Jornalismo e literatura em : ressonâncias da crítica na produção ficcional

Viviane Monteiro Maroca UFMG

Juan Carlos Onetti assumiu, desde seu primeiro número, o posto de secretário de redação do jornal , semanário uruguaio, lançado em 23 de junho de 1939 por Carlos Quijano. O objetivo desse periódico não era o de um jornal comum, por não se destinar a ser um noticiário, mas espaço de comentário dos acontecimentos da semana. Chegando ao público todas as sextas-feiras, o slogan de Marcha era “Toda a semana em um dia”. Seus colaboradores, grandes intelectuais uruguaios que passaram por ali entre os anos de 1939 e 1974, adotaram uma postura radical em relação à política, com pensamento crítico e visão de mundo inovadores. O jornal reunia assuntos de política local, internacional, economia e cultura; com estilo completamente diferente do que já se havia visto na América Latina, revolucionou sensivelmente o pensamento político e a cultura uruguaia a partir de seu discurso. Carlos Quijano (1900-1984) trouxe a proposta de lançamento do semanário, no qual adotou um padrão francês de jornalismo, inspirado, principalmente, no jornal francês Le Monde. O jornalismo francês é característico por ter um cunho mais político, opinativo e por ser realizado por colaboradores e não por jornalistas profissionais. Onetti desempenhou várias funções no semanário: foi responsável pela seção de Cultura, corrigia as provas do jornal, escreveu contos policiais, sob o pseudônimo de Pierre Boileau y Regy, que surgiram no intuito de “preencher as lacunas” do jornal. Além disso, Onetti escrevia uma coluna, que assinava sob o pseudônimo de Periquito el Aguador, chamada La piedra en el charco. Seus escritos se destinavam à crítica literária, nos quais refletia sobre retórica literária, literatura latino-americana, tendências da literatura naquele início do século XX. Dizia que sua tarefa era “apedrejar” – metáfora para o ato de criticar - o “charco vazio” das letras uruguaias do início do século XX. Segundo Pablo Rocca, 1720 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006

Esta manifesta vontade de colaborar com a edificação de uma literatura uruguaia sem limitar-se nem aos arrulhos do pressuposto oficial, nem às estéticas consagradas ou congeladas, esta pedra, renovadora e desafiante, era possível dentro dos marcos fáticos e doutrinários que sustentava toda a publicação.1 Seu principal alvo foi a produção literária no Uruguai de então. Em um período de grande frenesi, causado pelas vanguardas modernistas, no qual se apregoava, dentre outras coisas, a ruptura com a linguagem e a forma tradicionais, e os modernistas brasileiros estavam “Contra todos os importadores de consciência enlatada”,2 Juan Carlos Onetti lamentava pela literatura uruguaia e sua falta de originalidade. Em De la vanguardia a la posmodernidad, Hugo Verani analisa a importância da obra literária de Juan Carlos Onetti como aquela que rompe com o Neonaturalismo, trazendo nova consciência estética ao seu país; uma literatura vanguardista por excelência. Pablo Rocca, em 35 años en Marcha, percorre a história da seção de literatura no semanário, enumerando todos os responsáveis por ela. Detém-se com bastante atenção ao período em que Onetti permanece no jornal devido à grandiosidade do escritor, primeiro crítico literário de Marcha, que configura o caráter da seção de literatura. As duas obras foram tomadas como ponto de partida para a confecção desta análise. Naquele momento, 1939, a literatura uruguaia passava por uma fase de baixa produção que, segundo Onetti, era fruto da “paralisação cerebral” da comunidade, devido aos acontecimentos políticos da época: “Essa sacudida histórica desviou o curso das melhores vontades que, pelo menos simbolicamente trocaram as letras pelas armas; sacrifício intelectual de uma geração em formação”.3 Juan Carlos Onetti escreveu também uma série de textos, a princípio em formato epistolar, de cunho humorístico, assinados por Grucho (sic) Marx, no qual refletiu também sobre temas político-sociais. A sociedade uruguaia dos anos XX caracterizava-se por ser agropecuária e médio-burguesa, marcada pelo conformismo social. Até por volta de 1933, ano do golpe de estado promovido por Gabriel Terra

1 ROCCA, 1992, p.23. Tradução da autora. 2 ANDRADE, 1928. 3 ONETTI,1975, p.16. Tradução da autora. Jornalismo e literatura em Juan Carlos Onetti: ressonâncias..., p. 1719-1732 1721 em função da crise de 1929, o Uruguai era um país estável e desenvolvido socialmente. Este conformismo social determinou, de certa forma, o caráter da literatura vigente: desprovida da necessidade de inovação e experimentalismo. O Neonaturalismo, escola literária vigente desde 1924, procurava retratar a vida e os problemas campestres. Assim a descreveu Hugo Verani: A narrativa regionalista dá uma cuidadosa e verossímil representação espacial da vida do homem, em estreita relação com a natureza. O propósito essencial dos escritores mais difundidos consistia em descrever episódios supostamente típicos e representativos da vida rural, entendida como um processo natural que se move à base de categorias lógicas, que requerem espaço e tempo determinados, e um ordenamento causal, racional, cronológico e determinista dos feitos.[...] Estes romances pretendiam dar uma imagem do homem em luta com o meio ambiente e mostrar o efeito que este produzia em suas ações; através da descrição ambiental, os quadros pitorescos e o sabor nativo da fala dialetal procuravam descobrir o nativo do solo americano.4 Os mais importantes autores do Neonaturalismo uruguaio foram Enrique Amorín, que obteve renome internacional, Juan José Morosoli e Francisco Espínola, único escritor nativista que recebeu elogios na coluna de Onetti, em função de seu romance Sombras sobre la tierra. Segundo Pablo Rocca, em 35 años en Marcha, a onda de experimentalismo que irrompe na América Hispânica na década de 1920 não produziu obras notáveis no Uruguai. Nem mesmo houve revistas de crítica literária que se posicionassem em favor de uma nova literatura. A situação política e econômica do país foi se tornando instável, devido à crise econômica mundial e ao avanço das ideologias nazi-fascistas na Europa, que conduziram à consolidação de modelos de governo autoritários na América Latina. É neste momento, com a ditadura de Terra, que a elite conservadora uruguaia se firma. No intuito de agir contra o movimento, Quijano tenta constituir uma frente de esquerda, não sendo bem sucedido imediatamente. O periódico Acción, também dirigido por Quijano até o surgimento de

4 VERANI, 1996, p.16. Tradução da autora. 1722 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006

Marcha, assume uma postura de oposição à ditadura vigente e anuncia, em abril de 1939, a organização de um novo periódico: Em data muito próxima, fará sua aparição MARCHA, semanário de doutrina, de crítica e de informação que dirigirá Carlos Quijano. Será uma expressão de jornalismo moderno, totalmente novo em nosso meio (...) Não será órgão de uma facção política, mas lutará contra o fascismo, as ditaduras e toda outra forma de reação, defendendo a cultura, a democracia e a liberdade de pensamento.(20 de abril de 1939, nº184)5 Foi neste cenário que surgiu o Semanário Marcha, espaço onde os intelectuais uruguaios fariam resistir suas idéias por 35 anos. Em De la vanguardia a la posmodernidad, Hugo Verani discute a importância de Juan Carlos Onetti e do Semanário Marcha: Não é fácil estabelecer a série efetiva de gerações históricas e de períodos literários, especialmente em âmbitos de complexa densidade cultural. No Uruguai contemporâneo, entretanto, o momento em que se produz a transformação decisiva de valores estéticos e de inquietudes sociais é inquestionável: 1939. Este é, precisamente, o ano em que Juan Carlos Onetti publica El pozo e é fundado o semanário Marcha, de cujas páginas luta por impor uma nova sensibilidade na literatura nacional. Esta data marca o começo de um esforço consciente de se criar no Uruguai uma narrativa que rompa definitivamente com remanescentes naturalistas e que responda à sensibilidade universal dominante. O semanário representa, além disto, o primeiro índice de questionamento radical da consciência social do país.6 La piedra en el charco, primeira coluna de Onetti, nasce junto com Marcha. Enquanto o primeiro número do semanário tinha por manchete “A invasão nazista no Uruguai”, a coluna vinha para se apresentar e lançar a discussão mais recorrente nos quase dois anos de

5 ROCCA, 1992,p. 18. Tradução da autora. 6 VERANI, 1996; p.14-15. Tradução da autora. Jornalismo e literatura em Juan Carlos Onetti: ressonâncias..., p. 1719-1732 1723 sua existência: a depressão que dominava a produção literária no país já há alguns anos, devido à situação sócio-política do Uruguai. Escrita sob o pseudônimo de Periquito el Aguador, Onetti definia esta coluna como de “alacraneo literário”, “destilando seu veneno” contra o que julgava estar impróprio nas letras de seu país. Segundo o autor, dois fatores agravavam a situação da literatura uruguaia do século XX: o primeiro deles era a completa falta de originalidade dos escritores que se inspiravam nos padrões europeus de escrita, e utilizavam um idioma espanhol muito distante do falado pelos uruguaios. Temos falado de nosso povo e nossos lugares, indiscriminadamente, sem perdoar nada. Mas não há ainda uma literatura nossa, não temos um livro onde possamos nos encontrar. Ausência que pode ser atribuída ao instrumento empregado para a tarefa. A linguagem é, em geral, uma cópia grotesca do que está em uso na Espanha ou um decalque da língua francesa, branda, brilhante e sem espinhaço. Não temos nosso idioma; pelo menos, não é possível lê-lo. A crença de que o idioma platense é o dos autores nativistas é ingênua, falsa.7 A respeito disso, não que Onetti menosprezasse a literatura européia, mas dizia que se deveria procurar nela apenas o que faltava aos escritores uruguaios: “técnica, ofício, seriedade-o resto nos será dado por acréscimo”.8 O segundo fator dizia respeito à identidade da Literatura uruguaia: O mal é quando um escritor deseja fazer uma obra nacional, do tipo que chamamos de “literatura nossa”, se impõe a obrigação de buscar ou construir ranchos de totora,9 velórios de anjinhos e épicos rodeios.Tudo isto, ainda que tenha residência em Montevidéu.10

7 ONETTI, 1975, p.18. Tradução da autora. 8 ONETTI, 1975, p.24. Tradução da autora. 9 Totora é uma espécie de palha fina, que cresce à margem de um rio, utilizada na construção de casas simples. 10 ONETTI, 1975, p.28. Tradução da autora. 1724 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006

A função de “Periquito el Aguador” era “atirar sua pedra semanal na desolação do charco vazio”.11 Juan Carlos Onetti não só atacou o uso da língua e a temática neonaturalista, como lançou duras críticas à literatura interessada. Ele se posicionava contra o fascismo, mas suas crenças políticas nunca foram objeto de sua literatura. Disse, uma vez, acerca desta questão: Estamos em Montevidéu, Uruguai, latitude 35. Um escritor pode fazer literatura em qualquer parte do mundo. A vida é tão rica em Nova Iorque como nas ilhas de Páscoa, quando se tem a sensibilidade de que se necessita. Mas sua atuação política estará sempre relacionada com o meio. [...] Vale a pena que um escritor, por um aceso espírito de santidade, aceite anular-se aqui, no Uruguai, para lutar contra o fascismo? Nos parece que não poderia citar nem um só nome de literato que tenha abandonado as letras para dar algo maior à luta política. [...] E, se levado a um terreno de atividade política, [o escritor] deixa de fazer literatura para dedicar-se a redigir folhetos de propaganda, que ninguém lhe dê os louros em homenagem a um inexistente sacrifício. O escritor não era escritor, mas um político; acabou por encontrar a si mesmo.12 Não foram apenas estas as questões que o cronista abordou no que diz respeito à criação e ao posicionamento do escritor diante de sua obra e da sociedade. As críticas que dirigiu à literatura uruguaia, muitas delas seriam pertinentes se aplicadas à literatura de muitos países. Na verdade, a crítica que Onetti faz à posição de subordinação da literatura uruguaia perante os padrões europeus de escrita, tinha sido feita no Brasil, pelos modernistas, na década de 1920. Assim diz na elogiosa crítica que dirige ao poeta Beltrán Martinez, quando do lançamento de seu primeiro livro Despedida de las nieblas: Há tempos; anos, que não lemos uma obra de autor uruguaio onde a presença de um poeta seja tão induvidável, tão firme, tão clara. É visível [...] a influência de dias diversos, de mil momentos que tocaram a alma do

11 ONETTI, 1975, p.15. Tradução da autora. 12 ONETTI, 1975, p.36-37. Tradução da autora. Jornalismo e literatura em Juan Carlos Onetti: ressonâncias..., p. 1719-1732 1725

autor, imprimindo ali suas distintas marcas. Influências unidas, no entanto, por um fundo pertinaz de dramática desesperança, uma endurecida névoa, onde tudo se funde, abranda seus contornos, para insinuar o perfil atormentado do poeta. Mas é precisamente nesta ausência de uma maneira deliberada onde encontramos um dos mais poderosos valores do livro.13 O crítico não só propõe que haja sensibilidade para se perceber o meio em que se vive, mas eleva o subjetivismo a uma posição de destaque, imprescindível em uma obra literária. A proposta da construção de uma nova literatura uruguaia começa a se cumprir em sua obra a partir de 1939, ano, não só do início da publicação de La piedra en el charco como de seu primeiro romance El pozo. A última crônica escrita por Periquito el Aguador foi em 7 de fevereiro de 1941 e intitulava-se James Joyce, um dos escritores favoritos de Onetti, cuja influência em sua literatura do escritor uruguaio é notável. Ao reclamar uma nota de falecimento à altura do escritor irlandês, que havia falecido há menos de um mês, Periquito diz que os críticos revolucionários andavam afirmando que o romance estava morto na sociedade capitalista. Acrescenta ainda que Ortega y Gasset alegou que os temas para a literatura estavam todos gastos e o romance estava condenado a se repetir. Indignado, Periquito el Aguador se vê obrigado a acabar com aqueles comentários, dizendo que o que havia acabado era o romance da sociedade capitalista, lembrando que “os temas gastos até a inutilidade são os temas que satisfazem aos burgueses”14. Onetti acalma seus leitores dizendo: “O inútil na arte é, portanto, o que provém ou se destina às pessoas inúteis. Respiremos tranqüilos, já que nada se perdeu”.15 Deve-se lembrar que, até então, somente um de seus romances havia sido publicado. Grucho Marx surge em Marcha pela primeira vez em 29 de novembro de 1940. Pelo que se pode perceber, a proposta inicial de sua coluna era de que se assemelhasse a uma seção de cartas de leitores. A princípio, as cartas eram dirigidas a um “Senhor diretor”, mas perdeu esta

13 ONETTI, 1975, p. 40. Tradução da autora. 14 ONETTI, 1975, p. 69. Tradução da autora. 15 ONETTI, 1975, p. 69. Tradução da autora.. 1726 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006 característica depois de um tempo. Em algumas situações, o destinatário era apenas um pretexto para a confecção de uma crônica. O principal traço desta coluna do escritor uruguaio era seu caráter irreverente, irônico e mordaz, como fica claro neste trecho de seu primeiro texto: Senhor diretor: Estou certo de que você, como todos os criadores de verdade, já se deteve, mais de uma vez, sobre as páginas de seu semanário, inconformado, pensando no que poderia ser retirado ou acrescentado. Centenas de vezes já reformulou o que até a última sexta-feira cria estar perfeito e centenas de vezes já esteve arrependido de tê-lo feito. Repito que esta inquietude é inseparável dos verdadeiros criadores: e não vale argumentar que houve alguém que olhou sua própria obra depois do sétimo dia e julgou que fosse boa. Este não era criador. Nunca passou o pobre de diletante e sempre lhe atribuí algo cômico e lastimoso de aprendiz de bruxo.[...] Proponho-me a acabar com suas meditações, presenteando-lhe com uma idéia. Uma idéia, assim, sem adjetivos, que já é muito dizer, e ter, e dar em um país onde uma embolia mata pessoas que nascem juntas. E não sei o que poderia ser retirado de Marcha, mas sei o que é necessário acrescentar-lhe: uma página de sucessos policiais. Não, perdoe; se começar a sorrir ceticamente, não nos entenderemos e, com isto, Marcha sairia perdendo. Conceda-me dois ou três centímetros de coluna e de paciência![...] Fazer jornalismo é fornecer ao público informações sobre a vida e comentá-la. Aceite a definição. Deve-se escrever sobre política nacional, política internacional, probleminhas femininos, profissões, futebol, literatura, arte... e creio que se acabou.16 Nessa coluna, Onetti raramente falou de literatura, exceto por poucas menções. Seu objetivo não era realizar crítica literária, mas por diversas vezes o autor realizou críticas ao jornalismo uruguaio. Em sua quarta “carta”, ou crônica, intitulada Sin tema, Grucho lamenta não ter encontrado um assunto para aquela semana, e acaba por realizar um exercício metalingüístico do fazer jornalístico, ironizando a falta de

16 ONETTI, 1975, p.73-74. Tradução da autora. Jornalismo e literatura em Juan Carlos Onetti: ressonâncias..., p. 1719-1732 1727 originalidade dos jornalistas uruguaios. Ele lhes propõe, cinicamente, como tema de trabalho, naquele final de ano, o Natal que se aproximava. Ser jornalista e não ter tema é tão humilhante quanto ser mulher e não ter beleza, ou homem e carecer de dinheiro.[...]Mas a fatalidade quer que eu seja o único jornalista da capital e povos suburbanos que chegou a descobrir que não tem assunto.[...]Estamos em 20 de dezembro e o Natal se aproxima. Aqui está o primeiro tema que ofereço ao jornalismo nacional. Claro que é de uma perigosa novidade; mas nossos escribas se caracterizaram sempre por um temerário amor pela originalidade. Assim anda o jornalismo uruguaio.17 Os temas mais recorrentes dessa coluna foram os problemas da sociedade e da política uruguaia e questões de política internacional, com ênfase na Segunda Guerra Mundial. Em fins de 1940, a Alemanha concede uma trégua às tropas inglesas para que celebrassem o Natal. Com base neste acontecimento, o autor propõe uma nova religião, na qual se celebrem, ao invés do nascimento de Cristo, o nascimento dos mártires e das “11.000 virgens”, ultrapassando, então, os 365 dias do ano. Porém, ao rever os efeitos da guerra, o escritor se depara com a terrível humanidade que o cerca e muda de opinião logo em seguida: “E me lanço a propagar a doutrina da guerra permanente como único sistema para obter o melhoramento da humanidade”.18 O niilismo não é apenas marca de Onetti jornalista, mas de um escritor que é tido como o grande mestre da literatura existencialista latino-americana. Grucho Marx é definido por Pablo Rocca19, em 35 años en Marcha, como o “alter ego” do autor, que revela um lado de Onetti menos comprometido com a literatura e mais comprometido com a sociedade. Afirma Hugo Verani, a respeito das crônicas de Periquito el Aguador:

17 ONETTI, 1975, p. 84-85. Tradução da autora. 18 ONETTI, 1974, p. 90. Tradução da autora. 19 ROCCA, 1992, p.20. Tradução da autora. 1728 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006

São crônicas concebidas como provocação, para romper hábitos mentais conformistas e impulsionar uma mudança em uma época insensível a toda forma de experimentação e busca expressiva. Com o transcorrer do tempo adquiriram o valor de manifesto pessoal – principal estratégia vanguardista- de um escritor que atribui a si a tarefa explícita de abrir novos caminhos, ou, como ele mesmo disse com ironia, “me encarrego da missão de salvador de nossas letras.” 20 O primeiro romance de Onetti, El pozo, é lançado em 1939. Eladio Linacero, narrador e protagonista, chega aos quarenta anos e diz que todos que chegam a esta idade devem escrever um livro de suas memórias. Eladio expõe a proposta de sua obra em um primeiro momento, mas suas memórias se tornam apenas pretexto para dizer suas impressões, seus devaneios, seus sonhos, suas reflexões. O posicionamento diante da subjetividade da literatura é visível em sua obra, assim como na crítica realizada por “Periquito el Aguador”. Linacero comenta, em um momento de El pozo, o que pensa da poesia de seu amigo Cordes: Cordes leu para mim uns versos seus. Era um poema estranho. [...]Se chamava “O peixinho vermelho”. O título é desconcertante. E também a mim me fez sorrir. Mas há que se ler o poema. Cordes tem muito talento, é inegável. Parecia-me flutuante, indeciso, e acaso poderia se dizer que ele não havia terminado de se encontrar.21 Suas reflexões não ficam apenas no plano subjetivo do texto; o narrador que se lê é consciente que escreve. Temos, portanto um romance não apenas autoconsciente como auto-reflexivo: Esta é a noite. Quem não pode senti-la assim, não a conhece. Tudo na vida é merda e agora estamos cegos na noite, atentos e sem compreender. Há no fundo, longe, um coro de cachorros, algum galo canta de vez em quando, ao norte, ao sul, em qualquer parte ignorada. Os apitos dos vigias se repetem sinuosos e morrem. Na janela da

20 VERANI, 1996, p.77. Tradução da autora. 21 ONETTI, 1939. Párrafo 17, p.1. Tradução da autora. Jornalismo e literatura em Juan Carlos Onetti: ressonâncias..., p. 1719-1732 1729

frente, atravessando o pátio, alguém ronca e se queixa entre os sonhos. O céu está pálido e tranqüilo, vigiando os grandes montões de sombra no pátio. Um ruído breve, como um estalo, me faz olhar para cima. Estou certo de poder descobrir uma ruga justamente no lugar onde gritou uma andorinha. Respiro o primeiro ar que anuncia a madrugada até encher os pulmões; há uma umidade fria, tocando-me na frente, da janela. Mas toda a noite está, inapreensível, tensa, alargando sua alma fina e misteriosa, no jorro da torneira mal fechada na pia do pátio. Esta é a noite. Eu sou um homem solitário que fuma em um lugar qualquer da cidade; a noite me rodeia, se cumpre como um rito, gradualmente, e eu nada tenho a ver com ela. Há momentos, apenas, em que os golpes de sangue em minhas têmporas acompanham o latido da noite. Fumei até o fim, sem mover-me. As extraordinárias confissões de Eladio Linacero.22 Embora Onetti seja conhecido como um grande escritor existencialista, cuja obra reflete a impossibilidade de comunicação entre os seres humanos e mostra uma visão descrente e cética da humanidade, o traço mais marcante de sua vida literária foi ser um dos precursores do romance urbano no nosso continente; fez uma Montevidéu só sua, chamada “Santa Maria”. Dizia que inventou “Santa Maria” porque já existia Montevidéu, caso contrário, era esta a cidade que teria criado. Em 1950, publicou A vida breve, seu romance mais aclamado pela crítica e que narra a história de Juan María Brausen, habitante de Buenos Aires. Brausen, funcionário frustrado de uma agência de publicidade, resolve escrever um roteiro de cinema que se passa numa cidade imaginária, “Santa María”, que será pano de fundo para uma série de livros. Brausen figura nos outros romances, como uma espécie de deus, um criador. A narrativa refinada deA vida breve, construída numa estrutura de mise em abîme, funciona como referência para suas obras posteriores que dialogam com a primeira em relações intertextuais. No supracitado romance, Onetti joga com seus leitores ao aparecer como personagem figurante em uma passagem da obra:

22 ONETTI, 1939, El pozo. Tradução da autora. 1730 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006

Sobre a escrivaninha, a fotografia estava entre o tinteiro e o calendário; as cabeças dos três repugnantes sobrinhos de Queca forçavam seus sorrisos à espera do momento em que o homem que me alugara a metade do escritório - chamava-se Onetti, nunca sorria, usava óculos, deixava adivinhar que só podia ser simpático com mulheres fantasiosas ou amigos íntimos - se abandonasse algum dia, na fome do meio dia ou da tarde, à estupidez que eu imaginava existir nele e aceitasse o dever de se interessar por eles. Mas o homem com cara entediada não perguntou nem pela origem nem pelo futuro das crianças fotografadas.23 Ao analisar todos os artigos de Onetti em Marcha, nos quais propõe os caminhos para uma nova literatura uruguaia, concluo que Onetti, além de ter sido um crítico consciente e empenhado na mudança da inexpressiva literatura de seu país, é um escritor coerente com suas propostas. Como pude observar, por meio de alguns elementos presentes em sua obra, tais como a ruptura com a escola Neonaturalista e a busca por uma identidade lingüística, as críticas feitas pelo escritor, ao longo de sua vida jornalística em Marcha, refletem bem as suas propostas. Juan Carlos Onetti permaneceu no jornal até 1941, quando deixou o Uruguai para viver em Buenos Aires. Outros grandes intelectuais ocuparam a posição de Onetti até 1974, dentre eles Francisco Espínola, Carlos Ramela, Emir Rodríguez Monegal, Mário Benedetti, Angel Rama e Jorge Ruffinelli. O fim das atividades do semanário está relacionado à censura dos militares. Desde 1973, o país vivia o golpe de estado do presidente Juan María Bordaberry. Neste mesmo ano, Marcha lança uma nota anunciando um concurso de contos, que teria como premiação apenas a publicação do conto ganhador, devido à sensível situação financeira em que se encontrava o jornal. Tomaram parte da comissão julgadora Jorge Ruffinelli, Mercedes Rein e Juan Carlos Onetti. O primeiro lugar foi concedido a Nelson Marra, por seu conto “El guardaespaldas”, que foi considerado ofensivo pelos militares. A publicação do conto levou Marra, Rein, Ruffinelli e Hugo Alfaro (então redator deMarcha ) à prisão.

23 ONETTI, 2004, p.208. Jornalismo e literatura em Juan Carlos Onetti: ressonâncias..., p. 1719-1732 1731

Quijano, que se encontrava no México, ficou impossibilitado de voltar ao seu país. Onetti foi internado em um manicômio judiciário e o semanário foi fechado. Tal episódio era mencionado nos jornais internacionais como “O caso Onetti”.24 As propostas de Juan Carlos Onetti, em La piedra en el charco, de criar uma nova literatura, encontram-se em sua prosa. Onetti traz para sua obra tudo o que propôs em seu trabalho crítico. Aí reside a principal importância de seu fazer jornalístico. Utiliza Marcha como seu instrumento de luta, propondo uma nova literatura uruguaia que traga uma nova consciência do fazer literário para a geração que o sucede. A vontade de Periquito el Aguador de que se rompesse com a literatura nativista e de que se utilizasse uma linguagem mais próxima da realidade uruguaia, intimista, num cenário urbano, se concretiza com a obra de Onetti que se torna um marco na história da literatura uruguaia e latino-americana. Neste sentido, sua crítica e sua obra impulsionam uma literatura urbana, inovadora, que seguiu influenciando um grupo de escritores uruguaios da década de 1940, a chamada “Geração de 45”, ou “Geração Crítica”, formada por muitos intelectuais, dentre eles, ressalto Mário Benedetti, Idea Vilariño, Emir Rodríguez Monegal, Angel Rama, Carlos Real de Azúa, Homero Alsina Thevenet, Mario Arregui, Amanda Berenger.

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24 RUFFINELLI, 2003, p.349-376. Tradução da autora. 1732 Anais da VI SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2006

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