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Samba de raiz e redemocratização TIARAJU D’ANDREA1 Introdução O principal intuito deste artigo é problematizar o movimento de rodas de samba, o denominado samba de raiz e a produção de sambas enredos entre os anos 1980 e 1990, período marcado pelo processo de redemocratização no Brasil e pelo denominado “ascenso do movimento de massa”. Cabe destacar que os argumentos presentes neste artigo são os resultados prévios de uma pesquisa em andamento, que visa entender o estabelecimento de três gêneros musicais populares urbanos brasileiros e sua relação com determinado período sócio-histórico, a saber: o samba durante a década de 1980; o rap na década de 1990 e o funk no correr dos anos 2000. Para tanto, leva-se em consideração as camadas populares urbanas de São Paulo e Rio de Janeiro. Em síntese, a intenção deste artigo é apresentar a relação entre a importância do samba no período de redemocratização do país, vinculando-o ao imaginário popular daquele momento histórico. O contexto político e social A passagem do final da década de 1970 aos primeiros anos da década de 1980 foi marcada por uma série de acontecimentos importantes que definiriam o final da ditadura militar e o começo do período de redemocratização no Brasil. A partir do ano de 1978, uma série de greves irromperam em todo o país, tendo como epicentro os grandes centros industriais do ABC paulista. Essa movimentação dos setores organizados da classe trabalhadora brasileira pressionou os governos militares, que se viram obrigados a preparar o terreno para a volta de governos civis. Nesse âmbito, no ano de 1979 é promulgada a Lei da Anistia, pelo então presidente militar João Batista Figueiredo. Outro momento importante desse período de efervescência política foram as amplas mobilizações de massa ocorridas no ano de 1984, que pediam a volta das eleições diretas no país por meio de um movimento que ficou conhecido como Diretas Já. Após a rejeição por 1 Doutor pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutorando pela USP e pela EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales/Paris). Pesquisa financiada pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). 2 parte do Congresso Nacional da emenda Dante de Oliveira, que visava reinstaurar as eleições diretas no Brasil, o país teve seu primeiro presidente pós-ditadura eleito de maneira indireta: Tancredo Neves, ainda que este nunca tenha chegado a assumir o posto. Dando sequência a conturbada década de 1980, o ano de 1988 foi marcado por uma série de mobilizações ao redor da Constituição promulgada naquele ano. Sob esse pretexto, foi possível observar a organização de uma série de grupos de pressão que visavam impor suas demandas. O ano seguinte, de 1989, foi marcado, no âmbito internacional, pela queda do Muro de Berlim e, no cenário nacional, pela primeira eleição direta para presidente da república após a ditadura militar. Esta eleição mobilizou mentes e corações, tendo um segundo turno onde se confrontaram Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello, que viria a ganhar as eleições. Interagindo com todos os acontecimentos políticos acima mencionados, os anos que marcam a passagem da década de 1970 para a década de 1980 foram férteis na reorganização e no ressurgimento de uma série de atores sociais e políticos que haviam sido desmantelados no período ditatorial. Já no segundo quinquênio da década de 1970, os bairros populares das grandes cidades brasileiras viram o florescimento de organizações comunitárias que lutavam contra o alto custo de vida e contra a carestia. Como já apontado, a partir de 1978 as fábricas começaram a dar a tônica da resistência a ditadura por meio de greves operárias. A interação entre o movimento grevista e o movimento dos bairros, somados ao suporte dado pela Igreja Católica, fundamentalmente pela sua ala ligada a Teologia da Libertação, reforçou uma série de organizações locais que fizeram fervilhar as periferias urbanas em lutas por uma ampliação da presença estatal nessas localidades (SADER, 1988; D’ANDREA, 2013). Foi nesse período também que foram fundadas uma série de organizações políticas e sociais que viriam a dar a tônica da luta dos trabalhadores nas décadas seguintes. Dentre elas, cabe destacar a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980; da Central Única dos Trabalhadores (CUT), no ano de 1983 e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em 1984. Em síntese, a década de 1980 foi marcada por uma série de lutas sociais e por uma efervescência política ímpar. A redemocratização do país abria um período de esperanças e posibilidades. As classes populares se reorganizavam e propunham um novo tempo. Na sequência do texto, se discutirá como a música produzida pelos setores mais desfavorecidos da população interagiu com a movimentação política e social daquele momento histórico. 3 O contexto musical A seu modo, diversos setores sociais expressaram por meio de um determinado segmento musical as mudanças e os dilemas que o período de abertura política no país apresentava a sociedade. Sobre a questão, cabe destacar o trabalho de Marcos Napolitano, que tratou de discorrer sobre como a classe média representou musicalmente o período da abertura política no Brasil (NAPOLITANO, 2010). Para o autor, a vertente mais intelectualizada e de esquerda desse setor social teve no chamado movimento da Música Popular Brasileira (MPB) seu modo de expressão mais bem acabado. Desse modo, o período que o autor denomina das canções da abertura (1975-1982), foi permeado por obras musicais de grande envergadura produzidas por nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Elis Regina, João Bosco, Aldir Blanc, Ivan Lins, Moraes Moreira, dentre outros. Tais obras faziam críticas a ditadura militar, bem como apontavam as esperanças de uma sociedade que mirava o futuro. O começo da década de 1980 também viu florescer o denominado rock nacional. Com uma linguagem mais próxima a juventude que crescia naqueles anos (diferentemente da MPB, mais adequada à geração anterior), esse movimento musical originário nos setores médios urbanos, mas com penetração nas classes populares, orientou-se fundamentalmente por um discurso crítico e menos otimista que a MPB ou o samba. Também influenciados por um certo niilismo punk e pelo pop internacional, grupos como Legião Urbana, Engenheiros do Hawai, Paralamas do Sucesso e Titãs também foram frutos das mudanças e dos dilemas que perpassavam a sociedade naquele período histórico (ALEXANDRE, 2002). Sabendo da existência de distintos retratos musicais daquele período histórico, o foco deste artigo é relacionar o florescimento do denominado samba de raiz2 e do movimento de 2 De acordo com Felipe Trotta (2011), o termo samba de raiz foi cunhado na década de 1990 para identificar o movimento musical surgido ao redor das rodas de samba nos bairros populares do Rio de Janeiro na década de 1980. Segundo o autor, esse mesmo movimento nos anos 1980 tinha o nome de pagodes. Como é amplamente sabido, a partir dos anos 1990 o termo pagode, deixa de se referir a um encontro festivo de sambistas, ou a um movimento, para se referir a um sub-gênero do samba, tido como mais romantico. Para evitar problemas semânticos, este artigo prefere denominar o processo social de proliferação de encontros musicais como “movimento de rodas de samba”. Em se tratando de um sub-gênero do samba, se utilizará “samba de raiz”. 4 rodas de samba no Rio de Janeiro com os aspectos sociais e políticos já mencionados. Também se fará uma breve discussão de como o samba-enredo retratou esse período. Se utilizará como fonte a produção de samba da cidade do Rio de Janeiro, assumindo que esta produção foi também importante entre as classes populares de outras cidades e na interpretação que este setor social realizou do período de abertura política no país.3 O Samba Para entender o contexto que culmina no movimento de samba da década de 1980, é necessário voltar no tempo para alguns anos antes. Insatisfeito com os rumos mercadológicos e com a espetacularização dos desfiles das escolas de samba, no ano de 1975 o sambista Candeia abandona a tradicional Portela e funda a G.R.A.N. Quilombo, com o intuito de resgatar e promover aqueles que seriam os verdadeiros fundamentos das escolas de samba (CANDEIA & ISNARD, 1978). A atitude pioneira de Candeia foi a primeira de muitas que viriam a se suceder naquele segundo quinquênio da década de 1970, e que tinham por intuito criticar a forma como as escolas de samba estavam se organizando. No ano de 1978, importantes compositores, dentre os quais Zé Keti e Paulinho da Viola, abandonam a mesma Portela, incomodados com a fala do então presidente segundo o qual “compositores não são importantes nas escolas de samba”. Em 1979, o sambista João Nogueira funda o Clube do Samba, um ponto de encontro de sambistas não só desvalorizados nas escolas de samba, mas alijados dos bailes e clubes de música ao vivo, dada a preponderância dos bailes blacks, onde somente se tocava música gravada, impedindo assim os músicos de trabalharem. Por sua vez, um dos principais nomes do samba de raiz da década de 1980 também observa esse movimento como uma resposta a cada vez mais difícil relação entre compositores e dirigentes de escolas de samba. Segundo Almir Guineto: (…) Começou a crescer depois que as escolas de samba foram tirando o espaço do pagodeiro. Primeiro porque cobra ingresso na porta. Depois não deixa o pagodeiro subir no palco para mostrar seus sambas novos. Para curtir um pagode num fundo de quintal desses, só se paga a cervejinha. A entrada é grátis e se pode 3 Sobre a questão, cabe destacar que o movimento de samba iniciado no Rio de Janeiro na década de 1980 reverberou por subúrbios e periferias de outras grandes cidades brasileiras por meio da inserção dos seus principais artistas no mercado fonográfico e pela popularização de suas canções via rádio.