Revista África[s], v. 02, n. 03, 110 p., jan/jun. 2015 ISSN 2446-7375

Revista África(s) Núcleo de Estudos Africanos — NEA Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Africanos e Representações da África Universidade do Estado da Bahia — UNEB, Campus II, Alagoinhas Núcleo de Estudos Africanos — NEA Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África Departamento de Educação, Campus II Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Rodovia Alagoinhas-Salvador BR 110, Km 3 – CEP 48.040-210 Alagoinhas — BA Caixa Postal: 59 – Telefax.: (75) 3422-1139 Endereço eletrônico: [email protected]

Editores gerais deste número: Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Prof. Ms. Cândido Domingues

Editoração eletrônica: Lino Greenhalgh

Revisão linguística: Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Prof. Ms. Cândido Domingues.

Revisão (resumos inglês): Prof. Dr. Ales Vrbata (UEFS)

Design da capa: Lino Greenhalgh

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África(s): Revista do Núcleo de Estudos Africanos e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África, Universidade do Estado da Bahia - v1, n.1 (jan./jun., 2014) – Alagoinhas: UNEB,2014 – v.; il. Semestral ISSN 2446-7375 online

1.Negros -História 2.África - Civilização 3. Brasil - Civilização – Influências africanas

4.Negros – Identidade racial 5. Cultura afro-brasileira

CDD305.89

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Editores: Docentes: Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Profa. Dra. Celeste Maria Pacheco de Andrade Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio (UNEB/DEDC II) Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Prof. Dr. Detoubab Ndiaye Prof. Ms. Cândido Domingues (UNEB/DEDC II) Prof. Dr. José Jorge Andrade Damasceno (UNEB/DEDC II) Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima Amarino Queiroz (UFRN) (UNEB/DEDC II) ConselhoBas’Ilele Malomalo científico: (UNILAB/CE) Profa. Dra. Joceneide Cunha dos Santos Carlos Liberato (UFS) (UNEB/DCHT XVIII) Celeste Maria Pacheco de Andrade (UNEB, UEFS) Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho Christian Muleka Mwema (UNISUL) (UNEB/DEDC I) Eduardo de Assis Duarte (UFMG) Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio Elio Ferreira (UESPI) (UNEB/ DCH IV) Elio Flores (UFPB) Eliziário Souza Andrade (UNEB) Coordenação do Programa de Pós-Graduação Felix Odimiré (University Ife/Nigeria) em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Flavio García (UERJ) Culturas Negras PPGEAFIN: Flávio Gonçalves dos Santos (UESC) Gema Valdés Acosta (Universidad Central de Las Villas Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima — UCLV/Cuba) (UNEB/DEDC II) Ibrahima Thiaw (Institut Français d´Afrique Noire — Ifan/UCAD/Senegal) Professores permanentes: Isabel Guillen (UFPE) Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho - UNEB/ DEDC I Jacques Depelchian (UEFS) Prof.º Dr.º Francisco Alfredo Morais Guimarães - UNEB/ DCH I João José Reis (UFBA) Prof. Dr. Ivaldo Marciano França Lima - UNEB/ DEDC II João Lopes Filho (Universidade Pública de Cabo Verde) Prof.º Dr.º José Jorge Andrade Damasceno - UNEB/ DEDC II Júlio Cláudio da Silva (UEA/ AM) Prof.º Dr.º Detoubab Ndiaye - UNEB/ DEDC II Jurema Oliveira (UFES) Prof. Dr. Moiseis de Oliveira Sampaio - UNEB/ DCH IV Leila Hernandez (USP) Prof. Dr. Jackson André da Silva Ferreira - UNEB/ DCH IV Lourdes Teodoro (UNB) Prof.º Dr.º Valter Gomes de Oliveira - UNEB/ DCH IV Luiz Duarte Haele Arnaut (UFMG) Prof. Dr. José Carlos de Araújo Silva - UNEB/ DCH IV Mamadou Diouf (UCAD/Senegal; Columbia University/EUA) Prof.ª Dr.ª Cristiane Batista Da Silva Santos - UNEB/ DEDC XIII Marta Cordiés Jackson (Centro Cultural Africano Prof.º Dr.º Francisco Eduardo Torres Cancela - UNEB/ DCHT XVIII Fernando Ortiz/Cuba) Prof.ª Dr.ª Joceneide Cunha dos Santos - UNEB/ DCHT XVIII Mônica Lima (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Juliana Barreto Farias - UNILAB/Campus dos Patricia Teixeira Santos (UNIFESP) Malês (BA) Raphael Rodrigues Vieira Filho (UNEB) Prof.º Dr.º Karl Gerhard Seibert - UNILAB/Campus dos Malês (BA) Rosilda Alves Bezerra (UEPB) Prof.º Dr.º Pedro Acosta Leyva - UNILAB/Campus dos Malês (BA) Roland Walter (UFPE) Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta - UFPE Severino Ngoenha (Universidade São Tomás de Moçambique — USTM) Professores colaboradores: Tânia Lima (UFRN) Prof. Dr. Pedro Abelardo Yeda Castro (UNEB) Prof.ª Dr.ª Cecília Soares Youssouf Adam (Unversidade Eduardo Mondlane/ Prof.ª Dr.ª Maria Hilda Baqueiro Paraíso Moçambique) Venétia Reis (UNEB) Apoio: Zilá Bernd (UFRGS, Unilasalle) Universidade do Estado da Bahia — UNEB Reitor: Prof. MS José Bites de Carvalho Coordenação do Programa de Pós- Vice-Reitora: Profa. Dra. Carla Liane Nascimento Santos Graduação em Estudos Africanos e Pró-Reitor de Pós-Graduação: Prof. Dr. Tania Maria Hetkowski Representações da África (PPGEAF): Diretora DEDC II: Profa. Dra. Áurea da Silva Pereira Santos Diretor da UNEAD: Prof. Dr. Jader Cristiano Magalhães de Prof. Dr. Ivaldo Marciano de França Lima (UNEB/DEDC II) Albuquerque Objetivo e Política Editorial

Sumário

5 apresentação Ivaldo Marciano de França Lima

7 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura Pedro Acosta-Leyva

22 Fragmentos de reminiscências identitárias nos dois lados do Atlântico: os mandigas de Mindelo e os cãos de Jacobina Raphael Rodrigues Vieira Filho

34 Fabric of enslavement: Panos de Terra Clifford Pereira

46 A escrita da história como violência: a inscrição dos corpos afroindígenas em “poemas da colonização” Jorge Augusto de Jesus Silva

61 Communication et lutte traditionnelle au sénégal: la revanche des «sans voix» Seydou Nourou Sall

72 Tradição africana e os saberes no currículo das escolas Adelmir Fiabani

89 Beleza Negra criliber, a África como um tema para a construção de uma identidade Tacyane Lima de Menezes

101 Quando a independência veio! apanhados pela teia! Derneval A. Ferreira; Maria de Fátima Maia Ribeiro

109 Objetivo e política editorial

4 Revista África(s), v. 02, n. 03, jan./jun. 2015 Apresentação

Apresentação tinente africano. Saindo do outro lado do Atlântico, e retornando para o Brasil, Jor- Eis o alívio daqueles e daquelas que espe- ge Silva mostra como Oswald de Andrade o raram tempo significativo por mais um nú- inspirou para que tecesse linhas de grande mero de África(s). A espera se justifica: após maestria na análise de “Poemas da Coloni- sua estréia entre os periódicos acadêmicos zação”, enquanto possibilidade de entendi- com dois excelen-tes volumes, a revista en- mento da violência para os índios e negros. É frentou sérios problemas que puseram em de se espantar este vai e vem entre as Áfricas risco sua existência. Nada incomum quando e os Brasis, mas para que o leitor não perca nos referimos às dificuldades de ordem ma- a forma, retornamos ao continente africano, terial existentes nas instituições públicas de mais precisamente para o Senegal, com o in- ensino superior do Estado da Bahia. tuito de contemplar o maravilhoso artigo de Acreditamos, porém, que assim como Seydou Sall sobre como uma luta tradicio- aqueles que insistem em sonhar, arrancan- nal se constitui em possibilidade de inserção do alegria do futuro, nós também podere- social para jovens pobres deste país. O au- mos ousar em legar aos pesquisadores e lei- tor consegue esta proeza a partir da análise tores em geral excelentes artigos que tragam das mídias senegalesas, complementando as novas luzes sobre o continente africano e as mesmas com significativa revisão bibliográ- questões em torno da história dos negros e fica. negras em solo brasileiro. O leitor está cansado? Esperamos que E nada melhor do que começar a leitura não, pois mais uma vez vamos ao Brasil, e com o fantástico artigo de Pedro Leyva sobre desta vez levados pelas mãos de Adelmir as famílias nobres africanas no tráfico atlân- Fiabani, que aborda a importância dos sa- tico. O que se pode afirmar sobre a captura beres na transmissão de conhecimentos e o comércio de escravos em questão? Dei- em comunidades quilombolas. Segundo o xemos a resposta, prezado leitor, nas mãos autor, há nas mesmas uma África viva, que deste excelente historiador. E sigamos! Ca- se estabelece como legado e ao mesmo tem- minhemos para um diálogo que une frontei- po referência identitária. E ainda no Brasil, ras dos lados do Atlântico, começando pelos mais precisamente em terras sergipanas, Mandingas de Mindelo, em Cabo Verde, e Tacyane Menezes nos mostra como a África desembocando nos “Cãos” de Jacobina, bela é significativa e ressignificada enquanto re- cidade do interior baiano. Este é o mote de ferencial de identidade. Mesmo em um con- Raphael Filho, historiador das festas e do curso de beleza, lá estão os valores, mesmo carnaval, que enceta breve revisão biblio- que ressignificados, norteando uma África gráfica e posterior análise de imagens para nos corações e mentes de uma comunidade identificar influências recíprocas entre os tradicional urbana na bela e encantadora dois eventos. Aracaju. E por falar em Cabo Verde, Clifford Pe- E por fim, para manter a forma, retorna- reira esboça intrigante artigo sobre os deno- mos mais uma vez para o continente africa- minados panos da terra deste arquipélago, no, e desta vez para analisar, a partir das li- e mostra como os mesmos representam as nhas traçadas por Derneval Ferreira e Maria provas de que mesmo antes da chegada dos Ribeiro, as narrativas angolanas Mayombe e europeus já havia produção têxtil no con- Noites de Vigília, obras literárias de Pepete-

Revista África(s), v. 02, n. 03, jan./jun. 2015 5 Apresentação

la e Boaventura. Estas, no dizer dos autores, aportem, todas recheadas de excelentes tra- são marcadas por uma estética plural, que balhos, contribuindo para elucidar questões marcou e se constituiu nos discursos antico- sobre as várias Áfricas e suas diferentes re- lonialistas, em prol da independência. E por presentações. fim, sem querer impor o cansaço ao leitor e a leitora, venho firmar o ponto a favor do conto e declarar que esta revista veio para Ivaldo Marciano de França Lima. ficar. E assim esperamos que outras edições Editor da revista África(s).

6 Revista África(s), v. 02, n. 03, jan./jun. 2015 Pedro Acosta-Leyva

As famílias nobres africanas

noo tráfi mitoc dao (1500-1850): captura

Pedro Acosta-Leyva*

Resumo O artigo proposto é uma revisão exploratória sobre o tema da captura de es- cravizados na África, sua dinâmica e especialmente seus agentes. O princípio básico é questionar os equívocos hermenêuticos sobre os principais sujeitos africanos e europeus que participaram ativamente na captura e tráfico inter- no na África. Palavras-Chave: África. Captura. Tráfico.

Abstract The paper constitutes a revision of the theme of slave captivity in Africa, its dynamics and its agents in particular. The main aim is to question herme- neutic misunderstandings of the main African and European subjects who took an active part in the slave trade within the African continent. Key Words: Africa. Captivity. Slave trade.

Introdução Por muito tempo no Brasil e América Latina, (UNILAB — Lei nº 12.289, de 20 de julho as vezes por motivos ideológicos, outras, por de 2010) se tem avançado qualitativamente questões epistemológicas, se criaram mitos nos estudos africanos, tanto da história mais sobre a história africana que leva a equívocos recuada como da realidade contemporânea. e a interpretações romantizadas, sentimen- Livros, revistas e diversos materiais im- tais e a-históricas. Com a criação dos centros pressos e digitais são reflexos do progresso de pesquisas especializados nos estudos afri- dos estudos africanos nas instituições de canos e orientais no Brasil a partir de 1959, ensino superior, centros de pesquisas, asso- assim como a sanção da Lei. 10.639/2003 ciações e de forma individual. Mesmo assim, e a criação da Universidade da Integração se precisa dar passos mais firmes, melhor Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira embasados em uma literatura atualizada e

* Professor de História da África, no Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), em São Francisco do Conde — Bahia. E-mail: [email protected].

Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 7 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura realizar esforços científico-interpretativos Chachá, podemos deixar esse aspecto com a que permitam a nítida leitura da realidade tradição daomeina. Registra Alberto da Cos- histórica africana. ta e Silva, baseado na tradição daomeina, Com o intuito de colaborar nesse senti- que tem passado oralmente de geração em do, o texto que nos propomos é uma revi- geração, que, pelo Chachá ter desrespeitado são exploratória sobre o tema da captura a Adandozan, rei de Daomé, este deu a or- na África de pessoas que foram exportadas dem a seus súditos para mergulhar o Chachá na condição de escravizados para o mundo várias vezes num “tonel de índigo” para que atlântico e também para os territórios ára- sua pele branca se tornasse negra (COSTA E bes. Objetivo geral do artigo é contribuir SILVA, 2004, p.82). O mesmo evento, qua- para a superação de interpretações que se se poeticamente, Ki-Zerbo(Vol. I, p.288) o afastam das evidências históricas, especial- relata da seguinte maneira: “Foi [o Chachá] mente no período que vai de 1500 até 1850. preso por este rei, metido no calabouço e ati Meus objetivos específicos são três: apre- -rado para uma cuva de índigo, onde sofreu sentar um levantamento exploratório sobre durante meio dia, sem dúvida para ficar com o tema da captura em autores conhecidos um pouco mais da cor local”. como Ki-Zerbo, M’Bokolo, Lovejoy, Thorn- Como ninguém pode afirmar se o Cha- ton, Fage e outros; dialogar minimamente chá era “mulatos”, branco ou mestiço é mais com a idéia sustentada por alguns membros produtivo deixar sua cor para outro diálogo. do movimento negro sobre o tema; e, iden- Talvez para um inglês o Chahcá fosse negro e para um português ou para um brasileiro, tificar possibilidades de interpretações que fosse o Chachá branco. Para os africanos e superem as noções moralizantes do proces- para a comunidade que se identifica como so histórico da captura-tráfico. os seus descendentes o Chahcá era bran- Captura como exercício do co. Além da cor, o que aparece com algu- ma certeza nas fontes é que o Chachá visita poder real a Doemé por volta de 1792 como pequeno Na Agontimé foi a segunda esposa do pode- traficante. Pelas boas condições de negócios roso rei de Daomé, Agongló, cujo reinado que a família real oferecia aos traficantes de foi entre 1789 e 1797. Dessa união, nasceu o escravos, Francisco Félix de Souza fixa resi- príncipe Gezo de Daomé. Na-Tigué era uma dência em Daomé, provavelmente próximo linda princesa no palácio do rei Agongló que à data 1800 (COSTA E SILVA,2004). fora prometida em casamento a seu filho, o A análise histórica da Na Agontimé e príncipe Gezo, que mais tarde, entre 1819 e da Na-Tigué em terras africanas, isto é, em 1858, seria o rei de Daomé. Daomé, atual Benim, necessariamente, leva O famoso Francisco Félix de Sousa, o o pesquisador a se revelar um africanista ou Xaxá ou Chachá, nasceu em Salvador, na africanólogo, porque se trata de uma história Bahia; se branco ou mestiço, ou se filho de africana, no continente africano. Se assim índia com branco ninguém sabe, mas a his- for, os africanistas ou africanólogos devem toriografia o tem caracterizado como filho romper “o mito da captura”. Em todos os de uma escravizada africana e um trafican- eventos, sejam do movimento negro ou aca- te português. Para não estender o questio- dêmico, é comum a repetição do mito que os namento sobre a cor ou a origem étnica do europeus “capturaram africanos nas tribos”

8 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 Pedro Acosta-Leyva

(ultimamente fala-se “e nos reinos mais fra- tura”, mas a resposta dos africanos aponta cos”) e os transportaram para América. para algo diferente dessa perspectiva. Por Pela história da Na Agontimé e da Na- volta de 1446, Nuno Tristão entrou no Rio Tigué descobrimos que os responsáveis pela Geba com um pequeno grupo de 22 solda- captura dos africanos, que seriam escravi- dos-marinheiros com o objetivo de capturar zados, são exatamente as famílias reais, que escravos. Nuno Tristão e seus soldados fo- possuíam o poder para comandar as guer- ram recebidos a flechas envenenadas e so- ras e o direito de cobrar imposto por cada mente saíram com vida dois para contar a produto destinado ao comércio no território história. M‘Bokolo (2012, Tomo I, p. 251) dominado por eles. As famílias reais eram as difere do número de soldados-marinheiros supremas representantes do poder instituí- aumentado para “27 membros da expedição, do, as figuras centrais dos estados na África. apenas sobreviveram 7”. Se foram dois ou Neste caso, Ki-Zerbo (v. I, p. 281) classifica sete que saíram com vida, o que importa é Daomé de “potência firmada no comércio que o grupo de Nuno Tristão não conseguiu negreiro” (MUDIMBE, 2013, p. 26). avançar para o interior do território porque Na região que hoje faz parte de Benim, existia uma população organizada. A mesma segundo Lovejoy (2002, p. 101), entre 1691- história é analisada e esteticamente narrada 1695, o tráfico chegou a uma média anual por Alberto da Costa Silva (p.152-154), na A de 9.940; e, entre 1696-1700, alcançou um manilha e o libambo, concluindo que a cap- crescimento anual assombroso: de 13.500 tura pelos esforços violentos dos europeus para um computo geral do século XVII, de não deu os resultados esperados. O comum 249.900 escravizados exportados para Amé- era a captura e a venda de escravizados por rica. Os que capturaram esse quarto de mi- parte dos representantes dos estados africa- lhão, que Lovejoy analisa, foram os soldados nos. A mesma argumentação é mantida por de Daomé, chefiados pela família real. Isso J. D. Fage(2010, p. 246). está confirmado pela historiografia que es- tuda as transformações sociais e econômicas A extensão do poderio português para o inte- rior nem era necessária nem verdadeiramen- do território em questão (LOVEJOY, 2002; te aconselhável, pois os Portugueses estavam M’BOKOLO, THORNTON, 2004; MEIL- a ocupar posições na periferia de um sistema 1 LASSOUX, 1995) . comercial muito avançado no qual os merca- A captura por parte das instituições afri- dores do interior procuravam já os Estados canas se constitui como realidade incontes- costeiros para trocas comerciais [...] os afri- tável desde os primórdios da chegada dos canos podiam recusar aos europeus o acesso europeus. Um exemplo neste sentido pode à água ou às provisões, ou ainda boicotar um forte se assim o desejassem. Logo em 1576, ser enxergado na incursão do rio Geba. Se- o rei de Gã deve ter decidido que as desvan- gundo Cammilleri (2010), quando os portu- tagens em ter uns súbditos tão poderosos no gueses chegaram ao que seria hoje Guiné- seu território ultrapassavam os lucros co- Bissau pensavam do mesmo modo que “os merciais. O forte português de Acra foi des- pesquisadores” que repetem “o mito da cap- truído, e no meio século seguinte houve um intercâmbio comercial restrito entre os Gás e 1 Para um debate sistemático das transformações sociais na África vinculadas ao tráfico conferir a os europeus. interpretação de Basil Davidson, John D. Fage, Walter Rodney, Joseph C. Miller (MANNING, Os europeus, segundo a análise histórica 2015, online). de Fage, não tinham as competências milita-

Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 9 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura res para entrar no interior da África e dispor John Hall, em 1775, escreveu que “bastava a sua vontade dos recursos. Os Estados afri- ver a chegada de um barco negreiro na costa canos controlavam o comércio e as ativida- de Calabar para isso provocar a partida das des militares de seus territórios. O reino de pequenas embarcações[africanas] para o in- Gã era uns dos Estados africanos que não se terior, para a caça ao homem”. interessou pelas relações comerciais com os Em toda África as guerras de capturas de europeus e destruiu o forte de Acra. Assim escravos estavam nas mãos das elites africa- como o reino de Gã se negou a comercializar nas. M’Bokolo (2010, Tomo I, p. 250, 253) com os europeus, também o reino de Benim diz que “uma parte das atividades iniciais (não confundir com o atual Benim que era dos Portugueses consistia em praticar o trá- Daomé) fechou o tráfico com os portugueses fico por conta dos africanos. Os navegadores e somente vendia escravos do sexo feminino. estrangeiros tinham como efeito interesse “Durante quase dois séculos o Benim isolou- em comprar escravos numa região da África se quase sempre dos contactos com a Europa: para vender numa outra”. Em uma data difí- o comércio europeu foi algo que preferiu dis- cil de precisar, “entre 1445 e 1448, o Infante pensar” (FAGE, 2010, p. 248). Isto é desde D. Henrique deu ordem aos portugueses de aproximadamente 1530 até final do século renunciar à captura de escravos e à guer- XVII (COSTA E SILVA, 2011, p. 316). ra com os africanos e procurar estabelecer M’Bokolo (versão brasileira, vol. I, p. com eles relações comerciais duradoiras”. 270) aceita esse fato ao dizer que “a captura Isso poder ser facilmente identificado inclu- que fora a primeira e, durante muito tem- sive até pela configuração geopolítica que o po, a maneira principal de se abastecer em mapa nos oferece. Segundo o mapa da Figu- escravos africanos, cedeu progressivamente ra 1 observa-se que os europeus haviam se lugar a um comércio regular”. Ki-Zerbo (v. I, estabelecido até o século XIX somente nas p. 281) repetindo as asseverações do Capitão costas, à vera mar.

Figura 1 — Mapa da África

Fonte: Atlas escolar, p. 120.

10 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 Pedro Acosta-Leyva

O mapa mostra que o domínio da Áfri- Angola não existiram sem a maciça partici- ca estava sob o poder dos próprios africa- pação dos africanos, que atuaram como sol- nos até a segunda metade do século XIX. dados, carregadores, guias na densa mata...” Observa-se que a maior influência e pene- (FONSECA, 2010, p. 392). As palavras de tração do Continente tinha sido efetuada Alberto da Costa e Silva (2015, Online, p. 1) pelos portugueses. Mesmo assim, o avanço vem a corroborar tal posição. dos portugueses deve ser melhor explica- Na realidade, a África só abria para o exterior do ou adequadamente compreendido. Fa- um pouco da casca. Assim fora desde sem- lando deste particular, Valentin Alexandre pre. O estrangeiro se parava no Sudd, ao sul (2008, p. 12) nos informa que “com a perda da Núbia, em Ualata, Gana, Gaô, Tombuctu do Brasil, o Império português fica reduzi- e outros caravançarais do Sael, em Quiloa, do a alguns pequenos territórios dispersos Mombaça, Angoche, Zanzibar e iguais feito- rias do Índico e, desde a abertura do Atlân- pelo mundo, com ligações muito tênues à tico, nos entrepostos e fortins de Bissau, metrópole”. Alexandre continua sua expli- El Mina, Ajudá, Luanda, Benguela e tantos cação dizendo que ademais das ilhas e ar- mais. Até meados do século XIX, o europeu quipélagos aqui e ali, só avançava alguns passos para fora de seus muros e paliçadas em algumas poucas áreas as possessões no Continente africano, estão e, na maior parte dos casos, com o consen- limitadas a postos e enclaves no litoral, salvo timento e o apoio dos africanos, ou sob sua uma linha de penetração a norte do Quanza, vigilância. de Luanda a Malange, e uma outra, na Costa Oriental, de Quelimane a Tete, ao longo do A maioria dos pesquisadores brasilei- rio Zambeze. ros, cujas bibliografias de base se expandem Antes de se pensar nos casos específicos para as fontes primarias dos tratados/alian- de Angola e Moçambique, mas especialmen- ças entre Portugal e os sobados em Angola, te as guerras de capturas de Paulo Dias de confirma que somente a participação ativa e Novais2 em Angola, que são exemplos típi- dinâmica dos poderes instituídos pelos pró- cos “lembrados” para justificar “o mito da prios nobres africanos ofereceram as condi- captura”, observemos a afirmação de Alber- ções e a colaboração necessária para a cap- to da Costa Silva (2011, p. 416) “antes dos tura e o tráfico de escravizados (CAVALHO, primeiros combates entre Paulo Dias de No- 2013). Palavra quase idêntica utiliza John vais e a gente da terra[atual Angola], o trá- Thornton (2004, p. 174), quando resume fico realizava-se como em outras partes da que “os soldados portugueses [em Angola] Costa da África: os reis ou os nobres forne- só venciam as campanhas apoiados pelos ciam os cativos aos navios portugueses”. E africanos e eram regularmente massacrados ainda devemos analisar que, “as guerras de quando tentavam fazê-las sozinhos”. Inge- nuamente pensam os historiadores de men- 2 A perspectiva deste texto não impede observar que Paulo Dias de Novais era um homem violen- talidades colonizadas, que os africanos eram to, ladrão e inumano, como registra Alberto da seres passivos no decorrer do processo da Costa e Silva (2011, p. 410): “Paulo Dias de No- vais [...] mandava decapitar os chefes negros que chegada dos europeus ao Continente africa- capturava ou que se rendiam. E queimar vivas no e pelo contrario, “alguns grupos de orga- dentro de suas casas famílias inteiras. Por onde nização políticas africanas desempenharam passava, levava tudo — milhetes, sorgo, mel, sal e gado miúdo — reduzia a cinzas as aldeias e os papel fundamental nas relações entre o lito- sobreviventes, à escravidão”. ral e o interior” (SERRANO,2008, p. 83).

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11 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura Num texto que Lovejoy (2002, p. 128- cando que os portugueses enviaram uma 129) sistematizou as informações do proces- delegação para o interior tentando criar um so de captura na região típica do “mito da base de comercio, “o rei, porém, esquivo-se captura”, aparece a questão: de onde pro- a esta oferta, dizendo que podia muito bem vêm os escravos do Centro-Ocidental (Con- abastecer-se nos árabes da costa [do Índi- go e Angola)? Ele responde dizendo que os co]”. Situação semelhante era praxe em ou- capturados se originavam (1) da guerra ci- tra parte da costa Oriental, do Índico, “en- vil do Reino do Congo; (2) das expedições tre 1784 e 1895, os maiores fornecedores de portuguesas; e, (3) da “ascensão dos grupos escravos aos súbditos portugueses da Ilha de guerra de imbangalas”. Explica Lovejoy de Moçambique seriam os chefes Makua do que a falta de um governo central no Con- Uticulo, de Cambira e de Matibane” (SER- go criou as condições para que diferentes RA,v. I, 2000, p. 81). grupos de “nobres do Congo, chefes imban- galas, comandantes portugueses ou novos Entre captura, movimento príncipes guerreiros” se dedicassem a pilha- gem das riquezas, especialmente, a captura africano de seres humanos. Outros exemplos nesse negro brasileiro e tráfico sentido, para os quais não cabem dúvidas, Uma escória, por vezes mestiçada, de inter- são os Estados de Caçanje (Kassanje) e Ma- mediários, de intérpretes, de feiticeiros, de tamba, especializados em guerra de captura intervenientes de toda a espécie se refaste de escravos e tráfico para o litoral. -lava naquela chavascal em que a cupidez e A historiadora Selma Pantoja (2011, p. a manha disputavam o terreno à devassidão e à crueldade. Estes ladrões, brancos e pre- 33, 39), ao analisar o comércio externo no tos, entendiam-se de resto muito bem” (KI- império Lunda, conclui que “o novo Esta- ZERBO, I, p. 271 — grifos meus). do era de caráter militar, sua atividade era de ataque aos seus vizinhos com o objetivo A atitude do movimento negro brasileiro de capturá-los”; e continua sua explicação de responsabilizar somente os europeus pela acrescentando que “os fornecedores de es- captura e tráfico é inteiramente compreensí- cravos em direção ao litoral luandense eram vel porque eles são a continuidade, de cer- os pequenos Estados de Matamba, Holo, ta forma, da tradição dos abolicionistas. As Mbondo, Kassanje e povos Imbangala [... campanhas abolicionistas atacaram exclu- que] serviam como tampão [...] entre os lun- sivamente a parte responsável pelo tráfico da e os portugueses”. Ki-Zervo (1972,v. I, nas águas do Atlântico que eram, em tese, os 3 p. 423) completa a informação sobre a es- europeus e os brasileiros . Neste ponto eles pecialização na captura e no tráfico do im- 3 Quando falamos dos traficantes brasileiros, pen- pério Lunda apontando para a capacidade samos nos cariocas, baianos e pernambucanos tal como se verifica pelos números das viagens. comercial, que dominava as duas rotas, a do “Das 7.174 viagens com destino Bahia entre os Atlântico e a do Índico. Ele afirma: “Lunda séculos XVI e XIX, 4.148 tiveram como origem recebia assim mercadorias portuguesas dos essa mesma região, ou seja, 57,8%, enquanto que apenas 127 viagens tiveram origem em Por- dois oceanos e em troca expedia escravos”. tugal, o equivalente a 1,8%. Já no período do sé- E, para não deixar duvida da estratégia e do culo XIX, das 3.284 viagens com destino Bahia, 1.248 se originaram nessa mesma capitania poder de decisão do rei africano na época, (38%) enquanto que apenas 52 se originaram Ki-Zervo acresce um parágrafo mais expli- em Portugal (1,6%) [...]se na Bahia 38% do tráfi-

12 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 Pedro Acosta-Leyva têm razão: os europeus e brasileiros são os negros ou africanos (isto é uma intuição responsáveis pela viagem no Oceano Atlân- apresentada neste texto e depreendida a tico. De passagem, sem intenção de ir mui- partir do trabalho de Luis Nicolau Parés) só to longe, parece importante levantar alguns aparecem bem no fim do século XVIII e es- questionamentos sobre os traficantes africa- pecialmente nos anos posteriores ao empe- nos e afro-brasilieros. Aqui estamos fazendo nho dos ingleses para interromper o tráfico. referência não aos antigos traficantes diulas, Podemos deduzir que os grandes traficantes fulas, mandingas e outros grupos de mer- brancos, com medo de serem aprisionados cadores tradicionais do trafico interno na pela força naval inglesa, enviaram em seu África, mas a indivíduos de um grupo rela- lugar representantes negros de confiança, às cionado com o tráfico atlântico e que alguns vezes escravizados, outras libertos. Lembre- foram escravizados na América. mos que o tráfico atlântico transferiu para o Para início, depois da publicação do li- Brasil 4.864.374, entre 1560-1856, e destes vro Francisco Félix de Souza: mercador 42% (2.054.725) foram no século XIX, isto de escravos de Alberto da Costa e Silva já é entre 1801-1850. Talvez no futuro sejam não existe a possibilidade de repetir que o classificados comoescravos a ganho no trá- Chachá era negro. Para os que continuam fico. Sabe-se que em 1839 no bergantim Flor dizendo que era mestiço, devem-se fazer as de Luanda foram embarcados como mari- perguntas: mestiço para quem? Para os in- nheiros dois escravizados; e, em 1840 sete gleses? Porque para os africanos e para os escravizados foram embarcados no brigue descendentes do Chachá, que moram atual- Ulisses na situação de marinheiros (REIS mente em Benin, se tratava de um branco et al, 2010, p. 140). Era um costume gene- até de olhos azuis. ralizado que os escravizados trabalhassem Em segundo lugar, percebemos rapida- como marinheiros ‘a ganho” e em todo tipo mente que esses famosos traficantes negros de atividades. Pela história dos “conquis- ou africanos, se nos apoiamos na pesquisa tadores negros” analisada no livro “Os sete de Luis Nicolau Parés, eram membros das mitos da conquista espanhola” se conhece famílias reais. Luis Nicolau Perés fez uma que era uma prática desde o século XV e XVI genealogia de um deles que o integram a enviar os escravizados representando os se- casa real, portanto, são um braço a mais dos nhores, sobretudo, em atividades de maior habituais “capturadores”, porém numa po- perigo. Lembremos “os voluntários da pá- sição de tráfico atlântico. tria na guerra do Paraguai”, que são uma Em terceiro lugar, os ditos traficantes evidencia enfática que quando os senhores

co local era comandado pelos baianos no século brancos tinham medo de morrer, enviavam XIX, em Pernambuco 85,8% do tráfico local era em seu lugar os escravizados. comandado por pessoas que ali residiam e ape- Em quarto lugar, seguindo o livro O alufá nas 4% por residentes em Portugal” (Débora de Souza Leão Albuquerque1 Flávio Rabelo Versia- Rufino de João José Reis et al (2010, p. 137) ni2 José Raimundo Oliveira Vergolino. Finan- alguns dos africanos que participam no ne- ciamento e Organização do Tráfico de Escravos gócio do tráfico eram meros trabalhadores para Pernambuco no Século XIX. Em: http:// linkpe.com.br/enpecon/artigos/Financiamen- assalariados como em certa medida foram to%20e%20Organiza%E7%E3o%20do%20 os “libertos o cozinheiro Rufino José Maria Tr%E1fico%20de%20Escravos%20para%20 Pernambuco%20no%20S%E9culo%20XIX.pdf. e o grumete Duarte Martins da Costa, am- Acesso 01 de abril 2015). bos registrados como de nação mina” num

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13 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura navio (barca) traficante chamado Ermelin- no caso para Cabinda, o combate ao tráfico da. Alguns, como também sugere a vida de e a luta contra a escravidão (LIMA, 2011, p. Rufino, podem ter sido africanos persegui- 284). Também comparar que, se é verdade dos e deportados pelas autoridades brasi- que alguns africanos ou afro-brasileiros en- leiras, para os quais a única opção viável de traram no tráfico, do mesmo modo, é ver- sobrevivência foi ser cozinheiro num navio dade que a maioria dos que voltaram para negreiro (REIS et al., p. 108). África “entraram num processo de integra- Dos 17% dos africanos ditos traficantes ção socieconómica e política, a par de mani- entre 1780 e 1863 provavelmente a maioria festarem uma grande originalidade cultural” eram “traficante ao estilo Rufino”. A minha (KI-ZERBO, I, p. 287). suspeita é que traficantes africanos podem Voltando para a relação entre movimen- ser divididos em: 1) os rufinos, libertos sem to negro brasileiro e a questão do tráfico, opção num mundo escravista e transforma- podemos intuir que a tradição abolicionista, dos em assalariados nos navios negreiros; 2) da qual o movimento negro faz parte, sa- os escravos a ganho, que eram escravizados bia que interrompendo a demanda as con- colocados como marinheiros; 3) libertos que seqüências seriam que a oferta se curvaria representavam os traficantes brancos com sobre si mesma e, portanto, morreria “o in- medo dos ingleses (conferir como os trafi- fame negócio”. Essa lógica de que fechando cantes negros/africanos João de Oliveira e a demanda de escravos na América a ofer- João Manoel Antonio Gomes, cujas trajetó- ta não teria condições de subsistir é aceita rias foram analisadas na dissertação de An- mesmo relutando por Thornton. Ele afirma gela Fileno da Silva (2010, p. 57-60); e, 4) os categoricamente que “a crescente demanda africanos que pertenciam as famílias nobres (e o aumento subseqüente de preços) possa (incluindo a família do Chachá como o exes- ter persuadido os africanos a participar com cravo baiano José Francisco dos Santos), es- seus escravos”. Portanto, se o preço pago pecialmente na região do golfo de Benim. pelos portugueses e a demanda de escra- Em quinto lugar, os que se ocupam das vizados na América se extinguiam, então o pesquisas de cartas escritas por libertos tráfico interno sofreria a conseqüência ime- que tinham relação com a “volta à África” e diata de estagnação da mercadoria humana com o tráfico devem de analisar as cartas e (THORNTON, 2004, p. 175). Interromper os discursos não somente dos que se “inte- o fluxo legal de escravizados para América graram ao negócio do tráfico”, mas também teve forte impacto no desmantelamento da enxergar que a maioria dos que “voltaram” escravidão no Brasil e em Cuba; mas a inter- possuíam uma plena consciência antitráfico venção inglesa não determinou o fim do trá- e anti-escravista. Para estudar casos parti- fico rapidamente. Mesmo depois de o tráfico culares, como é moda desde o “O queijo e se converter em negócio ilícito, ainda durou os vermes”, seria útil ponderar a história do um longo período, e nesse tempo contínuo bispo africano anglicano Samuel Crowther funcionando graças à participação ativa dos (Abekota e o problema da guerra com Dao- agentes africanos, como confirma a análise mé) e a carta escrita pelo liberto Joaquim de Zonta (2012, p. 317): Nicolau de Brito, em 4 de agosto de 1851, em Para o funcionamento do tráfico clandestino Rio de Janeiro. Nessa carta o liberto elen- de escravos era fundamental o contato com ca como motivos para “voltar para África”, as redes ao longo da costa. No norte, as co-

14 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 Pedro Acosta-Leyva

munidades islâmicas desempenharam esse fortalecer a centralização das estruturas do papel, enquanto que, mais ao sul, as famílias Estado. afro-portuguesas, geralmente detentoras Aceitando as palavras do maior historia- dos prazos. dor africano, Ki-Zerbo, deve-se concordar Fechando o parêntese sobre tráfico, tra- que “o tráfico de escravos provocou, portan- ficantes negros ou africanos e movimento to, um traumatismo moral e ideológico em negro, e ao mesmo tempo chamando aten- numerosos africanos [...] os próprios reis ção para a estadística, observemos a seguin- apenas vêem os seus súbditos como uma te análise. Ki-Zerbo, tomando como fontes mercadoria..” (KI-ZERBO-I, p. 282). Ele W.E.B. Dubois, La Rocière, Frossart e até o continua a explicação sobre a imoralida- Papa Leão XIII calculou que próximo de 50 de dos reis e conta que na Costa de Ouro, ou 60 milhões de africanos foram vítimas do portanto parte do que hoje é Ghana, houve tráfico (KI-ZERBO, v.I, p. 278-279). Desses reis que se especializaram em colocar suas 50 chegaram a América 11, 5 milhões, e para mulheres para seduzir os jovens. Depois de não ser classificado de exagero, podemos os jovens caírem na malha da sedução da dizer que 3 milhões morreram na travessia esposa do rei eram denunciados pelo crime atlântica. Segundo M’Bokolo (versão brasi- de adultério, presos e encaminhados para o leira, v. I, p. 295) “a mortalidade manteve-se tráfico. A mesma situação “moral” se repetia elevada durante o século XVIII: os portu- em Moçambique, onde por séculos a punição gueses da alta Guiné calculavam em cerca de por feitiçaria era um controlador social mo- 22% a taxa de perda entre a compra na Áfri- derador, com o tráfico em escala superlativa, ca e a chagada ao Brasil”; mas, pela pesquisa para o Atlântico (cristão) e para Indico (mu- de Miller, 10% dos escravizados na pior épo- çulmano), a feitiçaria se transformou numa ca do tráfico morreram na travessia. Depois fonte de escravos não depreciável. Pelo re- as técnicas e os cuidados se aprimoraram e lato de 1857, redigido pelo ex-governador essa taxa de morte atlântica se reduziu. En- de Sofala e Tete, Antônio Cândido Pedrosa, tão, se na travessia morreram 3 milhões e sabe-se que uma quarta parte do tráficoem chegaram 11, 5 milhões (3+11,5=14,5), onde Moçambique corresponde à punição por fei- estão ou onde morreram os outros 35,5 mi- tiçaria. “Esse caráter punitivo na venda de lhões (50-14,5=35,5)? Mesmo fazendo o cál- escravos revela a importância que tiveram culo com os 22% de M’Bokolo ainda existem os dirigentes tradicionais na sobrevivência cerca de 20 milhões sem explicação. A res- do tráfico de escravos e a deturpação que posta é lógica, mas óbvia. A lógica nos leva esse comércio fez das práticas culturais no a pensar (e está confirmado pela pesquisa) continente” (ZONTA, 2012, p. 318). que os 35,5 milhões ou 20 milhões, que fal- Esses casos apresentados permitem tam podem ser distribuídos em dois grupos, pensar que, se do movimento negro brasi- os que foram traficados para o mundo ára- leiro se aceita a ênfase da culpabilização dos be e os que morreram sob duas circunstan- europeus por motivo ideológico, em parte cias: no tráfico interno do sertão aos por- justificado, o mesmo não se aceita dos pes- tos atlânticos e nas guerras entre os reinos quisadores que repetem um mito que en- africanos pela sede de controle das famílias cobre uma parte importante da História do reais (como a de Na-Tigué e Na Agontimé Continente africano. Mesmo o movimento em Daomé) e o objetivo de obter lucros e negro brasileiro, em especial pelo contato

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15 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura com integrantes do MNU, pode se perce- Um exemplo são os filhos das mulheres ber que eles tem uma firme consciência que dos “prazos”, no Zambeze, em Moçambique as vítimas foram os negros escravizados, e e o próprio Francisco Félix de Souza cujas até fazem distinção em casos extremos en- relações com Na-Tigué e Na Agontimé são tre “nós negros” e “eles afro-descendentes” uma amostra do que acontecia em diversos para evidenciar sua pertença não somente lugares da África. Cabe explicar que os lan- a uma essência africana (que não existe!), çados, tangomas e pombeiros eram inter- mas há um grupo que sofreu, e ainda sofre, mediários, traficantes, mas não capturado- as condições de classe e cor. Ninguém so- res de escravos em grande escala. O caso de fre no Brasil por ser afrodescendente, por- Moçambique, “no que se refere aos próprios que no Brasil a discriminação e o racismo prazeiros, a legislação, elaborada ao longo não são determinados pela origem; o que dos três séculos de sua existência, queria importa no Brasil é o racismo pela cor e os que eles fossem brancos. Ora foi realmente rasgos “da aparência”, pele, cabelos “mar- o contrário o que acabou por se verificar” ca” (NOGUEIRA, 1985). (M’BOKOLO, versão brasileira, v. I, p. 503). Até faz pouco tempo os pesquisadores, Para ilustrar a mestiçagem na Zambézia, africanistas ou africanólogos, se ocupavam onde os prazeiros moravam, é preciso obser- de explicar o processo do tráfico no interior var que a maioria dos casamentos dos por- da África tomando como agentes os lança- tugueses acontecia com mulheres negras ou dos, tangomaos (Rios de Guiné), pombeiros ditas “mulatas”. Na ordem do quadro apre- (Angola) e todos outros termos que às vezes sentado por M’Bokolo (p. 504) português e eram puros sinônimos, como assinala Ser- mulata (13 casamentos); português e india- rano (2008, p. 84), tais como “feirantes, fu- na (5 casamentos); português e chinesa (1 nantes, aviados, ambaquistas, quimberos, casamento); indiano e mulata (6 casamen- agregados, calçados”. Essa postura também tos). Fage (2010, p. 319) o diz nitidamente: pode ser compreendida como eurocêntrica “inicialmente estes pombeiros, como eram porque desta forma tiram o protagonismo designados, eram europeus, mas passado dos agentes africanos para mostrar a pas- pouco tempo eram mestiços ou mesmo es- sividade, a inferioridade; e, por outro lado, cravos africanos”. Em outras palavras os para erguer as habilidades, a coragem e ini- prazeiros, pombeiros e as outras categorias ciativas dos europeus. na segunda geração eram majoritariamente Constata-se que os que pesquisam lan- negros ou ditos mulatos. çados, tangomaos e pombeiros enfatizam que eram uns europeus aventureiros, des- Captura como parte do temidos e dispostos a se aculturarem e até processo histórico da mesmo se misturarem biologicamente com centralização as populações africanas. Esquecem que, se em um primeiro momento estes persona- Em resumo, os africanos, especialmente a gens eram europeus, como explica Alberto elite africana, participaram no processo his- da Costa e Silva (2010), pouco tempo depois tórico de captura e exportação de seres hu- já eram mestiços e negros, que constante- manos para América e o mundo árabe. Eles mente burlavam a ordem ditada pela Coroa eram agentes ativos nas guerras de capturas, portuguesa. as quais Thornton (2004, p. 166) defendeu

16 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 07-21, jan./jun. 2015 Pedro Acosta-Leyva que também deviam ser entendidas como comprovou a presença de escravos brancos guerras políticas de expansão. Essas guerras e de crianças judias nas pequenas ilhas de são parte do processo político que os peque- São Tomé e Príncipe. O processo de guerra nos, médios e grandes (impérios) Estados de captura-escravidão é uma constatação africanos utilizaram como elemento basilar da história política da centralização e seus no fortalecimento da centralização do Esta- efeitos decorrentes das guerras de expan- do. De acordo com Serrano (2008, p. 84): são política. Nem Basil Davidson (1969, p. As populações africanas, principalmente, 100), que a crítica euro-norte-americana o por meio dos chefes dos grupos, não eram tem classificado de ideologizante, se escapa agentes passivos com relação a esse comér- na verificação que “o comércio marítimo de cio; pelo contrario, eram indivíduos que pro- escravos trouxe o seu poderoso estímulo e curavam no comércio estabelecido com os surgiram no delta do Níger algumas peque- europeus, bens de prestígio legitimadores ou nas monarquias e republicas”. armas necessárias ao confronto com outros grupos. Lovejoy (2002, p. 64) diz isso enfatica- mente ao escrever que “os escravos tendiam Parece-nos, a partir da leitura de Serra- a ser um subproduto das atividades mili- no, Thornton e outros autores, que a parti- tares politicamente motivadas. A exporta- cipação da captura por parte dos exércitos, ção pode muito bem ter dado um incentivo comandados pelos reis, sobas, mansa, impe- para escravização, mas os problemas polí- radores e a elite, tem um caráter moral como ticos localizados eram provavelmente mais qualquer outra ação humana em qualquer importantes”. Tanto é assim, continua ex- época e sob qualquer circunstância; mas, plicando Lovejoy, que em um reino jalo- muito mais que moral ou “degradação mo- jo, em 1455, no que hoje é Senegal, um rei ral”, como apontou para um caso especifico atacou populações vizinhas e seu o próprio 4 KI-Zerbo (v. I, p. 282) , trata-se de proces- povo, não por ambição do lucro do comér- sos social, político e econômico de expansão cio de seres humanos ou por imoralidade, das formações centralizadas que independe mas pelo con-trole político contra pos- se é na África ou em outro lugar do mundo. síveis revoltas que colocariam seu poder Não é um juízo de valor sobre os africanos, centralizado em xeque. Estou de total acor- porque a mesma situação pode ser obser- do com Lovejoy, mas não dissocio o fator vada, segundo Eric Willians, na Inglaterra econômico do fator político, porque como quando enviava os ditos servants, que eram pode ser comprovado no Asante, segundo na prática escravos brancos, por um perío- Akyeampong (2006, p. 44), a introdução do de sete anos, para as plantações do Ca- de cativos para os trabalhos de mineração ribe. Gerhard Seibert (2002, p. 35) também provocaram, pela necessidade da organi- 4 Além de Ki-Zerbo muitos autores também fa- zação do trabalho e as trocas comerciais, lam da questão moral dos príncipes africanos no tráfico. “Cada uma dessas súbitas expansões do “a elaboração do Reino”. No capítulo dois tráfico negreiro causava — refletia — mudanças do livro Como Europa Subdesenvolvido a no método e na moralidade da captura de escra- África, de Walter Rodney, afirma-se exata- vos. Guerras, processos judiciais e rapto eram os principais métodos da obtenção de escravos. mente esta idéia. Rodney (1975) sob uma A guerra predominava na maior parte da África influência marxista entende que a partici- Ocidental, o rapto na Baía de Biafra e os pro- cessos judiciais na África Central” (MANNING, pação das poderosas linhagens no tráfico 2015, p. 17, online). está relacionada ao processo de diferencia-

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17 As famílias nobres africanas no tráfico (1500-1850): o mito da captura ção social e aos antagonismos decorrentes origens e evolução do tráfico, asseverando das formações sociais centralizadas. A der- que “a verdade é que nas regiões de Áfri- rocada do sistema de linhagem, que divi- ca em que a evolução econômica estava dia o trabalho no bojo da família extensa avançada, como em torno dos centros ur- por faixa etária e por sexo, deu lugar a uma banos de Jena e Tumbuctu, a escravatura nova ordem. Na Europa o Comunalismo tomara um caráter de acentuada explora- transformou-se em escravatura e esta em ção”. Para realidades novas se exigem da servidão feudal. Assim como na Europa, as sociedade novas formas de organização e, sociedades africanas sofreram processos por conseguinte de desapropriação do tra- complexos, mas que não resultaram exata- balho alheio. As guerras dos reinos africa- mente nas mesmas formas de trabalho que nos para captura de escravos cumprem, de na Europa. certa forma, o mesmo papel que entre os Rodney (1975, p. 57) entende que “Marx francos e germanos, onde as famílias que reconheceu que os estágios do desenvolvi- conseguiram ter maior quantidade de es- mento asiático produziram formas sociais cravos foram se distinguindo e formando uma nobreza que, posteriormente, seriam que não podiam ser facilmente enquadradas as famílias reais e, portanto, o núcleo forte pelos moldes europeus”. Portanto, trata-se da centralização da sociedade. Meillassoux de formas sociais em decomposição tanto (1995, p. 15-18) conclui dizendo que: na Europa como na Ásia que evoluíram com estruturas autônomas. Processos históricos a história da escravidão na África se mostra semelhantes aos da Ásia podem ser verifi- indispensável para apreender a significação cados na África. Europa fez uma transição dos fatos que a acompanham: é a história que põe em evidencia a especificidade do do comunalismo baseado na família extensa modo de reprodução escravagista, dá um para o escravismo; já nas sociedades africa- sentido à economia guerreira e o meio de in- nas esse processo se mostrou muito tênue. terpretar certas formas de poder. Ela mostra Havia escravos na África, mas não havia es- que o fenômeno escravagista se inscreve em cravismo. A presença de escravo na África um complexo social e político de um alcance geográfico considerável. não constituiu a base da economia. Meillassoux (1995) ao analisar o pensa- Selma Pantoja (2011, p. 39) concorda que mento de Marx e Engels sobre o problema “originalmente [em sociedade baseada na da escravidão, afirma que esta é um aspecto linhagem], o recurso aos escravos e escra- importante do processo de desenvolvimen- vidão era um meio de excluir os elementos to da sociedade. Na África, assim como na nocivos à comunidade, como uma maneira Europa, a escravidão e, consequentemen- de reforçar a coesão social e assegurar a es- te, o tráfico são uma parte fundamental da tabilidade da sociedade”. E em um segundo dissolução da ordem gentílica e o apareci- momento o tráfico (e a escravidão) transfor- mento de uma divisão social mais profun- mou-se numa prática indispensável para da. Nas sociedades tradicionais africanas a sobrevivência das sociedades envolvidas a escravidão era de linhagem, doméstica, como modo de sustentação das diferenças e na medida, que essas linhagem vão se sociais e econômicas no âmago dessas socie- ampliando com o número de dependentes, dades para a distinção social entre os indi- se introduz uma nova ordem. Conforme víduos e fortalecimento do grupo que estava Ki-Zerbo (I, p. 265) revela, explicando a no comando.

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Algumas palavras para Como apontado neste capítulo, os res- considerar ponsáveis pelas guerras de capturas eram as figuras que comandavam as sociedades No reino de Daomé onde nasceram a rainha africanas. Nem os europeus, nem os árabes Na Agontimé e a princesa Na-Tigué, como em tinham capacidades militares para intervir toda e qualquer parte da África, a captura, trá- nas sociedades africanas ao seu bem prazer, fico e escravidão foram fenômenos de caráter porque os reinos tinham seus exércitos ou social, cultural, econômico e militar. Trata-se milícias organizadas o suficientemente for- de processos históricos que independem das tes para repelir qualquer pretensão violenta implicações que hoje nós consideramos mo- dos estrangeiros, como foi ilustrado no ro- ral, ético ou desumano (lógico que o ser hu- tundo revés sofrido pelos marinheiros-sol- mano por também ser um ente moral, qual- dados de Nuno Tristão no rio Geba, atual quer ação que ele desenvolva é moral). Guiné-Bissau. É lógico que não eram todos Existiram guerras de capturas e escravi- os reinos africanos que participaram do pro- dão entre os índios, na América; na Europa, cesso do tráfico. Haviam reinos especializa- na Ásia e também em África. Em América dos na captura, mas a maioria dos reinos, captura e escravidão estão presentes em pelo contrário, eram vítimas de ataques. Os todas as partes onde havia sociedades cen- africanos que foram a grande massa de es- tralizadas; isto é onde apareceu a figura do cravizados na América são uma prova ine- Estado, ali havia escravizados. Na Europa, quívoca que nem todos os reinos eram en- como explicou Meillassoux (1995) analisan- volvidos no tráfico e sim vítimas dos proces- do Engels e Marx, as famílias proeminentes, sos dos reinos cujas políticas de expansão se que tinham acumulado maior riqueza a par- efetiva em guerra de razia. tir da escravidão, foram a semente da nobre- za que instituíram o Estado. Referências África passa por processo semelhante in- ABDELMADJID, Salim. Joseph Ki-Zerbo: o in- dependente da presença européia ou árabe. telectual, a política e a África. CODESRIA Bole- A intervenção exógena no continente afri- tim, n 3 e 4, 2007, p. 26-39. cano intensificou em termos de quantidade ACOSTA-LEYVA, Pedro. História de África e tempo o processo social da centralização para proletários: África/Atlántico. Minas Ge- e o envolvimento na guerra de captura e rais: Virtual Books, 2013. na escravidão. As guerras de capturas, que AFONSO, Maria M. Educação e Classes Sociais eram uma prática endógena, contribuíam em Cabo Verde. Praia: Spleen. 2002 para fortalecer as forças produtivas internas AKYEAMPONG, Emmanuel Kwaku. Themes in e, especialmente, o prestigio e a competên- West Africa’s History. Accra/Ohio: Woeli Pub- lishing Services/Ohio University Press, 2006. cia militar das famílias proeminentes. Dizer que as guerras eram endógenas significa que ALENCASTRO, Luiz Felipe. O tratado dos vi- África, independente das influencias exóge- ventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, nas, tinha seu desenvolvimento social e his- 2000. tórico interno. Com a chegada dos árabes e ALEXANDRE, Valentin. O império africano. Sé- dos europeus, o que era uma prática mode- culos XIX e XX. Lisboa: Colibri, 2008. In: ALE- rada se intensificou para cobrir as demandas XANDRE, Valentin. (Coord). O império africano. habituais e para suprir o negócio externo. Séculos XIX e XX. Lisboa: Colibri, 2008, p. 11-28.

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Fragmentos de reminiscências identitárias nos dois lados do Atlântico: os mandigas de Mindelo e os cãos de Jacobina

Raphael Rodrigues Vieira Filho*

Resumo O presente texto traz uma pequena análise das festas dedicadas à Momo através de uma seleção bibliográfica e depois faz uma comparação inicial de imagens fotográficas publicadas de manifestações momescas em Mindelo, Cabo Verde, e Jacobina, Bahia. O Carnaval de Cabo Verde é propalado como uma das raízes carnavalescas brasileiras, porém isso nunca foi estudado sis- tematicamente. O Carnaval de Mindelo, segunda maior cidade de Cabo Ver- de, vem tomando feições parecidas com desfiles cariocas, descaracterizan- do as brincadeiras mais espontâneas da população local e preocupando os pesquisadores mais puristas desejosos de uma festa mais autêntica. Foram analisadas fotografias presentes no livro de Dominique Robelin e Tchale Fi- gueira (2007) intitulado Carnaval do Mindelo Ilha de São Vicente e o ensaio fotográfico “E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno” de autoria de Agenor Gondim (2009), para verificar as semelhanças existentes entre os atores sociais docu- mentados. O texto é o resultado de investigação exploratória do projeto Fes- tas Momescas nos dois lados do Atlântico, tendo por objetivo o levantamento de manifestações carnavalescas em lugares lusófonos da África, colocando -as em cotejo através de métodos da História comparada, com manifestações baianas dedicadas a Momo. Aqui foi adotada perspectiva de comparação entre imagens dos brincantes, pois ainda não temos informações sobre ca- racterísticas importantes das manifestações, uma vez que esse é o resultado de pesquisa exploratória. Os conjuntos fotográficos são diversos na forma de captação das imagens e nas técnicas utilizadas, porém não inviabilizam

* Professor Titular do DEDC I/Salvador e do Professor Permanente do PPG História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Doutor em História Social pela PUCSP e Pós-Doutor em Pes- quisa pela Università degli Studi di Padova. Tem experiência em Pesquisa e Publicações nas Áreas de Ma- nifestações Culturais Festivas Negras, História de Populações Negras, Relações Raciais e Normalização de Trabalhos Acadêmicos. Endereço eletrônico: [email protected]. — Uma primeira versão desta pesquisa foi apresentada no Terceiro Congresso de Pesquisadores Negros e no I Encontro Nacional de História em Rede UNEB/UAB, onde apresentamos as imagens e fizemos as análises e comentários.

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a comparação dos personagens documentados. As conclusões parciais são de que os brincantes utilizam os mesmos adereços, pinturas corporais se- melhantes, trajes e trejeitos parecidos, denotando uma forte ligação entre as duas manifestações presentes, ainda hoje, dos dois lados do Atlântico. Palavras-Chave: Carnaval. Mindelo. Cabo Verde. Micareta. Jacobina-BA. Manifestações Populares.

Abstract This text provides a brief analysis of the celebrations dedicated to Momo through a literature selection and then it makes an initial comparison of pho- tographic images published in Momesco demonstrations in Mindelo, Cape Verde, and Jacobina, Bahia. The Cape Verde carnival is heralded as one of Brazilian carnival roots, but this has never been systematically studied. The Mindelo Carnival, second largest city in Cape Verde, has been taking features similar to Rio de Janeiro’s parades, it descharacterizing the best candid ban- ter of local people and worrying purists researchers desirous of a more au- thentic party. Photographs were analyzed in the book of Dominique Robelin e Tchale Figueira (2007) entitled Carnaval do Mindelo Ilha de São Vicente and the photo essay E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno by Agenor Gondim (2009), to verify the similarities between the documented social actors. The text is the result of exploratory research project of Momesco Parties in two sides of the Atlantic, with the objective of raising carnival demonstrations in Portuguese-speaking parts of Africa, placing them in collation, through the method of compared History, with Bahia events dedicated to Momo. Here it was adopted perspective of comparison between images of the players be- cause we have no information about important features of the demonstra- tions, since this is the result of exploratory research. The photographic col- lections are diverse as taking pictures and the techniques used, but do not invalidate the comparison of documented characters. Partial conclusions are that participants use the same props, like body painting, like costumes and mannerisms, showing a strong link between the two manifestations present, today, on both sides of the Atlantic. Key-Words: Carnival. Mindelo. Cabe Verde. Micareta. Jacobina-BA. Fes- tive Popular Demonstrations.

Introdução As comemorações festivas no Brasil têm to- diático e propaladas como as maiores — O mado vultos astronômicos. Grandes multi- Maior Espetáculo da Terra; O Maior Carna- dões acorrem às diversas festas profanas e val do Mundo; O Maior São João do Mundo; religiosas em várias partes de nosso país. O Maior Bloco de Rua do Mundo; a Maior Agraciadas com verbas públicas e privadas, Procissão do Mundo — as festas estão entra- transformadas em produto turístico e mi- nhadas no cotidiano das grandes e pequenas

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cidades e também na forma como o povo rentes podem ser tão próximas e parecidas, brasileiro é reconhecido em todo o mundo: embora acreditamos nas festas como mo- como um povo festivo, aquele que sempre mento privilegiado para estudarmos as con- inventa motivos para comemorar. tradições presentes nas sociedades. Algumas dessas festas tradicionais e aca- nhadas em seu princípio tomaram tal vulto, As festas momescas entusiasmo, organização e riqueza ao longo Todos os anos, em locais diferentes — des- do tempo que são tratadas como principal de grandes cidades até pequenos lugarejos atração de pequenas, médias e até gran- — grupos animados se dedicam aos cultos des cidades, tornando-se atrações turísticas brincantes de Momo, ocorrendo em diver- projetando lugares antes desconhecidos à sos lugares espalhados pelo mundo, origi- atração nobre em rede nacional de televi- nalmente na europa ou ocidentalizados pelo sões (BUENO, 2006). processo de colonização. As manifestações festivas dedicadas a Feriados são decretados ou espontanea- Momo, Carnaval e Micareta — Carnaval mente “fabricados” para os amantes da folia fora de época — são uma dessas atrações e se divertirem. Grupos alegres, geralmente a tem sua origem bastante controversa e as pé, tomam o lugar dos automóveis, ônibus, diversas argumentações sobre legitimida- motos e caminhões nas ruas. A música ale- de e origem transformam as discussões em gre substitui os sons urbanos ou o silêncio ponto de honra. Muitos estudiosos afirmam dos lugares mais afastados e tranquilos. Ho- serem festas populares europeias introdu- mens se vestem de mulher, o traje formal do zidas talvez no século XI, esta versão leva executivo dá lugar à descontração de uma essas brincadeiras ao status de mais antigas bermuda e camiseta, ou quem sabe a uma da cultura ocidental e também com o mais alegre fantasia ou um abadá, mais recente- longo histórico de ocorrências no tempo. mente. Em alguns lugares, o rosto limpo dá Alguns estudos ligam as brincadeiras lugar às mascaras ou aos chapéus exóticos. carnavalescas à tradição cristã — sem des- Na maioria dos lugares o ritmo cotidiano cartar as reminiscências de festas de colhei- é irremediavelmente quebrado, pois ruas fi- tas comemoradas desde o continente afri- cam fechadas, o comércio não abre, os ban- cano com os egípcios, passando pelos Fes- cos não funcionam, as aulas são suspensas tivais em homenagem a Baco, as saturnais e em todos os níveis de ensino, os serviços lupercais —, enquanto que outros procuram públicos ficam precários, não acontecem e analisar a festa como uma expressão cul- alguns são transferidos para os centros da tural com contornos e dinâmicas próprias folia, com serviços de atendimento médico analisando cada festa como um fenômeno de emergência e preventivos, segurança pú- único encerrado nele mesmo, embora com blica e campanhas de cidadania. uma historicidade e longevidade inegáveis Algumas artérias urbanas são fechadas, (SOIHET, 1999). ou aquelas abertas para o trânsito de auto- O texto aqui apresentado não pretende móveis ganham outras feições, os conges- nem ver os festejos como manifestação da tionamentos rumo aos locais de desfiles ou tradição e nem como uma contestação social, de apresentações ficam caóticos, porém di- mas sim verificar como expressões populares vertidos com grupos cantando e dançando. momescas documentadas em lugares dife- Nas ruas principais, o congestionamento é

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24 Raphael Rodrigues Vieira Filho de blocos teimosos em permanecerem por frente às condições impostas, tais como as mais tempo na avenida que o previsto, oca- normatizações e proibições às manifesta- sionando problemas de organização e um ções de certos divertimentos aliadas às con- efeito dominó, que atrasa todos os outros tradições presentes nestes mesmos diver- desfiles. timentos às vezes homenageando pessoas Próximos aos locais de apresentação es- ligadas à sua repressão. Lentamente essas tão carros alegóricos de escolas de expressões começam a ser estudadas. com seus destaques e figurantes ansiosos As manifestações lúdicas no Brasil colo- por seus momentos de glória. Em algumas nial tinham como espaço tradicional de suas cidades a armação dos blocos é que toma apresentações os átrios das igrejas, nos dias as ruas adjacentes à dos desfiles, em todas de festas religiosas, mas de lá foram expul- prospera o comércio ambulante, com a po- sas, em meados do século XIX, com a roma- pulação mais pobre aproveitando o momen- nização promovida no seio da Igreja Cató- to para se divertir e ganhar um dinheiro ex- lica, cabendo apenas ao momento do Car- tra (DIAS, 2001). naval e em outros espaços, essas expressões Mesmo com a adoção de locais próprios lúdicas. Porém, as elites dirigentes tentavam para desfiles maiores, em grande parte das também extirpálas das ruas nos dias de Car- cidades, os mesmos acontecem no centro ou naval, mas isso não foi possível, graças à for- em bairros antigos, ocasionando protestos e ça da cultura popular e à resistência de seus uma grande preocupação com o patrimônio incentivadores. material tombado ou com as obras arquite- As ideias da formação de um “povo bra- tônicas que possam ser prejudicadas pelo sileiro” parecem ter levado nossos pesqui- grande volume de pessoas, sons e vibrações. sadores a tomar as populações negras como O comportamento dos que estão nos parte desse grupo geral — o povo — esque- congestionamentos também é diferente, ao cendo-se das especificidades civilizatórias invés das preocupações para chegar logo contidas em cada um dos grupos formadores aos compromissos ou ao descanso no final da nação brasileira. Portanto, é necessária a do dia, o trânsito pesado terá a recompensa retomada dos estudos sobre como essas par- de uma noite de divertimentos e alegrias, de celas da população moravam, trabalhavam, encontros e desencontros, de luzes e brinca- divertiam-se, exprimiam sua religiosidade; deiras. Porém, as festas momescas não são enfim, como era seu cotidiano. apenas momentos nos quais todos os valo- res são invertidos e tudo é possível graças ao mecanismo de inversão do cotidiano, elas transcendem estas coisas ao desvelar toda a sobre as festas momescas? correlação de forças existentes na socieda- EmO que levantamento nos diz bibliográfico, a bibliografia efetuado so- de. Sendo assim, as manifestações momes- bre o Carnaval, foram encontradas mais de cas podem e devem ser entendidas como cinquenta obras. Algumas com abordagem expressões das condições de vida dos seus antropológica e outras, de forma mais ge- fomentadores. ral, trabalhando o tema somente pelas suas Essas expressões lúdicas também são formas externas, chamadas antigamente de portadoras dos protestos e reivindicações de estudos folclóricos. A maior parte delas li- seus animadores, indicando sua resistência mita-se ao estudo do Carnaval das grandes

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cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, dições presentes nas próprias manifestações Salvador e Recife. Nos últimos anos a produ- festivas, indicando as circularidades entre ção acadêmica sobre as festas momescas foi os vários grupos de uma sociedade; as so- incrementada, porém grandes lacunas ain- brevivências de ritos pagãos atualizados ou da existem para serem exploradas por novos reconfigurados, indicando um tempo longo pesquisadores absorvidos com o tema. presente em algumas expressões momescas. Em análise sobre as matrizes historiográ- Esse último detalhe reinsere esse tipo de ficas dos estudos sobre o Carnaval, Rachel festas no centro da cultura popular tendo no Soihet (1999) percebe a existência de corren- Cômico e no Riso seus aspectos mais mar- tes distintas preocupadas em explicar o fenô- cantes (SOIHET, 1999, p.6). meno Momesco. Segundo a autora, muitos Tudo isso elevando e dando autonomia estudos ligam essas brincadeiras à tradição às análises das festas dedicadas a Momo, cristã. Explicando melhor, para os estudiosos procurando estudá-las de dentro para fora, adeptos desta corrente as festas carnavalescas mostrando toda diversidade de aspectos são a antítese da Quaresma. Então nas festas compondo esse tipo de comemoração, ape- carnavalescas são lembra-das e permitidas sar da diversidade de manifestações exis- transgressões rituais, os delitos pecaminosos tente. são admitidos, assim em analogia ao perío- No Brasil os estudos sobre às festas Car- do também são aceitas transgressões sociais, navalescas não empolgavam os historiado- igualmente comum em outras festas como as res ficando sob o foco do olhar de folcloris- saturnais e lupercais e até mesmo a festas afri- tas, etnógrafos, antropólogos e cientistas canas e asiáticas. sociais. Os primeiros estudos sobre festas O momento posterior no ciclo litúrgi- populares, segundo Albuquerque Júnior co, o tempo da Quaresma, é marcado pela (2011, p. 135), foram realizados por folclo- penitência, o jejum, a abstinência e outros ristas preocupados em encontrar a alma do atos e atitudes preparatórias para o grande povo brasileiro, neles já encontramos algu- momento santificado da Páscoa. Esse tempo ma preocupação com as festas momescas. ainda é a recordação dos 40 dias de prova- Posteriormente as festas de uma forma ção de Jesus Cristo, quando ele vai para o geral e as carnavalescas em particular foram Deserto jejuar e orar. Portanto as festas car- tema de cientistas sociais preocupados tam- navalescas seriam o oposto disso, assim não bém com a identidade nacional. Segundo o estão descartadas de alguma forma as co- autor “[...] enquanto uns veem nos festejos memorações de origens pagãs inclusa neste populares a manifestação da tradição [ou- tempo eminentemente cristão. tros] veem a manifestação da rebelião e da Outro grupo de pesquisadores, embora contestação social” (ALBUQUERQUE JÚ- não se afastem muito dessa noção de Car- NIOR, 2011, p. 140). naval como momento anterior à Quares- Os primeiros livros sobre o tema foram ma, apresenta uma análise mais pautada produzidos por literatos em forma de con- nas dimensões que os estudos da festa em tos. Na década de quarenta formavam um si podem trazer como os enfrentamentos conjunto considerável, propiciando a Wil- de grupos sociais emergindo dentro da fes- son Louzada (1945) organizar uma antolo- ta, simbolizando muitas vezes as lutas de gia, reunindo romances, contos e memórias classes existentes na sociedade; as contra- de foliões, sobre o Carnaval carioca.

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Na década de cinquenta, os jornalistas diversos especialistas nacionais no tema. Os reuniram artigos e memórias sobre o Carna- trabalhos apresentados, todos trazendo os val, divulgados de forma esparsa em perió- aspectos locais e tratando-os sob uma pers- dicos diversos, publicados em livros. pectiva histórica, possibilitaram uma visão Contrariando a tendência desse período, geral das festas de Momo como um fenôme- a jornalista Eneida Moraes ([1958] 1987) no nacional estruturado nas mesmas bases, publicou um livro em 1958 baseado em vas- mas com algumas especificidades locais. ta pesquisa nos arquivos da Biblioteca Na- No livro Carnaval Brasileiro: O Vivi- cional do Rio de Janeiro. Essa obra foi um do e o Mito, Maria Isaura Pereira de Quei- verdadeiro marco para os estudiosos do roz (1992) trouxe um novo posicionamen- tema, pois foi a primeira autora a utilizar do- to frente às festas momescas, nesta obra a cumentos de arquivos de forma sistemática autora critica essa ideia do Carnaval como para tratar do tema. Informações colhidas momento no qual tudo é possível e a ordem naquele momento e publicadas nesta obra normal da sociedade é trocada. Nele, a au- são utilizadas e repetidas até nossos dias por tora demonstrou como as elites transferem quase todos acadêmicos e memorialistas suas visões de ordem e organização social preocupados com o tema. As informações para o espaço carnavalesco. A autora analisa como: as origens do Carnaval, reputando-as as três formas de brincadeiras ocorridas no às saturnais, lupercais e bacanais romanas; tempo carnavalesco: O Entrudo, o Carnaval sobre o entrudo, estabelecendo a forma e Burguês e o Carnaval Popular (QUEIROZ, origens portuguesas dessa brincadeira; e as 1992). informações sobre os primeiros bailes a fan- As festas das pequenas cidades, com suas tasia no Brasil, pululam em várias autores manifestações festivas menos glamourosas, citando Moraes ([1958] 1987). e também os Carnavais fora de época, as Na década de 1970, os sambistas e fo- Micaretas, apenas começaram a ser estuda- mentadores das escolas de samba passa- das mais profundamente agora na primeira ram a publicar em livros suas experiências década do século XXI, com a propagação de e memórias. Esse fenômeno não se restrin- programas de pós-graduação fora dos cen- giu somente à cidade do Rio de Janeiro, mas tros acadêmicos tradicionais, onde essas também ocorreu em outros locais, como as festas ganharam projeção e apreciação. experiências na cidade de São Paulo e na de Portanto, existe muito a ser pesquisado Santos. Nesta mesma década, o Carnaval e desvendado das festas dedicadas a Momo brasileiro volta a ser tema da academia, sen- organizadas nos rincões longínquos fora das do analisado por Roberto da Matta (1973; câmeras da televisão ou das reportagens das 1979) entre outros, mas foi na década de no- grandes revistas de circulação nacional. venta que ele recebeu várias análises de an- Quanto ao Carnaval de Cabo Verde, tive- tropólogos, sociólogos e historiadores, tor- mos acesso apenas a um projeto de pesqui- nando-se um grande tema para essas áreas sa de Maria do Carmo Daun e Lorena, que de estudo. estuda o Carnaval de Mindelo em seu dou- As abordagens do Carnaval, na acade- torado, no Instituto de Ciências Sociais da mia, tiveram como marco a I Jornada de Es- Universidade de Lisboa, mas ainda não pu- pecialistas de Carnaval Brasileiro, realizada blicou nenhum texto sobre a pesquisa, ape- em 1977, na cidade de São Paulo, reunindo nas fez algumas apresentações em seminá-

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rios, de pesquisa exploratória sobre o tema. portugueses. E, como não poderia deixar de Existem também alguns artigos de jornais ser, aqui no Brasil ela se encontra com várias diários sobre as influências do Carnaval ca- outras manifestações, também, trazidas de rioca nos festejos de Cabo Verde. diversas áreas do continente africano e que Na pesquisa bibliográfica realizada, não vão incorporar às brincadeiras tradicionais foi encontrada nenhuma obra comparan- do Entrudo europeu as formas de comemo- do as festas carnavalescas brasileiras com rar e reverenciar africanas, que têm na dan- manifestações momescas de outra parte do ça sua maior expressão (BURKE, 2000, p. mundo, a não ser as que comparam os gran- 220-221). des bailes do final do século XIX aos ocorri- Propalado como uma herança do Entru- dos nas cidades de Nice e Florença. Porém, do português, com suas brincadeiras de bis- existem fortes indícios de ligações entre as nagas de líquidos mal cheirosos, o molha- festas dedicadas a Momo no Brasil com fes- molha, os ovos podres, farinhas, fuligens tas existentes em outras partes do mundo, e outros objetos atirados nos transeuntes, principalmente os lugares com influência ou o Carnaval de Mindelo hoje se transforma colonização ibérica, além dessas destacadas novamente e muitas agências de viagens na bibliografia consagrada sobre o Carnaval vendem pacotes tendo como principal pro- e sua História. paganda o Carnaval à Brasileira de Cabo A excessão é o artigo de Fred Goés (2005) Verde (ILHA, 2007). Ou seja, Assim, assis- analisando o Carnaval de Nova Orleans, que timos uma nova transposição de formas de embora retrate as impressões de sua vivên- comemorar as festividades momescas atra- cia e imersão na festa de Mardi Gras não vessando o Atlântico, desta vez com sentido deixa de fazer algumas comparações com as contrário. Mas será que podemos encontrar festas momescas brasileiras. semelhanças nas formas de brincar dos dois Joãozinho Trinta (s/d, p.17-18) destaca a lados do Atlântico, fora os desfiles das esco- transladação das brincadeiras dos coloniza- las de samba? dores portugueses como as bases para o Car- naval brasileiro: Dois conjuntos de registros Seu primórdio acontece em 1723 quando os ilhéus das Ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde desembarcaram nas costas do Brasil: Conforme sugestão de Peter Burke (2004), de Porto Alegre ao Espírito Santo. Dois me- fotográficosos conjuntos documentais constituídos de ses antes da data do CARNAVAL eles lança- fotografias, bem como todo e qualquer do- vam, aos domingos, uma brincadeira chama- da “O ENTRUDO”. Juntos, negros e mestiços cumento, precisam ser contextualizados saíam numa completa libertinagem fazendo para ajudar na compreensão e análises dos barulho com instrumentos musicais rústicos dados e informações por eles transmitidos. e jogando, uns sobre os outros, farinha de ta- Sendo assim, farei uma breve apresentação pioca, esguichos de água, através de bisnagas dos dois conjuntos fotográficos utilizados e seringas, e limões de cheiro. com as informações disponíveis sobre eles. Portanto para Joãozinho Trinta (s/d), Nas Micaretas da Cidade de Jacobina, as bases das brincadeiras vieram de luga- talvez as mais antigas do interior brasileiro, res específicos próximos da costa africana conforme Doracy Lemos (1995) e Vanicléia em suas ilhas fomentadas por colonizadores Silva Santos (2001), temos uma manifesta-

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ção cultural promovida desde a década de Em todos existe um fundo intencional para 1940, por um grupo de homens simples que destacar o assunto da foto, por vezes é o céu se autodenominam de Os Cãos. com seus vários matizes de cores predomi- Eles pintam seus corpos, geralmente uti- nando o azul, outras uma parede da própria lizam somente uma bermuda, saem às ruas cidade de uma só cor ou uma cortina verme- com seus tridentes e trejeitos, assustando os lha, outras o corpo do brincante é utilizado transeuntes e fazendo uma espécie de auto como fundo para destacar algum acessório que tem como personagens principais o Cão- ou detalhe da pintura corporal. Mor, o Zé Pelintra — ou Pilantra, a depender O conjunto publicado se constitui de 9 do depoente — e a Alma (JACOBINA, 2012), imagens em cores registradas por Agenor e que termina de formas diversas, a depen- Gondim (2009) na Micareta de 2008, tal- der do público, da vontade dos brincantes, vez com o objetivo de preservar essa mani- do tempo e outras nuances. Também podem festação inusitada, que mistura ludicidade, aparecer na teatralização a mulher do Cão- crítica aos poderes terrenos e à religiosidade Mor, um Anjo e muitos outros personagens. tradicional. O conjunto de Agenor Gondim (2009), Os Cãos também trazem vários pontos de um baiano com 30 anos de experiência contato com brincadeiras paralelas ocorren- como fotógrafo, especializado em registrar a do em outras localidades do litoral brasileiro religiosidade baiana, foi publicado em uma como um todo e, em especial, do Recôncavo revista especializada em Moda, ffw-Mag, Baiano, de onde pode ter migrado com seus contando com versão impressa e também fomentadores iniciais, que não são originá- disponível on-line na INTERNET. Os núme- rios de Jacobina. ros são temáticos procurando explorar em O Carnaval dos Mandigas foi retratado todas as secções o mesmo assunto principal, por Dominique Robelin (RODELIN; FI- desde ensaios de Moda, passando pelas ar- GUEIRA, 2007) junto com outras figuras tes plásticas, até em reportagens sobre com- espontâneas presentes nas ruas nos dias de portamento. folia de Mindelo. São 50 instantâneos das O número da revista contendo o ensaio quais em 18 aparecem os Mandigas como de Gondim foi dedicado à Alegria. Além de tema principal e mais três como coadjuvan- Moda a publicação também se importa com tes, tomados em momentos da festa. artes de uma forma geral e brasileira mais Natural da França, Robelin começou especificamente, sempre publicando ensaios sua careira como assistente de fotografia de e reportagens sobre variadas manifestações moda no Canadá, voltou à França onde tra- artísticas nacionais ou explorando a estética balhou como fotógrafo de moda, fez fotojor- de uma forma mais geral. nalismo e publicidade, adotou Cabo Verde, No conjunto publicado sobre os Cãos de em 1999, onde vive até o momento. Seu pri- Jacobina (GONDIM, 2009), todas as pessoas meiro livro de fotografias foi Havana Trán- são mostradas em poses estáticas ou com sito (ROBELIN; MANET, 1997) em parceria movimentos pouco espontâneos, parecendo com o escritor cubano radicado na França fotografias com uma produção bem cuidada, Eduardo Manet. não aparecem espectadores ou o público e No livro em foco Carnaval do Mindelo nada se vislumbra da paisagem jacobinense, (RODELIN; FIGUEIRA, 2007), não temos apenas os personagens principais do ensaio. muitas informações sobre o ano das foto-

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grafias, provavelmente são da primeira dé- po de Mandigas? O encontro com outros cada do século XXI, do próprio ano de 2007 iguais, mas diferentes. Ao invés de tridentes, nos parece bastante viável. A publicação foi os Mandigas usam espadas e outros instru- realizada em parceria com um escritor local, mentos rudimentares. além de ser poeta e músico, Tchalé Figueira No traje que compõe a vestimenta dos também se dedica às artes plásticas. Mandigas vemos uma saia de palhas mui- O conjunto apresenta diversos homens to parecida com as utilizadas em diversas “[...] pintados nos seus corpos mulatos, brincadeiras do Recôncavo Baiano, a exem- brancos, e morenos, com tinta, carvão, e plo das saias utilizadas na representação do sabe deus o que mais [...]” (ROBELIN; FI- Nego Fugido do Acupe de Santo Amaro. GUEIRA, 2007, apresentação). Robelin es- colheu registrar esses homens em branco Considerações bem parciais e preto talvez para explorar melhor a luz e Os conjuntos apresentam semelhanças sombras, ou para impor um tom mais realis- quanto às intenções dos fotógrafos; os ho- ta e ainda para mostrar o que os turistas não mens pintados, as cenas de medo e algumas notam, despreocupados com as manifesta- das poses, além das críticas já destacadas ao ções populares acontecendo por toda a ilha poder temporal e à religiosidade. Nas foto- fora da oficialidade. grafias de Gondim (2009), os personagens Em artigo de A Semana (FORTES, 2008) aparecem fazendo poses, indicando uma lemos uma declaração do próprio fotógrafo produção das cenas, além da utilização de francês: “[...] os turistas só vêem os grupos fundos para destacar o tema principal. Além e desfiles oficiais, com os seus trajes finos disso, não existem distrações ou formas de e cheios de cor. Eles não conhecem a face- desviar o olhar do tema principal. Porém a ta do Carnaval de São Vicente porque esta produção deixa transparecer uma luminosi- nasce e se desenvolve na fralda da cidade dade de ambientes abertos, ou seja, apesar do Mindelo”. da produção os Cãos foram fotografados no As 21 imagens do conjunto retratam des- seu ambiente de brincante a rua. de o momento da preparação, com os ho- No conjunto de Robelin, os personagens mens se pintando e vestindo, algumas oca- aparecem de forma mais espontânea, sem- siões da aparição na rua, alguns adereços pre em ações concretas como caminhando, destacados e também registra os especta- preparando-se ou correndo, mas sempre em dores. As poses e os homens retratados são ambientes abertos. O conjunto de Gondim muito parecidos com os de Jacobina. não apresenta os espectadores, que são cita- Existem instantâneos retratando, em se- dos apenas no texto que acompanha as foto- gundo plano, meninos espectadores acua- grafias, mas não aparecem nas imagens. No dos, querendo ver, mas ao mesmo tempo se conjunto de Robelin, eles fazem parte dos escondendo, parecendo bem assustados pe- enquadramentos ou são até mesmo foto- los Mandigas. Mulheres que acompanham grafados com certo destaque, como no caso de longe, no conjunto não existe nenhuma de um instantâneo onde aparecem meninos mulher caracterizada de Mandiga, e um ra- com essa contradição de escondidos, mas paz pronto para a folia com sua fantasia de querendo ver os brincantes. executivo atrás de um muro, apenas meio No conjunto dos Mandigas as mulheres corpo revelado. Será que se protege do gru- só aparecem como espectadoras ou acompa-

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30 Raphael Rodrigues Vieira Filho nhantes, no conjunto de Cãos aparece uma samba, que estão moldando novas formas jovem caracterizada, fazendo pose junto com de brincadeiras momescas em todo Cabo outro rapaz, portanto com indícios de fazer Verde. parte permanente do grupo de brincantes, Outros elementos também se aproxi- ela pode ser uma das personagens do enredo mam e se distanciam e poderão ser explo- da encenação. Porém na fotografia da repre- rados com mais detalhes e analisados com a sentação do auto ela não está presente. Como continuidade da pesquisa. Por hora, é pos- já escrito acima, a teatralização depende de sível dizer que as manifestações são muito muitos fatores e seu enredo tem os temas próximas e indicam pelo menos uma mesma principais sempre abordados, mas pode so- raiz comum não sendo possível dizer de qual frer variações de cenas e personagens. lado do Atlântico ela está. O medo dos personagens principais, Convido os leitores a fazerem o exercício apresentado explicitamente nos expecta- da leitura das imagens acessíveis em sítios dores no conjunto de Robelin (RODELIN; da INTERNET mostrando fotografias dos FIGUEIRA, 2007), aparece de forma velada Mandigas e as várias imagens dos Cãos dis- no conjunto produzido por Gondim (2009), poníveis na grande rede, as Referências tra- além disso, é citado no texto que acompanha zem alguns desses sítios. o conjunto de fotografias, transparecendo a escolha de imagens condizentes com o tema Referências principal da publicação Alegria. Outra se- APENAS Bahia, Apenas Fotografia. Blogspot de melhança é a utilização dos espaços abertos Agenor Gondim. Disponível em: . Acesso em: 22 juntos a luz natural é explorada de forma mar. 2010. bastante intensa. BUENO, Marielys Siqueira. Festa: o dom do es- Outro aspecto semelhante me parece paço. Revista Hospitalidade, São Paulo, a. 3, n. a marginalidade imposta aos dois grupos. 2, p. 91-103, 2. sem. 2006. Robelin fala explicitamente dessa margina- BURKE, Peter. A tradução da cultura: o Carna- lidade de seus personagens principais foto- val em dois ou três mundos. In: BURKE, Peter. grafados em todo o livro, enquanto que essa Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2000. sensação é passada nas fotos dos Cãos de Ja- cobina pela falta de público ou expectadores BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e presentes no conjunto. Porém outras impor- imagem. Bauru: EDUSC, 2004. tantes semelhanças são o orgulho e alegria CADERNOS do CERU. Centro de Estudos Ru- com que esses dois grupos brincam as festas rais e Urbanos da USP, São Paulo: USP, n. 11, dedicadas a Mono. Alegria contagiante pre- set. 1978. sente nas fotos, mesmo com a contradição CARNAVAL 2008. Mindelo Info. Disponível do medo também presente. em: . Acesso em: 20 cussão muito grande na Ilha, representado mar. 2010. pela citação do filme Orfeu Negro, no texto CARNAVAL de Mindelo. Nha Terra. Disponí- da apresentação das fotografias de Minde- vel em: . Aces- grande influência dos desfiles das escolas de so em: 22 mar. 2010.

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Fabric of enslavement: Panos de Terra

Clifford Pereira*

Resumo O artigo trata o tema do transporte têxtil como uma parte do comércio de escravos dentro do Império Colonial Português, ou seja, Africano, Asiático, territórios americanos e na própria Europa. Devido à sua diferente origem e tipo, comércio têxtil era constituído uma espécie de mercado globalizado dentro do mundo lusófono. Em contaste a estudos anteriores, este trabalho se concentra em tecnologias têxteis africanas transferidos para outras partes do Império Português e enfatiza a participação de tecnologias de fricanos dentro de diferentes culturas do mundo. Tal perspectiva nos ajuda a ver a África e não apenas como um continente de exportação de escravos, isto é, força de trabalho para outras partes do mundo. O artigo visa corrigir visão tradicional e amplamente difundida segundo a qual a África tinha descartado há tecnologias significativas antes da chegada dos europeus. Tal ponto de vista é prejudicial especialmente para diáspora Africana no mundo Atlântico. O artigo observa a importância das tecnologias têxteis africanas dentro do processo de colonização européia e explora o legado do comércio têxtil espe- cialmente em lusitana Atlântico (Cabo Verde, Brasil, Nigéria). O documento sublinha importância de Panos de Terra produzidos em Cabo Verde. Palavras Chave: Africa. Diáspora africana. Comércio de escravos. Tecno- logia.

Abstract There were four sources of the textiles used in slave trading within parts of Africa under Portuguese influence; Africa itself, Europe, Asia and the Ameri- cas. The sources and types of textile varied over time and place and therefore represent aspects of globalisation in the Portuguese Empire. Past studies have tended to look primarily at the trade of European commodities within the trans-. This has ignored the presence of African tech- nology transfer to Macaronesia and the Americas and thereby overstressed the notion that Africans were transported simply as labour with no regard to their indigenous culture or technology. The result of this historical misinter-

* Royal Geographical Society (with IBG), Londres, Reino Unido/ Museu da Antropologia da Universidade de British Columbia, em Van-couver, Canada. [email protected]

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pretation is a widely held perspective in the Americas and Europe that Africa had no technology of worth prior to the arrival of Europeans. This notion is detrimental to all parties, and in particular to the of the Atlantic World. This paper seeks to identify the role of Africans technology and trade within the process of European colonisation and to explore the legacy of the textile trade and its links to by investigating costume and the textile trade in the Lusitanian-influenced Atlantic (primarily Cape Verde, and Nigeria). The study focus is on the Panos de Terra of the Cape Verde Islands. Keywords: African. African diaspora. Slave trading. Technology transfer. Textiles. Introduction This paper is the product of two years of re- tuguese, as well as in Spanish, French and search within archives that were predom- Dutch. This research serves as an audit of inantly in English and therefore represent some English language sources on the nar- sources that are new to much of the Por- rative of the Panos de Terra. tuguese-speaking world. The main centres of research were the British Museum, the Research outcome National Maritime Museum and the Royal The first Portuguese overseas expansions Geographical Society (with IBG) in London, were into Morocco on the heels of the re- England. However, some research was also treating Moors of Andalucia. This was fol- conducted at the Museu Nacional de Arte lowed by their first voyages of exploration Antiga in Lisbon, Portugal and the Museu seeking “Christians, spices and Gold” with Etnogrâphico da Madeira at Ribeira Brava, landfalls in the uninhabited islands of the Madeira. The fieldwork was conducted pri- Atlantic starting with Madeira (c.1419), the marily at Assomado and Praia on the island Azores (c1427), the Cape Verdes (1456-60), of Santiago and on Fogo Island in the Cape and onto St. Helena and Ascension (1501- VerdeArchipelago with the support of the 1502) and Tristao da Cunha (c.1506). By the Ministry of Culture and the Arquivo Históri- time the Portuguese had discovered the is- co Nacional de Cabo Verdes. Some research lands of the South Atlantic they were already was also conducted in Salvador de Bahia, familiar with the inhabited lands of Iceland, Brazil, and at Lamu Island in Kenya. Mr Neil Greenland, Labrador and Newfoundland, Williams whose career is in the global textile Brazil and in the 1520’s they attempted set- and fashion industry accompanied Mr. Clif- tlement of Cape Breton Island1. The Portu- ford Pereira on the fieldwork, and provided guese were the first Europeans to discover valuable input from a technical perspective. the Guinea coast of Africa2. This was marked This has resulted in a historical study that by the rounding of Cape Bojador by Gil Ean- is inclusive of the components of the textile es in 1434. Bartholemeu Dias (1488) round- industry; fibres, dyes, weaving, sewing, pat- terns and labour requirements. 1 P. 9. The Portuguese Empire. 1415-1808. By A. J.R. Russell-Wood. 1998. Baltimore. USA. It is of course possible that much more 2 P. 40. Senegambia and the Atlantic Slave Trade. documentation exists on this topic in Por- By Boubacar Barry. 1998. Cambridge. UK.

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ed of the Cape of Good Hope and Vasco da raffia, bark cloth and cotton, sometimes us- Gama lead the sea route to India in 1489 ing small amounts of waste silk fibres from thereby bringing Asia closer to Europe. Asia that reached Northwest Africa and even The Portuguese found neither spices, gold crossed the Sahara by way of the Arab trade or Christians on the ten islands of the Cape routes. This silk was originally in the form of Verde Archipelago, each of which has a dis- waste silk usually dyed magenta and known tinctive character moulded by geology and in Northern Nigeria as Alaharini7. West Af- geography. These islands had one advantage ricans were unable to produce this magen- they were at the centre of sixteenth century ta colour, though the local Kola nut allowed Portuguese trade routes from Europe to Afri- for various shades of blue and brown. Hence ca, India and Brazil. The Cape Verde islands this soft and brightly coloured material was were uninhabited at the time of the Portu- a prestige trading item. In Guinea, the area guese discoveries, and thoughslightly wetter between Senegal and Liberia, the spinners then today they were still arid. They con- (mostly female) and the weavers (mostly tained adyeyielding lichen called Orchilor male) seem to have been enslaved Africans. Urzela in Portuguese (Roccella tinctoria) Warfare on the African mainland associated that was collected in the misty mountainous with the Kaabu (or Gabu) kingdom based in areas, processed and exported to produce a today’s North-eastern Guinea Bissau, cre- purple-blue dye3. The Portuguese became ated thousands of enslaved war captives, characterised in the sixteenth century for especially from the Western Fula peoples, their trading activities, but they were also also known as Fulani and Fulbe. Military ac- pioneers in the experimentation of plant ad- tions led by the Moroccans in the Western aptation, using the Atlantic Islands as field Sahil created southwards migrations of the stations. They had already introduced sug- Fula people in the sixteenth centurywhich arcane to Madeira and the Azores by the end led them directly into the path of the Kaa- of the fifteenth century and were importing bu kingdom.By the early sixteenth century, enslaved Africans from their newly “discov- enslaved African weavers brought into the ered”Guinea coast as labour for its cultiva- Cape Verde Islands by the Portu-guese were tion4, and the proximity of the Cape Verdes producing high quality cotton textiles that to the adjacent coast of Africa provided a were marketed on the African coast8. The base from which to control the slave tradeto spinners and weavers who also planted, har- the Americas5. The earliest and most suc- vested, cleaned and dyed the cotton served cessful cash crop in the Cape Verde islands as domestic slaves in the large cotton planta- was cotton (Gossypium herbaceum)6, which tions and small slave-trading households of was initially introduced from West Africa Santiago Island. The Wolof (or Jolof) women and largely sold there. Africa of course had were particularly prized because, in addition an ancient textile tradition based on leather, to being skilled spinners, they were consid- 9 3 P. 160. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. ered very beautiful . The weavers used sim- 1972. Chicago. USA. 4 P. 40. Senegambia and the Atlantic Slave Trade. 7 P. 8. Silk in Africa. By Chris Spring & Julie Hud- By Boubacar Barry. 1998. Cambridge. UK. son. 2002. London. UK. 5 P. 40. Senegambia and the Atlantic Slave Trade. By 8 P. 21. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. Boubacar Barry. 1998. Cambridge. UK. 1972. Chicago. USA. 6 P. 172. The Portuguese Empire. 1415-1808. By 9 P. 219. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. A.J.R. Russell-Wood. 1998. Baltimore. USA 1972. Chicago. USA.

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36 Clifford Pereira ple and fragile looms of Africa-norigin that tres). Six of these strips were sewn together, produced very narrow bands of cloth, usual- to make a piece of cloth about one yard (or ly 5 or 6 inches (12-15 centimetres) wide and 1 metres) wide and no more than two yards between 5 and 6 feet long (just under 2 me- (or 2 metres) long.

Courtesy of Mrs. Fatima Almeida, Atelier de Design Corte e Costura. Praia, Santiago. Cape Verde. — Pereira-Williams Photographic Collection

There is no evidence that Orchil was ever early sixteenth century. Apparently there used to dye cotton for panos. If it was, no was no knowledge of cotton dyeing in the re- fabric of that period has survived. Howev- gion and therefore imported coloured cloth, er the cotton was dyed various shades of especially in blue was very rare and highly blue with extract from the nut of the Kola prized10. When in 1502 Cabral (who discov- Tree(Cola acuminata) that was produced ered Brazil) decided to set up a factory at in West Africa and traded through the Cape Sofala in Southeast Africa, the captain was Verde Islands along with enslaved Africans. supplied with the means to purchase Indian After the Portuguese reached India they textiles as this was the only saleable ware at started to import indigo (Indigofera tincto- Sofala11. Barbosa mentions that the coloured ria) directly from India to Europe. Accord- cloth woven with Indian and local thread at ing to Duarte Barbosa writing at the begin- Sofala was traded for gold12. In or shortly ning of the sixteenth century, “the Moors after the late sixteenth century the Portu- here [Sofala] now produce much fine cotton guese introduced indigo (indigofera tincto- in this country, and they know how to weave ria) to the Kerimba Islands from India and it into white stuff, because they don’t know thereafter the islanders started dyeing their how to dye it, or because they have not got 10 P. 6. Description of the East Indies and Coun- the right colours; and they take the blue or tries on the seaboard of the Indian Ocean in coloured stuffs of Cambay [Gujarat] and un- 1514. By Duarte Barbosa (Translated by Hon. ravel them, and again weave the threads with Henry Stanley). 1865. London. 11 P. 40. The Portuguese Period in East Africa. By their white thread, and in this manner they Justice Strandes. 1971. Nairobi. Kenya. make coloured stuffs”. There was already an 12 P. 6. Description of the East Indies and Coun- tries on the seaboard of the Indain Ocean in indigenous textile industry on the East coast 1514. By Duarte Barbosa (Translated by Hon. of Africa when the Portuguese arrived in the Henry Stanley). 1865. London.

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own cotton with this blue-black dye. The designs were incorporated sometimes with resultant cloth was called Msumbiji (“Mo- imported silk or wool16. Probably boosted by zambique” in Kiswahili). By the nineteenth the introduction of Sea Island cotton (Gos- century the Mijikenda people of Kenya had sypium barbadense) from Brazil, the pro- developed a preference for the blue-black duction of high quality raw cotton became a Msumbiji cloth. Blue does not occur on ani- central part of Cape Verdean economy.Cot- mal skins and rarely occurs on birds, insects ton is very labour intensive and this would and plants. Blue cloth was prized and en- have required an increase in the local labour dowed with quasimagical properties13. This force. In 1582 the population of Fogo and prized fabric had assumed an important so- Santiago included 1,608 whites, who were cial function and was presented to the moth- vastly outnumbered by 13,700 enslaved Af- 17 er of a bride who used it herself or present- ricans and 400 free Africans .Due in part ed it to her daughter for use as a baby sling. to the demand for cotton these islands were This practice was known by the Waswahili now numerically dominated by Africans as mbeleko or uweleko, by the Digo as ma- of differing cultures. The creation of a free kaja, by the Pokomo as kamahumbo and by mixedrace Afro-Portuguese community on the Zaramo of Tanzania as mkaja14. From the islands was inevitable, and so the Creole the Indian Ocean thePortuguese also intro- culture was born. duced indigo to the Cape Verde Islands and The Portuguese maritime trading ven- by the late sixteenth century Cape Verdean tures were restricted to the coast of West slaves were cultivating indigo and produc- Africa where it fed into a larger trading net- work of free Afro-Portuguese origin from the ing their own good blue dyes. Each group of Cape Verdesknown as Lançados or Tango- Cape Verdean spinners and weavers made maos18. These were the middlemen of the re- their own dye15. It is possible that the in-tro- gion between Senegal and Liberia, trading in duction of the indigo from Mozambique to local textiles, kola nuts, ivory and slaves. If Cape Verde also involved the transfer of en- a European slave trader went to the Guinea slaved East Africans who had learnt how to coast, he would find himself involved with cultivate and process indigo. Cape Verdean intermediaries, and obliged Separate strips of cloth went into the to buy Cape Verdean panos (the barafulas, making of one pano (or piece), providing the oxos, panos pretos, panos de obra, panos opportunity for many ingenious variations de agulha, panos de bicho, etc). Without the worked out within the framework imposed Afro-Portuguese middleman, and without by the six-banded arrangement. Alternat- the elegant Cape Verdean panosthat dressed ing bands of indigo blue and white bands the upperclass people of Guinea, the coastal produced the socalled striped cloth (pano trade would have been quite different19.The listrado) mentioned in many records. The Portuguese and Lançados also relied on an- barafulas were mostly of this type. Eventu- ally Moorish and Portuguese patterns and 16 P. 219. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. 1972. Chicago. USA. 17 P. 40. Senegambia and the Atlantic Slave Trade. 13 P. 248. Swahili Origins. By James de Vere Allen. By Boubacar Barry. 1998. Cambridge. UK. 1993. London. UK. 18 P. 40-41. Senegambia and the Atlantic Slave 14 P. 85. Swahili Origins. By James de Vere Allen. Trade. By Boubacar Barry. 1998. Cambridge. 1993. London. UK. UK. 15 P. 220. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. 19 P. 212. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. 1972. Chicago. USA. 1972. Chicago. USA.

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38 Clifford Pereira other trading network, that of the Jews who century Flemish and French merchants im- were already established in the Moroccan ported large quantities of textiles into Ma- city of Saffi and this was consolidated when deira, which were traded to West Africa in the Portuguese took the city in 1508. When exchange for enslaved Africans. Then in the the Inquisition was established in Portugal mid seventeenth century the Anglo-Portu- in 1536, the fleeing Jews of Portugal and the guese war disrupted the trade. But by the Maranos sought refuge in Saffi and Arzilla, end of the century most textiles came from where they entered the Portuguese-African England and on English vessels not just in trade initially with freedom from the inquisi- Madeira, but also in the Azores and the de- tion. Their principal trade was in Alambeis. mand for these textiles contributed to the de- Jewish traders who worked alongside the velopment of English towns and ports such Lançados were known as Ganagogas. The as Topsham in Exeter, and Colchester. These Jews eventually married local women and piece textiles known by such names as Dev- became part of the genetic mix that is today on Dozens, Colchester bays (baize), Barn- the Cape Verdean. The presence of the Cape staple bays, perpetuanas, says, kerseys, Verdean Lançados and Ganagogasas trad- friezes and frizados were transhipped from ers (mostly in slaves) was so common that, Madeira and the Azores for Brazil22. Euro- already in the sixteenth century the coast pean red fabrics were particularly prized at came to be known as the “rivers of Cape waistbands and head coverings by Africans Verde”, here referring to the archipelago and on both sides of the Atlantic. This was often a not the promontory in Senegal20. However result of the exposure of Africans to the ban- proficient the Guinea Africans were at weav- danas worn by the crew (including Africans) ing they did not seem to be interested in tai- of the slaving vessels. These bandanas were loring, instead they were content with sewing usually produced in Bengal, India. the narrow strips of cloth together producing Africans often used the most attractive large flat pieces of cloth that were wrapped cloths they could find for funeral shrouds. and draped around the body. The importance Expensive textiles also figured prominently of the panos in West Africa is exemplified in in marriage contract exchanges. As far away the John Sudbury map of Africa produced in as the Gold Coast (Ghana) and Niger delta England in 1626 which features costumed (Nigeria) the Cape Verdean panos helped to Africans from various coastal regions. The dress the elite. It is in this context that we must “Senagensian” inhabitant is depicted wear- view two images that emerged within this re- ing panos21. Though the illustration suggests search. During the brief Dutch occupation of that the artist had not actually seen the fabric Northeast Brazil (1630-1654) the Dutch artist being worn, but was given some description Albert Eckout was commissioned by the gov- of its use. Nevertheless this remains one of ernor of Dutch Brazil, Prince Johan Maurits the earliest images of the panos. van Nassau, to produce a series of paintings The Cape Verdean panos were not the of the inhabitants of the land. Eckout even- only textiles traded in West Africa. During tually produced twenty-four paintings23.Two the first three decades of the seventeenth of these images are of Africans, one of a man 20 P 54. The Portuguese Empire. 1415-1808. By A. 22 P. 72-73 Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. J.R. Russell-Wood. 1998. London. UK. 1972. Chicago. USA. 21 mr. Africa. G. 84. Royal Geographical Society 23 P. 165. Portugal and the World in the 16th and Collection. 1626. London. UK. 17th Centuries. 2009. Lisbon. Portugal.

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and one of a women and child. The paintings and are in the National Museum of Denmark. and some of the objects attached to them These images are rare visual references to the were bequest to Frederick III of Denmark panos in Brazil.

Mulher Africana. (EN.38.A.8) and Homen Africano (EN.38.A.7). — Courtesy of the National Museum of Denmark

The painting of the African woman shows During the mid-seventeenth century her wearing a short panos skirt, which is Cape Verdean panos assumed a dominant fastened at the waist with red sash. She is position in the Guinea trade, ousting Euro- featured wearing a hat similar to those of pean, Indian and other African rivals. Afri- the Khoisan of South Africa (itself a Dutch can Chieftains preferred the Cape Verdean colony from 1652 to 1806) or like that of cloth for its patterns and insisted that a cer- the Bakongo people of presentday northern tain number of quality Cape Verdean cloths Angola. The woman also wears coral beads, must be part of the “mix” of commodities which were and still are a feature of elite in in every large bartering transaction. In the West Africa. The man wears a panos strip as 1680’s one standard bar of European iron a loin cloth, with an Ashanti Afena sword in was exchanged for two Cape Verdean stan- a rayskin guard and a pink oyster shell (Os- dard barafula cloths, and 30 iron bars were traea rosacea) from the Canary Islands24. traded for one African slave25. Two similar Afena swords are in the collec- By the eighteenth century, competi- tion of the British Museum. tion from the Dutch, British, Danes and

24 P. 194-195. Portugal and the World in the 16th 25 P. 218. Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. and 17th Centuries. 2009. Lisbon. Portugal. 1972. Chicago. USA.

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French (especially from the textile traders of The latter spotted and figured is a descrip- Rouen) who began to import large amounts tion of the Panos de Oxos and the Panos de of European and Indian textiles, had forced Bicho. While the dark blue fine quality cloth the Portuguese and the Lançado families to is the Panos Pretos. The word Oxos is from limit their trading activities to the region of the Mandingo language,nhantcho meaning present day Guinea and Guinea Bissau. One “noble”, these fine well-worked decorative of the major companies involved in the eigh- cloths for the wealthy and imitated prized teenth century trade of panos to Brazil was animal skins such as those of cheetahs and the General Company of Para-Maranhão leopards that are recognised as signs of no- that held a monopoly on the Amazon and bility and power, in much the same way as Maranhão slave trade from Cape Verde and the use of ermine in England. The same En- Guinea. The company also held exclusive glish also mention that on Fogo Island land rights on the Orchil extraction in Cape Verde, is rented to the “blacks and slaves” who “pay the Azores and Madeira. The obsession with in cloth”30. With reference to the exports of clothing the native created a de- this cloth, and that on São Nicolau “the na- mand for clothes and probably the demise of tives make the best cloths and cotton quilts native Brazilians along the tributaries of the of all the islands, these are too good for the Amazon26. It must be noted that there was a Guinea trade — but fit for that of Brazil”31. rise in smallpox and measles in the Amazon The Methuen Treaty of 1703 between in the mid eighteenth century, at the same Portugal and England was to mark the time that the enslaved African population downfall of the Panos trade. The terms of was introduced27. At this time the island of this treaty provided preferential duty to the Fogo was the biggest exporter of cloth fol- British market for Portuguese and Madeira lowed by Santiago and Brava. Eighteenth wines and the lifting of a protective embargo century records by English slave traders on British textiles including those produced in West Africa confirm the wearing of the in the East India Company areas of rule in panos as a loin cloth with a “little slip of cot- India. This treaty effectively sealed off the ton flattened to a string before, which passes manufacture of textiles in Portuguese In- between the thighs, is tied to the same string dia, Brazil and the Cape Verdes32. Fabrics behind” and the wearing of larger pieces; produced in India and exported by the East “Over all they wear a cotton cloth in the man- India Company including the plaid know in ner of a mantel28; those of a married women Nigeria as injiri produced in Chirala (Andhra are generally blue, and the darker the colour Pradesh) and then at Chennai (formally Ma- the richer it is reckoned; but the maidens dras in Tamil Nadu) which gained populari- and gay young wives or widows wear blue ty in the eighteenth century with the growth and white, some spotted, some figured”29. of British influence in the region. This highly valued fabric now has an important appli- 26 P. 14. Amazon Frontier: The defeat of the Bra- zilian Indians. By John Fleming. 1987. London. By Capt. George Roberts. 1726. UK. UK. 30 P. 147-148. The Voyage to the Cape de Verd is- 27 P. 43. Amazon Frontier: The defeat of the Bra- lands. By Capt. George Roberts. 1726. UK. zilian Indians. By John Fleming. 1987. London. 31 P. 147-148. The Voyage to the Cape de Verd is- UK. lands. By Capt. George Roberts. 1726. UK. 28 P. 135. The Voyage to the Cape de Verd islands. 32 P. 18-19. The Goa-Bahia Intra-Colonial Rela- By Capt. George Roberts. 1726. UK. tions. By P. Sequeira Antony. 2004. Kerala, In- 29 P. 145. The Voyage to the Cape de Verd islands. dia.

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cation in the life cycle particularly at births like many other aspects of Cape Verdean and funerals33. culture had been unsupported and even Within Brazil, cotton was a labour in- suppressed by the Portuguese, especially tensive crop and was cultivated in the north during the early and mid-twentieth centu- initially and subsequently in every province ry. However since independence in 1975 from Para to Rio de Janeiro. It only became the Panos de Terra hasbecome the focus of important as an export crop in the 1770’s nationalism. The panos are worn often as partly as a result of the American Revolu- scarves and used as an improvised drum by tion or War of Independence34. Soon 60% of local dance groups such as those perform- Brazilian raw cotton was exported to Britain, ing the Batuque, and the patterns have been who then exported the finished cloth back replicated on the front of souvenir shops, in to Brazil to clothe the thousands of enslaved stone on paving and even feature on the 200 Africans working in the fields and mines of Escudo bank notes as a reminder of their Brazil35. Manufacture of fine fabrics was pro- past monetary function. Today the Panos hibited in Brazil by the Alvaráor Charter of de Terra are produced around Assomada on 5 January 1785. Production of coarse cloth Santiago Island by around six young indi- for the use of slaves alone was permitted. viduals many of whom learnt the techniques In 1802 the prohibition laws were repeat- of weaving from one young man. However ed. This stimulated the export of Portuguese there is a dependence on imported dyed yarn fabrics and Indian calicos to Brazil and en- which has a high tax levy. There is a low do- couraged large scale contraband trading by mestic demand for the Panos de Terra, and the European powers36. As a consequence the while it is worn by many women in the Asso- panos and its memory virtually disappeared mada wednesday market, nobody wears it at in Bahia where it was replaced by the famil- the busy St. Felipe market on neighbouring iar long white cotton skirt and blouse of the Fogo Island. So the fabric has yet to become Bahiana.Cape Verdeans continued to trade a popular national icon throughout the ar- panoswith the rivers of Upper Guinea (Casa- chipelago. The efforts of people like Fatima mance, Cacheu, Buba and Geba) as they had Almeida to bring the textile to the interna- three hundred years earlier, and had trading tional stage at fashion shows in Italy, Spain posts at the highest tidal points of such rivers and Portugal are yet to pay off, and the into the early nineteenth century37. fabric remains largely unknown in the En- glish speaking world, despite the large Cape Conclusion Verdean community in the USA, especially in Boston. In fact this research produced The Panos de Terra(i.e. cloth of the land), one of the first non academic coffee table 33 P. 153-168. Textiles from India — The Global publications on the Panos de Terra in En- Trade. Edited by Rosemary Crill. 2006. London. glish that was marketed in 2013 in Britain, UK. 38 34 P. 172. The Portuguese Empire. 1415-1808. By Canada, the USA and Japan . So things are A.J.R. Russell-Wood. 1998. Baltimore. USA. changing. 35 P.19. The Goa-Bahia Intra-Colonial Relations. By P. Sequeira Antony. 2004. Kerala, India. 36 P.65. The Goa-Bahia Intra-Colonial Relations. 38 P 56-60. Panos de Terra: Slave Fabric made By P. Sequeira Antony. 2004. Kerala, India. in Cape Verde. By Clifford Pereira and Neil 37 P. 54. The Portuguese Empire. 1415-1808. By A. Williams. In Selvedge. Issue 53 July/August J.R. Russell-Wood. 1998. London. 2013. London. UK.

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Assomada Market. Cape Verde. — Pereira-Wil- clusion of cartography and art history. The liams Photographic Collection status held by of the panos within Africa in the seventeenth century is demonstrated within the Eckout paintings, where the Af- rican-Brazilians are dressed in composite high status African fashion, that demon- strate the indigenous African trading links with the Mediterranean, Macaronesia (ie. the Canary Islands and Cape Verdes), Asia and Europe. At the same time the higher level of status is demonstrated by the lack of cowrie shells which formed a part of the monetary exchange system as well as an im- portant fashion item for the African middle classes in Africa and for African-Brazilians. Africans of that time clearly had notions of the “far away” or “exotic” which they wove into their notions of fashion, much as the fashion for Indian textiles among Europe- ans at the same period. The Eckout paint- ings suggest that the notion of fashion had crossed the Atlantic to Dutch-controlled Brazil (or Nieuw Holland). In Africa itself the panos led to the “fash- Indian “Madras” cottons were also taken ionability” of black and white cheque cot- to the Caribbean by the British and became tons. Today the people of the Niger delta popular among the enslaved Africans as ex- produce a special design by subtraction of pensive trimmings and head coverings in threads, which they call pelete bite mean- costumes that were otherwise white cotton, ing “cutthread cloth”. This fabric is usually perhaps as a memory of the prestige panos worn as a wrap-around and is often black of West Africa.This was true of the British and white, and bears a remarkable similar- and the French colonies. It is also interesting ity in pattern and usage to the panos. The that printed plaid cloth, similar to the panos memory of the panos survives in the printed is used in religious ceremonies of African or- black and white fabrics used in funeral rites igin in the Caribbean, such as the blessing in Southeast Nigeria. ceremony of the Revivalist in Jamaica39. Textiles, oil paintings and paper rarely The importance of the Panos de Terra as survive in the tropics and the identification representing an icon of identity in the Cape of the panos within the unlikely collections Verdes often hides its importance as repre- of the Royal Geographical Society in Lon- 39 P. 88. Slavery and the (symbolic) Politics of don and the National Museum of Denmark Memory in Jamaica. By Wayne Modest. In Re- in Copenhagen represent a shared world presenting Enslavement and Abolition in Mu- seums: Ambiguous Engagements. Edited by history and the importance of an interdis- Laurajane Smith, Geoffrey Cubitt, Ross Wilson ciplinary approach, in this case with the in- and Kalliopi Fouseki. 2011. Abingdon. UK.

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senting an African textile technology that Boubacar Barry. 1998. Cambridge. UK. was transferred to the islands as part of a Silk in Africa. By Chris Spring & Julie Hudson. global trade that marks one of the darkest 2002. London. UK. sides of the human story. At the same time Swahili Origins. By James de Vere Allen. 1993. the panos represents the ability of enslaved London. UK. Africans to maintain their distinct memories Textiles from India — The Global Trade. Edited and even notions of fashion and hierarchy, by Rosemary Crill. 2006. London. UK. first from the African mainland to the Cape Verde Islands, and then across the Atlantic The Goa-Bahia Intra-Colonial Relations. By P. Sequeira Antony. 2004. Kerala, India. to Brazil and the Caribbean. The existence of similar, if not parallel notions of wealth The Portuguese Empire. 1415-1808. By A.J.R. and prestige associated with the panos, in Russell-Wood. 1998. London. UK. their modern form of fashionable and ritu- The Portuguese Period in East Africa. By Jus- alistic printed cottons, represent a difficult tice Strandes. 1971. Nairobi. Kenya. and sensitive, yet factual connection be- Chapters or papers in published works: tween West Africans and their cousins in the Les arts plastiques et I’artisanat : le filage et la Americas by way of the Atlantic slave trade. teinture au Cap-Vert. By Manuel Figueira. In The dominant Kriolu (Creole) culture of the Découverte des Îles du Cap-Vert. Edited by Da- Cape Verdes evolved as the result of region- nial Benoni. 1998. Praia, Santiago, Cape Verde. al African and global exchange and this is Panos de Terra: Slave Fabric made in Cape demonstrated in the story of the Panos de Verde. By Clifford Pereira and Neil Williams. In Terra (Cloth of the land). Selvedge. Issue 53 July/August 2013. London. UK. Referências Slavery and the (symbolic) Politics of Memory in Jamaica. By Wayne Modest. In Represent- Original Manuscripts: ing Enslavement and Abolition in Museums: The Voyage to the Cape de Verd islands. By Ambiguous Engagements. Edited by Laurajane Capt. George Roberts. 1726. UK. Smith, Geoffrey Cubitt, Ross Wilson and Kallio- pi Fouseki. 2011. Abingdon. UK. Original Maps: mr. Africa. G.84. Royal Geographical Society Collection. 1626. London. UK. Anexos Books: Glossary of textile and dress terms Amazon Frontier: The defeat of the Brazilian Alambeis. From the Arabic hambel, for coloured Indians. By John Fleming. 1987. London. UK. stripped blankets from Safa and Arzila, but wo- ven in Safi, Marrakesh and Oran, all presently in Atlantic Islands. By T. Bentley Duncan. 1972. Morocco. Chicago. USA. Algodao. Portuguese for “cotton”. Description of the East Indies and Countries on the seaboard of the Indian Ocean in 1514. Alharini. A Hausa-Fulani word from the Ara- By Duarte Barbosa (Translated by Hon. Henry bic harir (silk) for dyed waste silk yarn traded Stanley). 1865. London. across the Sahara from Tunisia. Portugal and the World in the 16th and 17th Bandana. Hindi for a large yellow and white Centuries. 2009. Lisbon. Portugal. handkerchief or head-scarf Senegambia and the Atlantic Slave Trade. By Barafulas. The standard six-banded cloths, of-

44 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 34-45, jan./jun. 2015 Clifford Pereira ten with alternating bands of blue and white Says. These were English fine textured woollen strips used as a unit of account. clothes (similar to serge). Bays (Baize). These were light fine English wool- lens used for making habits for religious orders. Acknowledgements Frieze. A kind of coarse English woollen cloth Institutions: with a nap, usually only on one side. Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verdes, Frizado. A type of frieze Praia, Santiago, Cape Verde. Injiri. Indian plaid cloth imported into the Niger Centro Artisans, Assomada, Santiago, Cape Delta of Nigeria. Verde. Kerseys. Narrow English cloths woven from Museu Nacional de Arte Antiga. Lisbon. Portu- long wool and usually ribbed. gal. Msumbiji. Kiswahili for “Mozambique” and re- Museu Etnográfico da Madeira, Ribeira Brava, ferring to Indigo dyed blue cloth from the Ker- Madeira. imba Islands. Museu Etnográfico, Praia, Santiago, Cape Verde. Panos de Agulha. Cape Verdean term meaning “Needle cloths”. Nationalmuseet, Copenhagen, Denmark. Panos de Bicho. Cape Verdean term for “Animal The British Museum. London, England. cloths.” With designs that resembled animal skins The Caird Library. National Maritime Museum. London. England. Panos listrado. Cape Verdean term forstriped blue and white cloth. The Royal Geographical Society (with IBG). London. England. Panos de Obra. Cape Verdean term for “Worked cloths”. Individuals: Panos de Oxos. Cape Verdean term for a pat- Mrs. Fatima Almeida, Atelier de Design Corte e terned fabric that resembles animal motifs. Costura. Praia, Santiago. Cape Verde. Panos de Terra. Cape Verdean generic term Mrs Claudia Corriea, Pacos do Concelho. Praia, meaning “cloth of the land”. Santiago. Cape Verde. Panos Pretos. Portuguese for “Black cloths.” Mrs. Elisa Monteiro, Pacos do Concelho. Praia, Fine, expensive deep blue cloths woven at Fogo Santiago. Cape Verde. and favoured by Wolof women. Mr. Daniel Spinola, Sociedade Caboverdiana Panos simples. Cape Verdean term meaning Autores. Praia, Santiago. Cape Verde. “simple cloths” and applied to plain white cloth, Mrs. Marlene Vieira Thakkar, Praia, Santiago. also called cates. Cape Verde. Perpetuanas.These were durable English wool- len cloths. Pelete bite. Term used in the Rivers State of Ni- Recebido em: 18/02/2015 geria for “cut thread cloth”. Aprovado em: 29/03/2015

Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 34-45, jan./jun. 2015 45 A escrita da história como violência: a inscrição dos corpos afroindígenas em “poemas da colonização”

A escrita da história como violência: a inscrição dos corpos afroindígenas em “poemas da colonização”

Jorge Augusto de Jesus Silva*

Resumo Esse estudo busca discutir, através das relações entre literatura e história, aspectos centrais da construção discursiva da nacionalidade brasileira. Para tanto, tomaremos a sessão, “Poemas da Colonização” do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Neste conjunto de poemas, a memória se instala como fissura no jogo de significados e silêncios que a história oficial faz funcionar como violência, através do poder dizer e do poder calar. Por isso, o aspecto fragmentário e fragmentado dos poemas, porque a memória evocada pelo poeta não busca estabelecer com a narrativa da nação uma continuidade, pretende antes funcionar como suplemento que, ao invés de estabelecer com o passado uma relação de contiguidade, quer marcar sua diferença. Assim, a leitura buscará identificar como na relação entre memória e história, a poesia oswaldiana, instaura fissura nas totalizações do enredo nacional, trazendo a tona o período colonial, recalcado na história e na história da literatura nacional, e com ele buscando através da representação contra-hegemônica do corpo afroindígena, desconstruir os estereótipos, e desfazer as interdições destinadas a esses grupos na narrativa oficial. A análise intenta evidenciar a visada desconstrucionista com que a memória e o corpo são acionados em relação a história oficial da nação. Para tanto, recorreremos as contribuições de Michel Foucault, Deleuze e Franz Fanon. Palavras-Chave: Memória. História. Nação. Violência. Corpo.

Abstract This paper deals with literature-history relations, and discursive aspects of Brazilian nationality formation. The paper focuses on Poems gives Coloni- zation from Oswald de Andrade´s collection of poems Pau-Brasil. Using the work written by Oswald de Andrade this paper aims introducing memory as

* Doutorando em Literatura e Crítica da Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].

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a play of meanings. The article takes advantage of the theoretical frame of- fered by the French thinkers like Michel Foucault, Gilles Deleuze and Franz Fanon. Keywords: Memory. History. Nation. Violence. Body.

Introdução O processo de formação da história e da sil o programa romântico, com sua imersão história da literatura no Brasil, enfrentou no que Benjamin (1994) chamou de “pas- diversos desafios, pois, tinha a obrigação sado homogêneo e vazio”, buscou lançar a de resolver as diferenças socio-históricas e narrativa da nação para fora da memória étnicas que caracterizavam a população bra- recorrendo ao mito para apagar a história; sileira com a construção de uma narrativa já o programa realista/naturalista com sua nacional que aplacasse as diferenças em dis- vinculação ao evolucionismo histórico legi- cursos de harmonia e pertencimento. Mas, timou a diferença como inferioridade e atra- como sabemos, a formação dos estados na- so, tomando a nação pela parte e não pelo cionais modernos, foram forjados através todo. Essas duas estratégias discursivas vi- das estratégias de exclusão das diferenças. savam em suma, o apagamento e a interdi- Tudo que não se enquadrava na formulação ção do período colonial na história e na lite- social e étnica de uma nação ideal, e propos- ratura nacional. ta pelo poder hegemônico, era rechaçado Se no romantismo o período colonial foi como inferior, apagado como inválido, ou recalcado para remeter a memória à origem silenciado como impróprio. mítica da nação, e no realismo/naturalismo Foi o que ocorreu na construção dos dis- o evolucionismo condenava o período colo- cursos nacionais brasileiros no romantismo nial como atraso e degenerescência, graças e no realismo, quando se buscou apagar o a mestiçagem, em ambos as consequências período colonial como início da história na- desses mecanismos narrativos são as mes- cional, e dessa maneira, interditar no seu mas: a interdição da personagem do negro, enredo, os corpos e a cultura afroindígenas. na história e na literatura nacional. Nosso objetivo neste estudo é, portanto, No intuito de dialogar com essa questão, discutir esses mecanismos de exclusão da esse trabalho discutir, também, como em diferença, e identificar como, através dos Poemas da Colonização por meio de uma Poemas da Colonização, o poeta Oswald de dialética antropofágica, Oswald de Andrade, Andrade, inscreve uma história colonial na busca uma representação do nacional que história do Brasil, e ressignifica os corpos assumia a diversidade histórica e material afroindígenas, para além dos estereótipos de sua sociedade, não como síntese e sim, e interdições da narrativa oficial da história tensão. Pois, Visibilizando o período colo- do Brasil. nial na história nacional, o poeta modernis- Expressa pelos distintos grupos, classes, ta, descortina a presença do negro e do in- culturas e regiões, os aspectos plurais da dígena na literatura e na história brasileira, realidade de um povo é sempre suprimido e, sobretudo, evidencia a escrita da história em detrimento da construção de uma repre- e a construção da narrativa nacional como sentação singular da nacionalidade. No Bra- violência.

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Formular uma representação homo- As representações sobre a nação, cons- gênea da nação é um processo que se de- truídas e legitimadas pela epistemologia senrola a partir de uma série de recursos da continuidade, presente tanto no projeto discursivos empregues no intuito de re- romântico, quanto no realista, transitam calcar a diversidade étnica e sociocultural sempre entre a edenização e demonização de um povo. Assim, ganham força as hie- do nativo e da terra. No primeiro, o discur- rarquizações, estereótipos, silenciamentos so teológico justificou a violência colonial da e apagamentos. Na construção do enredo catequese e do escravismo indígena e mani- da nacionalidade brasileira, nos projetos pulou uma imagem da terra como paraíso. românticos e realista/naturalista, não foi No segundo, a aculturação e a escravidão do diferente. Isso porque, na tentativa de ne- povo negro, foram legitimados pelos pressu- gar o passado colonial como origem, re- postos do evolucionismo científico, enquan- metendo para fora do tempo e da história to a terra era demonizada por seus aspectos os discursos de fundação mítica da nação, naturais. promoveu-se o apagamento do período co- Se no início o desenho do homem au- lonial, que manchava a história com o tra- tóctone como primitivo e bárbaro justifica balho escravo e com a subordinação e de- a escravidão indígena, posteriormente, o pendência da nação. postulado da inferioridade dará coerência a Essa tentativa de construir uma meta- escravidão do negro africano. Assim, a visão física da origem, que negava a colonização da terra brasileira como paraíso terrestre, como história material, acarretou uma re- onde, após o descobrimento, aportou o ima- presentação da terra e do nativo, respecti- ginário edênico do velho mundo, era sempre vamente relacionada ao sagrado e ao mítico, contraposta a uma desumanização do nati- o que operou a interdição do negro, com já vo, que daria sentido e função à ocupação da dissemos mas, também, da cultura indígena terra; catequese e mestiçagem (branquea- em sua potencia material através do caniba- mento) fizeram, pois, cada uma em seu tem- lismo e da nudez, por exemplo. po, através da teologia e da ciência, a mesma Então, os estereótipos sobre o índio e a violência contra o autóctone, a interdição da terra, o silenciamento quanto ao período sua cultura, linguagem e corpo. colonial e a interdição do negro-mestiço, formam a teia discursiva do que foi recal- Uma violência duplamente cado na escrita da história oficial da nação nos primeiros projetos nacionais. Esses apa- inscrita gamentos são justificados no Romantismo Essa violência que atravessa as construções pela necessidade de uma origem, ou mito das imagens representativas da nação deve de origem que anule o passado colonial, no ser compreendida em seu duplo aspecto. Realismo por uma noção de progresso que Primeiro, como a dominação pela força fí- congregasse todos numa trilha evolutiva sica, que foi exercida sem ressalvas duran- comum. Mas, na escrita de Pau-Brasil, per- te séculos contra o povo indígena, e o negro cebemos como Oswald relativiza ou distor- africano trazido pelo tráfico negreiro. De- ce essas noções que instauravam a unidade pois, como apagamento das idiossincrasias como sonho da pureza e o evolucionismo de um, ou vários grupos, através da imposi- como utopia do progresso. ção dos valores sócio-históricos e culturais

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48 Jorge Augusto de Jesus Silva de um grupo dominante, o que podemos tre o “enunciável” e o “visível”. O primeiro chamar a partir de Bourdieu (2005), de vio- corresponderia não a uma frase, palavra ou lência simbólica. Ambas foram formas de proposição, mas existiria na dimensão do dominação largamente exercidas na forma- discurso, um não-dito sempre já-dito. De ção das identidades nacionais vinculadas ao maneira análoga, o segundo não se confun- surgimento dos Estados-nação, na moder- de com o visível, “As visibilidades não são nidade. Por isso Ricoeur (2007), designa formas de objetos” (DELEUZE, 2005, p. os “acontecimentos fundadores”, ou seja, 62). Não se trata em ambos de um sentido aqueles que propõem uma origem para a oculto que se esconde atrás de um evidente, narrativa da nação, como atos de violência antes o sentido está já em funcionamento, que são institucionalizados pelo Estado. mas não evidente, pois o enunciado deve ser Portanto, conforme pontua Helenice Ro- apreendido a partir da relação descontínua drigues da Silva, no texto, A violência na His- e dispersa que mantém com outros enuncia- tória e a legalidade da desobediência Civil, dos e visibilidades. “podemos afirmar que a violência na história Assim, de forma sucinta, poderíamos di- faz parte da história da humanidade, estando zer que a escravidão, no Brasil colônia, cor- intimamente associada à fundação das iden- responderia a uma ‘visibilidade’, enquanto tidades de uma nação e as origens de uma co- a superioridade da raça ariana, o processo munidade” (2001, p. 59). A violência é o meio evolutivo retardado do negro africano e do pelo qual se legitimam os aspectos homogê- indígena, e a ciência como lugar de verda- neos e hegemônicos das histórias nacionais. de, seriam ‘enunciados’. Estes compreen- A homologia institui-se através do apaga- dem as formações discursivas, aquele as mento da diversidade étnica, social e cultu- instituições, ou seja, enunciados não-dis- ral da nação, impondo-a uma representação cursivos. É nessa relação entre o ‘visível’ e única e totalizadora, enquanto a hegemonia ‘enunciável’ que se produz um saber sobre corresponde à vinculação dessas represen- a história do Brasil. Um saber que, é claro, tações a vontade de poder e de verdade da deve sua institucionalização a sua existên- classe dominante que as legitima. A violência cia como poder. na história está, pois, vinculada e contígua a É nesse sentido que não podemos fazer uma escrita da história como violência. uma distinção arbitrária entre poder e sa- Essa dupla inscrição da violência na his- ber. Por isso, Deleuze fala continuamente tória do Brasil pode ser lida a partir da rela- numa primazia do ‘enunciável’ sobre o ‘vi- ção entre poder e saber. Essas relações têm sível’, porque “não há nada antes do saber”, sido evidenciadas pelos inúmeros episódios (2005, p. 62). É a partir dessa relação intrín- e perspectivas narrativas que aos poucos as seca entre os lugares de poder as instituições novas propostas historiográficas vinculadas ou, seja, os ‘visíveis’ e o conjunto de enun- à micro-história italiana, a nova-história ciados que compõem um saber, ou seja, os francesa, a história oral, vem visibilizando ‘enunciáveis’ que podemos compreender através de suas releituras históricas, a partir a escrita da história como violência sendo das quais podemos compreender a história contígua e inseparável da violência na his- como um saber produzido como poder. tória do Brasil. Ambos aspectos, os ‘visíveis’ Gilles Deleuze, em Foucault explicita a e os ‘enunciáveis’, compõem um mesmo sa- formação dos saberes através da relação en- ber, a história nacional.

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Nesse sentido, devemos compreender, cio ou poder, e como regulamento, ou saber, por exemplo, como o genocídio indígena no ambos enunciados, discursos que constroem Brasil, vinculado diretamente à expropria- o saber histórico sobre o Brasil. ção da terra indígena pelo colono, sobretu- A história oficial continuava essa violên- do, a partir da Carta Régia que autorizou a cia de modo paradoxal, à medida que expu- guerra justa1 e resultou no extermínio de nha a violência do processo histórico, mas grande parte da população indígena pela fazendo-o a partir de postulados de neutra- missão bandeirante, é, então, uma ‘visibi- lidade e ciência, significando-a como mero lidade’, ou seja, lugar e forma de exercício relato de um passado estático, que faz os do poder, diretamente vinculado a um saber excessos e tensões figurarem algo distante, histórico e literário que institucionalizou a e quase sempre conseqüência inevitável do representação do índio através da figura do desenvolvimento histórico. Essa postura bom selvagem de Rousseau, ou a partir das pode ser notada em diversos estudos efe- descrições demoníacas e inferiorizantes do tuados pelo Instituto Histórico e Geográfico nativo ameríndio. Brasileiro, logo após sua fundação no século Essa mesma conexão entre poder e sa- XIX. ber é evidenciada quando relacionamos a Havia, portanto, uma exposição des- violência do trabalho escravo, do castigo, da sa violência para em seguida naturalizá-la apropriação do corpo, do abuso sexual, so- isolando-a num tempo longínquo, longe da fridos pelo escravo e negro-brasileiro, com memória e da prova. É dessa maneira que a representação do negro e do mestiço como certa corrente hegeliana propõe “uma leitu- raças inferiores, como também, da insisten- ra da História, fundada na idéia da violên- te comparação destes com animais. cia e nas relações de força. Kojève insistia, A violência opera, dessa forma, sua dupla particularmente, na concepção da História inscrição na história colonial, como exercí- como “lugar da violência”. Mais do que a razão, as lutas sangrentas fazem avançar a 1 Se até o século XVIII, a transformação dos ín- dios em mão de obra era a principal preocupa- História em direção a um desfecho positivo” ção dos colonizadores, a partir do século XIX é (SILVA, 2001, p. 47). a ocupação das terras que vai atrair a atenção da metrópole (AMANTINO, 2011), assim, após A escrita da história como violência não 1808, descreve a autora um fato que iria impac- se caracteriza, então, pelo que ela narra e tar a relação da colonização com o indígena, a expõe como guerras, combates, heróis, ba- saber, a “assinatura da Carta Régia autorizan- do a guerra justa contra os botocudos” (Idem, talhas épicas, conquistas enfim, mas pela p. 37). Os Botocudos, assim, como os Aimorés, perspectiva historiográfica que ela ado- e outras etnias indígenas que eram hostis a ca- ta para efetuar essas narrativas. A história tequização, ou praticavam a antropofagia, em suma, que negavam-se a passividade diante a como campo de batalhas que é torna-se uma violência colonial e sobretudo, não aceitaram a escrita de interditos, de mascaramentos e, expropriação de suas terras de forma passiva. A Carta sendo revogada em 1831, teve validade de principalmente, silenciamentos. Por isso, a 23 anos, assim, como salienta a autora, “como violência da escrita da história manifesta-se vários índios eram identificados como parte des- apenas no momento mesmo de sua escritu- se grupo, inúmeros foram os casos de extermínio nas capitanias de Minas Gerais, Bahia, Espírito ra, no gesto duplo e simultâneo de visibilizar Santo, São Paulo, Paraná, Goiás e Mato Grosso e apagar as memórias da nação, do povo. [...]. Nesses 23 anos, milhares de índios forem Pois, à medida que se escreve a história mortos ou escravizados em diferentes partes do país (Idem, p. 37). oficial, esta interdita todas as outras narra-

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50 Jorge Augusto de Jesus Silva tivas. Na história, falar é instituir silêncios. co da nação brasileira, falando inclusive na E antes da escrita o que há são memórias, mestiçagem como processo formador de dispersões, invenções, batalhas entre nar- uma “raça cósmica”. rativas descontínuas e ideologicamente dis- Portanto, a escrita da histórica como tintas, que se completam e contradizem, va- violência colonizadora não foi interrompi- riando no espaço e no tempo, porque a me- da com a independência, já que a estrutura mória está sempre em movimento, no seu colonial se manteve, em parte, conservando gesto de significar o passado. Dessa forma, as relações de poder do período anterior à história, grafado no singular, só existe en- república. As representações, românticas e quanto linguagem, ou melhor, deslocando evolucionistas, que estereotipavam a terra e Derrida, a história é a “violência originária o negro e interditavam a figuração da vida de uma linguagem que é desde sempre uma colonial, continuavam circulando no imagi- escritura” (2011, p. 131). nário e nos discursos da nova república. Essa violência simbólica que caracteriza a escrita da história oficial, seus gestos de Poemas da colonização e a apagamento e interdição da alteridade, atra- memória da violência vessaram na historiografia brasileira todo século XIX chegando ao XX. Se em 1832, “Poemas da colonização” é a segunda seção Carl Friedrich P. Von Martius defendia, em do livro Pau-Brasil, composto de 15 poe- sua obra O estado do direito dos autóctones mas, e traça um painel da sociedade colo- do Brasil, uma tese que afirmava o caráter nial, buscando evidenciar como o regime de ainda infantil e primitivo dos habitantes da exclusões e privilégios dessa sociedade se terra. Em 1844, o mesmo autor venceria o produz e se conserva através de várias for- concurso “Como escrever a história do Bra- mas de violência cotidiana. Para Vera Lúcia sil” do IHGB, com uma tese que já postu- de Oliveira (2001), Oswald privilegia, no lava a miscigenação como mecanismo de seu painel da vida colonial, “momentos que branqueamento da sociedade brasileira. a história oficial deixou de lado”. Mas é im- Adentrando a segunda década do século XX, portante salientar, como em todo o livro, o como nos relata Schwarcz (1996), a vincu- poeta não vai buscar descrições de grandes lação postulada pelas teorias evolucionistas acontecimentos históricos, nem heróis. Se entre raça, civilização e progresso, ainda po- no primeiro conjunto de poemas ele buscou voavam as discussões e a práxis histórica da dialogar com a história oficial a partir da sociedade brasileira. textualidade desta, operando uma releitura Do outro lado, todo o postulado teológi- dos textos quinhentistas e não promovendo co-metafísico da história, filiado à busca da uma narrativa de fatos históricos, dessa vez, origem no projeto romântico, fazia também ele busca situar-se à margem da história ofi- seu percurso ao século XX, se “no primeiro cial, recorrendo justamente ao que essa nar- quartel do século XVIII, Rocha Pita conti- rativa exclui. A saber, a voz do povo negro, nuaria explicando teologicamente o desco- suas memórias que circulavam através da brimento do Brasil” (SOUZA, 1986, p. 33), oralidade na vida diária da colônia. na década de 20 do século passado, a cor- Esse retrato do Brasil colônia é compos- rente do modernismo paulista representada to por fragmentos do cotidiano que juntos pelo grupo Anta, defendia o caráter místi- compõem uma espécie de etnografia da co-

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lônia, na qual se descreve “a vida dos escra- sob tutela. E assim se delineou o que poderia vos, o seu cotidiano, o abuso as mulheres, chamar de genealogia, ou antes assim se de- os sentimentos, o desespero, os terríveis linearam pesquisas genealógicas múltiplas, a um só tempo redescoberta exata das lutas e massacres contra os negros que conseguiam memória bruta dos combates; e essas genea- fugir das fazendas. São Flashes de vida real, logias, como acoplamento desse saber erudi- cenas de uma história ainda não escrita, a to e desse saber das pessoas só puderam ser da trágica epopeia negra” (OLIVEIRA, 2001, tentadas com uma condição: que fosse ver- p. 133) Mas não só, além dessa existência gada a tirania dos discursos englobadores, concreta da vida da colônia, esse conjunto com sua hierarquia e com todos os privilé- gios das vanguardas teóricas (1999, p. 13). de poema põe em evidência aquilo que Fou- cault (1999), chamou de uma “reviravolta Os saberes sujeitados são, portanto, a do saber”, referindo-se a uma crítica efetua- instauração da descontinuidade no movi- da com base em sua localidade, ou seja, é a mento fluido de um conhecimento que se partir da realidade material da colônia que pretende unitário e verdadeiro. Por isso, Oswald de Andrade buscará efetuar uma crí- esse acoplamento dos saberes eruditos e tica à racionalidade histórica do ocidente. dos saberes locais instaura uma rachadura, Foucault anota que, a partir dessa “revi- põe em movimento em deslize, a unidade e ravolta dos saberes”, viu acontecer a insur- a hierarquia constituída pelo discurso cien- reição dos “saberes sujeitados”, que, segun- tífico.É também esse procedimento que Os- do o autor, tem duas dimensões: com a pri- wald de Andrade instaura no conjunto de meira quer “designar os conteúdos históri- “Poemas da colonização” quando aciona as cos sepultados e mascarados em coerências narrativas orais do povo negro da colônia e funcionais, ou em sistematizações formais”; põe, através da memória, a história oficial em segundo lugar, por saberes sujeitados, em desordem. o autor entende “toda uma série de saberes Essa espécie fragmentada de genealogia, que estavam desqualificados como saberes construída a partir do repertório da oralida- não conceituais” (1999, p. 12). Os primeiros de colonial, permite acessarmos, através da corresponderiam a um conhecimento meti- memória exposta em “Poemas da coloniza- culoso, erudito e organizado, enquanto ou- ção”, a construção de um saber histórico das tro se referia aos saberes locais, das pessoas lutas, no qual a violência colonial aparecerá sem senso comum, um saber que tinha sido em suas múltiplas dimensões. deixado de lado. Através da memória, que evidenciará es- Para o francês, foi justo nessa intersecção ses saberes desqualificados, a escrita da his- entre a erudição dos saberes dominantes e tória oswaldiana irá opor à centralização da dos saberes subalternos que a crítica de me- história oficial sua cientificidade e sua hie- tade do século passado em diante construiu rarquização, uma dispersão, e uma descon- sua potência. Para Foucault, a intersecção tinuidade característica da oralidade e da entre ambos detinham o saber histórico das memória, instaurando a polissemia no dis- lutas. curso denotativo da história oficial. Assim, No domínio especializado da erudição tanto por meio dessas narrativas sujeitadas, a his- como no saber desqualificado das pessoas tória pode ser escrita em toda sua vitalidade jazia a memória dos combates, aquela, pre- sem a simplificação da homogeneização do cisamente, que até então tinha sido mantida enredo oficial da nação.

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Com esse procedimento de escuta dos A memória diferente da história estabe- saberes sujeitados, a escrita da história os- lece com o passado uma relação de dinamis- waldiana não barateia a realidade sócio-his- mo, de movimento, “Para a memória, a ideia tórica do Brasil colônia, construindo um de passado ganha dimensão do presente; no binarismo que reduziria a vida colonial a entanto, para a consciência histórica, o pas- uma relação de subalternidade entre senhor sado é passado” (TEDESCO, 2004, p. 58). e escravo, e muito menos mitiga as relações No segundo capítulo de Pau-Brasil, a me- tensas entre um e outro na ideia de um em- mória opera seus deslocamentos, colocan- bricamento entre a casa grande e a senzala. do-se sempre à margem da história instituí- Antes, os poemas estão sempre acentuando da. A periferia da escritura torna-se o lugar uma espécie de hostilidade que semantiza a de negociação da história e da identidade da vida colonial, mas que vai além disso, e mos- nação, como pontua Homi Bhabha: “O ato tra uma outra compreensão da história e da da rememoração (seu conceito de criação da nação. Uma hostilidade, uma tensão que memória popular) transforma o presente da significa a história ao mesmo tempo em que enunciação narrativa no memorial obses- é significada por ela e que percorre toda a sivo do que foi excluído, amputado, despe- seção de Poemas da colonização, como po- jado, e que por esta mesma razão se torna demos ler no poema “Azorrague” que trans- um espaço unbeimlich para a negociação da crevemos, identidade e da história” (2001, p. 275). Essa espécie de ‘etnografia poética’, que — Chega! Peredoa! Amarrados na escada Oswald empreende em Poemas da Colo- A Chibata prepara os cortes nização, só foi possível pela sua estratégia Para a salmora (ANDRADE, 2011, p. 88). de recorrer deliberadamente a uma memó- ria não institucionalizada e que só pode ser A visibilização da violência no regime co- acessada graças ao repertório oral do povo lonial é o ponto no qual o poeta modernista negro da sociedade colonial brasileira, uma fissura a pretensão de homogeneidade da memória que, tecida num esquecimento história oficial, que emerge problematizada dissimulado pelo silêncio, pode reinventar como lócus de conflito e contradição, sem cotidianamente sua relação com o passado. a harmonia e coerência que pretensamen- A memória e sua potência criativa tiveram, te norteiam as narrativas institucionais da nas sociedades coloniais, o papel fundamen- nação. tal de impedir no colonizado a interiorização É nesse intuito de fissurar que, a memó- ria, nos Poemas da Colonização se insta- de sua não-humanidade, sempre afirmada la no jogo de significados e silêncios que a por uma metafísica, ou uma ciência de ma- história oficial faz funcionar como violência, triz etnocêntrica, e reafirmada pelo poder através do poder dizer e do poder calar. Por oligárquico, ou monárquico vinculado a me- isso, o aspecto fragmentário e fragmentado trópole. A criação e a invenção da memória, dos poemas, porque a memória evocada pelo enfim, mantinham sempre viva a dignidade poeta não busca estabelecer com a narrativa do humano. da nação uma continuidade, pretende antes funcionar como suplemento que, ao invés de Escritas da violência estabelecer com o passado uma relação de A violência como signo do regime colonial, contiguidade, quer marcar sua diferença. percorre os Poemas da Colonização, veja-

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mos seus desdobramentos no primeiro poe- coqueiros”, perdendo o resquício de huma- ma da série, “A Transação”: nidade que lhe significava no verso ante- rior, e reduzindo-se a simples “carne preta O fazendeiro criava filhos Escravos escravas e musculosa”. Decerto o poema expõe como Nos terreiros de pitangas e jabuticabas a personagem do negro colonial foi apagado Mas um dia trocou no relato dos processos de transações que O ouro da carne preta e musculosa envolveram a passagem da monarquia à re- As gabirobas e os coqueiros pública, ou seja, apagado, silenciado e igno- Os monjolos e os bois rado em meio às transformações políticas da Por terras imaginárias Onde nasceria a lavoura verde do café (AN- sociedade brasileira. DRADE, 2000, p. 85). Ainda no “A Transação”, e creio ser essa a leitura que mais nos interessa, a mutação na O poema inicia uma descrição sucinta do figura do escravo, do segundo para o quinto ambiente rural do período da colonização, verso, alude ao processo de desumanização enumera seus elementos e indica a transa- operado nas representações do negro pre- ção sugerida no título, a saber, a chegada do sentes na história e na literatura brasileira. plantio do café, que, como sabemos, remete Uma “carne preta e musculosa” envolvida ao ambiente republicano e às imigrações de no processo de troca da sociedade como os europeus que vinham substituir os negros “coqueiros”. Essa desumanização é artifício na lavoura cafeeira. O texto se refere, então, antigo na dominação colonial brasileira e a uma época em que ocorre uma mudança americana. Desde os primeiros relatos, a ne- do regime político nacional e a mudança do gação da humanidade do autóctone autoriza modo de produção com o fim da escravidão. a consciência européia a pilhar suas terras e Em suma, a transação ganha no poema uma explorar sua natureza. múltipla dimensão, pois se refere ao próprio Em Gandavo, no que se refere aos in- momento de transformação que a sociedade dígenas, lia-se: “mui desonestos e dados a brasileira atravessava. sensualidade”, “como se neles não houvesse Essa leitura, ainda que pertinente, boia razão de humanos”. Essa mesma negação da sobre a superfície do discurso, tentaremos plena humanidade do outro chegaria a 1888 avançar e atravessar a opacidade da inter- quando Nina Rodrigues propõe em As Ra- pretação dada como evidência. Nosso inte- ças Humanas e a responsabilidade penal resse é buscar nas suas elipses e fragmentos no Brasil um código jurídico específico para os sentidos em jogo na escrita da história de as raças, negra e branca, devido ao acentua- Oswald de Andrade. do nível de diferença no desenvolvimento de Assim, chamamos atenção para o fato ambas, com vantagens para a raça branca. de que os únicos verbos de ação no poema Como alertou Sartre no famoso e polê- predicam o fazendeiro, os demais elemen- mico prefácio ao livro Os Condenados da tos enumerados parecem ser um a um in- Terra de Franz Fanon, “A violência Colonial clusos num mesmo campo semântico, obje- não se atribui apenas o objetivo de controlar tos igualmente dispostos como adornos da esses homens dominados, ela procura desu- paisagem colonial. Vejam que os “Escravos manizá-los” (SARTRE, 2010, p. 33). É essa e escravas” do segundo verso, no quinto, já crítica à escravidão que atravessa o poema. se misturam à paisagem, “As gabirobas e os A máquina colonial, para justificar seu meio

54 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 46-60, jan./jun. 2015 Jorge Augusto de Jesus Silva de produção e legitimar a arbitrariedade das Se analisarmos, por exemplo, o gesto suas hierarquias, desautoriza a alteridade desesperado da mãe e sua significação no como humanidade e significa a diferença contexto colonial, veremos que ele se esta- como monstruosidade. belece como contra-discurso em relação à negação de humanidade ao escravo no poe- O corpo como escrita de ma “A Transação”. Antes, é precisamente resistência seu oposto. É a consciência e a sensibilidade do humano que se nega a legar para a filha a Há dois momentos centrais em Poemas herança da escravidão. da Colonização que evidenciam o corpo A violência do suicídio, encena o empode- afroindígena como locus de escrita de uma ramento sobre a própria vida, negação fun- resistência aos processos de violência fí- damental do regime colonial aos não-euro- sica e simbólica a que eram submetidos os peus. Como propôs Antonio Risério (2007), nativos americanos. Em relação ao corpo citando Alípio Goulart, o suicídio pode ser como signo de aquilombamento do negro, classificado como uma das “pequenas se- tomaremos para leitura o poema “Medo da dições do cotidiano”, nas quais caberiam, senhora”, quanto ao corpo indígena e sua ainda, segundo o autor, a fuga, o aborto, a produção insubordinada de sentidos dissi- mentira, a sabotagem, entre outros. Sobre a dentes aos empregados pela representação mentira afirma Risério, “O escravo era um eurocêntrica, tomaremos o poema, “As me- especialista em simulações. Por necessida- ninas da Gare”. de. Mas também, porque mentir era afirmar Em “Medo da senhora” a violência colo- uma verdade própria” (2007, p. 327). Essas nial aparece dramatizada em sua potência transgressões, nem sempre pequenas vio- trágica e humana, na qual, quiçá reencena lências cotidianas, indicam que “O homem a clássica personagem de Eurípedes (1980), colonizado se liberta na e pela violência” mas como uma Media africana que não co- (FANON, 2010, p. 104), ou melhor, como mete o infanticídio para atingir apenas o propôs Risério, após essas infrações “não pai, mas o patriarcado, ou seja, ao invés de estava mais ali a mera máquina produtiva, um homem, um sistema falocentrico inteiro o animal de trabalho, a coisa possuída. Bri- é desafiado pela assunção do corpo e da vida lhava assim, em cada mínimo momento de que a negra escrava executa no poema. transgressão, o diamante da pessoa huma- A escrava pegou a filhinha nascida na” (2007, p. 329). Nas costas Assim, a violência contra si era também E se atirou no Paraíba uma violência que auto-significava o sujeito Para que a criança não fosse judiada (AN- da ação enquanto humano, mas que busca- DRADE, 2000, p. 87). va concomitante ao gesto extremo de erra- Acumula-se, num só gesto, um infanticí- dicar a própria vida, sabotar as engrenagens dio e um suicídio. A mãe não queria ver a do funcionamento colonial. Era, sobre esse filha escrava passar pelo mesmo sofrimento ponto de vista, uma revolução pessoal, a ab- que ela passara durante toda vida e resolve soluta contrariedade em ser algo que não pela morte, para as duas, como estratégia, fosse um homem, livre. Nesse sentido o cor- concomitantemente, de fuga e enfrentamen- po ganha significados densos, pois é o que to do regime escravo. constitui parte importante de sua identida-

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de, ao mesmo tempo em que é propriedade gra aos processos de subalternização, devem do senhor. O suicídio é a negativa em dar o operar a partir de um logos que favoreça a corpo como força de trabalho e significá-lo escrita ininterrupta de uma outra História a apenas como máquina produtiva, como afir- partir do presente” (FREITAS, 2009, p. 95). ma Risério (2007, p. 328), O outro momento decisivo em que o cor- po aparece como contra-discurso em rela- O suicídio escravo foi, antes de mais nada, expressão de um mal estar essencial. De um ção a dominação sócio-cultural do europeu, desajuste de base — o do ser humano subme- agora, relacionado ao corpo indígena, é no tido ao sistema social reificador por excelên- citado poema, “A meninas da Gare”. Poema cia. Fruto da depressão, do medo ou do ódio, dos mais conhecidos de Oswald de Andrade, sim. Mas fruto sobretudo, de uma violência mas que devido a uma série de interpreta- sistêmica. Durkheim fala, a propósito, de ções apressadas deixou-se muitas vezes es- suicídio “fatalístico”. E é também nessa dire- ção que Ortiz pode definir o suicídio escravo capar a dimensão do ‘corpo-’, tam- como um último medio de emanciparse. De bém relacionado ao corpo indígena. uma parte, este suicídio era recusa. De outra, Em três ou quatro moças bem moças e bem como aborto voluntário, representava pre- gentis juízo para as finanças e a produção do siste- ma senhorial. Com cabelos e suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Como citamos, são muitas as sedições do Que de nós as muito bem olharmos cotidiano pelas quais o negro escravo busca- va sabotar a vida e o funcionamento da fa- Não tínhamos nenhuma vergonha (ANDRA- DE, 2000, p. 71). zenda, mas como mostra “Medo da Senho- ra”, algumas transgressões (como engravi- Oswald de Andrade recorre a Paul Cé- dar do Senhor de engenho e ficar a mercê zanne, e retira de uma de suas obras o títu- da vingança da sinhá) não comportam mais lo com o qual vai rasurar a textualidade da válvula de escape, não podem ser resolvidas Carta de Caminha. A Gare é uma estação de por uma fuga, ou uma mentira. Nesse mo- trem na França daquela época onde ocorria mento o escravo tem que decidir, entre con- a prática da prostituição pelas mulheres. A tinuar resistindo ou entregar-se ao castigo. partir dessa relação Sant´anna (1985), des- Os escravos e escravas dos Poemas da Co- taca que “as índias do texto original se mis- lonização, negando a subordinação, fazem turam as meninas expostas na gare de uma do próprio corpo seu último lócus de resis- sociedade moderna e industrial”, o autor su- tência, e transmutam-se em corpo-quilom- gere uma continuidade entre a situação das bo, rasurando as representações passivas e índias e das meninas da Gare, mesmo quase subalternas que compõem a figura do negro 500 anos depois. Por fim, diz; “As moças da na historia oficial. gare, em seu primitivismo, lembram ao poe- Esses corpos-, em Poemas da ta aquelas índias” (1985, p. 82). Colonização devem ser compreendidos a Oliveira (2002), dialogando com a leitura partir da proposta de Henrique Freitas em de Sant´anna, coaduna com a ideia de uma seu texto, Quilombos Pós-Modernos, pois continuidade entre o texto original e o texto semiotiza o corpo como discurso de resistên- rasurado, ou seja, entre a carta de caminha e cia. Assim, “os quilombos pensados metafo- o poema de Oswald haveria um diálogo que ricamente como essa força de resistência ne- se resumiria em superpor um título moder-

56 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 46-60, jan./jun. 2015 Jorge Augusto de Jesus Silva no a um texto antigo e assim, através do pri- pinambá. A autora mostra como a visão do meiro texto, remeter “ao contexto atual, ou francês era em vários aspectos positiva con- seja, ao processo de exploração da mulher, siderando, inclusive, certa relativização do praticamente iniciado com a colonização e canibalismo. Mas a frase final do ensaio é la- nunca mais interrompido no país”, conclui pidar, transcrevemos: “Tudo isso é verdade Oliveira, a realidade que Sant´anna preten- interessante, mas, que diabo essa gente não de explicitar permaneceu substancialmente usa calças” (MONTAIGNE, 1971 apud SCH- a mesma, apesar dos quinhentos anos. WARCZ, 1996, p. 80). Essa é a leitura normalmente veiculada Essa nudez, portanto, era sempre relacio- sobre o poema, mas creio que ela mitiga a nada a não consciência moral, a não cristan- potencia da paródia inscrita na duplicação dade. Marca suprema da diferença, a nudez do texto de Caminha, além de marginalizar denuncia uma alteridade quiçá, irrevogável. um aspecto central do poema, que foi ques- Graças ao que Viveiros de Castro chamou de tão tabu no contato do europeu com o ame- a inconstância da alma selvagem, em livro ríndio: a nudez do indígena. Márcia Amanti- homônimo, a catequese não conseguiu apla- no, em História do Corpo no Brasil, diz que car a nudez do índio. grande parte dos problemas que perturba- Essa proverbial inconstância não foi regis- vam a relação do indígena com os padres je- trada apenas para as coisas da fé. Ela passou, suítas “eram decorrentes, direta ou indireta- na verdade, a ser um traço definidor do ca- mente, dos usos que os indígenas faziam de ráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário nacional: o seus corpos e dos alheios. O corpo indígena índio mal-converso que, à primeira opor- nu, e praticante de atos considerados pelos tunidade manda Deus, enxada e roupas ao religiosos como ofensivos a Deus, precisava diabo, retornando feliz à selva presa de um ser domado” (2011, p. 18). atavismo incurável. A inconstância é uma Se a poligamia, o canibalismo e a nudez constante da equação selvagem (CASTRO, foram os atributos pelos quais a alteridade 2011, p. 186). indígena foi sempre animalizada e demoniza- Assim, a nudez não era a patologia de da é preciso compreender aí o papel decisivo uma animalidade, ou efeito colateral de uma que o uso do corpo ganha na significação da inferioridade, era um traço constituinte da especificidade indígena. É muito ilustrativo a cultura ameríndia. Porém, era justamente esse respeito que o padre Manoel da Nóbre- o contrário que sugeria a representação do ga tenha identificado que a nudez indígena indígena na história e na literatura brasilei- deveria ser combatida urgentemente, e mais ra. A nudez surgia como traço de irracionali- ainda, conta-nos Armantino que os índios dade e animalidade, à medida que depunha aceitavam as roupas dadas como presentes, contra todo o senso de civilização. A nudez mas a usavam como queriam, “Para desespe- pertencendo só ao reino animal, desumani- ro do Padre Anchieta, em um dia saíam com zava e, de certa forma, infantilizava o indí- alguma peça na cabeça e mais nada; em outro, gena, dando um caráter de inocência ao uso apenas sapatos” (2011, p. 18). do seu corpo. Decisivo a esse respeito é a discussão É justamente essa aleatoriedade no sig- empreendida por Schwarcz, quando descre- nificado do corpo nu, essa inocência e essa vendo o famoso elogio feito por Montaigne, gratuidade por parte do indígena, que Os- em os “Canibais”, à guerra na sociedade Tu- wald ressemantiza, no “As meninas da

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Gare”. O corpo indígena no poema, não é o dos, na ausência da língua, a linguagem do corpo da inocência, da infantilidade, como corpo fez funcionar os sentidos. O que Os- querem muitos relatos dos cronistas, sobre- wald recusa é a superioridade da racionali- tudo, a própria carta de caminha, mas não é dade europeia, nada além do acaso norteou também, marca de animalidade e selvageria. o primeiro contato, o que houve foi nego- É um uso racional do corpo, claro, de outra ciação e não inocência e dominação. Assim, razão que não a europeia, mas há uma lógi- também a nudez não era sintoma de uma ca particular e consciente do uso do corpo falta, de uma ausência, de um vazio, era an- indígena, e ela aparece no poema através da tes o próprio significado, ou seja, a nudez rasura do título. indígena não estava no plano da natureza, e As meninas da Gare na estação francesa, sim, no da cultura. ainda que por necessidade socioeconômica, Outro aspecto se faz necessário ressaltar, ou quaisquer outros motivos, tinham a pro- como vimos, ao longo desse texto, Oswald priedade e a consciência no uso do seu cor- de Andrade busca as representações mate- po. E por isso usavam o corpo para significar rialistas da história em detrimento do míti- certa liberdade, ou melhor, utilizavam o cor- co. Por isso o índio que interessa ao poeta, po como mercadoria e moeda de troca. Ora, não é o do romantismo nem o dos cronistas, não foi outra coisa que sugeriu Oswald. As é antes, o índio nas suas formas concretas índias não estavam como quis fazer parecer de existência, o canibalismo, a poligamia, a Caminha, inocentes em relação ao próprio nudez. É isso que ele nos diz no manifesto corpo, elas estavam, quiçá, e porque não, antropófago, “Contra o índio de tocheiro. O negociando. índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Dessa maneira existe de fato uma conti- Médicis e genro de D. Antônio de Mariz”. nuidade entre as representações das garotas E quando Oswald, rasura o texto de cami- da estação francesa e as ameríndias, mas nha e põe na cessão “História do Brasil” o ela é inversa à que propuseram Sant´anna e índio nu, é de novo, a afirmação do indígena Oliveira, não correspondem a uma vitimiza- desmitificado, sem os estereótipos e interdi- ção das mulheres, mas ao contrário, a uma ções da catequese, que ele quer escrever na afirmação de sua força e consciência no uso sua história do período colonial. do corpo como signo na comunicação com a O que os corpos afroindígenas operam alteridade. Não havia, pois, inocência. nos “Poemas da colonização” é portanto, o Como propôs em outro poema Oswald, funcionamento de narrativas contra-hege- “quando o português chegou /debaixo de mônicas que desconstroem a violência da uma bruta chuva / vestiu o índio / Que pena representação do outro, efetuada pela es- /Fosse uma manhã de sol / O índio tinha crita da história pelo colonizador. O corpo despido / o português”. Onde a história quis afroindigena, semiotiza a diferença e escre- ver inocência e subserviência no primeiro ve no corpo de discursos da história nacio- contato, o poeta viu o acaso. E em relação nal a violência de sua exclusão, de sua este- às meninas da Gare dos trópicos, onde a li- reotipação, de seu silenciamento, propondo teratura e a história quis enxergar inocência uma nova leitura da história brasileira, que Oswald de Andrade viu, como veria Claude Tristes trópicos que “o encontro de dois grupos, Levy Strauss2, negociação e troca de senti- quando pode desenvolver-se de forma pacífica, tem por conseqüência uma série de presentes 2 Claude Levy Strauss (2000, p. 322) afirma em recíprocos; o conflito cede lugar a negociação.

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58 Jorge Augusto de Jesus Silva não apague o período colonial nem mitigue Portanto, contrapondo, as representa- a violência de seu pretenso “processo civili- ções da história oficial às figurações dos per- zatório”. sonagens negro e índio na escrita oswaldia- na, buscamos expor como violência a repre- sentação instituída a estes personagens por meio dos estereótipos na história oficial, que Portanto, em Poemas da Colonização Os- por sua vez reproduzia a violência do pro- Consideraçõeswald de Andrade vai nada expor afinais violência na cesso de colonização. Percebemos que, essas história nacional, visibilizando as tensões e figurações do afroindígena, quando subver- hostilidades que caracterizaram a socieda- tidas pela escrita oswaldiana propõem outra de colonial. A violência contra a escrava, a leitura da história, dos corpos e das perso- apropriação e coisificação do corpo, o apa- nagens do período colonial no Brasil, mos- gamento das memórias, a desumanização trando as relações de poder e a violência da do negro, as resistências, os suicídios, com- representação do outro, que nortearam a es- puseram a paisagem hostil do período colo- crita oficial da história nacional. nial. Apresentada por Oswald por meio de uma estética do fragmento, a dispersão e descontinuidade deste conjunto denuncia, Referências em sua técnica dadaísta, uma forma de falar ANDRADE, Oswald. Pau-Brasil. 5. ed. São Pau- lo: Globo, 2000. da violência, através da própria violência da forma3. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histó- A violência em “Poemas da Colonização” ria. In: Id. Obras Escolhidas. 7. ed. São Paulo. Brasiliense, 1994. é signo de uma escrita que luta contra a his- tória oficial, à medida que traz a alteridade CASTRO, Eduardo Viveiros de. O mármore e a para o centro da narrativa reconfigurando murta: sobre a inconstância da alma selvagem. In: Id. A inconstância da alma selvagem. São desenhos instituídos, fazendo com que os Paulo: Cosac Naify, 2011. corpos afroindígenas outrora dóceis, porque CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: apagados, em grande parte da narrativa na- a guerra nas sociedades primitivas. In: Id. Ar- cional, figurem comolócus de deslocamento queologia da violência. São Paulo: Cosac Naify, do poder, quando seus corpos aparecem sig- 2011. nificados por uma semiótica da resistência. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasi- Se a história evolutiva e linear buscou liense, 2005. descrever sempre a continuidade do mes- DERRIDA, Jaques. A estrutura, o signo e o jogo mo, enquanto a história mítica ou metafísica no discurso das ciências humanas. In: Id. A es- buscava na origem sua unidade e verdade, critura e a diferença. São Paulo. Perspectiva, Oswald de Andrade, de novo, escreve a di- 1971. ferença na história, evidenciando o recalque EURÍPEDES. Medeia. São Paulo: Abril, 1980. do enredo da nação em relação a violência FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz colonial, e o apagamento dos corpos afroin- de Fora: Ed. UEJE,2005. dígenas da história nacional. FOUCAULT, Michel. Aulas de 7 de janeiro de 3 Deslocamos aqui uma citação de Lucia Helena, 1976. In: Id. Em defesa da sociedade. São Paulo: em Uma Literatura Antropofágica: o dadaísmo Martins Fontes, 1999. enquanto negação da arte é “uma forma onde se fala da morte, através da morte da forma”. FREITAS, José Henrique. Quilombos pós-mo-

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60 Seydou Nourou Sall

Communication et lutte traditionnelle au sénégal:

la revanSeydouche Nouroudes «sans Sall* voix»

Resumo L uta tradicional, também chamado de “esporte lazer” deu hoje tal magnitude na capital senegalesa que tornou-se fácil para associar com o outro. Especial- mente fácil como a maioria de seus jogadores residem em sua maioria nos estábulos e escolas de Wrestling localizados lá e vai crescer ainda mais. É que em uma insegurança contextede eo desemprego galopante, característica dos subúrbios, o jogo-nes encontrados em uma luta real solution-pour melhorar as suas condições de vida e de ser famoso. Os jovens dos subúrbios, por meio da luta, têm, na verdade, forçou as portas da visibilidade pela sua onipresen- ça na mídia. O estudo, com base na definição de teoria, tem como objetivo estudar o sucesso da anterior “sem voz” no cenário da mídia senegalesa.

Résumé La lutte traditionnelle, aussi appelée un “sport de chez”, a prise aujourd’hui une telle ampleur dans a capitale sé-négalaise qu’il est devenu aisé d’associer l’une l’autre. D’autant plus aisé que l’essentiel de ses acteurs y résident et la plupart des écuries et écoles de lutte y sont implantées et y poussent davan- tage. C’est que dans un contextede précarité et de chômage endémique,ca- ractéristiques de la banlieue, les jeu-nes ont trouvé dans la lutte une véri- table solutionpour améliorer leurs conditions d’existence et d’être fameux. Les jeunes de la banlieue, grâce à la lutte, ont, en effet, forcé les portes de la vi-sibilité par leur omniprésence dans les médias. Cette étude, s’inspirant de l’agenda setting et de la théorie des médias fra-mes, a pour but d’etudier le succès des ex «sans-voix» dans le paysage médiatique sénégalais. Pour realiser cet étude, des di-zaines d’émissions télévisives, radio, de titres de journaux et de sites internet spécialement destinés à la lutte ont été analysés. Mots-Clés: Lutte traditionnelle. Sénégal. Banlieue. Médias. Agenda setting. Frames.

* Docteur en Sciences de l’Information et de la Communication, Chercheur associé à MICA — Université BORDEAUX 3, Chargé de cours à l’ISSIC et à SUPDECO — Dakar. E-mail: [email protected].

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61 Communication et lutte traditionnelle au sénégal: la revanche des «sans voix»

La lutte traditionnelle est communément tement projetés au devant de la scène mé- appelée un “sport de chez nous” pour la diatique1. Strass et paillettes tout cela, donc différencier du football, du basketball, du gloire éphémère qui n’a fait que compliquer handball, du judo, du karaté, etc., considé- davantage la vie de ceux qui n’ont eu pour rés comme des disciplines sportives héritées seul tort que de vouloir être «visibles». Ran- de notre passé colonial. Le spectacle de deux çon de leur quart d’heure de gloire: dépres- mastodontes, torse nu, en corps à corps, gal- sion, tentative de suicide, etc2. C’est dire que vanisés par une foule en liesse formant un c’est dans la durée qu’on évalue les capaci- cercle, a toujours agrémenté les veillées des tés de quelqu’un à figurer dans l’agenda des campagnes sénégalaises. Simple spectacle médias. Les candidats aux téléréalités n’ont villageois, les séances de lutte traditionnelle pas été assez endurants, et pis, n’ont pas pu sont très vite devenues des compétitions in- gérer ce manque d’endurance. Pour la re- ter-villageoises très courues. Aujourd’hui, ce vanche, ils attendront encore… sport a envahi les villes en même temps que Au Sénégal, ce n’est pas à travers les la cohorte de ruraux qui ont fui la campagne émissions de téléréalité que la parole dans pour de meilleures conditions de vie. les médias et plus particulièrement à la té- La communication désigne ici l’ensemble lévision s’est démocratisée, mais plutôt par des techniques permettant la diffusion d’un le biais des émissions sportives. Les jeunes message auprès d’une audience plus ou de la banlieue, grâce à la lutte, ont, en effet, moins vaste et hétérogène (presse écrite, ra- forcé les portes de la visibilité par leur omni- dio, télévision, internet, etc.). C’est le propre présence dans les médias. de ces moyens de communication de masse Prendre prétexte de la lutte pour parler d’inclure et d’exclure à la fois. Autrement dit, de la banlieue — ou vice-versa — appelle en même temps qu’ils portent un message en une remarque: la lutte, bien que discipline direction de la masse, ils excluent une bonne sportive nationale, a pris aujourd’hui une partie de ce public hétérogène de leurs co- telle ampleur dans cette partie de la capitale lonnes, écrans et ondes et subséquemment sénégalaise qu’il est devenu aisé d’associer du débat public (Voire, 1992, p 459-469). l’une à l’autre. D’autant plus aisé que l’es- Osons la métaphore sportive et considérons sentiel de ses acteurs (lutteurs, promoteurs, les médias comme un immense terrain de voyants, etc.) y résident et la plupart des jeu où ne s’amusent que les «grands» de ce écuries et écoles de lutte y sont implantées monde, la minorité; l’écrasante majorité, et y poussent comme des champignons. elle, étant condamnée à contempler de loin 1 “Loft story”, “Nouvelle star”, etc. sur M6, “Secret le spectacle médiatique. Story”, “Koh-Lanta”, “Star Academy”, “l’île de la Il a fallu du temps et des sacrifices pour tentation”, etc. sur TF1, etc. faire comprendre au personnel des médias 2 Beaucoup de participants à ces émissions de té- léréalité n’ont pas pu gérer leur subite notorié- que les anonymes n’étaient pas résignés à té. À plus forte raison quand ils sont retombés leur sort, qu’ils voulaient eux aussi exister dans l’anonymat parce que zappés ensuite par médiatiquement. les médias. C’est le cas de Loana propulsée au devant de la scène grâce à la première saison de “ En France et dans les pays occidentaux Loft story” de M6 et qui, pour continuer à exister en général, on a voulu régler le problème à médiatiquement, a du simuler des tentatives de suicide. Un ancien candidat de la 3ème saison de travers les émissions de téléréalité où d’il- “Secret story” de TF1, François Xavier Leuridan, lustres anonymes, d’ex sans-voix sont subi- alias FX, s’est jeté sous une voiture en 2011.

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C’est que dans un contexte de précarité et de vous dites que vous habitez la banlieue, on chômage endémique caractéristiques de la vous regarde avec mépris...»; «il y a une banlieue, les jeunes pour la plupart analpha- belle façade maritime à Guédiawaye, mais à bètes et déscolarisés ont trouvé en la lutte cause de l’insécurité, aucun investisseur ne un véritable remède anticrise, le seul moyen pense y édifier un grand hôtel à l’image de pour améliorer leurs conditions d’existence Méridien Président» (Sic); «vous remarquez et, cerise sur le gâteau, d’avoir une existence qu’il y a toujours quatre vigiles à la carrure médiatique. de lutteur devant la Pâtisserie située à... Ils Cette étude, s’inspirant de l’agenda set- savent pourquoi ils la gardent...», «la ban- ting et de la théorie des médias frames, a lieue, c’est la dèche, la galère...» (sic) et tutti donc pour ambition d’analyser cette subite quanti. À vrai dire, tout n’est pas que crasse, irruption de ces ex «sans-voix» dans le pay- flaques d’eau et traces de sang en banlieue. sage médiatique sénégalais. Les uns y vivent comme en enfer, alors que d’autres y ont trouvé leur paradis, comme La banlieue mal-traitée partout ailleurs dans le monde. Bonne presse, la banlieue ne l’a jamais eu D’un point de vue théorique, cette façon au Sénégal. Si les médias consentaient à en de traiter l’information fait penser à l’effet parler, c’était toujours en des termes peu élo- de cadrage, une des fonctions des médias. gieux. La seule place qu’elle méritait, c’était L’angle de traitement, le choix des mots, des la rubrique “des chiens écrasés”: la fameuse images et des métaphores ne sont jamais page “faits divers” où, secret de polichinelle, fortuits. C’est en effet une manière pour les il est toujours question de sexe, de sang et de journalistes de proposer des cadres (frames) gros sous. Viols, agressions, vols, malheureux d’interprétation aux audiences, lesquels enfants se noyant dans les bassins de réten- sont susceptibles d’être partagés et utilisés tion construits pour contrer la furie des eaux par le public de manière préférentielle pour de pluie qui, elles-mêmes, obligent familles porter un jugement, voire pour évaluer des et quartiers entiers à trouver refuge dans des évènements, des personnages, etc. «Bref, abris provisoires, sempiternelle solidarité en à travers l’effet de cadrage, les journalistes leur faveur, célébrités et politiques à leur che- tendent à suggérer au public la “meilleure” vet, etc.: voilà le menu quotidien des médias façon d’aborder un thème (la plus “logique”, en ce qui concernait la banlieue. Et écrire au la plus “réaliste”, la plus “juste”, la plus “mo- passé ne signifie aucunement que ces clichés, derne”…), et donc à orienter son jugement stéréotypes ont, comme par miracle, disparu quant à ce thème — sans pourtant lui en- de leur angle de traitement. joindre en quoi que ce soit, du moins pas de Les banlieusards en arrivent même à façon explicite, d’adopter un certain com- croire qu’ils sont les nouveaux «damnés portement ou une certaine opinion» (Der- de la terre». Vendredi 20 décembre 2013, ville 2005, p. 50). l’émission “Grand rendez-vous” de la 2STV L’effet de cadrage n’est, d’ailleurs, a, entre autres invités, un jeune représentant pas très éloigné, sur le plan théorique, de d’une association pour le développement de l’agenda setting que nous aborderons plus Guédiawaye3. Morceaux choisis: «Quand loin. C’est son extension, pense Maria San- tos-Sainz (Santos-Sainz, 2006, p. 168). Il 3 Mouvement “domou” Guédiawaye (Natifs de Guédiawaye). vient le compléter, selon Grégory Derville

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qui développe: «Alors que celui-ci consiste Cette discipline est passée, après 2000, à installer dans l’esprit du public telle pré- d’une situation de marginalité, voire de qua- occupation plutôt que telle autre, l’effet de si anonymat à la saturation. Quatre (4) émis- cadrage consiste à présenter d’une manière sions sont consacrées à la lutte à SEN TV: spécifique chacun des sujets abordés par les “Le grand combat”, “Mbeur gaale”6, “Jell bi”7 médias, et à appeler à leur égard des réac- et “Gaal gaal”8; trois (3) à la TFM: “Roffo”9, tions et des évaluations congruentes avec le “Joganté”10 et “L’oeil du tigre”; trois à RDV: cadrage retenu»(Derville G, 2005, p 50-51.). “Xew xewu lamb ji”11, “Sunu lamb”12 et “xam Pour conclure sur ce point, dans leur sa mbeur”13; une à 2STV: “Bantamba” lancée traitement de l’information en rapport avec en 2002 et considérée comme pionnière en la banlieue, les médias ont toujours proposé la matière; une également à la RTS et à Wal — et continuent d’ailleurs de le faire — trois Fadjri: “Caxaabal”14 et “Lamb Ji”, respective- cadres interprétatifs (frames) au public: ment. Il faut ajouter à toutes ces émissions — Banlieue = pauvreté exclusivement consacrées à la lutte, les nom- — Banlieue = violence breuses “pages spéciales” dédiées aux acteurs — Banlieue = inondations. de cette discipline: lutteurs, promoteurs et animateurs communément appelés commu- La banlieue, une question de... nicateurs traditionnels. Dans la quinzaine du choix 2 au 15 décembre15 2013, le pensionnaire de La libéralisation de la télévision intervenue l’écurie Mor Fadam sise à Guédiawaye, Gou- après 2000 a permis à beaucoup de jeunes ygui a eu droit à son «spécial» sur la 2STV des banlieues défavorisées4 de passer de qui a dépêché reporters et cameramen pour l’ombre à la lumière par leur omniprésence filmer ses entrainements à New York, en de- quotidienne dans les médias. La preuve par hors de toute grande actualité sur la lutte, son une analyse de contenu sommaire des mé- combat contre Zoss de l’écurie Door Dorat dias. “Sport de chez nous”, beaucoup de lut- des Parcelles Assainies n’étant en effet prévu teurs qui font aujourd’hui la fierté de l’arène que dans quatre mois (avril 2014). C’est dans sénégalaise n’ont qu’un vague souvenir de le même registre qu’il faut inscrire le dépla- cette unique émission de la RTS (Radiodif- cement des équipes de la SENTV en Suisse fusion télévision du Sénégal) naguère consa- animateurs qui avaient dépassé la cinquantaine, crée à la lutte traditionnelle et aux autres donnant ainsi l’impression que la lutte n’était pas affaire de jeunes. Résultats: l’émission et par disciplines sportives de chez nous (courses conséquent la lutte n’intéressaient que des per- hypiques, régates, etc.). L’heure de program- sonnes d’âge avancé. mation et le format de l’émission n’offraient 6 Littéralement “lutteur à domicile”. 7 La chute. aucune possibilité pour ses animateurs de 8 Croc en jambe. valoriser ce sport5. 9 Corps à corps. 10 Confrontation. 4 Pikine, Guédiawaye, Thiaroye, Diamaguène, 11 Les nouvelles de la lutte. Parcelles assainies, etc. Il faut inclure dans cette 12 Littéralement “notre lutte”. liste la Medina, Fass qui ne sont pas des ban- 13 Connaitre son lutteur. lieues, mais ont la même caractéristique. 14 C’est une technique de lutte généralement utili- 5 “Sport de chez nous” était programmé le di- sée pour désarçonner son adversaire. manche en fin de soirée, entre 17h et 18, une 15 Nous avons choisi exprès une période en dehors tranche horaire qui n’est pas propice pour cap- de toute grande actualité sur la lutte, le début ter une large audience et par conséquent les an- des grandes affiches n’étant prévu qu’en fin jan- nonceurs. A la présentation, il n’y avait que des vier 2014.

64 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 61-71, jan./jun. 2015 Seydou Nourou Sall pour nous rendre compte de l’état de forme tier, de ville, les lutteurs ne ratent jamais de Rocky Balboa en vue de mousser l’affiche l’occasion qui leur est ainsi offerte de faire du promoteur Aziz Ndiaye qui voulait trou- la promotion de leur fief, de leurs proches ver un adversaire de taille au roi des arènes, et de tous “ceux qui de près ou de loin ont Balla Gaye 2 de Guédiawaye en juin 201416. contribué à leur réussite”20, pour la plupart La même quinzaine, la chaîne a déroulé le des gens de la banlieue. Ils en profitent éga- tapis rouge à l’ex-ministre Malick Gackou, lement pour faire étalage de leur subite ai- homme politique mais aussi ancien promo- sance matérielle et font ainsi rêver des mil- teur, président d’honneur d’une écurie de la liers de jeunes de la banlieue qui s’identi- banlieue, ami des lutteurs et défenseur invé- fient à eux21. 17 téré de la banlieue . Dimanche 15 décembre, Et les nouveaux concepts d’émission22 le célèbre animateur de lutte, Bécaye Mbaye qui consistent à aller à la découverte de ces était l’invité de Roller avec les stars sur AFRI- athlètes à domicile, à filmer leurs moindres CA 7. Et cela n’est rien comparé à la sur-mé- faits et gestes, déplacements durant une diatisation à l’approche des grandes affiches journée entière, autrement dit à s’intéres- 18 avec d’interminables face-à-face sensés les ser à leur quotidien, leur en donnent l’op- mousser, lesquels sont retransmis en direct portunité. par les chaînes de télévision. La presse écrite s’aligne sur la télévision Preuve, s’il en est encore, de la place de en ce qui concerne la place de choix accor- choix qu’occupe la lutte dans la grille des dée à la lutte. L’analyse sommaire du conte- programmes des chaînes de télévision séné- nu de L’Observateur du 2 au 15 décembre galaises, toutes ces émissions sont program- 2013, donne des résultats édifiants: exceptés mées en prime time (20h-22h), la tranche les jeudi 5 et lundi 9 décembre, le quotidien horaire qui capte l’audience la plus large et le plus lu et le plus vendu au Sénégal avec par conséquent le plus grand nombre d’an- 100 000 exemplaires/jour, a consacré, tous nonceurs. Les spots publicitaires y sont éga- les jours, une partie de sa “Une” à cette dis- lement plus chers19. Cette discipline sportive cipline sportive. étant d’abord et avant tout affaire de quar- • Édition du lundi 2 décembre: 16 Un ballon de sonde en fait, le promoteur expli- «LUTTE: ROCKY BALBOA APRES SA quant dans les colonnes de l’Observateur que les amateurs ont plébiscite Bombardier comme SIGNATURE AVEC AZIZ NDIAYE: meilleur adversaire de Balla Gaye 2 au détri- “je serai à Dakar le 20 décembre”. Il ment du lutteur Sénégalais établi en Suisse. sera l’invité du combat Modou Lô — 17 À l’en croire, la lutte est «un accélérateur de dé- veloppement, générateur d’emploi en banlieue», 20 C’est une spécialité des lutteurs que de dresser in le monde.fr, «la lutte sénégalaise dans l’arène une liste de remerciements interminable, ce qui politique» de D. Thiénot, publié le 4 mai 2012 leur vaut des railleries. 18 Trois face-à-face sont en principe prévus avant 21 Il y a aujourd’hui officiellement 43 écuries de chaque grande affiche, mais pour mousser da- lutte disséminées dans la banlieue, mais en ré- vantage les combats, les sponsors en demandent alité une centaine où se ruent les jeunes, la plu- toujours plus. part analphabètes ou déscolarisés. Ces jeunes 19 Les autres tranches horaires: Day time: matinée, désoeuvrés de la banlieue ne comptent que sur demi journée et après midi jusqu’à 18h59. L’au- la lutte pour changer leurs conditions de vie. dience n’est pas élevée sauf à 13h; Access prime 22 Xam sa mbeur, littéralement «connaître son time: 19h-20h, capitale pour les chaînes car c’est lutteur» et mbeur gallé «lutteur à domicile» en le moment de capter l’audience du prime; Night sont de parfaits exemples. Il arrive très souvent time (fin de soirée): l’audience n’est pas élevée que les autres émissions s’alignent sur le même mais très sélective. En radio, le prime time c’est concept en allant filmer le quotidien des lut- entre 7 heures et 9 heures. teurs.

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Eumeu Sène». «Khadim Ndiaye, écurie Thiaroye sur • Mardi 3 décembre: «LUTTE: ROCKY mer: “je ne vais plus subir ce qui m’est BALBOA RACONTE PAR SES PA- arrivé lors de mon combat contre RENTS: Sa maman: “l’animosité n’a Yekini”» pas sa place dans ce combat”. Son Cet appel systématique de la lutte à la frère: “C’est Papis qui tend la perche Une, en dehors de toute actualité chaude à Balla Gaye 2”». en relation avec elle — pour rappel —, dé- • Mercredi 4 décembre: «PAPE FAYE, montre de l’intérêt accordé à ce sujet. Il CHARGE DE LA COMMUNICATION n’est pas inutile de préciser que la Une re- DE LUC NICOLAI AND CO: “Dès sa présente l’accueil et l’entrée du journal, sa sortie, Luc Nicolaï va organiser de vitrine. Elle témoigne du choix d’une ré- grands événements”». daction et de la hiérarchisation de l’infor- • Jeudi 5 décembre: Pas d’appel à la mation. Les dizaines d’émissions radio, de Une. titres de journaux et de sites internet exclu- • Vendredi 6 décembre: «LUTTE: GRIS sivement consacrés à la lutte viennent com- BORDEAUX, 3ème TIGRE DE FASS: pléter l’analyse. C’est dire que l’essentiel de “je ne ferai pas de cadeau à Tyson”». l’information tourne, aujourd’hui, au tour • Samedi 7 et dimanche 8 décembre: de la lutte qui, par conséquent, prime sur le «LUTTE: ABIAN, FRANCISCO ET quotidien des Sénégalais. ALBERTO SUR LES TRACES DE Expliquer ce coup de projecteur, la su- JUAN: Des espagnols s’emparent du bite célébrité de ces jeunes de la banlieue business de l’arène»; «MODOU LO: par la seule force de leurs bras monnayée à “Je reviens mercredi prochain”». coups de millions de francs CFA23 à l’occa- • Lundi 9 décembre: pas d’appel à la sion de combats de lutte avec frappe nous Une. parait, en effet, très réducteur. Ces jeunes de • Mardi 10 décembre: «LUTTE: ZOSS la banlieue pèsent et comptent aujourd’hui SE MOQUE DE SON PROCHAIN parce que les médias en ont décidé ainsi par ADVERSAIRE: “Gouy gui ressemble le pouvoir qu’ils ont de décider de ce qui à Michelin”» doit être dit ou tu, en d’autre termes, de ce • Mercredi 11 décembre: «AZIZ qui est un évènement et ce qui ne l’est pas, NDIAYE, PROMOTEUR DE LUTTE: autrement dit par leur fonction d’agenda “C’est Modou Lô qui n’est pas prêt, setting (Ordre du jour). La preuve, leurs Eumeu voulait lutter le 1er janvier”». ainés dans l’arène avaient autant ou plus • Jeudi 12 décembre: «Gouy gui répond de force et de bravoure qu’eux, mais parce à son adversaire (zoss)» que la lutte traditionnelle n’était pas aus- 24 • Vendredi 13 décembre: «LUTTE: Le si médiatisée , leur aura ne dépassait pas choc de la saison pour le 15 juin 2014. 23 Les cachets des lutteurs avoisinent aujourd’hui Aziz Ndiaye officialise le combat Balla les centaines de millions de FCFA. Yekini et Bal- la Gaye 2 auraient touché, respectivement 160 Gaye 2 — Bombardier. Aziz Ndiaye: millions et 120 millions lors de leur confronta- “Balla Gaye 2 — Rocky Balboa pour- tion en 2012. rait se tenir en Europe”. Rocky Bal- 24 “Il n’y avait qu’une seule télévision et une seule radio”, explique Bécaye Mbaye, le célèbre ani- boa: “Aziz Ndiaye me fait rire”». mateur de l’émission de lute Bantamba sur la • Samedi 14 et dimanche 15 décembre: 2STV, dans l’émission Roller d’AFRICA 7 du 15

66 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 61-71, jan./jun. 2015 Seydou Nourou Sall le cercle restreint des amateurs et incondi- Cette longue citation démontre la pro- tionnels. Et la lutte n’était pas, comme il est portion qu’a prise la lutte et son influence aujourd’hui, à l’ordre du jour, au menu de dans le vécu de nombreux Sénégalais. Et il toutes les discussions. D’où d’ailleurs ce ré- n’est pas inutile de le répéter: son omnipré- quisitoire sévère d’un média alternatif: «À sence dans les médias n’y est pas étrangère. la place de trouver une panacée par rapport Pour conforter l’analyse, Becaye Mbaye, plé- aux longues souffrances que subit la plèbe biscité comme meilleur animateur télé en (sic), le débat est axé sur la belle victoire matière de lutte et qui a contribué à popula- du lutteur de son coin et sur la contestable riser cette discipline à travers son émission défaite de l’autre. Réunis pour les “3 nor- Bantamba sur la 2STV, déclare dans l’émis- maux”25, le temps que le “Leuweul”26 soit sion “Roller” d’AFRICA 7 du 15 décembre servi, les soi-disant spécialistes de lutte se 2013: «ce sont les médias et le sponsoring mettent à commenter les combats sans n’en qui ont tiré la lutte vers le haut. La lutte a rater aucun détail. Pire, après certains com- atteint aujourd’hui un tel niveau que tout le bats, on assiste à des batailles rangées entre monde veut devenir communicateur tradi- supporters qui peuvent même aller jusqu’à tionnel». entrainer mort d’hommes. Que ça soit au Ce modèle d’appréhension des effets des marché, dans les bureaux, les postes de po- médias à travers le mécanisme de la fonc- lice, les services d’état civil et même dans tion d’agenda a été introduit, en 1972, par les hôpitaux, les commentaires fusent de M. McCombs et D. Shaw(McCombs, Shaw, partout et de loin, en simple observateur, 1972, p 176-187). Selon leur théorie, «les nous pouvons déchiffrer les mouvements éditeurs et les programmateurs jouent un et actions de certains qui vaille que vaille rôle important dans la formation de la réa- tiennent à reproduire les actions du combat lité sociale par la sélection et le classement dans leurs explications. Ils sont tous des lut- des informations. Ils sont, en somme, les teurs en herbe. Ou bien devrai-je dire, nous auteurs d’un véritable agenda public qui sommes tous des lutteurs. Le vocabulaire de ordonne et organise notre monde»( Sfez , la lutte nous est tous devenu familier, [… ] 1993, p. 1085). Autrement dit, si la presse Si vous vous amusez à interroger un enfant ne pouvait pas toujours réussir à convaincre que veut-il devenir ? Il vous répondra sans les gens de ce qu’il faut penser, elle avait, aucun doute: Lutteur. Et vous lui deman- par contre, plus de réussite à leur dire ce à dez pourquoi ce choix? Il dira: je veux avoir quoi il faut penser, «conférant alors statuts, des millions pour aider ma mère (sic). Cet stéréotypes et images au réel»( Sfez, 1993, enfant aura-t-il la chance de rester à l’école p. 1085). L’Agenda setting se situe dans la ? Est-ce-que le Sénégal doit-il compter sur tradition nord-américaine des études sur les cette génération pour assurer la relève dans effets des médias, mais se pose, en même 27 les différentes fonctions de l’État?» . temps, comme alternative à la probléma- décembre 2013, rediffusé le 22 décembre. tique de Paul Lazarsfeld et de ses collabora- 25 Séance de thé teurs de l’école de Columbia qui cherchaient 26 Le premier service. Une séance de thé en com- prend trois. les effets des mass media sur leur audience, 27 “Quand la lute fait l’actualité et prime sur le sans jamais les trouver. quotidien des Sénégalais”, www.ruepublique. net, publié le 18 janvier 2011, consulté le 22 dé- Les résultats de leurs études leur ré- cembre 2013. vélant plutôt le contraire de ce qu’ils es-

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comptaient, à savoir «le caractère limité, omniprésents dans les médias, c’est parce éphémère, voire négligeable de l’influence qu’ils l’ont voulu. Mais avaient-ils vraiment “immédiate” de la lecture d’un éditorial le choix? partisan ou du spectacle sur grand ou petit écran, d’une oeuvre de fiction particulière- La logique économique ment violente»( Balle, 1987, p. 123). La dé- Éluder la dimension commerciale dans une couverte du rôle «décisif»( Mattelart, 1995, étude portant sur les médias relève presque p. 25) des leaders d’opinion dans un proces- d’un non-sens. Les médias sont des entre- sus de communication en deux étapes (two- prises comme les autres, comme tels, ils se step flow of communication), et plus tard, soucient de leur rentabilité. L’autre raison la prise en compte des conversations avec diffuse et généralement tue qui pousse donc les proches qui montre que les gens pensent les medias à ne pas accorder une importance comme ceux avec qui ils vivent et travaillent égale à tous les sujets, à orienter l’attention étaient passées par là. Une telle thèse ne du public sur certains thèmes plutôt que pouvait donc qu’accorder un pouvoir relatif d’autres, c’est la logique commerciale. «Les aux médias. choix politiques, la recherche de l’originali- Maxwell McCombs et Donald Shaw qui té, le souci de plaire au public, les impératifs cumulaient à la fois une expérience dans le commerciaux sont autant d’éléments qui, domaine des médias et une formation uni- parmi d’autres, tendent à imposer certains versitaire en Sciences sociales se sont, en types de mise en valeur de l’information»( fait, retrouvés au coeur d’une contradiction: Cayrol, 1991, p.15). «alors que leur expérience professionnelle De fait, il existe «une industrie de la leur apporte la conviction que les médias communication et des médias. Les jour- possèdent un impact réel et important, leur naux sont offerts sur un marché, comme formation universitaire les met en face des n’importe quelle marchandise»( Balle, premiers résultats de la sociologie des mé- 1999, p. 89). Les médias sénégalais ne dias démontrant les effets limités des mé- dérogent pas à cette règle et ne font donc dias. Cette contradiction explique sans qu’obéir aux lois de l’offre et de la demande. doute en partie, pourquoi ces chercheurs dé- Si la lutte y bénéficie aujourd’hui d’un cer- sirent renouveler la tradition des études sur tain privilège, n’est-ce pas parce qu’elle fait les effets en postulant que les médias ont un audience ? N’est-ce pas le public qui déter- impact plus important que ne veut bien l’ad- mine ce qu’il faut écrire et dire ? D’où une mettre l’école de Columbia»( Breton, 1996, espèce de «dictature du lectorat»( Ruffin, p. 220). Ainsi donc, cette théorie qui s’ins- 2003, p. 76), qui s’exerce quotidiennement crit pourtant dans la tradition empirique et conditionne les médias dans le choix des nord-américaine, ne fait que conclure, même sujets à traiter. si c’est de manière enrobée, à une certaine Dès lors, la place de choix accordée à influence des médias. Cette influence se si- la lutte dans les grilles de programme des tue donc dans le pouvoir qu’ils ont, d’opérer chaînes de télévision et des colonnes des un choix, de sélectionner dans la masse des journaux est à analyser dans une perspective faits, sur une pluralité de sujets ceux qui mé- business. Les médias ne font que vendre «un ritent d’être portés à l’attention du public. Si temps de cerveau disponible» à la publici- les jeunes lutteurs de la banlieue sont aussi té, pour reprendre les termes de Patrick LE

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LAY, PDG de TF128. Autrement dit, ce capi- tion des paroles souvent désobligeantes, des tal-audience aux annonceurs (les plus actifs: langages codés et des mots déplacés qu’ils opérateurs de téléphonie mobile, secteur utilisent souvent dans leur milieu naturel. de l’agroalimentaire, du transfert d’argent, C’est tout à fait normal et responsable, que de l’électroménager, etc.), véritables bail- le CNG rectifie le tir avec ces “face to face” leurs des médias par le biais du sponsoring qui n’ont rien d’instructif, si ce n’est de faire d’émissions de lutte. passer le message publicitaire de sponsors”, Une part belle à la lutte faite au détriment tonne (sic) un responsable de l’instance diri- d’autres émissions plus «instructives». Et la geante de l’arène»(Babacar, 2013). polémique enfle: «Les annonceurs et autres mécènes de la presse nationale ne s’inté- Conclusion ressent décidément qu’à la danse, à la lutte Pour résumer, nous dirons que c’est presque et aux émissions insipides qui n’ont aucune verser dans la naïveté que de penser que les valeur instructive pour les populations sé- médias en Afrique — à l’opposé des autres négalaises. Au moment où ils se bousculent médias — pourraient faire preuve de phi- au portillon pour soutenir des émissions bi- lanthropie. Ce sont des entreprises comme dons (sic), d’autres à haute densité instruc- les autres qui se soucient de leur rentabili- tive se meurent sans le moindre clin d’oeil té. Si éclairer les citoyens fait partie de leurs de ces annonceurs. C’est le cas de l’émission fonctions, ils le font volontiers quand cela ne “Le grand rendez-vous” qui passe tous les nuit pas à leurs intérêts. Leurs préoccupa- vendredis sur la 2STV et qui commence à tions sont très souvent d’un autre ordre. Ils retenir l’attention de tous les Sénégalais. Eu se soucient d’abord et avant tout, de toucher égard à sa pertinence, à son originalité et à la le public le plus large et de vendre ensuite pertinence de ses chroniqueurs qui ont fini ce public à des annonceurs. D’où la place de séduire les téléspectateurs»29. Autre cri- de choix accordé à la lutte et aux jeunes de tique de cette sur-médiatisation et son corol- la banlieue. La lutte est un spectacle et ces laire, et elle vient là où on l’attend le moins, jeunes de la banlieue font aujourd’hui rêver c’est-à-dire de l’instance dirigeante de la les adolescents30, et c’est cela qui attire pu- lutte au Sénégal, le Comité national de ges- blic, médias et annonceurs. tion (CNG): «”Il y a trop d’émissions de lutte Ce qu’il faudrait, cependant, c’est de par- au niveau des télévisions en cette période tir de cet intérêt pour la lutte et tirer les pro- scolaire, et les enfants sont tous les jours 30 «Les lutteurs sont devenus les idoles des enfants scotchés à l’écran, pour suivre avec délecta- et incontestablement des références pour ces derniers car étant considérés à hauteur de 70% 28 L’hebdomadaire Télérama, septembre 2004 au moins comme des rescapés de la délinquance reproduit les propos du PDG de TF1, extrait de et/ ou de la pauvreté qui ont réussi à la sueur de son ouvrage publié en mai 2004, intitulé Les leur front et qui conduisent aujourd’hui les plus Dirigeants face aux changements — Baromètre belles voitures, habitent les plus belles maisons, 2004: «Il y a beaucoup de façons de parler de épousent les plus belles femmes. Les cachets la télévision. Mais une perspective business, grimpent de plus en plus et leur notoriété natio- soyons réalistes: à la base, le métier de TF1, c’est nale les rend comparables aux stars de cinéma d’aider Coca-Cola à vendre son produit. Or, pour à Hollywood et ils sont devenus de réels leaders qu’un message publicitaire soit perçu, il faut que d’opinion.», in Zongo T., «La lutte, la reine des le cerveau du téléspectateur soit disponible». sports au Sénégal», publié le 21 septembre 2013 29 Aliou FAMA, «L’émission “Le grand rendez-vous” dans le site www.mutationsbf.net, site internet arrêté pour faute de sponsors», www.senego.net, du bimensuel burkinabé d’informations géné- 23 mars 2013, consulté le 20 décembre 2013. rales et d’opinions, Mutations.

Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 61-71, jan./jun. 2015 69 Communication et lutte traditionnelle au sénégal: la revanche des «sans voix»

grammes télé vers le haut. C’est dans cette Referências voie que compte s’engager le CNG par la voix Ouvrages: d’un de ses responsables qui renseigne dans les colonnes de Wal Fadjri, qu’en 2014, l’ac- Balle F., Et si la presse n’existait pas..., Paris, Editions Jean-Claude Lattès, 1987. cent sera mis «sur des thèmes à trouver lors de ces rencontres télévisuelles, afin de donner Balle F., Introduction aux médias, Paris, PUF, un contenu à l’émission. Les lutteurs en géné- 1999. ral, sont des analphabètes. Il serait ainsi bon Balle F., Les médias, Paris, Flammarion, 2000. de les orienter sur des sujets d’actualité, pour Breton P., Proulx S., L’explosion de la communi- porter un message instructif à l’endroit des cation, Paris, La Découverte, 1996. enfants qui les suivent à la télévision». Cayrol R., Les médias Presse écrite, radio, télé- À vrai dire donc, cette surexposition ne vision, Paris, PUF, 1ère édition, 1991 contribue paradoxalement pas à redorer le Debray R., Vie et mort de l’image, Paris, Galli- blason de ces jeunes. La lutte — et par consé- mard, 1992. quent ceux qui la pratiquent — reste syno- nyme de violence, de vulgarité, de bling- Derville G, Le pouvoir des médias. Mythes et ré- alités, Grenoble, PUG, 2005. bling. Et pour du spectacle, encore plus de spectacle, médias et sponsors n’ont, pendant Mattelart A. et M., Histoire des théories de la communication, Paris, La Découverte, 1995. longtemps, rien fait pour effacer cette image qui risque de leur retomber dessus comme McCombs M., Shaw D., «The agenda-setting un effet boomerang. Déjà, les premiers, par function of mass-media», Public Opinion Quar- terly, n°36, 1972. crainte de voir leur image écornée à cause de leur association avec la lutte, se retirent de Ruffin F., Les petits soldats du journalisme, Pa- ris, Les Arènes, 2003. plus en plus de l’arène. Et les médias qui n’y trouveront plus d’intérêt commercial feront, Santos-Sainz M., L’élite journalistique et son à coup sûr, retomber ses pratiquants dans pouvoir, Rennes, Editions Apogée, 2006. l’anonymat. Sfez L., Dictionnaire critique de la communica- Or, l’objectivité recommande que l’on ne tion, Paris, PUF, 1993, Tome 2. jette pas le bébé avec l’eau du bain, car tout Articles: n’est pas négatif dans cette pratique spor- FAMA A., «L’émission “Le grand rendez-vous” tive. La réduire à sa plus simple expression arrêté pour faute de sponsors», www.senego. peut être doublement dommageable. Pri- net, 23 mars 2013, consulté le 20 décembre mo, elle participe de la valorisation du pa- 2013. trimoine local par son fort intéressant volet Ndoye B. N., «Saison de lutte 2013-2014: le culturel. Secundo, elle permet de canaliser, CNG brandit le bâton et la carotte», Wal Fadjri mieux d’orienter le trop plein d’énergie de 22 octobre 2013. tous ces jeunes vers une activité ludique et Thiénot D., «la lutte sénégalaise dans l’arène po- lucrative. «Il existe une bombe sociale en litique», www.lemonde.fr, publié le 4 mai 2012. banlieue. C’est une raison supplémentaire Zongo T., «La lutte, la reine des sports au Sé- pour que l’État essaie de gérer ce sport de négal», publié le 21 septembre 2013 dans le site manière professionnelle»( Thiénot, 2012). www.mutationsbf.net. Le célèbre lutteur, Mohamed Ndao Tyson “Quand la lute fait l’actualité et prime sur le quo- résume ainsi bien la question. tidien des Sénégalais”, www.ruepublique.net,

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70 Seydou Nourou Sall publié le 18 janvier 2011. Emission “Grand rendez-vous” de la 2STV du 20 décembre 2013. Document Audio: Emission “Roller” d’AFRICA 7 du 15 décembre Recebido em: 17/02/2015 2013, rediffusé le 22 décembre. Aprovado em: 19/03/2015

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Tradição africana e os saberes no currículo das escolas quilombolas

Adelmir Fiabani*

Resumo Em 2003, atendendo demanda do movimento negro e de parte da academia, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639, que obriga a inserção da História da África e cultura afro-brasileira no currículo das escolas de Educação Básica do Brasil. Em 2004, foram instituídas as Dire- trizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Em 2012, foram publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Es- colar determinando mudanças consideráveis, sobretudo, nos currículos com a inserção/valorização dos conhecimentos das comunidades remanescentes de quilombos. Estas comunidades guardam aspectos cultu- rais trazidos pelos trabalhadores escravizados, que passaram de geração em geração mantendo vivo o legado africano no Brasil. Os quilombos antigos e as comunidades negras do Brasil sobreviveram graças aos conhecimentos transmitidos pelas gerações mais velhas e a experiência acumulada, fator de- terminante no processo de resistência à escravidão e, posteriormente, em defesa da terra. Portanto, os saberes fazem parte da vida dessas comunida- des. Saberes que orientaram a vida em grupo, conhecimentos sobre técnicas de cultivo, utilização de ervas medicinais, conhecimentos sobre construção de casas, ferramentas e outras. A maioria das comunidades negras apresenta artesanato muito diversificado, com utilização de produtos extraídos da na- tureza, constituindo-se em um dos elementos identitários e fonte de renda, principalmente para as mulheres. Neste artigo, abordamos a importância do estudo dos saberes e da oralidade como metodologia de transmissão de uma geração a outra. Também citamos alguns tipos de saberes que há nas co- munidades negras brasileiras. A África permanece viva nestas comunidades através da perpetuação destes conhecimentos e valorização dos saberes lega- dos pelos trabalhadores escravizados, quilombolas e, posteriormente, pelas pessoas mais velhas das comunidades. Palavras-Chave: Educação. Quilombolas. Saberes. Currículo.

* Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISI-NOS); professor adjunto na Uni- versidade Federal da Fronteira Sul, Cam-pus Cerro Largo. [email protected]

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Abstract Since 2003 many significant changes in the Brazilian educational programs have been introduced. Many of them deal with the question of Afro-Brazilian culture and history courses. Such changes require a certain redefinition of curriculum at different levels of national education. The article deals with the process of rediscovery, reintroduction and recovery of African traditions and legacy in educational institutions of the vast Brazilian territory. A big part of such an adjustment consists of special techniques from different areas of hu- man activity such as a medicine or a civil engineering. The paper emphasizes the importance of such recovery for contemporary Afro-Brazilian culture. Keywords: Education. . Knowledge. Curriculum.

Introdução Em 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula A Lei 10.639/03 não serve apenas para da Silva sancionou a Lei 10.639, que torna que o povo negro e mestiço tenha sua his- obrigatório o ensino sobre História e Cultu- tória contemplada nos currículos, mas para ra Afro-Brasileira nos estabelecimentos de que todas as etnias tenham acesso à história ensino fundamental e médio, oficiais e par- e cultura africana. Conforme Kabengelê Mu- ticulares. Conforme a Lei, o conteúdo pro- nanga, gramático incluirá o estudo da História da O resgate da memória coletiva e da história África e dos Africanos, a luta dos negros no da comunidade negra não interessa apenas Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na aos alunos de ascendência negra. Interessa formação da sociedade nacional, resgatando também aos alunos de outras ascendências a contribuição do povo negro nas áreas so- étnicas, principalmente branca, pois ao re- cial, econômica e política pertinentes à His- ceber uma educação envenenada pelos pre- tória do Brasil (BRASIL, 2003). conceitos, eles também tiveram suas estru- turas psíquicas afetadas. Além disso, essa Esta Lei constitui-se em um divisor de memória não pertence somente aos negros. águas na Educação brasileira, pois alterou a Ela pertence a todos, tendo em vista que a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que cultura da qual nos alimentamos quotidia- estabelecia as Diretrizes e Bases da Educa- namente é fruto de todos os segmentos étni- ção Nacional. Também serviu para corrigir cos que, apesar das condições desiguais nas um erro histórico, visto que os currículos quais se desenvolvem, contribuíram cada das nossas escolas não contemplavam os um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional conteúdos acima citados. Conforme a Edu- (MUNANGA, 2005, p. 16). cadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2013), a Lei constitui muito mais do que de- A História da África, que até a promul- terminações curriculares. Configura política gação da Lei 10.639/03 estava praticamente curricular, de alto alcance humano e social, afastada dos currículos, tem muita impor- uma vez que determina a correção de ima- tância para o Brasil. Somos uma nação mes- gens distorcidas dos negros e de suas reais tiça, com mais da metade da população se contribuições para humanidade, para nação declarando negra ou parda. A África está nas brasileira em particular. nossas veias, mas estava ausente dos ma-

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nuais didáticos e a Lei veio para corrigir esta Em novembro de 2012 foram aprovadas distorção na Educação brasileira. A História as Diretrizes Curriculares Nacionais para da África ajudará a responder uma série de a Educação Escolar Quilombola. Resulta- perguntas que não encontramos respostas do de intenso trabalho realizado por edu- nos currículos tradicionais. Conforme o his- cadores e ativistas ligados ao movimento toriador Alberto da Costa e Silva, negro e quilombola que buscaram inovar em todos os aspectos, desde a forma de ad- talvez tenhamos até mesmo melhores condi- ministrar a escola ao currículo. As referidas ções de entendimento afetivo para contar, ex- plicando, como se crioulizaram as duas mar- diretrizes são revolucionárias, pois alteram gens do Atlântico, como se estabeleceram profundamente a forma de participação da certos padrões culturais comuns nas cidades comunidade na escola, tratam do perfil aca- e vilarejos costeiros ligados pelo tráfico. Na dêmico/pedagógico do professor, abordam habitação. Na cozinha. Nas vestimentas. Nas a questão estrutural/funcional da escola festas. Em quase todos os modos de vida. No entre outros. capítulo das comidas, o rastreamento dos ca- minhos seguidos pelos vegetais nativos das Estas mesmas Diretrizes tratam da inser- Américas transplantados para a África po- ção dos saberes da comunidade nos Currícu- derá trazer grandes surpresas. Da mandio- los, uma tarefa difícil, visto que nossa tradi- ca, do milho e do amendoim, sabemos que ção de currículo não coaduna com esse tipo voltaram africanizados — em cozinhados e de conhecimento, ou seja, fomos treinados a preparos que os ameríndios desconheciam aceitar como verdadeiro somente o que está e até mesmo com nomes mudados (SILVA, nos livros, nos manuais didáticos. Os sabe- 2003, p. 238). res das comunidades sempre foram conside A importância da Lei 10.639/03 é indis- -rados como conhecimentos não científico, cutível por tudo que a África o negro repre- fora dos propósitos da Educação tradicio- sentam para nós. No entanto, mesmo sendo nal. Quando falamos em Educação tradi- Lei, não estava sendo implementada nas es- cional estamos nos referindo àquela onde o colas por diversos motivos: falta de material professor é o centro de transmissão do co- pedagógico, professores sem formação, tra- nhecimento e o aluno, mero receptor. Neste dição eurocêntrica de currículo. Foram en- tipo de Educação não há espaço ao novo, aos tão criadas normas balizadoras para a Edu- conhecimentos trazidos pelo aluno, nem há cação das Relações Étnico-raciais e História questionamento às instituições. e Cultura Afro-brasileira e Africana. Os conhecimentos acumulados pelas co- Em 2004 foram publicadas as Diretrizes munidades negras são importantes para to- Curriculares Nacionais para a Educação das dos, não somente aos alunos quilombolas, Relações Étnico-raciais e para o Ensino de pois trata-se da história e cultura de uma História e Cultura Afro-brasileira e Africa- das etnias formadoras do povo brasileiro. na, que balizam as ações no âmbito geral e Poderá ocorrer alguma resistência, tanto determinam competências nas diferentes dos docentes quanto dos discentes, em rela- esferas que compõe o sistema de ensino bra- ção aos saberes/conhecimentos, visto que o sileiro. No entanto, faltava a especificidade cientificismo ainda é forte em todos os níveis quilombola, ou seja, como operacionalizar de ensino. A academia também tem alguma a Lei nas escolas quilombolas e aquelas que dificuldade para tratar desta questão. No en- recebem alunos das comunidades negras. tanto, será necessário “uma ruptura em um

74 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 72-88, jan./jun. 2015 Adelmir Fiabani fazer pedagógico em que o currículo é visto ta de documento comprovando a proprieda- enquanto grade, hierarquicamente organi- de da terra. zado com conteúdos que perpetuam o poder As comunidades negras ganharam visibi- para que determinados grupos continuem a lidade do poder público e da academia re- outorgar” (NUNES, 2006, p. 152). centemente. A partir de 1988, com o advento Quanto ao currículo, trata-se de signifi- da nova Constituição Federal, este segmento cativo avanço na Educação brasileira, visto despertou interesse nos pesquisadores e fo- que serão acrescentados aos conhecimentos ram publicados os primeiros resultados so- científicos, os saberes produzidos pelas co- bre as investigações feitas em comunidades munidades onde as escolas estão inseridas. remanescentes de quilombos. O Estado é o Este fato é revolucionário, pois rompe com responsável pela titulação das terras das co- a tradição eurocêntrica de conhecimento ao munidades negras, mas o número de comu- colocar no mesmo patamar os saberes pro- nidades regulamentadas pelo INCRA está duzidos pelos cientistas/academia e o sabe- bem abaixo da expectativa dos moradores, res produzidos pelo homem no seu cotidia- sendo que foram tituladas pouco mais de no. A valorização dos saberes quilombolas é 10% das comunidades (BRASIL, 2014). uma forma de preservar a cultura e a histó- O Estado não tem cumprido sua função ria deste segmento social. — titular as terras das comunidades — e, As Diretrizes Escolares Quilombolas fo- para compensar, tem disponibilizado políti- ram instituídas a fim de orientar a Educa- cas públicas às comunidades como financia- ção Escolar Quilombola. Neste sentido, pre- mentos para construção de casas, melhorias cisamos saber quem são as comunidades das vias de acesso, construção de escolas, quilombolas? As comunidades negras, tam- fornecimento de energia elétrica, água, rede bém conhecidas por comunidades remanes- de esgoto e outros. Também ocorreram in- centes de quilombos ou quilombolas, são centivos à produção de alimentos, artesana- formadas por população majoritariamente to, comercialização da produção. A presen- negra, situadas na zona rural do Brasil, com ça do Estado nas comunidades melhorou a problemas fundiários e apresentam traços qualidade de vida, mas não equacionou o culturais bem preservados. Estas comunida- principal problema — a questão da terra. des estão entre os segmentos mais pobres do A história do grupo está guardada na me- país, com índices semelhantes à população mória das pessoas mais velhas e os saberes nordestina de dez anos atrás. são passados às gerações mais novas através As comunidades negras são originárias da oralidade, porém não havia espaço para de antigos quilombos, ou que se formaram este conhecimento nos currículos. Com as em terras doadas pelos antigos senhores, em Diretrizes para a Educação Escolar Quilom- terras compradas pelos trabalhadores escra- bola haverá um lugar para os conhecimen- vizados. Outras comunidades se constituí- tos tradicionais no currículo e a comunidade ram após à Abolição, ocupando terras devo- terá a possibilidade de se fazer ouvir e par- lutas, terras da Igreja e de ordens religiosas, ticipar ativamente na construção da Educa- em terras indígenas, em terras doadas pelo ção que deseja para seus filhos. Estado em troca de serviços guerreiros e As Diretrizes para a Educação Escolar outros. A grande maioria das comunidades Quilombola foram criadas para organizar o apresenta um problema em comum — a fal- ensino ministrado em escolas situadas nas

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comunidades negras e aquelas que estão contexto adverso. O isolamento e a carên- fora do território quilombola, mas que rece cia de bens materiais obrigaram muitas co- -bem alunos oriundos destas comunidades. munidades a buscarem práticas medicinais As referidas diretrizes orientam para que a alternativas, formas de conservação dos ali- organização do ensino esteja fundamentada, mentos, modos de prevenção e combate às informada e abastecida nas “práticas cultu- pragas das plantações, maneiras alternati- rais, tecnologias e formas de reprodução do vas para as construções e outras. A quanti- trabalho, acervos e repertórios orais, feste- dade de saberes encontrados nestes redutos jos, usos, tradições e demais elementos que é infinita, sendo praticamente impossível conformam o patrimônio cultural de todas contabilizálos. Este artigo abordará parte as comunidades quilombolas de todo o país”. dos saberes produzidos pelos trabalhadores Também, “garantir aos estudantes o direito escravizados e por algumas comunidades de se apropriar dos conhecimentos tradicio- negras do Brasil e a importância dos mes- nais e das suas formas de produção de modo mos para os currículos das escolas quilom- a contribuir para o reconhecimento, valori- bolas. zação e continuidade” (BRASIL, 2012). As comunidades negras são entendidas Conhecimentos que não estão como Povos e Comunidades Tradicionais, nos currículos ou seja, A humanidade sobreviveu graças aos inven- grupos culturalmente diferenciados, possuido- tos, acumulo de experiências e a partilha do res de formas próprias de organização social, saber. O homem foi aprendendo aos poucos ocupantes e usuários de territórios e recursos naturais como condição à sua reprodução cul- e repassou esses conhecimentos às gerações tural, social, religiosa, ancestral e econômica, mais novas, em um processo contínuo de utilizando como conhecimentos, inovações e descobertas e criações que possibilitaram vi- práticas gerados e transmitidos pela tradição ver mais tempo, dominar a natureza, formar (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 14). comunidades e outros. Desde os primeiros Um dos objetivos das diretrizes é assegu- tempos o homem apropriou-se da natureza rar que as escolas considerem “as práticas e dela extraiu tudo que precisou para sobre- socioculturais, políticas e econômicas das viver. Conhecer e dominar a natureza foi comunidades quilombolas [...] e suas for- condição fundamental para continuidade da mas de produção e de conhecimento tecno- espécie humana. lógico”.Também garantir o respeito à histó- Por exemplo, os conhecimentos sobre er- ria, o território, a memória, a ancestralidade vas medicinais garantiram a sobrevivência e os conhecimentos tradicionais”.Um dos dos povos tradicionais, sobretudo, indíge- princípios da educação quilombola é “a im- nas e quilombolas, pois os mesmos não ti- plementação de um currículo escolar aberto, nham acesso à medicina clássica. Estes co- flexível e de caráter interdisciplinar, elabo- nhecimentos foram passados de geração em rado a articular o conhecimento escolar e os geração e são conhecidos das comunidades conhecimentos construídos pelas comuni- negras contemporâneas. Os saberes “não se dades” (BRASIL, 2012). restringem a um mero repertório de ervas Muitos dos conhecimentos produzidos medicinais [...]. compreendem as fórmulas pelas comunidades negras deram-se em sofisticadas, o receituário e os respectivos

76 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 72-88, jan./jun. 2015 Adelmir Fiabani procedimentos para realizar a transforma- varam à extinção das tradições e línguas de ção”. Os saberes vão desde “como uma de- muitas nações nativas”. terminada erva é coletada, tratada e trans- Segundo Teske, não há incompatibilida- formada num processo de fusão” (ALMEI- de entre as concepções tradicionais com as DA, 2008, p. 14). modernas teorias científicas. A mudança de Os saberes não se resumem aos remédios paradigmas da ciência, a partir dos anos 60 e cuidados com a saúde. Os povos tradicio- do século passado, possibilitam a contex- nais conhecem técnicas para construção de tualização e globalização dos saberes tradi- casas, dominam o artesanato, fabricam os cionais. As sociedades tradicionais “man- meios de transportes para as estradas e rios, tém uma relação com a natureza que não são exímios ceramistas, sabem fazer as fer- é pautada pela tecnologia e pela economia, ramentas, pontes, etc. Conhecem plantas mas por uma coevolução ecológico-cultural úteis o homem; sabem domesticar animais a partir do conhecimento amplo associada a e, o mais importante, vivem em harmonia práticas tradicionais herdadas dos antepas- com a natureza. Pertencem a este contexto sados” (TESKE 2010, p 11-15). os castanheiros, seringueiros, quebradeiras Quanto às comunidades negras, Santia- de coco babaçu, ribeirinhos, comunidades go Neto (2009 apud SAHR, 2011, p. 94) afir- negras. mou que elas “não são subdesenvolvidas tec- No século XIX, as Ciências Sociais foram nologicamente”. Conforme o autor, “devido tomadas pela racionalidade científica. É à sua autonomia alimentar com relação aos nesse momento que muitos conhecimentos grandes centros, elas preservam tecnologia e estudos foram considerados sem caráter e uma cultura muito própria”. Para Gomes científico ou até taxados de irracionais. Du- (2008 apud SAHR, 2011, p. 134), “os povos rante o século XIX e parte do século XX, os tradicionais possuem um vasto conhecimen- conhecimentos populares e saberes dos po- to sobre o espaço que ocupam, além de uma vos originários não eram bem vistos pela co- rica cultura, adquirida ao longo de várias ge- munidade científica. Na França surgiram os rações”. De acordo com o autor, “tais conhe- princípios do direitos humanos, individuais cimentos são de extrema importância para e coletivos dos povos, mas não impediram o as diversas áreas da ciência”. Ou seja, “esses preconceito e discriminação em relação aos povos possuem um complexo e profundo co- povos ‘selvagens’, ‘infantis’, ‘primitivos’, ori- nhecimento sobre a natureza, verificando a ginários (TESKE, 2010, p. 2-9). maneira pela qual eles pensam, classificam Os europeus chamaram para si a condi- e utilizam seus recursos”. ção de povo civilizado com a missão de civi- lizar o mundo, ou seja, a razão, a sabedoria Saberes dos trabalhadores e a verdade estava com a civilização euro- peia. Portanto qualquer sabedoria, conhe- escravizados e quilombolas cimento dos povos considerados ‘atrasados’ Durante o período da escravidão, os traba- não eram reconhecidas. Para Salatino (2001 lhadores escravizados e os quilombolas de- apud TESKE, 2010, p. 10), a “sobrevaloriza- monstraram muito conhecimento. Embora ção dos conhecimentos derivados da ciência violentados em todos os sentidos, os traba- e do mundo civilizado e a negação dos va- lhadores escravizados colocaram em prá- lores dos povos selvagens conquistados le- tica as experiências trazidas do continen-

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te africano como noções sobre o trabalho, Os quilombolas que lograram viver longe vida social, religiosidade, cultura e outros. dos ataques das forças opressoras, produzi- As atividades nas plantagens, nas fazendas ram significativamente. Em dois quilombos criatórias, nas minas, na casa-grande fo- mineiros, foram encontrados “muitos man- ram realizadas por homens e mulheres es- timentos e grandes roçarias para o futuro”. cravizados, que se adaptaram a realidade, O quilombo do Parnaíba, também em Minas mas que não deixaram de expor suas habi- Gerais, reprimido em 1766, possuía “copio- lidades e saberes. sas lavouras e mantimentos recolhidos em Nos mocambos, os quilombolas pude- paióis”. O quilombo da barra do rio Pirapu- ram desempenhar suas habilidades com li- tanga, no Mato Grosso, destruído em 1839, berdade, onde revelaram-se exímios traba- “era composto de dezesseis casas de dois ou lhadores. A liberdade para usufruir da sua três lanços e duas ou três de sobrado”. Quan- força de trabalho, fez do quilombola um ser do o quilombo foi abatido, os componentes autônomo, com melhores condições para da bandeira não foram capazes de carregar produzir e colocar em prática os ensinamen- os mantimentos armazenados, dada sua tos trazidos da África. Sobretudo nos pri- quantidade” (MAESTRI; FIABANI In MOT- meiros quilombos, que eram compostos por TA; ZARTH, 2008, p. 76). um número maior de africanos, os costu- O fato das forças repressoras encontra- mes trazidos do Continente-mãe afloraram rem produção, roças e construções revela e serviram para garantir a sobrevivência do que os quilombolas tinham conhecimentos grupo. Ressaltamos, que a vida no quilombo múltiplos — conheciam a arte de plantar, foi dura, pois tratava-se de uma situação de dominavam técnicas de conservação dos emergência, de salvar a vida e preservar a li- alimentos e sabiam construir. A liberdade berdade. Porém as condições existenciais no do quilombo permitiu ao ex-cativo produzir quilombo foram melhores do que na condi- mais. ção de escravo. Em Palmares, os mocambeiros foram Quando conhecemos casas, calçadas, excelentes estrategistas ao traçar planos de engenhos, cercas de pedra, pontes e outras fuga e construção de fossos e paliçadas para obras feitas pelos trabalhadores escraviza- defesa do quilombo. Na confederação de dos não podemos acreditar que nestes luga- Palmares predominou o espírito coletivo, res predominaram somente as técnicas e os onde a divisão de tarefas e a solidariedade conhecimentos do mestre ou do feitor. Sem permeou as relações e contribuiu para a so- dúvida, há muito conhecimento do trabalha- brevida do grupo. Conforme o historiador dor escravizado que foi utilizado para fazer Décio Freitas, ao chegar a Serra da Barriga, as tarefas do dia-a-dia. A forma de colocar a os negros confirmaram suas qualidades de pedra, a amarra feita para conter as paredes, trabalhadores “[...] abriram clareiras e le- o material utilizado e outras têm muito da vantaram choças cobertas de palha. Chama- experiência africana. ram as choças de mocambos — do quimbun- A maioria dos quilombos brasileiros so- do mukambu” (FREITAS, 1984, p. 9). breviveu da produção da terra, que chama- Décio Freitas revelou que as atividades mos de horticultura quilombola. As técnicas agrícolas dos palmarinos foram possíveis utilizadas pelos mocambeiros assemelham- graças ao conhecimento trazido da África. se às praticadas pelos indígenas no Brasil. Segundo o autor, os negros aquilombados

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plantavam milho, feijão, mandioca, cana- riores aos escravistas mineradores. Conse- de-açúcar, batata, legumes. Duas semanas guiam extrair metais — ouro e diamantes — antes do plantio, preparavam o terreno com em locais abandonados pelos antigos donos grandes queimadas. A preparação das ter- (GUIMARÃES, 1988, p. 46). Com o produto ras, a semeadura e a colheita se faziam cole- tivamente. Celebravam o término da colheita obtido através da mineração clandestina, os com uma semana inteira de festejos em que quilombolas compravam produtos que não todos folgavam, dançavam, comiam e be- possuiam. biam (FREITAS, 1984, p. 36). Conforme Carlos Magno Guimarães, a Conforme Freitas, os palmarinos pos- mineração feita pelos quilombolas “se reves- suíam pomares com variedade de árvores tiu de um caráter especial já que o produto frutíferas. Praticavam o extrativismo, pela obtido através dela, tem sido a origem da abundância da palmeira, que fornecia óleo, colonização das Minas Gerais, funcionava azeite, manteiga e dela se extraia uma espé- como equivalente geral, para troca, em toda cie de vinho. Suas folhas serviam para co- sua extensão”. Para o autor, brir suas casas e tecer esteiras. Consumiam esta característica, tanto do ouro quanto do banana pacova, criavam galinhas e suínos, diamante, de funcionar como equivalente, porém não criavam o gado. Caçavam e pes- abria uma notável possibilidade para os qui- cavam. Um dos fatores que determinaram a lombolas ao ampliar seu universo comercial, pois o ouro e o diamante, funcionando como longevidade do quilombo foi a capacidade moedas, compravam qualquer coisa, tanto produtiva do grupo. “A produção se destina- na rede de comércio legal quanto no ilegal va fundamentalmente ao consumo da famí- (GUIMARÃES, 1988, p. 46). lia, [...] o excedente se destinava ao sustento Segundo Alberto Costa e Silva, “os afri- dos produtores não-diretos e aos improduti- vos em geral, [...] destinado a acudir a emer- canos não se restringiram a ser os pioneiros gências, como secas, pragas, ataques exter- da metalurgia do ferro no Brasil”, também nos” (FREITAS, 1984, p. 37). “trouxeram [...] as técnicas da bateia e da es- A disposição dos sentinelas garantiu ao cavação de minas”. Fabricavam tecidos “em grupo informações sobre as movimentações teares extremamente simples”, construíram dos ‘caçadores’ de quilombolas. Quando ata- casas com “paredes de sopapo e o teto de cados, os palmarinos fugiam por caminhos palmeira ou de capim” (SILVA, 2012, p. 19). que somente eles sabiam. Esta estratégia No eito, o cativo não pode empregar todos impediu a aniquilação precoce do quilombo. os conhecimentos que trouxera da África, Quando obrigados a enfrentar os inimigos, pois a monocultura da cana não exigiu técni- os palmarinos construíram cercas e fossos cas mais apuradas. No entanto, no quilombo com paliçadas impedindo/retardando a mostrou-se exímio produtor. ação dos algozes. Os africanos transformados em traba- Nos mocambos que sobreviveram da hor- lhadores escravizados trouxeram da África ticultura quilombola, queimava-se as folhas conhecimentos variados. Conheciam proce- e galhos para limpar o terreno, utilizava-se a dimentos de cultivo, prevenção de pragas, cinza como fertilizante, mudava-se de local conservação do solo, sabiam armazenar se- a fim de quebrar o ciclo dos parasitas. Em mentes, técnicas de irrigação. Vieram para o Minas Gerais, os quilombolas conheciam Brasil, agricultores, construtores, artesãos, técnicas de mineração, muitas vezes, supe- ourives, tecelões e outros. O historiador

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Wellington Castelucci Junior, em Pescado- pesquisas que os cativos desempenhavam res e roceiros, referiu-se a escravos e forros funções que exigiam conhecimento sobre a em Itaparica/BA, na metade do século XIX. atividade e, muitas vezes, tinham mais que O autor listou 32 ocupações de forros e es- uma ocupação na mesma unidade produti- cravos arrolados nos processos criminais: va. mestre de lancha ou embarcadiço, serviço No período da escravidão, a questão da doméstico, artista, lavoura, carpinteiro, cai- saúde era muito precária. Médicos, como xeiro, guarda policial, ganhadeira/doceira, hoje conhecemos, praticamente não exis- costureira, empregado de fábrica de cal, tiam. Somente nos centros urbanos maiores engomadeira/lavadeira, ferreiro, adminis- era possível ter contato com algum profis- trador de fazenda, vaqueiro, ourives, cala- sional da saúde. No entanto, como em qual- fate, alferes, marceneiro, alfaiate, pescador, quer época, a população adoecia e precisava fogueteiro, vendedor de água, padeiro, sa- de tratamento para os problemas de saúde pateiro, maquinista, pedreiro, lambiquei- comuns e para as epidemias que surgiam e ro, professor, charuteiro, tanoeiro, traba- dizimavam parte da população. Neste sen- lhador de salinas, taboqueiro/cavoqueiro tido, foram muito importantes os africanos (CASTELLUCCI JUNIOR, 2008, p. 64). e indígenas que sabiam ministrar remédios Os conhecimentos para as ocupações aci- naturais para os doentes. A população pobre ma citadas não eram tão elementares como recorria frequentemente aos curandeiros, parece ser. O alfaiate, ourives, marceneiro, pois não tinha recursos para pagar o serviço tanoeiro, calafate, pedreiro não eram ofícios de um médico, ou não tinha meios para se elementares e exigiam aptidões específicas. deslocar até a residência destes. Outro fato revelador do vasto conhecimento Também na época da escravidão, os ca- pelos trabalhadores escravizados e forros de lundus conheciam ervas, raízes, cascas, se- Itaparica é a variedade de funções que um mentes que combinadas com outros produ- mesmo homem exercia. “Por serem pesca- tos auxiliavam as pessoas com alguma mo- dores, estendiam e cosiam redes arraeiras, léstia. “Esses personagens sabiam preparar tainheiras e cassueiras; marceneiros e cala- tisanas, cataplasmas e unguentos que alivia- fates reformavam e pintavam, ao som das vam os males corriqueiros dos habitantes da marés, saveiros, canoas de todo tipo de em- colônia”. Eram capazes de “curar doenças barcação [...]” (CASTELLUCCI JUNIOR, mais graves como a tuberculose, a varíola e 2008, p. 93). a lepra” (SILVEIRA, 2005, p. 19). A popula- O historiador Fernando Franco Neto, em ção pobre do Brasil Colônia e Império valeu- Senhores e escravos no Paraná provincial, se dos curandeiros e benzedeiras para tratar confirmou a multiplicidade de funções dos de doenças, visto que o acesso à medicina trabalhadores escravizados. “Os escravos não era para todos. participavam de quase todas as atividades No século XIX, no Recife, durante a epi- econômicas da propriedade, desde o cuida- demia de cólera naquele lugar, a população do com animais, o seu transporte, o cuidado descrente do trabalho dos médicos recorreu com a terra, o plantio, produção de arreios, ao Pai Manuel, curandeiro e trabalhador es- tecelagem de lã, ocupações domésticas, etc.” cravizado do engenho Guararapes, que tra- (FRANCO NETO, 2011, p. 162). Os dois his- tava as pessoas acometidas pela moléstia. A toriadores citados comprovaram em suas fama se espalhou de tal forma que o jornal

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Diário de Pernambuco publicou a receita metrópoles coloniais sempre julgaram-se ‘milagrosa’ do curandeiro. superiores às sociedades ‘mais primitivas’, ‘atrasadas’, ‘selvagens’ ou ágrafas” (AL- Juntam-se raiz de pimenta malagueta, folhas de lacre, pimenta da Costa, cebolas do reino MEIDA, 2008, p. 13). Neste sentido, o co- e raiz de limão. Faz uma garrafada com esses nhecimento dos povos nativos foi ‘desquali- ingredientes, tritura e coa tudo. Mistura com ficado’, pois havia necessidade de afirmação uma tigela de mel de furo, água de dois co- da metrópole sobre os povos colonizados. cos secos da Bahia e uma xícara de vinagre. Descobre e despe o doente e abre as janelas e portas. Comer carne assada com pirão, apli- Comunidades negras e os car o remédio e tomar banho frio (Diário..., saberes 26 fev. 1956, In: FARIAS, 2012, p. 216). Alcântara, no Maranhão, abriga muitas co- Pai Manoel não foi o único. Existiram munidades negras. A sobrevivências das muitos curandeiros pelos cantões deste país, comunidades fundamenta-se na agricultu- que se tornaram populares, no século XIX, ra, pesca, extrativismo e artesanato. A arte- por seus conhecimentos e pela relevância sanato é obra prioritária das mulheres que dos serviços prestados à população pobre, passam seus saberes às gerações mais novas na maioria, negra e mestiça. Os africanos e contribui para a identidade positiva das traficados para a Colônia trouxeram conhe- mesmas. Confeccionam artesanato de do- cimentos sobre uso de ervas, raízes no trato ces, licores, cofos, abanos e meaçabas. Cofo de enfermidades; faziam emplastos, san- é o nome dado, no Maranhão, a cestaria feita grias, pequenas intervenções cirúrgicas. O com folhas de palmeiras nativas. Meaçaba é convívio com os indígenas acrescentou-lhes uma esteira produzida com palha de palmei- mais conhecimentos sobre o uso de produ- ras (NORONHA; PORTELA; ALVES apud tos naturais no combate às doenças da épo- NORONHA, 2011, p. 19). ca. Sabe-se que os médicos daquele tempo A comunidade de Itamatatiua tem sua não eram tão eficientes como imaginamos, identidade marcada pelo artesanato em ce- consequentemente a população pobre recor- râmica. É uma tradição que vem de longa ria aos curandeiros, benzedeiros, parteiras, data. “Os mais velhos da comunidade dizem rezadeiras e outros. Segundo Tânia Pimenta que seus bisavós já praticavam a arte de mo- (2003, p. 323 apud FARIAS, 2012, p. 224), delar o barro”. Esta é uma atividade femini- o modo como boa parte da população via os na onde são produzidos potes, bilhas, pane- curandeiros, cujos serviços não eram solici- las, moringas, cuias e bonecas. Também em tados apenas por falta de médicos e cirur- giões, ou porque não podiam pagá-los, como Alcântara, a comunidade de Santa Maria, pretendiam esses últimos. Os curandeiros fundada a mais de cem anos, tem como sua eram requisitados, muitas vezes, por serem principal atividade artesanal a “tecelagem mais eficientes, fosse para tratar moléstias com a fibra do buriti, com a parte mais del- leves, fosse para cuidar das sérias. gada da palha que eles chamam de linho”. No entanto, embora reconhecida a eficá- Confecciona-se “sacolas, esteiras, redes, cia da medicina alternativa praticada pelos pastas, bolsas, jogos americanos, porta-co- curandeiros, parteiras, boticários, pajés, pa- pos, tapetes e capas para agendas” (NORO- joas, rezadeiras e benzedores as autoridades NHA; PORTELA; ALVES apud NORONHA, da época criminalizaram esta atividade. As 2011, p. 19-26).

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As três comunidades comercializam o ar- ga, melancia (findinga, viúva, redonda,- ar tesanato, mas a renda não é suficiente para roba), limão, abacaxi e mamão. Criam ani- prover o sustento do grupo. A atividade arte- mais para trabalho, transporte e consumo sanal é a identidade das comunidades, pois (BAIOCCHI, 2006, p. 60). elas são conhecidas pela qualidade e origi- Em 1995, Hermel Leal publicou relato de nalidade das peças. A técnica de fabricação sua passagem no território Kalunga e asse- e o gosto pelo trabalho é passado dos mais gurou que os descendentes dos escravos têm velhos aos mais novos. Estes ensinamentos muito conhecimentos. “De bobo eles não não fazem parte dos currículos explícitos tem nada. Conhecem os hábitos de todos das escolas, no entanto, trata-se de cultura, animais e sabem se adaptar às intempéries história, trabalho, renda, identidade, valori- naturais. Acostumaram-se a viver sob as ra- zação dos mais velhos, estética e manifesta- dicais leis da natureza; da chuva, do sol, da ção étnica. terra e da água”. Leal conversou com uma A comunidade negra Kalunga de Goiás parteira de 70 anos e registrou: “Quando começou a se formar ainda no século XVIII uma criança nasce, ela corta o cordão um- com a chegada de africanos escravizados e bilical com uma faca ou tesoura. Depois ela seus descendentes às margens do Rio Pa- esquenta uma faca de cozinha na brasa do ranã, afluente do Tocantins. A mineração na fogão e a coloca no umbigo do recém-nasci- província de Goiás foi feita pela mão do tra- do” (LEAL, 1995, p. 28-59). balhador escravo, mediada pela violência, A comunidade negra Lagoa da Pedra, em fato que determinou a fuga para a selva, ma- Arraias, estado do Tocantins, desenvolveu tas e serras. Assim surgiram os quilombos Horta Circular, onde são plantados “diver- dos . Os Kalungas sobrevivem da sos tipos de hortaliças e algumas espécies agricultura de subsistência praticada desde frutíferas e, no círculo central, há um reser- que iniciou a comunidade. Como ficaram vatório de água para a criação de peixes e isolados por muito tempo, desenvolveram ao redor deste um cercado para criação de técnicas de cultivo e armazenamento pró- pequenos animais”. São plantadas alfaces, prias. “A roça faz parte da terra, e a terra é a coentro, batata, macaxeira e plantas medici- casa do homem. Assim a roça e o território nais. Também cultiva-se milho, feijão verde, confundem-se. Na condição de território, a abóbora, bananeira, coqueiro, etc. (TESKE, roça pertence aos ancestrais, sendo admi- 2010, p. 125). Nesta comunidade há acom- nistrada pelo grupo constituído da família panhamento de entidades ligadas ao Estado extensa” (BAIOCCHI, 2006, p. 30-60). na condução do projeto, que não descaracte- O conhecimento da comunidade negra riza o conhecimento local. Kalunga é vasto e secular. Há pelo menos As comunidades negras da metade sul 15 espécies de mandioca e nove de feijão do Rio Grande do Sul (Madeira, Rincão do cultivadas. Também plantam milho, amen- Quilombo, Cachoeirinha, Várzea dos Baia- doim, gergelim, inhame, abóbora, melão, nos, Faxina, São Manuel, Lichiguana, Qui- maracujá, melancia e cana. Utilizam cocos lombo Candiota, Solidão, Bolsa do Candio- comestíveis, baquiri, licuri, birro, buriti, ta, Palmas) tiveram no passado contato com baru, alcaju, marmelada. Na horta, cultivam a atividade criatória, na condição de peões manjericão, coentro, pimentas e alfavaca. ou trabalhadores braçais. Os moradores são Nos quintais, banana-maçã, mexerica, man- especialistas em construção de cercas, arte-

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82 Adelmir Fiabani sanato de couro, domesticação de animais, no mangue. Na comunidade de Cacau, “os artesanato de lã. Algumas comunidades artesão utilizam o haste do guarumã [...]”, produzem calçados com pele de cordeiro. para fazer “o paneiro, cesto utilizado para Outros fabricam laços e outros instrumen- transporte de materiais, [...], a peneira, [...], tos com couro bovino. o tipiti” (MARIN, 2004, p. 145-147). Quando visitados, os moradores das co- No sertão piauiense, a comunidade negra munidades negras do Rio Grande do Sul Tapuio guarda ensinamentos dos primeiros mostram com orgulho o artesanato produ- moradores. O conhecimento das parteiras ge- zido. Eles sabem que a produção identifica o ralmente foi adquirido pela longa experiência grupo e os diferencia dos demais. Por exem- ao ter seus filhos e ter ajudado uma parteira plo, a construção de cercas é uma atividade mais velha, frequentemente a sua mãe”. Os que requer conhecimento e técnicas especia- benzedeiros tem a função de “rezar orações lizadas. Neste sentido, ouve-se depoimentos que possa proporcionar a cura de certos dis- de que não há alambrador igual na “redon- túrbios de saúde que não são solucionados deza”, referindo-se ao trabalho de qualidade por remédios caseiros ou industrializados”. de determinada pessoa. No entanto, para o Ainda jovens eles aprenderam a rezar com currículo tradicional, este tipo de conheci- seus pais. As doenças tratadas pelos benze- mento não tem importância, não é valoriza- deiros são: ferimentos, picadas de cobra e in- do, como também não é reconhecido o valor setos, quebranto — popularmente chamado do trabalho dessa gente. de mau-olhado (SANTOS, 2012, p. 176). A comunidade Lagoa de Ramos e Goia- Em algumas situações, são utilizados beira em Aquiraz no Ceará, guarda conheci- chás de ervas, cascas, folhas de árvores e mentos dos tempos da sua formação. Con- plantas com propriedades terapêuticas. forme Sá (2010, p. 151-174), “a transmissão Muitas vezes, as parteiras no Tapuio acumu- dos saberes se dão pela oralidade. Os mais lam “as funções de benzedeira como forma velhos contam e recontam as suas memó- de aumentar a credibilidade em seu traba- rias. A aprendizagem dá-se pela prática, por lho e porque executam alguns procedimen- observação, por tentativa e erro, fazendo-se tos de ordem do sagrado ao pedir proteção uso da criatividade para reinventar a cozi- divina à mulher grávida”. Entre tantas er- nha.” Várias receitas de remédios caseiros vas, o pinhão roxo é usado para dor de barri- fazem parte do conjunto de saberes da co- ga, contra veneno de cobra, dor de garganta, munidade: Para anemia, “a cura vem atra- infecção, cicatrização. O juazeiro serve para vés da mistura da beterraba com leite, ou da digestão, mal olhado, combate a caspa, uti- beterraba em pedaços, folha de beterraba, lizado como escova de denta. Aroeira para com uma folha de couve e uma cebola”. todo tipo de infecção, principalmente gine- As comunidades remanescentes de qui- cológico (SANTOS, 2012, p.177). lombo da Ilha de Colares, no Pará, desen- A comunidade Chapada dos Encantos, volveram técnicas de exploração dos recur- pertencente ao município de Caridade do sos naturais sem agredir o meio ambiente. Piauí, tem como tradição o trabalho das “Organizaram um calendário agroextrativo benzedeiras. “O ofício de benzer é das mu- que orientava para atividades diferencia- lheres”, que aprendem ainda jovens, com as das”. Souberam conciliar a agricultura, pes- pessoas da família já iniciadas. O ritual con- ca fluvial e oceânica e à cata de caranguejos siste em:

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Para o inicio do processo de cura, acende-se As mulheres preparam as garrafadas. A uma vela e a benzedeira faz uma pequena maneira de fazer é diverso, “varia da sim- oração, quase sempre em silêncio, pedindo ples imersão em água, adicionando-se mel a autorização à Espiritualidade para fazer a ou rapadura, até processos mais exigentes cura. Em seguida começa o benzimento, que consiste em um ato de oração com ramos de como o de secar o material, torrar, pisar vassourinha ou de outra planta. A oração em pilão, expor ao Sol ou ao sereno da ma- contempla o Pai-Nosso, Ave-Maria e uma drugada”. Quanto às plantas, “há casos em específica para afastar o mal que submete o que as propriedades medicinais da planta doente. Ao tempo em que prenuncia as re- variam de acordo com o modo de preparo a zas, a benzedeira vai fazendo cruzes com ra- mos sobre a pessoa ou uma parte do corpo que foi submetido, o que exige conhecimen- que precisa da cura. Ao final do benzimento, to e sabedoria de quem produz a garrafada” se a oração produzir os efeitos desejados, os (IPHAN, 2012, p. 61). ramos murcham (IPHAN, 2012, p. 58). Na comunidade Sítio Velho, no muni- Também no Piauí, na comunidade Saco cípio de Assunção do Piauí, tem a tradição da Várzea, município de São José do Piauí, de fabricar farinha de mandioca — farinha- o benzimento é uma forma antiga de trata- da. É uma atividade antiga da comunidade, mento de várias doenças. “As benzedeiras que mobiliza todos os moradores, homens, são todas católicas praticantes e muito reli- mulheres e crianças, cada segmento com ta- giosas”. Aprenderam benzer “de ouvir-falar refas específicas. O processo de produção é e ver-fazer, sem nenhuma orientação espe- semelhante ao praticado em outras regiões cífica, mas apenas pela oralidade, reprodu- do Brasil. Consiste em colher a mandio- zindo gestos utilizados no ritual de benzi- ca, retirar a casca do tubérculo, triturálas e mento”. As benzedeiras “atendem em suas transformá-las em massa. Esta atividade é casas aos pacientes e não costumam cobrar comumente feita por homens e mulheres. [...]. Utilizam-se ramos de plantas para o A massa passa pela mão das mulheres para benzimento, sendo as principais o muçam- ser lavada, separando-se a goma, que fica bê e a vassourinha. A comunidade reconhe- descansando, para, no outro dia, ser posta ce as curas praticadas pelas benzedeiras” ao Sol. Em seguida a massa é prensada para (IPHAN, 2012, p. 60). retirar o excesso de água e levada ao forno. Na comunidade Contente, situada no Com o calor do forno, a massa se transfor- município de Paulistana, no Piauí, “as garra- ma em farinha. Nesta etapa do processo, os fadas e chás são práticas recorrentes”. É um homens participam mexendo a farinha até o costume preservado dos mais velhos que uti- ponto de ser consumida. lizavam estes produtos para curar e prevenir Com a farinha são produzidos os beijus, doenças e males, como dores de barriga, de “alimento em forma arredondada e de mas- cabeça, gripes e febres. É uma atividade que sa grossa”, servido acompanhado de café, envolve homens, mulheres e crianças. “O serve como complemento da alimentação primeiro passo é o de colher frutos, semen- (IPHAN, 2012, p. 64). Não há muita diferen- tes, folhas, ervas, cascas, raízes e seivas que, ça no processo de transformação da man- de acordo com as doenças, serão utilizados dioca em farinha de uma comunidade para no preparo caseiro das garrafadas”, ativida- outra. O que difere é o sentido que é dado a de feita por homens e, algumas vezes, por esta atividade. Tem um valor simbólico mui- crianças (IPHAN, 2012, p. 61). to grande, visto que o trabalho em forma de

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84 Adelmir Fiabani mutirão se transforma em celebração, festa. to muito apreciado entre os moradores é o Nas margens dos rios Trombetas, Erepe- biju, que é feito da seguinte forma: o amen- curú e Cuminá, no Baixo Amazonas, Pará, doim torrado é socado no pilão; Em seguida, há diversas comunidades negras que guar- tempera-se a massa de biju com banha, sal e dam técnicas interessantes sobre a pesca. amendoim. A massa do biju é enrolada em “As técnicas utilizadas na pesca têm seu su- folhas de bananeiras e colocadas na chapa cesso pelo saber acumulado”. Os quilombo- para assar (SAHR, 2011, p. 124). las sabem “os horários apropriados, destre- A comunidade São João faz uso do trans- za individual e utensílios apropriados”. Na porte aquático para se locomover. Neste pesca do pirarucu, “explicam que sendo um sentido, percebemos que há muito conhe- peixe de respiração aérea é apropriado o uso cimento dos mais velhos na arte de fabricar do arpão”. Também, se necessário, “o uso embarcações. “As melhores árvores para se do arco e flecha para pescar, como traço cul- fazer canoa são canela, angelim e peroba. tural aprendido nos intensos contatos com A madeira da árvore aribá é fraca e quebra índios habitantes do alto das cachoeiras” fácil e a de cedro amassa, mas ambas são (ACEVEDO; CASTRO, 1998, p. 184-185). muito utilizadas para construção de canoas” A comunidade São João, de Adrianópo- (SAHR, 2011, p. 141). lis, estado do Paraná, detém conhecimentos Segundo Cicilian Luiza Lowen Sahr, a sobre ervas medicinais, tanto às cultivadas comunidade negra São João “tem na Mata como as extraídas da mata, que eram utiliza- Atlântica a sua principal fonte de recursos”. das pelos seus antepassados e foram repassa- Foi no contato com a natureza, “que muitos dos de geração em geração (SAHR, 2011, p. saberes culturais locais foram e são desen- 94). Os moradores da comunidade classifi- volvidos, sem quaisquer recursos tecnoló- cam as plantas medicinais em “da mata” e as gicos ou assistências profissionalizantes”. “plantadas”. A comunidade relacionou 49 es- Conforme Sahr, “os quilombolas dessa co- pécies de ervas para tratar várias de doenças. munidades têm seu conhecimento peda- Na comunidade São João registra-se o gógico associado às suas práticas agrícolas trabalho coletivo, onde mulheres, homens e vinculadas a uma agricultura de subsistên- jovens participam da produção de farinha de cia destinada a determinados cultivos, como mandioca, por exemplo. Os homens ficam feijão, arroz, milho, batata doce e mandioca” com as tarefas que exigem maior esforço (SAHR, 2011, p. 144). físico, como tocar a roda para ralar a man- Em relação à fauna, os moradores da co- dioca. As mulheres fazem os serviços mais munidade negra São João guarda saberes leves, como enrolar a massa do biju (SAHR, referentes as espécies que vivem no ambien- 2011, p. 124). Na África, nas comunidades te da comunidade. São citadas dez espécies tradicionais, também havia divisão de ativi- de cobras, 61 espécies de aves silvestres, 22 dades. Os homens retiravam os troncos da de peixes, sete de anfíbios, 25 tipos de inse- roça, as mulheres faziam a semeadura e cui- tos, 30 de “animais de pelo e outros”. Reco- davam da plantação até a colheita. nhecem as terras férteis para o plantio pela Os conhecimentos culinários também vegetação nativa que nela se encontra. Es- são vastos. Alimentos produzidos tendo por pécies como “aririva, embaúba, guararema, base a farinha de mandioca predominam na cipó-mil-homens, guapiruvu” são indícios culinária da comunidade São João. Um pra- de terras férteis. A banana, nativa ou plan-

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tada, é a base alimentar da comunidade. São Os saberes do povos tradicionais interes- reconhecidas 16 variedades (SAHR, 2011, p. sam a todos, independente da etnia que per- 152-168). tence. São conhecimentos seculares nasci- Os saberes presentes nas comunidades dos a partir da observação, das experiências, negras do Brasil são muitos. Foram estes dos ajustes das fórmulas, da necessidade de conhecimentos que asseguraram a sobrevi- fazer algo para tornar a vida melhor. As co- vência do grupo diante das adversidades que munidades negras são o segmento que mais se apresentaram durante os longos anos de absorveu e manteve vivo o legado trazido existência das comunidades. Ressaltamos pelos africanos. Para as comunidades, a in- que muitos saberes surgiram em função das serção dos saberes nos currículos escolares adversidades, ou seja, na falta de recursos não se trata de nenhuma benevolência, mas para adquirir produtos industrializados, as o justo reconhecimento pelo que represen- pessoas criaram coisas que são atualmente. tam na história da nação. Os moradores das comunidades negras são Entre os diversos saberes está a resis- muito inventivos, exímios observadores da tência dos mocambeiros pela liberdade e a natureza, persistentes. Conhecem os limi- resistência das comunidades negras para tes da natureza e estabeleceram com ela se manter na terra e lutar pela regulariza- uma relação de trocas, com baixo impacto ção fundiária. Resistir e reivindicar direitos ambiental. também envolve experiência e conhecimen- Não citamos neste artigo os saberes re- to. Este é um importante legado deixado ligiosos, que são muito amplos e diversos. pelos quilombolas às gerações mais novas. Não haveria condições de relatar a diversi- A história dos quilombos antigos nasceu da dade religiosa em tão poucas páginas. Em resistência e oposição ao trabalho cativo. A história da resistência dos trabalhadores es- poucas palavras, podemos afirmar que os cravizados deve fazer parte do currículo da cultos de origem africana são percebidos em escola. grande parte das comunidades, como tam- As comunidades negras sobreviveram em bém observa-se a presença do catolicismo ambiente adverso e não sucumbiram diante e, mais recentemente, a inserção de igrejas das investidas do agronegócio, dos especu- pentecostais. ladores e fazendeiros. Tiveram suas terras reduzidas, invadidas, griladas, mas não dei- xaram de existir. A organização em defesa As Diretrizes Escolares Quilombolas nasce- dos direitos das comunidades precisa estar Consideraçõesram a partir da luta do finaismovimento das comu- no currículo, para que as gerações futuras nidades negras por uma educação diferen- tenham conhecimento desta história. Trazer ciada que tivesse sentido e significado ao seu para o currículo a história de resistência e povo. Estas diretrizes representam um gran- luta pela terra dos moradores das comuni- de avanço, pois são mudanças que vieram na dades negras é uma forma de valorização do esteira da Lei 10.639/03, o divisor de águas trabalho de negro na contemporaneidade. na Educação brasileira. As referidas diretri- Os saberes transmitidos de geração em zes são revolucionárias porque rompem com geração manteve vivas as comunidades e a concepção eurocêntrica da Educação e com também fortaleceu os laços de pertencimen- o cientificismo dos currículos. to. Estudar a própria história na escola faz

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86 Adelmir Fiabani com que os alunos se sintam valorizados e Diário de Pernambuco, 26 fev. 1956. In: FA- tenham orgulho do seu pertencimento ét- RIAS, Rosilene Gomes. Pai Manoel, o curandei- ro, e a medicina no Pernambuco Imperial. His- nico. No caso dos alunos negros e mestiços, tória, Ciências, Saúde — Manguinhos, Rio de este fato contribui para erradicar com o ra- Janeiro, v. 19, supl., dez. 2012, p. 215-231. cismo e diminuir o preconceito. FRANCO NETO, Fernando. Senhores e escra- Estima-se que há em torno de 4,5 mil co- vos no Paraná provincial: os padrões de riqueza munidades negras no Brasil. A diversidade em Guarapuava [1850-1880]. Guarapuava: Uni- cultural é muito grande, sendo impossível centro, 2011. registrar todas as manifestações neste arti- FREITAS, Décio. Palmares — A guerra dos es- go. Os saberes das comunidades envolvem cravos. 5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, também a luta diária pela titulação das ter- 1984. ras e as estratégias pela sobrevivência, visto GUIMARÃES, Carlos Magno. Uma negação da que as comunidades negras pertencem ao ordem escravista: quilombos em Minas Gerais segmento populacional mais pobre do Bra- no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988. sil. Talvez este seja o maior legado para as IPHAN. Bens Negros: referências culturais em futuras gerações. Os conhecimentos do povo comunidades quilombolas do Piauí. Teresina, PI:IPHANPI, 2012. negro que pertence às comunidades quilom- bolas poderá ser muito mais significativo LEAL, Hermes. Quilombo: uma aventura na Vão para as crianças do que a história dos reis, das Almas. São Paulo: Mercuryo, 1995. imperadores, aventureiros e outros. MAESTRI, Mário; FIABANI, Adelmir. O mato, a roça e a enxada: a horticultura quilombola no Brasil escravista (séculos XVI-XIX). In: MOT- Referências TA, Márcia; ZARTH, Paulo. [Orgs]. Formas de ACEVEDO, Rosa; CASTRO, Edna. Negros do resistência camponesa: visibilidade e diversi- Trombetas: guardiães de matas e rios. 2. ed. Be- dade de conflitos ao longo da história. v. 1. São lém: Cejup/UFPA-NAEA, 1998. Paulo: Editora UNESP; Brasília-DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário, NEAD, 2008. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. (Org.). Conhecimento tradicional e biodiversidade: MARIN, Rosa Elizabeth Acavedo. Julgados da normas vigentes e propostas. 1. vol. Manaus: terra: cadeia de apropriação e atores sociais em Programa de Pós-Graduação em Sociedade e conflito na ilha de Colares, Pará. Belém: UFPA/ Cultura da Amazônia/Fundação Ford/Funda- NAEA/UNAMAZ, 2004. ção Universidade do Amazonas, 2008. MUNANGA, Kabengelê. (Org.). Superando o BAIOCCHI, Mari de Nazaré. Kalunga: o povo da racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Terra. Goiânia: Ed. da UFG, 2006. Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. BRASIL. Casa Civil. Lei 10.639/03. Brasília. 2003. NORONHA, Raquel; PORTELA, Imaíra; AL- VES, Milena. Localizando pessoas, lugares e BRASIL. INCRA. Quilombolas. Brasília. 2014. produtos. In: NORONHA, Raquel. (Org.). Iden- tidade é valor: as cadeias produtivas do artesa- BRASIL. MEC. Diretrizes Curriculares Nacio- nato de Alcântara. São Luís: EDUFMA, 2011. nais para a Educação Escolar Quilombola. Bra- sília. 2012. NUNES, Georgina Helena Lima. Educação Qui- lombola. In: Ministério da Educação/Secretaria CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescado- da Educação Continuada, Alfabetização e Diver- res e roceiros: escravos e forros em Itapacarica sidade. Orientações e Ações para Educação das na segunda metade do século XIX [1860-1888]. Relações Étnico-Raciais Brasília: SECAD, 2006. São Paulo: Annablume: Fapesp: Salvador: Fapesb, 2008. SÁ, Maria Lúcia Berreto. Saberes e práticas ali-

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mentares em uma comunidades quilombola do SILVA, Alberto da Costa e. Um Brasil, muitas Ceará. São Paulo: Programa de Pós-Graduação Áfricas. Revista de História da Biblioteca Na- da Faculdade de Saúde Pública da USP, 2010. cional, ano 7, n. 78, mar, 2012. SAHR, Cicilian Luiza Lowen et al. Geografici- SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado dades quilombolas: estudo etno-gráfico da co- Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. munidade de São João, Adrianópolis — Paraná. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed. UFRJ, 2003. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2011. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. 10 anos SALATINO, Antônio. “Nós e as plantas: ontem da Lei no 10.639/03 — um olhar crítico-reflexi- e hoje”. Rev. bras. Bot., São Paulo, v. 24, n. 4, vo. SEMINÁRIO VIRTUAL NACIONAL. Histó- Dec. 2001. In: TESKE, Wolfgang. Cultura qui- ria e Cul-tura Africana e Afro-Brasileira na Es- lombola na Lagoa da Pedra, Arraias — Tocan- cola. Fundação Joaquim Nabuco. UFPE, 2013. tins: rituais, símbolos e rede de significados de suas manifestações culturais. Brasília: Senado SILVEIRA, Renato de. Do Calundu ao Candom- Federal, Conselho Editorial, 2010. blé. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, n. 6, dez, 2005. SANTOS, Carlos Alexandre B. P. dos. “Negros do Tapuio”: memórias de quilombolas do sertão TESKE, Wolfgang. Cultura quilombola na La- piauiense. Curitiba: Appris, 2012. goa da Pedra, Arraias — Tocantins: rituais, símbolos e rede de significados de suas manifes- SHIRAISHI NETO, Joaquim (Org.). Direito dos tações culturais. Brasília: Senado Federal, Con- povos e comunidades tradicionais do Brasil: selho Editorial, 2010. declarações, convenções internacionais e dispo- sitivos jurídicos definidores de uma política na- Recebido em: 25/02/2015 cional. Manaus: EUA, 2007. Aprovado em: 30/03/2015

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Beleza Negra criliber: a África como um tema para a construção de uma identidade

Tacyane Lima de Menezes*

Resumo As construções acerca dos sentidos da África na pós-modernidade ou moder- nidade tardia e suas produções de identidades tem sido um tema bastante abordado nos últimos anos. Nesta ocasião, analisarei a temática de modo a compreender a produção de sentido do lugar, numa comunidade tradicional urbana localizada no centro de Aracaju, capital sergipana, através de uma produção da identidade social, na qual uma ideia de África, que neste caso tem sua representação potencializada por um concurso de beleza negra. Tal evento funciona como um instrumento político cujos sinais diacríticos defi- nem não só a prática, o concurso de beleza, como também o próprio grupo étnico, a Maloca, através da trama tecida, cujo objetivo é representar a etnici- dade da comunidade. Palavras-Chave: Etnicidade. Maloca. Beleza negra.

Resumen Las construcciones sobre los sentidos de África en la post modernidad o mo- dernidad tardía y sus producciones de identidades han sido un tema bastante abordado en los últimos años. En esta ocasión, analizaré la temática de modo a comprender la producción de sentido del lugar, una comunidad tradicio- nal urbana ubicada en el centro de Aracaju, capital de Sergipe, a través de una producción de la identidad social, en la cual una idea de África, que en este caso tiene su representación potencializada por un concurso de belleza negra. Tal evento funciona como un instrumento político cuyas señales dia- críticas definen no solamente la práctica, la competencia de belleza, sino el propio grupo étnico, la Maloca, a través de la trama construida, que tiene como objetivo representar la etnicidad de la comunidad. Palabras-Clave: Etnicidad. Maloca. Belleza negra.

* Mestre em Antropologia pelo Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: [email protected].

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Introdução Góes Dantas (1988) em Vovô nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil, Beleza Negra Criliber, antes de ser enten- quando a autora define o processo de africa- dido como um concurso de beleza deve ser nização do Brasil através da análise de um interpretado enquanto uma estratégia po- terreiro de candomblé, localizado no muni- lítica local, que une a esfera política à so- cípio de Laranjeiras, Sergipe. Desde então, cial, na tentativa de fabricar uma tradição outros teóricos deram seguimento à análise que aos olhos de muitos pesquisadores do da africanização dentro de uma perspecti- assunto produz uma ideia de um “retorno va crítica em relação ao modo como esses à etnia”, ou mesmo, a um “retorno à Áfri- sujeitos produziram um discurso acerca da ca”. Mas que, na verdade, não passa de uma sua autodefinição em relação a uma ideia de retórica que intensifica até os dias atuais África ou de um africanismo autêntico. as políticas de valorização da negritude, Assim, utilizarme-ei dos referenciais fortemente influenciadas pela gradativa de Dantas (1988), Cunha (1986), Capone apropriação do repertório, tanto acadêmi- (2009), Lívio Sansone (2002 e 2003) e An- co quanto militante dos discursos sobre a tônio Risério (1981), a fim de discutir como a negritude, bem como os de africanização, apropriação de uma ideia de África e a cria- que acabaram traçando estratégias de auto ção de um posterior processo de africaniza- afirmação étnica, dentre elas a produção de ção da cultura brasileira produziu no Brasil, eventos artísticos com características étni- mais especificamente no Nordeste, determi- cas, as quais inclusive contam com apoio do nados tipos culturais afro-brasileiros cujos Estado e da mídia local. agenciamentos políticos e intelectuais cria- Neste sentido, a construção da negritude ram um novo sentido para a negritude. A ou de uma estética negra pelos moradores qual resulta de um processo de africaniza- da Maloca está inserida em um processo de ção, quando definido por Dantas (1988), ou africanização das práticas e dos indivíduos, de reafricanização, quando definido por Ri- peculiaridade não só sergipana, uma vez sério (1981), que embora tenham sido apli- que, aconteceu de diferentes maneiras nas cados em contextos distintos, eles só podem mais diversas regiões, tanto no Brasil quan- ser compreendidos como produto de uma to fora dele, variando conforme as estrutu- espécie de regionalismo (DANTAS, 1988) no ras e oportunidades locais de adequação e sentido da produção intelectual, assim como readequação dos sinais diacríticos retirados da própria articulação dos atores sociais. de uma construção ideal de uma África de A produção dos sentidos de uma africa- que tanto falou Manuela Carneiro da Cunha nização ou reafricanização das práticas e da (1986) em Antropologia do Brasil, produto própria aparência dos habitantes da Malo- do que podemos chamar de “globalização ca, em especial das meninas para o concur- negra”. so, baseiam-se em uma retórica sobre a qual Para o contexto brasileiro e nordestino, se constrói uma etnicidade cujos critérios, acredito que o processo de “africanização da sinais diacríticos, delimitam a ideia de um 1 cultura” foi melhor explicado por Beatriz grupo ético, um sujeito coletivo de direito 1 O termo “africanização da cultura”, definido por quilombola. A construção desse sujeito se Dantas (1988), ou mesmo, o de “reafricaniza- ção” utilizado por Risério (1981) dizem respeito cursivo retoma uma ideia de uma África criada a estas invenções da tradição cujo suporte dis- para um determinado propósito.

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90 Tacyane Lima de Menezes dá através de suas práticas no espaço, o qual Festa da Beleza Negra, a passa por elas a ser ressignificado a fim de recriação do culto ritualístico torná-lo habitável (DE CERTEAU, 1994), cuja habitabilidade é justificada através da do candomblé celebração de ritos do cotidiano ou de even- A festa da noite da beleza negra, em todas tos sobre a temática afro-brasileira, respon- as suas versões, inicia-se nos moldes de um sáveis pela tomada de consciência desses culto ritualístico do Candomblé, visto que, sujeitos de sua condição étnica produto de primeiramente eles cantam uma música uma pendência fundiária. para Exu, cuja finalidade, tanto no Candom- Nas páginas a seguir por intermédio in- blé quanto no concurso, é iniciar o evento terpretação do modus operandi sobre o qual sob a proteção dessa entidade. Em seguida se estrutura o concurso busco compreen- cantam uma segunda música, para home- der quais os agenciamentos produzem uma nagear a entidade que se relaciona à temá- identidade étnica a partir da idealização tica que será retratada naquele ano. Entre e posterior representação da comunidade o canto para Exu e o outro orixá escolhido, através do Concurso Beleza negra Criliber. acontecem apresentações de bandas musi- Um desses elementos é a questão estética cais locais. associada ao processo de africanização, qual Em 2010, a temática escolhida foi a ce- junto a teatralização de um ritual coletivo do lebração da vida e da saúde, reforçada vee- mentemente pela menção quase que fre- candomblé, prática religiosa afro-brasileira, quente a Omulu-obaluaie2, que, inclusive, foi ressaltam a ideia da construção de uma afri- no passado uma das entidades cultuadas por canidade, associada não só ao espaço, mas uma das antigas moradoras da Maloca, Glo- também aos usos dos corpos, ou seja, ao rinha Rezadeira, responsável por instituir a modo como suas participantes os enfeitam tradição do que eles chamam de tabuleiro com indumentárias, acessórios e penteados, de Obaluaie, oferta de pipocas para as crian- mas, principalmente, a performance dan- ças da região. Já a representação da imagem çante destas durante o concurso. feminina se dá através de Inasã “primeira Neste sentido, os discursos associados mulher de Xangô e tinha um temperamen- às práticas dos atores sociais constroem to ardente e impetuoso” (VERGER, 1997, p. uma identidade tematizada nos moldes de 64), deusa guerreira, que simboliza para as Firmino da Costa (2002), ao passo que este meninas da comunidade a representação da evento passa a ser entendido como uma es- força da mulher quilombola maloqueira. tratégia de colocar publicamente a situação Neste sentido, o concurso de 2010 inicia- social em que se encontra o quilombo em se com o discurso do presidente da Associa- questão, ao mesmo tempo em que busca ção, falando um pouco da história da Maloca apresentar um conceito de “beleza negra” 2 Segundo Pierre Verger (1997) “é o deus da va- ressignificado pelos usos de uma cultura ríola e das doenças contagiosas, cujo nome é pe- global, cuja fundamentação se encontra na rigoso ser pronunciado. Melhor definindo, ele é aquele que pune os malfeitores e insolentes en- ideia de uma África imaginada, nos moldes viando-lhes a varíola” (VERGER, 1997, p. 80). de Gilroy (2001), inserida em uma cultura De origem Mina-Jeje, manifesta-se tanto velho local, vivenciada pela comunidade nas suas quanto jovem, suas cores são o vermelho, o ama- relo e o preto ele é sincretizado com São Roque e tradições do cotidiano. São Sebastião.

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e das atividades desenvolvidas pela Criliber, marcados para cada uma no palco durante bem como, uma breve introdução sobre a os ensaios, onde permanecem até que todas “cultura africana”. Em seguida, começa-se sejam apresentadas pelo nome. Em seguida, a tocar os tambores, primeiro em um ritmo ainda ao toque do mesmo canto, saem do mais lento, que gradativamente vai se acele palco primeiro as maiores que ficam atrás, -rando, até que a seguinte música é entoada depois as do meio e assim por diante. Quan- pelo Maestro Saci, o qual juntamente com os do a última participante sai, volta a apre- tocadores de tambor também veste roupas sentadora, que chama uma banda local para com características afro-diaspóricas3: vir ao palco. Após a apresentação dos músi- Bombo gira já cujanjôiáiá ô rêrê cos da banda, que dura pouco mais de meia Bombo gira já cujanjôiáiá ô rêrê hora, volta a apresentadora, e em seguida Bombo gira já cujanjôiáiá ô rêrê ela chama o balé Afro-Criliber, contando Bombo gira já cujanjôiáiá ô rêrê toda a trajetória deste. Bombo gira cujangojango O balé Afro-Criliber, através de sua dan- Bombo gira cujangojango ça tem a função de contar a história que ser- Bombo gira cujangojango ve de pano de fundo para o concurso, neste Este canto é uma saudação a Exu, nesse sentido, toda a coreografia montada para o contexto, os espectadores, as participantes, concurso de 2010, gira em torno da história os jurados e organizadores, além de toda a de Omolu, o que inclui as gestualidades, re- comunidade envolvida brincam, dançam, tiradas da performance dos adeptos do Can- cantam, giram reinventado uma história domblé, que recebem a entidade, a qual nos contada em tempos imemoriais, através da referimos. força de um rito que eles se apropriam sob a Ou seja, a figura central da coreografia, forma de um espetáculo. que está vestida de branco, representa Omo- A primeira música é cantada simbolizan- lu, que dança trêmula para expressar as ma- do a presença de Exu, figura que dentro do zelas que estão sobre seu corpo sustentan- candomblé tem a função de abrir os ritos e do em suas mãos o xaxará, a vassoura feita na qualidade de mensageiro, ser o elo en- de folhas da palmeira, que varre as mazelas tre os homens e os orixás, “intercedendo” para fora do espaço delimitado pelas outras aos pedidos feitos aos deuses pelos homens, bailarinas, elas dançam quase sempre semi dentre os quais podemos citar a busca pelo -abaixadas, sustentando o seu peso na cur- sucesso e paz. vatura de suas pernas, uma dançarina deve Nesse primeiro momento, todas as par- ficar ao lado da outra de forma circular, e ticipantes, quer sejam mirins ou juvenis com os pés descalços sobre o chão. Simbo- entram dançando, uma seguida da outra, lizando a relação com a terra, a raiz da cul- gradativamente se posicionando nos lugares tura, que é cíclica passando de uma geração 3 O termo afro-diaspóricas aqui é utilizado com para outra e retornando para a primeira res- a intenção de se referir a uma ideia já discutida significada. ao longo do texto que a cultura afro-brasileira A dança e a música escolhida para esta que eles buscam representar nada mais é que um produto, de um mix de elementos que repre- apresentação reforçam o modo como estas sentam no mundo globalizado um ideia de Áfri- meninas aprendem todo o arcabouço que ca inventada por uma tradição cujas bases são a cultura afro-atlântica, de que de que fala Paul se encontra no imaginário popular da co- Gilroy (2001) em O Atlântico Negro. munidade em relação à cultura que eles de-

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92 Tacyane Lima de Menezes finem como africana, reservatório cultural A construção da indumentária não é uma que é produto das trocas históricas entre as mera feitoria de uma roupa, o desenho de comunidades negras rurais do estado, com um croqui ou a produção de um vestuário, as quais a Maloca mantém contato, tanto ela em si é uma das tramas desse tecido que através de ancestrais quanto das conver- é o concurso Beleza Negra, ela é um dos elos sas durante as reuniões periódicas. Todavia que unem as participantes do concurso a também sofre a influência da academia e da narrativa sobre a África criada pelos mora- própria posição da militância em relação a dores da comunidade em especial aqueles melhor perspectiva cultural a ser adotada e que estão à frente da ONG Criliber. A fala de representada. uma das participantes descrita a seguir é a representação da importância deste elemen- Figura 1 — Balé Afro-Criliber, Dança a Omolu. to para contar a história que aqui tenta ser reinterpretada:

As roupas para não fugir do contexto afro sempre foi amarração, acho até mais bonito porque pode botar qualquer tipo de tecido, ou melhor, vários tecidos e você pode mon- tar a roupa diferente, que não seja roupa feita na costureira. Agente pega muitos teci- dos, tecidos da gente, roupas de praia ou que agente já usou em outros concursos que os organizadores do concurso nos dá. [...] Tem anos que é padrão, aí o concurso dá o tecido, tem anos que não é padrão, aí às vezes é dado variado, aí se quiser levar outros anos tem que comprar (Informação verbal, novembro de 2012).

A partir deste momento começa-se então Fonte: Rosália Alves (2010) a fechar um enredo, o enredo de uma co- munidade que é construída a partir de uma Intercalada a essa apresentação volta África imaginada pelos moradores de um es- a ser exibida a Banda Balança Eu, durante paço, que se define como um quilombo urba- aproximadamente meia hora, quando só en- no, o qual é dependente de discursos como tão, em uma das laterais da concha acústica este para garantir a sua existência. Inventa- do Centro de Criatividade, começa a formar se pois, uma tradição para dar sentido a um fila das participantes em ordem de apre- grupo, que retira daquele espaço não sua fon- sentação. Como é possível notar na figura te de subsistência, mas a sua existência. abaixo, as meninas, capricham na escolha de suas indumentárias, sempre com cores O corpo e os seus usos vibrantes, em seu feitio não é empregado o trabalho de agulhas e linhas, as meninas op- Como já foi dito acima para se construir tam pela amarração de tecidos, que segundo uma narrativa, não basta só um discurso é elas, uma vez elaboradas dessa maneira de- necessário representar construir um diálo- monstram ainda mais a africanidade. go, inventar uma história, como uma trama

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cinematográfica com direito a repertório e nificá-lo e representa-lo. Ao passo que, as por que não a um figurino. Neste momento, meninas da Maloca vão as oficinas que an- é justamente do figurino que iremos tratar. tecedem os concursos pesquisar, avaliar, A ideia da beleza afro-brasileira sobre a reinscrever e representar papeis de ante- qual se edifica o concurso se dá através do passados que a elas são entregados, nesse uso de adereços ou enfeites, dentre os quais momento elas criam não apenas uma in- se destaca os colares, pulseiras, torços, e dumentária, mas um sujeito étnico que é amarrações no cabelo, em especial a trança, inventado através de uma narrativa de um bem como, da própria dança, além é claro do outro continente, mas cuja representativi- vestuário. Elementos que inclusive já foram dade passa a delimitar e definir um espaço discutidos anteriormente. e seus habitantes. Nenhum ser humano é um ser social até Uma boa história é contada com deta- o momento que ele se identifica e se repre- lhes quanto mais ricos, mais interessantes senta como um, da mesma forma nenhum daí a importância da performance, dos bra- indivíduo formula para si uma identidade celetes, dos colares, das cores, das tranças, ética sem antes ter um parâmetro que lhe das amarrações todos tem um sentido, que sirva de espelho, para em seguida ressig- muda conforme muda a história.

Figura 2 — Candidatas do Beleza Negar Criliber 2010

Fonte: Rosália Alves. (2010) Na imagem acima os colares e bracele- dentro do universo afro criado e espetacu- tes são usados no sentido de compor essa larizado pelo concurso. ideia de uma estética negra africanizada, a Como disse Queiroz &Otta (2000), “cada qual, juntamente com a dança e a música cultura define a beleza corporal a sua pró- tocada no evento, garantem a legitimidade pria maneira, ocorrendo o mesmo com a de uma africanidade construída pela Asso- classificação e avaliação das diferentes par- ciação Criliber, tanto quanto pela comuni- tes do corpo e as decorrentes associações dade da Maloca, através da rememoração estabelecidas entre tais partes e determi- de tradições culturais que se encontram no nados atributos, positivos ou negativos” arcabouço do imaginário afro-brasileiro. (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 22). No caso da É principalmente em torno dos adereços cultura africana, ou aquela que se preten- utilizados na cabeça e da dança individual, de definir como africana, esta relação se dá que essas meninas, uma a uma, se inserem tanto na gestualidade, evidenciada nos estu-

94 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 89-100, jan./jun. 2015 Tacyane Lima de Menezes dos sobre as religiões afro-brasileiras como estão espalhados por todos os elementos do uma maneira de contar uma narrativa e fa- concurso, mas nas participantes centram- zer com que esta se infiltre na memória do se no Ori, a cabeça, cujo referencial mate- grupo, pela qual se representa, quanto pelas rial vem do amplo imaginário africano, tais formas como se ornamentam a cabeça, que como: as esculturas, objetos de madeira, la- Raul Lody (2004) define como “território tão, bronze, cobre, búzios, fibras naturais e livre, ancestral e contemporâneo [...]. Lu- tecidos de pigmentos variados. gar que revela o homem, seu grupo social, Especificamente no concurso, de 2010 e sua história, a cabeça define a identidade e de 2013, foram usados como materiais, bú- traduz o sentimento de pertencimento a um zios, fibras naturais e tecidos de pigmentos grupo” (LODY, 2004, p.59). Tendo estes re- variados, estes escolhidos conforme a temá- ferenciais como ponto de partida, a seguir tica a qual foi abordada no respectivo ano, será analisado como as participantes do como pode ser observado nas figuras abaixo, concurso Beleza Negra Criliber, nas versões nota-se a presença de búzios e objetos de pa- 2010 e 2013, utilizam a sua performance e os lha os quais fazem parte da indumentária de usos de seus cabelos a fim de representarem Omolu, tal como discutimos anteriormente. a cultura, a qual reivindicam pertencimento. Como pode ser observado nas imagens Figura 3 — Ornamento produzido com palha a seguir, é notável a forma como as partici- pantes do concurso usam seus cabelos para enunciar um padrão estético africano, ana- lisado por teóricos como Raul Lody e Roger Bastide, dentre outros, para os quais os usos comunicativos do cabelo são compreendi- dos como detentores de uma vasta simbolo- gia, que é definida, por Lody (2004, p. 65) como um diálogo estético que é estabelecido entre o objeto, a escultura; a máscara; o ins- trumento musical, e o corpo da pessoa, fator que faz de determinado espaço antropomor- fo o local de interação artística, que vai além da apreciação, pois, compreende o ato de ex- Fonte: Rosália Alves pressar e vivenciar uma identidade. Esses usos comunicativos são construí- Outro recurso importante, muito utili- dos a partir de um diálogo com os sinais zado pelas meninas, é a trança de raiz, que diacríticos, sinais que o grupo escolhe para recebe esse nome por ser feita com linhas se distinguir dos demais grupos, tais sinais, retas ou desenhos desenvolvidos pelo artista conforme Cunha (1986) são retirados de trançador, muito parecido com a imagem de uma cultura original, no caso a cultura “afri- uma terra arada, que Joice uma das partici- cana” passando a adquiri uma nova função pantes do concurso de 2010 tem a função de na cultura em uso, o que a autora chama de “mostrar como é raiz, que a cultura é raiz até cultura de contraste. No caso específico do nos cabelos”. Essa ideia é trazida do apren- objeto em questão, estes sinais diacríticos dizado nas oficinas da Criliber, ou mesmo no

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cotidiano, em especial através de Gilmária, a to importante para a construção do imagi- Gil, trançadeira da comunidade. nário afro-brasileiro dessas meninas, pois juntamente com a confecção da trança tra- Figura 4 — Ornamentos feitos com búzios, pa- balho relativamente demorado, se contam lhas e tranças histórias dos ancestrais, ou da ideia que se tem das culturas ancestrais. A própria tran- ça, para a cultura nagô ou iorubá, tem uma função social, que é demonstrar, segundo os moradores da Maloca, o lado suave positivo e organizado da deusa terra, Nanã. Por fim, um último elemento, a ser jul- gado no concurso Beleza Negra Criliber é a performance individual, critério de maior valor para a escolha da rainha do Carnaval, e Beleza Negra, que irá representar a comu- nidade durante todo o ano. A performance individual varia confor- me a temática escolhida para o evento. Por exemplo, em 2010, referia-se a Omulu e à dança de Iansã com Omolu, tal como conta a mitologia. Neste sentido, as meninas bai- lavam, e giravam no sentido horário e an- ti-horário, agachavam-se e sacudiam suas cabeças para cima e para baixo. No ano de 2013, a dança individual, ti- nha como principal referencial Oxum. Nes- te ano, foram homenageadas as Candances, que no discurso inicial do evento eram de-

Fonte: Rosália Alves (2010) finidas como poderosas rainhas guerreiras africanas, que tinham o dom de proteger e Outro recurso importante, muito utili- proporcionar a fartura para o seu povo. As- zado pelas meninas, é a trança de raiz, que sim, o último evento Beleza Negra, o qual recebe esse nome por ser feita com linhas diferentemente dos anos anteriores, este- retas ou desenhos desenvolvidos pelo artista ve muito próximo do modelo pelo qual foi trançador, muito parecido com a imagem de criado em 2004, desenvolvido e festejado no uma terra arada, que Joice uma das partici- pavilhão interno da comunidade, como con- pantes do concurso de 2010 tem a função de sequência segundo seus idealizadores da fal- “mostrar como é raiz, que a cultura é raiz até ta de recursos. As meninas, mais jovens que nos cabelos”. Essa ideia é trazida do apren- nos demais anos, estavam tão belas quanto dizado nas oficinas da Criliber, ou mesmo no nos anos anteriores enfileiravam-se em uma cotidiano, em especial através de Gilmária, a rampa, localizada na lateral do pequeno pal- Gil, trançadeira da comunidade. co situado no centro do pavilhão interno da A questão do trançar o cabelo é mui- comunidade, ornamentado com tecidos flo-

96 Revista África(s), v. 02, n. 03, p. 89-100, jan./jun. 2015 Tacyane Lima de Menezes ridos e lisos, da rampa elas de dirigiam ao A divindade do rio de mesmo nome que cor- palco como nos anos anteriores e bailavam re na Nigéria, em Ijexá e Ijebu. Era, segundo primeiro em conjunto depois individual- dizem, a segunda mulher de Xangô, tendo vivido antes com Ogum, Orunmilá e Oxos- mente. si. [...] Oxum é chamada de Ìyálóòde (Iaodê) Diferentemente de 2010, todas as meni- título conferido à pessoa que ocupa o lugar nas que participaram do concurso em 2013 mais importante entre todas as mulheres da eram moradoras da comunidade da Maloca. cidade. Além disso, ela é a rainha de todos Elas tinham entre 6 e 21 anos, o que divergia os rios e exerce seu poder sobre a água doce, do critério adotado pela comissão do con- sem a qual a vida na terra seria impossível. [...] A sua dança lembra o comportamento curso de 2010 e 2009, também elas e não de uma mulher vaidosa e sedutora que vai ao o balé afro-Criliber abriram a festa. A razão rio se banhar, enfeita-se com colares, agita pela qual o balé não apresentou uma coreo- os braços para fazer tilintar seus braceletes, grafia específica para o evento como todos abana-se graciosamente e contempla-se com os anos, é produto da morte prematura de satisfação num espelho. O ritmo que acom- Jane que era responsável por ajudar nos panha as suas danças denomina-se “ijexá”, nome de uma região da África, por onde cor- ensaios do balé-afro. Atualmente, o balé en- re o rio Oxum (VERGER, 1997, p. 67-70). contra-se sob os olhares de Larissa e Joice, irmã de Jane. Porém, na época do concurso Assim, as meninas, das mais jovens as estas não se encontravam na Maloca. mais velhas, nesta ordem, subiam sequen- Contudo, embora, não tivessem uma en- cialmente e individualmente ao palco, a fim cenação tão bem elaborada como nos con- de dançarem para serem julgadas. Ao som cursos anteriores, este em nada perdeu em de tambores, e cantando juntamente com graça e beleza, as meninas transmitiam da os músicos locais, cuja primeira voz era do mesma maneira, a essência de uma cultu Maestro Saci, as meninas uma a uma baila- -ra de herança africana, que a comunidade vam sobre o palco, com os pés descalços e tenta reforçar através de eventos cotidianos movimentos rápidos e ondulatórios, ao som e festivos como esse e fazia-se presente na da música, que inclusive é cantada nos ter- noite do dia 9 de Fevereiro de 2013. Nem reiros de candomblé para Oxum: as indumentárias e muito menos as perfor- Figura 5 — Performance da vencedora do Bele- mances fugiam do referencial criado pelos za Negra Criliber 2012. concursos anteriores. A comissão julgadora foi formada por uma Beleza Negra, Mirtes Rose, um repre- sentante do movimento negro, Rui, uma re- presentante da Liga de Blocos de Aracaju, Elian Cruz e mais dois moradores da comu- nidade, os quais tinham em suas mãos uma ficha, a qual continha os critérios a serem observados, dentre eles a simpatia e desen- voltura na passarela e na dança. Em 2013, a música que regia a perfor- mance artística e cultural das participantes era umahomenagem a Oxum, Fonte: Foto do autor (2012)

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Oro Mi maió... Oro Mi maió ca, dentre eles, as meninas que participam Oro mi Maió do concurso, não são adeptos do candom- Yabado Oyeyeo blé, como afirmou Dona Creuza, que define Oro Mi má...,Oro Mi maió o espetáculo que realizam durante o con- Oro Mi má..., Oro Mi maió Yabado Oyeyeo.... curso como uma celebração do mito, como parte de uma cultura, que eles têm como Na medida em que dançam, definem referencial. “Na estética da dança, o concei- uma ideia de uma beleza negra modelada to de belo no candomblé, não é apenas algo pela gestualidade que representa também ligado à aparência exterior, mas deve cor- características psicológicas dos brincantes, responder a uma beleza interna, do caráter mesmo que apenas na simbologia cultural e e também da personalidade” (BARBARA, não religiosa, já que os moradores da Malo- 2002, p. 134).

Figura 5 e 6 — Performance da segunda e terceira colocadas do Beleza Negra Criliber 2012.

Fonte: Fotos do autor (2012).

Nesse sentido, poderíamos relacionar o mulher e beleza, em relação a estes orixás, conceito de beleza, nas duas versões do con- cujos símbolos giram em torno da força in- curso aqui analisadas, como resultado de teligência e sedução. uma idealização aproximativa, dos arquéti- Assim, a beleza da performance tanto do pos de Iansã e Oxum, orixás que inclusive balé-afro, quanto das candidatas do con- são sempre lembrados durante as escolhas curso Beleza Negra Criliber, deve ser uma das músicas, para as principais coreografias. confluência, como afirmou Lowen (apud Isto talvez, se deva ao fato de no imaginá- BARBARA, p. 134), do equilíbrio mental, rio das meninas serem cultivados o ideal de emocional e corporal, o qual era evidente

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98 Tacyane Lima de Menezes na vencedora, do concurso de 2013, Luísa na de seus moradores, onde é possível ob- Batista, a qual embora com pouca idade, se servar o modo como estes passam a utilizar comparada as candidatas dos concursos an- determinados sinais diacríticos, os quais re- teriores, demonstrou a segurança nos gestos presentam uma ideia de etnicidade, por eles que lembravam o orixá Oxum, principal- formulada para construir uma identidade mente em relação à leveza do movimento e tematizada, “uma estratégia deliberada e re- ao uso instrumental dos membros do corpo, flexiva de colocação publica de uma situação onde sua mão imitava o espelho de Oxum. social qualquer sob a égide explicita da pro- Dessa maneira, o corpo, enquanto em blemática identitária, em geral, com vistas à “emissor ou receptor, produz sentidos con- constituição ou potencialização de dinâmi- tinuamente e assim insere o homem, de for- cas de ação social” (COSTA, 2002, p. 27). ma ativa no interior do espaço social e cul- Ora a identidade tematizada é a repre- tural” (LE BRETON, 2011, p.8). É, portan- sentação dos agenciamentos políticos e so- to, através da sua gestualidade, um código ciais da comunidade é o próprio evento Be- comportamental, que manifesta fisicamente leza Negra Criliber, cuja dinâmica de poten- a aprendizagem adquirida ao longo da vida, cialização da identidade étnica se encontra que o indivíduo reflete o que pretende ser. inscrita sobre o corpo negro compreenden- do o uso que as participantes fazem de indu- mentárias, trançados de cabelo, amarrações na cabeça, e demais adereços, bem como, A construção da trama sobre a qual se dá a da sua performance em relação à dança e Consideraçõesreinvenção de uma África finais para os morado- à música na medida em que transformam res da comunidade quilombola da Maloca seus corpos em um espaço de inclusão que passa por um duplo processo de produção conecta os imaginários sociais produzidos de identidade nos moldes definidos por An- na modernidade em torno do que se define tônio Firmino da Costa (2002). como reafricanização. Neste sentido, existe um processo de produção de uma identidade experimenta- da, anterior ao concurso Beleza Negra Cri- Referências liber, quando os moradores da comunidade BARBARA, Rosamaria. A dança das Aiabás: definem a partir das práticas do cotidiano, dança, corpo e cotidiano das mulheres de can- domblé. 201. Tese (Doutorado em Sociologia) — o espaço onde habitam, o qual passa a ser Departamen-to de Sociologia da Faculdade de vivenciado pelos rituais diários, ao mesmo Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Univer- tempo em que é transmitida para as novas sidade de São Paulo, São Paulo, 2002. gerações, criando e mantendo sentimentos CAPONE, Stefania. A busca da África no Can- de pertença em relação ao espaço; e suas domblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Ja- respectivas representações coletivas, que, neiro: Contra capa livraria/Pallas, 2009. inclusive, transitam pelos usos atribuídos COSTA, Antônio Firmino. Identidades culturais pelos moradores e seus outros ao nome a ele urbanas em época de globalização. Revista Bra- atribuído. sileira de Ciências Sociais, n. 48, 2002. E uma posterior, porém, não menos im- CUNHA, Manuela Carneiro da. Etnicidade: da portante, contudo dependente da primeira cultura residual mas irredutível. In: Id. Antro- que são produtos das representações dessas pologia do Brasil: mito, história e etnicidade. práticas em um espaço vivenciado na roti- São Paulo: Brasiliense: Ed. USP, 1986.

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DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai bran- RISÉRIO, Antonio. Carnaval ijexá: notas sobre co. Rio de Janeiro: Graal, 1988. afoxés e blocos do novo carnaval afrobaiano. Salvador: Corrupio, 1981. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994. Vol. 1, p. SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o 169-192; 199-220. local e o global nas relações raciais e na produ- ção cultural negra do Brasil. Trad. de Vera Ri- GILROY, Paul. O Atlântico Negro — moderni- beiro. Salvador/Rio de Janeiro, Edufba/Pallas, dade e dupla consciência. Rio de Janeiro, Ed. 2004 34/UCAM — Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. SANSONE, Lívio. O local e o global na Afro -Bahia Contemporânea. Revista Brasileira de LE BRETON, David. Antropologia do corpo e Ciências Sociais, n. 29, p. 65-84, out. 1995. modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na Áfri- LODY, R. G. da M. Cabelos de Axé: identidade e ca e no Novo Mundo. 5. ed. Salvador, Corrupio, resistência. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 1997. 2004. QUEIROZ, Renato da Silva. (Org.). O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Pau- Recebido em: 29/01/2015 lo: Editora Senac São Paulo, 2000. Aprovado em: 25/03/2015

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100 Derneval A. Ferreira; Maria de Fátima Maia Ribeiro

Quando a independência veio! apanhados pela teia!

Derneval A. Ferreira*

Maria de Fátima Maia Ribeiro**

Resumo As narrativas angolanas Mayombe, de Pepetela, e Noites de Vigília, de Boa- ventura Cardoso, são marcadas por uma construção que beira tanto a estéti- ca literária quanto o processo histórico no qual estão inseridas. Assim, elas apresentam uma estética plural e suas abordagens principais desdobram-se em tantas outras, permitindo assim negociações de sentido e verdadeiros jo- gos de polissemia. Foi a partir dessas concepções de análise textual e literária que se pensou em articular este artigo para discutir a problemática do dis- curso colonialista e anticolo-nialista como ferramentas necessárias para se compreender melhor a construção libertacionária e autônoma de aspectos relacionados à sociedade angolana na sua formação nacional. Palavras-Chave: Literatura Angolana. Independência. Pepetela. Boaven- tura Cardoso.

Abstract The paper deals with two Angolan narratives Mayombe by Pepetela and Noites de Vigília by Boaventura Cardoso. They both are marked by the idea that borders with the literary aesthetics and historical process in which they are embedded. That is why they both constitute pluralist aesthetics. Their main perspectives manifest themselves in many others and consequently en- able multiple meanings. It is from this textual and literary analysis concepts that this paper aims discussing an issue of colonialist and anticolonialist dis- cursus as a necessary tool for better understanding of libertarian and auton- omous construction of some aspects related to Angolan society. Keywords: Angolan literature. Independence. Pepetela. Boaventura Car- doso.

* Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional (UNEB); douto-rando do Programa de Pós- Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA); bolsista da FAPESB. E-mail: [email protected]. ** Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA) — orientadora. E-mail: [email protected].

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101 Quando a independência veio! Apanhados pela teia!

A formação de muitos países africanos foi angolana pós-independência. Os constantes marcada por episódios que foram registra- encontros e desencontros presentes nas fa- dos pelo curso da história e guardados na las de Quinito e Saiundo sobre as condições memória de seu povo. Muitas nações saíram sociais, políticas e econômicas de uma An- dos espólios do colonialismo secular de do- gola recém formada nação demonstram o minação para um novo cenário que aparen- quadro caótico em que se encontrava este temente camuflava tais aspectos, mas que país e seu povo pós formação nacional. ainda se constitui num grande empecilho Parece consenso afirmar que a indepen- para o desenvolvimento de algumas nações, dência de muitos países africanos não era inclusive a angolana. As reflexões de Gilroy apenas um desejo de sua população, mas (2007) acerca das condições dos países afri- também um acontecimento e um marco canos pós-independência ajudam a com- histórico necessários para um momento. preender melhor essas ideias, ao tempo em No caso específico de Angola, vários seg- que confirmam a necessidade de se repensar mentos sociais manifestaram-se a favor de essas questões que não apenas assolam mui- um ideário de libertação: sejam estudantes, tos países, como também são pertinentes burgueses, pequenos comerciantes, milita- para que novos discursos sejam reconstruí- res, sejam homens comuns,aqueles poucos dos, remodelados e modificados. Segundo visibilizados. No entanto, a ambição liberta- esse autor, cionária estava relacionada não só ao poder [...].Os países africanos são ainda explorados que cada classe social desempenhava, como e excluídos, mas mudou o modo de sua mar- também aos seus futuros interesses nas es- ginalização. Os padrões distintivos do im- feras de comando, gerenciamentos e orga- perialismo do século XX regrediram. Novas nizações. Por isso, questiona-se: a indepen- batalhas sobre saúde, tecnologia, ecologia, e dência angolana correspondeu efetivamente em especial a dívida emergiram para expan- a uma aspiração coletiva de um país recon- dir e adaptar nossa compreensão dos confli- tos políticos coloniais e quiçá pós-coloniais. ciliado, com um projeto coeso e partilhado, Os países mais ricos do mundo permanecem com um pensamento estratégico nacional profundamente divididos a respeito do can- com consideráveis índices de desenvolvi- celamento das dívidas contraídas pelos go- mento humano? vernos africanos (GILROY, 2007, p. 250). As literaturas de Pepetela e Boaventura As considerações de Gilroy demons- Cardoso conseguem trazer à tona fragmentos tram que há uma necessidade de ponderar o da história angolana. No caso de Mayombe, que se chama de política de descolonização de Pepetela, trata-se de uma narrativa que numa era “sem colônias” e de buscar a possi- apresenta um recorte de lutas de guerrilha bilidade de uma consciência anti-imperialis- em momentos antecedentes à independên- ta numa era “sem impérios” (Idem, p. 250). cia política do país, ao passo que Boaventu- Por isso, é preciso que se confronte os prin- ra Cardoso, em Noites de Vigília, também se cípios históricos e filosóficos da ideia de li- dedica a pontuar passagens da história de bertação e promova uma reavaliação do que Angola, sendo que o marco temporal é pós se chamou de revolução, principalmente no -independência. Usando um recurso memo- contexto angolano. Tudo indica que a narra- rialístico, os personagens revivem os longos tiva Noites de Vigília, de Boaventura Cardo- anos de guerra civil instaurada pós-consti- so, apresenta alguns indicativos da situação tuição nacional, ao tempo em que também

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102 Derneval A. Ferreira; Maria de Fátima Maia Ribeiro revisam o passado, os momentos difíceis os vários regimes socialistas em África o de das lutas que envolviam os processos de in- Luanda era o mais feroz, talvez só compa- rável ao da Etiópia no tempo do Menghistu, dependência do país. A literatura, nesse as- não era então aqui que se pretendia construir pecto, adquire um papel acusativo de fatos trincheira firme da Revolução em África [...] e episódios de um país que foi marcado por (CARDOSO, 2012, p. 116-117). lutas e conflitos em grande parte de sua his- Parece que a história política de Angola tória. O personagem Sem Medo de Mayombe, vem à tona, por meio do texto literário. O ao se expressar diante do Comissário sobre autor não hesita e, corajosamente, denuncia questões de domínio e de poder, comenta os trâmites da política angolana em um pe- que, ríodo conflituoso e decisivo para a recons- trução nacional. Os recursos literários re- — Ora! Vamos tomar o poder e que vamos ferentes aos gêneros de pontuação usados dizer ao povo? Vamos construir o socialis- pelo autor como reticências e interrogações mo. E afinal essa construção levará 30 ou 50 anos. A fim de cinco anos, o povo começará parecem produzir um efeito de dúvida, de a dizer: mas esse tal socialismo não resolveu inquietação, de omissão de algo que poderia este problema e aquele. E será verdade, pois se invocar, provocando uma suspensão no é impossível resolver tais problemas, num pensamento em relação à história de angola país atrasado, em cinco anos. E como rea- e deixando para o leitor a complementação girão vocês? O povo está a ser agitado por elementos contra-revolucionários! (PEPE- de sentidos. TELA, 1990, p. 128-129). As questões que envolvem lutas de li- bertação e formação nacionais apresentam Na fala de Sem Medo, parece ressoar diferentes graus de complexidades, princi- uma previsibilidade do que ocorreria no palmente a depender do diálogo que se es- âmbito político, assim que as forças colo- tabelece entre os conceitos, pontos de vista e nialistas fossem substituídas. A mudança de os diversos lugares e posições que os envol- sistema político não garantia os direitos da vidos ocupam. Portanto, verifica-se até que maior parte da população e o povo continua- ponto as narrativas Mayombe e Noites de va demonstrando insatisfação, até porque Vigília apresentam um discurso formador “[...] esse tal socialismo não resolveu este de uma consciência política libertacionária problema e aquele”. Em outras palavras, a ou simplesmente se constituem em narra- independência se consumaria, mas a nova tivas apresentando singular contribuição nação continuaria apanhada pelas mesmas para a efetiva libertação e reflexão sobre o teias. cenário de guerrilha, precedente à indepen- Observe também como o personagem dência política de Angola e ao período pos- Saiundo tece comentários sobre a situação terior à formação nacional, marcado ainda política em Angola pós-independência: por lutas, guerras e conflitos internos. Essa [...] meu caro Quinito, essa de querer im- perspectiva remete às reflexões de Amílcar plantar em Angola um regime comunista, Cabral sobre o processo de libertação de sinceramente..., ai, não era nada comunis- países africanos. Amílcar Cabral (1970 apud ta?,então o que era?, um regime de opção so- cialista?, eh, pá, isso era tudo a mesma treta, VAMBE; ZEGEYE, 2012) entendia que o co- o vosso objetivo final era mesmo a implan- lonialismo criara divisões entre os africanos tação do comunismo em Angola, de entre e percebeu que o objetivo da luta é acabar

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103 Quando a independência veio! Apanhados pela teia!

com a dominação estrangeira das forças revolucionário, subversivo, mas também produtivas, sendo que a luta nacional, com conflituoso e antagônico devido aos diver- ênfase na libertação das forças de produção, sos fatores históricos, sociais e culturais que permitiria aos africanos retomar o caminho apresentavam oscilações e mudanças cons- ascendente de sua própria cultura. Segundo tantes. Se ao criar o personagem Teoria com Cabral, ainda, formação europeia que demonstra posicio- namentos conflitantes durante a narrativa, [...] a libertação nacional acontece quando e apenas as forças nacionais de produção es- o Comandante Sem Medo que exibe insegu- tão completamente livres de qualquer tipo rança no comando das tropas guerrilheiras e de dominação estrangeira. A libertação das tantos outros que exprimem tensões e con- forças produtivas e, por conseguinte, a capa- tradições, Pepetela parece instigar pelo viés cidade de determinar o modo de produção da denúncia contra o colonialismo do que mais adequado à evolução do povo libertado qualquer tipo de preterida intenção. Se os abrem necessariamente novas perspectivas para o desenvolvimento cultural da socieda- personagens em sua totalidade não são sufi- de em questão, desenvolvendo a essa socie- cientemente capazes de criar novos modelos dade toda a sua capacidade de criar progres- de releitura da realidade, distanciando-se so (CABRAL, 1970 apud VAMBE; ZEGEYE, do universo colonialista, tentativas e esfor- 2012, p. 46). ços são dispensados a todo o momento em As considerações de Cabral impulsio- diversos momentos na narrativa, para que nam mais uma veza reflexões importantes esse distanciamento se concretizasse, como sobre a independência e sua efetiva conso- ilustra a passagem abaixo: lidação em países africanos, a saber, a na- Sacanas colonialista, ção angolana. Quando se pensou no levante Vão à merda, vão para a vossa terra. da bandeira de libertação nacional, quais as Enquanto estão aqui, classes sociais angolanas contribuíram efeti- Na terra dos outros, vamente na realização de tal feito? Quais os O patrão está a comer a vossa mulher Ou irmã, cá nas berças! (PEPETELA, 1990, lugares e posições ocupadas pelos iletrados p. 35). nessa empreitada? E os burgueses também manifestaram apoio e atuaram com fins ao Em plena mata densa, os guerrilheiros desenvolvimento integral da população? do Mayombe exprimiam a todo momento Nunca é demais lembrar que a participação o ódio e a ira que sentiam contra os colo- e o desempenho de cada grupo social estão nialistas e desejavam se distanciar deles a diretamente relacionados a fatores culturais qualquer custo. O bilhete deixado por Sem e interesses econômicos. Quando se toma o Medo representa um ultimato aos coloni- texto literário como uma voz atuante, repre- zadores portugueses instalados em Angola; sentando determinados grupos mais engaja- além disso, por meio de uma linguagem bei- dos, a arte demonstra estar política e cultu rando o populismo, o personagem manifes- -ralmente mais presente nas entrelinhas do ta ainda o desejo não apenas dele e de seus texto. É o que se percebe nos romances ana- companheiros, como também de milhares lisados de Pepetela e Boaventura Cardoso. de angolanos de expulsar os oportunistas Evidentemente, que, para Pepetela, as colonizadores. Ao afirmar “ENQUANTO ES- condições históricas da década de 1970 fa- TÃO AQUI, NA TERRA DOS OUTROS”, ele voreciam a criação de um discurso às vezes exprime o sentimento de pertença de suas

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104 Derneval A. Ferreira; Maria de Fátima Maia Ribeiro terras, de seus espaços que foram violenta- as totalidades. O interesse imediato, pal- mente invadidos pelos colonizadores. Esse pável, evidentes de tais sobressaltos é nulo reconhecimento nativista fortalece a ideia (FANON, 1979, p. 198). de luta, de busca pela liberdade política e Mesmo distanciadas por um lapso tem- pela autonomia cultural. poral, as considerações de Fanon podem ser Se em Mayombea ação militar é invoca- relacionadas ao contexto literário no qual a da pelos militantes guerrilheiros como uma obra Mayombe enquadra-se. Escrito na dé- saída para a libertação, deixando para o pla- cada de 1970, o romance de Pepetela nasce no secundário a ação política, em Noites de ainda sob as veias do colonialismo e sua ex- Vigília esse tipo de estratégia é questionada, pressividade é resguardada pelas circuns- criticada e sujeito à reflexão. O personagem tâncias de um momento histórico marcado Saiundo, por exemplo, defende uma posição por forças antagônicas e contraditórias. Por diferente daquela narrada em Mayombe. mais que os ventos coloniais soprassem a Para ele, é necessário despertar preocupa- favor do apagamento cultural, verificava-se ções e ações políticas só, posteriormente, ainda, como o próprio Fanon (1979) afirma- instaurar as ações militares. Dessa forma, va que “aqui e ali surgiam às vezes tentati- pode-se promover uma mudança não só em vas ousadas de reativar o dinamismo cultu- termos geopolíticos, mas, sobretudo, uma ral...”, a fim de preparar uma reconfiguração mudança na compreensão histórica, social, no cenário, na paisagem social, política e cultural e ainda prática e efetiva na cons- cultural de um país que necessitava de sua trução do nacionalismo e nos valores demo- constituição nacional. cráticos, como bem reflete Achile Mbembe As formas como são abordadas as temá- (2012, p. 134-135), ao discutir a questão da ticas em Mayombe e Noites de Vigília dire- economia do poder no continente africano: cionam mais para uma visão de futuro dese- “[...] a valorização do local enquanto forma jado ou reflete um desejo efetivo de tornar de “cidadania” local de participação é de essa visão uma realidade? Nessa perceptiva, “democracia” constitui uma resposta às ten- Fanon (1979, p. 200) afirma ainda que “[...] tativas de um estado que aspira à onipresen- a cristalização da consciência nacional vai ça e que pretende gerir todos os aspectos da ao mesmo tempo transbordar os gêneros e vida social”. os temas literários e criar completamente Discutindo os fundamentos recíprocos um novo público”. da cultura nacional e das lutas de libertação, Em um texto polêmico e, ao mesmo tem- Fanon (1979) afirma que o domínio colonial po, instigante, tecendo, inclusive, críticas às fez com que se desarticulasse de modo inci- categorias marxistas e nacionalistas, Mbem- sivo a existência cultural do povo subjugado. be (2001) reflete sobre processos históricos Segundo o autor, que repousaria sobre o pensamento africa- [...]. A situação colonial determina, em qua- no; a saber: a escravidão, o colonialismo e a se totalidade, a cultura nacional. Não há, não apartheid. As considerações de Mbembe aju- poderia haver, cultura nacional, vida cultural dam a compreender melhor diversas situa- nacional, invenções culturais ou transforma- ções de países africanos pós-independência. ções culturais nacionais no quadro de um domínio colonial. Aqui e ali surgem às vezes A sociedade angolana, por exemplo, mesmo tentativas ousadas de reativar o dinamismo pós constituição nacional, não logrou êxitos cultural, de reorientar os temas, as formas, satisfatórios para a sociedade civil, e os me-

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nos favorecidos economicamente, ficaram É nessa perspectiva que Ojo-Ade (2006), relegados historicamente. Sobre esse aspec- em seu artigo intitulado “Da descolonização to, Mbembe (2001, p. 74) afirma ainda que, ao neo colonialismo. Ficção franco formada África Ocidental”, tece críticas ao novo mo- A ideia da degradação histórica. A escravi- dão, a colonização e o apartheid são consi- delo de política instaurada em muitos países derados não só como tendo aprisionado o africanos. Discutindo, nesse mesmo artigo, sujeito africano na humilhação, no desen- o papel do escritor, ele afirma que, raizamento e no sofrimento indizível, mas também em uma zona de não ser e de morte [...] Quando a independência veio — con- social caracterizada pela negação da dignida- quistada, dada, emprestada, vendida, rouba- de, pelo profundo dano psíquico e pelos tor- da — muitos ficaram imaginando o que ela mentos do exílio. significaria. De repente, descobrimos que es- távamos dormindo ou sonhando acordados. Por outro lado, é importante pontuar O inimigo mudou de cor e cada um de nós também que a sociedade angolana apresen- acordou para as nossas particularidades ou tou algumas mudanças em diversos setores. peculiaridades que infelizmente (?) não nos era mais permitido cultivar. Nacionalismo, No entanto, certas configurações passavam sem uma nação (OJO-ADE, 2006, p. 253). apenas por mutações que pouco represen- tavam o desejoda maior parte da popula- Apesar de as considerações de Ojo-A- ção. Vale dizer que apesar de a “bandeira” de estarem mais voltadas para uma visão e o “hino terem mudados, pouco isso repre- francófona, podem-se, analogicamente, ser sen-tou em termos efetivos de conquistas aplicadas no contexto angolano, tomando, econômicas e de priorização nos campos inclusive, como base as obras Mayombe e humanitários, moral e material. Injustiças, Noites de Vigília. Por isso, é pertinente afir- desigualdades sociais, apagamento cultural, mar que por mais que fiquem claras as in- radicalismo político, dentre tantos outros tenções de libertação e subversidade ao do- fatores, faziam com que mudassem os prota- mínio colonial, a narrativa de Pepetela não gonistas, mas as práticas políticas continua- fornece pistas suficientes de uma implanta- vam se não as mesmas, mas com similitudes ção de uma efetiva democracia e verdadei- de outrora. No caso específico de Angola, ra consolidação de diário nacionalista. Evi- é possível afirmar que esse país passou de denciam-se mais os combates em si como se uma situação de densa dominação, marcada eles fossem os principais vetores de forças pelas forças colonialistas, para uma ilusó- anti-colonialistas, enquanto que as reais ria liberdade, assinalada por um camuflado intenções de domínio e poder parecem per- modelo que, examinado e refletido ao cerne, manecer camufladas, até porque os diversos sustentava ainda um sistema de dominação. sujeitos imaginários que constituem a nar- Ou seja, nesse espetáculo de artistas e ato- rativa e que, ganham conotações quase reais res, cenários, coadjuvantes e diretores havia em diversos momentos e diálogos, apresen- poucos espaços para a manifestação de uma tam pensamentos tencionados nas ideias de plateia que desejava, incessantemente, par- determinados grupos políticos que intencio- ticipar da reescrita da história, pelo fato de nalmente divergiam em alguns aspectos de que seu desejo também era transformar-se outros movimentos. em atores, sujeitos, atuantes nos episódios Em relação ao romance Noites de Vigília, subsequentes. esse diagnóstico parece tomar outras feições.

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Enquanto o personagem Quinito parece agir mas não hesita em mencionar a produção de forma muito parecida aos guerrilheiros literária de Pepetela como fundamental nos de Mayombe, percebendo a violência como processos interrogativos da história para a o principal veículo de liberdade nacional e compreensão do presente. Nessa perspecti- desapego às forças colonialistas, o autor va, Mata (2007, p. 81) afirma que: contrapõe o diálogo na narrativa, criando Herdeiro da tradição nacionalista (no senti- o personagem Saiundo que, numa espécie do de construção de uma nação angolana), de reavaliação, refaz partes dos aconteci- a obra de Pepetela transmite uma exigência mentos por meio de grandes pensamentos e que, num país em que ter esperança é resis- importantes reflexões, mostrando ao leitor tir a todo o pessimismo, remete para a ina- dequação de se pensar o futuro enquanto a outros possíveis diálogos, geradores de ou- memória coletiva da história for impeditiva tras possíveis leituras sobre a implantação e do passado. a verdadeira situação do povo angolano pós a tão almejada libertação. Mesmo que o foco narrativo de Mayom- O texto literário também é requisita- be demonstre que a luta armada, a guerrilha do para se entender melhor conflitos so- e os conflitos sejam a trama maior da nar- ciais, relações de poder e também relações rativa, acredita-se que esse romance escrito cotidianas. Nesse sentido, tomam-se aqui mesmo antes da independência de Angola, as narrativas em análise para que possam por meio de uma leitura mais profunda, mostrar como essas tensões e contradições demonstre indícios de um desejo de uma se fizeram presentes na sociedade angolana formação nacional voltada para as reais ne- em períodos marcados por guerras e lutas. cessidades da população, já que seu autor Quando se toma, por exemplo, as narrativas defendia a implantação de uma indepen- Mayombe e Noites de Vigília para entender dência que se voltasse para a criação de uma melhor certos aspectos históricos, culturais sociedade mais igualitária e não substituís- e própria formação nacional angolana, per- se um poder colonial por outro com feições cebe-se, por via de regra, que seus autores similares. Se a narrativa consegue provocar adquirirem uma performance e um poder de essas reflexões em leitores e, simultanea- institucionalizar seus romances como fontes mente, polemiza a luta de libertações nacio- questionáveis de fatores que marcaram his- nal, Noites de Vigília também indicia fatos toricamente seu país. Temas como luta de implantados e ocorridos pós processo de libertação anticolonial e reconstrução na- independência numa perspectiva de denun- cional são recorrentes em muitas narrativas ciar também os conflitos existentes duran- e parecem assinalar processos simultâneos te as guerras civis.. Nesse aspecto, a leitura e interdependentes, até porque passam por de Boaventura Cardoso aproxima-se muito uma formulação de um projeto que requer bem das considerações de Ojo-Ade (2006, um pensamento mais elaborado, cuidadoso p. 256) que, ao analisar textos francófonos, e reflexivo e, ao mesmo tempo, denunciativo afirma: e crítico. [...] As massas ainda estão sem voz, sem ros- Discutindo a ficção angolana como um to, depois da independência. A classe média projeto nacional feito de histórias locais, não pode ser a sua voz porque está demasia- Mata (2007) reconhece a importância de do ocupada em proteger seus próprios inte- muitos autores na reconstrução identitária, resses. Além disso, a identidade do inimigo

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não é mais a mesma; agora ele tem pele escu- fba,2008. ra e é mais vil e violento do que seu predeces- GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade sor, mentor e senhor estrangeiro.[...]. e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. Essas considerações trazem à lembrança São Paulo: 2001. as reflexões do personagem Saiundo deNoi - GILROY, Paul. Entre campos: noções, cultura e tes de Vigília, principalmente quando ele re- o fascínio de raça. Trad. Celia Maria Mirinho de Azevedo et al. São Paulo: Annablume, 2007. lembra que, MATA, Inocência. A condição pós-colonial das (ora que, o Poder Popular... se pensas que me literaturas africanas de língua portuguesa: algu- enganas, Quinito, estás enganado. O Poder mas diferenças e convergências e muitos luga- Popular não era mais que uma organização res-comuns. In: LEÃO, Ângela Vaz. (Org.) Con- extremista a mando do MPLA. Hoje o povo tatos e Ressonâncias: literaturas africanas de é quem mais sofre, apesar de tantas promes- língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, sas que lhe fizeram no sentido da melhoria 2003. das suas condições de vida. Essa de que “o MATA, Inocência. Ficção e história na litera- mais importante é resolver os problemas do tura angolana — O caso Pepetela. Prefácio de Povo”, não passa de uma lengalenga (CAR- Pepetela e Posfácio de Laura Padilha. Coleção DOSO, 2012, p. 82-83). Kunyonga. Luanda: Mayamba Ed., 2010. O pensamento de Saiundo pode ser um MATA, Inocência. Literatura africana e a críti- mote questionador das relações sociais de ca pós-colonial. Luanda, 2007. dominação. Se a queda das forças colonia- MBEMBE, Achille. África insubmissa. Cristia- listas não foi suficientemente capaz de ins- nismo, poder e estado na sociedade pós-colo- taurar um novo modelo político basilar e nial. Edições Pedago, 2013. democrático que contemplasse os valores MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto reais da população e instaurasse uma polí- -inscrição. Revista Estudos Afro-Asiáticos, ano tica voltada para o bem comum, restauran- 23, n. 1, p. 171-209, 2001. do a memória do passado colonial, convém OJE-ADE, Femi. Negro: raça e cultura. Coor- notar que diversos atores sociais de diversas denação e tradução Ieda Machado Ribeiro dos áreas, inclusive no mundo artístico, cultural Santos. Salvador: EDUFBA, 2006. e literário, reproduziram e reproduzem esse OJE-ADE, Femi. Cultura africana: do velho e do cenário, seja de forma nítida ou, muitas ve- novo; os anos 90. Disponível em: www.afroasia. ufba.br/pdf/afroasia_n16_p36.pdf. Acesso em: zes, impulsionados pelo próprio contexto, 17 ago. 2014. como bem afirma o próprio Ojo-Ade (2007, p. 266): “[...] neste meio tempo o escritor, PEPETELA. [Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos]. Mayombe. 7. ed. Publicações Dom Qui- símbolo da liberdade e do compromisso, é xote, 1980. apanhado na teia. O dilema prevalece”. VAMBE, Maurice Tanonezvi; ZEGEYE, Abe- be. Amílcar Cabral e as vicissitudes da literatu- Referências ra africana. In: LOPES, Carlos. (Org.) Desafios CARDOSO, Boaventura. Noites de Vigília. São contemporâneos da África: o legado de Amíl- Paulo: Terceira Margem, 2012. car Cabral. Trad. Roberto Leal/Fundação Amíl- car Cabral. São Paulo: Ed. UNESP, 2012. FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1979. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras bran- Recebido em: 16/02/2015 cas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: Edu- Aprovado em: 29/03/2015

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108 Objetivo e Política Editorial

Objetivo e política editorial

A revista África(s) publica artigos originais e resenhas que tenham como foco pesquisas sobre o continente africano e suas representações. São bem vindos artigos nas áreas de História, Ciências Sociais, Educação, Economia, Artes, Arqueologia, Literatura e Letras. A revista África(s) tem como objetivo a divulgação de pesquisas que abordem o continente africano, contribuindo assim para di- fundir o conhecimento sobre a África e seus povos.

Os originais podem ser enviados em português, francês, espanhol e inglês. Todos os artigos devem ser acompanhados A submissão de artigos e resenhas para a revista África(s) só poderá ser feita por mestres e doutores. Poderão submeter artigos para publicação na revista mestres e doutores nas áreas em História ou áreas afins. Todos os textos recebidos para publicação serão submetidos a uma avaliação preliminar quanto à sua adequação aos objetivos mencionados acima, a ser realizada pelos Editores.

Textos Todos os textos aprovados na avaliação preliminar e que atendam aos requisitos mínimos apontados nas normas de apresentação de colaborações serão submetidos a dois pareceristas. Havendo parece- res contrários, recorrer-se-á a um terceiro.

Cabe ao Conselho Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições re- cebidas e aprovadas.

Cada autor só poderá ter um artigo em processo, entre o início da submissão e a publicação final. Será ainda observado um intervalo de uma edição entre a publicação e o início de um novo processo de submissão de texto.

Normas para a apresentação de colaborações 1. Todos os trabalhos devem ser apresentados em duas versões, uma com e outra sem a identifica- ção do autor; não é necessário enviar cópia impressa. O programa utilizado deve ser compatível com o Word for Windows. Imagens: 300 dpi.

2. Em uma folha separada, devem constar os dados completos do autor (nome completo, filiação institucional, titulação acadêmica, endereço institucional, telefone com DDD e e-mail para cor- respondência). O autor deve também declarar que o texto submetido é 100% inédito e não se encontra em processo de julgamento em nenhum outro periódico ou coletânea.

3. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser mencionada.

4. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor e do original do texto.

5. Os artigos terão a extensão de 15 a 30 páginas em formato A4, digitadas em fonte Times New Roman 12, com espaço 1,5. As citações de mais de cinco linhas deverão ser feitas em destaque, com fonte 11 e recuo 2,5 cm. Margens: superior e esquerda: 3,0 cm; inferior e direita: 2,0 cm. Os artigos serão acompanhados do resumo de no máximo 10 linhas, ou 140 palavras, e 3 palavras- chave. Os resumos deverão ser acompanhados de uma tradução em inglês, ou nas línguas aceitas para publicação por esta revista.

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6. As resenhas poderão ter entre 1.000 e 1.500 palavras. Fontes e margens seguem mesmas normas dos artigos. Devem referir-se a livros nacionais publicados até cinco anos anteriores a data da submissão à revista. Para livros estrangeiros admite-se que tenham sido publicados nos últimos dez anos.

7. As referências bibliográficas completas devem ser listadas em ordem alfabética, no final do ar- tigo. Quando citada, a obra deve ser indicada de maneira simplificada no corpo do artigo: (AU- TOR, ano, p. número).

8. As notas devem ser colocadas sempre no final do texto.

9. Normatização das notas conforme NBR 6023.

Exemplos para as referências Livro: DAMASCENO, José Jorge Andrade. Vozes eclipsadas, memórias silenciadas. Tradução (se houver). 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, 349 p.

Capítulo ou parte de livro: SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson André da Silva. Coquí: um coronel negro no sertão baiano (Morro do Chapéu- BA, 1864-1919). In: LIMA, Ivaldo Marciano de França; DAMASCENO, José Jorge Andrade; SANTOS, Joceneide Cunha dos; VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues; SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson Andre da Silva (Orgs). Áfricas, Índios e Negros. 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, p. 365 – 399.

Artigo em periódico: LIMA, Ivaldo Marciano de França. Selvas, povos primitivos, doenças, fome, guerras e caos: a África no cinema, nas histórias em quadrinhos e nos jornais. África(s). V. 01, p. 81- 105, 2014.

Dissertação: SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

Tese: VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Os Negros em Jacobina (Bahia) no século XIX. Tese (Doutorado em História do Brasil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

Trabalho apresentado em evento: SANTOS, Cristiane Batista da Silva; BISPO, Daniana Oli- veira. Identidade negra no ensino e aprendizagem de história local e regional nas experiências do PIBID. In: V Encontro Nacional das Licenciaturas - IV Seminário Nacional do PIBID, 2014, UFRN. Natal, ENALIC, 2014, p. 10-15. Disponível em: http://enalic2014.com.br/anais/anexos/1247.pdf

Os originais devem ser submetidos pelo endereço: escrever o endereço eletrônico da revista, o cami- nho da submissão.

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