UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ODAIR VEDOVATO JÚNIOR

KARAJÁ E : PARENTESCO MACRO-JÊ OU CONTATO LINGUÍSTICO?

CAMPINAS 2020

ODAIR VEDOVATO JÚNIOR

KARAJÁ E XAVANTE: PARENTESCO MACRO-JÊ OU CONTATO LINGUÍSTICO?

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof.Dr. Wilmar da Rocha D´Angelis

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno Odair Vedovato Júnior e orientada pelo Prof. Dr. Wilmar da Rocha

D´Angelis

CAMPINAS 2020

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Vedovato, Odair Júnior, 1977-

V515k Karajá e Xavante : parentesco Macro-Jê ou contato linguístico? / Odair Vedovato Júnior. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

Orientador: Wilmar da Rocha D´Angelis.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1.Língua karajá. 2. Língua Xavante. 3. Tronco linguístico macro-Jê. 4. Contato Linguístico. I. D´Angelis, Wilmar da Rocha. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Karajá and Xavante : Macro-Jê origins or language contact? Palavras-chave em inglês: Carajá language Xavante language Linguistic trunk macro-jê Languages in contact Área de concentração: Linguística Titulação: Mestre em Linguística Banca examinadora: Wilmar da Rocha D´Angelis [Orientador] Emílio Gozze Pagotto Mônica Veloso Borges Data de defesa: 24-06-2020 Programa de Pós-Graduação: Linguística

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-5363-4512 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/119735049782838

BANCA EXAMINADORA:

Wilmar da Rocha D’ Angelis

Emilio Gozze Pagotto

Monica Veloso Borges

IEL/UNICAMP 2020

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Leila e aos meus três filhos, Fiona, Cléo e Santiago, por estarem sempre comigo. E aos meus irmãos, Hugo e Vitor, por nossa amizade.

Ao Prof. Wilmar, agradeço muito pela paciência e orientação inigualáveis. A oportunidade de trabalhar ao lado de um professor tão dedicado e um ser humano tão íntegro é realmente especial.

Agradeço muito à Juracilda Veiga, por seus conselhos, sua paciência e carinho.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento-001. Agradeço à CAPES, pela bolsa concedida durante todos esses meses e seu compromisso com a pesquisa no Brasil. Agradeço aos professores e aos funcionários do IEL. Agradeço, em especial, aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação, por sua gentileza e eficiência. Agradeço à colega Beatriz Furlan Toledo por tudo que compartilhamos durante o mestrado e por sua disposição em me ajudar, sempre. E também à colega Juliana Santos, que me ajudou durante toda essa pesquisa com conselhos, dados e motivação.

Ao Prof. Emílio Gozze Pagotto, por participar da minha qualificação e também da defesa, além de ter sido um professor que, durante as aulas da graduação, me proporcionou momentos de inspiração para minha jornada acadêmica. Ao Prof. Cláudio André Cavalcanti Couto, por sua atenciosa participação na banca de qualificação e aos professores Angel Corbera Mori (sempre uma presença importante em minha vida acadêmica) e Carolina Coelho Aragon, por aceitarem participar da banca de defesa como suplentes. À Professora Mônica Veloso Borges, agradeço por participar da banca de defesa como titular e por seus textos, através dos quais aprendi muito.

A todos aqui citados e aos amigos que conheci durante a graduação e o mestrado, agradeço imensamente.

RESUMO

Na língua Xavante, um fato se faz notar em relação a outras línguas Jê, especialmente o Xerente, língua irmã do Xavante: onde essas línguas apresentam uma oclusiva velar desvozeada, o Xavante apresenta, em seu lugar, uma oclusiva glotal. Na língua dos seus vizinhos Karajá, uma oclusiva velar desvozeada ocorre na fala feminina, mas não na fala masculina. O Xavante é a única das línguas Jê que não apresenta uma oclusiva velar e o Karajá é a única das línguas Macro-Jê que apresenta marcada diferença entre fala masculina e feminina. Essa particular semelhança poderia ser interpretada, inicialmente, como mero resultado das histórias independentes de cada uma dessas línguas. No entanto, informações históricas sobre migrações dos Xavante atravessando território Karajá no fim do século XVIII permitem que se considere o contato linguístico como possível responsável por essa característica comum. É nessa direção que o presente trabalho se orienta. Como desdobramento dessa análise, pode-se colocar em discussão também, se certas outras características apontadas como de origem genética comum entre o Karajá e outras línguas Macro-Jê, usadas como comprovação do pertencimento da língua Karajá a esse tronco, também não seriam resultado de contato ao invés de origem genética.

Palavras-chave: Xavante, Karajá, Macro-Jê, Contato Linguístico, Dialetos de Gênero.

ABSTRACT

In the Xavante language, an interesting fact can be noted in relation to other Jê languages, especially Xerente, Xavante´s sister language: where those languages present a voiceless velar stop, Xavante has, instead, a . In the language of their neighbors, the Karajá people, a voiceless velar stop happens in female speech, but not in the male speech. Xavante is the only Jê language which does not have a velar stop and Karajá is the only language in the Macro-Jê stock presenting a marked difference between male and female speech. This particular similarity could be interpreted, at first, as a mere result of the independent histories of each of the languages. However, historical information on the migrations of the Xavante crossing the Karajá territory during the end of the 18th century allows us to consider linguistic contact as a decisive factor for the existence of this common characteristic. This work aims at exploring these facts. And, as a complementary task, we propose to bring to the discussion whether or not linguistic contact could also be responsible for certain other common features, considered to be of commom genetic origin of Karajá and other Macro-Jê stock languages.

Keywords: Xavante, Karajá, Macro-Jê Stock, Language Contact, Gender Dialects.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Vocabulário Xavante de Pohl ……………………...... 31 Figura 2 – Aldeias Karajá – Comissão Rondon ...... 60 Figura 3 – Corografia Brasílica ...... 63 Figura 4 – Grupo Carajá ...... 74 Figura 5 – Detalhe da “Karte” de Krause ...... 85

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Prefixos em Karajá e outras línguas Macro-Jê ...... 51 Quadro 2 – Substituição de consoantes em Karajá ...... 53 Quadro 3 – Registros sobre os Karajá e os Xavante ...... 68

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Localização histórica Xavante – Xerente...... 18 Mapa 2 – Distribuição dos povos do tronco Macro-Jê...... 22 Mapa 3 – Aldeias Xavante por Maybury-Lewis ...... 65 Mapa 4 – Movimentação dos Akwén no séc. XVIII ...... 69 Mapa 5 – Localização dos Karajá em relação aos Kayapó ...... 83

LISTA DE ABREVIATURAS

REL – Prefixo relacional INST – Instrumental NOMLZ - Nominalizador

SUMÁRIO

I. Introdução ...... 13 II. A importância de uma leitura antropológica e cultural...... 15 III. As línguas Xavante e Karajá...... 21 IV. Sobre o contato linguístico entre Xavante e Karajá ...... 26 V. Falas masculina e feminina em Karajá e a questão da sua origem...... 32 V.1. Borges 1977...... 32 V.2. Ribeiro 2012...... 34

VI. Sobre o pertencimento do Karajá ao tronco Macro-Jê ...... 42 VII. Histórico de contato ...... 57 VIII. Aspectos Antropológicos e culturais ...... 71 IX. Considerações Finais ...... 92 Referências Bibliográficas...... 97

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I. Introdução

Há um fato que aproxima as línguas Xavante e Karajá: em ambas “falta”1 uma oclusiva velar desvozeada. Na língua Xavante, o fato se faz notar onde outras línguas Jê, especialmente o Xerente, língua irmã do Xavante, apresentam uma oclusiva velar e o Xavante apresenta, em seu lugar, uma oclusiva glotal. No Karajá, na classe aberta dos nomes comuns, uma oclusiva velar desvozeada ocorre apenas na fala feminina, com a correspondente ausência de consoante, nas mesmas posições, na fala masculina. O Xavante é a única das línguas Jê que não apresenta uma oclusiva velar e o Karajá é a única das línguas Macro-Jê que apresenta tão marcada diferença entre fala masculina e feminina, a ponto de se constituírem como verdadeiros dialetos de gênero2.

Ainda que não seja exatamente o mesmo fenômeno nas duas línguas (Xavante e Karajá), chama a atenção e instiga uma busca de explicação a curiosa coincidência de que há uma diferença marcante operando no contraste entre ausência e presença de uma oclusiva velar /k/ (no Xavante, distinguindo-o das demais línguas Jê; e no Karajá, distinguindo a fala masculina da fala feminina e, por essa ocorrência de dialetos de gênero, distinguindo essa língua das demais Macro-Jê).

Tão particular semelhança poderia ser interpretada, à primeira vista, como mero resultado de histórias independentes de cada uma dessas línguas. No entanto, informações históricas sobre migrações dos Xavante atravessando território Karajá no fim do século XVIII permitem que se considere o contato linguístico como possível responsável por essa característica comum. É nessa direção que o presente trabalho se orienta. Como desdobramento dessa análise, pode-se colocar em discussão também, se certas outras características apontadas como de origem genética comum entre o Karajá e outras línguas Macro-Jê, usadas como comprovação do pertencimento da língua Karajá a esse tronco, também não seriam resultado de contato ao invés de origem genética. Essas duas questões não são, no entanto, interdependentes. Mesmo que se demonstre aqui a relação entre as migrações Xavante e o traço fonológico comum entre as línguas, pode não haver tantos outros elementos vindos por contato que, juntos, sejam suficientes para colocar em questão a filiação do Karajá ao Macro-Jê.

1 Não se pretende aqui afirmar que falta um fonema a qualquer língua, o uso da palavra é somente para efeito de comparação do Xavante com outras línguas Jê, e em particular com a outra língua do ramo Jê Central, o Xerente. 2 Segundo Kunike (1916, p.174), foi Ehrenreich, [1894] quem primeiro reconheceu essa diferença no Karajá.

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Os trabalhos mais relevantes sobre as duas línguas serão revistos na presente dissertação, buscando o maior número possível de informações a respeito de fatos linguísticos, antropológicos e históricos que possam contribuir para uma nova leitura dos acontecimentos dos quais aqui se propõe dar conta. O esquema de desenvolvimento será como descrito abaixo:

a) O capítulo II apresenta uma discussão sobre a importância de se considerar aspectos antropológicos, históricos e culturais quando se estuda fatos linguísticos como o que aqui se propõe analisar. b) No capítulo III apresentam-se informações gerais sobre o estado atual das línguas em questão. c) O capítulo IV explora o contato linguístico entre os dois povos. d) No capítulo V discutem-se trabalhos de autores que analisam as origens das diferenciações entre as falas masculina e feminina no Karajá. e) O capítulo VI examina as questões pertinentes ao pertencimento da língua Karajá ao tronco Macro-Jê. f) As informações recolhidas na presente pesquisa sobre o histórico de movimentação e contato entre os Xavante e os Karajá serão apresentados no capítulo VII. g) O capítulo VIII trata de aspectos culturais e antropológicos relevantes para a comparação entre esses povos, que possam demonstrar, em menor ou maior grau, a possível origem genética comum entre o Karajá e os demais membros do tronco Macro-Jê - ou se o contato poderia ser levado em consideração para uma melhor explicação para essas semelhanças. Inclui-se também nessa seção uma breve discussão sobre a importância e a atuação das mulheres na sociedade Karajá, já que, antes de tudo, a mudança que se dá nessa língua é marcadamente social.

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II. A importância de uma leitura antropológica e cultural

Grande parte do trabalho realizado a respeito das línguas indígenas brasileiras e sua história se baseia em pequenas porções de dados vocabulares ou uma seleção específica de frases cotidianas de uma certa população. Os dados são analisados à luz de fatos fonológicos que se espera serem conhecidos por ocorrerem em outras línguas indígenas e se forem explicados por processos fonológicos equivalentes, são “confirmados” como verossímeis e essa análise fica como explicação final. No entanto, uma análise que leve em questão apenas fatos linguísticos sem considerar os aspectos culturais, antropológicos e históricos pode dar a falsa impressão de compreensão de uma determinada mudança fonológica, por exemplo, deixando fora uma parte do entendimento que se deve ter dos fatos entre o ponto de partida e o resultado “final” que conhecemos, eliminando aspectos importantes ocorridos durante a trajetória. Essas observações parecem ainda mais relevantes quando se trata das propostas de classificação genética das línguas indígenas. É o caso, por exemplo, com línguas classificadas como pertencentes ao Tronco Macro-Jê, algumas das quais (ou várias) sofrem de falta de documentação (isto é, documentação escassa) ou foram analisadas pelo viés de contraposição às línguas Tupi-Guarani. Das línguas Macro-Jê já extintas, por exemplo, os poucos dados que foram obtidos, na maioria das vezes, foram analisados buscando-se confirmar sua filiação a aquele tronco. Essa situação nos motiva a voltar nosso olhar para a linguística como praticada por Edward Sapir, uma abordagem linguística-antropológica com respaldo histórico na qual há tanto valor em uma evidência linguística quanto em uma evidência antropológica ou histórica. Pensamos que o paradigma indiciário, de Ginzburg, oferece uma perspectiva de abordagem que igualmente contribui para um estudo como este. Ginzburg (1990) narra o caso de Giovanni Morelli, que havia inicialmente escrito, sob o pseudônimo Ivan Lermolieff, um novo método para atribuição de obras antigas aos seus respectivos pintores que não se baseasse em características visíveis e marcantes do estilo de cada artista, mas sim em pequenos detalhes negligenciados pelos críticos. Para Ginzburg, o interesse na obra de Morelli é mérito de Wind (GINZBURG, 1990, p. 145) que atribui àquele uma atitude moderna em relação à obra de arte. Ginzburg também comenta o interesse de Castelnuovo pelo trabalho de Morelli, quando aquele compara os trabalhos desse aos de Sherlock Holmes,

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de Conan Doyle, baseados em indícios imperceptíveis para a maioria. Ginzburg cita uma passagem de Wind que demonstra a força do método de Morelli:

A alguns críticos de Morelli parecia estranho o ditame de que “a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos intenso”. Mas sobre este ponto a psicologia moderna estaria certamente do lado de Morelli: os nossos pequenos gestos inconscientes revelam nosso caráter mais do que qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós.” (WIND, 1972, p. 62 – apud GINZBURG, 1990, p.146)

Com esse tratamento do trabalho de Morelli e a atração que, segundo Ginzburg, Freud teve pelo trabalho daquele, haveria então se iniciado entre 1870 e 1880, nas ciências humanas, um paradigma indiciário baseado na semiótica. Ginzburg (1990, p. 166) relata o caso do texto A certeza da Medicina de Cabanis, publicado em fins do séc. XVIII, em que se discutia a “incerteza” da medicina, para a qual duas razões são apontadas por Ginzburg: primeiramente, a ineficiência de uma catalogação de doenças que não poderia revelar os sintomas que se manifestariam em cada indivíduo, posto que cada pessoa é um organismo particular; e, em segundo lugar, o fato de que o conhecimento da doença em si permaneceria indiciário apenas, dada a intangibilidade do corpo vivo. Coloca-se então a ineficácia do método que vem da impossibilidade de quantificação, dado o qualitativo individual. Que tal isso como metáfora da pesquisa com a língua? A parole acontece através do indivíduo e só pode ser analisada considerando suas características de uso. Todo esforço de análise da língua acontece a partir de uma amostra recolhida de um indivíduo e o uso que ele faz dela, ou de um grupo de indivíduos e o uso que esses fazem dela. Sobre isso, lemos em Sapir (1954):

Há uma diferença importante, no entanto, entre variações individuais e dialetais. Se tomarmos dois dialetos próximos, digamos Inglês falado pela “classe média” de Londres e Inglês falado pelo novaiorquino comum, observamos que, embora muito se diferenciem os falantes de cada cidade, o corpo de londrinos forma um grupo compacto, relativamente unificado em contraste com o grupo de novaiorquinos. As variações individuais são absorvidas por certos acordos maiores – digamos de pronúncia e vocabulário – que se destacam muito quando a língua do grupo como um todo é contrastada com a do outro grupo. Isto significa que há algo como uma entidade linguística ideal dominando os hábitos de fala dos membros de cada grupo, que a sensação de quase ilimitada liberdade que cada indivíduo sente no uso da língua é contido por uma coleira por uma norma direcionadora tácita. (SAPIR, 1954, p.148)

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Numa demonstração de fatos linguísticos como os que são relacionados com o tronco Macro-Jê, existe, por certa falta de documentação histórica, uma miríade de possibilidades de caminhos que levaram as línguas a apresentarem as semelhanças e diferenças que hoje são observadas. As movimentações de grupos ao longo dos diferentes momentos da história, antes e depois da ocupação europeia, não deixaram muitos rastros. As relações entre os grupos tiveram diferentes estados, de maior ou menor contato, de maior ou menor grau de cooperação ou conflito durante períodos indeterminados. Além disso, supor que não tenha havido relações entre indivíduos de grupos diferentes, ainda que os grupos em si estivessem num período de conflito, pode ser uma simplificação. Quando se marca o tempo e determina-se que, naquele exato ponto, tal ou qual grupo estava ou não em contato com outro e por isso só nos arredores daquele ponto no tempo é que se pode considerar algum evento que tenha produzido um movimento de mudança cultural, linguística etc., uma redução é feita em nome da aceitação da explicação. Existem mesmo elementos que permitem determinar a filiação linguística dos Karajá em relação ao Macro-Jê como genética, sem margem para dúvidas? Quando se faz um recorte no tempo, tem-se a impressão de que tudo aquilo estava daquela maneira há muito tempo, sem que possamos vislumbrar como e quando se deu qualquer movimentação anterior. O Mapa de Curt Nimuendajú (1940), reproduzido na próxima página, que dá a localização histórica dos Xavante – Xerente, deixa bem evidente a proximidade territorial dos Xavante e Xerente com os Karajá. As maiores dificuldades que se podem encontrar ao tratar da questão proposta pela presente pesquisa são a falta de registros sobre as movimentações dos grupos indígenas no Planalto Central brasileiro antes dos séculos XVIII e XIX, e a nomenclatura dada aos diferentes grupos nos registros, encontrando-se os mesmos termos para se referir a diferentes grupos. Os autores que trataram do histórico de contato entre os Xavante e os Karajá, em sua maioria afirmam que a interação entre os dois grupos foi, quase em sua totalidade, hostil (RIBEIRO 2012, p. 15), (NUNES, 2015, p. 11). Pois bem, como pode isso ser garantia de não ter havido troca linguística ou cultural? Primeiro seria improvável que, em meio a décadas de contato, indivíduos não tivessem estabelecido relações ainda que as comunidades estivessem, em sua maioria, em pé de guerra.

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Mapa 1: Localização Histórica dos Xavante e Xerente por Curt Nimuendajú.

Fonte: Nimuendajú, 1940.

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Encontramos em Sapir (1954) importante avaliação sobre o efeito do contato entre línguas:

As línguas, como as civilizações, raramente se bastam em si mesmas. As necessidades do intercâmbio põem os indivíduos que falem uma dada língua em contato direto com as línguas vizinhas ou culturalmente dominantes. O intercâmbio pode ser de relações amistosas ou hostis. Pode processar-se no plano corriqueiro dos negócios e do comércio ou consistir em empréstimo ou em troca de bens espirituais – arte, ciência ou religião. Seria difícil citar um exemplo de língua ou dialeto de vida completamente isolada, mormente em se tratando de povos primitivos. A tribo é não raro tão pequena, que não são pouco comuns uniões de cônjuges de tribos distintas que falam dialetos diversos, ou até línguas sem nenhuma afinidade entre si. Nem será descabido aventar que os casamentos e o comércio entre nações e os intercâmbios gerais de cultura são de significação relativamente maior no âmbito da vida primitiva do que entre nós. Seja qual for o grau de contato entre povos vizinhos, é em regra suficiente para conduzir uma espécie qualquer de interinfluência linguística. (SAPIR, 1954, p.192)

Há sempre muito que se aproveitar nos trabalhos de Sapir. Podemos encontrar, mesmo numa leitura rápida, várias análises primordiais do autor para o entendimento de um fato linguístico qualquer. Pertinente para a presente pesquisa, encontramos no mesmo texto citado acima, o seguinte exemplo de paralelismo fonético em línguas indígenas norte americanas não aparentadas geneticamente:

(...) há pelo menos quatro troncos linguísticos não relacionados representados na região do sul do Alaska até a Califórnia. Entretanto todas, ou praticamente todas as línguas dessa imensa área tem importantes características fonéticas em comum. A principal dessas é uma série glotalizada de consoantes oclusivas de formação distintiva e incomum efeito acústico. Na parte norte da área todas as línguas, estejam relacionadas ou não, também possuem vários sons desvozeados e uma série de consoantes oclusivas velares (guturais posteriores) que são etimologicamente distintas da série k comum. É difícil crer que três tão peculiares fatos fonéticos como os que citei teriam surgido independentemente em grupos linguísticos vizinhos. (SAPIR, 1954, p.198 – grifos meus)

Podemos reiterar aqui a possibilidade de que emergências originárias de uma característica dada de uma população encontrem seu caminho ainda que a partir de uma variação que vá encontrar terreno fértil muito depois em meio a uma comunidade maior. Para Sapir:

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É lícito supor que as variações individuais que nascem de fronteiras linguísticas – seja por influência sugestiva inconsciente de hábitos de fala estrangeiros ou pela real transferência de sons estrangeiros para a fala de indivíduos bilíngues – foram gradualmente incorporados à deriva fonética da língua (...) Não há realmente razão para que uma não assimile inconscientemente sons estrangeiros que se insinuaram na gama das variantes individuais, contanto que essas novas variantes estejam no rumo da deriva interna. (SAPIR,1954, p.199 – grifos meus)

Ainda, sobre a interinfluência entre línguas de uma mesma área e a possibilidade de identificar, após longo tempo de contato, a origem de uma dada mudança, o autor afirma:

O que mais podemos adiantar é que não há um cúmulo de provas que nos force a concluir a favor da origem comum. Por que não supor, então, que a similaridade morfológica entre línguas divergentes de uma área dada seja simplesmente o último vestígio de uma comunidade de tipo e substância fonética, que o trabalho destrutivo de derivas tornou hoje irreconhecível? (SAPIR, 1954, p. 203 – grifos meus)

E em sua conclusão do capítulo, Sapir afirma:

Sabemos que os mitos, as ideias religiosas, os tipos de organização social, os processos industriais, e outros aspectos culturais podem propagar-se ponto a ponto, acomodando-se gradualmente em culturas a que já tinham sido alheios. Sabemos ainda que os vocábulos não se difundem com menor liberdade do que os elementos culturais, que os sons também podem ser “recebidos por empréstimo” e que se pode adquirir até elementos morfológicos. É lícito ir mais longe e reconhecer que, segundo todas as probabilidades, certas línguas adotaram novas feições estruturais em virtude da influência sugestiva de línguas vizinhas.3 (SAPIR, 1954, p. 204)

É a partir desses recortes da obra de Sapir que se pretende, na presente pesquisa, analisar esse curioso fato que aproxima as duas línguas, Xavante e Karajá, da substituição da velar pela glotal no Xavante e queda da velar no Karajá na fala masculina, uma característica tão particular do sistema fonológico, ao mesmo tempo em que parece não haver nenhum outro fato linguístico ou empréstimo de vocabulário marcante entre as duas línguas.

3 É importante registrar que, na sequência, o texto de Sapir afirma: “De uma maneira geral, portanto, procuraremos associar as principais concordâncias e divergências da forma linguística, - padrão fonético e morfologia -, com a deriva autônoma das línguas, sem complicá-la com os efeitos de uma difusão de caracteres fortuitamente acumulados, ora num sentido, ora noutro.” (SAPIR, 1954, p.204)

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III. As línguas Xavante e Karajá

As duas línguas que constituem o objeto de discussão deste trabalho são classificadas no tronco Macro-Jê por Rodrigues (1999). Na tabela abaixo apresentamos um modelo do tronco Macro-Jê, baseado na proposta daquele autor. E, em seguida, um mapa com a localização atual aproximada dos povos Macro-Jê.

Tronco Macro-Jê

1) Família Jê a) Jê Nordeste: Jaikó (língua extinta) b) Jê Setentrional: Timbira (Krikati, Krahô, Apãniekrá, Ramkokamekrá, Pykobiê, Parkteyê, Kreyê) Apinajé, Mebengokré, Panará, Suyá c) Jê Central: Xavante, Xerente, Akroá (povo extinto), Xakriabá (língua extinta) d) Jê Meridional: Kaingang, Xokleng, Ingain 2) Família Kamakã a) Kamakã, Mongoyó, Menién, Kotoxó, Masakará (todas extintas) 3) Família Maxakali a) Maxakali b) Kapoxó, Monoxó, Makuni, Malili e Pataxó (extintas) 4) Família Krenák a) Krenák b) Guerén (extinta) 5) Família Puri a) Puri, Koropó, Coroado (extintas) b) Guarulho, Waitaká (extintas) 6) Família Kariri a) Kipeá, Dzubukuá, Sapoyá e Kamurú (extintas) 7) Família Yatê a) Yatê 8) Família Karajá a) Karajá 9) Família Ofayé a) Ofayé

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10) Família Boróro a) Boróro Oriental, Umitina b) Boróro Ocidental, Otúke (extintas) 11) Família Guató a) Guató 12) Família Rikbáktsa a) Rikbáktsa

Mapa 2 – Distribuição Povos do Tronco Macro-Jê

A língua Karajá pertence à família linguística Karajá, juntamente com o Javaé e o Xambioá, e é classificada no tronco Macro-Jê por Rodrigues (1999), Greenberg (1987) e Kaufman (1994).

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Rodrigues (1999) classifica a língua Xavante, juntamente com o Xerente (no norte do Tocantins), o Xakriabá (língua não mais falada, no norte de Minas Gerais) e a língua do povo extinto Akroá como as línguas que compõem o ramo dos Jê Centrais, na família Jê do Tronco Macro-Jê.

Como se pode ver no Mapa 1, os Karajá ocupam vasta extensão do Rio Araguaia, na divisa dos Estados de Goiás e Mato Grosso, e na divisa do Estado de Tocantins com o Mato Grosso e o Pará. Ao que se sabe, “sempre” estiveram aí (como veremos, a seguir). Já os Xavante, que no mapa vemos ocuparem, hoje, uma ampla extensão do Mato Grosso na porção a Oeste do Rio Araguaia, só estão ali há pouco mais de dois séculos.

Os Karajá (cuja autodenominação é Inỹ) são habitantes das margens do rio Araguaia desde tempos imemoráveis, em aldeias que hoje se estendem pelos estados de Goiás, Tocantins, Mato-Grosso e Pará num total aproximado de 3000 índios. Segundo Nunes (2015):

Ao contrário de outros grupos que hoje habitam o Brasil Central que, pressionados pelas frentes de colonização, empreendem processos migratórios – percorrendo, em alguns casos, distâncias significativas, não há registros de que os Inỹ tenham vindo de outra região. Os primeiros documentos históricos, ainda no século XVII, já os mencionavam à beira do rio Araguaia, e a mitologia e a memória oral do grupo aponta este rio e a Ilha do Bananal como local de origem dos primeiros humanos. Mas as migrações que outros grupos centro-brasileiros (sobretudo falantes de línguas Jê) fizeram os impeliram contra o território Inỹ, o que os levou a estabelecer relações – razoavelmente duradouras, em alguns casos – com estes habitantes do Araguaia. (NUNES, 2015, p.1)

Já os Xavante não são originários da região em que hoje habitam, como revela sua própria memória oral. De fato, entre o final do século XVIII e começo do XIX, partindo dos atuais Estados de Tocantins e Goiás, os antigos Xavante atravessaram o rio Araguaia em direção ao Oeste, fugindo dos efeitos da chegada da mineração e dos missionários, e se separaram definitivamente dos Xerente, que preferiram continuar na parte leste do rio. "Ao que tudo indica, a separação definitiva dos Akuen ocorreu na década de 18404. (...) É provável que os Xerente atuais tenham sido empurrados para leste, longe do rio, enquanto os Xavante tenham igualmente sido pressionados para oeste" (MAYBURY- LEWIS, 1984, p. 40). O importante a destacar (e voltaremos a isso, adiante) é o fato de que essa migração Xavante,

4 O termo de autodenominação é, para os Xerente, Akwe; e para os Xavante, Awe.

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iniciada no século XVIII e completada no XIX, se fez através do território Karajá, colocando esses povos em contato direto e, possivelmente, intenso.

No século XX, e mais especificamente durante o fim da década de 1940, os Xavante foram amplamente utilizados na campanha de divulgação da “Marcha para o Oeste”, promovida pelo Estado Novo. Ao final de 1960 sua “pacificação” se completa quando, esgotados por décadas de resistência, a maioria dos grupos Xavante busca refúgio em postos do SPI ou missões salesianas e protestantes. Cerca de vinte anos depois, no final dos anos 90, a população Xavante era calculada em 9 mil pessoas, morando em 55 aldeias, em sete terras indígenas diferentes (SEREBURÃ et al., 1998, p.16). Atualmente os Xavante contam com dez terras indígenas reconhecidas, distribuídas no estado do Mato Grosso, na região próxima ao rio das Mortes (QUINTINO 2012, p. 19), e constituem a segunda mais populosa etnia de língua Jê, com cerca de 20 mil pessoas (IBGE 2010).

Como adiantamos, na introdução deste trabalho, há dois fatos linguísticos (um em cada uma dessas línguas), que guardam alguma semelhança e, quem sabe, alguma relação. É sobre a possível relação entre eles que esta dissertação se debruça. Os fatos linguísticos, como adiantamos, são: (a) no sistema fonológico da língua Xavante, a ausência de consoante oclusiva velar surda e, em seu lugar, o Xavante apresenta oclusiva glotal nas mesmas posições e itens lexicais onde outras línguas Jê (inclusive sua língua irmão, o Xerente) realizam uma oclusiva velar /k/; (b) na língua Karajá distinguem-se dialetos de gênero, sendo que uma marca da fala masculina é a ausência da oclusiva velar desvozeada em um grande número de itens lexicais nos quais ocorre a velar /k/ em fala feminina.

Considerando a proximidade geográfica desses povos e a história da movimentação territorial dos Xavante, é quase inevitável relacionar os dois fatos. Aryon Rodrigues (2004) o fez atribuindo ao Xavante a influência sobre o Karajá. Por sua vez, D’Angelis (2015 – inédito) sugere que possa haver uma relação inversa para a difusão do fato fonológico. Este trabalho considera possível que uma pesquisa cuidadosa, que inclua e considere as informações mais antigas possíveis, referentes às duas línguas e também a fatos históricos e culturais variados, possa estabelecer a real direção (e extensão) da influência de uma língua sobre a outra, entre Xavante e Karajá. Como desdobramento dessa questão, em um segundo momento a pesquisa se propõe rever os argumentos que sustentam a filiação do Karajá ao tronco Macro-Jê à luz dos resultados obtidos.

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Se não puder ser provado que Karajá é Macro-Jê, então a hipótese do contato com Xavante é a melhor explicação para a proximidade entre fala masculina Karajá e língua Xavante, com respeito à ausência da oclusiva velar; e, nesse caso, a hipótese da influência do Xavante sobre o Karajá (seja pela plausibilidade linguística, seja pela plausibilidade etno- histórica) seria a que melhor explicaria os fatos.

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IV. Sobre o contato linguístico entre Xavante e Karajá

Como mencionado no capítulo III, os Xavante recuaram do contato com as frentes de expansão econômica da sociedade portuguesa, na segunda metade do século XVIII, e nessa marcha cruzaram o Rio Araguaia para Oeste. Ao cruzar o rio Araguaia, os Xavante atravessaram o território Karajá, intensificando as interações entre esses povos. A respeito disso, podemos ler em D´Angelis:

A travessia dos Xavante pelo território Karajá não terá sido sem custo para ambos os lados. Talvez mais para os Karajá, do que para os Xavante, segundo se pode deduzir dos relatos de guerras e ataques, na memória oral dos dois povos. Da constatação que a fala masculina dos Karajá não emprega o fonema plosivo velar, o mesmo fonema que também não se encontra na fonologia do Xavante (caso único entre as línguas Jê), a única coisa que não parece plausível é a hipótese da simples coincidência. (D´ANGELIS, 2015 – inédito)

Sendo assim, algumas hipóteses alternativas parecem poder ser consideradas:

A) Em primeiro lugar, podemos imaginar que entrando no território dos Karajá, seja para atravessar ou estabelecerem-se, os Xavante foram derrotados e homens Karajá passaram a constituir parte significativa da população masculina em comunidades Xavante vencidas. Impuseram uma característica do seu falar, mas não sua língua; a língua dessas comunidades continuou sendo a língua na qual as mulheres educam seus filhos. B) Também pode ser possível que ao ingressar no território dos Karajá, homens Xavante atacaram aldeias em seguidas oportunidades e se tornaram parte importante da população masculina daquelas comunidades. Não puderam impor sua língua, mas impuseram uma característica que havia se desenvolvido na sua língua (a passagem do *k > //), que no entanto, ficou sendo uma marca de homem “estrangeiro” (dos homens Xavante falando a língua Karajá com “sotaque”) e, finalmente, marca de fala masculina5. C)Uma terceira hipótese seria que os Xavante teriam entrado em território Karajá e estabelecido relações amistosas com eles; por várias razões e condições, tomaram

5 Não havendo oclusiva glotal em sua língua, os homens Karajá eram “fonologicamente surdos” para ela, de modo que, em seu lugar, simplesmente nada puseram. Ou seja, igualaram [] a .

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várias daquelas mulheres por esposas. Eventualmente, passaram a considerar as aldeias Karajá um “celeiro” para colher mulheres a qualquer tempo. Ao falar Karajá, a pronúncia dos homens Xavante era marcada, entre outras coisas, pela substituição da oclusiva velar pela glotal. Isso se tornou, naquele contexto, sinal de prestígio, principalmente perante as jovens Karajá. Por essa razão, os homens Karajá adotaram essa marca na sua própria fala6.

Aryon Rodrigues (2004) propõe que a relação entre os fatos fonológicos mencionados teria sido resultado de contato. A hipótese do autor, resumidamente, diz que:

É possível que no passado uma comunidade Karajá tenha sido atacada e dominada por guerreiros que falavam outra língua, digamos uma língua que não tivesse o som k em seu sistema fonológico. Esses guerreiros teriam exterminado os homens Karajá adultos e, em vez de retirar-se levando ou não as mulheres para sua própria aldeia, teriam se estabelecido – pelo menos parte deles – na própria aldeia dos vencidos e tomado o lugar destes como maridos. Convivendo com as mulheres Karajá, teriam aprendido a língua delas, mas com sotaque devido aos hábitos de sua própria língua. Digamos que sua língua original, além da ausência da consoante oclusiva velar /k/, tivesse a consoante oclusiva glotal / /, um som que não faz parte do sistema fonológico do Karajá. Uma característica forte do sotaque daqueles homens ao falar Karajá teria sido a sistemática substituição do /k/, a que não estavam habituados, pelo //, consoante mais próxima que lhes era familiar. Essa pronúncia defeituosa dos dominadores teria sido tomada, então, por marca de masculinidade, o que teria levado à sua manutenção ao longo das gerações e, possivelmente, a sua difusão a outras comunidades de língua Karajá. Ao longo do tempo, na fala dos descendentes, a articulação da oclusiva glotal, que não integrava originalmente o sistema fonológico do Karajá, teria deixado de ser reproduzida, acarretando a atual situação, em que ao fonema /k/ em palavras da fala feminina corresponde simples ausência desse fonema na fala masculina. A completa eliminação da oclusiva glotal no interior de palavras acarretou, então, a contigüidade entre vogais que na fala feminina estavam separadas por /k/ e casos de modificação ou de contração dessas vogais (...) (RODRIGUES, 2004, p. 116)

Com relação a isso, D'Angelis observa, criticamente:

O principal problema para essa hipótese de Aryon Rodrigues reside no fato de que provavelmente nem os Karajá, nem os Xavante, compunham-se de uma única e simples aldeia, de modo que, ou o processo histórico sugerido por ele repetiu-se em muitas aldeias Karajá ao longo do Araguaia, ou é preciso considerar um fator sociolinguístico (...). Estudos cuidadosos também precisam ser feitos sobre o léxico das duas línguas, de modo a se buscar outras evidências a favor de alguma das hipóteses alternativas. (D´ANGELIS, 2015 – inédito).

6 Ver nota anterior.

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A objeção de D’Angelis, como veremos, pode ser explicada pela diferença observada entre dialetos Karajá com respeito à implementação ou intensidade na ocorrência dos dialetos de gênero, fato destacado por Ribeiro (RIBEIRO, 2012, p. 129). Um problema para a hipótese de Rodrigues – segundo ele próprio - estaria nos registros mais antigos do Xavante, da primeira metade do século XIX. Neles, a língua Xavante (certamente registrada com um falante masculino) apresenta a oclusiva velar /k/, enquanto documentação contemporânea do Karajá já apresenta a “falta” de um /k/ na fala masculina. Vejamos os registros. Aryon Rodrigues (2004) considera o vocabulário documentado por Johann Emmanuel Pohl, em 1819, como o mais antigo registro da língua Xavante. Uma segunda fonte de dados, tanto do Xavante quanto do Karajá, referida por Rodrigues, é Francis Castelnau, que percorreu o Brasil Central em 1844. Abaixo estão reproduzidos os dados organizados por Rodrigues (2004, p.4):

Chavante de Pohl 1819 Chavante de Costelnau 1844 Xavante atual

terra tika teia (por teca) tia

arco comunika umia

faca schinkasche sinkejai tsibdz

canoa coubakré ubae

fogo kusché udzé

macaco crocoré ooe

E a lista de Castelnau (1851) apresentada por Rodrigues (2004, p.4) mostra uma língua Karajá já sem a oclusiva velar7:

canoa awo

rio bero

meu filho wadiore

7 As mesmas palavras, na fala feminina Karajá atual, têm, respectivamente, as seguintes formas: hãwk, bk e wa-k (RIBEIRO, 2012, p.102;24;245)

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O próprio Aryon Rodrigues observa que, frente a esses dados, a possibilidade de sua hipótese inicial, segundo a qual o Xavante teria sido o responsável pela substituição da oclusiva velar na fala masculina Karajá, torna-se improvável, uma vez que o Xavante de Pohl e de Castelnau não tinham ainda substituído a velar pela glotal e o Karajá já apresentava a ausência de /k/ na fala masculina. Em uma revisão de sua proposta, Rodrigues levanta a possibilidade de o Xavante atual não ser a continuação daquele documentado por Pohl e Castelnau e, sim, a continuação de um outro povo que também teria sido chamado “Chavante” e que já teria mudado as velares em glotais antes de 1819 (RODRIGUES, 2004, p. 5). Para ele, falantes desse outro grupo é que teriam atravessado o território Karajá e causado a mudança nessa língua. Rodrigues faz referência ao nome “Crichás” para uma possível menção a esse grupo na literatura, sendo esse o termo, segundo ele, usado tanto pelos Karajá quanto pelos Tapirapé para designar os atuais Xavante. Rodrigues acredita na possibilidade de os Crichás referidos nos documentos portugueses da época serem, na verdade, um grupo Xavante / Akwén que já teria mudado as velares.

Parece muito provável que o grupo Xavante que Pohl registra seria simplesmente um grupo que teria ficado mais próximo dos Xerente e conservado a velar. De fato, os Xavante com que Pohl entrou em contato eram aqueles que viviam no aldeamento do Carretão ou Pedro Terceiro que, de fato, situava-se no Alto Rio Tocantins e, portanto, cerca de 100km a leste do Rio Araguaia.

Isso não impede que outro(s) grupo(s) – já apresentando a característica da mudança da oclusiva velar para glotal - tivessem se distanciado anteriormente (como vemos no relato de Toral - 1992, p. 21) e tivessem entrado em contato com os Karajá.

Portanto, assumimos que os registros Xavante contemporâneos aos registros Karajá, no século XIX, em que o Xavante ainda apresentaria /k/, seriam registros de grupos Xavante que não foram os que atravessaram o Araguaia – e, de fato, foram feitos a Oeste do Rio Araguaia; como está dito acima, o registro de Pohl foi feito com os que teriam ficado em contato permanente com Xerente no Aldeamento, o que não representaria o estado da língua Xavante naquele momento, porque a língua Xavante alterada estava fora do círculo de relações amistosas com os brancos. Por fim, parece que os fatos nos levariam a aceitar – seguindo Aryon Rodrigues - que os Crixás fossem aqueles Akwén que primeiro se acercaram e cruzaram o Rio Araguaia, e que levaram sua fala já sem oclusiva velar para o seio dos

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Karajá. Isso explicaria, também, que havendo grupos Karajá mais longe do epicentro dessas mudanças, eles tiveram pouco ou nenhum contato com Xavante, não sofrendo sua influência.

A movimentação desses povos deve ser entendida como uma série de contatos diferentes entre grupos diferentes em intensidades diferentes. O que parece provável é que a troca da velar pela glotal, em grupos Xavante, estava presente em algum momento anterior aos registros e talvez até ao contato com os europeus em diferentes grupos que posteriormente foram chamados Xavante e Xerente e, talvez, essa série de contatos é que tenha possibilitado fixar-se em um grupo ou outro a escolha por uma das formas em determinada situação sociolinguística. Ao invés de pensarmos num momento específico de contato que, a partir de uma situação determinada, levasse um grupo específico a “escolher” entre uma forma ou outra, talvez seja muito mais adequado ao quadro histórico, pensar em uma série de encontros entre comunidades e entre indivíduos que, gradativamente teriam levado diferentes grupos a “escolher”, em momentos diferentes, uma ou outra forma. Ainda colocaremos uma outra questão: essa escolha entre as formas velar e glotal que, aparentemente, se dá em algum momento entre o século XVIII e XIX, poderia ser, na verdade, o fim de um processo que começara antes até da chegada dos europeus e foi se atualizando várias vezes e estabilizou-se com o fim da movimentação “livre” e o assento definitivo em um novo território no século XIX. O que estaríamos observando seria o fim de um longo processo de variação contínua e não um movimento que se dá unicamente após um momento de contato.

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Figura 1: Vocabulário Xavante de POHL

Fonte: POHL, vol.2 ed.1837, p.33.

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V. Falas masculina e feminina em Karajá e a questão da sua origem

As primeiras descrições dos dialetos de gênero Karajá pela linguística moderna, se devem ao casal missionário David e Gretchen Fortune (1975) e, mais recentemente, à linguista Mônica Veloso Borges (1997). Os trabalhos mais recentes são os de Borges (2004) e Ribeiro (2012).

Apresentamos, em linhas gerais, a descrição de Borges (1997) para caracterizar as falas masculina e feminina Karajá. Na sequência sintetizamos e discutimos o trabalho de Ribeiro, em razão de sua defesa do surgimento autônomo dos dialetos de gênero em Karajá, recusando a explicação por contato. Também discutimos alguns argumentos daquele autor a respeito da filiação do Karajá ao Macro-Jê.

V.1. Borges 1977

As falas feminina e masculina na língua Karajá são analisadas por Borges (1997). A principal diferença, segundo a autora, é que, na fala masculina, na classe dos nomes comuns (substantivos), não se observa a realização da oclusiva velar desvozeada, que, nos mesmos itens lexicais, está presente na fala feminina:

Fala feminina Fala masculina

koh oh (mosca)

kuadi uadi (arco-íris)

kri ri (abano)

wokud woud (espécie de sapo)

baronik baroni (espécie de arraia)

(BORGES, 1997, p. 102)

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Aquela diferenciação, segundo Borges, não se realiza quando se trata de palavras gramaticais como artigos, posposições e advérbio:

Fala feminina Fala masculina

braku-ki braku-ki (posposição alativa “em”)

karahukre karahukre ( tempo futuro, “vou”)

kai kai (você, pronome)

(BORGES, 1977, p. 108)

São iguais, também, na fala feminina e masculina, os nomes das figuras sagradas e mitológicas (BORGES, 1997, p. 110). Em relação aos nomes próprios, a autora observa, pode-se notar a presença da oclusiva velar tanto nos nomes masculinos quanto nos femininos, acontecendo em início de sílabas e entre sequências vocálicas:

Nomes Femininos Nomes Masculinos

kuabiro kurikala

kuairu kuraha

(BORGES, 1977, p. 105)

Há também, segundo Borges, outras marcas de menor abrangência, como a presença de uma consoante nasal coronal /n/ na fala feminina que, em determinados contextos intervocálicos, não ocorre na fala masculina:

Fala feminina Fala masculina

anõbina aõbina (briga)

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anõni aõni (bicho)

anõkõ aõkõ (não)

anõku aõku (de vez em quando, depois)

(BORGES, 1977, p. 111)

E casos em que uma africada // não se realiza na fala masculina, mas este último pode ser explicado interpretando-se a africada como uma realização contextual do fonema /k/:

Fala Feminina Fala Masculina

itr idr (raposa)

it id (assobio)

(BORGES, 1997, p. 113)

A conclusão principal a que chega a autora é que a diferença entre fala feminina e masculina no Karajá é reflexo de uma divisão social em polos, o masculino e o feminino. Isso se materializa, segundo Borges, em vários aspectos das relações sociais, ocupação dos espaços sagrados e pinturas corporais, por exemplo, e as diferenças entre os dois dialetos, masculino e feminino são “um reflexo linguístico desse princípio (BORGES, 1997, p. 246).

V.2. Ribeiro 2012

O trabalho de Ribeiro (2012) é provavelmente o mais atual e completo sobre a língua Karajá e o que coloca em pauta as duas questões levantadas pelo presente trabalho: a relação entre a falta da oclusiva velar desvozeada nas línguas Xavante e Karajá e o pertencimento do Karajá ao tronco Macro-Jê. Sua posição é contrária à de Aryon Rodrigues em relação à tese do contato e o autor atribui a omissão da oclusiva velar na fala masculina Karajá a um movimento interno da língua:

Finalmente, contestarei a hipótese de Rodrigues (1990, 2002) sobre a origem das distinções entre a fala feminina e a masculina de acordo com a qual, tal fenômeno seria resultado de contato linguístico. Proponho, ao invés, que a

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explicação provável deva ser buscada em fatores internos8. (RIBEIRO, 2012, p. 140- tradução minha)

Ribeiro sustenta sua hipótese (a de que a variação da velar na fala masculina Karajá não tem relação com contato, mas com um movimento interno da língua) em dois fatores:

1) A falta de empréstimo entre as duas línguas, o que demonstraria não ter havido contato suficiente entre as duas culturas. (RIBEIRO, 2012, p. 162) 2) Que existe uma tendência no Karajá para a lenição das oclusivas desvozeadas, sendo a fala feminina mais conservadora e resistente em relação a essa tendência (como também são alguns dialetos Karajá), de modo que teria evitado essa mudança. (RIBEIRO, 2012, p.131, 132)

Sobre a queda da velar, Ribeiro argumenta que a forma feminina (com a velar) é a mais conservadora considerando a previsibilidade: onde é possível prever a forma masculina a partir da feminina não é possível fazer o mesmo com o contrário, apontando exemplos como braku (rio) x bero (Ribeiro, 2012, p. 133) para ilustrar o caso. Ribeiro também aponta os empréstimos como prova de que a fala feminina é mais conservadora, considerando que empréstimos com a velar perdem a velar na fala masculina, a exemplo kawar x awar (Ribeiro, 2012, p.131-132), porém não há inserção de /k/ na fala feminina em que exista encontro vocálico, como em d (dinheiro). Alguns casos de formas cognatas com o Proto- Jê seriam oriundas da proto-língua Karajá, como ko (madeira) :: k e ku (comer) :: k (Ribeiro, 2012, p.132). O autor afirma então que ambos dialetos, fala masculina e feminina, originaram-se numa proto-língua comum em que a velar existia, exemplificando isso com as formas para “onça” e “rio” nos dois dialetos:

Proto-Karajá 

Feminino  Masculino      (queda de ) (fusão de vogais)

8 Finally, I challenge Rodrigues´ (1990, 2002) hypothesis on the origin of the female versus male speech distinctions according to which such fenomena would be a result of language contact. I propose, instead, that a likely explanation shall be sought in internal factors

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Proto-Karajá 

Feminino 

Masculino       e (queda k) (fusão) (harmonização)

Para Ribeiro, a fusão vocálica e a assimilação do são possíveis consequências do processo de queda da velar em Karajá. Sobre isso, podemos ressaltar, a partir dos dados de Ribeiro, que: Se a queda da velar resultar em duas vogais iguais contíguas, elas sofrem crase:

   ( tirar)

Os demais processos resultam em vogal baixa [a] seguida por uma vogal posterior. Quando o resultado é um [a] seguido por posterior alta [u], elas se fundem, resultando em [o]. Se a queda da velar resulta em [a] seguido de [], a vogal [a] cai:

   (rio)    (um tipo de pássaro)

Se o k cai entre [o] e [u] o último desaparece

   (dentro) (Ribeiro, 2012, p.134)

Para “uns poucos exemplos” Ribeiro sugere a possibilidade de uma inserção da sílaba “ku” na fala feminina como em: wiku x wiu, em Karajá do Sul, mas nos outros dialetos, wiku e wi. (Ribeiro, 2012, p.134). Isso significa que, enquanto nos outros dialetos, a fala masculina simplesmente apagou o ‘k’ partindo da forma original wiku, resultando em wiu > wi, no Karajá do Sul teria se produzido uma forma (feminina) wikuku que teria que

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sofrer um primeiro apagamento, passando a wiuku, e depois disso, a simplificação do ditongo iu > wiku.9 A solução é claramente casuística; por ela, a fala feminina é considerada conservadora por manter um “k” da proto-língua, e não por introduzi-lo10, mas haveria palavras em que a fala feminina inseriria uma sílaba ku (wiku + ku > wikuku), em lugar de simplesmente manter a proto-forma. Pelas regras de “apagamento” de “k”, se a palavra possui uma sequência de duas sílabas com “k”, a tendência é que um deles permaneça (em geral, o da segunda sílaba)11; logo, resultaria em uma forma wiuku que, na fala masculina, com apagamento de “k”, passaria a wiuu e, com isso, uma crase da última vogal garantiria sua ‘sobrevivência”, resultando em wiu na fala masculina do dialeto do Sul. Os problemas com essa solução são que: (i) ela exige regras de simplificação (apagamento) também na fala feminina, mas, seria uma regra de simplificação que se aplicaria tão logo tivesse ocorrido uma regra de inserção, e sobre o mesmo elemento; (ii) a forma masculina teria que ser produzida “a meio caminho”, ou seja, enquanto a fala feminina ainda estivesse pronunciando wikuku; caso contrário, wiku resultaria em wiu > wi, como nos outros dialetos. Quando a queda da velar resulta em um encontro entre um schwa e uma outra vogal, aquele tomará as características dessa última. Os exemplos que o autor apresenta nesses casos são, segundo ele, restritos aos dialetos Karajá do Norte e do Sul, aqueles chamados por ele de “dialetos do schwa”.

      (RIBEIRO, 2012, p.135)

Segundo o autor, Xambioá e Javaé não apresentam schwa e nesses exemplos a mesma vogal aconteceria nas duas posições da palavra mas, mesmo assim, em casos como o dos verbos  (amarrar) e  (tirar) (Ribeiro, 2012, p.135) que são homófonos na fala feminina mas não na masculina e em Xambioá mas não em Javaé, haveria evidência de que, também, os dialetos que contenham schwa seriam mais conservadores e que a fala masculina

9 Nas páginas 133-134, em que trata de fusão de vogais, não há outros exemplos ou ‘regra’ para os encontros das vogais altas /i/ + /u/. 10 Veja-se, por exemplo, a passagem: “in comparing ♀ braku ‘river’ with ♂ bero , it is rather clear that the latter can be derived from the former, but not vice-versa. Loanwords also provide arguments for considering the female speech as the less innovative, since borrowings containing a velar stop will have this systematically suppressed in the male speech (...).” (RIBEIRO, 2012, p. 131-132). 11 “If two adjacent in the same word contain a /k/, the tendency is that only one of its occurrences will be deleted, generally the first one (...)” (RIBEIRO, 2012, p. 144-145)

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não deriva da feminina. Se sim, as raízes de “pegar” e “amarrar” em Xambioá seriam idênticas na forma masculina.

Feminino Masculino   tirar   amarrar (RIBEIRO, 2012, p. 135)

Para Ribeiro, esses exemplos demonstram que seja provável que a assimilação do schwa aconteceu em Xambioá quando as distinções de fala feminina e masculina já estavam em funcionamento. Ainda sobre a cronologia dos possíveis processos fonológicos, o autor chama à atenção aos empréstimos Tupí-Guaraní como  (cutia, do Tupi, akuti) e  (uma máscara cerimonial) que não passaram por processos de fusão de vogal (  e  em fala masculina), o que sugere que essas palavras entraram no léxico Karajá quando esse processo fonológico já não era mais produtivo. Ainda há uma referência do autor ao processo de epêntese que se observa quando a queda da velar ocorre no contexto em que ela é precedida por uma vogal alta /i/ ocorrendo em sílaba sem ataque; nesse caso, uma africada vozeada é colocada entre as vogais:

Fala Feminina Fala Masculina ,   raposa (RIBEIRO, 2012, p. 137)

Sobre a questão da tendência à queda das oclusivas desvozeadas12, parece ainda faltar profundidade à explicação. Ribeiro argumenta sobre esse processo que a tendência se dá pela característica “instável” desse grupo de fonemas na língua (Ribeiro, 2012, p.83). Sobre isso, argumentação busca demonstrar que sendo */p/ e */t/ fonemas inexistentes na língua

12 “Comparisons with different families within Macro-Jê (...) attest to the conservative nature of Proto-Jê, especially concerning its inventory of voiceless stops, which was very likely inherited as such from Proto- Macro-Jê. Lexical comparisons (Davis 1968, Ribeiro 2005), indicate that Karajá underwent a systematic process of voiceless-stop lenition. Before /r/, the process of lenition would have resulted in the complete deletion of the consonant (21); before a , *p and *t would have become the approximants /w/ (Proto-Jê *par ‘foot’ :: Karajá wa) and /r/, respectively. Curiously enough, the only voiceless stop in Karajá, /k/, happens to be the one which is often deleted in male speech—hardly a coincidence, given the apparent overall tendency towards voiceless stop lenition just described. (...) Thus, there seems to be rather compelling (albeit circumstantial) evidence for an internal (rather than contact-induced) origin for the differentiation between male and female speech in Karajá, although the lack of comparative evidence may never allow for a conclusive explanation.” (Ribeiro, 2012, p.164-165).

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atual, eles devem ter existido na proto-língua em algum momento e foram abandonados, restando o /k/, que foi eliminado na fala masculina, porém mantido pelas mulheres. Nas demais explicações sobre a assimilação do schwa, processos de epêntese são tentativas de aproximar processos que não contemplam a explicação necessária para se entender a queda do /k/ por processo interno. A crítica de Ribeiro à hipótese de contato de Rodrigues (também assumida por D´Angelis; ver p. 26-27, acima) perde força quando se considera a revisão da hipótese apresentada pelo próprio Rodrigues. O histórico de movimentação dos povos Akwén no século XVIII (explorado na seção VI, adiante) demonstra que pode ser provável, como proposto por Rodrigues, que o grupo Akwén que entrou em contato com os Xavante por volta de 1750 não é o grupo que por volta de 1840 se estabeleceu como “Xavantes” e nem é o mesmo grupo que foi relatado por Pohl (1819) e Castelnau (1844, 1851) em seus trabalhos. Ribeiro traz para sua análise o trabalho de Dunn (2000):

A regra da queda do k teria se estendido a outras áreas do vocabulário, não mais somente como regra puramente fonológica, mas como regra fonológica com motivação social, ou seja, uma regra fonológica com um twist social.13. (Ribeiro, 2012, p. 163)

Ribeiro reforça a afirmação acima com uma referência ao trabalho de Dunn (2000). Esse trabalho será referido no capítulo VII (p. 88 adiante) e com uma interpretação diferente: o que parece claro no trabalho de Dunn é sua afirmação sobre a necessidade de considerar o social quando se analisa um caso como o da fala masculina/feminina do Karajá. Parece claro que Ribeiro está inversamente reforçando a ideia de que, após uma mudança interna, teria havido uma “promoção” daquele processo puramente linguístico a uma função sociolinguística. Na hipótese de Rodrigues, a motivação sociolinguística é que opera como gatilho de mudança. Sobre a inexistência de empréstimos entre as duas línguas (Karajá e Xavante), no próprio estudo de Ribeiro encontramos casos de cognatos que, na visão do autor são exemplos de herança comum Proto-Jê:

Assim, pode-se tomar decisões bem fundamentadas sobre possíveis cognatos Jê/ Karajá mesmo em casos para os quais a forma no Proto-Jê não pode ser reconstruída. Por exemplo, embora a posposição alativa do Jê Central

13 The k-dropping rule would have extended to other areas of the vocabulary, no longer as a purely phonological rule, but as a socially motivated phonological rule, that is a phonological rule with a sociolinguistic twist

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(Xerente k, Xavante ) não possa, até agora, ser reconstruída do Proto-Jê, ainda assim é seguro compará-la com a posposição alativa k in Karajá. Em ambos, Karajá e Jê Central, a posposição alativa é homófona à palavra para madeira (Karajá , Proto-Jê *o, Xerente )14. (RIBEIRO, 2012, p. 273)15

Comos se vê, Ribeiro opta por uma interpreação, mesmo sem evidência, de que tais cognatos tenham origem em uma terceira fonte, comum às duas línguas, que seria o Proto-Jê. Do nosso ponto de vista, temos aqui duas evidências de empréstimo, se for dado crédito ao contato: a primeira, o uso do alativo em Karajá e em Xavante mesmo sem que haja um referente no Proto-Jê, e a própria palavra para “madeira”, que seria comum ao Karajá e ao Xerente. Assim como, por um lado, um termo para “madeira” pode ter sido emprestado do Xavante (onde designa a “borduna” pelos Karajá), a cultura de povo pescador, desses últimos, pode ter gerado empréstimos ao Xavante. De fato, a palavra para “anzol” em Xavante e Xerente parece ser um empréstimo do Karajá: em Palha (1942, p. 27), encontramos a palavra para anzol em Karajá: uasi e em Machado (1947, p.124 e 125) encontramos ú-á-cí ou uá-xí ( a primeira forma, com [s] acontece três vezes, e a outra, com [] apenas uma). Em Xavante, consta ser si´uwazi´a ( HALL et alii, 1987, p. 90), em forma ortográfica (na forma fonética: siuwazia). Encontrando-se, também, o verbo amarrar em Xavante, wasi (MCLEOD, 1977, p. 8) e em Xerente sikwazi (KRIEGER; KRIEGER, 1994, p.40). Uma busca em outras línguas Jê, mesmo geograficamente próximas, como por exemplo em Apinajé e Krahô, mostrou que a palavra para “anzol” não tem qualquer semelhança com essas formas. Parece mais plausível que o empréstimo tenha acontecido do Karajá para o Xavante e Xerente do que por origem comum com outros Jê.

14 Therefore, one can make well-informed decisions on likely Jê/Karajá cognates even in cases for which a Proto-Jê form cannot be reconstructed. For instance, although the central Jê allative posposition (Xerente k, Xavante ) cannot, so far, be reconstructed for Proto-Jê, it is still safe to compare it with the allative posposition k in Karajá.In both Karajá and Central Jê, the allative posposition is homophonous with the word for wood (Karajá , Proto-Jê *o, Xerente ). 15 Autores registram outra palavra mais geral para “madeira”, em Karajá (ex.: bederaeu, em Frei Palha). No entanto, registram a palavra cooté (Kunike, 1916, p. 181) ou corro-té (Machado, 1947, p.23) associada a uma madeira (sucupira), mas designando a clava ou borduna, e nisso está o ponto de contato com Xerente, língua para a qual há registro de coupera para “bordão” (Couto de Magalhães, 1863, p. 232) e kwĩró para “porrete” ou “tacape” (Nimuendajú, 1942, p. 75). Destaque-se que é conhecido o uso tradicional e comum da borduna ou tacape entre os povos Jê, e em contrapartida, os etnógrafos não registram “tacape” ou “borduna” como arma dos Karajá (ver, por exemplo, William Lipkind no 3º volume do Handbook of South American Indians, 1948).

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Para concluir o capítulo, agrego alguns elementos importantes para a discussão sobre a origem dos dialetos de gênero no Karajá, e sua eventual relação de influência por contato com outra sociedade, no caso, os Xavante: a) A língua em que a característica é universalizada (todas as aldeias e dialetos apresentam a mesma característica) deve ser a língua que está na origem do fenômeno transmitido; em contrapartida, a língua em que alguns dialetos não apresentem o mesmo fenômeno é, mais provavelmente, a língua que recebeu por contato. Considerando a situação de Javaé, Karajá do Norte ou Xambioá, e Karajá do Sul (ou apenas Karajá), os grupos mais distantes em relação aos Xavante poderiam não ter recebido aquela influência em razão das distâncias. b) É mais plausível uma mudança fonológica acontecer em uma língua ou dialeto, a partir da divisão do grupo, distanciamento, perda de contato (e depois disso, por uma deriva interna da língua), do que uma mudança fonológica do mesmo tipo, por razões internas da língua, ocorrer apenas em um segmento da comunidade (apenas homens). c) Parece mais plausível uma distinção entre fala masculina e feminina acontecer por ação ou influência externa sobre um dos segmentos da comunidade (os homens ou as mulheres), do que por mera economia social interna da língua. Se a fala masculina Karajá apresenta ausência de fonema (isto é, Ø ) nas posições em que, na fala feminina, ocorre uma plosiva velar /k/, é plausível que homens Xavante tenham falado Karajá, substituindo (por ajuste fonológico, ou seja, ‘sotaque’) a plosiva velar do Karajá por uma glotal // (considerando que, nisso, já haviam se diferenciado dos Xerente), e que sua posição de prestígio (ou dominação) tenha levado à tentativa de adoção disso como marca de “fala de homem” por seus cunhados Karajá que, no entanto, percebem a ausência da velar como “silêncio”, por não possuírem glotal no sistema fonológico. Sua fala Karajá “xavantizada” acabaria criando a característica da fala masculina Karajá atual.

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VI. Sobre o pertencimento do Karajá ao tronco Macro-Jê

Quais seriam os motivadores de uma pesquisa sobre as (inter-) influências linguísticas que possam eventualmente ter ocorrido entre Karajá e Xavante e, por consequência, colocar sob suspeita a filiação do Karajá ao tronco Macro-Jê? 1. Culturalmente, os Karajá distinguem-se dos povos Jê e também de diversos outros povos falantes de línguas Macro-Jê. Os Karajá desenvolveram uma cultura em torno de um grande rio, seus recursos e riquezas (que talvez encontre paralelo nos casos do Guató e do Rikbaktsa). 2. A linguística tem atribuído a origem do tronco Macro-Jê à região Leste-Nordeste do Brasil; no entanto, toda a mitologia de origem dos Karajá os dá como originários do Rio Araguaia. 3. A língua Karajá seria a única, no tronco Macro-Jê, a fazer distinção entre fala masculina e fala feminina.16 4. O fato singular, entre línguas do tronco, de que a língua Karajá não possui consoantes oclusivas surdas, à exceção do /k/ na fala feminina (e em palavras gramaticais, em ambos os dialetos de gênero). 5. A coincidência de que a língua Xavante seja a única na família Jê (e nos Jê Centrais) a ter substituído a plosiva velar /k/ pela plosiva glotal //, uma característica muito próxima da encontrada na queda da velar na fala masculina Karajá, diferença única no tronco Macro-Jê. 6. O principal argumento para filiar os Karajá ao Macro-Jê continua sendo um conjunto de cognatos, para os quais se procura demonstrar correspondência sistemática nas alternâncias fonológicas (Proto-Jê : Karajá = m:b, s:, k:k, :), e um apoio em pressupostos insuficientes, como o percentual de elementos comuns (quase 30 itens) dentro de um "vocabulário básico" (SWADESH, 1955).

Mattoso Câmara Jr. (1965) já manifestava preocupação em relação aos rumos que os estudos comparativos sobre línguas indígenas desenvolvidos no Brasil vinham tomando até então, limitando-se quase sempre a itens lexicais encontrados, normalmente em conjuntos de dados restritos, estratégia que não seria suficiente para lidar com a realidade dessa empreitada

16 Borges (1997, p. 70-89) registra distinções entre falar masculino e feminino em algumas outras línguas, inclusive o Xavante, mas em nenhuma das línguas Jê ou Macro-Jê se pode falar de dialetos de gênero como no Karajá.

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científica em razão de toda sua complexidade linguística, antropológica, histórica e geográfica. Em outras palavras, Mattoso Câmara chamou a atenção para a dificuldade de lidar com dados limitados na classificação genética das línguas indígenas brasileiras.

Em dois de seus trabalhos, um de 1986 e outro de 1999, Aryon Rodrigues coloca em evidência a dificuldade de se considerar uma classificação tão assertiva em línguas indígenas brasileiras quando levanta a quase impossibilidade de se defender, sem sombra de dúvida, a existência do tronco linguístico Macro-Jê:

O tronco Macro-Jê compreende um grande número de famílias, além da família Jê. Em alguns casos, porém, o que temos são mais indícios do que evidências da filiação de certas famílias ou línguas a esse tronco. A constituição do tronco Macro-Jê é altamente hipotética ainda. (RODRIGUES. 1986, p.48-49)

O possível relacionamento genético entre as muitas línguas atribuídas ao tronco Macro-Jê é uma hipótese de trabalho cujos detalhes variam conforme os diferentes estudiosos. (RODRIGUES. 1999, p. 165)

A primeira menção ao tronco Macro-Jê com essa nomenclatura é encontrada em Mason (1950, p. 287 apud RODRIGUES, 1999, p. 165) para se referir a uma série de famílias supostamente próximas das línguas Jê e, anteriormente, os termos Ges-Tapuya e Tapuya-zé já tinham sido usados por W.Schmidt (1926, 234-8 apud RODRIGUES. 1999, p.165) e Loukotka (1944 [1942], 2-6 apud RODRIGUES. 1999, p.165). Porém, até então nenhum trabalho foi desenvolvido com fôlego suficiente para propor uma lista de membros para o suposto tronco. Em 1968, Irvine Davis propõe uma análise das relações que aproximariam várias línguas sob o termo Macro-Jê, apoiado em dados de uma reconstrução feita pelo próprio Davis em 1966 de formas do Proto-Jê na qual ele detecta uma série de correspondências fonológicas e lexicais partindo, principalmente da relação entre o Karajá e o Maxakalí. Porém, o trabalho de Davis pode ser criticado pois as possibilidades de similaridades decorrentes de empréstimo são muito reduzidas dado que sua fonte de comparação é sua proposta de formas do Proto-Jê e não de formas de línguas individuais. Pois bem, o espaço geográfico e histórico de contato interétnico facilmente coloca dúvidas sobre a filiação do Karajá (cercado de povos Jê). Todas as classificações posteriores à essa de Davis (RODRIGUES 1970, 1986, 1999; GREENBERG 1987; KAUFMAN1994) mantiveram o Karajá como pertencente ao tronco Macro-Jê. A questão da classificação do Karajá como membro do tronco Macro-Jê pode passar por uma releitura, que coloque os dados em análise dentro de um programa mais

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profundo de pesquisa, que ao mesmo tempo leve em consideração, ainda que isso se torne mais oneroso, a hipótese de contato e ocupação geográfica dentro de diferentes momentos históricos como determinante de pelo menos parte das semelhanças entre itens e processos fonológicos. Sobre isso, encontramos em D´Angelis (2015, inédito):

O fato é que, qualquer que seja a configuração mais adequada ao quadro de fonemas, o sistema fonológico dessa língua a distancia muitíssimo de todas as outras famílias Macro-Jê resenhadas aqui. Acrescente-se, ainda, que a língua Karajá é a única, no tronco Macro-Jê, em que se registra diferença entre fala masculina e fala feminina (...) muitas das relações cognáticas propostas dependem, antes, da aceitação da hipótese do parentesco genético do que do contrário (ou seja, do que servirem para demonstração). E, por fim, nada justificaria maior proximidade genética do Karajá com as línguas Jê, considerando-se a enorme distância dos seus sistemas fonológicos, de modo que os pontos de proximidade morfológica podem ser interpretados, alternativamente, como resultado de séculos de contato linguístico, particularmente com Jês centrais. (D´ANGELIS, 2015. Inédito)

Ribeiro (2012) segue a linha dos grandes trabalhos anteriores e mantém o Karajá no tronco Macro-Jê, baseado em suas próprias reconstruções do Proto-Jê (2002, 2012). No presente trabalho, vemos a necessidade de contrapor-nos às afirmações de Ribeiro, assim como às de Davis anteriormente, em relação à maior relevância dos dados fonológicos apresentados, em detrimento das possibilidades de relação geográfica e de contato, questão já levantada por Dixon & Aikhenvald (1999, p.18 apud RIBEIRO 2012, p. 267), contra a qual Ribeiro argumenta:

Tal sugestão revela falta de familiaridade com as evidências demonstradas por autores como Guérios, Loukotka, Gudschinsky, Boswood e Rodrigues – a maioria dos itens de vocabulário básico, tais como partes do corpo e morfemas gramaticais. Embora não tão robusta quanto se pudesse desejar, (devido, em parte, à profundidade temporal envolvida), tal evidência aponta para relação genética e não geográfica. (RIBEIRO, 2012. p. 278)17

O autor coloca-se firmemente contra a proposta de Dixon & Aikhenvald (RIBEIRO, 2012, p.267), para quem as semelhanças entre algumas línguas Macro-Jê seriam resultado de arealidade e não de filiação genética. Ribeiro argumenta que as semelhanças léxicas encontradas entre itens básicos de vocabulário, embora poucas, já seriam suficientes

17 Such suggestion reveals a lack of familiarity with the evidence put fourth by authors such as Guérios, Loukotka, Davis, Gudschinsky, Boswood and Rodrigues – mostly items of basic vocabulary, such as body part terms and grammatical morphemes. Although not as robust as one would wish (due in part to the temporal depth involved), such evidence points to genetic, rather than areal, relationship.

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para demonstrar a filiação e afirmando também que as referências dos autores são de línguas amazônicas somente. O autor cita Goddard (1991), ao comparar o caso do Macro-Jê com o Algic da América do Norte (embora considerando o primeiro mais velho, dada a maior diversidade interna), como exemplo de prova de relacionamento genético:

É metodologicamente instrutivo notar que esse é um caso em que o método comparativo produz uma prova de relacionamento sem que haja uma fonologia reconstruída ou uma história fonológica além do que está implícito por uma porção de equações de identidade ou de proximidade de identidade.18 (RIBEIRO, 2012, p. 268)

Segue-se a lista de cognatos de Davis, retomada por Ribeiro (2012, p. 269), a partir da lista lexical de 100 itens de Swadesh (aproximadamente 25% seriam cognatos entre Maxakali ou Karajá e outras línguas Jê):

Proto-Jê Karajá *a- a- 2ª. Pessoa *j-ua d- dente *so  chupar *krã ra cabeça *ku k comer *ma ba fígado *-i d carne *- d- () nariz d- “ponte nasal” *j-õt d-() língua *j-ã ()d sentar *  ovo *par wa pé *wa ~ *pa wa- 1ª. Pessoa *pr r caminho *si  osso

18 It is methodologically instructive to note that this is a case in which the comparative method produces a proof of relationship without there being a reconstructed or phonological history beyond what is implied by a handful of equations of identity, or near identity

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*s  semente *mr(k) brb cinzas *r r partir *s  tecer * -  dançar *kra ra sobrinho, prole, cria *ko k madeira *j-ar l-adikura “mandioca” raiz (cf. kura “branco”) *mã bã alativo, dative, locativo *we obi ver *we rb falar *prãm rba fome *j-am l-ba ficar em pé *s-um b pai dele *j-i(j) l-b deitar *tk r ~ rb morrer *kok kb vento

A partir dessa lista, Ribeiro traça as correspondências entre o Proto-Jê e o Karajá:

Proto-Jê *m :: Karajá /b/

*ma ba fígado *mr(k) brb cinzas *mã bã alativo, dativo, locativo *prãm rba fome *j-am l-ba ficar em pé *j-um b pai dele Nesse último exemplo parece haver um erro ortográfico no original: s-um x j-um.

Proto-Jê *k:: Karajá /k/

*ku k comer

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*ko k madeira, chifre

Proto Jê *s :: Karajá //

*si  osso *so  chupar *s  semente *s d tecer

Proto-Jê * :: Karajá /d/

*j-i d carne (comida e carne do corpo) *j-am l-ba ficar em pé *j-õt d-() língua *- d- () nariz d- “ponte nasal”

Proto-Jê *r :: Karajá /r/

*r r partir *pr r caminho *krã ra cabeça *kra ra sobrinho, prole, cria *prãm rba fome *mr(k) brb cinzas

Proto-Jê */k/ final e Karajá /b/:

*mr(k) brb cinzas *kok kb vento *tk rb morrer

Para Ribeiro, a velar /k/ do Karajá corresponde diretamente àquela do Proto-Jê e a falta das consoantes /*p/ e */t/ resultou em processo de lenição, como em: Proto-Jê *par (pé)

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:: Karajá . Clusters consonantais envolvendo oclusivas desvozeadas teriam sido simplificados pela queda da oclusiva.

*pr r caminho *krã ra cabeça *kra ra criança *prãm rba fome

Na seguinte passagem, Ribeiro faz sua afirmação central sobre a queda das oclusivas em Karajá: Ambos os processos, de lenição de oclusivas desvozeadas *p e *t e a simplificação de clusters, parecem sugerir uma tendência geral a lenição de oclusivas desvozeadas, que pode ajudar a explicar a gênese da dierenciação entre a fala masculina e feminina e talvez tenha um importante papel em explicar as origens do processo derivacional de substituição de consoante descrito no capítulo 4.19 (RIBEIRO, 2012, p. 272)

O autor cita uma reconstrução de Davis como item demonstrativo da relação entre Proto-Jê e Karajá.

A palavra reconstruída por Davis para “nariz” foi *, idêntica à palavra Apinajé. A sílaba final, presente na maioria das línguas Jê Setentrionais, é provavelmente reflexo do Proto-Jê *kr ‘buraco’; assim, o  do Apinajé (e as formas relacionadas em outras línguas Jê Setentrionais) provavelmente significaram ‘narinas’ originalmente. Minha reconsttrução leva em consideração a palavra do Jê Meridional (Kaingáng ), que não inclui a sílaba final; corroboração adicional para minha reconstrução vem do Ofayé: j- ‘nariz’. A sílaba final Karajá( -) pode ser relacionada com a sílaba final da forma do Apinajé20. (RIBEIRO, 2012, p. 272)

Há alguns aspectos que podem ser discutidos sobre os dados apresentados por Ribeiro. Sobre os exemplos que ilustram o suposto reflexo “Proto-Jê /k/ final e Karajá /b/” acima, não há nenhuma tentativa de explicação sobre como a plosiva velar surda passa a

19 Both processes – lenition of the voiceless stops p* and t* and cluster simplification, seem to suggest an overall tendency towards voiceless stop lenition, which may help explain the Genesis of male vs female speech differentiation and may also play an important role in explaining the origins of the derivational process of consonantal replacement described in Chapter 4 20 The word reconstructed by Davis for ‘nose’ was *, identical with the Apinajé word. The final sylllable, present in most Northern Jê languages, is probably a reflex of Proto-Jê *kr ‘hole’; therefore, Apinajé  (and related forms in other Northern Jê languages) probably meant ‘nostrils’ originally. My reconstruction takes into consideration the Southern Jê word (Kaingáng ), which does not include the final ; further corroboration for my reconstruction comes from Ofayé: j- ‘nose’. The final syllable in Karajá( -) may be ultimately related to the final syllable in the Apinajé form

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plosiva labial sonora ou como o proto /k/ final do Proto-Jê e o /b/ do Karajá atual descendem de um “ancestral” comum, em um Proto-Jê. Não parece possível que *mrk tenha resultado em brb, porque comparando-se os outros dados não parece que a vogal posterior arredondada baixa mudaria em posterior não-arredondada alta; há dados que mostram que vogal posterior arredondada continuou posterior arredondada. As exceções a isso são os casos de “to eat”, onde u >  , e “to die”, em que  >  . Seriam plausíveis, dada a altura e proximidade das vogais, porém, esses próprios dois casos são estranhos, porque um vai na direção contrária do outro. Os tepes das palavras Karajá comparadas com Proto-Jê seriam reflexos de tepes na proto-língua, mas um dado relaciona /t/ : /r/ (*tk rb to die ): esse caso único não serve para propor um caso de desfonologização (ou seja, os /t/ e os /r/ do Proto-Jê teriam se fundido em /r/ no Karajá). Nas ‘demonstrações’ anteriores de Ribeiro, há ainda outro problema: 6 dados demonstram que *m > b; mas veja-se que em dois dados , corroborados pelo autor, ele assume que *w > b (o que seria um segundo caso de desfonologização, onde protos *m e *w teriam se fundido em b, e vejam-se os exemplos: “to see” *we > obi, e “to speak” *wẽ > rb. Ora, não há nenhum outro exemplo em que *e > i ou em que *ẽ > . E se w resulta de lenição de *p , (como autor indica em “pé”), por que ocorreria um movimento contrário, de fortalecimento de aproximante *w para obstruinte b ? Ribeiro lista também prefixos pessoais apontados por ele - e por Davis anteriormente - como comuns ao Karajá e outras línguas Macro-Jê.

Proto-Jê Karajá *wa, pa (1ª. Pessoa) a *a (2ª. Pessoa) a

Igualmente menciona um marcador de 3ª Pessoa do Suyá, onde raízes como wa (dente) levam um prefixo pessoal de 3ª Pessoa {s-} que se alterna com o prefixo de ligação t- , de forma semelhante ao Karajá.

Suyá i-t-wa s-wa 1-REL – dente 3ª. P - dente meu dente dente dele

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Karajá wa-d- t- 1-REL-dente 3ª. P - dente meu dente

O autor considera que o *{s-}do Proto-Jê, e suas manifestações em Suyá como {s-}, Xokleng {} , Timbira {-} e Xerente {s-}, correspondem sistematicamente ao // do Karajá21. Para Ribeiro, correspondências por exemplo, entre o Karajá - e Proto-Jê - não seriam somente correspondências fonológicas, mas também apresentariam comportamento morfológico semelhante, pertencendo a uma classe de raízes que levam prefixos de ligação que alternam com marcadores de 3ª. Pessoa que também são cognatos.

Proto-Jê Karajá j- d-, l-, d (prefixos de ligação) s-  (marcadores de 3ª. Pessoa)

Para o autor, a identificação desses cognatos pode explicar casos que talvez contenham um prefixo fossilizado em Karajá. O caso exemplo dado pelo autor é o do substantivo  (pai, pai dele) que não recebe sincronicamente um prefixo possessivo e seu possível cognato Jê *j- pertence a uma classe de raízes que aceita o marcador de 3ª Pessoa *{s-}, cognato do Karajá {-}.

O quadro a seguir compara prefixos e marcadores do Karajá e de outras línguas Macro-Jê:

21 Os colchetes são nossos. Embora tratando de morfemas, o autor não faz o uso convencional, e equivocadamente marca como fonema ( //) o correspondente em Karajá.

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Quadro 1: Prefixos e Marcadores do Karajá e outras línguas Macro-Jê Karajá Xavante Xerente Krahô Apinajé Krenak Ofayé Maxakali Rikbaktsa 1ª.p wa wa wa wa pa ti a ug uta 2ª.p a te ka ka ka huti  ã ikia 3ª.p i, a te ta - htãm   u ta

Fonte: elaborado pelo autor. (dados do Rikbaktsa BOSWOOD,1988; dados do Karajá RIBEIRO 2012; Maxakali CAMPOS 2009; Ofayé GUDSCHINSKY, 1974; Krenak PESSOA 2012; Xavante MCLEOD & MITCHELL, 1977)

Como se pode ver, pelo quadro acima, não parece haver relação de parentesco genético entre os marcadores de pessoa propostos por Ribeiro e sua reconstrução do Proto- Macrojê e várias das demais línguas Macro-Jê. O que se mostra é mais uma proximidade com os Jê, tanto centrais (Xavante e Xerente) como Setentrionais (Krahô e Apinajé), reforçando a hipótese de contato. Se olharmos para o vocabulário Karajá de Castelnau (1851, p. 268) encontramos vários nomes de partes do corpo antecedidos de uma clara marca pronominal de posse, wa-. Ex.: Front: Wa-a-ro , Nez: Wa-day-asan, Bouche: Wa-a rou, Dents: Wa-a djou (há mais de 20 dados assim em Castelnau). Confrontando isso com dados de Ribeiro (2012), confirma-se isso, e podemos glosar wa- como 1ª pessoa, como ele faz:

Exs.: wa-ri glosado 1-criança e traduzido por minha criança (p. 200); wa-b : traduzido por minha mão (p. 205). wa- : glosado 1-roupas e traduzido por minhas roupas (p. 259).

Um morfema wa ocorre como pronome livre em algumas línguas Jê Setentrionais, mas não funciona como marca de possessivo; o prefixo possessivo de 1ª pessoa, nelas, é {i-}, como por exemplo, em Apãniekrá (ver trabalhos de Alves, 2004, 2008), em Apinajé (Oliveira, 2005), em Kraho (Miranda, 2014) e também em Mebengokre / Kayapó (M. Amélia Reis Silva, 2001, p. 39ss). Já em Xavante ele atua como pronome livre de 1ª p.sg., mas também opera como possessivo, em nomes, embora como marca de dual ou plural (ver Juliana P. Santos, 2008, p.

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61)22, e também é a marca do caso absolutivo, em verbos como chorar, tossir, morder etc (mesma obra citada) circunstância em que alguns linguistas sugerem constituir formas nominais do verbo, que se traduziriam por “minha tosse”, “meu choro” etc. A categoria dual inexiste em Karajá, de modo que a língua pode ter incorporado (emprestado) a forma de 1ª pessoa dual/plural, para posse, do Xavante, mas transformando-a em marca de 1ª posse singular. Ainda com respeito a esse pronome, o Suyá (SANTOS, 1997), outra língua Jê, funciona com alguma semelhança com Xavante, mas não é possível falar de contato de Karajá com Suyá. E, note-se que, quando Ribeiro registra a presença desse pronome wa como uma evidência da relação entre Karajá e Macro-Jê, ele efetivamente mostra que o pronome existe em Karajá e na família Jê tão somente (RIBEIRO, 2012, p. 269 e 274).

Segundo o autor, algumas línguas Jê apresentam três sufixos derivacionais que têm cognatos em Karajá.

Karajá Mebengokre Xerente

-  -kwa (sujeito/agente)

-da d -z (INSTR)

-r- -r -r (NOMLZ) (RIBEIRO, 2012, p. 276)

O autor os toma como cognatos, considerando que Proto-Jê *j :: Karajá /d/ e considerando seu uso e semântica, posto que em ambos temos os mesmos escopos de significado, derivando substantivos de instrumento, lugar e objeto e em alguns casos, nominalizadores. (RIBEIRO, 2012, p.287) Outro par de cognatos que poderia corroborar a relação genética entre Karajá e seus pares Jê é o dos sufixos nominais –du e –da. Por exemplo, em Mebengokre e Karajá  :: k.

22 Isso vale igualmente para o Xerente: Sinval Souza Filho, 2007, pg 123ss (espec. p. 130).

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Para o autor, o /r/ do Karajá corresponde ao *r do Proto-Jê e assim, o nominalizador {–r} do Jê seria um candidato a cognato do –r replacing morph que ocorre em substantivos deverbais do Karajá. Porém Ribeiro considera a dificuldade em explicar como o último acontece como infixo e não como sufixo e propõe que a substituição de consoante em Karajá pode vir da sufixação de um morfema nominalizador {*-r} por sua localização não linear em processos fonológicos regulares que em Karajá tende a ser um processo linear aglutinante:

Quadro 2: Substituição de consoantes em Karajá VERB NOUN 1 ka ra cavar 2 kka kra moer 3 rika rira caminhar 4 k r comer 5 kuk kur levantar 6 -uka -ura partir 7 -k r secar 8 -k -r amadurecer Fonte: RIBEIRO, 2012, p. 278

Sobre o “replacive infix” –r em Karajá ser um cognato do nominalizador Jê {*-r} o autor hipotetiza o seguinte processo:

Sufixação * k-r Inserção de vogal eco * kr Enfraquecimento da vogal * kr Formação de cluster * kr Simplificação de cluster *r

O autor apresenta ainda outros exemplos em que /r/ final passaria a posição pré- vocálica como em *k (chamar) :: r afirmando que esses exemplos demonstrariam que a localização infixal do nominalizador é um subproduto de um processo fonológico regular que afetou raízes com /*r/ final em geral.

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Em alguns outros casos é o /h/ e não /k/ que é substituído por /r/. Em todos esses casos, exceto h (lavar), as raízes apresentam, após a fricativa glotal, uma vogal anterior sendo possível, para o autor, que originalmente um /*k/ precedesse a vogal anterior. A plosiva velar deveria ter passado por um processo de espirantização depois da mudança de /k/ para /r/ estar realizada, *k~forma nominal *r > h ~r. Não havendo casos de infixação com plosiva velar antes de vogal anterior o autor sugere que /k/ e /h/ estariam em distribuição complementar:

Mebengokre Karajá

-ke, -ke -h e, er 

Verbo Substantivo h r lavar h rd perseguir h rd arranhar h rd remover bh bre descer kh kr cortar (RIBEIRO, 2012, p. 284)

Ribeiro considera que os padrões silábicos mais simples do Macro-Jê estão presentes, em alguma extensão no Karajá, por exemplo, na simplificação de clusters mais complexos, processo que, para o autor, teria afetado somente as oclusivas desvozeadas (as vozeadas, segundo Ribeiro, foram conservadas como demonstrado pelo exemplo * (cinza) , Karajá , e clusters com oclusiva desvozeada inicial teriam sido posteriormente reintroduzidos através de síncope como em * >  (sapo):

Proto-Jê Karajá Maxakali *pr r caminho pta ~ pta

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*prãm rba fome ptp ~ ptp *kra ra “sobrinho” cria *krã ra cabeça (RIBEIRO, 2012, p. 280)

No entanto, se compararmos registros reunidos por Kunike (1916, p. 150), encontramos a palavra para "peixe", comparável com o registro de alguns anotadores do século XIX (Ehrenreich, 1894, p.33: katora, e Coudreau, 1897, p. 265: catoura): ambos dão uma palavra de estrutura CV.CV.CV (em Coudreau é fácil identificar um alongamento vocálico no 'ditongo' "ou" da segunda sílaba). Em Palha (1942), a mesma palavra aparece como "ktura", cuja primeira sílaba é CCV com duas obstruintes no ataque. Ora, o curioso disso é que essa é uma mudança que acabou se estabelecendo no ramo que ficou a Leste do Araguaia, ou seja, os Xerente, e hoje essa língua apresenta esses encontros. Não há informação de onde os dados de Frei Palha foram colhidos, mas é um fato interessante que uma 'deriva interna' das línguas Akwen, que efetivamente consagrou uma mudança no Xerente, podia estar lá no contato Xavante-Karajá (lembrando que Xavante e Xerente seriam pouco distintos ainda, naquele momento), e capturada na forma de uma provável variação, ainda no século passado, nos Karajá. Embora todas as vezes a palavra 'peixe' esteja grafada assim em Palha (1942), é somente essa palavra e uma segunda (ktara, "concha", com apenas uma ocorrência) que aparecem com [kt]. Novamente, temos um processo que poderia muito bem ter sido resultado do contato com os Jê centrais ao invés de origem comum com o Macro-Jê. Mas há ainda outro fato que esse dado demonstra: que o "a" da primeira sílaba dessa palavra, nos anotadores do séc. XIX, não era um "a" (vogal baixa e, portanto, de maior duração intrínseca, o que a tornaria pouco suscetível ao apagamento). Parece ter sido um schwa , o que explicaria a sua brevidade; talvez até mesmo uma vogal alta []. Encontra-se em Fortune (1973, p.24) a mesma palavra com a primeira vogal sendo umschwa [ortograficamente grafada: à] e em Ribeiro (2012, p. 60) também é grafada com schwa. Sobre as sílabas Karajá em relação ao Proto-Jê e outras línguas Macro-Jê, o autor destaca que, diferente do Karajá, as línguas Jê permitem sílabas com consoantes finais e nesses casos, o Karajá apresenta vogais eco, e se a consoante final for /r/, a vogal original cai e o resultado é CCV, num processo muito similar ao que acontece em Xerente (novamente, a proximidade com um Jê Central):

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Proto-Jê Xavante Xerente *par para pra pé *pur buru bru jardim, campo *mt pese pse bom (RIBEIRO, 2012, p. 281)

A principal evidência de Ribeiro para a filiação genética do Karajá ao Macro-Jê é o caso do infixo {–r}. Segundo o autor esse é um infixo com um cognato claro em línguas Jê. Não sendo um morfema produtivo em Karajá, ele sobrevive nos exemplos demonstrados pelo autor, somente. No fixar do sufixo original na raiz, preserva-se uma evidência da relação genética entre o Karajá e as línguas Jê (novamente, falando-se de línguas Jê e não de Macro- Jê, sendo a maior probabilidade a de contato).

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VII. Histórico de contato

Há autores que defendem que o contato entre os Karajá e os Xavante não teria sido suficientemente profuso de forma a promover condições para trocas culturais e linguísticas. Para Ribeiro (2012, p. 15), que recusa a hipótese de contato para a origem dos dialetos de gênero no Karajá, os contatos com Xavante teriam sido esporádicos. Para Nunes (2015, p. 11) sempre foram hostis e não permitiram casamentos ou outra interação social. Sendo assim, dedicaremos a presente seção à demonstração de registros históricos que poderiam confirmar a intensidade dos contatos entre Xavante e Karajá ao longo da história. É importante ter em mente dois aspectos significativos da exposição dos dados que se seguirá: a falta de registros sobre as populações Macro-Jê no século XVIII e também a dificuldade para lidar com a confusão da nomenclatura usada nos registros existentes para se referir aos grupos Akwén como Xavantes, Xerentes ou Krixás, sem diferenciá-los efetivamente. Essa pesquisa busca demonstrar que houve contato intenso e longo entre os Xavante e os Karajá a partir do qual pode ter havido troca cultural e linguística. O histórico de compartilhamento de territórios e aldeamentos mostra que as duas sociedades estiveram próximas proficuamente. E que as semelhanças que o Karajá apresenta em relação ao tronco Macro-Jê são, basicamente, semelhanças em relação aos Jê, em particular aos Jê Centrais, devido a esse contato.

A seguinte afirmação de Silva (2013) sobre os dados levantados sobre o Xavante, refere-se à dificuldade de se encontrar registros confiáveis sobre os grupos indígenas da época:

Algumas questões observadas, referentes às fontes primárias analisadas, devem ser ressaltadas. Como no período colonial e no Império não havia um bom conhecimento acerca da identificação e diferenciação entre os diferentes grupos étnicos indígenas, os registros históricos, em muitos momentos, são imprecisos na identificação desses grupos. Esta imprecisão se agrava ainda mais em relação à quantificação da população indígena, dados quase sempre mensurados por naturalistas e cronistas que percorreram o interior e por padres que exerceram a função de diretores de aldeia. Outro assunto relegado ao esquecimento, citado apenas de forma passageira, diz respeito à falta de relatos sobre as expedições de extermínio realizadas contra os indígenas, vazio que contribuiu para naturalizar a história de conflito entre os colonizadores e os povos indígenas no Brasil. (SILVA, 2013. p.77)

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Para o autor (SILVA, 2013, p.78), a separação dos dois ramos, Xerente e Xavante, e o movimento que ocasionou a migração dos Xavante para Mato Grosso ocorreram entre os anos de 1810 e 1860, conclusão a que chega comparando as informações encontradas em: Darcy Ribeiro (1977, p, 65) que data a separação entre 1824 e 1859; David Maybury-Lewis (1984, p. 40) que localiza a separação na década de 1840; Oswaldo Ravagnani (1977, p. 107) na década de 1810; e Aracy Lopes da Silva (2009, p. 365) que dá 1820 como provável data da separação do grupo.

Marcelo Oliveira Silva destaca as relações, em algum momento, não conflituosas:

De modo diferente, de acordo com os registros históricos, os Karajá parecem ter mantido uma relação mais estreita com os Xavante, a exemplo de quando os dois grupos, por volta de 1814, lutaram para destruir o Presídio de Sant‘Ana na Ilha do Bananal (...) Entretanto, o aliciamento de índios Karajá pelo governo da província para intermediar um conflito com os índios Xavante na região abaixo de Salinas (MOREIRA NETO, 2005, p. 151) pode ter incentivado, entre outras questões, o desenvolvimento de conflitos entre as etnias. (SILVA, 2013, p.89 – grifos meus)

Sabemos, então, que pelo menos durante um período histórico as duas populações estiveram em convívio não conflituoso.

Toral (1992) traz alguma informação sobre o contato pretérito entre os Karajá e grupos Jê:

Para leste, no interior da margem direita do Araguaia os Karajá tinham um contato bastante antigo com grupos indígenas de línguas da família Jê, os ascendentes dos atuais Kaiapó, que percorriam uma extensa área que abrangia partes da banda ocidental do atual estado do Tocantins, paralela ao Araguaia. É esse o ponto onde Verswijver localiza o grupo em datas anteriores a 1800 (1985,19). Envolvendo os Kaiapó ao sul (atual centro- norte goiano), e a leste, entre esses últimos e o Tocantins, os grupos de língua Akwém, ascendentes dos atuais Xerente e Xavante. (TORAL, 1992, p. 17 – grifos meus)

Segundo Silva (2013), o primeiro documento escrito conhecido sobre os Xavante é datado de 29 de dezembro de 1762 e relata um conflito envolvendo índios Xavantes e moradores dos arraiais de Crixás, Tesouras e Morrinhos. Porém, uma menção anterior é feita aos Xavante em 1750 no primeiro mapa confeccionado sobre a então capitania de Goiás (SILVA, 2013. p.40). E ainda sobre a ocupação territorial dos Xavante por volta de 1750, o autor afirma que:

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O arraial dos Crixás, posicionado como cabeça de julgado, e os arraiais de Pontal, Conceição, Pilar, Amaro Leite e Tesouras, surgidos em decorrência do surto de ouro entre 1730 e 1750, estavam situados em áreas próximas e adjacentes ao território ocupado pelos índios Xavante e por outras etnias do norte de Goiás. Por isso, ficavam expostos aos ataques dos grupos indígenas interessados em afastar a presença do colonizador. (SILVA, 2013, p.44)

Acerca das informações disponíveis sobre a ocupação territorial pelos Xavantes antes de sua pacificação e aldeamento, o autor resume:

Os índios Xavante, de acordo com Darcy Ribeiro (1977): “Ocupavam originalmente a bacia do Tocantins, desde o sul de Goiás até o Maranhão, estendendo-se em sentido longitudinal do rio São Francisco ao rio Araguaia” (p. 65). Aracy Lopes da Silva (1984), a partir de informações e notícias por ela pesquisadas, entendeu que os Xavante habitavam um ”[...] território como se estendendo desde a vizinhança dos arraiais de Crixás e Thezouras, no sul, até o rio do Sono, no norte da então província de Goiás” (p. 203). Perante tais informações, em contraponto com as fontes históricas (MELO, 1762, p. 3; FREIRE, 1790, p. 15-6) e os mapas e cartas cartográficas analisadas (PRIMEIRO, 1750; COLOMBINA, 1751; MAPPA, 17--; MAPPA, 1819; CUNHA MATTOS, 1875), foi possível constatar que os índios Xavante habitavam, no momento do contato com os colonizadores, uma região que se estendia desde a bacia hidrográfica do rio Tocantins até a margem direita do rio Araguaia (SILVA, 2013, p.45)

A primeira experiência de aldeamento dos Xavante se dá em 1788 com cerca de 3500 índios, entre Xavantes e Javaé, no Aldeamento do Carretão (SILVA, 2013. P. 49). Em 1819 só restavam 227; após surtos de sarampo e a não adaptação ao modelo de aldeamento proposto pelo Estado, muitos índios abandonaram essas instalações e retornaram para seus territórios no norte de Goiás. A proximidade geográfica entre os Xavante e os Karajá também se revela em:

Outra legislação exemplar do período, diz respeito à Carta Régia de 5 de setembro de 1811, que autorizou “[...] a guerra contra as tribos Karajá, Apinagé, Xavânte, Xerênte e Canoeiros. Eram exatamente estes povos que habitavam as duas principais vias de desenvolvimento para o norte goiano: os rios Araguaia e Tocantins”. (SILVA, 2013.p. 51)

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Figura 2: Aldeias Karajá, Comissão Rondon.

Fonte: MACHADO, 1947, p.7.

Mesmo em condições variadas, a partir de 1788, vários registros Xavantes em aldeamentos são feitos e, em muitos casos, os Xavante se encontram em aldeamentos compartilhados com os Karajá e outras etnias:

Em São José de Mossâmedes, de acordo com os registros disponíveis, não se conhece a quantidade de índios Xavante que foram aldeados. No entanto, José de Alencastre (1874b) relata que os Xavante conviviam neste aldeamento com os índios “[...] acoroâs, [...], carajas, javaezes, carijós e naúdoz” (p. 287). (SILVA, 2013, p. 71)

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Em 1863, o aldeamento da Estiva, dirigido pelo frei capuchinho Segismundo de Taggia, quando foi visitado por Couto de Magalhães, então governador da província de Goiás, possuía uma população com cerca de 200 habitantes, em sua maioria composta por índios Xavante e Karajá (MAGALHÃES, 1946, p. 126)

Sobre o movimento que leva os Xavante a começarem a se deslocar definitivamente em direção ao Mato-Grosso, destacamos duas passagens do mesmo autor:

A política em relação aos índios em Goiás antes do período pombalino buscou concentrá-los nas missões jesuítas e durante a vigência do Diretório foi dirigida para integrá-los à sociedade colonial como trabalhadores. No século XIX, a política dos aldeamentos foi também direcionada para desapropriar os territórios indígenas. Diferente do que ocorreu na zona costeira do Brasil, no interior, durante o império, os descimentos e os aldeamentos continuaram, porém, com um viés renovado. Buscava-se reduzir os indígenas, tanto do ponto de vista populacional quanto territorial. (SILVA, 2013, p. 54)

Como a ligação terrestre entre a região litorânea e a província de Goiás era difícil, os rios Araguaia e Tocantins se apresentavam como possíveis soluções para o desenvolvimento do transporte e do comércio da região. No entanto, a navegação tinha como desafio a presença de várias nações indígenas ainda não pacificadas e hostis habitando o curso dos dois rios. Para enfrentá-las, o governo da província de Goiás optou por construir, ao longo do curso de ambos os rios, aldeamentos indígenas e presídios destinados a fornecer apoio e segurança às embarcações e às regiões circunvizinhas. (SILVA, 2013, p. 69)

A dificuldade para traçar um histórico das movimentações Akwén é ainda maior ao se tentar identificar os diferentes grupos que se deslocaram, após o abandono do aldeamento de Carretão. Há relatos de três diferentes grupos Xavante, que teriam tomado rumos diferentes após a saída do aldeamento, afastando-se mais ou menos de suas antigas terras, em direção ao Mato-Grosso. Silva descreve assim a diáspora:

Darcy Ribeiro (1977, p. 66) explica que um grupo de índios Xavante, mais inclinado em aceitar o convívio com os colonos, ao deixar o aldeamento Carretão retornou para habitar a margem direita do rio Tocantins, passando a ser designado como Xerente. (SILVA, 2013, p.72)

Outra parcela de índios Xavante, esta avessa ao contato com os colonos, ao deixar o Carretão, isolou-se em seu antigo território localizado entre os rios Tocantins e Araguaia, de onde reiniciou suas hostilidades contra os regionais. Com a pressão das frentes de criadores de gado e agricultores no norte de Goiás, os Xavante se retiraram da região. Após 1859, estes já

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haviam cruzado os rios Araguaia e Cristalino, onde se estabeleceram às margens do rio das Mortes no leste de Mato Grosso, região que passaram a habitar desde então (RIBEIRO, 1977, p. 65). (SILVA, 2013, p.73)

Um terceiro grupo de índios Xavante, com um contingente menor, continuou habitando o Carretão, assim como outros aldeamentos da região norte de Goiás. Nestes aldeamentos, os Xavante, além de trabalharem na manutenção propriamente dita dos aldeamentos, prestavam apoio aos viajantes que atravessavam as longínquas estradas e caminhos de Goiás. Nos aldeamentos, os indígenas também eram contratados para auxiliar a navegação no rio Araguaia, onde trabalhavam como remadores e guias de embarcações, e também executar serviços nas fazendas da região. Aos poucos, devido à falta de interesse e investimentos por parte do governo da província, os aldeamentos se atrofiaram e vários se extinguiram.(SILVA, 2013, p.73)

Em seguida, se dá o segundo momento de separação, do grupo que se encontrava às margens de um grande rio (Tocantins) que divide o grupo que buscava isolamento. Esse momento também é revelado na narrativa pedzai‘o watsu‘u, recolhida por Aracy Lopes da Silva:

Quando os Xavante atravessou, já tinha atravessado, o resto ficou do outro lado, e volta outra vez para trás com medo do bôto. E começou a gritar, do outro lado, os filhos já tinham atravessado. Então as mães estavam chorando: Cuida bem [do] meu filho!”, gritavam para seus parentes, irmãos, tios e tias, gritando. Outro grito para lá e do outro lado os outros gritavam também. Então se afastou do rio e outro foi para trás, voltou para trás e aqueles que voltou para trás ficou por lá mesmo e fizeram uma aldeia. Estes índios chama-se Xerente... (LOPES DA SILVA, 1982, p. 209).

A conclusão de Marcelo G. Silva sobre a divisão do grupo Akwén é que:

O primeiro momento da divisão, o cisma tribal, ocorreu em consequência de divergências de opiniões, a respeito da perspectiva de contato com a sociedade regional, entre os índios Xavante que deixaram o Carretão desde 1800. Aracy Lopes da Silva (2009), ao analisar a divisão do grupo, cita um fato ocorrido em 1810 como uma possível evidência da existência de opiniões discordantes entre os índios Xavante: “Tudo indica que tenha havido uma cisão interna aos Xavante, já que, [...], uma facção procurara o governador, pedindo para ser aldeada. As cisões teriam ocorrido por avaliações diversas quanto à aceitação ou recusa do convívio com os “brancos”[...]” (SILVA, 2013, p.75)

O autor ainda destaca:

Os primeiros foram se concentrando paulatinamente na margem esquerda do Tocantins, mais resguardada, já que a frente pastoril descia a margem direita,

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mais próxima dos criadores das Províncias da Bahia, Piauí e Maranhão. Os Xerênte mansos se envolveram relativamente, nesta época, com os nacionais. Os Xavânte bravios continuaram a procura de um habitat seguro, que encontraram a oeste, e aos poucos foram se aglomerando nas margens do Araguaia até transpô-lo, continuando sempre sua marcha até o rio das Mortes. (SILVA, 2013, p.75)

Pois bem, temos um grupo então que se fixa na margem direita do Tocantins e que, posteriormente será chamado de Xerente, outro que se aproxima da margem do Araguaia e se divide novamente: um grupo faz a travessia do rio e se fixa no estado do Mato Grosso, próximo ao Rio das Mortes e outro, que fica sem fazer a travessia e desaparece dos registros, podendo ter sido assimilado por outros grupos ou exterminado. Ainda segundo Silva (2013), esse grupo poderia ter retornado e se unido ao grupo que ficou às margens do Tocantins ou em algum outro aldeamento existente.

Reproduzido na figura abaixo, um registro do Padre Manuel Aires de Casal, em sua Corografia Brasílica, publicada em 1817:

Figura 3: Corografia Brasílica

Fonte: CASAL, 1817, p.33823

Ainda sobre posteriores divisões entre os grupos Akwén, Silva afirma:

Devido aos desentendimentos internos ocasionados por doenças e acusações de feitiçaria, por volta da década de 1920 o grupo se fragmentou (LOPES DA SILVA, 2009, p. 366). Uma facção se dirigiu para o noroeste e fundou a aldeia Ete‘rã‘u‘ra Wawe, provavelmente nas proximidades do rio Sete de Setembro. Após um período, as duas aldeias se enfrentaram, um grupo de dissidentes de Ete‘rã‘u‘ra Wawe partiu em direção ao sul e se fixou no lugar conhecido como Lagoa, localizado próximo ao rio Couto de Magalhães, onde fundou, por volta de 1930, a aldeia Wabdzerewapré, região esta situada dentro dos limites da atual Terra Indígena Parabubure. Concomitante a esses episódios, ocorreram duas novas cisões em Isõrepré, um grupo se retirou para criar a aldeia Aröbönipó, localizada nas adjacências da própria aldeia-

23 Na edição fonte da imagem, bem como nas edições recentes (como da Itatiaia/Edusp, 1976, p. 154) não se corrigiu o erro da referência, na nota de rodapé, ao Aldeamento do Carretão (que ali aparece como “Carrerão”).

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mãe Isõrepré, e outro seguiu para o norte, até a altura do rio Suiá-Missu, onde estabeleceram a aldeia Marãiwaseté, conforme as informações apresentadas por Aracy Lopes da Silva (2009, p. 367). Segundo a autora: “Tais movimentos parecem ter sido feitos em liberdade, longe de pressões de colonizadores”. (SILVA, 2013. p.112)

Outro trabalho de relevância para o tema é o de Maybury-Lewis (1965), em que se encontram dados sobre a movimentação dos Xavante e também sobre a dificuldade em diferenciarmos os subgrupos indígenas. Maybury-Lewis apresenta os seguintes dados sobre a dificuldade em diferenciar-se Xavantes e Xerentes (o que nos dá, novamente, a possibilidade de argumentar a favor da co-ocorrência de variantes velares e glotais em diferentes grupos que só se estabilizariam após a separação definitiva dos Akwén).

Todas as fontes indicam, então, que havia alguma diferença entre os Xerente e os Xavante no início do século XIX, porém elas divergem quanto à natureza dessa diferença. Relatos etnográficos contemporâneos não ajudam. Eles são tão espaçados que se tornam inúteis para estabelecer tais distinções. Além disso, os costumes dos Xavante e dos Xerente devem ter parecido à maioria dos autores contemporâneos e subsequentes como indistinguíveis. (...) Eu analisei esses vocabulários à luz dos meus conhecimentos sobre a língua dos Xerente e dos Xavante como são faladas hoje, e cheguei à conclusão de que há um grau extraordinariamente alto de correspondência entre elas. Na verdade, somente com a evidência dessas listas não é possível dizer que as duas tribos fossem linguisticamente distintas no início do século XIX. (MAYBURY-LEWIS, 1965, p. 44)

Silva também afirma que tudo indica que os dois grupos eram indistinguíveis na fala e nos costumes, o que reforça a possibilidade de que, naquele momento, pelo menos, houvesse condições de contato para que uma co-ocorrência de velar e glotal estivesse em curso. A época da cisão definitiva entre os dois grupos teria sido então, segundo Silva, algum momento entre 1817 e 1820. Vale lembrar que a lista de vocabulário de Pohl (1819) mostra o Xavante com a presença da velar, assim como o Xerente.

Sobre a dificuldade em encontrar dados sobre as populações indígenas, Rodrigo Martins dos Santos afirma que tem por objetivo contribuir para a “solução do problema da escassez de dados sobre a movimentação e ocupação do planalto central brasileiro por populações indígenas durante os séculos XVIII e XIX, durante as invasões luso-brasileiras” (SANTOS, 2013, p.25).

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Mapa 3: Aldeias Xavante por Maybury-Lewis

Fonte: MAYBURY-LEWIS, 1984, p.38.

Um ponto importante destacado pelo autor, é a possibilidade dos índios Crichás, registrados no século XVIII, serem realmente “um povo Akwén”. Isso fortaleceria a hipótese da pluralidade do grupo akwén e suas possíveis variações linguísticas internas. O autor cita tanto Rodrigues (2004) quanto Bertran (1999) para apoiar sua afirmação:

Um outro povo, cuja presença a leste do Araguaia foi registrada no século XVIII, é o povo Krixá, cujo nome ficou fixado no topônimo goiano Crixás. Pois esse é o nome que os dois povos indígenas vizinhos dos atuais Xavánte dão a estes em suas respectivas línguas: em Karajá Krysa ou Kyrysa e em Tapirapé Kyrytxa. Isso faz pensar que os atuais Xavánte ou A’wen são

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descendentes dos Krixá do século XVIII. (apud Rodrigues 2004) (SANTOS, 2013, p. 271).

Relatos do século XVIII, que apontam que a etnia Crixá seja mesmo alguma tribo Jê central, cujos alimentos e configuração da aldeia é aparentemente próxima a dos atuais Xavante. Ele baseia-se principalmente nos relatos do alferes Silva Braga (José Peixoto da Silva Braga), da expedição de Anhanguera II (iniciada em 1722), que se deparou com uma aldeia desses índios nas cabeceiras do rio Paranã, próximo a atual cidade de Formosa (...) (Apud BERTRAN 1999) (SANTOS, 2013, p.272)

Santos recupera em suas fontes, dados sobre o início da movimentação dos Akwén:

No período colonial brasileiro os Akwén “ocupavam originalmente a bacia do Tocantins, desde o sul de Goiás até Maranhão, estendendo-se do rio São Francisco ao Araguaia” (D. RIBEIRO, 2009 [1970]: 80). Foram invadidos inicialmente por bandeirantes paulistas a partir do final do século XVI e, a partir de meados do século XVII, vaqueiros baianos passaram a compor o grupo dos invasores (LOPES DA SILVA, 1998 [1992]: 362). (SANTOS, 2013. p.272)

Em sua narrativa sobre a movimentação dos Xavante, destaca:

LOPES DA SILVA (1998 [1992]) informa que os Akwén-Xavante, principalmente a partir do século XVIII, promoveram constantes migrações no sentido NE-SO, do sul do Maranhão e Piauí para o atual leste mato- grossense. Esses deslocamentos foram promovidos devido às constantes investidas de Luso-Brasileiros em seu território. E “foram feitas mediante o confronto frequente com outros grupos indígenas (...) atravessando territórios de grupos que, se não eram, tornaram-se inimigos; desalojando uns, fugindo de outros. (...) (SANTOS, 2013. p.272).

Assim como Maybury-Lewis (1965) e como Silva (2013), Santos (2013, p.273) afirma que uma análise de documentos luso-brasileiros demonstra que os Xerente e Xavante não eram claramente diferenciados até a migração final para oeste. Isso reforça a hipótese de que foi após essa travessia e, possivelmente, a partir do contato com os Karajá que essas diferenças se estabilizaram. Isso torna possível argumentar contra a afirmação de Ribeiro (2012) de que o contato é irrelevante e que as mudanças que se deram foram unicamente decorrentes de forças internas (claro que o autor se refere a queda da velar na fala masculina do Karajá como sendo um produto de mudança causada por um movimento interno, mas se considerarmos a influência do Karajá sobre o Xavante/Xerente, a influência decisiva terá sido

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de agente externo, por contato; e não se descarta, a priori, uma mudança interna aos Akwén, depois atuando como influência externa no Karajá).

Duas passagens de Santos (2013) são de interesse:

WELCH (2009: 21-22) diz que anciãos Xavante contam que antes da divisão em Sõrepré, houve a divisão com o povo Xerente. Esta divisão ocorreu provavelmente quando habitavam o norte do atual estado do Tocantins na primeira metade do século XIX. LOPES DA SILVA (1998 [1992]: 364-365) indica que isso se deu devido ao confronto com os Krahô, que os impediram de marchar para o norte. A partir disso, um grupo Xavante decidiu, pacificamente, se fixar às margens do Tocantins, aceitando o contato com o Luso-Brasileiro, eram os Xerente; o outro grupo rumaria para o sudoeste, atravessando o Araguaia pelo sul da Ilha do Bananal, expulsando os Araé que viviam junto ao rio das Mortes (antigo rio Manso);combatendo, também, os Boróro, ao sul desse território, e os Karajá, ao norte (ibid.: 367). (SANTOS, 2013, p.273)

Novamente temos referência sobre a separação dos Akwén acontecendo. Porém, aqui encontramos uma informação a mais, que pode significar que estamos falando de momentos diferentes, de movimentações diferentes e grupos diferentes. A passagem a seguir trata da separação dos Xacriabá:

Por meio de história oral que realizei junto a anciões e professores indígenas da Terra Indígena Xakriabá, no município de São João das Missões-MG, eles contaram que os Xavante e os Xerente partiram para o oeste, e os Xakriabá ficaram nas margens do rio São Francisco,mas quando isso ocorreu, não havia contato nenhum com o “branco” (R. SANTOS & ELOY, 2012). (SANTOS, 2013, p.274)

Apesar de Silva (2013) dar como provável período de separação entre os akwén e movimentação em direção ao território Karajá o período entre 1810 e 1860, Toral (1992, p. 22) aponta que há documentação sobre presença de bandos Xavante a partir de 1775 na margem esquerda do Araguaia. Isso demonstra a anterioridade das movimentações desses grupos e as várias situações de contato ocorridas. Vale lembrar aqui a semelhança entre a palavra descrita acima por Baldus “Kyreyxá” e aquela que dá nome ao grupo Krixá / Crixá descrito por Rodrigues (2004). A seguir, um quadro dos principais registros e um mapa esquemático das movimentações dos Akwén demonstram resumidamente os principais dados da seção:

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Quadro 3: Registros históricos sobre os Karajá e Xavante. Ano Fato ou Registro Onde Quem Xa, Xe, Ka 1750 “Xavantes” aparecem no Goiás Angelo dos Xavante primeiro mapa da capitania de Santos Cardoso Goiás (Silva, 2013) 1751 Xavantes são relatados em Leste da ilha do Francisco Tosi Xavante mapa de Francisco Colombina Bananal Colombia (Lopes Silva, 1992) 1762 Primeiro relato em documento Goiás João Manoel de Xavante sobre os “Xavantes” Mello (Lopes agressivos, pelo então Silva, 1992) governador da província de Goiás, João Manoel de Mello 1788 Chegada dos “Xavante” ao Goiás José de Xavante aldeamento Carretão Alencastre (Silva,2013) 1811 Carta régia autoriza a guerra Santa Maria do Fernando Xavante e contra os Xavante, Karajá, Araguaia Delgado de Karajá Apinajé e Canoeiros. Castilho (Lopes Construção do presídio. da Silva, 1992.) 1819 Destruição do presídio pelos Santa Maria do Lopes da Silva, Xavante e índios Araguaia 1992 Karajá 1819 Vocabulário “Xavante” e Goiás J.E. Pohl (1819) Xavante e “Xerente” Xerente 1844 Vocabulário “Karajá” Castelnau Karajá (1844) 1856 Registro da presença de Mato Grosso Presidente da Xavante “Xavantes” no Rio das Mortes Província de Goiás (Silva, 2013) 1863 Couto de Magalhães visita o Goiás Couto de Xavante e aldeamento da Estiva, com Magalhães Karajá aproximadamente 200 índios, (Silva, 2013) “Xavantes” e “Karajás”. 1897 Viagem de Henri Coudreau Goiás H. Coudreau Karajá pelo Araguaia; contato com (1897) várias aldeias Karajá e anotação de um vocabulário Fonte: Elaborado pelo autor

O mapa 4, abaixo, demonstra resumidamente, a movimentação dos grupos Akwén no século XVIII:

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Mapa 4: Mapa de movimentação dos Akwén.

Fonte: Elaborado pelo autor.

A - Os grupos Akwén se dividem e parte deles deixa os territórios no sul do Maranhão, Piauí e Norte do Tocantins, abandonando os Xakriabá e parte em direção a Oeste. B – Chegam ao rio Tocantins. Não exatamente às margens dele, mas nas terras a leste do rio. C – Provavelmente ali permanecem durante um período, até que, entre 1700 e 1750 uma divisão acontece, característica dos povos Jê, e parte do grupo decide atravessar o rio Tocantins. Temos então, nesse momento dois grupos cultural e linguisticamente idênticos habitando margens opostas do rio. D – O grupo que habita a oeste do rio decide expandir território, dividindo-se. Parte do grupo vai em direção a Goiás. Provavelmente esse é o grupo que seria chamado Crixás posteriormente. Outro grupo vai em direção à ilha do Bananal e entra em contato com os Karajá, possivelmente ali estabelecendo-se. Esse seria possivelmente o grupo que primeiramente teria chegado em contato com os Karajá trazendo a variação da velar em glotal que seria, posteriormente, interpretada como silêncio pelos Karajá.

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E – Em torno de 1780 o governo consegue aldear os Akwén em Goiás, no Carretão. É muito provável que tanto os Akwén do leste como do oeste tenham sido trazidos para lá, numa tentativa de agrupá-los e liberar as terras para uso pela população não indígena. Para Aracy Lopes (1992, p. 364) nem todos Xavante se aldearam, alguns permaneceram arredios e só se juntaram aos grupos novamente após 1830-40). F – Os akwén abandonam completamente o Carretão até 1819 e parte deles volta para o Tocantins, estabelecendo-se como os atuais Xerente. Uma outra parte segue em direção ao Araguaia, cruza-o e se estabelece próximo ao rio das Mortes, os atuais Xavante.

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VIII. Aspectos Antropológicos e Culturais

Natalie Petesch (1993) discute a dificuldade de classificação da sociedade Karajá na polarização Jê - Tupi. A autora propõe demonstrar que “o caráter híbrido da sociedade Karajá decorre menos da apropriação de elementos alógenos do que do desenrolar de um processo interno” (PETESCH, 1993, p. 366). Sua proposta é essencial para a presente análise, por permitir iniciar a discussão sem a limitação de obrigar-se a olhar para os fatos através do viés imposto pelos estudos anteriores que buscam encaixar a sociedade Karajá em um dos “espaços disponíveis” já existentes. Seu trabalho começa com uma ampla descrição da cosmologia Karajá e depois uma análise do que há de mais próximo ou distante entre essa sociedade e os polos Jê e Tupi. Na complexidade da cosmologia Karajá, encontramos evidências de um movimento interno que, em primeiro momento, parece remeter a elementos externos, mas que, segundo a autora, num olhar mais cuidadoso pareceria revelar uma combinação de elementos próprios:

A escatologia Karajá remete aqui à dos Jê-Bororo. ainda que a dinâmica cósmica tenha a verticalidade Tupi. Ao modo dos Araweté. os Karaja dizem que "estão no meio", mas como precisaremos adiante, este "meio"é mais um centro que uma passagem.(...) Este processo de interiorização do inimigo, portador da alteridade, traduz uma certa heteronomia da sociedade Karaja em relação ao exterior, distinguindo-se da autonomia Jê-Bororo, obtida numa relação especular com um outro já integrado. Mas, ao contrário dos Tupi, esta dinâmica permanece centrípeta; de fato, alimenta-se o outro em vez de devorá-lo, para que fique igual a si mesmo e não para o igualar a nós. Voltaremos a este tema adiante. Da analise do sistema cosmológico Karajá, podemos extrair os seguintes elementos: numa estrutura dimensionada verticalmente e privilegiando paralelo com o sobrenatural, há uma oposição manifesta entre, de um lado, as versões celeste e aquática do imobilismo e da permanência, encarnadas por seres imortais que asseguram o bom funcionamento e a proteção dos elementos naturais e sociais, e, de outro lado, a versão única, embora mais ou menos acentuada, do movimento e da labilidade, representada por predadores mortais que ameaçam o equilíbrio da natureza. (PETESCH, 1993, p.369)

Essa estrutura cosmológica se reflete na organização social e na distribuição geográfica dos três grupos. É o que se conclui pela descrição do território Karajá detalhada por Petesch:

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O território ancestral dos índios Karajá abrange as margens do médio Araguaia e de seus principais afluentes, como os rios Javaé, Tapirapé, das Mortes e Cristalino. Uma tripartição sub-étnica se realizou, diferenciando grosso modo os Xambioá ao Norte (iraru mahadu, “povo a jusante” ou “de baixo”), os Javaé ao centro (itua mahadu, “povo do meio”) e os Karajá propriamente ditos ao sul (iboo mahadu, “povo a montante”, ou “de cima”). Como no plano cósmico, esta repartição intra-étnica de caráter vertical toma a forma de um dualismo assimétrico, com o elemento mediano opondo-se e se impondo aos dois elementos polares relativamente equivalentes. De fato, para os Karajá propriamente ditos, os Javaé, que residem mais no interior da Ilha do Bananal do que nas margens do rio epônimo, caracterizam-se por uma existência mais terrestre que a dos dois outros grupos, que vivem de maneira permanente ao longo do Araguaia. Atribui-se aliás aos Javaé uma existência mais subterrânea do que subaquática, e até mesmo sua descendência de um povo anatropófago, meio homem, meio jaguar, curiosamente próximo ao “povo da terra habitada”, anteriormente mencionado. Para se referir a eles usa-se geralmente o termo ixyju, o que designa os índios do interflúvio, comedores de animais terrestres, distinguindo-se assim dos “humanos”, piscívoros. Os Xambioá, yxybiowá, ao contrário, são considerados como povo irmão do bero hyky, o “grande rio”. (PETESCH, 1993, p.370)

A planta tradicional da aldeia Karajá não segue os padrões Jê-Bororo; segundo a autora, nela a casa dos homens não é o centro de um esquema circular, mas se opõe à linha reta das unidades uxorilocais, na altura mediana. E ainda, uma observação importante sobre a relação da estrutura social com o Rio Araguaia:

Quero destacar aqui o papel relevante, e talvez determinante, do eixo aquático do Araguaia, orientado verticalmente (Sul-Norte) na transformação estrutural Karajá.; ele deve ter se constituído em um elemento de atração no processo de abertura do esquema. Mais do que um eixo geográfico determinando a repartição intra-étnica, ele é o principal eixo estrutural na organização do macro e do microcosmo Karajá. O movimento centrífugo de orientação vertical, causado pela abertura do círculo, rompe este "fechamento" da sociedade sobre si mesma, este "cara-a-cara", permanente imposto pela circularidade espacial, esta diametralidade estática própria dos modelos Jê-Bororo. (PETESCH, 1993, p. 378)

Em sua conclusão, a autora afirma:

Sem dúvida a conservação de um centro único, derivado do esquema concêntrico jê-bororo, que permite à sociedade Karajá limitar o movimento centrífugo de sua estrutura aberta, o "sair de si" e a heteronomia latente no pluricentrismo. Aqui também, a tendência para um modelo tupi pode ser observada em uma certa dilatação do centro Karajá, simbolizada nos três espaços rituais que funcionam durante os rituais de iniciação e dos ijasso. Forma intermediária entre dois esquemas estruturais opostos, duas dinâmicas

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antagônicas, o modelo Karajá permite entrever a existência de uma continuidade, de uma lógica de transformação entre as estruturas Jê e Tupi. (PETESCH, 1993, p. 381)

André Toral (1992) se aproxima da análise de Petesch ao tratar da identidade Karajá. Já na abertura de sua dissertação, uma análise da posição delicada dos Karajá entre os Jê:

À falta de uma identidade específica, esse conjunto cultural é considerado uma incógnita nos limites de uma região habitada por povos de língua e cultura Jê. Lingüisticamente o idioma Karajá era tido como “isolado” até bem pouco tempo atrás; só recentemente a família lingüística Karajá foi considerada como definitivamente ligada ao tronco Macro-Jê. Genericamente associados aos Jê, em boa parte pela origem lingüística comum, os Karajá, onde são melhor conhecidos, são vistos como seus “primos longínquos”. Habitantes do rio, ocupam uma posição marginal em relação aos Jê centrais e do norte, habitantes dos campos do Brasil central, não só por sua localização nos limites ocidentais do território histórico desses grupos, mas, creio eu, por uma certa inconsistência na caracterização de sua sociedade. (TORAL,1992, p.10 - grifos meus)

Sobre a origem dos Karajá, encontramos a seguinte informação do autor:

Acredito que a diferenciação dos três grupos atuais seja resultante da separação de partes desses “Proto-Karajá”, em sucessivos deslocamentos de população para o sul. Esses deslocamentos ocorreram muito antes de 1500, pois as fontes do final do século XVI e início do XVII já descrevem o baixo e médio Araguaia como habitado por “Caraiaúnas” ou “Carajaúna”, designações Tupi para os Karajá [Karaja quer dizer “macaco”(Guasch:1981, 570)]. Tudo isso, no entanto, são reconstituições feitas com bases históricas muito fracas como as fontes do século XVII. Os Karajás atuais dizem efetivamente que vieram de “baixo”(do norte), situando o ponto original de dispersão na ponta norte da ilha. que é uma localização posterior. Os Javaé, pelo mesmo raciocínio, dizem que saíram para a superfície no local onde hoje localiza-se sua principal aldeia, Kanoano. Esses dois grupos parecem associar o ponto de sua saída mitológica para a superfície com o “coração” de sua área de ocupação

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Figura 4: Grupo Karajá

Fonte: COUDREAU, 1897, p. 169.

recente. Não se especula muito a respeito de localizações anteriores. Esses “Proto-Karajá” do baixo Araguaia estavam limitados, ao norte, por grupos que formavam a “província” Tupi-Guarani do Pará (Castro:1986, 137), localizada no baixo curso do Tocantins e do Xingú pelo menos desde o século XVII (Baldus:1970,21-24). É possível, uma vez que não há dados anteriores a essa data, que essa população Tupi-Guarani tenha limitado e “empurrado” os Karajá para o sul. De qualquer forma, muito antes de 1500 quando habitavam o baixo Araguaia, os Karajá tinham como vizinhos contíguos, os “Caatingas” e os “Pirapêz”, que eram os grupos Tupi-Guarani que habitavam mais ao sul do baixo Tocantins. Nimuendajú é de opinião de que os “Pirapêz” são os ascendentes dos Tapirapé; Baldus trabalha com a hipótese de que estes últimos e os “Caatingas” são os “antepassados seiscentistas dos Tapirapé” (1970,24). Para leste, no interior da margem direita do Araguaia os Karajá tinham um contato bastante antigo com grupos

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indígenas de línguas da família Jê, os ascendentes dos atuais Kaiapó, que percorriam uma extensa área que abrangia partes da banda ocidental do atual estado do Tocantins, paralela ao Araguaia. É esse o ponto onde Verswijver localiza o grupo em datas anteriores a 1800 (1985,19). Envolvendo os Kaiapó ao sul (atual centro-norte goiano), e a leste, entre esses últimos e o Tocantins, os grupos de língua Akwém, ascendentes dos atuais Xerente e Xavante. Não disponho de informações a respeito do contato dos Akwém e Karajá nesse período, apesar de habitarem áreas próximas. (TORAL, 1992, p.17)

Na conclusão do autor, os Karajá tinham então, uma “província” Jê a leste e ao sul e ao norte, uma “província” Tupi-Guarani e destaca a probabilidade de trocas e visitas regulares entre os Karajá, os Tupi-Guarani e os ascendentes Kaiapó, considerando-se a antiguidade dos traços comuns de cultura material como cestaria, plumária e armas, e de organização social como a casa dos homens e a organização dual. Há ainda mais informação sobre os movimentos dos grupos Karajá muito antes da chegada dos portugueses:

Em data muito anterior a 1500, parte considerável dessa população Karajá do baixo Araguaia passa progressivamente a se dirigir para o sul, desligando-se dos demais, e estabelece-se no seu médio curso, na altura da Ilha do Bananal. Passam a se relacionar pacificamente com uma série de tribos de referência mítica, como os Kalatina, Besohoni, Hytè, Horue e Werè. A esse primeiro grupo de secessionistas, ascendentes dos atuais Javaé, segue-se, pouco tempo depois, uma segunda leva que se estabelece na região norte da Ilha: são os ascendentes dos atuais Karajá. Progressivamente os do norte da Ilha passam a entrar em conflito com os da região central, terminando por expulsá-los e às tribos que se coligavam com eles, como os Were. Alguns Karajá dizem que os Were migraram para a região do atual Xingu; outros dizem que são os atuais Javaé. De qualquer forma, estes últimos retiram-se das margens do Araguaia e dirigiram-se para leste, para o interior da Ilha. A população Karajá termina por concentrar-se na região central da Ilha do Bananal. Em todo caso as relações entre os Karajá e Javaé tornaram-se pacíficas até bem antes de 1775, quando existe o primeiro registro de visitas entre os grupos (Fonseca (1775):1867). Todos os Karajá, finalmente, mantinham contato com uma série de grupos (que só conhecemos através de referência mítica, ou que foram exterminados, como os Araé no século XVIII), habitantes do rio das Mortes que provavelmente estavam em contato com grupos indígenas dos formadores do Xingu. Isso talvez explique como os Karajá compartilham uma série de traços que Galvão considera distintivos dos grupos da área cultural do Xingu: “cerâmica de forma circular, fundo chato, bordas extrovertidas, decorada”; “uso cerimonial do propulsor de flechas”; “xamanismo desenvolvido” etc (1979, 217). Acrescentaria ainda a luta ijesu Karajá e Javaé, semelhante ao “huka-huka” xinguano, desconhecida de outros grupos Kaiapó ou Akwém. Esse contato indireto com grupos xinguanos não deve ter ultrapassado o século XVIII, período em que os grupos que faziam a “ponte” foram exterminados ou se afastaram em função das penetrações escravagistas e/ou

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mineradoras. Não há dados históricos que afirmem encontros entre os Tapirapé, o grupo que ocuparia área próxima, compreendida pelo rio que leva o nome da tribo, no século XVIII, com as tribos da bacia do Culuene (Baldus: 1970,54). A oeste é provável que os Karajá mantivessem contatos com grupos reconhecidos como Aralahu, que modernamente designa Kaiapó. Muitos velhos Javaé afirmam que, há muito, muito tempo atrás, os Kaiapó habitaram o interior da Ilha do Bananal. Corrobora suas afirmações a toponímia Javaé para a região, onde aparecem locais associados a esses grupos, como Aralahu ahu, “a lagoa dos Kaiapó” etc.(TORAL, 1992, p.18)

Ao aproximar-se a cultura Karajá de uma rede de contatos com tupi-guaranis, xinguanos e Jês, o autor contribui para a hipótese de Petesch de que a cultura Karajá é intermediária. A data e as condições dadas para a trasposição do território Karajá pelos Xavante são as mesmas dadas em outros autores: por volta de 1840, em direção ao Rio das Mortes, fugindo da aproximação da exploração e mineração dos lusitanos e brasileiros. No entanto, o autor também afirma haver registros de ataques Xavante aos Karajás na margem esquerda do Rio Araguaia em 1775 (TORAL, 1992, p.21), o que pode significar grupos com presença mais antiga do que suposto por Nimuendajú e Maybury-Lewis e já nessa época há relatos de ataques de Xavantes para raptarem crianças e mulheres. Ainda sobre a origem do povo Xavante, Santos (2013) afirma:

Em entrevista que realizei em maio de 2012 com alguns anciões da aldeia Etenhiritipá, localizada na terra indígena Pimentel Barbosa, município de Canarana-MT, eles afirmaram que na mitologia de seu povo, os antigos contam que vieram de onde nasce o sol, atravessaram o grande rio Araguaia fugindo do colonizador, e que “onde há muito buriti aí é o nosso lugar”. Corroborando com a hipótese defendida por RODRIGUES (2003: 71), pois onde há hidronímia Crixá, há presença de buritizais, alguns deles localizados nas proximidades da cidade de Formosa-GO.) (SANTOS, 2013, p.272)

Já Nunes (2015) destaca um mito de criação Karajá:

Quando chegam no Araguaia, eles encontram outros Inỹ. Estes haviam recém saído do bèrahatxi, “o fundo do rio” – mundo subaquático, patamar inferior do cosmos. Wokubèdu ♀, Woubèdu ♂, estava de resguardo por conta do nascimento de seu filho. Por isso ele saiu em busca de mel. Foi andando, andando, andando... entrou em um trilheiro estreito e acabou descobrindo uma passagem para o mundo de fora (ahãna, “lado de fora”). Ele tira mel e encontra diversas frutas, que leva para os seus experimentarem. Encantados com o novo lugar, todos saem do fundo do rio, seguindo Woubèdu, para morar às margens do Araguaia. Apenas Kàboi não saiu, pois ficou entalado no buraco devido a sua enorme barriga. De lá ele voltou com sua família para o fundo do rio. Todos os outros saíram junto com Woubèdu: todos os Inỹ do fundo do rio, e todos os ixỹju, todos saíram com seus parentes: Woku ♂, Wou ♂, (Tapirapé), Wèrè,

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Wèrèraòra, Werehina, Werekina, Kyrysa ♀, Yrysa ♂ (Xavante, Xerente), Kralahu ♀, Àralahu ♂ (Kayapó), Kymỹkò, Hãrakuè ♀, Hãrauè ♂, Ijèwèhè. Apesar de apenas esses serem citados nas versões que escutei, os narradores são enfáticos ao afirmar que todos os grupos ixỹju que existem hoje saíram naquela ocasião. (NUNES, 2015, p.3)

Ainda em Nunes (2015), uma possível informação sobre a mistura de culturas que formou os Karajá e Javaé:

Os Karajá dizem simplesmente isso: que os Wèrè expulsos por Tèribrè são os ancestrais dos atuais Javaé. Tive notícia de um homem, o velho Burahi, que diz ser ele próprio um Wèrè (segundo informação de seu neto, Kahukaxi Javaé). Mas a mitologia javaé dá conta de uma história um pouco mais complexa. Chegando nas proximidades do braço menor do rio, os Wèrè teriam passado a coabitar com os Tòlòra na aldeia Marani Hãwa, que teria sido “o mais importante centro reverenciado pelos estrangeiros” (RODRIGUES, 2008b: 87). Vários ixỹju iam até lá para visitar e/ou para assistir e participar dos rituais, trazendo suas comidas e conhecimentos, que foram sendo incorporados às práticas locais. “Tudo que era trazido pelos mais diversos povos como reverência ao iòlò [tipo de chefia] Tòlòra era, por um lado, integrado a esse caldeirão de misturas culturais, que ia aos poucos consolidando novos padrões, seguidos até hoje; por outro, tornava-se uma fonte da qual todos se nutriam, enriquecendo-se com os novos conhecimentos e costumes” (id., ibid.: 88). É desse processo de intercâmbios e criações acontecido em Marani Hãwa que, segundo Rodrigues, surgiram os Javaé atuais.(NUNES, 2015. p.5)

Nunes ainda afirma características compartilhadas entre os Karajá e o Macro-Jê:

As descrições feitas sobre Wèrè apontam várias características que os aproxima dos atuais grupos Jê (ou Macro-Jê). Eram grandes guerreiros, fazendo ataques aos vários povos circunvizinhos; na mitologia Javaé, suas principais contribuições para “novos padrões” surgidos em Marani Hãwa, segundo Rodrigues (id.) foram a língua (Macro-Jê) falada pelos Karajá e Javaé atuais e o grande ritual coletivo de iniciação masculina, nos quais os homens são divididos em grupos de praça. Além disso, seguindo a mitologia Karajá, cabe notar que as aldeias javaé do final do século XIX e início do XX, que não ficavam à margem do braço menor do Araguaia, mas sim no interior da Ilha, à beira de algum rio menor ou lago, não eram lineares, como as Karajá e Javaé atuais, mas sim circulares, com a casa dos homens no centro, ao modo dos Jê setentrionais. Do período que os Wèrè ficaram junto à Teribrè, assim como da convivência com os Javaé atuais, resultaram alguns casamentos, de modo que, hoje, há aqueles que são Were riokorè, ou ixỹju riokorè, “netos de Wèrè”, “netos de Javaé”. (NUNES, 2015, p.6)

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É importante destacar que, segundo o autor, os Inỹ só possuem um termo, Krysa ♀, Yrysa ♂, para se referir a ambos, Xavante e Xerente (NUNES, 2015, p.11). Porém, sobre o contato entre os Karajá e os Xavante a conclusão de Nunes é outra:

Nunca escutei qualquer relato de que tenha havido relações de troca entre os dois grupos, nem rapto de mulheres e crianças, nem casamentos; muito pelo contrário, os Inỹ afirmam que isso nunca ocorreu, pois os Xavante são ixỹju tyhy, “ixỹju de verdade”, i.e., bravos e associais, “que nem bicho”, como se ouve vez ou outra. ainda hoje, em tempos de convívio pacífico, mediado pelos brancos, os dois grupos mantêm um distanciamento nítido, e não raro tensões ocorrem quando se encontram em locais como a CASAI de Goiânia. O único aspecto produtivo para os Inỹ dessa inimizade ferrenha eram os espíritos dos inimigos mortos em guerra, que, por meio da retirada de um osso do pé, eram trazidos para a aldeia, onde se realizava periodicamente o ritual de ixỹju uni, “espírito de ixỹju”. (NUNES, 2015, p. 11)

Para Nunes a relação Karajá x Xavante não foi de trocas e sim, exclusivamente, de guerra. O autor relata um número mínimo de casamentos, por exemplo, e de aproximações entre os dois povos tomadas de tensão e violência apenas. (NUNES, 2015, p.11) Nunes ainda (2015) destaca, sobre os principais traços incorporados pelos Karajá a partir de seu contato com outros grupos (ixỹju = estrangeiros):

Por fim, as pessoas. Essa é provavelmente a influência ixỹju mais nítida no mundo Karajá de hoje. Os filhos e netos de Tapirapé, como vimos, são muitos; os Àralhu riokorè, netos de Kayapó, são escassos, e os de Xavante inexistem. Mas há também os netos de biri (periquito – cf. supra, a história de inỹ wèbòhòna), de Wèrè, de Tori (não indígena), entre outros. Muitas pessoas, entretanto, não falam abertamente de seus ixỹjuna. (NUNES, 2015, p.17)

Vale registrar que a existência de descendentes Tapirapé ou Kayapó refere-se a casamentos interétnicos ocorridos no séc. XX o que não exclui, portanto, uniões interétnicas de Karajá com Xavante eventualmente ocorridas na primeira metade do séc. XIX. Toral, por sua vez, destaca que apesar de a memória Karajá guardar forte ressentimento pela violência dos ataques, ainda assim os membros da comunidade Karajá do sul da ilha mantiveram contato com os Xavante, incluindo casamentos (TORAL,1992, p. 22). Um fato muito importante revelado no trabalho de André Toral (1992) é a transformação das experiências vividas com os Xavante (e outros povos) em representações cerimoniais religiosas. Destacam-se duas passagens:

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“Antigamente os ãjiwèsa aõni atacaram uma aldeia dos Xavante e mataram todos. O padre tentou acalmá-los e também foi morto. Alguns homens tentaram matá-los e conseguiram, jogando gasolina neles e queimando-os. Vivem no mato. Como os iny eles também saíram para a superfície da terra através de um buraco”. O episódio, certamente emprestado de um episódio do contato dos Xavante nas décadas de 50 ou 60, mostra-os como um grupo de seres bravios, mais violentos que os Xavante, tidos como inimigos temíveis, e somente destrutíveis pelo fogo, elemento constante nas estórias de extermínio dos Karajá. (TORAL, 1992, p.188)

“Antigamente a gente lutava com os Tapirapé, Xavante, Kaiapó e tori. Então existem alguns que tem o tyytyby para os filhos de seus irmãos, para o filho de suas irmãs, para quem tem o filho de seus filhos. Quando alguém mata tori, ou mata Kaiapó, ou mata Xavante, ou mata Tapirapé, então esse que matou, com o espírito, um outro “espiritualiza-o” (tai tahe tarioreriore-o, ityytyby-di ijõ rityytybynymy, transforma/produz o espírito) para os filhos de seus filhos ou para o filho de sua irmã, outro para o filho do irmão mais velho, depois entra na casa de seu irmão mais velho ou então de seu filho (para lhes entregar o ixujutyytyby). “(...) As pessoas cujos irmãos têm muitos filhos vão passando de um para outro e depois passa para outro. Nunca vai acabar” (Paulo Ijawari, Karajá de São Domingos. Traduzido de relato gravado em Karajá). (TORAL, 1992, p. 194)

Sobre a religião Karajá, Toral inicialmente segue a mesma linha de análise de Petesch (1992), ao relacionar a estrutura social e a religião. Os poderes que se distribuem na sociedade estão relacionados aos poderes das entidades do mundo imaginário. Para o autor, é uma sociedade instável, com grande possibilidade de segmentações. E, diferente dos grupos Jê que possuem morfologias sociais expressas em grandes aldeias, o sistema social e religioso Karajá é adaptável a pequenos grupos locais ou articula-se a na totalidade das comunidades. Também como Petesch (1992), Toral afirma que os Karajá trazem em toda sua mitologia, morfologia social e xamanismo um movimento contínuo de ascensão:

Tanto o movimento que marca sua saída das profundezas da terra, como o que descreve seu deslocamento histórico em direção ao sul, são orientados “para o alto/para cima”, ibòò-ò; sua contraparte é um ponto original situado “para baixo”, iraru-ò (norte). “Para baixo” se identifica com o passado; “para o alto”, com o futuro. Independente dessa interpretação, cada um dos ijoi Karajá e Javaé é considerado “de baixo” ou “de cima”, o que me parece ligado à instalação de parentelas numa ocupação pioneira do território, que descriminaria assim os que ficaram e os que foram mais além. Os grupos de ijoi “de cima/do alto” são vistos como a vanguarda guerreira da tribo, que concretamente expandiram seus limites Araguaia acima. Além de uma informação sobre a dispersão original dos ijoi no território atual, ser “do alto” é um valor partilhado alternadamente pelas aldeias que formam os grupos Karajá e Javaé. Significa a condição de pioneiros na relação com muitos níveis. Na festa anual da Casa Grande a comunidade hospedeira

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sempre é reconhecida como “do alto”, e os visitantes “de baixo”. O ijoi “do alto”, formado pelo conjunto de homens da aldeia que recebe é o “grande ijoi”, habitante da Casa Grande; aos “de baixo” é reservada a Casa Pequena. O comando de todos os ijoi é reservado ao “pai da Casa Grande”, o Hetohokytyby, um dos “do alto”. O conjunto de homens da tribo deixa de ser considerado como participantes de ijoi distintos e se sujeitam à hierarquia “alto”/”baixo”. O conjunto dos ijoi é representado como uma enorme e única expedição guerreira, com vanguarda e retaguarda, comandos unificados, tarefas específicas, alimentação especial, etc. ( TORAL, 1992, p. 268 )

Segundo Toral (1992), os Karajá acreditam terem saído das profundezas do rio (nisso se distinguem de outros grupos Jê, como os Kaingang e os Xokleng, que acreditam ter saído de dentro da terra), particularmente, nesse caso, de pontos próximos ao Araguaia e a partir dessa ascensão iniciaram um movimento rumo ao sul:

Todos os grupos Karajá vieram do norte. O seu movimento na superfície da terra em que vivem, desde que miticamente saíram das profundezas, é descrito como sendo continuamente orientado para o “alto”, ibòòò, i.é., para o sul, para o alto curso do Araguaia. Esse movimento em direção ao alto curso do rio fez-se provavelmente a partir de um ponto original de dispersão situado, ao que tudo indica, no baixo Araguaia, provavelmente próximo à sua foz no Tocantins. (TORAL, 1992. p.16)

A região norte da Ilha do Bananal tem sua topografia marcada pelos acontecimentos da gênese do povo. Segundo Toral, o cosmos Karajá se constitui de:

(...) uma região conhecida como Berahatxi webarò lara (“as profundezas por detrás das águas”) onde viviam e onde vivem os inyroko (“o resto de iny”, gente que fala Karajá), ou os ijasò - a terra em que vivem os Karajá, wasureny (“a terra de nós todos”) - três planos celestes: o mais próximo é o biurawetyky (“o espaço onde estão as nuvens”, o “céu”); acima desse nível passa a lua e só então atinge-se o segundo nível: o “lugar” de Kanysiwè (Kanysiwèisy); acima desses planos, lá onde estão as estrelas, está o “lugar onde vive Xiburè”, Xiburèisy. Referindo-se aos diversos planos cosmológicos, muitas vezes os Karajá se autodesignam como ityamahãdu (“o pessoal do meio/metade”), referindo-se à sua posição mediana entre o plano das profundezas e os três planos celestes. O “caminho por onde vai o sol”, txury-ò, descreve um círculo ao redor desses cinco níveis. Passa pouco acima de Xiburè taihyre e desce até passar por Berahatxi, nas profundezas. Lá, o sol surge do lado oeste e desaparece do lado leste, que é por onde surge aqui na superfície. Por isso, quando é dia aqui na superfície, é noite nas profundezas e vice-versa. (TORAL, 1992, p.146)

A relação dos Karajá com o cosmos é resumida pelo autor na seguinte passagem:

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A situação dos Karajá poderia ser descrita como um movimento ascendente interrompido. Saíram de um inframundo para a superfície da terra e aqui quedaram. Os criadores da terra, no entanto deixaram-nos em seguida, dirigindo-se para suas moradas celestes, para o alto. Apesar dessa situação, os Karajá não se sentem de forma alguma isolados em sua existência aqui na superfície da terra. Os ijasò, além de serem recebidos nas aldeias durante a maior parte do ano, são freqüentemente vistos saindo da água por homens e mulheres. Pescadores e caçadores encontram-se com seres fantásticos no isolamento da mata ou do rio.Grande parte dos homens de qualquer aldeia sabe manipular parte diminuta dos princípios através dos quais Xiburè interfere no cosmos. Todo jovem Karajá e Javaé, durante sua iniciação, convive e interage com diversas categorias de seres cosmológicos, aprendendo formalmente as técnicas de embates que lhe permitirão defender-se e visitar diferentes planos cosmológicos. (TORAL, 1992, p.147)

Ao fim de sua dissertação, Toral propõe pontos em comum entre os Karajá e outros Jê como os Xavante e os Kaiapó. Inicialmente, mostra-se a proximidade entre o sistema com tendência a patrilinear, expresso nos grupos de praça e referência a ancestrais masculinos e também pela existência da casa dos homens e algum grau de agressividade cerimonial contra as mulheres, mas menor agressividade em relação a membros de outras aldeias. Também se assemelham os Karajá aos Xavante e Kaiapó pelo sistema de categoria de idade. Destaque-se a seguinte afirmação:

Por esses critérios os Karajá se aproximariam dos Jê centrais, Xavante e Xerente, pela sua tendência à patrilinearidade (expressa pela referência a ancestrais masculinos e ligação patrilinear aos grupos de praça), existência de uma casa dos homens e pela agressividade cerimonial contra as mulheres. Diferentemente desses últimos, no entanto, os Karajá não reproduzem essa agressividade através do uso de violência na relação com estranhos de outras aldeias. (...) Os Karajá me parecem definitivamente ligados a esse “complexo cultural” Jê. (...) Uma das mais características instituições Karajá em relação aos demais Jê, o xamanismo, apresenta muitos pontos comuns com seu correspondente Bororo: o hàri, xamã Karajá, apresenta muitas semelhanças com o bari, um tipo de xamã Bororo. (...) Dentre os grupos ligados ao tronco Macro-Jê, aquele que possui o xamanismo que mais se assemelha ao Karajá é, sem qualquer sombra de dúvida, o Bororo. (TORAL, 1992, p. 271)

Toral aproxima as instituições sociais Karajá de uma variedade de características Jê, mas ao mesmo tempo de nenhuma em particular, mas afirmando, ao final, que há uma relação muito mais provável com esse “complexo cultural Jê” (TORAL, 1992, p.271) do que com o tupi. Sua conclusão é que o Karajá é mais provavelmente filiado ao tronco Macro-Jê. Porém, o que Toral demonstra, de fato, é proximidade e semelhanças culturais, não propriamente filiação.

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Outro aspecto importante dessa relação é a belicosidade Xavante, conhecida na literatura. Podemos ler sobre isso em Toral:

Os Xavante, ao que tudo indica, não limitavam suas correrias às margens do Araguaia: os contatos hostis relatados pelos Javaé, habitantes do interior da Ilha, mostram que eles penetravam profundamente na área tradicional dos grupos Karajá. Na maioria das aldeias Karajá encontra-se um rico acervo de histórias sobre mais de dois séculos de entreveros, revanches sangrentas, lutas na praia, Karajá quebrando a cabeça de Xavante meio afogados, etc. Essa série de episódios, onde geralmente os Karajá se vingam com sucesso de traiçoeiras surpresas preparadas pelo Xavante, constitui a ideia mais comum daquilo que os Karajá e Javaé consideram como seu relacionamento tradicional com os Kàrysa, Akwém. Os Karajá e Javaé têm uma relativa admiração pelo valor guerreiro dos Xavante. Consideram-nos, no entanto, irremediavelmente traiçoeiros e sanguinários no sentido negativo. Em muitas aldeias os avôs e pais de Karajá (mais freqüente) e Javaé (menos) adultos perderam a vida nas mãos desses seus inimigos das décadas de 40 e 50. Alguns Karajá dizem saber quais são os Xavante agressores de sua família. Existe um ressentimento vivo pelas mortes promovidas pelos Xavante, num passado que não consideram remoto de forma alguma. (TORAL, 1992, p. 22)

Esse é um dado importante a ser considerado sobre direção da influência, dos Xavante sobre os Karajá, e não o contrário. A hipótese do domínio dos guerreiros Xavante sobre as mulheres Karajá e por consequência o uso pelos homens jovens Karajá da marca de “homem dominante” sem a plosiva velar se torna mais plausível. Baldus (1970) também relata a presença de pelo menos um grupo Xavante no Araguaia, em frente à Ilha do Bananal, em momento pretérito e também, o fato de que a denominação Tapirapé para designar os Xavante tem sua origem no Karajá:

Diziam os Tapirapé não serem os Ampeneá amigos dos Kyrydjá, seus vizinhos orientais, chamados Xavantes pelos brasileiros. A denominação usada pelos Tapirapé provém, aparentemente, da língua Karajá, como mostram as variantes mostradas por Krause. Os Karajá tinham e continuam a ter contatos diretos com os vizinhos da margem esquerda do Araguaia, designados de Yreuxá no idioma dos homens e Kyreyxá no das mulheres de Bororomandú, aldeia Karajá situada perto de Santa Terezinha. (BALDUS, 1970. P.59)

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Mapa 5: Localização dos Karajá em relação a grupos Kayapó.

Fonte: Kissenberth, 1912, p.37.

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Enquanto, pelo que pude averiguar, não havia, no rio Tapirapé, encontros entre os Kyrydjá (Akúe-Xavánte), por um lado, e os Tapirapé, Karajá e brancos, por outro lado, o mesmo não se deu na interlândia de ambas as margens do rio das Mortes. Por isso havia, em 1935 e, ainda, em 1947, tanto índios quanto outros – que viajavam com algum receio pelo braço maior do Araguaia, ao longo da ilha do Bananal, e no trecho de Sangradouro a Registro (Araguaiana) da secular estrada de Cuiabá a Goiás. Tratei em outro lugar das hostilidades e da pacificação daqueles Xavánte, acrescentando pequeno estudo comparativo de alguns dados etnográficos a fim de demonstrar que sua cultura, profundamente diferente da das tribos vizinhas, assemelha-se muito mais à dos Akúe-Xavánte descrita por Pohl e Martius do que à dos Kayapó visitados por Krause.(BALDUS, 1970. P.60)

Há uma narrativa a respeito dos Xavante que foram morar na água e nunca mais voltaram, que pode ser encontrada em Maybury-Lewis (1984) em sua análise dos ritos de passagem Xavante. Como se verá a seguir, é uma narrativa sobre um Xavante que deixa de ser Xavante:

Tepemrã bateu no chão e a água jorrou, cobrindo a terra. Era o O Wawe. Seu pai lhe perguntou onde os Xavante iriam morar agora, já que ele tinha feito tanta água. Tepemrã porém, continuou na água. Seu pai e seus irmãos tentaram persuadi-lo a sair mas ele não aceitou. Permaneceu na água com suas esposas, e criou muitas coisas.(...) Depois recusou-se a participar de uma caça e coleta com seu pai e seus irmãos. Em vez de ir, foi viver na água, onde criou muitas coisas. (MAYBURY-LEWIS, 1984, p.315)

Uma variação da mesma narrativa é encontrada em Sereburã et al. (1998):

O rapaz então fala para os seus irmãos: Agora vocês devem ir embora. Eu já estou longe de vocês. Estamos separados para sempre. A família vi embora e o tempo passa. Um dia decidem ir visitá-lo de novo. E seguem para o mesmo lugar onde ele estava vivendo. Porque ele não mudava de lugar. Não era mais como A´uwe que vivia em zomori (o cerrado) (...) Vão se aproximando e quando chegam perto veem que a outra margem está muito longe. Já não dá mais para chegar lá. O rapaz fez o barranco desmoronar e foi alargando, alargando a água. Os parentes conseguem ver do outro lado, lá longe, um menino brincando. O filho dele! Agora ele tem uma casa diferente, tem família. E tem um varal cheio de roupas estendidas na beira da praia. Os irmãos voltam para casa e contam para o pai: Meu pai, ele agora está muito longe. Agora tem mulher e filho, tem a família dele. Agora ele tem roupas e tem arma de fogo. Ele se afastou para sempre do nosso povo. (SEREBURÃ et al, 1998. p. 70-71)

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Figura 5: Detalhe da “Karte” de Krause, 1911.

Fonte: Krause, 1911.

O que merece destaque aqui, é que ambas narrativas parecem claras em seu conteúdo: a separação de um Xavante (um grupo) que vai morar com os Karajá e se torna um deles. Isso ilustraria, por exemplo o evento narrado por Toral (1992, p. 22) e Rodrigues (2004, p. 3), de grupos Xavante já habitando a margem esquerda do Araguaia em 1775. Outra referência de grande valor para essa discussão é o mito de origem da agricultura Karajá encontrado em Peret (1979), no mito Tainahakã (p.67ss): Tainahakã é uma estrela, Vênus, a Estrela D´Alva). Beluá, a moça “mais cortejada da aldeia”, dela se enamora e pede, durante muitas noites e sob crítica da aldeia, que Tainahakã venha buscá-la. Uma noite, a estrela desce, em forma de Inã, à vista de todos da aldeia, mas é recusado por Beluá por sua forma de idoso. A irmã de Beluá, Kunadiki, o acolhe com as devidas honras. Ele fica na aldeia e “todas as madrugadas “saía para a floresta, de onde só voltava à tarde e de mãos vazias”, até que um dia, temendo por Tainahakã à chegada de um temporal, Kunadiki vai atrás dele e o descobre em sua verdadeira forma (jovem) e juntos “de mãos dadas, percorrem a primeira lavoura destinada aos Inã”. Esse é o mito de origem da agricultura Karajá, que a

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atribui a um homem que veio do céu e se casou com uma mulher Karajá, ou seja: o mito atribui a introdução da agricultura entre os Karajá a um casamento de uma mulher Karajá e um homem de outro povo (vindo do céu ).

Do céu, em mitos, pode representar apenas uma posição mais alta, uma montanha ou serra, ou terras altas em relação à várzea do rio. Em mitos de outros povos da região, a origem da agricultura também é atribuída à união com uma estrela, mas a união se dá, nos mitos dos outros povos, entre um homem e uma mulher estrela. É o que acontece nos mitos de origem da agricultura dos Kraho (Harald Schultz, 1950: Katxeré, a mulher estrela), dos Canela Ramkamekrá (Nimuendajú, 1946: Katxetikwéi e Tukti), dos Apinayé (Nimuendajú, 1939: Kandyê-Kwéi), dos Kayapó/Mebengokre (Banner, 1957: Nhôkpôkti) e dos Kayapó-Xikrin (Vidal, 1977: Nhiokbôkti). Destaque-se que no registro de Lux Vidal sobre os Xicrin (1977, p. 233), a mulher-estrela também é identificada como a Estrela D´Alva. 24

Há duas coisas importantes a se considerar a partir desse mito de origem da agricultura Karajá: 1) que o contato entre os Karajá e os povos Jê dos seus arredores teria permitido compartilharem a estrutura de um mito, 2) o “sinal contrário” que distingue o mito Karajá dos outros povos Jê: os Jê recebem a cultura por contato com outra sociedade da qual importaram ou incorporaram mulheres, enquanto os Karajá também teriam recebido a agricultura por contato, porém vinda por homens de outro povo incorporados em sua sociedade – os Xavante / Akwén. Haeri (1995) discute a necessidade de considerar-se a questão social quando se estuda variação de fala feminina e masculina, ainda que o ponto de partida seja uma diferença de ponto de articulação ou anterioridade e posterioridade de vogais, por exemplo. Para Haeri há, quase sempre, um momento em que a maioria dos autores precisa ir ao social: “normas culturais, convenções” (HAERI, 1995, p.104) para expandir sua análise, e acrescenta:

“(...) seres humanos não são autômatos, completamente limitados por sua anatomia... Há, em essência, um dialeto masculino que é transmitido”. Há uma certa circularidade nesses argumentos – de onde vem o arquétipo? Mas eu acredito que a circularidade é justificada se concordarmos que as diferenças físicas alimentam as construções sociais e as construções sociais, por sua vez, influenciam as manipulações da magnitude de diferenças físicas.25 (HAERI, 1995, p.104 – tradução minha)

24 Wilmar D´Angelis em comunicação pessoal. 25 Human beings are not automata, completely constrained by their anatomy…There is in essence a “male” dialect that is culturally transmitted. There is a certain circularity in those arguments – where does the archetype come from? But I believe the circularity is justified if we agree that physical differences feed into social constructions and social constructions, in turn, influence manipulations of the magnitude of physical differences

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Comentando uma afirmação de Labov sobre a possibilidade de se conseguir determinar grupos específicos de mudanças mais comuns em mulheres e outros comuns em homens, Haeri reafirma a impossibilidade de se compreender diferenças entre fala masculina e feminina sem considerar as questões sociais e de gênero:

Mas, se fossemos capazes de chegar a tais agrupamentos de mudanças sonoras, isso por sí só não explicaria as complexas razões por trás das diferenças de gênero na fala. Evidências sólidas suficientes do entalhamento da variação e da mudança na estrutura social já se acumularam de forma que uma explicação baseada somente em diferenças físicas seria altamente suspeita. Além disso, eu argumentaria contra uma única e abrangente “generalização significativa” que explicasse as diferenças para cada tipo de processo fonológico. Não precisamos tratar a possibilidade da iconicidade e sua interação com os fatores sociais como um fenômeno de tudo ou nada. As variáveis sociolinguísticas que estão envolvidas em mudanças contínuas, e cujas variantes demonstram gradiência parecem demonstrar traços de iconicidade muito mais imediatamente do que, por exemplo, queda de t/d ou (ing)26. (HAERI, 1995, p. 105 – tradução minha, grifos meus)

O trabalho de Haeri trata de realizações de palatalização e faringalização, anterioridade e posterioridade, no árabe do Cairo, na fala de homens e mulheres em determinados grupos e classes sociais e a grande questão levantada pela autora é a interinfluência entre o biológico e os social. Mesmo assim, suas observações podem ser levadas em conta na discussão sobre fala masculina e feminina Karajá. Tratando das variações que acontecem entre os diferentes níveis de regularidade de processos como a variação de fala feminina e masculina ou assimilação de vogais em diferentes dialetos do Karajá, Ribeiro (2012) relaciona tudo isso a fatores internos da língua e suas diferentes manifestações em cada dialeto. Porém, se colocarmos a questão do contato e diferentes históricos de enfrentamento e convívio de cada grupo com outras comunidades, sejam Xavantes, Xerente ou até outros grupos não Jê Centrais, podemos chegar a uma mais profunda (ainda que mais complexa) representação da origem dessas variações dialetais. Haeri afirma que:

O caso da faringalização e palatalização em árabe corrobora as três afirmações deste artigo: a) processos de anteriorização e posteriorização

26 But even if we were able to arrive at such a group of sound changes, it would not in itself explain the complex reasons behind gender differences in speech. Enough solid evidence on the embeddedness of variation and change in social structure has accumulated thatan explanation based on physical differences alone would be highly suspect. In addition, I would argue against demands for one sweeping, “significant generalization” that would explain differences for every kind of phonological process. We need not treat the possibility of iconicity and its interaction with social factors as an all or nothing phenomenon. Sociolinguistic variables that are involved in changes in progress and whose variants show gradiance, seem to show traces of iconicity far more readily than, for example, t/d deletion, or (ing).

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mostram evidência de diferenças baseadas em sexos, b) tais diferenças interagem com estrutura social; c) o compartamento linguístico de mulheres e homens não pode ser explicado somente com base em valores icônicos que são baseados em diferenças de sexo27. (HAERI, 1995, p.111 – tradução minha)

Em outro trabalho que pode enriquecer o debate aqui proposto, Dunn (2000) analisa a fala das mulheres Chukchi no nordeste da Rússia. Nessa língua, como em Karajá, há variação entre as realizações em diferentes dialetos locais ou regionais. Em cada dialeto há diferentes realizações do fonema fricativo / africado alveolar por homens e mulheres. Em algumas situações, em fala masculina, ocorre queda de consoantes intervocálicas, especialmente /n/ e /t/. O dialeto Telqep, por exemplo, não aplica nenhuma dessas regras, nem por homens ou mulheres (outra semelhança com as variações de dialetos Karajá descritas por Ribeiro (2012). A principal variação entre a fala masculina e a feminina em Chukchi é a alternância entre /r/ e /c/28:

Fala feminina Fala masculina mcen mren pernilongo ceqocalyn reqocalyn raposa polar pancat panrat couro29 (DUNN, 2000, p.307)

Autores anteriores, consideraram a diferença como mera alternância de pronúncia (Bogoras 1922 e Shorik 1961). Curiosamente, assim como talvez se possa dizer do Karajá, o Chukchi se encontra classificado numa família linguística cuja composição ainda é incerta (Dunn, 2000, p. 24). Após longa análise da proposta de Muravyova (1979) para a origem do fato como sendo resultado de variações na proto-língua, Dunn propõe que a influência de uma segunda língua, funcionando como substrato, tenha sido responsável pela mudança e emergência de um dialeto de gênero nessa língua:

27 The case of Arabic pharyngealization and palatalization support the three claims of this article: a) fronting and backing processes show evidence of sex-based differences, b)such differences interact with social structure; c) the linguistic behavior of women and men cannot be explained solely on the basis of iconic values that are based on sex differences. 28 /c/ é uma africada alveolar, portanto, [ts]. 29 No original, leg hide. A “pele” ou “couro da perna” (talvez mais provável “couro”, em referência a animais de caça, mais especificamente, a rena).

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Parece altamente provável que essa distinção dialectal ocorreu como resultado de influência de substrato de outra língua ou dialeto Koryako- Chukotian que, por alguma razão, influenciou a língua de um só sexo. Porém, esse tipo de colapso diferencial deve ter tido algum tipo de motivação externa. A deriva fonética é suficiente para causar colapso de fonemas em uma língua, mas é difícil entender como e por qual razão haveria dois diferentes colapsos dentro de uma única comunidade de fala ao mesmo tempo.30 (DUNN, 2000, p. 317- tradução minha)

Em sua conclusão, Dunn reforça a importância da compreensão dos processos históricos e sociais para o entendimento dos fatos linguísticos:

Dialeto de gênero, como os encontrados em Chukchi and Tangoa, ilustram a importância de padrões de interação social para o entendimento de processos linguísticos históricos (...) uma oportunidade incomum existe para distinguir resultados de uma mudança linguística devido processos históricos regulares de mudança linguística não genética devido à mistura dialetal.31 (DUNN, 2000, p. 20)

Curiosamente, Ribeiro (2012) cita o trabalho de Dunn comentado acima, chamando sua própria solução de “processo interno com um twist sociolinguístico”. Diferentemente, a interpretação dada à proposta de Dunn (2000) no presente trabalho é da importância da observação da questão sociolinguística para o entendimento do fato fonológico. Um aspecto cultural importante que diferenciaria os Karajá da maioria dos povos Macro-Jê, ou particularmente dos Jê Centrais e Setentrionais, é o papel forte da mulher Karajá. Isso pode explicar o processo de mudança na fala masculina Karajá: em primeiro lugar, a posição social da mulher Karajá pode ter sido a razão pela qual os homens Xavante, tendo dominado a comunidade Karajá não puderam impor sua língua, e tiveram que aprender a língua falada pelas mulheres em suas casas. Clark (1923) descreve o papel da mulher Karajá:

A mulher Karajá tem voz forte e exerce forte influência sobre seu marido32. (CLARK, 1923, p. 58 - tradução minha)

30 It seems highly likely that this dialect distinction has come about as a result of substrate influences from another Koryako-Chukotian language or dialect that, for some reason, influenced the language of only one sex. However, this kind of differential collapse must have had some kind of external motivation. Phonetic drift is enough to cause a collapse of in a language, but it is difficult to see how or why there would be two different collapses within a single speech community at the same time 31 Gender dialects, as found in Chukchi and Tangoa, illustrate the importance of patterns of social interaction to the understanding of historical linguistic processes.(…) an unusual opportunity exists to distinguish the results of linguistic change due to regular historical processes from that of nongenetic linguistic change due to dialectal mixing. 32 The Karajá woman has a in all affairs and exercises a strong influence over her husband.

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Embora Clark não se estenda além desse comentário sobre o status da mulher na sociedade Karajá da época, e outros autores, tanto de trabalhos sobre o Karajá quanto do Xavante, não tenham dado atenção suficiente a essa questão, parece relevante olhar para alguns trabalhos nos quais se podem entrever, se não soluções, novos pontos de análise sobre essa questão. Toral (1992) traz algumas informações sobre a posição da mulher na sociedade Karajá e, embora não seja explicitamente possível reforçar, com ela, a afirmação de Clark trazida acima, há indicações que permitem vislumbrar uma plausível existência especial da mulher Karajá que, diferente das mulheres Macro-Jê, possa demonstrar mais uma característica particular da cultura Karajá. Toral afirma:

À pretendida liderança cerimonial dos homens segue-se a existência desses territórios masculinos exclusivos, que irradiam a partir do ijoi. A nível político interno significa que os homens dispõem de um espaço e de uma instância de socialização dos quais as mulheres são excluídas. Existe, no entanto, um reconhecimento dos limites dessa instância masculina de tomada de decisões em relação à totalidade da aldeia. A sociedade masculina não é um fator estrutural capaz de fazer da aldeia uma unidade social politicamente integrada. Tampouco a posição do chefe, em termos de arranjos faccionários , se define unicamente em relação à sua situação na sociedade dos homens. (TORAL, 1992, p. 111)

Torres (2011) também traz informação sobre essa questão:

Entre os Karajá, tradicionalmente, as mulheres assumem uma posição de destaque na vida social apesar das interdições às quais estão submetidas no cotidiano, tais como: não podem entrar na casa dos Aruanãs, local reservado exclusivamente aos homens; estarem impedidas de circular por caminhos e espaços restritos aos rituais masculinos e ligados aos espíritos, dentre outros. Com todas essas interdições poderia parecer que as mulheres recebem um papel secundário. Entretanto, ao compreender a dinâmica sociocultural desse povo, percebe-se que as mulheres desfrutam de uma vida confortável e ganham prestígio social à medida que vão envelhecendo, e este fato está diretamente associado ao contexto de residência uxorilocal. (TORRES, 2011, p.5)

Hermano Ribeiro da Silva (1948) também destaca essa condição particular da mulher Karajá:

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Conforme me informaram, na tribo permite-se a poligamia desde que o homem se submeta a tratar e a sustentar as famílias que construir. (...) não atino o motivo por que então perdure a sobriedade nupcial. Indago isso aos selvícolas, mas eles não adiantam nada, rindo gostosas gargalhadas. Será entretanto por causa da consideração saliente de que goza o sexo frágil nesta nação, ao contrário do que acontece comumente entre os aborígenes? É possível. A mulher domina o esposo, qualquer resolução deste depende em última instância da aprovação daquela. O seu trabalho é no lar, cuidando dos filhos, preparando a alimentação, realizando outros leves serviços.Ao homem cumpre toda a faina pesada e a pesca, a caça, a plantação rudimentar, a construção das ubás. Protegidas assim pelas circunstâncias do costume tradicional, subvertem-se não raro em feras perigosas e é espetáculo emocionante vê-las a surrar os musculosos latagões, que apenas se defendem // da pancadaria. (SILVA, 1948, p.125- 126 – grifos meus)

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IX. Considerações Finais

A ocorrência de um fato linguístico, à primeira vista trivial, como a ausência da oclusiva velar desvozeada na língua Xavante e na fala masculina Karajá abre possibilidade de estudos que assumam uma visão científica ampla considerando tanto teorias de natureza estritamente linguística como também antropológicas e sócio-históricas. O principal objetivo do presente trabalho é contribuir para a ampliação do escopo das questões levantadas por estudos como os que se referem a variações de fala feminina e masculina, variações de formas linguísticas como a velar / glotal em Xavante e outros. O fato que me propus a discutir no presente trabalho tem um aspecto sociolinguístico marcante: a ausência da oclusiva velar desvozeada na fala masculina Karajá e sua ocorrência na fala feminina, o qual por si só já é suficiente razão para se tratar a questão com um olhar social e antropológico. O histórico de contato entre comunidades Karajá e Xavante durante os séculos XVIII e XIX mostra uma relação de efeitos de contato e ocupação de espaço ao longo do tempo que sugerem algum tipo de inter-influência. Em sua grande maioria, os trabalhos sobre línguas indígenas brasileiras sofrem pela falta de registros, principalmente referentes a todo o período anterior ao século XIX. Estudos sobre fatos ocorridos nesses períodos, se não levarem em conta as informações sociais e antropológicas, arriscam negligenciar parte do processo que levou ao resultado final, supondo fases intermediárias que não podem ser reconhecidas só pelos dados linguísticos disponíveis. Retomando Sapir (1954, p. 203), “como diferenciar, num dado linguístico isolado, o número de fases destrutivas que já não podem ser reconhecidas após um processo de séculos?” Uma afirmação pode ser feita, sem dúvidas, após a análise do histórico de contato entre os Xavante e os Karajá: houve, certamente contato profícuo entre as duas culturas, de forma segmentada, mas suficiente para permitir trocas linguísticas e culturais. A dificuldade em determinar a qual grupo Akwén se está referindo em cada passagem analisada também é um fator de complicação, mas que pode ajudar a compreender casos aparentemente confusos como as listas de vocabulário de Pohl e Castelnau analisadas por Rodrigues (2004). Quando se olha para dados assim somente com a perspectiva linguística, se tem o que Ribeiro (2012) propõe: não há uma explicação plausível, a hipótese de Rodrigues (2004) parece estar errada. Quando se olha para dados assim amparado em conhecimento queinclua dados sócio- históricos e antropológicos, como é o caso do Professor Aryon Rodrigues, a leitura que se faz é mais profunda e permite vislumbrar acontecimentos extra-linguísticos e buscar explicações

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numa rede mais complexa de fatos. Ao final, podemos propor que as diferentes movimentações realizadas pelos Akwén, com os diversos nomes pelos quais foram referidos na documentação colonial, teriam acontecido durante os séculos XVII (talvez XVI) e XVIII, até a estabilização durante os períodos de aldeamento nos séculos XIX e XX. Apesar de não ser possível, no âmbito do presente trabalho, apresentar hipóteses sobre como ou em que momento teria se dado o início da variação oclusiva velar x oclusiva glotal nos grupos Akwén, o fato de todas aldeias e dialetos Xavante apresentarem a mesma característica é um forte indício da anterioridade desse processo de mudança e de maior possibilidade de que tenha sido o Xavante a transmitir uma característica que gerou a mudança no Karajá. Por sua vez, a variada intensidade da distinção entre fala feminina e masculina nos diferentes dialetos do Karajá, característica repetidamente afirmada por Ribeiro33 pode, ao invés de reforçar a ideia de movimento interno defendida pelo autor, corroborar a hipótese de contato. Há dois fatos que diferenciam o Karajá dos outros povos Macro-Jê: sua mitologia apontar o Rio Araguaia como lugar de origem do povo, enquanto se atribui a origem do tronco Macro-Jê ao Leste-Nordeste do Brasil34; os Karajá terem desenvolvido sua cultura em torno de grandes rios, diferentemente da grande maioria dos povos Macro-Jê (à exceção dos Guató e dos Rikbaktsa, cujo pertencimento ao tronco pode ser igualmente questionado35). Essas duas características marcantes do povo Karajá permitem levantar questões antropológicas e históricas sobre seu pertencimento ao tronco Macro-Jê. Somado a isso, temos o fato de o Karajá ser a única língua no Tronco Macro-Jê a apresentar dialetos de gênero (diferença marcante entre fala masculina e feminina), coincidentemente, no mesmo fonema que ocorre na fala dos Xavante. A proposta de Ribeiro para a classificação da língua Karajá no tronco Macro-Jê está apoiada em uma lista de cognatos baseados em sua reconstrução do Proto-Jê, a partir de

33 Ver, por exemplo, Ribeiro 2012, p. 128. 34 Entendo ser possível que um povo desenvolva uma mitologia declarando sua origem no lugar em que vive, quando o tempo e a história de sua migração já não estão acessíveis à memória. Nesse caso, se os Karajá têm relação linguística genética e origem em povos Macro-Jê (do Leste), sua presença no Araguaia deve preceder a dos Jê na mesma região em muitíssimos séculos, mas o atual conhecimento etno-arqueológico não é suficiente para esclarecer isso, como se pode ler em Schmitz (2000, p. 15), tratando das primeiras ocupações de caçadores- coletores no Brasil Central (entre 9000 e 6500 a.C.), particularmente em Serranópolis (SO de Goiás): “Os resultados atuais da pesquisa mostram que os primeiros sítios, tanto nos abrigos rochosos quanto nos situados a céu aberto, já apresentavam formada a cultura arqueológica do período. Sua origem, portanto, não pode estar neste espaço, mas em algum estado vizinho. Como se trata de uma formação cultural ampla, que abrange o território das savanas tropicais, o seu desenvolvimento pode ter-se dado em qualquer lugar desse espaço” (grifos meus). 35 Cf. D’Angelis, 2019 (a sair)

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uma proposta de Irvine Davis (1968). Além da própria limitação do número de itens, há também uma série incongruências no estabelecimento de correspondências entre fonemas do Proto-Jê e do Karajá. Itens analisados no presente trabalho como a passagem de *mr(k) :: brb (K), enfraquecem a argumentação em favor do parentesco genético. Grande parte dos cognatos Proto-Jê :: Karajá propostos por Ribeiro, inclusive sua comparação de prefixos e marcadores pessoais, possivelmente poderia ser mehor explicada por resultado de contato com os Jê Centrais do que por origem genética comum. O padrão silábico mais simples do Macro-Jê, que Ribeiro propõe estar presente no Karajá pode ser questionado pelos dados de Coudreau (1897), Kunike (1916), e Palha (1942) para a palavra “peixe” e, mais uma vez, ser melhor explicado por contato. A movimentação dos Akwén começa a ser registrada em documentos coloniais, em 1750 com o registro de “Xavantes” presentes na então capitania de Goiás. Ou seja, provavelmente, os Akwém teriam iniciado sua trajetória para Oeste entre pouco antes de 1700 e 1750. Habitaram as terras de cerrado à direita do Rio Tocantins, já que não seria esperado que um grupo Jê habitasse às margens do rio. É possível que tenham permanecido ali até uma separação, também característica dos povos Jê, acontecer. Um grupo atravessa, então, o Tocantins e se estabelece nas terras à margem esquerda. Durante um período haveria então, dois grupos idênticos em língua e cultura habitando margens diferentes do Rio Tocantins. O grupo que se encontra a Oeste do rio começa então um movimento de expansão pelo território e se divide: parte do grupo segue em direção ao Sul (atual Goiás) e outra parte segue em direção Oeste, à Ilha do Bananal, e entra em contato com os Karajá, inicialmente em forma de ataques, porém é possível que, num determinado momento, tenham vindo a se estabelecer como parte da comunidade (daí a narrativa tradicional sobre um Xavante que atravessa o rio e não volta mais – p.84 acima). É possível que esse tenha sido o grupo Akwén que viria a transmitir a variação da velar em glotal para os Karajá que, então, teria sido transformada em silêncio aos ouvidos dos jovens Karajá. Por volta de 1780 o governo tenta aldear todo o povo Akwén no Carretão em Goiás, provavelmente uma tentativa de livrar as terras para serem ocupadas pelos não-índios. Os Akwén abandonam o aldeamento quase completamente até 1819; parte deles volta para o Tocantins, aqueles que seriam chamados, depois, de Xerente, e outra parte volta para o Araguaia, cruza o rio e se estabelece próximo ao rio das Mortes, os quais viriam a serem chamados Xavantes, e reconhecidos como tais até hoje. Esse momento da movimentação dos

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povos Akwén é a mais importante informação histórica para se compreender o que pode ter sido o processo de transmissão da variação da velar para glotal do Xavante para o Karajá. Três importantes questões de aspecto cultural e antropológico foram trazidas para a presente pesquisa, com o objetivo de reforçar a interpretação dos fatos aqui tratados: a difícil classificação cultural do Karajá apontada por Petesch (1993), a belicosidade do povo Xavante, destacada por Toral (1992)36e a força da mulher na sociedade Karajá, comentada por Clark (1923) e Torres (2011). A proposta de Petesch para a colocação do Karajá numa posição intermediária entre o Jê e o Tupi, ainda que a autora não defenda o não pertencimento do Karajá ao Macro-Jê, permite a abertura de outros caminhos para que se olhem os aspectos antropológicos da questão com maior atenção. A belicosidade Xavante, realçada por Toral, contribui para o entendimento da questão da direção da interinfluência entre as duas culturas. É possível que a violência e marcante superioridade de luta dos Xavante explique o domínio dos Xavante sobre o Karajá, a ponto de permitir aos primeiros tomar mulheres Karajá para si. Embora a afirmação de Clark sobre a posição da mulher na tomada de decisão na cultura Karajá não vá além de uma só sentença (que encontra eco no trabalho de Torres, 2011, também citado) e não tendo sido possível encontrar informação clara a respeito do status da mulher na sociedade Xavante37, para efeito de comparação, este trabalho considera essa afirmação como importante indício de que há diferenças, na representação feminina na cultura Karajá em relação aos Macro-Jê. Essa pode ser ainda, uma possível explicação sobre a dificuldade para os Xavante imporem sua língua se viessem a dominar ou se tivessem dominado uma comunidade Karajá. Ainda que isso não possa ser provado, a própria situação da mulher Karajá em relação ao uso da oclusiva velar desvozeada já coloca a questão num patamar diferente, onde se possa explorar a existência de uma importante diferença de fala feminina na língua, de forma mais ampla, se dada a devida importância ao fato social e de gênero. E na complexa rede de correlações que pode ser estabelecida numa situação de fala como essa que ocorre no Karajá, talvez seja possível compreender um pouco mais sobre as relações sociais expressas pela língua. É justo destacar, portanto, que o presente trabalho traz algum reforço à hipótese de Aryon Rodrigues (2004) sobre a origem dos dialetos de gênero na língua Karajá.

36 Em meados de 1940, o então ditador Getúlio Vargas fez a primeira visita de um chefe da nação a uma aldeia indígena, indo à Ilha do Bananal, como parte da propaganda do Estado Novo da proposta “Marcha para o Oeste”. Como resultado da viagem, Getúlio “ficou particularmente interessado nos não assimilados Xavante, que tinham reputação de ‘ferozes’” (ROHTER, 2019, p.434). 37 Os principais trabalhos antropológicos sobre os Xavante, ou seja, os de David Maybury-Lewis (1984) e de Aracy Lopes da Silva (1986), estão claramente inspirados na perspectiva estruturalista, e deixam ao lado questões como essa, ainda que tratem dos papéis femininos na economia, nas classes de idade e nos rituais.

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Finalmente, o que mais importa a esse trabalho é, antes de tudo, demonstrar que existem indícios favoráveis a hipótese de que o contato tenha sido o fator responsável pela relação entre a fala masculina e feminina no Karajá e a fala Xavante e, ao mesmo tempo, levantar dúvidas sobre a filiação do Karajá ao Macro-Jê, reforçando, assim, a ideia de que a afirmação de uma hipótese de filiação genética de uma dada língua a uma determinada família ou tronco precisa ser demonstrada de forma robusta sempre que uma hipótese de contato e difusão linguística também esteja disponível.

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