaria a importante fachada Declaração de Significância. do quase destino de ruir, sendo o responsável pela execução do projeto de restauro do arquiteto já mencionado, Lucas Volpatto. Este, que também havia coordenado a realização da recente restauração da Igreja Nossa Senhora das Dores em Porto Alegre, coincidentemente, endereçada na Rua dos An- dradas, por sua vez, amparada pela Lei de Incentivo à Cultura. Igreja que também repercute amplamente no imagético, em consequência na memória da rua. É importante destacar que a intervenção na edificação só acontece quando as ações de conservação e a preservação alcancem um limite em que apenas a ação do restauro pode dar conta diante da presente degradação do material, o que aconteceu como última ação e único meio de permanência do objeto aqui mencionado. A Carta de Restauro Italiana (1972) é outro documento que estabelece critérios técnicos para a restauração, com at- enção à salvaguarda e a autenticidade das obras de arte. Ela alude aos casos encontrados de elementos, mais especifica- mente aos azulejos, pois, segundo a carta, quando “[...] de- sprendidos de uma decoração de estuque, ou de pintura, ou de mosaicos ou de opus sctile, é necessário antes e durante seu traslado, mantê-los unidos com encolados de gesso.” 220 (Carta de Restauro Italiana, 1972, p. 05). Não obstante, sem- pre que necessário, deve-se fazer uso dos procedimentos pub- licados pelo Iphan221, dispostos nos manuais de conservação. Este artigo restringiu-se, como método linear de análise dos azulejos, a dois documentos de elaboração antecedentes Figura 5 - Pré-diagnóstico, identificação da azulejaria. à execução da obra da fachada: o Pré-Diagnóstico e o Memo- Fonte: Studio 1 – Arquitetura, 2017. rial Descritivo, documentação primordial, tanto para execução como para guarda e registro histórico, com o fim de uso fu- As tipologias de azulejo apresentadas na Figura 5 são turo, ambos realizados e cedidos pelo escritório de arquitetura comuns ao Rio Grande do Sul; ainda que não haja muitas var- Studio 1. iações, destaca-se o padrão de tulipa. Os azulejos de relevo Tinoco ressalta que “as intervenções de restauro respon- “[...] são provenientes da fábrica de Massarellos, Lisboa, Por- dem à garantia dos significados da paisagem urbana antiga, tugal, e no sul do país ganharam inúmeras variações, sendo necessários à identidade e à percepção construtiva da cidade.” a mais frequente a mudança de tonalidade.” (CURVAL, 2008, p. 93.) Sobre sua forma física e o detalhamento artístico dos 220 – Cartas Patrimoniais, site do IPHAN: www.iphan.gov.br azulejos, que embora de uma linha mais comum tornam o 221 Instituto de Patrimônio Histórico Nacional 396 revestimento da fachada singular, o Memorial Descritivo de- Porto Alegre, poderia supor um diferente meio climático que talha: ali se instaura, afetando assim de modo diferente a camada vítrica sobre o azulejo. O revestimento com azulejos artesanais azuis (coloração derivada do óxido de Diante da rua com nome de praia, mas sem praia, con- cobalto, pintado à mão), do tipo padrão torneada por um rio (categorizado por alguns como lago), é português em estampilha, intercala com complexo determinar os culpados de suas causas patológicas, azulejos relevados branco e amarela (colo- pensando na conservação futura, no mínimo, detalhar todas ração derivada do óxido de estanho e óxido as patologias analisadas, tudo que, da camada de biscoito ao de cadmio respectivamente) que marcam vidrado, foi documentado e registrado por imagens. friso, cercaduras e pilastras, dando então Voltado a uma tentativa de alcançar explicações sobre- valor único que motiva a sua restauração postas à localização do Sobrado e às problemáticas que nele e conservação.” (MEMORIAL DESCRITIVO, cabem, recorre-se ao escritor Luiz Fernando Veríssimo. Segun- 2017, p. 1) do ele: Porto Alegre vive à beira de alguns mal-en- O registro de tudo que envolveu o processo de restauro tendidos. Para começar, vive à beira de um foi fundamental, e cada etapa necessitou ser minuciosamente rio que não é rio. O Guaíba é um estuário, executada, para que nada viesse a alterar o estado original, ou como quer que se chame essa espécie e também por ser a documentação imprescindível para uma de antessala onde cinco rios se reúnem para futura atuação de outro profissional da conservação e restau- entrar juntos na Lagoa dos Patos. Mas todos ração. o chamam de Rio Guaíba (VERÍSSIMO, 1996, Entre as etapas principais está o mapeamento de todos p. 13). os azulejos, pois a partir disso foi possível se obter o levanta- mento, o cadastro das patologias encontradas, como também Conforme o Jornal Sul21222, o Rio Guaíba, se fosse defini- a realização do quantitativo necessário de novos azulejos para do como lago, de acordo com a legislação, perderia boa mar- preencher as lacunas dos que foram perdidos com o tempo. gem de preservação, artifício que interessaria à especulação mobiliária em “detrimento do interesse público da cidadania”. Veríssimo (1996), gaúcho de Porto Alegre, ainda em sua crônica, segue apresentando algumas das contradições refer- entes à rua em questão: A rua principal da cidade não existe. Você ro- dará toda a cidade à procura da Rua da Praia e não a encontrará. Usando a lógica – o que é sempre arriscado, em Porto Alegre – pro- curará uma rua que margeio o rio (que não é rio), ou que comece ou termine numa praia. Se dará mal. Não há praias no centro da ci- Figura 6 - Tabela da diferença de patologias entre as três cidades. dade, e nenhuma rua ao longo do falso rio Fonte: Curval, 2008. se chama “da praia”. Finalmente, desconfia-

A tabela acima demonstra as patologias frequentes so- 222 Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopubli- bre o material azulejar em cada cidade. Observa-se que Porto ca/2016/08/guaiba-rio-ou-lago-por-caio-lustosa/ “Em conclusão, a Alegre apresenta a perda de esmalte como a patologia que concepção do Guaíba como “lago”, o que o colocaria com margem de preservação reduzida, nos termos do Código Florestal, é um artificio se destaca em relação às outras cidades. Um questionamento que só favorece a especulação imobiliária, em detrimento do interesse que surge é se por sua localização geográfica na cidade de público da cidadania”. Acesso em: 06 abr. 2018. 397 do de que a rua principal só pode ser aquela que ser concentra maior parte do tráfego de pedestres no centro, você consultará a pla- ca e lerá “Rua dos Andradas”. (VERÍSSIMO, 1996, p. 13)

Estas contradições relacionam-se à forma a que seu Figura 7 – Fotografias de algumas das patologias encontradas nos aspecto físico (os limiares da Rua da Praia) reflete em sua azulejos. Fonte: Studio 1, 2017.

“topografia e geografia; como campo de forças de interação 224 social”, de modo a atuar sobre as pessoas, e ainda, tal como se A consultora Zeila Machado fez parte da equipe plu- apresenta, aqui também “como imagem remete ao conjunto ridisciplinar, amparando questões referentes ao restauro da de ideias, expectativas e valores que constituem o imaginário cerâmica com vidrado e às suas singularidades, e no acom- urbano” (FREIRE, 1997, p. 108). panhamento da restauração dos originais que sobreviveram Outra hipótese a respeito da utilização de revestimentos fixos à fachada, prezando pelos aspectos conservativos de vítricos no Brasil é defendida por Minuzzi (2001): “por causa mínima intervenção, ou seja, sem que desnaturalize o docu- das chuvas frequentes e do calor constante [...] o azulejo mento histórico, e da reversibilidade que, por sua vez, facilite tornou as residências mais frescas e reduziu os custos de con- uma intervenção futura. A figura abaixo mostra a equipe de servação e manutenção, já que era refratário à ação do sol e restauro realizando a limpeza de azulejos com a presença de impedia a corrosão das paredes pela humidade.” (MINUZZI, elemento espúrio, no caso, argamassa e cimento, material 2001 apud TINOCO, 2010). O que permite indagar se e Porto nocivo resultante de aplicações inadequadas. Alegre estaria também condicionada a essas degradações oc- asionadas pelo tempo. Em meio a questionamentos tais como esses, ocorreu a restauração dos azulejos. O estudo sobre eles teve início já na análise da situação encontrada, desenvolvendo-se nas etapas de remoção, com acompanhamento de toda a equipe, cada um em sua área de atuação. Contudo, mantendo o respeito pela matéria original, buscou-se resposta para meios de in- tervenção que se sobrepusesse à condição da mínima inter- 223 Figura 8 – Fotografia da limpeza e tratamento químico aos azulejos venção, reversibilidade e da distinguibilidade . originais. Fonte: Studio 1, 2017. A Figura 7 retrata (da esq. para dir.) algumas patologias encontradas nos azulejos, objetos do restauro: perda da ca- Um aspecto importante a destacar é o da distinguibili- mada de esmalte, sujidades, fraturas e reboco de cal aderido dade, forma que resulta tanto na intervenção de restauração ao biscoito. quanto na produção dos novos azulejos. Sendo esta última, em diálogo amplo entre a equipe técnica e a fábrica fornece- dora, relacionados à forma, tamanho e relevo; foram em- preendidos sequentes testes, principalmente para alcançar o azul azulejar.

223 Sobre o conceito de distinguibilidade por Césare Bran- di : “[...] deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem que por isso se venha a infringir a própria unidade 224 Zeila Maria De Oliveira Machado. Especialista em restauração de que se visa a reconstruir. (BRANDI, 2004, p. 47). Azulejos Históricos. 398 rios para a confecção dos azulejos, repetindo, sua caracterís- tica de sempre ser uma peça única, mesmo que em nível de reprodutibilidade. Neste sentido, a produção dos novos azulejos para o restauro do Sobrado necessitou de constante acompan- hamento para obter-se aprimoramento do material que preencheria as lacunas da fachada, até encontrar a distinção mínima necessária, sem que ocorresse qualquer falseamento, Figura 9 – Fotografia do teste de cores para o azulejo de estampilha, de modo a não induzir quem os observa ao engano de seu com vistas à distinguibilidade. Visita técnica da equipe à fábrica Luiz Salvador. Fonte: Studio 1, 2017. tempo. Tempo este que levou a equipe de restauro à Fábrica de cerâmica Luiz Salvador, fundada em 1952, no distrito de A visita à artista plástica Ana Flores, além de permitir Itaipava, Petrópolis, RJ. O fundador, Luiz Salvador, veio com a compreender um pouco de seu trabalho e sua relação com experiência de Alcobaça, Portugal. a memória voltada ao patrimônio arquitetônico, possibilitou também aprendizados de natureza técnica, relacionados à cerâmica, a matéria prima.

Figura 11 – Fotografia da visita técnica da equipe de restauro à fábrica Luiz Salvador/Petrópolis, RJ. Fonte: acervo da autora, 2017.

O dono da fábrica mostrou todo o processo, acompa- nhado das etapas e suas técnicas empregadas desde que a argila, enquanto barro, transforma-se em objetos cerâmicos vitrificados, até a obtenção do produto final, o azulejo, aqui especialmente o de referência portuguesa, o que manifesta a Figura 10 – Fotografia da visita técnica ao ateliê da artista Ana Flores. Trabalho, Série Elas que ainda estão, 2002-2005. importância da fábrica não apenas por seu potencial comer- F onte: acervo da autora, 2017. cial e turístico, mas por seu histórico português. É simbólico que a própria fábrica produza material para A artista relatou como procedeu para obter o molde, e o Museu Imperial, em Petrópolis, produzindo réplicas de ar- a possibilidade da reprodutibilidade dos azulejos de modo tefatos originais, nunca falseando, mas apenas apresentando a conseguir a continuação da série Elas que ainda estão, fri- um produto cunhado de valor da memória sobre a história do sando que o desmoldante é essencial. Explicou a diferença de museu. Tal contexto envolve a fábrica com o turismo local, cada peça, tamanho e forma, pois o material cerâmico costu- pensando a preservação da cidade com o próprio histórico ma retrair, empenar e até mesmo rachar. O próprio molde de cultural, usado em prol de si mesmo. gesso, com o constante manuseio, vai aos poucos perdendo os detalhes. Por isso, a importância da cautela e tempo necessá-

399 E A RUA CONTINUA: A IGREJA NOSSA SENHORA DAS DORES E O MUSEU DO PERCURSO NEGRO Além do Sobrado nº891/895, em 2017, a equipe de pluridisciplinar trabalhou também na restauração da Igreja Nossa Senhora das Dores. Na ocasião do início da primeira etapa da obra, o local foi escolhido para a entrevista225 do curador da Bienal do Merco- sul, cujo tema é O triângulo do Atlântico, prevista para 2018 - mais um prenúncio dos novos diálogos que a cidade viria a fazer, instaurada a necessidade de expor narrativas silencia- das pela história. Arte Contemporânea e Patrimônio Histórico, unidos, mostraram força quanto à problemática da perda de culturas, não obstante, dialetos. A Bienal do Mercosul reverbera dentro da Igreja. In- stalação com áudios de narrativas que ocupam um grande Figura 12 – Fotografia dos moldes. Visita técnica da equipe à fábrica Luiz Salvador. Fonte: acervo da autora, 2017. espaço, e que, entretanto, lembra de sua falta de espaço, pautada no esquecimento. Obra instada sobre idiomas em Assim, os azulejos tomam forma e destinam-se à cidade extinção, de culturas que estão se perdendo, grande proble- de Porto Alegre. Os originais restaurados, paralelamente aos ma da atualidade, fincada nos trâmites históricos, de lutas e novos, criam uma harmonia, preenchendo a fachada, com- confrontos, diante dessas narrativas polifônicas, como explica pletamente restaurada (sua estrutura). o texto da curadoria, através dos membros iniciais na porta da Os azulejos deixam de se omitir e esconder-se do tempo. igreja, narrativas que, juntas, criam potência para que se abra Agora reluzentes em cor, chamam a atenção dos passantes espaço a estas problemáticas das relações culturais. desavisados, e do também do flâneur, dessa vez, relacionado Segundo Pellauer (2010), “a narrativa que primeiro le- ao aspecto curioso de um turista. A fachada, por sua vez, to- mos ou ouvimos não é realmente o que temos que entender mada de valoração e novas perspectivas de diálogo com a ci- se quisermos ter uma compreensão da história contada, mas dade, espera que, quando tomada de visibilidade e memória, sim a estrutura profunda que dá origem a – explica – essa possa sobreviver, aos cuidados da preservação, pela própria história.” (PELLAEUR, 2010, p. 108). O autor explica a possibi- 226 cidade, mediante as possibilidades que se obtêm através de lidade de polifonia na narrativa a partir de Mikhail Bakhtin legislações ou a almejada educação patrimonial. ao afirmar que ela está onde “seja impossível distinguir um narrador geral, um romance no qual cada personagem pareça falar por si mesmo. (ibd. 2010, p. 110) Para Gondar (2005), “o conceito de memória social é, além de polissêmico, transversal ou transdisciplinar, ou seja, ela é uma importante baliza diante das tentativas de autori- tarismo conceitual.” (GONDAR, 2005, p.12).

225 Disponível em: http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/ Variedades/Exposicao/2017/05/617596/Resgate-de-idiomas-na- tivos-sera-uma-das-propostas-da-Bienal-do-Mercosul-em-2018. Acesso em: 26 de abr. 2018 226 BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renas- Figura 13 – Fotografia do resultado entre o antigo e o novo azulejo. cimento: o contexto de François Rabelais. 3ª ed. São Paulo/Brasília: Fonte: Studio 1, 2018. Hucitec/EDNUB, 1993. 400 A Igreja Nossa Senhora das Dores, destacada como mo- Assim, repensar o espaço urbano como patrimônio ur- numento e patrimônio arquitetônico, tem seu nome ligado bano é levar em consideração a importância do restauro para à lenda do negro Josias cujo fim foi no pelourinho em frente a memória social. Conforme consta no artigo 216 da Consti- a ela, posto que injustamente. Em vista disso, percebe-se o tuição de 1988, que o próprio sujeito vivente se veja como forte vínculo histórico da igreja com os cidadãos e a cultura agente potencializador de sua própria cidade, enfrentando que formou a cidade de Porto Alegre, como na raiz do Brasil. campos de poderes políticos e interesses de mercado, para Vínculo observado ainda hoje na prática de culto de religiões que prevaleça sua forma de cultura, representações sociais, afrodescendentes, ao fazerem referências a santos presentes. narratividades, identidade e memória. Conforme Freyre (1987), a política de assimilação não esteve Considerações finais só no sistema de batismo, mas “consistiu principalmente em Este artigo teve como objetivo refletir sobre a importân- dar aos negros a oportunidade de conservarem, à sombra dos cia das salvaguardas de construções históricas, em todos os costumes europeus e dos ritos e doutrinas católicas, formas e seus âmbitos, da legislação à necessidade dos sujeitos viven- acessórios da cultura e da mítica africana” (p. 355). tes dos locais mencionados. Tema e objeto de pesquisa que A Igreja, que está incluída na Paisagem Cultural presente se revestem de relevância por contribuir com as discussões na Rua da Praia, defronta-se com o Museu do Percurso Ne- acerca de preservação, conservação, restauração e memória gro227. Este museu está no percurso de locais territorializados, social. Encerra, num primeiro momento, a revitalização por identificados com a cultura afrodescendente, visto que, dois meio de obras de restauração na Rua dos Andradas, seja pontos do museu estão presentes próximos à Igreja, como na fachada arquitetônica da Casa dos Azulejos, Sobrado nº também no limiar final da rua, a Praça Brigadeiro Sampaio. 891/895, ou no interior da Igreja Nossa Senhora das Dores, Para exaltar a importância da paisagem cultural da rua e ainda, na reativação da memória oral de culturas postas à vinculada entre discursos de narratividade da memória pre- margem. sentes no patrimônio edificado, Santos (2002) defende uma A participação na equipe pluridisciplinar de restauro, prática direcionada “aos poderes públicos mais próximos ao bem como as observações diretas feitas a partir deste lugar, cidadão, sem deixar, todavia, que este seja esmagado por permitiram reflexões que conduzem, em seu histórico, a interesses localistas ou manipulações de grupos municipais” diálogos transdisciplinares, que se ramificam, estenden- (SANTOS, 2002, p .27). do-se para temas como a representatividade na memória Junto aos diálogos e narratividades, a educação patrimo- em interações sociais, relações entre patrimônio histórico e nial é fundamental, por meio da oferta de conteúdo histórico narratividade do espaço urbano. Esses diálogos também se e de memoração, como a criação do futuro Memorial da Igreja relacionam com a arte contemporânea gaúcha, a exemplo da das Dores - parte da próxima etapa de restauro prevista para obra da artista plástica Ana Flores, que utiliza a reprodução a cidade. dos azulejos em outras formas plásticas como conceito poéti- Nessa perspectiva, questiona-se se serão oferecidas co, fornecendo pauta para a discussão sobre esquecimento ferramentas, pontos de conexão para que se crie espaço e perante a memória. estudo para essas narratividades cunhadas em memórias de Os azulejos portugueses, permeados de historicidade e vivências, transportadas tanto pelo Patrimônio Arquitetôni- memórias, assim como o interior da Igreja foram a base para co quanto pela Paisagem Cultural. Santos (2002) reforça a os atravessamentos de vários campos, presentes nesse arti- importância da memória urbana quando expõe que “Cada go, que buscou trazer a temática a partir de uma perspectiva coletividade e cada pessoa são testemunhas integrais do transdisciplinar. presente, ainda que nem sempre possam avaliá-lo. E, parale- lamente, cada pessoa (ou grupo) é também um testemunho vivo de um mundo tornado próximo.” (SANTOS, 2002, p.117).

227 Saiba mais em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/gpn/default. php?p_secao=158. Acesso em: 24 abr. 2018. 401 891/895, RUA DOS ANDRADAS: CONFLUENCES COLETIVO Arqueologia de Porto Alegre. [Ofício] 20 jul. BETWEEN MEMORY AND HERITAGE SITES 2017, Porto Alegre, RS [para] IPHAN do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 15 pág. Informações sobre o potencial arque- ABSTRACT ológico do lote situado na Rua dos Andradas, n. 891/895 e solicitação de medidas de proteção. The present article consists of a survey of the restoration process of the architectural façade of Casa dos Azulejos (liter- CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes ally, house of decorated Portuguese ceramic tiles), as well as de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. the interior of Nossa Senhora das Dores Church, both located on the important Andradas Street, in Porto Alegre’s historic ______. O tempo das histórias. In: ____. A district (Rio Grande do Sul state, southern Brazil). Largely invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 151-171. based on direct observation, I suggest a reflection on the importance of safeguarding historic sites in every aspect, in- CHOAY, A alegoria do Patrimônio. Trad. Luciano V. M. cluding legislation and the necessities of people living in such São Paulo: Editora Estação Liberdade: UNESP, 2001. sites. Classified in the city as Inventoried Property for Struc- tural Reasons, and dating from circa 1866, Casa dos Azulejos is one of only five remaining houses covered with historic az- COUGO, Francisco; ZAT, Letícia. Casarão dos Azule- ulejos in Porto Alegre. I observe the house as a crossroads of jos (Andradas, 891/895): Porto Alegre abandonada. memory and social relations, heritage and urban narratives. 13/01/2013. Disponível em: . Acesso em 30 mar. 2018. reproduces those azulejos in different manners, as poetic concepts and starting points for discussions on forgetfulness CUNEGATTO, Thais. Etnografia na Rua da Praia: Um and memory. Similarly, in the present article, the Portuguese estudo antropológico sobre cotidiano, memória e formas de azulejos are the center for a transdisciplinary research on sociabilidade no centro urbano porto-alegrense. 2009. 138 memory, identity and the city. p. Dissertação de Mestrado (Antropologia Social)- Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Keywords: Heritage, Memory, Azulejo, Ceram- Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2009. ics, Restoration. CURVAL, Renata B. F. Azulejaria portuguesa no patri- REFERÊNCIAS mônio edificado do Sul do Brasil: 2008. 92 p. Dissertação ALCÂNTRA, Dora. (org.). Azulejos na cultura luso- de Mestrado (Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cul- -brasileira. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico tural) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal Artístico e Nacional, IPHAN, 1997. de Pelotas, Pelotas, RS, 2008. 1.

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403 PESCA ARTESANAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA SOB A PERSPECTIVA DOS (DES)CAMINHOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Juliana Pugliese Christmann1 Universidade La Salle, Brasil [email protected]

Maria de Lourdes Borges2 Universidade La Salle [email protected]

Cleusa Maria Gomes Graebin3 Universidade La Salle [email protected]

O objetivo deste artigo é de averiguar uma aproximação entre a trajetória da pesca artesanal no Brasil e a trajetória da economia solidária do ponto de vista das políticas públicas. As políticas públicas se caracterizam por ações estatais que tentam suprir a participação de grupos que ainda estão vin- culados ao signo da exclusão (GOHN, 2011). A pesca artesanal tem sido discutida por Diegues (1999, 2004) que enfatiza que ela não é só mercantil, mas sobretudo identitária marcada pela ideia de associação com a natureza e dependência da mesma. Por sua vez, a economia solidária é estudada como uma alternativa de geração de renda para as pessoas menos favorecidas, dentro de um modelo de autogestão (SENGE, 2003; GAIGER, 2009; GAIGER; FERRARINI; VERONESE, 2015)

1 Doutoranda em Memória Social e Bens Culturais, possui graduação em Comunicação Social Relações Públicas pela Universidade Luterana do Brasil (2006) e especialização em Gerenciamento Ambiental (2012) pela mesma Instituição. Mestre em Memória Social e Bens Culturais (2015) - pelo UNILASALLE - Canoas/RS. Atua como Consultora em Comunicação e Sustentabilidade. Bolsista CAPES na modalidade isenção de taxas. Insti- tuição: UNILASALLE (Bolsista CAPES) e-mail: juliana.christmann1517@ unilasalle.edu.br 2 Psicóloga. Doutora em Administração pela UNISINOS (2012), Professo- ra do Programa de Pós Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade La Salle. Coordenadora da Incubadora de Empreendimen- tos Solidários do Unilasalle. 3Historiadora. Doutora em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professora e coordenadora adjunta do Programa de Pós-Grad- uação em Memória Social e Bens Culturais. Coordenadora do Museu e Arquivo Histórico La Salle. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Memória, Cul- tura e Identidade. Pesquisadora voluntária do Arquivo Histórico do RS. 404 que pode ser entendido como identitário. Para a realização O autor ainda ressalta outras características das comunidades desta pesquisa, foi realizado um levantamento a partir de da- tradicionais pesqueiras, como as relações simbólicas com a dos secundários em sites e artigos e realizada uma análise do terra e a água; o território ocupado; e os laços familiares ali conteúdo. Os resultados das análises mostram que a trajetória estabelecidos. Portanto o manejo dos recursos naturais é mais de ambas as temáticas demonstram similaridades a partir de do que a relação mercantil da pesca, é identitária. É uma a re- políticas públicas que envolvem o desenvolvimento de cada produção cultural e social que contempla percepções e repre- cadeia produtiva, acesso a linhas de fomento, programas que sentações em relação ao mundo natural marcadas pela ideia estimulam o ensino e o envolvimento de cada população de de associação com a natureza e dependência de seus ciclos forma organizada para que possam exercer o seu papel in- (DIEGUES, 1999). stitucional de reconhecimento e controle social. Extinção do Para este artigo, inicialmente apresenta-se o contexto da Ministério da Pesca (2015) e da Secretaria Nacional de Econo- pesca artesanal e da economia solidária. Em seguida busca-se mia Solidária (2016) e realocação das temáticas em subsecre- conhecer o conceito das políticas públicas, quais os anseios, tarias mostram alternâncias que dificultam sua continuidade. necessidades que foram surgindo no decorrer dos anos no Os resultados apontam para um futuro desafiador para ambas país. A exploração teórica segue para o levantamento das as atividades, bem como para a própria implementação das políticas públicas existentes que atendam a pesca artesanal conquistas até o presente momento, devido ao contexto de e as que atendem a economia solidária, aqui também se ex- uma mudança institucional e dos (des)caminhos das políticas plora os grandes eixos temáticos que elas versam. Também públicas no Brasil. são explorados trabalhos de pesquisa que já apontam esta sinergia entre as mesmas e estas discussões aqui são imple- Palavras-chaves: polítcas públicas; economia mentadas com um quadro comparativo entre elas. solidária; pesca artesanal A rede que começa a surgir com a construção comparada entre as políticas públicas da Economia Solidária e da Pesca INTRODUÇÃO Artesanal são expostas no decorrer deste trabalho, com algu- mas expectativas e situações que demonstram o atual mo- Este trabalho se propõe em averiguar as aproximações mento da evolução ou involução das mesmas em relação aos das políticas públicas da economia solidária e da pesca ar- avanços e implementações esperadas. Outro ponto que emer- tesanal. Entende-se que a população alvo de tais políticas giu é a sinergia e ampliação de discutir as políticas públicas de públicas se assemelham especialmente nos aspectos de alta forma mais interligada uma vez que os atores institucionais vulnerabilidade social. Além disso, ambas as populações são, são os mesmos. muitas vezes, engajadas em movimentos de base social e estão sob o estigma da exclusão (GOFFMAN, 1975). Tanto no contexto da economia solidária quanto da pesca artesanal, as DESENVOLVIMENTO ações realizadas buscam alternativas para fomentar a econo- Esta seção apresenta inicialmente o contexto da pesca mia dentro de um sistema mais justo e igualitário, fora dos artesanal e da economia solidária, em seguida aspectos das padrões do sistema capitalista. Para entender o cenário em políticas públicas e finaliza com uma interseção entre as que se propõe observar as aproximações aqui propostas, são políticas públicas dos dois contextos em tela. feitos alguns movimentos para conhecer os atores que são alvos das políticas públicas. O contexto da pesca artesanal A pesca artesanal, conforme Diegues (2004), é elaborada a partir da experiência, onde os pescadores são imbuídos de No Brasil a atividade da pesca artesanal já era prática uma intencionalidade, e são transmitidos oralmente ao lon- comum dos indígenas, antes do próprio “descobrimento dos go de gerações. Trata-se de um saber composto através da portugueses”. A evidência deste fato se dá pelo registro de interação entre gerações que falam e gerações que ouvem e pesca em sua alimentação e a própria formação dos samb- ressignificam estes saberes, a partir da dinâmica ambiental.

405 aquis4, formado pela acumulação artificial de conchas de sendo o conhecimento transmitido de pai para filho ainda na moluscos, oriundos de vestígios da alimentação de grupos hu- infância. Foi expressiva a atuação das mulheres na atividade manos. Sítio arqueológico cuja composição predominante de pesqueira, inclusive profissionalmente documentadas. Con- conchas, são considerados edificações intencionais, estavam forme Garcez e Botero (2005), durante os períodos de defeso presentes em todo litoral. Posterior a área litorânea a pesca foi (proibições de pesca), são buscadas opções econômicas, como expandindo para áreas ribeirinhas. Em muitos locais do país a serviços temporários sem carteira de trabalho assinada para cultura da pesca é conhecida por uma denominação específi- não se perder o seguro desemprego (benefício governamen- ca como o jangadeiro, no litoral nordestino, a da caiçara, no tal que permite auxílio financeiro temporário aos pescadores litoral na região Sudeste; e a do açoriano, no litoral de Santa artesanais durante o período de defeso). Catarina. No Rio Grande do Sul as principais origens étnicas Ainda de acordo com Garcez e Botero (2005), não há são os açorianos e os afrodescendentes (PERUCCHI, 2015). uma política de longo prazo para o setor pesqueiro em todo Estes aspectos também foram apontados por Litle (2002, o território brasileiro, sendo a pesca normalmente tratada p.9) e Diegues (1996, p.428) em outras localidades do Brasil, de forma emergencial pela necessidade de resoluções ráp- como “formas comunitárias de apropriação de espaços e re- idas, como nas quedas de safra das espécies comerciais. Os cursos naturais” baseadas num “conjunto de regras e valores autores também apontam a necessidade de programas de consuetudinários, da “lei do respeito”, e de uma teia de reci- alfabetização, viabilização de documentação pessoal e cursos procidades sociais onde o parentesco e o compadrio assumem profissionalizantes visando agregação de valor ao pescado um papel preponderante” (LITLE, 2002). Estas características para fomentar a independência dos pescadores. vão influenciar os usos que os mesmos fazem de seus terri- Os impactos ambientais relacionados diretamente tórios aqui podem ser entendidos tanto os terrestres como os ou indiretamente com a pesca também ocorrem devido à aquáticos. ineficiência da fiscalização ambiental. Por esta razão, os Em relação aos territórios, eles também são imbuí- pescadores artesanais têm abandonado áreas de pesca com dos de características físicas, no que diz respeito ao caráter as quais estavam familiarizados e têm percorrido distâncias geográfico. As organizações territoriais previstas na lei es- maiores em busca de pescarias mais rentáveis (PAULA; SUER- tadual (nº10.350/1994) em relação as águas são as regiões TEGARAY, 2013). hidrográficas, composta por suas bacias hidrográficas. Outras organizações são utilizadas pelo Governo federal, como por O contexto da economia solidária exemplo, as colônias de pescadores, que são 43 instituições registradas no Estado. É importante colocar esta organização A economia solidária chamou a atenção da academia, federal, pois é nela que é feito o Registro Geral da Pesca (RGP) e mais tarde das políticas públicas, quando trabalhadores que é a fonte dos números oficiais dos pescadores artesanais. em situação de vulnerabilidade social começaram a se unir E ainda a iniciativa que provem dos próprios pescadores que em coletivos voltados para a geração de trabalho e renda são os fóruns de pesca artesanal. e foram desenvolvendo maneiras diferentes de gestão da No contexto da pesca artesanal dentre os principais tradicional, tais como a autogestão. Essa diferenciação entre problemas enfrentados pelos pescadores está a ausência de os empreendimentos tradicionais e os da economia solidária documentação, analfabetismo, baixa renda, conflitos com ocorre porque “os membros de tais iniciativas estabelecem outros usuários do sistema hídrico, poluição e a modificação entre si vínculos de reciprocidade como um dos fundamentos de habitats que interferem nas atividades da pesca. No le- de suas relações de cooperação [...] cumprindo funções sub- vantamento realizado no RS, constatou-se que a atividade sidiárias em domínios como saúde, educação e preservação de pesca artesanal normalmente tem início na infância, em ambiental” (GAIGER, 2011, p. 80). Além disso, muitos dos continuidade à principal atividade e ou profissão dos pais, trabalhadores que participam de empreendimentos que buscam nas diretrizes da economia solidária respaldo para 4 A origem da palavra é Tupy-guarani dos índios pré-cabralino. Disponível: https://www.revistas.usp.br/revmae/article/view- o seu modo de trabalho, atuam também em outros cenári- File/109409/107889. Acesso em 26.08.2017 os, tais como o da relação comunitária em prol de melhores 406 condições de moradia e convívio social; a busca pelo uso de Utilizou-se como referência as retomadas conceituais de Frey produtos sustentáveis; a preocupação com o meio ambiente (2000) e Souza (2006) que compilam as principais definições e principalmente, a busca pela “ampliação da discussão junto e linhas teóricas do surgimento das políticas públicas. ao Estado para o desenvolvimento de políticas públicas que Os estudos sobre políticas públicas surgem na década beneficiem toda a comunidade ou território local” (BORGES; de 50 nos Estados Unidos e na Europa surgem as primeiras SCHOLZ, ROSA, 2014, p. 89). abordagens da década de 70 (SOUZA, 2006; FREY, 2000). No Salienta-se que a economia solidária é vista como um Brasil, as pesquisas surgem na década de 90, de forma mais ideal, ou seja, na maioria das vezes não é possível verificar espaçada e centrada em instituições ou à caracterização dos na realidade uma forma pura de aplicação dos preceitos da processos de negociação das políticas setoriais específicas economia solidária, sendo que muitas vezes, alguns empreen- (FREY, 2000). Souza (2006) destaca as principais definições dimentos que tencionavam ser da economia solidária acabam encontradas para políticas públicas são: por se adaptar ao capitalismo (LIMA; DAGNINO, 2013). Como um campo dentro do estudo da política que anali- A economia solidária pode ser vista como uma iniciativa sa o governo a partir de grandes questões públicas. popular voltada para a diminuição da pobreza e também como Como um conjunto de ações do governo que irão produz- uma experiência que “emerge em diversos contextos sociais ir efeitos específicos. urbanos e rurais, muitas vezes por meio de logicas proprias de Vista como a soma das atividades dos governos, que sustentaço, para nao apontar como sobrevivencia” (BORGES; agem diretamente ou através de delegação, e que influenci- SCHOLZ; CARGNIN, 2015, p.117). Foram também desenvolvi- am a vida dos cidadãos. das políticas voltadas para o incentivo voltado para o “desen- A política pública como escolha do que o governo escol- volvimento de iniciativas coletivas de trabalho, contudo ainda he fazer ou não fazer. superficiais, tendo como recorte historico o final do seculo 20” Definição mais usual traz que as decisões e análises sobre (BORGES; SCHOLZ; CARGNIN, 2015, p.117). política pública implicam responder às seguintes questões: Um elemento importante é que as políticas públicas quem ganha o quê, por quê e que diferença faz (SOUZA, têm pouca eficácia sobre a redistribuição de renda no Brasil, 2006). pois “segundo Gaiger (2011, p. 79), esta comprovada a ine- As abordagens teóricas que lançam luz sobre as políticas ficacia do crescimento economico como fator de distribuiço públicas estão imbricadas em um campo multidisciplinar. Seu de riqueza, bem como crescem programas de transferencia objeto de análise está nas explicações sobre a sua natureza e de renda” (BORGES; SCHOLZ; CARGNIN, 2015, p.117). Nesse seus processos e tem como perspectiva o todo que ela englo- sentido, é mister procurar entender melhor as políticas pú- ba. Portanto os indivíduos, instituições, interações, ideologia blicas da economia solidária e mais ainda quando se procura e interesses contam para as políticas públicas, mesmo que fazer uma relação com as políticas públicas de pesca como as coexistam diferenças. Elas ainda se transformam em planos, propostas neste artigo. programas, projetos, bases de dados ou sistema de infor- mação e pesquisas (SOUZA, 2006). Políticas Públicas Pode-se entender as políticas públicas como o “Estado Toma-se como ponto de partida que as políticas públicas em ação”, isto é o Estado implantando um projeto de governo, são decisões que envolvem questões de ordem pública, com através de programas, de ações voltadas para setores espe- abrangência ampla e que buscam a satisfação da coletividade. cíficos da sociedade. E constitui um território holístico que é Elas se referem a uma concretização de ação governamental composto de várias disciplinas e teorias (SOUZA, 2006). que envolvem a participação de atores formais e informais Ainda as políticas públicas refletem os conflitos, inter- no curso desse determinado objetivo. Salienta-se que a par- esses e arranjos sociais, eles estão presentes nas decisões de ticipação da sociedade civil é contemporânea e reflete uma governo. O envolvimento de todas as partes é essencial para modernização do Estado, ainda é uma forma de regular as o sucesso de elaboração e implementação das mesmas. Os estruturas e gastos governamentais do Estado (UEMG, 2012). canais de comunicação entre as partes são fundamentais para

407 que haja a mediação dos interesses que ali estão envolvidos. A formulação de políticas públicas constitui-se no A relação entre sociedade e Estado são fundamentais para o estágio em que os governos democráticos traduzem seus exercício da cidadania (HÖFLING, 2001). E é para ilustrar as propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que políticas públicas e a participação se faz um breve histórico da produzirão resultados ou mudanças no mundo real. (SOUZA, inclusão dos espaços democráticos na formulação das mes- 2006). Essa prática está vinculada aos Estados democráticos mas no Quadro 1. e Lowi (1964, 1972), conforme consta em Souza (2006). de-

Quadro 1: Histórico dos espaços democráticos nas políticas públicas no Brasil

Período Contexto Os espaços democráticos começam a surgis neste período com os movimentos sociais. O conceito da democracia na sociolo- Anos 70 gia está intimamente vinculado a questão do signo da Exclusão, isto é, fato de estar ou não incluso ou excluso no processo. Este período é marcado pelas relações sindicais que buscam a questão do povo de forma genérica. Este momento inicia com o movimento das eleições Livres que culminam com a Constituição de 88. Diversas leis surgem e que reforçam essa questão Anos 80 da Participação Popular, e a participação da sociedade civil nesses movimentos são fortes e tratam questões como: as mulheres negras, situações ecológicas, as lideranças sindicais, partidos políticos também as ONGs. Este pode ser entendido como o século das mobilizações de massa e de minorias populares organizadas. Isso corrobora no sentido que são conquistas desses espaços organizados e que também lutam contra hegemonia de poder. A importância Anos 90 deste reflexo na questão do local é o fato de que os conflitos da economia global interferem no local. e é essa abertura nas políticas públicas que as comunidades passam a intervir no sistema. Fonte: Extraído de Gohn (2011). senvolveu formatos das políticas públicas em que vão estar públicas e que apresentam uma linha de semelhança que por a arena de decisão que envolvem disputas, rejeição e apoio. vezes se conectam. Deste ponto de vista elas podem ser: As experiências da economia solidária no Brasil já es- Distributivas, decisões do governo que beneficiam al- tão consolidadas enquanto políticas públicas e contam com guns grupos sociais ou regiões especificas em detrimento de diversos programas, projetos e ações que são promovidas outros; por diversas instituições da sociedade civil (religiosas, mobi- Regulatórias, que tem mais visibilidade pública, que lizações sociais, entre outras). Elas trabalham com temáticas são mais burocráticas e que envolvem negociações políticas ligadas aos movimentos da agroecologia, de segurança ali- e setoriais; mentar e de povos e comunidades tradicionais (quilombolas, Redistributivas, que atinge maior número de pessoas e extrativistas, ribeirinhos, indígenas etc.), com trabalho de ar- impõe perdas para alguns grupos e tem um futuro incerto de tesanato e reciclagem de resíduos, servindo como estratégia algum retorno efetivo. Exemplo mais comum são os dos siste- de inclusão social e produtiva (SILVA, 2017). mas tributário e previdenciário; A possibilidade de fomento por meio da economia Constitutivas, que lidam com procedimentos (SOUZA, solidária no auxílio as comunidades tradicionais é o que es- 2006). tabelece a relação com a pesca artesanal aqui focalizada. A situação de vulnerabilidade deixa ambos (a população da As políticas públicas da economia solidária e da pes- economia solidária e a dos pescadores artesanais) a margem ca artesanal do sistema econômico produtivo dominante. A situação social destas comunidades carece de atenção e subsídio governa- Dentro deste prisma geral das políticas públicas, bus- mental. cou-se duas vertentes a serem exploradas neste artigo, a As políticas públicas da economia solidária estão prior- economia solidária e a pesca artesanal, são alvos de políticas itariamente ligadas à luta contra a pobreza e aos menos fa-

408 vorecidos. Nos últimos anos suas áreas de atuação foram au- de abrangência nacional da pesca artesanal e foi realizada mentando e surgiu a necessidade da interlocução com outras uma interseção entre os achados. políticas de estado como: educação, saúde, meio ambiente, A organização das leis mapeadas se deu a partir dos trabalho, habitação, saúde, tecnologia e etc. Situação essa eixos propostos no 1º Plano Nacional de Economia Solidária que faz com que se busquem ações com maior interligação na de 2015 (SILVA, 2017). Este plano define os Instrumentos de resolução das mazelas sociais (PRAXEDES, 2009). Políticas Públicas de Economia Solidária no Brasil, que fazem Essa interligação entre as políticas públicas, seja pela parte do Projeto de Lei 4685/2012. O mesmo foi aprovado população alvo ou pela temática, deveria ser explorada e dis- pela Câmara de Deputados federais em 2017 e ainda se en- cutida de forma conjunta pelo poder público. Provavelmente contra em apreciação no Senado Federal. o cidadão alvo da inclusão proposta pela economia solidária, Para elucidar estas possibilidades o Quadro 2 apresenta necessita do atendimento à saúde pública, fomento para a a os eixos do Plano Nacional da Economia Solidária, a prior- habitação entre outras políticas e programas governamentais. idade destes e as leis e projetos da Pesca Artesanal que tem A economia solidária surge como um contraponto da afinidade com as áreas expostas no Plano. classe trabalhadora à hegemonia do capitalismo. Nesse sen- tido, pode ser feito um paralelo com a situação da pesca ar- Quadro 2: Eixos e prioridades do Plano Nacional da Economia tesanal no que se refere à luta e espaço para manterem suas Solidária e Políticas da Pesca Artesanal atividades frente ao desenvolvimento que não prioriza os usos tradicionais. Salienta-se que os grupos de pescadores são pi- Eixo: Produção, Comercialização e Consumo solidários oneiros na utilização dos preceitos da economia solidária em Economia Solidária – dispõe sobre a Organização da pro- suas organizações comunitárias historicamente (SILVA, 2017). dução e distribuição Promoção da comercialização solidária. Com a Certificação e reconhecimento de EES, produtos e Para Silva (2017) algumas medidas simples a serem ad- serviço Tratamento Tributário e tarifário diferenciado. otadas poderiam fortalecer as comunidades de pescadores artesanais com políticas públicas que: (i) estimulassem as Pesca Artesanal proximidades geográficas, o que fortalece os sentimentos de • Lei Federal Nº 9537 de 1997, dispõe sobre a Segurança do tráfego pertença na comunidade e solidariedade; (ii) fornecessem aquaviário em águas sob jurisdição nacional • PlanSeQ Ecosol é uma das ações do PNQ, por meio da SENAES. O serviços técnicos de extensão com visão construtivista e que Plano conta com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), estimulasse a participação e (iii) aplicassem de pesquisa-ação do Orçamento Geral da União e com a contrapartida de entidades par- que envolva a geração de tecnologia e que gere apropriação ceiras (governamentais e não-governamentais) de conhecimentos para os envolvidos. • Lei Federal Nº 10.779 de 2003, dispõe sobre a Concessão do Benefício Segundo o Instituto da Pesca, a economia solidária pode do Seguro Desemprego, durante o período do defeso, ao Pescador Profissional que exerce atividade pesqueira de forma artesanal. ser uma forma de promover a sustentabilidade da pesca ar- • Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar tesanal de forma sustentável, desde que conte com o poder (PRONAF), que promove linha de crédito concedida para compra de público. Este deve promover ações que insira inovações que equipamentos de pesca e aquicultura. sejam construídas socialmente, isto é que conte com a partic- Eixo: Crédito e Finanças Solidárias ipação da sociedade na discussão e formulação das mesmas Economia Solidária - Promoção das Finanças Solidárias; (FIESP, 2013). Reconhecimento Institucional; Acesso ao crédito Produção e disseminação de conhecimentos Possíveis interseções entre as políticas públicas da Pesca Artesanal economia solidária e da pesca artesanal • Defeso – é o seguro é uma assistência financeira temporária con- Nesta subseção, a fim de esclarecer quais seriam as pos- cedida ao pescador profissional que exerça sua atividade de forma sibilidades de atuação conjugada das políticas públicas da ininterrupta, individualmente ou em regime de economia familiar (MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2016). economia solidária e da pesca artesanal foi realizada uma pesquisa exploratória sobre a legislação e projetos existentes

409 Eixo: Educação e Conhecimentos para Autogestão como principal objetivo promover o desenvolvimento sus- tentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. A ênfase da Economia Solidária - Formação de educadores populares e com trabalhadores de auto-gestão Elevação de escolaridade PNPCT recai sobre o reconhecimento, fortalecimento e garan- incubação, assessoramento técnico e tecnologias sociais tia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômi- cos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, às Eixo: Ambiente suas formas de organização e às suas instituições, garantindo Economia Solidária – Institucional; Gestão pública e orça- a ocupação dos territórios, sua organização social própria e o mento; Marco legislativo; Participação, diálogo e controle social uso equilibrado dos recursos naturais. Ainda o Conselho Na- cional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), previs- Pesca Artesanal to Decreto nº 8.750/2016, é um órgão de caráter consultivo, • Decreto Lei Federal Nº 221 de 1967 Dispõe sobre a proteção e es- integrante da estrutura do Ministério de Desenvolvimento tímulo a Pesca. Social e Combate à Fome (MDS) (MAZURANA, 2016). • Decreto no 4.887/2003 - direitos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, exposto na Convenção 169 da OIT Ainda em tramitação, no âmbito federal, registra-se a • A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos existência de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular de Ter- e Comunidades Tradicionais (PNPCT), estabelecida no Decreto nº ritório e Comunidade Pesqueira, “que dispõe sobre o recon- 6.040/2007, tem como principal objetivo promover o desenvolvimen- hecimento, proteção e garantia do direito ao território de to sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais comunidades tradicionais pesqueiras, tido como patrimônio • O Decreto nº 8.750/2016 – Institui o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) é um órgão de caráter consultivo, cultural material e imaterial sujeito a salvaguarda, proteção integrante da estrutura do Ministério de Desenvolvimento Social e e promoção, bem como o procedimento para a sua identifi- Combate à Fome (MDS). cação, delimitação, demarcação e titulação” (MPP, p.1, 2012). A atividade foi lançada em 2012 com a Campanha Nacional Fonte: Adaptado dos eixos propostos no Plano Nacional de Econo- pela Regularização do Território das Comunidades Tradicion- mia Solidária de 2015, Silva (2017) e Silva e Walter (2015). ais Pesqueiras pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras 5 A partir do que foi apresentado no Quadro 2, pode- Artesanais (MPP) . No ano de 2017, o projeto está na fase de se constatar que os eixos propostos no Plano Nacional de articulação e coleta de assinaturas. Economia Solidária têm aderência as principais legislações identificadas neste levantamento. Verifica-se que as políti- CONSIDERAÇÕES FINAIS cas públicas estão mais centradas na produção, uma vez que O objetivo deste artigo foi o de averiguar uma aproxi- estão ligadas a fomentar a renda destes grupos. O acesso ao mação entre a trajetória da pesca artesanal no Brasil e a tra- crédito também está muito próximo as demandas econômi- jetória da economia solidária do ponto de vista das políticas cas. Em relação aos eixos mais próximos a promoção de em- públicas. A partir de uma interseção entre as políticas públicas poderamento e gestão foram registrados um número menor dos dois contextos, verificou-se um declínio de alguns mov- de iniciativas. imentos de governo da economia solidária e da pesca arte- Cabe destacar alguns pontos no que se refere à legislação sanal com a extinção da Secretaria Especial e de Ministério que dizem respeito as comunidades tradicionais. O Brasil e a necessidade de uma interação maior entre as políticas tem papel relevante referente aos direitos de comunidades públicas existentes. Uma conjunção de discussões e busca de tradicionais presente no Decreto no 4.887/2003, onde fica estabelecida a consulta junto aos povos indígenas e outras populações tradicionais sobre decisões que interfiram em 5 De acordo com seu sitio eletrônico o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP) é formado por homens e seus direitos (INESC, 2015). mulheres que produzem alimentos saudáveis e contribuem para a Corrobora a este quadro, a Política Nacional de Desen- soberania alimentar do país. O trabalho desses grupos preserva as volvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicion- águas, as florestas, os manguezais e as manifestações culturais dos seus ais (PNPCT), estabelecida no Decreto nº 6.040/2007, que tem ancestrais. Disponível em: . Acesso em 26 ago.2017 410 similaridades indicam que as mesmas poderiam ser trabalha- within a model of self-management (Senge, 2003; GAIGER, das de forma conjugada. 2009; GAIGER; Fenton; VERONESE, 2015) that can be under- Observou-se que os aspectos econômicos centralizam stood as identity. For the realization of this research, a survey parte das discussões que constam nas políticas públicas da was carried out from secondary data on sites and articles and pesca artesanal e da economia solidária. Porém, é também carried out an analysis of the content. The results of the anal- possível observar que as questões identitárias e sociais destes yses show that the trajectory of both thematic shows similar- grupos estão presentes na própria formulação das políticas ities from public policies that involve the development of each públicas. Uma vez que muitas políticas são embasadas em production chain, access to fomentation lines, programs that movimentos internacionais como a diretriz 169 da Organ- stimulate the teaching and involvement of each population in ização Internacional do Trabalho - OIT que fortalece a luta por an organized manner so that they can exercise their institu- manter a identidade de povos tradicionais tional role of recognition and social control. Extinction of the Por meio das reflexões, observou-se que há um camin- Ministry of Fisheries (2015) and the National Secretariat of ho construído em ambas de luta e temáticas que fomenta Solidarity Economy (2016) and relocation of the thematics in a renda e inclusão social. Porém, há que se ter cuidado com sub-secretariats show alternations that hinder its continuity. relação as discussões das políticas públicas, que quando são The results point to a challenging future for both activities, construídas de forma desconexa podem levar a um descamin- as well as for the implementation of the achievements up to ho, uma vez que os assuntos são tratados de maneira isolada. now, due to the context of an institutional change and the Essa situação que não é exclusividade do cenário em tela, mas (DES) ways of public policies in Brazil. das políticas públicas setoriais do Brasil. Finalmente, chama a atenção que as políticas públicas da economia solidária e Key words: public polítcas; Solidarity econo- my; Craft Fishing pesca artesanal, ao mesmo tempo que convergem em suas temáticas e acabam por envolver os mesmos atores tanto da sociedade civil, quanto do poder público, acabam por pro- REFERÊNCIAS mover suas discussões de forma isolada e muitas vezes com BORGES, M.L.; SCHOLZ, R. CARGNIN, T. Estrategia-co- ganhos fragmentados, mesmo quando o tema é muito similar mo-pratica na Economia Solidaria: Resultados e Açes de Cat- como os aqui apresentados. adores de uma Cooperativa. Desenvolvimento em Questão. Editora Unijui, ano 13, n. 31, jul./set. 2015. ARTISANAL FISHING AND SOLIDARITY ECONOMY FROM (OFF)ROADS THE OF THE PUBLIC POLICY BORGES, M.L.; SCHOLZ, R.H.; ROSA, G. Identidade, aprendizagem e protagonismo social: sentido do trabalho ABSTRACT para sujeitos recicladores. Otra Economia, v.8, n.14, p.83- 98, 2014. The aim of this article is to find an approximation be- tween the trajectory of the artisanal fishing in Brazil and the BRASIL. Lei Decreto Nº 9.004 Transfere a Secretaria de trajectory of the solidarity economy from the point of view Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e of public policies. Public policies are characterized by state Abastecimento e a Secretaria Especial da Micro e Pequena actions that try to supply the participation of groups that are Empresa da Secretaria de Governo da Presidência da Repúbli- still linked to the sign of exclusion (GOHN, 2011). Artisanal ca para o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, fishing has been discussed by Diegues (1999, 2004) that em- e dá outras providências.2017. phasizes that it is not only mercantile, but above all identity marked by the idea of association with the nature and de- ______. Lei Decreto nº 8.750 Institui o Conselho Na- pendence of it. In turn, the solidarity economy is studied as cional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). 2016 an alternative income generation for less-favoured persons,

411 ______. Lei Federal nº 12.651/2012 - Artigo 13 do Políticas Públicas no Brasil. Planejamento e Políticas. Pú- Novo Código Florestal. 2012. blicas. Ed.21. 2000.

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412 ponível em: . Acesso em: 10 maio 2018. UMA ABORDAGEM TURÍSTICA NA ZONA POR- TUÁRIA DO RIO DE JANEIRO SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez Judite dos Santos Rosario 2006, p. 20-45 Mestre em Ciência da Informação, pela UFRJ; Licenciada em Turismo pela UFRRJ; Obs.: Agradecemos a Capes e CNPq pelo apoio. Guia de turismo RESUMO Trata-se de um trabalho fruto de uma monografia, apre- sentada para obtenção de grau de licenciatura em Turismo, apresentada em 2016. Aborda o Samba como Patrimônio Cultural Imaterial, em relação ao Turismo, na área que com- põe a Zona Portuária do Rio de Janeiro. Levam-se em conta aspectos históricos culturais, em favor da preservação, ma- nutenção da memória afetiva e patrimônios do lugar, onde o Cais do Valongo tem grande relevância histórica e econômica. Percursos são considerados, a partir do projeto turístico His- tórias EnCantadas, onde sambas referendam lugares, monumentos e sujeitos que ali trabalharam e viveram, como Donga, João da Baiana, Tia Ciata, Pixinguinha no início do sé- culo XX, aos anos 1960. Tais percursos resultam positivamente para análise como atividades turísticas, ao ressaltar o legado do samba em suas variadas modalidades e ao contribuir para Memória Social da cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Turismo, Samba, Patrimônio Cultural Imaterial, Memória, Zona Portuária Carioca.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ao completar este ano de 2018 cento e trinta anos de abolição da escravatura no Brasil, ainda pesa sobre a questão o muito que se tem de lutar para avançar em conquistas no dia a dia. Em termos de Turismo e Patrimônio, trazer o Cais do Valongo, como tema de discussão remete a uma contribuição impar de reflexão, em favor da Memoria Social que se consol- ida o rumo da prosa da vida carioca e do país, de todo modo. Neste sentido, este trabalho procura fomentar uma abordagem, na qual traz Patrimônio e Cultura, onde o Cais do Valongo é mencionado, contribuindo para o desenvolvimento do Turismo em uma região que hoje se constitui a Zona Por-

413 tuária do Rio de Janeiro. Ou seja, ali, vivificando a valoriza- sobre samba como Munis Sodré, Nei Lopes, Roberto Moura, ção de memória local e afetiva, que tem raízes daqueles que Mussa, e temas ligados ao Instituto de Patrimônio Histórico chegaram ao Brasil, como cativos. Entre essas raízes o Samba, e Artístico Nacional – IPHAN foram devidamente consultados como legado imaterial, em forma de expressão advinda das para melhor compreensão e aprofundamento. manifestações culturais de matrizes africanas, aporta como Por fim, empreendendo o Turismo pelo projeto His- uma das formas de identificar a região. tórias EnCantadas, a execução em percurso cantado apre- O Turismo enquanto forma e força de mercado por ve- senta o Samba em sua imaterialidade, trazendo à luz o zes tende a corroborar com meios de espetáculo da cultura reconhecimento da memória na Região que sempre o emba- e patrimônio apropriando-se do espaço, por interesses eco- lou, como uma das heranças africanas a ser preservada, além nômicos ou mesmo por vias de órgãos oficiais. No entanto, de consolidar que o Samba segue vivo e que não acaba na é possível atingir uma visão mais ampla e abrangente, com quarta-feira. projetos que configurem o consumo de produtos turísticos e culturais por todas as classes sociais; absorção da comunidade AH, ESSE PATRIMÔNIO CULTURAL CHAMADO SAMBA! local e respeito à memória e à identidade do lugar. A respeito da Zona Portuária do Rio de Janeiro e dos bair- Samba é um meio através do qual os po- ros que ela abrange os ofícios e saberes sempre referendaram bres, humilhados e ofendidos nas rotinas da o lugar como território de fundamentos culturais e de mãos opressão de classe, reencontram a dignida- de obra – escrava e livre. No início do século XX até os seus de pessoal. Este é um fator do qual retiram anos 60, contudo, esses lugares serviram de inspiração para prazer e satisfação, entre outras coisas, acordes primazes a fim de retratar as belezas e as mazelas do porque é também o seu saber. (Alba Zaluar) lugar. É nesse ambiente de luta pela vida, de batente e de re- sistência que surge o Samba. Em seus cinco milhões de metros quadrados, a Enveredando neste caminho, este estudo busca abordar região que hoje compreende a Zona Portuária do Rio de Ja- uma análise com o projeto turístico Histórias EnCanta- neiro tem como limites as Avenidas Presidente Vargas, Rod- das, considerando a importância de elementos e aspectos rigues Alves, Rio Branco, e Francisco Bicalho. Inserem-se aí que compõem o Patrimônio Cultural na área, a partir do Sam- parte do Centro, os bairros Saúde, Gamboa, Santo Cristo até ba. Especificamente, para localizar a região, com composições a ponta do Caju, banhados pela baía da Guanabara. Chega ao que falem do seu papel histórico e o sociocultural, o modo de século XXI como novo cartão postal, em função da realização vida e cultura local inerente a sua história na cidade. de megaeventos na cidade. Também e novamente, associado Embora nos últimos anos, o interesse por desenvolver a atividades turísticas. pesquisas na Zona Portuária venha crescendo com temas Por iniciativa da Prefeitura do Rio com apoio dos Gover- sobre o fluxo de turistas, o processo de gentrificação e atra- nos Estadual e Federal, o projeto Porto Maravilha – Operação ções culturais, este trabalho, porém, desenvolve um estudo Urbana Porto Maravilha –, foi criada pela Lei Complementar que se vincula ao modo vivente e operante em um período de nº 001/2009 no propósito de promover a reestruturação que a região foi promissora. Trata-se, pois de reconhecer a local, visando à melhoria da qualidade de vida de seus atuais importância simbólica do lugar como território de cultura e e futuros moradores e à sustentabilidade ambiental e soci- de pertencimento. oeconômica da área, igualmente valorizando o patrimônio Primando como referencial teórico, assertivas antropoló- histórico e cultural228. A implantação de novos projetos, como gicas dão conta ao método sobre Cultura defendido por Frans o AquaRio, no bairro Gamboa; o Museu de Artes do Rio – MAR Boas. Isto é, no entendimento de que não se deve considera- e o Museu do Amanhã de grande impacto cultural, na Praça -la hierarquicamente, mas na concomitância criativa de que Mauá chegam para endossar a importância da região. Mesmo cada indivíduo expressa no tempo e espaço em que cresce e vive. Valem-se também de outros autores que debruçam 228Fonte: . Acesso em 19/08/2015. 414 degradada por um longo tempo a região resistia, sobretudo, redimensionar a região em espaço modal a novos empreendi- com os patrimônios ligados à herança africana, base de nossa mentos mais econômico-financeiros que sociocultural. abordagem. Um fato de se chamar a atenção é que embora a região Em tema envolvendo Samba como legado de expressão fora ficando em vários aspectos, com a alcunha de mau vista cultural de atores sociais oriundos do solo africano, convém e perigosa, a memória não se abateu. Quando em vez pon- darmos um giro na história da cidade em relação à região. Ou tuavam-se à superfície notícias, movimentos; descobriam-se melhor, tratar de variados aspectos da evolução urbana, liga- histórias submersas. Como é o caso de uma simples reforma dos ao seu processo de construção/transformação geográfica na casa de número 36 da Rua Pedro Ernesto, em 1996 no e socioeconômica. Aliás, uma cidade que antes de se constitu- bairro de Gamboa, foi descoberto o Cemitério dos Pretos No- ir era porto – cidade-porto. vos. Local para onde eram destinados os sepultamentos dos Na apresentação do livro O Porto e a Cidade, Knauss escravizados recém-chegados da África, no porto do Rio de (2005) nos sinaliza para a singularidade do Rio de se ter um Janeiro (cais do Valongo) entre o século XVIII ao século XIX. porto aberto para o oceano. E, assim, O próprio Cais do Valongo que fora tantas vezes encoberto em épocas diferentes, aflora durante as escavações por obras do De todo modo, a cidade cresceu com o por- 229 to e o Rio de Janeiro ganhou vida própria. projeto Porto Maravilha, em 2011 . (…). Além disso, a atividade portuária e Para que o turista venha a usufruir com o que se fala a seus equipamentos mudaram durante os respeito da identidade do lugar, podemos recorrer à rotina do tempos. Os personagens desta história são trabalho no cais e arredores e as lidas do cotidiano dos mora- tão variados que a constatação aponta para dores. Nelas, encontram-se na região aspectos onde os negros a diversidade da vida portuária do Rio de continuam sendo uma forte presença. Esses aspectos podem Janeiro entre o século XVI e o início do sé- ser analisados além de ambiente de trabalho, em que carac- culo XX. terizam os espaços de sociabilidade, formas de habitações e modo de como enfrentam as adversidades de vida. Neste Em meados de 1700, o Marques do Lavradio, então gov- sentido as contribuições de BOAS (2005) nos dão uma base a ernador da cidade atendendo a exigências da sociedade que fazer uma interpretação dinâmica desta realidade. Seja, pois, morava no Largo do Carmo (atual Praça XV), incomodada com uma forma de ressaltar a cultura que fala do território em o movimento de desembarque de mercadorias e de navios termos real, simbólico e afetivo. E, assim, as manifestações negreiros, faz a transferência do mercado de cais que fun- culturais podem contribuir na percepção do valor relativo de cionava ali para a área do Valongo, tornando este local em um todas as culturas que servem também para ajudar a lidar com grande mercado de escravos. Entre os morros da Conceição as difíceis questões colocadas para a humanidade a partir da (conhecido ali como Valongo) e do Livramento depósitos e diversidade cultural. Esse processo sociocultural não se dá de lojas de instrumentos/acessórios afins perfilavam ao longo da maneira linear, harmoniosa. atual Rua Camerino. A configuração dos novos rumos que toma o Rio de Ja- A partir de então, a cartografia desta parte da cidade neiro, a partir de 1870 então nos dá uma base neste aspecto. mudou. Na verdade, a região sofreu uma profunda descar- Como explica Abreu (2008), a aparência da cidade começa acterização em várias situações. Com a decisão de abrigar o a se transformar em forma e conteúdo. E, é a partir dessa novo Cais do Porto já no período da República, o trecho foi década que o sistema escravista, mola mestra da produção mais uma vez alterado com a retificação do mesmo, amplian- nacional, entra definitivamente em colapso, detonando, ao do a várzea e adentrando nas águas da baía da Guanabara. E, assim, foram-se perdendo de vez vales, pequenas enseadas e 229 Sobre ele, primeiro ficou um Cais para desembarque da princesa braço de mar, os quais pontuavam o litoral dessa parte do Rio. Teresa Cristina de Bourbon – futura imperatriz a esposar-se com Dom Pedro II, em 1843. Em início do século XX outra cobertura, para obras Chega-se ao século XXI, com novas transformações de modo a de modernização da área do porto, com a reforma Passos. Em 2007, na reforma para os Jogos Pan-americanos. Hoje, o local é um sítio arqueológico, visitado pelo seu valor histórico e turístico. 415 mesmo tempo, forças importantes de estruturação urbana, envolvida na luta racial, a Resistência man- que marcariam profundamente a cidade. Tem início o pro- tinha um rancho carnavalesco, o Recreio das cesso migratório do interior e de outras capitais para o Rio, Flores, na Saúde. E foi de seus quadros que, capital do país. no final dos anos 40, saíram os principais Com a falta de espaço no Centro da cidade, os obstáculos fundadores da Escola de Samba Império na região não eram somente causados por falta de casas, com Serrano, no subúrbio de Madureira – da agravamento de por fim aos cortiços, mas precisava vencer a mesma forma e quase no mesmo momento irregularidade do solo, com aterros em charcos, pântanos e em que, em Salvador era fundado, também por estivadores, o famoso afoxé Filhos de alagadiços, canalizar rios, lotear chácaras ou ocupar os mor- Gandhi. (LOPES, 2005, pp.101, 102). ros. Interessante ressaltar que após essa grande intervenção, muito pouco foi alterado, chegando à degradação do local. Com um repertório de fatos, evidenciar todo esse perfil Entretanto, esse conjunto de gentes e situações trouxe para a vale, contudo, mergulhar na memória, fazendo desse lugar região um legado histórico rico que estão configurados como um território de vida e de resistência. Fez do samba um mon- suportes de sua memória coletiva, traços e monumentos a umento imaterial do modo de expressão de um povo que traz serem considerados como documentos neste trabalho. em sua trajetória cantos e encantos em vários sentidos, tan- Como admite Lamarão230 (s/d) sobre a região que genciando os mais longínquos espaços. “Na paisagem, nos valores e nas características da vida nos Falar sobre patrimônio necessariamente aborda cultura. bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo há, ainda, muito da E esta se manifesta em variadas ordens e práticas no que a história e da cultura cariocas”. Sobre aspectos da memória alma humana possa ser capaz. E, desse modo, Patrimônio, e cultura que marcaram a história e são muito presentes no Cultura caminham juntos, pois o primeiro é fruto da outra. An- cotidiano do lugar, discorre que “a região foi sede do antigo tes eram apenas reconhecidos os bens culturais de natureza mercado de escravos da cidade, berço dos ranchos e do carna- material. Décadas mais tarde, foram incorporados para sal- val popular, ponto de encontro de chorões e sambistas como vaguarda os bens culturais de natureza imaterial, dando luz Pixinguinha, Donga e João da Baiana, cenário de revoltas e a saberes, ofícios e modos de fazer, celebrações e formas de movimentos sociais urbanos” (Idem,s/d). expressão. Representam manifestações como elementos mais O compositor e escritor Nei Lopes (2005) desta vez não abrangentes da identidade cultural dos indivíduos e grupos está versando como o faz com propriedade, mas em primoro- sociais nacionais. Tendo como foco de análise, trabalhamos o sa abordagem sobre a região explica que no Cais do Porto do Patrimônio Cultural Imaterial, definindo-o conforme o Insti- Rio as jornadas de trabalho eram lucrativas e de prestígio. Até tuto de Patrimônio Histórico Artístico Nacional – IPHAN231: a Abolição, rendiam para um escravo de ganho mais do que Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àque- ele tinha de pagar a diária a seu proprietário. Após 13 de maio, las práticas e domínios da vida social que se manifestam em este espaço de trabalho continuava a atrair trabalhadores ne- saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de ex- gros, tanto os libertos da cidade como os que chegavam à pressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas e nos lugares, cidade, pela proporção de que o Rio se tornou como epicentro que abrigam práticas culturais coletivas, constantemente dos acontecimentos e oportunidades de emprego. Informa recriados e apropriados por indivíduos e grupos sociais como ainda o autor, estes trabalhadores… importantes elementos de sua identidade. Em 2000, vários criaram importantes associações de classe, registros determinam o conceito de patrimônio então, não como a ‘Sociedade de Resistência dos Traba- somente aos bens culturais de cunho erudito como prédios e lhadores em Trapiches de café’, a legendária monumentos relacionados a personagens de vulto histórico, Resistência. (…) Entidade fortemente mas bens que manifestam formas de expressão identitária de um lugar, modos de fazer e saberes de um grupo ou indivídu- 230 Navegando pela história: Módulo do CD-Rom Circuito Mauá, redigido por Sergio Lamarão. Fonte: http://www.uninet.com.br/circuito-maua/ 231 . Acesso em portal/historia.htm. Acesso em 31/08/2014. 26/04/2015. 416 os. Observamos que as variedades de forma de expressão são reunião de boêmios, músicos e cantores, vinculadas a musicalidade, cujas medidas de preservação já que puxavam pontos de orixás, marchas-e- eram expressas nos ideais de Mário de Andrade, em fins dos -rancho, maxixes e chulas. Rodas se forma- anos 1920 (ANDRADE, Apud CUNHA, 2009. p. 36). vam nos quintais e ali mesmo era renovado Seguem-se dentro do conceito contemporâneo de o clima dos lundus, com umbigadas e ritmo preservação do patrimônio, as práticas, representações, ex- marcado nos pés e nas mãos. pressões, lugares, conhecimentos e técnicas, que os grupos sociais reconhecem como parte integrante do seu patrimônio Devido a suas atividades de mãe de santo mirim no cultural. Neste propósito, nosso tema visa às Matrizes do Sam- candomblé, quituteira de tabuleiro e foliona dona de rancho, ba no Rio de Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Sam- Maria Hilária Batista de Almeida – a Tia Ciata –, fazia um bom ba-Enredo. Bem imaterial inscrito no Livro de Registro Formas trânsito de popularidade. Sua casa era frequentada não so- de Expressão, sob o nº. do Processo 01450.011404/2004-25, mente pelos músicos já mencionados, mas por gente simples em 20/11/2007. Sua relevância incide em que o samba de e por intelectuais, políticos. partido alto, o samba de terreiro e o samba-enredo são ex- Tudo isso, compõe uma amálgama de situações, fatos, pressões cultivadas pelas comunidades cariocas. memórias, culturas, pessoas, entre outras, que vêm aconte- Essas matrizes distinguem-se de outros subgêneros de cer na cidade do Rio de Janeiro e servir de ponta de lança ao samba criados posteriormente e guardam relação direta com ritmo do samba. Quanto ao gênero musical no que tange à os padrões de sociabilidade de onde emergem. Há autoria procedência à designação e a sua história, há um ruído de cer- individual, porém a performance é necessariamente coletiva to modo. Autores como Edigar de Alencar (1985), Almirante e se funda em comunidades situadas em áreas populares da (apud OLIVEIRA, 2002) listam título de músicas gravadas des- cidade do Rio de Janeiro. O improviso é outro aspecto impor- ignadas samba, anteriores ao Pelo Telefone. No entanto, o tante dessa dimensão coletiva e ainda se encontra bastante que justifica ao pioneirismo deste é que tenha sido gravado, enraizado na prática amadora ou comunitária dessas formas com a designação de samba em 27 de novembro de 1916, de expressão – está vivo e presente nos quintais dos subúrbi- com registro na Biblioteca Nacional. Seu sucesso estrondoso os, nas rodas de samba e terreiros dos morros e bairros pop- no carnaval de 1917 confirma uma trajetória que chega aos ulares da cidade. dias de hoje um século depois. Durante esse tempo, o sam- Entre os atributos que a cidade do Rio de Janeiro con- ba vem sendo composto em seus diversos tipos de gênero. fere, a mesma traduz-se como uma cidade inspiradora. Difícil Além dos Samba de Enredo, Samba de Terreiro e Partido-Alto, negar. Tudo é motivo. A música urbana, por exemplo, vai to- destacam como estilo urbano carioca: Samba-canção; Samba mando forma e ritmo, popularizando para todo Brasil. Neste carnavalesco; Samba de breque; Samba de gafieira. cenário musical carioca, a presença de Sinhô, Pixinguinha, Apesar das etapas que o samba vem adensando em seu João da Baiana e Donga foi fundamental para a evolução processo de apresentações de dança e de estilo musical, até artística e cultual do samba. Sinhô respeitado pela sociedade chegar à preferência nacional, no início o samba era visto carioca tinha trânsito entre os salões e clubes. Os três últimos como coisa de preto, de vagabundo, muito mau visto pelo fizeram parte do grupo musical chamado Oito Batutas, lid- padrão de vida social na cidade. Embora o sucesso de Pelo erado por Pixinguinha, que também teve seus méritos, com Telefone no carnaval de 1917, o ritmo não era bem visto apresentações no país e no exterior. como gosto oficial. Como era coisa de ‘desocupado’, era muito Mas a música enquanto canção popular tinha um foro perseguido pela polícia. primordial, Costa (2000, p.25) nos dá uma interessante di- Ao considerar o Samba na Zona Portuária do Rio de Ja- mensão ao explicar que neiro, os atrativos turísticos da região ‘servem de inspiração’, a respeito dos espaços e seus lugares de memória, de persona- A Praça Onze e o bairro da Saúde eram o gens, sujeitos, causos em um percurso. Procuramos valer-se reduto de macumba, festas e carnaval. Já de uma metodologia interpretativa com música a fim de apri- naquela época se denominava pagode a morar o olhar. Desse modo, pois trabalhar em torno da inter-

417 pretação, preservação e turismo conforme busca Murta & Al- simbólica da cultura nacional. Na área do Porto, em cada bano (2005, p.09,10) no exercício do olhar a destacar lugares canto e ‘quebradas’ das esquinas cariocas, salta uma história. de memória, desenhar no espaço uma rede de descobertas, Mesmo um prédio em ruínas, no fundo resiste um fio condu- de modo a revelar a identidade do lugar e ajudar o visitante a tor de uma memória em um passado remoto, que o tempo captar a sua alma, sua essência. não foi capaz de apagar. A importância de retomar essa me- Considerando o Turismo como fenômeno social, este está mória faz valorizar o potencial histórico cultural que a região envolvido em sua prática com o deslocamento de pessoas no transpira, a despeito de toda ‘maquiagem’ que faz vistas aos tempo e no espaço (ELICHER, 2013). Neste sentido, a presença olhos, mas não diz. A degradação do lugar era mais por omis- do turista faz movimentar ações que inclui o uso do território são que o acaso proporcionou emergir a realidade encoberta. ao consumo de lazer, entretenimento, além de uma cadeia de Hoje, esses fatos compõem o circuito da Herança Africana na atividades produtivas ao funcionamento das ações planejadas região e seguem com o reconhecimento do Cais do Valongo, ao Turismo. A Zona Portuária, por exemplo, com novos em- como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, tí- preendimentos culturais e comerciais, as propostas não são tulo consolidado em 2017. Contar a história do lugar por si mais ‘civilizatórias aos moldes de Paris’, mas privilegiando o é apropriar-se do discurso, dentro da cartografia afetiva e espetáculo descaracterizando mais uma vez a área. Então, identidade cultural da memória do lugar em tempo e espaço, como fica o universo do samba neste contexto? Devem-se, que fazem emergir composições em ritmos variados, no que porém, ter condições e elementos que pleiteie o reconhec- a cidade do Rio de Janeiro traduz. Um lugar de onde sobres- imento do território que ele consolidou como seu também. saem poesias melódicas, com humor ou lamento. E na Zona E, diga-se de pronto, não somente o território como gentes Portuária não é diferente. que habitam e trabalham neste espaço. A boa interpretação O projeto Histórias EnCantadas compreende um giro por do patrimônio, segundo Murta e Albano (2005) marca a qual- boa parte da área do Porto do Rio de Janeiro em circuitos à pé. idade da descoberta, descortina significados e toca emoções. Ou seja, um recorte no espaço vivido, procurando retratar e Desse modo, fica a possibilidade de vivificar o legado que nos contextualizar representações reais e simbólicas face às trans- identifica tanto nacionalmente como também a carioquice formações que fazem do espaço um potencial turístico com que o turista vem ao Rio para ver. base no samba – patrimônio cultural imaterial. Lancemos à O valor histórico da região incide em torno do samba. base dos circuitos, traçando um percurso (Figura 1) feito a pé Considerando a avaliação de Le Goff (1990) em seu livro com início no Museu de Arte do Rio – MAR, na Praça Mauá História e Memória, ele sugere inserir os documentos até a Praça Coronel Assunção, mais conhecida como a Praça nos conjuntos formados por monumentos, os vestígios da da Harmonia. Entre os bens culturais existentes na região o cultura material, nos tipos de habitação, a pais- próprio samba fala sobre e ao mesmo tempo se constitui pat- agem, remete ao universo do samba. Os vestígios de cul- rimônio imaterial. Legado que justifica a forma de expressão tura material e imaterial, preservados em sítios arquitetôni- constituída na região e sua legitimidade nacional que repre- cos, como o cais do Valongo e o Instituto dos Pretos Novos; senta ao longo de um século. Ou seja, a partir da gravação de simbólicos como a casa de Tia Dodô, no Morro do Livramento, Pelo Telefone. Mais de cinquenta músicas foram coletadas o Quilombo da Pedra do Sal e naturais como a Pedra do Sal e as quais falavam sobre a região direta ou indiretamente – os morros e ladeiras; os tipos de habitação os cortiços ainda identificando-a ou sobre os que nasceram ou fizeram história presentes e sua repercussão socioambiental e, sobretudo, a em composições. paisagem que remete à memória e à cartografia afetivas de seus elementos, alguns ausentes ainda que latentes repre- sentados em samba. O Projeto Histórias EnCantadas como proposta turística e de sociabilidade rende uma produção conjunta em favor da diversidade cultural. E, o samba é a primeira representação

418 A Praça Mauá, inaugurada em 1910, o seu nome hom- enageia ao grande empresário no regime do Segundo Re- inado Imperial Irineu Evangelista de Souza. William Blanco Abrulhosa Trindade, o Billy Blanco, natural de Belém do Pará, aqui aportou no final dos anos 1940. Graduou-se em arquitetura em 1950 pela Faculdade de Arquitetura e Belas Artes, e fez sucesso como compositor de sambas sincopados, com uma cadência especial. Atento às questões do cotidiano, compunha situações com humor, ou no gênero exaltação. Em meados dos anos 50 compôs o samba-canção Praça Figura 1: Mapa ilustrativo de parte da Zona Portuária, Mauá, interpretada por Dolores Duran. Hoje a Praça Mauá é com o trajeto do percurso. outra; a ‘moça’ está bem diferente, está pra lá de pra frente232. Praça Mauá, 1955 Durante o percurso, contamos histórias, em um dedo de prosa, ou melhor, de versos de sambas que falam da região Compositor: Billy Blanco pelas ‘quebradas’ dos ambientes de trabalho e de moradia, pelo modo de vida, cultural e de resistência. Praça Mauá O MAR – Museu de Artes do Rio – é o ponto de partida em referência a ondas marinhas e ao conhecimento. Inaugu- Praça feia, mal falada / Mulheres na madru- rado em 01 de março de 2013 - data comemorativa a funda- gada, ção da cidade do Rio de Janeiro, o prédio deste museu é um complexo de três edificações em 1. Em um dos prédios de Onde bobo não tem vez. estilo moderno funcionava no térreo, a Rodoviária Mariano Praça Mauá Procópio – o primeiro terminal de ônibus interestadual da Dos lotações de subúrbio / Lugar comum cidade. O mote para um samba: do distúrbio Nos trinta dias do mês Quando vim de Minas, 1972 Se algum dia Eu mandar nessa cidade Compositor: Xangô da Mangueira Serás praça da saudade / Do adeus, da emoção (…) Quando eu vim de Minas / ‘Truxe’ ouro em pó (Quando eu vim) / Considerando o ano de 1910 nesta região, ele é referên- Quando eu vim de Minas ‘Truxe’ ouro em pó cia de fatos com ares de modernidade, da belle époque deixa- (Ora veja você!) / (Bis) do pela reforma urbanista que começou na gestão do prefeito Pereira Passos. Mas em 1910, em termos de logradouro, a Este é um partido alto, com uma ‘levada’ rítmica de grande novidade era a Avenida Central, que mais tarde re- calango, típica de música rural do interior fluminense e de Mi- cebeu o nome de Rio Branco233 até hoje. Propondo hábitos nas. Referenda o contingente de negros que migraram para e modificando costumes mais ‘civilizados’ como as grandes cá, vindos do interior do Estado do Rio, de Minas, São Paulo cidades europeias, em especial Paris. Esta passagem carioca como os pais de Xangô da Mangueira – o nome artístico de foi tema de enredo também do GRES União da Ilha: Olivério Ferreira. Compositor, cantor, jongueiro, calangueiro, improvisador e versador, Xangô da Mangueira trabalhou na área como estivador do cais do Porto do Rio de Janeiro. 232 Versos do samba Esta moça tá diferente, 1970, de Chico Buarque. 233 Em ocasião da morte do Barão do Rio Branco, em 1912. 419 1910 – Burro na Cabeça, 1981 Ao longo da Rua Sacadura Cabral a fachada dos prédios ainda guarda um passado um tanto distante, que nos rem- GRES União da Ilha do Governador etem ao comércio e o movimento que cresceram na região, voltado para entretenimento. Depois de sucessivos aterros e (...) a modernização de cais do porto, enfileiram-se bares menos sofisticados com jogo de sinuca, dancings, gafieiras, estala- As cocotes me chamaram de chèri / Mon gens mais baratas. A gafieira, por exemplo, é local de respeito, amour, oui oui, mon petit por isso, lá se deve comportar sob as normas de estatuto, por O bonde de ceroulas eu peguei, pra quê? exemplo, abusar da umbigada de maneira folgazã, é motivo Pra ver a “Aída” no Municipal de se chamar a atenção; e, se balançar o corpo / vai pra mão Na Avenida Central eu vi/ A moda e o charme do delegado, tá bem, moço? Olha o vexame / o ambiente exige de Paris respeito!234 A maioria dos frequentadores, além de marinhei- Tudo era festa / E meu povo era feliz (bis) ros, são trabalhadores em geral, principalmente da estiva; gentes da madrugada e da malandragem… daí o controle (…) da ordem, da polícia. Feliz? Há controvérsias. Na posse do presidente da Repú- Pistom de Gafieira, 1959 blica Hermes da Fonseca, em novembro deste ano, deu início a um movimento, conhecido como a Revolta da Chibata, lider- Compositor: Billy Blanco ado João Candido Felisberto, contra os castigos em chibatadas aos soldados marinheiros negros. Intérprete: Moreira da Silva

O Mestre Sala dos Mares – 1974 Na gafieira segue o baile calmamente Com muita gente dando volta no salão Compositor: João Bosco e Aldyr Blanc Tudo vai bem, mais eis, porém que de repente Há muito tempo nas águas da Guanabara / Um pé subiu e alguém de cara foi ao chão O dragão do mar reapareceu Na figura de um bravo feiticeiro / A quem a Não é que o Doca, um crioulo comportado, história não esqueceu Ficou tarado quando viu a Dagmar Conhecido como navegante negro / Tinha Toda soltinha dentro de um vestido saco, dignidade de um mestre sala. Tendo ao lado um cara fraco, e foi tirá-la E ao acenar pelo mar na alegria das regatas pra dançar Foi saudado no porto, pelas mocinhas O moço era faixa preta simplesmente francesas / Jovens polacas e por batalhões E fez o Doca rebolar sem bambolê de mulatas. A porta fecha enquanto dura o vai não vai Quem está fora não entra, Rubras cascatas / jorravam nas costas (…) Quem está dentro não sai Mas a orquestra sempre toma providência Salve o navegante negro / Que tem por mo- Tocando alto pra polícia não manjar numento E nessa altura como parte da rotina O pistom tira a surdina E põe as coisas no As pedras pisadas do cais. Mas faz muito lugar tempo…

234 Versos do samba de Billy Blanco Estatuto da Gafieira. 420 O Largo da Prainha guarda uma memória da gastrono- Rancho Kananga do Japão236 mia e do caráter associativo do negro – os ranchos. Era co- mum ainda no tempo do Império, por volta das décadas 1820 (adaptação de “Sole Mio”) e 1830, um tipo de abrigo para ambulantes e escravos de ganho na cidade chamada de casa de angu. Era uma espécie Ouço cantar / Que alegria / de refugio público, local onde os negros africanos e cativos se encontravam onde também comiam angu – iguaria a base Vejo a Kananga / Na folia de farinha de milho feito mingau, comida básica de dieta dos escravos urbanos e do campo. Décadas seguintes essas casas Pedra do Sal / Largo João da Baiana era um local de ‘as- ficaram conhecidas como zungu, que também era local de sentamento’ em torno da religiosidade negra e da cultura do candomblé. A repressão da polícia era constante nessas casas. samba carioca em particular. Lugar de trabalho no período Era comum encontrar pela cidade, negras vendendo angu, colonial e imperial onde se desembarcavam mercadorias e que Debret bem reportou em suas aquarelas. o sal, sobretudo vindos da Europa e de outros portos nacio- Na década de 1950, porém, um português faz do angu nais. Lugar onde as tias baianas do santo faziam de espaço negócio, vendendo da mesma maneira, começando em car- religioso a reverenciar os orixás com oferendas ao mar. Bem roça na Praça XV – o Angu do Gomes. Hoje, tem-se o restau- natural ao mesmo tempo, cultural e imaterial dentro do con- rante no Largo da Prainha, próximo onde existia uma casa de texto simbólico que representa. Lugar também de lazer, que Zungu. depois das cerimônias religiosas dava-se lugar para rodas de Mercedes Batista, a primeira bailarina negra do Theatro samba, de chorinho. Municipal e coreógrafa inovadora nos deixou em 2014. Des- Pé do Meu Samba, 2002 de 2016, há uma estátua em sua homenagem no Largo da Prainha. Ela foi precursora em coreografia da comissão de Composição: Caetano Veloso frente das escolas de samba, apresentando a dança minueto, no desfile da GRES Acadêmicos do Salgueiro, com o enredo Dez na maneira e no tom, “Chica da Silva”, em 1960. O rancho era um séquito com base nas pastorinhas do Você é o cheiro bom / Da madeira do meu violão. nordeste de terno de reis que se apresentavam no período Você é a Festa da Penha / A Feira de São depois do Natal até 06 de janeiro – festa de reis. Embora os Cristóvão, ranchos sejam uma manifestação cultural anterior ao samba, eles vão correr em paralelo e algumas de suas características É a Pedra do Sal! serviram para apresentação das escolas de samba. O Beco do Inácio desemboca neste largo. Do beco saiam A Pequena África “África em miniatura” conforme costu- dois ranchos o Dois de Ouro e o Rei de Ouros liderado por Hilário mava descrever Heitor dos Prazeres sobre a área que confluía Jovino Ferreira235. Pouco depois, Hilário transferiu o desfile do entre a Pedra do Sal com os baianos do bairro da Saúde e da seu rancho para o carnaval. Seguido pelas agremiações nos Praça Onze, estendendo-se pelo bairro do Estácio e da Cidade anos seguintes, tornou a estrutura dos ranchos uma manifes- Nova237. A casa de Tia Ciata, na Praça Onze era o ponto de tação carnavalesca que perdurou até os anos de 1960. Além referência e de convergência – reduto dos músicos, compos- desses, existiam na região o Rancho Dous de Ouros; Rancho Rei itores. de Ouros; Rancho das Sereias; Rancho Recreio das Flores; Ran- cho Macaco é o Outro – este liderada por Tia Ciata. Na Praça 236 Este clube recreativo ficava na Praça Onze. Onze também saia o Rancho da Kananga do Japão. 237 Nestes últimos bairros, além dos compositores do morro de São 235 O Lalau de ouro como também era conhecido, embora tenha Carlos Bide, Príncipe Pretinho, Ismael Silva e outros fundadores da vindo do Recôncavo baiano e se identificar como baiano, ele era de Deixa Falar, moraram Ataulfo Alves, Wilson Moreira Moreira da Silva, Tia Pernambuco. Vicentina da Portela, Herivelto Martins, com Dalva de Oliveira. 421 Pelo Telefone, 1916 O morro não tem vez, 1962

Composição: Ernesto dos Santos, Donga e Composição: Tom Jobim e Vinicius de Mo- Mauro de Almeida raes

O chefe da folia / Pelo telefone manda me avisar O morro não tem vez / E o que ele fez já foi Que com alegria / Não se questione para se demais brincar Mas olhem bem vocês / Quando derem vez Ai, ai, ai / Deixa mágoas para trás, ó rapaz ao morro Ai, ai, ai / Fica triste se és capaz e verás Toda a cidade vai cantar Praça Onze, 1941 Morro pede passagem / Morro quer se mostrar Abram alas pro morro / Tamborim vai falar Composição: Grande Otelo / Herivelto Mar- É um, é dois, é três é cem, tins, É mil a batucar Intérprete: Trio de Ouro O morro não tem vez / Mas se derem vez ao Vão acabar com a Praça Onze morro Não vai haver mais Escola de Samba, Não vai Toda a cidade vai cantar Chora o tamborim / Chora o morro inteiro Favela, Salgueiro / Mangueira, Estação Esses morros são, igualmente, ponto de inspiração de Primeira samba em variados acordes musicais. O da Conceição no Guardai os vossos pandeiros, guardai bairro Saúde serviu de cenário à obra de Vinícius de Moraes Porque a escola de samba não sai. “Orfeu negro” que traz desde a sua origem o nome do morro: Orfeu da Conceição. Os Morros: da Conceição, da Providência e do Pinto nesta O nome do morro da Providência (Favela) na Gamboa faz região formam uma cordilheira entre o porto e a cidade, per- referência aos seus primeiros moradores – os combatentes da passando nos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Entre o Revolta de Canudos –, que cansados de esperar providências da Conceição e contíguo ao da Providência está o morro do por parte do Governo para o destino de suas moradias, ali to- Livramento, onde nasceu o escritor Joaquim Maria Machado maram posse e deram o nome de Favela. de Assis238, cresceu o escritor Manuel Antônio de Almeida239, autor de Memórias de um sargento de milícias, Favela livro publicado em 1854 e de Tia Dodô – a legendária por- ta-bandeira da Portela. Composição: Padeirinho (Osvaldo Vitalino de Oliveira)

Numa vasta extensão / Onde não há planta- 238 Machado de Assis, samba de enredo, composição de Martinho da ção / Nem ninguém morando lá Vila para o carnaval da GRES Aprendizes da Boca do Mato, em 1959. Cada pobre que passa por ali / Só pensa em 239 Manuel Antônio de Almeida / Memórias de Um Sargento de Milícias, construir seu lar samba de enredo, composição de Paulinho da Viola para o carnaval da E quando o primeiro começa / Os outros GRES Portela, em 1966. 422 depressa procuram marcar Samba do Soho Seu pedacinho de terra pra morar E assim a região / Sofre modificação Composição Tom Jobim Fica sendo chamada de a nova aquarela E é aí que o lugar / Então passa a se chamar Quando ando pelo Soho / eu me lembro da Favela Gamboa No bairro Santo Cristo, o morro do Pinto guarda muitas ai, ai, ai que coisa louca / ah meu deus que histórias ligadas ao samba. De lá partem para folia os tradi- coisa boa cionais Bloco Carnavalesco Fala Meu Louro, fundado em 1938 e a Agremiação Recreativa Escola de Samba (ARES) Vizinha lá por trás do Cais do Porto / na ladeira da Faladeira, desde 1932. O primeiro quase ficou sem sua quadra Preguiça e ficou sem desfilar 24 anos retornando em 2013. A Vizinha Faladeira enrolou sua bandeira há décadas em protesto desde onde otário nasce morto / onde só dá gente o carnaval dos idos 1935, quando os jurados do desfile a des- boa classificou do título por seu enredo não estava de acordo com 240 as regras do desfile, obtendo o quarto lugar . quem não sabe o que é saudade / não Nega Dina, 1964 conhece esse dilema

Composição: Zé Keti (José Flores de Jesus) não provou desse veneno / nunca teve uma morena A Dina subiu o morro do Pinto Pra me procurar ah meu deus que bom / te encontrar nessa Não me encontrando, foi ao morro da cidade Favela / Com a filha da Estela Pra me perturbar quando dobro a esquina / dou de cara com Mas eu estava lá no morro de São Carlos a saudade Quando ela chegou Fazendo um escândalo, fazendo quizumba; ai, ai ai que coisa louca / ai meu deus que Dizendo que levou coisa boa Meu nome pra macumba ai, ai ai que coisa louca / ai meu deus que Nem somente de revoltas vive a Gamboa de outrora. coisa boa Além de muitas batucadas reverberadas pelos bambas dos morros, hoje entoam o vai e vem de produção dos barracões A Área do Porto como lugar de trabalho, de modo de vida de agremiações carnavalescas e grêmios recreativos. Na Rua e território de resistência – Praça dos Estivadores (outrora do Propósito, nasceram Adiléia Silva da Rocha, a cantora e Largo do depósito) compositora Dolores Duran, o compositor da marchinha “Mu- Oh! Seu Oscar, 1939 lata Bossa Nova” João Roberto Kelly, Paulo Amargoso que foi presidente do GRES União da Ilha do Governador. E, onde foi Composição: Wilson Batista e Ataulfo Alves fundado o Clube de Regatas Vasco da Gama. Cheguei cansado do trabalho / Logo a vizi- nha me falou: 240 O tema do enredo era Branca de Neve e os Sete Anões; a desclassifi- cação por se tratar de um tema internacional. 423 - Oh! seu Oscar / Tá fazendo meia hora Bum Bum, Praticumbum, Prugurundum! Contagiando a Marques de Sapucaí, eu en- Que sua mulher foi-se embora / E um bilhe- feitei te deixou Enfeitei meu coração / De confete e serpen- O bilhete assim dizia: tina / Minha mente se fez menina

Não posso mais / Eu quero é viver na orgia“ Num mundo de recordação Abracei a Coroa Imperial / Fiz meu Carnaval / Fiz tudo para ter seu bem-estar / Até no Cais Extravasando toda minha emoção do Porto eu fui parar Oh! Praça Onze, tu és imortal / Teus braços Martirizando o meu corpo noite e dia / Mas embalaram o samba tudo em vão A tua apoteose é triunfal

Ela é, é da orgia Os Encandores Chiquinha Gonzaga, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres são algumas das almas encantadoras que É... parei! nasceram na região. Também, enfileiram Dolores Duran, João da Baiana, Patrício Teixeira e ainda vivos João Roberto Kelly e Beth Carvalho. Trabalharam no Cais do Porto: Aniceto do Im- Cabide de Mulambo, s/d pério, Zé Keti, Padeirinho. Composição: João da Baiana Ó Abre Alas, 1899

Meu Deus, eu ando com o sapato furado, Tenho a mania de andar engravatado, Chiquinha Gonzaga A minha cama é um pedaço de esteira, E uma lata velha me serve de cadeira. Ó Abre alas que eu quero passar (bis)

O meu chapéu foi de um pobre surdo e Eu sou da lira, não posso negar, mudo, As botina, foi de um velho, da Revorta de Rosa de Ouro é que vai ganhar. Canudos, Quando eu saio a passeio, as almas ficam Batuque na Cozinha falando, “Trabalhei tanto na vida, pro malandro tá Composição:João da Baiana (João Machado gozando !” Guedes)

Bum Bum, Praticumbum, Prugurun- Não moro em casa de cômodo / Não é por ter dum, 1982 medo não / Na cozinha muita gente sempre dá alteração GRES Império Serrano Batuque na cozinha / Sinhá não quer Bum Bum, Praticumbum, Prugurundum! Nosso samba, minha gente / é isso aí Por causa do batuque / Eu queimei meu pé

424 Então não bula na cumbu- CONSIDERAÇÕES FINAIS ca / Não me espante o rato Se o branco tem ciúme / Que dirá o mulato Constituindo o Samba em sua dimensão de bem cultural imaterial, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, a abordagem Eu fui na cozinha / Pra ver uma cebo- desenvolve variadas conjugações de dados históricos que ser- la vem de base ao entendimento da área em sua relevância de estudos e desempenhos a constituir projetos como o Histórias E o branco com ciúme / De uma tal crioula EnCantadas. Projeto que envolve o samba que fala da Região Portuária e proporciona aos turistas vivificarem a realidade Deixei a cebola / peguei na batata em percursos cantados. A atividade empreende ações para interpretar o patrimônio cultural da área do Porto; para com- E o branco com ciúme de uma tal mulata preender a dimensão histórica da Região em suas memórias afetivas e cartografia social e, além disso, favorecer ao Turis- ANCORADOURO VALONGO mo. Por aqui desembarcaram milhares de negros escraviza- O samba urbano, o samba carioca continua sendo trans- dos – considerado o maior porto da América Latina para esse formador e mutante. Que conjuga dolência, reverência com negócio. O ano de 2017 confirmou para o lugar um marco zombaria e irreverência de menino moleque. A síncope de seu histórico, simbólico e monumental do Cais do Valongo, ao ritmo reverbera no corpo que o envolve como seu dono (Sodré, conferir o título de Patrimônio da Humanidade, reconhecido 1998). Traz em si a forma de expressão de liberdade que mes- pela UNESCO. mo nos remotos tempos da escravidão era o meio de oração: é samba; é batuque; é reza241 – um meio de evocação ao Divino Valongo, 1976 que habita dentro de seu interior, que pertence ao seu corpo, embora castigado por algozes no cativeiro, e continua na ba- GRES Acadêmicos do Salgueiro tida policial, no salário que mal dá pra comer, no desamparo. Entre pompas e circunstâncias, o samba ainda agoniza para No seio… uns: êta samba cai, pra lá, cai pra cá, cai pra lá, cai pra cá242… Porém, o que lhe é próprio e genuíno está cifrada na batida 2 Lá no seio d’África vivia por 4, chegar ao resultado de colcheias e semicolcheias, que Em plena selva o fim de sua monarquia. dá o tempero musical do samba sincopado. O saber simbólico Terminou o guerreiro / No Navio Negreiro, que faz do Samba, Patrimônio Cultural Imaterial. Lugar do seu lazer feliz / Veio cativo povoar nosso país. Seguiu pro cais do Valongo, no Rio de Janeiro, SAMBA – IMATERIAL CULTURAL HERITAGE: A Com suas tribos chegando / Foi o chão TOURISTIC APPROACH AT DOCKLANDS AREA OF cultivando sob o céu brasileiro. RIO DE JANEIRO CITY Nações Haussa, Gegê e Nagô, Negra Mina de Angola, Gente escrava de Sinhô. This work proposes to approach samba as intangible Foram muitas suas lutas para integração, cultural heritage, in relation to Tourism, at Docklands Area Inda hoje / desenvolvendo esta Nação. Sua cultura, suas músicas e danças / of Rio de Janeiro city. Historical and cultural aspects from the

Reúnem aqui suas lembranças. 241 Verso do samba Ilu Ayê. Composição de Cabana e Norival Reis (GRES Portela, 1972). 242 Versos do samba É luxo só. Composição de Ary Barroso e Luiz Peixoto. 425 beginning of 20th Century until the years of 60’s are consid- bre-patrimonio-imaterial-fabiana-lopes-cunha.html>. ered placing the local memory in favor of its preservation and Acesso em 21/07/2015. maintenance, where Valongo dockland is a great reference. Thought the project Histórias EnCantadas, tours are ELICHER, Maria Jaqueline. Produção do espaço promoted, with circuits singing sambas that refer in which turístico – v. 1 – Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013. place, monument, some stories about them. Besides, people who lived and worked at that place as Donga, João da Baiana, GONÇALVES, R. de S. Os ranchos pedem passagem: Tia Ciata, Pixinguinha and so. Those proposals get a symbolic o carnaval no Rio de Janeiro do começo do século XX. – Rio and significant approach that contribute to Tourism and could de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, Coordenadoria highlight the legacy of samba at that Area. de Documentação e Informação Cultural, Gerência de Infor- mação, 2007. Keywords: Tourism, Samba, Immaterial Cultural Heritage, Dockland Area of Rio de Janeiro city. KNAUSS, P. Apresentação. In: O porto e a cidade: o Rio de Janeiro entre 1565 e 1910. Maria Isabel Lenzi, Nubia Mel- hem Santos (org.). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. REFERÊNCIAS ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: SP Rio de Janeiro. – 4. ed. – 1. reimpressão – Rio de Janeiro: Editora da UNICAMP, 1990. Secretaria Municipal de Urbanismo, Instituto Pereira Passos, 2008. 156p. il. MAPAS. LEITE, E. Turismo Cultural e Patrimônio Imaterial no Brasil. São Paulo: INTERCOM, 2011. BOAS, Franz. Antropologia cultural / Franz Boas; textos selecionados, apresentação e tradução, Celso Castro. LOPES, N. O samba, na realidade…: a utopia da as- - 2.ed.; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005 (Antropologia censão social do sambista. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. social) _____. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição CARDOSO, Elizabeth D. et Alli. História dos bairros: musical: Partido Alto, calango, chula e outras cantorias. Rio Saúde, Gamboa, Santo Cristo. Rio de Janeiro: João Fortes En- de Janeiro: Pallas, 1992. genharia, Editora Index, 1987, 160p.: il. _____. Partido-alto: Samba de bamba. Rio de Janei- CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de ro: Pallas, 2005. Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 3ªed., 1987, 19ª reimpressão, 196 p.: il. MOURA, R. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janei- ro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983: il. CARVALHO, L. F. M de. Ismael Silva: samba e resistên- cia. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1980. MURTA, S.M et al. Interpretar o patrimônio: um ex- ercício do olhar / Stela Maris Murta, Celina Albano (orgs) – COSTA, Haroldo. Na cadência do samba. Rio de Janei- Belo Horizonte: Ed. UFMG; Território Brasilis, 2002. ro: Novas Direções, 2000. MUSSA, A. Samba de enredo: história e arte. Rio de Ja- CUNHA, F. As Matrizes Do Samba Carioca E Carnaval. Dis- neiro: Civilização Brasileira, 2010. ponível em: < http://docplayer.com.br/14609165-As-matriz- es-do-samba-carioca-e-carnaval-algumas-reflexoes-so-

426 OLIVEIRA FILHO, A.L. de. Depoimentos de: Bicho Novo, TRAJETÓRIA EDUCATIVA ESCOLAR: NARRATIVAS Carlos Cachaça, Ismael Silva. – Rio de Janeiro: MIS Editorial, DAS MEMÓRIAS DE IDOSOS DO PARÁ 2002. Me. Milene Vasconcelos Leal SODRÉ, M. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. RESUMO

VIANNA, H. O mistério do samba. – 2. ed. – Rio de Este artigo constitui-se como um recorte da dissertação Janeiro: Zahar, 2012 (Antropologia Social) 1ª edição: 1995 trajetória educativa escolar: memórias de idosos e teve como (Zahar em coedição com UFRJ). objetivo analisar as memórias de idosos do Lar da Providência sobre sua trajetória educativa e verificar a repercussão na vida pessoal e profissional deles. Para tanto, tem como objetivos específicos: conhecer como a trajetória escolar experiência influenciou em sua vida pessoal e profissional; analisar o processo de escolarização, conhecendo como os idosos expe- rienciaram os trabalhos de alfabetização e descrever como as ações de educação popular desenvolvidas pelo NEP/UEPA com os idosos vêm contribuindo para a reafirmação ou ressignifi- cação das memórias destes sujeitos sobre educação, consider- ando as singularidades e as especificidades socioculturais dos idosos. A busca, ao que nos propomos investigar, remete-nos ao campo teórico metodológico interdisciplinar pautado em: Freire, Le Goff, Halbwachs, Thompson, Bosi, Bérgson, Del- gado, Fares, Mucida. No que tange à metodologia, o estudo apresenta alguns traços da pesquisa fenomenológica e abord- agem qualitativa, tendo sido utilizada como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada. Os resultados sobre a memória dos idosos foram organizados em categorias. Nesses aspectos, chama a atenção a baixa escolaridade dos idosos, destacando-se que eles possuem memórias sobre a escola como uma instituição rígida, disciplinadora, excludente, com aspectos da educação bancária. Os idosos foram excluídos ou expulsos da escola por vários fatores, dentre os quais podemos citar: o trabalho, a pobreza, morte familiar e a longa distância. Constatamos que, apesar da rigidez do ambiente escolar, os entrevistados lembram com afeto de suas professoras. Além disso, visualizamos que essas representações sobre a escola e o trabalho docente foram ressignificadas a partir do trabalho do NEP, com sua educação dialógica e amorosa.

Palavras-chave: Memória. Idoso. Trajetória Escolar.

427 INTRODUÇÃO Art. 21. O Poder Público criará oportuni- dades de acesso do idoso à educação, ade- Muito se fala do aumento significativo da população de quando currículos, metodologias e material pessoas idosas na sociedade. Porém, este tema ainda é tra- didático aos programas educacionais a ele balhado na área da educação como algo secundário. Por esta destinados. 1o Os cursos especiais para razão, é necessário avançarmos em pesquisas sobre os idosos idosos incluirão conteúdo relativo às técni- e suas memórias, para que acentuemos cada vez mais o idoso cas de comunicação, computação e demais enquanto sujeito ativo. avanços tecnológicos, para sua integração A partir do desenvolvimento econômico e social, uma à vida moderna. 2o Os idosos participarão das mudanças observadas é o aumento da expectativa de vida das comemorações de caráter cívico ou cul- da população no Brasil. Segundo a World Health Organization tural, para transmissão de conhecimentos (2005), a população idosa tem apresentado um crescimento e vivências às demais gerações, no sentido elevado nas últimas décadas, sendo necessário cada vez mais da preservação da memória e da identidade atenção aos direitos e às particularidades desta população por culturais (BRASIL, 2003). parte da gestão pública. Em 2025, o Brasil será o sexto país do mundo com maior número de idosos. O Estatuto do Idoso encoraja o idoso a perceber-se como O fato que nos instiga, hoje, é de que maneira podemos um sujeito de direitos que necessita ter suas especificidades garantir a esse sujeito um envelhecimento saudável e digno, respeitadas, a partir da adequação de propostas pedagógicas possibilitando a ele o acesso à educação, esporte e cultura, que façam parte do seu processo educacional, dialogando de na medida em que vivemos em uma sociedade que não está fato com as demandas típicas da idade. preparada para dialogar com as suas peculiaridades, pois, Nossa intenção é dialogar não sobre, mas com os idosos todos os dias, deparamos-nos com casos de maus tratos, no sobre suas memórias, reconhecendo-os como sujeitos produ- noticiário, rádio ou em nossa vizinhança. É evidente a falta tores de conhecimento que, por diversos motivos, foram ex- de respeito de todas as maneiras, desde atitudes que pare- cluídos educacionalmente e socialmente. Torna-se relevante cem pequenas, como sentar em um local reservado à pessoa avaliar, portanto, a importância da educação para a vida dess- idosa, até os maus tratos físicos e psicológicos, fatos que vão es idosos que tiveram ou não êxito em sua vida escola. reforçando a exclusão promovida por uma sociedade que ne- Essa pesquisa buscou as recordações dos idosos e teve gligencia a velhice. como objetivo que suas vozes ganhassem força perante uma É mister avaliar que a real inclusão do idoso se dará à sociedade que, muitas vezes, cerceia o direito do idoso de ser medida que construirmos cada vez mais reflexões que nos mais no mundo. Aqui, abrimos espaço para os sorrisos afetuo- permitam de fato desenvolver o que lhe é garantido por lei sos, para a afetividade e para as mãos trêmulas do avançar da desde a chegada do Estatuto do Idoso, conscientizando-nos idade. Cada idoso tem algo a falar sobre suas experiências de de que ele só será incluído quando for avaliado como sujeito seu tempo de escolarização. Vozes individuais integram um autônomo e ativo no mundo, independente de suas limita- coletivo e, juntas, falam sobre seu tempo de escolarização, de ções psíquicas ou físicas. sua família, de seu trabalho e de sua condição de vida. Aqui, todas as vozes foram respeitadas: a escuta sensível serviu de suporte para analisar relatos preciosos para repensar a relação DESENVOLVIMENTO dos idosos com a nossa sociedade. O referido Estatuto do Idoso, no art. 21, ainda assegura Podemos avaliar que as histórias de vida dos sujeitos da que o poder público é responsável por oportunizar ao idoso o pesquisa muito se assemelham, por fazerem parte de reali- acesso à educação, bem como adequar para este público todo dades muito próximas. Esse fato é esclarecido por Marcondes, e qualquer material didático e metodologia que permeie sua Teixeira e Oliveira (2010, p.93): formação educacional ao longo da vida:

428 As narrativas, embora feitas por indivíduos, lidade do horário; c) falta de merenda escolar e d) o trabalho evidenciam mais que elementos da existên- juvenil para ajudar no sustentento da família. cia individual, pois, através delas, é possível Em relação às profissões que os sujeitos exerciam, uma captar as relações do narrador com os mem- foi professora formada pelo magistério, um foi carpinteiro, um bros de seu grupo social, sua profissão, sua foi marceneiro, um foi feirante, uma foi empregada domésti- sociedade. Busca-se, com as histórias de ca e um foi pedreiro. Todos são oriundos de famílias de baixo vida, atingir a coletividade de que seu infor- poder aquisitivo. mante faz parte. Descrito os participantes da pesquisa, passamos para as recordações que eles tinham sobre sua escola. Começamos A memória reafirma-se enquanto dimensão individual com Maria: do ser humano, contribui para a construção da memória cole- tiva que dialoga com a história de nossa sociedade. A minha escola era grupo quando eu mo- Antes de analisarmos os dados construídos, convém rava em Benevides243. Então... eu estudei, relembrar que os idosos participantes desta pesquisa foram comecei a estudar com os meus 10 ou 11 alfabetizados na década de 1940. Araújo (2007) destaca que a anos. Já com os meus 13 anos, minha mãe referida época foi marcada por projetos educacionais que dis- estava muito doente, aí eu já parei de estu- putavam a hegemonia, já que havia uma crença sustentada dar para ajudar minha mãe, acabou o meu estudo, mas a essa altura eu já passado o do poder de a educação escolar “moldar” a sociedade. primeiro ano todinho lendo, passei da carta A educação no referido recorte histórico era desenvolvi- de ABC para o meu primeiro livro “Gilberto da com vistas a atender as pespectivas do sistema capitalista. de Carvalho”. Até o nome do livro eu lembro. As práticas pedagógicas e a realidade educacional da época Veio o teste do primeiro, aí fui logo para o eram baseadas na educação tradicional, em que o sujeito segundo! Nesse segundo, já ia para cursar a era tratado como uma folha em branco na qual o professor terceira e a quarta e com isso encerrou meu poderia “escrever livremente”. Basicamente, a educação era estudo (Maria). tratada como privilégio de poucos: o real interesse político da época era formar pessoas que faziam parte das classes mais A criação de grupos escolares em todo estado refletia a favorecidas financeiramente. Araújo (2007) relata que, nos concepção dos primeiros governos republicanos no Pará. Ess- anos 40, o grande esforço governamental da época era pri- es grupos foram fundamentais para o incentivo a ampliação e orizar a educação das elites ao invés de incentivar a educação qualificação do ensino, pois, como Costa e Correa (2010, p.6) popular. relatam: Diante do cenário educacional precário para as classes populares, conseguimos evidenciar, por meio de casos nar- Antes o ensino era desenvolvido em casas escolas com limitados espaços e carentes de rados pelos seis idosos pesquisados, que todos frequentaram recursos principalmente no interior do Esta- escola e apresentaram uma curta passagem pelas instituições do, os novos espaços escolares dos Grupos de ensino, com exceção de uma das entrevistadas, que con- traziam a expectativa da formação aplicada. cluiu seus estudos de magistério. Os dados analisados indic- am que essa passagem variou de um ano até seis anos. Para compreender melhor o contexto dos grupos es- Nos relatos dos seis idosos, constatamos que um idoso colares, podemos avaliar que o Pará foi o terceiro Estado do não concluiu a cartilha de ABC, ou seja o idoso não concluiu Brasil a implantá-los, buscando se igualar aos dois primeiros sua alfabetização. Quatro entrevistados concluíram até a 4° grandes polos do símbolo de desenvolvimento republicano série e uma terminou o antigo magistério. Todos relataram dificuldades em sua trajetória escolar, o que acabou influ- enciando no abandono. Estas dificuldades se caracterizavam 243 Benevides é um município brasileiro do estado do Pará, situado na região metropolitana de Belém, Sua população estimada em 2016 é de por: a) distância das escolas para as suas casas; b) inacessibi- 59.836 habitantes.. 429 através da educação (COELHO, 2008): São Paulo e Rio de Ja- Na fala de seu Olindo, podemos evidenciar que o su- neiro. jeito vem de uma realidade rural ribeirinha, onde o rio era Segundo França (2013), o primeiro grupo escolar criado, sua rua (“nesse rio, nessa beira desse rio morava uma série de no Estado do Pará, foi o do Município de Alenquer, em 1899. moradores onde eu morei lá é mais assim para trás que fizeram Em 1900, foram criados grupos nos Municípios de Curuçá, o colégio a escola atrás dos povoados todinho, mas não tinha Bragança, Santarém, Soure e Cametá. Chaves e Silva (2012) nome”). Nesse enunciado, podemos verificar que a realidade relatam que os grupos escolares era um espaço em que da educação ribeirinha se configura quase sempre de maneira os alunos seriam moldados para desenvolverem hábitos e precária, com salas multiseriadas, falta de merenda escola e atitudes. Era bem mais que um simples espaço de ensino/ difícil acesso ao ambiente escolar. No discurso do idoso, a es- aprendizagem, pois, neles, a educação era aprimorada e a cola, sem nome, se configura como um local construído pelas valorização do professor por meio de estratégias para os prob- mãos dos próprios moradores da comunidade. lemas educacionais da época era trabalhada. Para compreender melhor a realidade ribeirinha, é mis- Segundo Loureiro (2007), o cenário educacional da ter refletirmos que a vida interioriana representa uma série de época era predominantemente um universo de não-letrados, dificuldades. Os sujeitos ribeirinhos vivenciam uma realidade em que a educação formal não era uma necessidade básica de sofrida de descaso por meio do poder público. Eles habitam os todos os cidadãos. Era realmente necessária quando o sujeito interiores do estado do Pará nas margens de rios ou de igara- tinha o interesse de ingressar no ensino superior e com pod- pés, quase sempre tendo que ter seus direitos secundarizados er aquisitivo. Nesse período, é relevante que tenhamos uma pelos governantes. Esse cenário caracteriza os modos de vida clara concepção que educar se configurava como, no interior amazônico. Em muitos estudos, essa precariedade social e educacional é destaque, fatores esses decisivos para Transmissão de conhecimentos utéis dados pela instrução e implicava essencialmente a formação humana e educacional dos ribeirinhos (CAVAL- a formação do caráter mediante a apren- CANTE; WEIGEL, 2004). dizagem da disciplina social – obediência, Dando sequência aos relatos sobre a memória da escola asseio, ordem, pontualidade, amor ao tra- dona Josete, na fala a seguir, destaca o ensino como prática balho, honestidade, respeito às autoridades, rigorosa, mas permeada por amorosidade no colégio religioso virtudes morais e valores cívico – patrióticos que estudou, necessários à formação do espírito de nacio- nalidade (SOUZA, 2004, p. 127). O prédio que eu estudava era bonito: era eu estudei lá no Dom Bosco! Era colégio de Na fala de um de nossos participantes, seu Olindo, há freira, rigoroso, mas eu gostava muito das uma relação, mesmo que não explicitada, entre os conheci- freiras. Sempre me trataram bem, gostam mentos escolares e cotidianos: de mim: eram boazinhas! As freiras eram A escola onde eu estudei foi onde eu nasci bem carinhosas, elas me tratavam bem! Eu no calderona aquele povoado que tem no sempre fui mimada, pois sou filha única e rio de Soure244, nesse rio, nessa beira desse elas faziam todos os meus gostos (Josete). rio morava uma série de moradores onde eu morei lá é mais assim para trás que fizeram A fala de Josete remete-nos à citação de Araújo (2007), o colégio a escola atrás dos povoados todi- para quem, no Brasil, nas décadas de 1940, havia projetos nho, mas não tinha nome (Olindo). que defendiam uma educação escolar humanística a técnica ou científica, que enfatizavam os ensinamentos religiosos. 244 Soure é um município brasileiro do estado do Pará localizado na O colégio a quem dona Josete se refere, o Dom Bosco, região do Marajó que por sua vez tem uma área de aproximadamente 40.100 km², é a maior ilha costeira do Brasil, eis que igualmente banha- é localizado em Belém. Configurava-se como uma escola da pelo Rio Amazonas a oeste e noroeste, pelo Oceano Atlântico ao norte de cunho religioso, coordenada por freiras e inspirado nos e nordeste e pelo Rio Pará a leste, sudeste e sul. 430 ideários pedagógicos de São João Bosco. Essa escola traça pois, fui para o Lauro Sodré: era um colégio suas práticas pedagógicas desde 19 de março de 1919, como interno e de lá eu só saia final de semana colégio particular que realiza uma educação pautada em para visitar a família. Era uma escola pública princípios religiosos do catolicismo. É conduzido pelas irmãs (Marcos). da congregação filhas de Maria Auxiliadora. Voltando à transcrição da fala da idosa entrevistada, po- O grupo escolar historiado por Marcos, o “Barão do Rio demos perceber a afetividade presente nas relações entre os Branco”, era uma instituição de educação formal que, segun- educandos e as freiras (“[As freiras] Sempre me trataram bem, do Pantoja (2011, p. 6): gostam de mim: eram boazinhas”/ “Eu sempre fui mimada, pois sou filha única e elas [as freiras] faziam todos os meus gostos”). Grupo escolar Barão do Rio Banco espaço de Podemos destacar, aliás, que o referido era uma instituição de educação formal, educação da gramática ensino privada, onde pessoas com um melhor poder aquisiti- e da aritmética, das letras padronizadas e vo poderiam frequentá-la. formalizadas em regras, das soletrações e Dando continuidade, abrimos espaço para a narrativa raciocínios que buscava promover, em mui- de seu Edemar, recordando que sua escola era conduzida por tos alunos, a superação da origem mestiça pessoas negras, e pobre. A minha escola era na casa de meia dúzia de pretinha. Eram seis pretinhos cabeça de pi- O Instituto Lauro Sodré, segundo Costa (2011), era a es- menta do reino. Lembro que era professora cola profissionalizante do estado do Pará. Configurava-se, em do Rosário era lá na rodovia SENAP, aqui per- relação à organização curricular, como grupo escolar. to da Igreja do Perpétuo Socorro. Ali entrava Analisando o enunciado de Marcos, podemos destacar burro e saia sabido (Edemar). que o idoso-educando passou seu processo de escolarização nos colégios Barão do Rio Branco e no Lauro Sodré (“A escola No discurso do idoso, as memórias de escolarização do que eu estudei era o Barão do Rio Branco”/ “depois fui para o idoso referem-se ao preconceito racial da década de 40 (“A Lauro Sodré”) no colégio Lauro Sodré o entrevistado recorda minha escola era na casa de meia dúzia de pretinha”/ “Eram que fez o curso de contabilidade, mas não conseguiu concluir, seis pretinhos cabeça de pimenta do reino”/ “Ali entrava burro cursou apenas um ano e desistiu. O mesmo destaca que só via e saia sabido”). Infelizmente, esse preconceito racial e a fala sua família aos finais de semana (“só saia final de semana para discriminatória de desqualificação à pessoa negra perdura até visitar a família”). hoje, em pleno século XXI. O entrevistado destaca que a falta de formação interferiu De um modo geral, percebemos, pela transcrição da fala de forma negativa para sua vida profissional, pois devido à de Edemar, que a escola, naquela época, se configurava como ausência de qualificação, o idoso se tornou pedreiro. um espaço peculiar e caseiro. Na época de escolarização em Com essa sequência de relatos tão significativos, refleti- que o idoso esteve inserido, configurava-se por um período mos que a valorização da memória do cotidiano desse sujeito de tristes recordações da escola: um espaço pensado para os teve resultado muito positivo. Entre os quais, podemos desta- abastados financeiramente. car que foi muito gratificante observar esses idosos dialogan- Dando continuidade às recordações do espaço escolar do suas experiências com liberdade e com uma rica descrição. dos idosos, seu Marcos nos relata que sua vivência educativa Isso foi possível através de nossa escuta sensível, pois, como esteve dividida em dois espaços escolares: a escola Barão do afirma Macêdo (2000, p. 63), “a valorização do cotidiano pos- Rio Branco e o Instituto Lauro Sodré, sui certa sabedoria que se consubstancia na crença de que, para que, uma mudança seja profunda, é necessário partir A escola que eu estudei era o Barão do Rio da intimidade das coisas, é preciso partir delas, conviver com Branco. Lembro que eu gostava muito de escrever bilhete para minha namorada. De-

431 elas”. A aproximação com os idosos e a escuta sensível de nos- cacional a fim de ter um momento para descansar. Percebe- sa parte nos possibilitou a recolha de dados sutis. se que o aluno vai à escola para fugir das tarefas domésticas: Analisada a transcrição da fala de Marcos, podemos pas- uma válvula de escape, uma fuga das tarefas familiares, onde sar para a de Dona Josete, que recorda que: o papel da criança pobre e ribeirinha era começar a trabalhar muito cedo para assim contribuir no sustento da família . Eu era filha única. Não tinha nenhum tipo de dificuldade, problemas financeiros e minha Quando questionados sobre o que a escola lhe propor- única obrigação era estudar (Josete). cionou, os seis idosos destacaram que o espaço educacional trouxe a “decência”. Para seu Olindo, a escola: Dona Josete destaca que com uma realidade de vida Me ajudou a prender muito eu andei tudo diferenciada, por vir de uma família com certo poder aquis- por aí e é muito triste a pessoa que não sabe itivo. Durante a juventude, nunca precisou trabalhar (“não escrever nem ler não sabe e sempre precisa tinha nenhum tipo de dificuldade”/ “problemas financeiros”) e de alguém que não sabe escrever nem seu dedicou-se exclusivamente aos estudos, sua única obrigação nome e não sabe nada da leitura sempre (“minha única obrigação era estudar”). alguém tem que ler o jornal para ele, e a Seu José, mesmo se tratando de uma escola pública, gente tinha que acreditar porque não sabe destaca, em sua memória, bons momentos: ler (Olindo).

Um dos detalhes que eu mais gostava era Seu Olindo reflete a educação como um instrumento que que tinha merenda (hum muito bom), tinha está inteiramente associado ao universo da leitura e da escrita merenda, a gente brincava de uma bola na e, quem não comunga desse conhecimento, acaba sendo ex- hora da recreação, as coisas que ainda lem- cluído (“é muito triste a pessoa que não sabe escrever nem ler bro são isso, eu era feliz (José). não sabe e sempre precisa de alguém”). Sobre esse assunto, Oliveira e Mota Neto (2004, p.113) esclarecem que: Parecebemos, na fala de seu José, um tom descontraído e alegre em sua fala, pois havia merenda e a recreação também A educação como estudo está associada à foi citada como uma hora de diversão (“tinha merenda”/ “a instrução, à leitura e à escrita [...]. Nesse gente brincava de uma bola na hora da recreação”). sentido, a educação escolarizada acaba sen- Por tanto a ludicidade desenvolvida no momento de do mais valorizada que a cultura da conversa recreação era o que proporcionava alegria à seu José, o idoso e a consciência da exclusão e discriminação ressalta com grande felicidade o fato da escola lhe apresentar que sofre o analfabeto na sociedade letrada merenda porque vem de uma realidade de vida bastante po- por isso ressaltam a importância da escola. bre, muitas vezes a merenda escolar seria sua única refeição do dia. É necessário avaliar que a educação emancipatória rompe Já para seu Olindo, ele, em seu relato, disse que: com a priorização da escrita e da leitura como instrumento de mera decodificação, pressupõe que o educando precisa ser Eu ia para escola para evitar fazer um monte respeitado em suas especificidades, busca a dialogicidade de coisa ou eu ia pra escola ou eu tinha que como ferramenta alfabetizadora que liberta e forma sujeitos ir pescar ou caçar e ainda tinha que apren- autônomos. Segundo Valério (2011, p. 23), der as coisas com meu pai, como aprender a pescar, a saber das matas, das coisas e quan- A escola é democratizante é associada à do eu ia pra escola ficava lá das 7:00 as 11. ideia de escola da comunicação, devendo Era sagrado: todo dia (Olindo). priorizar na formação do aluno a capa- cidade de expressão, de compreender as No enunciado acima, a escola foi destacada como ponto mensagens escritas e orais. É necessário de refúgio onde o idoso que relatou ir para o ambiente edu- trabalhar o diálogo, ensinando ao aluno a

432 argumentar, analisar discursos e mensagens responsável por mim. Nesse tempo eu que- e principalmente a manejar a língua como ria mesmo era trabalhar para poder levar a instrumento de emancipação e autonomia. namoradinha pra sair. Queria logo trabalhar e ter meu dinheiro (Marcos). Espaço de formação e modificadora do futuro, constata- mos, além da fala de Olindo, que, no discurso de Edemar es- Nesse trecho, seu Marcos o quanto gostaria de ter din- tão presentes algumas das características descritas por Valério heiro para levar sua namorada para sair (“eu queria mesmo era (2011), como podemos ver a seguir: trabalhar para poder levar a namoradinha pra sair”) esse relato do idoso nos faz presumir que querer ter dinheiro para levar Como lhe falei, a escola é o lugar onde a sua namorada pra sair foi uma das causas determinantes para gente aprende tudo, e principalmente o conhecimento de como se comportar, como seu abandono escolar. tratar alguém, na escola a pessoa entra bur- Além dessa recordação, seu Marcos se lembra de: ro e saí sabido (Edemar). Minha vida era uma vida boa, eu estudava e no meu aniversário, tinha festa, tinha bolo A fala acima, na escola, a pessoa entra burro e saí sabido, de tapioca mas como eu gostava muito de avaliamos que essa concepção era repassada pela educação namorar. Eu me empreguei logo, isso me bancária onde o aluno era visto como uma tabula rasa,ne- prejudicou mas eu ainda cheguei a fazer gando todo conhecimento de mundo que o educando trazia muitos cursos. Um deles foi de desenho consigo, nesse sentido a escola é vista como espaço de for- artístico lá onde hoje é a Embrapa (Marcos). mação, espaço onde os alunos vão para procurar aprender tudo o que não sabem (“a escola é o lugar onde a Seu Marcos, acima, refere-se ao seu aniversário (“no meu gente aprende tudo”) e aprender as relações pessoais aniversário, tinha festa, tinha bolo de tapioca”), fato que foi (“como tratar alguém”). Analisada a fala de seu Edimar, relatado com um grande sorriso e com um semblante feliz, ao passamos para a próxima fala a ser analisada, a da Dona Jos- recordar o curso de desenho artístico que fez. ete, destaca o ambiente escolar, Analisado os dados de seu Marcos, vamos ao Seu Olindo, que, em sua fala, é mais questionador: Na época que eu era mais jovem [a escola] seria o meu porto seguro. Lugar de apren- Eu gostaria que tivesse pelo menos luz elé- der o que não se sabe, lugar que eu gostava trica, naquele tempo não tinha essas coisas muito. Recebi um conhecimento muito ma- todas que tem hoje (Olindo). ravilhoso (Josete). No enunciado acima, seu Olindo leva o questionamento No discurso de dona Josete, a escola é vista como “porto para o lado da infraestrutura da escola e do local onde essa seguro”, um lugar aconchegante, a relação dela com o conhe- escola pertencia. Ele relata que seria bom, naquela época, ter cimento é positiva pela sua estrutura financeira e familiar o luz elétrica, pois a falta de luz era uma das causas de grande que influenciou positivamente e decisivamente no processo tristeza. A fala do idoso nos remete ao fato de que na década de ensino aprendizagem da idosa. Podemos perceber que a de 40 a escola não tinha uma boa estrutura, falta de recurso juventude é permeada por relações afetivas (“lugar que e priorização da educação de pessoas que tinham um maior eu gostava muito”) que fazem parte natural do percurso pode aquisitivo. da vida. De modo parecido com a idosa, seu Marcos destaca: Em relação às escolas acima relatadas, podemos consid- erar que os idosos demonstram recordar delas. Porém, apre- Eu gostava tanto de namorar que, uma sentam, em suas falas, uma curta passagem por elas, o que vez, um servente pegou um bilhete que eu tinha escrito para minha namoradinha e nos aponta para a necessidade de avaliar esse cenário educa- mandaram chamar meu padrinho que era tivo, que também faz parte da memória desses idosos. As es-

433 colas que eles frequentaram foram escolas públicas regulares, suficientes para a análise?”. Estas indagações possibilitaram e proporcionaram momentos agradáveis que perpassam inúmeras relaborações das estratégias metodológicas ado- desde o fato de poder escrever um bilhete à namorada, como tadas, acrescentando ou buscando novos caminhos, como os consta no relato de seu Marcos, até o fato de poder iniciar a que foram feitos quando os primeiros dados iniciais começa- leitura de seu primeiro livro. ram a emergir nas memórias dos idosos. O relato da trajetória educacional, apresentada pelos É relevante destacar que essa pesquisa só foi possível idosos desta pesquisa, nos proporcionou uma sequência de através do repensar excessivo de como dialogar com as sentimentos, emoções, medos e anseios. Conhecer a trajetória recordações dos idosos sem que isso lhe trouxesse nenhum escolar vivenciada por esses idosos e como ela influenciou em dano, respeitando os princípios estabelecidos nos riscos e sua vida pessoal nos possibilitou uma elevação cientifica e benefícios quando este trabalho se configurava apenas como humana. um projeto de pesquisa. A pesquisa demandou evoluirmos humanamente a pon- Dessa maneira, partimos do pressuposto do campo da to de avaliarmos, na narrativa dos idosos investigados, pontos memória de idosos, quando orientam que as pesquisas de- cruciais e necessários para fortalecer o debate acadêmico de vem evidenciar as vozes silenciadas por uma sociedade que uma temática ainda pouco explorada: a memória de idosos. injeta no idoso em uma visão capitalista que ele é sujeito im- Quando trouxemos, como problema central, identific- produtivo por não gerar mais lucros ao sistema, uma vez que ar o que as memórias dos idosos atualmente moradores do elas têm sido marginalizadas nas políticas e nas pesquisas. Lar da Providência revelam sobre suas trajetórias escolares, Quando nos debruçamos para trazer à tona essas vozes, con- nos delimitamos a conhecer um universo peculiar de ex- tribuímos, de alguma maneira, para o repensar da existência periências únicas que influenciaram em suas vidas de ma- do idoso em sociedade, tentando promover sua inclusão e neira positiva ou negativa. Aliás, quando nos propomos a reconhecimento. conhecer como esses idosos experienciaram seu processo de Cada idoso deixou um relato importante e de grande re- ensino-aprendizagem, acentuamos a relevância de analisar o levância para esta pesquisa. Percebemos, com base nos dados período de escolarização, um período fundamental na vida do analisados, que essas pessoas têm muito a falar, porém, pou- ser humano, em que muitos de seus conhecimentos e habili- cos estão dispostos a ouvirem. Sabemos, em contrapartida, dades são desenvolvidos. Assim, quando esse idoso se dispôs que, na realidade, esse idoso tem direito de ser ouvido. Sua a narrar sua experiência, ele nos disponibilizou muito mais do voz merece, por esse motivo, ser escutada cada vez mais em que sua voz: disponibilizou sua vida para que sua realidade pesquisas acadêmicas, como esta. fosse conhecida por todos e suas vozes, antes cerceadas, É inevitável destacar que, nesta pesquisa, a amorosidade sejam de fato ouvidas pela sociedade que diariamente lhe freireana que tomou conta a cada diálogo com os idosos. A exclui. escuta sensível fez com que eles se sentissem à vontade para Quando escolhemos por objetivo conhecer como as relatar sua experiência. Ressaltando que não é fácil falar de ações de educação popular do NEP vem ressignificando a algo que de alguma forma lhe trouxe sofrimento. Entre risos memória desses idosos, conseguimos perpassar pelo sentido afetuosos e lágrimas doloridas, esta pesquisa se finaliza ten- amplo de formação humana, como um processo dialético e tando deixar um leque de instigações e possibilidades para as permanente. futuras investigações que se interessarem por essa temática. A partir dos dados analisados, também constatamos que cada idoso carrega consigo uma trajetória individual. Suas CONSIDERAÇÕES FINAIS lembranças são elementos fortíssimos para efetivação da me- Portanto, podemos destacar que foi muito difícil aden- mória coletiva da sociedade. Esta dissertação, portanto, cons- trar nas recordações de idosos para conhecer aspectos que tituiu-se como um debate inicial que traz a relevância do ido- contribuíram para sua trajetória escolar. Em muitos momen- so na sociedade, bem como a função social de sua memória. tos nos indagávamos: “conseguiria esta pesquisadora dados

434 Podemos destacar que, a partir desta pesquisa, tivemos REFÊRENCIAS como resultados o fato de os idosos: terem baixa escolaridade, ALMEIDA, P. Representações sociais do analfabetis- possuírem memórias sobre a escola como uma instituição de mo na perspectiva de adultos não-alfabetizados. ensino de espaço rígido, disciplinador e excludente. Os as- pectos que influenciaram na trajetória escolar dos sujeitos 2004. 186f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa alvo desta pesquisa são os mais distintos. Entre eles, desta- de Pós-Graduação em Educação, Universidade Católica de camos: a necessidade de políticas públicas educacionais que Brasília, Brasília, 2004. fortaleçam a educação nos interiores do estado e na capital. ALVES, R. A alegria de ensinar. São Paulo: Ars poética, A partir das entrevistas, percebemos como os idosos relatam 1994. a falta de infraestrutura escolar, como ausência de merenda, local distante, entre outros fatores responsáveis pela evasão ANDRADE, E. Somando papéis sociais: trajetórias fe- escolar. mininas e seus conflitos. Salvador, 1992. Nº de f 217. Disser- Compreendemos, a partir das falas dos idosos entrevista- tação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Gra- dos, que todos avaliam a escola como um espaço rígido, mas duação em Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências único e precioso, que integra os conhecimentos educacionais, Humanas, Universidade Federal da Bahia, Bahia, 1992. sociais e comportamentais e que forma pessoas mais prepara- das para a convivência em sociedade, considerando que todos ARAÚJO, M. M. de. Plasticidade do plano de recon- tiveram uma curta vida escolar na infância e adolescência. strução educacional de anísio teixeira (1952-1964). Podemos também refletir, nesta pesquisa, que os idosos Educativa, Goiás, v. 10, n.1, pp. 9-27, jul-ago 2007. Dispo- foram excluídos ou expulsos da escola, por motivos como: nível em: . Acesso em: 10 mar. 2017 infraestrutura, merenda escolar. Constatamos, aliás, que, apesar da rigidez do ambiente escolar, os entrevistados lem- BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de bram com afeto de suas professoras. Essa representação sobre velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. a escola e o trabalho docente foi ressignificado a partir do tra- balho do NEP, com sua educação dialógica e amorosa. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de A partir das repostas dos problemas levantados pela psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003. pesquisa, concluímos que os idosos atendidos pelo NEP possuem uma breve trajetória no âmbito escolar e que esta BRASIL. Lei n°1074/2003. Estatuto do Idoso. Brasília, foi permeada por práticas tradicionalistas, que concebiam a 2006. educação como aquela em que o aluno gravava as matérias e, se não decorasse de acordo com o que preconizava a ed- BRÊTAS, A. C. P. Envelhecimento e trabalho. In: OLIVEIRA, ucação bancária, acabava sendo punido por meio da citada E. M. de; SCAVONE, L. (org.). Trabalho, saúde e gênero na “palmatória”. Portanto, a vivência de uma escola meritocrática era da globalização. Goiânia: AB, 1997. influenciou e influencia hoje de maneira direta na vida dos idosos e nas atividades desenvolvidas pelo NEP na ILPI. CAVALCANTE, L. I. P.; WEIGEL, V. A. C de. Educação Como a análise indica nos relatos dos idosos, o trabalho na Amazônia: oportunidades e desafios. 2004. Dis- do NEP proporciona aos idosos uma integração entre eles, ponível em: . Acesso em: 04 de maio de 2004. Podemos concluir que muitos desses idosos tem, nas CHAVES, E; SILVA, L. P. Aproximações sobre prescrições e atividades do NEP, um momento de inclusão. Suas vozes são, práticas corporais nos grupos escolares de pirapora, januária de fato, ouvidas, em um espaço de reflexão, de debate e de e salinas: a educação dos corpos sertanejos – (1906 – 1927). amorosidade. História e Cultura, Franca, v.1, n.1, pp. 99-118, 2012. Dis-

435 ponível em: . LEAL, M. V. As Vozes dos Sujeitos da Educação de Acesso em: out. 2015. Jovens e Adultos Sobre sua Trajetoria Escolar. N° de f. 96 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura CANTINHO das Letras. Dinamica do coração. Disponív- em Pedagogia) – Centro de Ciências Sociais e Educação, el em: . Acesso em: Universidade do Estado do Pará, Belém, 2011. 25.07.2017. FARES, Josebel. (org). Memória de Belém de Antiga- LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora mente. Belém: Eduepa, 2010. Cap. Primeiro Desenho. da UNICAMP, 1990.

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______. Pedagogia do oprimido. 15ª Ed. Rio de Ja- NEVES, Margarida de Souza. História e Memória: os neiro: Paz e Terra, 1983. jogos da memória. In: MATTOS, Ilmar Rohloff (org.). Ler e escrever para contar: documenta- ção, historiografia e forma- ______. A importância do ato de ler: em ção do historiador. Rio de Janeiro: Access, 1998. três artigos que se completam. 22ª Ed. São Paulo: Cortez, 1988. OLIVEIRA, I. A.; XAVIER, M. B. (orgs). Palavra-ação em educação de jovens e adultos. Belém: EDUEPA, 2002. ______; BETTO, F. Essa escola chamada vida. 6ª Ed. São Paulo: Ática, 1988. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de Oliveira. Saberes, imaginários e representações na educação especial: a KAUARK, F.; MANHÃES, F. C.; MEDEIROS, C. H. M. Metod- problemática ética da “diferença” e da exclusão social. ologia da pesquisa: guia prático. Itabuna: Via Litterarum, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004. 2010. OLIVEIRA, I. A.; LOBATO, T. R. (org.). Cartografia de LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia saberes: representações sobre a cultura amazônica em prati- científica. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2007. cas de educação popular. Belém: EDUEPA, 2008.

LE GOFF, J. Historia e memória. Tradução Bernardo Lei- OLIVEIRA, I. A. (org.). Caderno de atividades ped- tão [et al]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990. agógicas em educação popular: relato de pesquisas e de experiências dos grupos de estudos e trabalhos. Belém: EDUEPA, 2009.

436 OLIVEIRA, I. A. (org.). Formação pedagógica de ed- VALORIZAÇÃO CULTURAL DA CINELÂNDIA?: A ucadores populares: fundamentos teórico-metodológicos PERCEPÇÃO DOS TRANSEUNTES DO CENTRO freireanos. Belém: EDUEPA, 2011. DO RIO DE JANEIRO/RJ SOBRE OS SUPOSTOS ______. A construção de categorias de análises na BENEFÍCIOS PROPORCIONADOS PELO VLT AO 245 pesquisa em educação. In: MARCONDES, Maria Inês; OL- TURISMO CULTURAL * IVEIRA, Ivanilde Apoluceno de; TEIXEIRA, Elizabete (org.). Abordagens teóricas e construções metodológicas na Unfer, Jaciara Rosalino da Silva246 pesquisa em educação. Belém: EDUEPA, 2011. Rosa, Roberto Motta da247 Arruda, Renato Fonseca de248 PRODANOV, Cleber Cristiano. Metodologia do tra- Gomes, Lilian Alves249 balho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do tra- Felix, Felipe Gonçalves250 balho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013. RESUMO RODRIGUES, A. de J. Metodologia científica. São Pau- lo: Avecamp, 2006. O presente artigo propõe-se a analisar a percepção dos transeuntes da área central da cidade do Rio de Janeiro/RJ, SANTOS, S. de J. P. dos. A amorosidade freireana particularmente da Cinelândia, sobre os supostos benefícios na prática pedagógica de educadoras do NEP: con- proporcionados pela inauguração do Veículo Leve sobre Tril- tribuição ao processo ensino-aprendizagem e for- hos (VLT) ao turismo cultural local. Uma hipótese recorrente- mação dos/as educandos/as como sujeitos sociais. nº mente defendida pelos meios de comunicação e pelo senso de f. 86 2011. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura comum é de que a implementação do VLT teria contribuído em Pedagogia) – Centro de Ciências Sociais e Educação, Uni- versidade do Estado do Pará, Belém, 2011. 245* O presente texto apresenta dados e análises da pesquisa realizada por Unfer, J. R. S. e Rosa, R. M. para a obtenção do título de Tecnólogo em Gestão de Turismo no CEFET-RJ. O trabalho foi realizado em diálogo com o orientador Arruda, R. F. e incorporou as contribuições de Gomes, L. A e Félix, F. G., inicialmente apresentadas por ocasião da banca de avaliação do Trabalho de Conclusão de Curso. 246 Graduanda em Tecnólogo em Gestão em Turismo pelo CEFET-RJ. 247 Graduando em Tecnólogo em Gestão em Turismo pelo CEFET-RJ. 248 Licenciado em História pela UNEMAT. Mestre em Preservação do Pat- rimônio Cultural pelo IPHAN e doutorando em Museologia e Patrimônio pela UNIRIO/MAST. Professor-tutor presencial nos cursos de História da UNIRIO e Tecnologia em Gestão do Turismo de CEFET-RJ, ofertados na modalidade EAD no Polo CEDERJ na cidade de Miguel Pereira. E-mail: 249 Bacharel em Ciências Sociais pela UFMG. Mestre e doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ. Pesquisadora do CESAP/IUPERJ/UCAM e professora-tutora do curso de história UNIRIO no Polo CEDERJ de Duque de Caxias – RJ. E-mail: 250 Bacharel em Turismo. Mestre e Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ. Professor do Curso Superior de Tec- nologia em Gestão de Turismo do CEFET-RJ, Campus Maracanã, ofertado na modalidade EAD. E-mail: . 437 para uma suposta valorização cultural do Centro do Rio de a realização do evento ocorre no âmbito do Comitê Olímpi- Janeiro, sobretudo para a área onde situa-se a Cinelândia. co Internacional(COI).251 Após a escolha da cidade do Rio de Diante disso, este trabalho buscou identificar a real percepção Janeiro pelo COI como sede das Olimpíadas em 2016, foram das pessoas que circulam diariamente por esta localidade. desenvolvidos projetos que vinham ocorrendo por conta da A motivação para a elaboração deste estudo decorreu após preparação da cidade para receber a Copa do Mundo de 2014. a escolha da cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Foram ampliados diversos projetos de reestruturação urbana, Olímpicos de 2016, com o acompanhamento da execução de transportes públicos, saneamento básico, de formação de uma série de obras, reformas, adaptações e reestruturações recursos humanos com cursos de idiomas para atender os tu- para que a cidade pudesse receber os visitantes, esportistas e ristas, capacitações técnicas hoteleiras, investimentos na área atender a população local. No conjunto dessas obras, foi im- de segurança, saúde, entre outros.252 plementado o projeto do VLT, que trouxe um sistema de oper- Todo esse movimento de preparação e implementação ação sobre trilhos que transita pelo Centro do Rio de Janeiro sujeitou a população a mudanças que provocaram reações e facilitou o acesso ao patrimônio histórico e cultural situado positivas e negativas devido às interferências no cotidiano nesta área. Boa parte desses atrativos culturais encontram-se que afetaram direta e indiretamente por causa das obras re- na Praça Floriano Peixoto, conhecida como Cinelândia. Sendo alizadas. assim, para melhor analisar a relação entre a inauguração do Diante das dezenas de projetos que promoveram referido modal de transporte e a suposta valorização cultur- grandes mudanças na região central da cidade do Rio de al da Cinelândia, recorreu-se aos seguintes procedimentos Janeiro, coube atentar neste artigo para as decorrentes da metodológicos: revisão de literatura, levantamento de dados implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), projeto este bibliográficos em periódicos online e de dados documentais que supostamente teria alterado a rotina desta localidade, em sítios institucionais ligados a órgãos governamentais do especialmente da Praça Floriano Peixoto, conhecida como Estado do Rio de Janeiro, além de consulta ao sítio da em- Cinelândia, promovendo uma espécie de ‘valorização cultur- presa responsável pela manutenção do VLT. Também foram al’, ampliando o fluxo de visitantes interessados em conhecer realizadas entrevistas com transeuntes da área central do Rio os atrativos históricos e culturais localizados em seu entorno de Janeiro/RJ e observações in loco com intuito de avaliar a (MOTTA, 2013). suposta alteração da rotina na referida localidade. Os resulta- Ao ser idealizado e implementado pelo Governo Feder- dos obtidos com esse estudo revelaram que as percepções dos al e pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o pano de entrevistados são bem diversas, confirmando, em alguns mo- fundo das discussões para legitimar a sua implementação mentos, algumas visões propaladas recorrentemente pelos girava em torno também da necessidade de não somente discursos oficiais e midiáticos e, contradizendo-os em outros interligar os bairros vizinhos, como Santo Cristo (Rodoviária), aspectos, apontando desafios para que se efetive a tal valor- Central do Brasil, Praça XV e Glória (Aeroporto Santos Du- ização cultural da Cinelândia. mont), mas também a outros meios de transportes, como: o modal ferroviário (incorporando os trens da Central do Brasil Palavras-chave: Rio de Janeiro; Turismo cul- tural; VLT; Percepções dos transeuntes. 251 O COI foi criado em junho de 1894, tendo como presidente eleito o grego Demetrius Vikelas e como secretário geral Pierre de Coubertin, com a finalidade explícita de organizar o Movimento Olímpico Mundial INTRODUÇÃO e realizar os Jogos Olímpicos da Era Moderna. O Comitê Olímpico Inter- nacional é uma organização não governamental, com sede na Suíça, A Olimpíada é um evento realizado a cada quatro anos, que atua na organização e realização dos Jogos Olímpicos. Além da onde participam atletas de todos os continentes do mundo. legislação e controle, tem o poder de decisão sobre o local de realização dos Jogos Olímpicos. Atualmente, o presidente e Jacques Rogge, belga São competições de diferentes modalidades esportivas, cujo que está no cargo desde o ano de 2001 (OLYMPIC GAMES, 2016). objetivo principal é fomentar a união entre todas as nações 252 OLYMPIC GAMES. Olympic Games Rio 2016 – Economic Legacy. do planeta. Contemporaneamente a escolha do lugar para Online. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2017. 438 e as estações do metrô em várias localidades do Centro do Rio visão dos usuários do VLT, que foram receptivos em responder de Janeiro), rodoviário (estabelecendo conexão direta com o ao formulário, e dos frequentadores da Praça, que são mais Terminal Rodoviário da Novo Rio), aquaviário (com estações reticentes em serem abordados, muitos em suas horas vagas. próximas ao terminal de barcas na Praça XV e do Porto Mar- A partir dos dados obtidos através das respostas do público avilha, onde atracam os cruzeiros marítimos que ingressam entrevistado, foi realizada uma análise das informações, no Rio de Janeiro) e o modal aéreo (integrando o Aeroporto mostrando características positivas e negativas presentes na Santos Dumont). Praça após as obras do VLT. O que nos levou a desenvolver essa pesquisa foi o fato de que mesmo diante desse megaevento esportivo e das trans- formações ocorridas na Praça da Cinelândia e seu entorno, nos deparamos com a resistência de algumas pessoas em fre- quentar esta localidade, despertando nossa curiosidade em confrontar o discurso oficial e midiático acerca dos supostos benefícios propiciados pelo VLT. Para tanto, este estudo visa apresentar mudanças que ocorreram com a revitalização da Praça da Cinelândia, especialmente no seu entorno, a partir da implantação do VLT, com foco nos reflexos nos usos da região e propostas de circuito de visitação aos bens culturais Figura 1: Área de estudo. Fonte: Google Maps. circunvizinhos, bem como as ações de desenvolvimentos do turismo, incluindo alguns de seus impactos sociais. CINELÂNDIA: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E AS- PECTOS CULTURAIS METODOLOGIA O trabalho foi desenvolvido a partir de pesquisas bib- A Praça da Cinelândia foi construída na primeira década liográfica e documental em sites, consultas em artigos do século 20, localizada entre o antigo Convento da Ajuda, publicados em jornais e revistas, livros, portal da Prefeitura primeiro mosteiro para mulheres no Rio de Janeiro, que foi e legislações. Por fim, foi realizada uma pesquisa de campo, demolido em 1911. A construção da Praça Floriano Peixoto através de formulários para o conceito de qualidade e do mel- constitui-se num complemento posterior das transformações horamento específico ocorrido na Praça da Cinelândia (Figura urbanistas e de modernização da cidade, iniciadas em 1904, 1). O formulário foi desenvolvido a partir de uma abordagem durante a presidência de Rodrigues Alves e o mandato do Pre- pessoal e aleatória, respeitando a localidade. O método feito Francisco Pereira Passos (DUARTE, 2009). utilizado foi o quantitativo e qualitativo, com questões de O Rio de Janeiro foi a capital Federal do Brasil por quase múltipla escolha no período de agosto a novembro de 2017. 200 anos (1763 – 1960). Durante a gestão de Pereira Passos Foram abordadas 100 pessoas entre homens e mulheres, de (1902 - 1906), foi feito e executado um plano de modernizar a diferentes idades, que estavam na Praça ou aguardando o capital, sanear, facilitar os acessos e construir um porto para a VLT, no horário de 11h30min as 13h00min. O planejamento capital para dar vazão às exportações e receber importações, foi feito a partir dos objetivos específicos, entre alguns pontos dinamizando a economia brasileira (DUARTE, 2009). As mod- questionados, pode-se citar se houve melhorias com a obra ificações não se limitaram ao Porto e seu entorno, de modo no sentido de aumento da circulação de pessoas e na segu- que também atingiram a estrutura viária da cidade (AZEVE- rança. Se na visão dos entrevistados houve um crescimento DO, 2003). do turismo com a implantação do VLT e se recomendaria a Associadas às obras do Porto estavam as aberturas da Praça para amigos e familiares, entre outras. É importante a Avenida do Cais – futura Rodrigues Alves, da Avenida do Mangue, posterior Francisco Bicalho e da Avenida Central, renomeada em 1912 como Avenida Rio Branco. A finalidade

439 primordial da Avenida Central era solucionar o histórico prob- lema de infraestrutura do Rio de Janeiro, o da distribuição dos produtos do porto com a rede de comércio estabelecida no Centro da cidade. A avenida mobilizou também o discur- so do “progresso material” como propiciador do conceito de “civilização”, típico e bem quisto entre as elites republicanas (AZEVEDO, 2003). A área central sofre novas transformações depois da demolição do Convento, sendo parte dos seus casarões sub- stituída por uma nova tipologia arquitetônica na cidade: os arranha-céus de habitação coletiva (MEIRELLES, 2014). Numa Figura 2: Palácio Pedro Ernesto em 1923. Atualmente abriga a Câmara iniciativa do empresário espanhol Francisco Serrador, radica- Municipal do Rio de Janeiro. Fonte: Felipe Lucena/Diário do Rio. do no Brasil, a Praça da Cinelândia passou a ter o seu projeto original ressignificado com o objetivo de transformá-la em uma versão brasileira da Times Square, a saber, rodeada de construções monumentais, comportando cinemas, restau- rantes e habitações para a elite (MEIRELLES, 2014). Neste período, início do século XX, foram construídos diversos equipamentos na região da Avenida Central (atual- mente trecho da Av. Rio Branco) que se consolidaram nos dias atuais como bens culturais, conforme será tratado mais adiante, sendo: Teatro Municipal (1909); Biblioteca Nacional (decorrente da construção do novo prédio em 1910); Museu Nacional de Belas Artes (1908); Câmara Municipal (1923); Figura 3: Theatro Municipal no século XX. Fonte: Augusto Malta. Centro Cultural da Justiça Federal (1909); “Bar do Amarelinho” (1920); Cinema Odeon (1926). A região da Cinelândia é complexa, plural, híbrida e em Estima-se que a grande concentração de bens culturais constante transformação, assim com os sujeitos que a ani- existentes na região da Cinelândia torna a Praça uma referên- mam (MACÊDO; ANDRADE, 2016). De acordo com Máximo cia para todos os que a visitam. Essa referência foi sendo con- (1997, p. 197), podemos compreender que struída desde a grande urbanização do Prefeito Pereira Passos (1903 e 1906), considerado um grande urbanista culturalista (AZEVEDO, 2003). Isso foi observado na preservação do prédio A Cinelândia sempre foi um território aberto do Palácio Pedro Ernesto (Figura 2), que foi mantido com suas de muitas causas, de todos os partidos, de muitos personagens que lá estão há déca- características originais e a escolha do local para a construção das e de tantos outros que vem e vão com do Teatro Municipal (Figura 3). certa fugacidade. Sempre impregnada da História de muitas histórias (MÁXIMO, 1997, p. 197 apud MACÊDO; ANDRADE, 2016).

A Cinelândia (Figura 4) foi protegida pelo Projeto Corre- dor Cultural (1984), decorrente do Decreto de Lei 4141 de 1983, onde definiu que o Corredor Cultural teria como obje- tivo “preservar e revitalizar áreas no Centro da Cidade levando em consideração os elementos ambientais que representam

440 valores culturais, históricos, arquitetônicos e tradicionais para TIAGO, 2011). Isso em concomitância com o ressurgimento a população”. dos bondes que estavam fora de linha e coube às indústrias francesas elaborar os bondes sob padrões mais sofisticados e dotados de tecnologia de ponta, que também foi compartil- hado com empresas da Alemanha, Canadá e Espanha (BRITTO, 2014). No Rio de Janeiro, o VLT foi visto a priori como solução para a diminuição da circulação de veículos no Centro da cidade e como forma de minimizar os impactos e efeitos so- noros nocivos, como os altos níveis de decibéis causados por constantes engarrafamentos e trânsito intenso253, e ainda problemas respiratórios, provocados pela elevada quantidade Figura 4: A Cinelândia antes das obras do VLT. Foto: Alexandre Macieira (2017). de monóxido de carbono, hidrocarbonetos, dióxido de enxofre etc. liberada pelas descargas dos veículos automotores (MOT- TA, 2013). Ao ser idealizado e implementado pela prefeitura Projeto Corredor Cultural pode ser subdividido em quatro do Rio de Janeiro, o pano de fundo das discussões para legit- períodos: Implantação – delimitação, criação do quadro legal imar a sua implantação girava em torno da necessidade não e institucional; consolidação – materialização, aprofunda- somente de interligar os bairros vizinhos, como: Santo Cristo mento, recuperação e conservação; estruturação – incorpo- (Rodoviária), Central do Brasil, Praça XV e Glória (Aeroporto ração dos espaços públicos e das melhorias incrementais; e Santos Dumont), mas também com outros meios de trans- integração – adesão de outros atores e outros processos (PIN- portes, como: o metrô e trens na Central do Brasil, ônibus e HEIRO, 2004, p.76 apud LIMA, 2007). barcas na Praça XV, Porto Maravilha na Praça Mauá e aviões A proposta legislativa do Corredor Cultural alterou alguns no Aeroporto Santos Dumont (MOTTA, 2013). tipos de uso das edificações, proibindo alguns deles- como a Em vista disso, o secretário municipal de transportes da construção de vagas para veículos nos prédios preservados - e cidade do Rio de Janeiro, em 2016, ressaltou que “mais de 400 limitando outros. Desde então, os poderes públicos municipal, cidades já operam com sucesso esse sistema. Os modelos em estadual e federal têm investido mais incisivamente em ações Barcelona, na Espanha; Montpelier e Bordeaux, na França são voltadas a estimular obras de recuperação das fachadas, de exemplos de referência”.254 requalificação urbana, reurbanizando ruas, largos e praças O sistema de operação sobre trilhos255 que transita e investindo na iluminação dos edifícios mais significativos pelo interior do Centro do Rio de Janeiro permite visualizar (LIMA, 2007). o movimento do centro histórico, a diversidade arquitetôni- No próximo tópico, serão abordadas as recentes transfor- ca, o seu urbanismo e seus bens culturais, com paradas em mações ocorridas nessa localidade em função da implemen- plataformas destinadas a embarque e desembarque. Todas as tação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). composições possuem mecanismos de segurança sonorizados

253 Icetran. Conheça os limites legais para aparelhagem de O PROJETO DO VEÍCULO LEVE SOBRE TRILHOS (VLT) som automotivo. Disponível em: . Acesso O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) é um meio de trans- em: 14 out. 2017. porte coletivo formado por composições que circulam sobre 254 São Paulo trem jeito. VLT, o bonde moderno que modificará o trilhos e utiliza energia elétrica para se locomover, podendo centro do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2017. do petróleo ocorrida na Europa e demais continentes, tendo 255 O VLT tem uma forma de alimentação elétrica funcional sustentável obtida através de um terceiro trilho, que dispensa via aérea, tornando em vista que os bondes utilizavam energia elétrica (SAN- mais atraente a sua locomotiva. 441 e que atendem a pessoas com deficiências físicas e/ou mo- como também deu fluidez para o trânsito no Centro do Rio toras256. O seu trajeto é dividido em duas linhas, sendo: 1) de Janeiro, que se encontrava cotidianamente congestionado, Linha azul: trecho desde a Praia Formosa, localizada no bairro com o grande número de veículos que circulavam na região de Santo Cristo, até o Aeroporto Santos Dumont, localizado no do Centro. Centro do Município do Rio de Janeiro; 2) Linha verde: trecho Durante as obras de construções das vias do VLT, foram desde a Praia Formosa, localizada no bairro de Santo Cristo, elaborados novos percursos para a circulação dos veículos, até a Praça XV, localizada no Centro do Município do Rio de tráfegos alterados para outras ruas, vias, avenidas foram Janeiro (Figura 5). fechadas ao acesso de determinados tipos de veículo, como Como apresentada na Figura 5, podemos conferir os tra- por exemplo: ônibus, e houve mais espaços para a livre circu- jetos descritos anteriormente, bem como a sugestão de uma lação de transeuntes. Para tanto, fez-se necessário compor o terceira linha a ser implementada futuramente. Há nestes Consórcio VLT Carioca, formado pelas empresas Actua – CCR, percursos 26 pontos para embarque e desembarque. Entre- OTP – Odebrecht Transportes, Riopar, Benito Roggio Trans- tanto, indica-se a previsão para expansão das linhas a partir porte e RATP,259 a fim de desenvolver estudos e implementar de janeiro de 2018, devendo a mesma iniciar com as obras da as grandes transformações que implicariam na alteração do Linha 3, conforme dados do site do VLT Carioca.257 cotidiano da população (COSTA, 2015). A implementação do projeto do Veículo Leve sobre Tril- hos (VLT) foi amplamente alardeada pelos meios de comuni- cação e por representantes de diversas esferas governamen- tais como uma espécie de ‘revolução na mobilidade urbana carioca’ que contribuiria para impulsionar, inclusive, o turismo cultural local. No tópico seguinte, será discutida a suposta ‘valorização cultural’ da Cinelândia como consequência da implantação do VLT, tomando como referência a percepção dos transeuntes Figura 5:Trajeto das linhas do VLT. que circulam cotidianamente por essa localidade. Fonte: Prefeitura do Rio. A PERCEPÇÃO DOS TRANSEUNTES SOBRE A SUPOS- A Via Trolebus258 (2017) comentou o fato de que desde TA ‘VALORIZAÇÃO CULTURAL’ DA CINELÂNDIA a inauguração em 5 de junho de 2016 até o final de 2017, o VLT transportou 15 milhões de passageiros (sendo mais de 10 No período de 26 de outubro à 03 de novembro de 2017, milhões neste último ano), perfazendo quase 150 mil viagens foram entrevistadas 100 pessoas, com perguntas criadas por ao longo desse tempo, com uma média de 28 mil pessoas nós. Os resultados obtidos estão apresentados em forma de transportadas diariamente no início de 2017. gráficos e tabelas e separados pelas perguntas que foram De acordo com Costa (2015), o VLT trouxe uma nova, feitas. atraente e sofisticada forma de locomoção com um visual A primeira questão que nos remete é se, de fato, os ob- panorâmico que interligou os atrativos e os transportes, bem jetivos propostos pelos idealizadores do VLT e das obras na Cinelândia foram assimilados e constatados pela população. 256 VLT Carioca. Sobre o VLT. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2017. dos entrevistados avalia que a praça ficou mais valorizada, 257 VLT Carioca, loc. Cit. representado por 81% das respostas. 258 Via Trolebus. VLT supera marca de 15 milhões de passageiros transportados em 18 meses de operação no Rio. Disponível em:. Acesso 259 CCR. Fato Relevante – VLT. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2018. 442 Apesar do quesito “Insegurança” ter sido maior que o de “Segurança”, temos que levar em consideração que somente 19% dos entrevistados responderam “não”. Muitos dos entre- vistados que marcaram “Segurança” como fator de valorização da praça atrelaram isso à presença do Centro Presente262. No tocante aos pontos negativos, tentou-se aprofundar a busca pelos elementos considerados ausentes no entorno da praça, conforme apresentado no Gráfico 3, onde dest- acam-se meios voltados para atrair a população para essa região histórica. Assim, a opção mais votada foi a de “Eventos Gráfico 1: Percentual da valorização da praça com o VLT, na visão musicais” (36%)263, seguida de “Esporte e Lazer” (23%)264. En- dos frequentadores da praça e usuários do VLT. tende-se que isso deriva de alguns dos próprios sentidos da Dentre os pontos ressaltados positivamente pelas pes- palavra praça que, de acordo com o dicionário Aurélio (2017, soas que trafegam pela região destacam-se no Gráfico 2 o online), significa “espaço circular destinado a espetáculos”; quesito “Paisagístico” (21%) como o que mais trouxe val- “meio sociocultural de um determinado local”. orização à praça, seguido pelo “Trânsito” (17%), “Turismo” (15%), “Segurança” (13%), “Espaço livre” (13%), “Cultural” (10%), “Ciclovia” (7%), “Econômico” (2%) e “Outros” (2%).260 Entretanto, entre os 19% dos entrevistados que acreditaram não existir pontos positivos com as reformas urbana e pais- agística no entorno da praça, destacando no Gráfico 3 os motivos para tanto, como: “Insegurança” (39%), seguido por 22% para “Falta de atrativos” e “Lotação de transportes”; “Concentração de Pessoas” e “Outros” (9%).261

Gráfico 3: Distribuição do que falta como atrativo na praça.

262 O Centro Presente faz parte de um Projeto que já foi implantando em outras áreas da cidade, como Méier, na Lagoa Rodrigo de Freitas e no Aterro do Flamengo. A operação Segurança Presente, uma iniciativa, que é fruto de uma parceria entre o Governo do Estado e o Sistema Fecomér- cio do Rio de Janeiro. A operação conta com a participação de policiais militares da ativa e da reserva e agentes civis egressos das Forças Armadas. Diversos órgãos atuam coordenados na ação: Secretária do Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, Polícia Militar, Polícia Civil, Comando Militar do Leste, Guarda Municipal, Secretárias Munici- pais de Ordem Pública, de Desenvolvimento Social, de Conservação, de Transportes e Comlurb. As abordagens feitas pelos agentes são filmadas Gráfico 2: Distribuição dos pontos positivos e negativos sobre a valor- e as equipes são monitoradas por GPS. No centro Presente são 528 ização da praça de acordo com as respostas dos entrevistados. agentes de segurança que atuam na segurança dos frequentadores do centro (LUCENA, 2016). Cabe ressaltar que esse Programa de segurança pública embora seja bem visto pelos transeuntes entrevistados, também possui críticas que não serão tratadas nesse artigo. 263 Eventos Musicais (shows gratuitos, para entretenimentos dos 260 A valorização se deu por conta da mobilidade aos que responderam frequentadores da praça). “outros”. 264 Esporte (incentivar modalidades de esportes) e Lazer (como feiras 261 Falta de atividades infantis e falta de ônibus. temáticas, de livros). 443 A partir deste gráfico, observou-se uma demanda da Esse equipamento cultural foi seguido pela Biblioteca Nacion- população por atividades socioculturais a serem realizadas na al e Museu de Belas Artes. Cinelândia, que a tornaria mais atrativa ao público entrevista- No entanto, havia ainda o interesse em saber a visão dos do. Por outro lado, buscou-se apreender de forma qualitativa entrevistados se a Cinelândia poderia ser considerada um se a circulação de pessoas aumentou na praça após a reforma atrativo turístico da cidade do Rio de Janeiro, onde 88% dos urbana e paisagística no seu entorno. Destaque-se que os entrevistados consideraram-na como um atrativo turístico e pesquisadores são habitués do local, pois trabalham nas reconhecem todo o valor histórico dos monumentos ali local- proximidades. Sendo assim, sabem que o espaço em questão izados. é tanto evitado por alguns, quanto estimado por outros. Embora a maioria tenha reconhecido a Cinelândia como Dentre os entrevistados, 83% entenderam que o número um atrativo turístico, tornou-se imperativo identificar quais de pessoas circulando na Cinelândia aumentou devido ao VLT razões levaram parte dos entrevistados a afirmar não o ser, e sua plataforma instalada na imediação da praça. Foi possível considerando a necessidade de conhecer minimamente al- observar também as ferramentas de inclusão propostas pelo guns anseios da população, bem como fornecer dados que VLT, como a acessibilidade para as pessoas com deficiência, possam subsidiar o planejamento e a elaboração de planos com rampas suaves e antiderrapantes. Todavia,17% avaliam de ação para o desenvolvimento do turismo na região que que o número de pessoas caminhando por ali diminuiu. Entre circunvizinha a Cinelândia. os entrevistados que destacaram a queda no fluxo de pessoas Desta forma, na Tabela 1 são apresentados os motivos incluem-se cerca de 10 comerciantes locais, que apontam isso alegados pelos entrevistados que não consideram a praça ocorreu devido a eliminação dos vários pontos de ônibus que como um atrativo turístico. Vemos que 53% sentem “Falta de deixaram de circular na Av. Rio Branco. Antes do VLT havia atrativos” na praça, seguido por 40% que mencionaram “Inse- maior número de consumidores nos seus estabelecimentos. gurança” e 7% “Outros”, estando os dois últimos relacionados Ou seja, apesar da modificação urbana e paisagística em ao fato de muitas pessoas estarem em situação de rua, fazen- questão proporcionar pontos positivos variados para deter- do com que as pessoas não se sintam seguras. minados segmentos da sociedade, alguns aspectos negativos podem ser constatados por quem vive e trabalha cotidiana- Motivo Percentual mente no local. Falha de atrativos 53% A partir dos diversos equipamentos culturais que ficam no entorno da Cinelândia, apresentados nos tópicos acima, Insegurança 40% buscou-se saber junto aos transeuntes e comerciantes quais Grande concentração de pessoas 0% são os mais visitados por eles. Para tanto, indagou-se aos Outros 7% entrevistados se os mesmos já haviam visitado alguns dos Tabela 1: Motivos pelos quais os entrevistados não consideram a praça cinco equipamentos culturais localizados nas imediações como atrativo turístico. da Cinelândia. Das respostas, 83% foram afirmativas e 17% negativas. Dos 83% entrevistados, os equipamentos culturais Até o presente momento uma série de dados já foi elen- mais visitados foram: 34% - Teatro Municipal; 31% - Bibliote- cada, mas a satisfação dos usuários do VLT e frequentadores ca Nacional; 19% - Museu de Belas Artes; 8% - Centro Cultural da Cinelândia quanto às obras no entorno não foi apresenta- da Justiça Federal; 8% - Câmara Municipal. da. A satisfação dos entrevistados em relação às obras está Neste sentido, pode-se notar que muitos dos entrevista- expressa no Gráfico 4. Perguntamos aos frequentadores da dos conhecem o valor arquitetônico e cultural dos bens local- praça e usuários do VLT o que eles pensavam das obras (refor- izados na Cinelândia, sendo o Teatro Municipal o equipamen- ma urbana e paisagística), sendo que 18% responderam - to cultural mais visitado, conforme opinião de trabalhadores, “Ótimo”; 64% “Bom”, demonstrando-se satisfeitos. Por outro comerciantes, estudantes e demais visitantes da Cinelândia. lado, 15% “Regular” e 3% “Ruim”, devendo-se principalmente a falta de finalização das obras, especialmente os detalhes

444 que ficaram faltando após a implantação do VLT, tais como o heres, vemos que 70% (7 em cada 10) das mulheres alegaram acabamento das calçadas. insegurança na praça, enquanto que apenas 22% (02 em cada 09) dos homens aproximadamente fizeram tal menção. Muitos dos entrevistados que responderam ao for- mulário afirmaram que têm mais segurança agora com o Cen- tro Presente, que coibiu muito os assaltos entorno da praça, o que permitiu uma maior circulação de pessoas. Além disso, a ciclovia apresenta-se como uma nova potencial opção de mobilidade urbana no Centro. Nas áreas que passam pelo processo de gentrificação265, como na Cinelândia, esses usos podem alterar a paisagem e Gráfico 4: Distribuição do grau de satisfação com as obras realizadas na imprimir outros sentidos com as “relocalizações da tradição praça. do local (JAMESON, 1997 apud LEITE, 2002). Com a implan- tação do VLT, foi possível a apropriação de outros sujeitos, Outra constatação obtida foi a de que 79% dos entre- que antes não frequentavam esse espaço. Contudo, é preciso vistados indicariam a Cinelândia como um atrativo turísti- ter em conta que as práticas de gentrificação podem separar co a um familiar ou amigo. Todavia, 21% não fariam tal esses lugares dos que nele vivem (CERTEAU, 1996, p.165 apud recomendação. Nesta constatação faz-se necessário levar em LEITE, 2002), implicando diretamente na vida das pessoas. consideração o fato de que é esperado que se uma pessoa gosta verdadeiramente de um lugar, ela tende a comentar CONSIDERAÇÕES FINAIS com outras próximas a ela, instigando-as a conhecer o local. Por outro lado, em decorrência do fator da segurança estar O VLT enquanto alternativa de mobilidade urbana inte- entre os agravantes negativos entre homens e mulheres, sep- gra diferentes modais de transportes no centro do Rio de Ja- aramos a amostra comparando os dados entre os dois grupos. neiro e permite que os visitantes conheçam o Centro Histórico. No Organograma 1 abaixo estão expressos os resultados A grande maioria dos frequentadores da praça e usuários do dos entrevistados que escolheram “Insegurança” como critério VLT estão satisfeitos com as obras do VLT e com as mudanças para definir que a Cinelândia não ficou mais valorizada após ocorridas na Cinelândia. as obras do VLT. Vemos que das 10 mulheres que responderam Foram mudanças necessárias para a revitalização da Av. “Não”, 07 atrelam ao fator insegurança, ao passo que dos 09 Rio Branco e valorização da Cinelândia, apesar de que algu- homens, 02 marcaram a mesma opção. mas pessoas ainda reclamam que agora tem que andar muito para pegar um ônibus, com a eliminação de vários pontos de ônibus que deixaram de circular na Av. Rio Branco, ou acham que o VLT tinha que ser gratuito, por abranger uma área que não é muito extensa, ou que a passagem tinha que ter um valor menor. Evidenciamos que os frequentadores e visitantes da Cinelândia desconhecem a gratuidade de acesso aos bens culturais que circundam a praça, como: o Palácio Pedro Er-

Organograma 1: Valorização ou não da Praça da Cinelândia com o VLT. 265 O fenômeno da gentrificação pode ser compreendido de acordo com Arantes (2000) como uma [...] resposta específica da máquina urbana de crescimento a uma conjuntura histórica marcada pela desindustrial- A partir dos dados acima, pode-se constatar que as mul- ização e consequente desinvestimento de áreas urbanas significativas, a heres se sentem mais inseguras na praça do que os homens. terceirização crescente das cidades, a precarização da força de trabalho Ao analisarmos as porcentagens referentes a homens e mul- remanescente e sobretudo a presença desestabilizadora de uma under- class fora do mercado (ARANTES, 2000, p.31). 445 nesto (Câmara Municipal) e o Centro Cultural da Justiça Fed- Por fim, podemos levar em consideração a importân- eral que são gratuitos a visitação. Desse modo, é importante cia da observação do cotidiano para pensar a “morte e vida sublinhar a importância dessas instituições se tornarem mais de grandes cidades”, conforme ressalta Jane Jacobs (2000). convidativas à entrada daqueles que conhecem apenas suas Segundo a autora, a diversidade de usos é um fator de sus- ostentosas fachadas. tentação da vitalidade urbana, tanto em termos econômicos Foi possível identificar que a maioria dos entrevistados quanto sociais. Nesse sentido, a vida da cidade diz respeito às acredita que houve uma valorização do espaço urbano da relações das pessoas com o lugar em que residem, transitam, praça e, como pontos positivos para essa melhoria, foram vivenciam. O espaço público visto como local de insegurança citados como melhores avaliados os quesitos Paisagístico, e medo não fomenta a vitalidade em questão. Diante dessa Trânsito e Turismo. Em vista disso, a maioria recomendaria a análise, podemos nos perguntar como então, pensar em uma praça para amigos e familiares por terem desfrutado de bons praça como atrativo turístico se ela não convida moradores momentos ao visitar o local. e trabalhadores do entorno, usuários que a frequentam em No entanto, constatamos que a insegurança ainda pre- horário comercial e visitantes a usufrui-la em toda sua poten- ocupa parte dos entrevistados, principalmente com relação cialidade de palco da vida urbana? aos horários noturnos no local. Além disso, algumas pessoas não recomendariam visitar a praça para amigos e familiares. CULTURAL VALORIZATION OF CINELANDIA?: THE Outro ponto comentado foi a necessidade de realizar conser- tos nas calçadas do entorno. PERCEPTION OF PASSERSBY OF THE CENTER Apesar da referida insegurança, as pesquisas indicaram OF RIO DE JANEIRO ABOUT THE SUPPOSED que o Centro Presente tem inibido os furtos que ocorriam na BENEFITS PROVIDED BY THE LRV TO CULTURAL praça e em seu entorno em horário diurno. Mas atualmente, TOURISM de acordo com os entrevistados, há uma diminuição desses agentes em comparação com a época das Olimpíadas, que ABSTRACT estavam mais presentes na Cinelândia. The present article proposes to analyze the perception of Atualmente, cresceu muito na praça o número de pes- passersby in the central area of the​​ city of Rio de Janeiro/RJ, soas em situação de rua, como relatou alguns entrevistados. particularly Cinelândia, about the supposed benefits of the E um fato que foi amplamente verbalizado por todos é que à inauguration of the Light Rail Vehicle (LRV) to local cultural noite é praticamente impossível frequentar a praça sem correr tourism. One hypothesis recurrently defended by the media riscos. and common sense is that the implementation of the VLT Na visão da maioria dos entrevistados usuários do VLT, would have contributed to a supposed cultural valorization o veículo proporcionou uma diminuição dos percursos no of the Center of Rio de Janeiro, especially for the area where centro do Rio de Janeiro, por meio de um transporte seguro e Cinelândia is located. In view of this, this work sought to confortável. O VLT viabilizou mais rápido acesso a essas áreas identify the real perception of the people that circulate daily do centro histórico e à Cinelândia, possibilitando um vislum- through this locality. The motivation for this study came after bramento da paisagem urbana e seus bens culturais, muitos the city of Rio de Janeiro was chosen to host the 2016 Olym- esquecidos e encobertos pelo trânsito confuso. Essa transfor- pic Games, with the follow-up of a series of works, reforms, mação foi possível em virtude da diminuição do tráfego de adaptations and restructurings so that the city could receive veículos automotores, reduzindo a intensidade dessa movi- visitors, and attend to the local population. In all of these mentação. Contudo essa redução na movimentação do trans- works, the LRV project was implemented, which brought a porte rodoviário na Cinelândia prejudicou muitas pessoas que system of operation on rails that travels through the Center vinham direto de bairros periféricos para o centro da cidade, of Rio de Janeiro and facilitated access to the historical and alterando seus percursos a trabalho ou mesmo a lazer. cultural heritage located in this area. A good part of these cultural attractions are in Floriano Peixoto Square, known as

446 Cinelândia. Thus, to better analyze the relationship between . Acesso em: 11 supposed cultural value of Cinelândia, the following meth- out. 2017. odological procedures were used: literature review, biblio- graphic data collection in online journals and documentary BRASIL. Decreto - Lei n. 4141 de 14 de jul. de 1983. data in institutional sites linked to government agencies of Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Pod- the State of Rio de Janeiro, in addition to consulting the site er Executivo, RJ, 17 jan. 1984. Disponível em: Acesso em: 16 nov. 2017. conducted interviews with passers-by from the central area of ​​ Rio de Janeiro/RJ and in loco observations with the purpose BRITTO, C. VLT: Um bonde chamado desejo ou conto of evaluating the supposed alteration of the routine in said do vigário? Disponível em: . interviewees’ perceptions are quite diverse, confirming, at Acesso em: 14 out. 2017. times, some visions repeatedly promoted by the official and media discourses and, contradicting them in other aspects, Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Centro Cultural: pointing out the challenges in order to achieve such cultural Projetos. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2017. Key words: Rio de Janeiro; Cultural tourism; LRT; Perceptions of passersby. Carta Capital. VLT, o bonde moderno que modificará o centro do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2017. ARANTES, O. “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”. In: ARANTES, O.; VAINER, C.B. e MARICATO, CCR. Fato Relevante – VLT. Disponível em: . Acesso consensos. Petrópolis, Vozes, 2000, p.11-74. Disponível em: em: 10 fev. 2018. . Acessado em: 12 mar. 2018. Centro Cultural da Justiça Federal. Institucional. Dis- ARANTES, A. A. O Patrimônio cultural e seus usos: A Di- ponível em: . mensão urbana. Habitus, Goiânia, v.4, n.1 p. 423-425, jan./ Acesso em: 10 fev. 2018. jun. 2006. Cinema Odeon. Sobre Odeon Centro Cultural Luiz AZEVEDO, A. N. A Reforma Pereira Passos: uma ten- Severiano Ribeiro. Disponível . Acesso em: 07 fev. 2018. de Janeiro 10, maio-ago.2003. CÔRREA, R. L. Resumo do Livro O Espaço urbano. 3. Bar Amarelinho da Cinelândia. A História. Dis- ed, n.174. São Paulo: Ed. Atica, 1995. p.1-16. ponível em: . Acesso em 05 mar. 2018. da Cidade do Rio de Janeiro. Trabalho de Conclusão apre- sentado ao Curso de Especialização em Engenharia Urbana. BARCELAR, C.; LIMA. L. O Globo. Sem conservação, UFRJ, 2015. 90 p. estátuas do Rio sofrem vandalismo. Disponível em: 447 CPADNews. Av. Rio Branco terá trecho reaberto JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Trad. neste sábado; confira alterações. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2018. carioca paga pelas mudanças? Disponível em: Aces- neste sábado com alterações no trânsito. Disponível so em: 27 dez. 2017. em: . Acesso em: 12 fev. 2018. KRUSCHEWSKY, V. Arquitetura da Gentrificação. Disponível em: . Acesso em: 03 mar. 2018. 16/01. Disponível em: . LEITE, R. P. Contra-usos e espaço urbano. Revista Bra- Acesso em: 12 fev. 2018. sileira de Ciências Sociais, Febrero 2002.

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ZEPEDA, V. A arquitetura das manifestações políti- cas brasileiras. Disponível em: Acesso em: 10 fev. 2018.

450 Lista de Autores

Abreu, Regina: [email protected] / UNIRIO

Alvarenga, André Luis de Souza: [email protected] / PPGMS/UNIRIO

Amoras, Barbara da Costa: [email protected] / UFF

Araújo, Antônia Beatriz Ribeiro: [email protected] / Universidade Federal do Piauí

Araujo, Mikaela Moreno Vasconcelos: [email protected] / UPE

Azevedo, Renan Caldas Galhardo: [email protected] / UERJ

Bandeira, Fabiana: [email protected] / IPN/ FEUDUC, PPGH/UNIRIO, PPCIS/UERJ, UNIRIO

Barbosa, Helena Dóris de Almeida: [email protected] / FACTUR/UFPA

Bastos, Wanja: [email protected]

Beatriz, Leila: [email protected] / UNIRIO, PPGMS

Berg, Thayane Vicente Vam de: [email protected] / UNIRIO

Boeing, Rafael Antônio Motta: [email protected] / UNIRIO

Borges, Vera Lúcia Bogéa: [email protected] / DETUR/UNIRIO

Borges, Maria de Lourdes: [email protected] / Universidade La Salle

Botelho, Eloise Silveira: [email protected] / UNIRIO

Brochier, Rita de Cassia da Rosa Sampaio: [email protected] / UNIVERSIDADE LA SALLE

Buarque, Isabela Maria A. G. / UFRJ

Cavalcant,i Hannah da Cunha Tenório: [email protected] / UFRJ

Christmann, Juliana Pugliese: [email protected] / Universidade La Salle

451 Coelho, Katherini: [email protected] / UDESC, CFH/UFSC

Cruz, Carla Ferreira: [email protected] / PEP/MP/IPHAN

Faria, Izabel Cristina Augusto de Souza: [email protected] / DETUR/UNIRIO

Farias, Francisco Ramos de / UNIRIO, PPGMS

Feigelson, Simone: [email protected] / DETUR/UNIRIO

Felix, Felipe Gonçalves: [email protected] / IPPUR-UFRJ, CEFET-RJ

Ferreira, Bruna Raíssa Santos: [email protected] / Universidade Católica de Pernambuco

Ferreira, Cecília Nascimento: [email protected] / UNOPAR

Ferreira, Jane Victal: [email protected] / POSURB PUC-Campinas

Fraga, Carla: [email protected] / DETUR/UNIRIO

Gomes, Lilian Alves: [email protected] / UFMG, UFRJ, CEDERJ

Gondim, Vânia: [email protected] / ULHT

Graebin, Cleusa Maria Gomes: [email protected] / Universidade La Salle

Gutierrez, Ana Lerida Pacheco: [email protected] / UNIVERSIDADE LA SALLE/ UFRGS

Kern, Jackelina Pinheiro Meira: [email protected] / Universidade de Coimbra/Universidade Federal Fluminense

Lavandoviski, Joice: [email protected] / DETUR/UNIRIO

Leal, Milene Vasconcelos

Lemos, José Francisco Ribeiro: [email protected] @ufrgs.br / UNIVERSIDADE LA SALLE /UFRGS

Lopes, Fabíola Löwenthal: [email protected] / POSURB PUC-Campinas

Lopes, João Maurício Bragança Garcia: [email protected] / PPCULT/UFF

452 Melo, Kelly Castelo Branco da Silva: [email protected] / UNIRIO, PPGMS/UNIRIO

Menezes, Anna Thereza do Valle Bezerra de: [email protected] / UFRJ

Oliveira, Luciano Souza: [email protected] / Universidade Federal do Piauí

Oliveira, Otair Fernandes de: [email protected] / PPGPaCS/IM/UFRRJ, LEAFRO

Pereira, Pamela de Oliveira: [email protected] / PPGMS/UNIRIO

Reis, Gabrielle: [email protected] / UFRJ

Ribeiro, Leila Beatriz / UNIRIO IBICT/UFRJ, UFRJ

Rosa, Roberto Motta da: [email protected] / CEFET-RJ

Rosario, Judite dos Santos / UFRJ, UFRRJ

Santos, Marilane Abreu: [email protected] / UFRJ

Silva, Amanda Maria dos Santos: [email protected] / Universidade Federal do Piauí

Silva, David Junior de Souza / UNIFAP, IESA/UFG

Silva, Gabriela Santos da: [email protected] / Universidade Federal da Bahia

Silva, Paulo Henrique Menezes da: [email protected] / PPGPaCS/IM/UFRRJ, LEAFRO

Silva, Raquel Beatriz: [email protected]

Silva, Sandreson Marcelo Pereira da: [email protected] / PPLSA/UFPA

Teixeira, Sidélia Santos: [email protected] / Universidade Federal da Bahia

Toledo, Leonardo Ramos de: [email protected] / UFJF

Umbach, Rosani U. K.: [email protected] / UFSM

Unfer, Jaciara Rosalino da Silva: [email protected] / CEFET-RJ

Vieira, Antonio Tostes Baêta / PPGMS-UNIRIO 453 Yokoyama, Adriana: [email protected] / UFSM

Zottis, Alexandra Marcella: [email protected] / UNILASALLE, FEEVALE

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