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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE CIÊNCIAS SOCIAIS FGV – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO DE GAFIEIRA: uma etnografia nos anos 2018 e 2019 no

APRESENTADA POR

ALINE DOS SANTOS PAIXÃO

Rio de Janeiro, Dezembro de 2020. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA DE CIÊNCIAS SOCIAIS FGV – CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PROFESSORA ORIENTADORA ACADÊMICA DRA. YNAÊ LOPES DOS SANTOS COORIENTADORA ACADÊMICA PROFESSORA DRA. ALEJANDRA JOSIOWICZ

ALINE DOS SANTOS PAIXÃO

PASSADO, PRESENTE E FUTURO DO : uma etnografia nos anos 2018 e 2019 no Rio de Janeiro

Dissertação de Mestrado Acadêmico apresentada à Escola de Ciências Sociais – FGV CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História, Política e Bens Culturais

Rio de Janeiro, Dezembro de 2020 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV

Paixão, Aline dos Santos Passado, presente e futuro do samba de gafieira : uma etnografia nos anos 2018 e 2019 no Rio de Janeiro / Aline dos Santos Paixão. – 2020. 136 f.

Dissertação (mestrado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Orientadora: Ynaê Lopes dos Santos. Co-orientadora: Alejandra Josiowicz Inclui bibliografia.

1. Dança de salão - Rio de Janeiro. 2. Dança de salão - Origem. 3. Samba. 4. Danças afro-brasileiras. 5. Música corporal. I. Santos, Ynaê Lopes dos. II. Josiowicz, Alejandra. III. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. IV. Título.

CDD – 394.30981

Elaborada por Rafaela Ramos de Moraes – CRB-7/6625

Este trabalho é dedicado a todas as pessoas que amam o samba e o salão. AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, por ter financiado parcialmente essa pesquisa. À orientadora Ynaê Lopes dos Santos por suas observações, ensinamentos e correções minuciosas, sem as quais esse trabalho não teria chegado ao amadurecimento necessário. À coorientadora Alejandra Josiowicz por seu apoio nos momentos de desânimo, pela leitura cuidadosa de todo o material e pela calma e tranquilidade com que me encorajou a enfrentar o desafio da qualificação. Agradecimento especial à banca de qualificação formada pelos professores João Marcelo e Antonio Brasil, que lançaram luz sobre os caminhos e possibilidades desta pesquisa, sendo muito generosos em suas observações e orientações. Agradeço também aos professores Bernardo Buarque e Thaís Blank pelas dicas de leituras e incentivo ao meu tema de pesquisa. Aos integrantes do LAPES – Laboratório de Pensamento Social – pelas trocas, dicas e momentos de descontração e conversas animadoras. Aos colegas e amigos do CPDOC, por tornarem a jornada do mestrado mais leve, obrigada pelas conversas, risadas, cervejas, , e happy hours. Um agradecimento especial às queridas Vanessa Araújo e Viviane Fernandes, com as quais construí uma rede de amizade, admiração, carinho e apoio mútuo que transcende a vida acadêmica. Aos incríveis profissionais de samba de gafieira que contribuíram com essa pesquisa, (Léo Fortes, Robertinha, Rodrigo Marques, Kadu Vieira, Viviane Soares e Ana Paula Pereira) e a tantos outros que mantêm essa cultura viva. À Manuela Yasmim, por ser a melhor colega de quarto que uma mestranda poderia ter, pelo carinho, pelas conversas e por ser minha família no Rio de Janeiro. À Bel Miranda, minha amiga, incentivadora e belíssima tangueira. À querida Aline Ribeiro, que juntas, ela em Fortaleza e eu no Rio, dividimos as angústias do mestrado e da vida, muito obrigada pela amizade e por ser um porto seguro. Um agradecimento especial à Monalisa e à Fernanda por me apoiarem como a uma filha. Ao meu parceiro Bruno Silva por toda a paciência, amor, incentivo e companheirismo. E finalmente, aos meus pais, José Vicente (in memoriam) e Maria Alvina, por sempre acreditarem no meu potencial. Em minha trajetória acadêmica tenho lido, ouvido e visto muitas coisas, no entanto, vocês continuam sendo as pessoas mais sábias que eu conheço, tive muita sorte em tê-los como meus pais. RESUMO

Esta dissertação se dedica a investigar as recentes transformações no mundo do samba de gafieira na cidade do Rio de Janeiro. Buscando entender como os atores sociais envolvidos nas transformações dialogam com as gerações profissionais anteriores, principalmente no que tange às técnicas corporais. Além disso, identificar nessa estrutura os usos das redes sociais e do YouTube. Para isto, foram escolhidos os dois principais eventos nacionais de samba de gafieira que acontecem no Rio de Janeiro anualmente, o Sambamaniacos e o Gafieira Brasil. Utilizamos como métodos a entrevista e a observação participante. Antes da análise dos dados coletados, realizamos uma revisão de literatura a fim de resgatar o contexto histórico das danças de salão no Brasil com o propósito de delimitar de qual dança estamos falando: samba de gafieira, uma dança de origem popular e negra. Através das informações coletadas identificamos três gerações que cooperam para a construção do mundo do samba de gafieira: os intuitivos, os profissionais e a nova geração. As diferenças entre as gerações residem nos modos de transmissão das técnicas corporais. Concluímos que atualmente as principais transformações na configuração do mundo do samba de gafieira passa pelo protagonismo dos jovens profissionais e a utilização das redes sociais e YouTube. Os eventos especializados surgem como pontos de convergência de novas práticas e novos tipos de cooperação.

Palavras-chave: samba de gafieira; dança de salão; baile; Rio de Janeiro. ABSTRACT

This dissertation investigates the recent transformations in the world of samba de gafieira in the city of Rio de Janeiro. We seek to understand how the social actors involved in the transformations dialogue with previous professional generations, mainly concerning body techniques. Besides, to identify in this structure uses of social networks and YouTube. For this, the two major national congresses of samba de gafieira were chosen that take place in Rio de Janeiro annually, Sambamaniacos and Gafieira Brasil. We used interview methods and participant observation as methods. Before analyzing the data collected, we performed a literature review to rescue the historical context of ballroom in Brazil to delimit which we are talking about: samba de gafieira, a dance of popular and black origin. Through the information collected, we identified three generations that cooperate to build the world of samba de gafieira: the intuitive, the professionals, and the new generation. Differences between generations lie in the modes of transmission of body techniques. We conclude that currently, the major transformations in the world of samba de gafieira involve young professionals and the use of social networks and YouTube. Specialized events emerge as points of convergence for new practices and types of cooperation.

Keywords: samba de gafieira; ; dances; Rio de Janeiro. Lista de Figuras

Figura 1 – Léo Fortes – idealizador e realizador do SM...... 95 Figura 2 – Idealizadores e realizadores do GB...... 97 Figura 3 - Espaço Franklin...... 100 Figura 4 - Casa de Espanha...... 100 Figura 5 - Fila de entrada do baile SM 2018...... 103 Figura 6 - Participante posa para fotos em frente ao painel do GB...... 104 Figura 7 - Baile do SM 2018 - salão visto de cima...... 107 Figura 8 - Salão de baile do GB 2019...... 108 Figura 9 - Casal dançando no baile...... 111 Figura 10 - Tipos de calçados comuns nos bailes...... 112 Figura 11 – DJ Rapha – principal DJ do SM...... 115 Figura 12 – Banda Alto Astral e Denise Abrantes no baile do GB...... 116 Figura 13 - Tamires Maciel e Jean Rabelo - apresentação de samba funkeado...... 118 Figura 14 – “A Garotada”...... 119 Figura 15 - Competição GB 2019...... 121 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 10 CAPÍTULO 1 – Duas histórias: a dança de salão no Brasil e a dança de salão brasileira ...... 28 1.1 Para situar a dança de salão...... 30 1.2 Dança de salão no Brasil: origens europeias chegada ao Rio de Janeiro...... 32 1.3 A história da dança de salão brasileira...... 41 1.3.1 O contexto político-social...... 41 1.3.2 O lundu e a origem do ...... 45 1.4 O samba de gafieira...... 52 CAPÍTULO 2 - Diferenças e diálogos entre as gerações do samba de gafieira...... 64 2.1 Os intuitivos, os profissionais e a técnica...... 64 2.2 Nova geração...... 69 2.3 O YouTube e as redes sociais no mundo do samba de gafieira...... 79 CAPÍTULO 3 - Gafieira Brasil e Sambamaniacos: onde todos se encontram...... 87 3.1 Quem são esses “todos”?...... 87 3.2 Dois eventos e uma proposta de categorias de análise de bailes de dança de salão....92 3.2.1 Delimitação...... 98 3.2.2 Estrutura...... 103 3.2.3 Interações sociais no salão...... 107 3.2.4 Personagens especiais...... 113 3.3 Futuro do samba de gafieira: medos, caminhos e projeções...... 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS:...... 126 Referências Bibliográficas...... 129 12

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa se dedica a investigar uma das mais usuais formas de lazer no Rio de Janeiro desde os tempos de Império, a dança de salão. Mais especificamente o samba de gafieira, uma das modalidades que foi se configurando na cidade por volta dos anos 1930. A escolha dessa pesquisa se dá pela minha história profissional com a dança de salão iniciada em 2002 no Projeto de Extensão Dançar Faz Bem da Universidade Federal do Ceará quando era estudante do curso de Educação Física daquela instituição. Esse projeto de pesquisa inaugurou uma nova fase na minha relação com o samba de gafieira, depois de uma trajetória de quinze anos ensinando as danças de salão, em um vínculo predominantemente prático com a atividade. Após várias visitas - entre os anos de 2013 e 2017 - à cidade do Rio de Janeiro, berço e principal centro de irradiação do samba de gafieira, em busca de conhecimentos técnicos e de história oral sobre essa cultura, nasce o interesse por essa pesquisa acadêmica e o desejo de contribuir com registros escritos com uma cultura que é eminentemente prática e oral. Durante mais de quinze anos dedicados ao “mundo da dança de salão”, pude observar mudanças nas formas de dançar o samba de gafieira, na transmissão das técnicas, nos locais de bailes, no modo de se vestir para o baile, no perfil profissional de dançarinas e dançarinos de sucesso. Testemunhei também transformações impulsionadas pelas possibilidades que o mundo virtual trouxe para a dança de salão, e a crescente expansão do samba de gafieira para outros países. Por outro lado, nas representações do samba de gafieira em obras escritas ou visuais, percebe-se uma certa estagnação e uma forte ligação com práticas e estéticas do passado. Essa distância entre o que vem sendo representado e o que é observado nos salões e academias de dança é o que deu o impulso inicial dessa pesquisa. Pretende-se com esse trabalho registrar um samba de gafieira do presente, que acontece todos os dias nos salões e academias de dança, nos encontros, nos congressos, nos eventos e principalmente na internet, onde observa-se que a transformação é seu próprio fazer-se e refazer-se. O samba de gafieira que persiste no imaginário das pessoas, frequentemente apresenta aspectos divergentes das experiências dos sujeitos concretos com o samba de gafieira. Geralmente existe um “véu” que cobre o samba de gafieira com cor de passado e ares de uma malandragem romântica. Algumas vezes, as representações querem fazê-lo parecer um filho ilegítimo e rejeitado de danças nobres dos castelos. São justamente esses estereótipos 13 que pretendemos eliminar aqui. Existe um descompasso temporal e um desencontro estético entre essas representações e o que as pessoas testemunham como seus entendimentos, percepções e experiências práticas em relação ao mundo do samba de gafieira. Esse descompasso pode ser percebido graças à vivência prévia dentro dos salões e eventos de samba de gafieira, e o posterior confronto entre esse conhecimento prático e as diferentes representações. As experiências anteriores vividas nesse universo não poderão ser deixadas de lado, e a experiência de campo durante o mestrado, se confundem de um modo ou de outro com os quinze anos anteriores. Desse modo, essa dissertação quer falar do samba de gafieira do presente, buscando, para entendê-lo, suas raízes; e, entendo-o de modos mais completos e nuançados, cultivar uma esperança audaciosa de lançar alguma luz sobre os modos de fazer dessa prática. O tema dança de salão é multidisciplinar, sendo abordado por pesquisadores de diversas áreas, como Educação Física, Artes Cênicas, Sociologia, Antropologia, História e Letras. As questões que aparecem nesses trabalhos são relacionadas à saúde, corpo, gênero, sociabilidade, lazer, cidade, cultura brasileira, cultura popular, dentre outros. E, conhecendo a dança de salão por meio da prática e das leituras que venho explorando, posso afirmar que o tema pode ser analisado por qualquer dessas abordagens. Além de ser um tema multidisciplinar, quando nos aproximamos do objeto, percebemos ainda muitas possibilidades inexploradas pela literatura. Até mesmo quem não conhece previamente esse “mundo” e é atraído para o tema por alguma questão específica, também é atingido por essa vertigem, ao perceber tão grande e diverso algo que talvez julgasse pequeno e coeso. Além disso, muitas vezes o pesquisador entra em contato com outras formas de saber, por outros canais que não a escrita. Devemos reconhecer que nas Ciências Sociais, o lugar do corpo como agente ativo na construção do conhecimento ainda é incipiente. Nos trabalhos sobre o tema, praticamente a totalidade dos pesquisadores, especialmente os que realizam pesquisa de campo, admitem uma certa dificuldade em traduzir para a linguagem escrita o que observam e experimentam no universo da dança de salão. Souza (2010) coloca isso em seu trabalho de pesquisa quando se propõe, a partir da aproximação com atores sociais dos espaços de dança de salão, desenvolver ideias que persigam a coerência e o equilíbrio entre a “experiência viva” e a “experiência escrita”. Em um trecho de outra experiência etnográfica no salão da gafieira Estudantina vemos, que foi possível “observar a dificuldade deles em explicá-los em palavras e não com o corpo inteiro” (VEIGA, 2011, p. 228). O autor em questão – um dos especialistas 14 no assunto - considera que a dança de salão parece ter uma linguagem própria que valoriza códigos corporais e coloca as palavras em segundo plano. Em outro momento, após alguns meses distante do campo, na ocasião do retorno foi tomado por um certo estranhamento, e revela: “tive sérias dúvidas sobre minha capacidade de expressar devidamente ao longo da etnografia o que realmente se passava naquele lugar” (VEIGA, 2011, p. 348). Portanto, independente do recorte, do ponto de vista a ser trabalhado, é inegável o fato de que a dança de salão se constitui num universo difícil de ser apreendido, organizado e traduzido. E além disso, a prática se encontra numa interseção de diversas questões, abrindo um leque de possibilidades: história, comportamento social, fenômeno social, gênero, classe social, corpo, sociabilidade, técnica artística, prática cultural, lazer, cidade, dentre outros. As principais interseções que constroem esse trabalho sobre o samba de gafieira são: a) sua origem e história, conexas à história da cidade do Rio de Janeiro no período de origem e configuração das danças de salão brasileiras; b) os significados e transformações enquanto fenômeno cultural na história recente; e c) questões sobre a transmissão das técnicas corporais na atualidade, bem como o uso de ferramentas virtuais nesses processos. Não será tarefa deste trabalho examinar de forma detalhada a história do samba de gafieira, mas sim propor alguns olhares e reflexões sobre o que vem sendo construído e reproduzido nesse universo, a fim de clarear a visão sobre o objeto na atualidade. Obras como O pensamento mestiço (GRUZINSKY, 2001), Culturas Híbridas (CANCLINI, 2001) e Hibridismo Cultural (BURKE, 2003) concordam em que “os grandes centros são mais propícios às mestiçagens e aos hibridismos”. Dessa forma, podemos entender o maxixe e mais tarde o samba de gafieira como práticas, desde sua origem na cidade do Rio de Janeiro, abertas a interações culturais, o que ajuda em grande parte, a visão que se pretende cultivar aqui acerca do samba de gafieira: uma prática viva e que se move de acordo com a contemporaneidade, não uma prática presa ao passado e em vias de desaparecimento. O samba de gafieira faz parte do que se entende por cultura popular, sendo uma dança popular. No entanto, diante da complexidade do tema, não pretendemos tentar conformar o fenômeno real (samba de gafieira) a modelos e conceitos (cultura popular/ dança popular), dessa forma, nos inspiramos no olhar sobre cultura popular que Hermano Vianna constrói em sua experiência na investigação do mundo . “O baile funk carioca é um exemplo bastante rico de como elementos culturais de procedências diversas, ‘autênticos’ ou não (...) podem se combinar de maneiras inusitadas” (VIANNA, 1990, p. 245). Portanto, 15 não nos preocupamos neste trabalho com a identificação ou resgate de uma pretensa “pureza” ou de um samba de gafieira “autêntico” - que pode estar em risco diante de interações de diversos tipos. O nosso interesse são as interações mesmas, o que o samba de gafieira é, e não o que foi ou o que poderia ter sido. A dança popular, a fim de não cair em conformações limitantes oriundas dos debates e paradoxos do campo da cultura popular, deve seguir essa visão aberta e dialogar com seu meio social. Guarato (2014), em artigo que promove uma reflexão sobre a situação das danças populares no debate da cultura popular, defende que:

“A dança popular se encontra sempre selecionando e incorporando significados e práticas. A tradição, a cultura, o social, são vividos de formas específicas, singulares e em movimento. Se fixarmos definições generalizadas, estaremos desprezando várias e contrastantes significações.” (GUARATO, 2014, p. 71)

O autor alerta ainda que as diversas modalidades de danças populares, entre elas as danças de salão, “não possuem apenas um modo de fazer, assim como, as regras que direcionam esse fazer, se refazem de tempos em tempos segundo tensões e interesses antagônicos no seio popular.” (GUARATO, 2014, p. 72). Para compreender o samba de gafieira enquanto prática social, cultural e artística fruto da cooperação de elementos diversos, utilizaremos, portanto a perspectiva de mundos da arte, da qual “Não se trata de uma abordagem cuja finalidade seja a de produzir juízos estéticos (...). Pelo contrário, ela possibilita uma melhor apreensão da complexidade das redes cooperativas que geram a arte” (BECKER, 2010 pp. 27-28). Acreditamos que essa abordagem favorece a compreensão do nosso tema, dado que sua dimensão relacional é inerente. Adotar a perspectiva de mundos da arte é assumir que existe uma cooperação para a criação desse mundo, uma partilha de saberes que foram adquiridos em diferentes contextos e que são partilhados principalmente no salão de baile. “Falar da organização de um mundo da arte (...) é outra maneira de falar da distribuição dos saberes e do seu papel na ação coletiva.” (BECKER, 2010, p.78). Dentro desse mundo do samba de gafieira os acontecimentos de maior importância são os bailes, episódios centrais na observação de campo deste trabalho. O baile talvez seja o núcleo que movimenta todo o mundo do samba de gafieira, e pode ser definido como: 16

“Reunião festiva cuja finalidade principal é a dança de par enlaçado. Os bailes em salões de gafieiras, clubes sociais, dancing clubs e mesmo em casas de família figuram, na história do samba, como espaços e momentos não só de lazer e entretenimento, mas também de socialização e afirmação artística. Foi neles que o mundo do samba criou e desenvolveu, graças ao talento de grandes dançarinos, o estilo popularizado como “samba de gafieira”. (LOPES & SIMAS, 2015, p. 30, grifo do autor).

Além do baile, o mundo do samba de gafieira se estende por outros espaços, como escolas de dança, teatros, salas de ensaio e, mais recentemente, os espaços virtuais. No entanto, consideramos o baile como o espaço de excelência do samba de gafieira, sua razão de existir. É evidente a escassa produção acadêmica e literária sobre o tema dança de salão brasileira, existe uma dificuldade em encontrar bibliografia especializada na área de dança em geral, principalmente de trabalhos que poderiam contribuir para um desenvolvimento mais crítico da área. No tocante à dança de salão, Alves (2004) revela as dificuldades para encontrar referências bibliográficas para sua tese, que posteriormente tornou-se livro.

“A maior parte das referências bibliográficas diz respeito à história da música e poucas alusões fazem às danças que acompanhavam esses ritmos. (...) Com exceção das danças de par enlaçado do século XIX, como a polca, o minueto e a valsa, as danças de par enlaçado modernas, atualmente praticadas nos salões do Rio de Janeiro, não são estudadas como são os gêneros musicais.” (ALVES 2004, p. 36)

Veiga (2011) também denuncia essa escassez chamando a atenção para o fato de que a despeito de sua grande visibilidade e apelo, o ambiente das gafieiras e dos dancings tenha sido pouco estudado na academia. Revela que em busca no acervo da Biblioteca Nacional e na Base Minerva da UFRJ, encontrou somente um título sobre o tema, o livro Samba de Gafieira: a história da dança de salão brasileira (2001), editado pelo próprio autor, Marco Antonio Perna. Dentre as referências bibliográficas mais antigas para os estudos sobre a história das danças de salão no Brasil, estão livros que documentam a história da música popular brasileira, como Pequena História da Música (2015) de Mário de Andrade; Samba, o dono do corpo (1998) de Muniz Sodré e Pequena História da Música Popular. Da modinha ao 17 tropicalismo (1986) de José Ramos Tinhorão nos quais podemos encontrar capítulos ou trechos que deixam entrever episódios, costumes e modas nas danças de salão praticadas no Brasil. Esses títulos foram publicados pela primeira vez nas décadas de 1930, 1970 e 1980, respectivamente, os anos em parênteses, se referem às edições consultadas. Esses livros também dão pistas sobre o surgimento do maxixe e sobre a constituição do samba, com foco sempre voltado para a música, mas como no contexto do final do século XIX e início do XX as dança sociais e a música popular eram intrínsecos, dedicam alguns parênteses ou linhas para as danças de salão. A pesquisa de Mário de Andrade considera as músicas e danças populares brasileira como resultado de um amálgama das culturas portuguesa, espanhola, ameríndia e africana. Chama a atenção a presença de estigmas e preconceitos coletados de relatos de viajantes europeus no que se refere às danças africanas, como por exemplo o lundu ser considerada a dança mais indecente. O próprio autor reforça ideias como essa quando afirma “o jeito africano muito lascivo de dançar, permaneceu na índole nacional” (ANDRADE, 2013, p. 165). A obra de Mário de Andrade é cânone na história da música brasileira e essa perspectiva sobre a dança africana, repercute até hoje em algumas obras sobre a dança de salão brasileira, que como veremos possui raiz negra. Décadas depois, Muniz Sodré lança um livro com objetivo de contestar alguns pontos abordados por Mário de Andrade, especialmente no quesito musical da síncope. Sodré, na verdade, assume uma perspectiva completamente oposta a Andrade. De início, não considera o samba como elemento passivo no amálgama cultural como os discursos vigentes vinham tratando muito inspirados pela obra de Mário de Andrade. Condena a perspectiva de uma fusão cultural efetuada de cima para baixo, defendida por tais autores. Considera o samba e os elementos culturais africanos que o compõem como agentes ativos da própria história e não apenas um gênero que sofreu modificações impostas para sobreviver. Sustenta que o samba e o corpo são indissociáveis e que sua trajetória é uma demonstração de resistência à escravidão e afirmação da continuidade do universo cultural africano. Defende que “as músicas e danças africanas transformavam-se, perdendo alguns elementos e adquirindo outros, em função do ambiente social”. (SODRÉ, 1998, p. 13). Recolhe relatos de viajantes que se contrapõem às ideias de indecência presentes em Andrade. Como no relato do viajante português José Osório de Oliveira, “(...) O que impressiona é o ardor que os pretos põem na dança, como se fosse qualquer coisa de essencial. O que inspira é muito mais um 18 sentimento religioso que a sensualidade, ao contrário do que supõem os que confundem com esta o impudor natural.” (OLIVEIRA apud SODRÉ, 1998, p. 22). Sodré portanto, inaugura na década de 1970, essa linha de estudo que procura resgatar a história do samba como produto principalmente de uma cultura africana de resistência, colocando as culturas europeias e indígenas em segundo plano na sua composição. Tinhorão escreve na década de 1980, após Sodré, retomando em parte a perspectiva analítica de Mário de Andrade. A diferença é que Tinhorão (1986) dedica um pouco mais de espaço para as danças de salão, mas com uma ótica bem limitada e evolucionista, considerando as contribuições africanas para a música e dança como primitivas. Intensifica a discriminação com a cultura negra e popular, visível em trechos como: “Diante de tal maneira de dançar, qual o comportamento que se poderia esperar dos músicos de , sendo eles também naturalmente inclinados a esses transbordamentos de dengo, de malícia e de lascívia, tão próximos estavam desse gente pela origem?” (TINHORÃO, 1986, p. 63). Compreender as linhas de pensamento desses autores é importante porque até hoje, essas perspectivas se misturam e se confundem nas construções de entendimentos sobre o que é o samba de gafieira, objeto dessa pesquisa. Concordamos que apesar de suas características mestiças, o samba de gafieira herda do maxixe suas configurações e que estas são oriundas, por sua vez, das danças de origem africana. Em acordo com o entendimento de Sodré (1998), seguido por Sandroni (2001), Lopes e Simas (2015) e Lira Neto (2017), acreditamos que a contribuição africana nas danças e músicas populares precisa ser revista, tomando um lugar de protagonismo. Ainda, dentre as obras seminais, talvez a mais conhecida, seja o livro Maxixe – A dança excomungada de Jota Efegê, escrito em 1974. Jota Efegê (1902-1987) foi um famoso jornalista, cronista, pesquisador, musicólogo e escritor brasileiro, estudioso dos modos e costumes da cidade do Rio de Janeiro e suas manifestações culturais. Esse livro conta a história do maxixe, desde suas origens até sua extinção, e nesse percurso realiza uma análise da mentalidade conservadora da sociedade da época que, apesar de aplaudi-lo nos teatros de revista, não aceitou o maxixe como dança que representasse a nação, como os argentinos estavam fazendo com o na época, e alguns anos mais tarde fez-se aqui no Brasil com o samba. Essa obra será fundamental no resgate das origens do samba de gafieira enquanto dança de salão brasileira. 19

Inaugurando publicações mais recentes, em 2001, Marco Antonio Perna, um praticante, amante da dança de salão e criador, na década de 1990 do site Agenda da Dança de Salão Brasileira, lançou o livro “Samba de Gafieira: a história da dança de salão brasileira”. Perna (2001) aborda o tema numa tentativa de reconstituir a história da dança de salão no Brasil, desde a grande moda da polca, no século XIX, uma dança europeia trazida pelos portugueses e que teve muito sucesso no Rio de Janeiro, até chegar aos fatos e personagens das décadas de 1980 e 1990 da dança de salão no Rio de Janeiro. Sua principal contribuição em relação ao livro de Efegê (1974), é o registro da história mais recente do samba de gafieira no Rio de Janeiro, já no tocante às origens da dança de salão brasileira não traz novas perspectivas e segue a linha de Mário de Andrade e Tinhorão, considerando o samba como produto das três culturas que viviam no Brasil. O livro se constitui em uma reunião de fatos, episódios e personagens da dança de salão brasileira que antes estavam espalhados por diversas fontes, como outros livros, matérias e anúncios de jornais de várias épocas, artigos de opinião, e outros materiais publicados em sites e blogs na internet. Entre 2005 e 2006, surgiram trabalhos acadêmicos nas áreas de artes cênicas, antropologia e sociologia que apontaram no sentido de uma discussão mais aprofundada sobre a dança de salão, vinculados a teorias antropológicas, sociais e culturais. Exemplos que merecem destaque são: a dissertação de Ana Maria de São José (UFBA), Samba de gafieira: corpos em contato na cena social carioca de 2005, a dissertação de Mariana Massena (UFRJ) A sedução do brasileiro: um estudo antropológico sobre dança de salão de 2006 e a dissertação de Virna Virgínia Plastino (UFRJ) Dança com hora marcada: uma etnografia da atração social em bailes também de 2006. O trabalho de São José (2005) é a primeira obra acadêmica que se debruça sobre o samba de gafieira e tem o propósito de investigar as transformações ocorridas na dança e nos bailes desde 1980 até 2005, com o intuito de compreender como a tradição é tratada na contemporaneidade. A autora conclui que o samba de gafieira é produto de raízes europeias e africanas e que atualmente é um fenômeno genuinamente carioca, ocupando o lugar de entretenimento desde a sua origem. Além disso, que a dança do samba de gafieira carioca “continua a assimilar características de danças de outras culturas, revelando-se enquanto construção híbrida” (SÃO JOSÉ, 2005, p. 167). O samba de gafieira continua, portanto, aberto à inovações, e o que caracteriza a sua autenticidade, segundo a autora, são as movimentações corporais como a ginga e a criatividade. 20

Em pesquisa realizada quase no mesmo período, publicada um ano depois, em 2006, Dança com hora marcada: uma etnografia da atração social em bailes, Virna Plastino (2006) perfaz uma minuciosa investigação sobre as relações de interdependência instituídas em torno da dança de salão em clubes sociais, localizados no centro e na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Gênero, velhice, juventude, classe social, raça e etnia são trabalhados como atributos sociais que, combinados com outros elementos, configuram uma escala hierárquica dos privilégios das “sociedades dos salões”. A pesquisa de Plastino revelou que nos clubes observados, homens e mulheres, jovens e velhos, grupos das camadas médias e populares que se relacionavam nos salões orientavam suas ações e seus gostos atribuindo sentidos e valores diversos a essas categorias. Estes atributos, conforme demonstrado, longe de definirem de antemão o lugar ocupado pelos bailantes na conformação das posições no clube, obtinham novas significações quando combinados de modos distintos a outros elementos como a técnica corporal que o bailante detinha, o grau de incorporação dos códigos de etiqueta (comportamento e vestimenta), o tempo de convívio, o histórico de envolvimento com a dança e com as atividades do clube. No mesmo ano, Massena (2006) realizou o estudo intitulado A sedução do brasileiro: um estudo antropológico sobre dança de salão. Seu foco é a relação entre a dança de salão e certas idealizações sobre o “ser brasileiro”, buscando verificar o significado do baile e o sentido das representações sobre a sedução na dança de salão brasileira. Objetiva também compreender a construção simbólica do corpo do dançarino de salão e as significações sociais de ser homem e ser mulher nesse universo. A autora destaca, entre suas descobertas, as marcas de diferença de gênero no universo da dança de salão, enquanto questões como poder de decisão, proatividade e comando estão relacionados ao masculino, questões como passividade e submissão são relacionadas ao feminino sendo até um comportamento esperado e desejado para que a mulher seja considerada uma boa dançarina. Contudo, alerta que relativizou a noção de passividade feminina na dança de salão e avalia que “a relação entre dama e cavalheiro ocorre dentro de um princípio de interação, onde ambos atuam como sujeitos que interagem entre si” (MASSENA, 2006, p. 131). A indumentária e o comportamento dos dançarinos no baile também são analisados e a autora destaca a aura de sedução como uma das características mais determinantes. Podemos observar que esses três trabalhos são síncronos e concentram-se na cidade do Rio de Janeiro, cada um abordando pontos de vista e objetivos diferentes, mas que juntos 21 fornecem caminhos para compor um panorama mais completo do circuito de dança de salão no Rio de Janeiro. Os locais que serviram de campo foram algumas gafieiras tradicionais do centro e, no caso de Plastino (2006), algumas do subúrbio. Já Massena (2006), apesar de observar alguns bailes em seus locais de excelência, possui como fonte principal de observação a academia de dança. Os usos e costumes que as autoras apresentam, como resultado de suas etnografias, são de grande valia para um comparativo com os anos de foco desta pesquisa, quase 15 anos depois. Em 2010 e 2011 surgem dois robustos trabalho sobre o tema, a tese de doutorado de Maria Inês Galvão Souza (UNIRIO), Espaços de dança de salão no cenário urbano da cidade do Rio de Janeiro: tradição e inovação na cena contemporânea (2010), e a tese de Felipe Berocan Veiga (UFF) intitulada “O ambiente exige respeito”: etnografia urbana e memória social da Gafieira Estudantina (2011). A primeira, da área de Artes Cênicas e a segunda, da Antropologia. O objetivo principal de Souza (2010), é discutir o universo simbólico dos espaços de dança de salão a partir de uma análise das representações dos conceitos de tradição e inovação expressos nos discursos dos atores sociais dos bailes, bem como dos atores privilegiados, ou seja, aqueles considerados pelo próprio campo como os principais sujeitos do movimento de formação e disseminação da dança de salão. Sua hipótese é que apesar dos espaços de dança de salão serem marcados pela representação da tradição, eles são preenchidos dinamicamente por um conjunto complexo de discursos e ações que traduzem memórias, adaptações, inovações e tradições que dialogam e se transformam conforme o fluxo de entradas e saídas de novos atores sociais. Uma das mudanças que identifica com sua pesquisa é o aumento do número de profissionais que atuam no campo da dança de salão trazendo diversas alterações que devem ser consideradas, dentre elas: a difusão dos códigos da linguagem de movimentos e com isso a facilidade da interlocução entre os atores sociais. Percebe-se que seu foco é próximo ao de São José (2005) nas questões sobre tradição e inovação, mas podemos perceber que cinco anos depois, algumas mudanças já eram observadas. Souza (2010) aponta que essas transformações causaram a exclusão daqueles que não frequentam academias de dança e que gostariam de interagir eventualmente pela linguagem corporal e nesse processo, destaca a espetacularização do corpo em um indivíduo que vive cada vez mais intensamente a espetacularização urbana. Essas conclusões deixam mais evidentes o processo de transferência de núcleo das práticas das gafieiras para as academias, que privilegiam a técnica. 22

A prática do samba de gafieira aos poucos enfraquece suas ligações com a noite boêmia do centro do Rio de Janeiro e fortalece seus vínculos com ambientes mais padronizados e hierarquizados pela técnica corporal, as academias. O trabalho de Veiga (2011), por sua vez, realiza um mergulho profundo na história da Gafieira Estudantina, reconstruindo o seu ambiente urbano através do tempo. Esse salão foi considerado um dos mais tradicionais do Brasil, à época de sua pesquisa funcionava na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, porém fechou suas portas em 20171. Veiga interage com aficionados, músicos das orquestras, funcionários e a administração do negócio familiar a fim de entender e registrar as práticas diárias do lugar e seu funcionamento. Identifica que as gafieiras se configuram como espaços de encontro e articulação entre diferentes grupos sociais dentro do contexto de divertimento urbano ligado à metrópole carioca. Revela, baseado em Norbert Elias, que é a formação do público pagante e do mercado consumidor que possibilita a ruptura com padrões de dominação exercida pelas elites nos campos da arte desde o século XVIII. O autor afirma que as mudanças de público configuram acontecimentos essenciais na constituição da dança, tal como nos casos do samba e do tango. Seu trabalho, ao penetrar profundamente na história da Estudantina, faz um relato das práticas do salão de dança que serão interessantes ao nosso trabalho. Além das pesquisas acadêmicas, algumas biografias serão utilizadas como consulta para desvendar e contar a história recente da dança de salão no Rio de Janeiro. São as biografias de personalidades importantes na história recente da dança de salão no Brasil, Enquanto Houver Dança: uma biografia de Maria Antonieta Guaycurus de Souza, a grande dama dos salões (2004) escrita por Teresa Drummond; Vem Dançar Comigo (2005), autobiografia de Carlinhos de Jesus; e As três vidas de Jaime Arôxa (2007) escrita pelo jornalista Milton Saldanha. É interessante observar que todas as pesquisas acadêmicas fizeram etnografias no salão de dança na cidade do Rio de Janeiro e produziram trabalhos tão originais e distintos uns dos outros. Voltamos, dessa forma, ao alerta inicial desta introdução sobre a dança de salão brasileira ser um universo vasto podendo ser apreendido de pontos de vista diversos, e ainda assim, apresentar tantas lacunas e possibilidades de pesquisa. O ponto, o foco, o lugar de convergência de todas essas pesquisas consideram a gafieira enquanto lugar de excelência

1 Fechamento da Estudantina pode ser verificado em: (fonte: https://oglobo.globo.com/rio/gafieira -estudantina-fecha-as-portas-devido-uma-divida-de-785-mil-21949799. Acesso: 14 de junho de 2019) 23 da prática do samba de gafieira e outras danças de salão. Vejamos a definição de Lopes e Simas (2015) sobre a gafieira:

“Espécie de casa noturna onde se realizam bailes com entrada paga e música orquestral. Outrora era frequentada basicamente por um público específico, amante da dança, mas de baixo poder aquisitivo, como os componentes das antigas escolas de samba. (...) A partir da década de 1960, tornando-se um modismo, as gafieiras passaram a ter frequência mais eclética, incluindo pessoas de classe média alta.” (LOPES & SIMAS, 2015, p. 137)

A partir dessa intersecção de classes sociais na gafieira, na década de 1960, a necessidade de um ensino mais técnico dos modos de dançar na gafieira começa a surgir, pois se no subúrbio a dança constitui-se em uma cultura familiar e comunitária na qual a produção e circulação de saberes acontece de forma orgânica, o novo público precisava ser iniciado. As academias de dança, aos poucos vão se consolidando dentro do circuito do samba de gafieira e das demais danças de salão no Rio de Janeiro, e segundo Perna (2001) ganharam força e se restabeleceram a partir da década de 1980, com o impulso da , dança fortemente praticada na época. Além disso, as gafieiras do circuito Centro-Zona Sul do Rio vão perdendo força e fechando suas portas. Entre as observações feitas no primeiro grupo de pesquisas, em 2005 e no segundo em 2010, já podemos observar algumas transformações, a principal delas foi o fechamento de quase todas as gafieiras do centro do Rio de Janeiro e a crescente transferência dos bailes dos salões das gafieiras para as academias de dança (MASSENA, 2006, p. 80; SOUZA, 2010, p. 119; VEIGA, 2011, p. 225). Não é raro que a academia de dança utilize o espaço para aulas durante a semana, e, aos finais de semana transforme o espaço mediante decoração e iluminação para receber seus alunos para um baile. Esse fenômeno não é novidade, consta na biografia de Maria Antonieta uma imagem de um panfleto da Academia Moraes, da década de 1940 onde lê-se:

“A ACADEMIA MORAES realiza todos os sábados, das 6 da tarde às 10 da noite, sabatinas dançantes, ou sejam, pequenas reuniões dançantes para os seus alunos e ex-alunos, a fim de poderem praticar mais o que lhes foi ensinado e ao mesmo tempo fazerem amizades agradáveis num ambiente RIGOROSAMENTE 24

FAMILIAR, onde todos se sentirão inteiramente à vontade.” (DRUMMOND, 2004, p. 76)

Nos dias atuais, a diferença é que as gafieiras estão fechando as portas, e a academia de dança está se configurando como o lugar central, e não mais como um complemento à prática. Nessa análise, não estamos incluindo as gafieiras do subúrbio, pois muitas resistem funcionando, mesmo com a propagação das academias. Ainda que o circuito das gafieiras dos subúrbios do Rio de Janeiro seja um caminho de investigação importantíssimo para o preenchimento de várias lacunas na história do samba de gafieira, essa pesquisa se delimita ao circuito profissional circunscrito ao centro e Zona Sul, que se inicia com o interesse da classe média pela gafieira, fortalecendo as academias, e possibilitando o surgimento de nomes de professores famosos e também eventos especializados em samba de gafieira para atender ao público. Embora os pesquisadores já viessem alertando a respeito do enfraquecimento das gafieiras e presença cada vez maior das academias no circuito, os registros com foco nas academias ainda são escassos, apenas Massena (2006) e Souza (2010) dividem seu campo de observação entre gafieiras e academias. Indo um pouco mais além, transpondo as academias de dança, o fenômeno que será investigado nessa pesquisa são os eventos especializados em samba de gafieira que ainda não foram sondados em nenhum trabalho, e que surgem dentro desse processo de crescente profissionalização e enfraquecimento das gafieiras já citados nos trabalhos anteriores. Diante do exposto, elaboramos algumas questões: A morte dos tradicionais lugares para dançar, as gafieiras, significa também o desaparecimento ou enfraquecimento da dança samba de gafieira? Tanto pelo espaço que as academias vêm ocupando, registrado nos trabalhos anteriores, como pelo conhecimento prático do campo, podemos afirmar que não. O que se observa é uma expansão da prática, aprofundamento e difusão das técnicas, aumento do número de profissionais, de escolas de dança de salão, de realização de eventos especializados, também chamados de congressos e uma presença marcante na internet, através das redes sociais e YouTube. Quais caminhos o samba de gafieira, enquanto prática cultural, está percorrendo para se estabelecer dentro de novos parâmetros? Como se configura atualmente o circuito do samba de gafieira na cidade do Rio de Janeiro e qual o lugar dos eventos especializados nesse circuito? Em uma prática tão ligada ao passado e às tradições, como as novas gerações de profissionais, reconhecidos por produzir inovações no samba de gafieira, reproduzem, constroem, reconstroem e 25 transmitem as técnicas corporais no samba de gafieira? E como as redes sociais e YouTube se tornaram ferramentas potencializadoras dessa cultura dentro das novas configurações? Portanto, o objetivo desta pesquisa é investigar as recentes transformações no mundo do samba de gafieira na cidade do Rio de Janeiro e compreender a posição dos eventos especializados no atual circuito. Buscando entender como os atores sociais envolvidos nas transformações dialogam com as gerações profissionais anteriores, principalmente no que tange às técnicas corporais. Além disso, identificar nessa estrutura os usos das redes sociais e do YouTube. Dessa feita, nossos objetivos específicos são: a) descobrir que caminhos o samba de gafieira, enquanto prática cultural, percorreu para chegar às configurações atuais; b) entender que papel os eventos especializados desempenham nas novas configurações; c) compreender como, dentro desse novo circuito, os agentes das transformações dialogam com as ideias sobre tradição na construção, reconstrução e transmissão das técnicas corporais no samba de gafieira; e d) identificar as relações entre as novas configurações do mundo do samba de gafieira e a utilização das redes sociais e do YouTube. Em razão da transição do baile, de um ambiente público para um ambiente mais controlado, como a academia de dança, vários aspectos devem ser levado em conta. Uma atenção maior para a técnica é observada. Mesmo que em teoria, qualquer pessoa possa participar desse tipo de baile, na prática, o público passa a ser (na grande maioria) quem faz aula de dança de salão; assim, um público mais interessado no movimento bem executado, no aprendizado dentro de um contexto formal, no consumo das últimas tendências em metodologia, técnica de movimento, músicas, calçados e vestuário para dança de salão vai sendo moldado. Podemos interpretar, portanto, os eventos especializados como uma culminância dos interesses cultivados na academia de dança. Se antes, o interesse em pesquisar o samba de gafieira levava à gafieira como lugar central, hoje o pesquisador encontraria esse salão esvaziado. A contribuição dessa pesquisa, ao mostrar os caminhos que o samba de gafieira percorre além do salão da gafieira é facilitar a continuidade da pesquisa sobre o tema, descortinando o panorama e mostrando as ramificações que o tema oferece. Os eventos especializados, objeto desse estudo, talvez sejam uma das ramificações centrais, se constituindo em espaços onde o samba de gafieira é pensado, discutido, praticado, compartilhado, onde surgem novas tendências e se articulam ideias sobre preservação e tradição. Além disso, as interações entre as práticas desse mundo do samba de gafieira e as redes sociais e YouTube não foram exploradas na literatura. 26

Para essa pesquisa foram escolhidos os dois principais eventos nacionais de samba de gafieira que acontecem no Rio de Janeiro anualmente. O Sambamaniacos, que chamarei a partir de agora de SM, que é realizado desde 2011, e o Gafieira Brasil, que figurará agora no texto como GB, que teve sua primeira edição em 2015. Esses eventos reúnem participantes de quase todos os estados do Brasil e de outros países, contando com centenas, ou até milhares de pessoas entre alunos, professores, promotores de evento, músicos e DJ’s. Constituindo assim uma concentração da comunidade do samba de gafieira que não seria possível encontrar em um baile comum, dado que os bailes, atualmente, reúnem basicamente o público específico de cada escola. O encontro que esses eventos promovem, traz à tona novas tendências nas formas de dançar, nas técnicas corporais, nos modelos de bailes, nas vestimentas e imagem das dançarinas e dançarinos e nos elementos que constituem uma coreografia de samba de gafieira, e, portanto, estão produzindo o samba de gafieira da atualidade. Durante o trabalho prático da investigação pretendo me aproximar da metodologia etnográfica. Praticar a etnografia é “estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante” (GEERTZ, 1978, p. 15). No entanto, o que define a etnografia é o tipo de esforço intelectual que é preciso empreender para se chegar ao que o autor chama de “descrição densa”. Essa estratégia adequa-se aos objetivos desta pesquisa que pretende analisar, interpretar e buscar significados contidos nas práticas e não apenas descrevê-las. A observação participante foi utilizada nos bailes dos eventos SM 2018 e GB 2019, num total de oito bailes, quatro em cada evento. Mantive um diário de campo, anotando as cenas, sensações pessoais, organização, estrutura e descrição dos bailes, durante os mesmos. Nos bailes não foram feitas entrevistas ou quaisquer perguntas aos presentes. As entrevistas foram realizadas em outro momento. Alberti (2005) afirma que a história oral é hoje um caminho interessante para conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade. A autora compara a entrevista a uma autobiografia, que, ao mesmo tempo que relata ações passadas deixa um resíduo de ações desencadeadas na própria entrevista chamando a atenção para a possibilidade de ela documentar as ações de constituição de memórias, ações que tanto o entrevistado quanto o entrevistador pretendem desencadear ao construir o passado de uma forma e não de outra. Alberti (2005) orienta que os entrevistados devem ser tomados como 27 unidades qualitativas, e não como unidades estatísticas e que para selecioná-los é necessário um conhecimento prévio do universo estudado, é preciso conhecer o papel dos que participaram ou participam do tema investigado, saber quais seriam os mais representativos e quais são reconhecidos pelo grupo, além de conhecer os que são considerados “desviantes”. Então, para auxiliar nas escolhas e movimentação no campo, nos contatos com atores-chave, na coleta e compreensão das informações, partirei da minha própria participação nos eventos escolhidos em anos anteriores, e da minha experiência de mais de quinze anos frequentando bailes, como aluna e professora de dança de salão e samba de gafieira, e de minhas relações prévias com os atores sociais do mundo do samba de gafieira. Os entrevistados foram escolhidos por serem atores sociais privilegiados na construção das atuais configurações do circuito do samba de gafieira na cidade do Rio de Janeiro. São profissionais de samba de gafieira que produzem aulas, bailes, eventos, conteúdos para a internet e de uma forma ou de outra influenciam muitos outros participantes do mundo do samba de gafieira. Os entrevistados foram: a) o casal Léo Fortes e Roberta Stéphanie, que além de idealizadores e realizadores do SM, possuem projeção nacional e internacional como dançarinos e professores de samba de gafieira; b) Rodrigo Marques, um dos idealizadores e produtores do GB, professor nacional e internacional de samba de gafieira, foi coreógrafo e diretor da Cia de Dança Carlinhos de Jesus por 9 anos; c) o casal Kadu Vieira e Viviane Soares que foram professores do SM em todas as edições, possuem grande projeção nacional e internacional, viajam anualmente ao Japão para dar aulas de samba de gafieira, além de aulas em outros países e estados do Brasil; d) a professora e dançarina Ana Paula Pereira, que também participou como professora de todas as edições do GB e vem participando das últimas edições do SM. Possui uma proposta de resgate do que é considerado por eles como samba de gafieira tradicional em suas aulas, buscando estabelecer um diálogo entre técnicas, movimentos e grandes dançarinos do passado e do presente, com mais de trinta anos de atuação no cenário do samba de gafieira carioca. A escolha da professora Ana Paula tem como intenção estabelecer um sujeito desviante, pois se trata de uma grande defensora das estruturas e estéticas mais tradicionais do samba de gafieira. O recorte da pesquisa é a cidade do Rio de Janeiro nos anos 2018 e 2019, dentro de dois eventos específicos: o Sambamaniacos 2018 e o Gafieira Brasil 2019. Pretendemos lançar luz sobre aspectos ignorados até então na maioria dos trabalhos sobre o tema, como a própria existência dos eventos em modelos como o de congressos, os novos atores sociais que 28 movimentam o mundo do samba de gafieira e o impacto das redes sociais e YouTube na disseminação e desenvolvimento do samba de gafieira. Pretendemos não apenas registrar esses aspectos, mas também compreender o caminho que a dança de salão percorreu no Rio de Janeiro para chegarmos ao panorama que temos hoje. O primeiro capítulo se dedica a fazer uma revisão da história da dança de salão no Rio de Janeiro, oferecendo uma base contextual e histórica para mais tarde entender melhor o cenário atual do samba de gafieira, que é o objetivo principal do trabalho. Nesse percurso privilegiamos autores que trazem a perspectiva de um protagonismo da cultura negra no processo de constituição das danças de salão brasileiras. Inicialmente, essa revisão se pretendia breve, contudo, à medida que as consultas bibliográficas eram feitas em tão diversos trabalhos, a desorganização, desencontro de informações e confusões surgiram. E diante de um passado fragmentado, enviesado e incompleto, surgiu a necessidade de contribuir de forma um pouco mais profunda acerca dessa história. Nesse capítulo propomos uma divisão entre a história da “dança de salão no Brasil”, e história da “dança de salão brasileira”. Apesar de ser uma medida simples, o efeito da divisão no entendimento e explicação dessa história é realmente positivo. A seção dedicada às origens remete ao surgimento do modo de dançar a dois nos salões das cortes europeias, a seção sobre a dança de salão no Brasil conta como e porque esse modo de dançar chegou por aqui, como uma reprodução de costumes europeus, por esse motivo não podemos falar ainda em dança de salão brasileira. Na seção seguinte nos debruçamos sobre a formação da dança de salão brasileira e argumentamos que o entendimento do protagonismo da cultura negra colabora para o entendimento de características atuais. Ao abordar esse assunto, uma realidade fica cada vez mais clara, existe uma enorme clivagem entre as duas histórias da dança de salão: a que chega ao Brasil, trazida pelos europeus e é aceita e cultivada pelas elites, e a dança de salão brasileira que surge de danças populares cultivadas pelos negros aqui escravizados. Defendemos, por isso, que a história da dança de salão deve ser percebida como dupla, são dois movimentos que surgem em momentos e classes sociais muito distintas e que em algum momento se tocam, para produzir a dança de salão genuinamente brasileira. No segundo capítulo, utilizando as informações coletadas nas entrevistas, exploramos as configurações atuais do circuito profissional de samba de gafieira no Rio de Janeiro. Os diálogos entre as diferentes gerações, os modos de transmissão das técnicas corporais e a influência do YouTube e das redes sociais no mundo do samba de gafieira. No 29 terceiro e último capítulo trazemos o resultado da observação de campo realizada nos eventos Sambamaníacos 2018 e no Gafieira Brasil 2019. Primeiramente delimitamos quem participa desses eventos, em uma exploração das divisões por tribos (Maffesoli, 1998) dos dançarinos. Na seção seguinte propomos um modelo de categorias de análise, baseados em Goffman (2002), para bailes e aplicamos nos bailes do SM e do GB. E por último, reunimos algumas projeções sobre o futuro do mundo do samba de gafieira, a partir das falas dos atores sociais e da literatura. Muito se fala de tradição no mundo do samba de gafieira e de seus tradicionais lugares para se dançar, as gafieiras, que praticamente não existem mais. No entanto, a “morte” das gafieiras (espaços), não significa o desaparecimento do samba de gafieira (dança), pois este se encontra em expansão, seja na valorização, estudo e difusão de técnicas, seja no aumento do número de profissionais, de escolas de dança de salão, da realização de congressos, etc. Enquanto alguns elementos dessa cultura morrem, outras possibilidades e caminhos vão nascendo, e essa pesquisa pretende olhar nessa direção. 30

CAPÍTULO 1 – DUAS HISTÓRIAS: A DANÇA DE SALÃO NO BRASIL E A DANÇA DE SALÃO BRASILEIRA

Nesse capítulo, primeiramente, construímos uma pequena introdução para situar a dança de salão entre outras danças, com o intuito de mostrar que a dança de salão possui seu surgimento atrelado a eventos e momentos históricos das sociedades. A partir daí, podemos perceber que a dança de salão possui um caráter próprio e peculiar que garante seu espaço por si só, não sendo necessário alçá-la à condição de dança cênica ou de dança folclórica para categorizá-la ou lhe adicionar valor. Talvez por serem intrínsecas à vida cotidiana, percam o valor artístico na visão de alguns, talvez por estarem presentes nos dias de hoje e alterando-se constantemente não se encaixem em danças folclóricas como seria mais confortável para explicar na visão de outros. Portanto faz-se necessário sinalizar algum posicionamento. Logo depois, realizaremos um breve resgate histórico tanto de sua origem europeia, como de sua chegada ao Rio de Janeiro, a fim de reconstruir seu percurso histórico e definição enquanto prática cultural. Isso vai nos ajudar a compreender quais caminhos o samba de gafieira, enquanto prática cultural, percorreu no passado e está percorrendo hoje para se estabelecer dentro dos novos parâmetros. Nesse resgate histórico, no entanto, percebemos outro ponto que nos chamou a atenção e de grande importância para o prosseguimento dos estudos sobre dança de salão e para o nosso próprio entendimento de sua história. Percebemos o quanto a história da dança de salão no Brasil, e mais tarde a história da dança de salão originalmente brasileira é fragmentada e confusa. Dessa forma, pretendemos também com esse resgate histórico, defender a hipótese de que a dança de salão no Brasil possui história dupla. No entanto, a literatura vem tratando como uma história única, o que contribui para ambiguidades e equívocos. A história das danças de salão no Brasil começa com as elites, junto com ideias de civilidade e o desejo de imitação de um estilo de vida cortesã, com o passar do tempo sofrem modificações, especialmente influenciadas pelo ritmo da modernidade que irrompe nos grandes centros urbanos. Finalmente acabam desaparecendo entre as elites diante de grandes transformações que afetam as elites aqui no Brasil, ao mesmo tempo as danças populares oriundas dos negros vão ganhando espaço e se adequando ao estilo de vida urbano. E, no momento que aderem ao abraço de par enlaçado (Sandroni, 2001), elemento comum nas danças vindas da corte, outro tipo de dança de salão nasce, a dança de salão brasileira de origem negra e popular, que pouco tem a ver com as danças europeias importadas antes. É 31 assim que surge o maxixe, como uma nova maneira de dançar o lundu, como explica Sandroni (2001) e não como uma nova maneira de dançar a polca, como defendem vários autores anteriores e até mesmo posteriores a Sandroni. O maxixe mostra-se como uma nova dança de salão, com elementos até então inéditos nas danças de salão antigas, como a liberdade do corpo e o improviso, e esses são elementos muito presentes nas danças de salão modernas. A literatura, na maioria das vezes, trata o maxixe como uma “evolução” ou “degradação” da polca, ou ainda como uma tentativa de “imitação” da polca pelos negros. Esse tratamento leva à imprecisões já que relaciona algumas características das danças atuais a elementos vindos diretamente das danças das elites, e não leva em conta o protagonismo dos elementos da cultura negra nessa composição e história. Na busca de comprovar essa hipótese, fez-se necessária, uma conexão entre a história da cidade do Rio de Janeiro, das estruturas e composição das classes sociais e das danças. Para fins didáticos e de melhor compreensão nos estudos sobre dança de salão é que trabalharemos a existência de duas histórias separadas, a “história da dança de salão no Brasil”, antes do surgimento do maxixe, e “história da dança de salão brasileira”, a partir do maxixe. Há uma profunda clivagem entre as classes que as produziram, como origens, modos de fazer, objetivos e significados bem delimitados e separados. Um exemplo dessa separação é que enquanto as danças de salão europeias, cultivadas pelas elites no Rio de Janeiro tinham um propósito de educação dos corpos (MELO, 2014), a dança dos negros que serviu de base à dança de salão brasileira tinha como essência a liberdade, criatividade e improviso. Portanto, é difícil olhar para características presentes nas danças de salão modernas praticadas hoje no Rio de Janeiro, e diante de tal criatividade, diversidade e improviso, identificá-las com elementos das danças de salão experimentadas pelas elites. Seria forçar uma relação, uma busca por legitimação no lugar errado. Propomos nos voltar para os salões populares, para as gafieiras, para os maxixes, para a cultura negra desenvolvida no Rio de Janeiro, para a classe trabalhadora e seus divertimentos na busca dessa legitimidade. Concordamos que a história da dança de salão brasileira é uma história fragmentada e nebulosa. Investigando mais a fundo e com o grande auxílio das pesquisas de Chalhoub (1986), Needel (1993), Sandroni (2001), Sevcenko (1998), Melo (2014), entre outros, acreditamos que podemos contribuir com um exame dessas informações na consolidação da história da dança de salão brasileira, esclarecendo um pouco mais o campo. 32

1.1 Para situar a dança de salão

Onde, quando e por que as pessoas dançam em pares, envoltas em um abraço fechado, em um espaço reconhecido como um salão são questões que mudam a depender da sociedade e da época. Mas duas coisas são certas: as pessoas o fazem, pelo menos, desde o século XV (BOURCIER, 2001), e o fazem principalmente por diversão, mas também por uma série de outros motivos: dentre eles, sociabilidade, sexualidade, legitimidade, status e poder. Em pesquisa sobre os motivos que levam jovens e adultos a praticarem dança de salão, os resultados mostram: “a busca da experiência social (…); a liberação de tensão (...); o prazer (...); ocupação do tempo livre (...) entre outros, como a oportunidade de sentir-se feliz, de se distrair, de conquistar a admiração (...)” (VOLP, DEUTSCH e SCHWARTZ, 1995). A dança de salão, como veremos mais adiante, surgiu como um dos produtos de um processo de racionalização e profissionalização da dança, iniciada na idade média nas cortes europeias. Mas antes de conhecer esse processo, iremos apenas situar a dança de salão entre outros estilos de dança. A análise do processo de profissionalização da dança, nos mostra que a dança de salão constitui um meio-termo, um meio do caminho entre danças improvisadas em festas populares em praça pública e o balé clássico, tomado aqui por ser o auge do processo técnico e profissional a que a dança foi submetida. Podemos observar alguns elementos que diferenciam as vertentes de dança de acordo com escalas de organização e padronização. Três desses elementos se mostram especialmente interessantes para situar a dança de salão dentro da cultura e história das danças: o espaço (local onde acontecem), a divisão entre público e artista (performance) e a técnica (o modo de fazer). Veremos que a dança de salão ocupa o lugar intermediário, da mistura e da fronteira em relação às outras danças. O espaço onde essas danças acontecem varia da praça pública ao palco italiano, passando pelo salão de dança. E esses espaços carregam muito da identidade e história de cada uma dessas manifestações dançantes. O carnaval, segundo Bakhtin (1987), absorveu diversas manifestações de festas populares existentes na idade média e que foram se extinguindo. É evidente que o carnaval é uma festa que abarca muitos outros elementos além da dança, mas podemos utilizá-lo como uma mostra desse tipo de dança popular de rua e suas características. Isto posto, o carnaval, apesar de também ocupar espaços mais organizados e controlados, como clubes e avenidas, possui como espaço essencial a praça pública, local ao 33 qual qualquer pessoa tem acesso e no que pode participar. De um espaço totalmente aberto e democrático onde acontecem danças populares ao ar livre como no carnaval, vamos ao espaço do balé clássico: o palco italiano. No mundo do balé clássico, o palco é um lugar de acesso restrito, que só pode ser ocupado pelos bailarinos, virtuoses da técnica clássica. Nesse contexto, também a plateia é constituída por um público exclusivo, um público pagante, geralmente de alto poder aquisitivo. Já o salão de dança é um meio-termo, um espaço mais democrático, várias pessoas podem frequentá-lo, de diferentes classes sociais e com diferentes níveis técnicos de dança, ou até mesmo pessoas que não dançam. As gafieiras, por exemplo, são lugares abertos à entrada de qualquer pessoa mediante pagamento, mas também possuem uma série de regras e comportamentos que servem para delimitar quem faz parte do mundo da gafieira. Sobre essa distinção, Veiga (2011), identifica ainda a gafieira como um lugar simultaneamente público e privado, onde não basta apenas pagar pelo ingresso, é preciso também ser bem-vindo. Isso reforça esse lugar que da dança de salão, entre o espaço público das manifestações dançantes de rua e o espaço privado de um espetáculo de balé, por exemplo. Outro elemento que coloca a dança de salão em posição intermediária entre as vertentes da dança é a divisão entre público e artista. No carnaval em praça pública, não existe público e não existe uma obra a ser apresentada, mas sim uma grande massa que dança, que se manifesta. Enquanto no carnaval, “o indivíduo se sente parte indissolúvel da coletividade, membro do grande corpo popular” (BAKHTIN, 1987, p. 222). No balé a divisão é bem delimitada, o público tem uma função e um lugar dentro do teatro e o bailarino tem outra, são opostas, enquanto o bailarino está na luz, a plateia está na escuridão, enquanto o bailarino se move, a plateia está imóvel. Na dança de salão no entanto, persiste no caráter fronteiriço, e o dançarino pode ser artista e plateia, com momentos bem definidos para cada função: enquanto está sentado em uma mesa ou em pé na borda do salão ele é plateia, mas no momento em que se une ao seu par e entra no salão, ele é o dançarino, ele performa para os outros assistirem e esse papel é alternado durante todo o baile. O último elemento que eu gostaria de comentar é a técnica, enquanto na manifestação em praça pública, segundo Bakhtin (1987) o que rege os movimentos é a alegria, a brincadeira, o impulso corporal livre que não se identifica com as estruturas coercitivas de nenhum tipo, sejam sociais, políticas ou econômicas. No balé é a técnica que domina. Nenhum movimento, postura ou respiração deve fugir à técnica padronizada e pré 34 estabelecida do balé clássico. Já na dança de salão encontramos novamente o meio-termo: todas as danças de salão precisam de técnicas para serem executadas, contudo pessoas com diferentes níveis técnicos podem frequentar o salão, e, além disso, existe um grande espaço dentro da técnica para o improviso ou criações próprias do dançarino. Essa localização da dança de salão ainda não pretende explicar o histórico e o processo que levou ao que temos hoje. É apenas uma forma de o leitor começar a entender o tema, muitas vezes tão obscuro na literatura e alvo de fácil confusão com outros tipos de danças. Nossa comparação pretende mostra seu caráter peculiar. Compreendemos portanto que a dança de salão, nessa posição de fronteira, pode ser muitas coisas ao mesmo tempo, ou alternar entre técnica e improviso, entre estrutura e liberdade. O seu local fundante e de excelência é o salão e o salão pode também ser várias coisas, inclusive palco, mas também lugar de encontro e sociabilidade. Essa posição intermediária da dança de salão foi se desenvolvendo conforme o surgimento e a configuração da área da Dança que aconteceu a partir da sistematização de manifestações populares de dança entre os séculos XII e XVI na Europa. Na literatura sobre o tema, esse caráter fronteiriço é discutido através dos conceitos antropológicos de “casa” e “rua” (VEIGA, 2011; MASSENA, 2006). E a posição da gafieira enquanto espaço de sociabilidades é considerada como uma “agência mediadora” (VEIGA, 2011, p. 103).

1.2 Dança de salão no Brasil: origens europeias e chegada ao Rio de Janeiro

As três principais vertentes da dança: divertimentos populares de rua, dança de salão e balé clássico, têm suas origens interligadas na história da dança ocidental e eurocentrada. Mendes (1987), alega que em meados do século XV, dentro do processo que levaria a Idade Média à Idade Moderna, as transformações já ocorridas em divertimentos populares de rua tipo Mourisca aprofundaram-se. Esses divertimentos foram adquirindo uma forma mais disciplinada e, deste modo, de inicialmente improvisados em praça pública, foram transportados para os salões nobres, tendo suas dimensões reduzidas no tempo e no espaço. Isso aconteceu, segundo Mendes (1987), devido a uma nova consciência nascente proporcionada pelo Renascimento que trazia consigo a necessidade de uma organização mais racional do mundo em todos os aspectos da vida humana, inclusive na arte. Por esse motivo, nesse período teria surgido a necessidade de organizar e anotar os passos de dança, codificando-os e criando um repertório de movimentos utilizáveis em 35 contextos diversos. A dança iria, então, se delimitando de acordo com o espírito do Renascimento, que procurava o conhecimento racional das coisas e dos homens. Bourcier (2001), como historiador da dança, atenta para o fato de que não se pode falar em Renascimento na França, sem falar do Renascimento italiano e afirma que para compreender a evolução da coreografia na França do século XVI, é preciso passar pelo Quattrocento. Foi nesse período, na Itália, que começou a se formar uma sociedade cortesã. Pessoas que eram próximas ao príncipe e que compartilhavam gostos em comum começaram a criar um estilo de vida voltado para o que era entendido como elegância, refinamento de hábitos, intelectualidade e arte. No Quattrocento, a dança se converteu em dança erudita, onde além de conhecer a métrica há que se saber os passos. É aí que surge o profissionalismo, com dançarinos profissionais e mestres de dança. Até então, a dança era relativamente livre, a partir desse momento, as possibilidades de expressão estética do corpo humano são exploradas através de regras. Dessa forma, o profissionalismo contribuiu para a elevação do nível técnico. Esse estilo de vida nascente na Itália influenciou a França após a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), e, “a partir de Francisco I, uma verdadeira vida de corte organiza-se pela primeira vez” (BOURCIER, 2001, p. 69). E a dança, aperfeiçoada na Itália, será um elemento fundamental na constituição do novo estilo de vida francês. Inicialmente, essas danças que começavam a ser organizadas e registradas dentro dos salões, eram executadas pelos nobres, e o mestre de dança tinha a missão de ensinar não só os passos, mas também o requinte, a etiqueta e o refinamento dos modos e movimentos. Era o nascimento da dança de salão, e logo foi utilizada pela nobreza como ferramenta para promover a sociabilidade e um comportamento ligado a noções de civilidade. Destacamos portanto, que a dança de salão, desde sua origem, carrega marcas de civilidade e urbanidade. O processo de evolução e sistematização da dança culminou na criação de um produto: o espetáculo. Chamado inicialmente de balleto, “misto de música, canto, mimos e até equitação no qual a dança aparecia como um entremet, o elemento dançante da composição” (MENDES, 1987, p. 24). Segundo Mendes (1987), é nesse momento que efetiva-se uma grande cisão na dança, definindo-se em três linhas: as danças populares, as danças da corte, e as executadas em balletos. As danças populares são manifestações do povo, ligadas a festas públicas como o carnaval; as da corte, para a diversão dos nobres nos castelos, onde os próprios nobres executavam as danças com fins de socialização e exibição de requinte e 36 civilidade; e o balleto para apreciação como espetáculo, que mais tarde seria alçado à condição de arte, se transformando no que conhecemos hoje como balé clássico, também produzido e consumido, na maioria das vezes, por classes privilegiadas. A dança de salão se desenvolve a partir das danças de corte, executadas pelos nobres, que apesar de já serem “de salão”, por serem executadas em grandes salões, ainda não tinham o par, ou o casal como elemento fundamental. Segundo Perna (2001), essas danças, inicialmente eram de caráter coletivo, e foram amplamente apreciadas pelas cortes europeias nos séculos XVII e XVIII, a exemplo do fandango na Espanha, do minueto na França e da country dance na Inglaterra. Essas danças, no entanto, não eram ainda de pares enlaçados, mas bailadas em conjunto, como na quadrilha. A dança de salão a dois, de pares enlaçados, onde o homem e a mulher dependiam apenas um do outro e não de outros dançarinos, só chegou no final do século XVIII a Paris, com a valsa, proveniente dos povos germânicos (Áustria e Alemanha). Segundo Ried (2003), a valsa foi a primeira dança de salão de par enlaçado. Nesse ponto, é importante destacar que a corte francesa foi seguida como modelo por diversas cortes europeias, inclusive por Portugal que foi responsável pela difusão de tais danças no Brasil colonial. Foi possível “reconhecer no ambiente privado (cortesão) e semi- privado (das Assembléias) a presença da forte tradição de dança da nobreza (que traduzia os códigos cortesãos de civilidade moldados pela França), (…) na segunda metade do século XVIII. (ARANHA, 2010, p. 182) Ried (2003) reforça a importância da sociabilidade na dança de salão, e mostra que ela foi e ainda é utilizada como elemento de distinção social. Apesar de a autora afirmar que as danças de salão, de pares enlaçados, praticadas por homem e mulher, seriam resquícios de danças do “acasalamento” de tribos primitivas, fica claro que seu surgimento e desenvolvimento nos moldes que conhecemos e praticamos hoje possui caráter urbano e ocidental. Vale destacar que essas danças de salão da corte, inclusive a valsa, são aristocráticas, e as danças de salão populares, por sua vez, foram se construindo da mistura entre o que era ditado como moda pela nobreza e as manifestações que surgiam do povo. No Brasil, as manifestações de música e danças dos negros escravizados formaram a base para a construção das principais danças e músicas populares, como é o caso do maxixe (dança e música), do samba (dança e música) e do samba de gafieira (dança). Assim sendo, os primeiros contatos com as danças de salão começam com a vinda dos primeiros europeus para o Brasil. Esse contato se intensifica, segundo Perna (2001), com 37 a vinda da corte portuguesa, no início do século XIX, para o Rio de Janeiro, ocasião em que a cidade assume um caráter mais urbano e muitos hábitos europeus, como as danças e os bailes, foram introduzidos de forma ainda mais forte. Segundo Melo (2014), em seu artigo sobre a educação do corpo nos bailes no Rio de Janeiro do século XIX, a chegada da família real portuguesa no Rio de Janeiro em 1808, trouxe de forma mais consistente o hábito de dançar e o início de uma cultura de bailes como forma de socialização entre os nobres. No entanto, foi apenas a partir de 1850 que esse costume se intensificou e se difundiu de forma mais forte, atingindo vários espaços e classes sociais. Esse hábito de dançar em bailes fazia parte de um processo civilizador que ganhou impulso com a vinda da família real portuguesa para o Brasil. Melo (2014) cita o fato de que logo após a família real portuguesa, vieram também, a mando de D. João, os primeiros mestres de dança da Europa para o Brasil, os mestres de dança Pedro Colonna em 1810 e o francês Luis Lacombe em 1811. Esses bailes estavam inseridos no cotidiano das classes privilegiadas e aconteciam em teatros, residências das elites e festividades da coroa. Logo surgiram as Assembleias e Associações que foram responsáveis pela estruturação, manutenção e difusão de uma cultura de lazer, diversão e sociabilidade através dos bailes. Essas instituições eram fundamentais no esforço de se reproduzir aqui o estilo de “vida de corte”. Melo (2014) cita várias sociedades criadas nessa época, a Assembleia Portuguesa, fundada em 1815, a Bailes do Catete, de 1834, e, na mesma época a Assembleia Estrangeira também no Catete, cita também a Sociedade Praia-Grandense localizada em Niterói. Afirma que nas décadas de 1840/1850, as sociedades alcançaram maior projeção e destaca o Cassino Fluminense, fundado em 1845 e que foi um importante ponto de encontro das elites nacionais. Foi nessa conjuntura que algumas interações entre classes sociais começaram a acontecer, e os salões de baile promoviam essa permeabilização de forma eficiente. Destacam-se ainda a Sociedade Recreação Campestre, a Assembleia Fluminense e a Sociedade Amizade, todas “promoviam bailes para diferentes estratos das elites e setores médios” (MELO, 2014, p. 757). Além de membros da aristocracia, atraía também comerciantes, diplomatas e negociantes, ademais esses bailes foram responsáveis pela aproximação entre homens e mulheres nas atividades públicas. Foi no seio dessas organizações que se estabeleceram novas relações entre diferentes classes sociais e entre os gêneros. Diante desses novos convívios, surgiu a necessidade de se estabelecer normas e 38 comportamentos, que seriam responsabilidade das agências educativas, a família e a escola, mediadas pela imprensa (MELO, 2014). Melo (2014), identifica que esse esforço de confraternização entre os diferentes, excluía as classes menos favorecidas, tratava-se na verdade, de uma comunhão entre diferentes estratos das elites. O autor ressalta também a existência de uma grande ruptura entre povo e elite não só no campo cultural, como social e político. Isso dá pistas da hipótese defendida aqui, de que a história da dança de salão é dupla. Essa ruptura era facilmente percebida nas danças praticadas, enquanto a valsa e a polca eram praticadas nos salões das elites, outras danças iam se configurando nos espaços populares com grande influência das danças, músicas e cultura negra, como o reisado, o lundu e o maxixe. O autor destaca o tratamento pela mídia da época, que utilizava termos como “locais de devassidão” para descrevê-los. E informa que:

“Na verdade, a prática da dança por populares sempre sofreu restrições, notadamente quando se dava em espaço público. Pelos jornais, é comum encontrarmos indícios dessas tensões, comunicados de repressão ou solicitações de que alguma medida fosse tomada. Havia um claro processo de estabelecimento de um modelo correto de diversão, relacionado a iniciativas de controle da ordem pública, relacionadas a um perfil civilizacional que determinava o que deveria ser aceito ou não.” (MELO, 2014, p.757)

As elites por sua vez utilizavam os bailes e a “forma correta” de dançar para estabelecer distinções com quem estava fora daquele círculo e até mesmo dentro. Dessa forma, saber dançar era uma necessidade, mas o estilo e a forma correta de bailar eram fundamentais para não ser confundido com as formas populares, consideradas vulgares. Nesse cenário, a dança passou a ser lecionada nas escolas, Melo (2014) conta, dentre outros, o caso do Colégio D. Pedro II, onde a dança já estava prevista em seu primeiro regulamento, de 1838, como uma prática extracurricular, a partir de 1854 se tornou obrigatória e permaneceu sendo ensinada até os anos de 1870. Para as elites, a forma adequada de dançar e seu hábito constante, era importante para consolidar a ideia de nação, concebida dentro de parâmetros civilizadores e de modernização. Esse cenário, que podemos chamar de época de “ouro” dos bailes vinculados à alta sociedade, estava prestes a mudar. Nas últimas décadas do século XIX alguns acontecimentos contribuem para uma desarticulação desse sentimento de associação entre as elites que se 39 manifestava e se fortalecia através dos bailes. E, no final do século XIX e início do século XX, enquanto os bailes das elites se desvanecem, os bailes populares ganham força impulsionados por danças e músicas que serviram de base para o que mais tarde seria reconhecido como cultura tradicional brasileira. Prova disso é a dança que ganhou força e virou moda, estando presente em quase todos os bailes, e atingindo várias classes sociais: o maxixe. Mais adiante veremos como surgiu o maxixe e sua relação com o samba que veio depois. Por hora, para finalizar esse tópico vamos ver o contexto social e político que ocasionou o declínio dos bailes de elite e posteriormente a propagação dos bailes populares. De acordo com Needel (1993), ao final da primeira metade do século XIX (1850), a sociedade brasileira era marcada pela forte presença de senhores e escravizados. Dois estratos bem distintos: os poderosos e ricos, composto por fazendeiros e comerciantes brancos; e outro, composto por africanos e crioulos, negros e mestiços, tanto escravizados como libertos e seus descendentes, que formavam as categorias de trabalhadores rurais, empregados domésticos, artesãos, braçais da lavoura, trabalhadores urbanos, entre outras funções subalternas. Existia também uma pequena camada média, formada por profissionais liberais, burocratas subalternos, empregados dos escritórios e pequenos lojistas. Mesmo com a transferência da principal atividade exportadora que passou das minas de ouro e diamante de Minas Gerais e dos engenhos de cana-de-açúcar do nordeste para as fazendas de café cultivadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, a estrutura social permaneceu a mesma, uma restrita elite agroexportadora, uma massa de trabalhadores escravos e uma pequena camada de setores médios. Essa estrutura apresentada vai sofrer profundas alterações a partir do final da Guerra do Paraguai (1864-1870). Segundo Needel (1993), o Brasil sofre três mudanças fundamentais com o fim da guerra, primeiro o grande aumento dos setores médios da sociedade ocasionada pelo aumento populacional urbano. Profissionais liberais, burocratas, empresários, empregados do comércio e estudantes, agora em maior número, passam também a ter maior acesso ao pensamento e exemplos europeus, nascendo assim uma nova consciência política, expressa em contestação política, conspirações e revoltas urbanas. Com isso, a influência dos grandes proprietários de terra, até então absoluta, começa a diminuir. A segunda mudança fundamental que ameaçava o status quo, era a pressão cada vez maior dos abolicionistas, o que significava mais uma ameaça aos grandes produtores de café que dependiam totalmente do trabalho escravo. O terceiro ponto, foi a insatisfação das elites cafeeiras de São Paulo, que 40 apesar de sua liderança econômica não dispunham o poder político que almejavam e se irritavam com as alianças da Coroa com províncias decadentes do interior do Rio de Janeiro e do Nordeste. O crescente número de bacharéis que residiam em São Paulo e não conseguiam um lugar de destaque no funcionalismo público também foi um forte motivo do crescimento das tensões políticas entre as elites paulistas e a Coroa. Portanto, os desafios enfrentados pela coroa tomavam forma em dois movimentos políticos: o republicano e o abolicionista. Needel (1993) destaca um acontecimento que é conhecido como o início do fim: em 1868, D. Pedro escolhe um líder conservador para o Ministério a fim de agradar Duque de Caxias, general na Guerra do Paraguai, a Câmara considerou isso um golpe de Estado e recusou essa indicação, o que levou D. Pedro a dissolver a Câmara, para contentar Duque de Caxias e tentar garantir o sucesso na Guerra do Paraguai. Os políticos que saíram da Câmara, se uniram a vários setores médios da sociedade defendendo e lutando pelo fim da Monarquia e instituição da República. Todavia, os movimentos abolicionistas e republicanos possuíam diversas divisões, buscando interesses próprios. Esse cenário de quase convulsão social, e de clara divisão das elites e fortalecimento dos estratos médios não condizia com os bailes harmônicos que serviam para o fortalecimento de laços sociais e econômicos entre eles. O autor também aponta como os grandes salões da época foram afetados pelo contexto político e social e o consequente declínio dos bailes das elites. Sobre o mais famoso salão, Cassino Fluminense, Needel (1993) afirma que após a proclamação da República, muitos dos seus diretores mudaram-se para a Europa, e que entre os anos de 1891 e 1896 realizou-se apenas uma reunião de diretoria, para eleger os substitutos. Em 1898 o Cassino ensaia uma recuperação sob o governo de Campos Sales, no início da belle époque carioca, mas, devido a diversos problemas financeiros e administrativos que vinham dos anos anteriores, a falência foi inevitável e seu desfecho foi uma liquidação e fusão definitiva com o Clube dos Diários em 1908. Assim como os demais salões, o Jockey Club teve sua fase de bailes, mas de acordo com Needel, o Jockey passou incólume pelas turbulências e mudanças sócio-econômicas da virada do século, graças à flexibilidade para atender as mudanças no gosto das elites. E essas mudanças, seguiam na direção de entretenimentos cada vez mais passivos, onde a dança de salão saiu de cena.

“(...) havia outro aspecto que diferenciava o Jockey. Este era uma instituição que, em seu principal entretenimento, exigia uma participação passiva: as pessoas 41

observavam, os cavalos desempenhavam. No Cassino e no Club dos Diários, esperava-se dos próprios associados uma participação ativa. E as formas pelas quais desempenhavam seus papéis não eram perenes; pelo contrário, faziam parte da antiga sociedade do Segundo Reinado. Nestes dois clubes, era necessário conhecer danças complicadas, participar de bailes grandiosos e por em prática habilidades sociais intrínsecas a uma sociedade maneirista e cortesã, cuja maioria dos membros estava em via de desaparecimento no início da década de 1920.” (NEEDEL, 1993, p. 100)

Essa crescente passividade em relação aos tipos de entretenimentos é um fenômeno já observado antes na história da dança. Nos séculos XIV e XV os nobres vão deixando a execução das danças de corte, para se tornar plateia, o que, com o passar do tempo vai resultar no espetáculo de balé, para deleite visual dos nobres. Norbert Elias explica esse fenômeno em alguns de seus ensaios reunidos em Sociedade dos Indivíduos (1994). O autor afirma que nós estamos, através dos séculos, percorrendo uma trajetória que muda nossa consciência a respeito de nós e do mundo, estamos percebendo a nós mesmos, cada vez mais como indivíduos e menos como parte de um coletivo. Nesse sentido, argumenta que a visão e o ato de observar estão relacionados com o sentimento de “separação” ou isolamento entre o indivíduo e o que ele observa, entre o “eu” e o “mundo”. Fortalecendo assim, o sentimento de individualidade.

“Essas transformações da consciência tanto são históricas, no sentido de que sociedades inteiras passaram ou ainda passam por elas atualmente, quanto pessoais, no sentido de que toda criança as atravessa ao crescer. À medida que elas avançam, mais e mais atividades que originalmente implicavam a pessoa inteira, com todos os seus membros, são concentradas apenas nos olhos (...)” (ELIAS, 1994, p. 83. Grifo do autor)

Além disso, o autor reitera que esse fenômeno faz parte dos processos civilizatórios ocidentais, onde existe um progressivo controle do corpo e educação dos sentidos em nome de uma educação refinada e civilizada, e portanto, as atividades contemplativas passam a ter superioridade. E foi justamente isso que estava sendo fortalecido pelas elites que buscavam se afirmar naquele momento histórico-social vivido no Rio de Janeiro, e que acabou sendo refletido no desinteresse pelos bailes e danças de salão. 42

Esses acontecimentos e a compreensão do caminho dos divertimentos das elites é fundamental para compreender por que não houve uma “continuação” desses bailes e danças até se transformarem nas danças populares. As danças das elites, espelhadas nas danças de corte europeias estava simplesmente morrendo. Mas se por um lado, os bailes arrefeceram entre as elites, por outro lado, estavam em ascensão entre as classes populares, dado que as diferentes classes não comungavam dos mesmos valores. Enquanto as elites cultivavam uma educação que passava principalmente pelo controle do corpo, as classes populares eram mais livres nesse sentido. Esses fatos também nos fazem perceber o quanto a dança de salão é um elemento que sofre fortemente sob as variações das modas, das maneiras e dos pensamentos vigentes em cada época, sociedade ou classe social, sendo na verdade, um reflexo delas. Assim sendo, é interessante sublinhar que a história da dança de salão no Rio de Janeiro não é una, mas sim dupla, havendo uma profunda clivagem entre as danças de salão das elites e das classes menos favorecidas. Não pretendemos defender purismos aqui, é inegável que houve encontros entre as culturas, defendemos que as danças de salão brasileiras possuem caráter híbrido. Contudo, a mistura não pode se tornar pretexto para apagar as diferenças e o mérito da influência africana e afro-brasileira. Schwarcz assinala essas diferenças:

“Num país escravocrata, fortemente hierarquizado, as festas dos “brancos” ocorriam — em sua maioria — no interior dos palácios e teatros, cenário para bailes e saraus, ao passo que as festas dos ‘negros’ se realizavam nas ruas da cidade e nas senzalas das fazendas. Enquanto nos bailes a corte se vestia à europeia e transformava a escravidão numa cena quase transparente, nas festas populares as cores e adereços eram outros. (SCHWARCZ, 1998, p. 553)

E assim como acontece com outros fatos ou fenômenos históricos, as pessoas privilegiam a história “vista de cima”. Por isso, os registros que poderiam esclarecer como as danças de salão populares foram se desenvolvendo são escassos. O que vimos até agora, diz respeito apenas a adesão e práticas das danças de salão pelas elites. Seria um erro partir da história dos nobres salões da corte e acreditar que devemos seguir o raciocínio de uma linha única de “evolução” para se chegar ao que vivemos hoje. O que iremos tentar entender e desvendar a partir de agora é como músicas e danças nascidas nos terreiros dos negros que aqui viviam foram levadas aos pisos brilhantes dos salões. 43

1.3 A história da dança de salão brasileira

1.3.1 O contexto político-social

Agora, seguiremos o fio das danças populares no Rio de Janeiro, e tentaremos identificar em quais contextos e ocasiões as duas linhas se tocam (danças de salão de elite e danças populares), como se influenciam e posteriormente se estruturam produzindo, assim, a dança de salão brasileira. Até o presente momento, seguimos o fio da história da dança de salão das elites, desde seu surgimento na Europa Renascentista, sua chegada ao Brasil através da colonização, seu fortalecimento com a vinda da família real para cá e seu declínio com as mudanças de fins do século XIX. Atentando para o fato de que até então não havia nada de original na dança de salão praticada no Rio de Janeiro pelas elites, era uma mera reprodução das danças e modos europeus, motivo pelo qual não podemos falar ainda em “dança de salão brasileira”. As danças e bailes das elites sofreram um declínio no contexto das grandes mudanças acontecidas no final do século XIX e início do XX, quais sejam: fim da guerra do Paraguai (1870), Abolição da Escravidão (1888) e Proclamação da República (1889). É também nesse período que vai se formar, o que foi considerado por vários autores, como a primeira dança de salão genuinamente brasileira. O fato de o mesmo período e contexto social e histórico ser o responsável pela decadência das danças de salão da elite e ao mesmo tempo pela origem da dança de salão genuinamente brasileira, faz pensar que se trata de uma mesma coisa. Que a dança de salão das elites de alguma forma “evoluiu” ou “regrediu” e se transformou na dança de salão popular. Mas como veremos, não se trata de um movimento único. Certamente, as danças de salão das elites sofreram alterações, levando a uma abertura maior dos bailes na Primeira República, quando a composição da elite mudou. Mas, ao mesmo tempo, havia outros movimentos, vindos “de baixo”, dos negros e das camadas mais pobres da população que foram excluídas dos ideais de civilização vigentes na belle époque carioca. Isto posto, continuamos defendendo que se tratam de duas histórias em grande parte dissociadas e com grande afastamento, assim como era a distância entre as classes que as produziram. Após o início da República e a Abolição da escravatura no Brasil, a alta sociedade do Rio de Janeiro passou por uma “reconfiguração” de seus costumes e modas. Needel (1993) reconhece esse período como a belle époque carioca, temporada que foi marcada pelas reformas de Pereira Passos (1903-1906). Essa época, ao mesmo tempo que reforçava nas 44 elites ideais de civilização e progresso nos moldes europeus, corroborava para uma negação do que era “efetivamente brasileiro” associando aspectos raciais e culturais cariocas ao passado colonial que pretendiam deixar pra trás. Para compreender como as danças populares vão florescer e resistir a partir daí, faz-se necessário um breve panorama político-social do período. Isso vai nos permitir identificar estruturas nas danças e bailes que persistem até hoje na cidade do Rio de Janeiro, como exemplificado pelos bairros que ficaram famosos pelas gafieiras populares. Needel escreve:

“Pereira Passos não condenava apenas as ruas estreitas e imundas, mas também as fachadas sem pintura, os estilos rurais de consumo e os aspectos “bárbaros” do Carnaval. (...) com seus entrudos e cordões, o Carnaval expressava em parte uma cultura afro-brasileira da qual a elite afinada com os padrões europeus se envergonhava.” (NEEDEL, 1993, p. 71)

Vê-se assim, que o alvo da reforma não eram apenas as construções de concreto, mas também as tradições culturais de origens negras. Dessa forma, festas e hábitos populares foram reprimidos, e até o carnaval, não seria mais tolerado nos antigos moldes, “mas os dos corsos de carros abertos, das batalhas de flores e dos pierrôs e colombinas bem-comportados, típicos do Carnaval de Veneza, tal como era imitado em Paris.” (SEVCENKO, 1998a, p. 27). Nesse período, os descendentes de africanos, agora livres, compunham mais da metade da população carioca e “suas tradições se mesclavam e floresciam nas áreas mais pobres da Cidade Velha e nos morros” (NEEDEL, 1993, p. 71). O conjunto de construções precárias nos morros, conhecidos como favelas, começaram a ser formados no final do século XIX e receberam depois muitos desabrigados provenientes das demolições provocadas pela reforma de Pereira Passos (1903-1906). Isso ocorreu, porque segundo Wissenbach (1998), no Brasil, a concentração de populações nas grandes cidades não foi acompanhada por um crescimento da infraestrutura urbana e muito menos nas ofertas de emprego e moradia, fazendo com que as cidades experimentassem um “inchaço”, o que acentuou as desigualdades sociais. O projeto político, visual, arquitetônico e cultural promovido pelas elites não incluía os negros e os pobres e muito menos suas manifestações culturais, obrigando-os a viver às margens das grandes avenidas e das belas construções que brotavam com o impulso modernizador. Para compreender melhor a dimensão da hostilidade vivida com a instauração do novo regime, Sevcenko (1998) nos explica que era como se o mesmo ato procurasse 45 cancelar a herança do passado histórico e automaticamente estabelecesse uma conexão com as cultura e sociedades das potências industrializadas. Não existia ainda uma consciência crítica acerca das desigualdades inerentes à posição do Brasil no mercado internacional.

“E enquanto essa consciência crítica não amadurecia, prevaleceu o sentimento de vergonha, desprezo e ojeriza em relação ao passado, aos grupos sociais e rituais da cultura que evocassem hábitos de um tempo que se julgava para sempre e felizmente superado.” (SEVCENKO, 1998a, p. 28)

Diante desse cenário de exclusão, intensificou-se a vigilância e repressão policial. Após a Abolição, e ainda muito informados por políticas e práticas alicerçadas no racismo científico, a perseguição e repressão às manifestações populares e aos negros recrudesceu no Rio de Janeiro. Conforme Chalhoub (1986), isso teve a ver com a formação da classe trabalhadora no Rio de Janeiro e com a necessidade da imposição de uma nova ideologia do trabalho nas últimas décadas do século XIX. Essa nova ideologia tinha como ponto central a sujeição dos negros, que, agora libertos, deveriam ser compelidos ao novo sistema. Como aliciar indivíduos que tinham uma visão tão negativa do trabalho, dado os horrores (recentes) da escravidão? Segundo o autor, o controle social do escravo era conseguido através de uma combinação entre castigos e atitudes paternalistas e pela própria condição legal de propriedade privada. Após o fim da escravidão, os donos do capital precisavam garantir o suprimento de mão de obra, o que só poderia ser alcançado através de uma mudança radical no conceito de trabalho até então vigente. É nesse momento, que o conceito de trabalho começa a ganhar valoração positiva, aliado a conceitos adjacentes como “ordem” e “progresso”, que nos levaria no sentido da “civilização”, ou da “constituição de uma ordem social burguesa” (CHALHOUB, 1986, p. 29). O trabalho passa a ser então o princípio regulador e valor supremo da sociedade, que por sua vez, tinha interesse na expropriação absoluta do trabalhador direto, que deveria possuir um único bem, sua força de trabalho. Mas isso não seria suficiente para garantir a adesão dos negros libertos, pois a articulação dos conceitos e noções e a imposição da ideologia eram destinados à “mente” ou “espírito” dos homens livres em questão (CHALHOUB, 1986, p. 30). Fazia-se necessário ainda, um segundo movimento, era preciso também agir sobre seus corpos. É nesse momento que os cantos, as danças, as lutas, os cultos serão definitivamente censurados e submetidos à constante vigilância policial. 46

Surpreendentemente, é nesse cenário que o maxixe e o samba vão florescer. Isso foi possível porque, segundo Wissenbach:

“Expressões culturais tais como os jongos e o samba, por veicular sentidos mais profundos referidos às concepções e visão de mundo dos negros, utilizados como meio de transmissão de valores e de contato com as forças sobrenaturais, permaneceram apesar da destruição do regime escravista e da desmontagem das senzalas, alimentando as coletividades de ex-escravos tanto nas zonas rurais como nas cidades.” (WISSENBACH, 1998, p. 87)

E um dos pontos onde essa coletividade encontrou modos de resistir foi nas áreas pobres da cidade. Uma grande parcela da população urbana, talvez mais da metade, era descendentes de africanos, e suas tradições se mesclavam e desenvolviam nas áreas mais pobres da Cidade Velha e nos morros. E segundo Chalhoub (1986) eram essas pessoas e esses lugares os alvos da repressão policial. A essas pessoas era atribuída a “má ociosidade”, pois como aponta o autor, a ociosidade só era crime, se atrelada à pobreza. E a vigilância e repressão, apesar de ter como objetivo final a garantia da mão de obra, não se restringia ao âmbito do trabalho:

“Note-se, ainda, que o problema do controle social da classe trabalhadora compreende todas as esferas da vida, todas as situações possíveis do cotidiano, pois este controle se exerce desde a tentativa de disciplinarização rígida do tempo e do espaço na situação de trabalho até o problema da normatização das relações pessoais ou familiares dos trabalhadores, passando, também, pela vigilância contínua do botequim e da rua, espaços consagrados ao lazer popular.” (Chalhoub, 1986, p. 31)

Apesar de o foco da pesquisa de Chalhoub ser a rua e o botequim, não é difícil imaginar que essa repressão acontecesse também nos bailes populares. Como vimos anteriormente, Melo (2014) afirma que os bailes populares eram perseguidos pelas autoridades e pela imprensa, tendo alcunha de “assustados”, entre outros termos, e sendo considerados “locais de devassidão”. Portanto, a história do samba de gafieira e das gafieiras, passa por essa história de perseguição e marginalização, mais do que pela de grandes e iluminados salões repletos de gente rica. O fato de existir no decorrer da história, momentos de uma mistura de classes e adesão de modas e danças provenientes de manifestações 47 populares, não significa que foi sempre assim, nem que foi um processo sem conflitos. Vamos explorar agora algumas pesquisas e estudos, muitos da história da música, que mostram o longo caminho cheio de negociações que fizeram o lundu, maxixe e samba serem amplamente vistos, julgados, praticados e só bem mais tarde, aceitos.

1.3.2 O lundu e a origem do maxixe

É ponto pacífico entre os autores sobre dança de salão brasileira, que o samba de gafieira descende do maxixe e este por sua vez surgiu da mistura, da mescla entre as danças dos negros realizadas em batuques, especialmente o lundu, e as danças de salão europeias como a polca. O que buscaremos entender é como se deu essa mistura. Como danças e universos tão opostos se uniram em um único fazer? Como deram origem ao maxixe, e quais foram suas transformações a partir daí? Como esse processo influenciou a dança de salão brasileira que é praticada até hoje? No tocante aos primórdios da dança de salão brasileira, mais especificamente sobre a origem do maxixe, os textos e estudos mais difundidos são em sua maioria da área da Música. O livro de Jota Efegê, Maxixe, a dança excomungada (1974), constitui uma exceção, pois tem como assunto central o maxixe enquanto dança. Em geral, esses textos2 consideram a polca, uma dança europeia, como elemento principal que influenciou na origem do maxixe. Na verdade, investigando esses textos, percebe-se que não há uma tese profunda e bem estruturada sobre a influência da polca-dança no maxixe. A influência das culturas africanas que vinham sendo cultivadas no Brasil e no Rio de Janeiro eram subestimadas nesses estudos. Visto que as culturas africanas, apesar da repressão, viviam um momento no qual eram potencializadas pelas novas configurações de trabalho e moradia na cidade, não se pode eliminar ou diminuir o poder dessa influência na constituição da cultura popular brasileira. No entanto, observa-se uma tendência a atribuir um peso maior ao elemento europeu da equação, no nosso caso a polca, dança europeia. Sodré (1998), em texto que teve a primeira edição na década de 1970, foi talvez o primeiro autor que busca explicar a constituição do samba (música) através da primazia da

2 ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música (2015). ______. Música, doce música (2013). ______. Cândido Inácio da Silva e o Lundu (1999). EFEGÊ, Jota. Maxixe, a dança excomungada (2009). TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular (1986). 48 cultura negra. Assim como em outros estudos da musicologia, seu livro nos permite entrever algumas questões sobre a dança. Nas palavras do próprio autor, o objetivo de seu trabalho é:

“(...) indicar como um aspecto da cultura negra - continuum africano no Brasil e modo brasileiro de resistência cultural - encontrou em seu próprio sistema recursos de afirmação da identidade negra. E implicitamente pretendemos rejeitar os discursos que se dispõem a explicar o mesmo fenômeno, o samba, como uma sobrevivência consentida, simples matéria-prima para um amálgama cultural realizado de cima para baixo.” (SODRÉ, 1998, p. 10, grifo do autor.)

Pretendemos chamar atenção, que até os dias de hoje, nos estudos sobre dança de salão brasileira, os elementos negros que deram origem ao maxixe, e depois ao samba de gafieira são subestimados. Tencionamos, desta forma, a partir de Sodré (1998) e Sandroni (2001) trazer essa questão também para a formação da dança de salão brasileira. Sodré (1998), admite que existem características mestiças na constituição das músicas urbanas brasileiras, no entanto, defende que essa música florescia realmente no interior dos ambientes ocupados pela população negra. “Ao lado da habanera e da polca (que obtiveram grande sucesso no Rio de Janeiro a partir de 1845), o lundu contribuiu - principalmente com a síncopa - para a criação do maxixe.” (SODRÉ, 1998, p. 31). O autor combate o ponto de vista de vários musicólogos anteriores que insistem em afastar a música e danças urbanas originadas no Rio de Janeiro das influências africanas. O que vemos nos estudos sobre o maxixe, é ainda o privilégio da cultura branca, em detrimento das influências negras. Jota Efegê e Tinhorão se debruçam mais sobre o maxixe e suas relações com as classes médias e altas e menos em sua origem, atribuindo à mistura de culturas o seu surgimento. Em trecho de um livro, escreve Tinhorão:

“Transformada a polca em maxixe, via lundu dançado e cantado, através de uma estilização musical efetuada pelos músicos dos conjuntos de choro, para atender ao gosto bizarro dos dançarinos das camadas populares da Cidade Nova, a descoberta do novo gênero de dança ia chegar ao conhecimento das demais classes sociais do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX quase simultaneamente com sua criação. E os veículos para a tomada de conhecimento da nova dança do povo pelas classes mais elevadas seriam os bailes das sociedades carnavalescas e os quadros de canto e dança do teatro de revista.” (TINHORÃO, 1986, p. 63) 49

Vemos claramente nesse trecho, a polca ser colocada em posição de destaque. O autor considera o lundu apenas um meio, um “transporte” para que a polca se transforme em maxixe. Fato que se deu graças ao “gosto bizarro” dos dançarinos das camadas populares. O restante da transcrição nos revela ainda os meios que a nova dança popular chega às classes mais privilegiadas, e percebemos que, assim como Efegê, Tinhorão evidencia a história do maxixe a partir daí, do encontro com as classes elevadas. Tanto Jota Efegê, quanto Tinhorão nos fornecem informações valiosas sobre como o maxixe se estabeleceu e difundiu no Rio de Janeiro, mas no que tange às questões coreográficas, as influências das danças negras, em especial o lundu, são omitidas, superficiais ou vistas com preconceito. Esse fato reverbera também nos estudos sobre dança de salão. Perna em seu livro Samba de Gafieira: a história da dança de salão brasileira, também reproduz essa ideia de que o maxixe resultou de uma modificação da forma de dançar a polca. E, como seu livro é uma das obras mais utilizadas para pesquisas em dança de salão, tal ideia tende a continuar sendo reproduzida nas pesquisas sobre o tema. Perna, afirma:

“A dança mais popular da época era a polca. Os dançarinos das camadas mais populares tendiam a colocar sensualidade, passos, volteios, quebradas, requebros e negaças do lundum, dos batuques e das danças de roda enquanto a dançavam, incorporando-os ao estilo dessa dança de salão (e de outras). A dança de salão era o modelo europeu seguido pela elite e copiado pelos menos favorecidos. Foi esse processo de cópia e adaptação e, sua posterior evolução, que moldou o maxixe e durou muitos anos, tendo sido uma criação coletiva e anônima, como as danças de salão atuais do Rio de Janeiro e Brasil, apesar de algumas dessas terem um ou outro dançarino que tenha dado o rumo inicial.” (PERNA, 2001, p. 26)

Se analisarmos bem a colocação de Perna, podemos ver que também admite o lundu como agente transformador da dança de salão vigente, mas apenas como um meio. O ponto de vista do autor segue os trabalhos anteriores e coloca a polca como elemento dominante na formação e origem do maxixe. Além disso, identificamos uma ótica eurocentrada, onde o autor reproduz ideias preconceituosas que pode ter origem nos relatos de viajantes europeus, que serviram de fonte a muitos estudos sobre música e dança dos negros aqui no Brasil, que enxergam a cultura afro-brasileira como algo exótico, primitivo e inferior. 50

O que Sandroni (2001) faz é colocar as coisas de “cabeça para baixo”, admitindo que o maxixe é uma nova forma de dançar o lundu, trazendo das danças de salão vigentes apenas o abraço enlaçado, colocando assim, o lundu em primeiro plano. O autor chega a essa conclusão ao resgatar o contexto social da época e ao se aprofundar nas investigações acerca do lundu. O autor destaca também os conflitos que o maxixe e antes dele o lundu enfrentaram para ser aceitos mais amplamente pela sociedade, e os processos que os permitiram vencer essa impermeabilidade cultural. Sandroni (2001) ressalta que “lundu” não significou uma coisa só ao longo do tempo, inicialmente foi o nome de uma dança popular, depois de um gênero de canção de salão e, finalmente de um tipo de canção folclórica. Essa circulação do lundu ao longo do tempo e por diferentes espaços, só foi possível justamente por causa das inter-relações entre classes e raças como apontado por Schwarcz (1998). Tinhorão valida esse fato quando reconhece que a dança do lundu era “mais cultivada por brancos e mestiços que por negros” (TINHORÃO, 1988, p. 36) Sandroni concorda com Tinhorão, mas faz uma ressalva:

“Tal constatação, no entanto, não muda o fato de que o sentido atribuído desde fins do século XVIII ao lundu-dança e transmitido no século XIX ao lundu-canção, chegando até às definições dos pesquisadores modernos, é o de uma representação direta ou velada do universo afro-brasileiro.” (SANDRONI, 2001, p. 33)

Apesar de existirem muitas manifestações culturais negras e de serem conhecidas ou até frequentadas por brancos, “a sociedade brasileira até bem dentro do século XIX se mostrou impenetrável à influência afro-negra, tanto na música como na poesia e dança, embora muito menos nos costumes e nas tradições materiais” (ANDRADE, 1999, p. 223). Baseado nos argumentos de Andrade, Sandroni (2001) explica que o lundu foi a canção que colocou em cena o universo negro. Dessa forma, uma permeabilidade entre culturas começava a ser possível, de uma maneira que se utilizava da comicidade para camuflar o conflito social entre senhores e escravos. A partir daí, o lundu começou a ocupar vários espaços, persistindo também nos bairros que se tornaram reduto da cultura afro-brasileira após as reformas urbanas como havíamos falado. E é justamente aí, no bairro Cidade Nova, que segundo o autor, vão surgindo novas formas de dançar a dois, baseados no lundu. O lundu, em sua origem, dançado pelos negros nos terreiros era dança de par separado. E, como bem observa Sandroni (2001), é 51 justamente essa transformação de uma dança de par separado (lundu), bastante comum nos meios rurais, em uma dança de par enlaçado, praticada nos meios urbanos, que cria o maxixe, a primeira dança de salão brasileira. E essa transformação foi possível graças ao caminho que o lundu-música fez antes, penetrando e sendo aceita nas diversas classes. Sandroni, apoia ainda seu ponto de vista em declarações do maestro Villa-Lobos:

“A ideia de que o maxixe veio da Cidade Nova pela via dos clubes carnavalescos é consideravelmente reforçada por ‘uma versão, propagada por Villa-Lobos, que a teria colhido dum octogenário’, segundo a qual ‘o maxixe tomou esse nome dum sujeito apelidado Maxixe que num carnaval, na sociedade Os Estudantes de Heidelberg, dançou o lundu duma maneira nova’. A maneira nova de dançar o lundu, que Villa-Lobos menciona, teria sido pois provavelmente aprendida, ou imitada, dos bailes da Cidade Nova, e transmitida a círculos mais amplos através dos clubes carnavalescos” (SANDRONI, 2001, p. 56)

E ainda:

“Aliás isso é admitido implicitamente pelo mesmo Villa-Lobos em outro momento, quando escreve: ‘O maxixe ... deriva-se do lundu.... Os foliões [adotaram o lundu], dançando-o porém com uma liberdade muito maior de movimentos, a fim de que os pares, inteiramente unidos, pudessem dar maior expansão ao seu sensualismo’.” (SANDRONI, 2001, p. 57)

É possível que existam ainda outras referências que reforcem o ponto de vista do lundu como origem, mas o apagamento da história “vista de baixo” torna as informações confusas ou incompletas. Ainda defendendo seu ponto de vista, Sandroni (2001) destaca que a principal diferença entre o lundu e o maxixe era que enquanto o maxixe é uma dança de par enlaçado, o lundu era de par separado. Em resumo, o autor afirma que o maxixe foi na verdade a adoção pelo povo de novas maneiras de dançar, influenciadas pela cultura urbana, e não pela dança específica da polca. E que tal adoção não foi mecânica, não se traduzia por mera cópia, “pois incorpora elementos coreográficos que não se encontravam nem na polca nem na valsa das elites” (SANDRONI, 2001, p.57). Além disso, as elites não reconheciam essas formas de dançar a dois, dos negros, nem mesmo como uma imitação das suas danças, se mostrando, inicialmente, horrorizadas com o maxixe. Associar o maxixe com a polca e 52 mais tarde com o tango, talvez tenha sido uma estratégia das classes populares, de certa forma bem-sucedida, para que o maxixe se espalhasse e fosse aceito pelas diversas classes sociais. Entretanto, não defendemos aqui um caminho retilíneo e suave da transformação do lundu em maxixe. O período do final do século XIX e início do XX foi uma época de extraordinárias transformações e faz-se necessário incluir aqui a influência da modernidade nas formas de dançar. A partir da instauração da República, em consonância com os valores cultivados pelas sociedades industriais e modernas, o Rio passa a ser um centro irradiador de novas modas e comportamentos e “acima de tudo os sistemas de valores, o modo de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e as disposições pulsionais que articulam a modernidade como uma experiência existencial e íntima.” (SEVCENKO, 1998b, p. 522). Isso tudo pode levar a crer em um distanciamento ainda maior das ideias de ancestralidade e coletividade presentes nas culturas negras e consequentemente uma participação diminuta na formação das danças de salão modernas. No entanto, como nos lembra Sevcenko, apesar das desigualdades, a modernidade atingia a todos:

“O fato é que as populações excluídas aos poucos vão se apercebendo de que é possível dispor de elementos dessa modernidade para reforçar as características de infixidez, jogo e reajustamentos constantes, que sempre lhes garantiram maiores oportunidades no confronto social, mas que precisamente as novas políticas de controle, segregação e cerceamento das cidades planejadas procuravam tolher.” (SEVCENKO, 1998b, p. 611)

Portanto, não faz sentido excluir as comunidades pobres e negras das ideias e das ações dentro da chave da modernidade. Um exemplo é a questão dos sapatos, os salto-altos para as mulheres e os sapatos bicolores de bico fino até hoje são símbolos do samba de gafieira. Segundo Sevcenko, no esforço para “parecer moderno”, a questão dos sapatos era essencial, a vestimenta era mais fácil cair bem em qualquer corpo, mas os sapatos denunciavam o passado de seu detentor pelo andar, se estes eram habituados a andar descalços ou com o uso de botas ou outros calçados rústicos, poderia resultar em um modo de andar de certa forma risível:

“No caso das moças essa complicação era acrescida pela exigência elegante dos saltos altos. (...) Essa é também a origem do jeito de ‘pisar macio’, destacando a 53

plástica do sapato branco ou de duas cores, elemento tão distintivo do malandro carioca.” (SEVCENKO, 1998b, p. 556)

O que se deu foi uma apropriação magistral e a conquista da mais completa autoconfiança nos usos desses elementos, o que pode ser observados até hoje no universo cultural do samba de gafieira. Essa reflexão é muito importante, porque evita que nós, estudiosos da dança de salão brasileira, façamos relações de elementos da modernidade ou da elite da época de forma direta, apagando a ação dos indivíduos negros. Dessa forma, é comum atribuir a uma herança das danças de corte elementos como calçados refinados ou gestos corteses. Mas o que se observa é que todos esses elementos foram ressignificados pela cultura negra atuante na época. Sevcenko (1998) destaca que alguns elementos da modernidade, principalmente os relativos ao corpo, constituíam aberturas por onde esses grupos podiam trafegar com base nas próprias tradições, elementos como o “vigor e a exuberância física, os ritmos vertiginosos das danças e a malícia lúdica dos esportes, já eram parte permanente de seus rituais e experiências cotidianas.” (SEVCENKO, 1998b, p. 580) Em um esforço para apresentar uma história do samba de gafieira ligado às suas verdadeiras raízes, que são negras e populares e pouco tem a ver com a polca dançada pelas elites, esse trabalho se empenha em mostrar que para compreender a formação da dança de salão brasileira é preciso investigar tanto o contexto social e político da época como a coreografia. Nesse sentido, Sodré afirma:

“Não foi, portanto, da norma linguística nacional que veio a linha rítmica do samba (substituto do maxixe como forma musical popular), mas do processo de adaptação, reelaboração e síntese de formas musicais características da cultura negra do Brasil. Tornam-se, assim, inconsistentes os argumentos do tipo ‘o samba carioca, dança de salão, nada tem a ver com o samba de roda’, porque se baseiam em aspectos técnicos, setoriais (detalhes morfológicos, variações de compassos etc.), esquecendo o lugar da forma musical no quadro complexo de uma cultura. Na realidade, os diversos tipos de samba (samba de terreiro, samba duro, partido-alto, samba cantado, samba de salão e outros) são perpassados por um mesmo sistema genealógico e semiótico: a cultura negra.” (SODRÉ, 1998, p. 35)

O autor também destaca uma inegável articulação entre lundu-maxixe-samba, o que mais tarde é defendido por Sandroni (2001), que especulando as semelhanças entre o maxixe 54 e o lundu, chega à conclusão de que o gesto coreográfico comum às duas danças seria o movimento dos quadris conhecido como “requebrar” ou “quebrar”. Sandroni portanto, conclui que entre semelhanças e diferenças, o maxixe herdou das danças europeias, da polca e da valsa, apenas sua organização global: par enlaçado, música externa, participação simultânea de todos os pares e do lundu, herdou o gesto coreográfico mesmo: o quebrar ou requebrar. Diante do exposto, a nossa contribuição para a compreensão da dança de salão brasileira moderna, é que além dos movimentos dos quadris apontados por Sandroni (2001), existe outro elemento de suma importância que perdura até hoje nas danças de salão brasileiras: o improviso. O samba de gafieira é definido “pela criatividade dos pares dançantes, onde o corpo se expressa livremente mostrando que o samba é uma dança lúdica, irreverente, alegre e que permite muita improvisação.” (SÃO JOSÉ, 2005, p. 119). Um elemento tão presente nas danças de salão brasileiras contemporâneas como o improviso não poderia ter vindo das danças europeias, mas somente das africanas. Como vimos no início deste capítulo, a dança de salão das cortes europeias e das elites brasileiras era utilizada como mecanismo de controle dos corpos, refinamento de gestos, padronização de comportamentos. Como tais tipos de dança poderiam ser responsáveis pelas origens da dança de salão brasileira tão rica em criatividade e improviso? Em oposição, danças de matriz africana cultivavam a liberdade, o improviso, a expressão através do movimento total e integral do corpo. Na dança de salão brasileira contemporânea, a dança, os movimentos, a expressão, o improviso, os sons sob os quais se dança, tudo vem “de baixo”, de um passado vindo dos terreiros, das senzalas, onde o corpo se fazia espaço da única liberdade possível, por isso fecunda, grandiosa.

1.4 O samba de gafieira

Apesar de todo o sucesso doméstico e internacional, o maxixe desapareceu. Talvez, o primeiro impulso para encontrar um culpado nos levaria no sentido da repressão moralista das elites e do governo que pretendiam sufocar a nova moda e resgatar os bailes e danças das elites. Mas investigando a bibliografia, entendemos que não é assim, apesar de essa repressão moral existir, o maxixe representava aquilo que seus inimigos amavam odiar. E além disso, o sucesso internacional era motivo de vaidade, contribuindo para as ideias nascentes sobre o “genuinamente brasileiro” e a “identidade nacional”. O descaso oficial e a incapacidade de assumir o maxixe como uma criação genuína surgida no lado pobre da cidade, conjuntamente a discriminação contra a cultura negra, segundo Jota Efegê (1974), não foi capaz por si só de 55 aniquilar o maxixe, mas esse descaso deixou margem para que outros fatores o fizessem, e aqui estamos falando da influência norte-americana. Apesar de seu sucesso, o maxixe foi “desbancado pela novidade do charleston e do fox-trot americanos” (TINHORÃO, 1986, p. 86). Mas se o maxixe não sobreviveu às mudanças e acabou por extinguir-se, o samba teve mais sucesso. Mesmo com origens africanas e populares, uma série de fatores sociais e políticos contribuíram para que o samba fosse aceito como ritmo representativo nacional. O processo que levou o samba (música) a ser percebido como ritmo nacional, depois de ser reprimido e reprovado, envolve muitas negociações. Lira Neto demonstra a existência de ações de higienização e domesticação dos corpos na trajetória que levou as folias, músicas e danças populares que se praticavam no final do século XIX no Rio de Janeiro à busca de aceitação e reconhecimento.

“No carnaval do ano seguinte, 1894, o Dois de Ouro de Hilário Jovino foi convidado a desfilar perante o então presidente da República, o marechal Floriano Peixoto. Suprema honra. A folia nascida entre pobres, negros e marginalizados parecia ter encontrado um possível caminho para conquistar as benevolências do poder e o aplauso das classes bem-nascidas. O tempo mostraria o preço a ser pago por esse gradativo pacto de aceitação pública, de um lado, e controle social, de outro: a crescente domesticação dos corpos - e uma consequente desafricanização dos espíritos.” (LIRA NETO, 2017, p. 34)

Lira Neto (2017), segue a mesma linha de Sodré (1998) e Sandroni (2001), e considera que as culturas negras seguem uma dinâmica forte e consciente na formação das músicas e danças populares brasileiras. Defende que o samba aprendeu a negociar espaços e a se reelaborar de maneira permanente. Destaca também que, concomitantemente com a expansão do mercado fonográfico, o surgimento do rádio comercial e a consolidação do cinema, o Estado Novo se orientava à tarefa de construir um projeto de Brasil moderno e uma suposta identidade nacional. Portanto, a música popular brasileira e consequentemente o samba não ficaram imunes a essas circunstâncias históricas. Dessa forma, foi nesse contexto e diante das negociações, que o samba chegou na posição oficial de música nacional3. Lopes e Simas (2015), compartilhando das mesmas ideias, nos alertam ainda para o fato de que essas

3 Para ver mais sobre o tema transformação do samba em música nacional ver: Uma História do Samba (Lira Neto, 2017) e O mistério do samba (Hermano Vianna, 1995) 56 características se repetem em outros contextos: citam o tango na Argentina, o fado em Portugal, o na Jamaica e o blues nos Estados Unidos os quais passaram por processos semelhantes na caminhada para se tornar símbolos de seus países. Os autores ressaltam que os gêneros citados foram menosprezados em seus locais de origem, principalmente por ter surgido no seio de grupos economicamente carentes e marginalizados. Em seu processo de transformação em símbolo de nacionalidade, o samba sofreu algumas fragmentações e a partir daí, o lugar que o samba de gafieira ocupa é bem distinta do samba enquanto música. Sobre essa desvinculação, Lopes e Simas (2015), esclarecem que:

“O samba do ambiente urbano, das cidades, descendente direto do samba rural, floresceu ao ar livre, nos terreiros das comunidades negras e nas ruas. Nesses ambientes, foi absorvido e transformado pela indústria (...). Ressaltemos que, ao se apropriar do samba como matéria prima, a indústria tomou para si apenas o aspecto de composição musical para ser cantada ou tocada (e consequentemente vendida), ficando a dança, ao longo do tempo, restrita à maior ou menor espontaneidade das avenidas dos desfiles, das quadras das escolas e dos salões de baile.” (LOPES & SIMAS, 2015, p. 254)

A relação do samba de gafieira com o gênero musical samba possui pontos de interseção, mas um não depende do outro para existir. A dança samba de gafieira não tem uma relação tão direta e completa com o gênero musical samba, como por exemplo o tango tem com sua dança, onde a música só existe por causa da dança de par e a dança do tango não é possível sem a música. O gênero musical samba é mais abrangente, com diversos estilos e formas de dançar, como é o caso das danças samba no pé e samba-rock. Por outro lado, é possível dançar o samba de gafieira ao som de outros gêneros musicais como o choro e até mesmo músicas americanas no estilo R&B, que é utilizado hoje para dançar uma variação do samba de gafieira, o samba funkeado. Esses pontos demonstram que, apesar de ter uma relação com o gênero musical, o samba de gafieira tem sua própria história, vinculada à história da dança de salão, mais do que à história do gênero musical samba. Por isso a importância de resgatar as origens do maxixe. Enquanto o estilo musical samba alça voos cada vez mais altos e se firma de forma muito profissional no cenário cultural, o samba de gafieira segue os passos de seu antecessor, o maxixe, se organizando em bailes populares onde a classe trabalhadora ia dançar a nova música da moda, que se antes era o maxixe, agora era o samba. Existem poucas fontes e 57 bibliografia sobre o surgimento dessa nova forma de dançar que veio depois do maxixe e que se consolidou como samba de gafieira. Perna (2001), faz um breve panorama sobre esse período tão encoberto da história do samba de gafieira, afirmando que só foi surgir na década de 1930, após o surgimento do samba como gênero musical e coincidindo com o declínio do maxixe. O autor também destaca que nas décadas de 1930 e 1940 surgiram os grandes salões de bailes nos Estados Unidos e Inglaterra, o que influenciou a dança de salão no Brasil. Afirma também que observa-se um enfraquecimento na dança de salão a partir da década de 1950 com o surgimento do rock and roll, que inicialmente era dançado a dois, mas foi se desenvolvendo de forma que o par dançasse separado. O autor considera ainda que foi o surgimento da discoteca no final da década de 1960, o que determinou o declínio da dança de salão, dado que praticamente todas as academias de dança do Rio de Janeiro fecharam as portas. Perna (2001), afirma ainda que na década de 1970 a dança de salão desapareceu completamente para os jovens da classe média, no entanto, o samba de gafieira resistiu a esse período de adormecimento graças aos bailes de clubes da periferia e algumas gafieiras do centro como a Estudantina e a Elite. Conclui o breve histórico declarando que a dança de salão e o samba de gafieira voltaram à cena cultural carioca de forma mais ampla somente no final da década de 1980, sendo largamente praticado em clubes e academias a partir da década de 1990. O período atual, que será investigado nessa pesquisa, começa a ser configurado a partir dessa “volta da gafieira”, parafraseando a canção que ficou famosa na voz de Alcione em 1981. Uma volta, que, como na canção, é promovida pela juventude, “Com esse socorro/ perigo eu não corro de morrer/ mas se acontecer a juventude toma uma atitude/ pra me defender/”. Nesse período, do final da década de 1980 e início dos anos 90, aconteceram transformações que estabeleceram as bases do que se vive na atualidade do samba de gafieira na cidade do Rio de Janeiro. A exploração desse período melhora o nosso entendimento de como o samba de gafieira funciona na atualidade, de modo a atender uma demanda por entretenimento da classe média. O alerta na introdução deste trabalho da diferença entre os modos de organização entre o samba de gafieira do centro e zona sul e das periferias e reforçado agora nas informações de Perna (2001) apontam mais uma vez para uma subdivisão da história do samba de gafieira. Existe uma história do samba de gafieira que é uma continuidade dos bailes populares dos trabalhadores que se divertiam nos finais de semana nos maxixes e que continua até hoje na periferia do Rio de Janeiro e uma outra história que 58 começou nas gafieiras do centro na década de 1960. Que segundo Veiga (2011), é quando há uma grande frequência da classe média nessas gafieiras, sendo um ponto de encontro de intelectuais e artistas. Para uma compreensão das características do samba de gafieira na atualidade, é fundamental falar da atuação de alguns profissionais da dança de salão que, em conjunto com o interesse da classe média pela gafieira e o surgimento da lambada, seriam responsáveis pelo retorno da dança de salão à cena cultural carioca nas décadas de 1980-90. É essencial explorar os papéis desses profissionais que são: Jaime Aroxa, Carlinhos de Jesus e Jimmy de Oliveira, e antes deles, Maria Antonietta. Em sua tese, Souza (2010), cita esses nomes e os considera atores sociais privilegiados e essenciais na formação do campo. Em 1945 foi o primeiro contato de Maria Antonietta com a Academia Moraes. E segundo informações constantes em sua biografia, nesse ano, esta seria a “única e respeitada escola de dança de salão do Rio de Janeiro.” (DRUMMOND, 2004, p. 73). Em outro ponto, a biografia revela-nos que os frequentadores da academia eram em maioria homens que frequentavam diversos tipos de bailes, desde os de gala, até os cabarés e gafieiras da cidade. A Academia Moraes experimentou grande sucesso no Rio, chegando a possuir cinco escolas, mas por vários e sucessivos problemas, desde incêndios, despejo e falência, foram fechando as portas. A última a fechar as portas foi a filial da rua São José em 1973, mediante o plano de urbanização do largo da Carioca o prédio foi demolido. Quando Maria Antonietta iniciou seu trabalho como assistente na Academia Moraes, ela tinha apenas 17 anos, depois de um longo período afastada - em que se dedicou a ser mãe e dona de casa - voltou a dar aulas na academia e a frequentar vários bailes na cidade. E no período que engloba o final dos anos 1960 e início dos 70, Maria Antonietta se firma definitivamente como professora de dança de salão na cidade.

“Nesse exato momento em que a noite carioca é embalada pelas discotecas, em que orquestras cruzam os braços e a respeitada Academia Moraes cerra sua última porta, Maria Antonietta começa a dar aulas em seu pequeno conjugado, no centro da cidade” (DRUMMOND, 2004, p. 109)

Nos mais de cinquenta anos de relação com a dança de salão, Maria Antonietta atravessa momentos históricos e influi na história de personagens que atuaram e atuam até hoje na dança de salão brasileira. Segundo sua biografia, seus primeiros alunos foram um 59 grupo composto por rapazes e moças - universitários, profissionais liberais e intelectuais que a conheceram na gafieira Elite. “E esse pequeno grupo divulga a mestra entre os amigos. Com isso, aumenta o interesse pela dança de salão, ampliando-se um novo perfil de dançarinos de gafieira.” (DRUMMOND, 2004, p. 111). Sua história também cruza, dentre muitos outros personagens, com dois grandes nomes da dança de salão: Jaime Arôxa e Carlinhos de Jesus. Arôxa, foi seu aluno e auxiliar, com Carlinhos teve um encontro interessante e na biografia fica explícita uma divergência se ele foi ou não foi seu aluno, Carlinhos defende que é autodidata, mas a Mestra garante que ele chegou a pagar três meses de aula com ela.

“Anos 70. Cabelos compridos, com roupas de hippie, um rapaz tenta tirar a mestra para dançar. Maria Antonietta olha-o de cima a baixo. Abre o leque… ‘Obrigada, estou cansada.’ Não se recusa um cavalheiro na gafieira. ‘Mas ele parecia muito desajeitado!’, explica. (...) Anos depois, Carlão, aluno da mestra, organiza uma festa em sua casa. Ao chegar, Antonietta foi apresentada a algumas pessoas e não reconheceu o jovem hippie que ela recusara na gafieira. (...) Era Jesus, que se lembrou imediatamente daquele dia. E Antonietta riu de sua própria gafe. (DRUMMOND, 2004, p. 113)

Depois disso, ficaram amigos e chegam a realizar alguns trabalhos juntos. Ainda segundo sua biografia, Maria Antonietta recebeu diversos prêmios, homenagens e alguns títulos oficiais como o de Cidadã Honorária pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, indicada por Sérgio Cabral em 1985, Cidadã do estado do Rio de Janeiro em 2000. É reconhecida como a grande dama dos salões do Rio de Janeiro, sendo admirada e reconhecida por dedicar praticamente sua vida inteira ao ensino, divulgação e resistência das danças de salão no Rio de Janeiro. Na biografia de Jaime Arôxa, lançada em 2007, o jornalista Milton Saldanha faz um apanhado de momentos de sua vida pessoal e profissional. Jaime Arôxa saiu de uma vida pobre nos subúrbios de Recife para tentar a vida no Rio de Janeiro aos 18 anos. Trabalhou em diversas atividades antes de se interessar pela dança de salão e pelos bailes da Lapa. E quando em 1983 decidiu procurar aulas de dança de salão, já o fez com um propósito de ser profissional. Conta que o cenário não era muito promissor pois, na época, os professores de dança de salão eram pouquíssimos e a profissão não era levada a sério. 60

“Mas já existiam algumas honrosas exceções. Em São Paulo, a segunda geração da célebre Madame Poças Leitão; seus ex-discípulos Carla e Chico; o veterano professor Manteiga; além da quase obscura Art & Som, que perdeu o timing e deixou escapar a chance de se transformar na grande academia da cidade. No Rio de Janeiro, tinha ficado a fama do mestre Moraes, restrita aos bailes; um ou outro professor pouco conhecido, que exercia a profissão e ensinava como bico; e uma senhora da Lapa, esta, sim, vivendo de aulas de dança, na sala da sua própria casa, e que de vez em quando era tema de reportagens em jornais e revistas, apresentada como curiosidade. Seu nome: Maria Antonietta.” (SALDANHA, 2007, p. 48)

Segundo Saldanha (2007), nessa época (década de 1980), Maria Antonieta estava no auge de sua atuação como profissional de dança de salão e artistas famosos, intelectuais, jornalistas, universitários, faziam suas aulas, pontua também que a gafieira estava em alta e os bem-nascidos misturavam-se a empregadas domésticas nas casas destinadas ao gênero, como a Estudantina e a Elite. Observemos que essa efervescência era atribuída às casas noturnas, bailes e cena cultural da época, não havia ainda a expansão de academias de dança de salão. Maria Antonietta era uma exceção e mesmo assim suas tão requisitadas aulas eram particulares, em sua própria casa. Jaime Arôxa procurou a mestra Maria Antonietta que se recusou dar aulas para ele por não ter mais espaço na agenda, mas graças à sua insistência, Jaime foi aceito como aluno e poucos meses depois virou assistente nas aulas particulares da mestra. Jaime foi se profissionalizando e buscou aulas com outros profissionais, de tango, de balé clássico, de dança contemporânea e aos poucos começou a ter seus próprios alunos particulares. Foi bastante procurado e diante da procura por grupos que queriam fazer aulas, começou a desenvolver um método para dar aulas para grupos, pois segundo ele, até então não existia essa modalidade de aulas no Rio de Janeiro. Foi quando recebeu uma turma de quarenta alunos que decidiu aprimorar e aplicar de forma séria seu método. É válido lembrar que as informações não circulavam tão rapidamente como hoje, não existiam as redes sociais e a internet, e o encontro presencial para troca de informações com outros profissionais era o único caminho para intercâmbios de conhecimento. A rede social precisava ser real e não virtual.

"Numa ocasião, Jaime reuniu alguns dos melhores dançarinos de salão do Rio, entre eles Carlinhos (de Jesus), e fez uma proposta. Trocaria o que cada um tinha de melhor. Jaime aprenderia novas técnicas e passos e daria em troca seu método e jeito 61

de ensinar. O objetivo era criar um padrão de ensino. Ninguém topou. ‘Fiquei isolado’, conta, ‘e a primeira escola de dança de salão do Rio que abriu para grupos, com alvará de licença e tudo, foi a minha’. A diferença radical, é bom que se entenda, era que as academias já existentes só davam aulas individuais. Então a novidade era esta: pessoas que nunca tinha dançado aprendendo umas com as outras, e dando certo." (SALDANHA, 2007 p. 63)

A primeira escola de dança de Arôxa, com nome de Chiquinha Gonzaga teve grande sucesso, mas logo se desfez por discordâncias entre os sócios. A segunda escola, em sociedade com outro ex-aluno da mestra, levava o nome de Escola de Dança Maria Antonietta: aí, Jaime trabalhou e desenvolveu seu método por cinco anos. Seu método necessitava de equilíbrio entre o número de homens e mulheres, mas sempre havia mais mulheres interessadas. Então ele inicia uma prática que é amplamente adotada até hoje em quase todas as academias de dança de salão, a figura do bolsista. Os bolsistas são rapazes que já dançam ou têm facilidade para dançar e podem fazer aulas de graça, evitando assim a evasão das mulheres matriculadas. Com o método e organização desenvolvidos por Jaime a escola chegou ao número de 1.500 alunos, criou também uma companhia de dança de salão, onde impôs um trabalho mais profissional, substituindo o amadorismo de outras tentativas de companhias. Outro ponto importante da biografia de Jaime é sua participação em um grande evento internacional de dança de salão pela primeira vez. A partir dessa experiência, ele trouxe para o Brasil o formato dos grandes eventos. Saldanha (2007) conta que por acaso, através de um panfleto escrito completamente em francês encontrado no chão do metrô por um funcionário seu, Jaime tomou conhecimento da existência desse evento. Decidiu que iria participar, e viajou com sua parceira de dança e uma amiga que falava francês. Sobre o evento ele só sabia que envolveria dança de salão com apresentações, aulas e competições e que se daria em um cruzeiro que sairia da Martinica em direção à Portugal. Jaime e suas companheiras saíram do Brasil, rumo à Martinica e embarcaram no cruzeiro, chegando lá, percebem que se tratava de um cruzeiro destinado à terceira idade, eles eram os únicos jovens, mas quando dançaram na pista, chamaram a atenção do público e dos outros dançarinos e profissionais responsáveis pelas atrações artísticas do evento, que os convidaram para dar aulas e participar como professores de “ritmos brasileiros” a partir da noite seguinte. Esse encontro, propiciou o conhecimento do mundo dos grandes eventos de dança de salão, até então desconhecidos aqui no Brasil, o estabelecimento de amizades e diálogos com os 62 professores internacionais e viagens para suas escolas de dança na França, Itália e Espanha, fazendo intenso intercâmbio de conhecimentos. Como é evidente, Jaime atuou como um “descobridor”, trazendo para o Brasil as novas ideias e experiências que vivia no mundo internacional. Em julho de 1995, após a experiência do cruzeiro, Jaime Arôxa realiza o Encontro Internacional de Dança de Salão, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, o primeiro grande congresso do tipo no Brasil. Saldanha (2007), narra que ele manteve contato com seus amigos, professores internacionais, além disso contratou empresas profissionais na organização de congressos e utilizou tecnologias de divulgação em massa por e-mail. Segundo Saldanha (2007), as pessoas que viveram esse momento o consideram um marco na dança de salão brasileira sinalizando um novo momento no meio profissional. O evento contou com sete professores internacionais que vieram pela primeira vez ao Brasil, além de Jaime, que também deu aulas. Foram palestras e aulas práticas de diversos ritmos distribuídas pelos quatro salões do hotel. Dois anos depois, em 1997, Jaime realizou o segundo Encontro Internacional de Dança de Salão, onde o número de participantes quase dobrou contando com 1.500 inscritos. É a primeira vez que encontramos na literatura, mesmo que seja em uma biografia, menção a eventos de dança de salão, que é o objeto de estudo desta pesquisa. Além de ser criador de uma metodologia de ensino de dança de salão para grupos e de ser o responsável por trazer o modelo dos grandes eventos internacionais para o Brasil, no campo dos espetáculos de dança de salão Jaime também foi pioneiro. Saldanha (2007) relata que o primeiro espetáculo de Jaime Arôxa foi “Salão Brasil” no Teatro João Caetano em 1994, o primeiro do Brasil com uma companhia profissional. Esse espetáculo influenciou o surgimento de outras companhias de dança de salão, como a Mimulus, de Jomar Mesquita e a Cia Aérea de Dança de João Carlos Ramos. Além disso, Jaime também atuou como coreógrafo, dançarino, consultor e júri em trabalhos para a TV, teatro e cinema. Arôxa sem dúvidas abriu caminhos na dança de salão brasileira, ele criou e desenvolveu a metodologia da dança de salão aqui no Brasil. Depois dele, podemos observar algumas variações, mas todas baseadas no seu modelo: o método criado por ele é tão difundido que qualquer professor que inicia a carreira hoje estará usando suas técnicas mesmo sem nunca ter tido contato com ele. O método é pautado por elementos da pedagogia e de metodologia de ensino em artes e atividades físicas. É necessário que as pessoas tenham o mesmo nível na turma, que elas tomem conhecimentos de elementos básicos da atividade, como equilíbrio, ritmo, condução, 63 recepção, deslocamento e passos básicos. É fundamental que o ensino se desenvolva a partir dos movimentos e técnicas mais básicas e posteriormente ir para as mais complexas. Ele também examinou e classificou os movimentos em básicos, variações, evoluções, de ligação, etc.. É importante lembrar que a transmissão desse sistema se consolidou na prática e na oralidade, até o momento, não temos conhecimento do registro do método em meios escritos ou audiovisuais. Ainda sobre a metodologia desenvolvida por Jaime Arôxa, Perna (2001) afirma que é baseada na separação em pequenas partes dos movimentos e que é utilizada na maioria das escolas de dança de salão. Observamos aqui também, que o trabalho de Jaime Arôxa, é totalmente voltado para o público pagante da classe média, que quer aprender a dançar, e que geralmente não tem nenhum contato anterior com a prática, portanto, suas escolas sempre se localizaram em bairros nobres do Rio de Janeiro, atendendo a um público de alto poder aquisitivo. Chamo a atenção aqui para o fato de que a crescente profissionalização da dança de salão, a partir de Arôxa, vai sempre nesse sentido, e que os bailes, movimentos e formas de transmissão de conhecimentos presentes nos bailes do subúrbio parecem ter tido menos influência desses padrões nascentes. Outro nome importante para o desenvolvimento da dança de salão no Rio de Janeiro é Carlinhos de Jesus, talvez o nome mais conhecido do grande público e com certeza o mais presente em mídias como filmes e novelas. O grande mérito de Carlinhos de Jesus é o de ter levado o samba e a dança de salão para as grandes mídias. Perna (2001), afirma que foi com Stelinha Cardoso, dançarina e sua sócia durante algum tempo, que Carlinhos desenvolveu sua técnica de ensino, Stelinha, por sua vez aprendeu sobre didática com Jaime Arôxa e Maria Antonieta, o que leva a crer que a origem das primeiras estruturas didáticas tenha sido realmente com Jaime. Carlinhos de Jesus, além de ter feito muitos trabalhos como dançarino onde alcançou projeção nacional, também viajou pelo mundo com sua companhia. Para esclarecer um pouco mais a posição de Carlinhos de Jesus no cenário da dança de salão carioca, é válido citar esse trecho de Massena (2006), que matriculou-se simultaneamente nas academias de Jaime Arôxa e Carlinhos de Jesus para sua pesquisa de campo e registrou as seguintes percepções.

“A primeira diferença que me chamou a atenção entre as duas academias foi o fato de Arôxa ser meu professor, enquanto não vi Carlinhos de Jesus durante os meses em que frequentei sua academia. Acredito que isso se deve ao fato de Carlinhos de Jesus já ter conquistado uma posição sólida, um nome de prestígio no mundo da 64

dança de salão e fora dele. Carlinhos de Jesus se transformou em um símbolo do malandro, do carioca, do carnaval (já que também é coreógrafo da comissão de frente da Mangueira e desfila todo ano no sambódromo). Ele faz shows em parceria com nomes famosos como a bailarina clássica Ana Botafogo e foi inspirador de um personagem cômico que faz sucesso em um dos programas de maior audiência da TV Globo: O professor de dança “Coisinha de Jesus”, do Casseta e Planeta. Jaime Arôxa, embora tenha muito prestígio no universo da dança de salão, não é tão conhecido fora dele como Carlinhos de Jesus. Apesar de fazer shows e até fazer participações em programas de TV, não tem a mesma visibilidade. Para atrair alunos para sua academia precisa continuar dando pessoalmente muitas aulas, ao passo que Carlinhos de Jesus pode prescindir de dar aulas devido a sua fama e o peso de seu nome.” (MASSENA, 2006, pp. 27-28)

Dentre depoimentos de outras pessoas e do próprio Carlinhos, podemos perceber que ele atingiu uma espécie de estrelato que nenhum outro dançarino de salão atingiu. Ele é o representante do sambista e dançarino de salão em meio a outros artistas famosos, como músicos e atores. Carlinhos abriu caminhos para o samba de gafieira no teatro e na TV que puderam ser explorados por outros profissionais depois, mas reforçamos que ninguém do mundo da dança de salão no Brasil atingiu até hoje o seu nível de fama. Já o dançarino e professor Jimmy de Oliveira, conforme Perna (2001), começou a dançar com 14 anos e com 17 iniciou seus estudos em balé clássico, pouco tempo depois, apresentado ao mundo da dança de salão, desistiu do balé e seguiu nos salões. Ainda segundo o autor, depois de um ano estudando com Jaime Arôxa foi promovido a professor, mas logo depois abriu sua própria academia, Perna (2001) ressalta que sua didática é prática e objetiva, e seus alunos são conhecidos por terem um desenvolvimento mais rápido. Souza (2010) investigou Jimmy e seu estilo de dançar samba de gafieira, através de entrevistas e observações, e afirma que ele considera o aprendizado do samba “tradicional” fundamental, antes de aprender o estilo “funkeado”, criado por ele. Jimmy revela a Souza (2010) ainda, que, o ponto chave do seu estilo não está nos movimentos que ele criou, mas em todo um “comportamento corporal” adequado para se dançar determinada música. Sousa (2010) considera que Jimmy é reconhecido por seus pares como um dançarino que revolucionou o samba de gafieira ao criar seu estilo, o “samba funkeado”4, e ele atribui esse reconhecimento ao fato de ter inovado sem ter alterado as bases da dança. A tese de Souza (2010), revela que o estilo criado por Jimmy se apoia, segundo ele, nas mudanças ocorridas em músicas brasileiras 4 Para ver Jimmy dançando o estilo de samba funkeado: https://www.youtube.com/watch?v=ytTI3lmgZ7U 65 na década de 1990, onde ele percebeu “uma batida meio hip-hop, meio funkeada” no samba. Então, utilizando sua experiência em dança de rua que possuía forte influência das movimentações de dança do astro pop Michael Jackson, seguiu a tendência musical criando uma proposta corporal diferente quando dançava o samba de gafieira. Percebemos dessa forma, que o mundo da dança de salão vai se estabelecendo como uma teia de influências, cada pessoa, cada encontro, repercute com bastante potência. O que temos hoje, foco da pesquisa, é resultado de toda essa história, mas sobretudo, fertilizado por esses quatro personagens. Portanto, os caminhos que o samba de gafieira percorreu para chegar às configurações atuais inicia com as formas populares de dançar das classes pobres e trabalhadoras do Rio de Janeiro, influenciadas pela cultura negra. Passou por momentos de expansão e de encolhimento ao sabor dos contextos culturais. Quando a classe média passa a frequentar as gafieiras num sentimento de resgate de uma cultura tradicional carioca, aos poucos, vai consolidando-se uma maior profissionalização da área para atender às demandas criadas pelos novos frequentadores. Uma vertente um pouco mais distante dessa estrutura extremamente profissionalizada, continua a existir nos subúrbios do Rio de Janeiro, estando mais próxima dos divertimentos da classe trabalhadora como na época do maxixe. Com o foco voltado para esse segmento profissionalizado e que se configura de acordo com as demandas do mercado, chegamos aos eventos que iremos investigar. Os quatro grandes nomes aqui citados e que contribuíram para a formação do campo, já foram investigados em alguns trabalhos e biografias. Hoje, as pessoas que estão à frente dos eventos SM e GB já são uma geração de profissionais provenientes dos quatro citados e de seus contemporâneos. Essa nova geração, conjuntamente as novas formas de comunicação através de redes sociais e YouTube estão promovendo grandes e rápidas transformações no mundo do samba de gafieira, o que iremos explorar nos capítulos seguintes. 66

CAPÍTULO 2 - DIFERENÇAS E DIÁLOGOS ENTRE AS GERAÇÕES DO SAMBA DE GAFIEIRA

“Tem a galera que tem aquela dança instintiva, que construiu isso aqui. (…). Aí você tem uma segunda geração que é a galera que pegou aquilo, amarrou, criou um método e foi ensinar, então você tem esses dois pólos.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

A partir dos relatos coletados, identificam-se três gerações de dançarinos de samba de gafieira no Rio de Janeiro, e não apenas duas: 1) a geração dos “intuitivos”; 2) a geração dos profissionais; e 3) a nova geração. As características básicas de cada geração estão na forma de apreensão e transmissão dos conhecimentos inerentes ao samba de gafieira. Enquanto os “intuitivos” são aqueles indivíduos que aprenderam a dançar de forma mais orgânica, sem uma configuração estruturada de ensino-aprendizagem, a geração dos profissionais foram os primeiros a sistematizar esse conhecimento a fim de transmiti-lo a um público disposto a pagar para aprender; e a “nova geração” é composta em sua maioria por indivíduos jovens que aliam ferramentas da internet às melhorias no processo de profissionalização. Essas divisões estão ancoradas na dicotomia entre “inato” e “adquirido” e segundo Veiga (2011) é um debate que está continuamente presente no mundo do samba de gafieira e em outros campos, “semelhante discussão ocorre no campo do futebol e de outros esportes, entre a arte, o prazer (...) e o profissionalismo, a disciplina e a técnica (...)” (VEIGA, 2011, p. 247). Em trabalhos anteriores (Veiga, 2011 e Souza, 2010), a diferença entre os “intuitivos” e os profissionais já foi identificada e discutida através do inato e do adquirido no mundo do samba de gafieira, além de retomar essa discussão, identificamos que dentro da categoria dos profissionais, vem se delineando um novo grupo com características próprias e que se denomina de “nova geração”. A nova geração difere, portanto, não apenas dos inatos, mas também da primeira geração de profissionais.

2.1 Os intuitivos, os profissionais e a técnica

A geração dos intuitivos, como os próprios atores sociais denominam, é composta por pessoas que aprenderam a dançar de forma mais orgânica, nos bailes ou em festas familiares. Como já vimos, esses hábitos faziam parte dos esquemas de lazer da classe 67 trabalhadora na primeira metade do século XX no Rio de Janeiro. Dessa geração, o ícone foi Maria Antonietta, que se tornou professora na Academia Moraes, única no Rio de Janeiro na década de 1940. A academia Moraes, ao que tudo indica, era remanescente de uma época em que a dança de salão fazia parte da educação das classes mais abastadas, mas à medida que a frequência desses indivíduos nas atividades dançantes foi diminuindo, a academia Moraes foi reunindo um público misto, incluindo também danças populares, como o samba de gafieira. O ensino era particular e “artesanal”, o público que procurava aulas era pequeno, pois a grande maioria do público dançante das gafieiras aprendia no baile mesmo. O pouco desenvolvimento das técnicas de ensino, não significava ausência de técnica corporal. Pelo contrário, de acordo com as considerações de Mauss as técnicas do corpo, são “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.” (MAUSS, 2003 p. 401). A questão da falta de técnica é uma confusão que pode surgir, diante de palavras utilizadas nos discursos para se referir a esses dançarinos, como “intuitivos” ou “instintivos”. Essas palavras remetem a modos de ação ou processamento de informação por vias diferentes da racional, seria portanto, uma dança gestada e desenvolvida através da “intuição” ou do “instinto” e não da razão.

“Não dá nem pra falar que as técnicas mudaram, porque é assim, antigamente não tinha técnica. A gente foi colocando a técnica porque a gente precisava academizar os movimentos para poder ensinar. Mas a galera da antiga, não que eles não fossem técnicos, não fossem brilhantes, mas a dança deles era muito mais intuitiva.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora)

No entanto, o que é mais seguro é que essa dança era desenvolvida por meio da observação e imitação, processos indiscutivelmente racionais. Portanto, “é preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição.” (MAUSS, 2003, p. 404). Essa forma de transmissão dos modos de dançar que circula entre os chamados intuitivos, seria o que Mauss denomina de “uma imitação prestigiosa”. Que ocorre quando “a criança ou o adulto imita os atos bem- sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela” (MAUSS, 2003, p. 405). O mundo do samba de gafieira é um mundo baseado na hierarquia e no prestígio que se consegue através da dança, “a hierarquia, embora não formal, é constituída a partir do desempenho na dança e da conquista de ‘um nome’ (...)” 68

(MASSENA, 2006, p. 88). E ainda, “existem hierarquias que se articulam diretamente ao domínio da técnica dos movimentos da dança de salão.” (SOUZA, 2010, p. 168). Portanto, os indivíduos mais hábeis são os que possuem maior autoridade e prestígio, e no salão seriam imitados pelos novatos. No salão, os papéis de ação e observação se alternam o tempo todo, criando assim um ambiente perfeito para a imitação prestigiosa, que acontece quando “o indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros.” (MAUSS, 2003 p. 405). Observamos também que os diversos modos de fazer de cada geração misturam-se no mundo do samba de gafieira no Rio de Janeiro. Isso é comum nos mundos da arte, pois as inovações na maioria das vezes não significam um declínio absoluto de antigos hábitos. “Cada vaga de inovações deposita uma camada de sedimentos onde se reencontram todos os praticantes e todos os amadores que não podem, ou não querem, reconverter-se e acompanhar a última onda de novidades.” (BECKER, 2010, p. 286). Na verdade, à medida que vamos compreendendo o mundo do samba de gafieira no Rio de Janeiro, percebemos que as divisões por gerações estão mais ligadas aos modos de fazer do que ao tempo. Observamos que as várias gerações coexistem ao mesmo tempo e muitas vezes no mesmo espaço. A geração que trouxe novos modos de fazer nas questões de transmissão e assimilação na dança de salão foi encabeçada por Carlinhos de Jesus e Jaime Arôxa (PERNA, 2001; SÃO JOSÉ, 2005; MASSENA, 2006; SOUZA, 2010; VEIGA 2011). Eles passaram a representar o dançarino-profissional, e não mais o dançarino por prazer-lazer. Semelhante processo é observado no futebol quando “o ‘futebol-arte’ praticado por ‘malandros’, ‘mulatos’ e ‘dançarinos’ começou a ser questionado (...) e a predominância da jogada ensaiada sobre o improviso caracterizam essa nova Bildung esportiva.” (GIL, 1994, p. 8). Tanto o samba como o futebol constituem áreas no imaginário popular e mesmo no da maioria dos praticantes, distante de concepções profissionais onde durante muito tempo “o jogador não era visto como um ‘profissional’ e sim como um ‘artista da bola’.” (PRONI, 2000, p. 138). Segundo Veiga (2011), a dança “contaminada pelo dinheiro” era um motivo de objeção por parte dos dançarinos antigos que eram defensores dos passos livres e improvisados. Não apreciavam a dança dos jovens, consideravam uma dança ensaiada e sem emoção. “Parte da disputa está ligada à (...) mudança das referências da Zona Norte para a Zona Sul, com o sucesso das aulas nas academias cariocas.” (VEIGA, 2011, p. 281). Mas se 69 antes, o processo de profissionalização e ensino da dança de salão era o novo, que chegava para confrontar o estabelecido, hoje é o sistema vigente.

“Hoje em dia podemos dizer que é totalmente ‘acadêmico’, se você não aprende o samba na academia (de dança), você não vai conseguir dançar, você vai dançar aquele pagodinho ali no bar, mas dançar samba de gafieira, você precisa entrar numa academia, numa escola de dança.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora)

Vamos observando dessa forma, que a academia de dança passa a ocupar um lugar central no mundo do samba de gafieira, lugar que antes era ocupado pelas gafieiras como a Estudantina, por exemplo. Veiga (2011) alerta para uma “atomização” do mundo da dança social, onde o público que antes se concentrava na gafieira, agora se dilui nos “bailinhos” das academias. E constatou que “hoje são a Zona Sul e a Lapa renovada que atraem o público jovem de classe média para ambientes de dança, convertidos em ‘lugares da moda’.” (VEIGA, 2011, p. 282). Antes de Veiga, São José (2005), em pesquisa realizada também na Estudantina, já apontava que a proliferação das escolas de dança de salão na cidade do Rio de Janeiro e os “bailinhos” eram motivo de uma diminuição da frequência dos bailes na Estudantina. Ao iniciarem o processo profissional, como bem comparou Veiga (2011), Carlinhos e Jaime personificam as figuras do iniciador e do guru propostas por Fredrik Barth:

“(...) é possível relacionar o discurso de Jaime Arôxa sobre seu aprendizado à figura do guru, ao ‘recitar a linhagem de mestres que o transmitiram, para legitimar a posse desse conhecimento’. A formação de Carlinhos de Jesus, por sua vez, menos centrada na palavra do que na ação ritual, evoca dons e mistérios à maneira do iniciador. Um é o mestre formador; o outro, o performer inimitável.” (VEIGA, 2011, p. 247)

Além disso, de acordo com Barth (2000) o guru e o iniciador são duas modalidades opostas de gerenciamento do conhecimento na interação social. E estas modalidades estão presentes nos diferentes modos de fazer das diferentes gerações do mundo do samba de gafieira. O iniciador prevalece na geração dos intuitivos e a modalidade do guru prevalece nas gerações dos profissionais e na nova geração. Segundo Barth (2000), ao guru competem atividades como estudo, viagens, acúmulo de conhecimento, bem como as tarefas de ensinar e 70 formar grupos de discípulos, dentre os quais estariam sucessores em potencial. “Trata-se de reprodução cultural ativa e intencional por meio de um trabalho sistemático e permanente como educador.” (BARTH, 2000 p. 145). Esse modo de fazer observa-se na grande maioria dos professores da geração profissional e na nova geração. No entanto, existem alguns professores, que mesmo atuando nas atividades de ensino, também guardam características do iniciador identificadas por Barth nos sacerdotes da Nova Guiné tradicional, “onde as pessoas que possuem conhecimentos excepcionais não os ensinam, ainda que os empreguem para coordenar rituais públicos e iniciar noviços.” (BARTH, 2000 p. 145). Preferimos considerar que os profissionais atuam em uma faixa entre esses dois polos, quanto mais próximos e envolvidos com os modos de fazer dos intuitivos, mais próximos do polo iniciador e, quanto mais próximos da nova geração, do polo do guru. As novas relações profissionais estabelecidas no ambiente de ensino transformaram também as possibilidades técnicas da dança.

“A dança evoluiu tecnicamente, porque ela foi pra sala de aula, pessoas começaram a pensar a dança e não só dançar. Se você entende que o balanço é um movimento que ‘faz assim ó’, você não tá pensando, é pra um lado e pro outro vai! Agora, quando um aluno tá te pagando e fala: ‘professor, eu não entendi’, aí você diz pra ele: ‘quando você abre a esquerda, você transfere o peso, você desloca a perna direita, marca sem transferir e volta’. Daí eu evoluo, porque eu pensei, eu criei um método para ensinar, quando eu crio um método para ensinar, abre um espaço pra eu criar em cima daquilo, o entendimento, a clareza do movimento, abre a possibilidade para você criar.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

O processo descrito por Rodrigo revela que o movimento é pensado não apenas para o ensino, que no processo de análise e decomposição do movimento, o professor se apropria melhor dele e, entendendo-o mais “racionalmente”, pode transformá-lo, criando variações e estilos. Além dessa evolução da técnica promovida pelo processo de ensino, observa-se muitas influências externas nesse primeiro movimento de profissionalização. São José (2005), analisa as mudanças introduzidas no samba de gafieira por Jaime Arôxa e Jimmy de Oliveira. No final dos anos 1980, Jaime, além de ter contribuído com a sistematização e propagação da dança de salão, incluiu passos de tango argentino no samba. Posteriormente, outras variações na coreografia do samba de gafieira são implementadas oriundas das criações do professor Jimmy de Oliveira, inspirado pela dança de rua e danças do cenário pop, especialmente as 71 realizadas por Michael Jackson. Notamos que esse movimento “para fora” foi invertido, e que hoje, os profissionais buscam referências para criações e variações de movimentos, na dança dos intuitivos, em um tipo de retorno à origem. Enquanto os profissionais procuravam se distanciar dos intuitivos, a nova geração empenha-se em um resgate dessa dança como fonte de conhecimento do samba de gafieira, como veremos mais adiante.

2.2 A Nova Geração

É importante destacar que não existe consenso entre os entrevistados sobre fazer parte de uma “nova geração”. Identificamos dois pontos de vista: um que enxerga um afloramento da nova geração como algo natural e outro que, ao assumir um posicionamento como nova geração, assume propositalmente uma quebra com padrões anteriores. A perspectiva que considera a nova geração como algo natural relaciona os novos modos de fazer aos novos hábitos do cotidiano. O advento de uma nova geração estaria aliado às mudanças nas vestimentas para o baile e o uso das novas tecnologias de comunicação nos processos de transmissão do samba de gafieira, o que seriam incorporações naturais e não estratégias de oposição ao estabelecido. A fala de Rodrigo Marques ilustra bem esse posicionamento:

“O meu olhar sobre a nova geração é diferente, a geração que tava atuando quando eu comecei a dançar, Bolacha, Jimmy, Álvaro, Chocolate, Sheila Aquino, Yolanda Reis, Gerson Reis, Jaime Arôxa, Carlinhos de Jesus, eles são a nova geração! Eu, Léo, Kadu, Robinho, Gustavo, Robertinha, Andressa, a galera de 30 pra baixo, nós não somos nova geração, nós não somos nada! A gente não contribuiu com nada. A nova geração são eles, eles estão na ativa, eles transformaram muita coisa, eles são os grandes donos das escolas ainda e eles só vão sair do patamar de nova geração, quando a velha guarda morrer. Ainda tem uma geração anterior a eles, que é Valdeci, Soninha, Os Mais da Gafieira5, Osvaldo, Marquinhos Copacabana, Vera Reis, tem uma galera de antes, que ainda estão aí trabalhando, estão vivos, eles são os das antigas. Eu não consigo ver o Bolacha hoje com 50 anos e achar que ele é das antigas, ele está produzindo, ele tá formando garotos que estão concorrendo comigo. Essa é minha visão sobre nova geração, isso pode fazer muito sentido para outras pessoas e eles se acharem diferentes, como nova geração, mas eu estou engatinhando ainda. Eu sou só um cara que tá fazendo um evento. Se você só tem

5 Grupo dos melhores dançarinos antigos, organizado por Valdeci para se apresentar mediante improviso em bailes. Para ver Os Mais da Gafieira: https://www.youtube.com/watch?v=EIobu0Hd8t4 72

duas categorias, nova geração e a galera da antiga, eu não tenho termo para mim, eu não sou nada, para mim é isso.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

O posicionamento revela uma proximidade aos discursos dos mais antigos, o que pode significar uma busca por legitimação na hierarquia. Em outros trechos, percebemos que o entrevistado admite e utiliza o termo “nova geração” para designar indivíduos que trazem inovações, ora se colocando dentro, ora se colocando fora desse contexto: “Quando veio a nova geração, era necessário deixar entrar com o tênis, com a calça jeans, não podia calça jeans! Como é que na década de 90 (1990) na dança de salão ainda não se podia?” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora). Percebemos que o entrevistado enxerga a nova geração como um acontecimento natural da época, como uma coisa que veio espontaneamente de acordo com as modas, com as novas tecnologias e contextos atuais. O entrevistado nega uma identificação com um movimento deliberado de construção ou participação em uma nova geração. Talvez essa dificuldade se assente na concepção de que para o novo nascer o velho tem que morrer, e um desejo de não se indispor com as gerações anteriores e sim cooperar com elas. Essas diferenças de posicionamentos revelam duas formas pelas quais as mudanças podem ocorrer em um mundo da arte: “podem acontecer aos poucos, quase imperceptivelmente, ou podem desencadear graves conflitos entre aqueles que delas tiram proveito para a sua notoriedade e aqueles que serão lesados.” (BECKER, 2010, p. 256). A forma de se vestir para o baile é exemplo de um reflexo natural do momento atual. Os relatos apontam também que pode existir uma certa resistência dos mais antigos para aceitar as novas formas de vestimenta para os bailes.

“Os caras antigamente vestiam terno de linho, camisa, calça, cinto, sapato social, não é porque eles achavam isso bonito e que tinha a ver com a dança, é porque todo mundo usava isso. A roupa que se usava era essa, hoje em dia a gente usa tênis, calça jeans e camisa, então a gente vai no baile como a gente se veste.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora)

“Então por esse medo de acabar a tradição ou ninguém reconhecer mais eles, eles acabam às vezes não valorizando, não respeitando o nosso espaço que é esse, de se vestir diferente. Nós estamos fazendo uma coisa boa que é levar o samba de gafieira para um público que não era atingido, que tinha preconceito, que são os jovens.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora) 73

Em outro momento, Rodrigo também explica algumas mudanças técnicas na dança do samba de gafieira como uma consequência natural dos modos de agir e vestir atuais e não como uma mudança intencional.

“O ‘balão apagado6’ do Valdeci é diferente do ‘balão apagado’ do Robinho, a base é a mesma, mas o corporal é completamente diferente. O Valdeci7 faz mais em pé, ele desassocia muito menos o tronco do quadril, e fica mais reto. E o Robinho faz muito mais inclinado, requer um corporal muito maior. Aí você fala assim: ‘poxa mas é porque o Robinho8 é jovem né, tá com a coluna inteira e o Valdeci já tá segurando a onda’. Mas quando o Valdeci tinha a idade do Robinho fazia o mesmo ‘balão apagado’, mais em pé. O Valdeci explica que era porque o dançarino, todo no linho, com a camisa pra dentro da calça, com cinto combinando com sapato, se fizesse um ‘balão apagado’ onde deslocasse muito o quadril, a camisa de linho saía da calça. Por isso o ‘balão apagado’ do Valdeci é aqui, porque não sai, então a roupa interfere muito na movimentação. Hoje você vê os movimentos de efeito por exemplo, onde o homem bota a mão no chão, em qualquer competição antigamente, se você botasse a mão no chão, caracterizava queda, você tava fora, hoje o cara bota a mão no chão. Por que? Porque é uma influência dos jovens, os jovens sentam no chão, a roupa não é mais de linho, mas quando eles se deparam com a imagem de um dançarino mais tradicionalista, ele respeita.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

Percebemos novamente um discurso que coloca as mudanças como elementos naturais e não programados, apenas evoluções naturais dos novos hábitos do cotidiano. Observamos também uma visão de reconhecimento e valorização dos dançarinos mais tradicionais. Conseguimos identificar também nas entrevistas, posicionamentos propositalmente contrários às antigas convenções. A primeira fala é de Léo Fortes, o idealizador e produtor do Sambamaniacos e a segunda fala é de Kadu, um dos professores que foi atingido positivamente por essas novas oportunidades:

6 Movimento do samba de gafieira onde o casal gira com o corpo colado e ao mesmo tempo inclinam o tronco e o quadril, ora para frente, ora para trás. 7 Dançarino que aprendeu a dançar junto aos intuitivos, mas hoje também atua ensinando. Para ver Valdeci dançando: https://www.youtube.com/watch?v=G1h-KUFZBOc 8 Dançarino que se alinha com os modos de fazer da nova geração. Para ver Robinho dançando: https://www.youtube.com/watch?v=dBDzlBUQ0Aw&t=140s 74

“A ideia do Sambamaniacos surgiu em 2010, eu queria fazer um evento que fosse ajudar a divulgar a nova geração que tava surgindo e que não tinha muita oportunidade. Antigamente eram sempre os mesmos que viajavam, eu já tava no mercado nessa época, já tava começando a fazer muitos trabalhos junto com esses caras. Mas eu via uma galera talentosíssima que não tinha oportunidade, então o intuito era trabalhar com a galera da nova geração da época. Recebi muitas críticas, e as críticas eram em relação a escolha dos professores que iam dar aula, que eram mais novos, o valor do cachê que era baixo” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora)

“Aí em 2011 o Léo Fortes teve uma ideia maravilhosa que foi a de fazer o Sambamaniacos. Ele mostrou uma galera incrível pro Brasil e fez com que essa galera tivesse espaço. No início, infelizmente, os graúdos, os coroas, os nossos mestres que a gente ama, realmente a gente adora eles, foram muito resistentes com a ideia. O Léo apanhou muito porque tinha aquele incômodo: ‘como é que faz um evento e não me convida?’, tinha esse lado que era péssimo. A ideia do Léo sempre foi a de juntar os mais velhos com os mais novos, mas no início, se ele fizesse isso, não ia ter lugar pros mais novos.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora. Grifo nosso.)

O mundo do samba de gafieira possui convenções pautadas na hierarquia, no prestígio e no tempo de dança (VEIGA, 2011; SOUZA, 2010). O conceito de convenção “abrange perfeitamente os procedimentos normalizados de fazer as coisas que caracterizam todas as artes.” (BECKER, 2010, p. 70). Portanto, um procedimento comum até então, eram os quadros de professores de congressos ou eventos serem preenchidos por professores mais famosos e antigos, de maior prestígio e com mais tempo estabelecido no mercado. O SM promoveu um rompimento com essa convenção. Sobre as mudanças no mundo da arte, Becker destaca:

“Qualquer ataque às convenções e à estética nelas implícita representa, finalmente, um ataque ao sistema de estratificação vigente. (...) Ora, uma contestação dos costumes (as convenções para o caso que nos ocupa) representa de fato uma contestação à estrutura social vigente (entenda-se: a organização de um mundo da arte). Nos mundos da arte, estes grupos e os inovadores entram, portanto, em conflito aberto com o sistema hierárquico que os rege e lutam pela sua substituição.” (BECKER, 2010, p. 253) 75

A existência de um evento de samba de gafieira no Rio de Janeiro, sem a presença de ao menos um nome “de peso”, colocava em risco a hierarquia do mundo da arte em questão. Esses indivíduos inovadores conseguiram demonstrar que o mundo do samba de gafieira poderia funcionar apenas com o profissionalismo e com o apoio das redes sociais. A estrutura do prestígio e hierarquia existente foi profundamente abalada, principalmente com o sucesso do evento e o crescente público que aderiu a esse novo formato. Ou seja, segundo Becker (2010), o novo formato conseguiu pessoas suficientes para cooperar. Ao mesmo tempo, novos nomes entravam em cena e novas reputações começaram a ser construídas. “Os mundos da arte constroem sistematicamente reputações, porque conferem importância aos indivíduos, àquilo que eles fizeram e ao que são capazes de fazer.” (BECKER, 2010, p. 287). Os jovens passaram a ser legitimados por outros jovens, pela internet e pelo público (que buscava um trabalho cada vez mais profissional para consumir), e não mais pelos seus mestres. Eles estavam conscientes disso, era uma barreira que eles pretendiam romper e um conflito que eles estavam dispostos a administrar. Relatam que enfrentaram muitas críticas dos mais antigos: “Críticas pelo nosso pouco tempo na dança e já querer fazer evento. Mas na verdade é porque não eram chamados né, era voltado pro pessoal da nova geração.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Podemos afirmar, desse modo, que os dois tipos de mudança estão em curso no atual mundo do samba de gafieira: mudanças que são implementadas aos poucos, nos modos de vestir, se comunicar, na evolução da técnica que o ensino promoveu; e mudanças bruscas intencionais, a fim de desestruturar a ordem estabelecida e conquistar espaço. A questão da profissionalização é apontada frequentemente como uma das principais diferenças entre a nova geração e as precedentes; as entrevistas apontam que o nível de profissionalização vem aumentando entre a nova geração. Com exceção dos ícones da geração profissional (Carlinhos e Jaime), os demais dançarinos antigos acabavam se perdendo entre a boemia, o prazer da dança, do reconhecimento como artista e os compromissos profissionais. Interessante notar que tais comportamentos estavam ligados à cidade em si e em como o samba de gafieira era experienciado no Rio de Janeiro, pois os relatos apontam que em São Paulo, na mesma época, uma estrutura profissional se delineava de forma mais consistente.

“No Rio de Janeiro havia uma dificuldade muito grande de se pensar na dança de salão como negócio e de uma maneira mais profissional realmente. Então você tinha 76

o Carlinhos de Jesus, o Jaime Arôxa, o João (Carlos Ramos) com a Cia Aérea9, fazendo trabalhos mais consistentes, o João nos palcos, o Carlinhos na televisão, o Jaime, pedagogicamente na sala de aula. Fora isso, o Rio de Janeiro tinha uma tradição de figurinos mal-acabados, de coreografias mal ensaiadas, de atrasos em sala de aula, de falta de preparação para aula, de baile com várias gafes, erros e atropelos e tal. Eu acho que a nossa geração começou a perceber a nocividade disso, como isso era ruim pra nós. Houve uma fase que os professores de samba que iam para fora do Brasil eram quase todos de São Paulo, a galera do Rio não saía daqui. Mas o samba era do Rio, a gente tinha que ocupar o nosso espaço também, não desmerecendo os profissionais de São Paulo, mas era um fato que a gente tava perdendo esse lugar. Então começou-se a investir na qualidade técnica, nas coreografias, na qualidade da aula, na informação bem passada, no cumprimento dos horários, nos eventos de maior qualidade e a cara do Rio começou a mudar. É importantíssimo que tenha o Gafieira Brasil, por exemplo, que pra mim é uma virada de página, foi quando o Rio de Janeiro disse: ‘nós sabemos fazer o maior evento de dança do Brasil’.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora)

Essa maior profissionalização não diz respeito somente à técnica de dança, mas principalmente aos aspectos relacionados ao desempenho da profissão, como cumprimento de horários, coreografias com maior qualidade técnica, melhores figurinos, desenvolvimento da didática e expertise na produção de eventos. Além de prestígio e reconhecimento, os novos profissionais passaram a buscar o retorno financeiro, o respeito pela profissão e a segurança profissional. Os grandes professores que iniciaram o processo profissional, foram os primeiros a se aperceber disto, mas se durante muito tempo esse lugar ficou reservado para poucos e grandes, agora o que se observa é uma descentralização e expansão do campo. São muitos profissionais mais jovens vislumbrando um lugar ao sol, num ciclo onde as redes sociais alimentam a demanda do mercado e vice-versa. Diante dos novos formatos de eventos e da entrada em cena da nova geração, percebemos duas diferenças fundamentais em relação a geração anterior: um perfil profissional mais aguçado e o uso das redes sociais para divulgação artística e profissional. Em se tratando de um mundo da arte a mudança “acontece de fato sempre que alguém descobre um meio de reunir os recursos materiais e humanos necessários, ou reformula completamente o trabalho de tal modo que este não dependa dos meios comuns.” (BECKER, 2010, p. 54).

9 Cia de Dança criada pelo Circo Voador sob responsabilidade de João Carlos Ramos. (Fonte: PERNA, 2001, p. 171) 77

Existe ainda uma outra mudança que foi induzida pelo público consumidor e não por quaisquer das gerações, que foi a especialização em um só estilo dentre os vários da dança de salão. Antes, os professores ou dançarinos eram “de dança de salão”, hoje são professores de samba de gafieira ou de bolero, ou de salsa, ou de zouk, etc. É uma mudança bem recente, na pesquisa de Veiga (2011), ainda existia a convenção da dança de salão carioca composta por três estilos: o bolero, o soltinho e o samba de gafieira.

“A noite dançante segue num crescendo, passando dos ritmos mais lentos aos mais acelerados. Muda de estilo conforme aumenta o andamento da música e o nível de dificuldade dos passos, tal como ensinam nas academias aquilo que se convencionou chamar de ‘dança de salão’: começando com o bolero, seu nível básico; o ‘soltinho’ ou , seu intermediário, e terminando com o samba, o ritmo mais difícil, na modalidade conhecida como ‘samba de gafieira’, em oposição ao ‘samba no pé’. Embora as danças de salão sejam muito mais variadas, foram essas três variações que se fixaram como a base do ensino nas academias de dança do Rio de Janeiro, se proliferando por todo o Brasil e até mesmo pelo Exterior.” (VEIGA, 2011, p. 180)

A especialização dos estilos foi uma mudança que atingiu a sala de aula, os bailes e os eventos: “Antigamente, não tinha essa divisão, era baile de dança de salão, tocava tudo, você ia pra dançar dança de salão, aí foi passando o tempo e foram criando eventos só de samba, eventos só disso, só daquilo, foi meio que ramificando as coisas.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). Antes, o aluno se matriculava em uma turma de dança de salão e aprenderia os três estilos, quando fosse ao baile, dançaria todos os estilos e os eventos normalmente abrangiam vários estilos. Antes já existiam algumas divisões, como aula de ritmos latinos (salsa, lambada, cha-cha-cha) e aula de dança de salão (bolero, soltinho e samba), e até alguns estilos que já possuíam aulas individuais como o tango. Mas hoje, ao procurar uma escola de dança de salão, o aluno deve escolher qual estilo quer aprender e em qual turma deve se matricular. O trecho da fala de Léo nos dá uma pista do momento em que essa mudança começou a acontecer.

“As turmas de dança de salão já não estavam mais vingando, começaram a morrer, e as turmas de samba bombando. Comecei a dançar em 2005, acho que entre 2007 e 2008 começou a acontecer essa mudança. Acho que foi o público que começou a procurar, foi a demanda, eles chegavam e diziam que não queriam aprender as outras 78

danças que tinha na turma, queriam só samba.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora)

É importante lembrar que essa é uma tendência, mas que ainda pode-se encontrar turmas de dança de salão em algumas escolas e bailes. Essa especialização, em grande parte, definiu o formato e o sucesso dos eventos que abordaremos no capítulo seguinte, pois são eventos especificamente de samba de gafieira. Outra mudança interessante é em relação à fonte dos conhecimentos. Entre os gurus da primeira geração de profissionais e os gurus da nova geração no Rio de Janeiro, nota-se um movimento oposto em relação à busca por conhecimentos e esse movimento será difundido entre os seus alunos posteriormente. Os primeiros profissionais, para se diferenciarem dos intuitivos, buscaram a fonte dos conhecimentos, invariavelmente, fora do mundo da dança de salão carioca. Jaime Arôxa traz para a dança de salão modos de ensino e organização corporal inspiradas no balé, na dança contemporânea e no tango. Carlinhos de Jesus incorpora em suas performances modos de fazer do teatro e da televisão; Jimmy de Oliveira busca inspiração para criar o seu samba funkeado na dança de rua e na dança pop de Michael Jackson; João Carlos Ramos constrói um importante trabalho com a Cia Aérea de Dança com elementos da dança contemporânea. Para ilustrar esse distanciamento do salão que a geração dos profissionais estava promovendo, observemos o relato de Kadu e sua experiência no CCC10, onde seu professor Isnard Manso11, já vinha da linhagem de Jaime Arôxa:

“Lá dentro, às vezes, a gente não enxergava a dança de salão como um ambiente de crescimento real, de desenvolvimento pessoal, de desenvolvimento financeiro, a gente achava que a dança de salão estava condenada a uma ‘breguice’, a uma coisa equivocada. Eu me lembro de Isnard e João também muito cansados de coisas que eles viram acontecer na dança de salão durante muito tempo. Eles não iam a bailes, a Cia Aérea não se apresentava em bailes, o Isnard com a Companhia do CCC também não. Eram sempre as mesmas coisas, era um som que falhava, era um palco que você ensaiava de um jeito e na hora tinha uma bateria em cima, eram muitas coisas, então a gente acabou herdando muito esse ‘ranço’. O CCC tinha uma linha de trabalho que era muito de pesquisa de movimento, que era de desenvolvimento de um caráter artístico da dança, a maneira como o dançarino do CCC se relacionava

10 Centro Cultura Carioca, importante equipamento cultural da Lapa, que entre suas atividades possui uma escola de dança e uma companhia de dança, a Cia CCC. 11 Foi aluno de Jaime Arôxa e João Carlos Ramos, possui também formação em balé e dança contemporânea, criador do CCC. 79

era diferente da maneira como os dançarinos de samba de gafieira in loco se relacionavam. Então eu comecei a perceber que eu ia para o baile e me frustrava muito, porque eu achava que a minha dança não era compreendida, que as damas não compreendiam. Eu, do alto da minha empáfia, da minha falta completa de humildade, considerava que a minha pesquisa, junto com a minha Companhia, tava muito mais longe do que aquilo ali. Só que eu chegava nos bailes e observava as pessoas dançando, eu percebia que só quem não se divertia era eu. Então comecei a me questionar: tem alguma coisa errada, e não é com a dança, é comigo! E aí, eu comecei a questionar determinados afluentes da linha de trabalho do Isnard no CCC que acabaram gerando o afloramento dessa dupla Kadu e Vivi. Os meus questionamentos com o Isnard eram no sentido de saber quando é que a gente ia chegar no salão, pegar isso que a gente faz e dialogar com as pessoas da dança de salão real. Porque existe uma dança de salão real, ela tá no baile, as pessoas estão lá, elas dançam entre si e a nossa dança aqui do CCC não se comunica com essa dança de salão.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora)

O caso do CCC e da Cia Aérea constituem, talvez os exemplos que mais se distanciam da dança dos salões. Mas esse sentimento, esse desejo de separação era muito presente de forma geral na primeira geração profissional. Por outro lado, observa-se na nova geração, um desejo de retorno às origens, ou seja, a dança dos intuitivos passou a constituir a principal fonte de conhecimento do samba de gafieira. E quem começou esse retorno foi uma figura muito importante para compreender as atuais configurações do samba de gafieira no Rio de Janeiro, o professor Carlos Bolacha12.

“Acho que o Bolacha foi um divisor de águas pro samba tradicional, porque num momento da carreira dele, ele pegou movimentos que eram muito tradicionais e que eram tidos como velhos. Num momento em que ninguém queria mais fazer ‘pica- pau’, por exemplo, o Bolacha veio trazendo isso e foi um estouro! Ele conseguiu trazer um movimento que era considerado velho, inadequado, antigo, fora de moda, trouxe movimentos como pica-pau, picadilho e todo mundo falou: ‘caramba!’. O Bolacha trouxe o seguinte sentimento: ‘se eu quero aprender samba, eu tenho que fazer isso daí, eu tenho que aprender um pica-pau’, ‘tenho que fazer desse jeito’. Ele

12 “Defensor do samba de gafieira tradicional, Carlos Bolacha desenvolveu uma forma de dançar com dinâmica e variações de figuras, em que resgata em sua casa a Cachanga do Malandro a essência do samba, conquistando assim, muitos jovens dançarinos, (…) que se identificam com a modernidade associada ao tradicional.” (Fonte: http://carlosbolachablog.blogspot.com/). Para ver Carlos Bolacha dançando na Cachanga: https://www.youtube.com/watch?v=vqnOvTE6XAw 80

foi uma figura muito importante.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora)

O Bolacha foi aluno de Jimmy de Oliveira, mas não seguiu o caminho do samba funkeado, se interessando sempre pela face mais tradicional do samba de gafieira. Ele é proprietário da Cachanga do Malandro, um local onde ministra suas aulas durante a semana e onde todas as sextas comanda um baile como DJ. O baile das sextas-feiras, da Cachanga do Malandro é apontado pelos profissionais entrevistados como um importante ponto de encontro de gerações. Em seu estilo de aula, o Bolacha é um professor que mescla características do iniciador e do guru, ele não decompõe o movimento em pequenas partes, exigindo de seu aluno uma maior atenção, vivência nos salões e uma certa “esperteza” para compreender o movimento. A tendência de pesquisar a movimentação dos dançarinos mais antigos não é novidade, está presente desde a primeira geração de profissionais, mas eles mesclavam esse conhecimento de “dentro de casa” com conhecimentos de “fora”. O que se observa agora é que a nova geração, depois do Bolacha, vive um momento de redescoberta das raízes, e sem muita influência de elementos externos, como na geração anterior.

“Tem um vídeo do Marquinhos Copacabana da década de 90 (1990), que tá rodando a internet agora, um vídeo de 93 (1993), que ele já faz ‘cadeado’, que faz um monte de movimentos que se faz hoje, que as pessoas acham que são novos e não são, a gente tá revisitando isso. A questão é que quando você revisita um elemento como esse, você percebe a riqueza dele, você se aprofunda na pesquisa dele, é aí que as coisas que parecem ser novas surgem. Então dá pra você ter uma linha extremamente tradicionalista mas com um viés muito moderno.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora).

No que se refere a utilização da dança dos intuitivos como fonte, a pesquisa de movimentos, de disposição corporal e de técnica podem ser feitas através de um vídeo antigo que vem à tona, como demonstrado acima, mas pode se dar também de outras maneiras. Ir a um baile tradicional do subúrbio pode ser uma delas, fazer aula com algum dos professores mais antigos pode ser outra. Um dos professores citados é Valdeci, que aprendeu a dançar entre os intuitivos, mas desenvolve um trabalho de ensino e vários professores da nova geração o procuram para fazer aula. “Aí, Vinícius e Flavinha vão lá fazer aula com ele, Vivi e 81

Kadu vão lá fazer aula com ele, tem que fazer, porque esse cara (Valdeci) é a enciclopédia e a gente precisa beber na fonte.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora). Ana Paula, que foi parceira do Bolacha por sete anos, atualmente também pesquisa as movimentações realizadas pelos intuitivos em suas danças. E através de seu relato, nos explica uma outra forma que esse processo pode acontecer. É interessante notar que essa pesquisa se dá como em um verdadeiro laboratório. Eles convidam um casal de dançarinos mais antigo para uma sala de ensaio e observam a dança desse casal e vão construindo um diálogo, a fim de compreender mais a fundo os elementos dessa dança.

“Quando a gente começou a estudar o Marquinhos Niterói por exemplo, eu e o Hugo, a gente falava assim: ‘faz esse gancho aí de novo’, e ele falava: ‘quê?’ - ‘você não tá fazendo o gancho redondo?’ Ele ficava olhando pra gente sem entender do que a gente tava falando. Uma vez estávamos eu, a Camila Varjão e o Ricardo, de São Paulo, que são outros grandes estudiosos junto comigo, estávamos estudando eles, aí a Soninha ‘fez um pé’. Aí na mesma hora eu e a Camila gritamos, olha isso! Aí a Soninha se assustou, aí a gente perguntou: ‘o quê você fez aí agora, como é esse movimento?’ Aí ela: ‘eu não sei, ele só me conduziu’. É muito intuitivo.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora)

Identificam-se nesses processos de compreensão dos movimentos que os dançarinos intuitivos desenvolvem dois recursos - transferência e tradução. Transferência do movimento que o corpo (dos intuitivos) entende e está habituado, para uma compreensão do movimento pela mente. E tradução em palavras, em nomenclaturas, quando tentam compreender o movimento ao encaixá-lo em nomes de passos, como “gancho redondo”, por exemplo. Dessa forma, a principal diferença entre a dança dos intuitivos e das gerações profissionais não é o movimento em si, mas a consciência do movimento, a nomenclatura e a compreensão das partes daquele movimento.

2.3 O YouTube e as redes sociais no mundo do samba de gafieira

A internet e as ferramentas que ela proporciona parecem estar do lado das mudanças graduais e inevitáveis, mas se mostra muito potente. E segundo Becker (2010), algumas práticas artísticas podem transformar-se sem que ninguém perceba isso e mudanças dessa natureza integram-se muito rapidamente nas práticas convencionais. Souza (2010), cita o 82

YouTube como uma das ferramentas utilizadas por professores de “nome” no mundo da dança de salão: “Através de workshops, oficinas, palestras, cursos em congressos, aulas gravadas em vídeo ou imagens editadas para o YouTube, os estilos desses mestres marcam o tempo dessa linguagem (...)” (SOUZA, 2010, p. 169). A autora também aponta para uma influência mútua entre o desenvolvimento do campo da dança de salão e o estabelecimento de novas redes de informação. A internet, através das redes sociais, vem fortalecer o movimento da nova geração. Quando perguntados sobre a utilização do YouTube e das redes sociais, revelam que utilizam mais as redes sociais e que o Instagram, o Facebook e o WhatsApp são utilizados como meio de comunicação e divulgação do trabalho. O YouTube serviu a esse propósito antes das redes sociais, mas hoje, serve como arquivo, como um lugar que se pode pesquisar temas, estudar, etc. O que proporciona mais visualizações e fama são as redes sociais, especialmente o Instagram. “As pessoas te conheciam pelo YouTube, era a porta de entrada, aí depois veio o Facebook, dava pra você ver pelo YouTube e pelo Facebook, aí depois veio o Instagram, Instagram agora é a potência, é tudo muito rápido.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora) Nos relatos, o YouTube aparece como uma plataforma de estudos, possibilita pesquisa de dançarinos, estilos, movimentos, mas o que proporciona divulgação do trabalho e do que está acontecendo no momento são as redes sociais. Afirmam que os vídeos postados no Instagram e no Facebook têm mais alcance e que o YouTube, hoje em dia, para o mundo do samba de gafieira, serviria mais como um arquivo. O YouTube e as redes sociais servem não somente para se mostrar, serve também para conhecer melhor a própria comunidade, analisar a dança de outros profissionais ou aspirantes a profissionais: “se alguém vai dançar em um baile e eu não conheço, eu vou Facebook e vejo a página dele ou eu vou no YouTube e vejo o trabalho dele, vejo como ele dança, então a internet tá em tudo.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora). Constata-se uma total dependência entre o exercício da profissão e a utilização das redes sociais. “Você não consegue se divulgar, fechar trabalho se não for assim.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Explicam que as redes sociais são utilizadas para mostrar o que estão fazendo, quais bailes estão frequentando e em quais cidades ou países participarão de eventos. Além disso, constantemente apresentam seus vídeos dançando nas redes sociais, pois consideram que é importante ser visto continuamente. Contam que os 83 contatos profissionais são todos promovidos pelas redes sociais, e se inicia quando um possível contratante assiste a um vídeo deles dançando e em seguida entra em contato pelas próprias redes sociais. Dessa forma, as redes sociais fazem o papel de cartão de visitas, currículo e portfólio ao mesmo tempo, portanto são espaços muito bem programados para atrair possíveis alunos e contratantes. Apesar de os profissionais mais antigos já utilizarem o YouTube, sites e blogs, a nova geração soube se utilizar muito bem das redes sociais e das várias ferramentas que a internet pode proporcionar para se promover profissionalmente.

“Nós fomos um dos primeiros a fazer marketing pessoal, então tínhamos página, Instagram, começamos a fazer vídeo. Os casais que vieram depois e que tavam procurando um espaço também, faziam se inspirando no que a gente tava fazendo. Então acredito que ao invés deles se inspirarem por exemplo, no Jimmy, no Álvaro, nesses caras, tinha a gente, que já tava fazendo coisas novas pra eles se inspirarem.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora)

Além da utilização do YouTube e redes sociais como vitrine do trabalho, as redes podem ser utilizadas para processos de ensino. O que pode levantar uma polêmica a respeito das trocas de valor.

“Mesmo assim, essa geração de conteúdo gratuito é uma coisa nova. Porque antes as pessoas aprendiam como? Você postava um vídeo dançando, num show, num final de aula e as pessoas colocavam na câmera lenta e tentavam aprender. Agora eu vou colocar na câmera lenta pra você aprender, e isso é de 5 anos pra cá e mesmo assim as pessoas ainda criticam. Em 2009 eu lancei uma série que não foi pra frente no YouTube que chamava-se Gafieira Virtual, não existia esse negócio de dança virtual e eu já via isso, eu já era visionário nesse sentido. Então em 2009, eu gravei um vídeo, onde eu lançava o projeto, explicava o que eu ia postar nos próximos meses. E aí veio uma chuva de críticas e eu não tive coragem de peitar. As críticas eram: ‘você vai virar um professor de YouTube?’, ‘é por isso que a nossa gafieira não vai para frente, porque as pessoas desvalorizam’, ‘você vai desvalorizar a nossa arte’, ‘como você vai dar de graça a única coisa que você tem para viver?’ e etc… E eu não tive força, eu não tive coragem de continuar.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

Todas essas formas de presença nas redes sociais expandem o mundo do samba de gafieira. Ao liderarem essas novas formas de fazer, a nova geração inicia um processo de 84 descentralização de poder que desvincula o samba de gafieira de “grandes nomes” colocando o profissionalismo e a presença no mundo virtual como carros-chefes, ampliando mais uma vez o campo, dado que o mundo virtual desconhece fronteiras. Segundo Becker (2010):

“À medida que uma forma de arte se torna conhecida num perímetro mais vasto, a sua produção aumenta; geralmente, isso deve-se ao aumento do número de produtores ou à introdução de métodos de produção industriais. A expansão do jazz aumentou a partir do momento em que o fabrico e a difusão industrial de discos permitiu aos músicos ouvirem e imitarem aquilo que se fazia noutros sítios.” (BECKER, 2010, p. 265)

Podemos comparar o efeito da produção de discos no jazz ao efeito que o YouTube tem no mundo do samba de gafieira. Pois do mesmo modo que os músicos de jazz começaram a conhecer o que outros músicos faziam em outros locais, sem precisar se deslocar até esses lugares, o YouTube permitiu que dançarinos, alunos e professores pudessem ver como se dançava em outras partes do Brasil e do mundo sem sair de suas cidades. No mundo do samba de gafieira, para conhecer a dança de outra pessoa, você teria que ir a um baile e vê-la dançando ao vivo. Mesmo depois que passaram a existir escassas filmagens de coreografias, trechos de bailes e competições, ainda assim não existia uma plataforma que divulgasse os vídeos em massa. O advento do YouTube pode ser considerado mais importante do que a invenção da filmadora para o mundo da dança. Antes da internet, produzir um vídeo de dança, principalmente de uma dança popular como o samba de gafieira, não garantia o alcance. O YouTube trouxe a possibilidade de difusão rápida, em massa e praticamente gratuita, sem a necessidade de equipamentos complexos. Por exemplo, uma fita VHS em comparação ao YouTube, era capaz de atingir poucas pessoas de cada vez. Se fosse um VHS caseiro, atingiria menos pessoas que um baile poderia atingir, já o YouTube pode expandir o alcance de um baile vertiginosamente. Para se ter uma ideia do impacto da internet e dos vídeos no mundo da dança de salão, Rodrigo relata como a internet é capaz de fortalecer e consolidar o conhecimento sobre as danças de salão e a própria técnica.

“Se dançava uma salsa no Brasil que não era a salsa, era uma caricatura, e entre 2001 e 2003 nós fomos descobrindo o que era a salsa, por causa da internet. Por volta dos 17, 18 anos, a gente entrava na internet, não tinha YouTube, não tinha conteúdo, então entrava em sites tipo Amazon, de vendas, e colocava lá ‘salsa 85

cubana’ ou ‘dança salsa cubana’, apareciam uns VHS de salsa cubana, aí a gente olhava pra capa e deduzia os que deviam ter alguém dançando, aí a gente comprava uns 10, demorava 30, 45 dias para chegar, a gente se juntava na casa de um de nós, assistia 10 VHS’s, às vezes o VHS tinha duas horas de música, música boa, valia à pena assistir, mas tinha só 10 minutos de dança, e aí pegava um passo, daqui a pouco assistia outro. A gente demorava uma semana pra assistir tudo, pra aprender ali 10 passos. Já era a internet fazendo efeito.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

Do mesmo modo que a verdadeira cultura da salsa não chegava ao Brasil, por causa dos escassos e lentos meios de comunicação, a dificuldade de acesso à internet e a falta de conteúdo virtual de samba de gafieira era responsável por uma evolução lenta na técnica dos dançarinos dentro e fora do Rio de Janeiro. Identificamos, dessa forma, as consequências dos progressos técnicos onde “os artistas (e o público) passaram a poder ver, sem se deslocarem, obras das quais apenas tinham ouvido falar.” (BECKER, 2010, p. 271). O desenvolvimento da internet como meio de tráfego de informações sobre o samba de gafieira, além de diminuir distâncias, está totalmente ligada a melhoria técnica dos dançarinos. O acesso aos vídeos de samba de gafieira podem substituir ou complementar as viagens feitas para o intercâmbio de conhecimentos.

“Quando eu tinha 12 anos, viajei com a Rachel Mesquita13 para Poços de Caldas (MG), e quando chegamos lá, a turma de dança de salão era praticamente só de professores e era assustador o nível da dança daqueles professores, os caras não dançavam nada. Ali, em Minas, você imagina no Acre, você imagina em Macapá! As pessoas faziam o básico da gafieira, o cruzado, o gancho e o puladinho mal feito, era só isso. Geralmente esse professor vinha pro Rio uma vez por ano, aprendia um passinho, dois, voltava pra cidade dele e trabalhava, trabalhava. Era muito importante o papel daquele profissional e ele não desenvolvia a dança dele porque não tinha acesso, a informação não chegava.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

Os vídeos, através do YouTube e das redes sociais, permitem ao aprendiz estar mais tempo em contato com o universo do samba de gafieira e não apenas na aula ou no baile. O

13 Rachel Mesquita é mestre em pedagogia do movimento humano e foi responsável pela Cia de Dança de Salão “Pés do Brasil” no Rio de Janeiro, formada por crianças e adolescentes. (Fonte: http://www.dancadesalao.com/agenda/rachel-adolescente.php) 86 aluno pode observar seu professor e outros dançarinos, tendo uma visão mais ampla das técnicas e estéticas. O advento do YouTube, no mundo do samba de gafieira, representa um avanço na possibilidade de reprodução técnica, colaborando no processo da reprodutibilidade técnica da obra de arte descrita por Walter Benjamin. Segundo Benjamin (1987), a obra de arte sempre foi reprodutível, o que vem mudando ao longo do tempo são as possibilidades de reprodução técnica. O autor afirma que a reprodutibilidade técnica da obra de arte, emancipa- a da existência atrelada ao ritual. Ao considerarmos o baile como um ritual, o vídeo de samba de gafieira presente nas telas dos celulares e computadores, está promovendo essa dissociação. “E você ficar atualizado sem estar no lugar é incrível, eu vou nos eventos sem estar. Eu sei das pessoas, quem tá surgindo novo, no Dance a Dois, no Baila Mundo, porque alguém publicou, alguém marcou.” (Viviane Soares, 2019, entrevista concedida à autora). Ao assistir um vídeo, o indivíduo acessa um conteúdo que antes só existia dentro do ritual, o baile. Os vídeos são divididos basicamente em dois tipos: as danças que acontecem dentro dos bailes, expandindo o alcance do baile; e vídeos de danças feitas fora de um baile, com a intenção de publicar nas redes sociais. Revelando que “a obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida.” (BENJAMIN, 1987, p. 171).

“Antigamente, na minha geração não tinha a internet. Para as pessoas verem o meu trabalho, elas tinham que ir pro baile, se não fosse o baile… Hoje não, você pode ficar em casa que vai passar no Dance a Dois, vai passar no Baila Mundo, vai passar na Zênite, então vou ficar aqui em casa que os caras vão transmitir online, ou então vão publicar e eu vejo.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora)

Existe um mercado especializado de divulgação da dança de salão na internet, principalmente dos grandes eventos, que surgiu mais ou menos na mesma época em que a nova geração despontava.

“O Dance a Dois é pioneiro, criou um mercado. Antes, fazer uma cobertura era uma honra de quem tava cobrindo. Por exemplo, se eu era um figurão e ia fazer um baile no Sírio-Libanês, eu falava: ‘pode ir lá tirar foto’, ‘vai ser bom pra tua página’, ‘pro teu jornal’, existia uma certa imprensa especializada. E o Leandro percebeu que isso era um negócio. Antes era assim: a pessoa tirava a foto, colocava no jornal (especializado em dança), e vendia mediante assinatura. O Dance a Dois não, ele 87

propõe fotografar o teu baile, faz fotos profissionais, faz uma cobertura em vídeo legal, e publica na internet para gerar alcance, e cobra por isso. Então eles criaram esse mercado, aí depois veio o Baila Mundo.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora).

Se antes a cobrança era feita para o público consumidor da imagem, através da venda dos jornais, hoje é cobrado do profissional que deseja aumentar o seu alcance nas redes sociais. A página do Dance a Dois no Facebook, na data de consulta (22/10/2020), possuía 140.092 seguidores, no Instagram 19,1 mil e no YouTube quase 41.000 inscritos. De acordo com a descrição da página, o Dance a Dois é um portal de conteúdo voltado ao público interessado em Danças de Salão, atualizado diariamente com conteúdo gratuito e está presente nas principais redes sociais. No Dance a Dois é possível encontrar fotos, vídeos, agenda de eventos, dicas, escolas de dança, entre outras informações sobre o mundo da dança de salão. Nessa apresentação também afirma ser reconhecido como referência no segmento pelos principais profissionais do mercado. Se afirma como “a principal vitrine da dança de salão do Brasil, divulgando a nossa dança para o mundo”. Assinala que possui histórico de cobertura de eventos desde 2009 e que o material está disponível para consulta, de forma indexada, e com busca facilitada por palavras-chave. Identificamos, desta forma, que os vídeos no YouTube e nas redes sociais promoveram uma profunda mudança que foi a dissociação da dança e do baile. Tal condição, ao mesmo tempo que fragmenta, reúne a comunidade de outra forma, expandindo fronteiras físicas, hoje podemos falar de uma comunidade global de samba de gafieira. Concluímos que apesar de não haver um consenso nos discursos, o conjunto das falas e experiências nos mostra que emerge uma nova geração de profissionais de samba de gafieira. Essa nova geração, em colaboração com as redes sociais e o YouTube são fundamentais para compreensão das novas configurações. Os espaços virtuais vêm se consolidando como espaços de grande importância para a comunicação, parcerias profissionais, divulgação da prática e evolução da técnica. As formas de recepção e transmissão das técnicas corporais acontece de diferentes modos, dependendo da geração e da interação entre elas. Observamos, no entanto, que as técnicas corporais dos intuitivos é bastante valorizada como fonte de conhecimentos pelas outras gerações. Existem movimentos de cooperação e de tensão profissional entre a nova geração e as anteriores, mas é evidente o 88 protagonismo dos indivíduos mais jovens no processo de profissionalização e difusão da prática. Esse protagonismo é impulsionado pelo bom aproveitamento das redes sociais e do YouTube. Foram identificados também novos elementos que fazem parte da dinâmica do samba de gafieira, que são as páginas de cobertura a exemplo da Dance a Dois e da Baila Mundo e os perfis dos próprios professores nas redes sociais. O processo de profissionalização da área passa por um contínuo desenvolvimento e as novas práticas são encabeçadas por jovens profissionais. Outro fenômeno identificado foi a especialização dos estilos de dança de salão, criando um mercado específico de samba de gafieira. Os profissionais da primeira geração promoveram um deslocamento das atividades da gafieira para a academia de dança; a nova geração abre novos espaços: os eventos especializados e as comunidades virtuais de samba de gafieira. 89

CAPÍTULO 3 - GAFIEIRA BRASIL E SAMBAMANIACOS: ONDE TODOS SE ENCONTRAM

3.1 Quem são esses “todos”?

Os eventos pretendem ocupar um lugar central no mundo do samba de gafieira, reunindo toda a comunidade dançante. Mas ao considerarmos que os eventos reúnem todos, precisamos entender quem são esses “todos”. Através das entrevistas foi possível identificar divisões por tribos (Maffesoli, 1998) no mundo do samba de gafieira no Rio de Janeiro. As tribos são agrupamentos baseados na “partilha sentimental de valores, de lugares ou de ideais que estão, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos e que são encontrados, sob diversas modulações, em numerosas experiências sociais” (MAFFESOLI, 1998, p. 28). É certo que o próprio conjunto de dançarinos de samba de gafieira comparado à totalidade dos habitantes do Rio de Janeiro constituem uma tribo, mas o que iremos explorar são as micro divisões existentes no interior dessa tribo. A questão das pequenas tribos internas não passou despercebida em trabalhos anteriores, especialmente na tese de Souza (2010), que observou que essas tribos se relacionam com o local de aprendizagem da dança, formando grupos com identidades que se caracterizam pela forma e estilo de dançar. Observamos nas nossas entrevistas, que essas divisões estão muito relacionadas com os grandes nomes da geração profissional: “quando eu comecei a dançar era muito claro que tinha a galera do Jimmy, a galera do Bolacha, a galera do Jaime, a galera do Carlinhos, até porque a proeminência desses dançarinos era maior ainda.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora). Essa divisão por academia e estilo de dançar faz parte da cultura extremamente personalista da dança de salão. Veiga (2011) afirma que, análogo ao que acontece nas escolas de dança clássica e contemporânea, o mercado da dança de salão também foi construindo suas regulações e formas de consagração. O autor, considera que, nesse aspecto, o mundo do samba de gafieira foi sendo constituído através de processos de atribuição de prestígio, baseados principalmente no reconhecimento do talento, na genealogia da aprendizagem e no tempo de dança. Os entrevistados declaram que hoje essa força personalista dos grandes nomes na divisão das tribos está mais enfraquecida: “antigamente isso era mais aflorado, tinha a galera do Jimmy, a galera do professor tal, a galera de outro lugar, etc. Hoje em dia tá todo mundo se misturando mais.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). 90

Através das entrevistas e observações de campo, podemos afirmar que o que vem acontecendo é mais que uma mistura, não trata-se apenas de observar diferentes estilos sendo dançados dentro de um mesmo baile. Estamos em uma época em que os estilos estão dando um espaço cada vez maior à técnica, promovendo talvez uma diluição desses estilos. O que seria também um reflexo do declínio da força personalista nas práticas da nova geração. É crescente o número de dançarinos cuja linhagem não é possível identificar apenas olhando sua forma de dançar, o que era muito comum nas décadas passadas. Acreditamos que isso se dá por dois motivos: a) as técnicas corporais e de ensino estão mais apuradas, o que permite uma transmissão cada vez mais “limpa” e separada do gestual próprio de cada professor; b) é mais comum hoje em dia que os alunos façam aulas com vários professores. Esses fatores permitem que o dançarino se aproprie das técnicas e construa seu próprio estilo. E dentro desse contexto, os eventos aparecem como propulsores dessa convergência de estilos, de técnicas e de gerações, potencializando o processo descrito acima. Nas tribos, além das divisões por escola/estilo, a divisão entre Zona Norte e Zona Sul, que parece atravessar o Rio de Janeiro de diversas formas, está também presente no mundo do samba de gafieira. Veiga (2011) e Souza (2010) identificaram essa divisão estrutural em suas teses. Souza (2010), em sua tese, lança um interessante questionamento: havia diferenças nas danças dos bailes do centro, Zona Sul e subúrbio? A autora procurou responder a essa pergunta a partir de uma noção de urbanidade expressa pelo corpo, em busca de uma cultura corporal de cada lugar que pudesse ser expressa através da dança. A resposta a que chegou foi negativa, apesar dos discursos dos atores sociais, não observou diferenças nas danças dos três lugares.

“Observando os casais evoluindo em suas danças no salão durante a pesquisa de campo e a partir das colocações dos atores sociais analisadas nas entrevistas, percebemos que os espaços guardam especificidades nos seus discursos. A dança de salão como representação de cada espaço marca claramente um território definido pelas configurações simbólicas urbanas. No entanto, observamos que as diferenças se diluem na realização dos movimentos dos pares no salão. A experiência contemporânea da dança de salão é baseada no domínio de determinados códigos corporais que têm se transformado em códigos globalizados apreendidos em sistemas não formais de ensino.” (SOUZA, 2010, p. 147) 91

Como já foi explorado no capítulo anterior, acreditamos que as diferenças residem principalmente nos modos de transmissão das técnicas corporais. Concluímos que se revelam nas diferentes formas de apreensão dos movimentos, de um lado um corpo que compreende e faz; de outro, uma busca pela decomposição, análise e categorização do movimento. Pudemos identificar através das entrevistas que essas diferenças também tangenciam outras questões, como classe social e relação com a tecnologia. Se a Zona Sul é “uma representação das elites, e a própria representação do Rio de Janeiro moderno” (CARDOSO, 2010), as tribos da Zona Sul, consideram os bailes da periferia como um reduto de tradição e uma fonte da essência do samba de gafieira, buscando contato com esses bailes. Souza (2010) também colheu relatos semelhantes onde “(...) existe uma grande valorização da ‘dança raiz’, mas não conseguimos compreender o significado dessa expressão no contexto dos movimentos e dos discursos.” (SOUZA, 2010, p. 99). Os relatos indicam uma divisão que é pautada principalmente pela técnica, onde Centro e Zona Sul são redutos de técnicas mais desenvolvidas e a Zona Oeste e Norte preservam danças mais pautadas na “intuição”, com mais “sentimento”. Os entrevistados relatam que existem tensões que marcam os encontros entre os dois grupos: “Acredito que quando alguém da Zona Oeste, da Zona Norte, vai pra Zona Sul, eles ficam meio com ‘o nariz torcido’, meio chateados, porque eles veem muita técnica.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Concordam que a extrema importância dada para a técnica, deixando os aspectos de lazer e de socialização muitas vezes de lado, podem ser prejudiciais ao mundo do samba de gafieira podendo gerar um clima competitivo no salão. Quando indagados se esse clima competitivo existia também nos bailes da Zona Norte: “Não tem, só tem, quando a galera da Zona Sul desce pra lá, que aí fica aquele clima meio assim no salão.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Perguntados como os dançarinos intuitivos lidam com as visitas dos dançarinos da Zona Sul aos bailes da Zona Norte: “Não tem aquela coisa de não gosto, virar o nariz, não é uma coisa ostensiva sabe, mas você percebe sutilmente que tem um incômodo. Quando um casal da Zona Sul chega lá ‘quebrando’ no salão, eles ficam meio incomodados.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Prosseguindo no assunto, surgem elementos relacionados à fama e redes sociais também apontados como evidência dessas tensões. “É porque é assim, geralmente, a galera da Zona Sul são os mais famosos, então quando a gente chega lá, eles falam entre eles ‘chegaram os famosinhos’.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). Mas é preciso delimitar de qual tipo de fama eles são detentores, que é 92 justamente a fama proporcionada pelo trabalho com as redes sociais, como foi discutido no capítulo anterior: “Nós somos famosos de mídia né, não de história, de mídia, porque tem muitos que são famosos de história pra lá, só que ninguém conhece porque não tá na mídia.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Esses trechos revelam várias questões que dividem esses grupos, entre elas classe social, idade, modernidade, usos da tecnologia, tradição, técnica, “intuição; os antigos dançarinos da periferia são considerados como os detentores de um saber tradicional, “de raiz”, e por isso possuem autoridade sobre os de fora. Além disso questões envolvendo técnicas de dança e usos de tecnologias para divulgação da própria imagem na internet entram em cena. Revelam também o confronto de dois tipos de autoridade, a autoridade por tempo de dança, onde o mais antigo possui maior valor, e uma autoridade recém-estabelecida, pelo reconhecimento do grande público através das redes sociais. A questão da idade mais avançada dos dançarinos intuitivos pode explicar a relação mais distante com as novas tecnologias e com a divulgação da própria imagem. Depois de realizar essa análise geral de como os grupos são divididos, um ponto fica claro, os bailes que frequentam revelam a que tribo pertencem. Se são ligados à sua tribo de local de aprendizagem (academia), normalmente irão frequentar os bailes daquela academia. Se são aprendizes na Zona Norte, além de possuírem os modos de apropriação e transmissão das técnicas dos “intuitivos” irão frequentar os bailes da Zona Norte. Os profissionais entrevistados possuem características de maior fluidez entre as tribos. E quando questionados sobre os bailes que frequentam, surgem alguns motivos apontados para ir a um baile: para prestigiar amigos profissionais da dança de salão (bailes de aniversários por exemplo); motivos profissionais, como os próprios bailes que organizam ou em bailes onde são convidados a se apresentar; citam os bailes da periferia que consideram como locais de pesquisa e assimilação da “essência” do samba de gafieira, por isso os frequentam eventualmente. Fora esses casos, encaminham-se para a Cachanga para desfrutar de um baile como dançarinos, encontrar os amigos e conversar. A Cachanga é considerada um ponto de encontro, um lugar democrático que é frequentado por todos os grupos. Situada na Lapa, é coordenada pelo professor de samba de gafieira Carlos Bolacha que, durante a semana ministra aulas no local e todas às sextas promove um baile onde são tocados vários ritmos da dança de salão, os bailes sempre são comandados pelo próprio Bolacha, que atua também como DJ, ou por um DJ convidado. 93

“Hoje você vai na Cachanga por exemplo, que é o grande baile da dança de salão, você vê uma galera dançando funkeado, uma galera dançando tradicional, você vê uma galera dançando mais afastado, você vê uma galera fazendo um ‘show’ no salão (sentido pejorativo). Eu acho que lá é o grande celeiro, você vê tudo, todo mundo transita por lá. Mas são poucos bailes que são assim, ecumênicos.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora)

A Cachanga do Malandro, situada na Lapa, que na visão de Kushnir (2002) representa um espaço de integração de territórios, torna-se um lugar representativo desse encontro entre Zona Norte e Zona Sul, entre técnica e intuição, entre moda e tradição. Seu anfitrião, Carlos Bolacha, foi o responsável pelo movimento de resgate de movimentos tradicionais do samba de gafieira, valorizando a dança dos intuitivos como fonte de conhecimentos ao mesmo tempo, que com esses movimentos resgatados e repensados, formou boa parte da nova geração. Bolacha é o mestre que atua entre os modos do guru e do iniciador, está no meio, na encruzilhada, Rufino e Simas (2018) entendem a encruzilhada diretamente ligada às culturas de síncope. “Enquanto algumas mentalidades insistem em ler o mundo em dicotomias, teimando na superação de um lado pelo outro, o poder da síncope se inscreve no cruzo.” (RUFINO & SIMAS, 2018, p. 19). Nos bailes de sexta, a Cachanga reúne dançarinos provenientes desde a escola Jaime Arôxa ao pessoal da Zona Norte, segundo os relatos: “Lá é bem democrático, é uma mistura. A galera da ZN se sente à vontade, da ZS também e fica todo mundo feliz, cada um dança o seu.” (Robertinha, 2018, entrevista concedida à autora). Além da Cachanga, existem outras ocasiões que essa contiguidade pode existir, e de acordo com os dados coletados por essa pesquisa, excetuando-se a Cachanga, todas são em eventos. No entanto, os eventos são pontuais, a Cachanga é regular. Antes de entrar nos eventos foco da pesquisa, que são o Sambamaniacos e o Gafieira Brasil, é importante registrar outro evento que foi citado nas entrevistas:

“A galera da ZN vem menos, não é que não venha, mas vem menos, assim como a galera da ZS vai menos lá. Tem um cara lá muito importante que as pessoas não dão o valor que ele merece, que é o Henrique Nascimento. O Henrique tem uma academia lá na Abolição e ele transita muito bem pelos dois lugares, tem o evento que ele faz que é o Swing do Black que tem gente da Pavuna e tem gente da ZS, tem competidores da ZN e competidores da ZS, é um evento legal. Não tem uma adesão 94

tão grandiosa como o GB e o SM, mas cumpre essa função de trazer o pessoal mais do Rio e de unir essas divisões geográficas.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora)

Quando Kadu fala que o Swing do Black cumpre a missão de congregar as pessoas do Rio, está ligada à outra informação captada nas entrevistas que é o fato de que o público dos eventos SM e GB é majoritariamente de fora do Rio, principalmente nos workshops: “Infelizmente os eventos GB e SM são mais pra pessoas de fora do que para pessoas do Rio. Onde é que o Rio consome o GB e SM? Nos bailes. Os bailes são frequentados.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora). Portanto, nosso foco será nos bailes dos eventos SM e GB, pois nosso objetivo é compreender o mundo do samba de gafieira no Rio de Janeiro através dos eventos e não os eventos como um fim em si mesmos. O Sambamaniacos e o Gafieira Brasil são organizados por jovens profissionais pertencentes ao circuito profissional, atuantes no centro e Zona Sul e com práticas inovadoras. Os profissionais mais antigos e os dançarinos intuitivos, em menor número, também estão presentes nos eventos, sejam como professores de workshops, jurados de competições, apresentando coreografias ou apenas frequentando os bailes. Profissionais, alunos e amantes do samba de gafieira de todo o Brasil e de outros países também se dirigem aos eventos, não podemos dizer que grande parte dos dançarinos mais antigos frequentam os eventos, mas podemos afirmar que existe uma representatividade de todas as gerações e de toda a comunidade global do samba de gafieira neles.

3.2 Dois eventos e uma proposta de categorias de análise de bailes de dança de salão

O SM e o GB seguem o modelo de grande congresso de dança que, como vimos foi introduzido no Brasil por Jaime Arôxa nos anos 1990 inspirado por grandes eventos internacionais de dança de salão. Antes de iniciarmos a análise dos bailes através das categorias estabelecidas, iremos expor algumas informações sobre os históricos dos eventos, números, objetivos e propósitos que só foram possíveis colher através dos relatos dos idealizadores e não podem ser acessadas através das categorias de análise propostas. O primeiro SM aconteceu em 2011 em São Paulo, Léo Fortes, seu idealizador e realizador, conta que a ideia surgiu em 2010 e o objetivo era dar visibilidade aos novos professores que chegavam ao mercado e não tinham muitas oportunidades. Como vimos no 95 capítulo anterior, esse formato incomodou muito as gerações de profissionais já estabelecidos. De acordo com o entrevistado, o SM conseguiu atingir seu objetivo: “o SM abriu portas pra muita gente, acho que todos que participaram do primeiro e do segundo e que mantiveram parceria e trabalho sérios, foram inseridos no mercado de uma forma bem positiva.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). Além dos objetivos referentes à promoção dos professores da nova geração, o SM vem percorrendo uma trajetória de expansão em relação ao público que adere ao evento:

“No primeiro, a gente tinha só 50 pessoas, no segundo a gente foi pra 80, no terceiro a gente foi pra 120, e o quarto ano foi divisor de águas, porque a gente trouxe pro Rio, foi quando a Vanessa Jardim saiu e o evento foi transferido totalmente pra cá. Era em São Paulo, foram três edições lá, de 2011 a 2013 e a partir de 2014 foi aqui. Aí foi o ano que eu fiquei com muito medo. Eu comecei em São Paulo porque no Rio tinham vários eventos que eram muito criticados em relação a organização, os eventos do Rio não tinham uma boa fama. Eu comecei em São Paulo, porque lá tinha público, tinha uma demanda, aqui no Rio eu tinha muito medo de não ter público e não ter apoio da própria galera do Rio. Nós tivemos, se eu não me engano 150 inscritos no primeiro ano aqui no Rio que foi no Teatro Odisséia. Todos os anos o número de inscritos aumenta e nesse ano (2018), no Vila Galé, nós fomos surpreendidos de novo porque a gente teve quase 500 inscrições.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora)

Léo atribui esse sucesso de público às questões de organização e profissionalismo, ele revela que se inspira nas boas experiências dos eventos nos quais participa ministrando workshops por todo o Brasil e em outros países. Sobre as características do público do SM: “são pessoas que querem se atualizar e se profissionalizar com o nosso evento. Mas vem mais estudante do que o cara que já é profissional. A idade vai de 20 a 50, mas o maior público é por volta dos 30 anos.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). 96

Figura 1 – Léo Fortes – idealizador e realizador do SM

Fonte14: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postada na página do Facebook – Sambamaniacos

Léo afirma que vem estabelecendo uma boa relação com os mais antigos e desde 2014 o evento conta com um workshop de um professor mais antigo, que eles chamam de convidado especial. Também afirma que quando conseguiu controlar melhor o orçamento e teve condições de pagar um cachê digno ao convidado mais tradicional, passou a convidá-los: “Já participou Marcelo Moragas, Jaime Arôxa, Carlinhos de Jesus, Bolacha, Valdeci ano passado, Álvaro Reis esse ano. Ano que vem é o Jimmy como convidado especial.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). No entanto, ressalta que o quadro de professores ainda tem como base a nova geração. O GB teve início em 2015 e já começou com uma grande estrutura, a ideia inicial do GB era de criar um cenário para mostrar as potências artísticas do mundo do samba de gafieira e de gerar trabalho. Segundo Rodrigo, o que provocava essa inquietação eram os

14 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1107225322776872/1107233952776009 97 poucos espaços para a dança de salão em festivais de dança e os baixos cachês para os professores de samba de gafieira em comparação aos cachês de professores internacionais, quando se tratava de congressos de dança de salão no Brasil: “Às vezes os congressos traziam profissionais da salsa, americanos, cubanos, porto-riquenhos, gastavam um dinheiro com esses caras e pagavam um mísero cachê pra gente.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora). Portanto, a intenção era gerar uma valorização dos profissionais de samba de gafieira. O GB nasceu das ideias e esforços de três jovens professores de samba de gafieira do Rio de Janeiro, Rodrigo Marques que concedeu a entrevista, Vinícius Villiger e Patrick de Carvalho.

“Então a ideia de criar o GB foi porque a gente queria se mexer, parar de ficar esperando o telefone tocar e alguém contratar a gente, queríamos gerar o nosso próprio recurso. Aí nós nos juntamos, querendo fazer alguma coisa grande, deixar um legado. E aí o Patrick que é um cara muito competitivo, porque ele tem uma criação que vem das competições de jiu-jitsu, antes da dança de salão ele competia, trouxe para gente esse ânimo de fazer uma competição. Então no primeiro GB nós convidamos todos os competidores, não teve audição, fizemos uma lista de uns 30 nomes, para chegar em 12 casais. O primeiro GB não teve nenhum workshop, não era para ser um congresso, era para ser um grande baile, com um espetáculo em forma de competição, para mostrar o que estava sendo produzido. Eu trouxe minha experiência com as grandes produções trabalhando com Carlinhos de Jesus, o Patrick trouxe a experiência dele do carnaval, trabalhando com as grandes escolas. Antes do GB, o Patrick participou de um espetáculo chamado Brasil Brasileiro, viajou o mundo todo com esse espetáculo, dançou nos grandes teatros do mundo e viu muita coisa grandiosa acontecendo. Então a gente trouxe essa nossa experiência, essa nossa expertise para produzir o GB, lógico que numa escala muito menor, porque a gente não tinha condição financeira.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

Rodrigo afirma que o GB conseguiu o objetivo de se tornar uma grande cena no mundo do samba de gafieira, além disso, o material acumulado dos cinco anos de existência do GB tornou-se uma fonte de pesquisa para alunos e profissionais de samba de gafieira: “Nós temos tanto material artístico, cênico, se procurar no YouTube, você vai ver mais de 300 artistas envolvidos nesses 4 anos, mais de 60, quase 70 coreografias, inéditas, criadas exclusivamente para o evento.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora). 98

Rodrigo avalia que nos quatro anos de existência, passaram aproximadamente 10 mil pessoas pelo GB, contando com participantes de bailes e workshops.

Figura 2 – Idealizadores e realizadores do GB (da esq. para dir.: Rodrigo Marques, Vinicius Villiger e Patrick Carvalho)

Fonte15: Cobertura audiovisual Lana Loroza postada na página do Facebook – Gafieira Brasil

Rodrigo revela que um objetivo que não imaginava atingir diz respeito à valorização de profissionais que não são do Rio de Janeiro, pois através da audição para a competição se inscrevem dançarinos de todo o Brasil:

“Nós já tivemos competidores de Belém, Curitiba, São Paulo, Recife, Paraíba, enfim de tantos lugares, então é uma prova que tem talentos no Brasil inteiro. O ‘duelo de ensaio’ quem ganhou foi um casal de Recife, o GB do ano passado quem ganhou foi um casal de Macapá. É como na Argentina, o campeão de tango já não é mais argentino há muito tempo.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

15 https://www.facebook.com/gafieirabra/photos/a.1238666716297595/1238799206284346 99

Esse ponto é abordado por Becker (2010) em Mundos da Arte quando diz que “regra geral, nenhum centro de criação, mesmo tratando-se de uma metrópole, podia assegurar sozinho uma quantidade de produção suficiente, quer em qualidade quer em diversidade, para alimentar um mercado nacional ou internacional.” (BECKER, 2010, p. 271). Segundo Rodrigo, o público do GB são alunos, aspirantes a profissionais e profissionais. Tanto para o GB quanto para o SM, essas pessoas vêm de todo o Brasil e de outros países em busca de conhecimentos acerca do samba de gafieira. O conhecimento que elas buscam não é apenas de movimentos e técnicas, não buscam apenas os conhecimentos que seriam repassados pelo “guru” no workshop, mas desejam, à maneira dos noviços, serem iniciados no baile de samba de gafieira do Rio. Nessa questão, entra um importante papel do evento como ponto de encontro dos praticantes. E através desses encontros, os eventos promovem experiências que vão além da aula, de materiais em vídeos e do alcance das redes sociais que possuem, pois “os noviços são transformados por sua participação na iniciação: eles conhecem porque veem, porque lá estão, porque são objeto de ações.” (BARTH, 2000, p. 149). Muitas vezes, esse público já fez aula com algum dos professores do Rio de Janeiro em seus países ou cidades, mas buscam a experiência completa do mundo do samba de gafieira no Rio de Janeiro. O que fizemos até agora nessa pesquisa, contribui para uma sociologia do corpo, que segundo Le Breton (2007) deve investigar as modalidades corporais em uso em diversos grupos sociais e culturais, além de reconhecer as diferenças de formas e de significações e suas vias de transmissão. Seguindo essa orientação, iremos utilizar agora algumas categorias estabelecidas por Goffman (2002) para analisar os eventos, com foco na interação social através do corpo. Construímos uma proposta a partir do cruzamento entre as categorias de análise próprias, que foram se delineando com base nas observações de campo, e as categorias descritas por Goffman. Propomos, desta maneira, um método de análise de um baile de dança de salão, que pode ser aproveitado em pesquisas futuras, alterados e/ou melhorados. O método consiste em analisar quatro aspectos: a) delimitação, informações como data, horário e local, ajudam a construir uma delimitação inicial do evento no tempo e espaço, trazendo por outro lado, a noção de região exterior que segundo Goffman (2002) seria a região residual ou o “lado de fora”, onde ficam os “estranhos”; b) estrutura, observar e descrever o espaço com o intuito de identificar a “região de fachada” e a “região de fundo” (Goffman, 2002); c) interações sociais 100 no salão, que seriam espécies de “representações” (Goffman, 2002) coletivas e simultâneas, onde as divisões entre atores e plateia é mais diluída. Nesse ponto, aspectos como linguagens não verbais e vestimentas também devem ser analisados; e d) personagens especiais, realizam representações de destaque na dinâmica do baile, muitas vezes onde existe uma divisão clara entre ator e plateia. Consideramos personagens especiais todos aqueles que desempenham outros papéis além das interações coletivas e simultâneas. Entre eles estão os dançarinos que apresentarão um número artístico ou competirão, músicos, DJ’s, apresentadores, anfitriões, jurados, fotógrafos, equipe técnica. É importante ressaltar que nem todos os personagens especiais ocuparão o salão, ou no termo de Goffman, “o cenário”, muitos estarão atuando nos bastidores, dessa forma os personagens especiais em um baile se dividem entre os que irão desempenhar “padrões técnicos” e “padrões expressivos” (Goffman, 2002).

3.2.1 Delimitação

O SM acontece todos os anos desde 2011, geralmente, no último final de semana de setembro. As atividades iniciam-se numa quinta-feira e encerram-se no domingo, em 2018, ano que a observação participante foi realizada, o período foi de 27 a 30 de setembro. O GB por sua vez acontece todos os anos, desde 2015, entre os meses de março e abril, no ano da observação participante, 2019, foi realizado de 18 a 21 de abril. Ambos os eventos promovem bailes em todas as noites de evento, a experiência de ir à quatro noites seguidas de baile exige fôlego, se o participante está inscrito também nos workshops, transforma-se numa verdadeira maratona de dança. Uma programação que se assemelha a experiências promovidas por algumas programações de carnaval no Brasil, onde a folia se divide em diurna e noturna e o folião quer aproveitar todos os momentos pois sabe que o evento só se repetirá dali há um ano. Os bailes do SM geralmente iniciavam-se às 21:00 e encerravam-se às 03:00, e todos aconteceram no Espaço Franklin, que fica na Av. Passos, 36, Centro do Rio de Janeiro. E os bailes do GB tinham início às 21:00 e terminavam por volta das 5:00, os bailes do GB foram todos na Casa de Espanha, na Rua Maria Eugênia, 215 no bairro Humaitá. 101

Figura 3 - Espaço Franklin

Fonte: https://www.grupohel.com/eventos_espacos/espaco-franklin/

O Espaço Franklin16 é um prédio amplo e foi construído em 1911 para servir como uma empresa de artigos de eletricidade, sua fachada possui elementos arquitetônicos notáveis, como vitrais franceses e uma águia de bronze. A Casa de Espanha17 do Rio de Janeiro foi fundada em 27 de março de 1983 e é um centro cultural de preservação e difusão da cultura espanhola. Figura 4 - Casa de Espanha

Fonte: https://www.casadeespanha.com.br/index/

16 Fonte: http://www.espacofranklin.com.br/site/. Acesso em 02 de maio de 2019 17 Fonte: https://www.casadeespanha.com.br/a-casa/. Acesso: 10/11/2020 102

O Espaço Franklin e a Casa de Espanha não fazem parte de um circuito específico de dança de salão na cidade, são locais que reservam ou alugam seu espaço para diversos tipos de eventos, como casamentos, eventos empresariais e outros tipos de festas. Em relação à delimitação espacial, Goffman afirma que:

“A noção de uma região exterior que não seja nem de fachada nem de fundo, com relação a uma representação particular, ajusta-se à nossa noção de bom-senso sobre os estabelecimentos sociais, pois quando examinamos a maioria dos edifícios (...), verificamos que as paredes externas do edifício separam ambos os tipos de aposentos do mundo exterior. Os indivíduos que estão do lado de fora do estabelecimento podem ser chamados de ‘estranhos’.” (GOFFMAN, 2002, p. 126)

No mundo do samba de gafieira, as paredes do prédio não são suficientes para garantir essa delimitação, é preciso também uma estrutura humana para o fazer. Veiga (2011) dedica um capítulo inteiro para falar das interações que acontecem na portaria da gafieira Estudantina e considera esse local, um espaço de conflitos e negociações, mas também como um espaço de ambientação e adesão. Os dois eventos possuem modelos e estruturas muito parecidas, ambos possuem uma estrutura de reconhecimento e seleção de quem pode ou não fazer parte do evento. Essa seleção possui várias etapas e começa, na verdade, muito antes, quando a divulgação dos eventos é direcionada para um público específico e que de alguma forma já faz parte do mundo do samba de gafieira. Normalmente, o público que comparece aos eventos é formado por grupos de pessoas, que viajam de uma mesma cidade em direção ao Rio, na maioria das vezes guiadas por um professor. As pessoas que passam na rua, não são atraídas pelo que acontece dentro dos espaços, não existe nenhum tipo de propaganda ou estímulo voltado para atrair passantes. Os pacotes de aulas e bailes são vendidos antecipadamente, mediante um cadastro, portanto os organizadores dos eventos já sabem antecipadamente quem irá comparecer, a origem e o tamanho do público. Portanto, é quase nula a possibilidade de alguém alheio às convenções do mundo do samba de gafieira adentrar aos eventos. Diferente do que poderia acontecer na Estudantina, por exemplo, onde os guardiões da portaria tinham que avaliar através de muitos elementos, inclusive da vestimenta, se a pessoa poderia ou não adentrar o ambiente. Dessa forma, ambos os eventos possuem equipes na portaria que 103 conferem ingressos, cadastros e estão disponíveis para resolver quaisquer outros procedimentos de adesão ao evento. Logo após a entrada, existem grandes painéis com logos dos eventos, dispostos com o intuito de ambientar o participante, de fazê-lo sentir que está entrando no GB e não na Casa de Espanha, entrando no baile do SM e não no Espaço Franklin. Junto aos painéis que ficam na entrada, estrategicamente fica um dos vários fotógrafos do evento que faz fotos das pessoas recém-chegadas posando em frente a esse painel. Quase todas as pessoas, além de posar para o fotógrafo, fazem fotos com seus próprios celulares para postar nas redes sociais. É interessante notar que essa fase de entrada no baile, que Veiga (2011) chama de ambientação, não envolve apenas a experiência sensorial do participante, hoje, o compartilhamento nas redes sociais hoje faz parte desse momento. Através das fotos com legendas e hashtags os participantes encontram uma forma de divulgar a sua participação no evento. No mundo do samba de gafieira, estar participando de um grande evento como o SM e o GB significa status e uma forma de conseguir legitimação como bom dançarino ou bom profissional, especialmente para os de fora do Rio de Janeiro, pois a cidade representa um reduto do “verdadeiro” e “tradicional” samba de gafieira. 104

Figura 5 - Fila de entrada do baile SM 2018

Fonte18: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postadas na página do Facebook – Sambamaniacos

Na foto acima, nota-se a estrutura de seleção e controle de quem adentra ao baile do evento, geralmente são compostos por balcões e uma equipe da produção.

18 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1106006569565414/1106011372898267 105

Figura 6 - Participante posa para fotos em frente ao painel do GB

Fonte19: Cobertura da empresa Dance a dois, postada na página do Facebook - Gafieira Brasil

Aqui, uma participante posa para o fotógrafo oficial do evento, mas também para os próprios celulares ou de amigos para compartilhar em tempo real a chegada ao evento. As fotos oficiais do evento só estarão nas redes depois de algumas horas ou dias.

3.2.2 Estrutura

Segundo Goffman (2002), o ambiente onde ocorre a interação social é dividido em duas regiões, a região de fachada, que é onde vai se desenrolar a representação e a região de fundo, que serve para ocultar elementos que os atores não querem compartilhar nas representações. Podemos considerar quase todos os espaços do baile como regiões de fachada, pois o baile permite representações coletivas e simultâneas em vários espaços, não apenas no salão. Portanto, o salão, as mesas, o palco, as bordas do salão e o mezanino podem ser consideradas regiões de fachada onde se desenvolvem as representações. Porém, existe também nessa estrutura um espaço que serve de camarim, uma sala onde os dançarinos que

19 https://www.facebook.com/gafieirabra/photos/a.1239538539543746/1239541726210094 106 vão apresentar coreografias podem trocar seus figurinos, talvez essa região e a da cozinha do bar, sejam as únicas que são regiões de fundo, longe da observação da plateia, servindo apenas como bastidores. Dentre os espaços de fachada do baile, o salão é um espaço privilegiado onde acontece a maioria das representações. De acordo com os conceitos de Goffman, o que ele chama de “palco” seria todo o espaço interno do baile, e o salão seria o “cenário”, pois constitui o local das representações mais importantes do baile: as danças.

“O cenário tende a permanecer na mesma posição, geograficamente falando, de modo que aqueles que usem determinado cenário como parte de sua representação não possam começar a atuação até que se tenham colocado no lugar adequado e devam terminar a representação ao deixá-lo.” (GOFFMAN, 2002, p. 29)

Durante todo o baile, observamos os casais se dirigirem para o salão e só então iniciarem sua dança, ao terminarem a dança, voltam para a borda do salão ou para a região de mesas e cadeiras. Uma particularidade do cenário no baile de dança de salão é que ele pode apresentar alguma fluidez. Segue um trecho do diário de campo onde colhemos algumas impressões do salão e ao mesmo tempo observamos essa fluidez:

“Cheguei ao baile por volta das 22:00, assim que entrei ouvi a música que estava tocando, era um bolero, os casais estavam dançando, o salão já estava um pouco preenchido e haviam algumas pessoas em pé ao redor, algumas apenas observando o salão e outras conversando. Como era o início do baile, era um momento de encontro e cumprimentos entre as pessoas que entravam e as que já estavam no baile, apertos de mão, principalmente abraços e às vezes os dois beijinhos no rosto. O salão principal era delimitado por algumas colunas e ao redor existia uma faixa de espaço que constituía a borda do salão, esse espaço é bem interessante, pois é nesse lugar que geralmente as pessoas se posicionam para demonstrar que querem dançar, e assim esperam um convite ou observam o salão e planejam para quem irão dirigir o convite para uma futura dança. No entanto, depois do bolero, tocou uma longa sequência de sambas e o salão encheu, apesar de ser grande, ocorriam momentos em que era difícil dançar uma música inteira sem esbarrar em ninguém, dessa forma, o salão em muitos momentos, crescia para as bordas. As pessoas que observavam sentiam a necessidade de afastar para não atrapalhar o número crescente de casais no salão, chegando mesmo a encostar na parede, ou se dirigirem para outros espaços 107

para não atrapalhar a dança, e aquele espaço que antes era borda, agora era salão.” (Baile Sambamaniacos, 2018, diário de campo)

Essa fluidez existe tanto em relação aos espaços, como em relação aos papéis. Em segundos, um indivíduo da plateia, pode receber um convite para dançar e se tornar ator. Outro ponto a se observar na estrutura é a decoração, “a decoração e os acessórios de um lugar onde uma representação particular é comumente feita, bem como os atores e o espetáculo geralmente ali encontrados, contribuem para fixar uma espécie de encantamento sobre ele.” (GOFFMAN, 2002, p. 117). Os ambientes dos dois eventos estavam ricamente decorados com figuras e esculturas que remetiam a pontos turísticos e elementos culturais da cidade do Rio de Janeiro, juntamente com fitas, balões, jogos de luzes e vários painéis com os logos de cada evento dispostos pelo espaço. Como vimos antes, tudo contribui para que o participante sinta que está no SM e no GB e os elementos da decoração reforçam a questão da cidade do Rio de Janeiro como a “cidade do samba”. 108

Figura 7 - Baile do SM 2018 - salão visto de cima

Fonte20: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postadas na página do Facebook – Sambamaniacos

Nessa foto vemos o espaço de fachada mais importante do baile: o salão, percebe-se também alguns elementos decorativos. “Mesmo quando a representação costumeira não está sendo executada, o lugar continua a guardar alguma coisa de seu caráter de região de fachada.” (GOFFMAN, 2002, p. 117), ou seja, é certo que qualquer participante do mundo do samba de gafieira ao olhar para um salão, mesmo vazio, o relacione imediatamente às representações que ocorrem nele.

20 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1107225322776872/1107230342776370 109

Figura 8 - Salão de baile do GB 2019

Fonte21: Cobertura da empresa Dance a dois, postada na página do Facebook - Gafieira Brasil

No registro do baile do GB podemos observar várias partes da estrutura dos espaços de fachada: o salão, as bordas do salão onde várias pessoas se posicionam em pé e observam quem está dançando, estabelecendo uma relação de ator e plateia. Ao fundo podemos observar dois grandes painéis com logos e imagens do GB, no canto inferior esquerdo um pedacinho da área de mesas e cadeiras e do lado direito da foto um cantinho do palco.

3.2.3 Interações sociais no salão

No salão, principal cenário do baile, ocorrem vários tipos de interação, desde as verbais às corporais. Diríamos, principalmente as corporais, pois “no interior de uma mesma comunidade social, todas as manifestações corporais do ator são virtualmente significantes aos olhos dos parceiros. Elas só têm sentido quando relacionadas ao conjunto de dados da simbologia própria do grupo social.” (LE BRETON, 2007, p. 9). As interações têm diversos objetivos, desde executar uma dança em par, o que exige o conhecimento das técnicas, até

21 https://www.facebook.com/gafieirabra/photos/a.1239538539543746/1239544962876437 110 estabelecer parcerias, conseguir visibilidade, fama, amores e amizades. Como em qualquer outro congresso, as pessoas buscam se aproximar dos profissionais que admira, um ponto alto do baile para um participante que vem de longe, é conseguir dançar com um professor ou professora que admira e que conhece somente pelas redes sociais, a oportunidade de interagir com esses professores é bastante valorizada. Existem várias formas de interagir e se fazer notar, cada dança de par é uma oportunidade, pois existe uma comunicação ali através de técnicas, onde cada elemento do par dançante avalia o outro. Através das observações e relatos, nota-se que existem pessoas que executam uma dança exibicionista, a fim de chamar a atenção da plateia, o que é muito mau visto por várias pessoas do mundo do samba de gafieira, principalmente pelos mais tradicionais. Outros modos de interagir e ser notado seria se inscrevendo para apresentar uma coreografia ou para competir, dessa forma, o dançarino teria um momento para uma representação exclusiva onde teria toda a atenção voltada para si, colocando à prova seu nível técnico e artístico, essa forma de representação será explorada no próximo tópico, pois quando isso acontece, o dançarino passa a representar um personagem especial. Outra forma comum de interação no salão de baile é simplesmente a conversa, onde o participante pode propor alianças e parcerias. Se o dançarino obtiver sucesso nessas incursões, ele pode conseguir alunos, trabalhar em escolas de dança, ser chamado para ministrar workshops em eventos menores, participar de companhias de dança ou se apresentar em outras ocasiões. No salão, durante a maior parte do tempo, estão ocorrendo representações simultâneas, quando vários casais estão dançando ao mesmo tempo. As interações coletivas são coordenadas pelas convenções do mundo do samba de gafieira, mas como se tratam de eventos de proporções muito grandes, às vezes incluem indivíduos que não conhecem as convenções ou não conseguem se adequar ao funcionamento de forma satisfatória. Por exemplo, Léo Fortes, o organizador do SM, foi ao microfone algumas vezes pedir para que os pares respeitassem a regra do sentido anti-horário. Essa é uma regra para os bailes de dança de salão, todos os participantes sabem (ou pelo menos deveriam saber), que os movimentos da dança devem sempre evoluir no sentido anti-horário do salão, para que todos possam deslocar e evitar esbarrões. Como os eventos reúnem pessoas com vários níveis técnicos e experiências diversas, isso se torna um pouco mais difícil. A habilidade de dançar no anti-horário geralmente é dominada pelos dançarinos mais experientes, para adquiri-la o praticante deve ir aos bailes, apenas as aulas nas academias de dança não são suficientes, apesar de alguns 111 professores realizarem exercícios e falarem da importância do anti-horário, é só na vivência prática que se domina a habilidade. Isso acontece porque na sala de aula, na maior parte do tempo, o espaço é utilizado em uma dinâmica diferente da que acontece no baile. Para facilitar o aprendizado, geralmente as duplas ficam voltadas para a mesma direção, de frente ou de lado para o espelho. Já no salão de baile a dinâmica é circular. Portanto, é um desafio para o aluno que está acostumado com a sala de aula ir aos primeiros bailes, fazendo uma analogia, é como um aprendiz de natação, que nada muito bem na piscina e vai nadar no mar pela primeira vez, o salão é o mar. As vestimentas também são carregadas de significados e fazem parte das interações no salão, desde roupas que criam efeitos ao dançar à adesão de elementos indicadores de tradição e modernidade. Nos bailes observou-se uma mistura de estilos, com pessoas muito bem arrumadas e outras num estilo mais despojado, de shorts e tênis por exemplo. No geral, as pessoas no GB se vestem de modo mais elaborado, sendo observado muitos elementos de vestimentas mais formais como saltos altos, sapatos sociais, camisas de manga longa, paletós, calças sociais, vestidos, saias. No SM observa-se que a grande maioria dos homens, de todas as idades, estavam de calça jeans, usavam tênis comuns ou tênis próprios para dança, muitos usavam boné. As mulheres usavam vestidos, geralmente colados ao corpo, mas também saias curtas, calças, shorts e algumas, macacão. A maioria usava sandálias próprias para a dança de salão, de salto alto, em menor número usavam tênis ou sapatilha, e em casos mais raros, sandálias rasteiras sem nenhum tipo de salto. 112

Figura 9 - Casal dançando no baile

Fonte22: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postadas na página do Facebook – Sambamaniacos

Na foto, percebe-se que as pessoas utilizam roupas mais simples e joviais, a exemplo do boné, acessório muito comum entre os jovens e muito utilizado nos bailes do SM.

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Figura 10 - Tipos de calçados comuns nos bailes - sandália e sapatilha próprios para dança de salão

Fonte23: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postadas na página do Facebook – Sambamaniacos

Através das interações, vários tipos de parcerias e interesses podem ser demonstrados no salão, inclusive o de cunho sexual/ amoroso. Apesar de o salão ser um ambiente que tem uma atmosfera de “sedução” (MASSENA, 2006), não se vê ninguém namorando no baile, onde o intuito realmente é dançar. O que se diz no mundo da dança de salão é que a dança pode até representar uma abertura para demonstrações de interesse amoroso ou sexual, mas isso deve se desenrolar fora do baile. Segue um trecho do diário de campo:

“Observando atentamente o salão em busca de detalhes, vejo um casal dançando, a mulher repousava sua mão esquerda no pescoço do homem, ao invés de usualmente nas costas, próximo às escápulas. Isso, geralmente é lido como um interesse além da dança, é claro que também pode ser utilizado cenicamente em uma demonstração ou coreografia. O salão estava muito lotado, os casais estavam se esforçando para dançar em um tipo de disputas de exibições, mas esse casal, parecia alheio ao

23 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1105234142975990/1105428736289864 114

ambiente, não sei se eles já eram um casal antes, ou não, se pudesse apostar, apostaria na segunda opção. Depois de dar algumas voltas pelo espaço observando outras cenas, já passado algum tempo, meu olhar se encontra com o mesmo casal novamente, continuam dançando juntos, o que não é usual, pois os casais normalmente dançam uma ou duas músicas, agradecem a dança e vão descansar ou dançar com outra pessoa.” (diário de campo, baile sambamaniacos, 2018)

O fato de eles ainda estarem dançando juntos, ainda com a mão da mulher no pescoço dele, e ainda uma dança mais contida, é um comportamento que tem um significado mais profundo que apenas técnicas dançantes, vai mais além de um interesse sexual ou amoroso, existe uma camada de comunicação ali que está ligadas às convenções e hábitos do salão. Para Le Breton, o corpo é vetor semântico:

“Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc. (...) (a sociologia) Aplicada ao corpo, dedica-se ao inventário e à compreensão das lógicas sociais e culturais que envolvem a extensão e os movimentos do homem. (LE BRETON, 2007, p. 7)

A mulher demonstrou um interesse com a mão no pescoço, o homem primeiro compreendeu, pois possuía o mesmo código e diante da compreensão, escolheu agir em correspondência, dançando de forma mais íntima e mantendo a mesma parceira. É claro, que elegantemente, ele poderia ter recusado sem dizer uma palavra, apenas agradecendo a dança ao final e seguir dançando com outras pessoas, fingindo que não entendeu a mensagem “mão no pescoço”. Como se adquire essa linguagem? Alguns professores falam, contam anedotas de salão para os seus alunos, os amigos que frequentam baile podem comentar diretamente explicando o que isso significa ou contar uma história em que os códigos estejam inseridos. Portanto é uma linguagem que o dançarino adquire nas diversas práticas e participações no mundo do samba de gafieira. Outra interação que acontece no baile são os registros em fotos e vídeos para as redes sociais, quase todos os participantes posam para fotos em algum momento no decorrer do 115 baile, tornou-se um hábito comum e corriqueiro. Dessa forma, os eventos garantem o alcance para toda a comunidade virtual: “o GB só cresce a cada ano porque passamos o ano inteiro mostrando para as pessoas o que acontece aqui no período do Gafieira Brasil através do YouTube, Facebook, Instagram.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora). Além dos códigos verbais, corporais, comportamentais, existem os sonoros, onde a velocidade das músicas vai anunciando o fim do baile. Se no início e meio do baile as músicas tocadas são de andamento lento ou médio, é habitual que as bandas e DJ’s reservem os sambas rápidos para o final do baile, onde os dançarinos mais habilidosos irão dominar o salão, numa demonstração de agilidade, domínio da técnica e ritmo, vigor físico e recusa ao cansaço. Apesar de a primeira vista um grande salão lotado parecer que exibe apenas várias representações desordenadas, existe um certo orquestramento das representações, e elas são coordenadas em certa medida, pelos personagens especiais, nossa última categoria de análise. Quando um anfitrião ou apresentador pede no microfone que os casais circulem no anti- horário, quando um casal ou grupo de dançarinos vai apresentar uma coreografia e requer todo o espaço do salão, modificando a disposição das pessoas presentes no espaço, os músicos e DJ’s também comandam, literalmente, o ritmo do baile e também o início e o fim do evento, todos esses são exemplos de como os personagens especiais podem coordenar ações no baile.

3.2.4 Personagens especiais

Os personagens especiais são aqueles que têm um papel de destaque nas representações, que coordenam ou que promovem interações. Os tipos de personagens especiais podem variar de um baile para outro, e podem ser observados produtores, idealizadores, anfitriões, apresentadores, músicos, DJ’s, dançarinos que apresentam coreografias, jurados, competidores, entre outros, dependendo do modelo do baile. Para nossa análise vamos focar em alguns personagens especiais que desempenham padrões expressivos: anfitriões, apresentadores, dançarinos, competidores, jurados e técnicos. Esses indivíduos desempenham representações que vão além das coletivas e simultâneas, e por representação entendemos “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência.” (GOFFMAN, 2002, p. 29). 116

Figura 11 – DJ Rapha – principal DJ do SM

Fonte24: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postadas na página do Facebook – Sambamaniacos

Na foto acima, um dos DJ’s dos bailes SM. Todos os bailes dos dois eventos são comandados por DJ’s em algum momento.

24 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1107225322776872/1107228112776593 117

Figura 12 – Banda Alto Astral e Denise Abrantes no baile do GB

Fonte25: cobertura audiovisual Rodrigo Zagari postada na página do Facebook – Gafieira Brasil

Nas fotos acima, DJ e músicos, personagens especiais que coordenam quase todas as representações dos bailes, determinando as músicas, os estilos e o ritmo do baile. No SM observamos que Léo e Roberta representaram vários papéis, dentre eles o de anfitriões, circulando pelo salão, cumprimentando as pessoas, dando boas vindas. Nos bailes de quinta-feira e de domingo, além de anfitriões também desempenharam o papel de apresentadores, anunciando os dançarinos que iam se apresentar. Todos os bailes, tanto do SM, como do GB se organizaram de modo que na metade do baile, aconteceram pausas para as apresentações, esse é o momento que a maioria dos personagens especiais entram em cena: os dançarinos, competidores, apresentadores e juízes. Nesse momento, opera-se uma grande mudança na disposição das pessoas no espaço, os dançarinos que ocupavam o salão espremem-se nas bordas, sentados no chão ou em pé, e o salão vira uma espécie de palco arena. No SM, as apresentações são apenas demonstrações artísticas coreografadas de casais, solos ou grupos, no GB as apresentações estão envolvidas dentro de um formato de campeonato e envolvem mais dois tipos de personagens especiais: os técnicos e os jurados.

25 https://www.facebook.com/gafieirabra/photos/a.1250453325118934/1250458205118446 118

As apresentações que observamos nos bailes geralmente não são vistas em outros espaços. Existe uma peculiaridade no samba de gafieira que não é comum nas outras danças, existem dois tipos de performance: para o público leigo, e para o público especializado, que é o público das academias, bailes e congressos. Se um casal de dançarinos vai apresentar para um grupo de pessoas leigas, como uma apresentação cultural fora do contexto de um baile, a dança vai se aproximar mais de uma ideia geral que as pessoas têm a respeito do que é samba de gafieira. Os movimentos serão mais básicos, conhecidos e reconhecíveis como sendo de samba de gafieira, os figurinos e expressões irão comunicar uma ideia de malandragem romântica que existe no imaginário geral sobre o samba de gafieira. O objetivo é que o espectador pense: “isso é samba de gafieira!”. Isso acontece, porque segundo Goffman:

“Assim, quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo. Na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la, à maneira de Durkheim e Radcliffe-Brown, como uma cerimônia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos valores morais da comunidade.” (GOFFMAN, 2002, p. 41)

Já quando o público é especializado, os limites das técnicas e das estruturas são testados, surgem novos elementos, e o objetivo é mostrar alguma novidade, algo que ninguém fez. Nas coreografias mais ousadas o objetivo é acrescentar uma interrogação à afirmação anterior: “isso é samba de gafieira?” 119

Figura 13 - Tamires Maciel e Jean Rabelo - apresentação de samba funkeado

Fonte26: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postada na página do Facebook – Sambamaniacos

Na foto, vemos um movimento bem ousado e pouco comum no samba de gafieira, o estilo que eles dançam é uma variação do samba de gafieira, o samba funkeado, criado por Jimmy de Oliveira, o figurino que eles usam, jamais seria ligado ao mundo do samba de gafieira por um público leigo. No entanto, dentro do baile, dentro dos eventos, o que eles apresentam é uma linguagem conhecida e reconhecida como parte do mundo do samba de gafieira. O momento das apresentações funciona exatamente como Goffman cita acima, como um momento de reafirmação dos valores da comunidade, como uma verdadeira cerimônia, e ao final, celebração.

26 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1106006569565414/1107212516111486 120

Figura 14 – “A Garotada”27

Fonte28: Cobertura audiovisual das empresas Nos Passos da Dança, Dance a Dois e ArtBox Produções postadas na página do Facebook – Sambamaniacos

Na foto acima, vemos uma coreografia de um grupo de profissionais que se consideram ou são considerados por seus pares como pertencentes à nova geração. Eles se uniram para fazer esse trabalho coreográfico que denominaram de “A Garotada”. Na coreografia homenageiam alguns professores da geração anterior, a coreografia foi dirigida por Marcelo Moragas, um professor da geração mais antiga. Em cada baile do SM foram em média 10 apresentações por noite, elas acontecem seguidas umas das outras, dentro do momento de pausa para as apresentações, quando terminam, segue o baile. Foram apresentadas coreografias de vários estilos e estéticas do samba de gafieira, foram apresentadas também algumas coreografias de outros estilos de dança de salão como o bolero e outros estilos de danças, como samba no pé e dança de rua.

27 Da esq. para a dir.: Thais Benite, Alexandre Silva, Evelyn Malvares, Gustavo Reis, Léo Fortes, Robertinha, Adriano Robinho e Juliana Lima. Para ver a coreografia: https://www.youtube.com/watch?v=haVMmVhWW8E 28 https://www.facebook.com/sambamaniacos.oficial/photos/a.1105234142975990/1105494306283307 121

Nos bailes do GB a grande maioria das apresentações ocorre dentro da competição. Cada um dos três sócios idealizadores coordena uma equipe de três casais, representando o papel de técnicos, todos os anos convidam um profissional do Rio de Janeiro para fazer o papel de técnico convidado. Portanto são 4 equipes de 3 casais que irão disputar uns contra os outros através de sorteio. São três categorias de disputa: coreografia de equipe, coreografia de casal e improviso de casal. Apesar de as coreografias serem de alto nível técnico e artístico, a disputa na categoria improviso é o ponto alto de toda a competição. O improviso é um elemento fundante do samba de gafieira, como vimos no primeiro capítulo dessa pesquisa. Existe toda uma preparação antes do GB, geralmente seis meses antes, tem o processo de audição que vai selecionar as equipes e destinar cada casal de dançarinos ao técnico por sorteio. Quarenta dias antes, eles entram em um processo de concentração e treinos diários para a competição. Os ensaios acontecem no complexo do Criança Esperança no Morro do Cantagalo, em salas, espaços e horários diferentes. Antes do início do período dos ensaios, os técnicos fazem uma reunião criativa onde decidem suas concepções coreográficas e compartilham ideias uns com os outros, para que os temas não se repitam e façam sentido como um todo. Também contribuem uns com os outros com ideias de temas, concepções artísticas e figurinos, constituindo uma rede de apoio entre eles. De acordo com Goffman:

“(...) nas interações em que o indivíduo apresenta um produto a outros, ele lhes mostrará apenas o produto final levando-os a apreciá-lo com base em uma coisa acabada, polida e embrulhada. Em certos casos, se foi exigido muito pouco esforço para completar o objeto, este fato será escondido. Em outros, serão as longas e cansativas horas de trabalho isolado que se ocultarão.” (GOFFMAN, 2002, p. 48)

Segundo Rodrigo Marques, o que eles buscam é um bom resultado de toda a criação como espetáculo e não apenas como competição. Os competidores normalmente não sabem dos processos e coreografias das outras equipes durante a maior parte do tempo, apenas uma semana antes do evento, na ocasião do ensaio geral, eles veem o que os outros irão apresentar. Em todo esse processo os papéis são bem definidos, os técnicos orientam, coreografam, ensaiam, criam; os competidores executam as performances; o público assiste e torce; os jurados decidem quem foi a melhor equipe nas coreografias, o melhor casal na coreografia de casal e decidem o prêmio mais esperado da noite, o casal campeão da categoria improviso. 122

Esses papéis são desempenhados por uma mistura das gerações que estudamos no segundo capítulo.

“A relação do GB com a tradição e com a inovação é assim, a gente tem bem claro, o lugar de cada um dentro do GB, se você é do lado da inovação, você é competidor, você vai vir para cá, vai trabalhar 40 dias, vai crescer, vai estudar, vai inovar, vai mostrar o teu limite, vai se jogar, vai botar a cara para bater. E se você tá do lado da tradição, que são os Grandes Mestres, você tem um espaço como professor, você tem um espaço como jurado, então o GB deixa bem claro isso, os grandes Mestres ocupam um espaço de honra. Muita galera nova, que tá dançando muito, que tem uma aula maravilhosa, incrível, que ainda podem contribuir muito com cenário de show, de palco, de competição, mas quer se colocar como professor e como mestre, problema nenhum com isso, mas não vai ser no GB. No GB existe um espaço diferente, o espaço do jovem é dançando, é se desafiando, é dando a cara a tapa ainda. Talvez isso mude, talvez não, mas o conceito mesmo nunca vai mudar.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

Figura 15 - Competição GB 2019

Fonte29: Cobertura audiovisual de Rodrigo Zagari postada na página do Facebook - Gafieira Brasil 29 https://www.facebook.com/gafieirabra/photos/a.1250453325118934/1250461661784767 123

Na foto, observam-se vários elementos que compõem a competição do GB: o público assistindo e vibrando; do lado esquerdo Soninha, dançarina da geração dos intuitivos, sentada na posição de jurada, ao todo são três jurados sentados ao redor do salão observando toda a movimentação do casal. Ao fundo, de terno preto, o técnico do casal que está se apresentando, Patrick Carvalho, no telão, uma visão mais aberta do salão onde se pode ver o parceiro da dançarina que aparece no primeiro plano. Tanto o GB como SM são grandes vitrines para os dançarinos que se apresentam ou competem:

“Eu acho que todo mundo mira no GB como aquele lugar onde pode ir até o limite, o máximo da exposição, e é realmente uma grande exposição. Eu participei como técnico e posso dizer isso, em 2015, no primeiro evento, depois que eu ganhei, coloquei uma foto no Facebook com a logo do GB atrás e eu de paletó como técnico, essa foto, correu o mundo todo, quase mil curtidas.” (Kadu Vieira, 2019, entrevista concedida à autora)

“O Léo tem uma preocupação muito grande em fazer com que o trabalho do profissional que ele tá colocando no SM apareça. Inclusive o convite pra minha primeira viagem internacional veio através de uma coreografia que eu apresentei no SM. Então tem uma parte profissional que eu devo muito a ele. A contratante viu a apresentação que eu postei e graças aquela apresentação ela entrou em contato.” (Ana Paula Pereira, 2019, entrevista concedida à autora)

Percebemos dessa forma, que o SM e o GB possuem um papel relevante no mundo do samba de gafieira e mais do que fazer parte, esses eventos contribuem para a criação e a renovação do mundo da arte em questão. Os dois eventos representam a consolidação de muitas inovações no mundo do samba de gafieira. Inovam nas trocas profissionais, nas pesquisas e apresentações de novas técnicas corporais na dança do samba de gafieira, no alcance através das redes sociais. E de acordo com Becker (2010):

“De um modo geral, as inovações desta ordem, que podem servir como ponto de partida para a construção de novos mundos da arte, emergem simultaneamente em lugares diversos. (..), os instauradores de novos mundos da arte participam nas grandes correntes intelectuais e culturais que se alimentam das tradições e das práticas existentes.” (BECKER, 2010, p. 259) 124

Apesar de serem espaços de inovação e de estabelecerem algumas rupturas e tensões com as gerações passadas, os eventos não rompem completamente com a tradição e com as práticas existentes, e como Becker esclarece acima, se alimentam delas.

3.3 Futuro do samba de gafieira: medos, caminhos e projeções

Apesar de os eventos entregarem para o público e para toda a comunidade do samba de gafieira um produto bem acabado, dentro de padrões comerciais e que possui uma grande importância no circuito profissional e cultural, existem inseguranças e dificuldades quanto a essa realização. Não existe patrocínio ou apoios financeiros que não sejam das inscrições, o que segundo os produtores é insuficiente para manter os eventos, e menos ainda para trazer retorno financeiro. Grande parte da cooperação técnica é realizada mediante trocas que não são necessariamente trocas financeiras ou comerciais. “No primeiro ano, a gente saiu pedindo para todo mundo, serviços técnicos, luz, som, etc.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora). Os entrevistados relatam que sem esse apoio com trocas de serviços, o orçamento seria insuficiente para cobrir todos os gastos do evento, e quanto maior o número de inscritos, essa dificuldade se agrava, pois uma estrutura maior exige um orçamento maior.

“Quem vê a grandiosidade do evento hoje acha que eu tô ganhando rios de dinheiro com o evento, mas eu num tô. Confundem muito, acham que nossa fonte financeira é o SM e não é, pelo contrário, nem passa perto, eu pago todo mundo e não tiro nada pra mim. E o desgaste e estresse durante o ano inteiro é muito grande. Se continuar desse jeito, não vai ter muitos anos pela frente não. Não por falta de público, mas por falta de apoio” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora)

O que chama a atenção é a existência de uma rede de apoio fora da lógica comercial para que o evento aconteça. Na comunicação com o potencial público participante, a propaganda, o discurso e a comunicação visual é voltada para uma lógica comercial, onde se cobra um ingresso para os bailes ou para o evento inteiro e em troca existe a promessa de um produto de qualidade. Por outro lado, nos bastidores, na construção do evento, essa lógica não rege as relações, as motivações são outras. Isso porque “As solicitações da cultura popular são, ao mesmo tempo, ‘comerciais’ e ‘anti-comerciais’.” (HOBSBAWN, 1990, p. 37). Quando conseguem ajuda de outros profissionais de forma gratuita ou a preço de custo, e quando eles mesmos se dispõe a trabalhar sem remuneração, isso significa que existe um sentimento de 125 responsabilidade pela construção e manutenção do próprio mundo do samba de gafieira. Além disso, podem existir outras recompensas que são interessantes no mundo do samba de gafieira, como oportunidades profissionais que a posição de destaque pode trazer no futuro, maior visibilidade e fama e uma posição privilegiada geralmente traz poder dentro da comunidade. Outro medo que aparece nos discursos é que uma excessiva preocupação com a virtuosidade técnica, que vem acompanhando o crescimento do profissionalismo, provoque o efeito indesejado de espantar o público, a exemplo do que aconteceu com a salsa. Segundo os relatos, a salsa foi um grande sucesso no Brasil por volta dos anos de 2005 a 2007, com muitas aulas, bailes e congressos, mas hoje em dia desapareceu quase completamente, os entrevistados apontam o alto nível técnico e as competições como causa. Em algum momento só existiam profissionais, não existiam mais alunos, o mundo da salsa não foi alimentado. Alguns entrevistados relatam que existem situações onde o samba de gafieira corre esse risco:

“Essa questão da alta performance pode ser ruim pro samba de gafieira. Nós deveríamos criar uma conduta, como no tango: você tem o tango cenário e você tem o tango salão. Precisamos ter uma dança de salão convidativa porque estamos nos afastando da qualidade de vida, estamos virando quase um esporte, o que é muito importante, mas precisamos apresentar o samba de gafieira de uma forma mais possível pros alunos ou pros futuros alunos. Por que o forró atropelou a gafieira e hoje tá no mundo todo, uma potência? Quando eu comecei a dançar, nem aula de forró tinha nas escolas, forró era considerada uma dança brega, e hoje o forró tá no mundo todo, os festivais de forró são lotados. Porque é acessível.” (Rodrigo Marques, 2019, entrevista concedida à autora)

A essa crescente preocupação com modo de fazer as coisas, Becker (2010) dá o nome de “academismo”, e alerta que pode haver uma preocupação demasiada na demonstração da habilidade do artista ou executante em detrimento das obras propriamente ditas. No mundo do samba de gafieira essas “obras” são as diversas manifestações e práticas, com seus diversos significados que estão correndo o risco de sucumbir às preocupações técnicas. O caminho apontado para que o samba continue evoluindo enquanto mercado é dar atenção para o aluno, para o público alvo, tornar o mundo do samba de gafieira cada vez mais atrativo para o leigo ou iniciante. Segundo Hobsbawn (1990): 126

“(...) o público não quer apenas se sentar calado, como população passiva, para assistir ao show: quer também fazer seu próprio entretenimento, participar ativamente e, o que é mais importante, socialmente. (...) Entre os jovens, esse desejo de fabricar e participar ativamente de seu entretenimento é naturalmente muito maior. Foram os jovens que trocaram as telas de cinema e televisão nos anos 50 por clubes de jazz e grupos de skiffle.” (HOBSBAWN, 1990, p. 37)

Nesse sentido, os produtores dos eventos demonstram preocupações e propoem práticas para se tornarem atrativos ao seu público. Os entrevistados afirmam que têm medo de que aconteça com o samba de gafieira o que aconteceu com a salsa. Afirmam que as pessoas muitas vezes não possuem um bom comportamento no salão, praticando ações que excluem dançarinos mais iniciantes, o que pode ser prejudicial para a manutenção e fortalecimento do mundo do samba de gafieira. “O SM é voltado para socialização, um exemplo é a hashtag que eu criei ‘eu danço com geral’ (#eudancocomgeral), o intuito é fazer com que todo mundo dance com todo mundo.” (Léo Fortes, 2018, entrevista concedida à autora). É interessante notar que as preocupações, citadas pelas novas gerações, estão relacionadas ao ingresso de novos participantes, já as preocupações apontadas em trabalhos anteriores (VEIGA, 2011 e SOUZA 2010) pelos mais tradicionais é em relação ao esquecimento de elementos da tradição. Para os mais antigos, esse tipo de esquecimento e as mudanças colocam o mundo do samba de gafieira em risco. Um exemplo de resistência encontrada por Souza (2010): “esse fato se relaciona com a resistência dos atores sociais a uma aprendizagem formalizada da dança de salão que segundo eles, deveria manter sua tradição de aprendizagem em bailes e nas próprias famílias.” (SOUZA, 2010, p. 96). Tanto a manutenção de alguns elementos tradicionais, quanto a preocupação com o ingresso de novos participantes são fundamentais para a manutenção de um mundo da arte:

“Os mundos da arte entram em declínio quando determinados grupos deixam cair no esquecimento as convenções que conheciam e utilizavam para produzirem as suas obras características, ou quando se torna impossível recrutar novos participantes.” (BECKER, 2010, p. 285)

Parece clichê afirmar que a inovação e a tradição precisam caminhar juntas e ambas são importantes, mas não podemos fugir dessa afirmação, que é comprovada também por Bauman: 127

“A ambiguidade que importa, a ambivalência produtora de sentido, o alicerce genuíno sobre o qual se assenta a utilidade cognitiva de se conceber o hábitat humano como o ‘mundo da cultura’, é entre ‘criatividade’ e ‘regulação normativa’. As duas ideias não poderiam ser mais distintas, mas ambas estão presentes – e devem continuar – na ideia compósita de ‘cultura’, que significa tanto inventar quanto preservar; descontinuidade e prosseguimento; novidade e tradição; rotina e quebra de padrões; seguir as normas e transcendê-las; o ímpar e o regular; a mudança e a monotonia da reprodução; o inesperado e o previsível.” (BAUMAN, 2012, p. 11)

Concluímos que o mundo do samba de gafieira, no momento da pesquisa, nos anos 2018 e 2019 apresenta uma estabilidade quanto à sua existência. As preocupações, principalmente das novas gerações, estão alinhadas com as definições dos teóricos acerca da manutenção das comunidades culturais. Existe a preocupação com a entrada de novos participantes de forma que permita uma continuidade da dinâmica, e ao mesmo tempo, essa nova geração, a partir do professor Carlos Bolacha se religou às práticas dos antigos dançarinos, reconstruindo assim o elo com a tradição, que vinha sendo enfraquecido pela geração de profissionais, ao adotarem técnicas e práticas que se distanciavam das práticas tradicionais. Uma cooperação mais forte entre as gerações identificadas pode ser um fator de fortalecimento do mundo do samba de gafieira e uma garantia de vida longa. 128

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O objetivo geral dessa pesquisa foi investigar as recentes transformações no mundo do samba de gafieira na cidade do Rio de Janeiro e compreender a posição dos eventos especializados no atual circuito. Buscando entender como os atores sociais envolvidos nas transformações dialogam com as gerações profissionais anteriores, principalmente no que tange às técnicas corporais. Além disso, identificar nessa estrutura os usos das redes sociais e do YouTube. Resgatamos o contexto histórico das danças de salão no Brasil a fim de delimitar de qual dança estamos falando: samba de gafieira, uma dança de origem popular e negra. Constatamos que a história da dança de salão brasileira que permitiu a posterior existência do samba de gafieira e das gafieiras, passa por uma história de perseguição e marginalização, mais do que pela de grandes e iluminados salões repletos de gente rica. Concluímos que atualmente as principais transformações na configuração do mundo do samba de gafieira passa pelo protagonismo dos jovens profissionais e a utilização das redes sociais e YouTube. Os eventos especializados surgem como pontos de convergência de novas práticas e tipos de cooperação. Os profissionais da primeira geração e da nova geração estão promovendo um retorno às origens, resgatando técnicas e movimentos executados pelos dançarinos intuitivos. Ao retomar as origens da dança de salão no Brasil, nos deparamos com uma enorme distância entre as práticas das classes sociais. Identificamos também um “apagamento” da influência das culturas negras na formação da dança de salão brasileira. Ao resgatar o contexto político-social da virada do século XX, destacamos que as grandes mudanças socioeconômicas desse período contribuíram para um declínio das práticas dançantes das elites e ao mesmo tempo uma ascensão das danças populares. Mas alertamos que não podemos considerar a história da dança de salão no Brasil como única, são duas histórias: as danças de salão das elites e as danças de salão brasileiras e populares. Rebatemos perspectivas que consideram as danças de salão populares como uma “evolução” ou um “retrocesso” das danças de salão das elites. A partir de Sodré (1998) e Sandroni (2001) defendemos a primazia da cultura negra na configuração do samba de gafieira. Os autores defendem a relação lundu- maxixe-samba na construção da música popular e urbana. Chegamos à conclusão que elementos presentes na dança do samba de gafieira, como criatividade, improviso, e o “requebrar” apontado por Sandroni, só podem ter origem nas danças de matriz africana e não na dança europeia “polca” como alguns autores apontam. 129

O período após o desaparecimento do maxixe, e a assunção do samba de gafieira como sua dança substituta, é um período de escassas pesquisas. O que se sabe é que as classes menos favorecidas, em sua maioria indivíduos negros, frequentavam bailes que mais tarde iriam receber o nome de gafieira, provavelmente em uma prática herdada dos frequentadores dos maxixes. Em nossa revisão de literatura não identificamos material sobre o samba de gafieira no período de 1930 a 1960 na cidade do Rio de Janeiro. As gafieiras voltam a aparecer na literatura a partir do interesse da classe média pelas gafieiras na década de 1960. A partir daí, começa a surgir uma profissionalização do setor, a fim de transmitir as técnicas corporais a um público disposto a pagar para aprender a dançar. Essa profissionalização se consolida com as figuras de Jaime Arôxa e Carlinhos de Jesus na década de 1980, que inauguram toda uma geração de profissionais que difundiram a dança de salão, inclusive a modalidade carioca samba de gafieira, por todo o Brasil e por outros países. Identificamos que as diferenças entre estes e os antigos dançarinos, chamados de intuitivos, residem na criação de técnicas de ensino padronizadas, enquanto entre os intuitivos o conhecimento circulava de forma orgânica, através da participação em bailes e no aprendizado na família. No período atual, identificamos a existência de três gerações que cooperam para as configurações do mundo do samba de gafieira: os intuitivos, os profissionais e a nova geração. Essas gerações se diferenciam umas das outras, essencialmente, pelos modos de transmissão das técnicas corporais. Foram observadas relações de tensões mas também de cooperação entre elas. Concluímos também que a nova geração faz progredir o processo de profissionalização iniciado pela geração de profissionais, além de incorporar de forma mais potente a utilização das redes sociais e do YouTube nas práticas profissionais, comunicacionais e técnicas do mundo do samba de gafieira. Além disso, constatamos que a primeira geração de profissionais se apoiou fortemente em culturas externas ao samba de gafieira, como balé, tango, teatro, dança contemporânea, dança de rua; a partir do professor Carlos Bolacha, identifica-se um retorno às origens e as práticas e técnicas dos dançarinos intuitivos torna-se uma fonte primária de conhecimentos. Percebemos o YouTube, e depois as redes sociais como ferramentas que revolucionaram as relações dentro do mundo do samba de gafieira. A comunicação entre os praticantes, o desenvolvimento da técnica e o liame com os espaços do samba de gafieira transformaram-se sobremaneira com o YouTube e as redes sociais. Associamos o advento do YouTube, para a dança de salão, como uma tecnologia que permite a “reprodutibilidade 130 técnica” da arte em questão, emancipando a prática do ritual, no nosso caso, a dança do baile. As danças e as trocas podem acontecer agora no campo virtual. Os eventos investigados pela observação participante revelam ser o ponto central da cooperação entre as gerações e as tribos do samba de gafieira, que possuem divisões pautadas pelas dicotomias Zona Norte e Zona Sul; novo e antigo; técnica e intuição. Além disso, mais do que cooperar no mundo do samba de gafieira, os eventos expandem o próprio mundo e criam possibilidades de novas cooperações. Por fim, ressaltamos que alguns assuntos foram deixados de lado por questões de delimitação da pesquisa ou de falta de material suficiente para avançar na investigação. Dentre eles, dois assuntos se mostram especialmente interessantes para pesquisas futuras: a) os bailes e o funcionamento do circuito do samba de gafieira da Zona Norte do Rio de Janeiro se mostra como um interessante caminho para compreender o mundo do samba de gafieira de forma mais completa; e b) a história do samba de gafieira no período de 1930 a 1960, representa uma grande lacuna nessa história. 131

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