Samba: Um Ritmo Negro De Resistência [ Samba: a Black Rhythm of Resistance

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Samba: Um Ritmo Negro De Resistência [ Samba: a Black Rhythm of Resistance Samba: um ritmo negro de resistência [ Samba: a black rhythm of resistance Amailton Magno Azevedo1 Este artigo contém partes modificadas da tese de doutorado A memória musical de Geraldo Filme – os sambas e as micro-áfricas em São Paulo (PUC-SP, 2006). RESUMO • Este artigo pretende situar o sam- This article aims to situate samba under the ba sob o prisma da crítica pós-colonial, que prism of postcolonial, criticism that allows permite uma abordagem sobre a cultura ne- an approach to black culture as a challenge to gra como uma contestação à modernidade. modernity. It should be noted that the article Importa destacar que o texto se organizou a was organized from the following problema- partir das seguintes questões problematiza- tizing questions: black style, black body and doras: estilo negro, corpo negro e microáfri- micro-Africa. I defend a rearrangement on ca. Defendo um rearranjo sobre historiografia historiography that dealt with samba. That que tratou do samba. Que suas origens se en- their origins are found in Bahia and Rio de contram na Bahia e Rio de Janeiro já se sabe; Janeiro and Bahia is already known; what is o que é necessário é observar que o mapa do needed is to observe that the samba map is samba é dilatado, fluido e multidirecional. dilated, fluid and multidirectional. From this A partir desse rearranjo, pretende-se pensar rearrangement, we intend to think of the city a cidade de São Paulo deslocada do chavão of São Paulo displaced from the buzzword that que sempre lhe foi atribuído, como túmulo has always been attributed to it, as a tomb or ou algo parecido, quando se trata de samba. something similar, when it comes to samba. • • PALAVRAS-CHAVE • Estilo negro; corpo KEYWORDS • Black style; black body; samba negro; samba e microáfrica. • ABSTRACT • and micro-africa. Recebido em 6 de novembro de 2017 Aprovado em 24 de julho de 2018 AZEVEDO, Amailton Magno. Samba: um ritmo negro de resistência. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 70, p. 44-58, ago. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i70p44-58 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil). Estilo negro: uma visão de mundo A música, o dom relutante que supostamente compensava os escravos, não só por seu exílio dos legados ambíguos da razão prática, mas também por sua total exclusão da sociedade política moderna, tem sido refinada e desenvolvida de sorte que ela propicia um modo melhorado de comunicação para além do insignificante poder das palavras – faladas ou escritas. (GILROY, 2001, p. 164). Os debates sobre a experiência trágica da diáspora africana nas Américas têm deixado de ignorar a música para pensar as “respostas negras à modernidade” (GILROY, 2001, p. 158). Para além do discurso – falado e escrito –, e do figurativo, a música negra expressou aspectos da subjetividade performática, onde corpo, gestos, dramaturgia se constituíram em uma complexa forma de elaborar comunicação e conhecimento. Na diáspora negra, a música consistiu em linguagem performática e o meio pelo qual se expressaram ideias, bem como o corpo, a oralidade e a religião constituíram o que se pode designar como filosofia e arte negra (THOMPSON, 2011)2. Forjadas no circuito do Atlântico Negro (GILROY, 2001) e tecida nos contatos interculturais entre diferentes nações oriundas das regiões centro e oeste africanas e extra-africanas, essa filosofia e arte inauguraram um estilo negro que se projetou como uma “descoincidência” cultural à modernidade europeia. Estilo este dotado de volume e vibração, tal qual se constata na estética capilar, na polirritmia, no riso, dança, culinária, vestuário, pintura e plasticidade corporal, bem como numa consciência comunitária explicitada na relação entre os vivos e entre esses com o mundo dos ancestrais. Leopold Senghor (2011, p. 73-93) afirmava ser esse estilo o contributo fundamental do negro para a humanidade. Na contramão da corrente filosófica instituída na modernidade europeia, Leopold Senghor, ao inventar uma africanidade pautada na razão sensível, estabeleceu um outro prisma para pensar a negritude. Para esse autor, segundo Sanches, o ser negro se definia como algo “oposto às Luzes, em que a comunidade, o sentimento, 2 O autor considera que a arte e a religião são as expressões que constituem a filosofia africana e afro-americana. • n. 70 • ago. 2018 (p. 44-58) 45 o ritmo e a totalidade concreta” contrastariam com as “abstrações racionalistas” (SANCHES, 2011, p. 22). Apesar de inédita, a tese de Senghor se esgotou pela construção romântica que reproduzia os estereótipos criados no Ocidente sobre os negros. Sua tese encapsulou a ideia de africanidade dentro de um atavismo essencialista. Para Manuela Sanches (2011, p. 22), apesar da justa crítica ao construto de Senghor, este nunca deixou de vislumbrar a negritude como uma “celebração da diferença que não exclui os intercâmbios transculturais”. Stuart Hall (2003) recoloca o estilo negro em novos termos. Reposiciona a ideia no contexto da cultura de massa. Afirma que esse modo de viver é resultado de complexas relações entre as origens africanas e as dispersões da diáspora. No diálogo entre culturas, elabora inovações linguísticas, estilização do corpo, estilos de cabelos, gingados, novas formas de companheirismo e comunitarismo. Sempre como expressões híbridas formatadas entre os signos e símbolos dominantes e subalternos. Para Hall (2003, p. 324), o estilo, a música e o corpo negro irrompem novas estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação da cultura, bem como significação crítica e como um ato de significar a partir de materiais preexistentes. Para Homi Bhabha (2007, p. 292-325), esse fenômeno constitui a emergência de um cosmopolitismo vernacular, dissonante ao estilo de vida ocidental, ou seja3, outras formas de vida e autorrepresentação avessas aos estereótipos coloniais. As afirmações propostas por Hall desconstroem qualquer pretensão essencialista e atávica. Muito pelo contrário, as novas versões do estilo elaborado entre as constelações de signos e símbolos culturais africanos e afrodiaspóricas refundam como algo histórico e nunca natural e biológico. Esse estilo foi algo vital para nós afrodiaspóricos, que, desde o século XVI, por meio das artes, da música e da religião, pudemos refabricá-lo no Atlântico Negro. Não só o reposicionamos no mundo, como estabelecemos uma geopolítica de resistência ao etnocídio cultural e físico. A preservação da polirritmia (ritmos cruzados) africana se constituiu como a estrutura medular dos ritmos negros nas Américas. Os estudos afirmam que “os princípios estéticos foram os elementos da cultura africana que mais perduraram e resistiram nas Américas” (THORNTON, 2004, p. 296). Ninguém mais duvida que “a música e a dança africanas estão na raiz da música e da dança afro-americana e, além disso, que essas manifestações culturais são as mais apreciadas e apropriadas à cultura europeia e americana” (THORNTON, 2004, p. 296). Desse modo, a cultura negra nas Américas se desdobrou numa pluralidade e multiplicidade de expressões culturais que reposicionou o estilo negro onde a “África” é ponto de partida e de chegada. O modo de viver dos africanos escravizados e ex-escravizados refabricou e trançou a espinha dorsal dessas expressões, que não se limitaram ao Brasil, mas se estenderam por todas as Américas e ilhas caribenhas (BRAGA, 2012). Traços culturais africanos que atravessaram séculos resistindo ao tráfico, à máquina escravista e ao racismo, ficando retidos na retina e na sensibilidade. Do lado de lá do Atlântico Sul, as Áfricas e suas múltiplas historicidades legaram 3 Nesse capítulo, o autor desenvolve a ideia de um novo internacionalismo emergente ancorado nas narrativas dos subalternos. 46 • n. 70 • ago. 2018 (p. 44-58) uma usina de saber-fazeres e filosofias que se prolongaram em litorais, matas, pantanais, florestas, fábricas e asfaltos brasileiros. Do lado de cá da margem, impossível pensar o Brasil sem esses prolongamentos. Impossível sim, pois, quando se trata de artes, poesia, música, culinária, religião, mundo afetivo e sensível, a presença do negro em torno dessas questões se faz sentir de modo explícito e vigoroso (SODRÉ, 1998). Musicalidades, oralidades, ritmos ressoam aos ouvidos solicitando uma atenção maior diante da cegueira do historiador mimado nas tradições da escrita. A historiografia que tratou das dimensões religiosas, musicais e da dança afirma haver uma rede complexa e multicêntrica de traços culturais africanos que foram reposicionados no contexto das Américas. As musicalidades e as danças sempre foram, para os grupos negros, formas de saberes que se expressaram como arte, comunicação e pensamento, em substituição ao discurso e à política de marcas ocidentais (GLISSANT apud GILROY, 2001). O CORPO NEGRO EM QUESTÃO As refabricações dos estilos e modos de vida tiveram no corpo o seu suporte vital para reavivar os vínculos com a África. Muniz Sodré (1998, p. 12) afirma que o negro no Brasil foi capaz de resistir e de impedir que o seu corpo se tornasse uma máquina coisificada. No lugar do corpo máquina, um corpo plástico capaz de forjar uma exuberância narcísica, afirmando-se por meio de uma vitalidade, impregnando o ambiente vivido – do quilombo ao engenho, das plantações às cidades (SODRÉ, 2015, p. 242, 243). No universo da cultura negra, a memória do corpo-música e a da música-corpo são indissociáveis, dependentes uma da outro, complementando-se, interpenetrando-se e reelaborando a “África” na sua dimensão rítmica, na palavra oral sacralizada, nas devoções religiosas aos ancestrais, na arte visual e comunicativa. Além da música, o estilo negro expressou-se em artes do corpo: pinturas, tecidos, tipos de cortes de cabelos, penteados, tatuagens e moda. Tais expressões tornaram possível também fazer perdurar signos afro-atlânticos no Brasil e nas Américas. Na contramão das representações platônicas e cartesianas que consideram o corpo um amontoado de órgãos desimportantes, este, nas cosmogonias negras, assume uma particularidade cultural (MONGÁ, 2010, p. 132, 133). Música, dança, pintura e evocação dos ancestrais significam modos de celebrar a vida, o que implica em desafiar uma visão desencantada do mundo.
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