Ano 23 • N° 7 Edição especial ISSN 2238-6807 janeiro/dezembro 2015 Senac Senac Ambiental

E vimos um mundo doente A influência do aquecimento global na ocorrência de epidemias Em risco Populações tradicionais de MG têm sobrevivência ameaçada

Ano 23 N.Ano 7 • 2015 Musa Um “museu vivo” no coração da Amazônia Senac – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555, Barra da Tijuca Rio de Janeiro - RJ - Brasil - 22775-004 www.senac.br Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos Presidente Departamento Nacional Sidney Cunha Diretor-geral

A revista Senac Ambiental é uma publicação semestral produzida pelo Gerência de Marketing e Comunicação do Senac Nacional. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Sua reprodução em qualquer outro veículo de comunicação só deve ser feita após consulta aos editores. Contato: [email protected]

Expediente Editor Fausto Rêgo Colaboraram nesta edição Cristina Ávila, Elis Monteiro, Flavia Leiroz, Francisco Luiz Noel, João Roberto Ripper e Lena Trindade Editoração Gerência de Marketing e Comunicação Projeto gráfico e diagramação Cynthia Carvalho Produção gráfica Sandra Amaral

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Senac ambiental / Senac, Departamento Nacional. – n. 1 (1992)- . – Rio de Janeiro : Senac/Departamento Nacional/Gerência de Marketing e Comunicação, 1992- . v. : il. color ; 26 cm.

Semestral. Absorveu: Senac e educação ambiental. ISSN 2238-6807.

1. Educação ambiental – Periódicos. 2. Ecologia – Periódicos. 3. Meio ambiente – Periódicos. I. Senac. Departamento Nacional.

CDD 574.505 Ficha elaborada pela Gerência de Documentação do Senac/DN. Editorial Emergência Temos visto uma série de epidemias nos últimos anos. E o surgimento de vírus desconhecidos, que mobilizam a população e provocam medo. Nesta edição você fica sabendo como as mudanças climáticas podem contribuir decisivamente para a emergência dessas enfermidades e para o retorno de moléstias que pareciam extintas. Falamos também sobre o dia a dia de comunidades tradicionais como os , em Goiás, e os geraizeiros, no Cerrado mineiro. Realizada antes do rompimento da barragem da Samarco no município de Mariana, a reportagem já abordava o tenso relacionamento entre os moradores e as mineradoras. Na Entrevista, conversamos com a antropóloga Lucia Helena Rangel a respeito das violências cometidas contra os povos indígenas. E trazemos ainda um olhar sobre as plataformas virtuais de mobilização que vêm sendo usadas em nome da sustentabilidade. Boa leitura!

janeiro/dezembro 2015 3 Sumário

6 16 Capa Nova Economia Chapa quente Capitalismo das multidões A influência das mudanças O poder da mobilização virtual climáticas na emergência de para a ação solidária e a epidemias e na reemergência de sustentabilidade. antigas doenças. Sumário

22 50 Educação Ambiental Populações Tradicionais Musa que inspira a vida Sob as ordens da natureza A ousadia de manter um Como vivem os kalungas, “museu vivo” no coração da descendentes de escravos que Floresta Amazônica. permaneceram isolados até recentemente. 56 30 Conservação Desenvolvimento Sustentável Resistência ambiental Em risco, a sobrevivência No Rio de Janeiro, um paraíso dos geraizeiros ecológico sobrevive em meio a uma variedade de ameaças. O povo das Gerais encurralado por empreendimentos e restrições ambientais. 66 Entrevista Pelo direito de existir Conversamos com Lucia Helena 48 Rangel, coordenadora de um Notas relatório sobre a violência contra os povos indígenas. 78 Estante Ambiental

Capa Chapa quente

Mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global têm papel decisivo no aparecimento de epidemias e na reincidência de antigas doenças Flávia Leiroz e Fausto Rêgo

O maior estado da federação enfren- tou, no verão passado, um impres- sionante surto de dengue. No fim de março, de acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil registrava 460,5 mil casos de dengue (220 notifica- ções por hora) – mais da metade em São Paulo, onde, até então, haviam ocorrido três de cada quatro mortes provocadas pela doença em 2015. No estado do Rio de Janeiro, por sua vez, já haviam sido notificados qua- se 53 mil casos até o mês de agosto (729% a mais do que no mesmo pe- ríodo de 2014). Enredo semelhante já foi protagoni- zado por moléstias como cólera, há alguns anos, e chikungunya, mais recentemente. Existem muitas ex- plicações para que enfermidades como essas tenham se manifestado em forma de surtos epidêmicos nos últimos tempos. Entre elas, as mu- danças climáticas provocadas pelo aquecimento global. Vetores, os agentes que transmitem o vírus da pessoa infectada para a pessoa sadia, são favorecidos por de- foto: Thinkstockfoto: terminadas condições ambientais. Se

janeiro/dezembro 2015 7 cadas pela doença – o maior já regis- trado desde que a dengue começou a ser monitorada detalhadamente, em 1990. Segundo o Ministério, a região com o maior número de casos graves nes- te ano foi a Sudeste. A mesma que sofre com escassez de chuvas ou fortes tempestades, calor extremo e maior índice populacional no Bra- sil. Embora seja difícil demonstrar a relação direta entre padrão de dis- tribuição de doenças transmissíveis domínio público e mudanças climáticas, o médico Enchentes favorecem o acúmulo Ulisses Confalonieri, que há 11 anos de água, que cria condições enchentes ou secas tornam-se mais integra o Painel Intergovernamental para a proliferação de vetores de frequentes, o impacto é de tal ordem da ONU sobre Mudanças Climáticas várias doenças que pode fomentar o surgimento de (IPCC), cita malária, dengue e leish- novas epidemias ou o recrudesci- maniose como as mais importantes mento de doenças então considera- e admite que a temperatura mais alta das praticamente extintas. No caso e a maior umidade podem de fato da dengue, por exemplo, o acúmulo acelerar o desenvolvimento biológi- de água parada e limpa favorece o co de patógenos e vetores. inseto transmissor, o mosquito Aedes aegypti, que escolhe ambientes com Confalonieri também é veterinário, essas características para depositar membro do Comitê de Doenças seus ovos. O cenário fica ainda mais Infecciosas do Group on Earth Ob- propício quando adicionamos cresci- servations, do Comitê de Saúde da mento populacional, falta de planeja- Organização Meteorológica Mundial mento urbano e desmatamento. e do Grupo sobre Agricultura, Am- biente e Doenças Infecciosas da Po- No Rio de Janeiro, de 2001 a 2009, breza do Programa de Pesquisa de estudo conduzido pela Escola Doenças Tropicais da Organização Nacional de Saúde Pública Ser- Mundial da Saúde (OMS). gio Arouca, vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), analisou a relação entre as variações climá- Impacto ticas e o risco de novos casos de desproporcional dengue, associando a elevação da A publicação “Mudança climática e temperatura mínima em um grau saúde: um perfil do Brasil” – edita- centígrado ao aumento de 45% das da em 2009 pela Organização Pan- notificações da doença no mês se- -Americana da Saúde (Opas) e pelo guinte. Da mesma forma, a pesqui- Ministério da Saúde – já alertava sa registrou um crescimento de 6% para as preocupantes consequên- diante de uma incidência de chuvas cias do aumento da temperatura dez milímetros superior à habitual. do planeta. Entre elas, “a alteração Em outubro de 2015, o Ministério da de ecossistemas e ciclos biológicos, Saúde divulgou boletim epidemioló- geográficos e químicos, que podem gico com 1.485.397 casos prováveis aumentar a incidência de doenças de dengue registrados no país du- infecciosas, mas também doenças rante o ano. O impacto já é superior não transmissíveis, que incluem des- ao registrado em 2013, inclusive com nutrição e enfermidades mentais”. relação ao número de mortes provo-

8 Senac Ambiental O texto adverte ainda que as mudan- casos por 100 mil habitantes, 11 ve- ças climáticas têm impacto despro- zes mais alta que a nacional. O Bra- porcional sobre as populações mais sil, em 2014, registrou 68.467 casos pobres e vulneráveis. O infectologis- de tuberculose, ou seja, 33,8 por 100 ta Eliseu Waldman, da Universidade mil habitantes, ocupando a 17ª posi- de São Paulo, ressalta que tais mo- ção entre os 22 países que concen- dificações podem ter repercussões tram 80% dos casos de tuberculose adversas, por exemplo, na agricultu- no mundo, segundo a OMS. ra, na pecuária e no acesso à água, O caso da Rocinha é indicativo de determinando, em áreas menos de- que aquecimento e alterações no senvolvidas, processos migratórios: clima não devem ser analisados iso- “Isso aumentará o contingente de ladamente, apesar de intensificarem populações vulneráveis, especial- problemas já existentes e provoca- mente em grandes centros urbanos, rem o aparecimento de novos. Tanto podendo, por exemplo, contribuir a publicação “Mudança climática e para o recrudescimento da tubercu- saúde: um perfil do Brasil” como os lose nessas áreas”. estudos de Eliseu Waldman e Ulisses A tuberculose se dissemina mais fa- Confalonieri – entre outros especia- cilmente em áreas com grande con- listas – apontam vários fatores como centração de pessoas e de pobreza, responsáveis pela emergência e re- em ambientes fechados, quentes e emergência de doenças infecciosas: úmidos, sem luz solar ou circulação a globalização, o aumento do inter- de ar. No Rio de Janeiro, a da câmbio internacional, a rápida urba- Rocinha, com mais de 100 mil habi- nização (especialmente em países de Com mais de 100 mil habitantes tantes, é um dos principais focos da grande contingente populacional) e concentrados em ambiente de grande doença. Com base em dados da pre- a explosão demográfica no decorrer umidade, a favela da Rocinha, no feitura, a taxa de incidência é de 372 do século 20, em particular nas regi- Rio de Janeiro, registra muitos casos de tuberculose foto: Chensiyuanfoto: - sob licença CC BY-SA 4.0

janeiro/dezembro 2015 9 ões menos desenvolvidas. “Outro fa- países mais poluidores do mundo – tor relevante”, acrescenta Waldman, Estados Unidos (45%) e China (18%). “é a capacidade de os microrganis- Na pesquisa, divulgada no início de mos se adaptarem às condições do novembro e realizada entre março ambiente por meio de mutações e e maio deste ano, a opinião dos recombinações – um processo mui- brasileiros se destaca também em to complexo e não previsível”. outros pontos: 90% acreditam que Na reportagem “Tuberculose na as mudanças climáticas já afetam as Rocinha expõe o Brasil que estacio- pessoas (a média global é de 51%); nou no século XIX”, publicada no 99% afirmam que os impactos serão jornal El País Brasil, o jornalista Fe- sentidos dentro dos próximos cin- lipe Bettim relata que a doença tem co anos (contra 79% do resultado sido enfrentada com várias ações mundial); 89% também acham que Ulisses Confalonieri: preocupação conjugadas – como a ampliação do as pessoas terão de mudar aspec- com doenças novas, para as quais programa Saúde da Família na co- tos de suas vidas por causa das mu- não temos imunidade munidade e a associação da questão danças climáticas (a média geral é da saúde com as obras do Programa de 67%). de Aceleração do Crescimento, do Brasileiros também associam des- Governo Federal, no local. A Rua 4 matamento e mudança climática, é um exemplo: era uma via de 500 o que, para Eliseu Waldman, é algo metros de comprimento e cerca de com que devemos nos preocupar, um metro de largura. A aglomeração principalmente em centros urbanos. era grande e a luz solar não chegava Segundo o infectologista, cerca de às casas. Não à toa, a via registrava 60% das doenças infecciosas emer- o maior número de casos da doença gentes são causadas por agentes na Rocinha. que originalmente infectavam ape- Com a obra, a rua foi alargada e ca- nas animais. Com a dispersão de sas substituídas por edifícios. O sol, espécies que vivem em ambiente agora, bate nas janelas e o oxigênio silvestre, ocorre a modificação da entra nas casas e nos pulmões. O forma como mantêm contato com Eliseu Waldman: promoção da número de casos de tuberculose o homem, aumentando o risco da equidade social para diminuir as entre os moradores da rua chegou a emergência de novas zoonoses. diferenças regionais zero. Atualmente, em toda a favela, a taxa de cura alcança 81,2%. Imunidade Os números dos casos de tuberculo- Nesse contexto, os especialistas se, dengue e chikungunya mostram aqui citados afirmam que mudanças a gravidade da situação. Às ques- climáticas alteram a vida de todo o tões sociais, estruturais e urbanas, planeta e podem atingir a saúde das somam-se as ambientais. Talvez populações humanas por diferentes por isso os brasileiros se mostrem mecanismos, pois criam condições os mais preocupados com o clima, que modificam os ecossistemas. conforme a pesquisa “A preocupa- “Para mitigarmos essa situação de- ção global sobre a mudança climá- vemos buscar políticas intersetoriais tica — suporte para a limitação das que promovam o desenvolvimento emissões”, feita com 45 mil pessoas sustentável, preservando o meio de 40 países pelo centro de estu- ambiente, que elevem o nível de edu- dos norte-americano Pew Research cação da população e melhorem as Center. A mudança climática é “um condições de vida e habitação nos problema muito sério” para 86% da centros urbanos. Medidas, portanto, população nacional. O percentual que visem à promoção da equidade está acima da média mundial (54%) e social e diminuam as diferenças re- é maior que a preocupação dos dois gionais”, afirma Waldman.

10 Senac Ambiental Ele nos lembra, por exemplo, que não há, até hoje, tecnologias espe- cíficas e eficazes para combater a dengue. A disponibilidade de vacina segura e efetiva ainda pode demorar alguns anos: “A educação voltada para o maior cuidado com o ambien- te e o aprimoramento da assistência médica, no entanto, podem ter um impacto favorável, particularmente, na diminuição da mortalidade pro- vocada pela doença”.

Confalonieri estende a preocupa- Elzafoto: Fiuza/Agência Brasil ção a doenças também infecciosas recém-introduzidas, “para as quais não temos imunidade”, e à discus- são entre profissionais de saúde com relação a antigas e novas epidemias: “O pessoal da saúde pública discute muito pouco as influências climáti- Campanhas educativas procuram conscientizar sobre os cas sobre as doenças transmissíveis. cuidados básicos para evitar a contaminação Essa conscientização ainda é inci- piente no Brasil”, analisa. A publicação “Mudança climática e saúde: um perfil do Brasil” mostra que o tema tem envolvido progressi- vamente os setores governamentais, não governamentais e a comunidade em geral e que foi incorporado como uma questão estratégica para o país, subsidiando e promovendo discus-

sões sobre seus efeitos em diversas Tâniafoto: Rêgo/Agência Brasil áreas, dentre elas a saúde. O Gover- no Federal, por meio do Decreto nº 6.263, de 21 de novembro de 2007, instituiu um grupo envolvendo a Casa Civil, 16 ministérios e o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas para elaborar a Política e o Plano Na- cionais de Mudança do Clima. Em 2009, a Lei 12.187 instituiu a intenção foi avaliar impactos do efei- Política Nacional sobre Mudança to estufa regionalmente e contribuir do Clima e, em 2010, a elaboração para o Plano Nacional de Adaptação de Planos Setoriais de Mitigação e à Mudança do Clima (Plano Adapta- Adaptação. ção), que está em fase de elaboração sob a coordenação do MMA. Em março de 2015, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e a Fiocruz Segundo o Ministério, ações de realizaram seminário para finalizar a adaptação se referem a iniciativas e construção dos Indicadores Subna- medidas capazes de reduzir a vul- cionais de Vulnerabilidade da Popula- nerabilidade dos sistemas naturais ção à Mudança do Clima no Brasil. A e humanos frente aos efeitos atuais

janeiro/dezembro 2015 11 e esperados da mudança do clima. Alguns indicadores contidos nesse Ou seja, é uma forma de lidar com mapeamento englobam a vulnera- possíveis impactos e explorar even- bilidade da saúde, com índice de tuais oportunidades com a inclusão morbidade para dengue, leptospiro- de ações, metas e indicadores espe- se, leishmaniose tegumentar ameri- cíficos de redução de emissões, bem cana e mortalidade por diarreia em como de mecanismos para verificar menores de 5 anos; índice de vul- o cumprimento dessas metas. A ela- nerabilidade social da família, que boração de uma estratégia de adap- envolve estrutura familiar, acesso foto: Genilton Vieira - sob licença CC BY-NC CC licença - sob Vieira foto: Genilton tação envolve, entre outras coisas, a ao conhecimento e trabalho, renda, identificação da exposição a esses desenvolvimento infantojuvenil e impactos com base em projeções e condições habitacionais; e índice de cenários climáticos. vulnerabilidade ambiental, que ana- lisa cobertura de vegetação nativa Mapeamento e em regeneração, conservação da biodiversidade, ocorrência de even- Os indicadores levam em conta tos hidrometeorológicos extremos e aspectos de cada região, como a vítimas, área costeira, além de ano- conservação ambiental, os dados malias climáticas projetadas. demográficos e de desenvolvimento humano, a suscetibilidade a fenôme- Desde então, vem sendo aperfei- nos extremos, como tempestades e çoado e está em aplicação nos es- secas, e a doenças associadas ao cli- tados da Bahia e de Minas Gerais. ma, como a dengue e a malária. A intenção é que seja implantado, inicialmente, também nos estados A avaliação envolverá também a ex- de Pernambuco, Espírito Santo, posição, a sensibilidade e a capaci- Amazonas, Maranhão, Mato Grosso dade adaptativa em escala munici- do Sul e Paraná. O critério para se- pal. A proposta em elaboração é um leção dos estados foi a presença de avanço, pois tem como base o sis- instalações regionais da Fundação tema desenvolvido para o estado do Oswaldo Cruz, que deverão apoiar Rio de Janeiro em 2011, denominado na logística e no desenvolvimento “Mapa de vulnerabilidade da popula- do projeto. ção do estado do Rio de Janeiro aos Ações adaptativas e o desenvolvi- Pesquisador examina o impactos das mudanças do clima mosquito Aedes aegypti nas áreas social, saúde e ambiental”, mento de uma cultura de adaptação (em destaque, no alto da que teve coordenação técnica de estão entre as prioridades no en- página) Ulisses Confalonieri. frentamento às mudanças climáti- cas. Para Confalonieri, o desafio será determinar como essas informações poderão ser usadas pelo poder pú- blico. O ideal é que seja criada uma ferramenta prática e, para que as po- líticas públicas sejam beneficiadas, quantificar e comparar as informa- ções colhidas. Informações, aliás, fundamentais para o enfrentamento de novas questões. Por exemplo: o zika vírus foi identificado pela primeira vez no país no fim de abril e confirmado em 14 estados brasileiros, segundo o Ministério da Saúde: Alagoas, Bahia, foto: Peterfoto: Ilicciev/Fiocruz Imagens - sob licença CC BY-NC

12 Senac Ambiental Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima. Transmitido pelo mosquito Aedes aegyti, o zika pertence à família dos vírus da dengue e da febre amarela, com sintomas muito parecidos: fe- Peterfoto: Ilicciev - sob licença CC BY-NC bre intermitente, erupções na pele, coceira e dor muscular. Até setem- Doenças emergentes bro, não havia registro de mortes relacionadas à doença, e o vírus era São doenças novas, não conhecidas pela população, causadas por considerado menos agressivo que o vírus ou bactérias nunca antes descritos ou por mutação de vírus. da dengue. Podem ser provocadas também por um agente que até então só atin- gia animais e passa a infectar seres humanos. A expressão pode de- No entanto, em novembro, o Minis- signar ainda uma doença que chega a uma região onde até então não tério da Saúde decretou emergência havia sido identificada. sanitária pela primeira vez desde que o mecanismo foi criado, em 2011. O Ebola motivo foi o aumento alarmante – 15 vezes maior que a média nacional Os primeiros registros ocorreram em 1976 e a descoberta do vírus dos últimos cinco anos – de casos foi reportada em 1977. Macacos infectados com uma cepa asiática de microcefalia em recém-nascidos do ebola foram importados das Filipinas para os Estados Unidos, em em Pernambuco. Até início de de- 1989 e 1990, e para a Itália, em 1992. Essa cepa asiática não apareceu zembro, já haviam sido registradas ainda como causadora de doenças em humanos. 1.761 ocorrências em 422 municípios Hepatite C de 13 estados e do Distrito Federal. Identificado em 1989, seu vírus é a maior causa de hepatite pós-trans- O estado de emergência sanitária plante no mundo, com aproximadamente 90% dos casos no Japão, nos permite que o governo dispense Estados Unidos e no leste da Europa. É estimado que 3% da população licitações para compras e contrata- mundial está infectada, sendo quase 170 milhões de casos crônicos ções, além de facilitar a formação de com risco de desenvolver a cirrose hepática ou o câncer de fígado. grupos de investigação. Nas crianças e nas gestantes, estão sendo reali- Encefalite espongiforme zados exames clínicos, de imagem Recente exemplo de doença emergente, é uma nova variante da Do- e laboratoriais, conforme protocolo ença de Creutzfeldt-Jakob, que foi primeiramente descrita no Reino definido pelo Ministério da Saúde Unido em 1996. Emergiu em 1980 e afetou milhares de rebanhos do e pela Secretaria de Saúde de Per- Reino Unido e alguns outros nas cidades europeias. nambuco. A análise dos resultados é feita pelo Laboratório Central de Haemophilus Influenza (H5N1) Saúde Pública de Pernambuco e pelo Centro de Pesquisas Ageu Ma- É um conhecido agente causador de infecções em pássaros, mas foi galhães, da Fiocruz. Os casos foram isolado de um caso humano pela primeira vez em 1997. informados à Opas e à OMS. HIV A microcefalia é uma malformação Sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana. Causador da congênita – transmitida pela mãe ao Aids, ataca o sistema imunológico, responsável por defender o orga- filho durante a gravidez – em que o nismo de doenças. A OMS estima que a Aids tenha sido responsável cérebro não se desenvolve de ma- pela morte de mais de 25 milhões de pessoas desde que foi identifi- neira adequada. Os bebês nascem cada, em 1981. com perímetro cefálico menor que

janeiro/dezembro 2015 13 O pesquisador Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas no Pará, responsável por comprovar a relação entre o zika e a microcefalia, afirmou em sucessivas entrevistas que não se sabe se o vírus é o único respon- sável ou se há outros fatores. Além disso, diz que a questão é comple- xa porque se conhece pouco sobre o zika: “O importante é controlar os focos de Aedes aegypti e investir pe- sadamente em pesquisa para saber como combater a epidemia”.

foto: Elzafoto: Fiúza/Agência Brasil Além do Brasil, Chile, Colômbia, El Claudio Maierovitch, do o normal, que habitualmente é supe- Salvador, Guatemala, México, Para- Ministério da Saúde, rior a 33 cm. Pode ser consequência guai, Suriname e Venezuela já regis- divulgando boletim sobre de uma série de fatores de diferentes traram casos de infecção pelo vírus novos casos diagnosticados origens (substâncias químicas, por zika. Esse cenário levou a OMS, em de microcefalia exemplo), agentes biológicos (in- conjunto com a Opas, a emitir alerta fecciosos) como bactérias ou vírus epidemiológico mundial para a ne- e radiação (caso a mãe tenha sido cessidade de estabelecer medidas exposta durante o período de ges- de prevenção, diagnóstico e con- tação, especialmente no primeiro trole. trimestre, crucial para o desenvolvi- mento do cérebro do bebê). Pacto pelo clima Em entrevista coletiva concedida As mudanças climáticas associadas assim que o estado de emergência a questões sociais, ambientais e de sanitária foi decretado, o diretor do saúde tornam o debate e as ações Departamento de Vigilância de Do- ainda mais urgentes. A Conferência enças Transmissíveis do Ministério do Clima (COP-21), ocorrida em Paris da Saúde, Cláudio Maierovitch, des- de 30 de novembro a 11 de dezem- tacou que 90% dos casos de micro- bro, teve como objetivo firmar um cefalia provocam retardo no desen- pacto entre países, por meio das Na- volvimento neurológico, psíquico e ções Unidas, para combater as trans- motor. A tendência é que esse atraso formações pelas quais passa o clima de desenvolvimento apareça mais no planeta e alcançar o objetivo de tardiamente, não logo após o nasci- Larvas do limitar a elevação do aquecimento mento. 0 Aedes aegypti global em até 2 C, comparados aos níveis da era pré-industrial. Em 2015, atingimos a elevação de 10C. O calor ainda traz outras e novas in- quietações. Segundo Confalonieri, o IPCC tem se mostrado preocupado com a exposição ocupacional ao calor: “Pessoas que trabalham ao ar livre ficam diretamente expostas. Isso pode se tornar algo importante por representar sério risco à saúde, prin- cipalmente em países não tropicais, onde as pessoas são menos adap-

foto: Raulfoto: Santana/Fiocruz Imagens - sob licença CC-BY-NC tadas a altas temperaturas”, advertiu.

14 Senac Ambiental Doenças reemergentes Cólera Febre amarela Reapareceu em países onde já ha- Doença para a qual há várias via sido erradicada, na medida em vacinas pouco disseminadas. A que as condições de saneamento ameaça da febre amarela está e alimentação se deterioraram. Em presente em 33 países africanos 1991, na América do Sul, mais de e 8 sul-americanos. É comum em 390 mil casos foram notificados, florestas tropicais, onde o vírus São aquelas cuja incidência volta sendo que por um século não se sobrevive em macacos. Pessoas a ser expressiva quando já não registravam casos de cólera. infectadas levam o vírus para os estavam sendo consideradas um vilarejos e a simples presença de problema de saúde pública. As Dengue um vetor espalha rapidamente a causas comuns de emergência e Espalhou-se por vários países do doença, que mata facilmente pes- reemergência de doenças infec- sudeste asiático desde a década soas com baixa imunidade. ciosas são: de 50 e reemergiu no continente Tuberculose crescente número de pessoas americano na década de 1990, vivendo e se deslocando pelo como consequência da deterio- Comporta-se como doença re- mundo; ração do controle do mosquito e emergente devido ao aumento sua disseminação em áreas urba- gradativo de casos no passar dos rápidas e intensas viagens inter- nas. últimos anos. Isto se dá devido ao nacionais; processo de seleção responsável superpopulação em cidades Difteria pela existência de cepas altamente com precárias condições sani- Reemergiu na Rússia e em algumas resistentes a antibióticos. Além tárias; outras repúblicas da antiga União disso, o HIV contribui largamente aumento da exposição humana Soviética em 1994, culminando para a manifestação da doença. a vetores e reservas naturais; em 1995 com mais de 50 mil ca- sos relatados. A reemergência está Leptospirose ampliação do consumo de ali- associada a um grave declínio dos Zoonose provocada por uma bac- mentos industrializados, especial- programas de imunização, segui- téria eliminada principalmente na mente os de origem animal; da de uma “falência” nos serviços urina de roedores. Na ocorrência desestruturação/inadequação de saúde que se iniciou com o co- de enchentes, pode infectar as dos serviços de saúde e/ou de- lapso do comunismo. pessoas que entram em contato com a água contamina- satualização das estratégias de Febre Rift Valley (RVF) controle de doenças; da. A bactéria pene- Adamfoto: Davis/Freeimages.com Caracterizada por febre e mi- tra no organismo aprimoramento das técnicas de algia, pode progredir para reti- por meio de diagnóstico, possibilitando diag- nite, encefalite ou hemorragia. lesões de pele nósticos etiológicos mais preci- Depois de anormal temporada ou pelas mu- sos; chuvosa no Quênia e na Somália cosas. Suas processo de evolução de mi- em 1997 e 1998, a RVF ocorreu manifestações crorganismos (mutações virais, em vastas áreas, causando febre mais comuns emergência de bactérias resis- hemorrágica e morte. A doença são febre, icterí- tentes); está associada a condições cia, dores muscula- res e presença de albumina climáticas, má nutrição e outras alterações ambientais e mudan- na urina. ças climáticas. infecções.

Fontes: Unifesp e Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas

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Nova Economia Capitalismo das multidões

Economia compartilhada, crowdfunding e crowdsourcing mostram o poder da mobilização virtual pela sustentabilidade. Elis Monteiro

Livros de poesias, álbuns musicais, shows, peças de teatro, causas sociais e até uma ferramenta para gestão interativa de consumo de energia elétrica. O que todos esses produtos tão diferentes têm em co- mum? O fato de, neste momento, estarem em busca de investidores – na internet. São projetos em cur- so em sites de crowdfunding, o finan- ciamento coletivo que faz com que pessoas físicas possam colaborar diretamente para o desenvolvimen- to de iniciativas em diversos seg- mentos. A rede mundial de computadores propiciou o nascimento de novas formas de produção e consumo. Vista como parte significativa do processo de inovação do futuro, a nova Economia das Multidões já é percebida, inclusive, como ameaça ao capitalismo nos seus moldes tra- dicionais. Fenômenos como o reló- gio-smartphone Pebble Time, que já arrecadou mais de US$ 20 mi- lhões no Kickstarter, mais conheci- do portal de crowdfunding do mundo, mostram que há uma (r)evolução em curso. Que pode transformar a forma como produtos são criados e

foto: Pixabay/domíniofoto: público como os adquirimos.

janeiro/dezembro 2015 17 No crowdfunding, indivíduos que se ajudaram nada menos que 135 mil

e Facebbok interessem em apoiar um projeto projetos de todos os tipos – que fazem doações via cartão de crédi- saíram da “garagem” direto para o to ou boleto bancário – cada um dá consumidor, sem atravessadores. o que quer ou o que pode. Em tro- Não é pouca coisa, não. ca, o dono do projeto oferece uma fotos: reproduções de sites recompensa – se o projeto anun- Nova forma de ciado for um filme, por exemplo, os “investidores” podem receber uma capitalismo cópia gratuita em primeira mão. O crowdfunding tem sido visto como uma nova forma de capitalismo e Nos Estados Unidos, o crowdfunding pode ser o segredo para a concre- se popularizou no ano de 2008, tização de projetos que antes de- mas no Brasil a onda só chegou pendiam única e exclusivamente depois do lançamento do popular da boa vontade das empresas – e Catarse, em 2011. Depois dele, foi de tempo para que recursos fos- a vez do movimento Queremos!, sem liberados com essa finalidade. primeira plataforma online a permi- tir que fãs de artistas se unissem Um dos projetos criados pelo canal para trazer seus ídolos para reali- brasileiro de crowdfunding e crowd- zar shows no Brasil. Os doadores sourcing Benfeitoria, o Rio+ (canal têm o dinheiro revertido em ingres- de prototipação de soluções inova- sos (uma vez que as apresentações doras para a cidade do Rio de Ja- tenham sido viabilizadas) ou o neiro) recebeu, em 2014, nada me- dinheiro de volta (caso o projeto nos que 1.692 ideias depois de uma não obtenha o financiamento ne- convocação feita pela internet. To- das foram analisadas e passaram cessário). O Queremos! fez tanto por uma banca de especialistas, sucesso que foi um dos responsá- responsáveis pelo estudo de viabi- veis por reinserir o Brasil no mapa lidade. Passada esta fase, o público das turnês mundiais de bandas in- pôde votar, pela internet, nas me- dependentes e até de atrações do lhores, que foram implementadas circuito mainstream. sob a supervisão e mensuração da Em 2014, o Kickstarter ultrapassou Fundação Getúlio Vargas (FGV). a marca de US$ 1 bilhão arrecada- Uma visita ao site da Benfeitoria re- dos de 5,7 milhões de pessoas, que vela uma diversidade de projetos

18 Senac Ambiental em busca de recursos, sejam fi- de um trânsito nanceiros ou intelectuais – material melhor e uma de divulgação, horas de trabalho, maior qualida- conhecimento etc., tudo que pode de de vida. ser considerado moeda de troca ou O Uber já tem sido vítima de todo doação está valendo. tipo de protesto. Em São Paulo e O retorno dado aos benfeitores que no Rio, cooperativas de taxistas se topem ingressar nos projetos pode mobilizam para impedir o exercício vir sob a forma de produto, agra- dos motoristas que prestam serviços decimentos especiais ou simples- por meio do aplicativo; indignados, mente orgulho por ter feito parte os profissionais do volante acusam da iniciativa. Na era da consciência o app de ser ilegal e afirmam que a global, a certeza de “ser da turma concorrência é desleal, uma vez que que fez” é moeda valiosa. os motoristas cadastrados no Uber não estão sujeitos à tributação e à E nesse novo capitalismo surgem burocracia a que se submetem os iniciativas que já estão bagunçando taxistas. Em breve saberemos como o capitalismo estabelecido. Que tal essa luta seguirá seu curso. pensar em cooperativas de serviços montadas por indivíduos que têm Crowdsourcing: como interface apenas a tela do celu- lar? Motoristas, profissionais ou não, união de saberes e clientes se comunicam diretamen- A Benfeitoria trabalha recebendo te, sem a ação de intermediários – é doações de dinheiro (crowdfunding) o caso do aplicativo de transporte ou de recursos (crowdsourcing). Outra Uber. Pessoas se conectam a outras modalidade nascida na era da cola- pessoas para trocar informações so- boração, a busca por “recursos de bre o trânsito extraídas diretamente multidão” é o processo de obtenção da fonte, sem passar pela filtragem de serviços, ideias ou conteúdos ne- dos outrora mediadores institucio- cessários, solicitando contribuições nais, autoridades ou veículos de co- de um grupo variado de pessoas. E municação tradicionais – é o caso pode ser um divisor de águas para do Waze, aplicativo de trabalho co- o universo dos projetos sociais. Em laborativo no qual cada motorista vez de apenas correr atrás da ajuda passa a ser a fonte do outro em prol financeira de empresas, entidades

janeiro/dezembro 2015 19 do terceiro setor e até empreende- Challenge, que convidou 63 ONGs dores individuais têm buscado apoio no mundo inteiro a alcançar o má- diretamente da sociedade. Tal como ximo possível de doações por meio se dá no crowdfunding, só que com da plataforma de financiamento outra mercadoria sendo “negocia- coletivo Crowdrise. da”: o conhecimento. Uma parceria entre a Skoll Founda- Para Peter Diamandis, professor da tion, o jornal The Huffington Post Singularity University (universida- e a Crowdrise se comprometeu a de patrocinada pelo Google e pela doar US$ 1 milhão, dos quais US$ Agência Espacial Norte-Americana, 250 mil foram repartidos entre as a Nasa) e criador do X-Prize (prêmio três instituições que mais arreca- mundial que condecora iniciativas daram e US$ 750 mil foram dividi- que interferem no status quo), a hu- dos entre as organizações sociais manidade está vivendo um período que atingissem as metas dos desa- que pode ser chamado de Crowd- fios semanais. source Genius (Genialidade Com- partilhada). É a inovação propiciada Em primeiro lugar no desafio ficou a pela união de conhecimentos em The One Voice Movement, que arre- prol do desenvolvimento de pro- cadou US$ 1.217,421; em seguida vie- jetos, produtos e, principalmente, ram a The Citizen Foundation (TCF), de soluções para questões locais e com US$ 1.202.260, e a Pratham globais. Por conta disso, acredita- USA, com US$ 923,150. As organiza- -se que o futuro será infinitamente ções sediadas no Brasil com melhor mais... colaborativo! colocação foram a Saúde Criança, que arrecadou US$ 51.954 (21º lugar) Crowdfunding social e o Comitê para Democratização da Informática (CDI), que conseguiu Como sobreviver sem depender do pouco mais de US$ 5 mil e ficou en- imagem: Thinkstock auxílio financeiro proveniente de tre os 50 primeiros colocados. empresas ou do governo? Como manter uma instituição de pé sem Organizações como WWF, Greenpea- doações privadas ou públicas? ce, Médicos sem Fronteiras, GRAAC Como captar recursos diretamen- e AACD, entre outras, já estão mobi- te da fonte? Estas são algumas das lizando recursos por meio de plata- muitas questões enfrentadas hoje formas colaborativas online. Na bra- pelas organizações sociais. Até há sileira Kickante (www.kickante.com. bem pouco tempo dependentes, em br), por exemplo, o apoiador pode sua maioria, de captação empresa- encontrar informações sobre as ins- rial e governamental, agora as ONGs tituições e efetivar sua doação. Mais começam a correr atrás de soluções do que reunir pessoas que acreditam baseadas em crowdfunding. na causa e querem fazer parte dos esforços, ao final das campanhas os O movimento vem es- responsáveis pelas ONGs recebem quentando da Kickante a base de dados dos desde 2013, doadores, para que mantenham a quando a Skoll comunicação e o relacionamento. Já Foundation o doador recebe certificado de par- lançou o até en- ticipação e/ou brindes, variando de tão maior desafio acordo com o valor da doação. internacional de crowdfunding: Para os Médicos Sem Fronteiras, o Skoll Foun- o crowdfunding foi um passo a mais dation Social em um trabalho desenvolvido há Entrepreneurs muito tempo – a organização não

20 Senac Ambiental governamental depende quase que exclusivamente de doações de pes- soas físicas, com quase 90% de sua base de arrecadação advinda de doações privadas. Em outubro de 2013, a MSF lançou sua primeira campanha de financiamento cole- tivo na Kickante. Batizada de “Ca- lendário Médicos Sem Fronteiras – 2014”, a força-tarefa arrecadou 420% da meta, recursos que vieram reproduçãofoto: do Facebook de 815 doadores. No total, o MSF esgotado e que só havia uma chan- Leonardo Konarzewski buscou conseguiu R$ 54 mil, valor suficiente ce para ele: um tratamento médico no financiamento coletivo para adquirir 71.500 sachês de ali- uma forma de viabilizar um em fase de testes em uma clínica de mento terapêutico à base de pasta tratamento de câncer no Rochester, no estado norte-ameri- de amendoim para tratar desnutri- exterior cano de Minnesota. O complicador? ção severa em crianças. Ou mais de O preço. Ele precisava, inicialmente, 72.120 vacinas contra o sarampo. de US$ 15 mil para ser aceito pela Na cola de tantos bons exemplos, clínica. Então Leonardo pegou uma surgiram iniciativas de todo tipo, webcam, gravou um vídeo no qual voltadas para a criação ou manu- pedia a colaboração dos internau- tenção de projetos sociais. Benfei- tas e criou um site de crowdfunding. toria, Vaquinha Social, Juntos.com. Resultado? Está nos EUA há meses, vc e outras oferecem o meio para com grande parte dos custos ban- que as instituições busquem doa- cada por doações advindas da in- dores – de dinheiro, conhecimento, ternet – e que continuaram chegan- recursos em geral, comunicação, do, já que o tratamento, agora em entre outras necessidades – e tam- fase final após um autotransplante bém novos aliados. de medula, foi estimado em torno de US$ 1 milhão. Novos tempos para a “Acredito que as pessoas sempre es- tão dispostas a ajudar, mas depen- velha “vaquinha” de do impacto que se causa na vida Para quem precisa de uma “for- delas, da perspectiva que elas vão cinha” em momentos difíceis, o tomar da situação. Foi difícil recorrer crowdfunding também tem se mos- à internet porque sempre fui um cara trado uma opção eficaz. Ir atrás da muito reservado. Tive de me expor ajuda de desconhecidos foi a de- por uma necessidade muito grande. cisão de Leonardo Konarzewski, Mas vi que a internet ajuda mais a di- que encontrou no financiamento fundir e a alcançar um número maior coletivo uma forma de juntar forças de pessoas. A generosidade já está para enfrentar um problema grave no ser humano, só precisa ser aflo- e que, a princípio, parecia insolúvel. rada, e a internet faz muito bem esse O programador gaúcho decidiu usar trabalho”, conta Léo, diretamente da a internet como forma de arrecadar clínica nos Estados Unidos. recursos para tratar um linfoma de Seja para lançar um produto, con- Hodgkin, tipo de câncer no tecido tratar uma banda, proteger o pró- linfático. ximo das “roubadas” no trânsito, Depois de passar por cinco sessões oferecer serviços diferenciados e de quimioterapia, Léo foi informado até salvar vidas, a era da colabora- de que as possibilidades para trata- ção mostra que nem só de notícias mento da doença no Brasil haviam se ruins é feita a humanidade.

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Educação Ambiental Musa que inspira a vida

Uma proposta simples e ousada: manter um “museu vivo” no coração da Amazônia, em área de reserva florestal Texto e fotos: Lena Trindade A definição de museu que está no dicionário Aurélio diz o seguinte: “Lugar destinado não apenas ao estudo, mas à reunião e exposição de obras de arte, peças e coleções científicas ou objetos antigos. Que tem valor histórico”. Mas o Museu da Amazônia (Musa) é um pouco di- ferente. Nele não existem obras de arte a serem observadas em silêncio, tampouco animais empalhados ou objetos antigos. A ideia é inverter a matriz usual e levar o visitante a en- trar na Floresta Amazônica para ver, em cores vivas, tudo que ocorre. Aparentemente simples, a proposta é ousada. Foi pensada e realizada pelo físico e cientista Ennio Candotti. Instalado em Manaus, capital do Amazonas, mais precisamente na Reserva Ducke, o Musa ocupa, desde 2009, uma área de cem hectares. Em ótimo estado de conservação, a Reserva Florestal Adolpho Ducke fica na zona norte do município, possui 10 mil hectares e é exemplar como área de Floresta de Terra Firme – que Pica-pau-de-barriga- combina tamanho, fácil acesso, flora vermelha: espécie belíssima e fauna relativamente intactas. que vive nos ambientes de mata firme e de várzea O internacionalmente reconhecido Instituto de Pesquisas da Amazônia

janeiro/dezembro 2015 23 Fachada do Pavilhão (Inpa) é parceiro do Musa, onde rea- O Musa é um espaço para educação, de Exposições liza estudos sobre plantas, pássaros vivência e conhecimento. Acima de e rãs, há mais de 30 anos lançando tudo, é um local de convivência e ce- regularmente catálogos e outras pu- lebração da diversidade. Nas palavras blicações especializadas. A área da do professor Candotti, “um espaço reserva não é aberta ao público, mas onde os humanos de diversas cultu- desde 2009, com a criação do Musa, ras e a natureza podem colocar em o visitante ganhou a oportunidade de prática o mote ‘Viver Juntos’, símbolo ver, ouvir e sentir o que é uma floresta de um projeto de educação e solida- viva. Os cem hectares do Musa ficam riedade empenhado em promover o abertos de terça a sexta-feira, com convívio dos cidadãos na diversida- monitores experientes que guiam o de cultural, biológica, social e políti- visitante por trilhas, passarelas e uma ca da grande Bacia Amazônica.” torre de observação de onde se po- Ao contrário dos outros museus dem ouvir “as conversas” dos pássa- tradicionais, em que peças, mo- ros, ver cupins e insetos, sentir odo- delos e objetos estão imobilizados res, umidade, apreciar o movimento em edifícios e exposições, o Musa das formigas e conhecer, em seus di- oferece a natureza viva, as plantas, versos aquários, os principais peixes os bichos em seu ambiente – flo- amazônicos dos rios Negro, Madeira resta, lagos e igarapés. Para isso e Solimões, como o tambaqui, o pi- o visitante tem de andar, sentir a rarucu, o tucunaré ou o piramboia, umidade da mata, subir os 42 me- um peixe com respiração pulmonar tros ou 230 degraus da torre de que sobe à superfície da água para observação e ver a floresta como respirar pela boca. Ou ainda o inte- um pássaro – do alto, acima da ressante poraquê – ou peixe-elétrico copa das árvores, que na Reserva (Electrophoridae) –, espécie amazônica Ducke alcançam em média 30 a 35 que possui músculos que armazenam metros. É uma experiência única, e e produzem energia elétrica capaz de não há quem não se emocione, não paralisar suas presas e até matá-las. saia comovido com a experiência

24 Senac Ambiental As florestas estão sujeitas a inundações periódicas provenientes dos numerosos rios da região de “ouvir” o silêncio, ver algumas A Amazônia é uma terra de super- aves que jamais descem, sentir o lativos, polaridades e extremos, re- vento fresco e a pulsação da maior pleta de recordes. Lá encontramos a floresta do mundo assim de per- maior de todas as aranhas – Golias to, quase ao alcance das mãos. A (Theraphosa blondi) –, o rio mais vo- torre é um “altar”, lugar de trans- lumoso e extenso do planeta (o cendência onde todos os visitantes próprio Amazonas), a maior e mais se conscientizam da importância e alta floresta, a maior folha do Brasil da necessidade de preservação da (Coccoloba, comum em Rondônia, Amazônia. Um local onde se expe- com 2,5 m de altura e 1,44 m de lar- rimentam novas formas de olhar, gura). Só no arquipélago de Anavi- sentir e pensar a floresta. lhanas, um dos maiores do mundo, encontramos mais de 400 ilhas. Ali, É também onde se realizam me- em Novo Airão, numa saída de bar- dições climáticas e climatológicas co pelo rio Negro, fui cercada por de grande importância para todo botos-cor-de-rosa – também cha- o país, pois, como sabemos, o mados de botos-vermelhos, pois, rio Amazonas compõe a gigantes- quando vistos nas águas escuras do ca bacia responsável por 20% das rio Negro, a luz solar reflete em seus águas fluviais da Terra. No relatório corpos uma cor avermelhada. Trata- “O futuro climático da Amazônia”, -se do maior golfinho de água doce divulgado pelo Instituto Nacional do mundo, chegando a pesar 185 kg de Estudos Espaciais em 2014, os e medir 2,55 m. Em Novo Airão, há cientistas mostram essa estreita um flutuante controlado pelo Ibama relação entre a Amazônia e a re- de onde se podem observar os bo- Segundo Candotti, “a Torre é como gulação do clima no planeta. Seu tos sendo alimentados. Nas águas um templo para meditar e observar a desmatamento pode causar trans- amazônicas, nada também o pira- maravilha da natureza” formações sérias, como a grande rucu, outro recordista: maior peixe Acima das copas das árvores, o visitante redução de incidência das chuvas. fica próximo de pássaros e outros seres de escama de água doce do mundo, Sem árvores as chuvas podem ces- da floresta podendo chegar a três metros de sar. É uma realidade.

janeiro/dezembro 2015 25 comprimento. Outra espécie rara, É fundamental conhecer o modo de ameaçada de extinção, é o peixe- vida indígena e não apenas as plu- -boi, que é herbívoro, só se alimenta mas e o artesanato. A herança das de plantas aquáticas. culturas tradicionais dos povos da região, índios, ribeirinhos e serin- Toda essa riqueza e diversidade da gueiros. Levar a todos o vasto co- Amazônia, assim como sua com- nhecimento que esses povos detêm plexidade social, suscitam muitas – das plantas, do clima, das águas perguntas. Procurar respostas e criar e da fauna. Dessa forma, a floresta novas perguntas é a que se propõe pode ser vista não como inimiga ou o Musa. Que segredos escondem algo assustador (o “inferno verde”, as águas do rio Negro? Como o bi- cognome da região em parte da im- cho-folha chegou a essa perfeição prensa do Brasil e do exterior, nos na arte de se camuflar? Que conste- anos 1960 e 1970), mas como parte lações as diversas etnias indígenas do rico patrimônio da história que identificam no céu? Como um pás- vem se formando ao longo de sécu- saro se relaciona com a floresta ao los. Procurar o conhecimento para seu redor? Será que reconhece cores que se possa preservar: para isso o Maior golfinho de água doce do planeta, o como nós, humanos? boto vermelho ou boto-cor-de-rosa é um dos Musa dispõe de laboratórios de pes- ícones da Amazônia e uma das atrações do Para cumprir esse objetivo é preciso quisa, viveiro de orquídeas e bromé- ecoturismo sustentável adentrar a floresta. Ver os ambientes lias, serpentário, borboletário, aquá- naturais da Amazônia, aproximar os rios e salas para exposições, além que vivem na floresta dos que que- de oferecer oficinas de educação rem conhecê-la. Aproximar-se do em ciências, cultura e artes para a seu microcosmo – os formigueiros, comunidade e os estudantes. Como cupinzeiros etc. Com a ajuda de ins- diz o professor Ennio Candotti, é um trumentos como microscópios, lu- lugar onde humanos e não-humanos pas, câmeras e sensores, os ruídos podem viver juntos e em harmonia. são amplificados e pode-se ver o No borboletário os visitantes têm a que se passa dentro do formigueiro, O sauim-de-coleira é encontrado em apenas oportunidade de ver todas as fases como as formigas se comunicam e três municípios da Amazônia e está entre as de vida de uma borboleta amazônica: espécies mais ameaçadas de extinção percebem o mundo.

26 Senac Ambiental ovos, larva, lagarta, crisálida e ani- mal adulto. Tudo bem explicado pela entusiasmada (o entusiasmo é a característica notável em todos que trabalham no museu) pesquisadora Tainá, que cuida das borboletas na- tivas da Amazônia e as estuda. Outra jovem que trabalha com grande en- tusiasmo é Fernanda Meirelles. Mes- tre em Ecologia pela Universidade de São Paulo (USP), Fernanda trabalha com mamíferos, mas sua presença se faz sentir em vários segmentos no Musa. É ela, por exemplo, quem cuida do mãe-da-lua-gigante (Nycti- bius grandis), o maior dos urutaus (ave noturna com plumagem de espeta- cular camuflagem). A ave foi deixada no Musa muito frágil, com as asas cortadas e sem capacidade de voo. Fernanda conta que se sentiu atraída pela ideia de trabalhar no Musa por ser apaixonada pela popularização da ciência, objetivo maior do museu. Ela gostaria de ver os moradores de Manaus mais envolvidos com o projeto, mas entende que talvez a localização do Musa seja a grande dificuldade pra que isso ocorra. Ao mesmo tempo, é também seu maior diferencial, pois a reserva é a gran- de chance de o manauara conhecer uma floresta sem precisar sair da ci- O angelim-pedra é a árvore símbolo dade. “A cada pessoa que consegui- do Musa, com idade estimada em 500 mos encantar, despertando nela um anos. Esta espécie pode atingir 60 olhar de admiração e respeito pela metros de altura vida, ganhamos um aliado na con- servação”, observa. No serpentário o veterinário Ansel- mo explica sobre as cobras peço- nhentas (jararaca e cascavel) e não- -peçonhentas (sucuri, jiboia-arco-íris e jiboia), que ficam no recinto exter- no ou nos terrários. As instalações do criadouro de serpentes contri- buem para a divulgação científica, e os visitantes aprendem muito a

Jibóia-arco-íris sendo isolada para tratamento pelo veterinário do Musa. A espécie tem esse nome devido ao reflexo brilhante que exibe sob a luz do sol

janeiro/dezembro 2015 27 A aranha-golias, endêmica da respeito desses fascinantes répteis Amazônia brasileira, é a maior amazônicos. Ennio Candotti do mundo. Pode chegar a 30 centímetros Nos aquários os visitantes têm e as verdades oportunidade de ver de perto espé- cies lendárias da Amazônia, como o observadas peixe-elétrico, o pirarucu, o aruanã, o tucunaré e o piramboia. Italiano de nascimento, Ennio Can- dotti veio para o Brasil com dez Nas trilhas podemos ver os intrigan- anos de idade e em 1983 natura- tes casulos das cigarras engenheiras lizou-se brasileiro. Formado pela (da espécie Fidicina chlorogena), ain- USP, foi professor da Universidade da um mistério para os cientistas que estudam o inseto, pois constroem Federal do Rio (UFRJ) e da Univer- com argila verdadeiras torres (de sidade Federal do Espírito Santo, aproximadamente 40 centímetros). além de presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciên- Dessa forma o Musa socializa os cia (SBPC) por quatro mandatos. conhecimentos científicos que pro- duz e forma aliados na defesa da Em 1982, criou a revista Ciência preservação da floresta de maneira Hoje, da qual foi diretor-responsá- por vezes lúdica e atraente. Isso é vel até 1996. Criou também a revis- nítido nos olhos das crianças que ta Ciência Hoje para Crianças, um visitam o museu e que pela primei- grande sucesso. Em 1998 recebeu ra vez veem o nascimento de uma o Prêmio Kalinga de Popularização borboleta ou conhecem a orquídea- da Ciência, concedido pela Unesco. -chocolate (que exala de fato um Criador do Museu da Amazônia, é impressionante perfume de choco- até hoje seu diretor-presidente. late). É o prazer de partilhar o co- Esta conversa se deu no escritório nhecimento e perceber como dessa do Musa, em Manaus, onde vive o interação entre a comunidade e o professor com sua família. museu se constrói o processo de inclusão social, um dos principais Senac Ambiental – Como nasceu objetivos do projeto. a ideia de um museu na Amazônia, o Musa? “A floresta amazônica não vai ser salva por lei ou por declarações. Ennio Candotti – Em minhas Será salva por todo mundo que vive inúmeras viagens a vários países, aqui, desde que aprendam que ela observei que nos museus se cons- vale mais que a terra, o lote ou a troem reconstituições da floresta madeira cortada”, diz o professor amazônica em redomas de vidro. Ennio Candotti. Gastam-se milhões para manter

28 Senac Ambiental Professor Ennio Candotti

aquelas borboletas alfinetadas e Senac Ambiental – E como o aqueles animais empalhados que Musa faz para atrair o morador de Manaus, os jovens, enfim, ser de naturalmente perdem a cor origi- gação científica e a saúde pública interesse da comunidade? nal. Sugeri então montarmos ar- são uma coisa só, se misturam. É quibancadas no meio da floresta Ennio Candotti – Não é fácil nem preciso entender o desenvolvimen- e mostrar a todos o grande valor rápido o processo de atração e di- to científico de forma mais ampla, da mata de pé. Mostrar do alto, de vulgação do conhecimento cientí- não apenas nos temas relaciona- baixo, o microcosmo, o que fazem fico. Estamos em Manaus, não es- dos a física, química e biologia. as aranhas, as serpentes, as cigar- tamos no Jardim Botânico do Rio Incluir os campos sociais e das ras, os pássaros... Não há no mun- de Janeiro, que tem uma visitação humanidades nas discussões é de do museu que estude essas intera- enorme. No Brasil, a questão do grande importância. ções. Isso é riquíssimo. Precisa ser ensino da ciência não ocupa o lu- Senac Ambiental – O Musa apre- visto, estudado e, sobretudo, divul- gar merecido, não ganhou ainda o senta agora a belíssima exposição gado. A floresta onde está o Musa interesse que tem em outros paí- “Peixe e Gente”, onde tudo isso é primária, tem dez mil anos, não ses, não encontrou legitimidade que o senhor acaba de falar fica é uma floresta plantada. Tem muita política. Até a Índia, lugar de mi- muito claro. história, tem segredos. Revelar es- lhões de habitantes com até sete ses segredos não é tarefa fácil, mas línguas oficiais, tem ações decidi- Ennio Candotti – Exato! A expo- é fascinante. Um museu vivo! Esta- das, programas de esclarecimento sição “Peixe e Gente” mostra as mos plantando, demora dez, 20, 30 e divulgação do conhecimento. práticas e armadilhas de pesca de anos para ter a representação que Aqui faltam projetos que deem à um povo que vive no Alto Rio Ne- merece. Mas estamos caminhando floresta o seu real valor. Precisa- gro. Convidamos representantes bem. A ideia é replicar os museus, mos conscientizar a população não de diversas etnias, conhecedores os jardins botânicos, os centros de só da necessidade de preservar as profundos dos segredos da flores- pesquisa, que cada município te- florestas como também de levar in- ta, dos peixes e da pesca, exímios nha seu jardim botânico etc. Pois formações aos ribeirinhos, que são construtores das armadilhas para basta observar, identificar e pros- gravemente afetados, por exemplo, pesca feitas com cipós, talas e seguir com pesquisas, o que não é pela verminose, pela ingestão de outros elementos da floresta. O caro e dá resultados melhores do água contaminada por causas na- objetivo é entender como em dife- que decorar o que está nos livros. turais – bichos, poluentes naturais rentes culturas se construíram os A cada dia vemos se replicarem da própria floresta e micro-orga- caminhos para celebrar o viver e igrejas, lugares de celebração de nismos... Aquele caldo rico que conhecer a natureza. Para o Musa, verdades reveladas. Precisamos vem com as águas é ótimo nutrien- defender e divulgar as culturas criar lugares de celebração da flo- te para a floresta, mas não para os indígenas não é apenas um im- resta. Em vez de verdades revela- humanos. A qualidade da água, o perativo de convivência solidária das, verdades observadas. Abrir os consumo excessivo de agrotóxico, entre humanos, mas uma neces- olhos, os ouvidos, a mente. A torre a preservação das áreas encharca- sidade quando queremos decifrar de observação é nosso templo, lu- das e dos mananciais são grandes as enigmáticas representações do gar de celebração da floresta. desafios que mostram que a divul- teatro da natureza, na floresta.

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Desenvolvimento Sustentável Em risco, a sobrevivência dos geraizeiros

No norte de Minas, população tradicional do Cerrado é ameaçada por mineradoras, madeireiras e restrições ambientais Reportagem e fotos: João Roberto Ripper Texto final: Lígia Coelho

Há décadas encurralados por em- preendimentos de mineradoras e madeireiras que ameaçam seu sus- tento, os geraizeiros, população tradicional que habita, entre outras regiões, o norte de Minas Gerais, vêm sofrendo também, nos últimos anos, com as restrições impostas pela implantação do Parque Na- cional das Sempre-Vivas. A área de conservação ambiental criada pelo Decreto Federal 13/2002 é geren- ciada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e inte- grante do Sistema Nacional do Meio Ambiente. Apanhadores de flores, pescadores e faisqueiros (trabalhadores que praticam o garimpo artesanal) são alguns grupos que habitam a região das Gerais diretamente atingidos por esses projetos. Habituados à convivência harmoniosa com o

janeiro/dezembro 2015 31 Cerrado, bioma ao qual estão in- tegrados e do qual sobrevivem, os Audiência pública geraizeiros chamam a atenção pelo Em vez de assegurar os direitos modo de vida sustentável, por meio das populações locais, a implanta- da economia extrativista, na comu- ção do Parque Nacional das Sem- nhão com a terra, seja nas monta- pre-Vivas acabou por ameaçar sua nhas, nas beiras dos rios e córregos sobrevivência devido às restrições ou nas partes planas. impostas aos habitantes locais. É um povo acolhedor, que expõe As 20 comunidades que habitam a seu afeto em uma sucessão de di- região do Parque das Sempre-Vivas minutivos: “cuido da minha horti- estão proibidas de plantar roças nha”, “saboreio minhas frutinhas”, de subsistência e de colher flores, “bonita é minha vaquinha”, “tenho atividades que garantem a sobrevi- uns gadinhos” e “amo esposa e vência de mais de 500 famílias. Foi o filhinhos”. Mas também são guer- que denunciou, em audiência públi- reiros na luta permanente contra ca realizada em maio deste ano pela a devastação de suas terras, que Comissão de Direitos Humanos da sangram pela ação de mineradoras Assembleia Legislativa de Minas e madeireiras, dos fornos de car- Gerais, a líder comunitária Maria vão que destroem áreas imensas de Fátima Alves, da comunidade do Cerrado, do reflorestamento de Macacos, conforme consta no predador à base de eucaliptos e da portal da instituição (o texto está implantação de um parque ambien- disponível em bit.ly/liderdenuncia). tal cuja forma de administração Segundo ela, os estudos para insti- não os reconhece como guardiões tuição do parque não consideraram da biodiversidade. São projetos as necessidades dos geraizeiros. O que põem em risco a sobrevivência movimento não reivindica a extin- dos geraizeiros, transformando-os ção do parque, mas permissão para Disputa pelo acesso à água em em grupos sociais encurralados que as famílias exerçam suas ativi- regiões que sofrem interferência nas próprias terras, cada vez mais dades econômicas como sempre de mineradoras tem sido um diminutas. fizeram. Por isso o grupo defende dos pontos de conflitos com a população foto: Corpofoto: de Bombeiros de MG/divulgação

32 Senac Ambiental que o parque seja transformado redução da oferta de água, frutos em Reserva de Desenvolvimento nativos, ervas medicinais e madeira. Sustentável, de forma que as co- Hoje, em aliança com sindicatos de munidades da região sejam reco- Valdivino Rodrigues: “Disseram trabalhadores rurais, entidades liga- nhecidas como parte do sistema que íamos ficar milionários, das à Igreja Católica, organizações falavam em desenvolvimento” ambiental a ser preservado. Com o não governamentais e articulações parque classificado como Unidade socioambientais como a Rede Cer- de Conservação, como é hoje, não rado, os geraizeiros reagem à vio- é permitida nenhuma intervenção lência sofrida, denunciam o caráter humana dentro de seus limites. predatório da monocultura de eu- Outra militante do movimento tam- calipto e reivindicam o reconheci- bém presente à reunião, Elisângela mento de seus direitos territoriais Ribeiro de Aquino, do Centro de como população tradicional. Agricultura Alternativa do Norte “Alguns dos traços culturais parti- de Minas Gerais, argumenta que culares dos geraizeiros referem-se as comunidades tradicionais vivem às suas interações com o Cerrado, ali há centenas de anos: “Esses po- um sistema de produção que com- vos protegeram aquela área. Pre- bina agricultura e extrativismo e o cisamos valorizá-los, permitir que manejo de diferentes paisagens: a sobrevivam. É injusto dizer que as chapada, o tabuleiro, a vereda, os pessoas apresentam risco para o brejos. Ao longo de gerações, essas parque, elas são parte desse terri- interações renderam amplo acervo tório”. de conhecimentos e práticas de manejo, o que garantiu a conser- Universidades, vação de porções importantes do parceiras das Cerrado no norte de Minas e no oeste da Bahia – sem falar em To- comunidades cantins e Goiás, onde podemos su- Parceira importante dos geraizei- por que haja também comunidades ros, a comunidade universitária geraizeiras”, diz Mônica, pesquisa- empenha-se na defesa dos povos dora associada da organização não tradicionais. A antropóloga Mônica governamental Casa Verde – Cultura Celeida Rabelo Nogueira, com mes- e Meio Ambiente. trado em Desenvolvimento Susten- tável e doutorado em Antropologia Vínculo afetivo Social pela Universidade de Brasília, A antropóloga observa que, além de explica que as populações tradicio- seus saberes e fazeres, os geraizei- nais mantêm traços culturais parti- ros adquiriram forte vínculo afetivo culares que se estabeleceram histo- com as paisagens. “É o que os im- ricamente, mas também mobilizam, pulsiona a reagir à devastação gera- conscientemente, uma identidade da pelo eucalipto, reafirmando sua social reafirmando esses traços. identidade com o lugar que chamam Ela define como geraizeiros os cam- de Gerais”. Mônica chama a atenção poneses da porção de Cerrado ao para o fato de que a identidade de norte de Minas Gerais, paisagem uma comunidade tradicional é re- que teve grande parte de sua exten- sultado de sua experiência histórica são convertida em maciços de eu- particular e do exercício político de calipto a partir da década de 1970. afirmação de outra ética na relação O plantio empresarial de eucalipto com a natureza. implicou expropriação de terras Em sua tese de doutorado, intitula- e grande impacto ambiental, com da “Gerais a dentro e a fora: iden-

janeiro/dezembro 2015 33 tidade e territorialidade entre gerai- Apontando dados do Instituto Bra- zeiros do norte de Minas Gerais”, sileiro de Mineração (Ibram), segun- Mônica observa que o Cerrado é do os quais a produção mineral do hoje um dos biomas mais ameaça- país teve um crescimento de 550% dos pelas frentes de agronegócios entre 2001 e 2011 – números que, de larga escala em expansão no segundo estima, devem continuar país, com destaque para as mono- crescendo –, Graziano denuncia o culturas de soja, cana-de-açúcar e “adensamento da mineração” nas eucalipto. “Tais frentes promovem primeiras décadas deste século. A mudanças profundas nas paisagens atividade se transformou em um locais que compõem a vasta área dos carros-chefes da economia bra- nuclear do Cerrado, afetando tam- sileira e de diversos países da Amé- bém populações tradicionais”. rica Latina. “No entanto”, acres- centa, “devemos considerar a que Ameaça no Vale do preço essa atividade está sendo desenvolvida. No Brasil, os grandes Rio Pardo empreendimentos minerários apre- Outro grande apoiador da cau- sentam relação proporcionalmente sa dos geraizeiros é o mestre em inversa entre desenvolvimento eco- Desenvolvimento Social Graziano nômico e desenvolvimento social Leal Fonseca, pesquisador da área em perspectivas local e nacional”. Se de mineração e projetos de reflo- o setor tem proporcionado cresci- restamento em áreas tradicionais mento econômico em escala nacio- das Gerais. Em sua dissertação de nal, em nível local esta atividade tem mestrado, intitulada “Mineração do produzido, nas regiões hospedeiras, norte de Minas: Gerais e geraizeiros um legado de pobreza e subdesen- ameaçados em função do Projeto volvimento. Nesse sentido, afirma Vale do Rio Pardo, na microrregião o pesquisador, “a mineração atua de Grão Mogol (MG)”, apresentada como um parasita, que promove o ao Programa de Pós-Graduação em crescimento da economia nacional, Desenvolvimento Social da Univer- causando grandes prejuízos às re- sidade Estadual de Montes Claros, giões hospedeiras, com degradação ele denuncia mais uma ameaça às do ambiente local”. populações geraizeiras da região.

34 Senac Ambiental eucalipto e pinus e “se efetivaram a Encurralados em suas terras – Prejuízos partir de um violento processo de cada vez menores –, os geraizeiros Entre esses prejuízos ele destaca expropriação do território de cente- lutam pela sobrevivência ao a supressão de rios e nascentes, a nas de comunidades tradicionais da lado de trabalhadores rurais e destruição da vegetação, a poluição região, desarticulando suas formas articulações socioambientais sonora, do ar e da água, a elevação de organização social e de apropria- do custo de vida, a especulação ção da natureza”. imobiliária, a dependência da eco- Graziano observa que o aparato nomia local em torno da atividade estatal-empresarial apresenta a mineral, o crescimento populacio- atividade mineradora como o novo nal desordenado e o agravamento projeto de redenção do norte do dos problemas sociais. Estado. No entanto, afirma, a ex- Para Graziano, o discurso desenvol- periência de diversos empreendi- vimentista tem sido utilizado pelo mentos de mineração em curso no aparato estatal-empresarial como Brasil tem mostrado outra realida- argumento para a implantação de de. Cita como exemplo o Projeto empreendimentos capitalistas que Vale do Rio Pardo, o qual, embora pouco têm contribuído para a me- ainda em fase de licença prévia, já lhoria do Índice de Desenvolvimento se apresenta como potencial pre- Humano da região: “São atividades dador. O estudo realizado por ele desmanteladoras e desestruturantes nas comunidades de São Francisco das formas tradicionais de organi- e Lamarão, que se encontram na zação social, afetando um imenso área pretendida para instalação do contingente de comunidades tradi- complexo minerário, conclui que a cionais vazanteiras, veredeiras, ca- mineração deverá desestruturar o tingueiras e geraizeiras”, denuncia. universo geraizeiro em toda a região do Vale das Cancelas. O pesquisador condena, entre ou- tros, os projetos de reflorestamento Graziano alerta ainda que a minera- conduzidos nos anos de 1970 e 1980 ção a céu aberto em áreas povoa- a partir de iniciativas da Superin- das “demanda a supressão da flora tendência de Desenvolvimento do e das camadas superficiais do solo, Nordeste (Sudene) que substituíram com destruição de cursos d’água, a vegetação nativa do Cerrado por alteração dos níveis e da qualidade

janeiro/dezembro 2015 35 36 Senac Ambiental da água, além da poluição do ar geraizeira do Vale das Cancelas é e da poluição sonora – processos o alto grau de inter-relacionamento que tornam inóspitas as áreas vizi- entre elas, expresso nas relações nhas à mina”. É a mesma conclusão de parentesco, casamento, vizi- do Relatório de Impacto Ambiental nhança e trocas”. do empreendimento: Graziano alerta: se os responsáveis “Em um empreendimento minerário de pelo projeto e os agentes do Es- grande porte, como é o caso do proje- tado não reconhecerem os povos to Vale do Rio Pardo, é esperado que a da área como tradicionais (dota- maioria dos impactos ambientais identi- dos de direitos pela Constituição ficados sejam classificados como ‘negati- e por instrumentos legais que lhes vos’ [sic] em relação ao seu efeito. Isso garantem a preservação de sua foi observado para os impactos levanta- identidade, seus modos de ser, fa- dos nos meios físico e biótico, em todas zer e viver) e levarem adiante esse as etapas do empreendimento. Chama- empreendimento, vão colocar um -se atenção também para a existência de ponto final na trajetória histórica e impactos ‘muito significativos’ que irão sociocultural do grupo. ocorrer mesmo com a adoção de medidas Para o antropólogo, a ruptura com- mitigadoras e programas, tanto na fase pleta e definitiva com o território de implantação como na fase de operação vai significar o etnocídio dos gerai- (...) com alteração da paisagem, retirada zeiros de Lamarão e São Francisco. de vegetação, supressão de cursos d’água, Ele acredita que esse processo vai nascentes e ambientes ecologicamente criar um vazio cultural e paisagísti- importantes” (Rima, p. 15 e p. 16). co na região do Vale das Cancelas que impactará outras comunida- Apropriação material des, uma vez que as duas integram e simbólica um sistema sociocultural mais am- plo e complexo, distinguido pela O território geraizeiro, conforme identidade territorial geraizeira. o antropólogo, é “um espaço de apropriação material e simbólica, Como exemplo, cita as comunida- elemento central de identidade des de Morro Grande e Diaman- dessa coletividade, espaço estru- tina, vinculadas às primeiras por turado e estruturante do modo de relações de parentesco e vizinhan- vida desse grupo étnico”. Por isso, ça, bem como por ecossistemas esse modo de vida particular é interligados, o que pode provocar sensível às alterações de seu espa- migração para os centros urbanos. ço e território. “Aqueles que permanecerem na re- gião, como no distrito de Vale das Há também a perda das referên- Cancelas, por exemplo – muitas cias simbólicas. Para famílias das vezes na expectativa de preservar duas comunidades que se encon- o que lhes resta do seu círculo de tram na área do complexo minerá- relações sociais –, ainda assim te- rio, o empreendimento significará rão perdido suas referências paisa- o desmantelamento do seu siste- gísticas e seus meios tradicionais ma de organização social, cultural de reprodução. No futuro”, imagi- e material. na, “poderão sofrer com a poluição O pesquisador prevê que os da- sonora, do ar e com a falta de água, nos socioambientais do projeto além do alto custo de vida, tendo afetarão toda a região: “uma das ainda de conviver com altos índi- características das diversas comu- ces de violência e déficits na edu- nidades que formam a sociedade cação e na saúde”.

janeiro/dezembro 2015 37 O desastre em Mariana

Quando esta reportagem foi feita, ainda não havia ocorrido o desastre de Mariana, que concretizou, como um pesadelo de dor, as preocupações de todos aqui ouvidos. No dia 5 de novembro, a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, se rompeu, despejando 50 toneladas de resíduos no povoado de Bento Rodrigues. Controlada pela Vale, a maior mineradora do Brasil, e pela anglo-australiana BHP (a maior do mundo), a lama do rejeito da produção de minério de ferro da Samarco percorreu 850 quilômetros ao longo do Rio Doce até chegar ao mar, no estado do Espírito Santo. O rastro da lama deixou 16 mortos, três desaparecidos, mais de 600 desabrigados e 500 mil sem água potável, além de uma devastação ambiental sem precedentes. Pesquisadores e biólogos afirmam que a onda de lama, que tem densidade e forma uma liga quando em contato com água, pavimentou o caminho por onde passou – o leito do curso d’água e as margens, chegando a uma faixa de 50 a 100 metros para além da borda do Rio Doce. As comunidades que estavam no caminho perderam suas propriedades e seus meios de vida. O Governo Federal e os estados de Minas Gerais e do Espírito Santo anunciaram a intenção de processar Samarco, Vale e BHP para que arquem com 20 bilhões de reais para as despesas de recuperação dos danos e revitalização das áreas atingidas pela tragédia. Mesmo com doações de todo o país, algumas cidades, como Governador Valadares, conseguiram, por meio de decisão judicial, que a Samarco fornecesse à população 550 mil litros de água potável por dia. Muitos já começam a captar a água do Rio do Doce e tratá-la, no entanto os danos e as possibilidades de recu- peração ainda não foram efetivamente calculados. Mesmo assim, a Comissão Especial do Desenvolvimento Na- cional aprovou, no dia 25 de novembro, o Projeto de Lei 654/2015, que acelera a liberação de licenças ambientais para grandes empreendimentos de infraestrutura. Na prática, projetos considerados estratégicos pelo governo passarão por licenciamento ambiental especial, mais rápido, sem a obrigatoriedade de audiências públicas e pro- cessos de consulta. Assim, uma licença ambiental única seria expedida no prazo de até oito meses para projetos de extração de minério, estradas, ferrovias, aeroportos, hidrelétricas, portos e linhas de comunicação. A catástrofe chamou atenção para as demais barragens mantidas por mineradoras, muitas delas em situação preocupante. Conforme dados de 2014 consolidados pelo Departamento Nacional de Produção Mineral do Ministério de Minas e Energia – e divulgados pelo projeto jornalístico Aos Fatos (www.medium.com/aos-fatos) –, 29 barragens de rejeitos de mineração do país estão em situação ainda mais precária que a de Fundão. E 18 delas têm potencial para provocar dano semelhante ou de proporções ainda maiores.

38 Senac Ambiental Tensões e conflitos pela água A disputa pelo acesso à água nas regiões que sofrem interferência de grandes empreendimentos ligados às mineradoras tem sido um dos pontos de conflitos e tensões no Vale do Alto Rio Pardo e nas en- costas da Serra Geral. Nessa região, a instalação de mine- roduto e a localização da barragem de rejeitos da mineração de ouro em afluentes do Rio Gorutuba têm trazido prejuízos às comunidades locais, como denuncia o pesquisa- dor Rômulo Soares Barbosa, dou- tor em Ciências Sociais pela Uni- versidade Federal Rural do Rio de Janeiro, professor da Universidade Estadual de Montes Claros e autor do artigo “Mineração no norte de Plantio de eucalipto no Minas Gerais: tensões e conflitos tendência de Desenvolvimento do norte de Minas tem grande pelo acesso e uso da água”. Nordeste (Sudene), iniciou-se um impacto ambiental Com uma área de mais de 120 mil processo de modernização por quilômetros quadrados, a região meio de linhas de financiamento corresponde a 20,7% do território como o Fundo de Investimento no de Minas Gerais, habitada por uma Nordeste e o Fundo de Investimen- diversidade de populações tradi- tos Setoriais. Nesse processo, ele cionais. A partir de 2008, com a destaca cinco pilares: agricultura/ descoberta de enormes jazidas de fruticultura irrigada, monocultura ferro na região e a exploração de de eucalipto, pecuária extensiva, ouro em Riacho dos Machados, a monocultura de algodão e incenti- mesorregião norte de Minas Ge- vos à industrialização de algumas rais, inserida no Semiárido, passou cidades. a ser reconhecida como nova fron- Contudo, o pesquisador denuncia: teira mineral do estado. Em pro- “Se, por um lado, isso provocou a cesso de licenciamento ambiental, modernização de processos pro- esses empreendimentos têm sido dutivos, por outro implicou o em- alvo de contestação por organiza- pobrecimento dos agricultores, a ções da sociedade civil. degradação dos recursos naturais e a manutenção da concentração Modernização e fundiária, além da criação de bol- sões de pobreza”. Assim são gera- empobrecimento dos fenômenos como as “viúvas da Rômulo lembra que, a partir de seca”, as “comunidades fantasmas” 1965, quando a região foi inserida e os “escravos do carvão”, devi- na área de atuação da Superin- do, sobretudo, ao deslocamento

janeiro/dezembro 2015 39 sazonal de agricultores familiares No Projeto Vale do Rio Pardo, além para trabalharem nas lavouras de da brasileira Vale e da canadense café e cana-de-açúcar no sul de Carpathian Gold Inc., estão insta- Minas e no interior de São Paulo. ladas na região a Sul Americana de Ele também aponta a utilização Metais (Grupo Votorantim), cujo in- da mão de obra familiar regional vestidor principal é o grupo chinês em condições sub-humanas pelas Honbridge Holdings, e a Mineração reflorestadoras nos seus fornos de Minas Bahia (Miba), que tem no produção de carvão. Grupo do Cazaquistão Eurasian Na- tural Resources Corporation (ENRC) “A tensão social e os conflitos de- seu principal parceiro. correntes se fundamentam, princi- palmente, nos riscos relativos ao Somam-se a isso os riscos à conta- acesso à água disponível nos cur- minação de lençóis freáticos e cursos sos d’água da região, à devastação d’água, como o Rio Gorutuba, e a de mananciais, à contaminação de Barragem do Bico da Pedra, em razão águas represadas para consumo da atividade minerária, bem como a humano e animal e para as lavou- intenção declarada no projeto da Sul ras irrigadas”, explica Barbosa. Americana de Metais de construir um Há ainda o clima da região, inse- mineroduto conectando a planta de rida no semiárido, caracterizado Grão Mogol ao porto de Ilhéus, na por precipitações anuais concen- Bahia, o que representaria uma de- tradas no verão, variando entre manda adicional de água para com- 700 mm e 1.200 mm, e isso refor- por o transporte do minério no duto. ça a preocupação com o abaste- Dessa forma, diz o professor, a água cimento humano e agropecuário, do semiárido, bem precioso para o especialmente em anos de baixa desenvolvimento da agricultura, precipitação, como nos dois últi- da pecuária e para a qualidade de mos. Nesse sentido, trava-se na vida das pessoas, transforma-se em região uma movimentação social força motriz para a exportação de contrária à exploração de minério riqueza mineral. de ferro e de ouro. Área de mineração da empresa Carpathian Gold no município de Ouro Fino

40 Senac Ambiental Geraizeiros e suas histórias

Adair Pereira de Almeida tem 40 medicinais. Nas roças, destaca-se a anos, nasceu no Vale das Cancelas, produção de vários tipos de feijão, distrito de Grão Mogol, norte de Mi- como o andu, o catador, a fava, o nas. Nenzão, como é chamado pe- feijão-de-corda e o feijão-de-ar- los amigos, está muito preocupado ranca, além de milho, mandioca, com a situação local e alerta que 80 amendoim, batata-doce e gergelim. municípios já vivem um processo de No quintal, frutas como jabuticaba, desertificação provocado pela ação manga, banana, goiaba, coco ma- das mineradoras. caúba, carambola, laranja, abacate e melancia. É muito rica também a O líder comunitário diz, assim como variedade de frutas nativas, como os antropólogos, que o geraizeiro se pequi, mangaba, fruta-de-leite, define pelo seu modo de vida e so- cagaita, grão-de-galo, coquinho- brevivência, que se caracteriza pela -babão, coquinho-catolé, babão- produção de suas roças. Suas casas -nanico, gabiroba, caju-caseiro e são construídas nas baixadas, nos caju-do-mato. tabuleiros, no início do morro e pró- ximo aos rios. O Vale das Cancelas é Da mesma forma, é grande a varie- banhado pelo Rio Lamarão e pelos dade de madeiras, como a canela, a córregos das Cancelas, dos Vales, taboca (um tipo fino de bambu), o da Batalha e da Jiboia. A produção tinguá, o jatobá, a macaúba, o rufão de frutos e plantas é consorciada, (que produz óleo), a pinha-de-rapo- de forma que um protege o outro sa, a pinha-seca, a panã ou arati- no sistema agroecológico. cum e ainda o imbu, originário da Caatinga. “E olha que não falamos “As frutas nativas ficam nas cha- nem um quarto das frutas e árvores padas, o gadinho vive solto e mis- daqui”, diz, orgulhoso, lembrando turado, em cima dos morros; nas que o povo da região também gosta chapadas, os bichinhos de toda a de criar galinhas, perus e porcos. comunidade pastam livres. O boi serve de alimento e produz ester- co que serve de adubo”, explica Contaminação Nenzão, acrescentando que em um Amigo de Nenzão, Hailton Moraes único hectare de terra o geraizeiro Silva, um geraizeiro de 64 anos, tam- produz 500 qualidades de plantas bém morador no distrito de Vale das

janeiro/dezembro 2015 41 Cancelas, conta que contraiu câncer avanço é esse, que não nos dão um por causa da água contaminada hospital, não consertam estradas? com produtos químicos e agora Prometeram que o nosso vale ia está se submetendo a sessões de avançar porque tinha 250 milhões quimioterapia. Ele diz que, depois de toneladas de minério, e que a que as empresas de eucalipto co- melhor maneira de transportar era meçaram “a usar veneno”, já foram criando o mineroduto”. registrados mais de cem casos de A construção, de 500 quilômetros, moradores das Gerais com câncer vai cortar 22 municípios mineiros e no norte de Minas. baianos para transportar minério de Apaixonado pelo lugar onde vive, ferro até o porto de Ilhéus, na Bah- faz questão de aumentar a lista ia. Valdivino diz que a comunidade de árvores e plantas citadas por é contra o empreendimento: “Nossa Nenzão, lembrando que a região terra é linda, trabalhamos muito e produz também uma grande quan- produzimos um pouco de tudo, mas tidade de plantas medicinais, como vivemos encurralados pelo eucalip- o chapéu-de-couro, que tem efeito to que toma os morros”, denuncia laxativo; o barbatimão, cicatrizante; João Ferreira Nunes, 75 anos, natu- e a quebra-pedra, diurético natural ral de Santa Rita, perto de Córrego que tem a propriedade de comba- dos Vales. ter cálculos renais. Menciona ainda “A sujeira e o veneno vão para os a barba-de-boi, boa para a coluna, rios e matam os animais. Até as e a cabeça de frade, usada contra a pessoas ficam doentes, não sei bronquite. como o povo vive com tanta perse- Outro geraizeiro, Valdivino Rodri- guição. Primeiro, a pressão das car- gues Gonçalves, de 51 anos, sen- voarias e das plantações de eucalip- te saudade do tempo de criança, to, que ainda continua. Agora, essa quando “nem sabia o que era bi- mineração. Os estragos das águas cicleta e só via carro vez ou ou- são um absurdo. Se não tivermos tra, na estrada de terra”. Na épo- uma reação forte, vamos ver tudo ca, conta, havia muita fartura de virar deserto”, adverte. peixe: “Tinha traíra, bagre, caru, Luzimar Pereira dos Santos, 54 piaba, lambari, bagrinho-agulho, anos, afirma que a comunidade se peixe-cachorro e timburé. Hoje só sente traída, pois o progresso que tem piaba. Nós vivíamos nas mar- as empresas apregoavam não acon- gens do córrego Cancela e tínha- teceu. Ao contrário, aumentaram os mos muita fartura, porco gordo no prejuízos, como a poluição do meio chiqueiro, vaca criada no capim- ambiente e o excesso de barulho, -meloso. Estamos perdendo tudo, devido ao aumento de caminhões uma tristeza”. circulando na estrada de terra. Em Fontes consultadas: Segundo ele, as madeireiras chega- dezembro de 2013, em razão de Mineração no Norte de Minas Gerais: ten- ram em 1974, desmatando e derru- uma forte chuva, a represa inundou sões e conflitos pelo acesso e uso da água bando casas. “Muito gado morreu e vazou água poluída, rachando a – artigo de Rômulo Souza Barbosa. com os venenos que eram colo- manta de proteção. Mineração no norte de Minas: Gerais e ge- cados nas terras derrubadas para raizeiros ameaçados em função do Projeto A matança de animais por envene- plantar eucalipto”. Vale do Rio Pardo, na Microrregião de Gão namento é outro problema. Entre Mogol – tese de pós-graduação de Graziano Valdivino lembra que as empresas os mortos, cita veados, tatus, gam- Fonseca. de mineração chegaram em 2006. bás, raposas, cachorros e cavalos. Gerais a dentro e a fora: identidade e terri- torialidade entre geraizeiros do norte de Mi- “Disseram que a gente ia ficar milio- “Bicho que beber água dessa barra- nas Gerais – tese de doutorado de Mônica nário, falavam em desenvolvimento, gem morre, porque eles usam mer- Celeida Rabelo Nogueira. e nós só prestando atenção. Que cúrio e cianeto”.

42 Senac Ambiental Ibram nega denúncias Indagados a respeito das denúncias Indagado sobre como o Ibram vê formuladas pelas comunidades e a relação entre o desenvolvimento pelos pesquisadores, apenas dois econômico e o desenvolvimento representantes das empresas aqui social nas comunidades das cidades citadas deram retorno. Em men- que são hospedeiras de projetos de sagem sucinta, Ricardo Meireles, mineração, Mancin respondeu que da FSB Comunicações, porta-voz “o desenvolvimento de uma nação da Assessoria de Comunicação do e o bem-estar de sua população Grupo Votorantim Industrial, suge- não existem sem o uso intensivo, riu que a reportagem entrasse em porém racional, dos bens minerais”, contato com a empresa chinesa ponderando que “qualquer um que Honbridge Holdings Limited, que, olhar à sua volta dificilmente conse- segundo ele, teria adquirido, no pri- guirá identificar objetos do dia a dia meiro trimestre de 2013, o controle que não contenham minérios em do projeto Vale do Rio Pardo. Foi sua produção ou composição”. encaminhado e-mail para a Hon- Contrariamente ao que denun- bridge Holdings Limited, mas não ciam moradores e pesquisadores recebemos resposta até o fecha- universitários, afirmou que “outro mento desta edição. aspecto a observar é que, mesmo Rinaldo Mancin, representante do em pontos distantes dos grandes Instituto Brasileiro de Mineração centros urbanos ou em áreas onde (Ibram), foi o único que respondeu se concentram bolsões de pobreza, cada pergunta. Ele admitiu que as a presença de um empreendimento estatísticas do Ibram mostram uma mineral é fator concreto de estímu- evolução de cerca de 550% na ex- lo ao desenvolvimento sustentável ploração mineral no Brasil no pe- dessas localidades”. ríodo de 2001 a 2012, saindo de um Ele aponta ainda a geração de em- patamar de US$ 5 milhões para US$ pregos como um dos fatores positi- 55 milhões/ano, evolução que se vos, afirmando que, para cada em- explicaria por “vários fatores”, mas prego direto na mineração, outros cuja “variável mais importante tem 13 indiretos são gerados na cadeia sido o crescimento vertiginoso da produtiva do setor, que emprega China, mercado que passou a de- hoje no Brasil cerca de 2,2 milhões mandar um volume expressivo de de trabalhadores. bens minerais”.

janeirojaneiro/dezembrodezembro 2015 43 de 80%. “Além disso”, prossegue, “é cada vez mais comum em nos- so setor a instalação de circuitos fechados de operação, nos quais a água é reusada integralmente, com perdas mínimas”. Mancin diz ainda que novos pro- jetos em implantação na Amazô- nia estão adotando tecnologias a seco, que se baseiam apenas na umidade natural dos minérios. Acrescenta ainda um ponto que considera muito importante, rela- cionado às emissões de gases de efeito estufa (GEE): é outra frente em que, segundo ele, a mineração se destaca, pois suas emissões “representam apenas 0,5% do total das emissões nacionais”. Ele assegura que diversas empre- sas de mineração têm adotado estratégias direcionadas à gestão da biodiversidade como parte de seus compromissos para estabe- lecimento e manutenção de sua Sobre o impacto da mineração nos licença operacional, até porque é o rios e nascentes, com a consequen- que fala a Constituição Federal, em te destruição de vegetação nas re- seu artigo 225, parágrafo 2º: “aque- giões de populações geraizeiras, o le que explorar recursos minerais porta-voz do instituto diz que “fica- fica obrigado a recuperar o meio ria mais confortável para responder ambiente degradado, de acordo se a tal denúncia apresentasse da- com a solução técnica exigida pelo dos e números concretos para se órgão público competente, na for- apoiar” , mas argumenta: “A mine- ma da lei”. ração ocupa menos de 1% do ter- ritório brasileiro, produzindo cerca de 4% do PIB nacional”. Segundo Legado de pobreza e afirma, o setor, “ao longo de muitos subdesenvolvimento anos, vem sustentando o saldo po- sitivo da balança de pagamentos Quanto às acusações de que as nacionais, algo que é estratégico mineradoras que atuam nessas re- para a economia”. Para tanto, com- giões têm deixado um legado de para o rendimento físico-econô- pobreza e subdesenvolvimento, ele mico por hectare “entre qualquer mais uma vez afirma que gostaria tipo de minério e um bem agrícola de ver a denúncia “expressa em nú- como a soja ou mesmo gado”. meros e fatos”. Observa que “o de- senvolvimento não é missão de um Para ele, um dos grandes orgulhos único ator, mas de toda a socieda- do setor mineral brasileiro é seu de”, e que “somente a articulação desempenho em gestão de recur- de estratégias e políticas públicas sos hídricos. Diz que o setor é cam- e empresariais é que vai gerar um peão em reuso de água em suas ambiente favorável ao desenvolvi- operações, nas quais recicla cerca mento efetivo”.

44 Senac Ambiental Esses temas, segundo ele, são ge- Mineroduto ralmente analisados por ocasião Sobre o que poderão representar dos Estudos de Impacto Ambiental para as comunidades locais a insta- e Relatórios de Impacto Ambiental lação de mineroduto conectando a (EIA/Rima), realizados pelos em- planta minerária de Grão Mogol ao preendedores quando da decisão porto de Ilhéus, na Bahia, e a loca- de implantação de um projeto, por lização da barragem de rejeitos da solicitação dos órgãos de meio am- mineração de ouro em afluentes do biente nos processos de licencia- rio Gurutuba, o porta-voz do Ibram mento. argumentou que não conhece o projeto em detalhes, portanto, não Questionado sobre quais seriam poderia se manifestar. as empresas envolvidas no Projeto Vale do Rio Pardo e quais as respon- Mais uma vez contrariando as de- sáveis pela instalação do minerodu- núncias de moradores e pesquisa- to que ligará Grão Mogol e Ilhéus, dores universitários, garantiu que o porta-voz do Ibram afirmou que “nenhum projeto de mineração tem a instituição detém apenas a repre- chance de ser implantando sem a sentação política do setor mineral, aprovação da comunidade onde vai defendendo os interesses do setor ser instalado”, o que chama de “li- no plano de formulação de políti- cença social para operar”. cas públicas em Brasília, não res- Ele exaltou a alternativa do mine- pondendo pelos temas de natureza roduto para transporte de minério, comercial ou de competição entre a qual considera superior ao trans- seus associados. porte ferroviário ou rodoviário, que Concluindo, afirmou que a mine- queima combustível fóssil e emite ração é uma atividade 100% regu- CO2, impactando as estradas e am- lamentada pelo Estado brasileiro, pliando os riscos ambientais. Mas concedida ao particular para explo- reconheceu que somente é possí- ração, nos termos da Constituição vel implantar um mineroduto onde Federal, tendo o Departamento Na- houver disponibilidade hídrica sufi- cional da Produção Mineral como ciente. Frisou ainda que a água uti- regulador. Concluiu afirmando que lizada no transporte via mineroduto todas as informações são públicas é devolvida ao meio ambiente em e todos os dados sobre os títulos condições de uso melhores do que minerários podem ser obtidos pela no momento da captação, mas não internet por qualquer cidadão. disse como e por qual processo. Por fim, admitiu que, “infelizmente”, não existe por parte do Ibram um estudo sobre possíveis danos às populações geraizeiras, vazanteiras, ribeirinhas, indígenas e espalhadas pelas regiões atingidas por projetos de mineração.

janeirojaneiro/dezembrodezembro 2015 45 Eliad: flores e poesia De jeito meigo, olhar doce, corpo Sou filha desse Brasil magro, uma enorme paixão pela Sou da serra das Gerais terra em que vive e por seu povo, e trago uma grande história Eliad Gisele Alves é uma geraizeira uma luta pela paz, especial. Vive principalmente da de nós, os geraizeiros, colheita de sempre-vivas, flores se- enfrentando os grileiros, cas que brotam no Cerrado. Com pra defender nosso lugar elas produz artesanato de capim dourado, um tipo especial de sem- Pra quem não conhece a história pre-viva que floresce apenas uma agora eu quero contar: vez por ano. Dessa ocupação a jo- os geraizeiros lutam vem tira seu sustento para prosse- por um lugar pra morar guir nos estudos. e pra manter a tradição que os outros querem tirar Moradora do Comu- nidade de Raiz, no município de Meu pai apanhava flor Presidente Kubitschek, em Dia- pra eu poder estudar mantina, no Vale do Jequitinho- hoje veio o agronegócio nha, Eliad participa das reuniões entrou para atrapalhar e assembleias geraizeiras e define onde era fonte sustentável o seu povo como “o guardião do nem uma flor se vê mais Cerrado”, em constante luta para Pois aqui é o caboclo defender a tradição e o seu espaço que preserva a natureza no campo. Sonha em ser jornalista tirando dela o sustento para escrever sobre as belezas das pra levar o pão à mesa populações tradicionais. E produz trazendo a sã consciência livros de poesia de forma artesa- de como é rara essa riqueza nal, costurando e trabalhando com Pois é isso, meu Brasil, carinho cada capa. Vários dos poe- que eu quero esclarecer mas que escreve falam de sua rea- os geraizeiros são lidade e sua vida. Como este, em os povos de tradição que diz, em estilo muito próximo que de coração e alma da literatura de cordel: preservam esse sertão

46 Senac Ambiental Eliseu: eucaliptos e devastação Geraizeiro de Riacho dos Machados, no norte de Minas, e atual- mente diretor do Centro de Agricultura Alternativa (CAA), Eliseu José de Oliveira sempre lutou pelos direitos das populações tradi- cionais. Ele condena as plantações de eucalipto, que destroem o bioma natural da região. Usado pelas madeireiras para reflorestar os locais cuja vegetação elas próprias derrubam, o eucalipto che- gou à região há mais de 30 anos. “As comunidades já tinham um meio de vida e sobrevivência na agricultura, no gado, que é uma poupança para o povo”. Não o gado de forma extensiva, explica, mas o que era criado “na solta”. O líder comunitário recorda que, durante a ditadura militar, as populações foram retiradas das terras por órgãos governamen- tais que procuravam favorecer os empreendimentos ligados às madeireiras e à monocultura do eucalipto. Desde então, afirma, o gado começou a morrer e os frutos também: “O povo sofre com isso. Hoje, já existe uma geração do eucalipto – uns trabalham nas empresas, e as comunidades pegam a sobra, fazem carvão e vendem”. Segundo ele, a quantidade de eucalipto plantado na região já atinge um milhão de hectares. Eliseu ressalta que as comunidades atingidas não podem parar. Têm de se informar e se atualizar para buscar uma postura de consenso em defesa de seus direitos, consultando tratados da Organização Internacional do Trabalho e lutando pela manuten- ção da articulação de apoiadores. Além do CAA, essa rede inclui outras entidades, como o Movimento dos Atingidos por Barra- gens, as universidades, a Pastoral da Terra e o Movimento dos Sem-Terra. “Diálogo só é possível quando o povo tem conhecimento de to- dos os seus direitos”, diz ele, acrescentando que as comunidades que estão na área de interesse das mineradoras não estão tran- quilas. “Qual o interesse da empresa? O que é essa mineração?”, indaga, denunciando que a mecanização nas terras do cerrado mudou o curso das águas e devastou as lavras.

janeirojaneiro/dezembrodezembro 2015 47 Notas foto: Robertofoto: Stuckert Filho/Divulgação Carta de Paris: o acordo da COP-21 Os 195 países participantes da 21ª superior, conforme os cientistas do parte do estrago desse cenário Conferência do Clima da Organi- Painel Intergovernamental sobre Mu- de fim de século já está feita. Se zação das Nações Unidas (COP- danças Climáticas da ONU – hoje a não houver uma mudança ime- 21), realizada em Paris, em dezem- quantidade de dióxido de carbono diata, o futuro estará seriamente bro, chegaram a um acordo para na atmosfera ultrapassa o índice de comprometido. Embora aponte conter o aquecimento global. Mas 400 partes por milhão. A redução caminhos e expresse boas inten- será suficiente? das emissões exige o abandono da ções, a Carta de Paris não ga- matriz energética baseada em com- rante que as ações necessárias A chamada Carta de Paris lista uma bustíveis fósseis (gás, petróleo e serão realizadas. É preciso que a série de condições para que a tempe- carvão), que representa três quartos própria sociedade tome para si, ratura do planeta não aumente mais da produção mundial. E esse é um no dia a dia, atitudes que de fato do que 2ºC até o fim deste século – problema que o acordo de Paris não influenciem os rumos do planeta. permanecendo, preferencialmente, enfrenta com a urgência necessária. no patamar de 1,5ºC de elevação, O documento está disponível se tanto. O problema é que o cená- As emissões de carbono perdu- (em inglês) em www.bit.ly/carta- rio atual já projeta um aquecimento ram por décadas, ou seja, boa deparis.

Desigualdade extrema e a emissão de poluentes Metade das emissões mundiais de dióxido de carbono na atmosfera é gerada pelos 10% mais ricos da população, ao passo que metade dos mais pobres produz so- mente 10% do total de emissões poluentes. A afirmação está no relatório “Desigual- dades extremas e emissões de CO2”, da tradicional organização não governamental britânica Oxfam, divulgado durante a 21ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-21), em Paris, na França. Em média, segundo a Oxfam, uma pessoa do grupo mais rico gera 175 vezes mais dióxido de carbono do que outra que esteja entre os mais desfavorecidos, ratifican- do o elo entre a desigualdade econômica e as mudanças climáticas. O relatório está disponível – em inglês, francês e espanhol – na página https://www. oxfam.org/en/research/extreme-carbon-inequality.

48 Senac Ambiental Notas

Nova matriz energética: horizonte é 2030 Zerar o desmatamento ilegal, restau- rar 12 milhões de hectares de florestas Corais mais resistentes e renovar a matriz energética brasileira até 2030: foi o compromisso assumido Cientistas da Universidade do Texas em Austin, da Universidade Estadual pelo governo brasileiro em acordo bila- do Oregon (ambas norte-americanas) e do Instituto Australiano de Ciên- teral firmado com os Estados Unidos e cias Marinhas conseguiram demonstrar que algumas espécies de corais anunciado em Washington, no dia 30 de podem desenvolver resistência a águas mais quentes. A revelação é im- junho, pelos presidentes Dilma Rousseff portante para as pesquisas sobre os impactos provocados pelas mudan- e Barack Obama. ças climáticas. A pesquisa foi divulgada pela revista Science, publicada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência. A meta é que, nesse horizonte de 15 anos, o Brasil tenha 28% a 33% de sua matriz Os pesquisadores combinaram geneticamente corais de regiões mais energética composta por fontes limpas e quentes com outros de regiões frias e obtiveram larvas de corais que renováveis (principalmente eólica e bio- demonstraram capacidade dez vezes maior de sobreviver a temperaturas massa) – sem contar a geração hidráulica, mais altas do que as larvas das espécies provenientes de águas mais frias. que já é a base da energia que produzi- A interferência humana, portanto, poderia garantir a preservação dessas mos. No ano passado, essas fontes tive- formações em contraposição aos efeitos do aquecimento global. ram participação de 9% na produção to- tal. Além disso, o país promete incentivar novas tecnologias industriais, expandir o uso de combustíveis não fósseis e fomen- Que não se perca o chão tar práticas sustentáveis na agricultura. A degradação do solo atinge níveis cada vez mais preocupantes. De Quanto à restauração das florestas, o acordo com o organismo das Nações Unidas voltado para Alimen- Governo Federal se propõe a intensificar tação e Agricultura (FAO), perdem-se a cada ano 50 mil quilômetros o combate ao desmatamento ilegal e ado- quadrados de solo fértil – o equivalente ao tamanho de um pequeno tar práticas de manejo sustentável. país como a Costa Rica. A expansão urbana é um dos principais fa- Os dois chefes de Estado lançaram tam- tores de degradação, pois é responsável pela impermeabilização do bém uma Iniciativa Conjunta sobre Mu- solo. Para que se tenha ideia da dimensão do problema, a recupera- dança Climática, que prevê a criação de ção de um centímetro de terreno fértil pode levar mil anos. um grupo de trabalho para ampliar a coo- Atenta à relevância do tema, a ONU vem se esforçando para promo- peração sobre o tema, de modo a mitigar ver maior conscientização sobre essa ameaça à vida e decretou que o aquecimento global e promover o de- 2015 seria o Ano Internacional dos Solos – eles abrigam um quarto da senvolvimento sustentável, além de for- biodiversidade do planeta e concentram a maior parte dos alimentos talecer pesquisas sobre energias limpas. que consumimos.

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Populações Tradicionais Sob as ordens da natureza

Kalungas cultivam roças sem veneno, obedecem às fases lunares e se mantiveram isolados até poucos anos atrás, temendo a escravidão Textos e fotos: Cristina Ávila

“(...) o cerradeiro ou cerratense é por excelência um homem barroco. Criado nos ocos sertanejos, acredita na liberdade, sua natural condição (...)” Paulo Bertran Poeta e historiador goiano, conhecedor da alma do Cerrado

A lua vai crescendo, inchando até o ápice de sua redondeza luzente, leitosa, a amainar a escuridão das noites cerratenses. Repousa solene no céu, apagando estrelas, reinando imperiosa. Segue-se, então, o ciclo, e ela vai se recolhendo, minguando até virar sobejo fio de luz, e mergu- lhar na noite sem deixar vestígio. O astro e as vontades da terra coman- dam a vida dos kalungas nas vasti- dões remotas de Goiás. Os ancestrais deles chegaram ao município onde hoje é Cavalcante há cerca de 250 anos – quando o Bra- sil ainda era colônia de Portugal – e Zé Preto, 58 anos: montaram um quilombo. Eram es- “Esperando o futuro” cravos; romperam com a servidão e

janeiro/dezembro 2015 51 ataram laços com a natureza para sobreviverem, em contato apenas Até onça obedece com escassos índios e tropeiros “Três dias depois de cheia, a lua que percorriam rotas no Planalto parte pra minguante; em nove dias, Central. As famílias negras traziam vai ser nova. Três dias antes e três conhecimentos imemoráveis e se- dias depois, se plantar, dá muita mentes – de milho, arroz, feijão –, broca. Se colher, dá borboleta. A as mesmas centenárias que os des- lua manda tudo. A onça tá comendo cendentes continuam a usar para gado; de tardinha tá no perigo. Na cultivar as roças. nova e na cheia também. Três dias da cheia é difícil a onça pegar”. A terra dos antepassados é hoje o Sítio Histórico e Patrimônio Cultu- Zé Preto tem 58 anos e faz tudo de ral Kalunga, território com aproxi- olho no céu. “Não se vê nada no cio madamente 230 mil hectares de se a lua estiver na minguante. Cons- um Cerrado praticamente intoca- truir casa é na crescente. Até ferrar do, de belíssimas paisagens, com gado. Porque a gente tá esperando vales, rios, córregos de águas cris- o futuro. Se compro uma vaca, é na talinas, verdes e azuis, cachoeiras, crescente, porque tô esperando pra serras e montanhas. Um paraíso vender ou pra criar”, diz ele. habitado por cerca de 3 mil a 4 mil quilombolas, em quase uma cen- Conservar tradições tena de povoados – alguns aonde, O isolamento centenário dos kalun- em tempo de chuvas, só se chega a gas favoreceu a manutenção da cavalo ou montando burro. Veícu- cultura. Eles viveram muito tempo Preparo da los, nem os tracionados. mandioca praticamente sem contato, apesar Os sistemas agrícolas são heredi- da proximidade com núcleos urba- tários, manejados com técnicas nos como o aldeamento Engenho antigas. Os cultivos são feitos sem II, que se localiza a apenas 30 qui- venenos ou adubos químicos. Os lômetros da cidade de Cavalcante. trabalhos obedecem aos coman- Vários motivos, porém, os mantive- dos das águas e das luas. As fa- ram afastados, como a própria geo- ses do céu são observadas para a grafia montanhosa e a necessidade construção de casas, para a pesca, de se preservarem. Há apenas 33 para tirar palha de fazer telhado, anos, em 1982, a chegada da antro- para tirar madeira, tirar taboca ou póloga Mari de Nasaré Baiocchi ao fazer toucinho. A vida respeita um quilombo se deu em clima tenso. calendário de chuvas e secas, de Eles acreditavam que a “escravidão” plantios e colheitas, de labutas e havia chegado e que seriam levados festas. presos. A despensa kalunga é quase total- “Sob o testemunho dos que nos mente abastecida pelo que as co- receberam, ficamos sabendo que munidades cultivam. Geralmente nunca esperavam ‘um povo desse as famílias têm pomares e hortas chegá ali, e se chegô foi por Deu- perto das casas, com plantios va- zo’”, como atestam anotações da riados que guarnecem as cozinhas pesquisadora sobre as palavras de com frutas, verduras, plantas medi- uma moradora – que acabaram por cinais e temperos. As grandes sa- arrefecer os ânimos dos inquietos fras – de grãos, mandioca, abóbo- kalungas. A partir daí eles passaram ras e bananas de espécies também a colaborar com o trabalho de Mari, centenárias – provêm de locais dis- que originou um longo processo de tantes, das terras férteis. reconhecimento do território qui- lombola.

52 Senac Ambiental Terras de cultura “Aqui na roça do Joaquim é terra vermelha. Aí tem uma grota, um ‘corguinho’... Passou, é terra branca. Terra vermelha é de cultura, é boa, mais quente, produz mais rápido, ‘guenta’ sol e umidade. Se faltar chuva, aguenta mais”. Zé Preto co- nhece bem a geologia. “Alto Paraíso é chapada, terra fria. É produtiva, mas não tem resistência. Cavalcan- te é amarela”. Os kalungas chamam o lugar das roças de “terra de cultura”. A de Zé Preto fica a 12 quilômetros de casa. Todo mundo tem roça longe. E é por isso que em tempo de plantios e de colheitas os kalungas fazem casas de palha para morar duran- te dias e até semanas perto dos cultivos. “Em maio e junho, é frio e venta. Se bem que mudou tudo. Em setembro e outubro se plantava milho. Novembro, arroz. Num tem- po desses já tinha colhido. No ano passado, a primeira chuva só veio em novembro”, ele explica. No caminho é um sobe-e-desce de serra, e se vai “com alguma previnição”: uma matula (farnel) com paçoca de carne-de-sol e gordura de porco. E no tempo da seca é preciso ter cuidado com os carrapatos e levar remédio para combatê-los. Extraordinário em riqueza Zé Preto faz o trajeto descrevendo Os kalungas dizem que o buriti – a palmeira a natureza. “Cheiro de nega-mina imponente típica das veredas – tem mais de [nome popular da erva-cidreira- cem utilidades. “Serve pra fazer cama, adu- -do-mato], planta boa pra mulher bo, cobertura de casa, polpa de fruta, remé- que passa mal perto de ganhar dio, artesanato, quibano (disco de palha que criança. [Apontando para outra serve para peneirar) e tapiti (instrumento planta] Essa é a mimosa. Tá com para preparo da farinha de mandioca). O ca- alguma ferida? É bom pra sarar. vaco serve pra fazer calha pra água passar, Pau-terrinha: tira o mel pra ferida pra fazer canteiro, serve pra galinha botar incurável. Se não sarar, não tem ovos. Do olho do buriti se faz corda, chapéu, outro remédio. O gonçalo chei- rede. Um pé leva 30 anos para produzir. Se ra, tem perfume”. Ele aprendeu a não cair com raio, não tem fim”, revela Sirilo conhecer a mata com o pai, sabe Santos Rosa, um dos principais líderes do quais são as plantas de cada re- quilombo. gião do quilombo, sabe o lugar de cada uma.

janeiro/dezembro 2015 53 Para assustar passarinhos As roças são protegidas contra curicas e ararinhas com o uso de “fundas”, artefatos feitos com um pequeno retângulo de couro de onde saem dois cordões de buriti. Uma das pon- tas é presa no dedo com um laço; a outra é segura pelo indi- cador e pelo polegar. Em manejo circular veloz, uma pedra se mantém no pedacinho de couro. Em seguida, solta-se a pon- ta do cordão que não está presa, e a pedra é arremessada. “Se não cuidar da roça, não precisa colher, os passarinhos comem toda”, relata o agricultor Joaquim Paulino.

Quando Zé Preto chega na roça do Joaquim, encontra as meninas Lo- yanne e Maria Eduarda. Uma tem 7 anos, a outra tem 6. São tia e sobri- nha. “Mãe fez ‘comê’ de mandioca. Tem também café e bolacha”, ofere- cem as duas. O agricultor Joaquim Paulino mos- tra a cozinha improvisada. A água esquentada em uma latinha, pra fazer café, no fogão à lenha. Tem cama feita de paus e tem rede. O arroz é branco e graúdo, sucu- lento – “o nosso tem leite”. Eles preparam sem sal e sem gordura, na tradição kalunga. Comem com feijão, milho, banana assada ou Tarefas do dia a dia: apurar o arroz e varrer a casa aferventada. “Dou um rumo nela, é assada”, ele conta. “É docinha, for- te. Se quiser fritar, frita. Batata na brasa, cozida... Quando vem uma chuva de noite, é friiiia... os braços doendo de bater enxada e a barri- guinha cheia.” E na roça não se pode viver sem gato, para proteger as sacarias contra os ratos. Os gatos recebem comida e ficam anos nas casas de roça. O arroz fica na roça mesmo, e busca-se quando preciso. Os quilombolas também usam trem- pe para cozinhar. Antigamente utili- zavam nas casas de moradia; hoje, só na roça. São três pedras grandes colocadas no chão, em formato de triângulo, próximas, de modo a

54 Senac Ambiental equilibrarem a panela. Não ser- ser consumidos. Só os de caloria. A dieta do vem apenas para cozinhar, podem “Quando tá com temperatura alta ser usadas como remédio ou para do corpo, toma alimento de natu- resguardo adiar a menstruação. Mas não con- reza baixa, para baixar a caloria. O Daniele Souza Santos preferiu tam como fazem. São segredos das coco, primeiro, produz água, de- dar à luz em casa. Já tem três kalungas. pois leite e depois vira caroço, que filhos. Quando começaram as é a castanha. O caroço é quente, a dores, foi um corre-corre. A vizi- A cozinha de dona água é fria. Não pode comer quan- nha Maria aparou a criança, que Getúlia do tá gripado: goiaba, chuchu, ainda não tinha nome 18 dias mandioca, inhame, batata-doce.” depois de nascida. Durante um “As tarefas são inúmeras: apurar A matriarca mostra mês, a mãe faz dieta especial. “É o arroz, limpar no pilão, descas- uma horta típica ao redor da casa. bom sopa de galinha. Arroz dói car mandioca, fritar uma bana- Há espécies como o pé-de-cabaça a barriga. E não é todo tipo de na... Desse fubá, tudo que é feito – o qual, dividido ao meio, dá duas feijão que pode”, explica Daniele. é gostoso demais. Se faz do milho. “cuias”; se inteira, dá uma cumbu- “Batatinha e carne moída, pode. O fermento é caseiro. A farinha de ca com tampa. Tem ainda batata- Algumas partes do porco, tam- mandioca produzida no Vão de Al- -doce, mamão, feijão andu e tradi- bém. Costela, não pode. Abacaxi mas é tão gostosa que segue estra- cional. O adubo é esterco de vaca e laranja, dizem que talha o leite. das custosas, chegando a todos os com folhas. Borralho de fogão evita Logo depois do parto, tira-se a povoados do quilombo. A alimen- pragas. Ao lado, um canteirinho de última cinza bem quente do fo- tação é boa”, diz dona Getúlia MS remédios e um pé-de-algodão para gão e joga-se dentro de um chá – e é assim mesmo que prefere ser fazer barbante e pano. “Amo a na- feito de ervas. Ela fica embai- identificada. tureza. Por meu gosto, saio todos xo. Você põe um pouco de sal Ela revela o que chama de “tem- os dias pra olhar as plantinhas, e toma nos primeiros sete dias peramento” das plantas. Quando da minúscula à maior”, diz dona e no último dia de resguardo. se está gripado, os alimentos de Getúlia, mostrando as dezenas de Tem também raizada pra limpar temperamento fresco não podem variedades. o útero”.

janeiro/dezembro 2015 55 O Maciço do Tinguá é o ponto mais elevado da reserva, a 1,6 mil metros de altitude foto: ICMBio/Rebiofoto: Tinguá Conservação Resistência ambiental Reserva Biológica do Tinguá, no Rio de Janeiro, é uma “ilha ecológica” cercada de pressões por todos os lados Francisco Luiz Noel

Das 30 reservas biológicas sob a guarda do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversida- de (ICMBio) em todo o Brasil, a do Tinguá ocupa situação sui generis. Espraiada na divisa do Grande Rio com a Região Serrana do Rio de Janeiro, a unidade é uma ilha ecoló- gica cercada de pressões por todos os lados, resistindo como um dos remanescentes mais representativos da Mata Atlântica em terras flumi- nenses. Captações de água, dutos de combustíveis, linhas de transmis- são de energia, estradas, ocupações habitacionais: vizinha da segunda maior região metropolitana do país, nenhuma outra reserva do tipo paga uma conta ambiental tão alta. As operações de infraestrutura ur- bana em parte dos 26 mil hectares (o equivalente a 260 quilômetros quadrados) da Rebio Tinguá não resultam de meras transgressões à Lei 9.985, de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc). As instalações já existiam quando a reserva foi criada, em maio de 1989, por decreto federal. Mas, passados 26 anos, medidas como a erradica- ção dos dutos e invasões residen- ciais e a regularização das outras atividades ainda estão no papel,

janeiro/dezembro 2015 57 embora venham ganhando espaço nhistas e religiosos, além de outras sem precedentes, nos últimos anos, ilegalidades dentro e fora da reserva, nas agendas do ICMBio, de autorida- em sua zona de amortecimento, mas des federais, estaduais e municipais não flagraram casos de caça, prisão e do Ministério Público. de pássaros e coleta de palmitos. Como unidade de proteção integral, A caça vem refluindo nos últimos de acordo com a Lei nº 9.985, uma anos, afirma Flavio Pereira da Silva, reserva biológica objetiva a preser- mas ainda ameaça várias espécies. vação total da natureza, sem inter- O abate dos animais, praticado à ferência humana ou modificações noite, é encomendado por restau- ambientais, exceto iniciativas de re- rantes e bares a jovens de baixa cuperação do ambiente original. Pela renda de Tinguá acostumados com a permanência das atividades urbanas mata. “Os caçadores antigos tinham na Rebio Tinguá, traduzir ao pé da algum tipo de relação com a floresta letra esse conceito prescrito pela lei e caçavam para comer, ao passo que é o desafio do ICMBio. Empenhado os garotos de hoje caçam para ven- em negociações com as empresas der”, compara o chefe da Reserva. que operam na floresta, o chefe da “Nosso desafio é, na relação com a unidade, biólogo Flavio Pereira da comunidade, criar renda a partir de Silva, destaca que outras prioridades insumos da floresta. Infelizmente, são regularizar o território da reserva não se tira uma pessoa da caça se e fortalecer os laços com as comuni- faltar dinheiro na casa dela”. dades vizinhas. O avanço demográfico na região é A exemplo de outras áreas sob pro- visto com apreensão pelo advoga- teção legal, a Rebio Tinguá sofre do paulista Zanon de Paula Barros, assédio de caçadores, passarinhei- de 72 anos, que convive com a na- ros, palmiteiros e outros invasores tureza do Tinguá desde a juventu- – entre eles, cristãos pentecostais de. “O crescimento da população é que repetem no presente o episódio um grande motivo de preocupação. bíblico em que Jesus Cristo e após- Mesmo que o número de fiscais fos- tolos oraram em meio à natureza no se multiplicado por dez, não haveria Monte das Oliveiras. Com apenas como tomar conta de tudo”, diz. Fo- dois fiscais entre os 15 servidores, a tógrafo e estudioso da história local que se somam sete profissionais ter- no ciclo do café, Zanon vai todos ceirizados, a administração da reser- os anos ao Tinguá. Desde o fim dos va lavrou 167 autos de infração em anos 1950, ele fotografou inúmeras 2014. Elas incluíram invasões de ba- relíquias naturais na área da reserva.

58 Senac Ambiental Entre elas, o tronco de um jequitibá flora, a unidade também dá refúgio com oito metros de circunferência. a animais acuados pela pressão ur- “Ele já estava lá antes de Cabral des- bana, como o lobo-guará, que vive cobrir o Brasil”, comenta. nos campos da Baixada Fluminense. A quatro quilômetros da sede da A Rebio Tinguá protege desde car- reserva, o bairro de Tinguá tem nívoros nativos do porte da onça pouco mais de dois mil moradores, parda (suçuarana) e outras espécies que ganham a vida em empregos em risco de extinção até raridades

fora do lugar, no comércio local ou minúsculas como o sapo-pulga, que Sérgiofoto: Ramoz, sob licença CC BY-SA 3.0 no cultivo de aipim e outras lavou- atinge um centímetro na idade adul- ras. Em contrapartida, o município ta. Entre os mamíferos, os primatas é o quarto mais populoso do Rio de são destaque, como os macacos Janeiro, concentrando 806 mil habi- guariba, prego, muriqui e bugio, e tantes. E ainda 1,2 milhão vive nos os saguis – incluindo os ameaçados outros três municípios com florestas mico-leão-dourado e sagui-da-ser- protegidas pela Reserva – Duque de ra-escuro. Na longa lista de espécies Caxias, com 878,4 mil moradores, na estão cachorro-do-mato, paca, ta- Baixada; e os serranos Petrópolis, manduá, guaxinim, cangambá, irara com 298 mil, e Miguel Pereira, com e os felinos jaguatirica, gato-do-ma- 24,8 mil. Em toda a Região Metropo- to e jaguarundi, que, a exemplo da litana, vivem mais de 12 milhões de onça parda, são cada vez mais raros pessoas. no país. A pintada é considerada ex- tinta no Tinguá. Biodiversidade A floresta do Tinguá é viveiro na- Referência ambiental no Rio de Ja- tural para mais de 300 espécies de neiro desde o Império, a floresta da aves, incluídas várias em ameaça de Reserva tem o relevo acidentado tí- extinção, devido à devastação da pico da Serra do Mar e o ponto mais Mata Atlântica nos cinco séculos de elevado, a 1,6 mil metros de altitude, ocupação da faixa litorânea brasilei- no Maciço do Tinguá – palavra que ra. Na relação de animais em perigo significa “montanha em forma de que têm proteção na Reserva estão nariz”, em tupi-guarani. Situada no o macuco – eleito como símbolo da centro do mapa fluminense, a área unidade –, urubu-rei, azulão, saí- abriga diversos rios de bacias que -de-pernas-pretas, sabiá-cica, deságuam nas baías de Guanabara, beija-flor-rajado, araçari-banana, pa- a sudeste, e Sepetiba, a sudoeste. pa-moscas-de-olheiras, tesourinha- Santuário ecológico para uma in- -da-mata, araponga e gaviões como finidade de espécies da fauna e da o miudinho, o pato, o pombo-gran-

janeiro/dezembro 2015 59 de e o pega-macaco. Uma das aves culação de animais entre unidades e endêmicas preservadas é a saudade- a atuação comum na fiscalização e -de-asa-cinza, exclusiva da região na mitigação de incêndios e outros central do estado. desastres ambientais. A Reserva também é rica em pei- xes, anfíbios, insetos e outras clas- Destino científico ses do reino animal. Foi na floresta Por conta da riqueza natural, a Re- do Tinguá que o professor da Uni- bio Tinguá tem atraído pesquisado- versidade Federal Rural do Rio de res vinculados a várias instituições Janeiro (UFRRJ) Eugênio Izecksohn acadêmicas, como as universidades descobriu o sapo-pulga (Brachyce- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de phalus didactyla), um dos menores São Paulo (USP), o Jardim Botânico vertebrados terrestres do planeta, do Rio de Janeiro e o Museu Nacio- descrito para a ciência em 1971. Her- nal. No ano passado, 44 pesquisas pertólogo (especialista em anfíbios e autorizadas pelo ICMBio estavam répteis) renomado, morto em 2013, em andamento na Reserva, em dis- Izecksohn foi um dos defensores da ciplinas como zoologia, botânica, criação da reserva biológica – única geomorfologia, georreferenciamento iniciativa que ele considerava eficaz e gestão de Unidades de Conser- para salvar a floresta onde fazia pes- vação. A flora ocupava o foco da quisas desde a década de 1950. maioria dos estudos, seguida pelos A Rebio Tinguá é resguardada, numa trabalhos sobre a fauna, dedicados faixa de 50 quilômetros ao redor a roedores, morcegos, sapos, peixes, de seus limites, por uma zona de mosquitos e outros insetos. amortecimento que abrange partes Indicativa da preservação de espé- de mais dois municípios da Baixada Entrada da cies e da conservação do habitat reserva ambiental Fluminense – Queimados e Japeri, a natural, vitais para a biodiversidade, oeste da unidade. Previstas pela Lei a ocorrência de insetos é grande na nº 9.985, as zonas do gênero têm as região. Exemplo dessa abundância atividades humanas sujeitas a restri- foi constatado por pesquisadores ções ambientais, a fim de minimizar como a bióloga Vivian Flinte. De impactos negativos no território sob 2009 a 2011, em trabalho de pós- proteção legal. No caso do Tinguá, -doutoramento no Laboratório de grande parte da região circundante Ecologia de Insetos do Instituto de abriga Áreas de Proteção Ambiental Biologia da UFRJ, ela coletou espé- (APAs) e Unidades de Conservação cies de besouro-tartaruga na Re- de uso sustentável. serva e em mais duas Unidades de Para integrar a gestão da reserva à Conservação – o Parque Nacional da de outros remanescentes da flores- Serra dos Órgãos e a Rebio União, ta nativa, a Rebio Tinguá faz parte situada nos municípios de Casimiro do Mosaico de Unidades de Con- de Abreu e Rio das Ostras, na Região servação da Mata Atlântica Central dos Lagos. Fluminense, que congrega 31 áreas “Nossos resultados mostraram que, protegidas federais, estaduais e mu- apesar do menor número de coletas nicipais, tendo como parceiras 22 conduzidas na Rebio Tinguá, esta organizações não governamentais e área foi a que apresentou o maior foto: Sergiofoto: Ramoz, sob licença CC BY-SA 3.0 cinco instituições de pesquisa. A ar- número de espécies e indivíduos – e, ticulação, também instituída pela Lei consequentemente, a maior diversi- nº 9.985, visa potencializar a defesa dade dentro do grupo dos besouros- da biodiversidade, incluindo a cria- -tartaruga”, assinala Vivian. Das 37 ção de corredores verdes para cir- espécies registradas, 24 foram en-

60 Senac Ambiental A floresta é um santuário contradas na Reserva, dez no Parque de origem vulcânica, foi constatada para diversas espécies, Nacional e seis na União. “Verifica- depois em vários outras formações como esta preguiça mos também que, de maneira geral, montanhosas do Brasil. as espécies que habitam cada área são diferentes”, acrescenta a pesqui- Demanda hídrica ICMBio/Rebiofoto: Tinguá sadora. A espécie de besouro Stolas aenea foi, por exemplo, uma das re- O interesse ambiental pela floresta gistradas somente no Tinguá. do Tinguá remonta ao Primeiro Rei- nado. O potencial hídrico da serra, A exuberância da floresta e a impo- cortada pela Estrada Real do Comér- nência do Maciço do Tinguá desper- cio, que escoava café do Vale do Pa- ta a curiosidade dos cientistas desde raíba rumo ao porto do Rio, entrou o século 19, incluídos os mineralo- na mira das autoridades nos anos gistas. Um deles foi o estadunidense 1830, como alternativa de abaste- Orville Adelbert Derby, pioneiro da cimento da capital do Império. A geologia brasileira que participou cidade amargava déficit crônico de de diversas missões científicas em água, que, aliado à falta de rede de várias partes do país, no fim do Im- esgotos, era associada à eclosão fre- pério e início da República. Nos anos quente de epidemias. Em 1871, dom 1880, com base em amostra coleta- Pedro II pôs sob proteção oficial a da no Tinguá, Derby descreveu pela região da Serra do Comércio, como primeira vez para o mundo científico o lugar era chamado, ao declarar uma das rochas formadoras do maci- como floresta protetora de manan- ço – o tinguaíto, batizada em alusão ciais as áreas verdes de três grandes ao lugar. A ocorrência dessa rocha, fazendas locais.

janeiro/dezembro 2015 61 A água do Tinguá começou a che- a construção do Guandu e de ou- gar à capital em 1880, vertida das tros sistemas para o abastecimento barragens de Rio d’Ouro e Santo metropolitano, desde meados do Antônio, inauguradas pelo impera- século 20, o Acari passou suprir o dor. As obras, que carrearam para fornecimento da Companhia Esta- as duas represas o fluxo de várias dual de Águas e Esgotos (Cedae) captações espalhados pela floresta, em partes altas dos municípios de foram viabilizadas graças à constru- Duque de Caxias e Belford Roxo, ção de uma linha ferroviária desde na Baixada. Na prática, os cinco

foto: ICMBio/Rebiofoto: Tinguá o bairro carioca do Caju acessos utilizados pela empresa até Rio d’Ouro para o para a manutenção das represas e transporte de grandes captações na floresta são caminho tubulões de ferro impor- livre também para caçadores, pas- tados da Inglaterra. Até sarinheiros e coletores de palmitos, 1909, o abastecimento entre outros invasores. dos cariocas, à força da Os cinco reservatórios da Cedae na gravidade, foi ampliado Rebio Tinguá recebem água de 32 pela construção de mais pontos de captação – a maioria si- três redes de captação – tuada dentro da reserva. A compa- Tinguá, Xerém e Manti- nhia mantém em suas instalações queira –, que constitui- alguns funcionários residentes, riam com as demais o opera os sistemas hidráulicos sem Sistema Acari. licença ambiental e toma iniciativas Tinguá havia sido, em de risco à revelia do ICMBio. Por março de 1889, cenário conta dessa atuação, a Cedae acu- de um dos mais contro- mula autuações da fiscalização do vertidos episódios da his- instituto. Entre as infrações cons- tória do saneamento no tatadas estão, em 2013, a arma- país. Ante as limitações zenagem não autorizada de ácido dos rios Carioca e Mara- fluorsilícico junto dos reservatórios canã, a falta d’água e a e, no ano passado, a interrupção da febre amarela acirravam vazão do Rio Macuco, que levou à a insatisfação popular e morte de peixes a jusante da barra- a disputa política na ca- gem de captação. pital. Professor da Escola A saída para o litígio entre o ICMBio Politécnica, o engenheiro e a Cedae é a regularização das ope- Paulo de Frontin encam- rações da empresa nos termos da pou o desafio de elevar Lei nº 9.985. “O que cobramos é o o fornecimento, em seis regramento dessas atividades”, diz o dias, de 70 milhões de biólogo Flavio Pereira da Silva. A co- litros diários para 85 mi- Marco de demarcação da brança é encampada pelo Ministério área quando era floresta lhões. Na empreitada, mais de mil Público Federal, que abriu ação civil protetora de mananciais. Em trabalhadores abriram seis quilô- pública contra a companhia estadual alto relevo, a coroa imperial; metros de canais na mata para ligar por crime ambiental e aceitou a sus- abaixo, a inscrição “P II”, de mananciais como o do Rio Macuco pensão do processo sob a condição Dom Pedro II à represa do Barrelão, engrossando de que a Cedae dê início ao licencia- em 15 milhões de litros a oferta aos mento – legalização possível porque cariocas. as captações de água para o abaste- Mais de um século depois, o uso cimento são anteriores à criação da dos recursos hídricos da velha Ser- unidade de conservação. A empresa, ra do Comércio é um legado proble- procurada para esta reportagem, mático para a Rebio Tinguá. Com não se manifestou.

62 Senac Ambiental de nafta em Miguel Pereira, fora dos Rotas de passagem limites da Reserva. Embora a empre- Responsável pelos dutos de petró- sa efetue a manutenção permanente leo e combustíveis que atravessam a das instalações, que correm subter- Rebio Tinguá, na direção sul-norte, a râneas por quase todo o trajeto na Petrobras Transporte (Transpetro) é unidade, em faixas abertas na mata, a única detentora de instalações na a grande preocupação do Ibama e unidade a possuir licença ambiental, do ICMBio é com o tempo de uso concedida pelo Instituto Brasileiro dos oleodutos e sua consequente do Meio Ambiente e dos Recursos vulnerabilidade a intempéries. Naturais Renováveis (Ibama) em 2013. A Reserva é rota de passagem O temor tornou-se realidade em no- de produtos entre as refinarias Du- vembro de 2009, quando um desmo- que de Caxias, na Baixada Fluminen- ronamento causado por temporais se, e Gabriel Passos, na Grande Belo amassou o Orbel I. O acidente não Horizonte, desde 1966, quando foi levou a vazamento, mas obrigou a inaugurado o oleoduto Orbel 1. Em Transpetro a deslocar tratores de 1982, a Petrobras construiu o Orbel grande porte, caminhões e outros II; e em 1996, o Gasbel, que conduz equipamentos pesados ao interior gás natural a Minas Gerais. da unidade, para a construção de um trecho alternativo do duto. Aos As licenças incluem, porém, um fa- impactos ambientais da obra, que tor condicionante: a Transpetro deve gerou grande movimento de pesso- apresentar, ainda em 2015, um pro- as durante meses, somaram-se da- jeto de desvio do trecho que corta nos ao piso da histórica Estrada Real a Rebio Tinguá, a ser executado no do Comércio, por onde o maquinário prazo de dez anos. A medida visa trafegou reserva adentro. “O proble- à eliminação do risco de acidentes ma dos dutos é a nossa pedra no sa- Reservatório da Cedae na parte da como os ocorridos duas vezes, em pato”, diz Flavio Pereira da Silva. reserva em Rio d’Ouro. Na placa, 1970 e 1974, com o derramamento inscrição com o ano de 1880 foto: ICMBio/Rebiofoto: Tinguá

janeiro/dezembro 2015 63 A estrada não é a única a percorrer a Rebio Tinguá. Na parte nordeste da Reserva, a Mata Atlântica é cortada por um trecho do histórico Caminho do Imperador, que encurta o trajeto foto: ICMBio/Rebiofoto: Tinguá entre Petrópolis e Miguel Pereira – percurso que liga a localidade pe- tropolitana do Rocio, passando pela vizinha Araras, ao bairro Vale das Princesas, no município vizinho. De terra batida, o caminho é mantido pelas prefeituras é utilizado por pro- dutores rurais e demais moradores da região, embora haja outro trajeto rodoviário, mais longo, fora da re- serva. Nos fins de semana, soma-se ao movimento local a passagem de Estrada Real do Comércio, Outras presenças conflitantes na re- jipeiros, adeptos de motocross e de em grande parte preservada serva biológica são a linha de trans- mountain-bike. dentro da reserva missão de energia São José-Magé, de O avanço habitacional Rebio Tinguá Furnas Centrais Elétricas, que atra- adentro é outro problema. Em Pe- vessa a mata em duas faixas no sen- trópolis, na divisa leste, 370 famílias tido norte-sul, e a rodovia BR-040, ocupam meio hectare da Reserva na descida da serra de Petrópolis, no bairro Duarte da Silveira. Iniciada do quilômetro 83 ao 86, na porção nos anos 1960 junto ao antigo lixão leste da unidade. O trecho da estra- municipal, a ocupação é alvo de da foi cenário, em maio de 2013, de ação civil pública na 2ª Vara da Jus- acidente em que uma carreta bitrem tiça Federal na cidade, aberta pelo com 40 mil litros de gasolina caiu de Ministério Público contra o ICMBio um viaduto e explodiu, incendiando e a Prefeitura. Em meio à polêmica três hectares da reserva biológica. sobre a remoção e o reassentamen- Em 26 de fevereiro de 2015, outro de- to das famílias, o chefe da unidade, sastre ambiental: o tombamento de Flavio Pereira da Silva, afirma que o mais uma bitrem, na subida da serra, instituto vai retomar a área e dispõe derramou 30 mil litros de diesel na de R$ 3 milhões para iniciar a indeni- Local de passagem de duto mata da zona de amortecimento da zação dos moradores – pré-requisito da Petrobras, operado pela unidade. legal para a desocupação. Transpetro No extremo oeste da reserva, em Nova Iguaçu, o impacto de ativida- des humanas vem sendo sanado com o reflorestamento de 130 hec- tares da Mata Atlântica pela ONG Onda Verde, com recursos não re- embolsáveis do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e So- cial (BNDES). Pelo projeto, aprovado em 2013, a recomposição florestal totalizará o plantio de 329 mil mudas de espécies nativas na localidade de Adrianópolis, em área limítrofe ao Rio d´Ouro, que deságua na bacia

foto: ICMBio/Rebiofoto: Tinguá do Rio Guandu, alimentando o sis-

64 Senac Ambiental Primatas como o sagui se destacam na fauna da região tema de abastecimento com que a moradores as formas de atuação do ICMBio na gestão da unidade e

Cedae atende a 80% da população ICMBio/Rebiofoto: Tinguá do Grande Rio. as ações ambientais de grandes em- presas da região – entre elas, as que operam na floresta – e da Prefeitu- Entorno ra. Outra frente de relacionamento Na defesa da integridade da Rebio cultivada na Rebio Tinguá é a re- Tinguá, o ICMBio vem apostando cepção de grupos de estudantes de na intensificação do relacionamento escolas da Baixada Fluminense com com a população do entorno, sobre- palestras e caminhada em trilha nas tudo em Nova Iguaçu e Duque de imediações da sede da Reserva. De Caxias. Umas das iniciativas em pau- julho de 2013 a março deste ano, 53 ta, assinala o biólogo Flavio Pereira grupos foram recebidos. da Silva, é a criação de núcleos de “O objetivo de nosso trabalho é pro- proteção ambiental nas localidades teger a comunidade. Não queremos vizinhas à Reserva. O projeto prevê que a Reserva seja vista como um o fomento de atividades econômicas lugar proibido, mas como um espa- à base de insumos da floresta situa- ço simbólico para as pessoas”, diz o da fora da Reserva e a formação de chefe da Rebio Tinguá, Flavio Pereira artesãos, doceiros, cultivadores de da Silva. Pelo histórico de proteção mudas nativas e mateiros, numa em- estatal desde os tempos do Império, preitada sustentável que o instituto ainda que a interdição oficial à caça, quer ver custeada pelas empresas ao extrativismo e ao corte de madei- que operam instalações na Unidade Ameaçado de extinção, o ra não fosse cumprida à risca pela de Conservação. minúsculo sapo-pulga chega a vizinhança, a Reserva ainda é cha- um centímetro de comprimento

Um dos gestos de diálogo com a vi- mada por moradores de “mata do na idade adulta Andréiafoto: Helena zinhança da reserva é a realização, governo”. A persistência da expres- no centro de Tinguá, do encontro são sugere que o ICMBio ainda tem Aldeia Ambiental, que teve a quar- muito a fazer para difundir entre os ta edição anual realizada em 22 de moradores do entorno a correspon- maio, no aniversário de criação da sabilidade pela defesa do patrimônio Reserva. O evento apresenta aos natural do Tinguá.

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Entrevista Pelo direito de existir Coordenadora de relatório sobre violência contra indígenas comenta histórico de descaso contra esses povos Flavia Leiroz Colaborou Fausto Rêgo

Conversamos com Lucia Helena Rangel – doutora e professora de Antropologia da Pontifícia Univer- sidade Católica de São Paulo (PU- C-SP), além de assessora do Con- selho Indigenista Missionário (Cimi) desde 1989 – poucos dias após o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, ter autoriza- do o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a conceder li- cença para que a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, passe a operar. Há mais de 20 anos, povos do Xin- gu e ativistas lutam contra esse empreendimento. Em documento enviado ao Ibama no dia 12 de no- vembro de 2015, João Pedro Costa afirma que a usina não cumpriu a maioria das condições do Projeto Básico Ambiental do Componen- te Indígena exigidas para a libera- ção da licença de operação, mas possibilita que o órgão ambiental redefina o cronograma e multe a Norte Energia, responsável pela hidrelétrica, caso essas exigências não sejam cumpridas. Lucia Hele- na nos lembra que Belo Monte não está sozinha nesse contexto: “Toda

foto: Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil vez que se tem uma hidrelétrica,

janeiro/dezembro 2015 67 um povo indígena é expropriado”, lata um aumento no número de as- afirma. sassinatos e suicídios. Quais são os principais fatores que contribuem A entrevista foi pensada desde o para a violência contra indígenas lançamento do relatório do Cimi em 2014? “Violência contra os povos indíge- nas no Brasil – 2014”, em julho, pes- Lucia Helena Rangel – Podemos quisa que a antropóloga coordenou, estabelecer algumas relações que e sua urgência foi aprofundada com não são de causa e efeito, porque, a aprovação da Proposta de Emen- se pensarmos muito nesse tipo de da à Constituição (PEC) 215 pela relação, iremos enrijecer os argu- Comissão Especial da Câmara de mentos. Quando a luta pela terra Deputados, no dia 27 de outubro. A e o conflito recrudescem, há cres- PEC propõe que as demarcações de cimento da violência, que resulta terras indígenas, a titulação dos ter- em assassinatos e outros tipos de ritórios quilombolas e a criação de violência, como violações ao pa- unidades de conservação ambien- trimônio indígena, com invasões, tal passem a ser uma atribuição do incêndios e destruição de roças, Congresso Nacional e não mais do casas e escolas. Então, quando o

foto: Antoniofoto: Cruz/Agência Brasil Poder Executivo, como é hoje. conflito está ativo, há mais mortes, evidentemente. Lucia Helena Rangel Se aprovada pelo plenário da Câ- mara dos Deputados, a PEC pode O suicídio, por sua vez, é mais deli- paralisar de vez a regularização de cado e mais difícil de analisar, mas territórios indígenas e quilombo- também podemos mapear essas las no Brasil ao dar a deputados e ocorrências em ambientes muito senadores a última palavra sobre a violentos e onde o racismo é muito delimitação dessas áreas. forte. Por exemplo, no Mato Grosso do Sul – que é sempre o campeão Para Lúcia Helena Rangel, é preciso de todas as formas de violência – refletir sobre alguns aspectos diante pode parecer meio besta falar as- dessas questões. Primeiro, “os ín- sim, mas é impressionante como o dios estão sendo severamente pre- negócio lá não melhora, há décadas judicados por causa de uma escolha o suicídio é um fator constante. política que reflete o descaso que te- mos, aqui no Brasil, pelos nossos an- Em Mato Grosso do Sul e no res- cestrais”. Depois, há “um fenômeno to do Brasil, podemos concluir, político no Brasil: o povo não pensa por estudos feitos desde a década a política como sua, mas como algo de 1970, que o fator suicídio afeta das elites, dos coronéis. Assim, não sobretudo os jovens, na faixa dos há visão de conjunto, de ações, in- 13/14 anos até os 29/30 anos, princi- clusões e consequências para além palmente os rapazes. É muito difícil dos grupos aos quais pertencem”. interpretar essa atitude. Aliás, difícil e chocante. A conversa com Lúcia Helena, por telefone – em uma brecha entre par- Tenho um colega mexicano, o an- ticipações em congressos, orienta- tropólogo José Manuel Valenzue- ção de alunos, aulas e redação de la, que mora em Tijuana, onde a textos –, tratou desses temas. Mas situação é delicada também. Ele também falamos de história, luta, analisa situações de violência de territorialidade, juventude, comuni- jovens, principalmente na fronteira dade, direitos e cidadania. do México com os Estados Unidos, e escreveu um livro sobre essa con- Senac Ambiental – O último re- dição do Mato Grosso do Sul, que é latório do Cimi, Violência contra os muito complicada. povos indígenas no Brasil – 2014, re-

68 Senac Ambiental Há, no entanto, outros lugares do Brasil nos quais o fator suicídio aparece. E basta um jovem se matar para, em pouco tempo, sabermos de mais. Parece uma epidemia. São Gabriel da Cachoeira (AM) é um exemplo. Não é um lugar de conflito, a maioria da população da cidade é indígena. E lá, de vez em quando, aparece o caso de jovens suicidas. Quando o fator do racismo se tor- na agudo, isso geralmente ocorre. Preocupam também os jovens cara- jás da Ilha de Bananal, da cidade de São Félix do Araguaia (MT), que por duas vezes apresentaram esse com- portamento. Um se mata e, logo de- pois, outros o seguem.

Logo, a pergunta sobre o que acon- Antoniofoto: Cruz/Agência Brasil tece e por que razão – no caso dos suicídios – tem sido respondida Índios protestam na bebe muito. Mas veja: o que faz um entra da Câmara dos com base na falta de perspectivas homem aqui? Não tem roça para Deputados contra a na vida e de horizontes. O futuro plantar”. Isso é o papel do homem: PEC 215 não se apresenta para esses jovens plantar roça, conduzir sua família como promissor, próprio da família para locais bons para viver. O roça- deles e sua sociedade, principal- do, a casa de rezas, a água limpa e mente porque atingem principal- a mata fazem parte de um conjun- mente a população masculina e to de reprodução da vida em que o jovem. homem e a mulher têm seu papel. Para mim, faz sentido dizer isso. Senac Ambiental – Mas isso não Nas localidades onde o suicídio en- é um problema só para os indíge- tre jovens é mais numeroso, como nas... no Mato Grosso do Sul, as comu- nidades foram espremidas em meia Lúcia Helena Rangel – Não. Se dúzia de terras que o Estado de- prestarmos atenção no que tem marcou e onde jogou todo o povo acontecido nas últimas décadas guarani-kaiowá. É local de confina- com o mundo capitalista, nas crises mento indígena. Não vou chamar sucessivas, quem são os mais afe- de campo de concentração porque tados? Principalmente os homens. não tem polícia na porta, mas tem São eles que ficam sem emprego, polícia cercando. Nesses locais se porque se especializaram em um vê a maior manifestação das for- trabalho que acabou, principal- mas de violência: assassinatos de mente por causa da mudança do uns contra outros, assassinatos de padrão tecnológico. Essa pressão fora, cometidos por capangas de fa- contra os homens é muito com- zendeiros que matam os índios que plicada. E seu Hamilton expressou querem retomar terras de antigas isso de maneira muito sentida: por aldeias... Esses locais também têm que bebem tanto? Porque não po- suicídio. dem ser homens. E isso é uma coi- sa muito difícil de a gente avaliar. Seu Hamilton, um guarani-kayo- E eu incluo também os homens da wá já falecido, me disse uma vez: nossa sociedade. “Olha, todo mundo fala que a gente

janeiro/dezembro 2015 69 As situações de violência maior es- maior do que no Afeganistão, que tão relacionadas a conflitos e senti- é de 117,23 óbitos por mil nascidos. mentos comuns, mas que se inten- É possível apontar algumas causas sificam quando olhamos a situação dessa catástrofe? dos povos indígenas. O conflito Lúcia Helena Rangel – Temos de fundiário e as pressões que o racis- ver caso a caso, pesquisar o que mo local impõem são as principais ocorre, mas há alguns fatores. A mu- causas. Por exemplo, nos relatórios dança da Funasa para Sesai é um de 2013 e 2014, destaca-se o que deles, e muito importante. Quan- ocorreu em Humaitá, no Amazonas, do se desarticula um sistema, até semelhante ao que vemos no filme implantar outro, a saúde fica muito “Mississipi em Chamas” [direção de prejudicada. E quem são os mais Alan Parker, 1988], que trata das ter- prejudicados e vulneráveis? Recém- ríveis consequências do ódio racial -nascidos e crianças até 5 anos. e o que pode estar por trás disso. Principalmente pela falta de vaci- Em Humaitá, um grupo da popula- nação. Atualmente, as doenças se ção correu atrás dos índios, acuan- espalham mais rapidamente. Antes, do-os. Depredaram as sedes da quando havia peste, as comunida- Fundação Nacional do Índio (Funai), des indígenas iam para outro lugar da Fundação Nacional de Saúde – aquele estava empesteado. Agora, (Funasa), da Secretaria Especial de as terras são demarcadas, algumas Saúde Indígena (Sesai), vinculada com pouco espaço para esse tipo de ao Ministério da Saúde, e atearam mobilidade. E eles não podem sair fogo em 11 carros desses órgãos. dali, porque tem cerca, propriedade Os moradores acusam os indígenas privada, unidade de conservação. de estarem por trás do desapareci- Então se tornaram mais dependen- mento de três homens, vistos pela tes da assistência à saúde. última vez na reserva, o que nunca Há, como disse, outros fatores. Os foi comprovado. ianomâmis, por exemplo, diferen- Eles tiveram de entrar num quartel temente dos xavantes, têm para da polícia ou do exército e fica- onde ir, mas sofrem com o garimpo. ram quase um mês sem poder sair, A área ianomâmi está toda invadi- acuados por um grupo que estava da por garimpo ilegal. Voltam a ter linchando os que ficaram de fora. contatos com vírus, bactérias, epi- Depois, foram para a reserva e de lá demias, e as crianças são as que também não puderam sair. morrem mais, porque são mais vul- neráveis. A gente pensa que isso não ocorre, mas é o Brasil racista que a gente No caso dos xavantes, já faz tempo, finge que não existe. Tem a demo- principalmente as aldeias na área cracia racial, a mestiçagem, mas Marãiwatsédé, no noroeste do Mato tem aí um ódio enorme. Grosso, que eles tentam retomar suas vidas, mas fazendeiros não Senac Ambiental – Há também querem. E o Estado reluta em man- dados sobre taxa de mortalidade dar assistência. Estão passando de crianças, que indicam a ocor- por um período muito complicado. rência de pelo menos 785 mortes Pouco acesso à região central, anos de crianças até 5 anos de idade. As de luta, pouca comida. Já melhorou, situações mais alarmantes ocorre- mas as crianças xavantes dessa re- ram em aldeias xavantes, com 116 gião morrem muito. mortes de crianças nessa faixa etá- ria, o que equivale a mais de 141,64 E há ainda o Mato Grosso do Sul. casos por mil nascidos vivos, taxa Um governador do estado, quando foto: Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil

70 Senac Ambiental assumiu, disse que não daria mais cesta básica para os indígenas. Dois meses depois, os hospitais co- meçaram a lotar com crianças de- sidratadas, doentes, porque faltava comida. Por que falta comida? Por- que não há terra para plantar, como disse seu Hamilton. As crianças são muito vulneráveis. A mortalidade na infância realmente aumentou, o que nos deixa muito preocupados. Senac Ambiental – A impressão geral é que a política indigenista do governo se restringe à demarcação de terras e que isso não envolve saúde, alimentação, sobrevivência. Esse é realmente o principal con- flito entre povos indígenas e não foto: Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil indígenas? Cabo-de-guerra Lucia Helena – O papel restrito suas terras, garantido na Constitui- ção de 1988 por um esforço muito durante os Jogos do Estado relativo à demarcação de Mundiais dos Povos terras é fruto de uma série de medi- grande dos povos indígenas, que se Indígenas, realizados das tomadas ao longo dos anos. A organizaram, atuaram ativamente em Palmas (TO), em Funai foi sendo esvaziada. Tiraram na Constituinte, fizeram discurso e novembro dela a responsabilidade pela educa- manifestações e contaram com o ção, que passou para o Ministério apoio de alguns deputados cons- da Educação; pela saúde, que foi tituintes que compreenderam a ur- para o Ministério da Saúde, com gência de suas reivindicações. a criação da Sesai; pela distribui- Senac Ambiental – O que mudou ção de sementes, papel agora do de lá pra cá? Ministério da Agricultura etc. Essa fragmentação restringiu a Funai à Lucia Helena Rangel – De lá pra demarcação de terras. Mas até aí cá, você tem ações para mudar a não haveria tantos problemas se a Constituição. Mas, no fundo, há Funai tivesse orçamento e pudesse algo cultural, muito mais antigo. É realmente exercer essa função. impressionante como não se aceita, no Brasil, que haja um direito que No relatório do Cimi a gente publica não seja pautado pela propriedade também observações do antropó- privada da terra. A lei que regula- logo Ricardo Verdun sobre o orça- menta a distribuição de terras no mento da Funai, que vai majoritaria- país é do século 19, da época do mente para a folha de pagamento. Império [Lei de Terras de 1850], que O que resta é pouco para enfrentar protegeu a sociedade brasileira da a demarcação de terras, ação que abolição da escravidão, interpreta- exige recursos que vão além de sa- da por muitos como ameaça. Afinal, lário ou gasolina. como admitir que os negros sairiam Então a Funai, agente do Estado das fazendas como ex-escravos e responsável pela população indíge- teriam direito a suas terras? Há aqui na, tem essa incumbência, que se grande dificuldade em reconhecer tornou restritiva. Por quê? A socie- o direito à terra de outras catego- dade e o Estado não querem confe- rias da população que não sejam rir aos povos indígenas o direito a os proprietários privados, ou seja,

janeiro/dezembro 2015 71 aqueles que têm dinheiro para com- o impedimento do exercício desse prar a terra. direito? Depois de 1850, tivemos inúmeras Lucia Helena Rangel – O presi- repúblicas – Estado Novo, Repú- dente da República homologa a de- blica Velha, República Nova etc. – e marcação de uma terra, como foi o nunca ninguém ousou acabar com caso da Terra Indígena Raposa Ser- aquela lei, perpetuada em nossa ra do Sol, em Roraima. O processo história republicana. A arrogância, durou mais de 40 anos, acumulan- digamos assim, dos proprietários do todas as comprovações de que de terras, latifundiários, daqueles aquela terra é dos indígenas. Então que deles descendem e do agrone- um fazendeiro procura um juiz em gócio não permite o direito à terra sua cidade e entra com uma impug- de quem não tenha dinheiro para nação contra o registro da terra. Re- comprá-la. E isso envolve outros pare que ele não está impugnando direitos conquistados, como os so- o ato do Presidente da República, mas o registro da terra. E, por incrí- vel que pareça, o juiz acolhe a ação. Consequência? Não se pode regis- trar o que está demarcado. Assim, a ação foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e lá passou mais não sei quanto tempo em dis- cussão. O ministro Ayres Britto, re- lator, fez uma verdadeira tese a res- peito do direito indígena – e acho que foi a primeira vez que um ma- gistrado resolveu estudar o direito indígena, porque ele não é estuda- do nas escolas de Direito e nenhum ou quase nenhum juiz o conhece – e reconheceu o direito dos indí- genas à terra. Outro ministro, no entanto, disse que era necessário impor alguns condicionantes para foto: Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil aceitar e liberar a demarcação. Ao ciais, humanos e históricos – o que todo, foram 19 condicionantes. Um é o caso da terra e da população deles é que não se pode aumentar indígena. Um direito sacramentado os limites da terra demarcada. não pode ser permitido. Até por- Para mim, era isso que eles, sobre- que o mundo dos direitos é aquele tudo, queriam. Uma vez que não que fere o privilégio das elites que podiam diminuir ou negar o direito, possuem o dinheiro para comprar então não poderia aumentar a ex- tudo. Não é fácil lidar com essa tensão da terra demarcada. Por que mentalidade e convencer essas pes- isso é importante? Há uma pres- soas, que são também deputados, são populacional grande e, conse- desembargadores, juízes, ou seja, quentemente, uma pressão para o representantes dos três poderes – aumento dos territórios indígenas. executivo, legislativo e judiciário. A população cresce. O resultado Senac Ambiental – Mas se é um dessa combinação – o crescimento direito constitucional, você poderia e o condicionante – é que vão sen- dar um exemplo de como se efetiva do criados locais de horror, como

72 Senac Ambiental são as áreas no Mato Grosso do seram outra faixa: “Utilizamos água Sul. Lá, como em outras áreas, os de reúso”. Mas o reúso é da água do indígenas foram retirados à força poço artesiano. É uma coisa malu- de suas aldeias pelos fazendeiros e ca! não podem retornar e nem aumen- De repente temos um limite no Su- tar a terra demarcada. Muitas vezes, deste, em Minas Gerais, o Rio Doce. o fazendeiro está até devendo para Aquelas barragens explodem por- o Banco do Brasil, não faz coisa ne- que não conseguem mais carregar a nhuma com aquela terra, usa aqui- quantidade de lama, de resíduo de lo para especulação. E o juiz diz: a minério, provocam o maior desastre propriedade privada acima de tudo! e isso fica assim... A gente só foca o Por isso é muito difícil convencer desastre. Não há visão de conjunto, a população, o Estado e as insti- do que está ocorrendo, interligação tuições de que esses direitos são entre carências, poluição, abusos. elementares e que eles não vão de- Então, na mesma hora, temos Belo saparecer. Senac Ambiental – Talvez por isso, Belo Monte, cuja liberação se deu em novembro, tem legitimação dada pelo Estado e, em parte, pela população? Lúcia Helena Rangel – Com cer- teza! Juntam-se ainda outras ques- tões. Há anos que a falta de água está rondando nosso espírito aqui em São Paulo, por exemplo. O go- verno do estado finge que não está nem aí. As periferias daqui – aliás, de todas as cidades, grandes ou pequenas – sempre sofreram com a falta de água. Então a decisão pa- rece ter sido deixar a periferia sem água, continuar abastecendo os

bairros de classes altas e indústrias, Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil e fingir que não está faltando. Só que agora começa a não ter água Monte. Liberaram correndo, por- para ninguém, mas não se toma que daqui a pouco a gente não vai uma medida para controlar o con- mais poder liberar construção de sumo. O tal do agronegócio conti- hidrelétrica. Isso é uma loucura! O nua consumindo água do mesmo que estamos fazendo? Que falta de jeito. O eucalipto, aqui em São Pau- responsabilidade é essa? Quem dis- lo, bebe toda a água e ninguém fala, se que fazer hidrelétrica é bom? Por por exemplo. que é bom? Para quem? E para quê? Há tantas alternativas atualmente Além disso, você vê nos bairros possíveis. pessoas, hotéis e indústrias furan- do poços, ou seja, secando o lençol Para completar, aqui no Brasil, toda freático. Assim, as represas nunca vez que se tem uma hidrelétrica, um mais vão encher. Vi um posto de povo indígena é expropriado. Certa gasolina com uma faixa que dizia: vez, perguntei para a professora e “Não utilizamos água da Sabesp.” antropóloga Lux Vidal, como provo- Depois, claro, eles mudaram e pu- cação, sobre a coincidência estra-

janeiro/dezembro 2015 73 nha entre construção de barragens Senac Ambiental – Essa divisão e terras indígenas. Ela me respon- de direitos e fatores também se deu: “Claro que há, mas não creio explicita na forma como índios são que seja coincidência”. tratados em centros urbanos. Os indígenas não têm lugar na cidade? Por quê? A desapropriação que se faz é de pequenos proprietários. Lúcia Helena Rangel – Onde há foto: Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil Você não vê reclamação, porque negação explícita à posse da terra não pega grandes fazendas ou e a população cresce há migração grandes propriedades. Quando para centros urbanos. Essa migra- questionados, os engenheiros fa- ção, desde 1950, é incentivada. Há lam que é por causa da caudalosi- bônus para que pessoas saiam de dade do rio – é melhor aqui, apon- suas terras e morem em São Paulo, tam, por causa da queda da água por exemplo, para trabalhar na in- e tal. E onde, toda vez, é o melhor dústria. Então o que ocorre? O Es- local, sempre apontado? Nas terras tado, quando o indígena sai de sua de ribeirinhos, pequenos proprie- terra e vai para a cidade, se desin- tários e indígenas. É triste, muito cumbe de qualquer papel que tinha. triste. Para o Estado, quem sai da terra deixa de ser índio. E essa é uma Mas quero reafirmar que não se das coisas mais nazistas das quais pode mais falar do direito à terra eu já ouvi falar. Se você resolve ir e não falar do direito ambiental; fa- morar nos Estados Unidos, você lar do direito à cidade, do direito deixa automaticamente de ser bra- humano e não falar do direito am- sileiro? Claro que não, nenhuma lei biental. São todos fatores interliga- diz isso! Mas o índio, se sai da sua dos. A gente está desperdiçando terra, “deixa de ser índio”. A Funai os recursos: da mata, do mundo não se encarrega de dar assistência animal, do ar e, sobretudo, a água.

74 Senac Ambiental aos índios que vivem em ambientes fala que é indígena e não é. Então, urbanos. eles têm também mais essa dificul- dade. Dessa forma se inicia outro tipo de conflito. Porque os filhos dos indí- Senac Ambiental – Há a luta pela genas na cidade vão para a escola e terra, pela sobrevivência, pelo estu- começam a ficar sabidos. Começam do, pela cidadania e também pela a compreender e entender que exis- representatividade de diferentes tem direitos dos índios previstos na etnias em órgãos executivos. Você Constituição. Começam a cobrar do vê alguma esperança para que isso Estado e da Funai uma assistência, ocorra? Qual seria o caminho? mas são tratados como inexisten- Lúcia Helena Rangel – Os gover- tes. Para mim, é um ato mortal, um nos municipais, estaduais e federal assassinato. Sai da aldeia, vai para criaram os Conselhos Indígenas, cidade e morre como índio. Passa que existem em muitas cidades e a ser um cidadão que não merece em quase todos os estados. Os mais respeito, que vai ser tratado como atuantes escolhem seus represen- nada. tantes e participam – tanto os das Isso também é uma página muito áreas urbanas como os das zonas dura de nossa história, que nos preo- rurais. Mas esses conselhos não são cupa muito. Na PUC a gente tem um deliberativos nem consultivos, ou programa para estudantes indígenas seja, não são nada. Se o conselho que moram na cidade de São Paulo. reivindica a demarcação de algu- Eles não conseguem concorrer na ma terra, tem de encaminhar para Fuvest [Fundação Universitária para a Funai, em Brasília, e esperar todo o Vestibular], onde era feitoa o ves- o trâmite, que não necessariamente tibular das universidades públicas, envolverá os conselhos. ou em suas equivalentes atuais. Mas Esse é um canal de representativida- as universidades públicas daqui do de, e é muito complicado. Mas o pro- estado de São Paulo não dão conta blema também não se resolveria se nem de 50% das demandas estudan- fossem abertas vagas no parlamen- tis universitárias – 75% dos estudan- to. Seria estabelecido um número de tes universitários estão nas univer- deputados por estado, abrigados em sidades particulares. Imagine para Manifestação indígena no Congresso Nacional esses indígenas concorrerem a uma vaga na Universidade de São Paulo? Quem concorre paga, geralmente, os melhores e mais caros colégios e cursinhos para pegar uma vaga na faculdade de Medicina, de Direito, na Escola Politécnica etc. A PUC-SP, nesse contexto, criou um programa: se passar no vestibular, vai ter bolsa, mas tem que se ins- crever como indígena. Porém, como está na cidade, tem de provar que é indígena, ter um respaldo familiar, de sua comunidade ou da associa- ção, dizendo que ele é mesmo in- dígena. Para a maioria, os índios na cidade são todos falsos, é um bando de gente que falsifica a identidade, foto: Luciofoto: Bernardo Jr./Câmara dos Deputados - sob licença CC BY-NC 2.0

janeiro/dezembro 2015 75 um partido, com verba de patrocínio o povo brasileiro, em geral, também etc. Ou seja, não resolveria. Não sei não. O apoio a alguns projetos e vo- realmente qual é o caminho, mas sei tos, para mim, demonstra que não é que estamos longe ainda. possível alguém saber o que é aquilo ou o que representa a decisão. Ou No entanto acredito que o fortale- seja, não há compreensão do que é cimento das populações indígenas, foto: Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil a democracia representativa. dos movimentos sociais e das ações coletivas vai apontando caminhos Senac Ambiental – Por isso, a PEC e pode encontrar soluções que os 215, de 2000 – aprovada pela Co- indígenas achem mais satisfatórias. missão Especial da Câmara de De- Porque há indígenas que estão no putados no dia 27 de outubro –, e a poder, mas estão lá desde o tempo Portaria 303 da Advocacia Geral da da ditadura militar, e não são consi- União, de 2012 ganham tanto força derados representantes. Até porque, atualmente? nas tradições indígenas, a ação políti- Lúcia Helena Rangel – Há carên- ca não é representativa, mas consen- cia de representatividade dos indí- sual. É outro mecanismo. Se alguém genas e também de deputados que da aldeia diz, por exemplo, que vai a atuem pela causa deles. Esses são Manaus trabalhar, falar, pedir, todos muito poucos no Parlamento. Ain- dizem para ele ir, mas o fato de se da por cima, o Parlamento que está apresentar, dar seu nome e etnia não aí tem 119 deputados federais rura- significa que represente a aldeia, o listas. Outro dia, li um artigo que povo e tal. Eles têm culturas diferen- falava algo bem interessante: 85% tes e não dominam o mecanismo de da população brasileira vive em representatividade do Estado. Aliás, cidades, porém vota em ruralistas

76 Senac Ambiental (representam 30% dos parlamen- A ação anti-indígena é, portanto, tares). Por quê? Você não tem uma uma escolha política. Se você faz resposta muito clara ou lógica, mas aliança com um governo que tem há um fenômeno político no Brasil: em sua base de apoio movimen- o povo não pensa a política como tos como o dos trabalhadores sem algo seu – é algo deles, das elites, terra, entende-se que a reforma dos coronéis. Os votos ainda são agrária não será a vilã de sua vida. Marcelofoto: Camargo/Agência Brasil dados para quem dá mais, faz o Então com quem brigar? Porque os maior favor etc. grandes proprietários de terra, os ruralistas, precisam ter inimigos A ação anti-indígena foi eleita, e para que possam passar leis ab- não há lógica nisso. À pergunta surdas que favoreçam a produção “para que tanta terra para tão pou- de grandes plantações e autorizem co índio?” a resposta clara e direta grandes desmatamentos. Eles pre- é: “não há tanta terra assim nem cisam ter um conflito – esse foi o tão pouco índio” – as terras indí- escolhido. genas representam 2% do território brasileiro. Então não há nenhum Os índios estão sendo severamen- argumento lógico que impeça a te prejudicados por causa de uma demarcação de todas as terras in- escolha política que reflete o des- dígenas pleiteadas e a ampliação caso que temos no Brasil por nos- de todos os territórios pleiteados. sos ancestrais. Sim, por que quem Não teria peso. Aliás, teria, mas um são eles? Na minha família tem um peso positivo – haveria mais áreas italiano; na outra, um alemão, e por de preservação florestal, de flores- aí vai. Estamos tirando de nossos tas de verdade, matas... ancestrais o direito de existir.

janeiro/dezembro 2015 77 Estante Ambiental

Artesanato sustentável: natureza, design & arte Monica Carvalho Senac, 2015, 144 páginas Em uma obra importante para a formação de profissionais de artes e design, a au- tora mostra que, com criatividade, as sobras da natureza podem se transformar em produtos únicos e sustentáveis. A autora dá exemplos de técnicas para confecção de acessórios ou objetos de arte e decoração a partir de materiais descartados. O livro tem fotos especialmente produzidas para demonstrar as principais etapas de produção de bolsas, colares e pulseiras, entre outras peças artesanais.

Gestão de negócios e sustentabilidade Walter Gassenferth, Ciro Mendonça da Conceição, Maria Augusta Soares Machado, Silvia Pereira e Walther Krause Brasport, 2015, 368 páginas Como gerar estratégias de negócio que sejam sustentáveis, levando em conta as- pectos econômicos, financeiros, ambientais, culturais e sociais? Este livro apresenta textos selecionados para uma gestão empresarial eficaz, que só é conseguida por aqueles que dominam os quatro Ps da gestão de negócios: Planejamento, Processos, Pessoas e Projetos. Todos esses Ps, no entanto, devem ser acompanhados da preo- cupação verdadeira com a sustentabilidade, que não pode ser usada apenas para garantir uma “boa imagem” da empresa – nesse aspecto, é fundamental ter pragma- tismo e um comprometimento sincero com o ambiente em que vivemos.

Dossiê Belo Monte – Não há condições para a Licença de Operação Vários autores Instituto Socioambiental, 2015, 173 páginas Publicação produzida pela organização não governamental Instituto Socioambiental (ISA) este dossiê aponta as principais consequências do desrespeito às condicionan- tes socioambientais da hidrelétrica que está sendo construída na região de Altamira (PA), no momento em que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) avalia a autorização da operação da usina. O dossiê está disponível gratuitamente para download em www.isa.to/dossie-belo-monte.

Projetar a natureza: arquitetura da paisagem e dos jardins desde as origens até a época contemporânea Franco Panzini Senac SP, 2015, 720 páginas Nome destacado da historiografia contemporânea de paisagismo, o arquiteto italiano Franco Panzini vem estreitando laços com o público e a cultura brasileira. Este é um de seus mais interessantes estudos. Primeira história geral dos jardins e paisagens editada no Brasil, o livro expõe um panorama multifacetado da atividade em todas as épocas e nos principais continentes, buscando reconhecer as manifes- tações centrais em várias culturas. Escrita com erudição e objetividade, a publica- ção sintetiza a determinação humana de criar jardins e paisagens como expressão artística e instrumento civilizatório.

78 Senac Ambiental SENAC EAD UM MUNDO NOVO DE OPORTUNIDADES

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