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Momentos decisivos da história da Itália no “breve século XX” segundo o cinema de

Gabriela Kvacek Betella 1

Resumo: Carlo Lizzani é um dos mais profícuos homens de cinema formados durante o neorrealismo italiano, período de breve duração e controvertido, porém de extrema importância como impulso moral no cinema italiano. Nos filmes aqui estudados, ressaltamos a busca do diretor pela ação corálica, a temática popular disposta a relembrar os anos de Resistência e a preocupação com o indivíduo que viveu os anos do fascismo, itens caros para uma poética situada no limite entre a percepção histórica e a visão excessivamente emocional do passado. Para demonstrar a vocação da filmografia do diretor para o panorama histórico do período que vai do final do século XIX e praticamente todo o século XX, destacamos Cronache di poveri amanti (Carlo Lizzani, 1953) e Fontamara (Carlo Lizzani, 1978), analisando-os na perspectiva do discurso histórico revisitado com vistas sobre o cotidiano, os pequenos fatos do passado recuperados no presente da criação. Os filmes mapeiam os anos de 1920 e o impacto do regime fascista tanto no contexto citadino quanto no ambiente rural. Assim, o microcosmo de uma rua de Firenze e um vilarejo na região de Abruzzo, cujas tramas têm origem em duas obras literárias, compõem a visão de Lizzani sobre os primeiros anos do fascismo, trazendo à tona um olhar humanizado sobre os problemas passados e presentes. Palavras-chave: Cinema italiano; Carlo Lizzani; cinema e história

Abstract: Carlo Lizzani is one of the most fruitful men of cinema formed during the Italian neorealism, period of short duration and controversial nature, but of high importance as a moral impulse in the Italian cinema. In the films here studied, we stress the director’s search for choralic action, the popular themes disposed to remember the Resistance years and the concern with the individual that lived through the years of Fascism, which are all items of importance for a poetics located in the limit between historic perception and the extremely emotional vision of the past. In order to demonstrate the vocation of the director’s filmography to the historical overview of the period from the end of the 19th century to almost the whole of the 20th century, we highlight Cronache di poveri amanti (Carlo Lizzani, 1953) and Fontamara (Carlo Lizzani, 1978), analyzing them under the perspective of historical discourse, revisited with outlooks upon the daily affairs, the small facts of the past recovered in the present of the creation. The films charter the 1920’s and the impact of the fascist régime both in the city and the countryside. Thus, the microcosms of a street in Florence and a village in the region of Abruzzo, whose plots have origins in two literary works, compose the vision of Lizzani about the first years of Fascism, bringing to the fore a humanized perspective of the problems, past and present. Key-words: Italian cinema, Carlo Lizzani, cinema and history.

1 Professora assistente do Departamento de Letras Modernas, área de língua e literatura italiana, UNESP-Assis. E-mail:[email protected]

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1. Conhecer o que fomos para entender o que somos

Carlo Lizzani, romano nascido em 1922, é um homem de cinema que, ao longo de sessenta anos como roteirista e diretor, mantém-se entre a ficção e o documentário, entre o cinema e a televisão, entre o ensaio e a produção cultural. Apreciado como historiador do cinema italiano, prestigiado como diretor da Mostra de Veneza, Lizzani também é visto como colaborador de significativos períodos do cinema, como o neorrealismo italiano e os novos cinemas dos anos de 1960, tanto no terreno da crítica quanto da estética, muito embora deva ser situado num campo intermediário, visto que ainda era muito jovem no período neorrealista e já era maduro no fervor das nouvelles vagues . Ainda assim, fez parte de momentos e ambientes importantes. Fez parte da redação da revista Cinema , que concentrava cineastas envolvidos num projeto antifascista, participou com Giuseppe de Santis e Massimo Mida da realização de Il sole sorge ancora (O sol também se levanta , 1946), projeto que resultou em amizade com De Santis e no trabalho de roteirista em Caccia Tragica (Trágica perseguição , 1947) e Riso Amaro (Arroz amargo , 1949), e ainda esteve ao lado de na realização de Germania anno zero (Alemanha, ano zero , 1948). Após experiências tão significativas, Lizzani estreia na direção com Achtung! Banditi! (Achtung! Bandidos! , 1951). Logo em seguida roda Cronache di poveri amanti (Os Amantes de Florença , 1953). Ambos os filmes são produzidos pelo ex-partigiano Gaetano “Giuliani” De Negri e trazem as marcas de contextualização no cotidiano popular, nas situações vividas pela gente comum. De múltiplos interesses, a obra do cineasta se mostra como respeitável fonte para as pesquisas que envolvem a representação histórica. A particularidade de Lizzani está na crença na relação dialética entre a história representada num filme e a realidade política e social. Seu modo de trabalho envolve algo de historicismo crítico, talvez incorporado durante o que ficou conhecido como a passagem do cinema objetivo (que caracteriza o neorrealismo) para o cinema crítico (o realismo propriamente dito), no início dos anos de 1950, época considerada por Guido Aristarco (1975) senão como o final do neorrealismo, ao menos como uma distinção sobre a qual se fundava um novo cinema, disposto a representar a realidade para entender tanto o passado quanto o presente, numa mesma trama. É preciso observar que nem

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todos os críticos aceitaram ou aceitam essa distinção entre neorrealismo e realismo que, à época de sua elaboração já havia causado muita polêmica (ARISTARCO, 1975, 859-861). Lizzani acompanhou a história italiana e as intenções de representação muito de perto, como ele mesmo afirma, atravessando pessoalmente as fases mais agitadas do século XX, “não como protagonista, mas como testemunha atenta”, a partir de um observatório bastante privilegiado, o cinema italiano (LIZZANI, 2007, 4). Além disso, o cineasta começa a trabalhar no cinema no período de intensa experimentação de linguagens, absorção de influências e, sobretudo, de grande intercâmbio de experiências. Até o início dos anos de 1950, será aprendiz disciplinado no roteiro e na direção, sob a batuta dos grandes diretores do neorrealismo (Roberto Rossellini, Giuseppe De Santis), até dirigir o primeiro longa, Achtung! Banditi! (Atenção! Bandidos! ), de 1951. Desse período em diante a carreira de diretor de Lizzani se divide com o ensaio – ele publica em 1953 Storia del cinema italiano , que será bastante reeditado – e retoma a atividade crítica que começara nos anos de 1940 nas revistas Bianco e nero e Cinema . Os anos de 1960 serão intensos e de diversas realizações – Lizzani participa até mesmo da temporada dos western spaghetti dirigindo Un fiume di dollari (Sangue nas montanhas , 1966) sob pseudônimo de Lee W. Beaver, e (Réquien para matar , 1967), com Pier Paolo Pasolini, Ninetto Davoli e Franco Citti no elenco. No final dos anos de 1970, além de dirigir a Mostra de Veneza, passou a lecionar direção no Centro Sperimentale di Cinematografia. Alguns filmes marcantes de Lizzani nos anos de 1960 são Il processo di Verona (1963) e Banditi a Milano (Bandidos de Milão , 1968). O primeiro reconstitui os últimos anos do fascismo (1943-1945) do ponto de vista de Edda Ciano, filha de Benito Mussolini e esposa de Galeazzo Ciano, concentrando-se nas suas tentativas de negociar em favor da vida do marido durante o processo que julgou os traidores da então Repubblica Sociale Italiana (ou Repubblica di Salò ). O segundo refaz os arredores de uma empreitada da chamada banda Cavallero , um assalto a uma agência bancária idealizado pelo grupo de luta armada em 1967, em Milão, episódio que resultou em tiroteio, três mortos e dezenas de feridos. A década que havia se iniciado com Il gobbo (O corcunda de Roma , 1960) traz ainda (1961), L’oro di Roma (1961), La vita agra (1962), L’amante di Gramigna (1968) e L’indifferenza (Indiferença ), um dos cinco episódios de Amore e rabbia (Amor e raiva , 1969), entre outros.

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Durante os anos de 1970, Lizzani filma Crazy Joe (O mafioso rebelde , 1973), resgatando parte da história de Joseph Gallo, membro de uma das famílias do crime organizado, ou da máfia novaiorquina, a família Colombo. Também dirige Mussolini: ultimo atto (Os últimos dias de Mussolini , 1974), reconstituindo a memória dos anos fascistas através da memória do próprio duce desde momentos antes de sua captura em 1945 até sua morte, enquanto se mostra a versão oficial da prisão e execução do ex-líder fascista. Ainda dos anos de 1970 são, entre outros, Storie di vita e malavita (1975), abordando a prostituição infantil, além de (1971), uma dissecação da alta burguesia romana adaptada da peça Mani aperte sull'acqua , de Luigi Bruno Di Belmonte, e Torino nera (1972) que, após Svegliati e uccidi (1966), Banditi a Milano (Bandidos de Milão , 1968) e Barbagia, la società del malessere (1969), encerra uma tetralogia “cronística” capaz de reunir cinema de ação e empenho social, abordando desde os sequestros de pessoas na Sardenha em 1969 até o tema da migração e da infiltração do crime organizado nas camadas sociais mais pobres, como no filme de 1972. Os anos de 1980 formam a década dos documentários e séries de televisão dirigidos por Lizzani. Quanto aos longas-metragens, de 1980 é Fontamara , baseado no romance de Ignazio Silone, La casa del tappeto giallo (A casa do tapete amarelo , 1983), thriller psicológico adaptado da peça Teatro a domicilio , de Aldo Selleri, (1985), inspirado na vida de uma curandeira e religiosa processada por fraude e exercício ilegal da medicina, e Caro Gorbaciov (1988), com episódios da vida de Nikolai Bukharin e de sua esposa Anna, tendo como ponto alto a carta ditada por ele à mulher sobre o futuro do Partido Comunista. Nos anos 1990 Lizzani realizou novas produções para a televisão e documentários. Nessa época também aparece o drama psicológico Cattiva (Entardecer insensato , 1991), a reconstituição das filmagens de Roma, città aperta em (1996) e Viaggio intorno a Federico II (1996). Após vários documentários, retorna ao cinema de longa-metragem e ao fascismo como argumento central em 2007, com Hotel Meina . Em 2008 dirige o episódio Speranza , no filme coletivo Scossa , que traz quatro visões sobre o terremoto de Messina, de 1908. Recentemente, esteve envolvido na produção do documentário de ficção sobre o neorrealismo, Non eravamo solo... ladri di biciclette (2013), em que participa também como roteirista e ator.

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Na trajetória do cineasta percebemos o desejo de imersão no passado e as questões propostas para o presente ao lado da vontade de confrontar as possibilidades de expressão audiovisual. Também observamos os temas mais frequentes, como o desempenho da figura feminina e, conforme destaca o próprio Lizzani (2007, 308), o conflito entre a fuga e a morte, entre a fuga e o desfecho trágico dos protagonistas dos filmes.

2. Uma possível antologia e seu permanente convite à história e à memória

Se alinhar a filmografia de Carlo Lizzani significasse contar a história da Itália, algumas sequências de seus filmes poderiam servir de referência e motivo de reflexão para momentos decisivos da vida nacional. Dizendo de outro modo, boa parte da obra do cineasta pode ser elencada para constituir um panorama cobrindo o longo período desde o final do século XIX ao século XX quase na sua completude. Com devotado trabalho de pesquisa sobre documentação rigorosamente recolhida, episódios ao redor do Risorgimento como a insurreição milanesa de 1848, livremente adaptada de La memoria dei fiumi , de Nino Majellaro para a produção televisiva Le cinque giornate di Milano (2004) e L’amante di Gramigna (1968), adaptado de uma novela de Giovanni Verga com o fundo histórico do brigantaggio , formariam o início do panorama. Ele passa por uma amostra da nobreza e monarquia italiana durante os anos de 1910 até 1946 através da série televisiva Maria José: l’ultima regina (Decadência de um império: a última rainha , 2001), adaptada de Regina , de Nicola Badalucco e atravessa os anos de 1920 e 1930 com Cronache di poveri amanti (Os amantes de Florença , 1953), Fontamara (1980) e Un’isola (1986), cobrindo os anos do fascismo e seus efeitos sobre a população confinada numa rua de Florença, sobre camponeses marginalizados pelo regime numa região do sul do país e através da biografia de Giorgio Amendola, respectivamente. O final dos anos de 1930 e os anos de 1940 são mapeados por um maior número de filmes. Lizzani se concentra nesse período para revelar sua visão sobre a Resistência e o final da Segunda Guerra. Assim agrupados, os filmes de Lizzani parecem querer cumprir o dever da memória, oferecendo ao espectador um quadro extenso dos episódios políticos e da situação social do ponto de vista do cineasta e, especialmente, do olhar italiano sobre episódios nacionais e estrangeiros importantes nos destinos do povo italiano. Mais que isso, a memória nos é

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apresentada pelo olhar crítico do cinema capaz de se aventurar no passado e refazer o Novecento . Nesse sentido, o cinema de Carlo Lizzani se propõe como crônica da história, e não como historiografia, especialmente se nos lembrarmos da familiar concepção de Walter Benjamin:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final. (BENJAMIN, 1978, 223)

Portanto, ao retomar o passado não exatamente como foi, mas escolhendo episódios menores, vividos pela gente comum, ou mesmo trazendo os grandes fatos à perspectiva mais próxima de nós, a filmografia de Lizzani articula historicamente o passado no fazer artístico e se apropria da memória na representação, mantendo o elo necessário com o espectador. Essa ligação é capaz de captar a imagem do passado e a noção de seu contexto sem o perigo de se conformar com versões oficiais e com o pensamento incentivado pelas camadas que desejam impor sua vontade. Nas palavras de Benjamin, há uma tradição a ser preservada em iniciativas como a de Lizzani ao se posicionar como cronista dos acontecimentos. Se não estamos exagerando, há em pelo menos alguns filmes de Lizzani o ímpeto de “arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” (BENJAMIN, 1987, 224). Ao tratar de produções cinematográficas que promovem uma releitura da Resistência francesa, Michel Foucault mapeia certa aversão de alguns meios pelo retro , ou melhor, denuncia o perigo de se evitar o olhar engajado sobre o passado. O argumento prova a necessidade de representação artística de um período passado, como a tomar posse dele, a ultrapassar as “histórias inteiramente oficiais”, colocando em jogo a chamada memória popular com uma espécie de retorno da verdade na história pela reescrita da história, mesmo no momento em que quase tudo se justifica por meio da conjuntura, digamos, favorável ao esquecimento do que foi contado oralmente através dos anos (FOUCAULT, 2009, 331-333). O filósofo francês estabelece uma relação interessante entre o presente (os anos 1970, em que o contexto político descrevia um painel de novas relações com o aparato de governo e, especialmente, sinalizava a morte do gaullismo) e o passado (pelo menos desde o período entreguerras até a Libertação) pela manutenção da memória popular e sua recodificação em novos meios, mostrando às pessoas “não o que elas foram, mas o que é preciso que elas se 1323

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lembrem que foram” (FOUCAULT, 2009, 332), para que mantenham vivas a consciência, a experiência e a disposição para lutar. Sem saber o que houve no passado, sem tomar posse da memória popular (incluindo as lutas de Resistência), é mais fácil acreditar nos heróis e no fato de que não houve, por exemplo, luta popular pela Libertação.

3. Da literatura ao cinema, da cidade ao campo

Tanto em Cronache di poveri amanti (Os amantes de Florença , 1953) quanto em Fontamara (1980), Lizzani recorre a obras literárias cujas tramas percorrem vidas comuns de personagens urbanos, no primeiro caso, e camponeses, no segundo. As histórias se passam durante os anos de afirmação do fascismo e destacam a força das ações como num canto coral. A temática popular se contrapõe à dissecação da repressão imposta pelo regime autoritário. Os anos da Resistência são lembrados na perspectiva dos oprimidos e não perdem o ponto de vista da época em que são revistos pelas imagens. Desse modo, a narrativa de Lizzani não se contamina pela memória excessivamente emocional do indivíduo que viveu os anos do fascismo. Se os escritores expressaram as particularidades de cada comunidade com vistas no presente de sua escrita, também é verdade que Lizzani aproveitou o contexto em que recriou as tramas. Vasco Pratolini escreve o romance Cronache di poveri amanti (idealizado durante os últimos anos da Segunda Guerra e editado em 1947) em meio ao clima de reconstrução, no momento favorecido pelo contexto democrático sob a república parlamentar e o pluripartidarismo, logo após a guerra, enquanto Lizzani filma na época em que os horizontes se fechavam com a restauração plena das forças conservadoras. O narrador do romance não é um dos personagens – ele conta as histórias deles, dialoga com quase todos, solicitando que tomem a palavra. Esse narrador faz questão de se inserir nas impressões, porém está em posição de controle e de superioridade, por meio de uma estratégia capaz de oferecer o senso de realidade próprio da crônica, em que os acontecimentos são tão irreais quanto possíveis. O filme diminui o foco visionário do romance, reduzindo ao máximo a presença da esperança e abaixando o tom épico – o narrador passa a ser Mario, o mais novo morador de Via del Corno , que relata suas experiências na medida em que o discurso fílmico permite, pois a narrativa se apresenta com poucos momentos da voz de Mario em off . Se há uma inabilidade

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proposital no aproveitamento das descrições de Pratolini (como em duas cenas exemplares: a abertura que descreve o fim de noite na rua e o assassinato do herói Maciste em praça pública), o filme privilegia, por outro lado, alguns aspectos “narrativos”, como a proximidade entre o narrador e os acontecimentos, o desempenho desse personagem memorialista que se insere e é acolhido pelos cornacchiai , moradores da pequena rua constantemente vigiados uns pelos outros. A vida em função do outro é, a propósito, uma constante no enredo, mas a conotação cômica não se estabelece plenamente na tela, embora surjam oportunas cenas quase burlescas. Insinuações caricaturais da bisbilhotice e da vida em comum transformam-se, no filme, em cenas imediatamente seguidas pela supressão da leveza. No chamado mezzogiorno (termo que indica normalmente o sul da Itália nos assuntos relativos à Economia, Política e Ciências Sociais) o abandono de esforços para o desenvolvimento sempre foi um assunto explorado pela ficção. A distribuição irregular de propriedade e a miséria se colocavam no contrapeso das lutas operárias e da política do Partido Comunista Italiano no final dos anos de 1950, quando Carlo Lizzani realiza um documentário sobre as ocupações dos territórios agrícolas do ângulo de quem trabalhava a terra de fato. Ignazio Silone escreve Fontamara em 1930. O romance foi publicado na Suíça em 1933, em alemão. Em 1945 a obra começou a ser publicada em italiano na Itália pela primeira vez (houve uma edição de 1934, que saiu somente no exterior), em capítulos numa revista semanal. O volume sai em 1947 pela editora Faro di Roma, com alterações sobre a forma original. Em 1949 o autor realiza nova revisão para o que será a terceira e definitiva versão do livro. Para os italianos, é um livro dos anos de 1940. O ponto de partida da trama é a narrativa de três camponeses sobre as atrocidades cometidas pelo menos desde 1927 (coincidentemente mais graves à medida que o regime fascista se estrutura) por várias instâncias do poder na aldeia deles, em Abruzzo. Segundo a trama criada pelo autor, esses personagens teriam relatado suas experiências ao escritor no exílio, estratégia narrativa que permitiu a Silone um trabalho intenso com a linguagem do romance, que absorve a fala regional e mimetiza com ironia algumas discrepâncias entre os personagens. São três narradores, um casal e seu filho, a se alternar na condução dos fatos da cidade fictícia. Fontamara de Lizzani aparece cerca de quarenta anos depois. Se o primeiro pós- guerra pedia uma relação com a realidade e a necessidade de documentar a situação de conflito imanente com o olhar direcionado para o futuro, o retorno aos problemas meridionais

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através do romance de Silone marcava uma reflexão importante do período desde 1968 e até para as décadas de 1970 e 1980. Assinalava a atitude de repensar o que se havia refletido sobre o mezzogiorno , sobre o abandono das regiões a partir das próprias formas de representação. O filme de Lizzani surge no momento em que ainda valia a pena perguntar o que não foi feito contra a perpetuação da divisão entre agrari e padroni , separação que mesmo as imagens do cinema italiano já havia tocado. Os contrastes do passado e de um regime repressor são filtrados pelas imagens que ajudam a compreender as contradições do presente dos anos de 1980, marcados pela desilusão com o desenvolvimento econômico e social, e especialmente atravessados pelo medo imposto pela criminalidade. Lizzani registra no trabalho com Fontamara , de certo modo, a origem dessas transformações e não se priva de pensar a utopia.

Referências bibliográficas

ARISTARCO, Guido. Antologia di Cinema Nuovo 1952-1958 : dalla critica cinematografica alla dialettica culturale. Rimini-Firenze: Guaraldi, 1975. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: _____. Magia e técnica, arte e política . Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 222-232. BETELLA, Gabriela Kvacek. Para que serve o passado: Cronache di poveri amanti e a crônica da história. Revista da ANPOLL 33, pp. 173-189, 2012. CRONACHE di poveri amanti. Direção: Carlo Lizzani. Produção: Cooperativa Spettatori- Produttori Cinematografici. Intérpretes: Gabriele Tinti, Antonella Lualdi, Marcello Mastroiani, Anna Maria Ferrero, Cosetta Greco, Bruno Berellini, Giuliano Montaldo, Wanda Capodaglio. Roteiro: Sergio Amidei, Carlo Lizzani, Massimo Mida, Giuseppe Dagnino, baseado no livro homônimo de Vasco Pratolini. Fotografia de Gianni Di Venanzo, Música de Mario Zafred. Itália, 1953 DVD (103 min). De Santi, Gualtiero. Carlo Lizzani . Roma: Gremese, 2001. FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura. São Paulo: Edusp, 1996.

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FONTAMARA. Direção Carlo Lizzani. Produção: Erre Cinematograsica S.r.l., Radiotelevisione Italiana (RAI). Intérpretes: Michele Placido, Ida Di Benedetto, Antonella Murgia, Imma Piro, Liliana Gerace, Dino Sarti, Ciccio Busacca, Franco Javarone. Roteiro: Carlo Lizzani e Lucio De Caro, baseado no livro homônimo de Ignazio Silone. Fotografia: Mario Vulpiani. Música de Roberto De Simone. Itália, 1980 (180 min). FOUCAULT, Michel. Anti-retro. In: _____. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. pp. 330-345. LIZZANI, Carlo. Il mio lungo viaggio nel secolo breve . Torino: Einaudi, 2007. PRATOLINI, Vasco. Cronache di poveri amanti . Milano: Mondadori, 1988. PRATOLINI, Vasco. História de pobres amantes . Tradução de Carla Inama de Queirós. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. SILONE, Ignazio. Fontamara . Milano: Mondadori, 1988. SILONE, Ignazio. Fontamara . Trad. de Doris Cavallari. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2003.

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