Esporte e Sociedade, número3, Jul2006/Out2006 http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/

FLAMENGO PAIXÃO: 2 TEMPOS, 2 PARTES, 2 PERCEPÇÕES. OU “SOBRE AS DIFERENTES POSSIBILIDADES DE VER UM FILME”. Prof. Dr. Victor Andrade de Melo Universidade Federal do

Ficha Técnica

Ano: 1980 País: Brasil Direção: David Neves Roteiro: Joaquim Vaz de Carvalho Direção de fotografia: Fernando Duarte Câmera: André Faria e Walter Carvalho Trilha Sonora: Carlos Moletta Especificações: documentário, colorido, 35 mm, 70 minutos Elenco: Torcedores, jogadores, participação especial de Jards Macalé, João Nogueira, Márcio Braga, Niltos Santos, entre outros Sinopse: O filme é um resumo da história dos três tricampeonatos cariocas conquistados pelo clube, a partir da ótica do seu maior herói, o torcedor. É também uma homenagem a uma série de grandes jogadores que vestiram a camisa flamenguista (Carlos Alberto, , Almir, Fausto, , Dida, , e outros), culminando com o aparecimento de , o grande artilheiro. Encerrando "Flamengo Paixão", são projetadas imagens dos 32 gols mais importantes do último tricampeonato, assim como imagens da festa da torcida rubro-negra.

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Preleção “Se esse ‘kyla’ caísse no Brasil, no pé do Zico, seria gol” (torcedor referindo-se ao Skylab, satélite russo que tornara-se um motivo de preocupação mundial na década de 1980, em função da imprecisão do seu local de queda).

Fui recentemente, pela terceira vez, assistir a “Flamengo Paixão”, filme dirigido por David Neves. Já o tinha assistido em vídeo e a perspectiva de ver a película projetada no melhor cinema do Rio de Janeiro (o Odeon, na Cinelândia, não só por motivos técnicos, pela enorme tela, mas também pelo charme único de ser uma sala da década de 1920) se tornou um convite irresistível. Dirigi-me à sessão ansioso por rever as belas cenas, por matar um pouco da saudade de um time outrora glorioso e embuído da idéia de escrever uma resenha para a revista Esporte e Sociedade. Contudo, o que se passou na sessão, sem que eu esperasse, se tornou um estímulo para que escrevesse algo mais, a partir do diálogo estabelecido com a discussão acerca do poder do cinema de influenciar na formação de imaginários, algo que certamente passa por sua potencialidade de criar e recriar memórias, mitos, heróis do cotidiano que dialogam com os “deuses” projetados nas telas. Ao começar a escrever este texto, me incomoda (talvez sem razão) a imprecisão da natureza dessa produção. Certamente não se trata de um artigo acadêmico tradicional, tampouco é somente uma resenha. Tenderia a ser uma crônica, se não dialogasse com certas referências teóricas que, por opção, não serão explicitadas, ainda que sirvam de inspiração. Não se trata de uma crítica. Um ensaio? Um relato biográfico? Onde será publicado? Sei lá, talvez este escrito seja um misto de todas essas possibilidades. O que desencadeou meu desejo de escrever é perceber que “Flamengo Paixão”, tal como um jogo de futebol, aparenta ter dois tempos: em um primeiro momento parece investir na construção de uma discussão temática; posteriormente, como se o cineasta desejasse dialogar com o que construíra antes, reforça-se a conexão com os laços de memória, o que pode até parecer, a partir de um olhar mais apressado (se é que tenho razão na minha hipótese), um certo descaso na preparação do filme, algo que seria incomum se lembrarmos a trajetória de David Neves, que inclusive atuou não só como diretor, mas também em diversas outras funções técnicas, inclusive em filmes cuja temática era também o futebol: foi um dos roteiristas e colaborou na fotografia de

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“Garrincha, Alegria do Povo” (de Joaquim Pedro de Andrade, 1963), atuou como câmera em “Tostão, a fera de ouro” (de Paulo Leander e Leite, 1970) e como produtor de “Passe Livre” (Oswaldo Caldeira, 1974). Aliás, é curioso lembrar que Neves era vascaíno, tendo inserido referências a esse clube em diversos de seus filmes. É verdade que “Flamengo Paixão” foi feito com pouco dinheiro: era uma produção independente e o projeto modificou-se no decorrer de sua execução (em virtude da possível conquista do campeonato brasileiro de 1980). É verdade que no final já se filmava quase sem dinheiro. Mas custo a crer que a segunda parte é somente resultado dessa ausência de condições materiais, não dialogando com as opções do cineasta. Isso é, sendo conhecedor dos mecanismos técnicos cinematográficos, custa-me acreditar que Neves tenha sido negligente na realização da parte final do filme. Parece- me mais provável acreditar que esse momento posterior deve ser compreendido no conjunto de reflexões do cineasta. De qualquer maneira, tendo também sentido um certo estranhamento inicial, ouso afirmar que o filme tem mesmo um intervalo simbólico entre os dois momentos, o instante que leva para embarcarmos em outra “viagem”. Assim como em um jogo de futebol, ainda que haja conexão entre os “dois tempos”, cada um deles tem sua dinâmica própria. Pessoalmente, a fascinante experiência que tive ao assistir o filme foi perceber minhas diferentes posturas em cada um dos momentos, notar como acabei mergulhando na proposta da película. Na primeira parte, a assisti mais como “teórico”, tentando captar suas peculiaridades técnicas, dialogar com outros filmes, construir a resenha, que era meu intuito original. No “intervalo”, o filme momentaneamente se tornou desinteressante, demorei um pouco a “desembarcar” do “primeiro tempo” e entrar na idéia do “segundo”. Logo, a princípio sem perceber, fui sendo envolvido pelas imagens da segunda parte, dialogando com minha vida, com minhas memórias, construindo um fluxo entre o individual e o coletivo, mediado pelo olhar do cineasta. Não sei se assim o vi, ou se assim o quis ver. Sei que assim o senti. E por sentir, divido com o leitor o conjunto de reflexões desencadeadas, no mínimo para que possamos discutir o impacto multifacetado do cinema, e para continuar o esforço de perseguição dos diálogos que historicamente têm se estabelecido entre essas duas maravilhosas manifestações culturais (esporte e cinema), algo que tem sido constante em meus últimos anos de produção acadêmica.

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1º tempo Logo no início do filme, vemos Jards Macalé ironicamente afirmando que já foi músico, mas agora se dedica ao exercício de ser flamenguista. Como se oferecesse pistas ao espectador, Neves logo de início apresenta duas opções narrativas que serão comuns no decorrer da película: o uso constante de imagens “fora de script”, como se desejasse captar com mais acuidade a espontaneidade que marca o futebol, e o espaço que a música ocupará em sua produção, dialogando constantemente com as cenas exibidas, algo que reforça sua tese de que o esporte bretão se trata de um fenômeno total, que percorre e impregna todos os nossos momentos cotidianos. A apresentação dos créditos, fazendo uso ou simulando a utilização de um placar eletrônico (o velho placar eletrônico), e a exibição do Maracanã (em panorâmicas ou em detalhes), o templo dessa religião profana chamada futebol, reforça a tentativa de ligação estética com o objeto central do filme: o Flamengo é importante na trama, mas o cineasta parece a todo tempo se deslocar para o fenômeno em sua dimensão mais ampla; o clube é só (e isso é muito) uma poderosa manifestação da arte maior, a ponta do iceberg que permite prospectar os 90% de gelo que estão abaixo da água, aos olhos somente dos mais atentos. Ainda que tenha contado com o auxílio do clube na produção, e em certos momentos beire a possibilidade de ser um “filme oficial”, Neves consegue com habilidade escapar dessa armadilha, mesmo quando reforça o argumento, fazendo uso das palavras de dirigentes, torcedores e de letras de música, de que o Flamengo é um pedaço do Brasil. O cineasta investe na perspectiva de captar o “estado flamenguista de ser” e o impacto dessa “crença” no cotidiano da cidade e da população, como se o clube fosse um estudo de caso para entender a presença do futebol na formação cultural brasileira.

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Ainda que por vezes exagere na idéia de que um “flamenguista é capaz de tudo por seu time” (apesar de que realmente, em se tratando do referido clube, nada parece muito exagerado), do uso de certas frases feitas (lembremos que Joaquim Carvalho, o roteirista era flamenguista) e de imagens já na época muito comuns, “Flamengo Paixão” é bastante eficiente ao forjar o mito do grande clube. Para tal, dialoga com o glorioso passado da equipe rubro-negra (e é delicioso vermos imagens antigas do futebol e da cidade do Rio de Janeiro, relembrarmos antigos jogadores, estádios e formas de jogar), enaltece o presente e em certo sentido antecipa um momento áureo futuro. Devemos lembrar que na década de 1980 a equipe rubro-negra sagrou-se campeã em importantes disputas. O filme em certo sentido buscava narrar a conquista do tricampeonato estadual de 1978/1979/1980, o terceiro da história do clube, mas foi ampliado, opção explícita na película, em função da conquista do campeonato brasileiro de 1980. Futuramente, em poucos anos, o clube ganharia mais 2 “brasileiros”, a “Libertadores” e o “Mundial de Clubes”, todas conquistas vividas como épicos por seus torcedores. David Neves parece investir na idéia de que uma possível chave da popularidade do Flamengo e do futebol está na forte relação que se estabelece entre os craques e os torcedores, para ele figuras centrais do espetáculo. Isso no filme se reforça pelos usos de imagens dos craques do passado e do presente (e pelo argumento de que os maiores jogadores brasileiros atuaram, nem que seja pelo menos alguma vez, no Flamengo) e pelo espaço concedido ao torcedor, cujo símbolo máximo permeia a trama com frases divertidas, ainda que muitas vezes sem sentido. “Flamengo Paixão” se aproxima muito de “Garrincha, Alegria do Povo”, de Joaquim Pedro de Andrade, filme símbolo para entender as relações entre o futebol e o cinema no Brasil, no qual Neves também trabalhara. Percebe-se tal diálogo não só na forma de abordagem da temática (os momentos extra-campo; o futebol no cotidiano; a participação dos torcedores no espetáculo; o desejo de captar as coisas do “popular”, algo caro ao movimento cinemanovista), como também nas opções narrativas (a montagem não linear; os closes na torcida; o uso de imagens do jogo, inclusive os recursos de captar as cenas de dentro do campo e de utilizar closes sucessivos em fotos; o diálogo com a música). Vejamos a posição de Neves, quando comenta “Garrincha, Alegria do povo”, para reforçar a visão que tinha acerca do futebol:

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O futebol pode ser considerado hoje, no Brasil, um dos elementos-chave para a conceituação de uma estética popular, se não, pelo menos constitui-se num correspondente daquelas fontes primitivas que eram o circo e as paradas marciais. De um modo geral, os dados estéticos das camadas menos favorecidas intelectualmente baseiam-se num congraçamento harmonioso das sensações, coisa de que o futebol é especialmente pródigo. A gratificação estética não é a única do futebol, mas dela partem os vetores que compõem as demais gratificações. O lazer e sua noção mais ampla fundam-se na estesia que o futebol proporciona às mais variadas camadas da sociedade.

Na verdade, “Flamengo Paixão” carrega muito das características da obra de Neves. Para entendermos melhor tal ligação, cito as palavras de Ruy Gardnier (artigo publicado na revista eletrônica Contracampo n.39):

A simplicidade, a ingenuidade no registro – uma ingenuidade que povoa tudo e parece espantar-se com cada instante da existência humana – é o grande elo que reúne todos os filmes de David Neves (...) É o único de sua geração que prefere a parte ao todo, que considera o fragmentário como um objetivo a alcançar (...) (Partilha) um gosto pelo cotidiano e mantém com seus espectadores uma relação onde a afeição mútua é predominante (...) Sabe tirar da câmera de seus filmes aquele sentimento de intimidade, de naturalidade que se vê quando se assiste a imagens quaisquer tiradas de um registro familiar.

Enfim, nessa primeira parte temos um belo material que pode permitir discutir o forjar de mitos ao redor do futebol; elementos para debater o papel e a presença do esporte na construção da identidade nacional; possibilidades de questionar os usos do passado e da memória na configuração do presente; potenciais possibilidades para que possamos desenvolver novas abordagens sobre a história do esporte (entre outras, por exemplo, chama a atenção a necessidade de aceitarmos o desafio de escrever uma história da cultura material esportiva, abordando os implementos utilizados, roupas, estádios etc.).

2º tempo Paulatinamente vemos crescer no filme a exibição de jogadas, jogos e gols que conduziram o Flamengo à conquista do tricampeonato de 1978/1979/1980 e do

6 Esporte e Sociedade, número3, Jul2006/Out2006 http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/ brasileiro de 1980. Teria o cineasta feito tal opção para permitir o espectador mergulhar experiencialmente no que argumentara na primeira parte? Posso narrar o que houve comigo na exibição. Por que me tornei flamenguista? Nunca parara para pensar nisso, sempre foi algo óbvio em minha vida. Ao ver o filme, ao rever as cenas das conquistas, contudo, comecei a lembrar que os domingos em minha casa eram eivados de um caráter ritual. Acordava e, depois do café da manhã, meu pai me levava para jogar bola na praça, já vestido com a camisa do Flamengo (todos nós tínhamos camisas dos clubes, que ainda não eram como os dias de hoje um produto caro, e o sonho maior de ter uma bola de futebol “courinho 5”, essa sim cara para nossos padrões da época). Por lá, hoje me lembro, ele encontrava os amigos para a disputa “simbólica” que precedia os jogos. Hoje vejo que ele não me levava à Praça só por minha causa; isso fazia parte de seu programa dominical. Ir à Praça fazia parte do ritual de domingo, que antecedia os jogos de futebol. As tardes de domingo eram por nós aproveitada para brincar na rua e por meu pai para dormir, sempre acompanhando os noticiários na Rádio Globo (reportagens de Kleber Leite e Loureiro Neto, que inclusive aparece no filme). Antes do jogo, meu pai rapidamente ia à quitanda comprar refrigerante, pão e mortadela, pois lá me casa não se jantava aos domingos, se “lanchava” (algo que era celebrado por nós). Posteriormente coube a mim buscar esses produtos, algo incômodo pois interrompia a felicidade das brincadeiras de domingo à tarde, as últimas antes dos “terríveis” momentos que antecediam à segunda, que trazia a escola e os deveres domésticos. Na hora do jogo, meu pai me chamava para juntos ouvirmos a partida (quase não havia transmissões televisivas ao vivo). Sem que eu entendesse bem a dinâmica, me postava a seu lado (ou melhor, perto dele, pois ele não parava quieto), próximo à vitrola: não havia ainda os “3 X 1”, tratava-se de um aparelho enorme, que continha toca-discos e rádio; quando ligada, os botões eram iluminados por uma luz verde. Poucas vezes fomos aos estádios: era longe de minha casa (em Senador Camará, no Bairro Jabour) e não era hábito familiar. O ritual seguia-se com o acompanhamento do resultado da loteria esportiva (nunca favorável a nós), dos gols no “Fantástico” e da reprise do jogo na TVE (ora acompanhado com mais ora com menos felicidade, dependendo do resultado), as

7 Esporte e Sociedade, número3, Jul2006/Out2006 http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/ mesmas imagens que estão lá em “Flamengo Paixão”. Lembro de me deitar no colo de meu pai e não poucas vezes adormecer sem ver o jogo inteiro. Meu irmão, que era mais próximo do meu pai (eu era mais “chegado” à minha mãe) tentou ser Vasco, não o sendo por ações ora mais ora menos explícitas do “velho”. Escolher o time de futebol sempre foi uma “prerrogativa” do pai, como se fosse algo pré-determinado pelo mundo masculino, e o “velho” não se fez de rogado em exercer o papel que “historicamente” lhe fora conferido. “Flamengo Paixão” me fez lembrar disso. Lembro-me bem da final do Campeonato Brasileiro de 1980. Brincava na rua quando ouvi o grito de chamado do “velho”: o jogo começara. O jogo anterior fora transmitido pela televisão (pois tinha se realizado em Minas Gerais) e o resultado não fora favorável à equipe carioca. Meu pai, militar, na ocasião se encontrava fora do Rio e por telefone nos falamos logo depois do jogo. Lembro de ter falado de minha tristeza e dele dizendo que no domingo tudo seria diferente: esse título ninguém tirava do Mengão. A sua confiança era pautada nos mesmos parâmetros expostos no filme: o Flamengo é um time que cresce nas adversidades, impulsionado por sua torcida. E foi ao lado da vitrola que sofremos juntos (mais meu pai do que eu) e juntos também comemoramos a conquista do campeonato brasileiro, primeiro de uma série que estava por vir. As ruas do Bairro Jabour foram tomadas por gente de todo o tipo, vestida de camisas do clube, a alegria era intensa. Aquela noite de domingo foi diferente: não teve “gols do Fantástico”, não teve reprise na TVE, foi desfrutada na rua, como se a brincadeira não parasse e sobrepujasse a necessidade de trabalho do dia seguinte. Meu pai mal podia se conter com tamanha a felicidade. Meu pai não mais veria outra conquista do Flamengo, morreria no ano seguinte. Eu ainda acompanharia durante uns dois ou três anos as belas conquistas do clube, tentando manter o ritual. Depois me desligaria do futebol e só manteria com ele uma relação distante (embora nunca deixasse de acompanhar o resultado dos jogos, algo que faço até os dias de hoje). Hoje acho que sem o “velho” o futebol perdeu muito do sentido que tinha para mim. Na época, não vi “Flamengo Paixão” e jamais pensava que escreveria esse texto. Uma vez afirmou Sérgio Cabral, acerca dos saudosismos relacionados ao carnaval, que os carnavais da juventude sempre parecem mesmo melhores, porque na

8 Esporte e Sociedade, número3, Jul2006/Out2006 http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/ juventude tudo tende a parecer melhor. Talvez o mesmo se passe com o futebol. Talvez isso seja desencadeado pelos filmes. Talvez esse tenha sido o efeito do filme sobre mim. De qualquer maneira, a experiência de ter assistido “Flamengo Paixão” me ajudou a lembrar que o cinema tem uma enorme importância também como lembrança de um tempo, de recuperação de memórias, de caminho para o encontro com o passado, algo que foge de uma abordagem puramente racional. Não sei se o que aqui narrei realmente aconteceu dessa forma, provavelmente são reelaborações atuais de um tempo já distante. Provavelmente minha memória selecionou algumas coisas, aqui narradas pelo filtro de quem escreve no presente. Mas e daí? Se não foi exatamente assim, assim hoje me parece, e isso me permite rever a minha vida, encontrar meu passado, repensar minha trajetória. O que importa é que tudo isso foi ocasionado por um filme. Um filme que parece ter parte de sua magia no fato de argumentar algo em um primeiro momento e nos permitir mergulhar sensoriamente, na segunda parte, naquilo que antes tematizara. Pelo menos assim ocorreu comigo. E provavelmente essas coisas já devem ter acontecido, de formas diversas, com muitas outras pessoas. Afinal, não seria essa característica uma das principais potencialidades que constroem a popularidade tanto do cinema quanto do esporte? Não seria o seu aspecto estético denotado, a deixar marcas corpóreas por todo a vida, um dos principais responsáveis pelo poder de influência dessas manifestações culturais? Não me arriscaria a categoricamente responder tais questões, mas foi muito bom lembrar de um Flamengo que não mais existe, de uma cidade que se foi e de meu pai, com o qual lamentavelmente pude assistir tão poucos títulos... Saudades da vitrola de luz verde das tardes de domingo...

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