FESTIVAIS DA CANÇÃO: MÚSICA, MEDIA E CENSURA DURANTE OS REGIMES AUTORITÁRIOS EM BRASIL E PORTUGAL. José Fernando Saroba Monteiro1
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FESTIVAIS DA CANÇÃO: MÚSICA, MEDIA E CENSURA DURANTE OS REGIMES AUTORITÁRIOS EM BRASIL E PORTUGAL. José Fernando Saroba Monteiro1. PORTUGAL. Em 1932, António de Oliveira Salazar sobe ao poder e inicia o Estado Novo português, que se manteria por mais de quatro décadas, a mais extensa ditadura do século XX. Entretanto, a cultura a par daquela propagada pelo governo, não encontrava espaço para seu desenvolvimento, sendo até mesmo reprimida. É na Constituição de 1933 que passa a valer a lei da censura, determinando as diretrizes morais e político-sociais que deveriam ser seguidas no país. Essa censura, a partir de 1969, quando Salazar é substituído por Marcelo Caetano e quando se esperava uma maior abertura política, passa por uma reconfiguração, apesar de ter havido “[...] dúvidas entre os censores quanto à nova configuração da censura. [E também] Para os produtores da cultura também não ficaram claros os novos limites dessa ‘censura’ que trouxe a nomenclatura de ‘exame prévio’. (FIUZA, 2015: 62). No entanto, “exame prévio” era apenas um eufemismo, não recorrente em documentos internos, como destaca Alexandre Fiúza ao referenciar a “Circular 26 – DGI”, de 19 de fevereiro de 1972, documento da Direcção-Geral de Informação (DGI) enviado à Rádio Triunfo e Discos Alvorada: “Em 28 de Janeiro de 1971, enviei a V. Exa. o ofício confidencial n. 36- DGI/G, em que dava conta de que ‘resulta expressamente das leis em que deve ser vedada a edição ou radiodifusão de canções ou outras formas musicais que, pelo seu conteúdo e objectivos, ou em face das circunstâncias em que foram compostas, possam pôr em causa interesses legalmente protegidos’ [...].” (IAN/TT, SNI/ Censura, cx. 4610 apud FIUZA, 2006: 66-68; FIUZA, op. cit.: 62-63; CORTE-REAL, 1996: 154-155). Notamos que a censura decorre em acordo com os meios de difusão das produções culturais e a preocupação do regime estadonovista com estes meios era cabível, poderíamos dizer, pois de fato interferem no cotidiano das pessoas, ou como aclaram Ana Cardoso de Matos e Gonçalo Rocha Gonçalves: “Ao difundir entre os vários grupos sociais dos diferentes países 1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. as notícias, as ideias e as ‘modas’ culturais de cada momento, os novos meios de comunicação ajudaram a padronizar comportamentos e gostos.” (MATOS; GONÇALVES, 2005: 191). Destarte, a censura, em especial a musical, atinge todos os meios possíveis de difusão, e não apenas os discos ou espetáculos, mas também a televisão, o cinema, o rádio, jornais e revistas. No caso das rádios, tiveram especial atenção da censura, devido também à prática de incluir canções opositoras ao regime nas programações voltadas a outros países (Holanda e Escandinávia, por exemplo). Segundo Fiuza: “No programa de 18 de dezembro de 1973, antes da canção Romance de um dia de estrada, é apresentado seu autor: ‘Uma voz jovem em Antena – 73! Músicas e palavras! Uma composição estilo balada2. Um nome, uma presença musical: Sérgio Godinho’. No dia 25 de novembro do mesmo ano, entre outras, são propostas as canções Menina do alto da serra (por Tonicha), Festa da Vida (por Carlos Mendes) e Poema de Mim, interpretada por Paco Bandeira, complementada com a seguinte explicação: ‘A canção que acabam de ouvir foi a representante de Portugal no recente Festival Ibero-Americano, realizado a 10 do corrente na cidade de Belo Horizonte no Brasil’. Apesar deste controle, na seqüência [sic] deste comentário, o roteiro traz uma breve crítica que se encaixava no caso português na África: ‘ao invés das guerras, os países deveriam lutar só nas músicas de festivais’.” (FIUZA, op. cit.: 84). Apesar do crescimento do chamado “canto de intervenção”, durante toda a década de 1960, predominava nos meios de comunicação o nacional-cançonetismo (juntamente com o fado), incentivado e valorizado pelo salazarismo, moldando ou refletindo o gosto português deste período. Sobre esta questão, João Francisco Vasconcelos Sousa, que teve a conhecida revista Mundo da Canção como tema de sua dissertação, nos fala que: “[...] os festivais da canção, então muito populares (não apenas o da RTP, mas também os pequenos concursos regionais), eram o espelho do gosto musical da juventude portuguesa da época. Segundo José Barata Moura, este tipo de certame era ‘fabricado pelos grandes monopólios do disco’ e tinha como finalidade o ‘prosseguimento entusiasmado da estupidificação’, não 2 Balada era um nome atribuído às canções representantes do “canto de intervenção”, opositora do governo. contribuindo de modo nenhum para a valorização da música portuguesa. (SOUSA, 2016: 44-45). No entanto, mesmo que os festivais tenham inicialmente difundido as canções a favor do regime e até terem sido utilizados por este para seu benefício, o “canto de intervenção”, numa relação de reciprocidade, é favorecido pela mediatização na qual foi incluído e se torna cada vez mais presente nestes eventos, antes e depois de 1974, e, para além disso, também é responsável por todo um movimento de “renovação da música portuguesa”, o que, para José Hugo Pires Castro, se explica por três fatores: “a apropriação de elementos estéticos e de estilos aproximados da ‘balada’ por parte de um vasto grupo de intérpretes que introduzem essas práticas em contextos performativos de contestação e protesto social; a configuração dos sistemas de produção fonográfica e consequente autonomização de algumas editoras que leva ao interesse destas em novos intérpretes até então pouco mediatizados; a mediatização e divulgação de cantores e produtos fonográficos em emissões televisivas, radiofónicas e periódicos de divulgação musical.” (CASTRO, 2012: 50). Todavia, a censura não atingia somente os artistas, a indústria também era afetada pelas proibições, especialmente antes de 1972, quando não era aplicada a censura prévia, deste modo: “[...] os discos denunciados como subversivos eram apreendidos nas lojas, o que provavelmente fazia com que as casas discográficas exercessem uma autocensura para evitar prejuízos financeiros [...].” (FIUZA, op. cit., p. 62). Mas, ainda segundo Fiuza, não há de se negar o papel preponderante da canção, “[...] o que se traduziu num maior controle da produção discográfica. [Acrescentando ele que] Apesar deste controle, a circulação clandestina de discos e fitas cassetes com canções proibidas, a exemplo do que acontecia com os livros, também foi usada como estratégia recorrente. (FIUZA, op. cit.: 63). Também sobre esta questão nos fala Maria de São José Corte-Real que: “Apesar de reforçada a censura, a canção de intervenção – por perspicácia e tenacidade dos seus autores – conquistou o veículo dos mass-media. Como caso paradigmático de charada e risco, surgiu Tourada, de Fernando Tordo e José Carlos Ary dos Santos, que alcançou mesmo o primeiro prémio no Festival RTP da Canção em 1973, e na qual, entre outras mensagens, se anunciava: ‘e diz o inteligente que acabaram as canções’.(CORTE-REAL, op. cit.: 156). Neste mesmo Festival RTP de 1973, José Cid interpretou A Rosa que te Dei (José Cid), que ficou com o quinto lugar. Mas, este tema só foi cantado por José Cid devido a Amália Rodrigues ter declinado no convite. E de fato, alguns artistas não encontravam representatividade no meio televisivo, quanto a alguns valores culturais, é o caso também de José Afonso, representante do “canto de intervenção”. Luís Trindade destaca que: “A RTP era criticada por ignorar estes valores culturais, mas como a televisão era cada vez mais o instrumento que determinava a visibilidade do espaço público, sem ela tais valores corriam o risco de ficar escondidos.” (TRINDADE, 2014: 48-49). Esta visibilidade, por exemplo, Ary dos Santos soube aproveitar e mesmo sendo membro do Partido Comunista Português (PCP) e criticado por sua participação, incluiu inúmeras canções nos festivais e, como ele mesmo destacou: “[...] foi a música que lhe trouxe alguma notoriedade e foi através dos seus poemas musicados que outros dos seus poemas foram lidos e celebrizados no contexto político-social português dos anos que antecederam o 25 de Abril de 1974.” (COSTA, 2010: 254). Da mesma forma ocorre a participação do coletivo GAC (Colectivo de Acção Cultural), que se apresentou no Festival RTP, em 1975, justificando sua participação pela afirmativa de que: “[...] o evento oferecia a rara possibilidade de apresentar para seis milhões de telespectadores uma canção cujo conteúdo revolucionário se inspirava nas ‘palavras de ordem da revolução democrática popular’ e se demarcava das ‘lamechices, dos paternalismos poético-realistas e dos lugares-comuns musicais a que nos habituaram os responsáveis da canção ligeira’.” (CARDÃO, 2014: 30). As palavras do coletivo realmente encontravam coro, pois, nos momentos que se seguem a Revolução de Abril, os media se abrem para o “canto de intervenção” e para os valores democráticos recém conquistados, isso feito de forma mais espontânea e direta, coincidindo com o fim da proibições e veto nas canções, como nos lembra Corte-Real: “Abolida finalmente a Censura e levantados os entraves à liberdade de expressão, a canção de intervenção inundou verdadeiramente os meios de comunicação social. Na televisão, na rádio, nos giradiscos e nos gravadores, pelas ruas em carros equipados com potentes megafones, circulando livremente por todo o país, a canção de intervenção estava sempre no ar. O universo sónico de Portugal transformou-se repentinamente. A sua responsabilidade, legitimada no dia da Revolução, levou os cantores a associarem-se, a reflectirem sobre o seu papel na sociedade e a delinearem novas estratégias de actuação para o futuro. (CORTE-REAL, op. cit.: 158). BRASIL. O regime militar no Brasil inicia com o “golpe de 1964” e se estende até 1985. No pós- 1964 a música passa a receber a atenção do regime e se torna alvo dos aparatos repressivos do governo, ao mesmo tempo em que há a consolidação da chamada MPB, para a qual, segundo Marcos Napolitano, os festivais tiveram papel fundamental: “concomitantemente, houve o recrudescimento da ‘questão estudantil’, o que levou a repressão a destacar o papel da música como ‘propaganda subversiva’ e ‘guerra psicológica’.” (NAPOLITANO, 2004: 108).