SETEMBRO 2014 38 www.candido.bpp.pr.gov.br candidojornal da biblioteca pública do paraná Lanlan Bessoni

Nunca fomos tão lusitanos Na última década, uma nova geração de autores lusófonos passou a ser publicada no Brasil, renovando o interesse dos leitores pela literatura de língua portuguesa feita fora do país

Poemas | Luigi Ricciardi | • Domingo,9 | Jorge Reis-Sá • Ensaio | Luiz Ruffato 2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná editorial

Ilustração: Diogo Salles expediente á aproximadamente uma década VALTER HUGO MÃE os leitores brasileiros fizeram uma descoberta. Livros de novas vo- candido zes literárias de língua portuguesa Cândido é uma publicação mensal H da Biblioteca Pública do Paraná começaram a surgir nas livrarias — de Porto Alegre, Recife, Brasília a Salvador. Gonçalo Tavares, José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Jorge Reis- -Sá, Ondjaki e Valter Hugo Mãe, entre outros, são alguns desses escritores por- Governador do Estado do Paraná: Beto Richa tugueses e/ou nascidos em ex-colônias Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana de . É uma nova onda literá- Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira ria? O escritor português Manuel Jor- Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross ge Marmelo desconfia que sim. E diz mais: “Não creio, aliás, que tenha ante- Coordenação Editorial: riormente existido outra geração de au- Rogério Pereira e Luiz Rebinski tores portugueses tão lida e traduzida no estrangeiro quanto a atual”. A presença desses autores no Bra- Redação: sil, e no mundo, é o destaque desta edi- Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy ção do Cândido. Uma reportagem abre espaço para os autores, além de profes- Estagiários: sores universitários brasileiros, que ana- Lucas de Lavor e Thiago Lavado lisam essa produção literária. “Os pontos de contato entre esses escritores, além BIBLIOTECA AFETIVA Coordenação de Desenho Gráfico | CDG | SEEC do fato de escreverem em língua portu- Rita Solieri Brandt | coordenação Divulgação guesa, são a angústia e a perplexidade do Divulgação Bianca Salomons, Cecília Fumaneri e Raquel Dzierva | diagramação homem contemporâneo, diante de valo- res universais”, afirma a professora Uni- Colaboradores desta edição: versidade do Estado do Rio de Janeiro Afonso Cruz, André Caliman, Ben-Hur Demeneck, Diogo Salles, Jane (UERJ) Maria Helena Sansão Fontes, Tutikian, Jorge Sá-Reis, Lanlan Bessoni, Léo Gibran, Lina Faria, Luiz especialista no assunto. A invenção da solidão e seu autor, Paul Auster, Ruffato, Luigi Ricciardi, Manuel Jorge Marmelo, Mariana Zarpellon e A professora da Universidade Fe- apareceram para mim na volta do enterro do meu sogro Rui Cardoso Martins. deral do Rio Grande do Sul (UFRGS) Eu nem estava resfriado como Sinatra quando li Fama à época. Ao voltar para a casa dele, logo após deixar o Jane Tutikian explica, em ensaio inédi- e anonimato, de Gay Talese, mas fiquei de cama como cemitério, encontrei o exemplar à sua cabeceira. No livro to, quem são esses escritores e indica al- se estivesse doente. Não é o melhor livro que li, mas autobiográfico, ao mesmo tempo memória e ensaio literário, Redação: guns livros disponíveis em livrarias e bi- talvez seja a maior descoberta que já tenha feito em Auster desenvolve um dos mais contundentes tratados [email protected] | (41) 3221-4974 sobre a memória, a linguagem e a busca da identidade. Nos bliotecas brasileiras. Valter Hugo Mãe, uma leitura: eu não esperava conhecer uma Nova York através dos tipos de gatos, por exemplo. Sempre me meses que se antecederam à morte daquele meu sogro, eu angolano radicado em Portugal, passou impressionou. Talese transforma a realidade em algo havia tido com ele uma relação quase paternal. Transferi de Biblioteca Pública do Paraná por Curitiba e foi entrevistado. Por fim, tal forma o sentimento filial àquele homem, que só a partir Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 | Curitiba | PR. a mais ao botar tanto afeto no ofício de escrever algo Horário de funcionamento: o leitor e a leitora do Cândido têm aces- verdadeiro; aquilo é ficção sem ficção, seja lá o que da morte dele elaborei questões fundamentais ao luto pela Segunda à sexta, das 8h30 às 20h. so a textos inéditos de três autores por- isso signifique. morte do meu próprio pai, ocorrida 15 anos antes. Sábados, das 8h30 às 13h. tugueses: Jorge Reis-Sá, Manuel Jorge Rômulo Zanotto é ator por formação acadêmica e acabou encontrando nas Marmelo e Rui Cardoso Martins. Diogo Guedes é jornalista e mestre em Mídia e Estética pela Universidade Federal de letras sua arte. É autor do romance Quero ser Fernanda Young (2012) e trabalha Todos os textos são de responsabilidade exclusiva Pernambuco (UFPE). É repórter de literatura do Jornal do Commercio, com passagens em agência de publicidade, mas queria mesmo era escrever sobre cultura e do autor e não expressam a opinião do jornal. Boa leitura. pelo Suplemento Pernambuco e pela Revista Continente. Vive em Recife (PE). comportamento. Catarinense, vive em Curitiba (PR). 3 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido curtas da bpp

Foto: Divulgação Pocket show

A cantora e poeta Rafaela Fortu- nato se apresenta na Biblioteca Pública do Paraná no dia 25 de setembro. O po- cket show “Versos em movimento” é ba- seado no disco homônimo, o mais re- cente da cantora. Após a apresentação, a cantora bate um papo com o público sobre suas referências na MPB e na po- esia brasileira. Além das canções de seu último CD, Rafaela Fortunato também apresentará composições de seu próxi- mo álbum, Amarelo demais. O espetácu- lo acontece às 17h30, no hall térreo da BPP. A entrada é franca.

Vigor Mortis no Guairinha Torneio de xadrez A Companhia Vigor Mortis apre- que também é dirige o espetáculo. No senta, até 14 de setembro, no tea- elenco estão Andrew Knoll, Carolina tro Guairinha, a peça Marlon Brando, Fauquemont e Michelle Rodrigues, whiskey, zumbis e outros apocalipses. Co- além de cerca de 20 figurantes que in- nhecida pelos trabalhos que misturam terpretam zumbis. Além do teatro, o histórias em quadrinhos, terror, sus- grupo também vem ganhando noto- pense, violência, sexo e humor negro, riedade no cinema, principalmente a companhia, nesta encenação, traz com suas adaptações de Morgue story uma história que se passa num cenário e Nervo craniano zero, que recebeu o pós-apocalíptico dominado por zum- prêmio de Melhor Filme em Montevi- bis. O texto é de Paulo Biscaia Filho, deo e San Francisco.

Exposição das tripas O escritor Paulo Sandrini acaba de lançar novo livro. Exposição das tri- pas é o sétimo trabalho do autor paulis- ta radicado em Curitiba e traz a fusão entre prosa e poesia. A experimenta- A Biblioteca Pública do Paraná de 1ª a 5ª série, participam da primei- ção se estende à capa, onde não cons- promove, nos dias 13 e 27 de setem- ra categoria, cujo torneio será realizado tam título nem nome do autor. A obra bro, o Torneio Infantil de Xadrez 2014. no dia 13. Já crianças que cursam da 6º conta ainda com ilustrações de Fabiano O evento tem início às 9h e é realizado ao 9º ano jogam no dia 27 de setembro. Vianna e Danilo Oliveira, além de fo- em parceria com o Clube de Xadrez de Para participar, as inscrições devem ser tos de Diego Singh. Parafusado, o livro Curitiba, que acontece em dois fins de feitas pelo telefone 3221-4980 ou pes- também permite que o leitor reorgani- semana, uma para cada categoria. soalmente, na Seção Infantil da BPP, ze a edição da maneira que preferir. Crianças do Ensino Fundamental, entre 8h30 e 18h30. 4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

LIVRO

presença de grandes contistas sempre foi marcante na literatu- ra paranaense. A publicação da A antologia 48 Contos Paranaenses, Antologia traz editada pela Biblioteca Pública do Pa- raná, por meio do Núcleo de Edições da Secretaria de Estado da Cultura (Seec), traz ao leitor um painel do que foi produzido no gênero desde a eman- 48 contistas do cipação do Estado, em 1853. Os livros têm tiragem de mil exemplares, que se- rão distribuídos gratuitamente para to- das as bibliotecas públicas do Paraná. Paraná Organizado pelo escritor Luiz Organizada pelo escritor Luiz Ruffato, coletânea reúne prosadores Ruffato, leitor atento ao que acontece no Brasil, o livro mostra a força do con- de várias épocas, nascidos ou radicados no Estado to local ao selecionar prosadores cuja característica em comum mais eviden- Lucas de Lavor te é a pluralidade de vozes. Dos autores do fim do século XIX aos escritores do presente, uma gama imensa de temas e estilos se apresenta. Da prosa mais afeita a experi- mentações, com ênfase na linguagem — uma da marcas da literatura no Pa- raná —, até histórias cuja maior preocu- pação é arrebatar o leitor a partir de um enredo instigante, de estruturas mais tradicionais, 48 contos paranaenses é um mosaico amplo que reúne quase três sé- culos de escrita literária no Estado. “A coletânea comprova a força e a 48 contistas paranaenses: Aluísio Ferreira importância da produção literária para- de Abreu, Andrade Muricy, Antonio Cescato, Assionara naense no cenário nacional. Sua principal Souza, Carlos Machado, Caetano Galindo, Cezar Tridapalli, marca é a riqueza e a pluralidade de vozes Cristovão Tezza, Dalton Trevisan, David Gonçalves, Ernani e estilos literários, resgatando autores es- Buchmann, Fábio Campana, Guido Viaro, Jayme Balão quecidos e apresentando novos contistas Junior, Jair Ferreira dos Santos, José Cruz Medeiros, paranaenses”, diz Rogério Pereira, diretor José Marins, Júlio Damásio, Júlio Perneta, Luci Collin, da Biblioteca Pública da Paraná. Lucio Ferreira, Luiz Andrioli, Luís Henrique Pellanda, Luiz Ao longo do livro, o leitor pode- Felipe Leprevost, Manoel Carlos Karam, Marcio Renato dos rá contrastar o estilo e as preocupações Santos, Mário Araújo, Marco Cremasco, Miguel Sanches estéticas de diversas escolas e movimen- Neto, Nestor Victor, Nilson Monteiro, Newton Sampaio, tos literários. De pioneiros como Andra- Oscar Nakassato, Otávio Duarte, Otto Leopoldo Winck, de Muricy, Jayme Balão Junior e Nestor Paulo Sandrini, Paulo Venturelli, Regina Benitez, Reinoldo Victor aos nomes que repercutiram na- Atem, Renato Bittencourt Gomes, Roberto Gomes, Roberto cionalmente nas últimas décadas, como Muggiati, Rocha Pombo, Sérgio Rubens Sossélla, Susan Dalton Trevisan, Wilson Bueno e Mano- Blum, Thiago Tizzot, Wilson Bueno e Wilson Rio Apa. el Carlos Karam, entre muitos outros — inclusive autores da novíssima geração. 5 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

ENSAIO

mas palavras devem ser ditas para explicar e justificar a publicação destes 48 contos paranaenses. U Talvez um leitor mais exi- A literatura no Paraná: gente pergunte que sentido faz pensar em nacionalidade em pleno século XXI — mais ainda: pensar em “regionalida- de”, ou seja, a circunscrição de uma cultu- algumas linhas ra a um determinado espaço geográfico. Porque a antologia 48 contos paranaenses Organizador da antologia 48 contos paranaenses, Luiz Ruffato objetiva justamente reunir autores que, por um acaso, nasceram nos limites do fala sobre as características da literatura do Estado e de como Paraná ou que vivam ou viveram no Es- tado, e tentar traçar um panorama histó- selecionou o autores e textos presentes no livro rico desta produção ficcional. Então, an- tes que nos alonguemos, respondemos: Foto: Divulgação não acreditamos que haja uma especifi- cidade na literatura produzida regional- mente, nem temática, nem formal, que possa caracterizá-la como autônoma, mas ao mesmo tempo entendemos que a visão de mundo de um autor se faz a par- tir de elementos vários, cujo principal é a língua na qual ele escreve, mas que certa- mente passa por sua experiência pessoal — e aqui, evidentemente, entra a paisa- gem, real ou imaginária, que nele habi- ta. Não o determina como escritor certa- mente, mas o contamina. Tentemos, pois, um pouco de história. A província do Paraná, desmem- brada da de São Paulo em 1853, teve, em seus primórdios, uma acanhada vida cultural. Embora Marilda Binder Sa- mways defenda o nome de Fernando Amaro de Miranda (1831-1857) como pioneiro da literatura paranaense, Wil- son Martins, citando Salvador Correia Coelho (1820-?), com seus Passeios à minha terra, de 1860, e Julia da Costa (1844-1911), com Flores dispersas, de 1867, descarta-os em prol de Domin- gos Nascimento (1863-1905), que lan- çou em 1883 Revoadas, que “já se ins- creve no processo de um momento histórico a partir daí ininterrupto”. O tradutor e escritor Caetano Galindo é autor da coletânea de contos Ensaio sobre o entendimento humano. 6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENSAIO

Foto: Glória Flügel / Reprodução Isto porque, segundo Martins, so- mente no lustro final do século XIX en- contramos em Curitiba uma comuni- dade literária “suficientemente madura” que justificava até mesmo a criação de uma revista, O Cenáculo, “marco ritual da vida intelectual de cada momento”. Fun- dada por Dario Veloso, Silveira Neto, Ju- lio Perneta e Antonio Braga, teve edita- dos quatro volumes, entre 1895 e 1897, e é considerada por Andrade Muricy, fruto do “mais importante movimento literário paranaense”, tendo sido a primeira pro- dução local a projetar-se nacionalmente. É nesta quadra que aparece ainda a primeira manifestação da prosa de fic- ção do Paraná, o romance A honra do Ba- rão, publicado por Rocha Pombo (1857- 1933) em 1881. O autor, que se tornaria um dos mais famosos historiadores de sua época, radicou-se no Rio de Janeiro, onde cerraria fileiras entre os simbolis- tas, lançando o singularíssimo romance No hospício, em 1905. Nestes primór- dios, a poesia se estabelece quase hege- monicamente e são raros os ficcionistas como Lucio Pereira (1860-1933), autor de Contos paranaenses, de 1896, Nestor Victor (1868-1932), que se consagraria como crítico e ensaísta, autor de Signos, de 1897, ou Julio Perneta (1869-1921), que, com Amor bucólico, de 1898, intro- duz a literatura regionalista no Estado. Após este primeiro surto produ- tivo, ocorre um longo hiato. Curiosa- mente, embora entre os fundadores, em 1927, da revista modernista Festa, do Rio de Janeiro, estivessem três parana- enses, Andrade Muricy, Tasso da Silvei- ra e Brasílio Itiberê, as ideias novas pas- saram ao largo do Paraná. Otávio de Sá Barreto fala de uma festa literária ocor- rida no dia 15 de outubro de 1926, no Clube Curitibano, liderada por Juran- dir Manfredini, como uma espécie de marco da introdução do modernismo no Estado, mas Martins rechaça como “deprimente e constrangedor” os “to- cantes esforços para provar que, apesar Manoel Carlos Karam é autor de obras que flertam com o experimentalismo, tais como Cebola e Comendo bolacha maria no dia de são nunca. 7 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

de tudo, houve um movimento moder- Joaquim era bancada com recursos ad- nista no Paraná, ou, pelo menos, alguns vindos dos vários anúncios espalhados escritores modernistas”. pelas páginas da revista, mas princi- Fato é que nos primeiros quaren- palmente com o auxílio financeiro da ta anos do século XX, uma única perso- família Trevisan. Eu sou um leitor que me fiz por antologias. Creio nalidade se destacou: Newton Sampaio Com sua capacidade de articu- “ (1913-1938). “Nos meus tempos de es- lação, e tendo claro seu papel didático tudante em Curitiba”, relembra Martins, de tornar o Paraná contemporâneo do que as coletâneas, quando norteadas por princípios “Newton Sampaio era uma espécie de mundo, Trevisan conseguiu reunir, ao herói cultural para os escritores em bo- longo da existência da revista, os mais estéticos, temáticos e/ou históricos claros, cumprem tão das novas gerações”. E continua: “Ele importantes nomes da literatura brasi- era visto como a primeira voz ‘modernis- leira. Vinícius de Morais, Carlos Drum- bastante bem o papel de aproximar do leitor comum ta’ ou, pelo menos, moderna, no ambien- mond de Andrade, Manuel Bandeira, te literariamente anacrônico do Paraná. Mário de Andrade, Oswald de Andra- as várias tendências de dada literatura.” O que nele admirávamos, antes de mais de, José Lins do Rego, Aníbal Machado nada, era a irreverência com relação aos comparecem com poemas, trechos de ro- nomes consagrados, o estilo nervoso e mances, depoimentos. Antonio Candi- ágil, a inteligência aguda e a integração do, Otto Maria Carpeaux, Mario Pedro- nas correntes vivas do pensamento”. sa e Sérgio Milliet colaboram com textos Este espírito irreverente, de al- críticos. E são publicadas traduções de como em “O terceiro indianismo’, em será vã ou inconsequente, que almeje guma maneira, emularia a criação, em autores como Eugene O’Neill, Garcia que critica duramente Monteiro Loba- como um sol espargir os seus raios fúl- 1940, de um jornal, O Tingui, “órgão Lorca, T.S. Elliot, Rainer Maria Rilke, to (número 12, de agosto de 1947). Mas gidos pela terra. Nem é para tanto, o tra- dos ginasistas” de Curitiba, embrião da Jean-Paul Sartre, Franz Kafka, André também sabe valorizar antecessores — balho de uma só geração. O importante revista Joaquim, que, essa sim, transfor- Gide, Arthur Koestler, Virginia Woolf... como Newton Sampaio, “o maior con- foi a decisão de romper com o passado, maria o panorama da cidade e lançaria Um capítulo à parte é o apuro tista do Paraná”, segundo suas próprias nas suas tradições estéreis. (...) O mun- o nome de um dos mais importantes es- gráfico da revista. Suas capas sempre palavras, de quem publicou um conto, do é um só: os nossos problemas estéti- critores brasileiros de todos os tempos, contavam com gravuras inéditas assina- “Irmandade”, no número 2, de junho de cos ou vitais, são já os mesmos dos mo- Dalton Trevisan (1925). Impresso pelo das por nomes como Poty, Yllen Kerr, 1946, e uma crônica inédita no núme- ços de Paris ou dos moços de Moscou. Centro Literário Humberto de Cam- Renina Katz, Di Cavalcanti, Fayga Os- ro 12 — e seus contemporâneos, como (...) Nossa geração, que reclama o seu pos, tinha como inspirador Rodrigo Ju- trower, Portinari e Heitor dos Praze- os jovens ensaístas paranaenses Wil- direito de influir no destino do mundo, nior, e como diretores, além do jovem res... Com diagramação limpa e moder- son Martins e Temístocles Linhares, jamais fará arte paranista, no mau sen- Trevisan — que, então com 15 anos, na, as ilustrações ocupavam um espaço que logo se tornariam conhecidos na- tido da palavra. Ela fará simplesmente surge escrevendo contos e crônicas sob generoso — o número 19, de julho de cionalmente. Além, claro, dos artistas arte”. E termina com uma predição: “A os pseudônimos de Dom Nada e Fa- 1948, por exemplo, todo dedicado aos plásticos que iam surgindo em Curiti- literatura paranaense inicia agora”. minto —, Antonio Teolindo e Antonio artistas plásticos, exibe trabalhos de ba, como Poty Lazzarotto, Guido Viaro, Na verdade, embora conheci- Walger. O jornal, que chegou a alcançar Poty, Kerr, Renina Katz, Guido Via- Leonor Botteri e Miguel Bakun. do desde então, Trevisan continuaria a alguma projeção fora do Estado, durou ro, Leonor Botteri, Bakun, Gianfranco Trevisan tinha plena consciên- publicar seus livros por conta própria até dezembro de 1943. Bonfanti, Nilo Previdi, Esmeraldo Blasi cia da estrada larga que abria com a pu- em Curitiba, em pequenas edições que Três anos depois, agora com 21 Jr., apresentados uns pelos outros. blicação de Joaquim. No número 9, de emulavam a forma dos folhetos de cor- anos, Dalton Trevisan se sente suficiente- Trevisan encontra-se em cada março de 1947, escreve: “Primeiro cum- del, até 1959, quando, saindo Novelas mente seguro para lançar a revista Joaquim, centímetro de Joaquim, criada “em ho- pria derrubar os muros e esboroou-se ao nada exemplares pela José Olympio, suas que causaria furor na sociedade curitibana, menagem a todos os Joaquins do Bra- eco de nossa grita a muralha da China. histórias passam a ter circulação nacio- e chamaria a atenção dos intelectuais bra- sil”. Além de publicar contos, que en- Segundo, por em dia a arte, no Paraná, nal, iniciando sua consagração não só sileiros para a produção artística do Paraná feixaria, alguns deles, em seu segundo com seu tempo. (...) Soará a hora, então, junto à crítica, mas e principalmente em geral, e para sua originalíssima literatura, livro, Sete anos de pastor, de 1948, escre- de lançar o navio ao mar aventuroso”. E junto aos leitores do Brasil e do exterior. em particular. Publicada entre abril de 1946 ve notas, faz entrevistas, provoca — ora continua: “Nossa geração, com trabalho Fenômeno isolado é Wilson Rio e dezembro de 1948, tendo como diretores a província, como no artigo “Emiliano, humilde, se propõe a participar de seu Apa (1925), autor de peças teatrais, Trevisan, Antonio Walger (antigo compa- poeta medíocre” (número 2, de junho de tempo, empenhada em salvar o homem romances e contos, que publica seu nheiro de O Tingui) e Erasmo Pilotto, 1946), ora o status quo literário nacional, com a sua arte, como puder. (...) Não primeiro livro em 1957, Um menino 8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná ENSAIO contemplava o rio. Em seguida, muda- o romance Catatau, em 1975; Roberto se para Antonina, litoral do Paraná, Gomes (1944) estreia com as Alegres me- onde se torna líder de uma cooperativa mórias de um cadáver, em 1979; Domin- de pescadores e agricultores, e de uma gos Pellegrini (1949) inicia, em 1977, comunidade artística, da qual fez parte uma longa e exitosa carreira com Homem o escritor Cristovão Tezza. No final vermelho; Fábio Campana (1947) lan- dos anos 1960, Apa passa a se dedicar ça-se em 1978 com os contos de Restos exclusivamente ao teatro, liderando o mortais e David Gonçalves em 1979 com grupo de amadores Capela de formação as histórias curtas de Geração viva. popular, cujas peças eram apresentadas O surgimento, em 1987, do jor- em locais públicos, bares e restaurantes nal Nicolau, sob coordenação de Wilson em Curitiba e em São Paulo. Em 1986, Bueno, que se tornou, em pouco tem- muda-se para a praia da Pinheira, em po, o mais importante veículo de dis- Santa Catarina, onde passa a viver. cussão da cultura entre o final da déca- Em fins de 1967, a Fundação da de 1980 e início da década seguinte, Educacional do Estado do Paraná lan- veio coroar o aparecimento de uma das ça aquela que se tornaria a mais em- mais brilhantes gerações de autores pa- blemática vitrine dos autores nacionais ranaenses. Corroborando uma curio- ao longo da década de 1970, o famo- sa característica — a de que, ao contrá- so concurso de contos do Paraná. Ga- rio dos de outros Estados, os escritores nhá-lo ou mesmo ser distinguido en- locais não se mudam para São Paulo e tre os cinco primeiros colocados, era ser Rio de Janeiro para obter notoriedade alçado à fama quase instantaneamen- — Curitiba reunia, neste momento, al- te. Neste período, começa a surgir uma guns dos nomes mais expressivos da li- nova geração de ficcionistas, que tem teratura brasileira. nomes como Regina Benitez (1934- Estreiam naquela década: Valên- 2006), de A moça do corpo indiferente, de cio Xavier (1933-2008) com O mês da 1965; Nelson Padrella (1938), também grippe, em 1981; Manoel Carlos Karam artista plástico, de O fascismo é um estado (1947-2007) com Fontes murmurantes, de espírito, de 1969; Sérgio Rubens Sos- em 1985; Wilson Bueno (1949-2010) sélla (1942-2003), autor de mais de 400 com Bolero’s Bar, em 1986; Cristovão títulos, de gêneros variados e híbridos Tezza (1952) com Trapo, em 1988, e e Walmor Marcelino (1930-2009), fic- Jamil Snege (1939-2003) com O jar- cionista, dramaturgo e poeta. dim, a tempestade, em 1989. Jair Ferrei- A década de 1970 abre-se em ra dos Santos (1946), que publica Kafka novas perspectivas. O combate à dita- na cama em 1980 é o único a viver fora dura insufla alento à literatura e a circu- do Estado, no caso, no Rio de Janeiro. lação das ideias se faz por meio de edi- O fim do jornal Nicolau, em 1996, coin- ções não convencionais — é o primado cide com o início de um período de es- da chamada geração mimeógrafo e da tagnação cultural, não no Paraná, mas literatura dita marginal. Em Curitiba é no Brasil. É um momento de instabili- fundada a Editora Cooperativa de Es- dade política e econômica e parece que critores, pelos poetas Reinoldo Atem e a literatura se inflete, buscando reelabo- Hamilton Faria, entre outros, cujos li- rar seus caminhos. vros ganham espaço para além do Esta- A fundação, em abril de 2000, do do. É quando surgirão alguns dos mais jornal Rascunho, pelo escritor Rogério importantes nomes da literatura de fic- Pereira, coincide com o começo de um O maringaense Oscar Nakassato venceu o Prêmio Jabuti na categoria romance em 2012 com Nihonjin, que conta a saga ção paranaense: Paulo Leminski (1944- novo período de efervescência da vida de uma família de imigrantes no norte do Paraná. 1989), também poeta e ensaísta, lança cultural paranaense. Editoras grandes e 9 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Foto: Divulgação ***

Eu sou um leitor que me fiz por antologias. Creio que as coletâne- as, quando norteadas por princípios es- téticos, temáticos e/ou históricos cla- ros, cumprem bastante bem o papel de aproximar do leitor comum as várias tendências de dada literatura. Portanto, para além de oferecermos, neste livro, um conjunto de contos que têm em co- mum o fato de os autores terem nascido no Paraná ou para o Paraná terem mi- grado, colocamos à disposição, na ver- dade, uma gama de escritores, quarenta e um no total, que, cada um à sua ma- neira, ajudam a construir o imaginário brasileiro dos últimos cento e poucos anos. Cabe ao leitor escolher, entre tan- tos, aqueles que melhor dialogam com suas próprias experiências.

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Ainda uma explicação sobre os critérios utilizados para a escolha dos nomes que constam desta antologia. Procurei trazer para as páginas que se seguem o mais amplo espectro da produção contística paranaense, des- de o primeiro texto em prosa em fic- ção, presente no livro de Lucio Perei- ra, Contos Paranaenses, de 1896, até um conto inédito em livro do jovem Thia- go Tizzot. Para os autores contempo- râneos, incluí apenas os que já houves- sem publicado pelo menos um título, Luiz Ruffato é escritor, autor de Eles eram muitos Autor do romance Julia, Roberto Gomes aparece na antologia 48 Contos paranaenses, com a história “O destino de qualquer gênero, e que tivessem cavalos (2001, Prêmio APCA e Prêmio Machado de do Almirante Nolasco”. nascido até 1980. Assis), De mim já nem se lembra (2006), Estive em Alguém notará a ausência de Lisboa e lembrei de você (2009) e do projeto Inferno pequenas surgem ou se consolidam — dos patrocinam eventos que atualizam alguns autores e, creia, não é lapso ou Provisório, composto por cinco volumes: Mamma, son Positivo, Travessa dos Editores, Arte & constantemente o repertório dos escri- implicância. Simplesmente, nos depa- tanto felice (2005, Prêmio APCA), O mundo inimigo Letra, Kafka e pequenos selos indepen- tores, não só na capital como também ramos com alguns obstáculos intrans- (2005, Prêmio APCA), Vista parcial da noite (2006, dentes —, revistas como a Coyote, pu- no interior do Estado. Curitiba, enfim, poníveis, ora a impossibilidade de en- Prêmio Jabuti), O livro das impossibilidades (2008) blicada em Londrina, ou jornais como é hoje sem dúvida alguma, ao lado de contrar os herdeiros de determinado e Domingos sem Deus (2011, Prêmio Casa de las Cândido, da Biblioteca Pública do Pa- São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Ale- escritor, ora a irredutibilidade na nego- Américas). Seus livros estão publicados na Alemanha, raná, conseguem manter uma periodi- gre, um dos mais importantes polos de ciação dos direitos com os herdeiros ou França, Itália, Portugal, Argentina, Colômbia, México e cidade regular, órgãos públicos e priva- produção da literatura brasileira. com o próprio autor. g Cuba. Vive em São Paulo (SP). 10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

PERFIL DO LEITOR | ANDRÉ DAHMER “A poesia é elástica”

Foto: Reprodução Um dos cartunistas mais “compartilhados” da geração surgida na internet revela seu interesse por poetas brasileiros de diversos estilos

Omar Godoy

É difícil navegar pelas redes so- determinado a se firmar como poeta, nem manos, cresceu ouvindo os papos sérios ciais e não esbarrar em um desenho do que seja para ser lembrado como tal de- dos doutores da família. “Eu sou o único cartunista carioca André Dahmer (cria- pois de morrer — como ele mesmo brin- que ‘não estudou’ e foi para as artes, onde dor de séries como Malvados, Quadri- ca. “Acho indigno ser enterrado apenas se aprende as coisas de outras formas. E nhos dos anos 10, Rei Emir e Após- como cartunista”, diz, bem humorado. até hoje, nos almoços, quando tento en- tolos). Mas grande parte dos fãs que Conhecido por sua abordagem ao trar num assunto, eles me dizem: ‘Calma, compartilham diariamente suas tiras, mesmo tempo irônica e reflexiva da so- André, você precisa ler mais sobre isso.’” charges e ilustrações não sabe que o ar- ciedade contemporânea, Dahmer conta A poesia e a literatura de ficção, tista desenvolve um trabalho paralelo na que teve uma formação “humanista” em portanto, não tinham muito espaço naque- literatura. Prestes a lançar o terceiro livro casa. Filho e irmão de acadêmicos, al- le lar lotado de volumes sobre Sociologia, de poemas, Dahmer está cada vez mais guns deles ligados à área de Direitos Hu- História e afins. Tanto que sua primeira 11 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

lembrança literária é 1964-1984: 20 formance. Mais que isso: revelou uma ge- A poesia é muito elástica. Você tem a delicadeza anos de prontidão, coletânea de charges ração inteira de artistas plásticos, escritores “ produzidas por Ziraldo sobre o período e jornalistas (Pedro Luís, Michel Mela- da ditadura militar. “Meus pais, perceben- med, Viviane Mosé, Cabelo, Los Her- de um Manuel Bandeira, que fala do passarinho, e do que eu gostava de desenhar, me deram manos, etc.). “Hoje eu seria um designer esse livro quando eu tinha uns 10 anos, profissional se não fosse pela coragem da- a violência de um Roberto Piva, que mostra o lado junto com O menino maluquinho. Não ti- queles malucos todos”, confessa. nha muita noção do que se tratava, só fi- De lá para cá, o cartunista vem paranoico de São Paulo.” cava namorando os desenhos”, conta o acrescentando novos nomes a sua ga- artista, que nos anos seguintes também leria de poetas preferidos. Durante a curtiu as coleções e clássicos infantojuve- entrevista, ele cita de Cruz e Souza a nis indicados pela escola (de pronto, cita O Eucanaã Ferraz, passando por Paulo menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Leminski, , Augusto dos Foto: Bruno Stock A bolsa amarela, de Lygia Bojunga). Anjos, Paulo Scott. “A poesia é muito Em 1986, quando tinha 12 anos elástica. Você tem a delicadeza de um (Dahmer completa 40 neste mês de se- Manuel Bandeira, que fala do passari- tembro), teve seu primeiro contato com nho, e a violência de um Roberto Piva, uma obra adulta. Seus pais deixaram na que mostra o lado paranoico de São mesa da sala o então recém-lançado — e Paulo”, diz o artista, que praticamente comentadíssimo — Brasil nunca mais, re- não lê ficção há dois anos. sumo de uma pesquisa que revelou a ex- Livros de quadrinistas, ele leu tensão da repressão política e da tortura poucos. “Sou cartunista só há 10 anos, no Brasil durante os governos militares. entrei nessa porque era uma manei- “Jamais deveria ter lido aquilo, foi um ra fácil e rápida de dar vazão à escrita e impacto muito grande. Fiquei anos sem ao desenho. Antes de começar, conhe- contar para os meus pais que tinha lido.” cia alguma coisa de Chiclete com bana- No início da juventude, após um na, Crumb, Laerte. Mais de folhear na breve flerte com títulos de Marcelo Ru- casa de amigos. Cheguei tarde e sem bens Paiva, mergulhou na filosofia dita referências nesse meio, não fui muito pessimista de Schopenhauer e Nietzsche ‘contaminado’”, afirma Dahmer, que já — que hoje ele repudia. “Para mim, esse tem nove volumes publicados — sete de discurso de ‘homem superior’, de ‘von- quadrinhos e dois de poesia, Ninguém tade de poder’, está totalmente ultrapas- muda ninguém (2010) e Minha alma sado. Não vou julgar um homem do sé- anagrama de lama (2013). culo XIX, mas acredito que esses valores Com lançamento previsto para não podem ser adotados no mundo atu- outubro pela Lote 42, seu terceiro livro al. Sou um otimista. Acho a filosofia da de poemas é marcado por um certo ris- estética bem mais interessante.” co. Pela primeira vez, os textos não virão A poesia, enfim, foi “descoberta” acompanhados de imagens. “Meus ami- na época da faculdade de Desenho In- gos de verdade, aqueles que não ficam dustrial. Dahmer, que sempre desenhou me dando tapinhas nas costas, cobraram: e escrevia desde os 15 anos, envolveu-se ‘Dessa vez não vai ter desenhozinho, né?’, com a turma fanzineira da PUC-Rio e, ‘Você vai assumir essa parada como poe- pouco depois, foi levado por um ami- sia, certo?’. Resolvi encarar e acho que este go ao já lendário evento carioca CEP é o meu livro mais maduro”, diz. Sendo 20.000. Criado em 1990 pelos poe- assim, o título é apropriado: A coragem do tas Chacal e Guilherme Zarvos, o “sa- primeiro pássaro. “Esse nome é no sentido rau multimídia mensal” marcou época ao evolucionista mesmo, do primeiro pássaro aproximar literatura, teatro, música e per- que conseguiu voar”, explica.g 12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ROMANCE | RUI CARDOSO MARTINS O osso da borboleta 13 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Ilustração: André Caliman

hegava-me um deus todas as se- co ou de cisne ou o que lhe desse na O Sol chega e o morcego do pos- manas pelo correio. Tenho Zeus, cabeça para engravidar jovens mortais. te foi dormir com o estômago a abar- Apolo, Vulcano, Neptuno, Marte, Por vezes pergunto-lhes: posso fazer rotar de traças, mosquitos, melgas e Cuma Vénus de peito esférico, Dia- isto, querem fazer aquilo? Mas eles fi- sangue de pessoas dentro da tripa das na a caçar, Pandora a abrir a caixinha cam calados. Não respondem nem por melgas. Pendura-se para baixo num dos sarilhos grandes, Amon Ra senta- enigmas. Vão castigar-te mais tarde, canto qualquer de caverna, num sótão do no trono. Gregos, romanos, egípcios. não devias meter-te com os deuses. Já abandonado como este onde ninguém Atlas segurando o calhau do firmamen- basta o que foi. o encontra, num barco podre ou nas ro- to por toda a eternidade e Jano, o deus Ouve-se o último ganido estre- chas da praia, a palitar os caninos com o das portas e duas cabeças que assim vê munhado do cão que ladra aos mor- ganchinho da asa, lâmina contra lâmina Janeiro a chegar e o ano que passou ao cegos do poste eléctrico, há sempre dos dentes, tem uma unha igual à unha mesmo tempo. Tenho quase todos os um cão de serviço à noite, como as do mindinho crescida dos malandros de deuses dos céus, da terra, dos mares, das farmácias, disse o outro. Os guardas- salão de baile, dos donos de carro com guerras, do amor, tenho de tudo, sou -nocturnos das lâmpadas são os mor- buzina polifónica, dos jogadores de ta- muito prevenido, ou era. Sou proprietá- cegos, guardam a luz sem a verem, em berna, um traço afiado da evolução que rio dum Olimpo de vitrine. rondas periódicas. Mesmo assim, en- permite palitar os dentes. Mastiga os Hoje misturados com bonecas ganei toda a gente. É nesse poste que restos de espigões, asas e patas das mel- que nem sei como vieram aqui parar, roubo a electricidade, fiz uma puxa- gas e, porque engole o nosso sangue hu- de certeza ideia da mãe misturar deu- da. Não digas a ninguém, o piquete mano dentro das melgas, guincha num ses com bonecas de plástico, peixeiras da companhia não deu por ela, pare- arroto de felicidade. de sete saias bordadas, uma Barbie an- ce um fio de cobre descarnado, esque- Aos vampiros pendurados de tiga made in Japan. Brinco com eles cido durante outras crises nacionais e pernas para o ar desce-lhes o sangue à (parecem estatuazinhas desenterradas, internacionais. cabeça, e têm sonhos delirantes duran- têm as cores do mármore e do barro) A quantidade de coisas que ficam te o dia, imagino. Os pombos, as pom- e meto-os a fazer coisas que não que- penduradas, até as memórias e amores, de bas representam o espírito santo. Mas rem, incluindo porcarias com as bo- súbito ligam-se à corrente e recomeçam. o morcego é o espírito santo do diabo, Rui Cardoso Martins é escritor, roteirista de cinema, necas. Não é nada de mais. Segundo Tudo combinado, o ar, o cheiro, a como disse o outro. cronista e repórter. Tem 47 anos e nasceu no Alentejo, em a Grande Enciclopédia Ilustrada dos luz dão um impulso aos nossos instintos Mas que grandes cabras. O que é Portalegre, a 20 quilômetros da fronteira com a Espanha. O Deuses da Antiga Grécia e Mitologias e deveres. Ou é esperança ou vingança o que eu vos disse ainda ontem? Cresçam! trecho publicado no Cândido faz parte do romance inédito Afins, Zeus estava sempre a descer do que aí vem, nos próximos dias teremos A vizinha de baixo acordou e fala O osso da borboleta, que a editora Tinta da China publica Olimpo e disfarçava-se de touro bran- de ver melhor o mecanismo. com as plantas. Começa cedo o espectáculo. g ainda em 2014. Martins vive em Lisboa, Portugal. 14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

MEMÓRIA LITERÁRIA À espera de um Nobel

Foto: Reprodução Patrocinado a partir do testamento do inventor da dinamite, o Nobel de Literatura anuncia no próximo mês de outubro o vencedor, tendo os escritores Haruki Murakami, Philip Roth e Milan Kundera mais uma vez como favoritos

BEN-HUR BENNECK

Autor de romances, contos e peças teatrais, o filósofo francês Jean-Paul Sartre recusou o prêmio em 1964, por questões políticas. 15 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Foto: Reprodução

Suécia não deu ao mundo ape- No conjunto da obra, o diferen- nas o conceito de ombudsman, cial do Nobel é conseguir abrir caminhos o cinema de Ingmar Bergman e aos laureados e à literatura de seus países A os hits do ABBA. Desde 1901, a de origem. “Quando Yasunari Kawaba- Academia Sueca de Letras distribuiu ta foi premiado com o Nobel, o mundo 110 láureas que transformaram escrito- literário aproveitou para se lembrar de res em celebridades mundiais. A partir da Ryunosuke Akutagawa, grande escritor fortuna do inventor da dinamite, Alfred japonês do início do século XX, admi- Nobel, o país criou o maior prêmio lite- rado no mundo todo, mas não premia- rário do mundo, o Nobel de Literatura. do em seu tempo. Além dele, passaram Na sala de espera desse Pan- a ser lembrados vários outros autores ja- teão composto apenas por mortais, es- poneses de peso, incluindo Kenzaburo tão nomes como Haruki Murakami, Oe — outro premiado com Nobel —, Philip Roth, Milan Kundera, Umberto Yukio Mishima e Haruki Murakami”, Eco e Amos Oz. Lista que não descarta diz o editor Jiro Takahashi, profissional Cormac McCarthy, Thomas Pynchon, ligado ao mercado editorial desde 1966. Don DeLillo, Salman Rushdie, Marga- A Academia Sueca é compos- ret Atwood, Joyce Carol Oates e Javier ta por 18 membros vitalícios, cinco de- Marias. Até Bob Dylan pode ser uma les são eleitos para um mandato de três das surpresas — tão comuns ao Nobel. anos à frente do Comitê Nobel de Lite- Em meio à disputa, aparece o nome do ratura. A cada outono sueco, o Comitê brasileiro Moniz Bandeira. envia mais de 600 cartas formais, tanto para pessoas físicas quanto para organi- Em 2011, Tomas Transtromer surpreendeu o mundo ao ser anunciado vencedor do Nobel SOL DA MEIA NOITE zações, para pedir indicações de autores. de Literatura. Até então, o poeta sueco tinha apenas um poema traduzido no Brasil. Apenas José Saramago foi pre- Até abril, o Comitê reduz a lista miado tendo escrito na língua de Ca- para algo em torno de 15 ou 20 nomes, panorama mundial”, sintetiza Joaquim Em se tratando de império, há 21 mões. As línguas tcheca, turca e iídi- a serem apresentados e aprovados ao Maria Botelho, presidente da UBE. anos um autor norte-americano não ga- che também têm apenas um vencedor, restante da Academia. Durante o mês Botelho destaca o traço político-cultu- nha o Nobel. A autora Toni Morrison enquanto que o idioma espanhol em- de maio, o Comitê elege cinco candida- ral eminentemente nacionalista do in- apenas amorteceu o golpe no orgulho placou 11 escritores e o inglês 27. Uns tos preferenciais. Durante o verão, com dicado e a adoção de seus livros pelo americano de ter “apenas” três homena- poucos números começam a indicar direito ao “Sol da meia-noite”, a Aka- Instituto Rio Branco, que forma diplo- geados durante os últimos 59 anos. Não quanto o eurocentrismo e o peso dado demien se dedica à leitura dos finalistas. matas. “Bandeira é um pesquisador me- é à toa o sucesso da “lista alternativa” aos fatores extraliterários (leia box) são Em setembro, o número deve diminuir ticuloso, cuidadoso com as informações (veja box) ao Nobel proposta por Ted constantes ameaças à credibilidade do para três até que, em outubro, é feito o e com a linguagem. Ele escreveu obra Gioia na internet e que o The New York cobiçado prêmio. anúncio do laureado. Todo o processo de de fôlego, que merece ser descoberta Review of Books publicasse um texto de Uma vez que a Academia Sueca votação se mantém em sigilo por 50 anos. por mais gente”, declara. Tim Parks em que ele acusa a Acade- aceitou o desafio de responder por toda Editado até na China, em man- mia Sueca de bairrismo ao premiar o a humanidade, nem sempre ela conse- ANTES DO SNOWDEN darim, Formação do império americano, de conterrâneo Tomas Tranströmer. Fal- gue explicar suas preferências. Por exem- Em 2014, a Academia Sueca va- Moniz Bandeira, teve o mérito de ante- tou pouco para Parks exigir um ombu- plo, questionamentos sobre o porquê de lidou 210 candidaturas, entre eles, 36 cipar em oito anos as denúncias de es- dsman para o Nobel. a própria Suécia reunir mais premia- estreantes. Uma das inscrições esteve a pionagem praticadas pelas agências de dos que toda a Ásia. Em 2008, Hora- cargo da UBE (União Brasileira de Es- segurança norte-americanas, que viriam VIVER PARA CONTAR ce Engdahl, secretário permanente da critores), a qual recomendou o autor Mo- à tona com os relatos do ex-funcionário Para Raul Hernando Osorio Var- Academia Sueca, aproveitou o anúncio niz Bandeira. A decisão teve apoio públi- da CIA Edward Snowden. Figura pou- gas, o Nobel em Literatura brasileiro é uma do prêmio concedido ao francês Le co de outras associações literárias, como co conhecida no meio literário brasilei- questão de tempo. Professor da Universi- Clézio para criticar a literatura norte- a Academia de Letras de Minas Gerais. ro, Moniz atualmente é cônsul honorário dad de Antioquia, em Medellín, ele lamen- -americana por se mostrar “muito in- “As obras de Moniz Bandeira são do Brasil na cidade alemã de Heidelberg ta que o brilho de García Márquez (No- sular” e “muito sensível às tendências sempre esclarecedoras a respeito de con- e não escreve ficção, o que dá uma cono- bel de 1982) tenha acabado por ofuscar da sua própria cultura de massa”. junturas que alteram ou influenciam o tação ainda mais singular a sua indicação. g erações que o precederam e, para o 16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

MEMÓRIA LITERÁRIA

mais jovens, pareça ter estabelecido um Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, canos (PLAS) da instituição, o que fez Diretor interino do PLAS, Mei- patamar distante demais para ser al- Erico Verissimo, , Jorge aumentar extraordinariamente a visibili- ra ilustra sua argumentação a partir cançado. Por outro lado, García Már- Amado, Jorge de Lima, e dade para os estudos latino-americanos e de uma recente participação na Flip: quez projetou as letras nacionais para o Carlos Drummond de Andrade. para o ensino de espanhol em Princeton. “É inevitável que em algum momen- planeta e, com sua influência, apoiou a Ao ser questionado sobre se consi- to tenhamos a sensação de que há algo abertura de instituições como a EIC- O SONHO CELTA derava paradoxal que o Nobel conciliasse o mais do que ‘a literatura’ ali [numa fei- TV (Escuela Internacional de Cine “O Nobel é uma espécie de marca “benefício humanitário” com um posterior ra literária]. Há interesses, expectativas, y Televisión de San Antonio de los global, sumamente irresistível”, compro- impacto editorial intercontinental, Mei- um constante jogo de sedução, além de Baños) e a FNPI (Fundación Nuevo va o professor da Universidade de Prin- ra equaciona as aparentes oposições: “não ódios e amores que circulam, às vezes às Periodismo Iberoamericano). ceton Pedro Meira Monteiro. O anún- creio que o ‘humanismo’ esteja desconecta- claras. Mas não é bem disso que fala Não dá para saber quanto os bra- cio do Nobel de Mario Vargas Llosa se do do mercado. Sei que pode soar mal, mas a literatura? Aliás, não é bem isso que sileiros chegaram perto de ganhar o deu enquanto o peruano estava vinculado a verdade é que há um mercado para valo- constitui parte importante do que é a Nobel nos últimos 50 anos, devido ao ao Programa de Estudos Latino-Ameri- res ‘humanistas’, e é bom que assim seja!”. literatura moderna?”, provoca Meira. sigilo que encobre o processo de vo- tação. Desse período, podemos saber Foto: Reprodução que mensagem foi enviada à Academia Sueca a partir do Brasil, caso os anún- cios sejam públicos. Por exemplo, Aria- no Suassuna, Ferreira Gullar, e Antonio Cândido foram in- dicados algumas vezes por grupos como a Academia Brasileira de Letras (ABL), a UBE, o PEN Clube do Brasil e até mesmo pelo Senado Federal. “João Ubaldo Ribeiro e tinham uma estatura de No- bel. Hoje, não vejo figuras dessa dimen- são. Talvez — um talvez bem grande —, pelo conjunto da obra e por interven- ções como o ‘Poema sujo’, reste para nós o Ferreira Gullar”, conjetura Ricardo Soares. Além de escritor, Soares é um “divulgador e entusiasta” das letras bra- sileiras. Ele comandou os programas te- levisivos “Literatura” e “Mundo da Li- teratura” (1998-2005). “O caráter ‘político’ do Nobel é que lhe dá relevância. Não me refiro à ideolo- gia, mas a uma tendência a valorizar in- telectuais ou escritores que tenham uma conduta humanista. Tenho uma sim- patia por ele combinar humanismo com qualidade literária — a exem- plo de figuras como Albert Camus”, diz Soares. E enumera grandes opor- tunidades perdidas pelo Comitê Nobel em constatar o melhor da criação humana a partir do Brasil: Euclides da Cunha, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, João Philip Roth, autor que anunciou sua aposentadoria há dois anos, está sempre na lista dos possíveis ganhadores do Nobel. 17 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Foto: Reprodução

premiação porque no ano que passara ele aceitara receber Fatores extraliterários uma condecoração do ditador chileno Augusto Pinochet. A influência de fatores extraliterários tende Uma vez perguntado sobre a situação de ser um eterno a pôr em xeque o prestígio do Nobel. Critica-se que cotado que não se confirmava, ironizou: “Eu sempre vou determinadas ideologias valham mais que o caráter ser o futuro Nobel. Deve ser uma tradição escandinava”. artístico. Como de valorizar autores que lutam contra a censura, denunciam estados autoritários, pertençam Jean-Paul Sartre — Recusou aceitar o prêmio. Não queria a grupos minoritários ou representem traços de ser “institucionalizado” e recebeu uma saraivada de multiculturalismo. Fator que teria, por exemplo, críticas. Publicou no Le Fígaro uma longa carta em que valorizado o francês Le Clézio frente a um ferrenho começa lamentando “vivamente que este assunto tenha individualista como Philip Roth e levado a manifestações tomado a aparência de um escândalo”. com a de Horace Engdahl. Entre essas passagens histórias, outras ideologias Acadêmico rebelde — A premiação da austríaca Elfriede foram dominantes, uma vez que o conservadorismo já Jelinek (2004) levou à “demissão” do acadêmico ignorou o brilho de nomes como Liev Tolstói e Émile Knut Ahnlund, que disse ser a premiação “um dano Zola. Uma tendência liberal mais à esquerda começou irreparável” para o prestígio do Nobel. Considerava a autora a aparecer nos Pós-Guerras. Dos anos 1970 em diante, “pobre”, “parasitária” e “unidirecional”. Morreu em 2012, apoiou dissidentes do comunismo e das repúblicas considerado o “acadêmico rebelde”. satélites da URSS: Alexander Soljenitsin (1970), Joseph Brodsky (1987) e Czeslaw Milosz (1980). Quase nepotismo — Em 1974, o favorecimento a Eyvind Johnson e Harry Martinson, conterrâneos e próximos dos As polêmicas do Nobel jurados, arranhou a imagem do Nobel. Vladimir Nabokov Liev Tolstói — O escritor russo faz parte da lista de era um dos favoritos do ano. omissões do Nobel, que ainda tem Marcel Proust, James Joyce, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Ezra Pound, Jorge de Lima — Admirador de Jorge de Lima, Arthur Virginia Woolf, Júlio Cortázar, Guimarães Rosa, Carlos Lundkvist convencera a Academia Nobel Sueca a eleger o Drummond de Andrade, Stephan Zweig, John Updike, poeta alagoano, autor de Invenção de Orfeu. Ao longo do Émile Zola, Henrik Ibsen e Paul Valéry. processo, os participantes descobriram que Lima morrera em 1952. A história quem conta é Antonio Olinto, em Jorge Luis Borges — Nunca foi premiado. Especula-se depoimento disponível na página da ABL. que, em 1977, houve um recuo diante da sua iminente

Haruki Murakami, autor de Minha querida Sputnik, que flerta com temáticas pop em sua prosa, está mais uma vez entre os possíveis ganhadores do Prêmio.

BOOKMAKER O norte-americano Philip Roth, boom), Áustria (Peter Handke), Irlanda Para se contatar as expectativas o tcheco Milan Kundera e o poeta sí- (William Trevor) e Austrália (Les Murray). geradas pelo Nobel, basta conferir a lis- rio Adonis concorrem em 16 para um, Em 10 de dezembro, provavel- ta do Prêmio na bolsa de apostas Lad- enquanto que o “azarão” Bob Dylan fica mente alguém da lista acima partici- brokes. Na véspera de ser anunciado o em 50 para um. As leituras de verão e a pará de um banquete em Estocolmo e novo Nobel, o chinês Mo Yan aparecera colheita de morangos silvestres podem discursará para personalidades de todo Ben-Hur Demeneck é jornalista e doutorando com chances de vencer em nove para um. ter levado os 18 membros da Akade- o mundo em trajes de gala. Será o dia em Ciências da Comunicação na ECA-USP. É autor Para 2014, as apostas são: de seis para um mien a cogitarem as mais diversas ori- de receber das mãos do Rei Carl Gustaf de PG de A a Z & outras crônicas (Todapalavra ao japonês Haruki Murakami; de 10 para gens e nomes: Romênia (Mircea Carta- XVI uma medalha, um diploma e um Editora). Vive em Ponta Grossa (PR). um para a argelina Assia Djebar; de 12 rescu), Coréia do Sul (Ko Un), Noruega documento confirmando o valor de 1,5 para um à bielorrussa Svetlana Aleksije- ( Jon Fosse), Somália (Nuruddin Farah), milhão de dólares referente ao prêmio. vitj e ao húngaro Péter Nádas; de 14 para Itália (Dacia Maraini), Quênia (Ngu- A questão é saber quando um brasileiro um à norte-americana Joyce Carol Oates. gi Wa Thiong’o), Holanda (Cees Noote- irá para a tribuna do Olimpo moderno.g 18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

POEMAS | LUIGI RICCIARDI

Going down

Você sabe que eu não posso beber cerveja Nas cervejas infinitas A esquecer que sou mortal E ouvir Elvis Presley No teu cu rosado E que virarei osso e depois pó do pó Fico feliz e triste ao mesmo tempo Vou sendo içado, erguido Apenas Dust in the Wind Entro nesse turbilhão que eu mesmo crio Excitado de pau duro para o mundo Tire daqui essa cerveja Viro a lamparina quando não temos energia De coração aberto para a loucura Antes que eu comece a compor Aquela neblina seca nos invernos sem aquecedor A demência é minha mãe agora Canções bregas com acordes fáceis Eu me sinto esculpido E de repente já estou na estratosfera Dó, Fá e sol maiores Pelas entranhas da terra Da terceira, quarta, quinta dimensão Com no máximo um mi menor Acabo acreditando que sou o futuro prêmio Nobel Com negras americanas Você é o meu demônio das onze horas Que suspendo a morte Fazendo coro a Hit the Road, Jack Que possui minha esperança tola Pelo menos por uns minutos Com solos de guitarra do Slash E brinca de papéis Creio ser um garoto de Liverpool Eu e meus pés descalços Venha deitar comigo e me dar uns tabefes No auge do experimentalismo Retocando as divisões etéreas das coisas Eu sou um bêbado gordo incorrigível Musical, literário, drogal Redefinindo as ordens e prioridades Leia as minhas mãos Fico doido pra beijar as dobrinhas Remetendo a tua bunda E diga que eu serei o gênio do século Da tua virilha, das tuas axilas Que é o segredo do universo Entre as tuas coxas brancas Oh, Love me tender, Love me sweet Entendo que a vida é muito mais vida assim Nas tuas estrias e celulites Assim eu tiro o mundo de dentro de mim Do que na sobriedade massacrante Cale-me a boca com um beijo cuspido Assim eu tenho um parto orgásmico Do que nas merdas que a gente se enrola E sente no meu cetro E fodo com os buracos negros Pra dizer que é alguém responsável e direito Que eu quero jorrar pelas sarjetas E o espaço sideral O mundo é uma matrix sem volta De Manhattan E entro pro lado negro da força E a arte é que me leva pra vida de verdade Que eu quero virar aquela poça suja De repente já quero uma benzedrina Que me livra dessa merda comezinha Pra entender enfim o que eu vim fazer aqui Abandono o Elvis e os Beatles E aí minha barba se alonga ao infinito Ou pelo menos pra inventar uma razão Quero ouvir um jazz bebop Aos confins da terra Tire a roupa e entre no lago Aquela batida mágica E se enrola em você, coisa doida Como num clipe do Aerosmith Tomando vodka barata Pra dizer que eu gosto de ouvir teu gemido E me dê carona para Marte Vinho barato pra dar um barato Em si bemol menor Porque lá o ar é rarefeito E já começo a falar de Nietzsche E a culpa de tudo isso é sua E se eu estiver parando E de todas as experiências possíveis Porque me engoliu quando não deveria Você me dá um beijo louco Que nossos cérebros podem registrar Porque me abriu os olhos E eu pulo fora E os conectomas que eu tenho Chupando meus dedos Venha logo Me fazem imaginar a vida dando cambalhotas Me obrigando a te lamber os pelos Que essa bebedeira precisa passar Nas estradas com a linha puramente branca A fumar teus grandes lábios Que logo eu quero dormir 19 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Admirável mundo novo

Esse início de noite ociosa, Seus pés, sua melancolia Uma liberdade vã Seu olhar furtivo Que logo se revela oca. Seu piercing A cabeça coça, incandescente Sua pele quase virgem Meus piolhos transitam Seu cabelo cor de conto de fada Do interno para o externo É claro que eu viro clichê Minha barba pega fogo Eu nem mesmo luto Meus intestinos gritam O sexo é o servir de copos, Meu nariz sangra Um olhar admirável Meus pés estão sujos de vergonha Desse mundo novo, escrito na mesa velha Meu corpo todo é uma intromissão De um bar esquecido. Na história do mundo Horas depois, Eu me sinto um aborto A tua saliva é meu remédio Um feto mal produzido Pra cura dos dias intoleráveis. Que procura alguma transcendência Você me cospe na boca o antídoto Poucas coisas fazem sentido Tirando-me do coma Bebida, literatura, mulheres, estrada Jogando-me à catarse. Ando meio desligado de todas elas Entreter-me em você é melhor do que Nas últimas semanas virei um autista Vinho importado, cachaça envelhecida, Longe de seu próprio mundo Dormir até as dez, mijar apressado. Perdido um escarcéu de luzes pontiagudas É tão bom quanto pegar carona, Tentando andar entre os carros Atravessar o país, derrubar um muro, Nas noites chuvosas da puta madre, Trepar na catedral, roubar um copo do bar, Da cidade invertida. A tua língua, portuguesa, alemã, brasileira, As garrafas de vinho e cerveja vazias Entende a existência dentro da minha boca Acumuladas em um canto do quarto A minha língua portuguesa, italiana, Algumas fotografias velhas Brasileira, francesa Delas todas salvas em alguma pasta. Só se faz nova na altura do teu pescoço. O mundo era um incômodo, E eu volto para meus poemas, minhas fotos A existência era ali insuportável. Minhas crenças, no fim de tudo. Mas de repente você me liga Para meu admirável mundo velho e novo Querendo partilhar uma inocente cerveja Com tua foto recortada no mural Ai você me vem inconcebível Do meu peito.

Luigi Ricciardi nasceu em Londrina (PR), em 1982. É formado em Letras e tem mestrado em Literatura na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atua como professor de literatura e francês. É idealizador do projeto “Mutirão Artístico” e da revista literária Pluriversos. É autor de dois livros de contos, Anacronismo moderno (2011) e Notícias do submundo (2014). O seu romance Aquilo que não cabe, ainda inédito, esteve entre os finalistas do Prêmio SESC de Literatura 2013/2014. Vive em Maringá (PR). 20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | lusos Nova onda lusitana

Apesar da presença da obra de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e José Saramago, desde a última década outros jovens autores que escrevem em língua portuguesa, de Portugal e de ex-colônias, conquistam cada vez mais espaço no mercado editorial brasileiro

Marcio renato dos santos

á pelo menos uma década que os Montaury Baptista Coutinho acredita leitores brasileiros começaram a en- que foi um aposta comercial de editoras contrar nas prateleiras e gôndolas interessadas em divulgar autores ainda Hde livrarias uma nova opção de títu- sem circulação entre os leitores brasi- los literários em língua portuguesa. Gon- leiros. “Mas também é possível afirmar çalo Tavares, José Eduardo Agualusa, José que houve incentivos oficiais portugue- Luís Peixoto, Jorge Reis-Sá, Ondjaki e ses, de setores responsáveis pela difu- Valter Hugo Mãe, entre outros, passa- são das culturas de língua portuguesa ram a ter seus livros publicados no Brasil. no mundo”, comenta Coutinho. Em comum, eles escrevem em português O escritor português Jorge Reis- e nasceram ou vivem em ex-colônias por- -Sá, autor de 20 títulos, alguns deles tuguesas ou em Portugal. publicados no Brasil, como o roman- O que teria motivado a presen- ce O dom, diz não conhecer suficien- ça desses autores, inclusive em even- temente o mercado editorial brasileiro tos literários, no Brasil? O professor para opinar, mas sabe que, há pelo me- da Pontifícia Universidade Católica do nos 10 anos, o Brasil se voltou para Por- Rio de Janeiro (PUC-Rio) Alexandre tugal. “Tenho a impressão de que isso 21 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

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Os livros do angolano José Eduardo Agualusa estão traduzidos em 25 idiomas, inclusive em língua inglesa. “Contam-se pelos dedos de uma única mão o número de escritores de língua portuguesa que é possível encontrar nas livrarias inglesas e americanas”, comemora o prosador. 22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | lusos

Ilustração: Lanlan Bessoni aconteceu devido a mudanças no Bra- sil, com o aumento da classe média, do que [por um genuíno interesse] na li- teratura portuguesa”, observa Reis-Sá. José Eduardo Agualusa, que é an- golano, analisa que o Brasil só há pou- cos anos começou a olhar para fora, para o mundo. “Parece-me que o Brasil tem vindo a descobrir essas literaturas com o deslumbramento de quem se reencon- tra a si mesmo”, diz Agualusa. Já o es- critor Helder Macedo, nascido na África do Sul e radicado em Londres, tem outro ponto de vista: “Na minha experiência, o Brasil dá mais atenção à literatura por- tuguesa do que Portugal dá à literatura Brasileira. Sobretudo nas universidades.” Apesar das várias e conflitan- tes opiniões a respeito do assunto, a presença desses autores que escrevem em língua portuguesa e de suas obras em território brasileiro é um fato. “Graças a Deus, há uma nova litera- tura que respira saúde e inspiração, produtividade e energia. E está para durar”, comemora Margarida Rebelo Pinto, autora de 19 livros, entre eles o romance Não há coincidência.

EM COMUM, A QUALIDADE “Hoje, alguns autores de lín- gua portuguesa não representam no- vidade para os leitores brasileiros. Há aqueles que já estão naquela fase de serem relidos”, afirma o professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Au- demaro Taranto, referindo-se, entre outros, à portuguesa Inês Pedrosa. Para comprovar o que diz, Taranto comenta que universidades brasi- leiras estudam o assunto há algum tempo. A PUC-Minas, por exemplo, criou em 1988 a área de Literaturas de Língua Portuguesa no programa de pós-graduação. 23 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Divulgação Helder Macedo e outros auto- literatura. O resto, temas e afins, são res observam que o interesse brasilei- parecidos porque vivemos no mesmo ro por escritores de língua portuguesa tempo. E o homem é sempre a sua cir- não é tão recente. José Saramago, antes cunstância”, afirma Jorge Reis-Sá. de receber o Prêmio Nobel de Litera- Margarida Rebelo Pinto analisa tura, em 1998, era lido e apreciado no que esses novos autores são, inquestio- Brasil. O português José Cardoso Pi- navelmente, todos diferentes entre si. res, o angolano Pepetela e o moçam- “O que os aproxima é serem homens e bicano também encontram é verdade que os homens escrevem de ressonância entre os brasileiros há mais forma diferente das mulheres”, garan- de uma década, além de Eça de Quei- te. Margarida comenta que o escritor roz, Fernando Pessoa e Camilo Caste- inglês Bruce Chatwin (1940-1989) lo Branco — autores de obras conheci- fazia a distinção entre o “escritor-tou- das no Brasil há várias gerações. peira”, aquele mergulha no seu mun- Mas, sem dúvida, pondera Au- do, e o “escritor-explorador”, o que re- demaro Taranto, da PUC-Minas, “há trata o mundo exterior. “Seguindo essa novas vozes”. Gonçalo Tavares, José linha de pensamento, Agualusa é mais Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, explorador, Peixoto e eu mais toupeira. Jorge Reis-Sá, Ondjaki e Valter Hugo Gonçalo é um caso à parte, porque sua Mãe, entre outros, representam uma obra é de uma originalidade de pensa- nova geração? “São autores muito di- mento notável. Mas ninguém fala tan- versos. A única coisa que eles têm em to de amor como eu. Acredito que, so- comum é a qualidade”, opina o próprio zinha, escrevo mais sobre o amor e os José Eduardo Agualusa. “Não sei se é afetos do que eles todos juntos”, afirma uma geração. É gente que vive da es- a escritora lusitana. crita. O que mais há de comum é uma O prosador português Afonso visão profissional da escrita. Ou seja, Cruz, autor de 15 livros, entre os quais mais sociologia da literatura do que o romance Para onde vão os guarda-chu-

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Autor de mais de 20 livros, Manuel Jorge Marmelo define O escritor português Afonso Cruz é um entusiasta desse a atual geração que escreve em língua portuguesa: “Os trânsito de autores de língua portuguesa nos vários países temas tratados são muito diferentes e variam até de livro onde se fala o mesmo idioma. “Não faz sentido que países para livro. Não sei se existe algum traço comum entre nós, que falam a mesma língua, não a partilhem através da Jorge Reis-Sá é autor de 20 títulos, incluindo prosa e poesia. O próximo livro, escrito em parceria com Henrique Cymerman, é provavelmente só o fato de escrevermos no mesmo idioma.” literatura”, comenta. sobre a viagem do Papa Francisco à Terra Santa. “Também quero trabalhar a não ficção, mas sempre com lirismo”, diz Reis-Sá. 24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | lusos

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vas, acredita que, entre os autores da ternacional e de Defesa do Estado nova prosa em língua portuguesa, há as (PIDE), a polícia política, que vai mesmas diferenças que se encontram permear as angustiadas reminiscên- em todos os indivíduos, em todas as cias da personagem”, comenta a es- gerações: “Uns preferem a razão à pecialista da UERJ. emoção, outros o trabalho da lingua- Em O teu rosto será o último, João gem ao enredo, outros o contrário. Ricardo Pedro — explica Maria Hele- Os temas também variam. Por vezes, na — desconstrói a ordem cronológica são perfeitamente cosmopolitas, ou- para compor também um quadro sofri- tras vezes locais, há de tudo, e essa do, de rostos marcados pela memória variedade torna tudo mais universal, perturbada de uma família, cujos tor- mais humano.” mentos incidem na formação do último descendente. Já em O retorno, de Dulce O PASSADO NO PRESENTE Maria Cardoso, são as lembranças ado- A professora de Literatura lescentes de um jovem que vão trazer Portuguesa da Universidade do Es- à tona as injustiças, os preconceitos e tado do Rio de Janeiro (UERJ) Ma- as rejeições daqueles que retornaram ria Helena Sansão Fontes acompa- à Portugal após as independências das nha sistematicamente a produção de ex-colônias portuguesas. jovens autores de língua portuguesa “Essa questão de autores jovens que não vivenciaram diretamente o que não viveram diretamente o período regime salazarista [1933-1974], por- do Estado Novo [outro nome do que nasceram pouco antes ou pou- regime salazarista], as guerras pela co depois da Revolução dos Cravos, libertação das colônias e a Revolução em 1974, mas receberam suas mar- dos Cravos, mas que desenvolvem esses cas, herdadas de pais, tios ou avós. conflitos em seus romances como se “São marcas da memória desses pa- os tivessem vivenciado, torna-os mais rentes que sobrevivem no imaginário instigantes para mim”, diz a estudiosa, e na criação das personagens, trazen- completando que a linguagem desses do-lhes o desassossego advindo dos autores, bastante diferentes entre si, fantasmas da opressão e dos estilha- reflete a problemática do romance pós- ços das guerras de um passado recen- moderno, “muitas vezes valendo-se do te”, afirma Maria Helena. resgate do passado, para a compreensão Para exemplificar o seu argu- do momento presente”. mento, a estudiosa da UERJ cita A máquina de fazer espanhóis, de Valter PARECIDOS, MAS DIFERENTES Hugo Mãe, O teu rosto será o último, O escritor português Manuel de João Ricardo Pedro e O retorno, de Jorge Marmelo, autor de 20 livros, tem Dulce Maria Cardoso. “Nos três ro- a impressão de que, até então, não exis- mances citados, o sentimento marca- tiu outra geração de autores que escre- do pela memória de um passado in- vem em língua portuguesa tão lida e cômodo se sobressai na linguagem traduzida quanto a atual. Jorge Reis- intimista e fragmentada das persona- -Sá tem obras publicadas na Itália e no gens. No caso de Valter Hugo Mãe, é Brasil. Alguns dos 19 títulos de Mar- a memória de um idoso, atormenta- garida Rebelo Pinto podem ser encon- do pela culpa de ter colaborado com trados, além de Portugal, na Espanha, Margarida Rebelo Pinto estreou em 1999 e, ainda em 2014, vai publicar o seu vigésimo livro. “No início, a crítica foi feroz, o regime opressor ao denunciar um Itália, França Holanda, Bélgica, Brasil e eu estava fazendo algo diferente. Mas, agora, conquistei o meu lugar”, afirma a autora. jovem perseguido pela Polícia In- na Alemanha. A ficção de José Eduardo 25 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Agualusa está traduzida em mais de 25 língua portuguesa no Brasil, em paí- idiomas, inclusive em língua inglesa, ses europeus e até nos Estados Uni- sonho de quase todo escritor — possi- dos, o professor da PUC-Rio Ale- velmente de qualquer idioma. xandre Montaury Baptista Coutinho “O mercado de língua inglesa é chama atenção para um fato: “É inú- Divulgação um dos mais fechados do mundo. Para til tentarmos forçar um sentido iden- você ter uma ideia, enquanto na maio- titário de comunidade lusófona”. O ria dos países europeus mais de meta- especialista afirma que, apesar de de da ficção publicada vem de outras um discurso de fraternidade, há línguas, nos Estados Unidos e no Rei- inúmeras diferenças, seja nas pos- no Unido esse número não ultrapas- turas políticas e estéticas dos auto- sa os dois por cento. Traduz-se pouco res. “Quando falamos, por exemplo, e prevalece uma grande desconfiança de literatura angolana, estamos nos em relação aos livros traduzidos”, co- referindo, na maior parte dos ca- menta Agualusa. Ele conseguiu fu- sos, àquelas obras e autores urba- rar esse bloqueio por ter conquistado nos, que escrevem em português. um prêmio literário relevante, o Pré- Ao mesmo tempo, estamos apagan- mio Independent — destinado à me- do os narradores que mantém tradi- lhor ficção traduzida no Reino Unido. ções orais ou que não utilizam o por- Agualusa valoriza a conquista: “Afinal, tuguês como idioma principal. Nessa contam-se pelos dedos de uma única perspectiva, embora seja possível re- mão o número de escritores de língua conhecer aproximações, é preciso não O fenômeno Gonçalo Tavares portuguesa que é possível encontrar perder de vista demarcações discursivas nas livrarias inglesas e americanas.” e diferenças estruturantes que vitali- O professor da PUC-Minas Audemaro Taranto afirma: “Gonçalo Tavares é a Apesar desse fluxo, a presença zam a existência dessas redes culturais”, demonstração de como a genialidade ganha reconhecimento imediato”. E o da obra de autores que escrevem em diz Coutinho. g estudioso mineiro não é o único entusiasta da ficção do escritor angolano. Gonçalo Tavares estreou em 2001, com O livro da dança, e desde então já escreveu mais de dez romances — obra, no momento, com 250 traduções em 30 idiomas. De acordo com a análise de Alexandre Montaury Baptista Coutinho, da PUC-Rio, a literatura de Tavares apresenta qualidades, inclusive o fato de não ser impregnada de questões nacionais. “Camões e Eça de Queirós, por É Portugal, mas parece o Brasil exemplo, se basearam, em momentos diferentes, em percepções específicas da singularidade portuguesa no espaço europeu. Já o Gonçalo Tavares é um Em Portugal, editorialmente, a situação não é das melhores. Os escritores, alguns escritor que pavimenta seus textos com questões que são humanas, pós- deles jornalistas, consultados pelo Cândido contam que duas editoras praticamente nacionais. Ele trabalha com questões políticas densas e relevantes”, diz dominam o país: a Porto Editora e a Leya. “Lê-se muito autor português. O que é Coutinho. O escritor nasceu em Luanda, Angola, em 1970 e, entre os seus ótimo”, empolga-se Jorge Reis-Sá, para em seguida lamentar: “Mas o espaço para romances, se destacam Jerusalém, vencedor do Prêmio José Saramago, em literatura é diminuto, com apenas um jornal quinzenal, uma revista trimestral e 2005, e Aprender a rezar na era da técnica, que conquistou o Prêmio de Melhor dois suplementos semanais.” Manuel Jorge Marmelo observa que, do outro lado do Livro Estrangeiro da França em 2010. g Oceano Atlântico, o jornalismo, de modo geral, passa por uma crise de identidade e o jornalismo cultural perdeu muito espaço. “Os dois jornais mais vendidos, bem como as televisões, quase ignoram a literatura, mas ainda há alguns cadernos culturais em jornais de referência, mas com pouca tiragem”, diz Marmelo. É Portugal, mas parece o Brasil. g 26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial lusos | ensaio

Veredas lusitanas A pesquisadora Jane Tutikian fala sobre o avanço da literatura lusófona no mercado editorial brasileiro e a absorção dessa produção pelo leitor nacional

Divulgação ão faz muito que falar em literatu- Ainda entre décadas de 1970 a ra de língua portuguesa publicada 1990, a Ática, numa heroica iniciativa, fora do Brasil significava falar em lançou a coleção “Autores Africanos”, Nliteratura produzida em Portugal, à época recebida por olhos marcados e não faz muito que falar em literatu- pelo exótico. Hoje, à luz de outro olhar, ra portuguesa no Brasil significava tão são obras preciosas e reveladoras. Para somente falar em Luís de Camões, Eça esta nova fase de descoberta da África, de Queirós e Fernando Pessoa. Uma sé- abriram caminho Pepetela e Mia Cou- rie de razões explicam — e elas passam to, dois dos maiores escritores da língua pela situação precária (ainda) do ensi- portuguesa. O primeiro situa-se entre no de literatura na escola básica, assim os autores que trazem consigo a sina da como pelo preço do livro estrangeiro, reescrita da história angolana, com a vi- para quem não percebeu, pagamos taxa são não apenas do ponto de vista do co- de importação, e pelo tempo, o longo lonizador, mas também das populações tempo de espera pelo livro comprado (e que viveram o processo. O segundo, pago) — e isso não tem nada a ver com por sua vez, um conciliador de um belo acordo ortográfico. projeto de moçambicanidade e a recria- Felizmente aconteceu o avanço ção estética da palavra. tecnológico e a revolução nas comuni- Outro escritor a abrir caminhos cações no final do século passado, que é o angolano José Eduardo Agualusa, colocaram o mundo próximo do mun- autor de alguns dos livros mais bem do e as editoras brasileiras se deram acabados das literaturas africanas, e, conta de um nicho fantástico (ainda para ficar na última década, falemos em descoberta, é verdade), as literatu- de O vendedor de passados (2004) e As ras de língua portuguesa. Felizmente mulheres de meu pai (2007), que revisi- nós tivemos a chance de acompanhar tam a africanidade através da memó- o interesse geral do final do século ria. Aliás, a contribuição de Agualusa Formado em medicina, com especialização em psiquiatria, Lobo Antunes pratica uma prosa considerada difícil, de linguagem XX, pelas então chamadas literaturas vai além, na medida em que, em 2006, elaborada. Mesmo assim, o autor se tornou um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos de sua geração, ao lado terceiro-mundistas. cria com Conceição Lopes e Fatima de José Saramago. 27 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

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Otero a editora brasileira Língua Geral, dedicada a autores de língua portuguesa. Ondjaki teve publicado um belo livro de contos, Os da minha rua (2012), pela LG. Esse livro vem na esteira de Bom dia camaradas, lançado aqui só em 2014 pela Companhia das Letras, onde, através do olhar da criança, apresenta a Angola socialista, independente, quan- do o menino-narrador conta seu dia- -a-dia. Este mesmo menino, o tema e a ambientação reaparecem nos contos de Os da minha rua, um álbum de foto- grafias que revela as gentes simples da rua Fernão Mendes Pinto. São narra- tivas curtas, que deixam a criança fa- lar de seu mundo e de suas descobertas, como no romance AvóDezanove e o se- Divulgação gredo do soviético (2009), que recebeu o prêmio Jabuti da CBL, onde as lacunas da História, as zonas do esquecimen- to, são ditas pelo olhar da criança. São obras permeadas pela poesia, pela de- licadeza, pelo humor, pela linguagem que combina a oralidade à arte narra- Inês Pedrosa, há anos publicada no Brasil, fez muito sucesso com o romance Fazes-me falta, de 2010. tiva. Em 2013, chega a vez do roman- ce Os transparentes, revelador de um es- depois, em 1960, em Lisboa, pela Casa Ainda de Angola, embora com Paulina Chiziane, primeira escri- critor mais maduro. O cenário é ainda a dos Estudantes do Império. O primei- uma proposta totalmente diferente, não tora e romancista moçambicana, apre- Luanda do pós-guerra, com sua econo- ro, com cinco contos, o segundo, com há como deixar de mencionar João Melo. senta um trabalho impressionante sobre mia informal, com a degradação social, dez. Entre os dois, em comum, o títu- Teve publicado no Brasil, pela Record a condição feminina. Em 2004, a Com- com o neo-patrimonialismo. A estória é lo, o conto “Companheiros” e a memó- (2006), Filhos da pátria. Trata-se de exce- panhia das Letras mostrou ao Brasil a de um homem transparente e do pré- ria. O primeiro foi apreendido e des- lente contista que usa as formas do cômi- Niketche — uma história da poligamia, dio onde vive. Aí, desfila uma interes- truído pela polícia fascista. O segundo co para questionar as “verdades absolutas” uma obra surpreendente em todos os sante galeria de tipos que trazem con- inaugura a verdadeira ficção angolana da vida angolana do pós-colonialismo, sentidos. Há humor, há lirismo, mas há, sigo a psicologia e o comportamento e é o que é publicado no Brasil. Há as sejam elas sociais, políticas ou mo- sobretudo, na sua prosa, um mergulho dos grupos que representam. Há liris- aventuras da infância e o jogo entre o rais, e também as “verdades literárias”, profundo na cultura tradicional de Mo- mo, mas há humor e até mais: sarcasmo. passado e o presente (anos 40/50). O na medida em que tem um narrador çambique e no papel que cabe à mulher Um dos ícones da literatura an- presente traz o musseque angolano. E que atravessa todos os contos e que numa sociedade poligâmica. golana, também publicado no Brasil, é a fronteira entre a cidade (branca) e o é absolutamente irreverente e crítico. Dos autores moçambicanos, é Luandino Vieira. E duas obras são an- musseque é o asfalto, emblema de to- Também no cômico, na linha da paró- preciso falar de Rio dos bons sinais (Lín- tológicas: o clássico Luuanda (2006), das as fronteiras sociais e raciais, que dia, a Gryphus publicou Quem me dera gua Geral, 2012) , de Nelson Saúte, com narrativas curtas e bem-humora- põem em evidência no seu subtexto o ser onda (2005), do excelente Manuel cujo cenário é a morte e o luto e cujo das, passadas nos musseques (favelas), discurso crítico elaborado com sensibi- Rui, compadre do nosso Martinho da tema são as relações humanas, o amor e que trazem a denúncia da colonização, lidade, inteligência e arte contra a bur- Vila. Ao contar a estória do porco cha- a amizade. Como diz o “nosso moçam- escrito ainda sob o regime de Salazar, guesia branca que ocupa Luanda e a mado Carnaval da Vitória, o escritor sa- bicano” Ruy Guerra, o livro é o encon- na Colônia do Tarrafal, e A cidade e a atuação da política racista do governo tiriza todo o contexto sócio-político do tro de outras gentes, de outras terras, infância (2007). O último foi publica- colonial. A linguagem que Luandino pós-independência. E isso sob a apa- outra maneira de juntar as mesmas pa- do em 1957, em Luanda, pela ABC, e traz para seus textos é a do musseque. rência de uma estória infantil. lavras, outro mar. Saúte usa uma forma 28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial lusos | ensaio Divulgação

De Moçambique, Mia Couto é autor de mais de trinta livros, entre prosa e poesia. Seu romance Terra sonâmbula é considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Recebeu uma série de prêmios literários e, em 2013, foi vencedor do Prêmio Camões, o mais prestigioso da língua portuguesa. simples, que diz muito da cultura afri- Cardoso. Os conflitos étnicos e políti- cana, de valores complexos, de senti- cos da ilha, que serviu como prisão, cer- mentos completos. cada por tubarões e piratas estão lá, mas Da Guiné Bissau, o nome publi- também está lá Catarina, que se dedi- cado pela Pallas, em 2006, é o de Abdu- ca à recuperação da fazenda Sacromon- Figura ilustre é Saramago, não apenas pelo lai Sila, autor do primeiro romance na- te enquanto aguarda a chegada do na- “ cional: A última tragédia, que inaugura vegador solitário. Estão lá a história e a Prêmio Nobel (1998), mas também porque ele a trilogia formada com Eterna paixão e cultura timorense com seus mitos. Com Mistida. A última tragédia conta a estória um estilo fortemente individuado, Car- reabre as portas e, com seu espírito polêmico de Ndani, a hospedeira de azar, denun- doso é o grande romancista do Timor e ciando por ela a relação de opressão es- um dos mais criativos — do ponto de e com sua lucidez crítica, é o primeiro escritor tabelecida pelo colonizador, na capital e vista do estilo — das literaturas de lín- no interior. É a narração da nação, como gua portuguesa. português a não aceitar ser traduzido’ para o disse Moema Augel. Há que se mencionar, também, os É ainda necessário falar, pela qua- escritores que trazem um novo fôlego português do Brasil.” lidade literária, de um escritor não afri- à já, sem dúvida, literatura europeia de cano, mas de um país que foi colônia ponta: a portuguesa, cuja figura ilustre é portuguesa e que, três dias após a inde- Saramago, não apenas pelo Prêmio No- pendência, foi tomado pela Indonésia, o bel (1998), mas também porque ele rea- Timor-Leste. Estou falando de Réquiem bre as portas e, com seu espírito polêmi- para o navegador solitário (2010), de Luís co e com sua lucidez crítica, é o primeiro 29 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

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escritor português a não aceitar ser “tra- de diferentes narradores — que mar- da narrativa e sua inquietação estética. silêncio é feito de liberdade, sua cons- duzido” para o português do Brasil. cam a complexidade da obra — em Em 2012, a Leya Brasil trouxe A noi- trução de uma aventura estética total, Superada a geração de abril, re- tempos diferentes, os Franciscos reve- te das mulheres cantoras, cujo pano de detonadora de percepções, compreen- vela-se Gonçalo Tavares, nascido em lam a história da família. Há um ci- fundo são os retornados, meio milhão sões e visões inesgotáveis e, nesse sen- Luanda. Temos publicados no Bra- clo que se repete entre nascimentos e de portugueses forçados a retornar a tido, as literaturas de língua portuguesa sil os livros da série “O Bairro” e da te- mortes, como os velhos pianos da ofi- Portugal depois da independência das (e a gente nem falou da brasileira) nada tralogia “O Reino”. Os habitantes do cina, de que outros serão construídos. colônias, deixando na África tudo o ficam a dever às melhores do mundo, bairro (dez narrativas curtas) são pes- É um livro que impressiona. que possuem, voltando para uma terra seja lá o que “melhores do mundo” sig- soas notórias como Valéry, Breton, Cal- Duas mulheres representam este que já não mais conhecem. No início nifique, mas isso já é outra estória.g vino, Swedenborg, Eliot… Se esses tex- sopro de renovação. Inês Pedrosa, que do livro, Lídia Jorge esclarece que ao tos são marcados pela ironia, pelo riso, fez muito sucesso no Brasil com o ro- contar-se a história de um grupo, con- no outro extremo está “O Reino”, de mance Fazes-me falta (2010), publica- ta-se a história de um povo. O grupo é que destaco Jerusalém (2006). Não há do pela Objetiva. O processo narrativo formado por quatro jovens que querem como sair o mesmo da sua leitura. A da obra é pautado pela originalidade, alcançar a fama com um conjunto de obra é estruturada como microcontos na medida em que é contado por duas mulheres cantoras. que tecem as histórias pessoais em di- vozes e uma delas é a do pai morto. É Por esses nomes e por outros, ferentes tempos — presente, passado e um romance humano, amparado pelos quando alguém põe em dúvida o futu- Jane Tutikian é professora na Universidade futuro — numa mescla de sofrimento, sentimentos de amor e de amizade, e ro da língua portuguesa, penso na sua Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora, horror, loucura, enfim, uma densa aná- de uma intensidade poética única. literatura. Minha resposta? Vai muito entre outros, dos livros Pessoas (contos, 1987), lise do funcionamento social, quando A outra mulher é a grande Lí- bem, obrigada! É que literatura é pon- Geração traída (novela, 1990) e Velha identidades no limite da sanidade. dia Jorge, com seu irretocável domínio te e revela mesmo quando esconde. Seu novas (ensaios, 2006). Vive em Porto Alegre (RS). Outro escritor que veio para re- novar a literatura portuguesa contem- porânea é Valter Hugo Mãe, português Reprodução Divulgação Divulgação nascido em Angola (leia entrevista na página 30). Mãe tem todos os seus ro- mances publicados entre nós. Foi, in- clusive, vencedor do Portugal Tele- com, um dos prêmios mais prestigiados do país, com A máquina de fazer espa- nhóis (2011). O enredo é aparentemen- te simples, se pensarmos que o ve- lho Silva, de 84 anos, perde a esposa, o grande amor da sua vida e é leva- do para um asilo, mas é mais do que isso — inclusive porque lá também vive o Esteves sem metafísica (“Ta- bacaria” — Álvaro de Campos) — é a história do humano, suas realidades, suas memórias, suas fantasias. Tudo num estilo singular e escrito em le- tras minúsculas. Ao lado desses dois jovens talentos, coloco um terceiro, José Luís Peixoto, com o seu Cemité- Luandino Vieira é o pseudônimo literário de José Vieira rio de Pianos, editado pela Record em Contemporâneo de Machado de Assis, Eça de Queirós foi Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977. Seus livros Mateus da Graça. O escritor nasceu em Portugal, em 1935, 2008. Com uma estrutura inovadora, durante muitas décadas um fenômeno literário no Brasil. Bom dia camaradas e Os da minha rua tratam da mas emigrou com os pais para Angola em 1938. A luta o romance se passa durante uma ma- O autor de O primo Basílio, ainda hoje é um dos escritores Angola que acabou de se tornar independente e é contra a dominação portuguesa custou-lhe mais de uma ratona e tem como inspiração o atleta mais conhecidos de Portugal, junto com os poetas Luís de obrigada a repensar as regras sociais e a questionar década na prisão, onde escreveu boa parte de sua obra. Em português Francisco Lázaro. Através Camões e Fernando Pessoa. as causas da desigualdade. 2006, recusou o Prêmio Camões. 30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial lusos | ENTREVISTA

Foto: Lina Faria “O cidadão mais comum é sempre o herói”

Valter Hugo Mãe, escritor angolano radicado em Portugal, fala sobre seus projetos literários, visão de mundo e a recepção de sua obra no Brasil e na Europa

tHIAGO lAVADO

esde que Valter Hugo Mãe este- (2010), o apocalipse dos trabalhadores (2008), ve no Brasil pela primeira vez, na o remorso de Baltazar Serapião (2006) e o nosso Festa Literária Internacional de reino (2004), todos publicados em no Brasil. DParaty (Flip), em 2011, tornou-se uma espécie de celebridade literária do Depois da Flip de 2011, o senhor país. Um fenômeno interessante em um foi muito bem recebido pelo público país de poucos leitores. Na ocasião, o au- no Brasil e conquistou muitos leito- tor conquistou o público brasileiro com res aqui. Mas como é a recepção da sua elogios ao país e a vários escritores locais. obra no restante da Europa e nos outros Três anos depois, o fenômeno Mãe pare- países de língua portuguesa? ce consolidado. Em agosto, ele esteve em Sou muito lido em vários países e Curitiba para a 2ª edição do festival Li- fui muito bem recebido em diversos lu- tercultura e mobilizou a cidade e grande gares. Em alguns melhor que em outros. número de leitores, que lotaram sua pales- A França, por exemplo, recebe-me mui- tra. Com o Cândido, falou sobre a recep- to bem, a Alemanha também. A Croácia, ção de sua obra romanesca, composta por que é um país que eu não conhecia, tem A desumanização (2013), O filho de mil ho- recebido muitíssimo bem os meus livros. mens (2011), a máquina de fazer espanhóis Curiosamente, a Espanha é um país em 31 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

que minha obra não teve uma recepção português colonizou-se aos antepassados país é muito perceptível hoje e ainda seja muita todos os dias. Fazer com que muito boa. A crítica excepcionalmente dos brasileiros de hoje. São aqueles que percebemos no Brasil algumas dificul- ela seja um componente, mas que não bem, mas o público não lê e não vendo escolheram num determinado momento dades que vão levar muitos anos para se sobreponha nunca à esperança de se nada na Espanha, que é ali tão ao lado. fazer parte desta mistura. É muito inte- serem ultrapassadas. Mas há aí uma estar melhor. Mas a Espanha não quer saber muito ressante perceber as coisas a partir des- gloriosa expectativa: o Brasil levan- dos portugueses: somos vizinhos e deve se nome, porque, de fato, o Silva é isso: tou-se e tem estado a se tornar uma Em outras entrevistas, o senhor ser isso. Não faço ideia. Publiquei lá a é uma coisa que chega e que se alastra, potência a nível mundial. Espero que mencionou que, a exemplo de Halla, máquina de fazer espanhóis e achei que se adapta às condições do lugar, como os brasileiros consigam não só respi- uma de suas personagens, tinha ex- haveria um interesse muito grande para se fosse endêmica. É uma estrutura or- rar, depois de tanta dificuldade, como perimentado a perda de um irmão, de saber o que é uma máquina de fazer es- gânica que imediatamente adquire ca- criar estruturas. É muito importante maneira distinta, antes de o senhor panhóis. Não houve interesse nenhum, o racterísticas endêmicas, por isso é um que esse levantamento não seja ilusó- nascer. Qual é a parcela de autobio- livro foi um fracasso lá. Fiquei bem puto nome muito simbólico. Eu gosto — aliás, rio e que a benesse que ele traz não grafia que seus livros têm? com os espanhóis por causa disso. A li- creio que é um dos melhores elogios que seja desperdiçada, mas canalizada jus- Tem sempre alguma coisa. Na teratura também é uma coisa lenta, leva se pode fazer a Portugal — de apontar o tamente para a estruturação. maior parte das vezes tem algo que eu tempo. Não lemos um livro com a ra- Brasil como um país cobiçado pelos por- não planejei entregar ao livro, mas que pidez que ouvimos uma canção ou ve- tugueses. É claro que sabemos que o Bra- Seus personagens são tomados ele roubou, quis tomar de mim. Tem mos um filme. A literatura é um inves- sil estava cheio de povos indígenas, mas, por um sentimento de angústia e so- que ter coragem para abordar certos te- timento demorado. A vida do escritor como unidade, este território foi cobiça- lidão, mas, apesar disso, eles têm uma mas, porque por vezes abordamos te- vai ser sempre pautada por essas espe- do pelos portugueses. Deve ter sido a úni- amplitude amorosa muito grande, seja mas que nos magoam, que nos fazem ras e às vezes não adianta nem esperar: ca coisa que os portugueses fizeram e tem por uma irmã, por uma esposa. Isso lembrar coisas que talvez quiséssemos não vai acontecer. Vai ter que aceitar propensão a dar verdadeiramente certo. também faz parte do autor? esquecer ou que temos guardadas para assim mesmo. Eu sou uma pessoa cheia de an- instantes muito íntimos. E a literatura Ainda falando sobe a máquina de gústias, feita de muitas tristezas. Creio é toda ela uma forma de remexer nos Em a máquina de fazer espanhóis, fazer espanhóis, o Senhor Silva acorda, que a vida é terrível para toda a gente, e sentimentos e nas memórias. Em A de- o personagem principal se chama An- um dia, diante da ditadura portuguesa. que nós construímos uma esperança de sumanização acontece esse episódio. tônio Silva e representa o cidadão co- Aqui no Brasil nós também temos um felicidade em cima de um ponto de par- Em determinada altura, eu não queria mum português. Aqui no Brasil temos histórico de ditadura recente e que ain- tida aterrador, porque, desde logo, tudo ter comentado ou pensado esse episó- muitos Silvas também. A partir do co- da está muito presente na vida de todos que construímos, fazemos sabendo de dio, mas foi impossível deixar de per- nhecimento que o senhor tem do Bra- os brasileiros. Como esse assunto é tra- antemão que vamos morrer e por isso ceber a coincidência do que aconteceu sil, há semelhanças entre o “Silva” bra- tado na literatura portuguesa? tudo é efémero. Depois, porque não sa- com Halla e o que aconteceu comigo. sileiro e o português? Sou absolutamente contra os to- bemos quando vamos morrer ou quando Mas isso também torna o livro mais va- Efetivamente, o Brasil parece um talitarismos, seja à esquerda ou à di- vamos perder nossas faculdades, então a lioso, digamos assim. Não usa só o que lugar de gente que vem direto da terra, de reita. Todas as ditaduras estão sem- efemeridade das coisas pode ser ainda imaginamos, mas aquilo que já temos gente que brota, que se mescla. Hoje em pre erradas, pecam exatamente por maior do que esperamos. E depois ain- como certo, o que dá certa segurança. dia o brasileiro é essa mistura que acaba esse princípio de que um só indiví- da, porque mesmo quando estamos no Escrever sobre o que sabemos é tam- por ser ao mesmo tempo um retrato do duo pensa por todos. Tudo que agrida tempo mais capaz de nossa vida, há coi- bém uma maneira de se ajudar. Embo- mundo. Mas é um retrato que só pode- a democracia, para mim está errado. sas que falham ao nosso redor: as pessoas ra a literatura seja toda ela uma forma ria acontecer aqui, que acaba se misturan- Ainda que a democracia possa ser de- que perdemos, as dificuldades, a existên- de ir ao encontro daquilo que não sa- do com o cacau, com a mandioca e creme ficiente. Eu diria que daquilo que co- cia, as dúvidas, de todo mundo que não bemos: escrevemos livros porque que- de milho, que eu adoro, com guaraná. Mas nheço da ditadura brasileira, no fun- acredita em nós. Por isso, eu estou con- remos descobrir alguma coisa, não pro- há coisas que se prendem, como essa es- do, ainda é uma memória mais grave vencido de que o cidadão mais comum é priamente porque já saibamos. Os livros pécie de proliferação do Silva e que tem do que a portuguesa. Foi nojenta, mas sempre o herói. A resistência para o coti- são uma mistura do que foi, do que não uma dimensão muito portuguesa no Bra- ainda assim amena, comparada ao que diano já é uma forma de heroísmo. E eu foi e muitas vezes do que passa a ser. O sil. Esses são os Silvas portugueses que aconteceu no Brasil. Por isso tenho não sou exceção a isso: minha vida não é livro é uma experiência tão profunda na vieram pra cá e aqui ficaram. Quando o muito respeito por essa memória, que tão maravilhosa que me poupe a todas as vida do escritor que passa a ser um dis- brasileiro diz que o português foi o colo- ainda é muito recente, e pelos efei- tristezas. Agora o que eu procuro fazer, curso que tinge todo aquele tempo em nizador, na verdade o que está dizendo é tos dessa ditadura. O descalabro eco- e também nos meus livros isso aparece, que foi escrito. Ele acaba sendo sempre que eles foram os seus colonizadores. O nômico em que a ditadura deixou o é dosar a tristeza. Fazer com que ela não uma forma de autobiografia.g 32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná romance | manoel jorge marmelo

Ilustração: Lanlan Bessoni 33 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido Justina mais difícil de tudo é saber por Deixa-me ir que se faz tarde para Curioso como era, bem depressa passou terra com o pau que usava como cajado onde encetar a desembaraçada ir pensar a Bonita. a reparar também nos encantos de ou- e para se defender de algum improvável história do nosso indecoroso tri- Ela espera, que remédio. Não tras mulheres, avaliando-as como podia meliante, e declarou com a solenidade O savô, tantos e tão pícaros são os tem quereres. e pondo-se a imaginar que mistérios e possível a um fedelho de quinze anos: episódios que compõem a difusa lenda Desafiador, Alberto deitou-lhe a delícias ocultavam sob as roupas simples Gosto de cricas e não nego. dele. Como em outras situações seme- mão à forragem, espalhando-a na ter- e, às vezes, sujas. Olhava-as e media-as Quem não gosta que ponha na beira do lhantes, o mais indicado será, também ra semeada de feijão. Ela empurrou-o com a fineza de um milhafre voando em prato. Mais fica. neste caso, que se comece pelo princí- com malícia, pondo-lhe a mão no pei- círculos por cima da presa, rondando E foi quanto bastou para que, pe- pio: não no dia em que Alberto, ainda to. Ele segurou-lhe no braço e puxou- antes do voo picado e rapace, implacá- los anos vindouros, aquele viesse a ser o mal saído das entranhas de Setembri- -a para si. Num instante estavam enlea- vel. Uma após outra, várias moças e da- seu distintivo. Usava-o com certa vaida- na, a nossa tetravó, viu a luz da Aço- dos e derrubados sobre a cama de talos mas sucumbiram à amorosa rapina de de e orgulho, e, fosse como fosse, nun- reira filtrando-se entre as vides, mas na de milho — ele por cima dela, olfatan- Alberto, entregando-se-lhe afogueadas ca se cansou de gostar da pardaleca. Era exacta tarde em que se inaugurou o pri- do-se como bichos e tirando com atra- e seduzidas pelo sorriso desafiador e bo- um apelido que lhe ia a matar. meiro fascículo das suas movimentadas palhação as roupas que lhes tolhiam os nito que o Cricas devia ter, e pelas pala- No dia em que fez dezasseis, o aventuras sexuais. A rapariga chamava- ímpetos. Naquilo em que a técnica os vras que há-de ter aprendido a sussurrar, irmão de uma moça a quem tinha fei- -se Justina e nenhum dos dois há-de ter não favorecia, valeu-lhes a natureza, que certeiras e definitivas como fisgadas de to mal apanhou-o sozinho e agarrou-o podido gabar-se de terem feito coisa é a maior das mestras: pelo que no cor- um cupido rústico. pelo gorgomilo. Ameaçou-o e disse-lhe boa, tão ineptos eram ambos nos aspec- po lhes latejava foram capazes de en- Ainda não tinha dezasseis anos que havia de arrepender-se de andar tos práticos da fornicação. contrar-se, sôfregos ambos, e desajeita- e já o nosso trisavô contava um nú- a bulir com quem não devia, fazendo Alberto ainda não tinha nenhu- dos. E depois voltaram cada qual à sua mero significativo de triunfos amoro- menção de lhe aviar um sopapo. Alberto ma alcunha nesse dia, nem foi então que vida pelo rumo que traziam antes, cora- sos, dos quais se gabava quanto podia, esquivou-se, acertou um biqueiro na ca- a ganhou. Devia ter, eu sei lá, os seus dos e sorrindo como parece que aconte- contando-os nos ajuntamentos de rapa- nela do outro e, tendo ganho distância, treze ou catorze anos e andava a vadiar ce desde que o mundo é mundo, mesmo zes no adro da capela ou quando iam a atirou uma paulada na cachola do de- pelas quelhas, de fisga em punho e sem entre os bichos que não são capazes de pé para a feira, provocando-se e guer- sonrado, deixando-o prostrado no chão. nada em que se ocupasse, quando viu rir. Riem-se para dentro e, se calhar, é o reando como lobos juvenis. Fascinava- Só me arrependo das cricas que que a filha do moleiro vinha pelo carrei- melhor que fazem. -os com a descrição pormenorizada das não conheço, disse. A da tua irmã é bem ro na sua direcção. Era Primavera, os es- Daquele dia em diante, Justina e suas torpezas e com a certeza das suas boa, mas não lha escangalhei nem nada. torninhos piavam no ar e as bordas dos Alberto foram, por assim dizer, uma es- sentenças, garantindo que as mulheres E deitou a correr pelo caminho, lameiros estavam carregadas de florzi- pécie de namorados. Não passeavam de se queriam assim ou assado: que as mais não fosse o outro refazer-se da pancada nhas de cores festivas. A moça era o seu mãos dadas nem tinham muito que di- roliças eram de estalo por terem mais e ter ainda disposição para tirar teimas. g quê mais espigada do que ele, já quase zer um ao outro, mas inventavam ocasi- que apertar, que as magrinhas como uma mulher, e vinha descalça com um ões em que pudessem esbarrar-se pelos gravetos se revelavam surpreendente- braçado de folhas de milho para ir dei- caminhos, aprendendo gestos que antes mente habilidosas, mas, em todo o caso, tar às vacas. Detiveram-se um diante do não conheciam nem sabiam que pudes- que não havia nada como uma crica outro, olhando-se e medindo-se, sem sem existir. Ir buscar água à bica, reco- pentelhudinha, como a da Farinhota da Manoel Jorge Marmelo é autor, entre outros, saberem bem que a turbação que esta- lher o gado, apanhar milho ou batatas Copada — e por aí adiante. Tanto pre- do livro de contos Oito cidade e uma carta de amor vam sentindo não era outra coisa senão — tudo se tornou pretexto para se en- sumia de já ter empernado com esta e (2003), e dos romance As mulheres deviam vir com livro a vontade de praticar um no outro aqui- contrarem e voltarem a sentir a urgência com aquela que, certo dia, um dos rapa- de instruções (2005) e Uma mentira mil vezes repetida lo que os porcos fazem às porcas. Justi- da primeira vez. E bem depressa o nosso zes lhe chamou Cricas, mais por inveja (2011). O texto publicado pelo Cândido é parte do romance na, ainda assim, deu um passo à direi- trisavô se deixou afeiçoar pela adoração do que como elogio, e se calhar já farto inédito A roda do mundo. Marmelo foi jornalista por 23 anos ta para se desviar do caminho do rapaz, de tudo o que compõe o corpo da mu- de tanta bazófia e gabarolice. O nosso e mora no Porto, em Portugal. mas ele imitou-a como a imagem de um lher, os seus líquidos e os seus cheiros, a trisavô, porém, não desgostou daquilo. espelho e cortou-lhe a fuga. macieza das coxas e o volume dos seios. Arrimou-se a um muro esgravatando a 34 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná livro e leitura | semana literária sesc

“Ler é resistir” é tema da 33ª Semana Literária Sesc

Divulgação Parceira no evento, Biblioteca Pública do Paraná promove bate-papo com autores infantojuvenis

Thiago Lavado

om homenagens às obras de Ru- bem Fonseca e Domingos Pelle- grini (Patrono da edição), a 33ª Cedição da Semana Literária Sesc terá inicio no próximo dia 15 setembro. Paralelamente acontece também a 12ª Feira do Livro da UFPR. Uma tenda montada na praça Santos Andrade, no centro de Curitiba, será palco das ativi- dades do evento, que segue até o dia 20. A Semana também acontece em mais 20 cidades do interior, na mesma data. O tema da Semana este ano é “Ler é resistir”, numa referência à questão de como Autora de Quenga de plástico, Juliana Frank percorre várias cidades do interior do Paraná, como União da Vitória, para falar de sua literatura e do tema “A violência por escrito”. a ficção aborda a temática da violência, daí a 35 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução

Confira alguns destaques da programação

Curitiba Oficina — A linguagem do jornalismo cultural, com Álvaro Costa e Silva (o Marechal) Dias: 16, 17, 18 e 19 de setembro Horário: 9h

Mesa Redonda — Literatura contra a ditadura, com Bernardo Kucinski e Ivan Angelo Dia: 16 de setembro Horário: 19h30

Londrina Palestra - Uma reflexão sobre a educação, formação do leitor e a desmistificação do politicamente correto, com Ilan Brenman Dia: 15 de setembro Horário: 19h30

“Ler é Resistir”: A partir da literatura de Rubem Fonseca, a 33ª edição da Semana Literária Sesc debate a violência a ficção nacional.

lembrança de Rubem Fonseca, que sempre voltados para o público infantojuvenil, mais de 30 estandes de expositores, a violência e a literatura. Caetano Galindo trabalhou com o tema em sua ficção. entre 7 e 11 anos. As autoras vão con- como Livraria do Chain, Arte & Le- e Juliana Frank debatem em Guarapuava, A conferência de abertura fica- versar com os pequenos leitores em três tra. As editoras Cosac Naify, Unicamp, Ponta Grossa, União da Vitória e Para- rá a cargo do jornalista e escritor Zue- horários: às 14h, às 15h e às 15h30. Unesp e UFSC também participam. naguá. O mesmo tema será debatido por nir Ventura, autor de livros-reportagem Outros nomes confirmados na Segundo a organização da Semana Miguel Sanches Neto e Marcos Peres em (1968 — O ano que não terminou) e do programação são também os do chileno Literária, cerca de 30 mil pessoas passa- Pato Branco, Palmas e Francisco Beltrão. romance Sagrada família. Na programa- Hérnan Neira, Angélica Freitas, Rafael ram pela evento em 2013. Este ano, a esti- Já as cidades de Apucarana, Londrina, ção, estão previstos bate-papos com Ber- Sica, Deonísio da Silva, Antonio Geral- mativa é que o número aumente em 10%. Jacarezinho, Cornélio Procópio e Santo nardo Kucinski, Ivan Angelo e Marcelo do Figueiredo, João Paulo Cueca, Sér- Antônio da Platina recebem os escrito- Yuka. Domingos Pellegrini, patrono da gio Rodrigues, Cleo Busatto e Rogé- No interior res Carlos Henrique Schroeder e Mário edição, participa de uma conversa com rio Pereira. Também haverá oficinas de O evento também conta com uma Araújo. Raphael Montes e Simone Cam- adolescentes no primeiro dia de evento. “Biografia”, com Josélia Aguiar, e “Jor- ampla programação voltada outras 20 ci- pos estarão em Cascavel, Toledo e Ma- Nos dias 16 e 17, a Biblioteca nalismo Cultural”, com Alvaro Costa e dades do interior. Em 18 municípios rechal Cândido Rondon. A programação Pública do Paraná promove bate-papos Silva (o Marechal). acontece a mesa-redonda temática “A vio- completa pode ser acessada no endereço com as escritoras Índigo e Priscila Prado, A Semana Literária contará com lência por escrito”, debatendo com leitores sescpr.com.br/semanaliteraria. g 36 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENSAIO | MARIANA ZARPELLON

CLIQUEMES CURITI BA 37 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Natural de Irati (PR), Mariana Zarpellon desenvolve projetos autorais e de fotografia documental desde 2007. Suas fotos foram publicadas em revistas, jornais e portais da internet, do Brasil e do exterior, tais como The Guardian, Rolling Stone, Le Monde, Libération, Billboard, Helena e VEJA, entre outros. A série publicada nesta edição do Cândido foi montada partindo de arquivos de filmes dos anos 2008 e 2009. g 38 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná romance | jorge reis-sá

Domingo, 9

Encontrei o senhor Fidélio quan- nal aos doentes mas mais interessados do saía da garagem, fim da tarde — no futebol — da Susana continuamente como está a sua mulher, perguntou. Ele parada, a cilindro azul e o barulho repe- tinha descido ao quintal das traseiras tido da sua respiração, vindo eu da vida para dar de comer aos pombos que ocu- que me escolheram sem uma pergunta pam há cinquenta anos o mesmo espa- — Francisco, importar-se de ficar viú- ço. O que começou por uma reunião vo? Dava jeito. amiga entre ele e o senhor Artur, pom- Sem uma possibilidade de acei- bos e pombos no quintal deste, e pas- tação, sequer, vindo eu o velho Fidélio sou por provas profissionais e prémios e perguntou está melhor. medalhas, é agora um velho a cuidar dos Ainda nestes dias não tinha cho- bichos tão parados. Quando os avós da rado, já se contam quatro. A minha mu- Susana se separaram e o senhor Artur lher vai morrer, assim se desligue a má- acabou por partir para parte incerta, a quina que a respira. O meu filho vai ficar dona Carlota condescendeu a que man- órfão, o meu outro filho sequer vai nas- tivesse o espaço — mesmo que os pom- cer, o mais certo. E eu sóbrio e inflexí- bos tenham perdido a alma nesses dias. vel, a não querer entender. Mas a pergun- Contra todas as expectativas, o agora ta do senhor Fidélio foi a mais forte dor velho Fidélio manteve a rotina do amor no coração — a Susana dizia sempre boa oferecido a cada bicho, criou uns, mor- noite senhor Fidélio, e as pombas, bem?, reram outros, comprou tantos. E, num sacudindo o resto das migalhas para os acaso da noite, vindo eu do hospital, do pardais no andar de cima. Abracei-o. Fra- barulho dos rádios nas enfermarias jun- quejaram-me as pernas. Chorei por qua- to ao quarto — os homens a acompa- tro dias, Susana — quem vai agora per- nharem as esposas para a visita sema- guntar pelas pombas ao velho Fidélio? g 39 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Ilustração: André Caliman

Jorge Reis-Sá nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal, em 1977. Licenciado em Biologia, fundou em 1999 as Quasi Edições, que editou até 2009. Foi, entre 2010 e2013, editor na Babel. É consultor editorial. Como escritor, publicou vários livros de poesia, ficção e não- ficção, entre os quais Instituto de antropologia — todos os poemas (Glaciar, 2013), o romance Todos os dias (2006) e, com Henrique Cymerman, Francisco, de Roma a Jerusalém (2014), crônica da viagem do Papa Francisco à Terra Santa. O fragmento que o Cândido publica com exclusividade, em primeira mão, faz parte de um romance inédito que o autor deve publicar em 2015. Vive em Lisboa. 40 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná REtrato de um artista | José saramago Ilustração: Leo Gibran

José Saramago nasceu em Azinhaga, Portugal, em uma família de camponeses no ano de 1922. O escritor tinha três anos quan- do um golpe militar instituiu o regime fas- cista de Antônio Salazar, que governou o país durante os 48 anos seguintes. Sa- ramago teve vários empregos ao longo da vida, mas destacou-se como jornalista dos periódicos Diário de Notícias e Diário de Lis- boa. A partir de 1976 passou a viver exclusi- vamente do seu trabalho lite- rário, primeiro como tradutor, depois como autor. Seu primei- ro romance, Terra do pecado, foi publicado em 1947. O reconhe- cimento internacional, no entan- to, só viria com o satírico Memo- rial do convento, de 1982. As obras de Saramago são alegóricas e fantás- ticas, flertando com o realismo mágico consagrado por autores sul-americanos. Seu livro O evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991, foi recebido com indignação, cen- surado pelo governo português e excluído do concurso literário da Comunidade Euro- peia. Em resposta, Saramago e sua segunda esposa, a espanhola Pilar del Río, jornalista e tradutora de suas obras, exilaram-se simboli- camente em Lanzarote, nas ilhas Canárias. Sa- ramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e faleceu em 18 de junho de 2010. g

Léo Gibran é ilustrador freelancer e vive em São Paulo (SP).