3 Genealogia Da Moral Torcedora
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3 Genealogia da moral torcedora 3.1 Arqueologias da violência “Da guerra dos opostos nasce todo vir-a-ser...” Friedrich Nietzsche A publicação em 1966 do livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, lançaria um desafio epistemológico no cenário intelectual internacional não apenas para disciplinas científicas como a Biologia, a Economia Política e a Lingüística. Ao lado das ciências da vida, do trabalho e da linguagem, as ciências do tempo ─ o historiscismo, a historiografia de cunho positivista e os historiadores tout court ─ viram-se da mesma forma interrogados por uma crítica a suas categorias apriorísticas, a seus procedimentos usuais, a seus critérios de validação interna e a suas fontes tradicionais mais arraigadas. Embora ainda imerso naquele momento nas questões de fundo do estruturalismo, sob o impacto da obra de Lévi-Strauss na antropologia, de Lacan na psicanálise e de Barthes na semiologia, o filósofo francês começava a esgueirar-se dos termos estruturalistas habituais que dividiram antropólogos e historiadores das décadas de 1940, 1950 e 1960, com as polarizações entre evento e estrutura, diacronia e sincronia, continuidade e ruptura, cadeias de causalidade e cadeias de significado. A proposição de uma nova classe de palavras, inspirada em conotações espaciais e na sugestiva metáfora arqueológica, o que seria aprofundado em sua obra seguinte, A arqueologia do saber (1969)1, fez Foucault preterir o continuum da história das idéias, seus “efeitos de superfície”2 na epistémê da cultura ocidental, e concentrar sua análise em indagações de inspiração kantiana sobre os a priori históricos e sobre as condições de possibilidade do entendimento e do conhecimento do homem, seja o sujeito transcendental seja 1 Cf. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986. 2 Cf. Id. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 12. 340 o sujeito empírico. À busca pelos estratos e substratos mais recônditos das camadas do saber ─ a analogia do arqueólogo que reconstitui a vida cultural de um povo a partir de seus traços materiais3 ─, correspondeu a identificação do momento em que, para o autor, a ruptura operada pelo Renascimento transforma o ser humano em sujeito e objeto da ordenação dos discursos. A demonstração se tornou possível quer através da invenção da positividade da antropologia no século XVI, quer através do desvelamento da “ilusão das origens”, tão cara a certos historiadores. Com efeito, ao invés da definição de uma origem, que implicava nas noções de linearidade e de causalidade, a escrita de Foucault se iniciava com a prospecção de um começo, feito segundo ele de “surpresas” e “solavancos”, mais do que de “regularidades” e “monotonias”, e culminava com o reconhecimento das diferenças (o outro) em sobreposição às semelhanças (o mesmo)4; em vez de uma história total, em que tudo pode ser remetido a um centro originário, a um princípio regulador, a um núcleo gerador, o filósofo propunha uma história geral, capaz de captar as “configurações descontínuas do saber científico ocidental”5, com suas interações, dispersões, linhas de fuga e correlações entre os fenômenos mais díspares e variegados. Ao contrário da acepção comum dos historiadores quanto à idéia de arquivo, entendido como lugar onde se encontram alojados, organizados e indexados os documentos, a arché foucaultiana definia-o como o “sistema geral das formações e transformações dos enunciados”6, no qual é possível perceber as condições de possibilidade dos discursos inscritos em uma cultura, que depois vão se converter também em práticas discursivas, em regimes de exclusão, em tecnologias de poder, como no-lo mostram os estudos do autor sobre a loucura, a clínica e a prisão. Em ensaio sobre os fundamentos de Les mots et les choses, intitulado “Arqueologia da arqueologia”, publicado por ocasião do lançamento do livro no final dos anos 60, o filósofo brasileiro Benedito Nunes propunha a idéia de 3 Para uma diferenciação entre o passado tangível (arqueologia), o passado lembrado (memória) e o passado registrado (história), ver a obra de David Lowenthal. Cf. LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge: University Press, 1985. 4 Cf. O’BRIEN, P. “A história da cultura de Michel Foucault”. In: HUNT, L. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 49. 5 Cf. NUNES, B. “Michel Foucault: genealogia do saber”. In: Filosofia contemporânea. Belém: EDUPA, 2004, p. 183. 6 Cf. ibid., p. 186. 341 que a ontologia de Heidegger era o verdadeiro paradigma da concepção de Foucault. Nas palavras do crítico paraense, eis o lugar da História no pensamento foucaultiano: “Michel Foucault atribui à História posição singular entre as ciências humanas. Ela é um ‘milieu d’accueil’ relativamente às outras disciplinas. Estendendo a sua perspectiva às culturas e às sociedades, à linguagem e ao trabalho, a História revela a condição do sujeito humano, já situado num horizonte temporal. Sob esse aspecto, a realidade histórica depende da abertura do tempo, dentro do qual o sujeito e o objeto, levados pela mesma correnteza em que ambos flutuam, jamais podem coincidir numa forma definida de conhecimento. A qualquer momento, o conhecimento histórico pende do ajuste precário entre o que sucedeu antes e o que se passa agora, ajuste que se modifica pelo que vem depois. Pressupondo a sucessão dos acontecimentos, a gestação das coisas umas pelas outras e do homem por si mesmo, o conhecimento inclui o impensado. Em suma, a História ‘montre que tout ce qui est pensé le sera encore par une pensée qui n’a pas encore vu le jour’”7. Ante a apresentação dessas aporias, não seria surpresa esperar uma reação negativa de muitos historiadores franceses à obra Les mots et les choses e aos questionamentos que punham em xeque os princípios metodológicos e os paradigmas epistemológicos mais centrais daquele ofício, como ocorreu, por exemplo, com as observações críticas de Pierre Vilar8. A tais ataques, o conjunto da historiografia francesa da época, constituído tanto pelo marxismo quanto pela escola dos Annales, reagiria de três maneiras principais: a indiferença, a aceitação moderada e a confrontação9. A ignorância inicial em torno de sua obra nos anos 60, que incluiu o seu não-reconhecimento como um historiador avant la lettre, foi admitida pelo próprio autor, para quem sua obra fora recebida “com um grande silêncio por parte da esquerda intelectual francesa”10. Ao silêncio porém sucedeu, de um lado, uma assimilação de determinados aspectos de seu trabalho e, de outro, uma rejeição integral a seus 7 Cf. NUNES, B. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 59, 67 e 76. 8 Cf. VILAR, P. “A memória viva dos historiadores – testemunho”. In: BOUTIER, J.; JULIA, D. (Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1998, p. 283-285. 9 Apud. O’BRIEN, P. op. cit., p. 37. 10 Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Apresentação de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 02. 342 postulados, com a alegação de uma ausência de método, de um menosprezo pelos dados e de uma obscuridade irracionalista11. Não obstante, a posição marginal do pensamento de Foucault no campo historiográfico deve ser relativizada, uma vez que já em sua obra de estréia, História da loucura (1961), o autor recebera elogios de Robert Mandrou e de Fernand Braudel. Segundo este último, o caráter inovador do trabalho se referia a uma tentativa de remontar aos “misteriosos caminhos das estruturas mentais da civilização”12. Em abono a tal avaliação, Jacques Revel também apreciava a obra de Foucault de maneira positiva, considerando-a a mais marcante para os historiadores franceses desde a década de 1960, ao passo que Roger Chartier reconhecia a influência recebida do autor para a sua investigação das práticas e das representações culturais13. Destarte, a existência de historiadores ora indiferentes ora céticos ora entusiastas das proposições de Foucault fez com que suas idéias fossem alvo tanto de resistências quanto de apropriações ao longo do tempo. Já nos anos concomitantes à publicação de seus livros, em que pese a acentuada reserva entre os profissionais da área, notadamente entre aqueles adeptos dos métodos quantitativos e aqueles que chamaríamos de historiadores stricto sensu, é possível observar ao menos a incorporação paulatina e parcial de sua terminologia e de seu vocabulário nos domínios da História e das Ciências Sociais. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a utilização da palavra arqueologia. De antemão, é necessário esclarecer que não se trata aqui de uma história dos conceitos à maneira postulada por Reinhart Koselleck. Elaborada no contexto intelectual alemão, a história dos conceitos, desenvolvida após a publicação da tese de Koselleck, Crítica e crise em 1959, quando começaram a ser levantados os aspectos práticos, teóricos e metodológicos desse novo campo historiográfico, o que resultou em um Dicionário dos conceitos (1972), situava o trabalho do historiador para além da hermenêutica ou da análise dos 11 Nesta linha de raciocínio, seria o caso de especular se, obsedado pelo “elogio da loucura” de Erasmo de Roterdã, o autor não mais discernia entre uma “loucura sábia” e uma “loucura louca”. Cf. MERQUIOR, J. G. “Erasmo, pensador iluminista”. In: As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 12 Cf. ibid. p. 45. 13 Apud. HUNT, L. “História, cultura e texto”. In: HUNT, L. (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 9 e 10. 343 discursos. Ela propunha-se a indagar, amparada no tratamento seletivo das fontes lexicográficas, o momento em que determinadas palavras ultrapassam o sentido pragmático do instrumental cotidiano e assumem a forma de conceitos como Estado, Revolução, História, Economia, Sociedade, Classe, Ordem, etc. Estes são resultados de um processo de teorização e de reflexão em que fatos lingüísticos possibilitam a inteligibilidade de realidades históricas, não obstante a existência de variações semânticas e conotativas acionadas pelas forças diacrônicas.