Artigo recebido em Seleção Brasileira, 08/09/2014 Aprovado em 14/10/2014 identifi cação nacional e FRANCISCO ÂNGELO BRINATI imprensa: A Representação do Universidade Federal de São João del-Rei – chicobrinati@yahoo. “Mineiratzen” na Folha de S. com.br 1 Doutorando em Comunicação Social Paulo e em O Globo pela Universidade Francisco Ângelo Brinati do Estado do (UERJ). Professor de Resumo Comunicação Social da O esporte, entre as suas diversas variantes, também é meio de expressão das constru- Universidade Federal de ções imaginárias acerca da identidade nacional. O futebol atua como um elemento São João del-Rei (UFSJ) aglutinador de raças e classes e é uma importante maneira de infl uenciar a visão que o brasileiro tem de si próprio. No Brasil, a seleção funciona como instrumento unifi cador de nação, representante da cultura nacional. O trabalho, um estudo sobre Comunicação e Esporte, pretende fazer uma análise do discurso dos jornais impres- sos O Globo e Folha de São Paulo no dia seguinte à derrota do selecionado nacional para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014. Busca-se, uma vez que se percebera o vínculo simbólico entre o conceito de nação e o desempenho da seleção nacional de futebol, entender como foram construídas as representações da equipe e os jogadores diante do revés sofrido dentro de campo.

Palavras-chaves Imprensa, Representação, Discurso, Seleção Brasileira, Copa do Mundo.

Abstract Th e sport, among its many variants, is also means of expression of imaginary con- structions about national identity. Football acts as a uniting element of races and classes and is an important way to infl uence the vision that the Brazilian has of itself. In Brazil, the selection works as a unifying instrument of nation, representative of the national culture. Th e work, a study on communication and sport, intends to make a discourse analysis of the newspapers O Globo and Folha de São Paulo the day aft er the defeat of the selected national Germany in the World Cup of 2014. Search your- self, once you understand the symbolic link between the concept of nation and the performance of the national soccer team, understand how the representations were built the team and players before the setback suff ered in the fi eld.

Keywords Estudos em Jornalismo Press, Impersonation, Speech, Brazilian Team, FIFA World Cup. e Mídia Vol. 11 Nº 2 Julho a Dezembro de 1- Uma versão deste trabalho também foi publicada nos anais do GP Comunicação e Esporte do XIV En- 2014 contro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de ISSNe 1984-6924 Ciências da Comunicação 2014. 402 DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-6924.2014v11n2p402 Os primeiros anos de futebol cravos e trabalhadores comuns. O homem no Brasil não se preocupava com a aparência física, São várias as versões sobre o início da tinha pele clara e músculos frágeis. Com prática moderna do futebol no Brasil. A a libertação dos negros e o crescente uso mais aceita é a chegada de Charles Miller a social dos esportes, isso muda. Mesmo um Santos-SP, em fevereiro de 1894, após um homem de elite, para se destacar, precisava período de estudos na Inglaterra. Desde ter um bom porte físico e praticar alguma esse que é considerado o marco inicial da atividade esportiva. disseminação do jogo no país, o esporte se No início dos anos 1900, jovens brasilei- tornou um instrumento de unidade na- ros que tinham estudado na Europa e imi- cional, integrante fundamental da Cultura grantes europeus fundaram os primeiros Brasileira. clubes de futebol no país. Restrito inicial- Originado em clubes e colégios de classe mente à elite, “o foot-ball funcionava como média da Inglaterra, no princípio do sécu- um símbolo de status quo, como diferen- lo XIX, o futebol foi instituído de forma ciador de classes, um referencial para as definitiva em 1863, com a criação do The pessoas que queriam ter bom gosto e ser Foot-ball Association, órgão que tinha a aceitos na alta sociedade” (SOUZA, 2008, função de regulamentar e organizar o es- p.28). À época, o remo e o críquete eram porte em terras inglesas. Neste período, a os esportes mais populares, ao menos no prática do jogo já era vista como um mo- Rio de Janeiro. Aos poucos, as cidades fo- delador de caráter de jovens da burguesia ram se transformando. Campos de várzea europeia. Mas, aos poucos, o proletaria- foram aparecendo em bairros suburbanos. do foi conseguindo entrar num ambiente Trabalhadores, pobres, negros e mulatos dominado até então pelas classes média e adotaram o esporte como lazer. Famílias alta2. inteiras acompanhavam os jogos. Novos No Brasil, não foi diferente. Praticado, clubes foram criados. E a popularidade do na maioria, por jovens brancos da elite e futebol aumentou. Antes, somente os jovens e as mu- imigrantes, antes dos anos 1920, as parti- lheres das elites iam assistir aos ma- das eram criticadas por alguns intelectuais tchs. Depois, os espaços nas arqui- nacionalistas que achavam o futebol mais bancadas passaram a ser disputados por um novo público. Trabalhadores uma influência estrangeira e alienante do e desempregados passaram a olhar povo brasileiro. Era mais um elemento que com mais interesse a novidade. To- colocaria em risco a autenticidade da Cul- dos estranhavam, no início, aquele espetáculo de vinte e duas pessoas tura Brasileira. Já que o “ser brasileiro” não correndo atrás de uma bola. Entre- poderia vir de cópias dos países exteriores. tanto, existia algo viril, algo de san- Com a consolidação do fim da escrava- guinário, algo trágico nesse jogo que levava aquelas pessoas, sofridas com tura, a difusão entre as camadas mais po- a vida, a extravasarem seus rancores bres e os negros ganha força, já que a prá- e desilusões numa partida de foot- -ball. (SOUZA, 2008, p.30-31) tica esportiva em geral sofreu mudanças de valores após a abolição em 1888. Antes, A Seleção Brasileira de futebol surge a sociedade brasileira convivia com o pre- nesse cenário, no ano de 1914. Diante da conceito: quem tivesse a pele bronzeada e necessidade de se montar um seleciona- 2- Cf. Souza, 2008. o corpo musculoso era associado aos es- 403 do para enfrentar equipes estrangeiras, bol brasileiro foram marcados pelo ama- foi a campo um combinado de jogadores dorismo. Inicialmente, os jogadores não paulistas e cariocas, no Estádio das Laran- recebiam salários. Contudo, uma prática jeiras, no Rio. A vitória por 2 x 0 sobre o escondia um certo pagamento aos atletas. Exeter City, da Inglaterra, em 21 de julho, O “bicho” – uma ajuda de custo por parti- inaugurou o que seria considerado poste- da – era pago por vitória. Uma espécie de riormente como “um novo canal formal salário informal. Com isso, jogadores das de operação para a diplomacia das nações” classes mais baixas viram uma maneira de (SARMENTO, 2013, p.12). Esse primeiro ascensão. O profissionalismo seria inevitá- jogo foi seguido de diversas disputas con- vel, mesmo sendo alvo de muitas críticas. tra os vizinhos Uruguai e Argentina. Des- O jogador que recebia algum valor por de então, as partidas envolvendo a Seleção partida era considerado “mercenário”. O Brasileira passaram a ser frequentes. E os amadorismo era exaltado, pois o atleta jo- convites para participar de torneios, prin- gava “por amor à camisa” de um clube. Era cipalmente contra equipes da América do um ídolo, apreciado e convidado como Sul, também. estrela em bailes de gala. Sem obrigações Essa disputa em campo, ainda de uma trabalhistas. Um dos medos de se instau- maneira amadora, porém de suma im- rar os contratos profissionais era vincular portância diplomática, colocou o governo o atleta a um clube com deveres e direitos brasileiro diante de uma tarefa complica- de trabalhador comum, sem regalias. da: unificar as associações regionais que Aos poucos, o futebol virara um gran- organizavam a prática do futebol no país de balcão de negócios. Os times que mais em um único organismo nacional. Desde a venciam, traziam mais torcedores, fãs, vi- criação da Liga Paulista de Futebol (LPF), sibilidade. As vitórias eram necessárias. em 1901, vários outros órgãos foram fun- Os melhores jogadores eram disputados dados, principalmente no eixo Rio-São e recebiam bons “bichos”. “Se o atleta não Paulo. Assim, a disputa política entre essas gostasse do ordenado, atuava mal, muda- associações, que atendesse o interesse de va de time ou viajava para o exterior. Era todas em torno do “comando” esportivo preciso encontrar uma maneira de manter inviabilizava a formação de uma Seleção o bom player no clube. Muitos, revoltados com os principais jogadores. Somente em com a sua situação ambígua, exigiam que 1916 foi criada a Confederação Brasileira o profissionalismo fosse reconhecido de de Desportos, que unificaria a organiza- fato” (SOUZA, 2008, p.32). ção do futebol no país3. Mas a CBD, mes- O profissionalismo chegaria de vez nos mo assim, não resolveu de início todos os anos 19304. Década que ficaria marcada problemas de relacionamento e interesses também pelas primeiras Copas do Mun- 3- Cf. Sarmento, 2013. de dirigentes, principalmente de Rio e São do. O Mundial foi uma ideia que surgiu 4- Mais especifica- Paulo. logo após os Jogos Olímpicos de 1928, em mente no ano de 1933, quando “o governo Após fracassos nos primeiros campeo- Amsterdã, na época cidade-sede da Fifa instituiu a profissio- nalização do futebol, natos contra os rivais continentais, o Brasil – a Federação Internacional de Futebol superando os limites conseguiu vencer seu primeiro título em Associado, órgão criado em 1904 para re- do profissionalismo marrom que caracte- 1919, no Sulamericano disputado no Rio ger o futebol no mundo –, quando o atual rizara o esporte por tantos anos” (AGOS- de Janeiro. Esses primeiros anos do fute- bicampeão olímpico do esporte, Uruguai, TINO, 2002, p. 142). 404 se ofereceu para arcar com as despesas e gração e conflito” (SOUZA, 2008, p.26). organização do torneio. Saía do papel o Poucos elementos da cultura nacional projeto do presidente da Fifa, o francês Ju- podem proporcionar à sociedade brasilei- les Rimet, de se criar um torneio autôno- ra a experiência de justiça e igualdade so- mo das Olimpíadas, que reunisse seleções cial pregada por Roberto DaMatta (1994, nacionais. Estava lançada a competição p. 17). Talvez pela facilidade de entendi- que evidenciaria as disputas entre nações mento de regras e por mostrar que as par- como um forte sentimento nacionalista, tidas nem sempre poderiam ser previstas. carregada de simbolismos sobre os países Sai vitorioso quem tem mais mérito ao que disputam o torneio. longo do jogo. Decidiu-se, pouco depois, no Congres- Vencer em uma Copa do Mundo trazia so Internacional da Fifa, que o campeona- sentimentos de confiança e esperança ao to seria disputado em 1930, ano do Cente- brasileiro. “Povo que podia vencer como nário da Independência do Uruguai, uma país moderno, que podia, também, final- maneira de atender o pedido dos represen- mente, cantar com orgulho o seu hino, e tantes uruguaios na entidade de tornar o perder-se emocionado dentro do campo selecionado um símbolo da nacionalidade, verde da bandeira nacional” (DAMATTA, vinculando a imagem de um feito histórico 1994, p. 17). do país ao time de atletas que disputariam Se pensarmos que os traços da identi- a competição. A seleção do Uruguai seria dade brasileira a definem como uma “uni- utilizada como representante da identi- dade na diversidade” (ORTIZ, 2012), o dade nacional, assim como outros países futebol também se mostra democrático e pelo mundo fariam com suas seleções. plural. Esse elemento aglutinador de raças e classes, conseguiu unir Estado nacional Identificação nacional e Seleção e sociedade. Assim, a preocupação com o Brasileira universo esportivo se aproximava da defe- Ao longo dos mais de 120 anos de fu- sa dos interesses nacionais, da promoção tebol no Brasil, ao mesmo tempo em que social do povo e da construção da iden- podemos assistir governantes utilizando, tidade nacional. O esporte reafirmou sua num determinado momento histórico, condição de meio de expressão das cons- uma vitória esportiva e servindo-se dela truções imaginárias acerca da identidade como o significante, através do qual trans- nacional. “Artistas, políticos e intelectuais, mite mensagens ideológicas, o esporte como o escritor Coelho Neto, manifesta- também é usado por um grupo de operá- ram-se favoravelmente à disseminação rios e trabalhadores de classe baixa para da prática desportiva como elemento de tentar demarcar seus próprios limites. ascensão social e de realização das aspira- É o que Simoni Guedes (1977, p. 163) ções e projetos relacionados à construção trata o futebol como sendo “instituição da identidade nacional brasileira” (SAR- zero”, ou melhor, como instrumento de MENTO, 2013, p.32). significação e representação. “Assim como Historicamente, o debate em torno da a identidade nacional, o futebol é invenção identidade nacional mostra um sincre- e reinvenção de governantes e governados, tismo. Diante da disparidade racial, o dominantes e dominados. Espaço de inte- elemento mestiço foi sendo considerado 405 primordial para entendermos o ser brasi- brasileiro”. A temática racial é reeditada leiro. A construção da legitimidade de um por Freyre, sendo colocada como um pri- modelo de representação nacional come- vilegiado objeto de estudo para a compre- çou a encontrar no campo desportivo um ensão do Brasil. espaço privilegiado para a veiculação de A ideologia da mestiçagem, que es- um imaginário sobre o ideal de brasilida- tava aprisionada nas ambiguidades de. Afinal, o esporte estava relacionado à das teorias racistas, ao ser reelabo- expressão das massas urbanas. rada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente Esse movimento, reforçado na década celebrado nas relações do cotidiano, de 1930, no Governo Getúlio Vargas, vai, ou nos grandes eventos como o car- naval e o futebol. O que era mesti- no entanto, acentuar o processo de unifi- ço torna-se nacional (ORTIZ, 2012, cação nacional, o que será visto pelo pen- p.41). samento tradicional como uma tendência “totalitária” que se contraporia à natureza Uma das tendências do texto do sociólo- brasileira da unidade na diversidade (OR- go seria transformar a “negatividade” que TIZ, 2012, p.98). Uma vez que se percebe- existia sobre o mestiço em “positividade”, ra o quanto o futebol era um importante conferindo contornos de uma identidade instrumento para influenciar a visão que que vinha sendo desenhada, inclusive pelo o brasileiro tinha de si próprio, os esforços futebol. governamentais foram ainda mais longe. Sendo a identidade como uma entidade O esporte passou a ser encarado pela pro- abstrata sem existência real, ela torna-se paganda getulista como síntese da capa- indispensável como ponto de referência. cidade e originalidade brasileira (dizia-se Se traduzirmos esta afirmação genérica que os jogadores reinventaram o jogo bre- em termos de identidade nacional, temos tão), o futebol assumia uma função crucial que esta, assim como a memória nacio- nos valores ideológicos governamentais. nal, é sempre um elemento que deriva de A presença de negros na seleção passou uma construção de segunda ordem e que a ser apresentada como símbolo da demo- se modificaria no decorrer das diferentes cracia racial, ideia que ganhava projeção “fases” da história brasileira. nos anos de 1930 a partir das teses do soci- A identidade nacional é uma enti- ólogo Gilberto Freyre. Este, autor de uma dade abstrata e como tal não pode série de trabalhos sobre identidade nacio- ser apreendida em sua essência. Ela nal e desporto, afirmava que um dos trun- não se situa junto à concretude do presente, mas se desvenda enquan- fos da Seleção Brasileira era exatamente to virtualidade, isto é, como projeto a mestiçagem, conferindo aos brasileiros que se vincula às formas sociais que um estilo de jogo todo original (AGOSTI- a sustentam (ORTIZ, 2012, p.138). NO, 2002, p. 143-144). Esse sincretismo de raças foi exalta- E através do contraste entre os estilos de do pela primeira vez na Seleção, durante jogo dos europeus e dos brasileiros, os in- a Copa de 1938, com jogadores negros e telectuais começaram a associar o futebol mulatos fazendo sucesso na equipe que com a nação que se pretendia construir. disputou o Mundial na França. Conferin- Se, antes de 1938, a ausência da figura do do características de, enfim, um “futebol mestiço impossibilitava o Brasil ser pensa- 406 do como um todo, com a Seleção Brasileira tese da nação, que defenderiam em cada naquele ano, dos craques negros torneio. Assim, após o Mundial de 1938, e Domingos da Guia, a identidade nacio- o Brasil passou a perseguir a Copa não so- nal se mostra democrática e plural. mente como forma de resolver um dilema A Copa de 1938 foi marcante também simbólico relacionado à identidade étnica porque o entusiasmo que atingia os torce- e cultural do povo brasileiro. dores nas vitórias, das mais variadas raças e classes, chamou a atenção do governo Maracanazo e o pentacampeonato brasileiro. “Mais do que uma representa- mundial ção positiva da harmonia social, o entu- Com o fortalecimento do futebol no siasmo pelo futebol combinava o nacio- país, o Brasil se candidatou a ser sede do nalismo e o orgulho cívico, tão defendidos Mundial pós-Segunda Grande Guerra. A pelo Estado Novo. Era preciso incentivar e Copa de 1950 era vista como uma oportu- controlar essa forma de manifestação so- nidade de elencar a nação entre as maiores cial” (SOUZA, 2008, p.70). potências do mundo. Com obras grandio- A Seleção Brasileira seria o veículo per- sas, como a construção do maior estádio feito a dar concretude à idealização de de- do mundo na época, o Maracanã, o Brasil mocracia social do Estado Novo. E agora também se apresentava como candidato com uma equipe mestiça, representando ao título dentro de campo. uma única nação. “Era essencial articular Após uma campanha com bons a comunicação entre as elites e o povo, jogos e goleadas marcantes na fase final, voltar-se para as pessoas humildes em suas o que levou a uma euforia e um clima de mais autênticas manifestações e tradições, “já ganhou” antecipado entre imprensa e sancionando, assim, a tão sonhada inte- torcedores, a equipe sucumbiu diante do gração da sociedade brasileira” (GOMES, Uruguai, 2x1, com público de mais de 200 1994, p. 178). mil pessoas no Maracanã. Os jogadores da Projetos nacionais para a área desporti- Seleção Brasileira ficaram marcados pela va foram implementados pelo regime, ins- derrota, conhecida como Maracanazo. O taurado por Getúlio Vargas em 1937, após principal deles, o goleiro Barbosa, acusado a boa receptividade da imagem da seleção de falhar no gol de Ghiggia. A derrota do de 1938 pela sociedade brasileira. De acor- Brasil despertou um trauma, o que o escri- do com Sarmento (2013, p. 72), “havia sido tor Nelson Rodrigues chamou de “Com- consolidado o vínculo simbólico entre o plexo de Vira-latas”: conceito de nação e o desempenho da se- Por “complexo de vira-latas” enten- do eu a inferioridade em que o brasi- leção nacional de futebol. A mestiçagem, o leiro se coloca, voluntariamente, em ‘mulatismo’, o vigor malemolente estavam face do resto do mundo. Isto em to- casados tanto à noção de um ideal de povo dos os setores e, sobretudo, no fute- bol. Dizer que nós nos julgamos “os brasileiro quanto à sua expressão através maiores” é uma cínica inverdade. Em de um singular jeito de jogar futebol”. Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro Os jogadores da Seleção passaram a e sardento, a equipe brasileira ganiu compreender que nas suas jogadas estavam de humildade. Jamais foi tão eviden- os anseios e desejos de um povo brasileiro. te e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada ver- Estavam cientes do papel de elemento-sín- gonha de 50, éramos superiores aos 407 adversários. Além disso, levávamos 1998 – até então a maior derrota brasileira a vantagem do empate. Pois bem: — em Mundiais em termos de placar – e 2x0 e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — sobre a Alemanha, em 2002, no ressurgi- porque Obdulio nos tratou a ponta- mento de Ronaldo, numa equipe que tam- pés, como se vira-latas fôssemos. Eu bém tinha e Gaúcho vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de téc- sob o comando do técnico Felipão. Foi o nica, nem de tática. Absolutamente. pentacampeonato, último título do Brasil É um problema de fé em si mesmo (RODRIGUES, 1993, p. 51). em Copas. Nos anos de 2006 e 2010, a seleção foi O Brasil não conseguiria o título no eliminada nas quartas de final. A expec- Mundial seguinte, 1954, mas adotou a tativa era a Copa de 2014, a segunda no camisa amarela como uniforme oficial, o Brasil. que se tornou símbolo da equipe, aposen- tando a cor branca dos anos anteriores. A Copa de 2014 Na Suécia, em 1958, surgiria uma geração O Brasil foi escolhido sede da 20ª edi- que daria as primeiras taças ao país. Com ção da Copa do Mundo Fifa em 2007. Ao craques como Pelé, , Didi, Vavá, todo, 12 cidades foram selecionadas para Nilton Santos, Zagallo entre outros, a Sele- receberem os jogos do torneio. Ao longo ção conquistou a primeira Jules Rimet ao da preparação, o Mundial passou a ser vencer o selecionado sueco por 5x2. Com questionado por setores da sociedade que a mesma base, mas perdendo Pelé para a viam suspeitas de desvio de verbas públi- fase final – Amarildo foi o substituto –, o cas nas obras, mau planejamento da or- time venceu a Tchecoslováquia, 3x1, na fi- ganização, atraso em melhorias previstas nal do Chile, em 1962. de infraestrutura e estádios. Esse clima de Em 1966, decepção. A equipe que tinha pessimismo sobre o sucesso do evento no Garrincha e Pelé foi eliminada ainda na país culminou em movimentos nas redes primeira fase. O “Rei do Futebol” ainda sociais, como o “Não vai ter Copa!”, que teria uma chance, no México, em 1970, tomaram as ruas do país durante a Copa de conquistar o tricampeonato. A equipe das Confederações – evento-teste para o comandada pelo técnico Zagallo também Mundial – em junho de 2013. Até o iní- reuniu nomes como Gérson, , cio do torneio, ainda era difícil prever qual Tostão e . Venceu a Itália na final Copa teríamos, como seriam os resultados por 4x1. É considerada uma das equipes deste misto de insatisfação da população e mais brilhantes da história do futebol. problemas estruturais. Após a conquista definitiva da taça Jules Os estádios foram entregues no último Rimet, o Brasil passou 24 anos sem título prazo, algumas obras de infraestrutura fi- de Copa do Mundo. O tetracampeonato caram pelo caminho, mas o Mundial teve veio em 1994, com Romário, e Ta- uma repercussão boa dentro e fora do país. ffarel nos Estados Unidos, ao vencer no- A própria imprensa adotou a expressão vamente a Itália, agora nos pênaltis. Após “Copa das Copas”, que reverenciava o su- 1994, a Seleção chegaria ainda a duas fi- cesso fora dos gramados e a qualidade dos nais consecutivas: 3x0 para a França, em jogos. Dentro de campo, a Seleção Brasileira 408 5 - Para essa análise, vamos chegou cercada de expectativa por manter maior em 100 anos” (FOLHA, 09/07/14, utilizar, como influência, um autor da Análise do Discurso a equipe que vencera a Copa das Confe- capa). Ou ainda: “Se em 1950 o 2 a 1 para Francesa. A AD é compreen- dida em diferentes vertentes, derações no ano anterior. O time venceu o Uruguai teve contornos trágicos, a elimi- cada uma com suas respectivas categorias de análise. Parte-se na primeira fase Croácia (3x1) e Cama- nação de 2014 foi marcada pela humilha- aqui em busca das categorias que prestam-se mais adequa- rões (4x1) e empatou com o México (0x0). ção. A seleção conheceu a maior derrota damente ao escopo pretendi- do. Entre as variantes dessa Classificou-se em primeiro do grupo. Na de sua trajetória centenária e o pior revés tradição, pretendo desenvolver um dispositivo analítico in- fase eliminatória, eliminou dois adversá- de um anfitrião de Mundiais” (FOLHA, fluenciado pelo estudo de Henri Boyer que trabalha questões rios sulamericanos: Chile, nos pênaltis, e 09/07/14, capa). relacionadas à construção de estereótipos, emblemas e mitos Colômbia (2x1). Nesta partida contra os O caderno especial “Copa 2014” chama no discurso das mídias. Para ele, o sentimento de identifica- colombianos, o maior destaque da seleção a partida de “O pior vexame”, “Catástrofe”, ção é operado num discurso de representações compartilhadas até então, Neymar, sofreu uma joelhada “O maior vexame da sua história” (FO- dentro de uma determinada comunidade nacional. O impac- nas costas, quebrou uma vértebra e des- LHA, 09/07/14, p. D2). Os jogadores são to sobre a ação dos indivíduos falcou o Brasil no restante do Mundial. A ligados a expressões que remetem a insu- e dos grupos e seu discurso é afirmado pelos “estereótipos”. O semifinal, já sem Neymar eo capitão Thia- cesso, fracasso, como o artigo “O inferno estereótipo é considerado aqui como uma espécie de represen- go Silva – suspenso por receber o segundo de Dante” (FOLHA, 09/07/14, p. D4). tação instaurada em todos os pertencentes a uma comuni- cartão amarelo –, era contra a Alemanha. N’O Globo a abordagem não foi dife- dade (ou um grupo dentro da comunidade). É, portanto, uma O jogo em Belo Horizonte, no dia 08 de rente. No caderno especial “Copa 2014”, estrutura sociocognitiva fixada. Os estereótipos, inegavelmente, julho de 2014, entraria para a história do uma sequência de manchetes: “BRASIL 1 têm uma função identitária em uma determinada comunidade. futebol brasileiro como a maior derrota X 7 ALEMANHA – ESTA SELEÇÃO FEZ Não apenas os atletas da Seleção Brasileira podem ser estereo- em cem anos de Seleção Brasileira: 7x1. O HISTÓRIA – A pior derrota em 100 anos tipados, já que o termo não é apenas usado para representar Brasil ainda perderia a disputa de terceiro da equipe – O pior revés de um anfitrião grupos humanos. O futebol, em si, o país, espaços urbanos, lugar para a Holanda, 3x0, e amargaria o de Mundial – A maior goleada em uma comportamentos etc. podem ser figurados. quarto lugar em casa. Na final, a Alemanha semifinal – A pior derrota de uma seleção O emblema também opera em atores (por exemplo: Ronaldo, o venceria a Argentina por 1x0, na prorroga- campeã – O maior vexame do futebol bra- “Fenômeno”) e em produtos cul- turais (a Seleção “Canarinho”) ção, e conquistaria o tetracampeonato. sileiro – OS JOGADORES DE 1950 ES- que representam um sentimento TÃO REDIMIDOS”. A comparação com de identificação com um grupo de pessoas. A própria Seleção, A derrota para a Alemanha na Fo- a geração derrotada da primeira Copa no portanto, pode ser um emblema do Brasil. lha de S.Paulo e O Globo país e a constatação de uma crise, um fute- O mito seria reforçado pela mídia ao vincular histórias e ca- A derrota para a Alemanha foi manche- bol brasileiro em decadência está em tre- racterísticas a um determinado feito/pessoa produzindo sentido te nos principais jornais do país e do mun- chos como: identitário. As campanhas da Antes que as vaias merecidamente Seleção Brasileira em Copas do do. Para este trabalho, vamos analisar os Mundo, em parte, são mitifica- destinadas a Fred revivam o ritu- das pelas mídias. Como exem- textos da Folha de S.Paulo e do O Globo, na al sumário que condenou Barbo- plo, temos as derrotas nos Mun- 5 diais de 1950 e 1982, conhecidas edição de 09 de julho de 2014 . sa, chegou o momento de inverter como “Maracanazo” e “Tragédia o processo. Numa Copa em que o do Sarriá”, respectivamente. O principal estereótipo instaurado na Além das conquistas e a história Brasil jogou nada do primeiro ao mitificada de craques como Pelé, Seleção Brasileira é de uma equipe fracas- último jogo, os jogadores devem ser Garrincha, Romário e Ronaldo vistos como a consequência e não e como esses atletas tornam-se sada, que causou ao país vexame maior a causa do vexame. Todos lutaram heróis nacionais. Boyer (2008) que a, até então, mais traumática derrota trata dessas características na contra suas limitações, uns sucum- imprensa francesa. Portanto, deve-se observar a em Copas. Como vemos na manchete de biram às lágrimas e todos tombaram construção de mitos na derrota capa da Folha: “Seleção sofre a pior derro- diante da constatação de que já não de 7x1 para a Alemanha, na temos forças para disputar entre os Copa do Mundo de 2014, mas ta da história – Alemanha faz 7 a 1, esmaga com os emblemas e os estere- melhores. [...] Depois que a nature- ótipos adotados nos discursos, Brasil e está na final da Copa – País revive za deixou de produzir craques feito para legitimar o uso da Seleção Brasileira como instrumen- trauma de 1950 como anfitrião – Scolari capim, no vão da sociedade onde to simbólico de identidade havia espaço para o improviso, a nacional. assume responsabilidade por vexame, o necessidade de um cultivo sistemá- 409 tico e científico compara o futebol car – Fraco; Hulk – Atabalhoado; Rami- brasileiro a um vinhedo esgotado. res – Irrelevante; Bernard – Equivocado; De tanto antecipar a colheita, a safra se tornou cada vez mais verde e sem Fred – Trágico; Willian – Insípido; Felipão personalidade. O tempo de matura- – Vencido” (O GLOBO, 09/07/14, p. 6). ção em casa, além de concluir a for- A atuação do goleiro Júlio César, inclusi- mação na cultura local, fazia crescer todo o jogo coletivo. Com o êxodo ve, foi criticada em uma matéria da Folha prematuro, o brasileiro passou a jo- com um casal de aposentados, com o títu- gar como os demais sem ter uma re- ferência doméstica para preservar os lo “Foi mais vergonhoso que 50, diz casal princípios de uma escola de excelên- formado no Maracanazo”: “Falaram tanto cia. No lugar do trabalho para atuali- do Barbosa [goleiro brasileiro na derrota zar os métodos, restaram as mesmas bravatas que remetem a 1950. Se de 50], que levou dois, e esse aí [Júlio Cé- naquela ocasião, o prefeito Mendes sar] levou sete”, lamentava [Gabriel Ferrei- de Morais saudou os campeões antes ra da Silva, 89 anos] (FOLHA, 09/07/14, p. do último jogo, dessa vez foi Parrei- ra quem disse que o Brasil já tinha D16). uma mão na taça enquanto Felipão Quanto à ligação da seleção de futebol prometia a conquista (O GLOBO, como emblema do Brasil, a Folha demons- 09/07/14, p.4). tra o desgaste dessa representação na sua O estereótipo também é de uma equi- editoria de Opinião, em um dos editoriais, pe que não teve sucesso e que sofrera “A com o título “Pátria sem chuteiras”: vergonha das vergonhas na Copa das Co- pas”, como diz o artigo de Renato Maurí- Derrota brutal da Seleção Brasi- cio Prado (O GLOBO, 09/07/14, p. 6). Ou leira diante da Alemanha talvez no texto “Pororoca de recordes – Desonra possa representar o fim de uma Amarela”: era dentro e fora do futebol . [...] O vexame histórico, ainda que Levou, como o placar eloquente comprova, um baile constrangedor, não numa final de campeonato, que expõe o profundo atraso em vem eclipsar o famigerado ‘ma- que o país está metido, justamente racanazo’ de 1950. [...] A frustra- em seu esporte mais popular. [...] Barbosa, afinal, pode descansar em ção – mas o termo é leve demais paz. O futebol brasileiro tem vexa- para descrever o que aconteceu me maior para velar (O GLOBO, – talvez possa, com o tempo, 09/07/14, p. 6). enquadrar-se num contexto di- verso daquele que marcou, até Os jogadores não receberam alcunhas, hoje, as relações do brasileiro mas notas baixas da equipe da Folha em com seu esporte mais popular. relação ao desempenho no jogo que varia- [...] Já constituía um fenômeno ram entre 0 e 2. Já O Globo atribui adjeti- curioso que, no chamado país vos aos atletas, que receberam todos nota do futebol, tenham se observado zero: “Júlio César – Soterrado; Maicon – movimentos expressivos, ainda Atropelado; Dante – Perdido; David Luiz que isolados, de oposição a que a – Atarantado; Marcelo – Enrolado; Luiz Copa do Mundo se realizasse por Gustavo – Derrubado; Fernandinho – aqui. [...] A ideia de uma ‘pátria Desgovernado; Paulinho – Superado; Os- em chuteiras’, na célebre formu- 410 lação de Nelson Rodrigues, terá roubamos. Esse país de mulatos, de provavelmente sofrido um sub- negros, de gente de perna torta, que era considerado um país de analfa- terrâneo desgaste ao longo dos betos, foi lá e dominou o futebol. [...] anos. Um país mais diversificado, O futebol, portanto, trouxe ao Brasil um elemento moderno que fez com plural e rico foi deixando de ver, que nós acreditássemos em nós mes- nos campos de futebol, sua única mos. Isso não tem preço (O GLOBO, fonte de compensação diante dos 09/07/14, p. 12). muitos insucessos do seu projeto Quanto às histórias contadas sobre a econômico e social. [...] Injustifi- partida na imprensa, o que contribui para cado, talvez, tenha se provado o a construção de mitos, a Folha de São Paulo hábito de depositarmos tanto de representou o comportamento dos torce- nossa identidade nacional num dores e os momentos que marcaram os 90 único esporte, num único campo, minutos da partida, como na reportagem num único jogo – que sempre é o “No limite – Brasileiros empurram time de hoje. [...] A paixão futebolísti- até início de goleada; depois vaiam, brigam ca sobreviverá, é claro, ao pesade- entre si e deixam estádio antes do final”: lo de ontem. Mas o massacre, no que teve de brutal e inesquecível, A sequência de gols da Ale- não maculou apenas a mística manha no primeiro tempo não deu tempo para a torcida brasileira, da camisa verde-amarela; talvez maioria entre os mais de 58 mil tor- venha a significar também o en- cedores, se recuperar, perplexa, do cerramento de uma época em que assistia. Entre 11 min e 22 min, um ou outro canto de apoio do está- que país e estádio, povo e torcida, dio ainda surgia. [...] Os brasileiros, governantes e técnicos, nação e então, aplaudiram os alemães. Veio o gol de Oscar e o estádio ainda vi- seleção tendem a ser vistos como brou, mas logo as vaias voltaram. Ao a mesma coisa. [...] Talvez se pos- fim da partida, mais vaias para joga- sa dizer, a partir de agora, que o dores e comissão técnica da seleção, reunidos no centro do campo (FO- Brasil é maior que seu futebol – e LHA, 09/07/14, p. D16). que tem desafios mais importan- tes, e maiores, a vencer. (FOLHA, Ou no texto “Fogo na capela”: 09/07/14, p. A2). Tá duro assistir ao Mineirão lotado e perplexo. Depois de quatro gols em O Globo trouxe a questão emble- seis minutos, engolimos a seco o “Eu mática do “esporte-nação”, mas reforçando acredito!” e passamos a desejar se- essa ideia de simbolismo de um pelo ou- cretamente, ardorosamente, que nos fechássemos numa pusilânime re- tro, em uma entrevista com o antropólogo tranca para não perder de dez, de 20. Roberto DaMatta: Foram sete. Sete! E poderia ter sido mais (FOLHA, 09/07/14, p. D23). Então, o futebol é a construção na- cionalista mais natural brasileira? Eu não diria que é natural, mas é a A atitude dos torcedores na arquiban- construção nacionalista moderna cada também foi destaque n’O Globo, na do Brasil. O futebol foi inventado reportagem “Na arquibancada – Sobrou a pelos ingleses, que eram os caras puros, sérios e brancos, mas nós o bronca”: “Depois de Oscar balançar a rede 411 no fim, um coro irônico ecoou entre os bra- definitivo na História, não deve ser sileiros: ‘Eu acredito’. Foi o retrato de uma impossível. [...] Esse jogo, essa derro- ta, essa goleada histórica tem que ser derrota que não teve o silêncio do Maraca- guardada na memória, para marcar o nazo, em 1950. Dessa vez, a reação foi mais início de uma era de total reformula- ção (O GLOBO, 09/07/14, p.2). de espanto do que de choro” (O GLOBO, 09/07/14, p. 7). A reportagem principal sobre o jogo, as- O jornal O Globo, em sua capa, fez uma sinada pelo jornalista Pedro Motta Gueiros analogia com a derrota de 1950 e o Maraca- faz ligação entre as duas derrotas nas Copas nazo, criando uma nova expressão para de- em casa, mas mitificando os 7 a 1 como a nominar os 7 a 1: “Mineiratzen”. Seguida da pior derrota brasileira em todos os Mun- manchete: “Vergonha, vexame, humilhação diais. – Em menos de meia hora Alemanha faz 5 DURO GOLPE 64 ANOS DEPOIS – gols e massacra Brasil com placar final de EM ESCOMBROS Vexame que torna honrosa a derrota 7x1; seleção sofre em casa a maior derrota de 1950 suscita debate para que o fu- da história” (O GLOBO, 09/07/14, capa). tebol brasileiro recupere a identidade O jornal ainda representa a semifinal perdida junto com as linhas de um Maracanã que foi reformado para a com textos críticos à Seleção Brasileira festa alheia. e projetando mudanças no comando da O barulho do silêncio, que ecoou equipe. Fernando Calazans aponta como no Maracanã depois da derrota de 1950, soava inexplicável para quem “Uma única saída: ressuscitar”: não testemunhou aquela jornada, até O futebol brasileiro pentacampeão que a explosão de gols da Alemanha do mundo, os donos dos cinco títu- trouxe um vazio apaziguador no Mi- los – jogadores, técnicos, torcedores neirão. Depois de quase sete décadas de todas as épocas – não mereciam condenadas ao limbo, as almas dos isso. Não mereciam saber disso, mui- vice-campeões enfim se libertaram. to menos ver isso, presenciar isso, as- Ao longo dos 90 minutos em que as sistir a isso. Não mereciam passar por ilusões do hexa se espatifaram contra essa vergonha, essa tragédia – e, vou o muro da realidade, a tragédia de dizendo logo, uma tragédia maior, 1950 se transformou definitivamente muito maior, do que a vivida no Ma- numa derrota honrosa (O GLOBO, racanã, na Copa de 1950, quando 09/07/14, p.4). perdemos o título para o Uruguai, por 2 a 1. [...] Não tem comparação. Quem imaginava que um dia fôsse- A história contada pelos jornais remon- mos nos redimir daquela derrota, na ta a uma derrota mais traumática do que primeira Copa realizada no Brasil, se sente, agora, na segunda, mais desen- 1950, uma jornada mitificada pelo discurso cantado do que nunca, com a derrota dos dois jornais. de 7 a 1 para a Alemanha na semifi- nal. E quem achava que, lá atrás, tí- nhamos passado por uma vergonha Conclusões simplesmente não sabe o que dizer. O futebol no Brasil, desde a sua chega- Ou talvez saiba: uma humilhação. da, é considerado uma expressão cultural [...] O futebol brasileiro – aquele dos cinco títulos mundiais – só tem uma que vai além do campo esportivo. A Sele- única saída: ressuscitar. Não há forma ção Brasileira, que completa 100 anos em de remissão, de recuperação, de rea- ção. O futebol brasileiro tem que nas- 2014, foi, ao longo dos anos, transformada cer de novo. Tem que renascer. Para em fundamental instrumento unificador e quem foi, para quem é pentacampeão identitário da nação. Os cinco títulos mun- do mundo, para quem tem um lugar diais e derrotas marcantes em Copas, his- 412 tórias que envolvem não só o resultado den- ordenação da Confederação Brasileira de tro dos gramados, mas a ligação entre o ser Futebol. Uma representação com escolhas brasileiro e a representação do selecionado semânticas que tendem a afastar o torcedor nacional, também contribuíram para esse desta equipe. processo. Essa temática também é vista quando A principal derrota do país, antes de analisamos a questão da seleção como em- 2014, era considerada o Maracanazo, o re- blema da nação. O discurso é de desvincu- vés de 2x1 para o Uruguai em 1950. Com a lação, usando expressões que indicam que o segunda chance de receber o torneio, criou- Brasil não seria mais o “país do futebol”. -se uma expectativa de “vingar” esta perda O mito da semifinal contra a Alemanha é e conquistar o título em casa. Com a vitória construído pelo discurso dos jornais como da Alemanha, num jogo que quebrou todos a maior derrota da equipe em cem anos, su- os recordes negativos da Seleção Brasileira, perando o 2x1 para o Uruguai em 1950. Ele- os principais jornais do país e do mundo mentos no texto tratam a história da partida destacaram a goleada por 7 a 1. Dentre os como um vexame, um trauma para os brasi- impressos de maior circulação e renome na- leiros. Mesmo com a derrota acachapante e cional, destacamos a cobertura da Folha de o fim do sonho da conquista do hexacampe- S. Paulo e O Globo. onato, o discurso dos jornais foi no sentido Esses dois periódicos representaram a de afastamentos identitários do brasileiro seleção com o estereótipo de uma equipe em relação à seleção. Uma escolha que pode fracassada, que falhou diante dos seus tor- influenciar numa eventual perda de identifi- cedores. Mesma atribuição foi feita aos jo- cação entre torcedores e equipe. gadores, questionados nos textos, junto com representantes da comissão técnica e da co-

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