VICENTE DO REGO MONTEIRO: MODERNO E TRADIÇÃO / RUPTURA E PERMANÊNCIA*

RÉGIS FERREIRA BRASILIO DOS SANTOS**

Vicente do Rego Monteiro foi artista plástico e poeta pernambucano do início do século passado, participante ativo da Semana de Arte Moderna de São Paulo em 1922. Em 1911 viajou com a família para onde iniciou seus estudos de arte na Academia francesa até 1914, quando retorna ao Brasil por causa da I Guerra Mundial.

Quando retorna ao Brasil em 1914, Vicente continuou seus estudos de arte em Recife. Posteriormente, participou de exposições individuais em São Paulo, e Recife até retornar à Paris em 1921, retomando suas atividades artísticas na cidade, além das exposições individuais e coletivas no Salon des Independants, inclusive organizando os Salões de Poesia de Paris junto com o poeta e seu amigo Géo- Charles.

Vicente Monteiro foi conhecido no período, de acordo com a professora Aracy Amaral, como um dos primeiros artistas a representar o índio enquanto elemento fundamental na criação da cultura brasileira.

Rego Monteiro seria um dos primeiros a trazer para sua pintura os assuntos brasileiros, como vemos, desde 1920, data de Lenda brasileira. (AMARAL, 1998: 181).

No entanto, essa afirmativa da autora nega toda a pertinência da produção artística do século XIX, que buscava romanticamente o que era e o que representava a nação. Para citar um exemplo, temos toda a rica produção de Almeida Júnior, pintor paulista que buscava no caipira o elemento de brasilidade.

Em outro momento de sua obra, Aracy Amaral coloca que a artista paulista Tarsila do Amaral também faria parte de um grupo de modernistas que tiveram enquanto preocupação fundamental de suas obras – estilo – a busca por uma identidade nacional.

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Mas essa consequência de fundo nacionalista, esse descer às raízes para buscar o fundo de brasilidade a ser impresso como caráter numa obra de arte, só se evidenciaria a partir de Tarsila em 1923, assim como nas pesquisas de Vicente do Rego Monteiro nesse mesmo ano em Paris, objetivando trazer à tona uma tradição decorativa de inspiração indígena. (AMARAL, 1998: 221).

Para a autora, Tarsila foi a artista que mais trouxe a tona a questão da identidade nacional brasileira no modernismo, a partir de suas obras posteriores a 1923, data da obra Negra, que marcaria sua fase pau-brasil. De acordo com Gilberto Freyre, sociólogo pernambucano e amigo de Rego Monteiro desde 1922, quando se conheceram na cidade de Paris, Rego foi um artista pioneiro, tanto do modernismo brasileiro enquanto tendência e movimento cultural artístico, como desta busca pela identidade nacional a partir do retorno de uma tradição mais antiga da nossa terra, que foi o índio.1

Apesar de sua aproximação relevante com o sociólogo pernambucano, Rego Monteiro opta em buscar a brasilidade no índio e não no negro. Mas sua escolha pelo índio foi feita antes de conhecer Gilberto Freyre, e se dá por uma ótica diferente. De acordo com Maria Luiza Atik,

no início de sua carreira, Monteiro filia-se ao Cubismo francês, mas suas obras já apresentam uma linguagem particular, individualizada. Assim, em vez de preferir a “Arte Negra”, como sucedeu aos mestres europeus, inclina- se para a plástica dos índios brasileiros, introduzindo os mitos amazonenses na École de Paris. A incorporação do tropical em suas telas antecipa aspectos que serão valorizados posteriormente por e Tarsila do Amaral no Movimento Pau-Brasil, de 1926, e na criação da Antropofagia, lançada em São Paulo, em 1928. (ATIK, 2004: 23).

1 Estou me referindo ao artigo publicado na Folha de São Paulo, do dia 18/01/1983, Vicente do Rego, um artista pioneiro. Também o artigo Notas a lápis sobre um pintor indiferente – Revista do Brasil, n. 87, São Paulo mar., 1923, p. 236-38, também de Gilberto Freyre.

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Desta forma, é errado comparar a opção de Monteiro pelo índio amazônico com o Gilberto Freyre e o negro brasileiro, mas sim compará-lo com Picasso e Léger e suas opções pelo negro africano. Assim, Rego participou da École de Paris trazendo algo de novo, além de contribuir grandemente com o modernismo brasileiro, sendo um dos pioneiros, senão o pioneiro da antropofagia brasileira – o “homem primitivo” do Brasil.

Neste critério, podemos aplicar o conceito de tradição seletiva de Raymond Williams:

(…) uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e de identificação social e cultural. (…) É uma versão do passado que se deve ligar ao presente e ratificá-lo. O que ela oferece na prática é um senso de continuidade predisposta. (WILLIAMS, 1979: 118 – 119).

A busca por uma tradição brasileira a ser revivida naquele presente operando no sentido de definição de uma identificação social e cultural, como foi o caso do ideal de “brasilidade” traçado pelos modernistas na década de 20, e em Rego Monteiro, a valorização do índio – mesmo este índio sendo genérico, sem caracterização específica de alguma etnia – a uma tradição remota a ser revivida naquele presente histórico, escolhida e separada com objetivos claros. Sobre o retorno à tradição pelos modernistas, em estudo Silvano Santiago, escreve:

(...) a questão da tradição (do chamado „passadismo‟, como a tradição era vista pelos olhos da década de 20) esteve realmente ausente da produção teórica de alguns autores modernos, ou da produção estética dos modernistas brasileiros. A resposta é não. Há uma permanência sintomática da tradição dentro do Modernismo. (SANTIAGO, 1987)

O retorno a uma tradição foi como se fosse “um chão firme” onde esses artistas poderiam pisar sem problemas maiores, pois eram consideradas a base ou a

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estrutura em que foi formado o povo brasileiro, algo tão discutido no período pelos modernistas. Ao mesmo tempo, Marta Rossetti defende esta teoria, onde “a vanguarda da época buscava uma arte estável, baseada em „princípios perenes‟, e que para encontrá-los examinava a arte dos séculos passados para „montar sua linguagem pessoal moderna‟”. (BATISTA, 1987, 30) O retorno a uma tradição firme, enraizada, daria sustentação para esta arte moderna nascente no Brasil, proporcionando sua permanência na estética e ideologia modernas pós anos 20. A tradição daria sustentação histórica para a arte moderna brasileira, ou seja, a permanência da tradição iria compor o palco necessário para realizar a ruptura estética tão buscada pelos modernistas.

No caso da arte brasileira, a partir do momento em que ela passou a reconhecer sua diferença em relação aos europeus, pareceu impor-se a necessidade de um retorno às suas tradições, ao “primitivo dentro de nós”,

...foi recorrendo a este substrato nítido que os modernistas brasileiros encarnaram sua originalidade periférica, quando em contato com uma civilização diferente da sua. Foi aí que viram o quanto diferente era, mesmo fazendo parte de uma elite nacional, viram o quão primitivos eram. Mas isto só foi potencializado de modo inovador porque havia um ambiente propício para que aflorassem as diversas etnicidades de cada colônia de imigrantes radicados na Europa. Percebendo este interesse, os artistas brasileiros forjam a marca de brasilidade no compromisso com a tradição que definiria o estilo de arte antiga baseada no convencionalismo do desenho, na constância dos motivos, na economia de meios, a que tiveram acesso pela observação do acervo sob a guarda de coleções etnográficas. (OITICICA FILHO, 1999: 28)

Desde 1840, algumas expedições ao vale do rio Amazonas começaram a formar o acervo de antiguidades indígenas atualmente expostos no Museu de História Natural da UFRJ2, onde os artistas modernistas passaram a consultar com o objetivo de

2 O Museu Nacional do Rio de Janeiro foi criado por D. João VI em Junho de 1818 e, inicialmente, sediado no Campo de Sant‟Anna, serviu para atender aos interesses de promoção do progresso cultural e econômico no país. Originalmente denominado de Museu Real, foi incorporado à Universidade do Brasil em 1946. Atualmente o Museu integra a estrutura acadêmica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Extraído do site http://www.museunacional.ufrj.br). Para maiores informações, consultar o mesmo.

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buscar o “primitivo em nós” e representar uma arte nacional, mas também regional. O contato direto com a elite artística europeia fez com que artistas brasileiros vissem o quão diferentes eram daquela realidade, passando olhar para dentro da sua realidade nacional.

Faz-se necessário também indagar o que é primitivismo para Rego Monteiro. O próprio termo nos passa a noção de primitivo em relação ao civilizado. Estaria então, assumindo o posto de primitivo para se integrar posteriormente ao posto de civilizado, ou bárbaro-tecnizado,

A pintura modernista brasileira pode ser entendida como estratégia de ação que aproveitou de condições favoráveis que a fizeram alcançar seus objetivos específicos: garantir ao autor sua presença no circuito internacional de arte e estabelecer a vigência inevitável, e autorização necessária, diante do experimentalismo iconoclasta das vanguardas européias da primeira década deste século.(...) Vivendo da pesquisa e divulgação de sua etnicidade sul- americana, na colônia de pintores imigrantes de Paris na década de 20, o artista brasileiro adotou o papel do „bárbaro-tecnizado‟ que se afirmava pela aparência primitivista de suas obras, enquanto que socialmente viveria como pessoa integrada ao sistema. (OITICICA FILHO, 1999: 49, 68).

Em Rego Monteiro podemos evidenciar este fato, sendo um primitivista, alcançou uma posição de destaque no circuito europeu de arte, disposto a negar sua identidade e assumir outra, que lhe passaria uma posição social mais elevada. Oiticica diz que esta seu ideal chega ao extremo de mudar seu nome, afrancesando-o para Vicent Monteiro. Em carta à Géo-Charles mostra seu desconforto na vida no Brasil, e a vontade de voltar para França, “onde o bom gosto e o equilíbrio predominam”. (OITICICA FILHO, 2004: 15 – 16).

Além da temática relacionada à identidade nacional brasileira discutida no “modernismo brasileiro” e muito marcante na obra de Vicente, podemos destacar a relação que fez em demonstrar um descompasso entre moderno e modernização. O Brasil estava passando por um período de expansão, sofrendo mais drasticamente o processo de urbanização, a transferência do campo para a cidade promovendo mudanças

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no campo estrutural da vida econômica e social, e como consequência do processo, deixando marcas profundas no campo das mentalidades. Nestor Canclini afirma que

Essa heterogeneidade multitemporal da cultura moderna é consequência de uma história na qual a modernização operou poucas vezes mediante a substituição do tradicional e do antigo. Houve rupturas provocadas pelo desenvolvimento industrial e pela urbanização que, apesar de terem ocorrido depois que na Europa, foram mais aceleradas. Criou-se um mercado artístico e literário através da expansão educativa, que permitiu a profissionalização de alguns artistas e escritores. (CANCLINI, 2008: 74).

Canclini nos permite refletir a respeito do surgimento de um mercado de arte nas cidades modernas que sofreram o processo de urbanização na América Latina, por ser de forma tardia, o processo ocorreu de maneira mais acelerada em relação ao continente europeu, e como disse anteriormente, promovendo mudanças no modo de viver das pessoas de maneira tal que tiveram pouco tempo para adaptar-se a essa nova realidade. O gosto pelo moderno estava presente na burguesia industrial nascente, entretanto, culturalmente e socialmente, a sociedade paulista ainda era muito resistente a mudanças, haja vista os escândalos existentes ante, durante e depois da Semana de Arte Moderna em São Paulo, principalmente em relação à obra de . Segundo Sérgio Miceli,

Ao partilhar um repertório comum de assuntos e estilos de representação, os artistas daquela primeira geração modernista, como Tarsila, não podiam se furtar, em medida significativa, às veleidades dos colecionadores locais, inclinados à aquisição e fruição de telas ajustadas aos valores de uma poética figurativa com laivos de modernidade pictórica. (...) Os artistas metropolitanos, sediados em Paris, não se mostraram refratários à internacionalização do mercado de arte de vanguarda, e passaram a incluir em sua produção algumas séries de trabalhos em sintonia com as expectativas do gosto mais conservador de parcela importante da clientela estrangeira. (MICELI, 2003: 14)

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Desta maneira, percebemos bem claramente que os primeiros modernistas brasileiros, apesar de renovarem no estilo e na estética, tinham que atender o gosto da clientela conservadora, que de certa forma, mantinham economicamente seus estudos artísticos na Europa.3 Entretanto, num primeiro momento, apenas uma parte da sociedade brasileira, pertencente à elite agroexportadora e recém-industrial proporcionou que o moderno no campo das artes plásticas chegasse ao Brasil, que se viu na prática em cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, posteriormente ocorrendo em outras capitais brasileiras, como nas regiões nordeste e norte.

Essas mudanças na mentalidade e na estrutura econômica das cidades proporcionaram, segundo o que Walter Benjamin4 via em Paris do século XIX, uma atmosfera de modernidade, que vimos no século XX em São Paulo e outras capitais na América Latina. Tratava-se do desejo e da vontade de ser modernos, de nos europeizar, ser cosmopolita, promovendo o desenvolvimento não só da arte moderna e primitivista, mas das modas, do teatro, da vida cotidiana, segundo uma concepção europeia e principalmente francesa de viver e ser moderno.

Em São Paulo, voltando novamente a Semana de Arte Moderna de 1922, onde não só paulistas, mas brasileiros de outros Estados mostravam não só a “nova arte brasileira”, mas como deveria ser a arte brasileira daquele tempo em diante, preocupada em ser moderna, cosmopolita, mas também com as temáticas nacionais.

***

Voltando-nos a grandiosa apesar de desconhecida por muitos, as obras de Vicente do Rego Monteiro podem der aplicadas a dialética do moderno x tradicional / ruptura x permanência na primeira fase da arte moderna brasileira.

3 Segundo Miceli, Olívia Guedes Penteado e Paulo Prado tiveram um papel importantíssimo como colecionadores de arte, promovendo os modernistas nos horizontes da burguesia industrial conservadora de São Paulo. 4 Consultar Walter Benjamin, Paris no Segundo Império; Sobre alguns temas em Baudelaire, O flâneur; entre outros textos inseridos na grande obra do autor ao se tratar da cidade moderna e do sujeito inserido neste processo.

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Figura 1: Lua. Aquarela e nanquim sobre papel, 1920

A lenda descrita no livro Legends Croyances et Talismans des Indiens de L'Amazone, ilustrado por Vicente Monteiro em 1923 serviu como influência para o artista compor a obra Lua5 em 1920. A lenda conta que havia um irmão e irmã índios, e a irmã amava seu irmão, entretanto, por ser sua irmã, estava impedida de amá-lo. Contudo, numa certa noite, seu amor a incendiava tanto que não pôde resistir mais. Foi até a rede de seu irmão, e tiveram uma linda noite de amor, sendo a primeira de muitas. Durante o dia, o índio ficava muito curioso em saber quem era a moça que dormia com ele durante a noite. Certa noite, ele fingiu que estava dormindo e, quando ela chegou para acordá-lo, ele tocou em seu rosto com as mãos sujas de tinta. Durante o dia, a irmã foi até o rio, onde pôde ver rosto manchado, ficando perplexa, não sabendo o que fazer. Até que pegou seu arco e com muitas flechas atiradas para o alto de modo que, estas se fixavam uma na ponta da outra, formando um grande traço que levava até o céu. A jovem subiu até o céu e se tornou a Lua, vivendo solitária e voltando todas as noites ao rio, para ver se seu rosto havia se limpado da mancha.

A obra trata do momento em que a índia sobe ao céu e se converte em Lua, sendo percebido pela sua distância em relação ao chão e as árvores abaixo, bem como a sombra da lua sobre a cabeça da índia, mostrando o que seria o momento do ato de transformação descrito na lenda. A tela analisada acima trata-se de uma obra que caracterizamos como primitivismo lendário, onde o artista recorreu à lenda amazônica

5 Corresponde à obras realizadas pelo artista no início da década de vinte do século passado, fruto de um longo estudo das lendas dos índios da Amazônia que realizou em Paris e no Museu Nacional do Rio de Janeiro, descritas e ilustradas no livro Legends Croyances et Talismans des Indiens de L'Amazone, publicado em 1923 com adaptações de textos de P. L. Duchartre e ilustrações de Rego Monteiro. A lenda citada é intitulada Iaci: comment est née la Lune (Iaci: como nasceu a Lua).

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como inspiração de sua temática, ou seja, a tradição. Neste momento, diferentemente do que fez Picasso, Rego não teve uma inspiração estética – o que terá em outras obras posteriores – mas sim uma inspiração temática ao ler a lenda e ilustrá-la como forma de arte primitivista.

Por suas características artísticas, a obra se assemelha muito ao que conhecemos como expressionismo, ao utilizar as cores, o azul misturado com o branco no céu e os tons de verde misturados com amarelo, supondo que foi realizada a mistura das tintas no próprio papel, momento em que o artista quis dar a impressão de circularidade, do movimento que a índia fazia para chegar ao céu.

O retorno à tradição também pode ser evidenciado na obra Maternidade Indígena.

Figura 2: Maternidade Indígena. Óleo sobre tela, 1924.

Podemos ver a presença da inspiração cubista que aprendeu na Europa em contato com Fernand Léger e Picasso, pela presença das formas geométricas e pela simplificação das formas nos seios, orelhas, joelhos e cotovelos da índia mãe, além das curvas do bebê. O cubismo exerceu influência marcante em sua obra posterior à sua segunda estadia em Paris, através da presença das formas, da profundidade da tela expressas pelo uso de perspectiva e técnicas de sombra entorno das figuras, lembrando até mesmo seus primeiros estudos na escultura em Paris no período de 1911e 1914.

Gilberto Freyre ao escrever sobre Vicente, se recorda de seus primeiros ensinamentos na arte da escultura – vale salientar que Freyre e Vicente foram amigos

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desde 1922 e, apesar de serem naturais de Recife, se conheceram na cidade de Paris: “A escultura, aliás, seu primeiro amor. Dela se transferiu para a pintura sem perder de todo a sensibilidade à escultura. Sensibilidade sensualíssima”. (FREYRE, 1982).

De acordo com o próprio Rego, ao se referir a sua inspiração no cubismo: “Minha pintura não poderia existir antes do Cubismo, que me legou as noções de construção, luz e forma”. (AYALA, 1980: 62).

Sobre a influência cubista na obra de Rego Monteiro escreveu, Maria Luiza G. Atik

o apelo ao primitivo é evidente, no processo de composição da tela, pelas transposições de elementos característicos da arte marajoara: geometrização e concisão formais, simetria, predominância quase exclusiva das linhas, contrastes entre a linha e o fundo. (ATIK, 2004, 96).

Sendo assim, utiliza nessas obras a cor ocre, ou uma cor marrom clara, típica da cerâmica marajoara amazônica, que o artista considera a principal influência. Para Rego Monteiro esta cor foi um elemento importantíssimo na composição de sua obra como caracterização do primitivismo indígena de sua arte. Além disso, a cor utilizada foi usada por Rego em diversas obras posteriores a 1924, tanto como elemento da religiosidade popular ou do primitivismo religioso.

Consideramos essa obra com característica cristã por causa dos elementos inseridos nela. A índia que está em primeiro plano na tela, representa Maria, a mãe de Jesus e a criança que está em seu colo seria o próprio Jesus. Assim, Rego representa como índios marajoaras nada mais nada menos que o próprio Filho de Deus para os cristãos e sua mãe, que, para os católicos, é conhecida como uma santa. É como se os próprios índios representassem a nova religião com elementos de sua cultura “primitiva”, transformada contato com o povo europeu, entretanto, com o toque especial de Vicente mesclando o tradicional (cristianismo) com o moderno (cubismo) na arte ou até mesmo a ruptura estética com a permanência da temática cristã tão presente na arte barroca brasileira do século XVIII.

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No segundo livro ilustrado por Vicente Quelques Visages de Paris, 19256, segue uma série de 10 croquis que representam a cidade de Paris por um cacique marajoara criado por Vicente que, segundo ele, viajou pela cidade e fez um diário de suas impressões sobre os locais visitados, inclusive a Tour Eiffel, Trocadéro, Jardins des Plantes, onde qualquer um deles poderiam ser usados para exemplificarmos melhor a relação entre tradicional e moderno, entretanto, resolvemos usar a obra Arc de Triomphe:

Figura 3: Arc de Triomphe, nanquim sobre papel, 1925.

Antecede o croqui o seguinte poema:

on m‟a dit qu‟il avait été

fait pour le tombeau d‟un

soldat inconnu.

cela me semble bien étrange:

peut-être a-t-on oublié

son nom, mais son oeuvre

a du être grande, puisque

chaque jour on vient lui

apporter des fleurs.

6 Quelques Visages de Paris, com tiragem de 300 exemplares, teve o modelo um pouco diferente do Legendes Croyances et Talismans des Indiens de L‟Amazone, mais parecido com um diário de viagem, onde o “cacique” faria os desenhos de suas impressões sobre os monumentos da cidade, suas sensações da cidade moderna, a fim de voltar a sua tribo e mostrar aquilo que tinha visto em sua viagem.

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disseram-me que foi

feito para ser o túmulo de um

soldado desconhecido.

isso me parece bem estranho:

talvez tenham esquecido

seu nome, mas suas realizações

devem ter sido grandes, pois

todos os dias vêm

trazer-lhes flores.

Na minha opinião, este croqui é o que melhor representa a tensão do livro acerca do moderno / tradicional. Nele está evidente o modo de vida moderno, rápido, veloz, cheio de nuances a serem exploradas. Primeiramente, a série de construções que ficam envolta do Arco do Triunfo e, posteriormente, a quantidade de carros que circundam o Arco. Apenas a existência dos carros já seriam suficientes, mas Vicente / cacique representou dois guardas de trânsito, sinalizando a parada de alguns carros e a circulação de outros, demonstrando a necessidade de organização dos mesmos pois a vida moderna traz isso com ela.

Levando em consideração o poema, Maria Luiza escreve que o que lhe interessa, entretanto, não é o espaço urbano propriamente dito, e sim as narrativas orais preservadas pela memória de um povo (ATIK, 2004: 105). Concordo com sua afirmação, mas levando em consideração o poema, demonstrando a importância da linguagem, da fala nas sociedades primitivas pela ausência da escrita, não só de forma prática, mas principalmente nos rituais religiosos passados de geração em geração. Entretanto volto a salientar que, levando em consideração apenas o desenho, Vicente está interessado sim na cidade enquanto monumento e no viver urbano. É o moderno (cidade) e o tradicional (fala) em ponto de tensão.

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Dessa forma, esses poemas não têm como finalidade julgar fatos ou feitos, mas sim chamar a atenção para valores essenciais que estão presentes na sociedade do homem primitivo e que foram esquecidos ou relegados a um segundo plano pelo homem civilizado, embora continuem inscritos em seus monumentos. (ATIK, 2004: 105).

Assim, acredito ter sido claro ao apresentar as múltiplas tensões que podem ser destacadas na obra de Vicente do Rego Monteiro que no presente momento, escolhemos a tensão existente entre o moderno / tradicional e ruptura / permanência na obra de arte no início do século passado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34. ed. 5, 1998. ATIK, M. L. G. Vicente do Rego Monteiro, um brasileiro da França. 1 ed. São Paulo: Mackenzie, 2004. AYALA, Walmir. Vicente Inventor. Rio de Janeiro: Record, 1980. BATISTA, Marta Rossetti. Os artistas brasileiros na Escola de Paris, anos 20. Tese de doutorado, ECA-USP, 1987. CANCLINI, Nestor García. Contradições latino-americanas. In: ““Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.4ª ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Edusp, 2008. FREYRE, Gilberto. – Enfim a consagração de um pioneiro modernista. Folha de São Paulo, 20/07/1982. MICELI, Sérgio. Nacional Estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 2003. OITICICA FILHO, Francisco. Enfim Primitivos: estudo cultural do modernismo brasileiro. Maceió: EDUFAL, 1999. ______. Vicent Monteiro, Poeta Cordial: marcas textuais de sociabilidade literária – Paris, 1946-1960. Maceió: EDUFAL, 2004. SANTIAGO, Silvano. Permanência do discurso da Tradição no Modernismo. In: “NOVAES, Adauto (coord.). Cultura Brasileira: Tradição / Contradição”. Rio de Janeiro: Zahar / Funarte, 1987. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

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