pragMATIZES - Revista Latino Americana de Estudos em Cultura

Sambantropologia

Sambantropology

Sambantropologia

Vinícius Ferreira NatalI

Resumo:

Palavras chave: O Presente artigo apresenta uma breve etnografia da ala de compositores do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Escolas de Samba , relativizando o papel do pesquisador em relação à proximidade e características específicas com o campo das escolas Antropologia Urbana de samba do , propondo a “Sambantropologia” como um método de pesquisa particular e situacional. Música

Arte

Cultura Popular

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 150 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016

Resumen:

El presente artículo presenta una breve etnografía del ala de Palabras clave: compositores Grêmio Recreativo Unidos Escuela de Samba de Vila Isabel, relativizando el papel del investigador en relación Escuelas de Samba con la proximidad y características específicas con el campo de las escuelas de samba de Río de Janeiro, proponiendo, para Antropología urbana terminar, “Sambantropologia” como método de investigación La música individual y situacional. Arte

La cultura popular

Abstract:

Keywords: The present article presents a brief ethnography of the wing of composers Grêmio Recreativo States of Vila Isabel, Samba Schools relativizing the role of the researcher in relation to proximity and specific features with the field of the samba schools of Rio de Janeiro, Urban Anthropology proposing, to finish, “Sambantropologia” as a method of individual and situational research. Music

Art

Popular culture

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as limitações de origem do antropólo- go e chegar a ver o familiar não neces- Sambantropologia sariamente como exótico, mas como uma realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos mapas Quando tentado a trabalhar com a e códigos básicos nacionais e de clas- perspectiva antropológica, um dos meus se através dos quais fomos socializa- maiores questionamentos era como dos (VELHO, 1978, p.131). pesquisar um tema tão próximo ao meu cotidiano e vivência sem pôr em xeque Ricardo Barbieri em “A Acadêmi- uma pretensa objetividade científica exi- cos do Dendê Quer Brilhar na Sapucaí” gida pelos padrões acadêmicos. Desde também explora esse tema. Antropólogo minha infância frequentava as reuniões inserido no meio do “mundo do carnaval”, da ala de compositores da Vila Isabel, relata sua dificuldade em estudar um uni- junto à minha avó, a compositora Ivaní- verso familiar, onde “Foi necessário me sia. Natural foi escolhê-la (ou ser esco- concentrar no esforço de estranhar o fami- lhido) como minha escola de coração. liar, por conviver com o cotidiano das es- Com o passar dos anos e meu crescente colas de samba, e desempenhar funções envolvimento, dei-me conta de que ou- neste meio (as de intérprete e composi- via mais samba do que qualquer outro tor)” (BARBIERI, 2013, p. 32). gênero musical: tocava na bateria de diversas escolas de samba, coleciona- Quando falamos em pesquisa so- va desfiles gravados em fitas VHS e até cial é necessário transformar o exótico os tradicionais desenhos da juventude em familiar e o familiar em exótico. Via eram substituídos pelos desfiles da Vila de mão dupla, pois pertencer a uma cul- em momentos de lazer. tura não necessariamente significa que a conheçamos e, quando não, precisamos Sem nenhum amigo sambista, era torná-la familiar para podermos operar taxado de louco. Não ligava, pois sabia dentro dela e com isso compreendê-la que “meu mundo” era o que batucava. (DAMATTA, 1978, p. 4). Na experiência Cresci e logo percebi meu lugar “do lado antropológica a subjetividade então se- de dentro”, observando os problemas, ria inerente à pesquisa, que tem também confrontos, alianças e outras característi- por “vocação” científica a busca de objeti- cas com o apuro de quem vivencia uma vidade em dados e resultados. situação cotidiana. Maria Laura Cavalcanti, por sua Como lidar com isso, se decidi- vez, também observa a necessidade do ra, então, estudar o meu próprio cotidia- estranhamento na pesquisa antropológi- no dentro da Antropologia? Fazia-me um ca, afirmando que, no campo, o conhe- “Sambontropólogo? cimento antropológico não se daria pelo que se passa de fato entre os nativos, Estranhar o familiar. Nunca essa e sim através de uma visão organizada afirmativa faria tanto sentido: e percebida pelos antropólogos do que ocorre nessas experiências. Logo, há o estudo do familiar oferece vantagens uma percepção aproximativa, mediatiza- em termos de possibilidades de rever da, permeada pela subjetividade, entre e enriquecer os resultados das pesqui- os atores pesquisados e pesquisador. sas. Acredito que seja possível trans- Esse contato, entretanto, pode mesmo cender, em determinados momentos, ocasionar mudanças em ambos os lados:

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Consideremos então a nós mesmos um meio objetivo de busca de “verdades”, como um bando de nativos, um gru- quase que assumindo um ranço positivista po social cuja vida profissional ganha de construção de saberes e narrativas. forma entre o campo, a etnografia e a academia. Se a etnografia é, como Porém, como lidar com essa pro- quer Claude Lévi-Strauss, uma certa blemática se os moldes acadêmicos ainda experiência de objetivação da subjeti- bebem na fonte de um ocidentalismo eli- vidade, creio que quem a exercita de- tista que teima em privilegiar as narrativas senvolve também gradualmente uma européias ou, quando não, as que a esse noção de pessoa peculiar. Um eu am- modelo são moldadas e aceitas como ver- bivalente e diverso que, com o ir-e-vir dadeiras, em detrimento de tantas outras refletido e sistemático entre múltiplas que são silenciadas? realidades e sistemas classificatórios, cruza zonas de perigo que o ameaçam Rufino (2014, p. 47) afirma: “O que por vezes de dissolução. O exercício o regime colonial tem feito é reduzir a profissional de um certo tipo de media- multiplicidade que está presente no mun- ção, a mediação entre sistemas cogni- do, divulgando que o que está fora da tivos e morais, visando à produção de premissa de “verdade” – legitimada pelo conhecimento novo, deixa o sujeito/ cânone histórico – está sob a condição antropólogo potencialmente muito per- de subalterno, atrasado, impuro, entre to da metamorfose [...]. (CAVALCAN- outras significações”. TI, 2003, p. 134). Uma dessas estratégias ociden- Como “sambantropólogo”, pretendi tais, portanto, é moldar verdades, esta- observar os dados criticamente, em uma belecer parâmetros para se considerar espécie de equilíbrio analítico. Conside- que A é verdade e B, nem tanto. Logo, rando minhas opiniões e posicionamen- por mais que a subjetividade hoje seja tos, cervejas e pessoalidades introjetadas aceita em um discurso oficial acadêmi- em meu próprio ethos, busquei o exercí- co, a prática se constrói totalmente ao cio do fazer antropológico analisando as revés, funcionando em dispositivos de relações e os desdobramentos dos fatos, desautorização por proximidade, sub- mesmo quando isso colocava em xeque jetividade excessiva e até mesmo uma meu próprio bem-estar. maneira de utilizar a ciência - Santa Ci- ência! - como um mecanismo de atingir objetivos escusos, apropriar-se do ob- Pesquisador e militante jeto e utilizá-lo em benefício próprio de projeto de poder. Nesse sentido, percebi que minha posição no processo de pesquisa era cla- Dentro desse molde, interessei-me ramente vinculada às minhas percepções não por reproduzir essas narrativas, mas do que entendia como um projeto de es- sim fazer sobressair as próprias narrativas cola de samba possível - e que deveria - nativas dos sujeitos pesquisados e, dessa ser realizado. Por mais que houvesse um forma, me colocar como um sujeito ativo discurso do “observar o familiar” (VELHO, dentro da escola de samba.II 1978) e do privilégio da subjetividade do pesquisar, ainda é caro pensar um posi- Como diz Pâmela Passos (2013): cionamento mais aguerrido e combativo quando se trata de uma pesquisa cientí- Nesse sentido, campo e pesquisa- fica, majoritariamente observada como dor não são preexistentes, mas co-

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-emergem à medida que lançamos E então, agora, falaremos de uma luz ou tiramos o foco de iluminação Sambantropologia concreta, a tecnica- de determinadas variáveis (NASCI- mente vivida nos botecos, escola de sam- MENTO e COIMBRA, 2008). Trata- ba e bairro de Vila Isabel. -se, portanto de afirmar um modo de pesquisar que escapa das formula- ções prontas e que nos possibilita Vila Isabel... sair do lugar arrumado do cientista para nos misturar com o campo e, As lembranças de infância são, nessa mistura, nos aproximar da- como brincadeira, difusas e escorrega- quilo que, muitas vezes, fica ausen- dias. Era dia de carnaval. Minha mãe te do trabalho final. Interessa-nos me levara ao carnaval de um coreto aquilo que fica de fora, os desacer- próximo ao Largo da Freguesia, em Ja- tos, as indecisões, os desvios e di- carepaguá, para assistir aos bate-bolas ficuldades. Isso também compõe a e desfilar com minha fantasia recém- pesquisa e a constitui. III -comprada de Batman.

Nesse sentido, Luiz Rufino (2014, Diferente das outras crianças, não p.16) também nos brinda: tinha o mínimo medo de bate-bola. Ti- nha indiferença e achava, até certo pon- Defendo a noção de que as práticas to, bobo. Tinha medo, sim, de palhaços. culturais da afro- diáspora estão as- Odiava tanto que era o único da minha sentadas e são orientadas por outras idade que não via o programa da Vovó formas de racionalidade que se dife- Mafalda, no SBT. Preferia o Vídeo Game renciam do modelo de pensamento ou a bolinha de gude... moderno ocidental. Nesse sentido, suas lógicas de funcionamento reve- Lembro que logo ao chegar no lam múltiplos conhecimentos, outras Largo, pedi à minha mãe: epistemologias que apontam cami- - Vamos voltar logo. Quero ver mi- nhos possíveis diante da pobreza de nha avó na Vila. experiência produzida pela linearida- - Filho, chegamos agora. Espera de de uma única narrativa explicativa um pouco. de mundo e de um único modelo de conhecimento. Ficamos eu e uma amiga fanta- siada de índia brincando de serpentina, É nesse caminho que sou Sam- mas logo quis vir embora. Compramos bantropólogo e construo esse estudo: um balão de Pato Donald e viemos. A in- dando luz às narrativas nativas, buscan- diazinha - Raquel, o nome dela - ficou. do sempre evidenciar os atores e suas Eu, o balão de Pato Donald e minha mãe falas; mais ainda, equacionando as fa- viemos embora. las e agindo em uma contra-hegemonia de um discurso ocidental que privilegia Não é que nos 10 minutos de cami- a fala de quem detém o poder simbóli- nho do Largo da Freguesia até minha casa co. Porém, sem esquecer do velho copo o Pato Donald resolveu voar? Fiquei pos- de cerveja, a caneta e o papel do sam- sesso, pois tinha planos de guardá-lo no ba, os dramas e o coração acelerado de meu quarto. Afinal, era um pato que voava! cada emoção vivida pelas ruas de Vila Isabel. Esse é o alimento e sem ele não Fiquei olhando o balão ir embora, há nada. Nada. mas ele não sumia. Andava, andava e

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 154 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 ele só subia. Até uma hora que sumiu e -me o fato, ainda mais que, vivendo sem- eu também havia ficado feliz, pois havia pre no fio da navalha entre a objetividade sido uma distração que me fez chegar em e a subjetividade das pesquisas acadêmi- casa mais rápido. cas, pudesse empreender tal função.

Logo cheguei em casa e liguei a Nesse momento, meu “eu antro- TV. Estava desfilando a Vila Isabel, com o pólogo” cedeu lugar ao “eu sambístico”, o enredo “A Vila Vê o Ovo e Põe Às Claras”. coração falou mais alto e aceitei o desa- Fiquei fissurado procurando minha avó, fio, reunindo uma equipe de, inicialmente, quando uma grande galinha apareceu na 5 torcedores, número que cresceria pro- tela; logo atrás, achei minha avó e meu gressivamente até o momento, com o ob- carnaval estava completamente dotado de jetivo de organizar o acervo e empreender sentido. Ali era a festa. um trabalho de valorização da memória da escola, ponto que considerava bastante Poucas horas depois, chegou ela, sensível na sua organização. contando que o desfile havia sido um fias- co, que ela tinha saído atrás de um carro Cabe perder um tempo nesse pon- com uma galinha bem feia, onde a chuva to explicando o que, afinal, era o Depar- fazia a palha ter um cheiro horroroso. Bin- tamento Cultural do G.R.E.S. Unidos de go! Era ela mesma! Mais festa! Vila Isabel formado, célula que seria uma das principais constituidoras do meu es- A partir disso minha ligação com a paço de fala. agremiação só crescia: passei a frequen- tar os ensaios consideravelmente, ingres- sando na bateria em 2000, tendo meu O Departamento Cultural primeiro desfile em 2002. A partir daí, anu- almente ensaiei e desfile na escola, entre O trabalho desenvolveu-se com altos e baixos. bastante dificuldade. Não é segredo, para quem vive o cotidiano das esco- Porém, em 2014, após um desas- las de samba, ou mesmo trabalha com troso carnaval, houve eleição para pre- cultura popular, que, na maioria das ve- sidência da escola. A então candidata à zes, a memória é relegada a segundo presidente, Elizabeth Aquino, mais conhe- plano. As escolas de samba, com um cida como Dona Beta, convidou-me para ritmo “sempre pra frente” (CAVALCAN- assumir a Direção Cultural da escola caso TI, 1994) e focadas no desfile anual, ca- fosse eleita, pois conhecia o trabalho que nalizam grande parte de seus esforços exercia no Centro Cultural como para “colocar o carnaval na rua”, como pesquisador e achava bastante positivo. os sambistas dizem a respeito de fina- Com a vitória consolidada, pude assumir lizar a preparação do desfile a contento essa tarefa dentro da agremiação. do desfile principal de carnaval. Logo, a memória, assim como outras esferas ad- O mais curioso é que, meses an- jacentes de uma escola de samba que tes, havia defendido uma dissertação no não passam objetivamente pela prepa- PPGSA - UFRJ a respeito das ideias de ração do carnaval, acaba sendo tratada cultura e memória no G.R.E.S. Acadêmi- de modo coadjuvante. cos do Salgueiro, investigando as diferen- tes narrativas forjadas pelo Departamento Porém, entendia, como Pollack Cultural da escola e o único fundador vivo, (1998), que a memória era parte impor- Djalma Sabiá (NATAL,2014). Estranhava- tante da constituição social do sujeito;

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ainda, que atua como uma forma de se precisa estar lá, pois foi vivido. Dessa singularizar em meio a uma vasta malha forma, tal tempo pode servir como a mar- de informações e temporalidades, princi- ca de um território, mostrando-se como palmente quando lidamos com um ritmo uma possibilidade válida de valorização incessante, acelerado e blasé na cidade de experiência. (SIMMEL,2005). Passado, presente e perspectivas de futuro bailam juntos em Como nas outras escolas em que um mesmo espaço, disputando atenção conhecia minimamente a realidade, a si- e, por mais que tenhamos como parâ- tuação de descaso em que encontrei a metro de vivência o presente, o passado memória na agremiação era caótica.

Com orçamento de zero reais ini- a componentes da agremiação com o ciais, percebi que não conseguiria rea- objetivo de traçar um plano de ação e lizar o trabalho de organização do acer- organização emergenciais para o ma- vo de forma solitária. Convoquei, então, terial. Foram realizados, assim, dois alguns amigos mais próximos que ha- eventos denominados de “Mutirão Cul- viam sido meus estagiários em meu tra- tural”, buscando tratar, de maneira bem balho no Centro Cultural Cartola, junto concisa, a memória da agremiação.

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A partir de então, organizou-se um Paralelo ao trabalho de documenta- grupo de interessados em empreender o ção foram realizados eventos que visavam trabalho, de forma não remunerada, mas dar conta de uma evocação de memória capaz de entender e compartilhar o sen- da escola, como o “Cine Debate Kizomba”, timento de necessidade de preservação onde, pela facilidade de acesso que pos- da memória da agremiação. Os pesquisa- suía ao Centro Cultural Cartola, foi realizada dores, atualmente, são Beatriz Barcelos, uma exibição do desfile campeão de 1988 Dalton Cunha, Daniel Guimarães, Dani- seguindo-se de debate com participantes do lo Garcia, Fabiane Melo, Fadla Martins, desfile da época, além de depoimentos com Hugo de Oliveira, Leonardo Marques, Na- componentes antigos da agremiação, bus- thalia Sarro, Ricardo Nicolay Tadeu Goes cando guardar, em áudio e vídeo, as memó- e Thales Nunes. rias tecidas por esses sambistas.

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É a partir da formação de tal grupo A ala de compositores da Vila Isa- e ações que o meu lugar de fala começa a bel agrupa diferentes sujeitos que, a priori, se constituir: por entre sonhos de criança possuem a capacidade de compor letras sambista e devaneios de um pesquisador, e melodias, formando assim um grupo de o meu entendimento de pesquisa e função interesse e sociabilidade. O grupo pos- social ganhavam contornos. sui largo número de associados, sendo a grande maioria moradora do bairro de Vila Isabel. A ala possui duas figuras em *** sua constituição de maior destaque den- tre os membros: , cantor e Passados os momentos iniciais de compositor de maior destaque no cenário trabalho, minha atuação no Departamen- musical brasileiro e André Diniz, professor to Cultural ficara cada vez mais visível e de História e detentor do maior número perceptível no cenário interno do G.R.E.S. de títulos de disputa de samba de enredo. Unidos de Vila Isabel. Ao mesmo tempo, Desde 1994, André Diniz venceu 15 de 20 decidira realizar o trabalho de tese sobre disputas realizadas, sendo derrotado ape- os compositores de Vila Isabel, baseado nas uma vez, oficialmente. mesmo naquelas observações pessoais vividas durante toda minha infância. O fato do último ter conquistado tantas vitórias sucessivas acabou por As ruas de Vila Isabel são rechea- ocasionar um mal estar dentro do gru- das de núcleos de sociabilidade e entrete- po dos compositores da escola, gerando nimento, denominados aqui como bares e um processo de desintegração e esva- botecos, onde muitos compositores passam ziamento refletido mesmo no número de horas a fio conversando, bebendo ou mes- sambas em disputa na escolaVI. A acusa- mo divulgando informalmente seus próprios ção é que a culpa de todo esse processo sambas. Durante todo o ano, nas noites do devia-se aos chamados “escritórios” de bairro, muitos desses compositores pro- disputa de samba, liderados por André movem rodas de samba nas mais diversas Diniz e com ocorrência na maioria das localidades visando divulgarem seus tra- escolas do Grupo Especial. balhos musicais na localidade. Durante a elaboração desse projeto, foram mapeadas Os compositores denominam de diferentes rodas de samba, observando a escritórios os grupos de indivíduos que se ocorrência de, muitas vezes, a realização de alocam na categoria “compositores” e que rodas conjuntas com o “encontro” de um ou disputam em diversas escolas de samba mais compositores em um só eventoIV. do grupo especial, o principal grupo na hie- rarquia competitiva do desfile das escolas, O cotidiano desses compositores formando assim um cartel de disputas de se altera e sugere um maior esforço no samba. Para conseguirem concorrer des- período de escolha do samba-enredo da sa forma, os diferentes sambas são assi- escola de samba a ser cantado no ano nados por “pombosVII”. Os escritórios são corrente: diante de uma série de apresen- formados a fim de captar o maior número tações, uma comissão julgadora, geral- possível de vitórias, visando acumularem mente composta por membros da escola, gorda quantia de premiação pela vitória e vota em uma apresentação final e escolhe de direitos autoraisVIII. o samba campeão. O que parece ser um processo simples e direto do ciclo anual A crítica ao sistema dos escritórios carnavalesco ganha contornos dramáticos provêm principalmente de compositores à e tensos dentro da escola de sambaV. margem desse processo. Geralmente mais

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 158 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 velhos e com maior experiência em dispu- também renunciaria e o cargo ficaria livre tas de samba desde a década de 1960, para o Superintendente, Bernardo Belo, li- afirmam que os escritórios excluíram o gado ao patronato do jogo do bicho e bra- “verdadeiro compositor. Aquele que ralava ço direito de Capitão Guimarães, assumir no morro e era quem realemnte amava a o comando da escola. escolaIX”. Ou ainda, atestam que os escri- tórios “serviram para mostrar quem manda Como previsto, Beta renunciou e de verdade é o dinheiro. O sambista não após o ocorrido, um silênio profundo in- tá com nadaX”, acabando por refletir a ten- comodava dentro da agremiação. Espe- são entre um modelo tradicional, ligado ao culava-se que haveria novas eleições e morro, ao “pé no chão”, à raiz, muito herda- o ex-presidente, Wilson Vieira Alves, o do do pensamento folclorista brasileiro que Moisés, seria candidato, o que inquieta- ainda perdura em alguns aspectos atuais va muitos. Porém, em uma reviravolta do (GONÇALVES, 2013) versus o moderno, jogo político da escola, Luciano Ferreira, ligado as inovações, ao dinheiro e ao luxo que era dado como um “filho” de Beta e da escola de samba (JUNIOR, 2009)XI. que, certamente, renunciaria, decidira continuar no cargo. Dessa forma, percebi que deveria analisar esse processo em curso dentro da Após calorosas discussões inter- ala de compositores do G.R.E.S. Unidos de nas, houve trocas de cargos dentro da Vila Isabel, procurando desvelar caracterís- escola, mas o mesmo fez questão de me ticas peculiares a respeito não só do siste- manter como Diretor Cultural, tecendo ma de produção de sambas nas escolas de numerosos elogios ao trabalho realizado samba do Rio de JaneiroXII e da importância pelo grupo. Seguiu o baile e a prepara- do dinheiro nesse processo, mas também ção para o carnaval de 2016, com lan- de como esses compositores, sejam de çamento de enredo - sobre Miguel Arra- escritório ou “antigos”, atuam e negociam es - e início do processo de escolha do dentro do bairro suas próprias identidades samba para o desfile. e projetos, em meio a sucessos e fracas- sos de suas trajetórias intentadas (VELHO, Porém, haveria uma novidade na 2003; BOURDIEU, 2006). presidência de Luciano: retornavam ao co- mando da escola Evandro Luís do Nasci- mento, o Evandro Bocão, Leonel e André O Voto Diniz, compositores vencedores acusados de “ganharem sempre”XIII. Essa seria uma Após o carnaval de 2015 e um mudança significativa na formulação da dis- amargo 11º lugar, muito se especulou so- puta de sambas de enredo: De 18 concor- bre os rumos da escola. A então presiden- rentes do ano anterior, o número de obras ta, Elizabeth Aquino, a “Dona Beta”, renun- que disputaram foi de 9; também diminuiu ciaria em breve. Rumores davam conta o tempo de disputa, que de 8 semanas de que seu mandato estava afastando os passou para 4 semanas, com a justificativa componentes da escola e era cercado de de diminuir os gastos dos compositores. escolhas erradas: desde o ex-carnavales- co, Max Lopes, até a escolha do samba- Eu, que vivenciara sempre ao lado -enredo, que não rendera pontos como de minha avó todo o processo de disputas os do “André Diniz” nos anos anteriores e de samba, considerava como uma oportu- havia prejudicado muito a escola. Após o nidade de pesquisa ímpar. Porém, como ocorrido, as informações davam conta que fazê-lo? Faltava-me ainda o foco da pes- o então vice-presidente, Luciano Ferreira, quisa. Afinal, o que pesquisar? Não sabia.

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Minha intimidade com o tema e atores se Eram 4 as parcerias finalistas: tornava um impeditivo de qualquer ação e, 1- J.P, Claudio Emiliano, Marcos por esse mesmo motivo, sabia que qual- Trappani, Kaoma e Beto Habilidade quer passo precipitado poderia ser arruinar 2- Martinho da Vila, André Diniz, o campo. Decidi realizar um acompanha- Martnália, Arlindo Cruz e Leonel mento “Descompromissado” - Sambantro- 3- Jaiminho Harmonia, Thales Nu- pologia pura - e observar o desenrolar dos nes, Hugo Oliviera, Bonsucesso e Ser- fatos sem me cobrar que, de fato, estava jão da Vila pesquisando. Sem papel e lápis. Nada. 4- Alcyr Higino, Professor Lacerda e Jurandir Terra Foi aí que durante a final de sam- ba-enredo que a realidade social vira o A partir das apresentações, decidi livro de ponta-cabeça e começa a história dividir a responsabilidade da escolha e outra vez: reunir toda a equipe do Departamento Cul- - Você é o Vinícius, do Cultural, não é? tural presente na quadra, realizar uma vo- - Sou sim. tação interna, para que assim fosse anun- - Toma. Tá aqui uma pasta pra você ciado o voto. Todos gostaram do samba julgar o samba-enredo. de Jaiminho Harmonia que, coincidente- - Mas o Luciano não me avisou mente ou não, era parceiro de Thales Nu- nada - Disse, absolutamente estarrecido nes, membro do nosso DepartamentoXIV. com a notícia. - Sim, não falou. Mas ninguém sa- A favor do samba campeão, votaram bia. Me entrega no final, por favor, mar- 18 pessoas: Eduardo Katata, presidente cando um X no campeão. da ala dos compositores; Cíntia, da Velha Guarda, Aladir, da Velha-Guarda, Alair, das O diretor de Harmonia saiu. Eu não Baianas, Verinha, das Baianas; Edson e saí. Fiquei. Parado e sem ação. Claudinha, da ala de passistas; Edson, da Harmonia; Décio Bastos, diretor de Harmo- O ato de julgar o samba tornaria-se nia; Coxinha, diretor Financeiro; Olício Al- algo extremamente complexo para o meu ves dos Santos, Diretor de Adminsitração; entendimento - e para minhas pretensões, Bocão, diretor de carnaval; Mestre Mug, mesmo, pois em nenhum momento dese- presidente de Honra da bateria; Sandra java tal feito. Sabia bem o que representa- Arueira, diretora de projetos; Alex de Sou- va votar em um samba em uma final. Era za, carnavalesco; Juninho, vice-presidente; posicionar-se politicamente e, enquanto Mestre Wallan, mestre de bateria. um momento de grande tensão dentro da escola de samba, poderia significar abrir Proclamado o samba campeão, fui portas de pesquisa, mas também fechar saindo da quadra e, conforme saía, era para- outras muitas; poderia até mesmo gerar o benizado. Sabia bem o porquê: para alguns entendimento de afronta ou desafio, visto componentes, havia rivalizado diretamente que votar em uma parceria poderia sig- com a “firma”, apelido que davam à parce- nificar, para muitos, a convocação de um ria campeã. Disseram-me que eu fui o único duelo e uma situação de desafio e enfren- que “honrava a camisa da Vila Isabel”, e que tamento. Disputa de samba é rivalizar entre “tinha coragem” para enfrentar o “Esquema”. grupos e, caso assumisse alguma parceria como de preferência explícita, isso poderia Não era inocente no jogo. Sabia ser interpretado como uma “chamada ao do significado que esse voto teria, mes- combate” por minha parte, pois também mo não possuindo a intenção de causar era ator e dominava os códigos nativos. desconforto, porém não poderia imaginar

Disponível em http://www.pragmatizes.uff.br 160 Ano 6, número 11, semestral, abr/2016 a set/ 2016 repercussão tão grande. Após mais uma tima instância, na continuidade de uma cerveja e ouvir diversos elogios, resolvi ir “comunidade de sofrimento”, cujas ten- para casa e refletir sobre todo o ocorrido. sões e conflitos se expressariam e, de Além da bebedeira, precisava curar a res- algum modo, resolver-se-iam ritualmen- saca do mal-estar gerado por um simples te nos ritos de cura e de aflição”. X numa folha de papel. Yvonne Maggie também utilizou o Drama Social para analisar e interpretar o *** cisma em um terreiro de Umbanda na ci- dade do Rio de Janeiro nos anos 1970. A Demorei duas semanas até vol- autora trabalha com a perspectiva de Tur- tar à quadra de ensaios. Lá chegando, ner, citando-o: “Pode-se algumas vezes ir mais elogios à minha postura de “emba- além da superfície de regularidades sociais te”. Havia um ensaio de canto, visando e perceber as contradições e conflitos ocul- a gravação do vídeo clip da agremiação tos no sistema social. Os tipos de mecanis- junto à Rede Globo, mas a quadra não mos corretivos empregados para lidar com estava cheia como nas disputas de sam- o conflito, o padrão de luta faccionalista e ba, o que é um movimento natural na as fontes de iniciativa para acabar com a maioria das agremiações. crise, todos claramente manifestados no drama social, fornecem pistas valiosas so- Percebo, então, que o processo bre o caráter do sistema social.” (TURNER de disputa de samba-enredo mobiliza apud MAGGIE, 2001, p.17) todo o corpo de componentes atuantes - há os que só participam nos meses mais Dessa forma, o conceito de Drama próximos ao carnaval - organizando gru- Social permite entender a dinâmica dos con- pos de torcida em torno da torcida de um flitos entre os atores, evidenciando os dife- samba; as parcerias funcionam como rentes valores e posicionamentos em jogo. emblemas onde se “é” o samba de al- guém, ou seja, se torce para que o sam- Turner divide o drama social em ba saia vitorioso do embate. 4XV, e aqui adaptamos a moldura por ele proposta às finalidades de organização de Durante a disputa há um processo nosso relato: de crescimento exponencial de envolvi- 1) A ruptura, gerada pela divisão mento da escola, lotação da quadra e visibi- da escola em diferentes parcerias para a lidade midiática, aproximando-se da noção disputa pelo direito de representar a agre- de Drama Social de Victor Turner (1967). miação em desfile. 2) A expansão da crise, com o de- Esse conceito permite enxergar senrolar disputa e o agravamento das ten- a construção da integração social como sões geradas pela disputa. feita através das crises e conflitos que 3) O agravamento da crise e ação eclodem entre os diferentes no curso de reparadora, com o final da disputa e es- um processo social. Na interpretação colha do samba, o posterior esvaziamento desse conceito proposta por Cavalcan- da escola, descontentamentos e reclama- ti (2007, p. 130), no que diz respeito ao ções sobre a escolha, mas com a posterior tema da integração social, “a continuida- volta do ritmo e ensaios e dos perdedores de da sociedade Ndembu (talvez pudés- ao cotidiano da agremiação. semos falar, sobretudo, da continuidade 4) O desfecho com a relativa re- de um sentido de pertencimento a um composição da ordem no desfile oficial, amplo grupo social) repousaria, em úl- mesmo que em pouco tempo os mesmos

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compositores novamente se organizem de entrada interessante para entender o em parcerias para reiniciar o ciclo. mundo das escolas de samba cariocas.

Ao passo que as primeiras semanas Inspirada nos estudos promovi- mobilizam quase somente os compositores dos pela chamada Escola de Chicago, que envolvidos e entes mais próximos, as eta- acompanharam a vertiginosa urbanização pas finais arregimentam um número consi- daquela cidade nas primeiras décadas do derável de torcedores e simpatizantes. século XX, a Antropologia Urbana enxerga a cidade como um palco onde atores dife- A final de samba, evento no qual se renciados encenam interações diversas: escolhe o “hino” da agremiação, é expres- dramas são vividos, alianças são feitas, des- são máxima do conflito gerado entre os feitas, refeitas. Nesse ambiente social hete- compositores. Todos estão em busca da rogêneo composto por diferentes camadas, vitória onde, para tal feito, dispendem - ou segmentos e grupos sociais, múltiplas visões conseguem quem o faça - enormes quan- de mundo operam como diversos prismas tis para que o objetivo seja realizado. sob os quais podemos enxergar um fato.

Logo após o momento da vitória, há Para Simmel (2005), a vida urbana um esavaziamento da quadra e um afrou- torna possível encontrar pessoas de origens xamento das relações. Muitos que torciam e identidades sociais diferentes, articuladas por um samba perdedor acabam se afas- e inseridas em um mesmo meio. Nesse es- tando da escola - muitos revoltados com o paço compartilhado, o conflito e o dinamis- resultado - onde será necessário um tem- mo assumem papel central no fluxo de inte- po de distância da escola para que o sen- rações entre diferentes camadas e grupos timento se refaça e o componente volte a sociais. Com o decorrer dos estudos urba- frequentar os ensaios. nos, a cidade passaria a firmar seu espaço como um lugar possível de estudos antropo- Usa-se o chavão “agora o samba é lógicos. Gilberto Velho aborda o assunto: da escola”, signficando que, mesmo não sendo favorável à vitória de um samba, [...] A Antropologia, tradicionalmen- o componente deve cantar a plenos pul- te, tem estudado os “outros” e eu me mões o samba escolhido pela agremiação propus estudar “nós”. É evidente que nos ensaios e dia oficial de desfile. outros autores já o fizeram, mas a An- tropologia Urbana ainda engatinha e Seguem-se os ensaios que desagua- enfrenta sérios problemas de metodo- rão no carnaval e, por fim, fecha-se o ciclo logia. [...]. Na Antropologia Urbana ain- do Drama Social. A escola sempre desfilará da se está muito na fase das intuições, em busca de seu melhor resultado possível. das primeiras tentativas. Há uma razo- ável polêmica e, relativamente, pou- cos resultados (VELHO, 1973, p. 11). Apito final Ao mesmo tempo, Roberto DaMatta Relações sociais são tecidas a iniciava na década de 1970 o entendimen- cada instante. O fato de interagirmos com to do carnaval como um processo sócio- indivíduos distintos em nossa sociedade -ritual, onde a observação da festa através já embasa o surgimento - ou rompimento de um “close up”, ou seja, a evidência de - de laços entre sujeitos. Esse modelo in- um episódio pontual, descortinaria proces- terativo permite considerar as relações so- sos vividos pela sociedade de um modo ciais no ambiente urbano como uma porta mais abrangente (DAMATTA, 1980).

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Mesmo vendo um carnaval diminu- Minha inserção como pratican- to em conflitos, o autor contribui decisiva- te desse meio foi fundamental para a mente para a visão do festejo como um ri- minha própria formação enquanto pes- tual, característica preservada por grande quisador, pois muito me intrigavam os parte dos estudos antropológicos sobre o conflitos existentes no cotidiano des- tema na atualidade (CAVALCANTI, 1995; sas instituições. Enxergadas por muitos SANTOS, 2009; GONÇALVES 2007; ERI- como uma organização uníssona e pa- CEIRA,2009; BARBIERI, 2010,). cífica - “A” Escola de Samba, festiva e carnavalesca - observava que ela estava Tanto do ponto de vista artístico longe de ser o lugar da equidade, mas como do administrativo, são diversos os sim um espaço recheado de diferenças setores que compõem uma escola de sam- em sua própria constituição. ba, que emerge como um mosaico, onde cada qual detém função específica e inter- Tal qual um mosaico formado, fun- ligada a todas as demais: a ala da bateria cionam como um campo onde diversos é responsável por dar o ritmo ao samba de atores transitam, dialogam e conflituam, enredo, que por sua vez é composto por utilizando seus simbolismos construídos um ou mais compositores; a figura do car- como formas de representação (BOUR- navalesco concebe o enredo e desenha DIEU, 1983; 1989), ou mesmo como afir- croquis de fantasias, alegorias e adereços; ma Leach (1995, p. 121), que como com- a velha-guarda é composta por sambistas preende as regiões das Colinas de Kachin, idosos, entre outros. Apesar de poderem “Dentro desse sistema social maior exis- possuir visões distintas e encararem o pro- tem, num período dado, um número de cesso ritual de desfile a partir de diferentes subsistemas significativamente distintos perspectivas (CAVALCANTI, 1994), todos que são interdependetes”. Entendê-las os componentes de uma escola de sam- como um organismo composto de muitos ba desembocam na Avenida Marquês de prismas é essencial para a compreensão Sapucaí, a chamada Passarela do Samba, dos atores que as compõem e suas atu- localizada no centro da cidade do Rio de ações na definição de suas trajetórias, Janeiro, com um objetivo em comum: de- projetos e identidades em meio à cidade fender a sua agremiação no desfile anual. (VELHO, 1973; 2003); também de como esses atores encarnam a ação de uma Esse processo reverbera então na estrutura ritual e competitiva, onde as inte- cidade, agitando diversas dimensões so- rações podem assumir o caráter de trocas ciais, como um fato social total (MAUSS, agonísticas (MAUSS, 1978) ou drama so- 1978). Movimenta a economia com valo- cial (TURNER, 1967); ou ainda, atuam e res de patrocínios e venda de ingressos encenam suas próprias realidades. que ultrapassam a cifra dos milhões, a po- lítica com a querela da presença de ban- Cada desfile é, então, o apogeu de queiros do jogo do bicho no controle das um ciclo anual ininterrupto, sendo o início agremiações - onde, obviamente, o sen- e ao mesmo tempo, fim. Nesse período, tido de política das escolas de samba, o a “rede de relações sociais trançada ao entendimento de cultura da cidade do Rio longo do ano atinge o seu grau máximo de Janeiro e o sentido de pertencimento a de expansão” (CAVALCANTI, 2006, p. uma manifestação festiva vai muito além 233) e é essa capacidade de expandir dos presentes apontamentos. São, por- essa rede que aguça a necessidade de tanto, parte constitutiva da malha urbana, compreensão de como os desfiles absor- absorvendo e expressando os conflitos da vem e irradiam os conflitos e as transfor- cidade (CAVALCANTI, 1994). mações pelos quais passa a cidade.

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Portanto, os compositores do pelo relógio, pelo calendário e pelas G.R.E.S. Um idos de Vila Isabel emba- agendas - corre, voa e passa, fazendo sam os rabiscos iniciais de uma pesquisa história. [...] Na rua não há amor, con- de tese que, logicamente, ainda engati- sideração, respeito ou amizade. nha em seus devaneios. Os compositores, logo, formam uma célula de um mosaico Ora, a rua, portanto, é o local da in- bem mais amplo que deve ser levado em certeza, do desatino, do andar sem rumo. conta se queremos observar as escolas De encontrar o que não se busca e, mes- de samba como uma janela para se en- mo assim, no final de tudo, achar um sen- xergar a vida social urbana. tido espetacular na junção das peças do quebra-cabeça que é a realidade social. O que me deixava agoniado com um “não comprometimento” com a pes- Rua, portanto, é o nosso incerto, o quisa, em um primeiro momento, onde arriscar, e assim também compreendo que só observei e escutei sem nenhuma com- deve ser realizada uma pesquisa: emocio- preensão sistemática, se transformou em nada, sem receita de bolo, correndo peri- uma metodologia de pesquisa fundamen- gos e pondo-se à prova. tal para a compreensão do objeto de estu- do que tratava; mais ainda, para entender É dessa forma, portanto, que en- o meu papel em todo esse circuito. Sam- caro os compositores de Vila Isabel: par- bantropologia, pois era deixar-se levar, te de um todo incoerente, mas que fazem entre um olhar técnico e um gole de birita. todo sentido no conjunto; parte, também, de mim, um pesquisador que se tenta co- Em um texto intitulado “A Rua”, erente, mas que, na realidade, se faz feliz João do Rio (2008) nos fala: em produzir conhecimento nas brechas loucas da incoerência emotiva de si. Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como Viva a Vila Isabel! se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabun- do, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aque- le que chamamos flâneur e praticar o Bibliografia mais interessante dos esportes - a arte de flanar. É fatigante o exercício? BARBIERI, Ricardo José de Oliveira. Sociabilidade e conflito em pequena escola de samba: o Acadê- De pronto, respondo. Sim, o é. Mas micos do Dendê da Ilha do Governador. Disserta- ção de Mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010. o objetivo aqui não é encarar a rua só como um espaço físico, mas sim em uma BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FER- perspectiva mais ampla, tal qual um “ou- REIRA, Marieta de Moraes; AMADO,Janaína tro”. DaMatta (2003, p. 15) nos fala sobre (orgs.). Usos & Abusos da História Oral. Rio de Ja- a dicotomia ente a casa e a rua, onde: neiro: FGV, 2006. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Falamos da “rua” como um lugar de Carnaval Carioca: Dos Bastidores ao Desfile. Rio “luta” e de “batalha”, parte da “dura de Janeiro: Funarte, 1995. realidade da vida”. O fluxo da “vida”, com suas contradições e surpresas, CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Conhe- pertence à rua, onde o tempo - medido cer, Desconhecendo: a Etnografia do Espiritismo e do

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X Depoimento de Monarco da ao Centro Cultu- I Vinicius Ferreira Natal. Doutorando em Sociologia e ral Cartola, em 2011. Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janei- ro. Brasil. Contato: [email protected] XI Sobre o processo de composição de samba, Muniz So- dré descreve que “A comercialização do samba e a profis- II E talvez tenha sido esse o principal motivo de minha mu- sionalização do músico negro se faziam, evidentemente, no dança da graduação em História para o mestrado e dou- interior de um modo de produção, cujos imperativos ideoló- torado nas Ciências Sociais, pois, dentro do que buscava gicos fazem do indivíduo um objeto privilegiado procurando como entendimento para trabalhar com a realidade social. abolir seus laços com o campo social como um modo in- tegrado. Compositor se define como aquele que organiza III Assumo, então, meu papel militante no sentido em sons segundo um projeto de produção individualizado. Em que busco, em um primeiro momento, entendendo a princípio, o músico negro teria de individualizar-se, abrir dinâmica dos compositores dentro da escola de samba mão de seus fundamentos coletivistas, para poder ser cap- Vila Isabel, e pensando minha atuação dentro de um tado como força de trabalho musical”. A partir desse trecho, contexto mais amplo, que é a necessidade de valoriza- inferimos que o processo de perda de espaço do composi- ção das narrativas de matrizes negras e indígenas em tor passaria pela perda de espaço coletivo do sujeito, pas- uma vertente contemporânea. Observamos, por exem- sando pela individualização do compositor. Não será o foco plo, o PPGAS, do Museu Nacional, e outros Programas, desse texto, mas vale o questionamento para respostas que aderiram em seus Programas de Pós-Graduação o futuras: Há essa perda de coletividade? Em que medida a sistema de cotas para negros e indígenas. individualização afeta os processos de composição?

IV Foram mapeadas as rodas dos compositores Dinny XII Se considerarmos a existência de 72 escolas de da Vila, Arthur das Ferragens,Pagode do Arruda, dentre samba na cidade do Rio de Janeiro, onde cada uma outras iniciativas esporádicas de ensaios de blocos de pode produzir até 20 sambas em disputa, em média, embalo, como o Kizomba, da cantora Mart´nália. chega-se ao número de 1480 sambas de enredo. Des- se, ganham destaque somente os sambas vencedores, V Atualmente, também se encontra a prática, em outras gravados em um cd conjunto, dividido por hierarquia de escolas, do contrato de um grupo de compositores para desfile, e entoados no dia do desfile oficial. Os números a confecção do samba, findando o processo de disputas são ilustrativos e aproximativos. para a escolha do samba. Isso gera uma série de críticas por parte do grupo de compositores alijados do processo XIII Um episódio curioso envolve os referidos nomes de composição, faceta a ser considerada durante percur- de Bocão, André Diniz e Leonel. Após o carnaval 2014, so de pesquisa. No G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, essa a parceria haveria decidido ausentar-se da disputa de hipótese foi levantada publicamente pelo então presiden- samba-enredo, ocasionando quase que em três vezes te da Vila Isabel, Wilson Moisés, no ano de 2012. um aumento do número de inscritos na disputa para o ano de 2015. Porém, o samba da parceria de Macaco VI Ao passo que em 2006 a escola teve 30 sambas em Branco logo disparou na preferência da escola. Ao pas- disputa, no ano de 2014 a escola teve 6 sambas A alegação so que a fofoca no espaço dava conta de que o samba por parte de outros compositores se dá pelo excessivo nú- era de André Diniz, a parceria negava. Fato é que o sam- mero de disputas vencidas por André Diniz. Já para o car- ba foi eliminado na Semi-Final, onde muitos afirmavam naval de 2015, com a ausência de André Diniz nas disputas, que “só foi cortado porque era do André”. o número de sambas passou a subir, chegando a 18. XIV A dúvida sobre a coincidência é posta bem em tom VII Categoria nativa que designa o sujeito que assina provocativo mesmo, pois não se sabe a procedência do a autoria do samba, porém nem sempre os compondo gosto por um samba. Pode-se gostar de um samba por sua de fato, encobrindo e representando um grupo maior de letra marcante, melodia rica, ou mesmo pelas relações de compositores que participa da disputa. Alguns os deno- amizade tecidas. No caso do voto escolhido do Departa- minam de “comprositores”, ou seja, os que compram um mento Cultural, todas as alegações realizadas na sala - in- samba já pronto e, de fato, não compõem. clusive a minha - foram de que “era o melhor samba”, e não nos cabe julgar nosso próprio gosto a ponto de colocá-lo VIII Segundo afirmou o compositor André Diniz, em de- em xeque. O momento de votação pode ser caracterizado poimento dado ao Centro Cultural Cartola, ele em 2012 como um momento de alta tensão, podendo fazer até mes- conseguiu ganhar em quatro parcerias distintas no Gru- mo alguns votantes mudarem de opinião de forma repen- po Especial, o que chegaria a somar a quantia de R$ tina. Por exemplo, o carnavalesco Alex de Souza, ao me 1.200.000,00 no montante geral de premiação, dividida procurar uma semana antes afirmando ser um “absurdo entre os patrocinadores dos gastos da disputa de sam- o samba do Jaiminho Harmonia não ganhar”, mudara de ba - como gravação, torcida, fogos de artifício, cantores, opinião e votara no samba de Martinho da Vila. músicos, etc. Muitos desses patrocinadores são empre- sas de pequeno e médio porte - e parceiros do samba. XV As 4 fases em que Turner divide o Drama Social são: 1- Ruptura ou separação de uma relação social; 2- IX Depoimento de Djalma Sabiá ao Centro Cultural A instauração de uma crise ou sua intensificação; 3- A Cartola, em 2009. tentativa de uma ação reparadora; 4- Desfecho da crise.

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