UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LETÍCIA GREGORIO CANELAS

ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO CARIBE FRANCÊS: A ALFORRIA NA MARTINICA SOB UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO, RAÇA E CLASSE (1830-1848)

CAMPINAS 2017

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas Professoras e Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21/09/2017, considerou a candidata Letícia Gregorio Canelas aprovada.

Prof. Dr. Robert Wayne Andrew Slenes

Profa. Dra. Hebe Ma. da Costa Mattos Gomes de Castro

Profa. Dra. Keila Grinberg

Profa. Dra. Maria Helena Pereira Toledo Machado

Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna Aos meus pais, Maria e Wilson, pela força e amor incondicional. À Rita e ao Pajé, por tudo e muito mais. AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho de pesquisa somente foi possível com o apoio financeiro do CNPq por meio da bolsa de estudos concedida pelo Programa de Pós-graduação em História – IFCH / UNICAMP. Ademais, o Programa de Doutorado com Estágio no Exterior da CAPES permitiu-me viver na França durante um ano, período no qual realizei minhas pesquisas nos arquivos franceses. Ao meu orientador, Robert Slenes, admiração e um agradecimento especial. Foi um grande privilégio ser orientada por este mestre durante a pesquisa de doutorado. Bob, em nossas reuniões de orientação, que duravam de três a quatro horas, compartilhou seus conhecimentos com generosidade, precisão e toneladas de valiosas indicações bibliográficas. Na França, tive a sorte de usufruir a coorientação de Myriam Cottias, essencial para que esta pesquisa se efetivasse. Sou imensamente grata a sua receptividade e generosidade ao compartilhar seus conhecimentos sobre a história do Caribe Francês. Agradeço ainda aos outros pesquisadores e professores ligados ao CIRESC (Centre International de Recherches sur les Esclavages – EHESS), em especial Céline Flory e António de Almeida Mendes e, ainda, Jean Hébrard (Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain - EHESS), que contribuíram com discussões e sugestões sobre meu trabalho. Agradeço ao Projeto STARACO (Status, Race et Couleurs dans l’Atlantique de l’Antiquité à nos jours), coordenado por António de Almeida Mendes e Clément Thibaud, pelo financiamento e oportunidade de participar do encontro realizado na Casa de Velázques (Madri), em junho de 62014 (Université d’Été: “Droits des minorités de “race” et de couleur”). Agradeço às pesquisadoras martinicanas Jessica Pierre-Louis e Laetitia Bechet pelas boas conversas e sugestões sobre a Martinica e sua história. A pesquisa de doutorado de Jessica Pierre-Louis, finalizada depois de nossos encontros, tornou-se referência essencial para a minha pesquisa. Aos funcionários dos Archives Nationales d’Outre Mer, em Aix-en-Provence, agradeço pela atenção, conhecimento preciso e paciência. A minha estadia em Paris somente foi possível com a imensa ajuda de amigos muito queridos: Alice Vilella e Hidalgo Romero; Guido de Sena e Giulia Manera. Com Giulia, ainda tive a oportunidade de discutir diversas questões sobre gênero e sobre a história das mulheres. No Departamento de História da Unicamp, tive a oportunidade de conviver com outros mestres, historiadores e historiadoras com os quais aprendi muito sobre nosso ofício. Presto homenagem especial em memória ao professor Marco Aurélio Garcia. Agradeço aos professores ligados ao Cecult, especialmente Lucilene Reginaldo, Cláudio Batalha, Michael Hall, Silvia Hunold Lara, Rodrigo Camargo de Godoi, Fernando Teixeira da Silva, Ricardo Pirola e Sidney Chalhoub. Estes dois últimos compuseram a banca de qualificação dessa tese e me contemplaram com comentários precisos e animadores sobre o andamento de minha pesquisa. Robert Slenes, Silvia Lara, Cláudio Batalha, Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira acompanharam minha vida acadêmica de perto desde a graduação ou mestrado e se tornaram mais do que mestres respeitados e admirados. No Cecult, agradeço ainda ao apoio sempre essencial de Flávia Peral. Agradeço aos colegas das linhas de pesquisa em História Social da Cultura, do Trabalho e da África, pelas oportunidades de compartilhar leituras, ideias e o gosto pela história social. Agradeço à Iacy Maia Mata e Eric Brasil por compartilharem ideias e o interesse pela história caribenha. À Iacy Mata, agradeço ainda pela atenção e orientações dadas desde a elaboração do projeto desta pesquisa. Este trabalho de pesquisa se beneficiou de encontros e seminários que pude participar durante minha trajetória de pesquisa, dos quais destaco alguns a seguir. Agradeço aos organizadores e organizadoras do Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, do qual pude participar de sua sétima edição em Curitiba, 2015, e voltei para casa inspirada pela riqueza das comunicações e conferências apresentadas. Agradeço Cristiana Schettini Pereira e Gláucia Fraccaro pela oportunidade de participar do simpósio temático “Mundos do trabalho: trabalho de mulheres, relações de gênero e organização social” (ANPUH, 2017) e a todos e a todas participantes pelos trabalhos e discussões inspiradoras, especialmente Fabiane Popinigis, Daniela Magalhães da Silveira e Lerice de Castro Garzoni. Agradeço o financiamento e a oportunidade propiciada pelo Afro-Latin American Research Institute (Hutchins Center, Harvard University), para participar do “Seminário Mark Claster Mamolen de Teses na Área de Estudos Afro-Latino-Americanos”, especialmente ao professor Alejandro de la Fuente. Agradeço também aos comentários singulares e valiosos dos professores Sidney Chalhoub, Marial Iglesias Utset, Tamar Herzog e George Reid Andrews. Aos doutorandos e doutorandas, de diversos lugares, que participaram desse seminário no Hutchins Center, agradeço por compartilharem seus estudos em andamento, suas ideias extraordinárias, comentários generosos e momentos etílicos: Cláudia Bongianino, Emma Banks, Fernanda Bretones Lane, Chloe Ireton, Paola Ravasio, Dayana Façanha, María Camila Díaz Casas, Andrew Walker, Bruno Rodrigues de Lima, Alain El Youssef, América Nicte-Ha López Chávez, Edward Shore e Laura Correa Uchoa. Agradeço ao trabalho sempre importante dos funcionários da Biblioteca Otávio Ianni (IFCH – Unicamp). Faço um agradecimento especial ao Daniel Hatamoto, funcionário responsável pelos trâmites burocráticos do Programa de Doutorado em História (IFCH - Unicamp), pela disposição sempre solícita e paciente. Agradeço, ainda, ao Benedito e seu Luís, responsáveis pela copiadora do IFCH, amigos e artistas da reprodução de textos. Nestes quase vinte anos em Campinas, muitos deles ligada à Unicamp, conheci pessoas incríveis que acompanharam não apenas minha trajetória acadêmica, mas também política e feminista. Agradeço às mulheres de luta, que se tornaram grandes amigas, Pilar Guimarães, Mariana Sombrio, Daniele Motta, Juliana Jodas, Brunaz, Helena Rizzatti, Thamires Sarti, Aline Tavares, Mariana Cestari, Gláucia Fraccaro, Luiza Sandler, Ieda Cruz, Luciana Palharini, Coraci Ruiz, Arminda Prado, Livia Tiede e muitas outras cujos nomes encheriam esta página. À Lívia Tiede, amiga e companheira de longa data, agradeço também pelo carinho e atenção, especialmente nos momentos finais da escrita desta tese. Agradeço aos amigos e amigas do grupo “Jararacas” que, apesar das pauladas na cabeça, seguimos firmes com humor e crítica sob a saraivada golpista. A todos amigos e amigas que se tornaram praticamente família depois de todos estes anos, minha profunda gratidão pelo apoio direito ou indireto, pelas boas conversas e momentos etílicos. Agradeço especialmente Simone e Uassyr, vizinhos para sempre. À minha família, não sei nem como agradecer. Agradeço pelo apoio, pela força, pela compreensão, paciência e amor: aos meus pais, Maria e Wilson; aos meus sogros, Maró e Pedro; aos meus irmãos amados, Marta e João Paulo; às cunhadas-irmãs, Ruth, Marina e Alessandra; aos cunhados, Tadeu, Luís e Filipe; dó Rita e vó Silvina; às tias Lucinda e Cida; à Luciane, prima guerreira. Agradeço à alegria, ao amor e à fofura das sobrinhas, Laura, Cecília, Beatriz, Clara, Luísa e Francisca. Por fim, o maior agradecimento de todos, ao companheiro, inspiração e amor da vida toda, Paulo José, mais conhecido como Pajé, e à Rita, filha e companheira de várias aventuras, que nasceu quando eu entrei no mestrado em história e, agora, já começa a ganhar o mundo com sua autonomia. Obrigada! RESUMO

Na Martinica, principal colônia francesa no Caribe, depois de São Domingos/Haiti, na primeira metade do século XIX, as mulheres afrodescendentes estavam em maior número nas lavouras, há indícios de que elas que cultivavam as roças de víveres — cuja produção era a segunda em maior quantidade de terras e de escravos, depois da cana-de-açúcar —, trabalhavam como costureiras, lavadeiras, domésticas, marchandes, eram essenciais às suas famílias, atuavam como lideranças em suas festas e rituais. Contudo, em todo o Caribe Francês, ao tratar da questão da alforria, várias fontes produzidas entre os séculos XVIII e XIX exprimiram um esteriótipo segundo o qual a maioria das liberdades concedidas nas colônias foram acordadas às mulheres escravizadas que eram “concubinas dos brancos” e aos filhos dessas relações. E alguns historiadores que abordam esta questão reafirmam essa mesma conclusão. Porém, nenhum estudo demonstrou de fato a expressividade dessa situação, a não ser a aparente reprodução do discurso da elite de colonos brancos. Este é o problema central que orienta este trabalho de pesquisa ao buscar compreender os processos de conquista da alforria nos últimos anos de escravidão nas Antilhas Francesas, analisando sobretudo as experiências vivenciadas pelas mulheres escravizadas e em vias de liberdade na Martinica. Durante a Monarquia de Julho (1830-1848), a conquista da alforria no Caribe Francês tornou-se muito significativa devido às transformações políticas e jurídicas na França metropolitana e nas colônias e, ainda, à percepção das pessoas escravizadas e libertas sobre estas mudanças. Diferentemente de qualquer período anterior, uma grande quantidade de cartas de alforria oficiais foram emitidas pela administração colonial. Assim, ao analisar esses processos de conquista da liberdade, a expressão demográfica desse fenômeno, a legislação e debates políticos em torno da alforria e as tensões entre “brancos” e “livres de cor” nas colônias francesas e na metrópole acerca de direitos e emancipação, meu objetivo foi buscar os indícios do quanto as mulheres afrodescendentes foram protagonistas das estratégias e projetos de liberdade, individuais e coletivos. Essas análises foram realizadas a partir de uma vasta documentação, que inclui relatos de viajantes, textos de abolicionistas e de senhores de escravos, textos legislativos, correspondências e relatórios de autoridades coloniais e metropolitanas, documentação notarial, periódicos oficiais e registros do estado civil da Martinica, fontes pesquisadas sobretudo nos Archives Nationales d’Outre Mer e na Biblioteca Nacional da França. Assim, foram analisados os processos históricos que envolveram a conquista da liberdade, mesmo que precária, por homens e mulheres, pensando a “alforria” nas sociedades escravistas como uma questão essencial para se analisar a história da escravidão nas Américas e no Caribe. Nestes contextos, observo sobretudo as histórias das mulheres afrodescendentes na Martinica, abordando questões em torno de classe, raça e gênero, sob a perspectiva da história social. Dessa forma, foi possível ressaltar suas experiências e de suas famílias e demonstrar a fragilidade do argumento o qual afirma que seu acesso à alforria ocorreu predominantemente por meio de suas relações afetivas (e desiguais) com os homens brancos, como se esse fosse o principal meio pelo qual as mulheres negras pudessem construir seus caminhos para a liberdade.

Palavras chave: Escravidão; Alforria; Caribe Francês (Martinica); Gênero, Raça e Classe ABSTRACT

In Martinique, the main French colony in the Caribbean after Saint-Domingue / Haiti, in the first half of the 19th century, Afro-descendant women were in greater numbers in the plantations, there are indications that they were cultivating food crops — in which the production was the second largest in quantities of land and of slaves, after sugar cane —, worked as seamstresses, washerwomen, domestic workers, marchandes, were essential to their families and acted as leaders in their celebrations and rituals. Nevertheless, throughout the French Caribbean, when dealing with the issue of manumission, various sources produced between the eighteenth and nineteenth centuries expressed a stereotype according to which most of the freedoms granted in the colonies were accorded to enslaved women who were “concubines of white men” and to the children of these relationships. And some historians who approach the question reaffirm this same conclusion. However, no study has actually demonstrated the expressiveness of this situation, other than the apparent reproduction of the elite white colons' discourse. This is the central problem that guides this research work in seeking to understand the processes of conquest of manumission in the last years of slavery in the French Antilles, analyzing above all the experiences lived by women either enslaved and in the process of freedom in Martinique. During the (1830-1848), the conquest of manumission in the French Caribbean became very significant due to the political and legal transformations in metropolitan and in its colonies, and also to the perception of the enslaved and freed people about these changes. Unlike any previous period, a large number of official manumission papers were issued by the colonial administration. Therefore, in analyzing these processes of conquering freedom, the demographic expression of this phenomenon, the legislation and political debates surrounding the manumission and the tensions between “white” and “free colored” people in the French colonies and in the metropolis about rights and emancipation, my objective was to seek the indications of how Afro-descendant women were protagonists of individual and collective strategies and projects of freedom. These analyses were carried out on the basis of extensive documentation, including travelers' accounts, abolitionist and slave-master texts, legislative texts, correspondences and reports from colonial and metropolitan authorities, notary documentation, official periodicals, and civil status records from Martinique, sources researched mainly in the Archives Nationales d'Outre Mer and in the National Library of France. Thus, historical contexts were analyzed that involved the conquest of freedom, even if precarious, by men and women, thinking of “manumission” in slave societies as an essential question to analyze the history of slavery in the Americas and the Caribbean. In these contexts, I particularly look at the stories of Afro-descendant women in Martinique, approaching issues around class, race, and gender, from the perspective of social history. In this way, it was possible to emphasize their experiences and those of their families and to demonstrate the fragility of the argument which asserts that their access to manumission occurred predominantly through their affective (and unequal) relations with the white men, as if it were the main means by which black women could build their paths to freedom.

Key words: Slavery; Manumission; French Caribbean (Martinique); Gender, Race and Class LISTA DE IMAGENS E MAPAS

Mapa: Martinica e Pequenas Antilhas ……………………………………………………………..… 50

Mapa: “Colonies Françaises – Martinique”, in Atlas National Illustré, 1854 ……………………..… 52

Imagem: “Petit blanc que j’aime”, Julien Vallou de Villeneuve, 1840, Musée d’Aquitaine, Bordeaux …………………………………………………………………………………………………...….. 107

Gráfico: Tráfico de escravos para Martinica, 1785-1831 ….…………………………………….…. 122

Imagem: Litografia representando a vista de uma lavoura de cana-de-açúcar no Caribe ………….. 142

Imagem: “Arrêté portant affranchissment de divers individus”, 25 de fevereiro de 1835, Bulletin Officiel de la Martinique ……………………………………………………………………………………... 340

Imagem: “Rivière des Blanchisseuses” …………………………………………………………….. 375 LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – População da Martinica, dividida entre brancos, libertos e escravos, 1700 – 1802 …..….. 68

Tabela 2 – Porcentagem da população de libertos sobre a população livre e de libertos e de escravos sobre a população total, Martinica, 1700 – 1802 ……….……………………………………………. 73

Tabela 3 – População da Martinica, dividida entre brancos, livres de cor e escravos, 1816 – 1829 ….76

Tabela 4 – Extensão de terras dedicadas a cada cultura agrícola, Martinica, 1789 – 1835 ……….... 121

Tabela 5 – Tráfico de escravos africanos para a Martinica: origem do embarque e quantidade de escravos desembarcados na ilha, 1750-1831 ……………………………………………………….. 122

Tabela 6 – Divisão da população escrava no trabalho rural e no trabalho urbano, Martinica, 1826....144

Tabela 7 – Estado da População escrava, Martinica, 1826 e 1835: sexo e faixa etárias do(a)s escravo(a)s …………………………………………………………………………………………...145

Tabela 8 – Listas de escravas e seus filhos, vendidas aos irmãos Martineau pelo sogro, senhor Joseph Poullain, 1831 …………………………………………..…………………………………………... 148

Tabela 9 – Produtos agrícolas e número de escravos empregados em cada produção, Martinica, 1835 …………………………………………………………………………………………………….… 150

Tabela 10 – Registros de desistência de propriedade dos senhores sobre seus escravos patrocinados, janeiro a junho de 1831: sexo e classe dos senhores / sexo dos escravos patrocinados ……..…….. 205

Tabela 11 – Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 – 1847 ……………………………………….………………………………………………... 324

Tabela 12 – Alforrias oficiais concedidas nas Colônias Francesas, 1830-1847 ……………………..325

Tabela 13 – “État de toutes les libertés données a la Martinique” (Schoelcher), 1830-1839 …...…. 327

Tabela 14 – Alforrias da década de 1830: Condição e sexo do(a) escravo(a) alforriado(a) ………... 342

Tabela 15 – Alforrias da década de 1830: sexo do(a) escravo (a) e faixas etárias (anos) ……..……. 344

Tabela 16 – Alforrias da década de 1830: Alforria com família ou individual, por faixa etária (anos) ……………………………………………………………………………………………...……….. 345

Tabela 17 – Alforrias da década de 1830: Origem (africano ou crioulo) / sexo do(a) escravo(a) …...346

Tabela 18 – Alforrias da década de 1830: Faixas etárias (anos) / classificação de cor da pele do(a) escravo(a)……………………….…………………………………………………………………… 348

Tabela 19 – Alforrias da década de 1830: Sexo do senhor / classe do senhor ……………..……….. 350

Tabela 20 – Alforrias da década de 1830: sexo do senhor / classe do senhor e número de escravos alforriados……………………………..…………………………………………………………….. 350 Tabela 21 – Alforrias da década de 1840: Principais Ordenações que regulamentaram as alforrias concedidas, de acordo com a amostra analisada ………………………………………….……….. 355

Tabela 22 – Alforrias da década de 1840: sexo do(a) escravo (a) e faixas etárias (anos) …………. 356

Tabela 23 – Alforrias da década de 1840: Faixas etárias (anos) / classificação de cor da pele dos escravos…………………………………………………………………………………………….. 358

Tabela 24 – Alforrias da década de 1840: sexo e classificação de cor da pele do(a) escravo(a) ….. 359

Tabela 25 – Alforrias da década de 1840: Origem (africano ou crioulo) / sexo do(a) escravo(a).….360

Tabela 26 – Alforrias da década de 1840: Alforria com família ou individual, por faixa etária (anos) ………………………………………………………………………………………………………..361

Tabela 27 – Alforrias da década de 1840: Sexo do senhor / classe do senhor …..………………….. 362

Tabela 28 – Alforrias da década de 1840: sexo do senhor / classe do senhor e número de escravos alforriados……………..…………………………………………………………………………….. 365

Tabela 29 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: Faixas etárias (anos) / classificação de cor da pele dos escravos (1830 e 1840) – 952 escravos ……………………………...…………………………. 368

Tabela 30 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: local de moradia e sexo do(a)s escravo(s) …..... 369

Tabela 31 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: Profissão e sexo do(a)s escravo(a)s …..………. 377

Tabela 32 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: Sexo do senhor / classe do senhor ……..……... 379

Tabela 33 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: sexo do(a) escravo(a) / faixas etárias (anos) ……...………………………………………………………………………………………... 407

Tabela 34 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: quem alforria com família …...... 408

Tabela 35 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Profissão / sexo do(a) escravo(a) ………………………………………………………………………………………………………. 409

Tabela 36 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Local de moradia do(a)s escravo(a)s ………………………………………………………………………………………………………. 410

Tabela 37 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Sexo e classe dos senhores ….... 411

Tabela 38 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Valores dos pecúlios de indivíduos e famílias escravas …….……………………………………………………………………………... 413 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANOM – Archives Nationales d’Outre Mer FM – Fonds Ministériels DPPC – Dépôt de Papiers Publics des Colonies SG – Série Geographique GEN – Généralités NOT – Notariat BOM – Bulletin Officiel de la Martinique JOM – Journal Officiel de la Martinique

BNF – Bibliotèque Nationale de France BNF – Gallica – Bibliotèque Nationale de France, sistema de biblioteca digital Gallica Sumário

INTRODUÇÃO...... 17

Para além das narrativas sobre concubinato e libertinagem...... 17 Mulheres, Família, Escravidão e Alforria...... 25 O Caribe Francês e a Martinica...... 45 Metodologia, fontes e organização da tese...... 52

PARTE I – ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NAS ANTILHAS FRANCESAS, SÉCULOS XVIII E XIX...... 60

CAPÍTULO 1 – ESCRAVIDÃO SEM ALFORRIA...... 61

CAPÍTULO 2 – LIVRES DE COR NA MARTINICA: QUESTÕES EM TORNO DE RAÇA E GÊNERO...... 80

CAPÍTULO 3 – OS LUGARES DAS MULHERES NEGRAS NO MUNDO DO TRABALHO ESCRAVO NA MARTINICA...... 117

3.1 – Entre o Escravismo e a Crioulização nas Ilhas do Açúcar...... 118 3.2 – Mulheres no eito da lavoura, das roças e das famílias...... 139

PARTE II – A CONQUISTA DA LIBERDADE NA MARTINICA, 1830 – 1848...... 163

CAPÍTULO 4 – LIBERDADE PRECÁRIA E CLANDESTINA – LIVRES DE SAVANA, PATROCINADOS E LIVRES DE FATO...... 164

4.1 – Imprecisões e comparações sobre liberdades precárias e irregulares...... 168 4.2 – Visões senhoriais sobre as liberdades irregulares na Martinica, século XIX...... 178 4.3 – A luta política dos Patrocinados e Livres de Savana durante a Monarquia de Julho...... 193 4.4 – Registros de manumissão a escravos patrocinados (1831-1832)...... 201

CAPÍTULO 5 – ALFORRIA, DIREITO E POLÍTICA COLONIAL (1830 – 1848)...... 214

5.1 – Tocando a “arca santa”: embates políticos e legislativos sobre política colonial e alforria (1830-1836)...... 216 5.2 – Livres de cor, libertos e escravos: antiescravismo, cidadania e resistência...... 232 5.3 – Abolição gradual da escravidão nas colônias francesas nos tempos do segundo escravismo 267 5.4 – Mães escravas e alforria: o princípio da indivisibilidade da família (negra) e ações de liberdade...... 287 CAPÍTULO 6 – A LIBERDADE EM NÚMEROS: QUESTÕES EM TORNO DE GÊNERO, RAÇA E CLASSE...... 318

6.1 – A alforria em números: a conquista da liberdade regular na Martinica, 1830 – 1848...... 323 As alforrias da década de 1830...... 341 As alforrias da década de 1840...... 354 Sínteses e comparações: alforrias das décadas de 1830 e 1840...... 367 6. 2 – As alforrias por resgate forçado: Martinica, 1845-1847...... 382

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 421

REFERÊNCIAS...... 433

Fontes...... 433 Bibliografia Geral...... 440 17

INTRODUÇÃO

PARA ALÉM DAS NARRATIVAS SOBRE CONCUBINATO E LIBERTINAGEM

Adelaïde era uma “escrava negra” de uma fazenda em Caiena (Guiana Francesa), propriedade de Jean-Baptiste Leblond (1747-1815), entre o final do século XVIII e início do XIX. Sabe-se muito pouco sobre ela, mas um fragmento de sua história chegou aos nossos dias por conta da relação estabelecida com seu senhor. Antes disso, Leblond, quando ainda era jovem, em torno de vinte anos, saiu da França para viajar pelas Antilhas, passando pela Martinica, Sainte-Lucie, Saint-Vincent, Grenadines, Granada e Trinidad. Nesta época, estudava medicina de forma empírica, primeiramente com um antigo cirurgião da Martinica que o hospedou na ilha, e depois acompanhando um médico inglês, Dr. Johnston, de Saint- Vincent. Viajou pelas ilhas caribenhas, praticando seus conhecimentos médicos, e visitou a Venezuela, o Peru, a Colômbia e a Guiana Francesa, realizando investigações como naturalista (principalmente botânica). Suas viagens pelo Caribe e América do Sul se estenderam por vinte anos, entre as décadas de 1760 e 17801. Depois de alguns problemas políticos enfrentados no início da Revolução Francesa, Leblond se estabeleceu, em 1791, em Caiena, onde adquiriu uma habitation (plantation), na qual cultivava algodão e especiarias. Em 1801, esta sua fazenda contava com mais de 70 escravos. Entre eles, encontrava-se Adelaïde, com quem Leblond teve dois filhos. Em 1802, retornou à França e levou consigo o primogênito de dois anos, Jean Baptiste, batizado, assim, com o nome de seu pai. Adelaïde ficou em Caiena, grávida do segundo rebento de Leblond, Fabien Flavin (1802 – 1868), quem nunca encontraria o pai francês2.

1 Sobre estas viagens, Leblond publicou a obra Voyage aux Antilles et en Amérique méridionale, em 1813, e Description abrégée de la Guyane française, em 1814. Uma versão do primeiro livro (Voyage aux Antilles...) foi publicada e comentada por Monique Pouliquen, em 2001, e em sua introdução à obra de Leblond apresenta várias das informações expostas neste parágrafo e adiante. Ver POULIQUEN, Monique. Les voyages de Jean-Baptiste Leblond, médecin naturaliste do roi, 1767-1802. Antilles, Amérique espagnole, Guyane. Paris: Éditions du CTHS, 2001. 2 POULIQUEN, op cit, pp. 5-9. 18

Alessandra da Silva Silveira, em sua tese3, apresenta mais alguns detalhes sobre esse período das vidas de Adelaïde, Leblond e seus filhos, cruzando a história colonial francesa e a portuguesa na América do Sul. Em 1808, forçado a abandonar a terra natal, em função da invasão das tropas francesas, o príncipe regente Dom João estabeleceu a capital do império português e sua corte no Rio de Janeiro e declarou guerra à França. Apoiado pela Inglaterra, invadiu a Guiana Francesa, que permaneceu administrada por autoridades da Coroa Portuguesa até 1817, quando, como resultado do Tratado de Viena (1815), o território retornou às possessões francesas4. Foi por conta destes acontecimentos históricos que Silveira pôde encontrar a documentação de legitimação de Fabien Flavin, enviada por Leblond ao Tribunal do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, quando a Guiana Francesa estava sob o controle português. Na carta de perfilhação, escrita em Paris em 1814, Leblond afirma que quando se retirou “da colônia de Caiena em 1802 ele deixou grávida a denominada Adelaide, de que assistia na dita plantação, da qual tinha nascido dois anos antes uma criança masculina chamada Jean Baptiste, o qual ele trouxe consigo para a França e o reconheceu autenticamente por seu filho natural, e com o nome de Jean Baptiste Leblond” (grifo meu)5. Embora estivesse distante, aparentemente Leblond se mantinha informado sobre o que se passava com o filho deixado na colônia francesa na América do Sul. Flavin estava sob os cuidados de uma mulher chamada Gotte Tangui, quem recebia os “meios necessários” para a subsistência do menino. Leblond, na carta que solicita o reconhecimento de Flavin, utiliza o termo “denominada” — na versão em francês, provavelmente la nommée — para se referir à Tangui, indício que denota que era uma mulher afrodescendente6, certamente livre, pois era responsável pelo menino liberto, talvez até mesmo madrinha do filho de Adelaïde: “(...) desta segunda prenhez [de Adelaïde] nasceu outra criança masculina em dez de setembro de 1802, a que se pôs o nome de Flavin, e o qual continua a criar-se como seu filho e a sua custa em

3 SILVEIRA, Alessandra da Silva. O amor possível: um estudo sobre o concubinato no Bispado do Rio de Janeiro em fins do século XVIII e no XIX. Tese de Doutorado em História, IFCH – UNICAMP, Campinas: 2005. 4 Sobre este processo, veja os artigos do dossiê “Tomada de Caiena”, da Revista Navigator, v. 6, n. 11, 2010, http://www.revistanavigator.com.br/navig11/N11_index.html, entre eles CARDOSO, Ciro Flamarion, “A tomada de Caiena vista do lado francês”, pp. 13-23; ROSTY, Cláudio Skôra, “Campanha da Guiana Francesa: Caiena tomada aos franceses”, pp. 43-51. 5 Processo de Legitimação, caixa 125, documento 51. Tribunal do Desembargo do Paço, 1814, ANRJ. Citado em SILVEIRA, op cit, p. 178. 6 Ao longo da tese, apresentarei fontes, argumentos e pesquisas historiográficas que justificam esta inferência 19 poder da denominada Gotte Tangui, a quem os seus procuradores na dita colônia tem sempre fornecido as formas e meios necessários para a sua subsistência, vestuário e educação”7. Não sabemos se Adelaïde chegou a ser alforriada e, aparentemente, ela morreu logo depois de dar à luz Flavin. Sobre ela, Leblond se refere apenas como a “denominada Adelaide” que residia em sua fazenda (“assistia na dita plantação”) e como a mulher que engravidou de seus filhos (“deixou grávida”; “da qual tinha nascido dois anos antes uma criança”; “desta segunda prenhez”). Leblond tinha 65 anos de idade quando decidiu perfilhar o caçula e jamais se casou8. Flavin herdaria a habitation em Caiena, já bastante desvalorizada, depois de um longo processo impetrado contra ele pelos numerosos sobrinhos de Leblond na França9. O primogênito, Jean Baptiste (1800-1831), formado na metrópole, retornou ao Caribe para se tornar secretário de Jean-Pierre Boyer, segundo presidente da República do Haiti, e redator do jornal L’agriculteur haïtien10. Apesar de defender a economia escravista nas colônias francesas e a manutenção do tráfico de escravos — especialmente em sua obra Description abrégée de la Guyane (Paris: E. Emery, 1814)11 —, Leblond pai reconheceu, e provavelmente alforriou, seus dois filhos, prole de sua escrava. Alessandra Silveira desenvolve pouco sua análise acerca dessa história, baseando-se apenas nas conclusões de Mary Louise Pratt sobre o padrão “amar e partir”12, no qual aborda os significados das narrativas sobre relações de concubinato, estabelecidas nas sociedades escravistas do Novo Mundo, entre homens europeus e mulheres subalternas, abandonadas pelos amantes quando estes retornavam à terra natal metropolitana13. Adelaïde segue como coadjuvante em sua história com Leblond, e nada sabemos, de fato, sobre a natureza e as condições do relacionamento estabelecido entre eles. Ademais, ainda não encontramos indícios sobre sua vida cotidiana como mulher escravizada entre o

7 A carta foi entregue por João Rodrigues da Costa, procurador de Leblond no Rio de Janeiro, sendo traduzida por Agostinho da Silva Hoffman, tradutor público. Processo de Legitimação, caixa 125, documento 51. Tribunal do Desembargo do Paço, 1814, ANRJ. Citado em SILVEIRA, op cit, p. 178. 8 Idem, p. 178. 9 POULIQUEN, op cit, p. 9. 10 POULIQUEN, op cit, p. 8. Em sua obra sobre o Haiti, Victor Schoelcher comenta que o periódico L’agriculteur haïtien era publicado sob os cuidados do “M. Leblond”, encorajado pelo próprio presidente Boyer. Ver SCHOELCHER, Victor. Colonies étrangères et Haiti. Résultats des l’émancipation anglaise. Tomo II. Paris: Pagnerre, 1843, p. 267. Leblond filho lançou o jornal L’Agriculteur Haïtien em Port-au- Prince em janeiro de 1826, publicado a cada quinze dias (nos dias 10 e 25 de cada mês). 11 POULIQUEN, op cit, p. 16. 12 PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, pp. 155-182. 13 SILVEIRA, op cit, pp. 178-179. Silveira parece desconhecer a narrativa de viagem de Leblond e sua trajetória anterior à Caiena, assim como sua publicação sobre a Guiana Francesa, pois não menciona estes fatos em nenhum momento de seu texto, nem lista a obra de Leblond na bibliografia. 20 trabalho, a família, os cuidados com os filhos, a convivência com os outros escravos da fazenda em Caiena, se conquistou ou não sua liberdade antes de morrer, se morreu no parto de Flavin ou depois e qual o motivo de seu falecimento, se conhecia e qual sua ligação com Gotte Tangui, que se tornou responsável por Flavin. A informação pontual sobre um fragmento da trajetória de seu filho mais velho, Jean Baptiste, que deixou a França para atuar no Haiti, leva-nos a refletir se sua origem e aquela de sua mãe, quem conheceu pouco, teriam influenciado suas ideias políticas e sua escolha de partir para a república negra caribenha. Em diferentes “zonas de contato” nas sociedades escravistas da América e do Caribe, histórias sobre relações semelhantes àquela de Adelaïde e Leblond — entre uma mulher negra escrava e um homem branco — foram mencionadas em relatos de viajantes e de missionários desde o século XVII. Mary Louise Pratt afirma que “sexo e escravidão” se tornaram grandes temas das narrativas de viagem e da literatura a partir da década de 1760, ou ainda, “um único grande tema, pois os dois aparecem invariavelmente unidos nas narrativas alegóricas que invocam o amor conjugal como uma alternativa à escravização e à dominação colonial, ou como versão recém-legitimada destas”14. Algumas histórias se tornaram célebres, como aquelas do viajante escocês John Stedman e sua escrava Joana, no Suriname15, e a história de Chica da Silva e o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, no Brasil16. Doris Garraway demonstra que histórias similares estiveram presente nas narrativas coloniais sobre as Antilhas Francesas desde a segunda metade século XVII, ainda que tenham se transformado significativamente em relação aos temas, autoria e orientação ideológica até o final do século XVIII. A autora analisa fontes impressas sobre as possessões francesas publicadas entre o início da colonização, por volta dos anos de 1640, e o período da Revolução Haitiana, na década de 1790. Seu objetivo é examinar de que forma os conflitos sociais inerentes à escravidão e uma estrutura social racializada impactaram processos de sincretismo cultural, procurando por meio de sua investigação apontar algumas inadequações que observa nas teorias sobre “crioulização” nas Américas e no Caribe. Sobretudo, destaca

14 PRATT, op cit, p. 155. 15 Veja PRICE, Richard & PRICE, SALLY (orgs.). Stedman’ s Surinam life in an Eighteenth-Century Slave society. An abridged, modernized edition of Narrative of a five years expedition against the revolted negroes of Surinam by John Gabriel Stedman. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press, 1992; PRATT, op cit, pp. 164-182 (“De Narina a Joana”). 16 Veja FURTADO, Junia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Ou a versão dessa obra de Junia Furtato, publicada em inglês, Chica da Silva: a brazilian slave of the Eighteenth Century, Cambridge University Press, 2008. 21 uma questão que, segundo Garraway, tem sido ignorada ou mal compreendida em discussões sobre crioulização e escravidão colonial: o papel do desejo e da sexualidade, ao lado da violência, na formação da sociedade crioula, contribuindo de forma fundamental na construção das práticas e ideologias de dominação nas colônias francesas17. Dessa forma, ressalta que questões sobre gênero, sexualidade e desejo ocuparam um espaço substancial nas narrativas coloniais, mas são frequentemente pouco exploradas pelos acadêmicos e nas teorias culturais caribenhas de autoria masculina18. O título de seu livro, The libertine colony [A colônia libertina], refere-se, por um lado, a uma inquietude central que observa nos textos coloniais e que toca a natureza dos processos de crioulização — especialmente em São Domingos19. De acordo com Garraway, missionários, escritores e viajantes constantemente usaram os termos “libertine” (libertina) e “libertinage” (libertinagem) para descrever as colônias francesas como locais de imoralidade, heresia religiosa, violência e licença sexual. Contudo, ao invocar o termo “libertinagem”, a autora pretende não apenas traçar o discurso no qual sujeitos de origem europeia criticaram a disciplina religiosa, moral e social no Caribe francês, mas propor uma alternativa para se compreender a centralidade do desejo e da sexualidade nas ideologias e práticas de dominação na sociedade crioula. Dessa forma, reconsidera “libertinagem” não como o desvio moral de assuntos coloniais particulares, mas sim como uma “economia libidinal baseada em relações de poder e exploração entre brancos, não-brancos livres e escravos nas colônias”20. Na retórica colonial acerca da “libertinagem”, segundo Garraway, estava a ideia de que a intimidade inter-racial era subversiva para a ordem social nas colônias. Nesse sentido, a legislação discriminatória produzida no Caribe Francês entre os séculos XVII e XVIII representou os “livres de cor” como filhos ilegítimos dos homens brancos com mulheres negras escravas, expressando as inquietudes da classe dominante sobre a “libertinagem inter-racial”. De acordo com a autora, ao tornar as crianças mestiças ilegítimas

17 GARRAWAY, Doris. The libertine colony: creolization in the Early French Caribbean. Durham e Londres: Duke University Press, 2005, pp. 1-2. 18 Apesar de destacar a importância de seus trabalhos teóricos e literários, Garraway critica escritores (martinicanos, sobretudo) como Édouard Glissant e outros que seguem seu pensamento – como os escritores créolistes Raphaël Confiant, Patrick Chamoiseau e Jean Bernabé –, os quais teriam ignorado questões sobre gênero e sexualidade ou as observado como “fatores minoritários em um sistema brutal de dominação e subordinação”, negligenciando as formas que certas práticas sexuais contribuíram e reforçaram estruturas do poder colonial. GARRAWAY, op cit, pp. 18-22. 19 Utilizo ao longo do texto a tradução em português (São Domingos) do topônimo da ex-colônia francesa no Caribe, Saint-Domingue – em espanhol, Santo Domingo –, que com sua independência em 1804, após anos de uma revolução liderada por escravos libertos, viria a se tornar a importante república do Haiti. 20 GARRAWAY, op cit, pp. 25-26. 22 um tabu, o discurso jurídico, e colonial em geral, definiu os “mulatos”, sobretudo os livres, em termos de “imoralidade, concupiscência e selvageria sexual”, assim como figuras “impuras”, capazes de poluir a sociedade branca se fosse permitido a eles qualquer privilégio da elite social, cargos políticos, ou ligações conjugais com os brancos. Garraway conclui que a “verdade” surpreendente sobre a “colônia libertina” é que as leis que mantinham a exclusão dos afrodescendentes asseguraram a hegemonia tanto sexual como política dos homens brancos21. Em sua análise, Garraway expõe conclusões pertinentes sobre o processo de construção do discurso que inter-relaciona “mestiçagem” e “libertinagem”, o qual teria afetado a classe dos livres de cor durante o período colonial, sobretudo as mulheres afrodescendentes. De acordo com a autora, inúmeras narrativas coloniais se referem à “mulher mulata livre” no século XVIII no Caribe Francês como figuras superiores em charme, inteligência e engenhosidade sexual em relação às mulheres brancas, levando os homens brancos a preferirem as mulheres de cor em detrimento das últimas, mas como suas amantes e concubinas. Similarmente, as mulheres negras escravas eram descritas como “selvagens sexuais” dispostas a manipular seus senhores brancos de acordo com seus próprios interesses22. Garraway ressalta a brutalidade inerente à escravidão e a descreve, sobretudo, como um sistema de dominação sexual e reprodutiva, devido à violência e à exploração escravista vividas nas relações íntimas e sentimentais, e como isso interferia na vida política, cultural e social da colônia. Contudo, ao observar apenas a narrativa erigida pelos (homens) europeus, passando ao largo de uma análise mais ao rés-do-chão, não examina as formas de agência e as experiências dos escravos e livres de cor, suas visões e respostas àquela estrutura de dominação. Ela mesma afirma que as fontes analisadas foram produzidas quase que exclusivamente da perspectiva do poder colonial e revelam a visão do “grupo colonizador”, acerca dos tipos de trocas, negociações e resistências que envolviam grupos subalternos23. Por isso, define o sistema colonial francês como uma “colônia libertina”, reproduzindo assim, em certa medida, o ponto de vista da ideologia senhorial, ainda que o objetivo da autora fosse escancarar sua violência. Suas leituras sobre a legislação e as narrativas coloniais são bastante

21 GARRAWAY, op cit, pp. 32-33. 22 GARRAWAY, op cit, pp. 28-29. 23 GARRAWAY, op cit, pp. 21. 23 consistentes, mas observa exclusivamente as políticas de domínio senhorial e racial da elite branca. Dessa forma, o trabalho de pesquisa de Garraway não deixa de ser importante e bastante interessante, mas se destaca a ausência de uma investigação sobre as experiências, expectativas, estratégias e adaptações das mulheres escravizadas e libertas por trás daquelas narrativas de violência e libertinagem. Essa crítica às suas análises se baseia na historiografia sobre a escravidão na América e no Caribe que, como afirma Sidney Chalhoub, desde a década de 1970 “tem girado em torno da tentativa de resolução do aparente paradoxo entre a constatação da eficácia da política de domínio senhorial e a contínua descoberta de práticas culturais autônomas por parte dos escravos”. Nesse sentido, o desafio “é reconhecer a presença da classe senhorial na forma como os escravos pensavam e organizavam seu mundo e, ao mesmo tempo, entender que os escravos instituíam seu próprio mundo mesmo sob a violência e as condições difíceis do cativeiro, sendo que a compreensão que tinham de sua situação não pode ser jamais reduzida às leituras senhoriais de tal situação”24. Nesse sentido, uma abordagem interessante e essencial é examinar os processos complexos de conquista e concessão da liberdade, ou seja, como as mulheres e homens escravizados se tornavam libertos e “livres de cor” nas colônias francesas do Caribe. Quais seriam suas formas individuais e coletivas de resistência e resiliências cotidianas que poderiam, em conjunto, ter desestruturado e/ou fortalecido o sistema escravista francês? Experiências e narrativas como aquelas abordadas por Doris Garraway, assim como por Mary Louise Pratt e outros pesquisadores25, marcaram o imaginário sobre as “escravas concubinas” no Mundo Atlântico, que (supostamente) teriam conquistado suas liberdades quase que exclusivamente por conta das relações afetivas com seus senhores brancos. “A cada cem alforrias, cinco, no máximo, tem um motivo louvável. As outras noventa e cinco foram dadas às concubinas favoritas e a alguns de seus filhos”, afirma Parmentier em sua Mémoire sur la législation de la Guadeloupe, escrita entre 1804 – 180526. Muitas outras fontes dos séculos XVIII e XIX, além das narrativas de viagem — também

24 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 26. 25 Além da obra de Junia Furtado sobre Chica da Silva, veja WINTERS, Lisa Ze. The mulatta concubine: terror, intimacy, freedom, and desire in the black transatlantic. Athens (Georgia): University of Georgia Press, 2006; CÂNDIDO, Mariana P., “Concubinage and slavery in Benguela, c. 1750 – 1850”, in OJO, Olatunji & HUNT, Nadine. Slavery in Africa and the Caribbean: a history of enslavement and identity since the 18th Century. London e New York: I. B. Tauris, 2012, pp. 65-84. 26 Citado em RÉGENT, Frédéric. La France et ses esclaves: de la colonisation aux abolitions, 1620-1848. Paris: Bernard Grasset, 2007, p. 186. 24 diários de colonos e documentos administrativos e oficiais do Caribe Francês —, exprimiram essa visão dos senhores de escravos, todos homens e brancos, fomentando o estereótipo segundo o qual a grande maioria das alforrias conquistadas e concedidas nas Antilhas Francesas foram acordadas às “concubinas dos brancos” e aos seus filhos. Dessa forma, nas sociedades escravistas do Caribe Francês, entre os séculos XVIII e XIX, embora possamos observar muitas mulheres africanas e afrodescendentes, escravizadas e libertas, como trabalhadoras responsáveis por atividades variadas, desde as domésticas àquelas relacionadas às economias informais, e como arrimos de famílias, dando sustentação a filhos, maridos e outros parentes agregados, os quadros e axiomas que perduram e se destacam são especialmente aqueles que as descrevem como amantes e concubinas. Mesmo que tivessem uma vida amorosa intensa e muitos filhos, a questão é que a presença das mulheres negras, quando registrada em documentos, passa pela lente de registro do olhar branco europeu, observando-as sobretudo em função dos homens, fossem maridos, amantes ou senhores: ou são retratadas como mães e/ou esposas de família — neste caso, quando casadas oficialmente, situação mais esporádica entre escravas e libertas no Caribe Francês — ou como promíscuas, altamente sexualizadas, exercendo seu poder por meio da sedução. Seu trabalho e sua atuação na comunidade escrava e em suas famílias, sobretudo em relação à conquista de autonomia e independência, construindo um caminho para a liberdade, se não são ignoradas, são menosprezados nas análises sobre mobilidade social e transformações dentro do sistema escravista. Este é o problema central abordado neste trabalho de pesquisa, ao analisar a história social das mulheres escravas e em vias de liberdade na Martinica. Durante a Monarquia de Julho (1830 – 1848), a taxa de alforria no Caribe Francês se tornou muito significativa devido às transformações políticas e jurídicas na França metropolitana e nas colônias e, ainda, à percepção das pessoas escravizadas e libertas sobre estas mudanças. Diferentemente de qualquer período anterior, uma grande quantidade de cartas de alforria oficiais foram emitidas pela administração colonial. Ao analisar esses processos de conquista da liberdade, a expressão demográfica desse fenômeno, a legislação e debates políticos em torno da alforria e as tensões entre “brancos” e “livres de cor” nas colônias francesas e na metrópole acerca de direitos e emancipação, meu objetivo foi buscar os indícios do quanto as mulheres afrodescendentes foram protagonistas das estratégias e projetos de liberdade, individuais e coletivos. Foram examinados os contextos históricos que envolveram a 25 conquista da liberdade, mesmo que precária, por homens e mulheres, pensando a “alforria” nas sociedades escravistas como uma questão essencial para se analisar a história da escravidão nas Américas e no Caribe. Não é incomum encontrar historiadores que examinam a escravidão e a liberdade no Novo Mundo e afirmam, assim como as fontes, que as escravas africanas e suas descendentes tinham mais acesso à alforria devido às suas relações de “concubinagem” com seus senhores brancos. No entanto, não há nenhum estudo mais aprofundado, ao menos sobre a alforria nas Antilhas Francesas, que demonstre e explique de fato a expressividade dessa situação, para além da aparente reprodução dos discursos registrados exaustivamente pela elite de colonos brancos, pela administração colonial e por viajantes europeus. Estes sujeitos expressaram visões baseadas em preconceitos morais, culturais e raciais sobre as mulheres negras e mulatas, construindo uma imagem sensualizada e distorcida sobre elas, desde os relatos de clérigos como Labat27 e Du Tertre28, entre a segunda metade do século XVII e início do XVIII. De fato, um maior número de alforrias foi concedido às mulheres e às crianças, ao menos nas últimas décadas de escravidão na Martinica. No entanto, o objetivo desse trabalho de pesquisa é demonstrar que a experiência da conquista da liberdade, sobretudo pelas mulheres e por suas famílias, estava inserida em um quadro sociocultural e político muito mais complexo que essa imagem estereotipada e que foi reproduzida, de certa forma, pela historiografia sem uma análise crítica mais contundente.

MULHERES, FAMÍLIA, ESCRAVIDÃO E ALFORRIA

A oportunidade de pesquisar e analisar a história colonial e da escravidão no Caribe Francês a partir de uma instituição acadêmica brasileira tornou inevitável a influência da historiografia que aborda a história da escravidão no Brasil. Ainda que existam diferenças fundamentais entre o escravismo e o colonialismo na América Portuguesa (e no Brasil imperial) e nas colônias francesas antilhanas, tal produção historiográfica é extremamente rica

27 LABAT, Jean-Baptiste (1663-1738). Nouvelle voyage aux isles de l'Amérique, contenant l'histoire naturelle de ces pays, l'origine, les moeurs, la religion, et le gouvernement des habitants anciens et modernes. 2 volumes. Paris: Chez P. Husson, 1724. (BNF – Gallica). 28 DU TERTRE, Jean-Baptiste. Histoire générale des Antilles habitées par les François. 3 volumes. Paris: Thomas Jolly, 1667-71 (Gallica – BNF). 26 e proporcionou a este trabalho de pesquisa um arcabouço metodológico e teórico essencial, além de questões relevantes e originais para o campo de estudos29. Dessa forma, a abordagem foi construída sobretudo a partir da análise de fontes documentais, influenciada pelas leituras da historiografia brasileira e brasilianista. Contudo, é essencial ressaltar a importância do diálogo estabelecido com trabalhos de historiadores franceses, norte-americanos, do Caribe francófono e anglófono, que abordam a história da escravidão nas Américas. As pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas na área de história social se debruçaram sobre investigações que, de acordo com Sidney Chalhoub e Fernando T. da Silva, configuraram um “paradigma da agência”, segundo o qual as ações de escravos, libertos e trabalhadores urbanos resultaram de negociações, escolhas e decisões frente às instituições e aos poderes normativos. Tornou-se importante desvendar as políticas de domínio pertinentes à escravidão, mas interessava, sobretudo, compreender as maneiras que mulheres e homens escravizados lidavam com o seu “lote rotineiro de exploração econômica e coerção senhoriais”. Dessa forma, observou-se que “costumes em comum formatavam a experiência dos trabalhadores escravos e ajudavam a configurar a arena da luta de classes na escravidão brasileira”. Ademais, constatou-se que as visões escravas da escravidão impunham limites ao poder senhorial, ao mesmo tempo em que, via de regra, ajudavam a reproduzi-lo. Estruturavam, assim, um conjunto de significados sociais gerais que pautavam as relações entre senhores e escravos30.

29 Esta influência se revela evidente ao longo do texto da tese, mas somente para citar alguns trabalhos que se tornaram referência, entre as várias pesquisas importantes sobre a história da escravidão e liberdade no Brasil: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (São Paulo, 1990); XAVIER, Regina Célia Lima. A Conquista da liberdade, libertos em campinas na segunda metade do século XIX (Campinas, 1996); LARA, Silvia H. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa (São paulo, 2007); REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (São Paulo, 2008); GRINBERG, Keila, “Manumission, gender, and the law in Nineteenth-century Brazil”(Columbia, 2009); PIROLA, Ricardo F. Senzala insurgente: malungos, parentes e rebeldes nas fazendas de Campinas (1832) (São Paulo, 2011); SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX (Campinas, 2011); MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX (Campinas, 2013); FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista (São Paulo, 2014). 30 CHALHOUB, Sidney & SILVA, Fernando Teixeira da, “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”, in Cadernos AEL: trabalhadores, leis e direitos, v. 14, n. 26, Campinas: UNICAMP/IFCH/AEL, 2009, pp. 11-45. 27

Nesse sentido, Robert Slenes apontou em suas pesquisas31 a formação de uma identidade escrava nas fazendas do Rio de Janeiro e de São Paulo — entre o final do século XVIII, quando a agricultura exportadora e o trabalho escravo ganham vigor no Sudeste brasileiro, e a abolição da escravidão no Brasil —, que indica a construção de uma “consciência escrava”, formada a partir de experiências e culturas comuns, que foram radicalmente opostas àquelas dos senhores. Slenes aborda o problema a partir de um novo paradigma colocado à pesquisa sobre a escravidão moderna, que parte de percepções da história da África acerca dos processos de continuidades e mudanças culturais naquele continente e na diáspora32. Ademais, Slenes apresenta um questionamento que é essencial para avançarmos nas análises sobre a história do protagonismo de grupos subalternos no Mundo Atlântico: se as pesquisas sobre escravidão no Brasil desde a década de 1970 demonstram que os escravos “resistiram” à desumanização do sistema escravista, a qual a historiografia do período anterior acreditava como sendo inerente à escravidão do Novo Mundo33, então qual o significado mais profundo desta constatação sobre a “resistência”? De acordo com o autor, somente os historiadores do trabalho livre vinham questionando por que a “consciência de classe” ocorria em alguns casos e noutros não. No entanto, os historiadores do trabalho escravo também, cada vez mais, passaram a refletir sobre as configurações de antipatias, alianças e identidades

31 SLENES, Robert, “ ‘Malungu, ngoma vem!’: África coberta e descoberta do Brasil”, Revista USP, n. 12, 1991-1992, pp. 48-67; SLENES, “Saint Anthony at the Crossroads in Kongo and Brazil: ‘Creolization’ and Identity Politics in the Black South Atlantic, ca. 1700/1850,” in SANSONE, Lívio; SOUMONNI, Élisée; BARRY, Boubacar (orgs.) Africa, Brazil and the Construction of Trans-Atlantic Black Identities. New Jersey: Africa World Press, 2008, pp. 209-254; SLENES, “L’Arbre nsanda replanté: cultes d’affliction kongo et identité des esclaves de plantation dans le Brésil du Sud-Est entre 1810 et 1888”, Cahiers du Brésil Contemporain (EHESS, Paris), n. 67/68, 2 vols. (special issue: “L’esclavage au Brésil: retour à l’archive. Nouvelles approches de l‘historiographie brésilienne”), Vol. (Part) II, 2007, pp. 217-313; SLENES, “‘Eu venho de muito longe, eu venho cavando’: jongueiros cumba na senzala centro-africana,” in LARA, Silvia H.; PACHECO, Gustavo (orgs.) Memória do jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007. 32 Acerca dos debates sobre continuidades e mudanças culturais entre a África e a diáspora para a América e o Caribe, ou seja, discussões sobre crioulização, transculturação ou “ladinização” (como definiu João José Reis acerca de tais processos no Brasil), além dos textos de Robert Slenes indicados na nota anterior, veja também: REIS, João José, Domingos Sodré, um sacerdote africano (2008), pp. 315-320; MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, 2003; PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999; MARCUSSI, Alexandre Almeida. Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana. Tese de doutorado em História (FFLCH – USP), São Paulo: 2010; KING, Nicole. C. L. R. James and creolization: circles of influence. University Press of Mississipi: 2001. 33 Sobre a crítica aos paradigmas distintos de análises históricas construídas entre as décadas de 1930 e 1960, a partir das obras, sobretudo, de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, Florestan Fernandes, veja SLENES, Na senzala, uma flor (2011), pp. 36-41; CHALHOUB & SILVA, “Sujeitos no imaginário acadêmico”, pp. 16- 20. 28 sociais dentro e fora das senzalas, ao invés de tomar como certo que os cativos simplesmente “resistiram”. Segundo Slenes, uma experiência comum, percebida como severamente opressiva, levou os escravos das plantations à construção de uma identidade baseada em “classe”34. Como resultado, destacam-se certas características culturais compartilhadas de origem africana e mesmo elementos culturais domesticados de procedência europeia, observando-se um processo que combina classe social e origem étnica35. Desde as últimas décadas do século XX, questões relativas à família escrava, à conquista da liberdade (alforria, emancipação, abolição) e ao destino dos libertos se tornaram centrais nas pesquisas sobre escravidão nas Américas e no Caribe. Questionando os paradigmas predominantes na historiografia num período anterior, vários historiadores passaram a criticar sobretudo o que se afirmava acerca da ilegitimidade de nascimento entre os escravos, observada como um indicativo de promiscuidade. Percebeu-se, por exemplo, que a constituição de famílias conjugais entre os cativos não passava, necessariamente, pelo reconhecimento da Igreja ou do Estado. Se não chegavam a formar famílias legítimas, não significava que viviam à mercê de ligações temporárias e licenciosidade sexual. Ademais, as taxas de ilegitimidade entre os escravos variaram de acordo com o compromisso dos senhores na formalização dos enlaces matrimoniais de seus cativos, o que levaria uniões consensuais a serem documentadas36. Em artigo publicado em 1975, Richard Grahan destacou que, diferentemente daquilo que se acreditava — que os cativos quase não formavam famílias —, os africanos e

34 A abordagem de Slenes sobre “classe”, assim como desta pesquisa, é influenciada pela obra do historiador marxista inglês E. P. Thompson – marcada por um marxismo heterodoxo –, o qual entende a “classe” como um “fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência”. Para Thompson, “a classe acontece quando alguns homens” — acrescentaríamos: “e algumas mulheres” —, “como resultado de experiências comuns (herdadas e compartilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõe) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens [e mulheres] nasceram — ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais”. THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa (Vol. I: A árvore da liberdade). Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 9-10. 35 SLENES, Robert W., “A ‘Great Arch’ Descending: Manummission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and Free(d) Black identities in Southeastern Brazil, 1791-1888”, in GLEDHILL, John & SCHELL, Patience A. (orgs.). New approaches to Resistance in Brazil and Mexico. Durhan, London: Duke University Press, 2012, pp. 100-118. As pesquisas e conclusões de Robert Slenes sobre a história da escravidão e da cultura afro-brasileira no Brasil tiveram forte impacto sobre a historiografia brasileira; veja RIBEIRO, Gladys S.; FREIRE, Jonis; ABREU, Martha C; CHALHOUB, Sidney (orgs). Escravidão e cultura afro- brasileira: temas e problemas em torno da obra de Robert Slenes. Campinas: Ed. da Unicamp, 2016. 36 FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. São Paulo: Alameda, 2014, p. 25. 29 afrodescendentes escravizados no Brasil estabeleciam laços familiares muito mais variados e complexos do que se pensava até então37. Em 1976, utilizando um método de micro-história e de ligação nominativa através de fontes, visando seguir pessoas no tempo e entre séries documentais diferentes (listas de escravos em inventários, cartas de alforrias, assentos de batismo e casamento, processos cíveis e criminais), realizando, ainda, análises demográficas qualitativas, Robert Slenes demonstrou que a família escrava foi uma realidade marcante nas grandes plantations do sudeste escravista brasileiro no século XIX, revelando altas taxas de casamento (ou uniões estáveis) entre escravos na região38. Nos Estados Unidos, na década de 1970, estudos como aqueles de Eugene D. Genovese39 e Herbert G. Gutman40 focalizaram especificamente a família cativa na história do escravismo daquele país. Assim, a partir de uma ampla documentação, demonstraram que a família nuclear, intergeracional e extensa — incluindo relações de compadrio — era uma instituição forte e valorizada pelos escravos. Além disso, argumentaram que os cativos tinham normas familiares próprias, que não eram simplesmente derivadas daquelas de seus senhores. Em estudo posterior, além de observar “a significativa presença da família escrava” nas fazendas e propriedades medianas das áreas de plantation do sudeste brasileiro, Slenes procurou recuperar os significados das relações de parentesco para os próprios escravos. Focou sua investigação em resgatar a capacidade de mulheres e homens escravizados de constituírem núcleos familiares conjugais, extensos e intergeracionais, e de agirem por meio de solidariedades e reciprocidades com seus companheiros de infortúnio para definir projetos em comum. Dessa forma, avalia as diversas acepções da família escrava que, “ao promover a autonomia e a dependência do escravo, era a um só tempo abalo e arrimo para o escravismo”41. Nesse sentido, ao analisar as possíveis

37 Grahan observou os padrões demográficos e familiares da fazenda Santa Cruz (próxima a cidade do Rio de Janeiro), uma antiga propriedade jesuítica, que depois da expulsão dos jesuítas na segunda metade do século XVIII se tornou propriedade do estado português. GRAHAN, Richard, “Slave families of a rural state in colonial Brazil”, Journal of Social History, v. 9, issue 3, 1975, pp. 382-402. 38 SLENES, Robert W. The Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Stanford University, Ph.D. History, 1976. 39 GENOVESE, Eugene D. Roll, Jordan, Roll: the world the slaves made. Nova York: Pantheon Books, 1974. Este livro foi parcialmente traduzido para o português no Brasil: A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra / Brasília: CNPq, 1988, vol I. 40 GUTMAN, Herbert G. The black family in slavery and freedom, 1750-1925. Nova York: Random House, 1976. 41 Slenes estabelece um diálogo crítico com a historiografia brasileira, questionando que “se a família cativa é o resultado de uma luta entre escravos e senhores, como se caracterizam os respectivos “ganhos” e “perdas” das partes nessa batalha?”. Seu debate se dá sobretudo com Manolo Florentino, José Roberto Góes e Hebe Mattos. SLENES, Na senzala, uma flor (2011), pp. 36; 52-55. Sobre os outros autores, veja FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. Paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2013. 30 expectativas dos cativos em relação à obtenção da liberdade, Slenes argumentou que para aqueles que se casavam ou constituíam uma família extensa, a tendência de encarar a possibilidade da alforria como “um motivo a mais para uma estratégia de poupança” pode ter sido bastante comum. Os laços familiares não apenas criavam maiores possibilidades para a formação do pecúlio, mas também potencializavam esse esforço de acumulação42. Hebe Mattos, buscando analisar “as relações sociais ao rés do chão”, observou que o aprofundamento das relações comunitárias entre os escravos, nos maiores plantéis brasileiros, “foi fundamentalmente um exercício de aproximação da experiência de liberdade com a qual conviviam”. Assim como no mundo dos homens livres, “a família e a autonomia escrava foram os dois eixos básicos sobre os quais se constituiu esta comunidade diferenciada dentro da experiência mais evidente de desenraizamento do cativeiro”, e destaca que a mulher escrava ocupou um papel crucial dentro deste contexto43. Certamente, as mulheres e os homens escravizados tiveram possibilidades de obter para si e suas famílias, por meio de sua atuação, ganhos dentro dos sistemas escravistas das Américas e do Caribe, ainda que sempre oscilando entre a autonomia e a dependência. Neste aspecto, para os cativos, a alforria provavelmente era vista como o meio mais descomplicado de abandonar o cativeiro em definitivo, se comparado às fugas e revoltas, além de ser um de seus maiores anseios44. O casamento, a formação de famílias e o acesso a trabalhos qualificados eram parte importante das estratégias empregadas pelos escravos, em sua busca pela liberdade, destinando seus esforços para conquistar a alforria de filhos, mães, pais, cônjuges, e mesmo de outros parentes próximos ou agregados45. Os debates sobre a “família escrava”, tão proeminentes nas historiografias norte- americana e brasileira, aparentemente não tiveram o mesmo vigor entre os pesquisadores que abordam a história do colonialismo e da escravidão nas colônias francesas46. Encontramos

42 SLENES, Na senzala, uma flor (2011), p. 206. 43 MATTOS, Hebe, op cit (2013), p. 145. Acerca de um estudo amplo sobre “família”, mas no período colonial no Brasil, envolvendo o “comportamento cotidiano de livres, libertos, escravos, ricos, pobres ou remediados nas suas estratégias matrimonais, procriação, morte, produção, moradia, enriquecimento e empobrecimento”, veja FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 44 PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995, p. 107 45 FREIRE, op cit (2014), p. 219. 46 Esta defasagem muito provavelmente se relaciona ao “silenciamento” da historiografia e da memória pública francesa sobre a história da escravidão e o colonialismo nas antigas colônias, questão amplamente debatida e criticada, principalmente desde 2005, tanto por pesquisadores como pela opinião pública francesa (sobretudo antilhana). Sobre estes debates, veja COTTIAS, Myriam. La question noire. Histoire d'une construction coloniale. Paris, Bayard, 2007; CHIVALLON, Christine. L’Esclavage, du souvenir à la mémorie: 31 apenas uma tese, de Gilles Gérard, defendida em 2011, que aborda especificamente a “família escrava” em Bourbon, atual ilha de Reunião47. Alguns estudos históricos e antropológicos analisaram as estruturas de parentesco no Caribe francês de forma ampla, e geralmente há uma preocupação maior em examinar (e constatar) a característica “matrifocal” das famílias, tanto no período escravista como no pós-abolição48. Arlette Gautier, contudo, em um artigo publicado em 2000, analisa as estruturas de famílias escravas em Guadalupe e Martinica e considera que a existência significativa de núcleos familiares matrifocais poderia ser compreendida, em parte, através dos indícios de permanência de uma poligamia de origem africana, adaptada às condições da escravidão nas colônias francesas49. Com uma outra abordagem, centrada nos processos de “crioulização” das famílias antilhanas, Myriam Cottias, em sua tese de doutorado, procurou demonstrar que as estruturas familiares de origem africana e europeia se “crioulizaram” na medida que elas tenderam progressivamente a um modelo comum que combinou os funcionamentos e as dinâmicas de cada grupo, de acordo com os contatos estabelecidos entre a população e as adaptações à sociedade escravista e colonial50. Vincent Gourdon e François-Joseph Ruggiu afirmam na introdução de um dossiê da revista Annales de Démographie Historique, de 2011, que a coletânea apresentada resultou da constatação de certa defasagem da historiografia francesa e francofônica sobre a história da

contribuition à une anthropologie de la Caraïbe. Paris: Karthala – CIRESC, 2011, pp. 27-72 (Capítulo: La mémoire soupçonnée. Explosion mémorielle et difficile légitimité de la mémoire de l’esclavage dans l’espace public français). 47 O autor analisa a família escrava na ilha de Bourbon, numa longa duração, desde o início da colonização (século XVII), até o período da abolição da escravidão nas colônias francesas (1848), observando uma ampla documentação, inclusive os registros dos “novos cidadãos” logo depois da abolição. De acordo com o autor: “A côté d’autres moyens de résistances serviles comme le marronnage ou la révolte, il apparaît, grâce à la reconstruction des familles esclaves, que ces formes d’organisation ont permis à une population provenant de razzias en Afrique ou à Madagascar, puis fortement créolisée, de retrouver son humanité, en investissant le champ de la parenté dont les pouvoirs civils ou religieux la privaient. (...) Lieu privilégié de transmissions de valeurs culturelles et linguistiques, la famille esclave, quelles qu’en soient les formes, a permis à de très nombreux esclaves de survivre à un système inhumain, les exclus de la parenté appartenant essentiellement aux groupes ayant connu la destruction de leur système familial, à Madagascar ou en Afrique”. GERARD, Gilles. La famille esclave a Bourbon. Thèse de Doctorat d’Histoire, Faculté des Lettres et Sciences Humaines, Université de la Réunion, 2011 (1287p). 48 Veja MULOT, Stéphanie, “La matrifocalité caribéenne n’est pas un mirage créole”, L’Homme, 207-208, 2013, pp. 159-191. 49 GAUTIER, Arlette, “Les familles esclaves aux Antilles françaises, 1635-1848”, Population, 55e. Année, n. 6, 2000. pp. 975-1001. 50 COTTIAS, Myriam. La Famille antillaise du XVIIe au XIXe siècles. Étude anthropologique et démographique: enracinements créoles. Thèse de doctorat, École des hautes études en sciences sociales, Paris: 1990. Em artigo de 1989, Cottias expõe parte de seu trabalho de pesquisa, comparando as taxas de mortalidade entre senhores e escravos, e os processos de crioulização da população. Veja COTTIAS, Myriam, “Mortalité et créolisation sur les habitations martiniquaises du XVIIIe au XIXe siècle”, Population, 44-1, 1989, pp. 55-84. 32

“família em situação colonial”. Segundo os autores, diferentemente dos numerosos estudos historiográficos ou coletâneas consagradas ao estudo da família nas colônias britânicas ou espanholas, não se encontram pesquisas ou publicações equivalentes no que concerne às colônias francesas. De acordo com Gourdon e Ruggiu, a “família em situação colonial” é um objeto de estudo complexo, principalmente porque os observadores no período colonial, frequentemente europeus, e depois os próprios historiadores, tenderam a considerar a “família” apenas em relação a um único modelo, que seria aquele da família nuclear, na qual o pai e a mãe seriam unidos por laços de matrimônio legítimo, consagrado pela igreja ou certificado pelo Estado51. Contudo, ainda que nesta coletânea de artigos os autores procuraram abordar outras “formas” ou “configurações familiares” — como afirmam os organizadores do dossiê —, Frédéric Régent, em seu texto sobre as “estruturas familiares e estratégias matrimoniais dos livres de cor em Guadalupe no século XVIII”, continua a enfatizar uma visão que observa os arranjos familiares tomando como referência o que as fontes registram como uniões estáveis, ou seja, os casamentos legítimos. Apresenta, por exemplo, uma tabela (Tab. 3 — Femmes libres de couleur et situation familiale — Guadeloupe, 1789-1794) onde observa as mulheres afrodescendentes livres, cruzando dados sobre designações da cor da pele (ou raciais, tais como “négresses”, “mulâtresses”, “métisses”, “quarteronnes”, “caraïbes”) e sua “situação familiar”, a qual classifica entre “casadas ou viúvas”, “concubinas ou amantes de um branco”, “mãe solteira”52. Régent analisou os dados que apresenta nos registros de sepultura (actes de sépulture) da documentação paroquial de Guadalupe, entre 1789 – 1794, aparentemente sem se preocupar com o cruzamento entre outras séries documentais e uma ligação nominativa, como observamos nas pesquisas de Slenes acerca da família escrava no Brasil. Dessa forma, notamos que as conclusões de Régent ainda apresentam limitações quanto ao exame sobre as experiências dos indivíduos afrodescendentes nas Antilhas Francesas e a constituição de diferentes estruturas familiares, além de observações precipitadas, que ressaltam, de certa forma, apenas o olhar da elite colonial. Sobre a conquista da alforria, por exemplo, Régent afirma que nas colônias francesas os escravos desenvolviam estratégias afetivas e matrimoniais para obter a liberdade. Contudo, sem uma demonstração mais cautelosa, ressalta que quando a alforria era concedida por um homem branco, tais estratégias afetivas ocorriam via concubinagem; e quando era concedida por um livre de cor, a

51 GOURDON, Vincent & RUGGIU, François-Joseph, “Familles en situation coloniale”, Annales de Démographie Historique, n. 122, 2011/2, pp. 5- 39. 52 RÉGENT, Frédéric, “Structures familiales et stratégies matrimoniales des libres de couleur em Guadeloupe au XVIIIe siècle”, Annales de Démographie Historique, n. 122, 2011/2, p. 74. 33 liberdade era efetivada por meio do casamento oficial. Procura-se demonstrar ao longo desta tese que estas generalizações passam longe de explicar os processos complexos de acesso à liberdade no Caribe Francês. No mesmo dossiê, as historiadoras Cécile Vidal e Emily Clark retomam em seu artigo os debates sobre família escrava, ressaltando a importância do tema na historiografia que aborda a história da escravidão nos Estados Unidos, e apresentam questionamentos pertinentes para o campo de estudo. De acordo com as autoras, mais de duas gerações depois das primeiras polêmicas — se referem, sobretudo, às discussões entre o antropólogo Melville Herskovits e o sociólogo Edward F. Frazier, nos anos de 1930 – 4053 —, parece necessário continuar a avançar no debate e mudar os termos nos quais foi inicialmente colocado, deslocando a questão das estruturas familiares à outra mais geral, ou seja, àquela das “relações entre família e escravidão”, e não apenas “família escrava”. A partir de um estudo particular acerca das zonas rural e urbana de Nova Orleans sob o regime francês, entre 1699 e 1769, Clark e Vidal examinam como as duas instituições, família e escravidão, desde a fundação das sociedades escravistas modernas, entraram em conflito e se transformaram na medida do contato uma com a outra. As autoras utilizam e cruzam informações entre fontes paroquiais, um manual escrito por um senhor de escravos, inventários post mortem e processos criminais envolvendo interrogatórios e testemunhos de escravos. A partir disso, observam e examinam ao menos três formas de estruturas familiares que os escravos teriam implementado: os casamentos cristãos, as uniões extramaritais e de coabitação, e as uniões livres à distância. Contudo, mais do que descrever estas estruturas e avaliar sua importância respectiva, o objetivo das autoras foi evidenciar como, mais amplamente, a família, em sua definição, sua significação e suas funções sociais, constituía um terreno de confronto, de contestação e de negociação fundamentais, não apenas entre Igreja, senhores e escravos (em torno da paróquia analisada), ou entre senhores e escravos nas e entre as habitations, mas também entre mulheres e homens escravizados, dentro das comunidades servis, sem que nenhuma das partes pudesse jamais sair como “claramente vitoriosa”54.

53 Veja FRAZIER, Edward Franklin. The negro family in the United States. Chicago: Chicago University Press, 1939; HERSKOVITS, Melville. The myth of the negro past. New York: Macmillan, 1941. Seus trabalhos de pesquisas e as discussões suscitadas influenciaram e influenciam ainda hoje vários historiadores que abordam principalmente a questão da formação de famílias durante a escravidão e no pós-abolição nas Américas. 54 VIDAL, Cécile & CLARK, Emily, “Famille et esclavage à la nouvelle-Orléans sous le régime français (1699-1769)”, Annales de démographie historique, 2011/2 (n° 122), pp. 99-103. 34

A abordagem sobre as sociedades escravistas e coloniais através da análise da família — e da reprodução e da maternidade escrava55 — é essencial para os estudos sobre a história das mulheres, ou ainda, sob uma perspectiva de gênero, raça e classe social. Em um artigo recente, Verena Stolcke abordou a importância de se inter-relacionar os estudos sobre “gênero” e “parentesco” nas pesquisas antropológicas, e mesmo historiográficas56. Stolcke parte de uma exposição sobre o debate em torno do conceito de “interseccionalidade”57, fomentado pelas feministas negras norte-americanas desde o final da década de 197058, quando passaram a denunciar “a cegueira racial de que padeciam suas companheiras brancas” ao ignorarem as discriminações específicas vividas em função das inter-relações entre classe social, raça, sexo/gênero e sexualidade. Contudo, é interessante observar que Stolcke, ao expor as questões teóricas e metodológicas, assim como os debates acerca da noção de interseccionalidade, ressalta sobretudo a ausência de pesquisas empíricas, de estudos concretos, que fundamentem os debates em torno das teorias feministas59.

55 Sobre mulheres, maternidade e escravidão na América e no Caribe, veja os dossiês especiais “Mothering slaves: motherhood, childlessness and the care of children in Atlantic slave societies”, publicados nas revistas Women’s History Review (2017) e Slavery & Abolition (38:2, 2017). Os artigos destes dossiês resultaram das conferências “Mothering Slaves”, que ocorreram no Brasil e no Reino Unido em 2015 e 2016, organizadas por Maria Helena Toledo Machado (Universidade de São Paulo, Brasil), Camillia Cowlling (University of Warwick, Reino Unido), Diana Paton (Edinburg University, Reino Unido) e Emily West (University of Reading, Reino Unido). 56 STOLCKE, Verena Martinez A., “¿Qué tiene que ver el género con el parentesco?”, Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), v. 44, n. 151, pp. 176-189. 57 O termo “interseccionalidade” foi cunhado pela jurista estadounidense Kimberlé Crenshaw, procurando resgatar da invisibilidade e da omissão, tanto por parte das feministas como dos discursos antirracistas, as experiências específicas de subordinação e exploração vividas por mulheres negras, pobres e/ou imigrantes nos EUA, provocadas pelo efeito combinado das categorias de identificação social como classe, raça, sexo/gênero e sexualidade. STOLCKE, op cit, p. 182. Veja ainda CRENSHAW, Kimberlé Williams, “Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics”, University of Chicago Legal Forum, n. 14, p. 538-554, 1989; CRENSHAW, “Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color”, Stanford Law Review, v. 6, n. 43, p. 1241-99, 1991. 58 Veja DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016 (original de 1981). 59 Stolcke retoma questões que havia analisado em artigo publicado na década de 1990, no qual se perguntava qual a relação, por um lado, entre gênero e sexo, e, por outro, entre raça e etnicidade. Esta análise tinha como base suas investigações histórico-antropológicas ainda mais antigas, sobre racismo e sexualidade em Cuba, no período colonial, trabalho desenvolvido a partir de documentação encontrada no Archivo de La Habana, em 1967. Sobre o artigo anterior ao qual a autora se refere, veja STOLCKE, V., “Is sex to gender as race is to ethnicity?”, in DEL VALLE, Teresa (org.). Gendered anthropology. Londres, Nova York: Routledge, 1993. Sobre sua pesquisa histórico-antropológica sobre racismo e sexualidade em Cuba colonial, veja STOLCKE, V. Marriage, class and color in nineteenth century Cuba. Cambridge: Cambridge University Press, 1974 (reeditado em 1989 e 2003, por Michigan University Press); o mesmo foi publicado em espanhol: STOLCKE, V. Racismo y sexualidad en la Cuba Colonial. Madrid: Alianza Editorial, 1992. 35

Louise Tilly, em artigo de 199060, ao abordar a relevância da história das mulheres para uma compreensão mais ampla da história social, utilizando “gênero” como uma chave analítica socialmente construída, mas sem tocar no debate sobre interseccionalidade, também destacou a importância dos estudos empíricos, tanto descritivos como interpretativos, para o desenvolvimento da área e compreensão do conceito. Revisitando uma bibliografia restrita sobretudo aos EUA e à Inglaterra, como a própria autora destaca, ressalta como a história das mulheres, ou ainda, a história social com uma perspectiva de gênero, proporcionou uma ampliação da compreensão histórica61 acerca de questões como formação de classe e mundo do trabalho. Contudo, por conta do recorte bibliográfico observado, ainda que cite trabalhos como de Debora Gray White e Jaqueline Jones62, mais uma vez as questões tão urgentes em torno do debate político e histórico-social sobre raça/etnia, e sua interseccionalidade com gênero e classe, são colocadas de forma superficial no texto de Tilly. A despeito das críticas, os debates destacados por Stolcke forçaram nossos olhares sobre a intersecção entre diversas categorias de classificação sociocultural, caras às análises antropológicas, sociológicas e, mesmo, históricas. No entanto, na história social da escravidão, ao menos no Brasil, as experiências e processos que se relacionam com questões sobre classe e raça, ou ainda, consciência de classe e etnicidade, geralmente foram abordadas mais frequentemente, e com um grau de importância maior, do que “gênero”. Procuramos demonstrar nesta pesquisa que, assim como ao utilizar a noção de “classe” ressaltamos a importância das análises sobre as relações históricas de exploração e produção material (principalmente a experiência da classe trabalhadora); da mesma forma como “raça / etnia” joga luz sobre as dinâmicas e conflitos sociais, culturais e econômicos que envolvem diferentes grupos étnicos (na escravidão no Novo Mundo, sobretudo os africanos e afrodescendentes); utilizar “gênero” como uma ferramenta analítica nos auxilia a observar e destacar as diferenças entre as experiências vivenciadas por homens e mulheres, enquanto indivíduos, mas sobretudo enquanto grupos, e o quanto isso impacta os processos de

60 TILLY, Louise A., “Gênero, História das Mulheres e História Social”, Cadernos Pagu, n. 3, 1994, pp. 29-62 (tradução Ricardo Augusto Vieira). Artigo publicado originalmente em: “Genre, histoire des femmes et histoire sociale”, Gèneses, 2, 1990, pp. 148-166. 61 “Os melhores trabalhos sobre história das mulheres, dos quais citei uma parte, não estudam a vida das mulheres de uma maneira isolada: eles se esforçam por vincular estas vidas a outros temas históricos, como o poder das idéias ou as forças que governam as transformaçãos estruturais. Procedendo desta maneira, a história das mulheres já mudou nossa percepção do que é importante na história”, TILLY, op cit, p. 41. 62 WHITE, Debora Gray. Arn't I a Woman? Female Slaves in the Plantation South. New York: W.W. Norton: 1985; JONES, Jacqueline. Labor of Love, Labor of Sorrow: Black Women, Work and the Family from Slavery to the Present. New York: Basic Books, 1985. Ver TILLY, op cit, pp. 39-40. 36 estruturação de ideologias de dominação, assim como as formas de adaptação e resistência aos sistemas escravistas. No entanto, neste trabalho de pequisa, certamente influenciado em alguma medida pelos debates sobre interseccionalidade, o objetivo foi abordar estas interações entre classe, raça e gênero a partir de uma investigação baseada na pesquisa em arquivos. Nesse sentido, a análise não é pautada por uma teoria sociológica ou antropológica específica, mas, partindo de uma abordagem histórico-social de fontes documentais, busca contribuir com os estudos que observam os processos, experiências e conflitos em torno de interações e dinâmicas históricas, as quais geralmente são enquadradas entre aquelas categorias de identificação social63. Kirsten E. Wood afirma que nas últimas décadas, “gênero” se tornou uma categoria de análise indispensável nos estudos sobre as sociedades escravistas nas Américas, iluminando tanto o conhecimento sobre o cotidiano dos escravizados e dos senhores de escravos, como ideias sobre raça e escravidão. De acordo com Wood, a abordagem sobre “gênero” tem sido frutífera, para além de algumas áreas óbvias, como família, reprodução e sexualidade, pois tem também reconfigurado o estudo da política escravista e colonial, e cada vez se torna mais evidente que um investigação sob a perspectiva de “gênero significa muito mais que estudar as mulheres”. Isso por conta da importância central delas nos sistemas escravistas no Novo Mundo: as mulheres e as ideias sobre elas moldaram a escravidão do começo ao fim64. Neste sentido, podemos observar que mesmo as pesquisas cujo foco não é especificamente a história das mulheres demonstram a importância da abordagem sobre gênero na história da escravidão nas Américas e no Caribe. Sidney Chalhoub, em diferentes trabalhos, observou como as mulheres estiverem constantemente presentes nas lutas cotidianas por conquista e manutenção de suas liberdades e de suas famílias65. Quando afirma que os “os arquivos estão repletos de histórias de escravos que, separados de parentes e

63 “Numerosos trabalhos recentes no domínio da história das mulheres adotam esta abordagem sócio-histórica do gênero e a aplicam a uma descrição conceitualizada das vidas de mulheres. (…) A introdução e a propagação nas obras históricas do conceito de gênero enquanto categoria socialmente construída foi um questionamento eficaz do determinismo biológico. Este conceito reforçou a comparação e o estudo das variações e dos processos; através da sua utilização na desconstrução, chamou a nossa atenção para as relações de poder. A história social analítica, voltada para a resolução de problemas, sublinha igualmente dois outros aspectos importantes da história das mulheres: completar a descrição e a interpretação com a explicação; vincular seus resultados aos problemas atuais mais gerais”, TILLY, op cit, pp. 42-59. 64 WOOD, Kirsten E., “ Gender and Slavery ”, in Robert L. Paquette & Mark M. Smith. The Oxford Handbook of Slavery in the Americas. New York: Oxford University Press, 2010, pp. 513-534. 65 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1a. Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 235; 265-267; CHALHOUB, op cit (1990), pp. 49-51; 51-52. 37 amigos por transações de compra e venda, varrem o mapa de alto a baixo em busca de pessoas queridas e de um caminho de volta à sua comunidade de origem”, narra a história da negra livre Maria do Bonfim, que parte da Bahia em busca de sua filha Felicidade, a qual havia sido vendida para o sudeste do Brasil66. Contudo, apenas em artigo publicado em 2015, Chalhoub ressaltou como a questão de “gênero” influenciou as políticas e os debates sobre emancipação, assim como as experiências de escravos e libertos, nos regimes escravistas das Américas e do Caribe. De acordo com o autor, a reprodução da escravidão por meio da escravização de rebentos de úteros escravos era uma característica comum do escravismo moderno nas sociedades ocidentais, e tornou a política de emancipação escrava um tema fortemente relacionado à questão de gênero. Os regimes do Novo Mundo adotaram a antiga regra romana de atribuir à criança o estatuto civil da mãe (partus sequitur ventrem), provavelmente, segundo Chalhoub, como consequência da crescente importância da família nuclear como uma entidade proprietária, tornando necessário que as proles das mulheres escravas com homens brancos fossem excluídas de quaisquer reivindicações de herança, exceto em caso de alforria e reconhecimento expresso da paternidade pelo senhor. Contudo, o significado de que a condição da criança seguia aquela da mãe adquiriu diferentes significados políticos dependendo do tempo e lugar. No Brasil, ao mesmo tempo em que o fim do tráfico de escravos nos anos 1850 tornou os filhos de mães escravas a única fonte de pessoas escravizadas no país, parece também ter fomentado uma forte politização sobre o tema da condição ambígua daquelas crianças nascidas de mulheres que tinham recebido uma alforria condicional (statuliberi)67. As formas, as negociações, as legislações, os debates políticos, todos os processos que envolveram a alforria, sua conquista e sua manutenção, são temas bastante discutidos pela historiografia brasileira e brasilianista acerca da escravidão na América Portuguesa e no Brasil

66 CHALHOUB, op cit (1990), pp. 49-51. Sandra Graham também narra a história de uma mulher negra, a escrava Florença da Silva, em Minas Gerais, que buscou pela filha e lutou por conseguir sua liberdade; aparentemente estas histórias não eram incomuns. Veja GRAHAM, Sandra Lauderdale, “Uma certa liberdade”, in XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (orgs.). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012, pp. 135-137. 67 CHALHOUB, Sidney, “The Politics of Ambiguity: Conditional Manumission, Labor Contracts, and Slave Emancipation in Brazil (1850s-1888)”, International Review of Social History, vol. 60, n. 2, 2015, p. 168. Mais especificamente sobre os debates em torno da Lei do Ventre Livre (1871) no Brasil, veja artigo no qual Martha Abreu procura compreender o papel da mãe escrava e de seus filhos libertos no processo de abolição, além de discutir os possíveis obstáculos e perigos que o “ventre livre” poderia apresentar para a política de dominação senhorial: ABREU, Martha, “Slave Mothers and Freed Children: Emancipation and Female Space in Debates on the ‘Free Womb’ Law, Rio de Janeiro, 1871”, Journal of Latin American Studies, vol. 28, n. 3, Brazil: History and Society (Oct., 1996), pp. 567-580. 38 imperial68. Nos últimos anos, alguns trabalhos têm se debruçado especificamente sobre as estratégias das mulheres escravas na busca por liberdade ou como gênero influenciou de maneiras diferenciadas as experiências dos escravizados e os debates políticos sobre manumissão e mestiçagem. Nielson Rosa Bezerra analisa as estratégias usadas por mulheres escravas para a obtenção de alforrias na Freguesia de Santo Antônio da Jacutinga, no Recôncavo do Rio de Janeiro, e constata que elas negociavam com seus senhores em seus cotidianos a ampliação de suas autonomias, assim como sua liberdade e de suas famílias69. Jane-Marie Collins propõe compreender as raízes históricas do mito da democracia racial no Brasil, paradigma estabelecido sobretudo a partir da obra de Gilberto Freyre, argumentando que este mito deve ser submetido a uma análise que evidencie as relações historicamente desiguais de raça e gênero. A autora foca sua investigação sobre as formas e experiências de manumissão e de miscigenação, ocorridas durante o período escravista, pois os considera como os principais processos e práticas que teriam dado origem àquela versão preponderante das relações raciais no Brasil. Ademais, critica a ausência de uma perspectiva de gênero mais incisiva na historiografia brasileira e brasilianista acerca destes temas70. Analisando fontes primárias sobre as vidas de mulheres escravizadas e libertas e seus descendentes na Bahia no século XIX, presta particular atenção nas situações em que os senhores negavam a alforria a suas escravas e suas famílias, assim como nas maneiras que estas mulheres escravizadas enfrentavam tais negativas. Observa, por exemplo, vários casos que indicam que as mães escravas, mais que os pais, encontravam-se na linha de frente da batalha pela liberdade, porque era através de seus corpos que a condição de cativo era herdada e perpetuada71.

68 Além de alguns trabalhos citados anteriormente, veja ainda: EISENBERG, Peter, “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”, Estudos Econômicos, São Paulo, 17 (2), maio/ago. 1987; GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 2005; SILVA, Maria Beatriz Nizza da, “A luta pela alforria”, in SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000; MATTOSO, Kátia Q.; KLEIN, Herbert; ENGERMAN, Stanley L., “Notas sobre as tendências e padrões dos preços de alforria na Bahia, 1819-1888”, in REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; SCHWARTZ, Stuart, “A manumissão dos escravos no Brasil Colonial – Bahia, 1684-1745”, Anais de História, n. 6, Assis, 1974; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues, “As alforrias em Minas Gerais no século XIX”, Varia História, n. 23, Belo Horizonte, jul. 2000; GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro. Trabalho, família, aliança e mobilidade social. Rio de Janeiro: Mauad, FAPESP, 2008; FERRAZ, Lizandra Meyer. Entradas para a liberdade: formas e freqüência da alforria em Campinas no século XIX. Dissertação de Mestrado, Orientador: Robert Slenes. UNICAMP – IFCH, Campinas, SP : 2010. 69 BEZERRA, Nielson Rosa, “Nos seios da escravidão: um olhar sobre as alforrias negociadas por mulheres escravas. Freguesia de Santo Antônio da Jacutinga – Século XIX”, Outros Tempos, vol. 7, n. 10, dez. 2010. 70 COLLINS, Jane-Marie. Intimacy and inequality: manumission and miscegenation in nineteenth-century (1830-1888). Tese de Doutorado em Filosofia (Hispanic and Latim American Studies). University of Nottingham, abril de 2010, pp. 2-14. 71 COLLINS, op cit, pp. 41-82. 39

Quanto a outros espaços coloniais e escravistas, Rosemary Brana-Shute e Randy J. Sparks comentam na apresentação de uma coletânea sobre os processos de manumissão no Mundo Atlântico que, apesar da efusão de trabalhos acadêmicos, nas últimas décadas, sobre escravidão, a alforria — o ato de libertar o escravo individualmente ao longo do período escravista — não tem recebido a mesma atenção nas análises historiográficas72. Nesse sentido, é necessário acrescentar que a experiência do acesso à alforria tem sido tão subestimada pela historiografia francesa, ou por estudiosos do colonialismo e escravismo francês, que nesta coletânea, a despeito das questões acadêmicas e editoriais que permeiam estas publicações de trabalhos de pesquisa, não há um único artigo sobre as colônias francesas73. É interessante e importante notar isso porque as Antilhas Francesas, principalmente São Domingos / Haiti, tornaram-se um dos espaços coloniais e escravistas mais emblemáticos na história da escravidão moderna no Mundo Atlântico, sobretudo em relação à história da resistência dos escravos africanos e seus descendentes. A ausência de artigos sobre o Caribe Francês não é algo que possa ser minimizado, como faz Robin Blackburn na introdução da coletânea mencionada74. Diante disso, os trabalhos que abordam especialmente os “passos para a liberdade”, os processos de alforria e manumissão no Caribe Francês, são muito escassos. A historiografia francesa, especialmente franco-antilhana, tem abordado principalmente a história da população “livre de cor”75 nas Antilhas, isto é, como as pessoas negras e mestiças, nascidas livres ou libertas, viviam nos espaços coloniais franceses, quais os limites sociais e raciais enfrentados, as lutas por direitos civis e políticos, entre os séculos XVIII e XIX76.

72 BRANA-SHUTE, Rosemary & SPARKS, Randy J. (orgs.). Paths to Freedom: Manumission in the Atlantic World. Columbia: University of South Carolina, 2009, p. vii. 73 Há 2 artigos que abordam as práticas de alforria na Europa medieval, 3 estudos sobre escravidão e alforria nas colônias holandesas da América do Sul e do Caribe; 5 artigos que abordam questões sobre a alforria nos EUA, no período entre a Revolução Americana e o antebellum; 3 artigos sobre escravidão e alforria no Brasil (autoras: Mariana Dantas, Keila Grinberg e Beatriz Mamigonian). BRANA-SHUTE & SPARKS, op cit. 74 BRANA-SHUTE & SPARKS, op cit, p. 2. 75 Diferentes expressões são encontradas nas fontes produzidas no Caribe Francês entre os séculos XVIII e XIX para se referir ao conjunto de pessoas libertas ou nascidas livres (africanas ou afrodescendentes), por exemplo, “gens de couleur libres” (pessoas de cor livres), “affranchis” (libertos), “gens de couleur” (pessoas de cor), entre outras. As pesquisas mais recentes sobre as antigas colônias francesas tem utilizado o termo “livres de cor” (libres de couleur) para tratar a história desse grupo. A partir deste momento evitarei utilizar a expressão entre aspas. 76 Veja PIERRE-LOUIS, Jessica. Les libres de couleur face au préjuge: franchir la barrière à la Martinique aux XVIIe-XVIIIe siècles. Tese de Doutorado em História. Martinica: Université des Antilles et de la Guyane, 2015; ROGERS, Dominique, “On the Road to Citizenship: The Complex Route to Integration of the Free People of Color in the Two Capitals of Saint-Domingue”, GEGGUS, D. & FIERING, N. (orgs). The World of the Haitian Revolution. Indiana University Press: 2008, p. 65-78; ROGERS, Dominique, “Réussir dans un Monde d’Hommes: les stratégies des femmes de couleur libres du Cap-Français”, The 40

Recentemente, observamos a publicação de pesquisas imprescindíveis sobre as experiências de africanos e afrodescendentes no pós-abolição nas colônias francesas77, no século XIX. Contudo, à exceção de Céline Flory, os historiadores franceses abordaram os problemas em torno da alforria de forma muito ampla e superficial, principalmente se compararmos com a produção acadêmica que investiga o tema na história de outras sociedades escravistas das Américas e do Caribe. Sobre mulheres e alforria, Rosemary Brana-Shute faz uma abordagem interessante sobre a conquista da liberdade no Suriname, entre o final do século XVIII e século XIX. A autora demonstra que neste espaço colonial e escravista holandês, a maioria dos escravos alforriados sempre foram as mulheres, independente das mudanças que ocorressem nas condições econômicas, políticas, demográficas, legais e burocráticas. Brana-Shute comenta que os historiadores aceitaram que nas sociedades americanas e caribenhas, um fenótipo “mais claro” do escravo, o domicílio urbano e habilidades para compensar seu senhor, possivelmente afetariam as oportunidades de alforria de um escravo. No entanto, pouca atenção tem sido dada para explicar estas características do fenômeno, sobretudo sobre o fato das mulheres, em geral, terem mais acesso à alforria. Segundo Brana-Shute, as experiências de manumissão para as mulheres escravas, como um conjunto, eram diferentes daquelas dos homens, assim como outros aspectos vivenciados na escravidão por estes grupos. Porém, nos estudos sobre as sociedades escravistas americanas, frequentemente se referem aos “escravos”, de forma neutra, como se o sexo dos cativos fosse pouco importante. Ainda de acordo com Brana-Shute, uma compreensão mais profunda da prática de manumissão pode ser uma forma particularmente útil para observar como gênero se entrelaça com raça e outras variáveis78.

Journal of Haitian Studies, vol. 9, no. 1, 2003, pp. 40-51; LOUIS, Abel Alexis. Les libres de couleur en Martinique des origines à 1815. L’entre-deux d’un groupe social dans la tourment coloniale. Tese de Doutorado, Université des Antilles et de La Guyane, Martinique: 2011; LOUIS, Abel. Marchands et négociants de couleur à Saint-Pierre (1777-1830): Milieux socioprofissionnels, fortune et mode de vie. Volumes 1 e 2. Paris: L’Harmattan, 2015. 77 Sobre a história do “engajamento” de trabalho forçado de escravos africanos resgatados do tráfico negreiro ilegal, sobretudo após 1848 (abolição), ver FLORY, Céline. De l’esclavage à la liberté forcée. Histoire des travailleurs africains engagés dans la Caraïbe française au XIXe siècle. Paris: Karthala, 2015. Sobre a questão da memória da escravidão e do pós escravidão, a partir da análise de genealogias ligadas a uma revolta camponesa na Martinica em 1870, veja CHIVALLON, Christine. L’esclavage, du souvenir à la mémoire. Contribution à une anthropologie de la Caraïbe. Paris: Karthala, CIRESC, 2012. 78 BRANA-SHUTE, Rosemary, “Sex and Gender in Surinamese Manumissions”, in BRANA-SHUTE & SPARKS, op cit, p. 175. 41

Ira Berlin, em sua obra sobre a história dos “negros livres” no sul dos Estados Unidos no século XIX, afirma que muitos senhores entendiam que a liberdade era o maior favor que eles poderiam fazer aos seus escravos, e conscientemente usavam isso como um mecanismo de controle, no sentido de encorajar divisões entre os escravos. Dentro desta argumentação sobre a alforria, Berlin afirma, como outros historiadores sobre diferentes sociedades escravistas nas Américas e no Caribe, que os escravos que conseguiam mais acesso à alforria eram aqueles muito próximos de seus senhores, que conseguiam sua confiança, os escravos domésticos, em geral. Neste sentido, segundo o autor, “quando boas conexões eram o passaporte certo para a liberdade, frequentemente o sangue, e não os serviços, era a base das relações especiais que levavam os senhores a libertarem seus escravos”. Desse modo, segundo Berlin, de todos os escravos, as black concubines e os filhos que tinham com seus senhores eram certamente os indivíduos mais alforriados. Além disso, de acordo com o autor, as mulheres escravas não formavam apenas um número maior de trabalhadores domésticos, elas também eram “mais aptas a conquistar a simpatia e afeição de seus senhores”. Soma-se a isso que “os homens eram uma ameaça maior” para os senhores brancos e também “valiam preços maiores nos mercados de escravos do sul”79. Segundo Berlin, “se um senhor escolhesse apenas um escravo para alforriar, existiam muito mais razões para escolher uma mulher do que um homem”80. No entanto, além de não demonstrar mais a fundo todas essas afirmações que envolvem diferenças de gênero e alforria, o próprio autor se contradiz com alguns exemplos que ele destaca das fontes, depois dessas análises iniciais. Por exemplo, a história de Sarah, a qual Berlin narra a partir da correspondência entre o senhor dessa escrava e o marido livre dela, ansioso em comprar sua mulher. O proprietário afirma, na fonte analisada, que “nenhuma soma de dinheiro o levaria a se desfazer de Sarah”, pois ela era “tão sóbria, industriosa e honesta” que sua esposa “sempre encontra[va] as coisas apropriadamente em ordem sem muitos problemas”. Além disso, o proprietário de Sarah acrescentava que “o preço da gente negra” estava “tão enormemente alto neste país”, que ele não poderia substituir uma cativa como ela por menos que 600 ou 700 dólares, e era difícil encontrar uma escrava “tão confiável como ela”81. Dessa forma observamos que, por um lado, a confiança em Sarah e seus bons serviços prestados a afastam

79 BERLIN, Ira. Slaves whithout masters: the free negro in the Antebellum South. New York: Pantheon Books, 1974, p. 150-152 (Cap. 5 - “New Patterns of Growth”, “Manumission”). 80 BERLIN, op cit, p. 152. 81 “James Gutherie to James Cooper”, 26 fevereiro 1818, PAS (Pennsylvania Society for Promoting the Abolition of Slavery Papers, Historical Society of Pennsylvania, Philadelphia), in BERLIN, op cit, p. 152. 42 da alforria e de estar próxima de sua família. Por outro lado, na contramão das afirmações anteriores de Berlim, seu senhor assinala o valor alto de mercado de uma escrava como Sarah, ou seja, não apenas os homens tinham um preço elevado. Provavelmente, muitas mulheres tinham altos preços estimados, pois além de serem habilidosas e valorizadas nos serviços domésticos e de cuidados em geral, também trabalhavam duro nas lavouras. Além dessa história, Berlin narra uma outra onde o protagonismo da mulher negra livre se destaca. Uma mulher liberta tentava comprar a liberdade de seu marido, escravo de um superintendente. Este lhes disse que não tinha a intenção de vender seu velho escravo. Porém, tanto insistiram, apresentando-se todos os dias na porta de sua casa, suplicando que vendesse seu cativo, que o senhor disse que o negociaria por 300 dólares, um preço alto para a condição do escravo. Para a “grande surpresa” do superintendente, a mulher liberta prontamente produziu o dinheiro e ainda contratou um advogado para assegurar os papéis de liberdade de seu marido escravizado. Talvez para evitar a ira de outros brancos, o superintendente afirmou que tentou dissuadir a mulher, argumentando que mesmo que conseguisse garantir a alforria de seu velho marido, provavelmente ele usufruiria apenas poucos anos de sua liberdade. Contudo, determinada a libertar seu companheiro, ela retorquiu que “não se importava, que seu desejo era que ele pudesse morrer livre”82. É interessante notar nessa história que o senhor do escravo não esperava que a mulher liberta tivesse condições de ter a soma requisitada para a compra de seu marido, muito menos articular a ação de um advogado. Observa-se, assim, que as mulheres, escravizadas ou libertas, são geralmente subestimadas antes mesmo do registro de qualquer fonte analisada pelos historiadores. Hilary Beckles destaca o papel das mulheres negras no mundo do trabalho no caribe britânico. Ele afirma que as mulheres escravizadas constituíram a “principal fonte de acumulação de capital na economia de plantation em Barbados”. Baseando-se em uma importante pesquisa documental, demonstra que as mulheres eram maioria nas fileiras de trabalhado nas lavouras do Caribe Britânico desde o século XVIII. Além disso, argumenta que exerciam importante papel em diferentes atividades, essenciais para o funcionamento e a economia destas sociedades escravistas, como trabalhadoras domésticas, artesãs, produtoras de culturas de subsistência, e várias outras atividades exercidas nos meios urbanos83.

82 John Mckean to James Dunlap, 11 dezembro 1816, copy, Mackean Letterbook, VSL (Virginia State Library, Richmond), in BERLIN, op cit, p. 154. 83 BECKLES, Hilary McD. Natural Rebels: a Social history of Enslaved Black Women in Barbados. New Jersey: Rutgers University Press, 1989. Ainda sobre mulheres e escravidão no Caribe Britânico, ver BUSH, Barbara. Slave Women in Caribbean Society, 1650-1838. Kingston (Jamaica): Heinemann, 1990. 43

Na década de 1980, Arlette Gautier questionou vários esteriótipos relativos ao papel das mulheres escravas como mães e concubinas, em sua obra Les Soeurs de Solitude, que permanece como um estudo de referência sobre a vida das mulheres escravizadas nas Antilhas Francesas, entre os século XVII e XIX. O livro se baseia sobretudo em um estudo demográfico do sex ratio, da frequência de casamentos, das taxas de natalidade e de mortalidade, mas analisa também, entre outras fontes, narrativas de viagem e documentação privada de alguns senhores de escravos. A autora aborda principalmente fontes sobre a história de São Domingos e Guadalupe, duas das principais colônias francesas no Caribe, além da Martinica. Ela demonstra que o esteriótipo amplamente generalizado da escrava concubina, altamente sexualizada e que exercia seu poder por meio da sedução, foi um produto do discurso dos “colonos brancos” (senhores de escravos), enfatizado desde o século XVIII. De acordo com Gautier, se estas mulheres, as escravas concubinas, existiram, seu número era proporcionalmente insignificante em comparação à vasta maioria de mulheres cativas, cuja sexualidade era constantemente submetida à coerção e à violação84. De fato as mulheres libertas eram mais numerosas que os homens nas Antilhas Francesas nos séculos XVIII e XIX. No entanto, segundo Gautier, no que tange o acesso à alforria oficial, a quantidade de “títulos de liberdade” concedidos pelas autoridades coloniais foi muito baixa durante todo o período escravista, a não ser nos últimos anos de escravidão nas colônias. Na Martinica, as alforrias concedidas em 1776 quase não chegam a 100. Em São Domingos, apenas 845 alforrias foram autorizadas em 1785, onde havia uma quantidade muito maior de escravizados, em torno de 480 mil escravos nessa época. Entre estas liberdades outorgadas pelas autoridades coloniais, por volta de 10% foram conquistadas por possíveis “concubinas”, se considerarmos que cada homem branco que alforriava teria uma relação de concubinagem com sua escrava85. De acordo com Gautier, esta insistência sobre as relações entre homens brancos e “mulheres de cor” leva a supor que elas eram as mais significativas e as mais importantes para as mulheres negras. No entanto, a autora aponta que o fato dos escravos não serem casados não significa que não vivessem como casais. Os inventários de escravos da habitation Bisdary em Guadalupe ao longo de 30 anos e os registros do Estado Civil de 1848 em Fort-de-France (Martinica) demonstram o contrário, que os escravos que habitavam nas plantações antigas

84 GAUTIER, Arlette. Les Sœurs de solitude: la condition féminine dans l'esclavage aux Antilles du XVIIe au XIXe siècle. Rennes (França): Presses Universitaires de Rennes, 2010 (primeira edição: 1985). 85 GAUTIER, op cit (2008), p. 175. 44 viviam como famílias nucleares86. Segundo a autora, a mulher escrava nas Antilhas francesas sempre foi representada como uma concubina voluptuosa e leviana, volúvel, que atrai os homens brancos, extorque-lhes os bens e assume os costumes suntuosos, visando a liberdade. A percepção sobre estas relações variou bastante de acordo com a época. No início da colonização e do encontro entre brancos e negros, alguns missionários e viajantes, todos homens e brancos, registraram em suas narrativas que as mulheres negras pareciam “demônios lúgubres”. Outros afirmavam em seus registros que desde a década de 1680 as mulheres negras escravizadas preferiam a concubinagem com os homens livres que com os escravos, na esperança de terem crianças livres. Este ponto de vista se generalizou no século XVIII: as negras e mulatas foram doravante descritas como impertinentes, lascivas e interesseiras, que atraíam os homens brancos por meio de todas as formas de sedução e que arruinavam “sua saúde e seus bolsos”87. Elas não teriam, então, tido necessidade de resistir e assim teriam participado da manutenção do sistema escravista. No entanto, os números indicam que as fugas de escravos nas Antilhas francesas, assim como as alforrias, ocorreram em pequeno número, tanto entre os homens como entre as mulheres. Ademais, de acordo com Gautier, poucas mulheres tinham a possibilidade de serem concubinas dos brancos e ainda menos de serem alforriadas por conta deste tipo relação88. Poucos historiadores se dedicaram à história das mulheres, escravizadas ou libertas, no Caribe Francês89. Dominique Rogers tem desenvolvido, e orientado90, um importante trabalho de pesquisa, na Université des Antilles et de la Guyane françaises, sobre a

86 Ver GAUTIER, Arlette, “Les familles esclaves aux Antilles françaises, 1635-1848”, Population (French Edition), 55e Année, n. 6 (Nov. - Dez., 2000), pp. 975-1001. 87 GAUTIER, Arlette, “Genre et esclavage aux Antilles françaises. Bilan de l’historiographie”, in HROEJ, Philippe (org.). L’esclavage et les plantations: de l’établissement de la servitude à son abolition. Un hommage à Pierre Pluchon. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, pp. 175-176. 88 GAUTIER, op cit (2008), p. 179-182. 89 Arlette Gautier afirma que, além do livro dela, apenas os livros de Moitt e Gilbert Pago (que cito a seguir) e outras duas obras se dedicam à história das mulheres escravas e libertas no Caribe Francês: Jean-Michel Deveau, Femmes esclaves d’hier à aujourd’hui, Paris, 1998, apresenta uma síntese da história da escravidão das mulheres da antiguidade até hoje; Elsa Dorlin, La matrice de la race. Généalogie sexuelle et colonialie de la nation française, Paris, 2006, estuda a construção dos gêneros nos livros de medicina e mostra que o racismo científico utiliza o argumento de uma diferença de raças que não seria apenas física (cor da pele, forma dos lábios e cabelos), mas constitucional, como doenças, sexualidade, etc. GAUTIER, op cit (2008), p. 164. Veja ainda PAGO, Gilbert. Les femmes et la liquidation du système esclavagiste à la Martinique, 1848-1852. Guadalupe, Guiana, Martinica: Ibis Rouge Editions, 1998. 90 Algumas das pesquisas orientadas por Dominique Rogers, que abordam a história das mulheres no Caribe Francês: BECHET, Laëtitia. Les citadines “blanches” et libres de couleur à la Martinique au début du XIXe siècle: dimension économique et sociale (1802-1806). Master 2 (Histoire), Martinique: Université des Antilles et de la Guyane, 2011; LINZAU, Ivy. Les femmes libres, “blanches” et “de couleur” de la partie française de Saint-Domingue entre 1766 et 1776 au travers des “Loix et Constitutions” et des “Affiches Américaines”. Master 2, Martinique: Université des Antilles et de la Guyane françaises, 2012. 45 história social das mulheres livres de cor em São Domingos no século XVIII91, mas também em outros espaços coloniais franceses. O livro de Bernard Moitt, Women and Slavery in the French Antilles, 1635-1848 (2001), assim como a obra de Gautier, é um dos poucos que abordam especialmente o tema mulheres e escravidão nas Antilhas francesas. O autor argumenta que questões de gênero tiveram um profundo efeito sobre o sistema escravista franco-caribenho. Contudo, os recortes temporal e espacial da obra de Moitt são bastante abrangentes. Ele analisa a condição social das mulheres negras escravizadas nas sociedades de plantation da Martinica, de Guadalupe, de São Domingos e da Guiana Francesa, entre 1635, início da colonização, e a abolição da escravidão no Império colonial francês, em 1848. No último capítulo de seu livro, “Women and Manumission”, aborda de forma ampla a questão do acesso à alforria pelas mulheres nas Antilhas Francesas, entre os séculos XVII e XIX92, mas segue como uma referência importante para o tema.

O CARIBE FRANCÊS E A MARTINICA

Na segunda metade do século XVII, a França estabeleceu seu domínio nas ilhas do Caribe. Em 1664, com o crescimento das plantações de açúcar e a utilização da força do trabalho escravo de homens e mulheres trazidos compulsoriamente do continente africano, o rei Luís XIV emitiu um édito estabelecendo a criação da Companhia das Índias Ocidentais e colocou os territórios franceses na América do Norte e no Caribe sob o domínio da coroa. Em 1685, foi promulgado o “Código Negro”, Le Code Noir, conjunto de sessenta ordenações que passaram a regulamentar a vida dos africanos e afrodescendentes, escravizados ou libertos, nas colônias franceses, legislando sobre seu estatuto civil e penal93. No início do século XVIII, Martinica, Guadalupe e São Domingos se tornaram rapidamente importantes regiões produtoras de açúcar, especialmente para o consumo metropolitano. Naquele momento,

91 ROGERS, Dominique, “Réussir dans un Monde d’Hommes: les Stratégies des Femmes de Couleur du Cap- Français”, The Journal of Haitian Studies, vol. 9, no. 1, 2003, pp. 40-51 92 MOITT, Bernard. MOITT, Bernard. Women and Slavery in the French Antilles, 1635-1848. EUA: Indiana University Press, 2001, pp. 93 Le Code Noir, ou, Recueil des reglemens rendus jusqu'à présent, concernant le gouvernement, l'administration de la justice, la police, la discipline & le commerce des Negres dans les colonies françoises: et les conseils & compagnies établis à ce sujet. Ver SALA-MOLINS, Louis, Le Code Noir ou la calvaire de Canaan. Paris: Presses Universitaires de France, 2002. 46 grande parte da população destas ilhas já era formada por escravas e escravos africanos94. Como afirma o estatístico francês Moreau de Jonnès sobre as colônias francesas, “no espaço de 150 anos, uma população entorno de 800 mil almas tinha sido formada nas colônias francesas das duas Índias, quando rompeu a revolução” (Revolução Francesa). Um décimo apenas pertencia à “raça branca”, composta de europeus e descendentes de europeus, os outros 90% eram formados por africanos e afrodescendentes95. Após 1789, o Caribe Francês foi abalado por revoltas, guerras e revoluções, nas quais diversos setores da população se confrontaram. O grupo social mais importante e em maior número populacional, os escravos, tornou-se o mais radical em suas ações políticas. Em poucos anos, escravos e libertos se revoltaram nas colônias francesas antilhanas, frequentemente invocando a Declaração dos Direitos do Homem para justificar sua resistência. A insurreição do Bois Caïman foi o resultado de um longo processo inaugurado na Martinica, em 1789, e transmitida a Guadalupe e, então, a São Domingos. A luta armada era a ordem do dia nas colônias96. Durante um dos períodos mais radicais da Revolução Francesa, os comissários da República em São Domingos, Léger Félicité e Sonthonax Polvere, proclamaram a abolição imediata da escravidão naquela colônia francesa em 1793. Decisão tomada tanto por princípios políticos como, principalmente, por necessidade, pois estavam a ponto de perder a ilha para a armada britânica, que tinha aliados entres os grandes senhores de engenhos da colônia. Ademais, a ilha estava imbuída pela efervescência social devido aos acontecimentos na França metropolitana. Os comissários primeiramente ofereceram a liberdade para os escravos que lutassem como soldados da República contra os britânicos, mas rapidamente tal proposta se tornaria uma proclamação de abolição universal, muito mais radical que a proposta de uma abolição gradual, defendida pelos abolicionistas franceses da época. De um dia para o outro, como afirma Laurent Dubois, os indivíduos considerados como desprovidos de todos os direitos, tornaram-se cidadãos franceses. Em fevereiro de 1794, a França ratificou

94 SCHLOSS, Rebecca Hartkopf. Sweet liberty: the final days of slavery in Martinique. University of Pennsylvania Press: 2009, p. 2. 95 MOREAU DE JONNÈS, Alexandre (1778-1870). Recherches statistiques sur l’esclavage colonial et sur les moyens de le supprimer. Paris: Bourgogne et Martinet, 1842, pp. 27-28 (BNF-Gallica). 96 DORIGNY, Marcel (org). Les Abolitions de l’esclavage de L. F. Sonthonax à V. Schoelcher, 1793, 1794, 1848. Paris, Presses universitaires de Vincennes, 1995; DUBOIS, Laurent. A Colony of Citizens: Revolution and Slave - Emancipation in the French Caribbean, 1787–1804. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004. 47 a abolição em São Domingos97 e a generalizou para todas as colônias francesas. Nesse período, a Martinica e Guadalupe foram dominadas pelos ingleses, apoiados em parte pelas elites coloniais francesas que desejavam evitar a abolição da escravidão em suas plantações. Guadalupe retornou à possessão francesa logo em junho de 1794, com os soldados franceses sob o comado de Victor Hugues, e a emancipação dos escravos foi colocada em vigor imediatamente. Na Martinica, que ficaria sob o domínio inglês até 1802, a abolição da escravidão de 1794 nunca foi realizada98. Com a perda de São Domingos em 1804, a Martinica se tornou a maior e mais produtiva ilha do domínio francês e produtora de açúcar no Caribe, com a maior população escrava e livre da região99. Entre 1802 e 1848, esta colônia passaria por várias mudanças administrativas, devido às diversas transformações que ocorreriam na França metropolitana no intervalo de cinquenta anos: do Império Napoleônico à Restauração monárquica conservadora; da Monarquia de Julho (1830), constitucional e liberal, à Revolução de fevereiro de 1848, e a instauração da Segunda República Francesa, quando, finalmente, a escravidão foi abolida definitivamente nos territórios franceses100. A Martinica está situada entre o conjunto de ilhas caribenhas, “neste arco, semeado de ilhas, entre a Flórida e a Venezuela”, como afirma Liliane Chauleau101. Faz parte das Pequenas Antilhas — em oposição às Grandes Antilhas: Cuba, Haiti e Jamaica, especialmente —, entre as Iles du Vent, a sete mil quilômetros da França. Atualmente, é um Departamento Francês da América, região d’outre-mer (ultramarina). Com uma superfície total de 1.128 quilômetros quadrados, a Martinica tem em torno de 70 km de comprimento (sentido norte-sul) e 30 km entre as costas leste, banhada pelo Oceano Atlântico, e oeste, banhada pelo Mar do Caribe. Tem um relevo acidentado, entre morros e montanhas, onde se encontram seis vulcões, cujo ponto culminante é o vulcão do Monte Pélée102 (1400 m),

97 Ainda sobre São Domingos no período logo anterior à Revolução e sobre a Revolução Haitiana e seus impactos, ver GRACHEN, Malick W. The Old Regime and the Haitian Revolution. New York: Cambrigde University Press, 2012; FICK, Carolyn. The Making of Haiti: The Saint–Domingue Revolution from Below. Knoxville: University of Tennessee Press, 1990; DUBOIS, Laurent. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2004; GEGGUS, David Patrick (ed). The Impact of the Haitian Revolution in the Atlantic World. Columbia: University of South Carolina Press, 2001. 98 Ver DUBOIS, op cit (2004); DORIGNY, op cit, pp. 179-271. 99 Em 1803, a Martinica contava com uma população de 106.196 pessoas: 10.087 brancos; 6.254 livres e libertos (regulares), 89.864 escravos. 100 SCHLOSS, op cit, pp. 2-15. 101 CHAULEAU, Liliane. Dans les îles du vente, la Martiniue (XVII-XIX siècle). Paris: l’Harmattan, 1993. 102 Este vulcão ainda é ativo e entrou em erupção algumas vezes ao longo do século XX. Em 8 de maio de 1902, a atividade deste vulcão provocou uma enorme tragédia em Saint-Pierre, causando a morte de 48 próximo à região da cidade portuária de Saint-Pierre, ao norte da ilha. Como outras ilhas vizinhas, a Martinica está sujeita a terremotos, dos quais o mais impressionante ocorreu em janeiro de 1839 e que abalou sobretudo a capital da colônia, Fort-Royal (atual Fort-de- France)103. De acordo com um relatório sobre as colônias francesas, publicado pelo Ministério da Marinha e das Colônias em 1837, a Martinica, “graças a sua feliz situação e a segurança de seus portos”, tornou-se o “carro-chefe do mercado geral das Antilhas francesas”, pois era nesta colônia “que as ilhas vizinhas vend[ia]m suas produções e compra[va]m as mercadorias da metrópole”104. Nesta época, a Martinica era dividida em dois “arrondissements”105 militares, um com sede em Fort-Royal, mais ao sul da ilha, e outro com sede em Saint-Pierre, mais ao norte da ilha. Compunham estes arrondissements 26 communes ou quartiers106 — os quais serão referidos como “municípios” —, que eram divisões administrativas nas quais uma cidade, vila ou vilarejo, geralmente localizadas no litoral, sediava os órgãos locais da administração colonial. Saint-Pierre era a capital econômica da ilha, com a maior população de libertos e escravos. Era o principal porto da Martinica, por onde chegavam as mercadorias da Europa e por onde eram exportadas principalmente a produção de açúcar. Fort-Royal era a capital política, onde se encontrava o governo colonial e a Cour Royale (Corte Real, tribunal superior) da colônia. Estas eram as duas cidades da Martinica, principais centros urbanos, as quais sediavam ainda os dois Tribunais de primeira instância da ilha. Havia ainda quatro vilas, consideradas grandes, onde se encontravam os juízes de paz das regiões: Trinité, mais ou menos no nordeste da ilha; Marin, Lamentin e Rivière-Salée, parte sul da ilha. As outras vinte localidades eram consideradas pequenas vilas ou vilarejos, com centros urbanos muito menores, as quais continham ordinariamente uma “igreja e o padre da paróquia, um cais de desembarque para as relações essenciais com os

aproximadamente 28 mil pessoas em questão de minutos, catástrofe que marcou a história da Martinica, sobretudo da cidade de Saint-Pierre. CHAULEAU, Liliane. Il était une fois Saint-Pierre. Fort-de-France: Société des Amis des Archives et de la Recherche sur le Patromoine Culturel des Antilles, 1994. 103 CHAULEAU, Dans les îles du vente, pp. 5-6. 104 Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 30 (BNF – Gallica). Vou me referir a esta fonte como Notices statistiques sur les colonies françaises, 1837. 105 Atualmente, o arrondissement é uma subdivisão territorial dos departamentos franceses. Um arrondissement geralmente leva o nome da cidade-sede. De acordo com o Dictionnaire de l’Académie française (6a. Edição, 1835), o arrondissement era compreendido como “ une partie du territoire soumise à quelque autorité civile, militaire, ou ecclésiastique. Chaque département est divisé en sous-préfectures qui forment autant d'arrondissements. Arrondissement communal. Arrondissement de justice de paix. Arrondissement maritime ”. 106 Notices statistiques sur les colonies françaises, 1837, p. 41. 49 portos abertos ao comércio, alguns entrepostos para a armazenagem dos produtos das habitations vizinhas, e lojas para a venda a varejo de diversos objetos de consumo”107. As habitations eram as propriedades rurais onde residiam a maior parte dos proprietários e escravos da ilha. Eram designadas de acordo com suas produções como habitation sucrière, que produziam de cana-de-açúcar, as maiores propriedades rurais; habitation cafeyère, que produziam de café, propriedades de médio porte; e habitation vivrière, que produziam víveres, as menores propriedades rurais da ilha, mas que existiam em grande quantidade. Havia ainda na Martinica um pequena produção de algodão e cacau. Ao longo dos capítulos discutiremos os dados populacionais da Martinica, mas, para se ter uma ideia, em 1839, a população total da Martinica era formada por 115.066 indivíduos: 40.733 livres e 74.333 escravos. Da população livre, em torno de 30 mil eram afrodescendentes e por volta de 10 mil eram brancos; 24.117 moravam na área rural e 16.616 nas cidades, vilas e vilarejos. Da população escrava, 64.006 moravam na zona rural, e 10.327 nas cidades, vilas e vilarejos108.

107 Notices statistiques sur les colonies françaises, 1837, p. 42. 108 Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1839 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1842, pp. 2-3. 50

Mapa: Martinica e Pequenas Antilhas109

109 Mapa observado em TOMICH, Dale. Slavery in the circuit of sugar: Martinique and the World economy, 1830-1848. Baltimore: J. Hopkins Univ., c1990, p. 90 51

Mapa: “Colonies Françaises – Martinique”, in Atlas National Illustré, 1854110

110 LEVASSEUR, Victor. Atlas National illustré des 86 Départements et des Possessions de la France divisé par Arrondissements, Cantons et Communes avec le tracpe de toutes les routes, chemins de fer et canaux. Dressé d’après les Travaux du Cadastre du Dépôt de la Guerre et des Ponts et Chaussées par V. Levasseur, Ingénieur Géographe attaché au Génie du Cadastre et de la Ville de Paris. Gravé sur acier par les meilleurs artistes. Paris: Lemercier, 1854 (BNF – Gallica). 52

METODOLOGIA, FONTES E ORGANIZAÇÃO DA TESE

Este é um trabalho de história social, cuja metodologia desde a década de 1970 vem renovando visões sobre a história vista de baixo, dos subalternos, através da utilização e análise de diferentes fontes seriais, manuscritas, criminais, censitárias, literárias. A história da diáspora africana e da escravidão nas Américas e Caribe foi marcada por processos de exploração do trabalho de diferentes povos africanos e do sofrimento de homens e mulheres que viviam submetidos aos sistemas escravistas do Mundo Atlântico. No entanto, neste trabalho, buscou-se ressaltar a “agência” dos sujeitos envolvidos nesse processo histórico. Espera-se, assim, contribuir com debates sobre escravidão e conquista da liberdade, abordando questões em torno de gênero, raça e classe, no entanto, sob o olhar da história social, a partir de um método interpretativo das fontes, que foca a análise nas ações e experiências dos sujeitos envolvidos naquela realidade histórica. Parte deste estudo se centra em uma análise de dados demográficos específicos acerca das alforrias outorgadas pelo governo da Martinica nas últimas décadas de escravidão nas colônias francesas. Contudo, procurou-se privilegiar, ainda, uma metodologia centrada na acumulação de micro-histórias de indivíduos ou pequenos grupos em confronto com situações de ruptura, que provocaram reações, negociações e estratégias de aliança. Dessa forma, pretendemos contribuir para uma maneira de “fazer história” que articula o reconhecimento das singularidades à análise dos constrangimentos estruturais das sociedades escravistas na América e no Caribe, “sociedades envolvidas na dinâmica dos ritmos de uma história não somente social, mas também política, em que a sujeição dos homens e das mulheres ou sua recusa à mesma são as principais questões em jogo”111. O objetivo principal dessa tese de doutorado é compreender os processos de concessão e conquista da alforria nos últimos anos de escravidão nas Antilhas Francesas, analisando sobretudo as experiências vivenciadas pelas mulheres escravizadas e em vias de

111 Projeto Coletivo Cecult – IFCH – UNICAMP (Centro de Pesquisa em História Social da Cultura), “Processos de Construção de Identidades Subalternas nas Sociedades Coloniais e Pós-Coloniais em que a Escravidão foi o Sistema de Produção. Abordagem Comparativa nos Espaços Atlânticos, Épocas Moderna e Contemporânea”. Agência e modalidade: CAPES, COFECUB. Vigência: 03/2007 a 11/2008. Equipe do projeto – Coordenadores: Robert W. A. Slenes (UNICAMP), Bernard Vincent (EHESS); Equipe brasileira: Silvia H. Lara (UNICAMP), Sidney Chalhoub (UNICAMP), Marcus Carvalho (UFBA), João José Reis (UFBA), Gabriela dos Reis Sampaio (UFBA); Equipe francesa: Jean Hébrard (EHESS), Juan-Paul Zuñiga (EHESS), Catarina Madeira Santos (EHESS), Myriam Cottias (EHESS). 53 liberdade na Martinica. Contrariamente a períodos anteriores, a partir de 1831 uma grande quantidade de cartas de alforria oficiais foram emitidas pelo governo da Martinica. Entre 1830 e 1848, um total de 25.925 pessoas foram alforriadas na ilha, número extremamente atípico em relação a qualquer período da história da escravidão no Caribe francês até a sua abolição definitiva em 1848. Desse modo, foram analisados os processos históricos que envolveram a conquista da liberdade, mesmo que precária, por homens e mulheres, pensando a “alforria” nas sociedades escravistas como uma questão essencial para se analisar a história da escravidão nas Américas e no Caribe. O recorte temporal central desta tese são os últimos anos de escravidão na Martinica, durante a Monarquia de Julho, quando uma grande quantidade de alforrias oficiais foram concedidas pelo governo colonial, em parte por conta de um tímido processo de abolição gradual da escravidão e, por outro lado, devido à grande quantidade de liberdades irregulares e clandestinas, que foram reconhecidas entre 1830 e 1840. No entanto, apesar da importância deste recorte, a temporalidade, principalmente ao longo da primeira parte da tese, move-se entre os séculos XVIII e XIX, para que seja possível demonstrar alguns processos que foram engendrados antes de 1830. Essa oscilação do recorte temporal foi necessária para que se abordasse, por exemplo, as leis concernentes ao trabalho escravo e à alforria, promulgadas desde o século XVII, e que interferiam ainda na conquista da liberdade no século XIX. Parte essencial dessa pesquisa foi feita sobre séries documentais, como fontes notariais da Martinica e, ainda, as alforrias publicadas nos periódicos oficiais da colônia. Para que fosse possível uma análise mais qualitativa deste material, a abordagem se restringiu a uma região, ao arrondissement de Saint-Pierre. Esta era a principal cidade portuária, por onde era escoada a produção açucareira e tinha a maior população da ilha. Além disso, mais de uma fonte afirma que era em Saint-Pierre e em suas redondezas que se encontrava a maior população de “livres de savana” e “patrocinados” (libertos irregulares). Ademais, foi na região e na cidade de Saint-Pierre que ocorreram as principais revoltas de “escravos” da Martinica. David Geggus afirma que “a longa série de revoltas de escravos e de complôs que pontuaram a época revolucionária no Caribe começou em agosto de 1789, com um levante nas redondezas de Saint-Pierre”112. Mesmo que tenha sido rapidamente reprimida, ela contribuiu

112 GEGGUS, David, "Esclaves et gens de couleur de la Martinique pendant l'époque révolutionnaire et napoléonienne: trois instants de résistance", Revue Historique, t. 295, fasc. 1 (597), 1996, pp. 105-132. 54 para estimular a agitação e os rumores em São Domingos e Cuba. Em 1811, escravos e livres de cor de Saint-Pierre se uniram num complô contra os brancos, segundo a documentação, mas foram denunciados por um escravo doméstico. Em outubro de 1822, entre 30 e 40 trabalhadores escravos se rebelaram em Carbet, vila vizinha a Saint-Pierre113. Em fevereiro de 1831, no município de Saint-Pierre, uma revolta envolveu mais de 300 escravos e 11 fazendas114. Por fim, em 1848, Saint-Pierre foi a principal localidade onde ocorreram sublevações escravas que levaram o governo colonial a antecipar a abolição da escravidão na Martinica em 23 de maio de 1848 — na metrópole francesa a abolição foi decretada em 26 de abril, mas este decreto levaria mais de oito semanas para chegar à colônia antilhana115. A pesquisa realizada para o desenvolvimento desta tese foi feita principalmente nos Archives Nationales d'Outre-mer (ANOM – Aix-en-Provence – França), durante o Doutorado Sanduíche (Programa Institucional de Bolsas de Doutorado Sanduíche no Exterior – PSDE – CAPES), entre setembro de 2013 e agosto de 2014. Durante este período, foi essencial a oportunidade de usufruir a coorientação da professora Myriam Cottias e participar de debates com o grupo de pesquisadores ligados ao CIRESC (Centre International de Recherches sur les Esclavages), centro integrante do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS e sediado na Ecole des Houtes Etudes en Sciences Sociales – EHESS (Paris – França). O ANOM conserva toda a documentação referente à história da “presença colonial francesa em outros continentes”. Os territórios que formavam as colônias francesas enviavam regularmente à metrópole uma cópia de “documentos públicos” (desde 1776). Dessa forma, institucionalizou-se o Depósito de Documentos Públicos das Colônias (Fonds Ministériels – Dépôt de Papiers Publics des Colonies – DPPC). Neste fundo pode ser encontrada uma diversidade de documentos, dos quais foram utilizados nesta pesquisa o que se segue: registros paroquiais e do État-Civil da Martinica; processos criminais e civis; recenseamentos; documentos notariais; relatórios e correspondências oficiais, tanto da administração colonial como metropolitana. Além deste fundo, no ANOM também tivemos acesso aos periódicos

113 THESÉE, Françoise, “La révolte des esclaves du Carbet à la Martinique (octobre-novembre 1822), Revue française d’histoire d’outre mer, tome 80, n. 301, 4o. Trimestre 1993, pp. 551-584. 114 SCHLOSS, Rebecca Hartkopf. “The February 1831 Slave Uprising in Martinique and the Policingof White Identity”, French Historical Studies, Vol. 30, No. 2 (Spring 2007), pp. 203-236. 115 ELISABETH, Leo, “L'Abolition de l'esclavage a la Martinique”, Annales des Antiles (numéro spécial), no. 5, Fort-de-France, Societe d'Histoire de la Martinique – Archives Départementales, 1983; JENNINGS, Lawrence C. La France et l'abolition de l'esclavage (1802-1848). Paris: André Versaille Éditeur, 2010, pp. 283-284. 55 oficiais da Martinica, Bulletin Officiel de la Martinique e Journal Officiel de la Martinique, nos quais foi possível observar tanto a diversos “avisos oficiais ”, decretos e leis promulgadas entre 1830 e 1848, assim como as “ Decisões do Governador ” referentes às alforrias outorgadas nas décadas de 1830 e 1840. Além destas séries documentais, para a realização de uma análise mais global, também utilizamos narrativas de viagens às Antilhas Francesas, documentação privada de senhores de escravos, sobretudo da Martinica, livros e libelos de abolicionistas e escravistas franceses, compêndios de leis, principalmente o Code de la Martinique — as leis promulgadas nas colônias francesas e especificamente na Martinica até o início do século XIX foram organizadas e compiladas em cinco volumes, sob a direção de Durand-Molard, e publicados na primeira metade do século XIX. Cópias digitalizadas destas fontes impressas foram obtidas principalmente na Biblioteca Digital da Bibliothèque Nationale de France (BNF), através do site gallica.bnf.br (BNF – Gallica). A maioria dos documentos acessíveis na Gallica são provenientes de coleções da BNF, mas uma parte cada vez mais importante é fornecida por uma rede de parceiros. Um destes é o manioc.org, uma biblioteca digital especializada em pesquisas sobre o Caribe e a Amazônia, projeto realizado através de uma rede de parceiros que inclui Arquivos Departamentais, Bibliotecas, Museus e Centros de Pesquisa da Martinica, Guadalupe e Guiana Francesa. Um outro importante banco de dados digitais contendo principalmente fontes jurídicas auxiliou esta pesquisa: o projeto Eurescl – Slave Trade, Slavery Abolitions and Their Legacies in European Histories and Identities (www.eurescl.eu), banco de dados “Le droit des traites et des esclavages” – desenvolvido dentro do workpackage 3 (Law, regulations, practices and social connections). A coordenadora científica deste projeto é a professora Myriam Cottias. Esta tese está dividida em duas partes. A primeira parte está fragmentada em três capítulos, os quais abordam diferentes questões e sujeitos (estado colonial e metropolitano, senhores, escravos, livres e libertos), mas que se entrelaçam como uma base essencial para se compreender as hipóteses e argumentações desse trabalho de pesquisa. Nas colônias francesas, ao longo do século XVIII até o final da década de 1820, uma sequência de ordenações, decretos e despachos promulgados pelos governos colonial e metropolitano revela uma tendência geral de limitação dos direitos imprescindíveis do senhor de alforriar seus escravos, se assim fosse sua vontade. Mais que em outros espaços coloniais escravistas, observa-se uma forte separação entre o ato de manumissão de um escravo por seu 56 senhor, o qual concede a liberdade de acordo com seu direito à propriedade, e a conquista de uma carta de alforria “oficial”, a qual poderia ser concedida apenas pela administração colonial. Em razão desta conjuntura, condições ambíguas de acesso à liberdade foram criadas, e mesmo toda uma séria de termos que definiriam de maneira contraditória o estatuto legal das pessoas que não possuíam uma carta de alforria regularizada. Entre os século XVIII e XIX, a condição legal daqueles libertos “irregulares” (livres de savana ou patrocinados) era a mesma de um escravo. Dessa maneira, no primeiro capítulo, demonstra-se como este contexto de acesso à alforria se construiu historicamente, por meio de leis e costumes, sobretudo a partir da interferência do estado na concessão da alforria, no entanto, sem desagradar de fato a elite branca colonial. O capítulo dois trata principalmente as abordagens historiográficas sobre os livres de cor do Caribe Francês e fontes legislativas que definiram barreiras discriminatórias por meio de limites sociais, econômicos e culturais impostos aos afrodescendentes libertos nas Antilhas Francesas, principalmente ao longo do século XVIII e início do XIX. Foi necessária uma análise de longa duração, passando do final do século XVII até as décadas de 1830 e 1840. Ao que tudo indica, a racialização da escravidão induziu o desenvolvimento de hierarquias raciais e do preconceito de cor que se estabeleceram no Caribe Francês naquele período. Neste capítulo foi abordado essencialmente o contexto que os “livres de cor” vivenciaram as classificações de mestiçagem e os limites jurídicos impostos a esta classe, e que tocam principalmente questões em torno de raça e gênero. No capítulo três, para compreendermos melhor a escravidão e a liberdade no Caribe Francês, são abordadas as condições do trabalho escravo, sobretudo os lugares das mulheres escravizadas no mundo do trabalho na Martinica, seu papel na economia informal dos escravos, no eito da lavoura e de suas famílias escravas. Busca-se enfocar a questão do trabalho com o objetivo de demonstrar outras experiências e caminhos que os escravos tinham, principalmente as mulheres, para procurar conquistar a liberdade, para além das relações de sedução com seus senhores116. Assim como a primeira, a segunda parte da tese também é dividida em três capítulos. Nesta parte, foi tratada a questão da conquista da liberdade na Martinica no século

116 Essa ideia, e assim a construção desse capítulo, foi inspirada a partir de uma conferência proferida por Maria Helena Machado, no 7o. Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional (UFPR – Curitiba, 13-16 de maio de 2015), “Amas e mães escravas: perspectivas historiográficas sobre a escravidão e a aquisição da liberdade por mulheres escravas”. 57

XIX, sobretudo ao longo da Monarquia de Julho. No capítulo quatro, são abordadas as complexas e ambíguas experiências daqueles sujeitos que viveram à margem do sistema jurídico das colônias francesas, ou seja, os libres de savane (livres de savana), libres de fait (livres de fato) ou patronnés (protocinados). Estes indivíduos viviam uma liberdade informal, no entanto, estando numa brecha jurídica até os anos de 1830, sem lugar no Sistema Colonial, que considerava apenas livres e escravos, eram considerados e tratados legalmente como escravos. Se cometiam um crime, nos tribunais eram julgados como escravos; não poderiam ter propriedade, nem se casar ou registrar seus filhos. Viviam, assim, uma liberdade precária e procuravam estratégias cotidianas para conseguirem mantê-la ou mesmo regularizá-la. Grande parte destes libertos irregulares eram mulheres, com seus filhos, assim, neste capítulo, ao abordar a experiência destes “livres de savana” ou “livres de fato”, procuramos tratar principalmente as experiências de conquista da liberdade oficial pelas mulheres “patrocinadas” da Martinica, no século XIX. Em julho de 1832, a “Ordenação Real relativa às alforrias dos escravos” (L’Ordonnance Royale relative aux affranchissements des esclaves) revogou o conjunto de ordenações e regulamentos que restringiam o acesso liberdade oficial nas colônias francesas. Outras ordenações foram publicadas depois em 1836, 1839 e 1845, concernentes sobretudo à concessão de alforrias nas colônias francesas, e essa sequência de leis reverteu completamente os entraves produzidos em épocas precedentes, apontando no sentido de uma abolição gradual da escravidão. É interessante observar a necessidade de trabalharmos a legislação sobre a alforria dos escravos antes e depois de 1830. No primeiro capítulo, demonstramos como se deram as restrições à alforria na Martinica, por meio de medidas legislativas ao longo do século XVIII até o início do século XIX. No capítulo cinco, o objetivo é demonstrar como e porquê nas décadas de 1830 e 1840 aquela política colonial foi desmantelada. Este capítulo procura esmiuçar o contexto de debates e ações em torno da questão de alforria e emancipação durante estes últimos anos de escravidão nas Antilhas Francesas. O objetivo desta parte da pesquisa é tentar demonstrar como as ações de libertos e livres de cor, na Martinica e na França, assim como dos próprios escravos e escravas, influenciaram ou participaram desse período, cujo processo reorganizou e até mesmo desestruturou o sistema escravista francês antes de 1848. Além disso, a grande quantidade de alforrias conquistas entre 1830 e 1847 se deve, em parte, às mudanças políticas e legislativas e às abordagens jurídicas ocorridas neste curto período de tempo. Nesse sentido, algumas partes desse capítulo 58 expõem especialmente as leis promulgadas entre 1831 e 1845 que tocaram a “arca santa” do domínio senhorial. Por fim, uma das principais críticas apontadas por este trabalho de pesquisa se refere às análises impressionistas de alguns historiadores ao abordarem a questão da conquista da liberdade no Caribe Francês, sobretudo pelas mulheres escravizadas. Sendo assim, era crucial realizar uma análise quantitativa das alforrias pronunciadas nas décadas de 1830 e 1840, anos finais de escravidão nas colônias francesas, ou ao menos de uma amostragem do conjunto, com o objetivo de compreender as formas de acesso à alforria, sua frequência e quais os sujeitos implicados nestes processos de conquista da liberdade. O capítulo seis cumpre esta função. Um grande volume de informações seriais foi produzido no que concerne às concessões de alforria, e divulgado por meio das “Decisões do Governador contendo alforrias de diversos indivíduos”, publicadas no Bulletin Officiel de la Martinique (BOM) e no Journal Officiel de la Martinique (JOM), entre 1830 e 1848. As informações fornecidas variam um pouco ao longo do período, mas, em geral, nestes documentos temos acesso ao nome do escravo(a) ou patrocinado(a), idade, profissão, classificações de cor da pele, sexo, relações de parentesco, condição (escravo, patrocinado, livre de savana), se africano ou crioulo; o nome, sexo e, às vezes, a profissão do senhor ou senhora ou dos patronos e patronas, e se tinham relações de parentesco com seus escravos. A partir dessas informações sobre os proprietários, ainda procuramos descobrir qual era a “classe” dos senhores, ou seja, se eram brancos ou livres de cor. Neste último capítulo, destaca-se ainda a análise sobre as alforrias por “resgate forçado”. Desde o Code Noir (1685), as pessoas escravizadas no Caribe Francês não poderiam ter propriedade de nenhuma natureza, nem mesmo formar um pecúlio, ainda que haja indícios de que no cotidiano a prática era diferente. A lei de 18 de julho de 1845, “Relative au régime des esclaves dans les colonies françaises”, transforma juridicamente esta situação, ou seja, regulariza algo que já ocorria na prática costumeira. O principal objetivo dessa mudança era regulamentar que os escravos pudessem comprar suas alforrias de seus senhores, ação também legislada pela ordenação de 1845. A documentação analisada é sobretudo aquela produzida por esta “comission du rachat” da Martinica, onde constam relatórios individuais sobre os escravos e escravas que conquistaram suas alforrias por resgate forçado. Inclui ainda cartas, leis e decretos dos governos metropolitano e colonial e as decisões contendo as alforrias, publicadas nos periódicos oficiais da Martinica, entre janeiro de 1846 e maio de 59

1847. Desse modo, o objetivo desta análise foi procurar observar quais as possíveis explicações deste fenômeno em torno da conquista da liberdade, qual a agência das mulheres e de suas famílias nestes processos e os limites colocados pelo domínio senhorial e pelo governo colonial. Esta pesquisa se centrou em uma análise histórico-social sob uma abordagem que procurou distinguir as peculiaridades das experiências das mulheres e de suas famílias nos processos de conquista, reconhecimento e manutenção da liberdade. Contudo, não é um trabalho necessariamente de história das mulheres no Mundo Atlântico, mas muito mais uma perspectiva de gênero e história social, procurando compreender quais os significados que as diferenças entre os sexos, assim como as contingências de raça e classe, imprimiram aos processos e experiências de conquista e concessão da liberdade no Caribe Francês. 60

PARTE I – ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NAS ANTILHAS FRANCESAS, SÉCULOS XVIII E XIX 61

CAPÍTULO 1 – ESCRAVIDÃO SEM ALFORRIA

Louis Fabien, abolicionista, martinicano e representante dos “homens livres de cor” na capital do império francês na década de 1830, ao abordar a questão do acesso à liberdade, ressalta o papel do estado francês, tanto o poder metropolitano, como a administração colonial, na restrição à alforria dos escravos e escravas nas colônias francesas:

No Império Romano, onde existia a escravidão, era suficiente que o senhor desejasse libertar um escravo para que ele fosse livre. Dois caminhos estavam abertos a ele para a alforria: a declaração junto a um magistrado, ou uma declaração verbal em um local público. Nos estados barbarescos, é suficiente que o escravo pague àquele que o possui o resgate que lhe é exigido, para que seus grilhões sejam rompidos e que se torne livre para retornar a sua pátria ou permanecer no país. Porém, em nossas possessões francesas das Antilhas, onde a escravidão é mais rígida e mais insuportável do que era em Roma, como não é entre os Bárbaros, não é suficiente que um senhor conceda a liberdade a seu escravo para que este seja livre; não é suficiente que o escravo pague seu resgate para que seus grilhões sejam rompidos e para que ele seja livre como indivíduo (livre de corpo, como se diz nas colônias); é necessário ainda que o governo intervenha, não em favor da liberdade, mas contra o infeliz que acaba de se libertar.1

Em sua tese sobre o abolicionista Cyrille Bissette2, Stella Pâme descreve a experiência de conquista da liberdade nas colônias francesas como duas operações distintas e separadas no tempo3. A primeira, à qual a autora se refere com o termo “manumissão” (manumission), seria o ato pessoal e privado de um senhor ao alforriar seu escravo, apoiando- se em seu direito de propriedade e levando em conta apenas sua vontade senhorial. Contudo, esta primeira forma de acesso à liberdade nem sempre teria sido seguida automaticamente

1 FABIEN, Louis. Patronnés ou Libres de Savane. Réclamations en leur faveur, faites antérieurement a la présentation de la loi sur l'État des personnes aux colonies, et observations soumises à la Commission depuis cette Présentation. Par un homme de couleur. Paris: Dezauche, 1831, p. 19 (BNF-Gallica). 2 Cyrille Bissette (1795-1858) também era martinicano e “ homem livre de cor ”, camarada de Louis Fabien. Dedicaram-se juntos à luta por direitos para os “livres de cor” e nas décadas de 1830-40 pela abolição imediata da escravidão nas colônias francesas. 3 PÂME, Stella. Cyrille Bissette: 1795-1858. Tese de Doutorado – Faculté des Lettres et Sciences Humaines, Université de Paris I: junho de 1978, pp. 13-14. 62 pela segunda, a “alforria legal” (l’affranchissement légal), a qual poderia garantir os direitos dos indivíduos libertos. Nas Colônias Francesas do Caribe, a separação entre estas duas operações foi induzida por uma sequência de ordenações, decretos e resoluções promulgados pelos governos colonial e metropolitano ao longo do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. Os procedimentos para se ter acesso à alforria de um escravo ou escrava se tornaram cada vez mais minuciosos e custosos e o que se observa é que aparentemente muitos proprietários acabavam por acordar a manumissão, sem necessariamente regularizar a situação dos libertos e libertas. Em razão desta conjuntura, condições ambíguas de acesso à liberdade foram criadas e os indivíduos que usufruíam desses formas precárias de “liberdade de corpo”, sem uma carta de alforria oficial, eram considerados legalmente como escravos. Assim, o título deste capítulo tende a ser muito mais uma provocação, chamando a atenção para este fenômeno muito comum no Caribe Francês entre o século XVIII eté o início do século XIX. Certamente vários escravos e escravas foram alforriados, no entanto, devido à forma como a alforria foi regulamentada pelas leis e decisões do governo colonial na Martinica, tal processo foi bastante limitado e repleto de restrições, influenciando inclusive a quantidade de pessoas livres da colônia. Dessa forma, ao longo do século XVIII até o final da década de 1820, a tendência geral foi a limitação progressiva dos direitos de um senhor de alforriar seus escravos, se essa fosse sua vontade. A Ordonnance Royale de março de 1685, mais conhecida como Code Noir (Código Negro), enunciava em seu 55o. artigo que os senhores com mais de vinte anos poderiam alforriar seus escravos, sem que tivessem que apresentar qualquer motivo para tal ação4. No entanto, em 1711, o governador da Martinica, general Raymond Baltazhar Phélypeaux, cometeu a primeira infração oficial a esta disposição, determinando que as manumissões de escravos deveriam ser autorizadas pelo governo da ilha e registradas pelo Conselho Superior da colônia5.

4 Artigo 55: Les maîtres âgés de 20 ans pourront affranchir leurs esclaves par tous actes entre-vifs ou à cause de mort, sans qu’ils soient tenus de rendre raison de l’affranchissement, ni qu’ils aient besoin d’avoir de parents, encore qu’ils soient mineurs de 25 ans. Ver em Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique, março de 1685, in DURAND- MOLARD. Code de la Martinique. Tomo 1. Saint-Pierre, Martinique: 1807, pp. 40-55 (BNF – Gallica). 5 Léo Elisabeth comenta esta decisão a partir da documentação localizada em ANOM – Colonies, C8A.18, 3 de junho de 1711, fol. 118. ELISABETH, Léo, “The French Antilles”, in COHEN, David W. & GREENE, Jack P (orgs.). Neither Slaves nor Free: the freedmen in the slaves societies of the New World. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1972, p. 140. 63

Essa decisão de Phélypeaux foi motivada, sobretudo, devido a um processo envolvendo a família La Pallu, a qual reclamava a posse sobre três mulheres negras, caso analisado por Sue Peabody em um artigo que aborda “gênero” e “emancipação” no Caribe Francês6. As irmãs Marie Castelet, Cathin Lamy e Babet Binture viviam como livres e tocavam um estabelecimento em Saint-Pierre (Martinica), que funcionava como taberna e estalagem. Castelet já havia conseguido oficializar sua situação como mulher livre, quando Lamy, em 1704, apresentou uma petição ao Conselho Superior da colônia para que reconhecessem sua liberdade. Sua solicitação foi atendida, não sem percalços, em maio de 1708, e tanto ela como seus filhos foram declarados “affranchis d’origine” (livres de nascença)7. A irmã Babet Binture, em 1705, também procurou conquistar o reconhecimento de seu estatuto como livre, argumentando que teria nascido de pai e mãe libertos. Contudo, o intendente responsável por julgar a ação determinou que Binture não tinha fornecido evidências suficientes sobre sua condição e a sentenciou a um mês de prisão, por conta de sua “audácia”8. Isso não arrefeceu a determinação de Babet Binture. Depois da decisão sobre o estatuto de sua irmã Cathin Lamy, conseguiu que um promotor público apresentasse uma petição a favor dela, argumentando que se o Conselho Superior havia reconhecido Cathin como livre de nascença, sua irmã Babet necessariamente também deveria ser considerada livre9. Apesar das alegações da Madame La Pallu, que afirmava ser senhora de Binture e que nunca deixara de tê-la como sua propriedade, o intendente da colônia declarou “a dita Babet, negra, e todos os seus filhos emancipados desde o nascimento, para desfrutar de sua liberdade como qualquer outra pessoa livre”10. No entanto, Binture não estava livre da reação daqueles que se diziam seus proprietários. Um oficial da milícia em Saint-Pierre, filho da madame La Pallu, abordou Babet e a espancou com um porrete, argumentando que havia sido insultado pela mulher negra. O homem foi preso por ordens do intendente da ilha na época, mas a família La Pallu

6 PEABODY, Sue, “ Négresse, Mulâtresse, Citoyenne: Gender and Emancipation in the French Caribbean, 1650-1848 ”, in SCULLY, Pamela & PATON, Diana. Gender and slave emancipation in the Atlantic world. Durham / London: Duke University Press, 2005, pp. 56-78. Peabody também expõe este caso em GRINBERG, Keila & PEABODY, Sue. Escravidão e liberdade nas Américas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, pp. 27-33. 7 Extratos dos registros do Conselho Superior da Martinica, 9 de maio de 1708, AN Col. F³ 250, p. 567, in PEABODY, op cit (2005), pp. 58-59. 8 PEABODY, op cit (2005), p. 59. 9 GRINBERG & PEABODY, op cit (2013), p. 28. 10 Idem. 64 apelou para o Conselho de Estado na metrópole francesa, o qual determinou que o administrador da colônia havia excedido em sua autoridade. Quando o general Phélypeaux assumiu o governo da Martinica em 1709, tornou-se forte aliado da família La Pallu. Era primo de seu superior, o secretário do Estado para Negócios Marítimos, a quem escreveu tratando especificamente do caso das irmãs Marie Castelet, Cathin Lamy e Babet Binture. Nesta correspondência, o governador argumenta que o Intendente que havia oficializado a condição de livre de Babet e, ainda, conduzido o filho de madame La Pallu à prisão, “não tomou conhecimento das leis do país entre brancos e negros, nem deu atenção ao grau pelo qual tal conduta poderia incitar a insolência dos negros”11. Por conta da insistência de Phélypeaux, o governo metropolitano exigiu que o caso de Babet fosse revisto. De acordo com Peabody, como não foram encontrados outros documentos, não se sabe como terminou a história de Babet Binture, se ela e seus filhos, e mesmo suas irmãs, permaneceram livres ou foram retornadas à condição de escravas12. Este caso ilustra várias questões significativas sobre a alforria nas Antilhas Francesas, envolvendo sobretudo mulheres escravas ou livres de cor. Aquelas três irmãs negras, vivendo como livres, foram capazes de acumular certo pecúlio e gerenciar um estabelecimento na colônia. Sua situação de independência, tocando um “cabaré” bem- sucedido, “acumulando riqueza com este comércio (…) com os bucaneiros que ali param”13, como afirma Phélypeaux, provavelmente incomodou a elite colonial. As irmãs perceberam a necessidade de confirmar oficialmente seu estatuto como pessoas livres, possivelmente porque se sentiam vulneráveis. Primeiro, se fossem consideradas escravas, legalmente seu pecúlio pertenceria à família La Pallu e poderia ser confiscado a qualquer momento. Segundo, elas poderiam ser reescravizadas e vendidas. Terceiro, tanto Cathin como Babet eram mães e poderiam perder seus filhos, os quais não tinham a liberdade de nascimento registrada. Por fim, a escravidão imprimia um estigma, mesmo que elas vivessem como livres e tivessem conquistado certa autonomia e um grau de influência na comunidade14. Ademais, demandavam que fossem reconhecidas como “livres de nascimento”, o que na época fazia uma grande diferença. O Code Noir exigia que os “libertos” tivessem um “respeito singular” em relação aos seus antigos senhores e, ainda, a suas viúvas e seus filhos. Caso insultasse seus

11 Arquivo Nacional da França, Col. C8 A 15, f. 268v-269v, citado em GRINBERG & PEABODY, op cit (2013), p. 29-30. 12 GRINBERG & PEABODY, op cit (2013), p. 31. 13 GRINBERG & PEABODY, op cit (2013), p. 29. 14 PEABODY, op cit (2005), p. 60. 65 ex-senhores, o liberto seria punido “mais seriamente” do que se ele houvesse insultado qualquer outra pessoa15. Como as possíveis formas de “insulto” não foram definidas na lei, aqueles indivíduos cujo estatuto era de “liberto” poderiam permanecer suscetíveis aos caprichos de ex-senhores, apoiados pela administração colonial. No entanto, histórias como esta de Babet Binture e suas irmãs, de indivíduos escravizados que batalhavam pela conquista e reconhecimento de suas liberdades, estimularam o governo francês a restringir a alforria a partir do início do século XVIII. Em certa medida por influência do general Phélypeaux, governador da Martinica, o Conselho de Estado do Rei promulgou um decreto (Arrêt du Conseil d’État du Roi concernant la liberté des esclaves) em 24 de outubro de 171316 que regulamentou as concessões de alforria em todas as suas possessões, atribuindo ao Governo de cada colônia o verdadeiro poder de acordar a alforria a um escravo, ou negá-la. A administração colonial passava, então, a controlar o acesso à liberdade. A partir dessa resolução, um escravo não seria mais alforriado apenas em razão da vontade de seu senhor. Sua alforria deveria necessariamente ser aprovada pelos administradores coloniais. Esta resolução foi a primeira a criar condições reais para a emergência de uma classe quase invisível no sistema colonial do Antigo Regime, os libertos “irregulares”, que diante do sistema jurídico seriam considerados escravos. Dessa forma, quando os escravos que desfrutavam de uma liberdade clandestina fossem capturados nesta situação irregular e seus senhores não fossem identificados em um determinado período, eles seriam leiloados em benefício do Rei:

S.M. ordenou e ordena que, no futuro, não será permitido a nenhuma pessoa, de qualquer qualidade ou condição que seja, de alforriar seus escravos, sem antes ter obtido a permissão por escrito do Governador-geral e do Intendente das ilhas, para o que diz respeito às Îles du Vent (...); os quais concederão as referidas permissões, sem custo algum, quando os motivos que lhes serão expostos pelos senhores que quiserem alforriar seus escravos lhes parecerem legítimos: S.M. quer que todas as alforrias que serão feitas no futuro sem estas permissões sejam anuladas, e que os libertos não possam delas [liberdades] usufruir, nem serão reconhecidos como tal;

15 Artigo LVIII: “Commandons aux affranchis de porter un respect singulier à leurs anciens maîtres, à leurs veuves, et à leurs enfants, en sorte que l’injure qu’ils leur auront faite soir punie plus grièvement que si elle était faite à une autre personne; les déclarons toutefois francs et quittes envers eux de toutes autres charges, services et droits utiles que leurs anciens maîtres voudraient prétendre, tant sur leurs personnes que sur leurs biens et successions en qualité de patrons”, Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique, in DURAND-MOLARD, op cit, t. 1, pp. 40-55. 16 Arrêt du Conseil d’État du Roi concernant la liberté des esclaves, 24 octobre 1713, in DURAND- MOLARD, op cit, t. 1, pp. 80-81. 66

ordena S.M. o contrário, que eles [os escravos libertos] sejam vendidos em seu benefício17.

O estudo específico das leis e decisões governamentais não é suficiente para se compreender como os sujeitos, individuais ou coletivos, fazem uso do campo jurídico como recurso estratégico18, tanto em suas práticas cotidianas, como em situações excepcionais. Contudo, neste contexto que observamos as Colônias Francesas, a redefinição das normas jurídicas sobre a concessão de liberdade, interferindo inclusive na “vontade senhorial”, é um evento que salta aos olhos. O conjunto de leis referentes à restrição de alforria dos escravos e escravas promulgadas ao longo do século XVIII são indícios de que, a despeito do poder das elites coloniais ou do governo, alguns indivíduos escravizados criaram suas estratégias para conquistar algum acesso à liberdade, mesmo que precária e clandestina, fosse para eles próprios ou para suas famílias. A ordenação real promulgada em junho de 1736 (Ordonnance du Roi, concernant l’affranchissement des esclaves des îles françaises de l’Amérique) assinala neste sentido. Além de reforçar a resolução de 1713, sobre a necessidade de autorização do governo para a concessão de alforrias, somava-se ainda “inibições bastante expressas a todos os padres e religiosos” de batizar como livre qualquer criança sem que a alforria da mãe fosse provada por meio da apresentação de um registro de liberdade, “revestido da permissão por escrito dos Governadores e Intendentes” das Colônias. Ademais, as crianças batizadas como livres cujas mães fossem escravas seriam consideradas escravas também. Os senhores que permitissem essa situação seriam condenados a uma multa e privados dessas crianças batizadas como livres, as quais seriam confiscadas e vendidas como escravas em benefício do Rei19. Deste

17 Arrêt du Conseil d’État du Roi concernant la liberté des esclaves, 24 octobre 1713, in DURAND- MOLARD, op cit, t. 1, pp. 80-81. 18 Sobre reflexões históricas acerca de direitos, leis e justiças, pela perspectiva da história social, ver MENDONÇA, Joseli Maria Nunes; LARA, Silvia Hunold (Org.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de História Social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006; LARA, Silva H. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. in: ANDRÉS-GALLEGO, Jose (Coord). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera/Digibis/Fundación Hernando de Larramendi, 2000 (CD-Rom), acessível em http://www.larramendi.es/i18n/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=1000203. 19 “S. M. a ordonné et ordonne qu’à l’avenir il ne sera permis à aucunes personnes, de quelque qualité et condition qu’elles soient, d’affranchir leurs esclaves, sans avoir auparavant obtenu la permission par écrit du Gouverneur-général et de l’Intendant des îles, pour ce qui regarde les îles du vent (…); lesquels accorderont les dites permissions, sans aucuns frais, lorsque les motifs qui leur seront exposés par les maîtres qui voudront affranchir leurs esclaves, leur paraîtront légitimes: veut S. M. que tous les affranchissements qui seront faits à l’avenir sans ces permissions soient nuls, et que les affranchis n’en puissent jouir, ni être reconnus pour tels; ordonne au contraire S. M., qu’ils soient vendus à son profit”. Ordonnance du Roi, concernant l’affranchissement des esclaves des îles françaises de l’Amérique, 15 juin 1736, in DURAND- MOLARD, op cit, t. 1, pp. 397-398. 67 modo, a ordenação de 1736, ao proibir o batismo de filhos de mães escravas — ou libertas irregulares — como ingênuos, indica que provavelmente esta situação ocorria com certa frequência, de tal maneira que havia necessidade de uma lei para tentar coibir aquela ação. Estas medidas jurídicas de certa forma já estavam enunciadas no Código Negro. O artigo XIII previa que se um homem escravo se casasse com uma mulher livre — e certamente subentendia-se na época que ambos seriam afrodescendentes20 —, seus filhos seriam considerados livres como a mãe, a despeito da condição de escravo do pai. No entanto, se a mãe fosse escrava e o pai liberto, as crianças seriam consideradas de condição escrava e pertenceriam ao senhor da mãe21. É interessante notar que nos artigos XII e XIII do Code Noir, depreende-se que a relação que gerou os filhos ocorreu entre afrodescendentes, assim, não é definida como “concubinagem”, e a principal preocupação é identificar quem é o proprietário da “prole”. Já no artigo IX, a questão a ser legislada é a “concubinagem”, considerada apenas entre a mulher escrava e “homem livre”, e aqui se subentende que este homem seria “branco”. Neste caso, estes homens livres brancos seriam punidos com multas, e se fosse o senhor da escrava concubina, seus filhos e a mãe seriam confiscados e jamais poderiam ser alforriados22. É importante observar que o texto do Code Noir de 1685, quando trata do poder dos “senhores” (maîtres) de alforriar seus escravos, não menciona nenhuma diferenciação de classe, “condição” ou “qualidade”, pois se considerava que eram necessariamente homens “brancos”. Contudo, na Resolução de 1713, o texto da lei não se refere ao poder do “maître”,

20 O artigo anterior (XII) trata do caso quando tanto o homem como a mulher são escravos e tem filhos juntos; assim este artigo XII procura legislar sobre quem seria o proprietário das crianças – o senhor da mãe escrava. Art. XII: Les enfans qui naîtront des mariages entre les esclaves, seront esclaves, et appartiendront aux maîtres des femmes esclaves, et non à ceux de leurs maris, si le mari et la femme ont des maîtres différens” Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique, mars 1689, in DURAND-MOLARD, op cit, t. 1, pp. 43. 21 “art. XIII. Voulons que si le mari esclave a épousé une femme libre, les enfants, tant mâles que filles, soient de la condition de leur mère, et soient libres comme elle, nonobstant la servitude de leur père, et que si le père est libre et la mère esclave, les enfants soient esclaves pareillement”. Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique, mars 1685, in DURAND-MOLARD, op cit, t. 1, p. 44. 22 “art. IX. “Les hommes libres qui auront un ou plusieurs enfans de leur concubinage avec des esclaves, ensemble les maîtres qui l’auront souffert, seront chacun condamnés en une amende de 2000 liv. de sucre; et s’ils sont les maîtres de l’esclave de laquelle ils auront eu lesdits enfans, voulons, outre l’amende, qu’ils soient privés de l’esclave et des enfants, et qu’elle et eux soient adjugés à l’hôpital, sans jamais pourvoir être affranchis; n’entendons toutefois le présent article, avoir lieu, lorsque l’homme libre qui n’était point marié à autre personne durant son concubinage avec son esclave, épousera dans les formes observées par l’Eglise, ladite esclave, qui sera affranchie par ce moyen, et les enfans rendus libres et légitimes”. Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique, mars 1685, in DURAND-MOLARD, op cit, t. 1, p. 41. 68 mas à qualquer “pessoa, de qualquer qualidade e condição que elas sejam, não possam alforriar seus escravos” (grifo meu) sem permissão por escrito dos administradores23. Dessa forma, este trecho indica a existência de senhores “de qualquer qualidade” (brancos ou afrodescendentes, por exemplo) e “condição” (nascidos livres ou libertos). Ademais, assinala que, além de não passar desapercebido pela administração colonial, esta situação provavelmente provocava algum incômodo, ao ponto de permitir que o governo interferisse na “vontade senhorial”. Uma das principais justificativas dessas leis de restrição à alforria era uma preocupação constante dos governos e elites coloniais com o crescimento da classe de livres de cor. No entanto, o número de libertos na Martinica, sobretudo se comparados com os números das populações de brancos e de escravizados, foi muito baixo durante todo o século XVIII. Em 1715, dois anos após aquela primeira decisão real que exige a autorização da administração colonial para a concessão da alforria, libertos e libertas (regulares) representavam 2,8% da população total da Martinica, e esta porcentagem baixa permaneceu até o início do século XIX (veja tabelas 1 e 2).

Tabela 1 – População da Martinica, dividida entre brancos, libertos e escravos, 1700 – 1802

ANO LIVRES E BRANCOS ESCRAVOS TOTAL DA LIBERTOS POPULAÇÃO 1700 507 6.597 14.566 21.670 1715 1.029 8.735 26.865 36.629 1726 1.304 10.959 40.403 52.666 mulheres 397 3.179 10.912 homens 277 3.717 14.638 1731 Crianças (abaixo de 530 5.061 19.837 12 anos), enfermos e idosos 58.548 total 1.204 11.957 45.387 mulheres 318 3.576 14.385 homens 220 4.075 18.724 1734 Crianças, enfermos 272 5.054 19.485 e idosos + 486

23 Arrêt du Conseil d’État du Roi concernant la liberté des esclaves. Du 24 octobre 1713, in DURAND- MOLARD, op cit, t. 1, pp. 80-81. 69

(escravos 66.595 fugidos) total 810 12.705 53.080 mulheres 328 4.030 14.822 homens 223 4.520 19.314 1736 Crianças, enfermos 334 5.367 20.031 e idosos + 624 (escravos fugidos) 69.609 total 901 13.917 54.791 mulheres 458 4.387 15.664 homens 318 4.824 20.118 1738 Crianças, enfermos 519 5.695 21.235 e idosos + 761 (escravos fugidos) 74.042 total 1.295 14.969 57.778 mulheres 394 4.013 19.173 homens 388 4.456 23.289 1751 Crianças, enfermos 631 3.566 22.749 e idosos + 694 (escravos fugidos) 79.386 total 1.413 12.068 65.905 1764 1.846 11.634 68.395 81.875 1770 2.524 11.588 71.142 83.779 1776 2.892 11.619 71.268 85.779 1784 3.472 10.150 78.598 92.220 1789 5.236 10.634 83.414 99.284 1802 6.578 9.826 79.754 96.158

Fontes: DESSALES, Adrien. Histoire Générale des Antilles. Tomo 4 e 1. Parte 2. Paris, 1847, pp. 574- 579 (manioc.org); MOREAU DE JONNÈS, Alexandre (1778-1870). Recherches statistiques sur l’esclavage colonial et sur les moyens de le supprimer. Paris: Imprimerie de Bourgogne et Martinet, 1842 (BNF-Gallica); ELISABETH, Léo, “The French Antilles”, in COHEN & GREENE. Neither slave nor freee – The Freedmen of African in the slave societies of the Newm World. Baltimore, Londres: John Hopkins University Press, 1972. 70

A partir de 1745, foi estabelecido um imposto sobre o registro de alforria, definindo-se os valores de 1000 libras (livres)24 para se alforriar homens escravizados e 600 libras para as mulheres. Em uma carta de julho de 1745 aos Administradores da Martinica, o Ministro da Marinha e das Colônias comenta que este imposto havia sido sugerido por conta de relatos enviados ao rei que denunciavam constantes infrações sobre a concessão de liberdade na colônia. Apesar das medidas tomadas no sentido de submeter os processos de alforria à permissão do governo colonial, muitos “habitantes” estavam encontrando meios de alforriar seus escravos, principalmente as “negras e mulatas”. Esta decisão real indica não apenas a intensificação das interferências do Estado na questão da alforria, mas ressalta a preocupação e o discurso colonial sobre as liberdades conquistas pelas mulheres escravizadas:

Foi retornado ao rei que, a despeito das precauções tomadas para impedir que os habitantes das ilhas não pudessem obter a liberdade de seus escravos negros e mulatos exceto nos casos e com as formalidades explicitadas pelas disposições feitas sobre esta matéria, ocorre frequentemente nas Isles du Vent que os habitantes encontram os meios de lhes [os escravos] fazer ter [a alforria], particularmente as negras e mulatas e muito frequentemente pelo preço do comércio que eles tiverem com elas. No sentido de tornar seus arroubos de liberdade mais difíceis, foi proposto a Sua Majestade estabelecer um imposto sobre os habitantes que queiram obter [a alforria] para seus escravos dos dois sexos, exceto nos casos onde ela deve ser acordada de direito e que são explicados no Édito do mês de março de 1685, e apresentou-se que esta taxa poderia ser estipulada à 1000 libras para cada escravo macho e à 600 libras para cada negra e mulata25. (grifo meu)

Em fevereiro de 1766, um decreto real aboliu o imposto sobre a alforria. Porém, segundo Léo Elizabeth, esta lei pode ter sido efetiva apenas em São Domingos, pois na Martinica tais cobranças não desapareceriam antes de 183126. Em outras ilhas, de acordo com Arlette Gautier, em 1775 a cobrança foi restabelecida. Contudo, um montante maior passava a ser exigido para alforriar as mulheres escravas: 1000 libras pela alforria dos homens e 2000 libras pela alforria das mulheres de menos de quarenta anos, pois, nestes casos, segundo os

24 “La livre coloniale est une monnaie de compte, une livre coloniale (l. ou £) vaut environ 0,66 livre tournois (monnaie de France), puis, 0,55 franc ”, ver ABEL, Louis. Les libres de couleur en Martinique des origines à 1815. L’entre-deux d’un groupe social dans la tourment coloniale. Tese de Doutorado, Faculté de Lettres et Sciences Humaines - Université des Antilles et de La Guyane, Martinique: 2011, p. 6. 25 Lettre du Ministre aux administrateurs de l’Île Martinique, au sujet des affranchissements. 8 juillet 1745. ANOM, série F³, collection Moreau de Saint-Méru, carton 258, f.93 e 103 (textos manuscritos). 26 ELISABETH, Léo, “The French Antilles”, in COHEN, David W. & GREENE, Jack P. Neither slave nor free. The freedmen of african descent in the slaves societes of the New World. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1972, p. 144. 71 administradores coloniais, “muitas liberdades tinham sido acordadas por motivos de libertinagem”27. Esta mesma ordenação prescreveu ainda uma outra forma que os escravos, exclusivamente os homens, poderiam obter a liberdade: por meio do alistamento em companhias de milícias de “gente de cor”, realizando, sobretudo, o serviço de capturar escravos fugitivos (négres marrons). Se servissem entre oito e dez anos, “com fidelidade e exatidão”, eles conquistariam sua baixa da companhia e a alforria regular gratuitamente28. Aparentemente, em resposta aos altíssimos valores do imposto de manumissão e às fortes restrições para a obtenção de uma alforria legal nas Antilhas Francesas, desde a segunda metade do século XVIII, uma quantidade considerável de proprietários passaram a enviar seus escravos para as ilhas vizinhas para obterem certificados de liberdade29. Nesse sentido, em fevereiro de 1768, o Governador Geral e o Intendente da Martinica promulgaram mais uma ordenação que reforçava aquelas de 1713 e 1736, sobre os meios que os senhores deveriam proceder para obterem a alforria oficial de seus escravos. Nesta nova lei, mencionavam e legislavam sobre mais esta irregularidade que vinha ocorrendo na Colônia. Alguns proprietários estariam levando ou fazendo levar seus escravos a ilhas vizinhas, sem permissão, para lá alforriá-los, onde, “por meio de uma venda simulada, eles passam seus escravos a qualquer habitante das ditas ilhas estrangeiras, e os fazem em seguida retornar às ilhas francesas, na esperança de que aqui usufruam uma liberdade que é apenas ideal, obtida a despeito das Ordenações do Rei”30. Desse modo, proibia-se que qualquer proprietário de qualquer condição pudesse alforriar seus cativos em possessões estrangeiras, e que se assim procedesse seria punido de acordo com as penas impostas pelas ordenações de 1713 e 1736. A partir de então, os escravos estavam proibidos de viajar para outras ilhas, mesmo com seus senhores, sem uma autorização assinada pelos intendentes. Proibia-se, ainda, todos os notários de receberem qualquer registro de alforria de escravo que não tivesse uma permissão por escrito do Governador e do Intendente da Colônia, podendo o funcionário ser punido com uma multa de 1000 libras, caso desrespeitasse esta determinação. No entanto, os escravos da Martinica não deixaram de se arriscar para buscar cartas de alforria estrangeiras nas ilhas vizinhas. Victor Schoelcher comenta esta situação em

27 GAUTIER, Les sœurs de solitude, p. 154. 28 PEYTRAUD, Lucien. L’Esclavage aux Antilles Françaises avant 1789, d’après des documents indédits des Archives coloniales. Paris: Hachette, 1897, pp. 414-415 (BNF – Gallica). 29 ELISABETH, op cit, pp. 145-152. 30 Ordonnance de MM. les Général et Intendant, concernant les libertés donnes aux esclaves sans permission du Gouvernement. Du 5 février 1768. in DURAND-MOLARD, op cit, t. 2, pp. 557-560. 72 seu texto de 1833, e confirma que esta estratégia era utilizada ainda no século XIX, pelos próprios escravos, provavelmente aqueles que já desfrutavam de uma liberdade clandestina e que se colocavam em perigo procurando validar sua situação de liberto. O abolicionista não perde a oportunidade de destilar uma boa ironia em relação ao governo inglês, “sempre filantrópico a sua maneira”, que concedia liberdade aos escravos vindos de colônias estrangeiras:

Vê-se, de fato, todos os dias, os negros de Guadalupe e da Martinica fugirem à Dominica, à Santa Lúcia e até a outras ilhas mais distantes, como Trinidad, todas antigas possessões francesas que os tratados as abandonaram aos ingleses. Estes, ou ainda seu governo, e há uma imensa distinção a ser feita em benefício dos primeiros, seu governo, digo, sempre filantrópico a sua maneira, mantém lá os negros na servidão; mas ele declara livres todos aqueles [escravos] das colônias estrangeiras que aportam em suas terras. Ou é frequente que muitos de nossos escravos lá se refugiem, ou arrisquem naufragar vinte vezes em uma frágil canoa que os leve.31

Um ano antes daquela ordenação que proibiria a regularização das alforrias obtidas em colônias estrangeiras, o governo da Martinica havia promulgado uma medida jurídica que restringia uma outra forma dos habitantes concederem liberdade aos seus escravos. De acordo com a Ordonnance concernant les Legs pies et les Libertés accordées par testament, promulgada em fevereiro de 1767, mesmo que os proprietários legassem em seus testamentos a alforria a um ou a vários escravos, este desejo deveria ser outorgado governo. Até mesmo na vontade dos senhores defuntos a administração colonial se permitia interferir. Os herdeiros ou os executores testamentários deveriam informar a administração colonial, para que as ditas liberdades pudessem ser autorizadas ou não. Quanto àqueles indivíduos libertos por testamentos legados depois de janeiro de 1757, os pedidos de alforria referentes a eles também deveriam ser apresentados ao governo para que fossem autenticados. Se num período de três meses os herdeiros não se apresentassem, os escravos alforriados nos testamentos de seus senhores poderiam apresentar eles mesmos a demanda ao governo32. No

31 “On voit, en effet, tous les jours les noirs de la Guadeloupe et de la Martinique fuir à la Dominique, à Sainte- Lucie et jusqu’à d’autres îles plus élognées, comme la Trinidad, toutes anciennés possessions françaises que les traités ont abandonnés aux Anglais. Ceux-ci, ou plutôt leur gouvernement, et il y a une immense distinction à faire à l’avantage des premiers, leur gouvernement, dis-je, toujours philanthrope à sa manière, maintient là les nègres dans la servitude; mais il déclare libres tous ceux des colonies étrangères qui abordent chez eux. Or il est constant que beaucoup de nos esclaves s’y réfugient, au risque de faire vingt fois naufrage avec le frêle canot qui les porte”. SCHOELCHER, Victor. De l’esclavage des Noirs, et de la législation coloniale. Paris: Paulin Librarie, 1833, p. 42 (BNF – Gallica). 32 Ordonnance de MM. les Général et Intendant, concernant les Legs pies et le Libertés accordées par testament. 11 février 1767, DURAND-MOLARD, op cit, t. 2, pp. 502- 505. 73 entanto, ainda assim, corriam o risco de serem reescravizados pelos herdeiros, com amparo da lei e auxílio do Estado. Apesar da perseguição feita pelo governo àqueles indivíduos que usufruíam uma liberdade irregular e às fortes dificuldades para se conseguir uma alforria legal, podemos observar, na Tabela 1 (acima) e na Tabela 2 (abaixo), que a população de livres de cor e libertos continuou a crescer, mesmo que lentamente, ao longo do século XVIII. Em alguns períodos, as restrições e perseguições aparentemente obtiveram algum resultado, pois observamos uma redução no número total de livres de cor da Martinica: em 1726, havia 1.304 libertos; em 1731, este número caiu para 1.204; e, em 1734, chegou a 810. Ainda assim, os dados da população entre 1715 (logo após o decreto real de 1713) e 1789 (ano da revolução) revelam que o número de livres de cor quintuplicou durante este período. No entanto, é importante observar que enquanto o número de libertos (com alforrias oficiais) aumentou neste período de 1.029 (2,8% da população geral) para 5.235 (5,4% da população geral), a população de escravos cresceu de 26.865 (73,3% da população geral) para 96.158 (82,9% da população geral), um aumento de 69.293 almas escravizadas na Martinica, no período de 74 anos.

Tabela 2 – Porcentagem da população de libertos sobre a população livre e de libertos e de escravos sobre a população total, Martinica, 1700 – 1802 1700 1715 1726 1731 1738 1751 1764 1770 1776 1784 1789 1802 % libertos 7,1 10,5 10,1 9,1 7,9 10,4 13,6 17,4 19,3 25,4 33,3 40,0 na pp. livre % libertos 2,3 2,8 2,4 2,0 1,7 1,7 2,3 3,0 3,3 3,7 5,4 7,1 na pp. geral % escravos 67,2 73,3 76,7 77,5 78,0 83,0 83,5 84,9 83,0 85,2 82,9 82,9 na pp. geral

Em 1802, o número de livres de cor na Martinica era de 6.578. Em meio às guerras e revoluções, somada a preocupação sempre presente na Martinica de controlar o crescimento da população liberta, que representava 40% da população livre — mas apenas 74

7,1% da população geral —, aquele número obviamente desagradava a elite colonial e o novo governo da ilha, tanto quanto as revoltas em São Domingos e em Guadalupe os assombravam. Quando o Código de Napoleão foi promulgado na Martinica, em novembro de 1805, foi publicado um decreto colonial que esclareceu como este conjunto de leis formuladas na metrópole seriam aplicadas na colônia. O governo metropolitano autorizava a administração colonial aplicar o novo Código civil apenas em casos necessários e suspender a execução de todas as disposições que poderiam ser contrárias aos interesses da colônia e prejudicar as convenções locais. Este decreto se referia sobretudo à “distinção de cor”, “indispensável em um país de escravos”. Apesar do novo código civil, “era necessário manter a linha de demarcação que sempre existiu entre a classe dos brancos e aquela dos libertos e seus descendentes”, a qual era regulamentada por várias leis locais, que igualmente deveriam ser mantidas e conservadas33. O texto introdutório deste decreto colonial deixa evidente que existia uma apreensão generalizada com a instabilidade que as revoluções e as guerras geravam nas colônias, mas, acima de tudo, que a questão da alforria, ou ainda, sua restrição, era um ponto crucial do sistema colonial:

Considerando que as desordens inseparáveis da revolução e da guerra poderiam colocar obstáculos à execução completa de várias leis essenciais ao sistema colonial; que é importante consolidar inteiramente este sistema sobre suas antigas bases, reconhecidas como as únicas adequadas aos interesses da Metrópole e à felicidade dos Colonos; considerando que de todas as leis, aquelas concernentes às alforrias devem ser o primeiro objeto de atenção do Governo, que a vigilância a este respeito é particularmente recomendada pelo 1o. Consul, e que convém assegurar, enfim, o estado daqueles que são legalmente livres, e de fazer cessar as incertezas e os alarmes (…)34 [grifo meu]

As constantes estratégias de proprietários e cativos, no sentido de permitir e conseguir que alguns escravos e escravas vivessem como libertos, mesmo que ilegalmente, instigaram o Governo na Martinica a promulgar leis cada vez mais persecutórias, não apenas restringindo o direito do senhor de alforriar seus escravos, mas desestabilizando a “liberdade” dos livres de cor da colônia. Naquele início do século XIX, atormentados pelo espectro da nova república negra do Haiti, o governo e a elite colonial se viam mais ameaçados ainda com o crescimento da classe de livres de cor. O general Donzelot, nomeado governador da

33 Arrêté Colonial, concernant la promulgation du Code Civil, à la Martinique, du 16 brumaire an XIV (7 de novembre 1805), in DURAND-MOLARD, op cit, t. 5, pp. 75-79. 34 DURAND-MOLARD, op cit, t. 5, pp. 650-655. 75

Martinica em 1818, ressalta esta inquietude em relatório enviado ao Ministro da Marinha da França: “ A classe intermediária de libertos, quase toda composta por mulatos, tomou proporções alarmantes em relação ao seu número e riqueza ”35. Assim, ainda nas primeiras décadas do século XIX, tais preocupações levavam a administração colonial a restringir, e mesmo proibir, a concessão de alforrias oficiais. Na década de 1820, sobretudo sob a administração do Governador Donzelot, de acordo com os registros do Estado Civil, praticamente nenhuma alforria foi registrada na Martinica36. Este quadro de baixíssima taxa de manumissão provavelmente se configurou, em parte, devido às orientações expostas em um despacho ministerial de 1824. Nesta correspondência da metrópole ao governo da Martinica, afirmava-se que: “ para diminuir, regularizar e conduzir a um fim útil, quanto ao futuro, as concessões de alforrias” e “para remediar o estado atual das coisas, sobre os inconvenientes que resultam do crescimento da gente de cor” era necessário dificultar ao máximo o acesso às alforrias oficiais, até mesmo suspender as concessões por tempo indeterminado37. Antes mesmo deste despacho ministerial, Pierre Dessalles, importante senhor de escravos da Martinica, comenta em carta a sua mãe, que estava na França, em janeiro de 1823, que “havia sido decidido que nenhuma manumissão” seria outorgada pelo governo. Em outra carta, de maio de 1825, esclarece que as alforrias não eram autorizadas desde o “caso dos mulatos”38, referindo-se a um suposto complô envolvendo “homens livres de cor”, entre eles Cyrille Bissette e Louis Fabien. Isto é, as concessões de alforrias não eram apenas dificultadas, estavam interditadas desde 1823. Se compararmos os dados demográficos da Martinica de 1820 e de 1827, podemos observar que ocorre mesmo uma queda no número da população liberta e livre, provavelmente ocasionada pela relação entre taxa de mortalidade e natalidade e ausência de alforrias.

35 “La classe intermédiaire des affranchis, presque toute composée de mulâtres, a pris des accroissements inquiétants sous le rapport du nombre et de la richesse”, Rapport du 22 juin 1822 au Ministre de la Marine et des Colonies, citado em THÉSÉE, Françoise. Le général Donzelot à la Martinique. Vers la fin de l’Ancien Régime colonial (1818-1826), pp. 7-8. 36 ANOM – État Civil – Martinica, 1819-1829 37 Dépêche ministérielle au gouverneur administratif concernant les concessions d’affranchissements et l’accroissement anormal des gens de couleur, 25 février 1824, documento obtido em “Le droit des traites et des esclavages”, www.eurescl.eu . 38 Carta n. 61, 10/05/1825, in FOSTER, Elborg & FOSTER, Robert (org./trad.). Sugar and Slavery, Family and Race – The letter and diary of Pierre Dessalles, Planter in Martinica, 1808-1856. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1996, p. 77. 76

Tabela 3 – População da Martinica, dividida entre brancos, livres de cor e escravos, 1816 – 1829 Ano População livre População Total escrava geral Brancos Livres de cor Total 1816 9.298 10.298 19.596 75.802 95.398 1819 9.667 9.931 19.598 77.836 97.434 1820 9.718 11.305 21.023 76.949 97.972 1821 9.722 11.518 21.240 77.053 98.293 1822 9.660 11.551 21.211 76.914 98.125 1824 9.661 11.768 21.429 76.269 97.698 1827 9.937 10.786 20.723 81.142 101.865 1829 9.578 12.830 22.408 84.991 107.399

Fonte: ANOM – SG – Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique Martinique, 1826–1828. Observação: a própria fonte não informa os dados sobre todos os anos entre 1816 e 1829

A ingerência do governo metropolitano e da administração colonial na questão da alforria dos escravos nas colônias francesas é uma política que salta aos olhos. O Code Noir (Código Negro), promulgado em 1685, revela como, desde o início da colonização nas Américas e no Caribe, o Estado Francês procurou intervir no governo doméstico dos escravos. Segundo Rafael de Bivar Marquese, este édito de 1685 expressa a “estreita articulação conceitual entre os atributos do governo do Estado Absolutista e os demais governos existentes no reino (governo da família, das almas, das ordens religiosas, etc)”, presente na literatura sobre a arte de governar produzida na Europa ocidental, entre o século XVII e a primeira metade do século XVIII39. Esta legislação desempenhou um papel fundamental na política que visava fortalecer o poder metropolitano sobre as Antilhas, implementada, sobretudo, por Jean Baptiste Colbert, ministro das finanças de Luís XIV. Contudo, de acordo com Marquese, o fortalecimento do poder absolutista do monarca francês “não negava as outras soberanias disseminadas na sociedade, o que era plenamente compatível com as concepções patriarcais de poder correntes na Europa do Antigo Regime”. Nesse sentido, nas colônias, o patriarcalismo reafirmava sua necessária cadeia hierárquica na relação entre senhor e dependentes, neste caso, especialmente os escravos. O senhor comandava com total autonomia seus subordinados, “sem ter seu poder circunscrito por interferências externas”.

39 MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 38. 77

Baseando-se em Yvan Debbasch40, Marquese conclui que, na primeira metade do século XVIII, “o princípio da soberania doméstica foi consagrado pela prática colonial francesa” no governo dos escravos41. No entanto, Marquese se centra exclusivamente na leitura de textos legislativos e de escritores coloniais — senhores de escravos, viajantes e clérigos que passaram pelas colônias francesas. Ademais, não observa a questão complexa da liberdade em meio ao sistema escravista francês. Essa abordagem restringe sua análise sobre política colonial e metropolitana, direito e escravidão, e mesmo sobre as transformações ocorridas no século XVIII, tanto na França como no Caribe. Não há nenhuma dúvida sobre como a escravidão foi violenta em vários sentidos, em todas as sociedades coloniais. Contudo, para refletirmos sobre a complexidade deste processo histórico, é essencial observarmos como os diferentes sujeitos interagiram entre eles e com as leis e a justiça, a ideologia senhorial, as normas e os costumes estabelecidos nos sistemas escravistas. Nas colônias francesas, ainda que o senhor comandasse com soberania sua propriedade, sua família e seus escravos, o estado francês interferiu constantemente, e de forma incisiva, na questão da alforria dos cativos. Sue Peabody, em sua pesquisa sobre o “princípio da liberdade” na França e suas imbricações com a escravidão colonial no Antigo Regime, demonstra que os formuladores da política francesa reconheciam que a escravização de indivíduos era um “mal necessário” nas colônias, há milhares de quilômetros da França, mas não deveria existir em solo metropolitano. A escravidão poderia ser aceita e mesmo encorajada nos espaços coloniais, onde era vista como uma solução necessária para a questão do trabalho e da produção agrícola, e justificada pelo “imperativo missionário cristão”. Porém, desde os estágios iniciais do escravismo colonial francês, o rei, seus ministros e os membros do Conselho de Estado, todos cooperaram para manter a tradição da França como uma “terra livre de escravos”42. Dessa forma, enquanto na França os tribunais e parlamentares procuravam garantir a liberdade dos escravos que pisassem em solo metropolitano, nas colônias, na mesma época, eram promulgadas ordenações que dificultavam o acesso à alforria. Contudo, Peabody demonstra em seus estudos que, tanto na metrópole como nas colônias, mulheres e homens

40 Veja DEBBASCH, Yvan, “Au coeur du ‘gouvernement des esclaves’: la souveraineté domestique aux Antilles Françaises, XVIIe-XVIIIe siècles”, Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer, LXXII, n. 266, pp. 32-54, 1985. 41 MARQUESE, op cit, p. 39. 42 PEABODY, Sue. “There are no slaves in France”. The political culture of race and slavery in the Ancien Régime. New York: Oxford University Press, 1996, pp. 12-15. 78 escravizados procuraram a justiça, com o auxílio de advogados e outros sujeitos livres, para questionar sua condição, além de articularem diferentes recursos que pudessem garantir suas liberdades. Em diferentes espaços coloniais, observa-se que a conquista da liberdade pelos escravos era uma experiência de fato complexa, que os levava a buscarem estratégias que correspondessem ao contexto social e cultural em que viviam. Algumas abordagens historiográficas sustentam que a escravidão de plantations nas Américas fizeram da alforria um instrumento da ideologia senhorial, sendo o principal recurso dos senhores na efetivação da dominação escravista. A alforria teria como objetivo destruir a cumplicidade e a solidariedade entre os escravos, pois, a promessa de uma futura manumissão poderia abalar as alianças implícitas contra a disciplina ou o senhor. Nesse sentido, a alforria também era considerada um meio de conduzir serenamente a produção ou a senzala. Todavia, outras abordagens historiográficas, observando especialmente questões em torno de cultura, identidade e agência subalterna, argumentam que as iniciativas e ações dos indivíduos escravizados, libertos e livres de cor foram fundamentais para minar a legitimidade dos sistemas escravistas nas Américas e no Caribe. Neste sentido, Robert Slenes afirma que os estudos sobre alforria são essenciais para que se compreenda as estratégias e as identidades construídas pelos escravos e libertos43. Poderíamos supor que, por um lado, as restrições à alforria eram bastante convenientes para os grandes proprietários das habitations cafeeiras ou açucareiras das colônias francesas. Num contexto onde o governo atribuía a si o poder de outorgar o estatuto de liberto oficial, os senhores que não necessariamente tinham a intenção de libertar seus escravos, mas apenas estabelecer um espaço de negociação, conceder uma manumissão sem “poder” proporcionar ele mesmo uma carta de alforria oficial era uma forma excelente de conduzir a “paz” nos ateliers44, concedendo uma liberdade precária aos escravos e mantendo estreitas relações de dependência. Por outro lado, veremos adiante que as mulheres e homens escravizados também encontravam meios de usufruir dessas liberdades clandestinas e limitadas. Criavam seus espaços de economia interna, de insubordinação, redes de

43 SLENES, Robert, “Brazil” (cap. 5), in PAQUETTE, Robert & SMITH, Mark. Slavery in the Americas. Oxford University Press, 2010, pp. 112-115. 44 Atelier era o termo utilizado nas colônias francesas para se referir ao conjunto de escravos da lavoura de uma habitation. 79 solidariedade, assim como estruturavam e mantinham relações entre famílias escravas e de libertos, ações que, em conjunto, fortaleciam sua autonomia. Como afirma Sue Peabody, as leis promulgadas para restringir a concessão de alforrias nas Antilhas Francesas indicam que estas regulamentações elaboradas pelos administradores coloniais nem sempre refletiam os interesses de todos os membros da classe de proprietários de escravos45. Dessa forma, este contexto exposto até aqui nos leva a questionar quem eram estes “senhores” os quais o governo pretendia coibir seu poder e direito de alforriar seus escravos. Diante das várias punições enunciadas em ordenações publicadas durante todo o século XVIII, quais senhores se arriscariam pela liberdade de seus escravos e por quê? Seriam eles grandes proprietários ou pequenos proprietários? Seriam eles brancos ou “livres de cor”, homens ou mulheres? Procuramos responder estas questões ao logo desta tese, no entanto, existem algumas hipóteses sobre as quais pretendemos centrar o exame deste fenômeno histórico. Em sua pesquisa sobre a escravidão em São Domingos (Haiti) no final do século XVIII, antes da Revolução Francesa, a partir de pesquisa realizada na documentação notarial, Jean Hébrard conclui que um grande número de registros de alforria se assemelhavam em ao menos três pontos: a maioria se referia mais frequentemente a escravos idosos do que a escravos jovens; as alforrias eram acordadas mais frequentemente por proprietários considerados como “gens de couleur” (pessoas de cor) do que por colonos brancos; não era raro que o escravo fosse comprado previamente pelo senhor que o alforriaria, e neste caso era bastante frequente que o escravo fosse um parente próximo do novo proprietário46. As duas últimas conclusões apontam indícios que também foram observadas na análise das alforrias outorgadas pelo governo da Martinica no século XIX e que será exposta ao longo desta tese. Para tanto, é necessária uma abordagem acerca do contexto vivido pela gens de couleur (escravos, mas principalmente libertos) durante o século XVIII até o início do século XIX, sobretudo suas experiências a partir das restrições jurídicas e discriminações baseadas nos preconceitos da cor da pele e da mestiçagem.

45 PEABODY, op cit (2005), p. 61. 46 HÉBRARD, Jean Michel, “Affranchissements par des affranchis à Saint-Domingue (1773-1793)”, (mimeo). Comunicação realizada no seminário internacional: “Condições ambíguas: lei, escravidão e liberdade no mundo atlântico”, organização CECULT, IFCH - UNICAMP (Campinas, Brasil), Novembre 2009, p. 6. Veja também SCOTT, Rebecca & HÉBRARD, Jean Michel. Freedom papers : an Atlantic odyssey in the age of emancipation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012. 80

CAPÍTULO 2 – LIVRES DE COR NA MARTINICA: QUESTÕES EM TORNO DE RAÇA E GÊNERO

“A associação do estatuto mais infame com a cor da epiderme é uma construção moderna. (…) Uma das maiores mudanças da modernidade ocidental é a “racialização” da escravidão”.1

De acordo com Pierre Boule, o termo “raça” foi introduzido na França no final do século XV, e até ao menos o século XVII tinha unicamente uma conotação de linhagem nobiliárquica2, sem que fosse associado a características físicas ou morais. Uma transformação marcante ocorreu ao longo da segunda metade do século XVII, associada ao desenvolvimento das ciências naturais e a uma ampliação do conhecimento dos europeus sobre o mundo fora da Europa. Contudo, foi a introdução da produção açucareira no Caribe e sua associação com a escravidão dos negros africanos que transformou estas ideias em uma ideologia racialista, permitindo a dominação de um grupo humano por um outro, baseando-se em uma suposta superioridade moral e intelectual, a qual seria refletida no físico por distinções naturais. Das colônias, esta ideologia se propagaria no seio da elite francesa metropolitana3. Nas instruções apresentadas pelo Rei da França em 1777, com intuito de orientar os novos administradores da Martinica, a população da colônia é dividida em dois grupos definidos pela cor da pele: os blancs (brancos) e as gens de couleur (pessoas de cor). No texto, os brancos são definidos como europeus ou descendentes de europeus estabelecidos

1 “L’association du statut le plus infamant avec la couleur de l’épiderme est une construction moderne. (…) Un des chagements majeurs de la modernité occidentale porte sur la “racialisation” de l’esclavage.” COTTIAS, Myriam; STELLA, Alessandro; VINCENT, Bernard (orgs.). Esclavage et dépendances serviles: histoire comparée. Paris: L’Harmattan, 2006, p. 14. 2 “Le terme “race” semble être entré dans l’usage en France vers la fin du XVe siècle, probablement parmi les nombreux emprunts fait à cette époque à l’italien (…). Utilisé en premier lieu pour définir les qualités recherchées dans la reproduction d’animaux utilisés pour la chasse ou la guerre, le terme fut rapidement appliqué aux humains censés posséder des qualités héritées tout aussi précieuses. Ainsi, on appliqua le terme au roi et à ses ascendants, avec lesquels il partageait les attributs particuliers de la monarchie (…). Dès le milieu du XVIe siècle, l’usage était étendu par analogie aux vieilles familles de la noblesse – la “noblesse de race” – la distinguant ainsi des nouveaux nobles et du “vulgaire””. BOULLE, Pierre H., “La construction du concept de race dans la France d’Ancien Régime”, Outre-mers, tomo 89, n. 336-337, 2o. Semestre 2002, pp. 158. 3 BOULLE, op cit, pp. 155-175. 81 anteriormente nas possessões francesas4; ambos seriam mencionados em outras fontes também como colons (colonos), sobretudo os proprietários de terras e escravos, e aqueles nascidos nas colônias seriam comumente referidos como creoles (crioulos)5. Quanto à outra parte da população, as “pessoas de cor”:

As pessoas de cor são livres ou escravas. Os livres são libertos ou descendentes de libertos. A qualquer distância que estejam de sua origem, eles sempre conservam a mácula de sua escravidão e são declarados incapazes de [exercer] todas as funções públicas; mesmo os senhores que descendem, em qualquer grau que seja, de uma mulher de cor, não podem usufruir a prerrogativa da nobreza. Esta lei é dura, mas sábia e necessária num país onde há quinze escravos para um branco; não saberíamos colocar distância suficiente entre as duas espécies; não saberíamos incutir nos negros respeito suficiente àqueles que os escravizam. Esta distinção, rigorosamente observada mesmo após a liberdade, é o principal elo de subordinação do escravo, pela opinião que dela resulta, de que sua cor está fadada à servidão e que nada pode torná-lo igual a seu senhor. A administração deve ter cuidado para manter severamente essa distância e esse respeito.6

De acordo com Jessica Pierre-Louis, o “preconceito de cor” é um elemento determinante para se compreender a sociedade martinicana do Antigo Regime, pois ele se exprime tanto na esfera social como nas esferas política e jurídica7. O texto acima demonstra que a elite branca não se apoiava em justificativas científicas para estabelecer uma hierarquia racial, como as teorias racistas que se desenvolveriam a partir do século XIX8, mas revela que tinham claramente consciência que utilizavam uma ferramenta política e jurídica. A boa ordem colonial e a segurança dos brancos, numericamente inferiores aos escravos e livres de cor, eram argumentos suficientes para manter uma linha de demarcação entre brancos e negros. Assim, a hierarquização da população em castas, classes ou categorias de cor era uma ferramenta de controle social na sociedade colonial, uma forma de “racismo funcional”,

4 “Mémoire du roi, pour servir d’Instructions au Sieur Marquis de Bouille, Marechal de Camp, Gouverneur de la Martinique, et au Sieur Président de Tascher, Intendant de la même colonie”, 7 de março de 1777, in DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, tomo 3, pp. 294. Esta fonte será referida em outros momentos como “Mémoire du roi”, 7 de março de 1777. 5 De acordo com Rebecca Schloss, diferentemente do Caribe britânico e espanhol, durante o século XVIII e até a primeira metade do século XIX, nas Antilhas Francesas o termo “crioulo” (creole) sempre designou um indivíduo branco nascido nas colônias. SCHLOSS, Sweet Liberty, nota 6, p. 237. 6 “Mémoire du roi”, 7 de março de 1777. DURAND-MOLARD, op cit, t. 3, pp. 295. 7 PIERRE-LOUIS, Jessica. Les libres de couleur face au préjuge: franchir la barrière à la Martinique aux XVIIe-XVIIIe siècles. Tese de Doutorado em História (Orientador: Érick Noël). Martinica: Université des Antilles et de la Guyane, 20 de junho de 2015, p. 28. 8 Sobre as teorias científicas que tentaram justificar o racismo e mesmo a escravidão na América no século XIX, ver sobretudo o capítulo “Negros e índios como espécies separadas e inferiores”, in GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp. 15-62. 82 segundo Jean-Luc Bonniol, na medida que ele “sobrepôs a relação econômica de exploração” e serviu essencialmente para justificá-la9. Nesse sentido, de acordo com Pierre-Louis, a noção de “raça” — mencionada nas fontes do século XVIII, e mais frequentemente nas fontes do século XIX, para distinguir sujeitos de origem europeia e africana ou ameríndia — pode ser utilizada para observar o fenômeno de hierarquização e preconceito de cor, desde que aos indivíduos é “atribuído um estatuto devido à sua cor” e, assim, “uma aparência física considerada como imutável”, “necessariamente transmitida aos descendentes”. Pierre-Louis, ao estudar várias genealogias de pessoas “livres de cor” da Martinica no século XVIII e as experiências de algumas famílias dessa classe que tentaram ultrapassar a “barreira de cor”, observou que “a cor não se apaga” — quando se trata da discriminação que essa ideia carrega. Mesmo quando as sucessivas mestiçagens permitiam que a pigmentação mais escura não fosse mais inscrita sobre a pele, na Martinica ela permaneceria marcada pelo recurso às genealogias daquelas famílias. Assim sendo, “raça” era uma construção social aceita, uma representação mental importante10 para se compreender o funcionamento da sociedade martinicana do século XVIII. Dessa forma, de acordo com a autora, o preconceito de cor é também uma forma de racismo, induzido pelo suporte jurídico e institucional na sociedade martinicana, mais particularmente a partir da segunda metade do século XVIII11. Na sociedade colonial, foi a existência de gens de couler libre (pessoas de cor livres) que suscitou as primeiras indagações sobre o amálgama entre o estatuto jurídico social e grupos étnicos12 — branco senhor e livre, negro escravo. De acordo com vários historiadores que estudam as colônias francesas caribenhas, aquela hierarquização social baseada na cor da pele colocava os brancos no topo da escala social, os negros escravizados na base, e os livres de cor passaram a ocupar um lugar entre estas duas classes. Dessa forma, a classe dos livres de cor é representada como uma classe “intermediária”, tanto nas fontes como nas abordagens historiográficas. Laurent Dubois, em sua obra sobre as revoltas escravas em Guadalupe entre 1787 e 1804, afirma que a categoria “intermediária” entre brancos livres e negros escravos era

9 BONNIOL, Jean-Luc. La couleur comme maléfice: une illustration créole de la généalogie des “blancs” et des “noirs”. Paris: Albin Michel, 1992, p. 100. 10 Pierre-Louis se baseia na noção de “raça” definida por Jean-Luc Bonniol ao tratar a questão do “racismo funcional” na sociedade colonial francesa do Antigo Regime, quando ele afirma que: La “race” appartient (...) à l’ordre symbolique, mais, en tant que dispositif symbolique, elle est capable de générer des groupes sociaux réels, ou des catégories, auxquels on peut accoler l’adjectif “racial”. BONNIOL, Jean-Luc, “ La ‘race’, inanité biologique, mais réalité symbolique efficace ”, Mots, vol. 33, n. 1, 1992, p. 189, citado em PIERRE-LOUIS, op cit, p. 32. 11 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 33. 12 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 10. 83 composta por aqueles afrodescendentes que eram libertos, entre os quais um tanto tinha mesmo algum ancestral europeu. Embora sua liberdade lhes garantisse muitos dos direitos negados aos escravos, eram também sujeitos a um conjunto de leis discriminatórias. No entanto, de acordo com o autor, ocupavam um lugar paradoxal na estrutura colonial e escravista. Tornando-se pequenos proprietários, por vezes possuindo porções de terras em terrenos montanhosos nas Antilhas Francesas, auxiliavam a manter a ordem social escravista, além de exercer a função de policiamento e contenção da população escravizada, sobretudo por sua atuação nas milícias, ainda que ao mesmo tempo alforriassem e dessem trabalho aos escravos13. Para Christine Chivallon, “submetidos a vexações e humilhações por parte da plantocracia branca” que os colocava numa posição subalterna, esta população de livres e libertos ocupava uma posição “intermediária ambígua”, apartada da massa de escravos e calcando seus comportamentos sobre aqueles da classe dos colonos brancos14. Moreau de Saint-Méry, em sua obra sobre São Domingos, quando esta era ainda a principal colônia francesa no Caribe no século XVIII, refere-se a esta “classe intermediária entre o senhor e o escravo” como “affranchis” (libertos):

Os libertos são mais universalmente conhecidos sob o termo Pessoas de cor ou sang-mêlés [mestiços], embora esta denominação, tomada com exatidão, também designe os negros escravos. Desde que a Colônia passou a ter escravos, não demorou muito para que tivesse libertos, e várias causas contribuíram para formar esta classe intermediária entre o senhor e o escravo.15

Diferentes expressões são encontradas nos trabalhos de pesquisa ou nas fontes para se referir a este grupo: “libres de couleur” (livres de cor), “gens de couleur libres” (pessoas de cor livres), “affranchis” (libertos), “mulâtres” (mulatos), “sang-mêlés” (mestiços), “gens de couleur” (pessoas de cor), “hommes de couleur” (homens de cor), ou apenas “libres” (livres). No entanto, alguns autores fazem uma distinção, afirmando que o termo “gens de couleur” era utilizado para designar mulatos e mestiços em geral (escravos ou livres), e que não se poderia confundir com os “libres de couleur” (livres de cor)16. Contudo, as fontes nem

13 DUBOIS, Laurent. A colony of citizens: Revolution and Slave Emancipation in the French Caribbean, 1787- 1804. The University of North Carolina Press, 2004, pp. 54-57. 14 CHIVALLON, Christine. L’esclavage, du souvenir à la mémoire. Contribution à une anthropologie de la Caraïbe. Paris: Éditions Karthala, 2012, pp. 89-90. 15 MOREAU DE SAINT-MÉRY, Médéric Louis Élie. Description topographique, physique, civile, politique et historique de la partie française de l’Isle Saint-Domingue. Tomo premier. Paris: Dupont, 1797, p. 68 (BNF – Gallica). 16 BUTEL, Paul. Histoire des Antilles françaises: XVIIe-XXe siècle. Paris: Perrin, 2007, p. 203. 84 sempre são claras quanto a esta distinção, como demonstra o documento de 1777 citado anteriormente. As pesquisas mais recentes sobre as colônias francesas do Caribe tem utilizado o termo “livres de cor” (libres de couleur) para tratar a história desse grupo, pois ele evita toda a ambiguidade de sentido que possa ser provocada pelas expressões encontradas nas fontes documentais. Nesse sentido, sob esta orientação — influenciada pela historiografia francesa, sobretudo franco-antilhana17 —, optou-se utilizar esta designação neste trabalho de pesquisa para se referir ao grupo de pessoas africanas ou afrodescendentes libertas ou nascidas livres, ainda que se utilize em alguns momentos o termo “gens de couleur libre” ou “gens de couleur”, em francês, quando pretende-se destacar a expressão utilizada na fonte. Este capítulo trata, sobretudo, as abordagens historiográficas sobre os livres de cor do Caribe Francês e fontes legislativas que definiram barreiras discriminatórias por meio de limites sociais, econômicos e culturais impostos aos afrodescendentes libertos nas Antilhas Francesas, principalmente ao longo do século XVIII e início do XIX. Porém, as questões abordadas neste texto concernem também às “pessoas de cor” escravizadas, africanas ou afrodescendentes. Foi necessária uma análise de longa duração, passando do final do século XVII até as décadas de 1830 e 1840. Ao que tudo indica, a racialização da escravidão induziu o desenvolvimento de hierarquias raciais e do preconceito de cor que se estabeleceram no Caribe Francês neste período. Acerca dos “livres de cor”, neste capítulo foi abordado essencialmente o contexto que vivenciaram as classificações de mestiçagem e os limites jurídicos impostos a esta classe, e que tocam principalmente questões em torno de raça e gênero. Nas colônias francesas, como em outros espaços escravistas da América e do Caribe18, toda uma terminologia desenvolvida ao longo do século XVIII permitiu distinguir e hierarquizar os indivíduos em função de seu fenótipo e mais particularmente em função da cor da pele. Desse modo, a menção a nuances da epiderme dos livres de cor passaram a ser feitas em diferentes documentos produzidos nas Antilhas Francesas, especialmente para distingui- los da classe dos brancos. Estes nunca são qualificados quanto a cor explicitamente e

17 Dominique Rogers, Jessica Pierre-Louis, Abel Alexis Louis, Frédéric Régent, Jean-François Niort são alguns destes historiadores franco-antilhanos cujas pesquisas recentes utilizam o termo “libres de couleur” (livres de cor). Referências às suas obras podem ser encontradas em outras notas deste texto. 18 Iacy Mata, ao abordar questões sobre a “comunidade de cor e hierarquias raciais” em Cuba no século XIX, demonstra que nesta colônia espanhola também generalizou-se o uso de “qualificações baseadas no critério da cor”, como “mestiço, moreno (negro), trigueño (moreno), pardo, chino, mulato”. O termo “negro”, que também operava como sinônimo de escravo, era usado para descrever as pessoas de pele mais escura. MATA, Iacy Mata. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881). Campinas: Ed. da Unicamp, 2015, pp. 40-41. 85 individualmente nos documentos paroquiais ou notariais, a não ser em casos excepcionais, ou quando a identidade do indivíduo é desconhecida, por exemplo “um branco” para designar um pai desconhecido — o que ocorre no século XVIII, mas dificilmente no século XIX19. De acordo com Abel Louis, desde o momento da existência do “mestiço”, como um indivíduo tendo um ancestral branco e um não branco, as pessoas afrodescendentes passaram a ser objeto de um “delírio classificatório” na Martinica, e também nas outras colônias francesas, exprimindo uma “linha de cor”20, definida por Moreau de Saint-Méry21 como uma “linha prolongada até o infinito”, quando trata das classificações de mestiçagem e nuances de cor da pele supostamente utilizadas em São Domingos. Este jurista e naturalista, nascido na Martinica, expressa a preocupação das elites coloniais francesas em manter uma discriminação pautada na cor da pele, mas também em outras características, tocando principalmente os livres de cor, para que se pudesse sempre identificar a “mistura africana” e, assim, mantê-los separados dos brancos:

É verdade que para apoiar a opinião, que, não admitindo a possibilidade de desaparecimento total do vestígio da mistura, deseja, portanto, que uma linha prolongada até o infinito separe sempre a descendência branca da outra, afirma-se que a nuance que foi enfraquecida por duas ou três gerações se aviva e revela a mistura Africana; e que se não é na cor que o indício se encontra, ele está no conjunto de feições, em um nariz achatado, em lábios grossos, que mostram muito a origem.22

19 COUSSEAU, Vincent. Population et anthroponymie em Martinique du XVIIe siècle à la première moitié du XIXe siècle: Étude d’une société coloniale à travers son système de dénomination personnel. Tese de Doutorado - História. Martinica: Université des Antilles et de la Guyane, 2009, pp. 75-76. 20 LOUIS, Abel Alexis. Les libres de couleur en Martinique, des origines à 1815: l’entre-deux d’un groupe social dans la tourment coloniale. Tese de Doutorado em História. Orientação: Lucien René Abenon e Danielle Bégot. Schoelcher (Martinica): Université des Antilles et de la Guyane, 2011, p. 29. 21 Médéric Louis Élie Moreau de Saint-Méry nasceu na Martinica em 13 de janeiro de 1750. Sua família era originária de Poitou (França), e “ ocupou os primeiros lugares da magistratura da colônia”. Estudou ciências físicas e naturais na França, depois seguiu sua formação no direito. Advogado do Parlamento de Paris em 1771, ele partiu para São Domingos em 1776, onde se tornou membro do Conselho Superior da colônia. De volta à França durante a revolução francesa, ele foi eleito deputado pela Martinica na Assembléia Constituinte, participando dos debates sobre a questão colonial. Deputado escravagista, ele se opôs às reinvindicações dos livres de cor de São Domingos, que demandavam direitos civis e políticos. Depois de 1792, “perseguido pelos agentes de Robespierre”, ele deixou a França, e como a revolução já tinha tomado conta das colônias, ele partiu para os Estados Unidos. Ainda retornou à França no início do século XIX e faleceu em 1819. Sua obra sobre São Domingos, publicada em 1797, traduz a preocupação dos colonos escravistas sobre a discriminação de cor, descrevendo uma hierarquização racial de mais de cem combinações possíveis de mestiçagem na colônia, entre brancos, negros e indígenas. Veja SILVESTRE (Sécrétaire perpétuel de la Société Royale d’Agriculture). Notice biographique sur M. Moreau de Saint- Méry, lue à la séance publique de la Société royale d’agriculture, le 18 avril 1819. Paris: Imprimerie de Madame Huzard, 1819 (BNF – Gallica); https://fr.wikipedia.org/. 22 MOREAU DE SAINT-MÉRY, op cit, pp. 86-87. 86

Nas fontes referentes à Martinica, é possível observar esta “linha de cor” expressa nas seguintes designações de mestiçagem e de nuances da cor da pele: “nègre” / “négresse” (negro / negra); “cabre” ou “câpre” / “câpresse”; “grif” / “griffe”; “mulâtre” / “mulâtresse” (mulato / mulata); “mestif” ou “métis” / “métisse” (mestiço / mestiça); “carteron” ou “quarteron” / “quarteronne” (quarteirão / quarteirona); “mamelouque” ou “mamelouk” (mameluco)23. Pierre-Louis ainda indica que para os ameríndios, no século XVIII, também eram aplicadas várias designações, como “sauvages” (selvagens), “indiens” (índios), “caraïbes” (caraíbas) e “brésiliens” (brasileiros). Este último termo é bastante curioso para os pesquisadores brasileiros, no entanto, a historiografia francófona não apresenta explicações sobre sua origem24. Entre as colônias francesas, “brésilien” ou “brésilienne” são classificações utilizadas apenas na Martinica no século XVIII25, e não há vestígios de uso do termo no século XIX. Vincent Cousseau afirma que uma criança de uma mãe indígena e um pai branco ou de cor poderia excepcionalmente ser qualificada como “brésilien(ne)” ou “métis(se)”26. O termo “nègre” (negro) foi tanto utilizado para caracterizar um fenótipo, assim como sinônimo de “escravo”, desde o século XVII até o século XIX. Dessa forma, talvez aplicado no mesmo sentido de “preto” na América Portuguesa e no Brasil, até o século XIX27. Em algumas fontes,

23 Quanto ao termo “cabre” ou “câpre”, nas fontes que pesquisei para o século XIX, encontrei apenas o termo “câpre”; “cabre” aparece nas fontes do século XVIII, de acordo com historiadores que pesquisam o período. O mesmo se aplica para “mestif” ou “métis”: nas fontes pesquisadas para o século XIX encontrei apenas “métis” (mestiço) ou “métisse” (mestiça). Optei por não traduzir os termos os quais não tenho certeza se haveria um similar no português do Brasil escravista. Suponho que “câpre”, termo que era grafado como “câbre” no século XVIII, talvez tenha relação com o termo “cabra”, utilizado para designar indivíduos de cor ou mestiços no Brasil, assim como pardo e mulato, nos séculos XVIII e XIX; no entanto, como não tenho evidências para fazer tal relação com precisão, optei utilizar o termo em francês, câpre, grafia mais utilizada no século XIX na Martinica. A partir deste momento utilizarei os termos em português, daqueles que indico a tradução. Os outros, não traduzidos, serão indicados em itálico. 24 O padre francês Jean-Baptiste Dutertre, que passou pelo Caribe francês na década de 1640, dedica um capítulo aos “escravos brasileiros” (esclaves brasiliens) em um dos tomos de sua obra sobre as Antilhas Francesas: “La grande communication que les brasiliens [sic] ont avec les Portugais, leur éveille d’une telle manière l’esprit, qu’ils n’ont rien de sauvage que le nom et l’extérior (…) L’on distingue aisément ceux qui ont été convertis à la foi par les Portugais, d’avec ceux qui ont demeuré au Récif avec les Holandais (...)”. São cinco páginas nas quais Dutertre descreve “elogios” à devoção e aos hábitos destes “selvagens”. Aparentemente, da forma como descreve, estes “brasileiros” seriam indígenas levados à Martinica por portugueses e holandeses. DUTERTRE, Jean-Baptiste. Histoire générale des Antilles habitées par les françois. Tomo II. Paris: Chez Thomas Iolly, 1667, pp. 488-492 (BNF – Gallica). O sobrenome de Dutertre é também grafado como Du Tertre. 25 Moreau de Saint-Méry não faz nenhuma menção ao termo “brésilien” em sua extensa listagem de termos que designavam as classificações de mestiçagem em São Domingos. MOREAU DE SAINT-MÉRY, op cit, pp. 71-75. 26 COUSSEAU, op cit, p. 75. 27 MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste Escravista, Brasil (Brasil, século XIX). 3a. edição revisada. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 42; LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letas, 2007, p. 135. 87 inclusive documentos produzidos tanto pelo governo colonial como o metropolitano no século XIX, encontramos também o termo “noir” (negro) como sinônimo de escravo nos últimos anos de escravidão nas colônias francesas. Depois dos termos “nègre” e “mulâtre”, muito utilizados na primeira metade do século XVIII, as outras designações surgiram ao longo deste século, nos registros notariais e paroquiais. De acordo com Abel Louis, em suas pesquisas na documentação paroquial e notarial da Martinica, o primeiro câpre — descendente de uma pessoa considerada negra e outra mulata — aparece em um registro de 1730. Os termos carteron28 e mamelouk surgem a partir de 1750, quando se intensifica a política segregacionista impulsionada tanto pela metrópole como pela administração colonial, mas seu uso se tornou mais recorrente nos registros paroquiais depois de 177029. Jessica Pierre-Louis observa que estas distinções foram muito mais uma questão local, pois, na metrópole, nem o rei nem o Conselho de Estado se preocupavam com tais “precisões”30. Uma ordenação do governador geral e do intendente da Martinica de 1761, sobre os libertos (affranchis), permite observar a amplitude que tomou a hierarquização fundada sobre a pigmentação da pele e do grau de mestiçagem no século XVIII na ilha. É nesta lei que se pode ler pela primeira vez em um texto jurídico os termos “mamelouques, métis, mulâtres, nègres et généralement tous gens de couler” (mamelucos, mestiços, mulatos, negros e em geral toda gente de cor). Esta lei tinha o intuito de ressaltar novamente aquelas restrições à alforria, estabelecidas em ordenações anteriores, mas, também, impor aos libertos e livres de cor uma condição de instabilidade diante da liberdade, pois os convocava a apresentarem seus títulos de alforria oficiais para que fossem verificados31.

28 De acordo com Abel Louis, a palavra “carteron” – que no século XIX é grafado mais comumente como “quarteron” – foi traduzido diretamente do termo espanhol “cuarterón”, que visava classificar a presença de um quarto de sangue proveniente de um ascendente negro, e três quartos de ascendentes brancos. Na Martinica, carteron designava um descendente de um branco com uma pessoa definida como mestiça, diferentemente da forma como era utilizado na Nova Espanha (atual México) ou na parte francesa de São Domingos, onde o termo classificava o descendente da relação entre uma pessoa branca e outra considerada mulata. LOUIS, op cit, pp. 29-30. 29 LOUIS, op cit, p. 29. 30 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 193. 31 A Ordonnance de MM. les Général et Intendant, concernant les Affrancis, promulgada na Martinica em 1 de setembro de 1761, afirma no artigo primeiro: “Tous les Mamelouques, Métis, Mulâtres, Nègres, et généralement tous gens de couleur de l’un et l’autre sexe, qui se prétend libres et vivent en conséquence comme libres, seront tenus dans trois mois, à compter de la publication de notre présente Ordonnance, de remettre à l’Intendance de St.-Pierre les titres primordiaux de leur affranchissement entre les mains de M. Antoine-Toussaint Perdrigeon, avocat en Parlement, que nous nommons et établissons Commissaire à cet effet, pour sur son rapport, et sur l’examen qui en sera par nous fait, lesdits titres être par nous confirmés ou rejettés suivant l’exigence des cas”. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 2, n. 241, p. 107. 88

Outras ordenações promulgadas pela administração colonial da Martinica em 1773 e 1774, determinaram, então, que os párocos, notários, juízes e outros oficiais responsáveis por qualquer documentação produzida na ilha fizessem menção à “qualidade de pessoas de cor” nos registros referentes aos livres de cor. A ordenação de 6 de janeiro de 1773 proibiu as pessoas livres de cor de usarem os nomes de família dos brancos estabelecidos na ilha, acrescentando um elemento a mais ao preconceito de cor que se fortalecia naquele período nas colônias francesas32. Em São Domingos, em julho do mesmo ano, um “regulamento dos administradores” daquela colônia seguiria os mesmos passos da Martinica, e prescreveu, ainda, que as mães de cor não casadas dessem aos seus filhos, além do nome de batismo, “um sobrenome tirado do idioma africano ou de seu ofício ou cor”, o qual não poderia jamais ser um patronímico de uma família branca da Colônia, sob a pena de pagar uma multa de 1000 libras para a família cujo sobrenome tivesse sido “usurpado”33. Em 4 de março de 1774, o governo colonial da Martinica reforçaria a lei de 1773, determinando que os livres de cor que já possuíam sobrenomes de famílias de brancos estabelecidos ou conhecidos na ilha deveriam deixar de usar tais patronímicos e escolher um outro. Estabelecia regras de como essas pessoas e os oficiais responsáveis deveriam proceder para a mudança do sobrenome, e novamente ressaltava que em todos os documentos registrados por oficiais públicos e párocos, concernentes aos livres de cor, deveriam declarar a “qualificação de pessoa de cor”34. Estas medidas jurídicas das ordenações locais de 1773 e 1774, quanto à hierarquia racial que se impunha nas colônias francesas, foram afinadas por uma ordenação de 1778, quando se tornou necessário designar “o grau da cor” das crianças de pais libertos. Esta lei determinava, então, que os padres deveriam especificar nos registros de batismo das “pessoas

32 A Ordonnance de MM. les Général et Intendant, faisant défenses aux gens de couleur de porter les noms des blancs, promulgada na Martinica em 6 de janeiro de 1773, afirma em seu artigo primeiro: “Nous faisons très-expresses inhibitions et défenses à tous gens de couleur libres, de l’un et de l’autre sexe, de porter à l’avenir le nom d’aucunes personnes blanches établies en ces îles, de se faire appeler par lesdits noms, ni de les prendre dans aucun des actes qu’ils passeront, sous quelque prétexte que ce puisse être, à peine, contre les contrevenants, de 500 livres d’amende pour la primière foi, de 1000 livres en cas de récidive, même de plus griève peine si le cas y échet”. O artigo 2 determinava que os párocos e oficiais da colônias, além de observarem se os livres de cor não usavam sobrenomes dos brancos, indicassem ainda nos documentos a “qualidade de pessoa de cor”, quando este fosse o caso do indivíduo que concernia o documento. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 3, p. 151-153. 33 NIORT, Jean-François, “La condition des libres de couleur aux îles du vent (XVIIe-XIXe siècles): ressources et limites d’un système ségrégationniste”, in Bulletin de la Société de la Guadeloupe (“Les libres de couleur dans la société coloniale, ou la ségrégation à l’oeuvre (XVIIe-XIXe siècles)”), n. 131, janvier- avril 2002, p. 9. 34 Ordonnance concernant les gens de couleur libres qui prennent les noms des Blancs, leurs anciens maîtres ou protecteurs, Martinica, 4 de março de 1774. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 3, n. 484, pp. 168-171. 89 de cor livres seu status e o grau da cor, com seu sobrenome, desde que este não seja aquele dos senhores que os tenham alforriado”35. No entanto, na prática, os termos para designar o “grau da cor” foram utilizados com um rigor e uma regularidade bastante relativos. De acordo com Pierre-Louis, apesar desta ordenação de 1778, a “cor”, sem precisões específicas, foi designada muito comumente nos registros paroquiais e notariais também pelas expressões “homme de couleur” (homem de cor), “femme de couleur” (mulher de cor), “fille de couleur” (moça de cor), “enfant de couleur” (criança de cor). E tanto estas expressões como aquelas classificações de mestiçagem e nuances da cor da pele se tornaram mais regulares na Martinica à medida que o “combate político da ‘aristocracia da epiderme’ se intensificou”36 contra os livres de cor. Nos registros paroquiais observados por Pierre-Louis, é sobretudo a partir de 1792 que o emprego da expressão “de couleur”(de cor) é generalizada. Alguns termos nunca foram empregados em textos de leis, ordenações ou decretos, mas são utilizados nos registros notariais: “grif” é um deles, mas esta palavra é pouco empregada na Martinica, tanto no século XVIII como no século XIX. No entanto, é bastante conhecida por sua utilização em São Domingos, como aparece na classificação apresentada por Moreau de Saint-Méry. O termo “sang-mêlé” também é empregado de forma marginal na Martinica, diferentemente da frequência que era utilizado em São Domingos no século XVIII37. De acordo com as pesquisas de Abel Louis nos registros paroquiais do arrondissement de Saint-Pierre (Martinica, século XVIII), os termos comumente utilizados que se referiam às designações de cor da pele e de mestiçagem tinham esquematicamente o seguinte significado: mulato, descendente de negro e branco; câpre, descendente de mulato e negro; mestiço, descendente de mulato e branco; quarteron, descendente de mestiço e branco; mamelouc, descendente de branco e quarteron38. Por meio da pesquisa de Jessica Pierre- Louis, encontramos ainda o significado do termo grif, descendente de câpre e negro. De acordo com essa historiadora, as fontes paroquiais, onde se encontram registros de

35 Ordonnance de MM. les Général et Intendant, concernant l’administration des Fabriques de Paroisses, la réformation, la tenue des registres de Baptêmes, Mariages, Sépultures, et portant Réglement sur ce qui doit être fourni aux Religieux desservants les Cures des Îles Martinique et Sainte-Lucie, Martinica, 31 de agosto de 1778. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 3, p. 380. 36 “A expressão “aristocracia da epiderme”, utilizada por Jessica Pierre-Louis, é uma referência à obra de Florence Gautier, L’aristocratie de l’épiderme. Le combat de la Société des citoyens de couleur, 1789-1791 (Paris, CNRS Éditions, 2007) que aborda a organização e atuação de cidadãos de cor das colônias em Paris, denunciando a “aristocracia da epiderme” nas possessões francesas, in PIERRE-LOUIS, op cit, p. 194. 37 PIERRE-LOUIS, op cit, pp. 194-195. 38 “Classificaton des nuances de métissage en Martinique au XVIIIe siècle d’après le corpus des registres paroissiaux usités”, referentes às seguintes paróquias do arrondissement de Saint-Pierre: Carbet, Basse- Pointe, Prêcheur, Saint-Pierre, paróquias do Fort e do Mouillage. LOUIS, op cit, 31. 90 nascimento, casamento e morte, são um conjunto interessante para se conhecer o vocabulário em uso na época, pois reflete mais fielmente a prática popular39. Contudo, a autora demonstra também que alguns casos para os quais não existiam classificações definidas, geralmente a subjetividade do oficial responsável pelo registro se fez mais presente. No caso, por exemplo, de um filho de uma pessoa mulata e outra câpre, a criança poderia ser definida como caprê ou mulato, assim como nos casos de filhos de mestiços e mulatos, e assim por diante. Esse destaque de Pierre-Louis será importante para pensarmos algumas questões sobre a alforria mais adiante. Alguns historiadores que observam a designação de cor da pele de mães e filhos alforriados em um mesmo registro, se a mãe é definida como “mulata” e a criança como “mestiça”, geralmente concluem precipitadamente que o pai é o senhor branco, quando nem mesmo se certificam se o senhor é mesmo branco. Segundo Pierre-Louis, toda esta profusão de termos utilizados nas colônias para exprimir a mestiçagem não devem, no entanto, fazer esquecer que a representação das pessoas de cor é mais restrita que todas estas palavras. Além disso, ainda que existam definições para cada palavra que designa a cor da pele, é preciso manter a ideia de que a cor da epiderme é também uma questão altamente subjetiva. Refere-se inevitavelmente a critérios individuais, sendo toda classificação relativa, em função da posição ocupada por aquele que a efetua. Dessa Forma, na prática cotidiana, uma mesma pessoa poderia ser qualificada por diferentes termos, de acordo com o indivíduo que a designava e segundo o fato que este se apoiava: ou sobre o fenótipo ou sobre a geração de mestiçagem. Pierre-Louis apresenta um exemplo de um indivíduo livre de cor que é sucessivamente designado como câpre, mulato e negro em diferentes documentos. Nos registros paroquiais e do estado civil, geralmente a cor dos pais tem relação com a cor definida teoricamente para os filhos. Contudo, Pierre-Louis encontrou casos que surpreendem, como um no qual tanto o pai como a mãe eram designados como “nègres” e o filho é dito “mulâtre”. Mas estes casos, aparentemente, não ocorrem com tanta frequência40. Nas situações que o padre (século XVIII) ou o oficial do État Civil (século XIX) são confrontados com os limites das classificações definidas, os historiadores em geral afirmam que eles escolhem visivelmente em função do fenótipo para qualificar o indivíduo. No entanto, de acordo com Vincent Cousseau, a certeza sobre a exatidão dos termos referentes à cor da pele observados na pesquisa depende bastante da fonte e de seu

39 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 196. 40 PIERRE-LOUIS, op cit, pp. 202-203. 91 contexto de produção. O uso cotidiano simplifica e distorce o vocabulário a partir da realidade jurídica à qual ele está geralmente associado e não determina apenas as nuances de cor da epiderme e classificações de mestiçagem. Assim, ser reconhecido como “branco” significava ter apenas ascendentes livres; ser designado como “mulato” no século XVIII ou “de cor” (principalmente no final do século XVIII e no século XIX), significava sobretudo ser livre mas ter ancestrais escravos; e ser qualificado como “negro” estava bastante associado à condição servil ou origem muito próxima da escravidão41. Segundo o contexto no qual é empregado o termo, e ainda a época e o ponto de vista do locutor, encontram-se outras variantes e simplificações. Assim, em meados do século XVIII, Thibault de Chanvalon42, branco crioulo da Martinica, define os “mulatos” ou aqueles que “provém de suas misturas” da seguinte forma: “Nós os compreendemos todos, como se faz nas ilhas, sob a denominação geral de Negros. Levaria muito tempo seguir todas as variedades que resultam das misturas”43. No uso cotidiano nas Antilhas Francesas, segundo Cousseau, o termo “mulato” pode reagrupar classificações de cor da pele próximas, como griffes e câpres, e mesmo designar o conjunto dos livres de cor, particularmente quando se encontra no plural44. Moreau de Saint- Méry exprime essa situação claramente em relação à São Domingos, afirmando que os mulatos eram os mais numerosos entre as pessoas de cor: “Os mais numerosos, aqueles que são mesmo bastante para que sua denominação seja dada no uso ordinário a todo aquele que não é negro ou branco, são os mulatos”45. No século XIX, esta acepção generalista sobre o termo mulato parece se manter. Granier de Cassagnac, publicista francês que visitou a Martinica e Guadalupe na década de 1840, afirma que “na língua usual das colônias, a palavra mulato designa todos os homens mestiços que se encontram entre o branco e o negro” e “na língua estrita e legal, um mulato é filho de um branco e de uma negra”46. Granier de

41 COUSSEAU, op cit, p. 122. 42 Jean Baptiste Mathieu Thibault de Chanvalon, filho de uma família de franceses estabelecidos na Martinica desde o século XVII, nasceu na ilha em 1723 e faleceu em Paris em 1788. Estudou direito na França e depois ciências naturais, tornando-se membro da Academia de Bordeaux em 1748. Foi membro do Conselho Superior da Martinica e Intendente da Guiana Francesa. Veja https://fr.wikipedia.org/wiki/Jean- Baptiste_Thibault_de_Chanvalon. 43 “ Nous les comprendrons tous, comme on le fait aux Îles, sous le nom général de Nègres. Il serait trop long de suivre toutes les variétés qui résultent de ces mélanges”, in THIBAULT DE CHANVALON, Jean- Baptiste. Voyage à la Martinique, contenant diverses observations sur la physique, l’histoire naturelle, l’Agriculture, les Moeurs et les usages de cette isle, faites en 1751 et dans les annés suivantes. Paris: J.-B Bauche, 1763, p. 30 (BNF – Gallica). 44 COUSSEAU, op cit, p. 121. 45 “Les plus nombreux, ceux-mêmes qui le sont assez pour que leur nom soit donné dans l’usage ordinaire à tout ce qui n’est pas nègre ou Blanc, ce sont les Mulâtres”, in MOREAU DE SAINT-MÉRY, op cit, p. 103. 46 GRANIER DE CASSAGNAC, Adolphe. Voyages aux Antilles françaises, anglaises, danoises, espagnoles, à Saint-Domingue et aux Etats-Unis d’Amerique. Premier Partie: Les Antilles Françaises. Paris: Dauvin et 92

Cassagnac ainda afirma que a expressão “homem de cor” tinha igualmente dois significados distintos nos usos coloniais: “nos documentos oficiais, ela se refere a todos os libertos [affranchis], mesmo incluindo os negros; na conversação, ela se refere aos homens mestiços”47. Na década de 1830, André Lacharrière, colono branco de Guadalupe, também define o que ele entendia sobre quem eram os “homens de cor” libertos:

Do comércio de brancos com as mulheres africanas são oriundos os homens de cor propriamente ditos; mas, também entendemos sob essa denominação os negros libertos e livres. Esta classe oferece muitas nuances diferentes para que seja possível apresentar seu quadro moral. De fato, em alguns indivíduos, o sangue africano domina sem mistura; em outros, ele está tão enfraquecido que a diferença com o Europeu não é mais perceptível. Alguns são libertos apenas de ontem; outros nasceram em liberdade e foram educados na Europa. (…) Nascidos de mães escravas, os homens de cor, à princípio, foram escravos também. Alforriados por seus senhores, reunindo neles o sangue europeu e o sangue africano, eles ocuparam na sociedade uma posição mediana, à igual distância do negro e do branco.48

Hebe Mattos destaca uma representação social similar vivida pelos “pardos”, entre os séculos XVIII e XIX no Brasil, onde também a “cor da pele tendia a ser por si só um primeiro signo de status e condição social”. Diferentemente daquilo que apontava a historiografia, em sua pesquisa percebeu que a designação “pardo” não era utilizada “apenas como referência à cor da pele mais clara do mestiço”, para a qual se empregava mais frequentemente o termo “mulato”. Mattos observa que a palavra “pardo” era utilizada “como uma forma de registrar uma diferenciação social, variável conforme o caso, na condição mais geral de não branco”. Assim, a representação social, que separava brancos livres e negros escravos, tendia a se sobrepor “a uma hierarquia racial que reservava aos pardos livres, fossem ou não efetivamente mestiços”, uma inserção intermediária. Dessa forma, o termo “pardo”, no Brasil, sintetizava “a conjunção entre classificação racial e social no mundo escravista”49. Nas Antilhas Francesas, segundo Cousseau, ainda que o termo “mulato” se imponha como um qualificativo de referência sobre os livres de cor em geral, no conjunto documental que pesquisou, contando com fontes paroquiais e do estado civil da Martinica, com registros tanto de livres como de escravos, entre o final do século XVIII e a década de

Fontaine Libraires, 1842, p. 225. 47 GRANIER DE CASSAGNAC, op cit, p. 225. 48 LACHARRIÈRE, Andre. Observations sur les Antilles Françaises. Paris: Imprimerie de Auguste Auffray, 1831, p. 20 (BNF – Gallica). 49 MATTOS, op cit, pp. 41-43. 93

1840, as designações de cor da pele aparentemente tendem a seguir um certo rigor, apesar dos casos pontuais que não correspondiam às definições teóricas de mestiçagem50. Nas colônias francesas, a multiplicação de expressões para designar o fenótipo assim como as gerações de mestiçagem, desenvolve o que Pierre-Louis define como a “barreira de cor”, pois a criação de várias palavras para definir as pigmentações da epiderme permitiram manter a impossibilidade de ultrapassar tal barreira51. Os termos empregados cotidianamente na Martinica são menos numerosos que as categorias de mestiçagem propostas na classificação de Moreau de Saint-Méry para São Domingos. Por outro lado, segundo Pierre-Louis, é na Martinica que se encontra a terminologia, utilizada no cotidiano, a mais bem-sucedida52. Jean- François Niort afirma que os sistemas implantados nas Antilhas Francesas pelos colonos brancos, com o objetivo de “separar” e “humilhar” os livres de cor, podem ser qualificados como “discriminatórios” e “segregacionistas”, pois é oficialmente em razão da “raça”, ou mais precisamente da “cor”, que esta segregação foi realizada. Assim, pode-se falar de um sistema “racista”, desde que os indivíduos são qualificados e hierarquizados segundo sua genealogia ou seu fenótipo, sobretudo aqueles pertencentes à “raça negra”. Contudo, ainda segundo Niort, entre os séculos XVIII e XIX, o critério de cor repousava principalmente sobre uma preocupação política e social, fundada sobre a origem servil de todos os livres de cor, com o objetivo de preservar a “boa ordem colonial”, sustentada sobre uma visão socioeconômica hierarquizada53. Desde o século XVII, a questão das relações inter-raciais e do lugar dos mestiços no sistema colonial e escravista foi colocada como um problema. A nobreza e a elite colonial repudiaram aqueles homens brancos que se casavam com mulheres de cor. Nesse sentido, Pierre-Louis afirma que, aparentemente, a sociedade martinicana foi uma das menos porosas das colônias francesas quanto a esta questão de uniões inter-raciais54. Essa conclusão parece fazer eco ao Código Negro de 1724, aplicado na Louisiana55, e não nas outras colônias francesas, que reedita o édito de 1685, mas acrescenta, por exemplo, a proibição ao casamento

50 COUSSEAU, op cit, p. 123. 51 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 195. 52 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 202. 53 NIORT, op cit, p. 2. 54 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 202. 55 A Louisiana francesa era um território da Nouvelle-France, possessão francesa na América do Norte, entre. os séculos XVII e XVIII, sendo vendida por Napoleão em 1803 aos Estados Unidos. 94 inter-racial56. O artigo 9 do Código Negro original, de 1685, condenava os homens livres57 que tivessem filhos de sua concubinagem com escravas. Tanto eles quanto os senhores das escravas seriam penalizados com um multa de 2 mil libras de açúcar, caso transgredissem essa proibição. Caso fossem os próprios senhores que tivessem filhos com suas escravas, além da multa, seriam expropriados da escrava e das crianças, os quais nunca poderiam ser alforriados. Contudo, se o homem livre não fosse casado com outra pessoa durante a concubinagem com a mulher escravizada, ele deveria se casar com ela “nas formas observadas pela Igreja”, a escrava seria liberta, assim como os filhos, os quais seriam também legitimados. No entanto, o Código Negro de 1724 acrescenta mudanças a este artigo e proíbe tanto o casamento como a concubinagem entre brancos e negros58. Ainda que esta proibição não tenha vigorado na Martinica, essa disposição aplicada para a Louisiana indica que de alguma forma a metrópole francesa e a elite colonial estavam predispostos a restringir o quanto pudessem uniões entre brancos e negros. Sobre este artigo 9 do Código Negro, Louis Sala-Moulins destaca questões interessantes, talvez mais precisamente referentes às Antilhas francesas, para as reflexões apontadas nesta pesquisa. Afirma que a exploração sexual das escravas foi tratada como uma banalidade total durante o período escravista; que a interdição à concubinagem não foi de fato aplicada; que esta lei tinha sobretudo o objetivo de limitar ao máximo o número de alforrias que pudessem ser conquistas pelo casamento entre livres e escravos; e que esta medida jurídica se demostrou, muito frequentemente, condescendente com os homens brancos, os quais geralmente não tinham nenhum desejo de libertar as escravas as quais abusavam sexualmente, nem mesmo as crianças que nasciam desta relação abusiva59. Contudo, as uniões entre brancos e negros na Martinica, e em outras colônias francesas do Caribe, não deixaram de existir no século XVIII. Moreau de Saint-Méry inclusive define em uma categoria à parte os homens brancos que se casavam com mulheres

56 De acordo com Émile Hayot, a proibição ao casamento misto entre brancos e livres de cor, diferentemente do que faz pensar a leitura de vários estudos que mencionam o Code Noir de 1724, não vigorou nas Antilhas Francesas. HAYOT, Émilie. Les gens de couleur libres du Fort-Royal, 1679-1823 (1er. partie). In: Revue française d’histoire d’outre mer, t. 56, n. 202, 1969, p. 10. 57 É importante ressaltar que no final do século XVII, quando foi promulgado o Code Noir de 1685, pressupunha-se que os termos “homem livre” e “senhor” se referiam apenas a homens brancos. 58 SALA-MOULINS, Louis. Le Code Noir ou le calvaire de Canaan. Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p. 108. 59 Idem, p. 109. 95 não brancas, afirmando que estes eram considerados mésalliés60, ou seja, que se casavam com uma pessoa de nível muito inferior. Assim, deveriam ser vistos como uma classe intermediária “entre brancos e gente de cor”, no entanto, pertencentes à classe dos livres de cor devido a sua “aliança” com estes61. De acordo com Pierre-Louis, o termo mésalliés também foi usado da mesma forma na Martinica, e a administração colonial e a elite branca tentaram, durante todo o século XVIII, reprimir ao máximo que os homens brancos se cassassem com mulheres de cor62. Apesar disso, a autora demonstra que algumas famílias de livres de cor, que tinham a epiderme mais clara, de fato estabeleciam uniões oficiais com brancos, mas ocorriam quase que exclusivamente casamentos entre mulheres consideradas mulatas e, principalmente, mestiças, e homens brancos63 — não se encontram casos de uniões oficiais entre homens de cor e mulheres brancas na Martinica. Aparentemente, estas uniões ocorriam sobretudo com “ petits blancs ”, homens brancos geralmente sem propriedades, que trabalhavam em ofícios artesanais, no exército ou na marinha, e negociantes e comerciantes. Lucien Peytraud, historiador francês que escreveu no século XIX uma monografia sobre a história da escravidão nas Antilhas Francesas, afirma que se sabia no século XVIII que “colonos pouco delicados”, ou seja, provavelmente de classes baixas, casavam-se com mulheres livres de cor que possuíam “economias”64. Haviam aqueles que eram empregados das habitations dos colonos brancos, geralmente como administradores, gerentes ou feitores dessas propriedades rurais. Porém, estes estavam mais propensos a sofrerem a pressão de seus patrões contra a união legal com mulheres de cor (libertas ou escravas) ou estarem mesmo imersos na ideologia discriminatória dominante. No século XVIII, escolher se casar com uma mulher de cor privava o marido branco de ter acesso a postos oficiais nas colônias e aos títulos de nobreza, além de se expor ao desprezo e reprovação por parte da classe dos brancos. Das mestiçagens entre brancos e livres de cor, nasceram indivíduos cujo fenótipo não era mais aquele que definia precisamente as pessoas de cor e tais indivíduos poderiam ser

60 De acordo com o Dictionnaire de l’Académie française de 1762 (4a. Edição), “mésalliés” é o particípio de “mésallier”, que significa se “casar com uma pessoa de um nascimento ou de uma categoria muito inferior”. Ver Dictionnaire d’autrefois, http://artfl-project.uchicago.edu/node/17. 61 “Enfin on appelle mésalliés, les blancs dont les femmes ne sont pas des blanches. Il faut les regarder comme un nouvel intermédiaire, entre les blancs et les gens de couleur. Ils appartiennent cependant à ces deniers, par leur alliance”. MOREAU DE SAINT-MÉRY, op cit, p. 99. 62 PIERRE-LOUIS, op cit, pp. 215-227. 63 PIERRE-LOUIS, op cit, pp. 276-301. 64 “ Nous savons, d’autre part, que c’était un procédé courant pour certains colons peu délicats que d’épouser une femme de couleur libre, ayant des économies ”, in PEYTRAUD, Lucien. L’esclavage aux Antilles françaises avant 1789: d’après des documents inédits des archives coloniales. Paris: Librairie Hachette, 1897, p. 427 (BNF – Gallica). 96 observados como brancos, devido aos traços físicos. Por essa razão, os colonos europeus passaram a utilizar um outro dispositivo de controle, para não perder de vista o que consideravam a “mácula servil negra”. Para não ser qualificado como uma “pessoa de cor” era necessário, então, que a ascendência do indivíduo fosse unicamente branca, ou seja, “pura”65, segundo a ideologia que se desenvolveu sobretudo a partir da década de 1760 nas Antilhas Francesas66. Ao mesmo tempo, alguns livres de cor descendentes de brancos e negros, que poderiam por conta da aparência serem tomados por brancos, mas que ainda assim estavam sujeitos à classificação como livres de cor devido a sua genealogia, às vezes conseguiram ser inscritos como brancos nas fontes oficiais, ou seja, sem referências à “cor”. Ser designado como “branco”, numa sociedade onde o preconceito de cor impunha uma barreira social e econômica a vários indivíduos, significava uma oportunidade de ter algum acesso a direitos que eram interditados à classe dos livres de cor. No entanto, de acordo com Pierre Louis, os livres de cor que ultrapassaram a barreira da epiderme na Martinica, pontualmente ou definitivamente, não representam mais de 2% dos milhares de registros que ela pesquisou nas fontes do século XVIII. Dessa forma, o número de indivíduos que se beneficiaram do estatuto de branco é muito pouco significativo para influenciar os resultados desse fenômeno. Em sua pesquisa foi possível observar que as pessoas que se beneficiaram ao longo de suas vidas de um silêncio pontual sobre suas origens nos documentos oficiais continuaram a ser socialmente reconhecidas como livres de cor67. Porém, o trabalho de Pierre-Louis tem importância fundamental — além da intensa pesquisa que realizou em um conjunto documental vasto —, pois, poucos estudos sobre esta circunstância foram realizados acerca das Antilhas Francesas. Diferentemente dos territórios espanhóis na América e no Caribe, e mesmo algumas colônias inglesas, onde existiram formas legais de transpor a barreira de cor, nas possessões francesas nunca foi aprovada a possibilidade de se ultrapassar legalmente a linha de demarcação. Nas colônias espanholas, entre a segunda metade do século XVIII e o começo do XIX, alguns mestiços livres puderam cruzar legalmente a barreira de cor por meio das Gracias al Sacar, cartas que poderiam ser compradas por um valor alto, conquanto a

65 Sobre o “estigma da impureza” do sangue ligada à cor da pele, ou ainda à ascendência africana, na América Portuguesa, ver VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007, pp. 47-96. Não encontrei nenhum trabalho sobre esta questão no Caribe Francês, que faça uma abordagem e uma discussão com a profundidade e acuidade da pesquisa de Viana sobre a América Portuguesa. 66 PIERRE-LOUIS, op cit, p. 199. 67 PIERRE-LOUIS, op cit, pp. 334-335. 97 administração colonial aprovasse este processo, e que garantiriam que o indivíduo fosse dispensado de sua qualificação de “pardo”. Dessa forma, teriam a oportunidade de ascender socialmente, frequentar universidades interditadas àqueles de origem não completamente branca europeia, e até ocupar cargos públicos, mas tal concessão não era facilmente obtida. Contudo, Ann Twinam, ao estudar este fenômeno nas colônias espanholas, sob uma abordagem histórico-social, afirma que a história do branqueamento pelas Gracias al Sacar poderia apenas ser contada pela ligação inextricável de séculos de luta de africanos e seus descendentes mestiços, que saíram da escravidão para a liberdade como vassalos do reino, e finalmente para a cidadania, pois muitos que aparecem nas páginas de seu livro provaram ser pioneiros desconhecidos das lutas por direitos civis. Sua pesquisa sugere que o branqueamento das Gracias al Sacar emerge apenas como uma variante, uma expressão oficial de práticas amplas que facilitaram por séculos a mobilidade de pardos e mulatos. Mesmo aqueles aos quais eram negadas as cartas de branqueamento pelo Conselho das Índias eram capazes de seguir caminhos alternativos e, às vezes, conseguirem atingir seu objetivo de superar alguma das interdições feitas às pessoas não brancas. Dessa forma, Twinam observou, então, a ocorrência de uma situação mais significativa que as Gracias al Sacar: milhares de desconhecidos encontraram meios de usufruir informalmente benefícios parciais ou totais auferidos apenas aos brancos68. Assim como nas colônias espanholas, no Caribe Francês, a discriminação jurídica devido à cor da epiderme não foi aplicada apenas nos registros paroquiais e notariais. A segregação oficial nas colônias francesas se aprofundou na segunda metade do século XVIII, e outras medidas legais foram implementadas neste período para limitar a mobilidade social e econômica dos livres de cor. Uma ordenação real de 1764, que regulamentava o exercício da medicina nas colônias francesas da América, proibiu terminantemente que os “negros e todas as pessoas de cor, livres ou escravos” pudessem exercer a medicina ou a cirurgia e nem mesmo tratar qualquer doença. Caso alguém nestas condições infringisse esta lei, pagaria uma multa de 500 libras ou até mesmo sofreria punição corporal, dependendo da situação69. Na

68 TWINAM, Ann. Purchasing whiteness: pardos, mulattos, and the quest for social mobility in the Spanish Indies. Stanford, California: Stanford University Press, 2015, pp. xvi-xvii, 4-5. 69 A Ordonnance du Roi, portant Règlement pour l’exercice de la Chirurgie dans les différentes Colonies françaises de l’Amerique, de 30 de abril de 1764, prescreve no artigo XVI: Défend très-expressément S. M., aux Nègres et à tous Gens de Couleur, libres ou esclaves, d’exercer la Médecine ou la Chirurgie, ni de faire aucun traitement de malades, sous quelque prétexte que ce soit, à peine de 500 liv. d’amende pour chaque contravention au présent article, et de punition corporelle suivant l’exigence des cas. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 2, n. 293, p. 303. 98 prática, sabe-se que, principalmente nas habitations, homens e mulheres escravizadas tratavam das doenças de seus companheiros de cativeiro e exerciam práticas de cura70. No entanto, esta proibição atingia sobretudo os livres de cor que pretendessem exercer a profissão de médico ou cirurgião nas cidades, onde tinham maior visibilidade — ou mesmo aqueles que já praticassem estes ofícios –, sendo esta apenas uma das medidas de restrição às suas possibilidades de ascensão social e econômica durante o século XVIII e que vigoraram até 1830. Uma decisão do Conselho Soberano da Martinica, decretada em 1765, proibiu todos os notários, procuradores e escriturários, ou qualquer oficial público da colônia, de empregarem pessoas livres de cor nos tribunais ou cartórios ou que estas pudessem exercer diretamente tais funções. A questão veio à tona porque um notário real da vila do Lamentin (sul da ilha) havia admitido um “mulato livre” para fazer as expedições de registros do cartório. No entanto, os membros do Conselho Soberano, composto pela elite branca da Martinica, consideravam que tais funções somente poderiam ser confiadas às pessoas cuja probidade fosse reconhecida, “o que não se poderia presumir encontrar em um nascimento tão vil como aquele de um mulato”, expressando, assim, em um documento oficial e sem nenhuma moderação, o escárnio dos colonos brancos pelas pessoas livres de cor e pela mestiçagem. Os oficiais que desobedecessem ao decreto pagariam uma multa de 500 libras, e o dobro caso houvesse reincidência da transgressão. Ademais, os indivíduos livres de cor que fossem empregados naqueles cargos sofreriam a pena de um mês de prisão71. Além das restrições aos ofícios que a classe de livres de cor poderia exercer, outras medidas do governo colonial da Martinica determinariam mais ações de discriminação social e racial. Uma decisão do Conselho Soberano da colônia, decretada em 1781, proibiu os

70 No último capítulo da tese comento o caso de um escravo de uma propriedade rural cuja a liberdade foi solicitada ao seu senhor por pessoas da localidade que reconheciam a importância de seus conhecimentos de cura. Ele era uma “ panseur de serpent très renommé ”, um “ curandeiro de serpente muito renomado ”, isto é, curava pessoas que eram atacadas por serpentes, as quais existiam em grande quantidade na ilha, sendo consideradas inclusive um grande problema na colônia. 71 “(…) que des fonctions de cette espèce ne devant être confiées qu’à des personnes dont la probité soit reconnue, ce qu’on ne pouvait présumer se rencontrer dans une naissance aussi vile que celle d’un mulâtre; que d’ailleurs la fidélité de ces sortes de gens devait être extrêmement suspecte; qu’il était indécent de les voir travailler dans l’Étude d’un Notaire, indépendamment de mille inconvénients qui en pouvaient résulter; qu’il était nécessaire, d’arrêter un pareil abus; pourquoi aurait requis qu’il soit fait expresses inhibitions et défenses à tous Notaires, Greffiers, Procureurs et Huissiers, de se servir de gens de couleur, quoique libres, pour les employer à faire les expéditions des actes dont ils sont chargés par leur état, sous peine de 500 libres d’amende pour la première fois, et du double en cas de récidive; et pour les Gens de couleur qui auraient été employés, d’un mois de prison (... ). Arret du Conseil Souverain, portant défenses à tous Greffiers, Notaires, Procureurs et Huissiers, d’employer des Gens de couleur, pour le fait de leur Profession, 9 de maio de 1765. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 2, n. 316, pp. 375-376. 99 párocos, notários e outros oficiais públicos de qualificarem pessoas livres de cor com os títulos de sieur (senhor) e dame (dama) em qualquer registro feito na colônia. Esta decisão foi motivada pela atitude de um notário que havia qualificado o “nommé” (dito) Lafontaine e a viúva Dumoulin, mestiços livres, como sieur e dame, e determinava-se, ainda, que tais designações deveriam ser apagadas dos registros feitos para estas pessoas72. Estas medidas seguiam as diretrizes da ideologia discriminatória que se aprofundava cada vez mais contra os indivíduos afrodescendentes. Na mesma época dessa decisão anterior, o Conselho Soberano da Martinica também promulgou um decreto que interditava as “pessoas de cor” portarem armas. O artigo 15 do Código Negro (1685) já proibia que os negros escravos carregassem armas ou mesmo bastões. Porém, segundo a decisão de 1781, esta lei não estava sendo aplicada regularmente e precisava ser retomada na colônia. Dessa forma, a elite branca aproveitou a oportunidade para estender tal proibição aos livres de cor73. Os momentos de comemoração e expressões culturais que fossem identificados com os costumes dos negros não foram excluídos dessas restrições imputadas aos livres de cor. Devido às suas manifestações em ocasiões de festas, as gens de couleur, sobretudo da cidade de Saint-Pierre, foram consideradas como possuidoras de um “espírito de independência” e “insubordinação” indesejáveis, de acordo com uma ordenação da administração colonial da Martinica de 1765. Apesar das proibições que existiam de outros tempos na colônia, tantos os livres de cor como os escravos realizavam reuniões públicas e danças e “corriam pelas ruas mascarados e fantasiados, em horas indevidas”, armados com bastões e espadas. A nova lei proibia, então, que as “pessoas de cor, mesmo livres”, se reunissem em grupos sob o pretexto de comemorações de casamentos, festins ou danças. É possível que esta decisão oficial tenha sido motivada pelas expressões culturais dos escravos e livres de cor em situações de comemoração durante o carnaval, pois foi promulgada no mês de fevereiro daquele ano74. Mais uma vez, a existência da lei não significa que os momentos

72 Arrêt du Conseil souverain, qui défend à tous Curés, Notaires, Arpenteurs et autres Officiers publics de qualifier aucuns Gens de couleur du titre de Sieur et de Dame, Martinica, 6 de novembro de 1781. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 3, n. 589, p. 448. 73 Arrêt du Conseil souverain, qui interdit aux gens de couler de port des armes, Martinica, 8 de novembro de 1781. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 3, n. 590, p. 448-450. 74 “Les remontrances qui nous ont été faites par le procureur du Roi de la juridiction royale du bourg de Saint- Pierre, sur l'esprit d'indépendance et d'insubordination qui règne parmi les gens de couleur, tant libres qu'esclaves, depuis la reddition de cette île aux Anglais, qui tiennent des assemblées publiques et donnent des bals, malgré les défenses (...), et enfin ce qui nous est revenu, de la hardiesse qu'ont eu plusieurs esclaves de courir les rues masqués et déguisés à des heures indues, armés de bâtons ferrés, coutelas et couteaux flamands: toutes ces représentations, qui sont d'une conséquence infinie pour la sûreté publique, à laquelle nous sommes obligés de veiller, nous ont engagé à rendre une ordonnance, qui en rappelant celles de nos 100 de festas, danças ou rituais deixaram de ser realizados pela população africana e afrodescendente. Diferentes viajantes ou colonos das Antilhas Francesas descrevem as “kalendas” ou o “bamboula”, por exemplo, que eram festejos realizados pelos negros, nos quais tocavam tambor e dançavam. Pierre François Regis Dessalles, colono branco da Martinica no século XVIII, descreve o que se conhecia por “kalendas” (calendas), e comenta que, mesmo com as antigas proibições a tais festas, os negros continuavam a realizá-las. Por conta disso, Dessalles relata que a interdição a estas reuniões festivas dos negros foi retomada em 1765. Porém, “desprezando todas as proibições, nada era mais comum que ver escravos de um e de outro sexo se reunirem em grande número nas casas das principais vilas da colônia, e, à imitação das pessoas livres, dar-se refeições, bailes públicos, em uma desordem e uma confusão dignas da licença a mais desenfreada”75. Contudo, provavelmente, tanto as pessoas escravizadas como livres de cor procuravam evitar os centros urbanos. Alphonse Maynard relata, na década de 1840, um bamboula que pôde presenciar nos arredores da cidade de Saint-Pierre (Martinica), na “savana”, como ele mesmo descreve, ou seja, fora do meio urbano, mas próximo o suficiente para chegar caminhando ao local, nas encostas do morro próximo à vila76. A questão das barreiras e hierarquias raciais se cruza com o tema da alforria quando este fenômeno é exatamente aquele que permite o aumento da classe dos livres de cor, que a elite branca e o governo colonial pretendiam controlar. Pierre François Régis Dessalles77, membro do Conselho Soberano da Martinica, afirma na década de 1780: “as

prédécesseurs (...), remédiât aux nouveaux désordres (...) Art. 1er. Nous faisons très-expresses inhibitions et défenses à tous Gens de couleur, quoique libres, de s’attrouper et de s’assembler entr’eux, sous prétexte de nôces, de festins ou de danses (...)”, Ordonnance de MM. Les Général e Intendant, concernant les Gens de Couleur, tant libres qu’esclaves, Martinica, 9 de fevereiro de 1765. DURAND-MOLARD, op cit, tomo 2, n. 311, pp. 364-366. 75 DESSALES, Adrien. Histoire Générale des Antilles. Série 1, Tome troisième: Histoire Législative des Antilles ou Annales du Conseil Souverain de la Martinique (…) par Pierre Régis Dessalles. Paris: Libraire- Éditeur, 1847, p. 297 (manioc.org). 76 Alphonse Maynard viajou às Antilhas na década de 1840. Ao chegar na Martinica, na cidade de Saint-Pierre, a noite, se encaminhou à savana, seguindo a rua principal, em direção ao morro, “as pernas tremiam de cansaço, porque não estavam acostumadas às ruas montanhosas da cidade”; nos arredores da cidade pode observar que “(…) a dança é para esta classe [negros] uma paixão, um verdadeiro frenesi. Eu vi durante três noites o bamboula da savana de Saint-Pierre me revelar esta instituição, que encerra todos os extremos, languidez e energia (…). MAYNARD, Alphonse (pseudônimo Conde de La Cornillère). La Martinique en 1842: intérêts coloniaux, souvenirs de voyage. Paris: Gide Libraire-éditeur, 1843, pp. 127-128 (BNF – Gallica). 77 Pierre-François-Régis Dessalles nasceu na Martinica em 1755, descendente de uma família francesa instalada na Martinica no final do século XVII. Estudou direito em Paris e ao retornar à Martinica se tornou membro do Conselho Soberano da colônia. Crioulo e proprietário de terras e escravos no município de Sainte-Marie, tornou-se juiz da Cour royal da Martinica em 1804, falecendo em 1808. É pai do Pierre Dessalles, o qual tem suas cartas e diário escritos no século XIX e publicados por Henry de Frémont. Pierre- 101 alforrias, como eu já disse, são abusivas e perigosas em uma colônia onde teme-se que a raça dos libertos se torne maior que aquela dos brancos”78. As medidas administrativas restritivas sobre a alforria e aquelas que precarizavam a liberdade — por exemplo, a exigência de verificação dos títulos oficiais comentada anteriormente — foram alguns dos meios utilizados na Martinica para se tentar conter o crescimento da classe dos libertos e livres de cor. É neste ponto, sobre as alforrias, que as questões sobre raça e gênero se tornam mais problemáticas nos discursos construídos pela elite branca, pela administração colonial e por viajantes e cronistas europeus, além de ser atrelado à “origem”79 dos libertos e livres de cor. Seguindo este caminho, a historiografia francesa é quase unânime em afirmar que as primeiras alforrias concedidas no início da colonização francesa nas Antilhas (Saint- Christophe, Sainte-Lucie, Guadalupe, Martinica em particular) foram auferidas pelos filhos mulatos dos “primeiros contatos sexuais entre europeus (brancos) e africanos (negros), (…) das relações entre senhores e escravas ou entre servos (domésticos, capatazes, engagés) brancos e escravas”80. Primeiramente, esta ideia de buscar uma “origem” da formação do grupo de libertos e livres de cor, atrelando esta origem ao nascimento dos primeiros “mulatos”, é bastante controversa. Isso porque retoma, de certa forma e sem problematizar, o discurso de cronistas como o padre Dutertre, o qual, sob seu prisma da religião católica setecentista, escreve um capítulo em sua crônica com o título “Do nascimento vergonhoso dos mulatos e sua condição”. Neste texto, principalmente as mulheres negras são tratadas com um escárnio grosseiro em sua descrição sobre a origem dos mulatos, como possuidoras de um “fogo criminoso”:

Não poderíamos verificar melhor o provérbio que diz que o amor é cego que na paixão desregrada de alguns de nossos franceses que se colocam a amar suas negras, apesar do negrume de seus rostos, que as torna horrendas, e o odor insuportável que elas exalam, que deveria, na minha opinião, apagar seu fogo criminoso (…). As crianças nascidas dessas aproximações ilegítimas são

François-Régis Dessalles fez uma compilação dos Annales do Conselho Soberano da Martinica, cuja documentação original desapareceu. A primeira publicação feita por ele de extratos dos Annales du Conseil Souverain data de 1786. Estas informações foram observadas na resenha de Jean Imbert sobre a reedição dessa obra pela editora l’Harmattan em 1995 em Bibliothèque de l’école des chartes, vol. 155, n. 1, 1997, pp. 390-392, www.persee.fr. 78 “(…) les affranchissements, comme je l’ai déjà dit, sont abusifs et dangereux dans une colonie où il est à craindre que la race des affranchis ne devienne plus étendue que celle des blancs”, in DESSALLES, Pierre- François-Régis. Les annales du Conseil souverain. Paris: L’Harmattan, 1995 (reedição), vol. 1, p. 382. 79 Um dos capítulo de Abel Louis é intitulado “A origem do grupo [dos livres de cor]: a libertinagem dos brancos e as primeiras alforrias”. LOUIS, op cit, p. 59. 80 LOUIS, op cit, p. 55. 102

comumente chamadas de mulatos em toda a América, tanto entre os Espanhóis e os Portugueses (entre os quais este crime é tão comum quanto é raro nas nossas Antilhas) como entre nossos habitantes, fazendo, sem dúvida, alusão às mulas, porque essas pobres crianças são geradas de um branco e de uma negra, como a mula é produto de dois animais de diferentes espécies.81

Dutertre descreve como um “crime” a união entre homens brancos e mulheres negras, assim como a criança que nascia dessa relação, e faz questão de ressaltar que tal evento era mais habitual entre os espanhóis e portugueses e mais raro entre os habitantes das Antilhas Francesas, provavelmente desdenhando assim, do seu ponto de vista, os europeus ibéricos. Essa ideia, da origem “vergonhosa” dos mulatos continua a impregnar os documentos da administração colonial da Martinica ao longo do século XVIII, sempre ligando esta questão à alforria, às mulheres escravas e libertas e aos livres de cor de forma geral. Naquelas instruções do rei aos administradores da Martinica de 1777, quando aborda o tema, depreende-se que a alforria tocava sobretudo os filhos de relações ilegítimas entre homens brancos e mulheres negras, assim como as próprias escravas. No texto das instruções se afirma que as liberdades concedidas resultam frequentemente do “preço da libertinagem e da concubinagem”, “escândalo” ao qual ainda se acrescentavam os “inconvenientes do perigo de se multiplicar os preguiçosos e os maus sujeitos”. Dessa forma, a “boa ordem” exigia que a alforria fosse permitida apenas com bastante “discrição” e que o governador e o intendente da colônia deveriam estar atentos a autorizar a alforria apenas para “causas bem legítimas”. Como estes oficiais vinham da metrópole, para que não cometessem erros sobre os motivos que poderiam ser aceitos para libertar escravos, deveriam enviar as solicitações de alforria ao Decano do Conselho Soberano e ao Procurador do Rei, para que eles apresentassem suas opiniões por escrito sobre as demandas feitas e se permitiam que fossem autorizadas. Assim, apesar da interferência dos governos metropolitano e colonial, claramente a elite dos senhores brancos também decidia acerca das restrições à alforria82.

81 DUTERTRE, op cit, tome II, pp. 511-512. 82 “L’affranchissement est une suite de esclavage: le bon ordre exige qu’il ne soit permis qu’avec discrétion. Il convient sans doute d’offrir l’attrait de la liberté au zèle et à l’attachement des esclaves pour leurs maîtres; mais elle n’est souvent que le prix de la débauche et du concubinage, et aux inconvénients du scandale se joint le danger de multiplier les paresseux et les mauvais sujets. Les sieurs de Bouillé et de Tascher doivent donc être attentifs à n’accorder la permission d’affranchir que pour des causes bien légitimes, et, afin qu’ils ne soient pas trompés sur les motifs, l’intention de S. M. est qu’ils prennent, sur les demandes qui leur seront faites, l’avis par écrit du Doyen et du Procureur Général du Roi au Conseil Souverain; et qu’ils en fassent mention dans la permission qu’ils délivreront. “Mémoire du roi”, 7 de março de 1777. DURAND- MOLARD, op cit, tomo 3, p. 298. 103

Pierre Régis Dessalles traduz essas instruções do rei afirmando que as leis e medidas que restringiam as alforrias tinham o objetivo de “prevenir os meios ilícitos empregados pelos escravos” para se tornarem livres. Apesar de sua visão de colono branco, as palavras de Dessalles revelam que os escravos eram agentes em suas buscas pela liberdade, pois ofereciam dinheiro frequentemente aos seus senhores para comprarem suas alforrias — sendo esta considerada por ele uma das formas ilegais utilizadas pelas pessoas escravizadas. Contudo, afirma também, como sempre fazem, que a “a concubinagem dos senhores com suas escravas ou seu apego pelas crianças geradas de tal comércio” também era um destes “meios ilícitos” aplicados pelos escravos. Nesse sentido, ressalta que “a esperança da liberdade leva quase sempre as negras a se prestarem às fraquezas de seus senhores” e, assim, tais esperanças “lhes incentivam à libertinagem”83. Não se sabe se os primeiros “mulatos”, filhos de mulheres escravas, recenseados no século XVII, eram alforriados realmente. Abel Louis demonstra que no século XVII, apesar das afirmações dos padres cronistas, a quantidade de “mulatos” era muito pequena. O recenseamento de 1666 da Martinica lista a presença de 23 mulatos e 3 mulatas; em 1664, 33 mulatos e 22 mulatas; em 1680, 53 mulatos e 39 mulatas84. Louis afirma que não se tem certeza do estatuto jurídico destes indivíduos, se eram livres como os brancos ou escravos como os negros. A questão faz sentido porque na época, e nestes recenseamentos, o termo “nègres” era usado como sinônimo de escravos, sendo desnecessário afirmar qual era a condição dos “negros” listados. Dessa forma, a utilização também do termo “mulâtres” nestes recenseamentos não deixa claro qual era a condição desses indivíduos. O recenseamento nominativo de 1660 indica, ainda, a presença de negros livres, pois lista um “Christophe, nègre libre”. Esta é a primeira menção de um negro livre em uma listagem censitária na Martinica85. Isso significa que o escravo negro poderia conseguir sua liberdade no século XVII, e que seria designado como “livre” quando fosse sua condição. Ainda que aponte um outro indício, este caso não responde a questão sobre a condição dos “mulatos” recenseados.

83 “Telles sont les lois concernant les affranchissements qui ont toujours eu pour but de prévenir les moyens illicites employés, ou à employer par les esclaves, pour se procurer leur affranchissement. Ces moyens étaient le concubinage des maîtres avec leurs esclaves ou leur attachement pour les enfants provenus d’un pareil commerce, et l’argent que l’esclave offre ordinairement à son maître pour se racheter lui-même. (…) l’espoir de la liberté engage presque toujours les négresses à se prêter aux faiblesses de leurs maîtres; ces espoirs les excitent au libertinage ; et il est odieux qu’une cause aussi vile soit celle de leur félicité ”. DESSALLES, Histoire Générale des Antilles, op cit, p. 417-418. 84 LOUIS, op cit, p. 62. 85 “Christophe, nègre libre” é listado no n. 64 do “Rôle des habitants de l’isle de la Martinique du quartier de la Case Pilote”. LOUIS, op cit, p. 63. 104

O padre Labat, que chegou à Martinica em 1694, relata que entre as décadas de 1650-1660, devido à “libertinagem que produziu os mulatos”, os “senhores proprietários” determinaram que “os mulatos seriam livres quando eles chegassem à idade de 24 anos completos, desde que até esta época eles tivessem habitado na casa do senhor de sua mãe”, isto é, se não tivessem sido vendidos a outro senhor. Pretendiam, assim, que os anos de serviços prestados seriam minimamente suficientes para ressarcir os senhores da perda constituída durante o período que suas escravas teriam se dedicado à criação de seus filhos mulatos. Contudo, depois que o Rei reuniu as ilhas de seu domínio em 1674, foi retomada a “Declaration de la Loi Romaine” (a Lei Romana), que determinava a premissa do partus sequitur ventrem, isto é, a condição das crianças seguiria aquela do ventre que as levava 86. Desse modo, os filhos de uma mãe escrava seriam também escravos, independente da condição do pai, e os administradores da colônia não teriam problemas com a liberdade de crianças mestiças. Essa premissa seria ratificada como lei nos artigos 12 e 13 do Código Negro de 168587. Uma outra afirmação do padre Dutertre, no século XVII, ressalta também a violência existente nestas relações entre homens brancos e mulheres negras — pois os colonos e feitores abusavam das escravas —, apesar de amenizar a frequência desse “crime que Deus detesta”, afirmando que apenas “alguns” dos habitantes o cometiam:

Eu não julgo ninguém em particular, apenas digo em geral, que há alguns habitantes que abusaram de suas negras, assim como os feitores que as conduzem ao trabalho. É possível também que eles se atraquem mais às mulheres casadas que às meninas, para melhor esconder seu crime; mas o fruto de seu pecado parece mais comumente nas segundas que nas primeiras. É necessário confessar, no entanto, que se alguém pode perdoar um crime que Deus detesta, não há ninguém que mostre compaixão àquelas pobres infelizes que, geralmente, apenas se deixam levar pelos desejos sujos desses homens perdidos por causa dos sentimentos de

86 LABAT, Jean-Baptiste (1663-1738). Nouveau voyage aux isles de l’Amérique, contenant l’histoire naturelle de ces pays, l’origine, les mœurs, la religion & le Gouvernement des Habitans anciens & modernes: les Guerres & les Evenemens singuliers y sont arrivez pendant le long séjour que l’Auteur y a fait. La Haye, Pays-Bas: chez Husson e outros, 1724, parte II, p. 46. 87 “Art. XII. Les enfants qui naîtront des mariages entre les esclaves, seront esclaves, et appartiendront aux maîtres des femmes esclaves, et non à ceux de leurs maris, si le mari et la femme ont des maîtres différents ”; “Art. XIII. Voulons que si le mari esclave a épousé une femme libre, les enfants, tant mâles que filles, soient de la condition de leur mère, et soient libres comme elle, nonobstant la servitude de leur père, et que si le père est libre et la mère esclave, les enfants soient esclaves pareillement ”. Ver “ Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique ”, DURAND-MOLARD, op cit, tomo 1, pp. 40-55. 105

medo de maus tratos, de pavor das ameaças as quais eles lhes aterrorizam, ou pela força com que estes homens exaltados usam para as corromper.88

O padre Labat retoma as ideias de seu predecessor, destacando também que a libertinagem “dos brancos com as negras é a fonte de uma infinidade de crimes”89. O crime da “libertinagem” é atribuído às duas partes, mas, rapidamente, ao longo do século XVIII, constatamos que a imagem da mulher negra e mulata será afetada particularmente por este discurso, como observado nas palavras de Pierre Régis Dessalles, comentadas anteriormente. Em sua viagem às Antilhas Francesas, entre as décadas de 1760 e 1780, o médico naturalista Jean-Baptiste Leblond permaneceu um ano na Martinica. Durante sua estadia, hospedado em uma habitation ao norte da ilha, próxima à cidade de Saint-Pierre, ele foi convidado para uma festa de casamento realizada numa fazenda vizinha. Neste evento, o viajante observou a presença de “mulheres de cor” vestidas também de forma opulenta como as “damas” brancas, mas com costumes diferentes, certamente escravas, pois afirma que eram “criadas” (servantes) das damas presentes. Tinham os pés descalços, os cabelos presos em turbantes com belos lenços da Índia, e várias joias de ouro, que o viajante francês presume serem presentes caros que os homens brancos lhes davam. Apesar da conclusão precipitada e preconceituosa de Leblond, outras fontes afirmam que os escravos “mais industriosos”, principalmente as mulheres, empregavam parte de suas economias em suas vestimentas e acessórios, até com “um certo luxo entre várias mulheres escravas”90. Assim, não usavam joias porque necessariamente recebiam presentes dos homens brancos, mas porque fazia parte de seus costumes e, geralmente, elas mesmas procuravam adquirir o que desejavam, atitudes que frequentemente eram vistas como uma forma de petulância. Ainda que os homens brancos, presentes naquela comemoração onde se encontrava Leblond, interagissem apenas “furtivamente” com as mulheres negras escravas, ele declara que sua suspeita teria sido confirmada por uma “dama” (mulher branca) que se colocou a conversar com ele. Sem preliminares, a senhora foi logo afirmando que os “crioulos se livram a uma libertinagem terrível com estas negras e mulatas insolentes” — de acordo com o autor, expressão usada

88 DUTERTRE, op cit, tome II, p. 478. 89 LABAT, op cit, parte II, p. 40. 90 “La plupart des esclaves possèdent des volailles, des porcs, et quelquefois même du gros bétail. Les plus industrieux sont souvent logés et meublés avec quelque recherche; mais la majeure partie de leurs profits est employée à leur toilette, que va jusqu’à un certain luxe chez beaucoup de femmes esclaves ”. Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 5 (BNF – Gallica). 106 pela mulher com quem conversava —, “que lhes atraíam por todas as formas de sedução e que arruinavam suas saúdes e seus bolsos”91. Essa imagem sobre as mulheres negras e mulatas dominaram os discursos coloniais ao longo do século XVIII e na primeira metade do século XIX. Moreau de Saint- Méry afirma que “várias negras” eram alforriadas porque elas tinham uma “complacência” por seus senhores que não beneficiava a moral e os costumes92. A ideia de que as mulheres negras e mulatas seduziam os homens brancos, principalmente os “petits blancs” e jovens, impregnou não apenas os discursos coloniais, mas também o imaginário dos franceses metropolitanos do século XIX, sendo mesmo representada de forma romantizada em uma canção popular da França, intitulada “Petit blanc”93. Esta canção provavelmente inspirou a imagem feita pelo pintor francês Julien Vallou de Villeneuve em 1840, intitulada “Petit blanc que j’aime”, na qual a mulher negra é representada de forma sensual, sedutora e entregue ao amor do jovem rapaz branco.

91 “Je m'aperçus que ces messieurs n'étaient entreprenants qu'à la dérobée avec les femmes de couleur, servantes de ces dames, et pour le moins aussi richement vêtues, quoique dans un costume différent. Elles étaient pieds nus, coiffées en bamboches, avec de beaux mouchoirs de Paillacat*, et beaucoup de bijoux d'or, tribut fort coûteux que les Blancs paient à leurs charmes. C'est ce que me confirma une dame avec qui j'avais lié conversation. Elle se mit à me raconter, sans autre préliminaire, que les Créoles se livraient à un libertinage affreux avec ces coquines de Négresses et de Mulâtresses (c'étaient ses expressions), qui les attirent par toutes sortes de séductions et qui ruinent leur santé et leur bourse ”. LEBLOND, Jean-Baptiste. Voyage aux Antilles. D'île en île, de la Martinique à Trinidad (1767-1773). 2a. Edição, apresentada e anotada por Monique Pouliquen. Paris, Éditions Karthala, 2000, p. 46. (*) Paillacat (Palakkad) era uma cidade do estado de Kerala, na Índia. 92 MOREAU DE SAINT-MÉRY, op cit, p. 90. 93 “Un petit blanc que j’aime / En ces lieux est venu; / Oui, oui, c’était lui-me (…) / A la pauvre négresse / Il porte le bonheur / Elle voudrait sans cesse / Le presser sur son cœur / (…) Sitôt que l’ombre cesse, / Que le ciel est en feu, / Vous me dite: “Négresse, / Reposez-vous un peu / Vous, bon, toujours le même, / Jamais ne me battez / Si belle est votre bouche, / Votre cheveux sont si doux! / Lorsque ma main les touche / Mon coeur en est jaloux; / Votre regard m’enchate / Comme le plus beau jour / Et votre voix touchante / Me fait mourir d’amour (…)”. Letra de Boucher de Perthes, de 1826. SÉGUR, Noël & DUMERSAN, Théophile Marion. Chansons nationales et populaires de France, accompagnées de notes historiques et littéraires. Paris: Garnier Frères, 1866, p. 30. 107

Imagem: “Petit blanc que j’aime”, Julien Vallou de Villeneuve, 1840, Musée d’Aquitaine, Bordeaux94

94 In: CAMARA, Evelyne; DION, Isabelle; DION, JACQUES. Esclaves – Regards de Blancs 1672-1913. Aix- en-Provence, ANOM: Images en Manoeuvres Éditions, 2008, p. 167. 108

No século XIX, Alphonse Maynard, francês de opiniões escravistas e racistas, que viajou à Martinica na década de 1840, afirma em sua narrativa de viagem que “ter um filho de um branco é para a negra objeto de seus desejos”, porque significava entrar para a família e se tornar livre, “elevando-se” por meio de sua prole95. Até mesmo o célebre abolicionista francês, Victor Schoelcher, expõe uma opinião sobre as mulheres “mulatas”, livres de cor, que exprime essas visões. Contudo, seu texto conseguiu expressar uma imagem mais questionável que todos os textos escritos por escravistas96. Em sua abordagem sobre a classe dos livres de cor — usa a expressão classe de couleur —, Schoelcher afirma que estes eram “quase todos sem família, frutos de uma concubinagem ou da libertinagem, mais ou menos abandonados por seus pais, pobres, mas necessariamente infestados dos vícios do país, recusando-se a trabalhar na terra, porque este é um trabalho de escravo”97. O abolicionista visitou a Martinica e Guadalupe entre 1840 e 1841, com o objetivo de observar a situação do sistema escravista nas colônias francesas, e foi hospedado por senhores brancos. De acordo com Cyrille Bissette, quem criticou vigorosamente esta obra de Schoelcher de 1842, principalmente devido a estas observações sobre os livres de cor98, o fato do abolicionista ter sido ciceroneado pelos colonos brancos em sua visita às ilhas teria resultado nessa exposição de Schoelcher, por influência da elite branca, pois expressa exatamente a visão desta classe sobre os livres de cor99. A descrição feita pelo abolicionista francês sobre as mulheres livres de cor é a parte do livro que mais teria provocado a indignação de Bissette100. Schoelcher afirma que todas viviam “em concubinagem ou na devassidão, entre as quais os brancos vêm procurar suas amantes como em um bazar”, e que assim eram levadas à prostituição:

95 MAYNARD, Alphonse (pseudônimo Conde de La Cornillère). La Martinique en 1842: intérêts coloniaux, souvenirs de voyage. Paris: Gide Libraire-éditeur, 1843, p. 130. 96 Alphonse Maynard afirma, quanto às mulheres livres de cor, que “as mulheres desta classe tocam geralmente uma butique de faiança, novidades e especiarias, quando elas envelhecem; porque quando jovens estas criaturas parecer viver e respirar para amar, sonhar em se arrumar, aspirar a posse de joias ou de suntuosos lenços das índias”. MAYNARD, op cit, p. 114. 97 “D’un autre côté les gens de couleur presque tous sans famille, fruits du concubinage ou de la débauche, plus ou moins abandonnés de leurs parents, pauvres, mais nécessairement infestés des vices du pays, se refusent à travailler à la terre, parce que c’est un travail d’esclaves”. SCHOELCHER, Victor. Des Colonies françaises. Abolition immédiate de l’esclavage. Paris: Éditions du C.T.H.S, 1998 [1842], p. 190. 98 As opiniões de Schoelcher sobre os livres de cor das Antilhas Francesas, e sobretudo sobre as mulheres livres de cor, provocariam a cólera de Cyrille Bissette, que publicaria uma refutação a sua obra; a partir dessa época, o rompimento entre o abolicionista negro martinicano e o abolicionista francês seria definitivo. Os atritos entre os dois se estenderiam após a abolição e durante a segunda república francesa, quando disputariam como candidatos a representação na Assembleia Nacional pela Martinica. Sobre estes conflitos, ver SCHMIDT, Nelly. Victor Shoelcher et l’aboliion de l’esclavage. Paris: Fayard, 1994, pp. 71-75; PÂME, op cit, pp. 280-293. 99 BISSETTE, Cyrille Charles Auguste. Réfutation du livre de M. Victor Schoelcher, intitulé: “Des Colonies françaises”. Paris: Breton, 1843, p. 5. 100 BISSETTE, op cit (1843), pp. 61-66. 109

As mulheres de cor, por exemplo, que vivem todas em concubinagem ou na devassidão, entre as quais os brancos vêm procurar suas amantes como em um bazar, contribuem, certamente, com a sua libertinagem, a manter a depreciação da raça que elas desonram. (…) Não podendo esperar nenhuma consideração, sempre desprezadas, é natural que elas não façam nada para merecer o respeito. O preconceito gera o desprezo, o desprezo a desmoralização, e a desmoralização a prostituição; prostituição que legitima o desprezo pelo qual se mantém o preconceito. Um encadeamento assustador e cruel no qual o mal se explica pelo mal. As pobres criaturas, além disso, não poderiam escapar da ação deletéria das ideias do lugar onde elas são ensinadas. Os regalos da casta privilegiada as lisonjeiam, e elas preferem se entregar a um branco, velho, sem mérito e sem qualidade, que se casar com um sang-mêlé [mestiço]. Não faltam exemplos deste efeito deplorável da corrupção, que certos erros podem lançar sobre nossos espíritos (...)101

Schoelcher ainda ressalta em seu livro uma ideia que dominava no período, principalmente nas fontes escritas por colonos brancos e franceses escravistas, que os “mulatos” (livres de cor) desprezavam os negros. Cita um ditado popular dos escravos antilhanos, que dizia, em créole: “Quand milate tini un chouval, li dit négresse pas maman li”, isto é, “quando um mulato tem um cavalo”, ou seja, possui qualquer coisa, “ele diz que sua mãe não é negra”. De acordo com Schoelcher, e com a elite das colônias, os livres de cor queriam “se elevar aos brancos, mas sem levar os negros com eles”102. O publicista francês Granier de Cassagnac, que era financiado pelos colonos das Antilhas na década de 1840, descreve os “mulatos” como uma “classe isolada”, pois, segundo ele, “os brancos os desdenham, os negros os odeiam e os desprezam”, baseando-se, sobretudo, em sua visão racista sobre os descendentes de africanos e europeus. Ademais, Alphonse Maynard afirma que a classe dos “mulatos” — sempre usando este termo para se referir aos livres de cor — era “perigosa” e ocupavam uma posição na sociedade martinicana “pressionados entre as duas raças, desprezados pelos negros” e sem poder “se fazer aceitar pelos brancos”103. Ao refutar a obra de Schoelcher, Bissette argumenta que as declarações do “abolicionista” poderiam provocar “consequências funestas”, e que os negros e mulatos sofriam já “o bastante com os esforços de seus inimigos naturais para dividi-los”, sem que Schoelcher precisasse acrescentar sua contribuição à tal “divisão”. Assinala, então, aos seus “irmãos negros e mulatos”, que o livro de Schoelcher era uma “obra de divisão, cem vezes

101 SCHOELCHER, op cit (1842), pp. 192-193. 102 SCHOELCHER, op cit (1842), pp. 200-201. 103 GRANIER DE CASSAGNAC, op cit, p. 253. 110 mais perigosa que todos os escritos dos colonos e de seus agentes”104. Não obstante o conteúdo expresso por Schoelcher sobre os livres de cor, ele mesmo cita uma afirmação de Mondésir Richard, representante dos livres de cor de Guadalupe, “un des esprits les plus distingués que possède la classe de couleur” [um dos espíritos mais distintos que possui a classe de cor], o qual, assim como Bissette, procura refutar as ideias sobre a desunião entre negros e mulatos:

Nós não devemos atribuir nenhuma importância para ingressar entre os brancos, para frequentá-los. Nosso papel é buscar uma verdadeira fusão política com eles, para obter nossa parcela de autoridade local. Quanto à fusão social, eu a compreendo neste momento apenas com população negra. De minha parte, quero uma aliança apenas com os negros, porque é neles, e somente neles, que está nossa força.105

Os livres de cor, logo após a Revolução de Julho (1830), demandavam igualdade civil e política com os brancos, sem que houvesse qualquer diferença para os libertos, o que foi conquistado legalmente em 1833. Contudo, batalhavam para que seus direitos fossem de fato reconhecidos ainda na década de 1840. Ademais, desde o início da Monarquia de Julho já havia despontado, tanto entre os livres de cor que viviam nas colônias como aqueles que moravam na metrópole, articulações para garantir a alforria individual e oficial dos livres de savana e dos escravos em geral, e mesmo demandas pela abolição da escravidão106. Iacy Mata, em seu estudo sobre as conspirações e insurreições envolvendo mulatos e negros, livres e escravos, em Cuba no século XIX, destaca os “diversos elos” que “ligavam os livres de cor aos escravos”107. Mata afirma que no curso dos acontecimentos que analisa, a terminologia “classe de cor”, utilizada sobretudo pela elite e pelo governo colonial, foi cedendo lugar à noção de “raça”. Assim, “alguns insurretos de cor e outros ativistas fora do teatro da guerra passaram a se autoidentificar como ‘raça’ ou como ‘raça de cor’”. Nesta formulação, “dois elos ligavam negros e mulatos e ajudavam a diluir as tensões”, pois os dois grupos estavam juntos na luta contra a escravidão e partilhavam um passado comum, a África. De acordo com Mata, outros autores apontaram que negros e mulatos se unificaram e que

104 BISSETTE, op cit (1843), p. 70. 105 Citação da fala de Mondesir Richard, in SCHOELCHER, op cit (1842), p. 202. 106 Estas questões serão abordadas nos capítulos 4 e 5 desta tese. 107 MATA, op cit, pp. 41-42. 111

“raça de cor” passou a ser incorporada pelas classes subalternas na reivindicação de direitos por dentro da luta anticolonial108. Nas colônias francesas, de fato há diferenças entre os séculos XVIII e XIX, naquilo que se pôde observar sobre a relação entre os livres de cor e os escravos, entre mulatos e negros. As tensões tão destacadas nas fontes escritas pelos homens brancos talvez mereçam uma abordagem mais acurada, e não refutamos que existiam conflitos e tensões — desde a vida privada e comunitária, até as questões sociais, econômicas e políticas — entre aqueles grupos. David Geggus analisa três revoltas ocorridas na Martinica envolvendo africanos e afrodescendentes: uma insurreição de escravos em 1789, uma revolta envolvendo livres de cor em 1801, e um complô envolvendo livres de cor e escravos em 1811. Segundo o autor, estes três acontecimentos ilustram, em graus diferentes, a vontade dos escravos e dos libertos de articularem uma ação comum contra o regime colonial. A sublevação escrava de 1789 oferece um testemunho curioso, mas incerto, de participação de negros livres. Contudo, o que é mais marcante nos registros sobre este evento é o ressentimento que ele sugere existir entre escravizados e livres de cor. Os cativos foram reprimidos com o auxílio das milícias formadas por libertos, porém, Geggus afirma que, apesar das divisões entre os livres de cor, e entre estes e os escravos, há indícios de que a demanda por uma emancipação geral estava se enraizando entre os diferentes grupos. Por outro lado, na rebelião de 1801, amplamente ligada às demandas dos livres de cor e liderada pelo liberto haitiano Jean Kina, os afrodescendentes livres demandavam que as alforrias dos libertos irregulares fossem reconhecidas e criticavam duramente a atitude dos colonos brancos em relação aos escravos, ainda que Kina não tenha agido como um “antiescravista”. Já em 1811, os principais insurgentes do complô articulado em Saint-Pierre eram, em partes iguais, tanto da população de escravos como de livres de cor, e tinham o objetivo de tentar derrubar o domínio dos brancos na ilha. Todas estas revoltas foram durante reprimidas. Geggus conclui que a vontade dos livres de cor de se aliarem aos escravos, ao longo da era revolucionária, é bastante variável. Contudo, argumenta que, no final das contas, estes três exemplos de resistência coletiva testemunham a maneira como as revoluções haitiana e francesa, e particularmente o movimento antiescravagista, influenciaram as lutas políticas no Caribe francês109. Contudo, ao estudar o século XIX, sobretudo as décadas de 1830 e 1840, últimos anos de escravidão nas colônias francesas, foi possível

108 MATA, op cit, p. 30. 109 GEGGUS, David, “Esclaves et gens de couleur de la Martinique pendant l'époque révolutionnaire et napoléonienne: trois instants de résistance”, Revue Historique, t. 295, fasc. 1 (597), 1996, pp. 105-132. 112 perceber uma atitude diferente dos livres de cor em relação aos escravos, que se expressa inclusive nas alforrias concedidas neste período. Até o final desta tese abordaremos mais esta questão, a partir de outras fontes e outros debates. A historiografia francesa comumente generaliza, observando os dados sobre a quantidade de “mulatos” livres recenseados nas fontes do século XVIII, que a população de libertos era formada sobretudo pelos filhos de uniões ilegítimas entre senhores brancos e escravas. Christine Chivallon afirma que este fenômeno expressa a “existência bem conhecida de uma estreita correlação entre a liberdade e a mestiçagem”110, baseando-se principalmente na afirmação de Frédéric Régent, em seu estudo sobre escravidão e mestiçagem em Guadalupe111. Como demonstrado, examinando as fontes e a historiografia que tem se debruçado em intensos estudos sobre a documentação notarial e paroquial do século XVIII para pesquisar as experiências dos livres de cor na Martinica, em quase metade dos registros assentados as pessoas desta classe eram referidas genericamente como “pessoas de cor”. Além disso, devemos considerar, ainda, que o termo “mulato” provavelmente era empregado de forma generalizada para designar as pessoas libertas e aquelas que viviam como livres há gerações, ainda que suas classificações de mestiçagens pudessem ser indicadas como câpres, griffes, ou mesmo negros livres. Contudo, a historiografia francófona tende a interpretar a existência de um maior número de “mulatos” entre os libertos oficiais e livres de cor do século XVIII — que já não eram em grande número — como uma expressão significativa da “mestiçagem” entre brancos e negros, e, sobretudo, entre os senhores e suas escravas. Essa conclusão interfere no que se compreende principalmente sobre a conquista da liberdade pelas mulheres escravizadas e seus filhos. Ainda que as relações íntimas inter-raciais tenham ocorrido com maior frequência até o século XVIII, aparentemente, elas se tornaram bem menos recorrentes a partir do momento que a discriminação racial e as tensões políticas entre brancos e livres de cor se acentuaram nas Antilhas Francesas, sobretudo depois do período de revoluções, entre o final do século XVIII e início do XIX. Parte da historiografia demonstra que os livres de cor, ao que tudo indica, casavam-se entre as “castas”, ou seja, aqueles de pele mais clara (mulatos e

110 “La populations des “affranchis” est généralement formée par les enfants issus d’unions illégitimes entre maîtres et esclaves, et par leurs descendents, d’où l’existence bien connue d’une “étroite corrélation entre la liberté et le métissage” (...)”. CHIVALLON, op cit, pp. 89-90. 111 RÉGENT, Frédéric. Esclavage, métissage, liberté. La Révolution Française en Guadeloupe, 1789-1802. Paris: Grasset, 2004, p. 145. 113 mestiços) tendiam a selar matrimônio entre eles, assim como os “negros”. Émile Hayot aborda as genealogias de “grandes famílias” de livres de cor de Fort-Royal (Martinica), e as divide entre “negros”, “mestiços” e “mulatos”, demonstrando que aparentemente existia uma certa, mas não exclusiva, manutenção das diferenças de cor nos casamentos entre os livres de cor no século XIX. Contudo, isso não necessariamente significava uma forma de conflito e desunião entre eles. Examinando as genealogias dessas famílias é possível apreender que ocorriam no seu interior casamentos entre negros e mulatos112. A escritora guadalupana Maryse Condé narra em seu livro de crônicas autobiográficas, Le Coeur à rire et à pleurer, uma história que revela como ainda na primeira metade do século XX as famílias afrodescendentes nas Antilhas Francesas ainda mantinham, em geral, este costume de se unirem de forma endógena, formando distintamente famílias negras e famílias mulatas. Talvez isso ocorresse principalmente entre as famílias mais burguesas que viviam no meio urbano, que tinham postos de funcionários públicos de destaque — como o pai de Maryse. Ela narra a história de seu namorico de criança com Gilbert, filho dos vizinhos Driscoll, uma família de mulatos com doze crianças. A família de Maryse Condé era negra, e assim:

Naquela época, em Guadalupe, não nos misturávamos. Os negros andavam com os negros. Os mulatos com os mulatos. Os blancs-pays [brancos locais] permaneciam em sua esfera e o bom Deus estava contente em seu céu. Felizmente, as crianças não se importavam tanto com estes assuntos de adultos. Nós vivíamos em boa vizinhança com os Driscoll de nossa idade, todos mulatos como eles eram, e Gilbert poderia ter sido meu primeiro amor.113

Não interessa a esta pesquisa, neste momento, tentar responder os motivos e significados desse fenômeno. No entanto, essa questão merece ser destacada porque a historiografia francesa geralmente ressalta que as mestiçagens entre brancos e negros continuaram a aumentar a população de “mestiços” nas colônias francesas entre os séculos XVIII e XIX, ainda que existam indícios de que a população de “mestiços” também “se

112 Veja HAYOT, Émilie, Les gens de couleur libres du Fort-Royal, op cit, parte 2. 113 “En ce temps-là, en Guadeloupe, on ne se mélangeait pas. Les nègres marchaient avec les nègres. Les mulâtres avec les mulâtres. Les blancs-pays restaient dans leur sphère et le Bon Dieu était content dans son ciel. Heureusement, les enfants ne s’occupaient pas tellement de ces affaires de grandes personnes. Nous vivions en bon voisinage avec les Driscoll de notre âge, tout mulâtres qu’ils étaient, et Gilbert aurait pu être mon premier amoureux”, in CONDÉ, Maryse. Le Coeur à rire et à pleurer: souvenirs de mon enfance. Paris: Robert Laffont, Pocket, 1999, p. 62. Maryse Condé nasceu em 1937 e as histórias que narra neste livro, sobre sua infância, aparentemente se passam na década de 1940, quando Guadalupe e Martinica ainda eram territórios coloniais – tornaram-se departamentos franceses em 1945. 114 aumentou” significativamente. Stella Pâme afirma que as crianças nascidas das uniões não oficiais entre homens brancos e “mulheres de cor” compôs a maior parte da classe dos livres de cor até meados do século XVIII, contudo, depois desta época as uniões entre os livres de cor foram mais frequentes e esta tendência se acentuou no século XIX114. A partir da Revolução Francesa, as lutas por igualdade dos livres de cor contra a barreira racial, até então latentes ou simplesmente judiciárias, tornaram-se abertamente políticas. Desse modo, o registro da cor, a segregação entre brancos e livres cor, e o princípio da superioridade social da classe dos brancos são percebidas como medidas essenciais da consagração do sistema discriminatório e para a manutenção do sistema colonial. Obviamente, existiram uniões não oficiais entre homens brancos e mulheres negras no século XIX, e há fontes que apontam isso. Uma das mais marcantes, observada nesta pesquisa, foi a relação entre Xavier Bosc, francês que havia imigrado para a Martinica para trabalhar como gerente do engenho de açúcar da senhora Dariste, e sua escrava Pauline. Em janeiro de 1831, Bosc assentou junto a um notário da cidade de Saint-Pierre um registro de desistência de propriedade, uma forma de registro de manumissão, sobre Pauline e seus nove filhos, para que o governo da colônia lhes concedesse as cartas de alforria oficial. Bosc declara neste documento que estes escravos eram “livres de savana” (libertos irregulares) e que ele era apenas seu “protetor ou patrono”. Entre os filhos de Pauline, os dois mais velhos, Adolphe, 27 anos, tanoeiro, e Adeline, 22 anos, lavadeira, foram designados como “negros” no registro; os outros sete mais jovens foram classificados como “mulatos”115. Estes provavelmente eram filhos de Bosc. Contudo, o que torna esta história mais marcante é que logo depois deste registro, antes que a família escrava de Bosc pudesse obter a alforria oficial, eles foram envolvidos, assim como vários outros escravos da fazenda Dariste, numa revolta de escravos que ocorreu em fevereiro de 1831 nas redondezas de Saint-Pierre. No processo, afirma-se que Pauline era amante de Bosc, e ele foi um dos dois brancos incriminados por contribuírem com a revolta116. Tanto o casal como um de seus filhos, Volny, idade de 17 anos e profissão de pedreiro, e o filho mais velho de Pauline, o negro Adolphe, foram presos e

114 PÂME, op cit, p. 15. 115 ANOM – DPPC – Notaires: Damaret fils – MAR//784, 20 de janeiro de 1831. 116 Rebecca Schloss aborda a história dessa revolta e principalmente o envolvimento dos dois homens brancos, Bernard Xavier Bosc e Théodore LeChevalier. Em fevereiro de 1831, em torno de 300 escravos atacaram e incendiaram fazendas nas redondezas da cidade de Saint-Pierre, Martinica. Veja SCHLOSS, Rebecca Hartkopf, “The february 1831 slave uprising in Martinique and the Policing of white identity”, French Historical Studies, vol. 30, n. 2, 2007. 115 acusados117. Todos foram absolvidos ao final do processo, por falta de provas sobre seu envolvimento, mas não encontrei mais informações sobre o paradeiro de Bosc, Pauline e seus filhos após este período de prisão e processo criminal. No entanto, se as mulheres escravizadas e seus filhos conseguiram mais acesso à alforria por causa de suas relações familiares não oficiais, no século XIX isso parece ocorrer porque estabeleceram mais frequentemente uniões com homens livres de cor. Ao menos acerca do século XIX, foi possível observar evidências sobre esse fenômeno, e que serão demonstradas no último capítulo desta tese. No período escravista era proibido se fazer menção ao nome do pai nos registros de batismo de filhos que não tivessem nascido de um casamento legítimo118, o que afetava principalmente as crianças escravas, porque elas eram geralmente frutos de relações não oficiais. A despeito disso, Arlette Gautier pôde observar um caso raro de menção à paternidade de crianças escravizadas nos registros paroquiais de duas vilas da Martinica. Nas certidões de batismo dos escravos da vila de Case-Pilote, assentados entre 1760 e 1762, 14% das crianças escravas eram filhos de pais brancos, e apenas três dos genitores brancos haviam tido relações com as mães que trabalhavam para eles. Entre 1783 e 1797, na mesma vila, Gautier observou uma porcentagem similar, sendo 13% das crianças escravas filhos de homens brancos e mulheres negras. Ao longo do século XIX, a proporção de crianças escravas filhas de pais brancos reduziu mais na Martinica, encontrando-se nos registros de batismo: 4,2% em Case-Pilote, entre 1815-1817, e 8% em Rivière-Pilote, entre 1802 e 1829119. A autora argumenta que estas relações estão longe de serem majoritárias, mesmo que elas tenham conduzido pouco a pouco a uma mestiçagem geral. De acordo com Gautier, as abordagens em torno das relações íntimas entre senhores brancos e mulheres escravas —sedução, concubinagem, libertinagem — permitem destacar importantes questões teóricas e metodológicas. A percepção sobre estas relações variou bastante de acordo com a época. No início da colonização e do encontro entre brancos

117 ANOM – DPPC – SG, Martinica, carton 18, dossier 162. 118 Uma decisão do Conselho Soberano da Martinica, de 13 de maior de 1758, determina que nos registros tanto de livres como de escravos concernentes à criança que “não tenha nascido em legítimo casamento, não será feita nenhuma menção ao nome do pai”. Arrêt du Conseil Souverain du 13 mai 1758, DURAND-MOLARD, op cit, tomo 2, n°226, art IX, t.2, p.44-45. Em 1778, uma ordenação real sobre os registros de batismo, casamento, morte, determina o mesmo princípio: “S’il [l’enfant] n’est pas légitime, on n’y fera mention que du nom de sa mère et de ses parrain et marraine, à moins que le père ne se déclarât pour des raisons particulières”. Ordonnance concernant l’administration des Fabriques des paroisses, la réformation, la tenue des Registres des Baptêmes, Mariages, Sépultures (...), DURAND-MOLARD, op cit, tomo 3, n°552, art VI, p.380. 119 GAUTIER, Arlette, “Les familles esclaves aux Antilles françaises, 1635-1848”, Population (French Edition), 55e. Année, n. 6, nov.-dez. 2000, p. 986. 116 e negros, alguns missionários e viajantes, todos homens e brancos, registraram em suas narrativas que as mulheres negras pareciam “demônios lúgubres”. Outros afirmavam em seus registros, desde a década de 1680, que as mulheres negras escravizadas preferiam a concubinagem com os homens livres do que com os escravos, na esperança de terem crianças livres. Este ponto de vista se generaliza no século XVIII, as negras e mulatas são doravante descritas como impertinentes, lascivas e interesseiras, que atraem os homens brancos por meio de todas as formas de sedução e que “arruínam sua saúde e seus bolsos”. Segundo Gautier, este discurso permitiu tanto justificar um acesso sexual ilimitado a essas mulheres como de sustentar diferenças essenciais entre mulheres brancas e negras, “pedra angular do racismo científico” no século XIX120.

120 GAUTIER, Arlette, “ Genre et esclavage aux Antilles françaises. Bilan de l’historiographie ”, in HROEJ, Philippe (org.). L’esclavage et les plantations: de l’établissement de la servitude à son abolition. Un hommage à Pierre Pluchon. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, pp. 175-176. 117

CAPÍTULO 3 – OS LUGARES DAS MULHERES NEGRAS NO MUNDO DO TRABALHO ESCRAVO NA MARTINICA

Por muito tempo os processos de trabalho e as formas de economias escravas nas Américas e Caribe foram temas caros aos historiadores e centro de acirradas polêmicas1, e continuam, ainda hoje, a atrair a atenção dos pesquisadores do campo da história social. A partir de pesquisas sobre o mundo do trabalho escravo, nas décadas de 1980 e 90, além da agência e protagonismo dos africanos e seus descendentes escravizados no Novo Mundo, das questões raciais e identitárias e daquelas em torno das heranças culturais africanas, alguns autores enfatizaram também as questões de gênero em torno das atribuições do trabalho escravo e a contribuição primordial das mulheres nos campos das plantations de açúcar no Caribe2. Como afirma Sidney Chalhoub sobre as experiências de escravidão e de liberdade no Brasil imperial, “para os negros, o significado da liberdade foi forjado na experiência do cativeiro”3. Nas Antilhas Francesas não seria diferente, não obstante o “caráter variável da escravidão”4 nas diferentes sociedades escravistas das Américas e do Caribe. Os processos complexos de conquista da liberdade por homens e mulheres escravizadas, suas estratégias e projetos de longo prazo em torno do acesso (ou restrição) à alforria, estiveram inseridos em um contexto diversificado de relações intrincadas de trabalho escravo e de sua economia interna. Observamos anteriormente como o acesso à alforria não era um negócio fácil nas Antilhas francesas. A obtenção de uma carta de alforria oficial não dependia, na letra da lei,

1 Ver este debate exposto por Robert Slenes em “Camponeses e cativos: a “arquitetura” do sistema escravista” e suas conclusões sobre o tema, essenciais nas análises que orientam esta tese. SLENES, Robert. Na Senzala, uma flor. Campinas: Editora da Unicamp, 2011 (1999), pp. 202-214; ver ainda BERLIN, Ira & MORGAN, Philip D. Cultivation and Culture: labor and the shaping of slave life in the Americas. Charlottesvelle, London: University Press of Virginia, 1993. 2 BECKLES, Hilary McD. Natural Rebels – A Social History of Enslaved Black Women in Barbados. New Brunswick; New Jersey: Rutgers University Press, c1989; BUSH, Barbara, Slave Women in Caribbean Society, 1650-1838. Kingston: Heinemann Publishers; Indiana: Indiana University Press; Londres: James Currey, 1990. 3 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 27. 4 TOMICH, Dale W., “A ‘Segunda Escravidão’”, in TOMICH, Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: EDUSP, 2011, pp. 82. 118 apenas da “vontade senhorial”. Dessa forma, para se ter acesso à manumissão, com certeza ambição de muitas mulheres e homens escravizados, as estratégias em torno de seus projetos de liberdade provavelmente levavam em conta as restrições que tratamos anteriormente, sendo um trabalhador rural ou urbano. Talvez uma precária “liberdade de savana” — uma das formas de liberdade irregular —, nesse contexto, fosse uma das ambições e esperanças de muitas famílias escravas nas colônias francesas, almejando em algum momento conseguir a carta de alforria legal do governo, como viria a ocorrer entre 1831 e 1847. O protagonismo das mulheres é central nestes processos de conquista da liberdade na Martinica, assim, as questões de gênero inerentes ao mundo do trabalho nesta ilha também são essenciais no sentido de elucidar sua agência nessas histórias antilhanas.

3.1 – ENTRE O ESCRAVISMO E A CRIOULIZAÇÃO NAS ILHAS DO AÇÚCAR

Dois fatores são destacados como fundamentais na história da escravidão nas ilhas caribenhas: a plantation de açúcar e o trabalho escravo de povos africanos e seus descendentes. De acordo com Barry Higman, entre a abolição do tráfico de escravos nas colônias britânicas, em 1807, e abolição da Escravidão nas colônias britânicas, em 1834, a predominância do engenho de açúcar atingiu seu ápice e desempenhou papel dominante no processo de definição das características da escravidão no Caribe britânico5. Em Cuba, segundo Rebecca Scott, a escravidão “constituiu a base de uma sofisticada e produtiva indústria açucareira” até os últimos trinta anos do século XIX. Assim, “características específicas da escravidão de plantation”, tais como terras para o cultivo de gêneros de subsistência e sistemas de trabalho sazonal no açúcar, influenciaram fortemente as relações de trabalho estabelecidas ao longo deste período6. Scott ainda aponta algo acerca do trabalho escravo no Caribe que merece destaque, tocante sobretudo às “Ilhas do açúcar”: que

5 HIGMAN, Barry. Slave Population of British Caribbean, 1807-1834. Jamaica: The Press University of the West Indies, 1995 (1984), p. 397. 6 SCOTT, Rebecca J.. Emancipação Escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Editora da Unicamp, 1991, pp. 23-25. 119

“apesar da diversidade de situações em que se achavam os escravos cubanos, a natureza do trabalho no açúcar” teria moldado suas vidas. Inclusive as experiências dos escravos urbanos, para os quais o conhecimento das condições nas grandes propriedades açucareiras servia como uma forma de coerção e disciplina, segundo a autora, pois havia a ameça implícita de serem enviados para o trabalho penoso nas plantações de cana a qualquer momento. Em todo o Caribe, e Scott afirma o que se segue sobre Cuba, “julgava-se que o trabalho escravo era exigência específica do cultivo e processamento do açúcar”7. Dessa forma, muitos braços eram exigidos nessa cultura, e em diferentes frentes de trabalho e produção. No final do século XVIII, em seu compêndio sobre a cana-de-açúcar, analisando a organização das habitations sucrières em São Domingos, Dutrône afirma que os engenhos de açúcar eram as “propriedades mais importantes” das colônias, devido tanto à riqueza de produtos fornecidos ao mercado francês como à lucratividade que gerava à Metrópole e aos colonos brancos. De acordo com o autor, a cultura da cana exigia um grande número de escravos (“nègres”) e “de estabelecimentos consideráveis, para a colheita e para a preparação de seus produtos”8. Durante o século XVIII, as ilhas do caribe, sob o domínio colonial dos reinos europeus, tornaram-se os mais importantes fornecedores de açúcar para a Europa. A França, sobretudo devido à produção de São Domingos, sua mais importante colônia na época, além de Martinica e Guadalupe, dominava o mercado internacional, produzindo 39% do açúcar comercializado em 1791 — no mesmo período, as colônias britânicas produziam 37,9%9. De acordo com Lawrence Jennings, antes da Revolução, em 1787 a produção das colônias francesas chegou a representar 43,2% do mercado mundial, 29,8% vindos apenas de São Domingos, a “pérola do caribe”10.

7 Idem, p. 36. 8 DUTRONE, J.F. Precis sur la canne et sur les moyens d’en Extraire le sucre. Paris: 1797, pp. 332-334 (manioc.org). Este trabalho de Dutrône aborda, de acordo com o extenso subtítulo da obra, “a cana e os meios de extrair o açúcar: seguido de vários registros sobre a arte do refinador, sobre a natureza e os engenhos de açúcar, sobre o caldo da cana, sobre o índigo, sobre o regime das plantations e sobre o estado de São Domingos, antes da Revolução”. 9 TOMICH, Slavery in the circuit of sugar (1990), p. 15-17. 10 JENNINGS, Lawrence C. La France et l’abolition de l’esclavage, 1802-1848. Paris: André Versaille, 2010, pp. 40-41. São Domingos era o principal produtor de açúcar e a mais valiosa colônia europeia desde meados de 1740. Entre 1760-1791 a produção açucareira da colonia aumentou em quase 40%, de 56.646 para 78.696 toneladas. Em 1791, essa colônia francesa sozinha produzia próximo de 30% do fornecimento comercial mundial. O Açúcar era suplementado ainda pela exportação de rum e melaço assim como pelo café, algodão e indigo. Em 1791 a população escrava de São Domingos era de 480 mil pessoas. Veja TOMICH, op cit, p. 17. 120

Como afirma Dale Tomich, foi a fundação da “época de ouro de prosperidade das Índias Ocidentais”, que vieram até mesmo a ser conhecidas como “Ilhas do açúcar”. No entanto, o império colonial francês foi abalado por importantes eventos que ocorreram entre o final do século XVIII e início do XIX. A Revolução Haitiana11 impulsionou transformações políticas e econômicas irreversíveis para a França e suas colônias, em um contexto que se somava ainda a emergência da hegemonia britânica e a ascensão de seu capital, entre 1792 e 1815, as instabilidades políticas na metrópole francesa e as revoltas escravas, que ocorreram não apenas em São Domingos, mas também na Martinica e em Guadalupe12. Com a perda de São Domingos/Haiti em 1804, a Martinica se tornou a principal ilha do domínio francês no Caribe em produção de açúcar, com a maior população escrava e livre da região das pequenas Antilhas13. No entanto, todo esse processo desestruturou o império colonial francês por alguns anos.14 Sua reestruturação se deu por meio da intensificação sem precedentes da produção de açúcar e do trabalho escravo principalmente na Martinica, mas também em outras colônias francesas15. Depois da queda de Napoleão e início da Restauração monárquica em 181516, as ligações entre monocultura açucareira e o trabalho escravo foram reforçadas na Martinica, onde a quantidade de terras destinadas à produção de açúcar aumentou em 5.495 hectares entre 1816 e 1835. Isso ocorreu, sobretudo, em detrimento da produção de café, pois as outras culturas já não tinham um peso significativo na agricultura de exportação na Martinica desde o início do século XIX (veja tabela 4, abaixo).

11 Ver Ghachem, MalickW., The Old Regime and the Haitian Revolution. New York: Cambridge University Press, 2012. 12 Ver Dorigny, Marcel (org). Les Abolitions de l’esclavage de L. F. Sonthonax à V. Schoelcher, 1793, 1794, 1848. Paris, Presses universitaires de Vincennes, 1995; Dubois, Laurent. A Colony of Citizens: Revolution and Slave - Emancipation in the French Caribbean, 1787–1804. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004. 13 Em 1803, a Martinica contava com uma população de 106.196 pessoas: 10.087 brancos; 6.254 livres e libertos (regulares), 89.864 escravos. 14 TOMICH, obra citada, 1990, pp. 15-32. 15 Idem, pp. 33-42; 76-91. 16 Sobre este período, ver: JENNINGS, obra citada, pp. 15-37; SCHLOSS, Rebecca Hartkopf, Sweet liberty: the final days of slavery in Martinique. University of Pennsylvania Press, 2009, pp. 72-112; THESÉE, François. Le général Donzelot à la Martinique – vers la fin de l’Ancien Régime colonial (1818-1826). Paris: Éditions Karthala, 1997. 121

Tabela 4 – Extensão de terras dedicadas a cada cultura agrícola, Martinica, 1789 – 1835 Extensão de terras dedicadas a cada cultura agrícola – em Hectares anos Cana-de- Café Algodão Cacau Víveres Total açúcar anual 1789 19.109 6.158 1.774 1.191 ------1816 15.684 3.923 445 652 9.937 30.733 1826 17.621 3.861 720 491 9.403 32.096 1832 20.186 3.529 208 500 10.097 34.520 1835 21.179 3.082 178 492 13.389 38.320

Fontes: Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 35 (BNF – Gallica); MAYNARD, Alphonse (La Cornillère). La Martinique en 1842: intérêts coloniaux, souvenirs de voyage. Paris: Gide Libraire-éditeur, 1843 – p. 92 (BNF - Gallica)

Entre meados do século XVIII até por volta de 1831, quando o tráfico de escravos foi definitivamente proibido nas colônias francesas, mais de 120 mil indivíduos foram embarcados no litoral da África rumo à Martinica, mas apenas 103 mil desembarcaram nesta ilha. A grande maioria desses escravos africanos saíram da África Ocidental, principalmente dos portos no Golfo de Biafra, Golfo do Benin e Costa do Ouro. Uma quantidade menor, mas significativa dos africanos escravizados foram embarcados na costa da África Centro- Ocidental, mas apenas até início do século XIX. O gráfico abaixo demonstra como o tráfico de escravos para a Martinica teve um impulso no período revolucionário, principalmente depois da abolição da escravidão em São Domingos e Guadalupe (1794). Porém, no período do império napoleônico, houve um intenso declínio da quantidade de cativos africanos trazidos para a Martinica, o que acompanhou a baixa da produção açucareira. Quando a economia no Caribe francês voltou a crescer, no período da Restauração Monárquica (a partir de 1815), o tráfico de escravos para a Martinica retomou seu impulso17, afetando o crescimento da população escrava. Em 1820, a população de escravos na ilha era de quase 77 mil indivíduos e em 1829, em torno 85 mil (veja Tabela 3 – População da Martinica, dividida entre brancos, livres de cor e escravos, 1816 – 1829, no primeiro capítulo).

17 Todos estes dados foram pesquisados em http://www.slavevoyages.org/, pesquisando a quantidade de escravos embarcados e desembarcados na Martinica, entre 1750 e 1850. 122

Gráfico: Tráfico de escravos para Martinica, 1785-1831

Fonte: http://www.slavevoyages.org

Tabela 5 – Tráfico de escravos africanos para a Martinica: origem do embarque e quantidade de escravos desembarcados na ilha, 1750-1831

Senegâmbia Serra Costa do Costa do Golfo do Golfo do África Sudeste da totais Leoa Barlavento Ouro Benin Biafra Centro- África e Ocidental e ilhas do Santa Oceano Helena Índico 1726-1750 0 733 406 428 3.232 0 547 0 5.346 1751-1775 3.915 1.541 2.583 3.681 5.002 4.790 8.543 0 29.965 1776-1800 1.018 1.345 661 5.848 895 9.450 10.356 561 30.134 1801-1825 3.236 4.088 367 0 1.204 10.709 3.767 909 24.280 1826-1850 0 0 1.718 0 0 12.078 0 0 13.796 totais 8.169 7.707 5.735 9.957 10.333 37.027 23.123 1.470 103.521

Fonte: http://www.slavevoyages.org 123

Depois de 1830, houve uma diminuição da mão de obra escrava, mas, mesmo com as políticas voltadas para a “alforria regular de diversos indivíduos” e a abolição completa do tráfico ilegal de escravos (a partir de 1831), o declínio da população escrava em geral foi lento entre 1832 e 1847. Ainda assim, neste igual período, o número de escravos empregados na agricultura cresceu em mais de 10% e o número de trabalhadores e trabalhadoras destinados à produção de açúcar aumentou por volta de 23%. Em 1832, 32.719 escravos trabalhavam nas lavouras de cana-de-açúcar; e em 1847, 40.42918. Os proprietários dos engenhos de açúcar mantiveram a expansão da indústria açucareira na Martinica obtendo trabalhadores de produções secundárias, como café, cacau, algodão. Alguns compravam as fazendas que produziam essas culturas para obterem seus escravos19. Dessa forma, neste período, era comum os grandes proprietários de engenhos de açúcar possuírem também fazendas de café, por exemplo, onde mantinham uma menor quantidade de cativos. Usavam ainda estas terras adquiridas, originalmente dedicadas à produção de outros produtos de exportação, como café, algodão, cacau ou índigo, para a produção de gêneros alimentícios. Pierre Dessalles deixa isso registrado em suas cartas e diário. Grande proprietário na Martinica, membro de uma família de colonos brancos de muito prestígio — como afirma Henri Frémont, uma “dinastia” de conselheiros que fizeram parte dos Conselhos Soberano e Colonial da Martinica entre os séculos XVIII e XIX — e que se tornou mais amplamente conhecido pelos historiadores devido à publicação de seu diário e cartas escritos entre 1808 e 185720. Era o filho mais velho de Pierre François Régis Dessales (1755-1808) e herdou uma das habitations sucrières da família, a Nouvelle Cité, em Sainte-Marie, no nordeste da ilha, uma das regiões mais férteis da Martinica, nas redondezas de Saint-Pierre. Em 1828, Dessales tinha 159 escravos empregados neste engenho de açúcar e produzia em torno de 150 toneladas de açúcar bruto. Nas cartas endereçadas a sua mãe, residente na França, ele reporta quase tudo o que fazia no gerenciamento do engenho da família, desde a produção, as relações com vizinhos e outros grandes senhores, mas principalmente o comportamento, aos seus olhos, dos escravos. Em 1839, estaria entre os sessenta engenhos mais produtivos da Martinica21. Por

18 TOMICH, obra citada, 1990, p. 86. 19 Idem, pp. 86-91. 20 DESSALLES, Pierre. La vie d'un colon à la Martinique au XIXème Siècle – Correspondance 1808 – 1834. Présentée par Henri Frémont. Courbevoie: H. de Frémont, 1980, p. 5. 21 FOSTER, Elbourg & FOSTER, Robert. Sugar and Slavery, Family and Race – The Letters and Diary of Pierre Dessalles. Baltimore; London: The Johns Hopkins University Press, 1996, pp. 3-14. 124 volta de 1823, Pierre Dessalles adquiriu na mesma região da Nouvelle Cité uma fazenda de café, que ele denomina em suas cartas La Caféière, onde se produzia também muitas das provisões que supriam de alimentos as duas propriedades, de acordo com as palavras de Dessalles em sua correspondência com a mãe:

Eu gosto daqui [da La Caféière] e acredito que esta fazenda será extremamente útil para nós e em breve fornecerá muitos dos provimentos necessários para o engenho de açúcar. Nossos víveres estão crescendo bem, e o café parece bom (…)22

Para as mulheres e homens trazidos compulsoriamente do continente africano para serem escravizados nas ilhas do Caribe, o trabalho forçado no Novo Mundo requeria uma reestruturação radical das relações sociais de trabalho sob as mais brutais condições. Eram considerados “bens móveis”23, de acordo com o artigo 44 do Édito de 1685 (Code Noir), e, a princípio, uma das poucas regulamentações sobre o trabalho escravo era o artigo 6 desse ordenação, que proibia os senhores de “fazer trabalhar seus escravos nos ditos dias [domingo e dias santos], à cultura da terra, na manufatura do açúcar, e outras tarefas”, à pena de multa e de punição para os senhores, incluindo a confiscação do açúcar e dos escravos24. Contudo, esta norma não visava evitar a exploração dos trabalhadores, mas, muitos mais, garantir que seguissem os preceitos da igreja católica. No entanto, a lei não garantia nada, de fato, ou muito menos que o “costume”, moldado na disputa cotidiana entre senhores e escravos, entre a domínio senhorial dos primeiros e a resiliência e resistência dos últimos. O artigo 22 do Código Negro previa, por exemplo, que os proprietários tinham a obrigação de fornecer o “ordinaire” (“ração” semanal) aos seus escravos acima de 10 anos, para sua nutrição, o que compreendia uma quantia de farinha de mandioca e peixe ou carne salgados. As crianças desmamadas receberiam o equivalente a metade desta ração25. Esta lei foi reforçada por meio de um decreto do Conselho Soberano da Martinica em 176526, o qual corroborava a obrigação dos senhores de escravos de fornecerem a estes a ração semanal, mesmo que uma porção de terras e o sábado fossem

22 Idem, carta n. 37, 10/12/1823, p. 62. 23 “Os Negros, os animais, os edifícios constituem o mobiliário da Habitation, e é neste mobiliário que consiste particularmente a riqueza do Proprietário”, DUTRONE, op cit, p. 330. 24 DURAND-MOLARD, op cit, t. 1, p. 42. 25 DURAND-MOLARD, op cit, t. 1,, p. 46. 26 “Arret du Conseil Souverain sur la Nourriture des Esclaves”, de 6 de maio de 1765. DESSALLES, op cit, serie 1, tomo 3, pp. 299; DURAND-MOLARD, op cit, t. 2, pp. 374-375. 125 concedidos para que escravos e escravas plantassem produtos para sua subsistência27. Porém, era muito comum que os senhores simplesmente deixassem o sábado e o pedaço de terra, sem fornecer a ração, a despeito da lei. Veremos adiante que este costume estabelecido entre senhores e escravos acabou criando um contexto de uma economia interna dos africanos e afrodescendentes escravizados, importante em seus processos de conquista da liberdade ou de “aproximação da experiência de liberdade”28. Depois de 1830, algumas tímidas reformas foram implementadas no sistema escravista nas Antilhas francesas, sobretudo pelo governo metropolitano francês. Essas medidas incluíam a “melhoria” das condições do trabalho escravo, restrições às punições e castigos empregados aos escravizados29 e a extinção definitiva do tráfico negreiro para as colônias francesas. Neste último caso, devido principalmente às pressões feita pela Inglaterra e pelos abolicionistas30. Neste período, durante a Monarquia de Julho, além das ordenações que passaram a tocar de forma positiva a questão do acesso à alforria oficial, em 1840 foi promulgada uma lei sobre a instituição religiosa e a “patronagem” dos escravos, esta última entendida como uma ação “filantrópica” do estado em relação aos trabalhadores cativos. O principal objetivo dessa legislação era implementar regulamentações e formas de fiscalização das condições vivenciadas pelos escravos nos empreendimentos rurais e mesmo urbanos. Determinava, então, regras acerca da alimentação e da manutenção do vestuário dos escravos, do regime disciplinar, das horas de trabalho e de repouso, das dispensas de trabalho motivadas

27 Esta ordenação – assim como outras do período – provavelmente foi motivada pelo período pós Guerra dos 7 anos, entre Inglaterra e França,1756-1763, e quando a Martinica permaneceu dois anos sob a possessão inglesa, entre 1762-1763. RÉGENT, Frédéric. La France et ses esclaves. De la colonisation aux abolitions (1620-1848), pp. 304, 324. 28 Essa expressão utilizada por Hebe Mattos acerca das experiências de escravos e escravas no sudeste escravista brasileiro parece fazer sentido neste contexto das roças de subsistência dos escravos da Martinica. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste Escravista, Brasil – Brasil, sec. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 137. 29 “Considerando que a legislação referente aos escravos contém penalidades que se faz necessário revogar explicitamente, seja porque a aplicação tenha cessado há tempos, seja pelo desuso, seja de acordo com ordens ministeriais ou dos atos da autoridade local, (…) [ordena] art. 1er. São e permanecem abolidos, nas colônias francesas, as penas de mutilação e de marcas estabelecidas, seja como penas principais, seja como penas acessórias, pela legislação concernente aos escravos; Art. 2: Todas as disposições contrárias contidas no Édito do mês de março de 1685 [Code Noir], na declaração do Rei de primeiro de março de 1768, e de todas as outras emitidas seja pelo governo metropolitano, seja pela autoridade colonial, estão e permanecem revogadas”. Ordennance du Roi, portant abolition de la marque et de la mutilation, 30 de abril de 1833. Promulgada na Martinica em junho de 1833. Bulletin des Actes Administratifs de la Martinique. 2re. Série – Tome VI, contenant les arrêtés et actes du gouvernement pendant l'année 1833 – (N.os 1 à 12). Saint-Pierre – Martinique. Thoubeau, Imprimeur du Gouvernement, Grande-Rue du Muillage, n. 29, 1834, pp. 95-96 (ANOM). 30 Paul Michael Kielstra. The politics of slave trade suppression in Britain and France, 1814-1848. Diplomacy, Morality and Economics. Londres: MacMillan Press, 2000. 126 pela idade, sobre os enfermos, a instrução religiosa e os casamentos dos escravos, as formas de execução das ordenações relativas aos recenseamentos e às alforrias31. Por conta dessas reformas, dos debates que elas provocaram entre colônias e metrópole e das pressões antiescravistas e abolicionistas durante a Monarquia de Julho, senhores de escravos e escravistas metropolitanos passaram a afirmar que o trabalho escravo nas Antilhas Francesas era extremamente suave, que os senhores eram até mesmo “benevolentes”. Alphonse Maynard reproduz a ideia de que na Martinica a escravidão era algo tão ameno, que “se a palavra escravo” causava repulsa entre os franceses metropolitanos, deveriam saber que na colônia “apenas o nome subsiste”, pois lá não passa de um homem que em troca de seu trabalho recebe de seu senhor toda a estrutura e cuidados necessários. Continua seu discurso retórico em prol da escravidão na Martinica, afirmando que as punições imputadas aos escravos em países como o Brasil, EUA e Cuba não existiam na Martinica. Ademais, esta colônia era injustamente comparada à mesma situação daquelas nações por “viajantes superficiais”, que não conheciam de fato o regime das possessões francesas: “A escravidão na Martinica tem apenas o nome em comum com aquilo que é praticado na Louisiana ou no Brasil”32. Seus argumentos e aqueles de Granier de Cassagnac são exemplos dos discursos que representavam a expressão política do “escravismo” francês naquele período, o qual tentava ainda se manter forte na década de 1840, a despeito do espaço que os abolicionistas haviam galgado no governo orleanista e da pressão pela abolição gradual da escravidão. Há indícios de que Granier de Cassagnac era financiado pelos colonos brancos33 e, provavelmente, Alphonse Maynard não teria viajado à Martinica em 1842, e publicado seu relato de viagem logo no ano seguinte, sem um suporte financeiro de pessoas influentes que defendiam a continuidade do sistema colonial e escravista.

31 Bulletin Officiel de la Martinique [BOM]. IVeme Série, Tome XIII, pp. 106-107 (ANOM). 32 MAYNARD, op cit, 216-217. 33 Pierre Dessalles comenta em seu diário, em 10 de setembro de 1841, sobre uma subscrição, organizada pelo prefeito do município do Robert, estava coletando subsídios em favor de Granier de Cassagnac. Dessalles comenta que os colonos do Robert estavam excitados pelos escritos deste “defensor das colônias”. FOSTER & FOSTER, op cit, p. 156. 127

As obras escritas pelo jornalista Adolphe Granier de Cassagnac34 defendiam veementemente a tese da legitimidade da escravidão, sobre a qual se afirmava que o trabalho escravo, especialmente para os africanos, seria algo melhor que a liberdade. Seus argumentos são carregados tanto de um profundo preconceito racial em relação aos africanos e seus descendentes, como de um elitismo eurocêntrico, que o resultado chega a ser grosseiro. Em seu relato sobre as Antilhas Francesas, ele afirma que o tráfico de escravos, “para os homens de bom senso, [é] um simples deslocamento de operários, com uma vantagem incontestável para estes”35. Para ele, o tráfico de escravos permitiu uma colonização da América com “operários africanos” e proporcionou a estes a melhoria do “bem-estar material e garantias morais”, pois antes de se tornarem “escravos dos brancos civilizados”, eram “meio selvagens” e “tão grosseiros, tão ignorantes, tão mal nutridos, vivendo sem família, escravos de nascimento”36. Além disso, afirma que as colônias eram formadas por três espécies, “os brancos da Europa, os negros da África, e os mulatos, mistura das duas raças”37. Granier de Cassagnac era um francês de grande influência em seu tempo, e seu texto, provavelmente, foi referência de muitos discursos escravistas e racistas. Em seu relato de viagem, a maneira como descreve os negros das Antilhas e da África e sua abordagem sobre a “mestiçagem” revelam as bases de uma ideologia “racialista”, que tomaria conta do pensamento europeu no século XIX. Principalmente entre os pensadores franceses, sendo a obra do conde Arthur de Gobineau, Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855), publicada em quatro tomos, um dos maiores exemplos da expressão daquelas concepções racistas, desenvolvidas e explicitadas com ares científicos.

34 Jennings mostra que a autocracia escravista das colônias teria investido na imprensa para influenciar as opiniões sobre a escravidão e cita principalmente o nome de Granier de Cassagnac: "(…) 1835 that the colonial aristocracy, having been rebuffed by the daily press, had obtained the services of one of the leading defenders of servitude, Granier de Cassagnac, to publish articles in the Revue des deux mondes, a periodical sympathetic to slavery throughout the July Monarchy.' This information coincides with an affirmation by Granier de Cassagnac in a letter, read in the Chamber of Deputies on 6 March 1841, that he had received a total of 6,000 francs between 1835 and 1837 from the delegates of Guadeloupe for his journalistic efforts. If the planters had been spurned initially by the daily press, their rejection did not last long. It was common belief at the time that they sponsored the founding in 1837 of L'Outre-mer, dominated by Granier de Cassagnac and the colonies during its entire existence. This ephemeral organ, which subtitled itself the "Journal des interets maritimes et coloniaux," apparently was heavily subsidized by the colonial councils until the delegates of Guadeloupe recommended the interruption of payments”, in JENNINGS, Lawrence C., "Slavery and the Venality of the July Monarchy Press ", French Historical Studies, Vol. 17, No. 4 (Autumn, 1992), pp. 957-978 (acessado em 21/01/2014). 35 GRANIER de CASSAGNAC, Adolphe. Voyages aux Antilles françaises, anglaises, danoises, espagnoles, à Saint-Domingue et aux Etats-Unis d’Amerique. Premier Partie: Les Antilles Françaises. Paris: Dauvin et Fontaine Libraires, 1842, p. 137. 36 Idem, p. 141. 37 Idem, p. 99. 128

Alphonse Maynard, apesar de sua obra expor algumas informações baseadas em pesquisas sobre a Martinica, apresentando dados censitários sobre a população e a economia da Colônia, de acordo com aqueles coletados pelo Ministério da Marinha e das Colônias (França) — diferentemente de Granier de Cassagnac —, também contribuiu com seu quinhão racista em seu relato de viagem. De acordo com Maynard, as “raças negras, sucumbidas a uma vergonhosa ociosidade, embrutecidas por longos séculos de barbárie”, deveriam “submeter-se à escravidão às raças brancas”:

Assim, a escravidão, considerada como um estado transitório, não ultraja em nada a humanidade, pois tem como resultado a melhoria de uma raça que, sem esta iniciação à nossa civilização, permaneceria escrava de uma aviltante barbárie, incapaz de progredir; a humanidade assim dá um passo imenso (...)38

Tanto Granier de Cassagnac como Maynard expressaram em seus discursos escravistas uma forma de racismo que ainda não carregava elementos do racismo biológico, o qual ganha força a partir de meados do século XIX. Seus argumentos utilizados para justificar a escravidão a partir da noção de raça ainda reproduzem as noções de um racismo funcional, como define Jean-Luc Bonniol, ao tratar a intensificação do "preconceito de cor" durante o século XVIII39. No entanto, havia ainda colonos brancos que chegavam ao deboche de afirmar que a escravidão era muito mais um fardo para os senhores que para os escravos nas colônias francesas. Félix Patron, senhor de escravos de Guadalupe e representante dos proprietários brancos em Paris, publicou uma brochura em 1831, intitulada “Des noirs. De leur situation dans les colonies françaises”. O subtítulo desse texto provoca o leitor exatamente no sentido do argumento sobre a “brandura” da escravidão nas Antilhas francesas, pois nele questiona: “L’esclavage n’est-il pas un bienfait pour eux et un fardeau pour leurs maîtres”, “a escravidão não é um benefício para eles [os negros] e um fardo para seus senhores”? Patron escreveu esta obra em resposta à Victor Schoelcher, abolicionista francês, que havia acabado de publicar um de seus primeiros textos sobre a situação dos negros escravizados nas Américas, na Revue de Paris (“Des Noirs”, vol 20, 1830). Patron afirma ironicamente que era “muito interessante a maneira como ele [Schoelcher]” representava a “situação infeliz” da classe dos negros. No

38 MAYNARD, Alphonse (pseudônimo Conde de La Cornillère). La Martinique en 1842: intérêts coloniaux, souvenirs de voyage. Paris: Gide Libraire-éditeur, 1843, pp. 216-217 (BNF – Gallica), p. 218. 39 BONNIOL, op cit, p. 100. 129 entanto, “sem descordar que a melhoria da sorte destes indivíduos seja desejável”, não compartilhava de forma alguma da opinião do abolicionista em relação à “situação presente” na qual se encontravam os escravos nas colônias francesas. Entre 1829 e 1830, Schoelcher havia visitado o sul dos EUA, o México e Cuba, mas não as Antilhas francesas, por isso, Patron o convida a visitar as grandes propriedades rurais de Guadalupe e Martinica, onde ele constataria que “os bons sujeitos usufruem de uma comodidade e um bem-estar desconhecidos pela maior parte dos camponeses da Europa”40 (grifo meu). Sobretudo nas décadas de 1830 e 1840, tornou-se muito comum, tanto entre os defensores da escravidão nas Américas, como entre os antiescravistas, comparar a situação dos escravos das colônias com aquelas dos operários e camponeses europeus. Especialmente os escravistas, mas também o governo metropolitano e a administração colonial, afirmavam que a escravidão nas colônias francesas era um sistema de trabalho ameno, que beneficiava os negros escravizados41. No entanto, mesmo o abolicionista Victor Schoelcher parece ter se deixado seduzir pelo discurso dos colonos brancos. Entre 1840 e 1841, ele viajou às Antilhas Francesas42 e foi recebido nos engenhos de açúcar por grandes proprietários de Guadalupe e Martinica43. O autor descreve um pouco do trabalho realizado nessas habitations sucriéres, de uma forma que nos remete à leitura do texto escrito por seu oponente, Félix Patron. No terceiro capítulo de seu livro Des Colonies françaises, abolition immédiate de l’esclavage, intitulado “Trabalho dos escravos”, Schoelcher afirma

40 PATRONFélix Patron. Des noirs, de leur situation dans les colonies françaises. L’esclavage n’esti-il pas un bienfait pour eux et un fardeau pour leurs maîtres? Paris: Charles Mary Libraire, 1831, p. 5 (BNF – Gallica). 41 Um relatório da administração colonial da Martinica de 1828 afirma que nesta colônia “o regime dos ateliers” era “muito suave”: “Le régime des ateliers, habituellement assez doux à la Martinique, se devient de jour en jour encore davantage, et ce genre d’amélioration ne peut que faire de nouveaux progrès – maintenant que l’intérêt des colons vient plus que jamais, par l’abolition de la traite, fortifier leurs sentiments d’humanité et de paternité. Il est visible que les soins des propriétaires tendent principalement à conserver et à multiplier leurs esclaves, en facilitant autant que possible leurs travaux, en assurant leur subsistance, en surveillant les soins nécessaires à la première enfance. Au total, il est reconnu que la condition d’un esclave (...) est bien préférable à celle des trois quarts des cultivateurs du globe”. ANOM – SG – Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique envoyé en exécution de la circulaire ministérielle du 25 février 1823, Martinique 1826-1828 (manuscrito). 42 Antes disso, Schoelcher havia estado entre 1829-1830 no México, em Cuba e sul dos Estados Unidos, por isso Félix Patron o provoca, convidando-o a visitar as Antilhas Francesas. Porque Scholcher havia escrito sua primeira obra sobre a escravidão nas Américas, baseado nesta primeira viagem. Ver SCHMIDT, Nelly. Victor Schoelcher et l’abolition de l’esclavage. Paris: Fayard, 1994. 43 De acordo com Schoelcher, que obteve informações de seus “anfitriões”, grandes senhores de escravos, aos quais “dedica” sua obra – talvez como uma provocação, ainda que pareça sincero em seus agradecimentos. Schoelcher narra situações observadas e relatadas a ele sobretudo por senhores de escravos da Martinica, como De la Perrinelle, da região de Saint Pierre, o senhor Brières do Macouba, senhor Tiberge, senhor de engenho na comuna do Robert; senhor Meat-Dufourneau. 130 logo no início do texto que “os escravos fazem aquilo que devem, e os senhores hoje não lhes demandam mais do que podem fazer”. Ademais, relata que o escravo trabalhava de nove a dez horas de acordo com a duração do dia — das cinco às oito horas da manhã, das nove ao meio dia, e das duas às seis horas da tarde — e “o resto do tempo lhe pertence”44. É certo que as condições específicas de trabalho não eram o principal alvo das críticas de Schoelcher. O abolicionista condenava, sobretudo, as arbitrariedades cometidas pelos senhores no controle e disciplina dos escravos, por meio de punições abusivas45, e a “desumanização” gerada pela situação de um indivíduo ser propriedade escrava de outro46. Félix Patron descreve de forma semelhante a Schoelcher, e antes deste, o trabalho nos engenhos, inclusive especificando em que idade as crianças eram colocadas no eito da roça, acreditando expor, dessa forma, a generosidade dos senhores com os africanos e seus descendentes, reduzidos à escravidão desde as mais tenras idades. O trabalho escravo na maioria das habitations das Antilhas Francesas era organizado em “ateliers”, sistema de equipes nas quais eram divididos os cativos que labutavam no campo:

(…) aos noves ou dez anos começamos a utilizá-las [as crianças escravas]; forma- se o que chamamos de pequeno grupo [petite bande]; elas se ocupam de arrancar as ervas daninhas que brotam entre as canas e a trabalhos deste gênero. Na idade de doze à quinze anos os fazemos de condutores de arado, de charrete, de pastores de animais. De dezesseis a dezessete anos, de acordo com sua força, eles são passados ao grand atelier, isto é, entre os pretos [usa o termo nègres] que plantam a cana, adubam a terra, trabalham no moinho durante a colheita, ou seja, os trabalhos mais pesados. Estes pretos começam ordinariamente o trabalho ao amanhecer e terminam às seis horas da tarde; eles tem uma hora pela manhã para o café da manhã e duas horas ao meio dia para o almoço; ao final do dia eles levam o capim para os animais, fazem a prece juntos diante da casa do proprietário, e em seguida são livres para fazerem o que quiserem47.

44 SCHOELCHER, Victor. Des Colonies françaises. Abolition immédiate de l’esclavage. Paris: Éditions du C.T.H.S, 1998. [1842], p. 22 45 Schoelcher dedica ao menos dois capítulos inteiros para tratar de relatos de punições e castigos utilizados nas Antilhas Francesas: no Capítulo 4, “O escravo não tem nenhuma garantia contra a arbitrariedade do senhor”, onde narra casos extremamente cruéis de punições contra homens e mulheres escravizados; e no Capítulo 7, “O chicote” [Le Fouet], dedica especialmente a este instrumento de tortura e disciplina. Schoelcher, Des Colonies françaises,pp. 27-44; 83-98 46 “Que l’esclavage soit ou ne soit pas utile, il faut le détruire; une chose criminelle ne doit pas être nécessaire. (…) La violence commise envers le membre le plus infime de l’espèce humaine affecte l’humanité entière; chacun doit s’intéresser à l’innocent opprimé, sous peine d’être victime à son tour, quand viendra un plus fort que lui pour l’asservir. La liberté d’un homme est une parcelle de la liberté universelle, vous ne pouvez toucher à l’une sans compromettre l’autre tout à la fois”. Schoelcher, op cit (1842), p. 384 47 PATRON, op cit, pp. 8-9 131

Diversas pesquisas, desde a década de 1970, têm procurado demonstrar que o trabalho escravo não era apenas conduzido pelas imposições do senhor, tratando de formas de resistência escravas desde o cotidiano nas lavouras aos espaços de socialização. Nesse sentido, como afirma Robert Slenes, o discurso dos senhores, preocupados em “manter seu domínio”, “traduzia, entre outras coisas, a necessidade de se convencerem a si mesmo de sua capacidade de controlar seus subordinados. Frases tais como “o escravo que possui nem foge, nem faz desordens” nasciam exatamente para isso. São declarações que transformam processos históricos reais e de mão dupla em axiomas, nos quais aparentemente só o enunciante detém a iniciativa”48. Desse modo, ainda que na descrição de Félix Patron, citada anteriormente, a imposição e gerenciamento do senhor de engenho se destaquem, é possível inferir que aquele fosse mais ou menos o ritmo que, nas décadas de 1830-1840, os próprios escravos admitissem imprimir à produção. Dedicando de nove a dez horas, o que não é pouco tempo49, ao trabalho pesado na lavoura de cana, poderiam usar o resto do tempo “para fazerem o que quiserem” ou o que necessitavam para a manutenção de suas vidas. Isso incluía ações como o cultivo de suas roças e hortas, a formação de um pecúlio, a socialização em suas kalendas, a construção e cuidados de suas relações familiares, de suas redes de solidariedade e de espiritualidade, a experiência de seus conflitos, a sobrevivência cotidiana de um “mundo íntimo”50 ao qual os senhores não tinham acesso de fato, e nem mesmo conseguiam compreender. Victor Scholcher narra, acerca de sua viagem à Martinica por volta de 1840, que muitos proprietários o levaram com muita discrição para adentrar as cabanas de alguns cativos, porque “os negros não gostam que os brancos lá penetrem”. O abolicionista destaca que um ditado dos escravos51 traduzia esse sentimento e costume, dizendo que “olho dos brancos queima os negros” (“zié bequés boulé dos negues”)52.

48 SLENES, op cit, 2011 (c. 1999), p. 212. 49 O que obviamente não é pouco tempo para o trabalho no campo, no entanto, mesmo um abolicionista “socialista” como Victor Schoelcher – que não era nem operário nem tinha nenhuma experiência próxima da escravidão – afirma que era uma jornada de trabalho “devidamente calculada”: “Esta proporção [da divisão das nove a dez horas de trabalho] é razoável e devidamente calculada para um país onde o clima impede que se abuse das forças do homem”. SCHOELCHER, op cit (1842), p 22. 50 Slenes, op cit (2011), p. 212-213. 51 Schoelcher coleta dezenas de ditados das colônias, aparentemente criados pelos africanos e seus descendentes, escravizados e libertos, e os publica em sua obra. É uma riqueza sobre a qual ainda não encontrei nenhum trabalho de pesquisa historiográfica e antropológica. Ver Schoelcher, “Proverbes et locutions nègres”, op cit (1842), pp. 417-434. 52 Schoelcher, op cit (1842), p. 4. 132

Enquanto as relações de trabalho se tornavam cada vez mais o ponto central da resistência escrava, suas ações não se reduziam simplesmente à luta econômica em seu sentido estreito. Sua agência encerrava também uma resistência cultural generalizada e complexa às imposições de toda uma dinâmica de vida infligida a uma população subalterna. Neste conflito não estavam implicadas apenas as condições específicas de trabalho, mas questões mais amplas e que envolviam o lugar do trabalho na vida social. Para as mulheres e homens escravizados no Novo Mundo, a plantation era o locus de uma rede de solidariedades e instituições, conflitos, crenças e valores que formavam uma comunidade e culturas distintas e autônomas53. Neste mundo, que os brancos europeus viam mas mal compreendiam, observamos vários indícios da importância das mulheres nas dinâmicas culturais do mundo da habitation. Uma presença gealmente silenciosa ou invisibilizada, como quando Schoelcher descreve as senzalas e comenta que o canari, peça essencial dos “barracos dos negros”, estava sempre sobre o fogo aceso. Muitos viajantes descrevem a “habitation”, principalmente os engenhos de açúcar da Martinica, como uma “pequena vila”54. Provavelmente, esse aspecto de um pequeno vilarejo era engendrado, sobretudo, pela imensa comunidade formada por africanos e seus descendentes escravizados, habitando em seus barracos, que pareciam formar uma pequena vila camponesa, forçados a trabalhar nas lavouras dos brancos, mas procurando e (re)criando meios de sobreviverem às relações de dominação em seus cotidianos. Granier de Cassagnac narra que as “cases à nègres” (senzalas) costumavam ser de sessenta a cem fogos naquelas grandes propriedades, e as descreve como pequenos casebres, feitos de madeira ou barro, compostos de dois cômodos, um que serve de cozinha, e o outro que serve de quarto de dormir. Em algumas fazendas eram construídas desordenadamente, em outras eram alinhadas formando ruas, mas estavam quase sempre “a mais ou menos uns cem passos da casa grande”55. No engenho de açúcar visitado por Alphonse Maynard na Martinica, onde viviam 255 pessoas escravizadas, entre mulheres, homens, crianças e idosos, o viajante contou 150 “barracos de negros”56. Schoelcher descreve com mais detalhes, e talvez precisão, essas cabanas. Em geral, eram feitas de ripas de madeira ou treliças de bambu, revestidas com barro

53 TOMICH, op cit, 1990, 216. 54 SCHOELCHER, op cit, 1842, p. 24. 55 GRANIER DE CASSAGNAC, op cit, p. 106. 56 MAYNARD, op cit, p. 98. 133 e cobertas com folhas de cana, formando um cômodo quadrado, separado em duas partes por uma pequena divisória. Eram mobiliadas com simplicidade — uma prancha de madeira como cama, às vezes um banco ou uma cadeira, alguns potes de cerâmica —, internamente escuras e esfumaçadas pelo fogo constante sob o “canari”, sustentado por três pedras. De acordo com Schoelcher, o canari era uma tipo de caldeirão e era “a peça capital” do ambiente doméstico dos escravos57. Neste espaço, o canari sobre o fogo, como elemento essencial de cada senzala, muito provavelmente era mantido e alimentado pelas mulheres. Robert Slenes trata da importância do fogo dentro das senzalas no Brasil e destaca relatos de viajantes, os quais descrevem a presença constante do fogo dentro dos barracos dos escravos, além de uma gravura de J. M. Rugendas que retrata a habitação dos negros58. Nestas fontes, a mulher era sempre a responsável por essa “peça capital”, o fogo, mas também o caldeirão sobre ele. De acordo com Slenes, esse costume de manter uma chama acesa dentro das moradias escravas era associado às várias dinâmicas do cotidiano nas senzalas, desde manter animais e insetos distantes do ambiente interno a “rituais associados às refeições”59, à necessidade do fogo de uma forma geral para cada unidade familiar e para as relações comunitárias, onde a mulher negra era uma protagonista, que por vezes passa quase invisível aos olhares brancos. Neste mesmo sentido da análise, entre visões de brancos, e aquilo que conseguimos observar nas entrelinhas sobre as adaptações, resistências, sobrevivência e herança cultural africana nas plantations das Antilhas Francesas, nota-se que quase todas as narrativas de viajantes evidenciam o fato dos homens e mulheres escravizadas entoarem cantos e tocarem tambores enquanto labutavam nas lavouras de cana. Schoelcher afirma que esse costume era uma “importação africana” e que parecia suavizar o trabalho pesado:

Em cada “atelier”, há um cantor ou cantora [chanterelle] que, posicionada atrás dos trabalhadores e apoiada sobre o cabo da enxada faz ouvir algumas melodias de um ritmo cadenciado, das quais os outros repetem o refrão. Não saberíamos dizer o

57 SCHOELCHER, op cit (1842), pp. 2-3. Dale Tomich, baseando-se em todos estes relatos, faz uma descrição dessas cabanas, mas não comenta sobre o “canari”: “Havia, em geral, três tipos de casas de escravos na Martinica: as de pedra ou alvenaria com tetos de telhas; as de tábuas com tetos de palha; e as de ripas com bambus rebocados de barro, também com tetos de palha. (…) A cabana, fosse de que tipo fosse, tinha geralmente de cinco a seis metros de comprimento por quatro de largura. Um tabique dividia-a em cozinha e quarto de dormir. Não havia chaminé e a única luz penetrava ela porta, que nunca tinha mais de um metro e trinta de altura”. TOMICH, “Terrenos contestados”, op cit (2011), p. 215. 58 “Habitation de nègres”, litografia de I.L. Deroi com base em um desenho de Rugenstas, in Johann Morittz Rugenstas, Voyage pittoresque dans le Brésil, reproduzida in SLENES, op cit, p. 164. 59 SLENES, op cit, pp. 185-187. 134

quanto esta música alivia a fadiga. A associação tem virtudes tão poderosas que mesmo o trabalho escravo feito em comum, apresenta um aspecto menos triste que o trabalho solitário e lúgubre de nossos camponeses60.

Schoelcher usa o termo “chanterelle” — em itálico no texto original, dando destaque à palavra — para se referir à mulher que entoa a ladainha no campo, e caso fosse um homem a pessoa que cantava, “chanteur” (cantor). No entanto, o feminino deste substantivo em francês é “chanteuse” (cantora). Quanto à “chanterelle”, o Dictionnaire de l’Académie française, 6a. Edição (1835)61, apresenta três significados: “(1) s. f. A corda de um violino, de um baixo, etc., que é a mais desatada, e que tem o som mais agudo. Colocar uma chanterelle. Levantar a chanterelle; (2) diz-se também de uma garrafa de vidro muito fina, da qual se tira sons muito agradáveis soprando o bocal; (3) em termos de caça, diz-se de um pássaro que é colocado em uma gaiola no meio de uma floresta ou de uma campanha, de modo que com seu canto atraia as outras aves às redes estendidas para lhes prender. A chanterelle atraiu muitos pássaros”. Provavelmente Schoelcher utilizou a palavra “chanterelle” como um jogo de significados, que representa tanto a corda do violão ou do baixo que produz o som mais agudo, a garrafa de vidro delicado de onde se tira sons muito agradáveis, e, finalmente, o pássaro usado na caça, colocado em uma gaiola, no meio do bosque ou do campo, para cantar e atrair outros pássaros. É possível que Schoelcher tenha se referido à escrava que canta a ladainha na roça especialmente nesta última definição de “chanterelle”, relacionando a escravidão à gaiola e o fato de um pássaro que se destaca cantar para os outros que terão seu mesmo destino desafortunado. Em todo caso, ao distinguir a mulher como a “chanterelle”, Schoelcher nos dá indícios do papel de destaque ocupado por estas escravas nos ateliers das fazendas. Granier de Cassagnac retrata uma cena semelhante àquela dos cantos dos escravos nos campos. Ele narra que os negros, e não distingue gênero, que trabalhavam a terra para a plantação da cana, “para dar regularidade à sua tarefa”, seguiam o ritmo de um tambor e de

60 SCHOELCHER, op cit, 1842, p. 23. 61 “(1) s. f. La corde d'un violon, d'une basse, etc., qui est la plus déliée, et qui a le son le plus aigu. Mettre une chanterelle. Hausser la chanterelle; (2) se dit aussi d'une bouteille de verre fort mince, dont on tire des sons très-agréables en soufflant dessus; (3) en termes de Chasse, se dit d'un oiseau que l'on met dans une cage au milieu d'un bois ou d'une campagne, afin que par son chant il attire les autres oiseaux dans les filets tendus pour les prendre. La chanterelle a attiré beaucoup d'oiseaux”. O Dictionnaire de l’Académie française, 6a. Edição (1835), foi consultado 18/03/2015 em: http://artfl-project.uchicago.edu/content/dictionnaires-dautrefois . 135 um canto. No entanto, destaca que enquanto um homem tocava o tambor, uma mulher era a responsável por puxar a canção:

(…) um negro se coloca a uma pequena distância [do grupo], montado sobre seu tambor, como em um bamboula; ele começa a bater com vigor, realmente como se ele dançasse. Ao mesmo tempo, uma negra se coloca a cantar uma canção improvisada sobre qualquer assunto, e todo o grupo cava em ritmo e em tempos iguais. Não se pode ter ideia do furor que esta música, a qual todos se agregam cantando o refrão, comunica aos negros. Este método é aplicado apenas na plantação de cana (…)62 [grifo meu]

Há um registro mais interessante ainda sobre este costume de cantar no eito da roça, pois fez chegar até nossos dias uma dessas canções entoadas por escravas e escravos. G. Giraud, administrador da habitation Reiset, na ilha de Guadalupe, escrevia constantemente ao proprietário que estava na França na década de 1820. Nesta época, tanto a situação política em São Domingos como a independência desta colônia já havia marcado o imaginário senhorial. Ademais, outros fatos que se seguiram, ligados a este país governado por ex-escravos, contribuíram bastante para agitar os espíritos no Caribe. Em dezembro de 1821, Boyer, presidente do Haiti, anexou a parte espanhola da ilha e lá proclamou a abolição da escravidão em fevereiro de 1822. Durante a primeira metade do século XIX, a população branca e sobretudo os senhores de escravos das Antilhas francesas pareciam viver uma psicose coletiva e um medo do “complô negro”, que os faziam desconfiar tanto dos escravos como da população livre de cor, ou de uma cumplicidade entre estas classes63. Duas das cartas de Giraud, de outubro e novembro de 1829, traduzem bem este estado de tensão neste período. Ele revela em sua narrativa o “terror” e “pânico” da administração colonial e dos habitantes e afirma que a “igualdade entre as classes livres (…) era coisa impossível”, referindo-se às classes dos brancos e dos livres de cor. Giraud narra que, apesar da aparente tranquilidade naqueles arredores, os “livres de cor” — “capazes de refletir” sobre aquele clima de tensão na classe senhorial —, ao se encontrarem, apertavam as mãos dizendo um cumprimento que ironizava o sentimento dos brancos: “Eh ben! Ké nouvelles? Blanc ka chiés dans cullotes à io” [Eh bem! Quais as novidades? Branco aqui se caga nas calças à io]64.

62 GRANIER DE CASSAGNAC, op cit, pp. 308-309. 63 Esclaves – Regards de Blancs, 1672 – 1913, ANOM, p. 143. 64 Idem, p. 143. 136

Contudo, não apenas os livres de cor eram “capazes de refletir” e fazer chiste do medo difundido entre os brancos. Os escravos dos campos pareciam estar em sintonia com os libertos, traduzindo em seus cantos a sua forma de explicar o terror dos brancos e a tensão nas colônias. De acordo com as evidências anteriores, muito possivelmente uma das mulheres era responsável pelas ladainhas entoadas. A carta do administrador Giraud evidencia a importância destes cantos do trabalho da roça, que parecem ao mesmo tempo servir de registro dos acontecimentos, da forma de pensar e explicar o mundo a sua volta e de transmiti- la aos seus, assim como um meio de comunicar aos senhores brancos e avisá-los ou lembrá- los que eles, os escravos, não estavam alheios aos acontecimentos da colônia:

(…) os escravos mesmo, segundo seus costumes, já colocaram o evento em canção. Eu escutei recentemente o seguinte refrão da boca de vossos escravos: Os brancos estão patrulhando, armas e equipagem, todas as noites / eles veem espíritos e dizem que são escravos fugidos/ eles veem espíritos e dizem que são escravos fugidos / são espíritos e dizem que são escravos fugidos / eles amarram os espíritos e dizem que são escravos fugidos.65 [grifo meu]

Maynard descreve o “bamboula”, o qual Granier de Cassagnac menciona e compara ao que ele pôde assistir nos campos de cana. No entanto, diferentemente dos cantos da lavoura, o “bamboula” era um festejo realizado com a presença de escravos e libertos, talvez similar ou o mesmo que as “kalendas”66 do século XVIII. A despeito da possível visão enviesada de Granier de Cassagnac, a descrição de Maynard sobre o bamboula apresenta similaridades à cena narrada pelo primeiro, observada na lavoura de cana-de-açúcar, pois destaca também a presença do homem tocando o tambor e da mulher como a cantora que lidera o canto e o grupo. Vale a pena reproduzir o trecho no qual o viajante descreve seu encontro com o “bamboula” que ocorria na “savana” próxima à cidade de Saint-Pierre, em

65 Giraud transcreve o refrão da música em creole e logo na sequência fornece a tradução em francês: “Les blancs font patrouille, armes et bagages, toutes les nuits / io ka voë zombie, io ka di c'est nègres marrons / io ka tien ben zombie, io ka di c'est nègres marrons / io ka maré zombie, io ka di c'est nègres marrons / Ils voient des revenants et disent que ce sont des nègres marrons / Ils voient des revenants et disent que ce sont des nègres marrons / Ils prennent des revenants et disent que ce sont des nègres marrons / Ils amarrent des revenants et disent que ce sont des nègres marrons”. Carta de G. Giraud, Lamentin (Guadalupe), 1 de novembro de 1829. FR ANOM 170 APOM/5, Esclaves – Regards de Blancs, 1672 – 1913, ANOM, p. 163- 164. 66 Pierre François Regis Dessalles, colono branco da Martinica no século XVIII, descreve o que se conhecia por “kalendas” (calendas): “Denomina-se kalenda uma reunião de negros onde eles dançam a seu modo, todos juntos ao de um tambor e de um instrumentos que eles chamam de banza. Este tambor é frequentemente [feito de] um terço de barril, às vezes [feito com] o primeiro pedaço de madeira que eles encontram; é uma dança muito lasciva e bastante fatigante”, in DESSALES, Adrien, op cit, p. 297 (manioc.org). 137

1842. Apesar da enunciação de sentimentos de terror e medo, e da narração que exprime o que para o francês metropolitano parecia a expressão cultural da barbárie dos africanos pagãos, transparece em seu relato algo que parece nos levar ao “O reino deste mundo” de Alejo Carpentier. Alphonse Maynard não percebe que narra o “real maravilhoso”67, mas faz transparecer um pouco do “outro”68 que lhe causa tanta estupefação, ainda que contraditoriamente ele insista em descrever este outro como uma “raça inferior” e como “selvagem”69. Não obstante o viajante tenha ficado impressionado com o homem que tocava o tambor, a presença e os lugares, de aparente influência, ocupados pelas mulheres neste festejo se destacam na narrativa:

Na noite de minha chegada [em Saint-Pierre, Martinica], realizou-se o bamboula (…) A noite chegou, eu fui à savana, seguindo ao longo do boulevard, admirando esta natureza grandiosa, que se suspende em um morro íngreme sobre a vila, coberto de uma vegetação luxuriante que enfeita por toda parte, oferecendo seus frutos perfumados e tão belos; em seguida, essas palmeiras, que parecem sempre esperar a brisa, sob a qual elas se dobram. Aproximando-me, escutei um barulho estrondoso e vibrante, que ressoou dentro de meu peito com uma sensação de terror, seguido de luzes que perfuraram o véu de sombra que o céu havia jogada sobre a savana; nunca esquecerei a impressão que me causou esta dança selvagem do negro da Guiné, dança conduzida por um tambor de madeira tocado pelos dedos lépidos de um preto nu até a cintura; às vezes [tocada] numa medida, que sua cadência sobre as palavras cantadas, cujo significado permanece desconhecido, e que um refrão anima, é viva, acelerada; às vezes [tocada] lenta, suavizada, a voz do coro assume, e então ela explode em notas sonoras e retumbantes; a paixão se mostra sombria, enérgica; todas as faces se inflamam, a luxúria aparece em todos os traços; todos cantam, se balançam, participam desta tripla unidade que se compõem de um músico, da corista e da dançarina. Esta dança, que eu denomino a dança lírica do amor africano, se compõe de nada, porque ela não tem nenhum passo, com um pouco de contorções, os pretos procuram apenas desdobrar sua agilidade em saltos e piruetas. O preto sabe tirar de um tambor sons terríveis; ele

67 Alejo Carpentier afirma que os europeus colonizadores são incapazes “de conceber uma mística válida ou de abandonar os hábitos mais mesquinhos para jogar a alma na temível carta de uma fé. Isso ficou particularmente evidente para mim durante minha permanência no Haiti, ao me ver em contato cotidiano com algo que poderíamos chamar de real maravilhoso. Pisava eu uma terra onde milhares de homens ansiosos por liberdade acreditaram nos poderes licantrópicos de Mackandal, a ponto de que essa fé coletiva produzisse um milagre no dia de sua execução. (…) Mas pensava além disso, que essa presença e vigência do real maravilhoso não era privilégio único do Haiti, mas sim patrimônio da América inteira, onde ainda não se terminou de estabelecer, por exemplo, um inventário de cosmogonias. (…) é que, pela virgindade da paisagem, pela formação, pela ontologia, pela presença fáustica do índio e do negro, pela Revolução que constitui seu recente descobrimento, pelas fecundas mestiçagens que propiciou, a América está muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias”. CARPENTIER, Alejo. O Reino deste mundo. (Trad. Marcelo Tápia). São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 9-11 (“Prólogo”). 68 Sobre os olhares europeus sobre a América, e noções como “zona de contato” e “transculturação”, ver PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999 69 “(…) esta raça africana é, certamente, inferior à raça branca”; “(…) as raças negras, sucumbidas por uma vergonhosa ociosidade, embrutecida por longos séculos de barbárie, (…) devem submeter-se à escravidão às raças brancas”, in MAYNARD, op cit, p. 19; p. 218 138

lhe faz cantar todas as suas paixões impetuosas, exprimir o ardor de seus desejos, perseguir o objeto cobiçado, a vitória mesmo. As pretas levam bandeiras ornadas de insígnias, que distinguem as diversas confrarias, ou velas que elas balançam, cobrindo-se em uma nuvem de fagulhas. Eu admito, este espetáculo me apavora: nunca me vi em semelhante reunião. Estas organizações me aterrorizam; eu temi. Meus olhos não conseguiam se despregar deste preto, que, com seu tambor entre as pernas, olhava a mulher líder do grupo, que lhe repetia sua melopeia (…)70 [grifos meus]

Observando a importância das mulheres naquela comemoração, a partir apenas deste relato, não temos como afirmar se eram escravas ou libertas. Contudo, eram as responsáveis pelos estandartes das confrarias e uma delas parecia exercer naquele ritual do bamboula, assim como as mulheres que puxavam o canto na roça, um papel de liderança de seu grupo. De alguma forma, o fato de estrangeiros de diferentes cores políticas, como o abolicionista Schoelcher e escravistas como Granier de Cassagnac e Alphonse Maynard, serem “autorizados” a observar e escutar a música que embalava o trabalho pesado nos grandes engenhos de açúcar, a socialização dos escravos e libertos, e ainda destacarem a utilização daquele “método” (do uso do tambor e do canto) durante o plantio de cana, indicam a complexidade das relações estabelecidas entre senhores e escravos nas colônias francesas do Caribe. Por um lado, os escravos, numa intrincada mistura de acomodação e resistência, lutavam dentro e contra o quadro imposto a eles, e nesta sua luta cotidiana desenvolviam valores, ideias e expressões culturais que lhes permitiam afirmar seus próprios objetivos, necessidades e ritmos na vida social e de trabalho, e resistir às definições impostas pelos senhores. Por outro lado, os senhores procuravam constantemente se apropriar das iniciativas dos escravos na organização do trabalho para seus próprios interesses. Como aponta Slenes sobre o sistema escravista no Brasil, delineia-se nestes contextos aspectos e resultados de “lutas miúdas”, de estruturas complexas e cotidianas, entre os “campos de força” do mundo do trabalho escravo71 — aqui neste caso, na Martinica. Para os escravos das plantations nas Américas e no Caribe, “uma experiência comum, percebida como severamente opressiva”, levava-os a construções de identidades

70 MAYNARD, op cit, pp. 127-129. 71 Quando utiliza “campos de força” (nota 178, p. 235), Slenes se refere à E. P. Thompson, A miséria da teoria. Robert W. Slenes. Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2011, pp. 205; 235. 139 baseadas em “classe”, como afirma Slenes72. Contudo, o desafio neste trabalho de pesquisa é, a partir do campo da história social, analisar dentro destes processos, que encerram experiências baseadas em classe e origem ética — e ainda construções de laços familiares e de solidariedades, de conflitos, de dominação e resistência —, as questões de gênero imersas nas experiências escravas, sobretudo na conquista de autonomia e, oxalá, da liberdade. Procuramos, assim, compreender os indícios de experiências vividas por mulheres africanas e afrodescendentes, escravizadas e em vias de liberdade, e a importância de suas atuações dentro de suas relações familiares e das comunidades escravas e libertas na Martinica do século XIX.

3.2 – MULHERES NO EITO DA LAVOURA, DAS ROÇAS E DAS FAMÍLIAS

“Todo o edifício das colônias repousa hoje, e repousará por um longo tempo ainda, sobre a raça negra que as cultiva” (SCHOELCHER, 1842, p. 1)

“(...) de um lado, a população masculina de um atelier se ocupa dos trabalhos especializados, de outro, a população feminina excede um pouco a dos homens, segue-se portanto, necessariamente, que o número de mulheres dever ser maior nas lavouras” (Idem, p. 24)

O trabalho escravo na maioria das plantations das Antilhas Francesas era organizado em “ateliers”, sistema de equipes de trabalho, descrito em diversos manuais de colonos proprietários e viajantes. Dutrône os descreve para São Domingos73, Félix Patron para Guadalupe, Alphonse Maynard para a Martinica, para citar alguns. Schoelcher usa o termo “rangs” (fileiras) para se referir aos grupos de escravos que partiam para o trabalho nas

72 Slenes, Robert W., “A ‘Great Arch’ Descending: Manummission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and Free(d) Black identities in Southeastern Brazil, 1791-1888”, in GLEDHILL, John & SCHELL, Patience A. (orgs.). New approaches to Resistance in Brazil and Mexico. Durhan, London: Duke University Press, 2012, p. 105-106. 73 “Chamamos Atelier Geral, o conjunto de todos os negros empregados em uma Habitation. Este Atelier se divide, de acordo com a força dos negros, em Grande e Pequeno. O Grande Atelier é formado pelos negros que são bastante fortes para suportar todos os trabalhos. Os Negros fracos formam o pequeno”. Dutrone, J.F. Precis sur la canne et sur les moyens d’en Extraire le sucre. Paris: 1797, p. 335. 140 plantações, provavelmente por observar como se organizavam para o eito nas roças de cana- de-açúcar. Ainda de acordo com ele, estas fileiras que partiam para a lavoura eram formadas por grupos grandes de 30, 40 ou 50 trabalhadores, homens e mulheres, sob a direção de um ou dois commandeurs. Estes eram sempre homens, encarregados de vigiar os escravos e que levavam consigo o chicote, sendo eles também escravos74 — no Brasil, “feitor” ou “capataz”. Maynard denomina tal grupo de trabalhadores de “negros da enxada” (nègres à la houe)75. Eram os adultos, homens e mulheres, que formavam o grand atelier, enquanto adolescentes e crianças mais velhas formavam o petit atelier, como define Dutrône para São Domingos, ao final do seculo XVIII, e também Maynard para a Martinica, em 1842; ou petite bande, de acordo com Félix Patron. Estes “pequenos grupos” eram liderados por uma ou duas commandeuses, mulheres adultas que lideravam o trabalho das crianças e jovens76. Além disso, nestes petits ateliers ficavam escravos que não eram fisicamente capazes de trabalhar no grand atelier, como idosos e alguns adultos enfermos. Schoelcher observou, na década de 1840, que havia mais mulheres que homens na composição dos grupos que trabalhavam nas lavouras de cana. Segundo o abolicionista, este quadro tinha duas principais causas. Primeiramente, com o fim do tráfico e o curso natural dos nascimentos, a população feminina escravizada cresceu mais que a dos homens. De acordo com os próprios recenseamentos pós 1830, a afirmação de Schoelcher faz sentido, no entanto, vale ressaltar que a população feminina, entre os escravos na Martinica, sobrepôs a população masculina desde o final do século XVIII. Contudo, de fato, neste período que o abolicionista visitou a Martinica, a diferença proporcional entre homens e mulheres empregados na produção rural foi a maior das últimas décadas de escravidão na colônia. Em 1842, as mulheres representavam 53,5% da população escrava rural, enquanto os homens representavam 46,5%; se considerarmos apenas a faixa etária “produtiva” (14 a 60 anos), 34% eram mulheres e 29% homens77, entre os escravos que trabalhavam no campo. A segunda causa se relacionaria com a estrutura dos engenhos e a divisão de funções, por vezes baseadas em uma divisão sexual do trabalho. Schoelcher explica que os

74 Schoelcher, op cit (1842), p. 22. 75 Maynard (De la Cornillère), op cit, p. 98. 76 COTTIAS, Myriam, “A note on 18th and 19th century plantation inventories form Martinique”, New West Indian Guide/ Nieuwe West-Indische Gids, 64 (1990), no; 1/2, pp. 1-6. Há uma versão similar deste artigo, publicada em francês: “Ordre de raison ou raison d’ordre? Les dénombrements des habitations de la Martinique aux XVIIIe et XIXe siècles”, Populacion (French Edition), 43e Année, no. 3 (may-jun, 1988), pp. 660-664 (acessado em 07/02/2014). 77 TOMICH, op cit (1990), p. 85 (Tabela 3.3 – Age and gender distribution of Rural Slave Population, 1832- 1847). 141 grandes engenhos de açúcar frequentemente estavam localizados a uma distância considerável dos centros urbanos. Assim, funcionavam como uma “pequena vila”, providos de todos os serviços necessários, possuindo, assim, escravos carpinteiros, tanoeiros, pedreiros, ferreiros, pastores, cabrouetiers78, refinadores, mestres do açúcar, barqueiros, pescadores79, ratiers80. Todos estes operários tinham aprendizes que lhes auxiliavam no trabalho e estavam destinados a lhes substituir. Todas estas funções eram, sem exceção, ocupadas por homens, assim como aquela dos capatazes, o que causava uma diminuição significativa da população masculina que poderia trabalhar nas lavouras. Dessa forma, Schoelcher conclui aquilo citado na epígrafe deste capítulo: “de um lado, a população masculina de um atelier se ocupa dos trabalhos especializados, de outro, a população feminina excede um pouco a dos homens, segue-se portanto, necessariamente, que o número de mulheres dever ser maior nas lavouras”81. No final do século XVIII, Dutrône assinalou a presença das mulheres no trabalho na lavoura — “As canas cortadas por negros e negras são reunidas em fardos, para facilitar o transporte ao moinho”82 [grifo meu] —, diferentemente de vários documentos do século XIX, como por exemplo o estudo demográfico de Moreau de Jonnès, ou narrativas de viajantes, como Granier de Cassagnac. Nos textos oficiais e de cronistas, geralmente a menção ao trabalho das mulheres desaparece em meio à utilização universal dos termos no gênero masculino, como “nègres” (“negros” ou “pretos”), utilizado como sinônimo de “escravos”. Dutrône ainda registra que, além do trabalho pesado no corte da cana, as mulheres trabalhavam na moenda, alimentando o moinho que extraía o caldo, e seu trabalho era vigiado por um outro escravo capataz83.

78 “Cabrouet” era a carroça que se transportava cana de açúcar dos engenhos, e o cabrouetier é o cocheiro que as conduz. Schoelcher, op cit, p. 23. RÉGENT, op cit (2010), p. 107. 79 “A pesca é feita na Martinica por um grande número de homens livres de cor e libertos, e por um maior número ainda de escravos. Os primeiros pescam sobretudo para seu próprio consumo e os outros para o consumo de seus senhores”. Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 109 (BNF – Gallica). 80 Schoelcher explica em nota que as Antilhas são infestadas de uma quantidade incontável de ratos; nas habitations há um ou dois homens, com oito a dez carrochos, encarregados de fazer a caça aos ratos – estes homens são os “ratiers”. SCHOELCHER, op cit (1842), p. 23. 81 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 24. 82 DUTRONE, op cit, p. 101. 83 “[os] três cilindros [do moinho], apresentam duas faces; o primeiro é aquele que observa a negra que coloca as canas. O segundo do lado oposto é aquele que observa a negra que recebe as canas já moídas, para colocá- las uma segunda vez”. Os moinho dos engenhos nas Antilhas francesas eram, em geral, movidos pela força de animais ou da água. DUTRONE, pp. 102-104. 142

Imagem: Litografia representando a vista de uma lavoura de cana-de-açúcar no Caribe84

Fonte: Image Collections – The John Carter Brown Library (https://jcb.lunaimaging.com/luna/servlet)

Hilary Beckles destaca o papel das mulheres negras escravizadas nas colônias britânicas do Caribe e demonstra que elas também foram maioria nas equipes de trabalho das lavouras durante quase todo o período escravista em Barbados, além de desempenharem funções como trabalhadoras domésticas, artesãs, trabalharem nas roças de subsistência e desempenharem outras diversas funções nos meios urbanos85. Segundo Bernard Moitt, nas plantations de cana-de-açúcar no Caribe Francês, “gênero” não era considerado na divisão da maioria das funções que requeriam trabalho pesado. Assim, as mulheres, apesar de ocuparem uma variedade de funções, estavam relegadas sobretudo ao serviço da lavoura. No entanto, fora dos campos de cana, a divisão sexual continuava a influenciar as divisões do mundo do trabalho. Como observamos no relato de Schoelcher, os homens escravizados exerciam quase todos os ofícios considerados

84 O título original da imagem é “Holeing a cane-piece”, litografia colorizada. Foi tirada da obra de William Clark, Ten views of the island of Antigua, Londres, 1823. Mais informações sobre a imagem, ver https://jcb.lunaimaging.com/luna/servlet/detail/JCB~1~1~2058~3100001:Holeing-a-cane-piece# . 85 BECKLES, op cit (1989), p. 2. 143

“qualificados” e “especializados”, como mecânicos, carpinteiros, ferreiros, charreteiros, refinadores de açúcar, etc. De acordo com Moitt e Kirsten Wood86, estes homens escravizados que exerciam os ofícios mais qualificados tinham certo prestígio e exerciam alguma autoridade sobre os outros escravos. Moitt afirma que os escravos de ofícios especializados e alguns domésticos, estavam numa categoria que o autor define como uma “elite de escravos” ou “pessoal cabeça”. Abaixo deles estariam todos os “escravos e escravas da enxada”. Assim, segundo o autor, além das consequências econômicas, “esta hierarquia dos ofícios reforçava a dominação masculina das sociedades caribenhas”87. Em sua passagem pela Martinica em 1842, Maynard visitou uma habitation sucrière de 120 carrés de terra, que produzia 521 tonéis de açúcar88. Nesta propriedade havia 255 escravos, entre mulheres, homens, crianças e idosos. Como “escravos da enxada”, trabalhavam 54 indivíduos do sexo masculino e 56 do sexo feminino. Apesar desta proporção confirmar o relato de Schoelcher, a diferença entre a quantidade de homens e de mulheres era pequena na lavoura deste engenho. Quanto ao restante dos escravos, Maynard os define como parte do “petit atelier”, onde havia nove “operários”, 18 rapazes e 18 moças — provavelmente entre 10 e 14 anos, por estarem listados separadamente dos escravos da enxada —, 6 domésticos, uma parteira, dua enfermeiras, sete pastores, 18 velhos e enfermos, 28 meninos e 28 meninas, muito pequenos para deixarem as senzalas e trabalharem em qualquer função. Os “operários” certamente eram homens que exerciam os “trabalhos qualificados”, como aqueles que descrevemos acima, no entanto, o autor não informa suas especialidades. Quanto aos “domésticos”, não indica nenhuma diferenciação de gênero, como fez, por exemplo, entre os escravos da lavoura. É interessante notar que Maynard define tanto os operários como os domésticos fazendo parte do “pequeno grupo” e não destaca nenhuma hierarquia entre eles e os outros escravos. Schoelcher narra que em engenhos como do senhor Cotterell (Macouba, Martinica) e do senhor Perrinelle (Saint Pierre, Martinica), “magníficas” propriedades que lembravam o “esplendor de São Domingos”, os commandeurs e os “principais operários”, “homens escolhidos”, tinham um “relativo luxo” em seus casebres (“case à négre”), referindo-se sobretudo à posse de uma quantidade de mobília, como cadeiras, mesas,

86 WOOD, Kirsten E., “Gender and Slavery”, in PAQUETTE, Robert L. & SMITH, Mark M. The Oxford Handbook of Slavery in the Americas. New York: Oxford University Press, 2010, pp. 513-534. 87 MOITT, Women and Slavery in the French Antilles, pp. 35-36. 88 1 carré = 1,29 hectares; 1 tonel = 489,5 kg. 144 cômodas, travesseiros, camas boas, lençóis e colchões89. Contudo, eles representavam uma porcentagem muito pequena da escravaria, e suas cabanas, não obstante terem uma estrutura melhor, construídas às vezes em alvenaria e madeira e cobertas por telhas, e maior comodidade que as outras, estavam no mesmo conjunto habitacional de todos os outros escravos. De qualquer forma, estes escravos que se destacavam devido às suas funções, e que conseguiam uma ascensão/mobilidade econômica e social na habitation, eram selecionados entre os homens das escravarias e, possivelmente, sua posição e serviços lhes permitissem juntar um bom pecúlio, estando assim mais próximos de conseguirem a manumissão90. Talvez este quadro explique, em parte e mais adiante, uma situação muito comum nas experiências de conquista da alforria pelas mulheres, muitas vezes alforriadas por homens “livres de cor”. Na tabela 6, abaixo, observa-se que em 1826 na Martinica, os “operários” que trabalhavam nas propriedades rurais representavam 2% da população escrava rural, domésticos e domésticas (incluídas parteiras, enfermeiras, babás) representavam 4,2% desse conjunto, e os escravos e escravas da enxada, 93,8% da população total do campo.

Tabela 6 – Divisão da população escrava no trabalho rural e no trabalho urbano, Martinica, 1826

Trabalhando nas Trabalhando nas Total Habitations cidades e vilarejos Escrava(o)s da roça 55.840 ------55.840 (cultivateurs) Operários (ouvriers) 1.216 1.336 2.552 Escravos de ganho ------4.383 4.383 (journaliers) Marinheiros ------533 533 Pescadores ------365 365 Doméstico(a)s 2.528 7.486 10.014 total 59.584 14.103 73.687

Fonte: ANOM, Série Geographique (SG), Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique Martinique 1826 – 1828 (manuscrito)

89 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 2. 90 Slenes destaca um caso narrado pela viajante Maria Graham de “ ‘um mulato remador, o escravo de mais confiança da fazenda, e rico, porque foi tão industrioso, que conseguiu um boa porção de propriedade privada’. Esse escravo, que ainda não era velho, na sua juventude ‘havia-se ligado a uma negra crioula, nascida, como ele, na fazenda; mas não se casou com ela senão quando obteve bastante dinheiro para comprá-la, de modo que seus filhos, se os tivesse, nascessem livres”. Depois de resgatar sua companheira da escravidão, o homem (supõe-se, com sua mulher) conseguiu dinheiro suficiente para comprar sua própria liberdade. (...)”. SLENES, Na senzala uma flor (2011), p. 206-207 145

Tabela 7 – Estado da População escrava, Martinica, 1826 e 1835: sexo e faixa etárias do(a)s escravo(a)s

População Escrava 1826 População Escrava 1835 Faixas etárias Feminino Masculino Feminino Masculino (anos) 0 - 14 12.356 10.862 11.925 11.307 14 - 60 28.157 24.334 25.398 23.435 Acima de 60 3.060 2.373 3.169 2.842 Total por sexo 43.573 37.569 40.492 37.584 Total geral 81.142 78.076

Fontes: ANOM, Série Geographique (SG), Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique Martinique 1826 – 1828 (manuscrito); Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837 (BNF – Gallica)

As escravarias das habitations sucrières (engenhos de açúcar) na Martinica, como em quase todas as “Ilhas do açúcar”, eram grandes, em geral, mais de 100 escravos por propriedade. Como vimos anteriormente, Maynard descreveu uma propriedade rural com 255 indivíduos escravizados; em 1828, Pierre Dessalles tinha em torno de 160 escravos em seu engenho de açúcar, sem contar aqueles da La Caféitière. Myriam Cottias analisa os inventários de cinco propriedades rurais (região do Lamentin) da Martinica, de diferentes períodos, os quais demonstram este padrão de engenhos de açúcar com posses maiores que 100 cativos e fazendas de café com escravarias menores. Em um engenho de açúcar no Petit- Morne, em 1799, viviam 162 escravizados; e uma fazenda de café da mesma região e mesmo período tinha 44 escravos. No ano de 1800, a habitation sucrière Acajou tinha uma posse de 164 pessoas, e a Du Maugé possuía, entre 1819 e 1825, em torno de 109 escravos e escravas. Contudo, destaca-se na análise destes inventários o questionamento que Cottias faz sobre a aplicação daquele paradigma da divisão em “ateliers”, e demonstra uma possível organização das escravarias centrada nas mulheres e “matrifocal”91. De acordo com Cottias, cada habitation tinha uma maneira de classificar seus escravos em seus inventários: por idade (combinando o sexo), por idade e sexo, e, muito frequentemente, seguindo uma ordem e uma lógica difícil de compreender num primeiro momento, mas sempre respeitada, e demonstrando que existiam grupos coerentes e

91 COTTIAS, Myriam, “Ordre de raison ou raison d’ordre? Les dénombrements des habitations de la Martinique aux XVIIIe et XIXe siècles”, Populacion (French Edition), 43e Année, no. 3 (may-jun, 1988), pp. 660-664 (acessado em 07/02/2014). 146 identificáveis de escravos. Influenciada pelos trabalhos de Gabriel Debien, que analisou diferentes inventários de grandes engenhos de açúcar de São Domingos (século XVIII)92, Cottias tentou aplicar o padrão de organização baseado em equipes de trabalho, onde os escravos deveriam ser listados de acordo com suas funções na fazenda — domésticos, operários, negros e negras da enxada, crianças, recém-nascidos. Os grupos formados nas listagens, de acordo com modelo dos ateliers, deveriam ser encabeçados por aqueles escravos que ocupavam uma posição de comando e hierarquicamente superiores, como os commandeurs. Confrontada com a descoberta de que os inventários que tinha em mãos não agrupavam os cativos por funções ou por grupos de trabalho, decidiu explorar a possibilidade de que eles eram ordenados por alguma forma de parentesco. Aplicou, então, um modelo de análise que primeiramente destacava mulheres em idade reprodutiva, procurando quem as precedia ou as seguia nas listagens das escravarias. Quando a diferença entre uma mulher e aquele que a seguia era em torno de 15 anos, assumia que existia uma ligação maternal ali. O resultado dessa perspectiva analítica foi surpreendente. Cottias encontrou muitos nomes de mulheres aos quais outros nomes eram elencados abaixo em ordem decrescente de idade. Era a pista que sugeria que estava lidando de fato com grupos familiares, sobretudo de mulheres com seus filhos — raramente aparecem organizados em torno do homem, do pai93. Utilizando-se dessa “lógica”, nos inventários de um dos engenhos (1766), percebeu que 38 grupos se organizavam daquela forma, agrupando 159 pessoas de um total de 225, ou seja 62% da população escrava da propriedade. Em outro inventário de 1799, 27 mulheres do engenho Petit-Morne reagrupavam 67 crianças ou bebês — oito delas eram precedidas de homens, que Cottias inclui na unidade familiar considerada —, assim, 102 pessoas de um total de 162 pertenciam a unidades familiares, isto é 63% dos indivíduos escravizados da fazenda. Dessa forma, avaliando os outros inventários, chegou à conclusão que entre 55% e 70% da população escrava de diferentes propriedades rurais eram organizadas por relações de parentesco. Este método revelou outro fato interessante. Se os intervalos de idade delimitam bem os grupos familiares, eles mostram igualmente que em torno de uma mulher eram reagrupadas muitas crianças da mesma idade. Concluiu, assim, que possivelmente estas crianças viviam com outras mulheres que não eram suas mães,

92 Cottias se baseia sobretudo na obra de DEBIEN, Gabriel. Une plantation de Saint-Domingue. La sucrerie Galbaud du Fort (1690-1802). Cairo: 1941. 93 COTTIAS, op cit (1988), p. 660-661. 147 provavelmente nos casos em que estas estavam ausentes ou haviam falecido. Desse modo, uma mulher ou um grupo familiar substituía a mãe e tomava conta da criança94. Diferentes sujeitos (Schoelcher, 1842; Maynard, 1842; Patron, 1831) descreveram a organização do trabalho nas propriedades rurais das Antilhas francesas no século XIX baseada na divisão em grupos por funções, como vimos anteriormente. Para o abolicionista e para o viajante metropolitano, o conhecimento sobre essa organização foi informado pelos senhores de escravos, ou seja, para estes interessava publicizar a forma como eles gerenciavam suas plantations. No entanto, é possível que o trabalho na lavoura pudesse ter um arranjo diferente daquele expresso nas listagens censitárias (dénombrements) de suas propriedades. Talvez o padrão observado por Cottias demonstre como possivelmente se dava a própria organização dos escravos nas fazendas, diferente daquela estabelecida para o trabalho centrado na lavoura de cana-de-açúcar, mesmo que, ainda assim, de acordo a “vontade senhorial”. Cottias afirma que a prática de listar os escravos nos inventários em unidades familiares independe do tamanho da propriedade, mas parece expressar a forma de gestão da plantation e a “vontade do senhor”. Dessa maneira, talvez a divisão observada por Cottias nos inventários não contradiga aquela outra baseada em ateliers, mas revele a (co)existência de uma outra lógica, na qual as mulheres são o centro da organização coletiva e familiar. Restaria desvendar se essa outra lógica seria apenas submetida pelos senhores, ou se haveria uma influência da organização dos próprios escravos. Não é fácil encontrar inventários das propriedades rurais da Martinica95, contudo, durante a pesquisa nos arquivos franceses, foi possível observar algumas listas de escravos em contratos de venda e arrendamento de propriedades rurais entre os registros notariais. Nesta documentação, destacou-se um inventário que fazia parte de um contrato de venda de uma porção de terras virgens (“en frinche”), de dimensões medianas. Juntamente ao sítio, foram vendidos 15 indivíduos: 3 mulheres adultas e suas crianças. A lógica desta lista das escravas vendidas aos irmãos Martineau segue única e exclusivamente a organização por grupos familiares encabeçados por mulheres, acompanhadas de seus filhos, observada nas análises de Cottias. O sogro, senhor Joseph Poullain, estava passando aos genros, num contrato de venda e quitação de dívidas, e como parte do dote das filhas, as escravas e seus filhos, assim como o

94 COTTIAS, op cit (1988), p. 662-663. 95 A própria Profa. Myriam Cottias me informou sobre este obstáculo em uma reunião de coorientação em outubro de 2013, durante o doutorado sanduíche. Neste período de pesquisa nos arquivos franceses, eu mesma pude constatar essa dificuldade. 148 sítio, que era um desmembramento de uma porção de terras do Engenho de Açúcar do casal Poullain, no município do Carbet. No registro cartorial, afirma-se que tanto “a terra como os escravos” estavam em “plena e inteira prosperidade”. Em uma porção de terras desse tamanho, em torno de 22 hectares, numa localidade montanhosa — ficava na região conhecida como Piton; nos dias de hoje, Piton Vert —, e com 3 escravas adultas e crianças de no máximo 15 anos, provavelmente a destinariam à produção de gêneros alimentícios96.

Tabela 8 – Listas de escravas e seus filhos, vendidas aos irmãos Martineau pelo sogro, senhor Joseph Poullain, 1831 Nome Valor F/M Filiação / estimativa de idade das (francos) crianças, de acordo com os valores indicados Pélagie, négresse 1388,89 F Joseph 555,55 M Filho de Pélagie (de 7-10 anos) Anna 500 F Idem (de 7-10 anos) Louisonne, négresse 1500 F Claire 1500 F Filha de Louisonne (de 14-15 anos) Avrillette 1111,11 F Idem (de 12-14) Pauline 833,34 F Idem (de 10-12) Marc 500 M Idem (de 7-9 anos) Elisé 83,34 M Idem (máximo 2 anos) Félicien 55,55 F Idem (recém nascido) Marie-Luce, négresse 1500 F Julien 555,55 M Filho de Marie-Luce (de 7-10 anos) Emilie 277,78 F Idem (de 4-6 anos) Auguste 55,55 M Idem (recém nascido) Eulalie 416,67 F Idem (de 7-10 anos)

Fonte: ANOM – DPPC/NOT/MAR//787 – Notários, Martinica, DAMARET fils, 08/10/1831. Venda de uma porção de terras incultas

96 ANOM – DPPC/NOT/MAR//787 – Notários, Martinica, DAMARET fils, 08/10/1831. Venda de uma porção de terras incultas (“terre en friche”), situada na comuna do Carbet, pelo Senhor Joseph Poullain, agrimensor real, habitant proprietário (significa que é proprietário de “habitation”), residente na Comuna do Carbet, cantão de Saint Pierre, aos senhores Antoine Joseph Martineau e Joseph Elisée Martineau, irmãos, genros do casal Poullain, habitantes proprietários, residentes na comuna do Précheur, cantão de Sant-Pierre. 149

Observando a Tabela 8 (acima), de acordo com os valores indicados sobre as crianças, aparentemente apenas Louisone tinha filhas com idades entre 12 e 15 anos (Claire, Avrillette e Pauline)97. As outras crianças eram bem jovens, abaixo de 10 anos. Com esta força de trabalho, em um sítio de terras incultas, a plantação de mandioca, bananas, batata-doce e outras provisões seria o possível a ser feito. Provavelmente, esse fosse mesmo o objetivo dos novos proprietários, para manter despesas da pequena propriedade, assim como para alimentar a própria escravaria. Talvez a intenção fosse até mesmo plantar as provisões que seriam vendidas aos sogros, que possuíam uma propriedade e escravaria maiores, e vizinhos àquele sítio. Os irmãos Martineau eram “habitantes proprietários” na comuna do Précheur, o que significa que tinham uma outra propriedade, além dessa porção de terra que negociavam com os sogros. Assim como Dessalles com sua segunda propriedade, a fazenda de café, muito provavelmente eles aproveitariam aquela fazendola para a produção de víveres. A questão que nos interessa é que, para este sítio de dimensões pequenas a medianas, onde certamente seriam produzidos gêneros alimentícios, o senhor Poullain havia destinado aos genros três famílias escravas, formadas apenas por mulheres e seus filhos. Nesse sentido, este inventário é um indício forte de que era em torno das mulheres escravas que se organizava a produção de provisões para os senhores e suas propriedades. Para além do domínio senhorial, este ainda pode ser também um indício de que mesmo na economia interna dos escravos as mulheres eram as que mais trabalhavam nas roças de gêneros alimentícios na Martinica. De acordo com as informações da Tabela 9 (abaixo), em 1835, 35.735 escravos cultivaram 21.179 hectares de cana-de-açúcar, repartidos em 495 propriedades na Martinica, ou seja, uma média de 72 cativos por engenho de açúcar. Nas outras produções, considerando as mais significativas em número de hectares, propriedades rurais e escravos, o café, nesta época, empregava uma média de 9 escravos por propriedade e as habitations vivrières (sítios de produção de gêneros alimentícios), empregavam em média 4 escravos.

97 As estimativas das faixas etárias das crianças foram estabelecidas com base em outra listagem de 101 escravos, de um contrato de arrendamento de uma fazenda de café e gêneros alimentícios. Neste inventário, há a indicação das idades e valores de cada escravo. ANOM – DPPC/NOT/MAR//787 – Notários, Martinica, DAMARET fils, 06/08/1831. 150

Tabela 9 – Produtos agrícolas e número de escravos empregados em cada produção, Martinica, 1835

Tipo de cultura N. de hectares N. de propriedades N. de escravos rurais Cana de açúcar 21.179 495 35.735 Café 3.082 1290 11.250 Algodão 178 11 75 Cacau 492 11 75 Víveres 13.389 1.648 7.293 Culturas diversas idem idem 1.801 total 38.320 3.444 56.154

Fonte: Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837 (BNF – GALLICA), p. 98

A extensão de terras dedicadas às “habitations vivrières” na Martinica aumentou em 3.452 hectares entre 1816 e 1835, diferentemente de produtos como café, cacau e algodão98. Estes eram culturas secundárias da produção destinadas à exportação, e não para o consumo interno, e sofreram uma queda significativa com a expansão da produção açucareira na Martinica na primeira metade do século XIX99. Assim, a quantidade de terras destinadas ao plantio de gêneros alimentícios aumentou em 34,7%, crescimento proporcionalmente similar ao da cana-de-açúcar, com o aumento de 35% de terras destinadas à essa cultura agrícola no mesmo período. Estas roças de subsistência abasteciam e alimentavam tanto os habitantes (livres e escravos) dos engenhos e fazendas, assim como seu excedente era vendido nos mercados dos vilarejos ou das grandes cidades, isto é, Saint-Pierre e Fort-Royal. As habitations vivrières eram as “menores propriedades” rurais, que possuíam, em geral, um ou dois escravos trabalhando no plantio e “mesmo aquelas que se compõem de uma cabana e de um pedaço de terra sem escravos”100. Dessa forma, em 1835 foram contadas 1648 propriedades rurais que cultivavam gêneros alimentícios, onde trabalhavam 7.293 escravos e escravas (em torno de 4 escravos por propriedade). É interessante destacar que em 1839, a quantidade de terras (14.382 hectares) e de propriedades rurais consideradas “habitations vivrières” (1762 roças) aumentaram em relação à 1835, mas o número de trabalhadoras e

98 Veja a Tabela 3: Extensão de terras dedicadas a cada cultura agrícola, Martinica, 1789 – 1835, p. 22. 99 TOMICH, op cit (1990), p. 91. 100 De acordo com relatório do governo de 1835. Notice statistique, 1835, p. 98. 151 trabalhadores escravizados dedicados a estas roças diminuiu (6.643). Este relatório de 1839 esclarece melhor o que eram consideradas as “habitations vivrières”. Informa que as “propriedades rurais” dedicadas à produção de alimentos não incluem apenas as “habitations onde se cultiva exclusivamente os víveres, mas também as terras de outros estabelecimentos onde esta cultura é apenas acessória, e muitas pequenas propriedades que produzem apenas alguns alimentos”101. Schoelcher afirma que as “habitations vivrières” eram propriedades bem pequenas, em torno de 6 a 8 acres, exploradas com 3 a 4 escravos. Além disso, descreve como se elas fossem, em geral, propriedades de petits blancs (brancos de pequenas posses), empobrecidos, cuja miséria era dividida com os escravos: “a casa cai em ruína, o teto furado deixa passar a chuva (…) suas filhas brancas tão amadas, criam com suas mãos aristocráticas porcos e aves, assim como os pobres escravos, para prover seu próprio sustento”102. No entanto, ainda que houvesse situações como essa narrada pelo viajante, observamos até agora, em diferentes fontes, como relatórios administrativos, diário de colono, registros notariais, que parte das habitations vivrières faziam parte de propriedades dos grandes senhores de escravos, em meio aos seus engenhos ou fazendas de café, e uma outra parte significativa pertencia a proprietários livres de cor. É interessante destacar isso porque, se por um lado, Schoelcher demonstra que as habitations vivrières tinham esta característica, “triste” e “empobrecida”, por outro, trata os terrenos e roças dos escravos (“jardins à nègres”), localizados nas grandes propriedades rurais dos senhores brancos, como algo produtivo e que auxiliava escravos e escravas a atingir relativa riqueza. Nas fontes do governo colonial, geralmente, observa-se uma certa relação entre uma e outra, separadas no texto do viajante. De qualquer maneira, os gêneros alimentícios eram cultivados, sobretudo, pelas escravas e escravos, e, como veremos adiante, frequentemente em terras que consideravam como “sua propriedade”. Desde o Code Noir havia uma regulamentação sobre a obrigação dos senhores de alimentarem seus escravos com uma ração semanal103, denominada nas colônias francesas de

101 O total de escravos ativos nos ateliers das propriedades rurais da Martinica em 1842 era de 47.216, enquanto a população escrava total “attachés às habitations” era de 64.006. “Tableau détaillé des cultures pour l’année 1839 – Martinique”, in Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation (…) pour l’année 1839 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1842, p. 26. 102 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 16. 103 Artigos 22 e 23 da “Ordonnance du Roi, concernant la discipline de l’Eglise, et l’état et qualité des Nègres esclaves aux Isles de l’Amérique” de março de 1685, conhecido como “ Code Noir ”. DURAND-MOLARD, op cit, t. 1, p. 46. 152

“ordinaire”. Na Martinica, um decreto de 1765, do Conselho Soberano, determinou multas maiores que aquelas instituídas na ordenação de 1685 aos proprietários que se eximissem de tal obrigação e deixassem aos escravos e escravas apenas uma porção de terra e um dia da semana, o sábado, para que se encarregassem de produzir suas provisões104. Plantavam, sobretudo, a mandioca, pois a base da alimentação das Antilhas francesas e do ordinaire era a farinha produzida dessa raiz, pelas escravas e escravos. No entanto, esse costume estabelecido entre senhores e escravos era mais forte que as leis do reino. De acordo com Tomich, a prática de ceder lotes de terra para que os escravos cultivassem seu próprio alimento “datava da introdução da cana-de-açúcar nas Antilhas francesas, durante a primeira metade do século XVII, pelos refugiados holandeses vindos de Pernambuco”. Assim, “o ‘costume brasileiro’ foi adotado rapidamente por proprietários ansiosos por reduzir seus gastos”105. Contudo, essa prática se fortaleceu não apenas pela gerência dos senhores brancos em relação aos seus lucros. Muito provavelmente, a força da tradição estabelecida entre os africanos e seus descendentes escravizados nas colônias também intensificou a manutenção daquele costume. Desse modo, em uma ordenação promulgada em 1786, com o objetivo de regulamentar as funções de administradores e gerentes das propriedades rurais nas Antilhas francesas, as roças de subsistência tocadas pelas escravas e escravos foram reconhecidas e regulamentadas. Determinava-se, então, que seria “distribuída a cada negro ou negra uma pequena porção da habitation para ser por eles cultivada em seu benefício”, mas sem que se suprimisse a obrigação do senhor de fornecer a ração semanal106. Já na década de 1830, Félix Patron admite que o habitual era mesmo que os próprios escravos produzissem para si em suas roças de subsistência, abrindo mão da ração semanal:

Se o senhor não os alimenta [seus escravos], ele lhes dá um dia da semana, ordinariamente o sábado, e durante este dia eles cultivam por sua conta roças que lhes são concedidas na medida que eles quiserem, e geralmente os negros preferem seu sábado à sua ração semanal, porque em um país tão fértil, eles encontram assim muito mais vantagem. Eles trabalham para eles (…)107

104 “Arret du Conseil Souverain sur la Nourriture des Esclaves”, de 6 de maio de 1765. DURAND-MOLARD, op cit, t. 2, pp. 374-375. 105 TOMICH, Dale, “Uma petite guinée”, in TOMICH, Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: EDUSP, 2011, p. 188. 106 DURAND-MOLARD, op cit, t. 3, p. 699. 107 PATRON, op cit (1831), p. 11. 153

Pierre Régis Dessalles, no século XVIII, também afirmava que os escravos na Martinica preferiam os sábados a receber o “ordinaire” do senhor108. Devido ao fato de ficarem livres do trabalho nas lavouras nos sábados, para que pudessem cultivar suas hortas e roçados, este costume ficou conhecido como “samedi”109. Schoelcher, quase sempre informado pelos colonos brancos sobre estes costumes que não poderia observar apenas com seus olhos de estrangeiro, afirma que “o senhor, em geral, fornece o morue [peixe salgado] e uma porção de farinha de mandioca”. Contudo, ressalta que o restante que os escravos precisassem para seu sustento, deveriam eles mesmo produzir nos “jardins, um pedaço de terra destinado à sua própria produção, no qual podem trabalhar nos horários que não estão no eito da lavoura”110. É interessante destacar que Schoelcher questiona se dessa forma a legislação colonial não estabelecia uma forma de “propriedade” aos escravos. O Code Noir proibia que os escravos tivessem bens, mesmo que fosse por sua indústria ou pela doação de alguém livre, e que, assim, qualquer coisa que possuíssem seria propriedade de seus senhores111. No entanto, mesmo que fosse apenas uma concessão pela parte do senhor, para os escravos, de acordo com Schoelcher, suas roças lhes pertenciam, e dificilmente alguém lhes persuadiria do contrário. Eles até mesmo transmitiam seus roçados de “pai para filho, de mãe para filha”, ou deixavam à disposição dos mais próximos e amigos, se não tivessem filhos. Schoelcher compara esse costume dos escravos, de se apropriarem de suas roças no espaço dos engenhos, com a “tradição estabelecida que tal ou tal árvore pertence à tal ou tal escravo”. Neste costume, os senhores não tinham direito de usufruir nem dos frutos produzidos pelas árvores frutíferas semeadas e cuidadas pelos escravos em seus quintais, ou nem mesmo derrubar um desses “bens”, caso estivessem estorvando o plantio de cana em suas lavouras. Além disso, estas árvores eram legadas pelos escravos assim como seus roçados112.

108 DESSALLES, Adrien. Histoire Générale des Antilles. 1a. Parte. Tomo 3. Paris, 1847, p. 299. 109 Tomich escreve um texto interessante especialmente sobre o “samedi nègre”, veja TOMICH, “Dias de branco, dias de negro”, in Pelo prisma da Escravidão, pp. 171-184. 110 O abolicionista faz referência à ordenação de 1786: “A ordenação de 15 de outubro de 1786, afirma no seu 2o. Artigo que ‘seja distribuído a cada negro ou negra um pequena porção da fazenda, para que seja por eles cultivada em seu proveito (...)’ ”. SCHOELCHER, op cit (1842), pp. 8-9. 111 Artigo 28 da Ordenação de março de 1685: “Déclarons les esclaves ne pourvoir rien avoir qui ne soit à leurs maîtres, et tout ce qui leur vient par industrie ou par la libéralité d’autres personnes ou autrement, à quelque titre que ce soit, être acquis, en pleine propriété à leurs maîtres, sans que les enfants des esclaves, leurs pères et mères, leurs parentes et tous autres, y puissent rien prétendre par successions, dispositions entre-vifs ou à cause de mort, lesquelles dispositions nous déclarons nulles, ensemble toutes les promesses et obligations qu’ils auraient faites, comme étant faites par gens incapables de disposer et contracter de leur chef”. DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, tomo 1, p. 47. 112 SCHOELCHER, op cit (1842), pp. 9-10. 154

Schoelcher narra que os escravos cultivavam em suas roças suas provisões, mas sobretudo a mandioca. Em alguns engenhos, faziam-se a alternação de culturas, pois a cana- de-açúcar enfraquece o solo. Nestes períodos de “repouso”, geralmente os escravos plantavam a mandioca: “o negro, sempre em suas horas de liberdade, planta a mandioca ”113. Desse modo, de acordo com o abolicionista, a maior parte da produção deste “pão das Antilhas” se devia particularmente ao trabalho que os escravos e as escravas faziam em seu “tempo livre”, desde seu plantio e colheita à fabricação da farinha. Schoelcher afirma que a grage, raspagem da mandioca para o fabrico da farinha, começava ao final do dia e seguia até quase meia- noite114, produzindo um alimento que não era apenas preferência dos negros, pois “muitos senhores, muitas damas brancas, deixam o pão por esta farinha”115. Alphonse Maynard, analisando o quadro geral da economia agrária da Martinica, afirma que as “habitations vivrières” produziam basicamente a mandioca, convertida em “cassave”116, além das couves caraíbas de duas espécies, inhame, fruta-pão, banana, milho — que servia para alimentar as aves, e que os escravos e a “gente livre de cor” costumavam comer grelhados —, e feijão de Angola, também conhecido como feijão-guandu, plantado geralmente no meio dos cafezais ou dos canaviais117. Na narrativa do viajante, ele não destaca o trabalho dos escravos e escravas nestas terras de produção de gêneros alimentícios. Contudo, se cruzarmos a narrativa de Maynard e aquela de Schoelcher, e mesmo de outras fontes, a “habitation vivrière” e o “jardin à nègre” eram algo similar. Porém, quando se utiliza a primeira expressão, a propriedade e a agência se remetem ao colono branco, enquanto na segunda fica evidente o trabalho, o costume e o protagonismo das escravas e escravos que produziam os víveres, tanto para sua própria subsistência como para toda a colônia. Além disso, as habitations vivrières eram cultivadas por pessoas livres, em geral livres de cor, talvez com o trabalho de alguns poucos escravos, e oz jardins à nègre eram as roças que os escravos cultivavam nas terras de seus senhores, produzindo seus próprios alimentos.

113 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 12. 114 Acerca de todo o trabalho dos escravos sobre a mandioca e a fabricação de sua farinha, Schoelcher comenta, ironicamente: “E se diz que esta gente não trabalhará assim que forem livres!”. SCHOELCHER, op cit (1842), p. 11. 115 Idem, p. 8. 116 Kassav em crioulo martiniquenho. Ao pesquisar o que era a “cassave”, descobri que é a farinha de mandioca transformada em um tipo de biscoito/bolacha, similar ao processo da “tapioca”. É interessante que ainda hoje existe a relação entre a “savana”, a produção de mandioca e a produção da kassav, fazendo parte da memória da escravidão na Martinica: http://www.lasavanedesesclaves.fr/photos. 117 MAYNARD, op cit (1842), p. 94. 155

Maynard afirma que um hectare de plantação de mandioca produzia em torno de 3200 litros de farinha e, de acordo com Schoelcher, nos grandes engenhos, as porções de terras cedidas aos escravos e escravas chegavam a um ou dois acres. Não fica claro se era uma concessão individual ou a um grupo familiar. Schoelcher afirma que quando o escravo tinha o “sábado” ele poderia garantir, além de seus alimentos, um pecúlio de até 400 francos por ano, no entanto, “os homens mais, as mulheres menos”. M. Gosset, proprietário do engenho Vallery-Garoux, nas redondezas de Saint Pierre, teria mostrado seus livros de registros de controle de despesas à Schoelcher. O abolicionista destaca que em contas abertas com dois ou três escravos, Gosset devia até 1.200 francos pela produção de mandioca118. Além da mandioca e das provisões em geral, os escravos que trabalhavam nos engenhos mais próximos das cidades e vilarejos forneciam ainda o capim aos cavalos dos centros urbanos: “Eles cultivam e capinam o capim e levam à cidade toda tarde, depois do trabalho na lavoura”119. Ademais, se os senhores permitissem, os escravos poderiam ainda aumentar suas economias, criando aves, porcos, vacas e mesmo cavalos nas áreas próximas aos seus casebres. Dessa forma, segundo Schoelcher, eles chegavam “por esses pequenos meios, se tornando um pouco industriosos, a uma certa riqueza relativa”, e muitos conseguiam certamente um pecúlio referente “ao valor de seu cadáver, como eles dizem”120, isto é, acumulavam a quantia necessária para a compra de seu “corpo”, de sua alforria. Dale Tomich, apesar de não dispor de muitas fontes para isso, projeta uma análise interessante sobre a importância dos “jardins à nègres”, para além das possibilidades materiais proporcionadas por estas roças dos escravos:

O trabalho de amanhar o solo, plantar, lavrar, colher e dispor do produto era organizado mediante ritual, parentesco e obrigação recíproca. As roças de subsistência eram tão importantes para a vida escrava quanto as manifestações diversas de parentesco, cozinha e práticas de cura. Ali se sepultavam os parentes, cantava-se, dançava-se e contavam-se histórias. Mas à exceção do vago comentário de Schoelcher de que os escravos as cultivavam “comunalmente”, há poucas informações detalhadas sobre o modo como os escravos organizavam suas atividades. Essa falta de documentação é talvez um testemunho mudo da genuína autonomia de que gozavam os escravos na conduta dessas atividades (…) As roças de subsistência formavam um ponto nodal das relações sociais escravistas que

118 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 12. 119 Idem, p. 13. 120 Idem, pp. 11-14. 156

permitiam que as práticas, os valores e os interesses dos escravos emergissem, assumindo formas autônomas de organização e expressão121.

Neste mesmo texto que expõe parte de sua tese, na qual a questão das roças de subsistência escrava é central, Tomich destaca aquela mudança legislativa de 1786, sobre a concessão de porções de terras aos escravos e escravas. No entanto, ignora um outro artigo dessa mesma ordenação que de certa forma se relaciona à dinâmica dessa produção de víveres e indica a atuação (e exploração) das mulheres escravas, tanto em sua função reprodutiva como no trabalho em suas roças. Assim, determinou-se também, desde 1786, que as escravas mães de seis crianças ou mais teriam um dia livre do trabalho na lavoura, a começar no primeiro ano com meia dúzia de filhos, e a cada ano ganhariam mais um dia, até que fossem completamente liberadas do trabalho na lavoura de cana. Dessa forma, se por um lado, várias leis restringiam o direito senhorial de conceder a alforria a suas escravas e seus escravos sem autorização da administração colonial, por outro, instituiu-se e foi regulamentada uma forma de “liberdade de savana” — tipo de liberdade precária e irregular na área rural — das mães escravas que tivessem muitos filhos. Uma liberdade restrita às terras do engenho e que poderia ser revogada se uma das crianças falecesse antes dos dez anos:

Art. VI. Toda mulher escrava, mãe de seis filhos, será liberada do trabalho na lavoura, no primeiro ano [com seis filhos], de um dia por semana, de dois dias no segundo ano, de três dias no terceiro, e assim por diante, até que ela seja dispensada de todo trabalho na lavoura. A dita isenção será adquirida ao apresentar ao Senhor ou ao Gerente da habitation seus seis filhos a cada primeiro dia do ano, e ela a perderá no caso quando, por falta de cuidados de sua parte, um destes seis filhos venha a perecer antes da idade de dez anos.122

Arlette Gautier demonstra que os senhores utilizavam diferentes táticas para encorajar as escravas a terem filhos. Afirma que não era incomum que os escravos fossem presenteados com alimentos, vestuário e, mais raramente, com dinheiro, no caso de trabalhos excepcionais. Essas práticas eram estendidas às mulheres grávidas, recebendo uma

121 TOMICH, “Uma petite guinée”, op cit, 2011, p. 199. 122 “Art VI. Toute femme esclave, mère de six enfants, sera exempte, la première année, d’un jour de travail au jardin par semaine, de deux jours la seconde année, de trois jours la troisième, et ainsi de suite, jusqu’à ce qu’elle soit dispensée de tout travail au jardin. La dite exemption lui sera acquise en représentant au Maître ou Procureur-gérant de l’habitation, ses six enfants à chaque premier jour de l’an, et elle ne la perdra que dans le cas où, faute de soins de sa part, un de ces six enfants aurait péri avant l’âge de dix ans”. Trecho da “Ordonnance du Roi, concernant les Procureurs et Economes-gerants des Habitations situées aux Isles du Vent. Du 15 octobre 1786”, in DURAND-MOLARD, op cit, Tomo 3, p. 699. 157 gratificação por filho que vingasse. As parteiras também recebiam algo a cada parto bem- sucedido. Gautier cita narrativas e manuais de alguns senhores de escravos e administradores de São Domingos e de Guadalupe123, nos quais comentam sobre gratificações que envolviam desde o aumento da “ração” semanal até a recompensa em dinheiro124. Alguns senhores propunham, para aquelas que tivessem muitos filhos, não apenas as gratificações materiais, mas alguma forma de “distinção”125. Nesse sentido, os colonos brancos sabiam que o desejo mais caro aos escravos era a liberdade, ou alguma forma de liberdade dentro do sistema de trabalho escravo. Dessa forma, Gautier comenta que Foäche, senhor de engenho de São Domingos (1774), ordenou ao gerente de sua propriedade, antes mesmo daquele regulamento citado anteriormente, que se estabelecesse que toda a mulher que tivesse quatro crianças teria um dia por semana para trabalhar “à sa place”, isto é, em sua horta, em sua porção de terras onde plantava suas provisões, mas:

que ela seja privada desta vantagem assim que o número não estiver completo; que aquela que tem quatro filhos trabalhando, o mais jovem na idade de quinze anos, seja eximida do trabalho para sempre e que ela receba o dobro do terreno ordinário, mas que ela não possa sair da fazenda e que ela esteja subordinada à ordem como os outros; que ela perca sua liberdade se ela entrar em qualquer complô (...)126

Neste caso, a mulher conseguiria sua “liberdade de savana” provavelmente em torno dos 40 anos, quando o filho mais jovem completasse quinze anos. Além disso, em geral, era concedida apenas às mulheres, como se todo o papel fosse negado ao pai, supostamente de passagem. Gautier encontrou apenas um senhor de escravos (em 1790) que concederia a liberdade de savana a toda a família, ao pai e à mãe de sete filhos127. Em seu texto de 1831, Félix Patron revela que esta prática de conceder uma liberdade irregular às mães escravas não

123 Entre estes, Gautier cita Poyen de Sainte-Marie, De l’exploitation de sucreries ou conseils d’un vieux planteur aux jeunes agriculteurs des colonies, Basse-Terre (Guadeloupe), 1792, 184 p. Arlette Gautier. Les Soeurs de Solitude: Femmes et esclavage aux Antilles du XVIIe au XIXe siècle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2010, p. 99. 124 De acordo com as fontes citadas por Gautier, 15 libras é uma quantia que aparece em diferentes “manuais” de senhores de escravos como recompensa para mães escravas e parteiras, depois que a criança completasse 2 a 3 meses. Para se ter uma ideia do que significava essa quantia, somente a carta de alforria oficial nesta época custava entre 600 e 1000 libras. 125 Gautier, op cit (2010), p. 99. 126 Gautier cita e se baseia em DEBIEN, Debien, “Plantations et esclaves à Saint-Domingue: la sucrerie Foäche, 1770-1803”, in Notes d’histoire coloniale, n. 67, 1962, p. 130. Ver GAUTIER, op cit (2010), p. 100. 127 GAUTIER, op cit (2010), p. 101. 158 era nada incomum nas Antilhas francesas no século XIX, no entanto, aparentemente, a “meta” de filhos era mais difícil de ser atingida:

Toda mulher que tenha oito filhos não precisa mais trabalhar para o senhor e se torna livre de savana, isto é, a ela é cedida sua casa e a liberdade de cultivar como ela quiser uma roça tão extensa quanto sua força possa suportar128

Embora essa “liberdade de corpo” das mães escravas fosse precária e frágil, era uma forma de conseguir alguma liberdade para ela e para a família, além de um tempo extra e terras para aumentar o pecúlio do grupo familiar. Patron indica que estas mulheres seguiriam com a propriedade de suas cabanas e de suas porções de terras após a liberdade, afirmação que nos causa certa desconfiança. Porém, Tomich destaca que, logo após a abolição da escravidão nas Antilhas Francesas, o comissário da República na Martinica comenta, em seu relatório à metrópole, que os trabalhadores recém-libertos agiam como se fossem proprietários das cabanas e das roças, “reafirmando os direitos costumeiros estabelecidos sob a escravidão”, recusando-se mesmo a recompensar os ex-senhores pelo uso das casas e das roças de subsistência. Estes são indícios de que, provavelmente, durante o período escravista, alguns libertos e libertas conseguiam de fato fazer valer este costume, mantendo suas porções de terra, mesmo sem um título de propriedade:

De maneira geral, há entre os trabalhadores uma pretensão muito acentuada no tocante à posse de casas e roças. Persuadidos de seu direito à propriedade, eles se recusam a abandonar seus recintos costumeiros e acreditam que devem poder continuar a desfrutar deles sem precisar negociar com o real proprietário.129

Gautier questiona quantas mulheres poderiam usufruir aquela possibilidade de ter acesso a uma liberdade de savana, pois muitas mães escravas ou não tinham crianças vivas ou tinham poucos filhos. De acordo com seus dados sobre São Domingos e Guadalupe, no século XVIII, uma quantidade ínfima de mulheres tinha cinco ou mais filhos vivos, ou seja, poucas se tornariam “livres” por conta da formação de famílias amplas130. No entanto, o acesso à

128 “Toute femme qui a huit enfants ne doit plus de travail au propriétaire et devient libre de savane, c'est-dire qu'on lui laisse sa case et la liberté de cultiver comme elle l'entend un jardin aussi étendu que sa force le comporte”, in PATRON, op cit (1831), p. 8. 129 Perrinon au Ministre de la Marine et des Colonies, Fort-de-France, 19/08/1848 e 21/10/1848, citado em TOMICH, “Terrenos contestados”, in Pelo prisma da escravidão, 2011, p. 216. Tomich destaca que neste período, “embora afirmassem suas reivindicações sobre as casas e roças de subsistência, os trabalhadores não raro se recusavam a trabalhar na propriedade onde viviam”. 130 GAUTIER, op cit (2010), pp. 101-102. 159 liberdade não foi uma experiência fácil em nenhuma sociedade escravista. Dependia de vários fatores, não apenas da vontade e das imposições dos senhores, e, ainda que nos discursos destes o domínio senhorial prevalecesse, as estratégias e projetos dos escravos e escravas também influenciavam os processos pela conquista da liberdade. Obviamente, nem todas as mulheres escravas que, além de trabalharem nas plantations, labutavam também em seus jardins com suas famílias tiveram acesso à liberdade de savana, e, à alforria oficial, como vimos anteriormente, muito menos. Contudo, a relação entre o costume das roças de subsistência e as gratificações com mais dias livres, de acordo com a quantidade de filhos, é um indício sobre uma das formas que as mulheres, desde o século XVIII, galgavam caminhos na direção de sua liberdade e de suas famílias. De acordo com os dados expostos na Tabela 6 — Divisão da população escrava no trabalho rural e no trabalho urbano, Martinica, 1826 —, a maior parte dos escravos e escravas da colônia estava empregada na lavoura, eram “cultivateurs” (cultivadores) ou “cultivatrices” (cultivadoras). Ainda que este número não tenha sido de fato abalado pelas alforrias emitidas nas duas últimas décadas de escravidão, o trabalho rural imprimia suas características nas relações sociais e na movimentação da economia interna da ilha, assim como na economia escrava nas Antilhas Francesas. Dessa forma, é possível que muitas mulheres escravizadas e em vias de liberdade, entre 1831 e 1847, durante a Monarquia de Julho, vivessem da cultura de subsistência, em pequenos terrenos ocupados nos “mornes” (morros), em terras que não interessavam à cultura da cana-de-açúcar. Assim, poderiam vender o excedente de sua produção ou produtos manufaturados, como a farinha de mandioca, a cassave ou outros quitutes nas feiras e mercados, protagonizando seus projetos de liberdade e de suas famílias. Laurent Dubois narra, a partir de uma documentação notarial de Guadalupe, que o padre da ordem dos Capuchinhos da vila de Basse-Terre, em 1783, selou um contrato de arrendamento, por 99 anos, de uma porção de terras, localizada nas fronteiras de seu monastério, com três mulheres. Marie-Anne, uma “mestiça livre”, organizou o contrato e tomou para si a maior porção da gleba. As outras duas mulheres, Fatime e Hedezie, ambas “negras livres”, ficariam com porções um pouco menores do terreno. No entanto, o que chama mais a atenção neste fragmento da história dessas mulheres é o fato de que uma delas, Hedezie, ainda era escrava, mas seria alforriada “a qualquer momento”. Enquanto isso não ocorria, Fatime a representaria no registro de arrendamento, o qual estipulava que Hedezie 160 ganharia direito a sua porção assim que seu senhor declarasse oficialmente sua manumissão. Dubois não afirma se Hedezie vivia uma “liberdade de savana”, mas é bem possível. Não temos acesso ao contrato de locação, comentado na obra de Dubois, mas outra questão que deve ser ressaltada é que a alforria legal de Hedezie não dependia apenas da vontade de seu senhor. Era necessário que a administração colonial outorgasse sua liberdade oficial. A despeito disso, merece destaque o fato de Hedezie ser escrava, mesmo que em vias de liberdade, e conseguir ter acesso à um pedaço de terra, com o apoio de outras duas mulheres livres de cor. Dubois relata ainda mais outras histórias de “negras livres” que teriam tido acesso à um terreno, com certo apoio do pároco capuchinho, mas nenhuma outra cujo estatuto fosse de escrava. Marie-Françoise, esposa de Benoit, ambos “negros livres”, também arrendou um pedaço das terras do monastério dos Capuchinhos em Basse-Terre em 1785. Françoise dita Gripon teria cedido seu terreno arrendado aos dois filhos em 1791, François Gripon e Louis Gripon. Ambos eram alfaiates e, diferente da mãe, sabiam escrever. Dubois destaca que, na década de 1780, o padre capuchinho alugou as terras do monastério para cinco mulheres livres de cor, uma delas provavelmente livre de savana, como observado anteriormente. O historiador afirma que não fica claro porque o padre teria praticamente doado as porções de terra àquelas mulheres. Contudo, o fato é que naquela localidade, que não era tão longe do centro da vila onde havia feiras e mercados, aquelas mulheres criaram um ponto de apoio e uma base para uma ascensão social e econômica, tanto para elas como para suas famílias. Segundo Dubois, aquela área em Basse-Terre continua a ser chamada de “petite guinée” por algumas pessoas ainda hoje131. De acordo com Dale Tomich, o cultivo de subsistência se tornou, nas palavras de Maléuvrier, o intendente de São Domingos, “une petite Guinné”, que possibilitava os escravos organizarem suas próprias atividades. Por meio dessas, os próprios cativos “criavam e controlavam uma rede econômica secundária que se originou nas fronteiras sociais e espaciais da plantation, mas que permitia a construção de um modo de vida alternativo que ia além dela”132. Bernand Moitt, ao analisar o trabalho escravo nas plantations das Antilhas francesas, destaca o fato dos homens ocuparem, em geral, funções consideradas qualificadas ou de maior autoridade nas propriedades rurais. Por isso, conclui que, além das consequências econômicas, “esta hierarquia dos ofícios reforçava a dominação masculina das sociedades

131 DUBOIS, op cit (2004), pp. 249-250. 132 TOMICH, “Uma petite Guinée”, op cit, p. 186-187. 161 caribenhas”133. No entanto, sem necessariamente discordar desta última afirmação de Moitt, sua conclusão nos leva a questionar o seguinte: se buscamos examinar as formas de resistência dos escravos, como um todo, homens e mulheres, dentro de um sistema tão perverso como o escravista, por que não procurarmos observar, além dos recortes de classe e raça, também o de gênero? Dessa forma, tentaríamos entender as peculiaridades das atuações das mulheres dentro e contra o sistema de “dominação masculina das sociedades caribenhas”, escravistas e patriarcais. Que as mulheres sofriam muito sob a escravidão é um fato que não deve ser esquecido. Porém, então, como lutavam cotidianamente, como se adaptavam e “resistiam”? Quando Schoelcher registra que havia mais mulheres que homens no trabalho pesado das plantações de cana-de-açúcar, ele afirma que seria pouco provável que houvesse tantas mulheres nas fileiras do eito da lavoura depois da abolição da escravidão, pois, com o “progresso” se sobrepondo ao “estado de barbárie”, “seus maridos” não permitiriam que fossem forçadas àquele trabalho pesado. Mesmo observando que as escravas labutavam nas plantações e que suportavam, em geral, as tarefas na colônia, Schoelcher pensava o papel da mulher negra e em vias de liberdade de acordo com a estrutura patriarcal europeia do século XIX, onde o homem (marido e pai) liderava e “sustentava” a família e definia as leis sob seu teto134. O abolicionista também aponta um outro possível destino para as escravas num momento pós abolição, afirmando que seria “permitido acreditar” que após libertas elas poderiam ser alocadas em “trabalhos menos rudes”, e encontrariam meios de serem úteis em outras funções, sem que fossem reduzidas ao “papel de mães de família” ou “ornamentos de bailes”, como faz a “barbárie civilizada”135. Contudo, é interessante notar que até mesmo um abolicionista progressista como Schoelcher pensava no papel da mulher (“respeitável”, porque casada, e trabalhadora) em função do marido, o que condizia com as ideias dominantes sobre as relações sociais e de gênero na sociedade francesa daquela época. Dessa forma, apresenta- se como um desafio compreender as experiências das mulheres africanas e afrodescendentes dentro daquela estrutura social, ou seja, como podemos “localizar vozes femininas do passado, não apenas sons da opressão, do poder público, da medicina e das elites letradas”136?

133 MOITT, Women and Slavery in the French Antilles, pp. 35-36. 134 PERROT, Michelle, “Figuras e Papéis”, in PERROT (org.), História da Vida Privada – Da revolução francesa à primeira guerra. Vol. 4. São Paulo: Cia. Das Letras, pp. 107-118. 135 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 24. 136 PAIXÃO, Marcelo & GOMES, Flávio, “Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação”, in XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio (org). Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-abolição. São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 300. 162

Ainda que de fato seja patente a dominação masculina, principalmente através do registro do olhar do homem branco europeu, é interessante observar em alguns indícios a construção de formas de autonomia das mulheres escravizadas, possíveis insubordinações por dentro daquela estrutura. As epígrafes do início do texto são exatamente uma provocação no sentido de pensarmos o lugar das mulheres negras no mundo do trabalho e na economia escrava na Martinica. Elas estavam em maior número nas lavouras, há indícios de que eram elas que cultivavam os jardins à nègres e produziam os víveres, trabalhavam como quitandeiras, costureiras, lavadeiras, cozinheiras, eram essenciais a suas famílias, atuavam como lideranças em suas festas, seus rituais, puxando os cantos do trabalho na roça. Provavelmente, estas experiências proporcionavam às mulheres muitas vias, mesmo que tortuosas, que poderiam levar a sua liberdade e de suas famílias. Observando todos estes lugares das mulheres no eito da lavoura, das roças, das suas famílias, dos trabalhos domésticos, e outros, de fato, parece cada vez mais frágil a ideia de que seu acesso à alforria ocorria predominantemente por meio de suas relações de concubinato com os homens brancos. 163

PARTE II – A CONQUISTA DA LIBERDADE NA MARTINICA, 1830 – 1848 164

CAPÍTULO 4 – LIBERDADE PRECÁRIA E CLANDESTINA – LIVRES DE SAVANA, PATROCINADOS E LIVRES DE FATO

Marie-Catherine chegou à Martinica por volta de 1799 com 28 anos, na condição de escrava, ou ainda, sem uma carta de alforria oficial. Não se sabe quem eram seus senhores quando desembarcou na ilha, mas é bastante provável que tenha vindo refugiada de outras colônias francesas do Caribe. Naqueles tempos, revoluções, revoltas e guerras agitavam a França metropolitana, mas, sobretudo, seus territórios caribenhos1. A Martinica estava sob o domínio inglês desde 1794, com o apoio dos colonos martinicanos e, por conta disso, era a única colônia nas Antilhas francesas na qual a primeira abolição da escravidão não havia sido proclamada. Trouxe consigo sua criança Leócadie, e cinco anos mais tarde, quando a Martinica havia retornado novamente às possessões francesas2, em 1804, nasceria sua outra filha Anastasie. Talvez neste período Marie-Catherine fosse uma “livre de savana”, ou ainda, é possível que já vivesse nessa condição desde sua chegada à ilha, ou seja, não tinha uma carta de alforria autorizada pelo governo colonial, mas usufruía de uma certa liberdade e dependia da proteção de alguma pessoa livre da colônia, para que nem ela nem seus filhos fossem considerados épaves (bens do evento). Após 1802, uma grande ameaça pairava sobre aqueles que viviam nesta situação de Marie-Catherine. Sob a administração do governador Louis Thomas Villaret-Joyeuse, foram realizadas contínuas verificações dos registros de liberdade3 e

1 Vários trabalhos de pesquisa abordam este período de revoluções, guerras e revoltas escravas, sobretudo acerca de São Domingos e Guadalupe: ADÉLAÏDE-MERLANDE, Jacques. La Caraïbe et la Guyane au temps de la Révolution et de l'Empire 1789-1804. Paris: Karthala Editions, 1992; RÉGENT, Frédéric. Esclavage, métissage, liberté. La Révolution française en Guadeloupe, 1789-1802. Paris, Grasset, 2004; DUBOIS, Laurent. A Colony of Citizens, 2004; LANDERS, Jane G. Atlantic Creoles in the Age of Revolutions. Cambridge: Harvard University Press, 2010; GRACHEN, Malick W. The Old Regime and the Haitian Revolution. New York: Cambrigde University Press, 2012. 2 A Martinica permaneceu por seis anos sob a ocupação Britânica (1794-1802) e foi retornada à possessão francesa em 1802 como parte do Tratado de Amiens (1802). Ver SCHLOSS, Sweet liberty, p. 17; CHAULEAU, Dans les îles du vent, p. 203. 3 Louis Thomas Villaret-Joyeuse foi Capitão Geral (chefe da administração nas colônias) da Martinica e Santa Lúcia entre 1802-1809, durante o período napoleônico. Sobre este período, ver SCHLOSS, 2009, p. 17-45. O abolicionista Louis Fabien comenta sobre este contexto de verificação das alforrias em uma publicação na década de 1830: "sob o governo do general Villaret de Joyeuse, foi nomeada uma comissão para realizar a verificação destes títulos de liberdade (…). Contudo, os infelizes que não conseguiram verificar seus títulos, ou melhor, aqueles que não tinham os meios para comprar esta verificação, tornaram-se novamente escravos ou permaneceram em um estado totalmente incerto, que o capricho do poder ou sua boa fé ou os retornava à 165 quase nenhuma alforria oficial foi concedida. Muitos que vivenciavam formas de liberdade irregular neste período corriam o risco de serem reescravizados. Em 1808, grávida de seu filho Michel Savignac — que mais tarde contaria fragmentos da história de sua mãe em carta4 endereçada ao abolicionista negro e martinicano, Louis Fabien, procurando apoio para conseguir sua alforria oficial e de sua família —, Marie- Catherine se arriscou em viagem até a ilha de Dominica, território vizinho ao norte da Martinica, colônia inglesa naquele período, para obter uma “carta de alforria estrangeira”. Atitude desesperada e talvez improfícua, pois o governo martinicano desde 1803 havia anunciado que não aceitaria ou seria extremamente rigoroso com as alforrias adquiridas em territórios estrangeiros. No entanto, desejava que, a despeito de tudo, seu rebento tivesse uma oportunidade de nascer livre5. Em 1811, já com 40 anos, teria ainda seu último filho, Jean- Jacques dito Savignac. Savignac talvez fosse o sobrenome do pai dos filhos de Marie- Catherine, sobretudo de Michel e Jean-Jacques, que levam este patronímico. Michel comenta naquela carta mencionada anteriormente que o pai teria deixado algum pecúlio sob os cuidados de uma pessoa de confiança, o que denota que ele sabia quem era seu progenitor e que ele já havia falecido. Na Martinica, mesmo com uma carta de alforria estrangeira, Marie- Catherine e seus filhos viviam uma situação irregular, sendo considerados “escravos”. Nesta circunstância, não poderiam assumir ou herdar nenhuma propriedade ou pecúlio em seu nome. Por anos, ela não pode nem mesmo registrar o reconhecimento de seus rebentos,6 pois pessoas nesta situação não poderiam averbar nenhum registro público. Mesmo vivendo uma liberdade clandestina e precária, de acordo com um registro notarial de 1833, Marie-Catherine e as duas filhas tinham o ofício de costureiras, todos moravam na vila de Saint-Pierre,7 provavelmente de aluguel, ao menos a mãe, pois não

classe dos escravos ou os mantinha naquela dos livres", FABIEN, 1831, pp. 6-7. 4 A carta de Michel Savignac endereçada a Louis Fabien, datada de 26 de abril de 1831, é reproduzida no livro de Fabien sobre os patrocinados ou livres de savana. Os fragmentos da história de Marie-Catherine Savignac narrada neste parágrafos iniciais do meu texto foram tiradas principalmente dessa carta. Ver FABIEN, op cit, p. 15-18. 5 “Minha mãe possui um título da Dominica, obtido em 1808, por causa das dificuldades insuperáveis que ela vivenciou nesta época para obter um título da Martinica: grávida e desejando que apesar de tudo eu nascesse livre, ela foi demandar na primeira aquilo que a última lhe recusou com obstinação”. Trecho da carta de Michel Savignac a Louis Fabien, 26/04/1831, in in FABIEN, op cit, 1831, p. 17. 6 Marie-Catherine registrou os filhos naturais em 1833, quase dois anos depois de conseguirem a alforria oficial do Governo da Martinica. Ver “Reconnaissance par demoiselle Catherine de quatre enfans naturelles, savoir: Léocadie, Anastasie, Michel dit Savignac et Jean Jacques dit Savignac, tous demeurant à Saint-Pierre”, Archives Nationales d’Outre Mer (ANOM) – Notaires (Charles Dulieu) /Martinica / 988, 05/06/1833. 7 ANOM – Notaires (Charles Dulieu) / Martinica / 988, 05/06/1833. 166 possuía nenhuma propriedade registrada em seu nome. Em 1831, Marie Françoise O’Connor declararia que guardava a soma de cinco mil francos, pecúlio de Marie-Catherine e de sua família. Essa declaração foi feita para confirmar que tinham “meios de existência” e assim estavam aptos a obter suas cartas de alforria junto ao governo colonial8. Neste mesmo documento, madame O’Connor registrou ainda sua responsabilidade em relação aos indivíduos daquele núcleo familiar, caso em algum momento eles se encontrassem em situação de enfermidade ou miséria. Este tipo de documento foi exigido pelo governo colonial entre 1830 e 1832, para que analisasse as solicitações de alforria e se certificasse que ao conquistarem suas liberdades regulares os libertos não se tornariam um encargo para a Colônia. Michel Savignac ingressaria em algum momento antes deste período na milícia dos homens de cor, onde deveria servir por ao menos oito anos para conseguir sua carta de alforria. No entanto, foi expulso dessa companhia em fevereiro de 1831, quando procurava ajudar uma jovem patrocinada, detida pela polícia local por não levar consigo um bilhete de seu senhor ou patrono, que lhe autorizava circular pelas ruas9. Marie-Catherine conquistou sua alforria oficialmente aos sessenta anos, em uma das primeiras decisões do governador “contendo alforrias de diversos indivíduos”, entre muitas outras publicadas após as mudanças impulsionadas pela Revolução de Julho de 1830 na França. O Governo da Martinica havia passado quase uma década sem conceder nenhum registro de liberdade aos escravos e escravas da Colônia. No mesmo registro, feito na vila de Saint Pierre, paróquia do Moulliage, foram alforriados seus filhos, Leócadie, 37 anos, Anastasie, 27 anos, Michel Savignac, 23 anos, Jean-Jacques Savignac, 20 anos. De acordo com a publicação da Decisão do Governador no Bulletin Oficiel de la Martinique, possuíam títulos de liberdade estrangeira e teriam sido “recomendados” pelo senhor O’Connor10, quem provavelmente era esposo de Marie Françoise O’Connor. Marie-Catherine e sua família não tinham senhores patronos que pudessem confirmar sua manumissão, por isso precisavam que alguém como o senhor O’Connor, homem branco e livre, “recomendasse” suas alforrias oficiais ao governo da colônia naqueles primeiros anos da Monarquia de Julho.

8 ANOM – Notaires (Damaret fils) / Martinica / 786, 29/06/1831. 9 FABIEN, op cit (1831), pp. 11-13. 10 Suas alforrias estão como registro n. 13, do arrondissement de Saint-Pierre, Paróquia do Mouillage, e foram concedidas na primeira “Decisão do Governador, contendo alforrias de diversos indivíduos da Colônia”, de 3 de dezembro de 1831, publicada no Journal Officiel de la Martinica (JOM) em 28 de dezembro de 1831 e no Bulletim Oficiel de la Martinique (BOM) de 1832, p. 29 (ANOM). 167

A experiência desta família de “escravos” que vivia uma “liberdade de fato” era muito comum nas colônias francesas entre os séculos XVIII e XIX. Trata-se de uma mãe afrodescendente, que havia conquistado uma certa liberdade e que era o arrimo da família, e os filhos dela que nasciam nesta condição irregular e instável, todos procurando conquistar seus direitos à alforria oficial, à dignidade, à cidadania. Em certa medida, a história de Marie- Catherine e de seus filhos, de seus deslocamentos no Caribe na época das revoluções, da instabilidade vivenciada entre a escravidão e a liberdade, e da busca por documentos que comprovassem seu estatuto e seus direitos, aponta algumas similaridades com a odisseia vivida por Rosalie de nação Poulard e sua família, narrada por Rebecca Scott e Jean Hébrard11.

Este capítulo aborda a história dessa situação específica de liberdade precária e clandestina vivenciada por afrodescendentes escravizados na Martinica, e a mudança desse contexto a partir da Monarquia de Julho (1830), quando Louis-Phillipe sobe ao trono na França. Desse modo, um dos objetivos dessa parte da tese é analisar condições ambíguas que existiram entre a escravidão e a liberdade no Caribe Francês, e colaborar com debates atuais sobre a precariedade e os significados da liberdade no Mundo Atlântico12. Nas colônias francesas, como tratado anteriormente, desde 1713, uma carta de alforria “oficial” somente poderia ser concedida pela administração colonial. Uma pessoa escravizada, mesmo manumitida por seu senhor ou senhora, não seria considerada liberta sem a autorização do governo. Os procedimentos para se ter acesso à alforria de um escravo ou escrava se tornaram minuciosos, controlados e custosos. Por conta disso, muitos proprietários simplesmente permitiam que alguns de seus escravos vivessem formas de liberdades irregulares, ignorando a autorização e o imposto exigidos para regularização da alforria.

11 Ver SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. Em palestra proferida pela Prof. Dra. Rebecca Scott (“Fronteiras Jurídicas da Escravidão e Liberdade”, no IFCH – Unicamp, em 10/09/2015, org. Cecult), foi-lhe perguntado se Rosalie de nação Poulard era um “sujeito excepcional”, conceito debatido dentro da metodologia da micro-história italiana, pois Scott afirma que seu livro Freedom Papers é um trabalho de “micro-história em movimento” – eu diria uma “micro-história” de dimensões atlânticas. Em sua resposta, Scott afirma que “a única coisa excepcional” na história de Rosalie foi o fato de conseguirem encontrar documentos que permitissem traçar sua trajetória. Pois, Rosalie e sua família viveram experiências através dessa época de revoluções e revoltas escravas que não necessariamente eram incomuns entre famílias que viviam entre a escravidão e a liberdade. 12 CHALHOUB, Sidney, “The Politics of Ambiguity: Conditional Manumission, Labor Contracts, and Slave Emancipation in Brazil (1850s-1888)”, International Review of Social History, v. 60, n. 2, p. 161-191, 2015; CHALHOUB, “The Precariousness of Freedom in a Slave Society (Brazil in the Nineteenth Century)”, International Review of Social History, v. 56, p. 405−439, 2011; ESPADA, Henrique Lima, “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX”, Topoi, v. 6, n. 11, p. 289-326, jul.-dez. 2005. 168

Em razão dessa conjuntura, condições ambíguas de acesso à liberdade foram criadas, e mesmo toda uma série de termos que definiriam de maneira contraditória o estatuto das pessoas que não possuíam uma carta de alforria legal. Até 1831, os indivíduos que usufruíam essas formas de “liberdade de corpo” nas Antilhas Francesas corriam o risco de serem reescravizados, caso chamassem a atenção das autoridades. Como afirmou Louis Fabien na época, “eles não são livres, e eles não têm senhores; eles não são escravos, e eles não são cidadãos”13. A utilização do termo “clandestinas”, no título e em passagens do texto, expressa parte de nossa interpretação sobre estas experiências. Os libertos irregulares não eram reconhecidos pelo governo e nem constam nos recenseamentos da Colônia até a década de 1830, ou seja, viviam de certa forma uma situação clandestina.

4.1 – IMPRECISÕES E COMPARAÇÕES SOBRE LIBERDADES PRECÁRIAS E IRREGULARES

Não há um trabalho de pesquisa que tenha abordado especificamente e mais a fundo a questão dessas liberdades irregulares e não-oficiais na Martinica, onde havia uma quantidade muito mais significativa de patrocinados que em Guadalupe e na Guiana francesa14. Mesmo em relação a São Domingos no século XVIII, encontramos apenas comentários esparsos e generalistas sobre a existência de homens e mulheres que não possuíam uma carta de alforria legal. Gabriel Debien15 caracteriza este grupo de libertos irregulares como sendo formado predominantemente por mulheres e seus filhos, que

13 FABIEN, op cit (1831), p. 9. 14 Entre 1830 e 1847, os patrocinados e livres de savana representaram 58% do conjunto de liberdades registradas na Martinica, 38% em Guadeloupe (do total de 16.111 alforrias, 6.155 foram concedidas aos patrocinados) e 36% na Guiana (do total de 2.603 alforrias, 702 foram concedidas aos patrocinados). Destacadamente, em Bourbon (atual ilha da Reunião), a porcentagem de patrocinados eram bastante inferior em comparação às colônias do Caribe: os patrocinados representavam 7;4% do conjunto de alforrias registradas (do total de 5.865 alforrias, apenas 436 foram referentes aos patrocinados). Veja Tableaux de population, 1847 (1851), op cit, p. 32. Léo Elisabeth também destaca a existência de um grande número de “soi-disant libre” especialmente na Martinica, em “The French Antilles”, in COHEN, David W. & GREENE, Jack P (orgs.). Neither Slaves nor Free: the freedmen in the slaves societies of the New World. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1972, p. 146. 15 Gabriel Debien (1906-1990) foi um importante pesquisador da história das Antilhas Francesas, sobretudo acerca de São Domingos nos séculos XVII-XVIII, numa época em que esta temática era quase que completamente ignorada pelos historiadores. Veja http://www.persee.fr/doc/outre_0300- 9513_1990_num_77_287_2787 . 169 usufruíam essa condição devido às relações de concubinato estabelecidas entre elas e seus senhores brancos. Ademais, caracteriza aquelas libertas irregulares e seus filhos como uma elite, mas não apresenta fontes que demonstrem essa situação16; parece apenas reproduzir o discurso dos senhores brancos e da administração colonial que repetem este tipo de descrição em documentos produzidos em diversos momentos. A historiografia tem abordado superficialmente a existência dos livres de savana ou patrocinados devido à dificuldade de encontrar registros sobre estes sujeitos antes da década de 1830. A maioria dos historiadores se limitam a dizer que essas liberdades irregulares existiram nas colônias francesas desde o século XVII17 e que teriam se expandido durante todo o século XVIII devido àquelas leis que restringiam o acesso à alforria18. De acordo com Bernard Moitt, “os pesquisadores franceses tem em grande parte ignorado os libre de fait em seus trabalhos sobre as sociedades escravistas coloniais e dedicado mais atenção às “gens de couleur libres” (livres de cor) porque os dados e as fontes sobre os livres de fato, invisíveis ao olhar oficial, são muito fragmentárias”19. Eles emergem genericamente em artigos de leis e regulamentos gerais, em cartas e circulares de administradores da Colônia, mas muito dificilmente, antes de 1830, encontramos fragmentos de suas histórias nos documentos dos séculos XVIII e XIX. Aquela de Marie-Catherine Savignac, narrada no início deste capítulo, somente foi possível ser contada a partir de fontes produzidas a partir de 1831, quando estes libertos e libertas passam a ser reconhecidos “de fato” e oficialmente. Dessa forma, em variados documentos oficiais e privados, em diferentes ocasiões e épocas, termos como “soi-disant libre” (se dizendo livre), “libre de fait” (livre de fato), “libre de savane” (livre de savana), “liberté étrangère” (liberdade estrangeira) e “patronné” (patrocinado) foram usados para denominar tal condição e destacados pelos historiadores. No entanto, foi possível constatar que a referência a estas expressões é feita de forma indiscriminada por grande parte dos pesquisadores que abordam o tema. Utilizam qualquer um deles, sobretudo “libre de fait” para qualquer período da história da escravidão nas Antilhas francesas, o que leva a uma compreensão nebulosa das possíveis experiências desses

16 DEBIEN, Gabriel, “Les colons des Antilles et leur main d’oeuvre à la fin du XVIII siècle”, Annales Historiques de la Révolution Française, 27 (1955), p. 275. 17 “From the very early development of slave society in these colonies [French Antilles] there existed a group of people – libres de savane, also known as libres de fait – who lived in a state of quasi-freedom, having been manumitted by their owners without the authority of the state or the official documents of free status”. MOITT, “ In the shadow of the Plantation” (2004), p. 37. 18 MOITT, “In the shadow of the Plantation”, pp. 39-44; LOUIS, Les libres de couleur en Martinique (2011), p. 154-158; ELISABETH, “The French Antilles”, pp. 145-146. 19 MOITT, op cit, p. 38. 170 sujeitos. Os indivíduos que viviam uma liberdade irregular e clandestina, sem uma carta de alforria legal, até o final do século XVIII, por exemplo, nunca foram considerados “livres de fato”, mas sobretudo “escravos se dizendo livres”. Léo Elisabeth, cuja pesquisa aborda a história das Antilhas francesas entre os séculos XVII e XVIII, usa sobretudo o termo “soi- disant libre”, no entanto, mesmo para se referir àqueles sujeitos cuja condição foi reconhecida pela administração colonial depois de 183120. Abel Louis esclarece que todas estas denominações, “ainda que cada uma tenha um significado próprio”, referem-se àqueles indivíduos que foram reagrupados sob o termo “livres de fato”, os quais “no direito colonial são sempre escravos”. No entanto, “curiosamente não são de fato contabilizados nos inventários e recenseamento nem nesta categoria ou naquela dos livres de cor”21. Em sua pesquisa sobre os “livres de cor” na Martinica, Abel Louis encontrou na documentação paroquial da Martinica alguns poucos registros de pessoas que viviam naquela condição. Entre 1680 e 1769, localizou um único caso entre as paróquias do norte da ilha, na comuna do Carbet: um registro de morte de 1766 assenta que faleceu “Paul surnommé Sancy dit libre” (Paul de sobrenome Sancy dito livre). Em Fort-Royal, encontrou quatro documentos paroquiais que registram a presença dos “soi-disant libres”, três deles referentes a certidões de falecimento, entre 1769 e 1770: de uma “mestiça”, de uma “mulata” e de uma “negra”, todas “se dizendo livre” — o autor não cita os nomes dessas mulheres. O quarto caso concernia ao assento de batismo de Jean François, “filho natural de Monique se dizendo livre” (setembro de 1770)22. Abel Louis ainda destaca que um dos primeiros casos registrados de escravos “soi- disant libre” foi encontrado na documentação paroquial de Fort-Royal, de dezembro de 1730. Este documento, uma certidão de nascimento, é surpreendente porque, além de registrar um caso de uma liberdade irregular, concerne a uma situação pouco comum, pois menciona a paternidade de um “filho natural”, cujo pai era Pierre Charles, “soi-disant nègre libre” (se dizendo negro livre)23. Louis argumenta que estes registros indicam que principalmente no momento da morte a condição de liberto daquelas pessoas era reconhecida. No entanto, ele mesmo, que realizou uma intensa pesquisa documental nos registros paroquiais da Martinica, do século XVIII até o início do XIX, não encontrou tantos indivíduos que “se diziam livres” e que puderam ser reconhecidos e registrados como libertos nos atos de falecimento.

20 ELISABETH, “The French Antilles”, pp. 145-146. 21 LOUIS, op cit (2011), p. 153. 22 LOUIS, op cit (2011), p. 155. 23 ELISABETH, La société martiniquaise aux XVIIe et XVIIIe siècles, p. 331. 171

O termo “patron” (patrono), referindo-se àqueles que seriam os senhores ou responsáveis pelos homens e mulheres que viviam uma liberdade clandestina e que os tinham registrados em seus inventários como seus cativos, surge em uma ordenação dos administradores da colônia de 1786, a qual regulamentava os procedimentos para o pagamento de impostos à coroa. No artigo VII dessa lei, ao tratar das obrigações tributárias da “gente livre de cor”, o texto enunciado não deixa dúvida de que aqueles que se diziam livres (soi-disant libres) eram de fato considerados “escravos” diante do sistema jurídico e administrativo colonial, ainda que seu “senhor” pudesse ser classificado como “patrono”: “os escravos vivendo como livres, sem ter feito confirmar sua liberdade, [serão] condenados, se for o caso, a serem vendidos em benefício do Rei, e seu patrono, ou aquele que deveria responder por ele, a uma multa de 500 libras, além da perda do valor do escravo”.24 A utilização generalizada do termo “patrono” (patron) para se referir aos “senhores” desses escravos manumitidos fez destes os “patrocinados” (patronés ou patronnés), termo que passaria a ser utilizado no final do século XVIII, mas principalmente durante o século XIX25. O abolicionista francês Victor Schoelcher comenta sobre essa situação:

Os libertos desta espécie foram assim alforriados apenas aos olhos de seu senhor, permanecendo inscritos em seus inventários; aos olhos de todos os outros e da lei, eles continuaram escravos (...) eles eram obrigados a ter um protetor. O antigo senhor geralmente concordava em aceitar esta incumbência, e se tornava assim seu patrono, do qual os libertos desta natureza levaram o nome de patrocinados.26

Nas Antilhas Francesas, antes da década de 1830, essa forma de “patronagem” sobre um escravo ou escrava não era uma obrigação dos proprietários que concediam a manumissão. Era muito mais uma atitude pessoal, de acordo com os costumes locais concebidos nas relações complexas entre senhores e escravos, e até mesmo ilegal. Havia aqueles libertos irregulares que tinham um patrono ou patrona e outros que não contavam com ninguém que os registrasse em seus inventários, situação vivida por Marie-Catherine Savignac e seus filhos. No sistema legislativo das colônias francesas, existiam senhores e escravos. Assim, ainda que no texto daquela lei de 1786 o “patrono” seja enunciado, quando

24 “Ordonnance de MM. Les Général et Intendant, sur les Dénombrements et Récensements”, Martinica, 20 de fevereiro de 1789, registrado no Conselho Soberano da colônia, in DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, 1810, t. 3, p. 680-686. 25 LOUIS, op cit, p. 157. 26 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 306. 172 um indivíduo era manumitido por seu senhor, seguia dependendo do favor deste ou de outra pessoa livre, inscrito em seu inventário como “escravo”. Dessa maneira, provavelmente muitos destes sujeitos que conseguiam a “liberdade de corpo”, estabeleciam um espaço de negociação com seus (ex) proprietários, prestando-lhes serviços como uma forma de retribuição pela relação de “proteção” estabelecida. Havia, ainda, aqueles que, pagando o “valor de seu corpo”, conseguiam que seus senhores passassem sua propriedade a uma outra pessoa, talvez parentes ou amigos, que seriam assim seus patronos. Talvez esta fosse a situação mais comum. Schoelcher narra que as pesadas exigências feitas e os altos valores cobrados para se conseguir emancipar um cativo compeliam os senhores a abandonarem alguns de seus escravos sobre si, como um livre de savana:

Muitos senhores querendo emancipar um escravo, mas não desejando contratar tão pesada obrigação, dizia ao escravo: “Vai, tu és livre. Eu abro mão de todos os meus direito sobre tu”, e geralmente, neste caso, lhe permitia [ao escravo] se estabelecer sobre as savanas da habitation onde o manumitido construía um casebre, e para o ordinário se fazia pastor de animais. É o uso da savana acordado a estes homens que lhes deu o nome de livres de savana27. [grifo meu]

Alexandre Moreau de Jonnes (1778-1870) — viajante, militar e alto funcionário francês, responsável pelo Bureau de la Statistique générale de la France entre 1840 e 1851 — descreveu estas formas irregulares de acesso à liberdade em sua obra Recherches statistiques sur l’esclavage colonial et sur les moyens de le supprimer (1842). Ele as define como um modo de “emancipação por resgate parcial” (émancipation par rachats partiels), mas destaca sobretudo a possível experiência vivida por escravizados, originalmente trabalhadores domésticos, que moravam nos meios urbanos e que negociavam a manumissão com seus senhores. Pagando-lhes um valor mensal, tornavam-se, assim, um “livre de fato”, e Moreau de Jonnès indica que geralmente essa relação com seu patrono nunca era realmente quitada:

É principalmente entre os escravos que moram nas cidades que se multiplica este tipo de alforria. (…) Estes escravos eram originalmente domésticos ligados à casa de seus senhores; mas eles se afastaram dessa gradualmente, e se tornaram livres de fato pagando um valor mensal, que ordinariamente eles cumpriam bastante mal. Os mais laboriosos entre eles realizam pequenos comércios, alugam-se a estrangeiros para lhes servir, ou se engajam em obras públicas. As mulheres têm bodegas ou fazem comércios ambulantes, levando, nas fazendas distantes das cidades, objetos de moda, madras28, que elas vendem com um ganho de 50%, e às vezes o dobro.

27 SCHOELCHER, op cit, p. 305. 28 Madras era um tipo de tecido com cores vivas, fabricado em seda ou algodão, à princípio na Índia, na cidade de Madras, de onde vem o nome. Nas Antilhas eram utilizados para fazer vestidos, saias, mas principalmente 173

Quase todos estes escravos podem acumular em pouco tempo o valor de sua alforria. Se o número daqueles que usufruem destes recursos não é maior, é porque eles sempre esperam que uma emancipação geral, absoluta e gratuita os dispensará de pagar qualquer valor29.

Essas formas de patronagem que existiram nas colônias francesas, inclusive com especificidades de cada localidade (Martinica, Guadalupe, São Domingos ou Guiana), eram diferentes daqueles sistemas que foram implementados nas colônias inglesas do Caribe (1833- 1838) ou em Cuba (1880-1886). Nestes espaços coloniais, uma forma de estatuto intermediário entre escravo e livre foi estabelecido por lei, sob a crença de uma transição gradual do trabalho escravo para o trabalho livre30. Nas colônias inglesas foi instaurado um “Sistema de Aprendizagem” (Apprenticeship System). O Parlamento inglês acreditava que para abolir a escravidão em suas possessões coloniais era necessário um período entre o sistema escravista e a completa emancipação, durante o qual os escravos seriam considerados “aprendizes”. Dessa forma, em 28 de agosto de 1833, anunciou-se que os 674 mil escravos das ilhas britânicas se tornariam completamente livres em 1840. A partir de agosto de 1834, os senhores receberiam uma indenização pela mudança de estatuto e os escravos passariam a ser “aprendizes” durante seis anos31. De acordo com Victor Schoelcher, quem criticava este sistema como uma solução para a abolição gradual da escravidão, durante a Aprendizagem, “os escravos permanecem sob a autoridade de seus proprietários, mas sob a proteção do estado (…), na qualidade de libertos, e seu trabalho é concedido a seus senhores”32. No entanto, houve tantos problemas com este sistema, descontentamento e revoltas dos

lenços, que as mulheres negras usavam na cabeça, como turbantes. Veja Dictionnaire de l’Académie française, 6a. Edição, 1835, e Émile Littré: Dictionnaire de la langue française (1872-77), acessados em Dictionnaires d’autrefois: artfl-project.uchicago.edu/node/17. 29 MOREAU DE JONNÈS, Alexandre. Recherches statistiques sur l’esclavage colonial et sur les moyens de le supprimer. Paris: Imprimerie de Bourgogne et Martinet, 1842, pp. 126-128. 30 SCOTT, Emancipação escrava em Cuba. A transição para o trabalho livre, 1860-1899, p. 141. 31 LATIMER, James, “The Apprenticeship System in the British West Indies”, The Journal of the Negro Education, vol. 33, no. 1, 1964, pp. 52-57; GREEN, William A. British Slave Emancipation: the Sugar Colonies and the Great Experiment, 1830-1865. Oxford: Clarendon Press, 1991 (1976), pp. 129-162. 32 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 344-348. 174

“aprendizes”33, que a emancipação definitiva foi instaurada em primeiro de agosto de 1838, dois anos antes da data prevista. Para as colônias espanholas na América e no Caribe, a Lei do Patronato foi promulgada em Madri em fevereiro de 1880, também como um sistema de abolição gradual da escravidão. Os ex-escravos de Cuba, que passaram a ser denominados como patrocinados, eram obrigados a permanecer sob o patronagem de seus senhores, agora patronos, por um prazo de até oito anos. A lei previa o fim desse sistema em 1888, e a partir de 1884 os patronos deveriam começar a liberar anualmente uma quantidade de seus patrocinados do serviço obrigatório em seus engenhos34. De acordo com Rebecca Scott, essa lei “não alterou as relações jurídicas elementares da escravidão”. O senhor patrono ainda tinha o direito ao trabalho do ex-escravo; poderia transferi-lo a outro patrono, o que incluía venda e doação testamentária; tinha direito a aplicar castigos físicos em caso de mal comportamento ou falta no trabalho. Quanto aos deveres do patrono, a lei se assemelhavam a um “código escravo liberal”, pois era determinado que eles deveriam alimentar e vestir os patrocinados e seus filhos; arcar com a educação dos mais jovens; garantir a integridade das famílias, isto é, não separá-las; e deveriam pagar a cada patrocinado, acima de 18 anos, um estipêndio mensal de três pesos35. Scott afirma que a data de instituição da Lei do Patronato “passou sem chamar a atenção”, pois “a força de trabalho não diminui, o trabalho não parou, o ritmo de vida apresentou-se inalterado”. Porém, possibilitou, mesmo que involuntariamente, que os patrocinados lutassem por seus direitos e suas reivindicações, contestando seus senhores nas arenas jurídicas36. Segundo Scott, “embora o patronato em alguns aspectos fosse uma outra forma de escravidão, não era apenas uma outra forma de escravidão. Era uma instituição ambígua, com o propósito de eliminar as tensões e contradições em causa de uma abolição

33 Em São Cristóvão-Nevis (Saint Kitts), mesmo antes do início da “aprendizagem”, os escravos já demonstravam que resistiriam ao sistema. O governador da ilha, Nixon, em carta de julho de 1834, queixa-se que nas paróquias próximas à capital Basseterre eles estavam: “highly insubordinate and disgraceful. They una voce protested against the apprenticeship system, declaring their resolution to resist it, and not to work after the 1st of August without wages, saying that on that day they were to be free, as announced by the King’s proclamation, and that their masters could not take their houses or provision-grounds from them, having so long occupied them (…)”. British Parliamentary Papers (Irish University Press), Nixon to Stanley, 10 july 1834, no. 198, citado em HEUMAN, Gad, “Riots and Resistance in the Caribbean at the Moment of Freedom”, in TEMPERLEY, Howard. After Slavery – Emancipation and its discontents. Londres: Frank Cass, 2005 (2000), pp. 135-149. 34 Além de explicitar o contexto da promulgação da Lei do Patronato em Cuba, Iacy Mata aborda a participação de patrocinados na conspiração pela independência da colônia, em Santiago de Cuba, entre 1880-1881. MATA, op cit, pp. 177; 182-183; 187-190. 35 SCOTT, Emancipação Escrava em Cuba, pp. 141-153. 36 Idem, pp. 155-182. 175 gradual”37. No entanto, como não teve sucesso nem em eliminar os conflitos e nem em transformar de fato as atitudes sociais, seu impacto levou à conclusão prematura do Patronato em Cuba em 1886, com a emancipação imediata dos escravos patrocinados. No Brasil, talvez experiência semelhante àquela vivida pelos escravos que possuíam uma liberdade irregular nas colônias francesas ocorresse entre os libertos que estabeleciam relações de trabalho com seus senhores por meio das “alforrias condicionais”. Esta condição muitas vezes lhes colocava numa situação de uma liberdade instável e precária38. Solange Rocha trata do caso da “crioula/preta” Gertrudes Maria, que em 1828 movia um processo contra seus ex-senhores na capital da província da Paraíba. Gertrudes trabalhava como quitandeira e havia comprado sua liberdade em 1826, “com a condição de acompanhar seus “patronos” até a morte”. Apesar da “liberdade condicionada”, testemunhas do processo afirmavam que nos anos anteriores, “ela gozava sua liberdade, negociando gêneros que correspondem à sua força sobre si, e sem dar disso conta aos seus senhores”, mas vivia em companhia deles, “por ser de conformidade com sua carta de liberdade”. Contudo, apenas dois anos depois de pagar por sua manumissão, Gertrudes corria o risco de perder sua liberdade condicionada e ser vendida para pagar as dívidas de seus senhores. Como afirma Solange Rocha, Gertrudes “não aguardou apática o desenrolar” do processo e acionou redes sociais onde se movimentava para que tivesse algum apoio na “ação judicial contra o seu ‘patrono’, o qual colocava em risco sua liberdade parcial”. O processo sobre a situação de Gertrudes se estendeu por mais de dez anos, e durante todo este período ela teve sua “liberdade condicional” desestabilizada39. No entanto, a alforria condicional não era um ato ilegal ou irregular no Brasil, como aquela situação vivenciada pelos “livres de savana” ou “patrocinados” nas Antilhas Francesas. Essa seria a diferença fundamental, ou seja, se a alforria condicional concedida a um cativo no Brasil fosse reconhecida depois da morte do senhor — geralmente, a condição estabelecida para se conseguir a carta de liberdade definitiva era acompanhar seus senhores até o falecimento destes —, se não houvesse problemas com os herdeiros, o que era muito

37 Idem, p. 151. 38 Ver CHALHOUB, Sidney, “The Politics of Ambiguity (2015), pp. 161-191; CHALHOUB, “The Precariousness of Freedom in a Slave Society (Brazil in the Nineteenth Century)”, International Review of Social History, 56 (2011), pp. 405−439. 39 Para saber mais sobre a história de Gertrudes Maria e outras mulheres que lutavam por suas liberdades e de suas famílias na Paraíba (Brasil) oitocentista, veja ROCHA, Solange, “Mulheres escravizadas na Paraíba oitocentista: trabalho, contradições e lutas por liberdade”, in XAVIER; FARIA; GOMES, Flávio. Mulheres negras no Brasil Escravista e do pós-emancipação, p. 84-97. 176 comum, o escravo se tornaria oficialmente liberto, apesar de todas estas dificuldades e obstáculos. Nas colônias francesas, até a década de 1830, o escravo ou escrava que conseguisse a manumissão não oficial de seu senhor, seguiria dependente de uma relação de proteção com uma pessoa livre e dificilmente teria sua alforria outorgada pelo governo. No entanto, possivelmente no sul dos Estados Unidos as experiências dos “quasi- free negroes” tenham sido similares àquelas dos libertos irregulares nas colônias francesas. De acordo com Ira Berlin, durante o século XIX nos EUA, “o direito do senhor de alforriar seus escravos diminuiu conforme a escravidão se expandia”40. O rápido e abrupto crescimento da população de negros livres após a Revolução estancou durante as primeiras décadas do século XIX. Às vésperas da Guerra Civil, os livres de cor oficialmente compunham um pouco mais que 6% da população negra do sul e em torno de 3% da população livre. Durante o século XIX, os legisladores desmantelaram as últimas remanescências das políticas liberais de alforria de eras anteriores. Em meados de 1830, a maioria dos estados do sul requeriam que senhores de escravos obtivessem permissões judiciais ou legislativas para alforriar seus escravos e demandavam que aqueles recém emancipados deixassem o estado assim que recebessem suas cartas de alforria. A alforria se tornou cada vez mais difícil e a oposição legislativa e judicial contra as alforrias aumentou a força da escravidão no sul. Além disso, Berlin narra que aqueles que ousassem alforriar seus escravos frequentemente enfrentariam a reprovação de seus vizinhos, assim como a inimizade de seus herdeiros, os quais geralmente entravam com petições para anular as promessas de liberdade dos senhores seus parentes41. Todavia, Berlin destaca que, no sul dos EUA durante o século XIX, as leis restritivas sobre a alforria forçaram muitos senhores e escravos a agirem fora da lei, e estes sujeitos desenvolveram estratégias para escapar às regulamentações proibitivas. Alguns senhores vendiam ou legavam seus escravos a um amigo ou a um livre de cor sob a promessa de que o “escravo” seria liberado para trabalhar para ele mesmo, mantendo seu pecúlio, e usufruindo condições permitidas aos libertos legais42. Estratégias como esta, utilizadas para contornar as leis que proibiam o acesso à alforria, dando aos escravos uma liberdade virtual, espalharam-se pelo sul dos EUA, aumentando o número de “quasi-free negroes”. Outra

40 BERLIN, op cit (1974), p. 138. 41 BERLIN, op cit (1974), pp. 135-141. 42 Berlin narra que em 1820, em um típico contrato de venda como muitos outros registrados, a senhora Charleston vendeu duas mulheres a um amigo pelo preço simbólico de um dollar, e observando que “as Leis deste Estado se opõem à emancipação”, ela estipulava tranquilamente que “Kitty and Mary shall enjoy full free and undisturbed liberty as if they had been regularly emancipated”. BERLIN, op cit (1974), pp. 142- 144. 177 situação que forçava a existência e o crescimento desta população de libertos irregulares naquela sociedade escravista era a existência de leis que os obrigavam a migrar após sua alforria. Além dos fortes laços familiares, como comerciantes e artesões eles tinham largas clientelas, as quais teriam dificuldade de recriar em outras localidades. Adicionava a isso o fato de que os libertos não tinham segurança em migrar, pois não acreditavam que a vida seria diferente em outro lugar dominado por brancos. Berlin demonstra que não era incomum que libertos entrassem com processos para permanecerem como livres nos estados do sul, e mesmo quando não conseguiam essa permissão, geralmente permaneciam de qualquer forma, somando-se à “população ilegalmente liberta”. Em petições analisadas por Berlin, registradas entre 1831 e 1833, num dos casos um proprietário de terras encontrou na fazenda de um vizinho, depois da morte deste, uma família de dezenove “escravos”. O senhor relatou no processo que, embora eles fossem “escravos”, estavam vivendo por conta própria há mais ou menos vinte anos, sustentando-se com o que plantavam nas terras de seus senhores, e ainda destaca que eram “fazendeiros razoáveis”43. Em alguns lugares do sul do Estados Unidos, como em Mobile (Geórgia), o número de “nominal slaves” (escravos que viviam como libertos) era tão grande que, em 1850, os tribunais dessa localidade reportavam regularmente distinções entre pessoas livre de cor “bona fide” (de “boa fé”, genuínas) e “quasi-f.p.c”, isto é, quasi-free people of color (gente de cor que vive como se fosse livre)44. Segundo Ira Berlin, os “illegaly freed blacks” (libertos ilegais) podem ter composto mais da metade da população negra livre em algumas parte do Lower South45 durante o século XIX. Na Martinica, com as concessões de alforrias e o reconhecimento oficial dos livres de fato a partir de 1830, revelou-se que os escravos manumitidos ilegalmente eram em maior número que a população que possuía títulos de liberdade oficiais. Entre 1830 e 1840, foram concedidas 15.174 cartas de alforria aos livres de fato (ou patrocinados) da Martinica46 e, em 1829, a população livre de cor era formada por 12.83047 pessoas que usufruíam um estatuto legal de liberdade.

43 BERLIN, op cit, pp. 145-147. 44 BERLIN, op cit, p. 148. 45 Berlin explicita em uma nota da introdução de seu livro as definições de Upper South e Lower South para o período do antebellum. O Upper South consiste no conjunto dos estados de Delaware, Kentucky, Maryland, Missouri, North Carolina, Tennessee, Virginia; e o Lower South, os estados de Alabama, Arkansas, Florida, Georgia, Louisiana, Mississippi, South Carolina e Texas. BERLIN, op cit, p. xvi. 46 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 305. 47 ANOM, Série Geographique – Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique Martinique 1826-1829 (manuscrito). 178

4.2 – VISÕES SENHORIAIS SOBRE AS LIBERDADES IRREGULARES NA MARTINICA, SÉCULO XIX

Entre o início conturbado do século XIX e a queda dos Bourbon com a Revolução de Julho de 1830 na França, a existência dos libertos irregulares retornaria constantemente ao centro das preocupações do governo colonial e da elite senhorial nas colônias francesas. Durante o período napoleônico, em uma circular aos Comissários comandantes das Paróquias, à propósito de uma imposição extraordinária de guerra, em 1807, o Prefeito colonial da Martinica, Laussat, propunha que, para a cobrança de impostos, os recenseamentos fossem divididos em três classes. A primeira seria formada pela população branca. A segunda classe seria composta por indivíduos livres e alforriados, cujas liberdades teriam sido verificadas e ratificadas pela administração local entre 1803 e 1805. Por fim, uma terceira classe, que nunca havia sido considerada dessa forma no sistema colonial até aquele momento, deveria ser formada por aqueles livres e alforriados que não teriam passado pelas verificações naqueles anos citados anteriormente48. Desse modo, a administração colonial admitia que a classe dos livres de cor e libertos estava dividida entre aqueles que tinham suas liberdades garantidas, e uma outra, cujo situação continuava irregular, mas que deveria pagar os impostos. Essa ordem de Laussat provavelmente nem foi realmente executada, pois estas liberdades irregulares ou ilegais nunca foram constatadas nos recenseamentos da colônia (até a década de 1830) e seguiram clandestinas. A perseguição aos escravos “soi-disant libres” (se dizendo livres) foi intensa nesta época. Além das contínuas verificações dos registros de liberdade, uma resolução de 1803, das autoridades administrativas da Martinica, estabelecia que os escravos da colônia que “acredita[va]m ter sido alforriados em país estrangeiro, e cuja alforria não fora confirmada pelo Governo” teriam que “deixar a colônia [...] para retornar ao local onde foram alforriados”, caso não achassem “melhor renunciar a suas alforrias [ilegais] retornando aos seus antigos senhores”. O mesmo se aplicava aos escravos e escravas “soi-disant libres” que

48 “Circulaire du Préfet colonial, aux Commissaires commandants des Paroisses, sur l’exécution de l’Arrêté colonial du 11 avril précédent, qui établit une Subvention extraordinaire de guerre, pour l’année 1807”. DURAND-MOLARD, op cit, t. 5, p. 209. 179 ficavam “a vagabundear” pela colônia “sem nenhum título a não ser a permissão de seus senhores”. O Governo informava que “dadas as circunstâncias” — período intenso de guerras, revoltas e revoluções —, permitiria aos cativos “retornarem aos seus senhores, para lhes servir como escravos” e, ao mesmo tempo, era “solicitado aos senhores de os receberem e de lhes registrar em seus inventários”. Estas opções eram concedidas aos libertos clandestinos “por pura indulgência apenas esta vez, sem validade futura”. Desse modo, depois desse período, se fossem capturados sem uma carta de alforria oficial, verificada e ratificada, seriam definitivamente considerados escravos. Ademais, se nesse caso não estivessem registrados no inventário de algum senhor, seriam considerados épaves, bens do evento, isto é, um bem móvel cujo proprietário não fora identificado, e vendidos em benefício do reino, como ditava ordenações anteriores49. Dessa forma, qual escravo ou escrava, livre de savana ou patrocinado, mesmo portando uma carta de “alforria estrangeira”, se arriscaria a declarar-se como pertencente aquela “terceira classe” enunciada na circular do prefeito colonial? Em geral, a estratégia desses homens e mulheres que viviam alguma forma de manumissão foi seguir invisíveis aos olhares das autoridades locais, sob a proteção de patronos e patronas, preferencialmente, que os registravam em seus inventários como seus escravos. No entanto, uma correspondência entre o prefeito colonial e Legrand, funcionário encarregado dos registros do Estado Civil de Saint-Pierre (Martinica), indica que havia pessoas que viviam a condição de uma liberdade irregular e que desejavam registrar certidões de nascimento, morte, casamento, porém, não como escravos. Na carta, Legrand solicitava orientações sobre como proceder nos registros da “gente de cor que se pretende libre”. Para estes, Lassaut orientava que deveriam ser feitos documentos diferenciados, os quais seriam intitulados: “Registros não oficiais de nascimentos, casamentos, mortes, etc. das gentes de cor se dizendo livre e [para] as quais o Estado Civil não é confirmado”. Ademais, instruía que “o teor dos registros dessa natureza” deveria ser feito de tal maneira que não se pudesse “argumentar nada favorável às pretensões dos indivíduos que os concerne”, isto é, que não pudessem ser considerados libertos por conta desses documentos civis. Sugeria ainda, por fim, que outra opção seria registrá-los como escravos, sem deixar incertezas sobre o verdadeiro “estatuto social” dessas pessoas que não possuíam uma carta de alforria oficial:

49 Todas as citações deste parágrafo foram tiradas do “Arrêté des Capitaine-général et Préfet colonial, qui ordonne la vérification des Titres dont se trouvent porteurs les Gens de couleur se disant Libres, 24 ventôse an XI” (15 de março de 1803), DURAND-MOLARD, op cit, t. 4, pp. 585-592. 180

Enfim, nada impede que vós recebeis em outros registros, especialmente consagrados a este objeto, declarações de nascimento, casamento e morte dos escravos que o desejarem, providos da qualidade de escravo e o nome do senhor, explícitos, seja no título, seja no corpo do registro, não deixando de forma alguma qualquer incerteza sobre o estatuto social dos indivíduos que assim são designados.50

Contudo, ao verificar os registros do État Civil da Martinica, especialmente da cidade de Saint-Pierre, entre 1807 e 1809, não encontramos nenhum registro “não oficial” de casamento, nascimento e morte, e que designasse indivíduos como “se dizendo livres”. Não descartamos a possibilidade de que possa ser encontrado algum documento dessa natureza em outras paróquias da colônia. Por outro lado, sempre que era assentado um ato oficial de pessoas “livres de cor”, além de uma designação racial específica (negro, mulato, mestiço, quarteirão, câpre), fazia-se menção ao registro de liberdade do declarante ou da declarante, e muitas vezes a data de verificação do mesmo, daqueles anos entre 1803 e 1805. Ademais, se a pessoa nascera livre, às vezes, além da verificação, a carta de alforria da mãe também era mencionada51. Em 1809, quando a Martinica novamente foi tomada pelos ingleses52, um regulamento instituído pelo governador George Beckwith, em relação à Polícia geral da Colônia, indica que a ameaça de serem “reescravizados” por seus ex-senhores ou vendidos como épaves talvez fosse menor durante o governo britânico. No entanto, seguiam marginalizados e supostamente invisíveis. Sem direito nenhum, ficariam à margem de qualquer registro ou indício que pudesse gravar suas histórias. Não poderiam ser registrados nem mesmo como “se dizendo livres” ou em atos civis “não oficiais”, como sugeriu a administração francesa anterior. A principal preocupação em relação aos libertos irregulares naquele momento era em relação àqueles que procuravam oficializar sua condição buscando cartas de alforria nas ilhas vizinhas à Martinica, sendo considerados, assim, “estrangeiros”:

50 “ Lettre du Préfet colonial à M. Legrand, Officier spécial de l’Etat-civil, à Saint-Pierre, sur la forme des Actes de son ministère relatifs aux Gens de couleur, dont les Titres de liberté n’ont pas été vérifiés. Du 5 juin 1807 ”. DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, Tomo 5, pp. 217-218 (BNF – Gallica). 51 ANOM, État Civil – Martinique, http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/caomec2/. 52 Como parte da batalha entre Grã-Bretanha e Napoleão Bonaparte, em fevereiro de 1809 aproximadamente 15 mil soldados ingleses tomaram a Martinica e forçaram a rendição do General Villaret-Joyeuse, que chefiava o governo francês da ilha desde 1802. De acordo com Rebecca Schloss, desde o início a administração britânica assegurou seu apoio à elite branca da ilha. Em dezembro de 1814, a França retomaria oficialmente a Martinica, sem perder sua possessão novamente a partir dessa época. Rebecca Schloss, Sweet Liberty, pp. 46-71. 181

Todas as pessoas livres de cor, alforriados ou descendentes de alforriados, cujos títulos não foram acordados ou ratificados nesta colônia, não poderão aqui usufruir nenhum direito civil, possuir nenhum bem, exercer nenhum ofício, nem fazer nenhuma espécie de comércio. Em consequência, instamos aos párocos, aos oficiais de justiça, aos notários, defensores públicos e todos os outros funcionários públicos, de não reconhecerem como livres nenhum destes estrangeiros à colônia, em nenhuma circunstância, sob pena de multa de 6000 libras em benefício dos livres de cor pobres da colônia53

Recolher multas ou outros recursos em benefício dos “livres de cor pobres” não era uma prática comum em leis dessa natureza. Contudo, este regulamento promulgado pelo governo britânico, que simplesmente retomava muitas das ordenações que já regiam a colônia desde antes da Revolução Francesa, também procurava reprimir as redes de relações entre libertos oficiais e escravos. Talvez, punir aqueles que ousassem auxiliar os libertos clandestinos com uma multa destinada à beneficência do livres de cor pobres fosse uma forma de indicar que os párias daquela sociedade, ao olhar dos brancos, eram os escravos que se pretendiam livres, que abusavam de sua condição ao experimentar privilégios concedidos apenas aos livres e libertos regulares. Assim como o Código Civil de Napoleão, o regulamento inglês destacava a superioridade social dos brancos em relação aos livres de cor, mas lembrava que estes tinham direitos civis que os distanciavam dos escravos. No entanto, o governo britânico, à princípio, propunha-se a regularizar a situação daqueles que viviam sob uma liberdade considerada ilegal, concedendo-lhes cartas de alforria oficial. Para este fim, era necessário definir quem era esta “gente de cor se dizendo livre” (gens de couleur se disant Libres). Poderíamos dizer que, naquele momento inicial de ocupação da Martinica, o governo colonial britânico, aparentemente, considerava aqueles que “se diziam livres” como libertos que viviam uma situação irregular, e não necessariamente ilegal. Nesse sentido, em uma correspondência com os comissários das paróquias, a administração colonial inglesa esboça uma definição mais precisa desses sujeitos no século XIX54. Seriam, então, “homens de cor”, que devido a sua “existência incerta”, a lei não os reconhecia. Eram aqueles que possuíam um título de alforria estrangeira ou outro tipo que não fosse emitido pelo governo da Colônia; aqueles a quem o governo francês havia prometido a

53 “Réglement de S. E. le Lieutenant général George Beckwith, Commandant en Chef de la Martinique, concernant la Police générale de la Colonie”, 1 de novembro de 1809, DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, Tomo 5, pp. 405-406. 54 Circulaire de Son Exc. le Lieutenant-général George Beckwith, Commandant en Chef de la Martinique aux Commissaires commandants des Paroisses, relatives aux Gens de couleur se disant Libres. 18 de maio de 1809. DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, Tomo 5, pp. 358-359. 182 liberdade oficial como recompensa pelo serviço militar, mas que não tinham ainda servido o tempo necessário para que conseguissem a alforria legal; aqueles, enfim, que “tendo pago o valor de sua pessoa aos antigos senhores, são portadores de um título ilusório aos olhos do governo, e usufruem de sua liberdade sob a patronagem daqueles que os inscrevem em seus inventários”. O que importava, de acordo com o governador Beckwith, “como alto grau do interesse público”, era que o governo colonial tomasse uma decisão definitiva em relação aos indivíduos “dessas três classes de homens de cor”, e que para o futuro se estabelecesse uma “regra invariável para evitar o quanto possível os abusos aos quais” ele era “obrigado a remediar” naquele momento. Dessa forma, a administração colonial inglesa intencionava primeiramente verificar a quantidade de pessoas que viviam naquela situação na colônia, solicitando que os comissários de cada paróquia fizessem uma pesquisa sobre a quantidade exata de indivíduos dessas três categorias55. Tal medida provavelmente, e mais uma vez, tornou-se inviável, pois, a despeito das preocupações apresentadas nesta circular, alguns meses mais tarde o próprio governador Beckwith emitiu uma proclamação instituindo que aqueles “escravos” que procurassem oficializar sua condição de libertos por meio de cartas de alforria estrangeiras jamais teriam suas liberdades reconhecidas na Martinica:

(…) nós declaramos que todo escravo desta colônia portador de um registro de alforria concedido por um Governo outro que não seja aquele da Martinica, de datas posteriores ao 31 do presente mês, não poderá jamais obter aqui sua homologação e será submetido a todo o rigor das leis56 [grifo meu]

Ainda que possamos observar nos documentos do État Civil57 da Martinica que algumas pessoas conseguiram suas cartas de alforria legal neste período, aquela intenção de regularizar a situação de todos os livres de savana e patrocinados da colônia permaneceu apenas na correspondência administrativa. Em forma de lei mesmo, apenas mais perseguição foi instituída, como a decisão citada acima. Ademais, ao final da dominação britânica sobre a Martinica, Wale, o outro governador inglês, intensificou o acossamento aos libertos

55 Circulaire de Son Exc. le Lieutenant-général George Beckwith, Commandant en Chef de la Martinique aux Commissaires commandants des Paroisses, relatives aux Gens de couleur se disant Libres. 18 de maio de 1809. DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, Tomo 5, pp. 358-359. 56 Proclamation de Son Exc. le Lieutenant-général George Beckwith, Commandant en Chef de la Martinique, concernant les Libertés obtenues en Pays Étrangers avant le 31 octobre courant. 23 outobro 1809. DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, Tomo 5, pp. 400-401. 57 ANOM, État Civil – Martinique, http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/caomec2/. 183 irregulares, estabelecendo por meio de um Regulamento que os “libertos estrangeiros” deveriam ser enviados às colônias onde haviam obtido seus títulos de liberdade:

art 1o. Todos os portadores de título de alforria (mesmo aqueles nascidos ou que estiveram em servidão na Martinica) obtidos em qualquer outra colônia que não seja esta ilha, serão reenviados as suas custas às localidades onde os ditos títulos foram concedidos, nos reservando de permitir residência de acordo com as circunstâncias. (…) art 2o. Em casos onde surgirão contestações sobre os ditos títulos de alforria mencionados no artigo precedente, não será permitido nenhuma ação judiciária sem a autorização do governo, sob pena de anulação das ditas ações58.

Em 1815, a França retomou a Martinica sob a restauração da dinastia Bourbon, com a ascensão de Louis XVIII ao trono francês59. Até a queda dessa monarquia com a Revolução de Julho de 1830, o governo colonial e a elite senhorial na Martinica discutiriam em vários momentos as liberdades irregulares e clandestinas. Um despacho do Ministro da Marinha e das Colônias de 1824 causou grande alvoroço entre os grandes senhores de escravos martinicanos, pois indicava que o governo metropolitano considerava regularizar a situação dos “indivíduos reputados livres”. Quanto a estes, o ministro sugeria, ainda com cautela, “examinar se não seria preferível conceder um título legal de alforria”, pois talvez fosse melhor que deixá-los numa condição “intermediária”, “lamentável em todos os aspectos, dando a estes indivíduos além do hábito da ilegalidade, um meio de se libertar tanto dos deveres impostos aos escravos como aos livres”. Porém, nem o ministro nem os administradores colonias saberiam dizer qual o tamanho da classe dos libertos irregulares naquela época. A despeito de sua sugestão sobre a situação destes “indivíduos reputados livres”, o ministro francês orientava “não aumentar o número de alforrias a não ser sob considerações rigorosas e absolutas”, para evitar o crescimento da população livre de cor, cujo tamanho considerava já alarmante60. Notadamente, ressaltava que não se deveria conceder

58 Règlement du gouverneur anglais (Wale) concernant les affranchis étrangers à la colonie et ordonnant leur renvoi aux lieux où ils sont obtenu leurs titres de liberté. 9 de maio de 1814. AUBERT-ARMAND (Conseiller a la Cour Royale). Code de la Martinique. Nouvelle Édition, continuée. Tomo 6: Contenant les actes législatifs de la Colonies de 1814 a 1818 inclusivement. Fort-de-France: Imprimerie du Gouvernement, 1865, pp. 17-18 (BNF – Gallica). 59 Sobre a Martinica neste período, veja o terceiro capítulo, “The First Decade of Restoration”, da obra de SCHLOSS, Sweet Liberty, pp. 72-112. 60 Em 1824, a população da Martinica contava com 11.768 livres e libertos, 9.661 brancos e 76.269 escravos, ou seja, a população de livres de cor havia ultrapassado a população dos brancos. ANOM, Série Geographique – Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique Martinique 1826-1829. 184 nenhuma alforria às mulheres escravas com menos de cinquenta anos, sem exceção alguma, “por motivos de moral e política”61.

A elite dos senhores brancos, que compunha o Conselho Geral e o Conselho Privado da Martinica, nem precisava desta orientação do governo metropolitano. Para eles, a alforria oficial deveria ser concedida apenas “com grande discrição e somente em casos de serviços prestados ao país”62, por exemplo, aos homens que serviam nas milícias. No entanto, quanto aos indivíduos que viviam liberdades irregulares e clandestinas, os grandes senhores de escravos os consideravam “falsos livres” e acreditavam que nenhuma alforria poderia lhes ser outorgada. Essa questão foi amplamente debatida nos conselhos da colônia em 1828, devido a um outro despacho do governo metropolitano. Este solicitava que avaliassem um projeto que propunha “alforriar definitivamente as diferentes classes de negros e gente de cor irregularmente alforriados, que existiam na Martinica”. Tal projeto aparentemente excluía as mulheres patrocinadas, pois propunha que os “libertos irregulares” fossem convocados a servir “como militares para merecerem suas alforrias”.

Contudo, essa correspondência causou pânico na classe senhorial. De acordo com a elite dos colonos da Martinica, “a ordem social e a segurança pública nas Antilhas” dependiam da preponderância da população branca. Assim, acreditavam que uma medida que teria como resultado “romper com o equilíbrio entre as classes livres”, impulsionando um novo crescimento da população livre de cor, já mais numerosa naquele momento, poderia apenas causar problemas nas colônias e, até mesmo, “comprometer sua existência”. Dessa forma, a sugestão do Conselho Geral era manter a situação como estava até então, a qual agradava os senhores de escravos e não perturbava a “liberdade precária” dos “falsos livres”:

A existência de falsos livres na Martinica não pode inspirar crenças muito sérias no governo que justifiquem sua emancipação gradual ou imediata, muito menos geral; eles sabem [os “falso livres”] que seu mais forte interesse é evitar problemas que possam comprometer a liberdade precária da qual eles usufruem (...). Ao que diz respeito aos livres de savana, patrocinados e outros sem títulos oficiais, seus direitos à alforria não poderiam ser fundados sobre seu estado de homens livres,

61 "N’accorder, par exemple, aucun affranchissement aux femmes esclaves âgées de moins de cinquante ans, et ne point permettre qu’il soit fait des exceptions à cette mesure, dictée par des motifs de morale et de politique". Dépêche ministérielle au gouverneur administratif concernant les concessions d’affranchissements et l’accroissement anormal des gens de couleur, 25 de fevereiro de 1824, AUBERT- ARMAND, Code de la Martinique, Tomo VIII, p. 8-12. 62 ANOM, Généralités – Carton 160, Dossier 1321. Analyse des Délibérations du Conseil Général de la Martinique. Affranchis irréguliers dits libres de savanne, corps à moi, patronés, etc. Novembro de 1828. 185

pois, recebendo sua capitação, o governo reconhecera por ele mesmo que eles nunca saíram da escravidão.63 [grifo meu]

A Capitation (capitação) era o imposto cobrado por cada trabalhador escravizado. Anualmente era publicada uma ordenação do governo da colônia, em nome do rei, informando como deveriam ser pagos estes impostos no ano seguinte. Para cada cidade e tipo de produção havia um valor diferente. Dessa forma, por exemplo, em dezembro de 1827 foi publicada a Ordonnance sur les Impositions de l’année 1828, definindo as regras e valores da capitação para 1828. Todos os escravos “das vilas e burgos, operários, domésticos, servindo de aluguel, de jornada, e aqueles que são empregados na pesca ou embarcações de cabotagem, canoas de pesca ou de passagem”, “que trabalham em olarias, fábricas de cal, destilarias de rum e fábricas de vinagre, ou outros que não sejam aqueles ligados aos engenhos de açúcar, de idade entre 14 e 60 anos”, eram submetidos à “capitação fixada por cabeça”, de acordo com as seguintes quantias: para aqueles da cidade de Saint-Pierre, 28 francos; de Fort-Royal, 25 francos; dos burgos e vilas, 20 francos; olarias, fábricas de cal, destilarias de rum e fábricas de vinagre, 20 francos. Os “habitants vivriers” (proprietários de pequenos sítios de produção de gêneros alimentícios) e pastores estavam isentos destes impostos, porém, se seus cativos fossem colocados no ganho, o proprietário deveria pagar o tributo referente ao serviço realizado. Neste ano, a cobrança de impostos sobre a produção de culturas de exportação, como açúcar, café, cacau e algodão, havia substituído a taxação sobre os escravos “attaches à la grande culture” (das grandes propriedades rurais). Dessa forma, os grandes proprietários não pagavam o imposto por cada trabalhador escravizado, mas pela quantidade de mercadoria produzida64. Contudo, o Conselho Geral da Martinica argumentava que o governo colonial havia recebido a capitação sobre pessoas que viviam como livres de savana ou outras formas de liberdades irregulares, considerando-as, assim, escravos.

Os senhores do Conselho Geral dividiam os indivíduos que eles definiam como os “falsos livres” em quatro grandes categorias. Apesar destas expressarem a opinião dos grandes proprietários de escravos, elas revelam alguns indícios sobre quem poderiam ser aqueles que viviam liberdades irregulares e clandestinas. Primeiramente, os sujeitos que possuíam um título de alforria emitido por um governo estrangeiro, obtido através de uma transação feita com a ajuda de pessoas que se faziam passar por seus senhores nestas localidades

63 ANOM, Généralités – Carton 160, Dossier 1321. Idem. 64 Bulletin Officiel de la Martinique, 1828, p. 15-17 (ANOM). 186 estrangeiras. De acordo com o documento do Conselho Geral, estes indivíduos, agindo dessa forma, “teriam renunciado à qualidade de sujeitos franceses”. Desse modo, teriam cometido uma dupla infração, tanto contra a legislação local como as leis políticas, e por isso “não mereciam, de forma alguma, a benevolência do governo”. Uma segunda categoria era formada por libertos alforriados pelo General Rochambeau durante a Revolução Francesa65, alforrias consideradas pelo Conselho Geral como “títulos falsificados” ou “equivocados”. Estes indivíduos, segundo a elite dos senhores de escravos da Martinica, eram “igualmente indignos dos favores do governo”, porque, devido aos eventos daquele período, suas liberdades teriam sido, provavelmente, concedidas como “recompensa do crime e da pilhagem” ou eram resultado de “manobras fraudulentas”66. A terceira categoria era formada por “gente de cor” que servia nas milícias em troca de suas alforrias oficiais. Esta classe, reduzida a um pequeno número de indivíduos, não deveria ser objeto nem do interesse nem das inquietudes do governo, pois, a maioria servia nas milícias exatamente para conseguirem suas alforrias67. Estes “homens de cor não livres”, expressão utilizada na documentação, deveriam permanecer alistados ao menos por oito anos para poderem solicitar seus títulos de liberdade oficiais e eram isentos do imposto de capitação68. No entanto, havia alguns que serviam por muito mais tempo sem serem considerados merecedores da benevolência do governo. Entre as alforrias concedidas a partir instauração da Monarquia de Julho, Louis Bellefleur conseguiu a sua em 1831 e estava alistado no batalhão de Fort-Royal desde 179369. E muitos outros que conseguiram seus títulos regulares na mesma época estavam nas milícias há mais de dez ou quinze anos.

A quarta e última categoria era formada pelos indivíduos ditos “livres de savana”, “épaves” e “patrocinados”, aos quais uma manumissão foi concedida por testamento ou

65 Referente às alforias concedidas pelo Governador da Martinica entre 1792 e 1794, Donatien-Marie-Joseph de Rochambeau, comissário da República designado para administrar as colônias do Caribe e que sofreu uma forte oposição dos grandes senhores de escravos da Martinica. Mais tarde, aquelas alforrias de Rochambeau não seriam reconhecidas durante o período Napoleônico, quando o governandor Villaret- Joyeuse instaurou as verificações das cartas de alforrias na Martinica, entre 1803 e 1805. Ver LOUIS, op cit (2011), pp. 407-423. 66 Já o abolicionista negro Louis Fabien afirmaria, em 1831, que: “em relação às liberdade de Rochambeau, não se pode levantar hoje nenhuma contestação, nenhuma dúvida sobre sua validade. O general Rochambeau governou a Martinica em nome da França, e a França não deve e não pode repudiar os títulos de manumissão que este governador tinha o direito de acordar aos indivíduos que tinham prestado serviços à colônia e, também, àqueles pagaram por estes títulos”. FABIEN, op cit (1831), p. 10. 67 ANOM, Généralités – Carton 160, Dossier 1321. Analyse des Délibérations du Conseil Général de la Martinique. Affranchis irréguliers dits libres de savanne, corps à moi, patronés, etc. Novembro de 1828. 68 ANOM, Généralités – Carton 160, Dossier 1319 – Martinique – État des individus de couleur libres. 69 Journal Officiel de la Martinique (JOM), 04/03/1831, p. 1. 187 compraram suas liberdades de seus senhores, sem a autorização do governo. Segundo a visão do Conselho Geral da Martinica, estes indivíduos não usufruíam “de uma existência inteiramente independente”. Estando listados como “escravos” no inventário de algum “protetor”, este ficava responsável tanto pelo pagamento da capitação sobre seus patrocinados, como deveria representá-los em qualquer ação pública. Sua subsistência era, além disso, “completamente assegurada”, fosse “pelo livre exercício de sua indústria”, fosse “pelos cuidados das pessoas que os protegem”. Dessa maneira, de acordo com a opinião da elite dos senhores de escravos, os livres de savana e patrocinados viviam uma condição que lhes bastava, assegurados em sua subsistência e sob a proteção de seus patronos. Assim, concluíam que não convinha alterar sua condição e sua liberdade precária, sendo desnecessário conceder-lhes alforrias legais70:

Os representantes da classe senhorial martinicana ressaltavam que “a menor concessão” que fosse feita aos patrocinados seria uma “ameaça à existência da colônia”. Com o apoio do governo colonial, argumentavam que não seria “prudente” lhes “conceder alforria em massa”, pois era “menos inquietante” que permanecessem em sua condição, sob o estatuto civil de escravos, do que viessem a somar a classe dos livres de cor e libertos (regulares). Porém, sugeriam que se escolhesse entre os “falsos livres” aqueles que mereciam servir nas milícias e, assim, conquistarem suas alforrias legais. Por outro lado, de acordo com a visão senhorial escravista que domina esta documentação, a maior parte do “número considerável” de patrocinados que existia na Martinica era formada por mulheres que haviam se tornado patrocinadas por meio da “libertinagem” e eram indignas do “favor” do Governo colonial:

(...) a maioria entre eles [os patrocinados], as mulheres sobretudo, devem seu estado atual à libertinagem e parecem, neste sentido, pouco dignas do favor do governo; se fosse possível esperar que, uma vez libertos, sua classe não se reproduzisse mais, talvez conviesse regularizar sua situação; mas assim que esta concessão seja feita, haverá certamente ainda mais novos livres de savana em prejuízo da agricultura.71

A quantidade precisa de patrocinados e livres de savana da Martinica era ainda desconhecida na década de 1820, mas sabia-se que existiam em grande número. Em uma correspondência pessoal de maio de 1825, o colono Pierre Dessalles expressa os temores que

70 ANOM, GEN – Carton 160, Dossier 1321. Analyse des Délibérations du Conseil Général de la Martinique. Affranchis irréguliers dits libres de savanne, corps à moi, patronés, etc. Novembro de 1828. 71 ANOM, GEN – Carton 160, Dossier 1321. 188 os senhores de escravos sentiam naquele momento em relação ao tamanho da “classe dos épaves”, considerada por ele “infinitamente perigosa, que aumenta de uma maneira assustadora”72. É interessante notar como Dessalles, um rico senhor de escravos, proprietário de engenho de açúcar e fazenda de café na Martinica, simplifica e esclarece como a classe senhorial compreendia a existência daquelas pessoas que viviam liberdades clandestinas. Estas seriam, no seu modo de ver, sobretudo épaves, ou seja, escravos cujos proprietários eram desconhecidos. Dessalles não se refere a eles nem com o termo patronés (patrocinados) ou libres de savane (livres de savana). Para a elite branca, havia que se garantir que tais “escravos” não fossem considerados livres de forma alguma, evitando aumentar assim a população de libertos da colônia, e que pudessem, a qualquer momento, serem tomados como bens do evento e “reescravizados” por meio dos leilões públicos73.

De acordo com o Dictionnaire de l’Académie Française (6a. Edição, 1835), épave era um adjetivo que se aplicava às coisas extraviadas das quais não se conhecia o proprietário, principalmente cavalos, vacas e outros animais. Por extensão, nas colônias francesas, o governo passou a utilizar este termo para caracterizar homens e mulheres escravizados cujos senhores não pudessem ser identificados74. Era considerado épave o cativo que fosse capturado sem um bilhete do seu senhor, que lhe permitisse, primeiramente, identificar quem era seu proprietário, que autorizasse o escravo ou escrava a se afastar de sua residência, de sua localidade, fazendo qualquer tipo de pequeno comércio, ou trabalhando em um ofício longe do domínio senhorial. Caso um afrodescendente não portasse esta autorização escrita e estivesse numa situação que causasse qualquer tipo de desconfiança, a polícia poderia considerar que estava a “vagabundear” e seria levado à cadeia local. Provavelmente, estavam mais suscetíveis a esta situação os patrocinados que moravam no meio urbano, que trabalhavam como escravos journalières (do ganho), ou que se deslocavam entre as savanas e as cidades para comercializar os excedentes de suas produções rurais ou outras mercadorias.

72 “Les gens libres sont les seuls moteurs de tout ce que nous éprouvons. Nos esclaves, qui ne pouvaient les sentir, sont dans une parfaite intelligence avec eux, et à chaque exécution de la cour prévôtale nous voyons des hommes libres exécutés, et beaucoup d'épaves, classe infiniment dangereuse, qui s'augmente d'une manière effrayante”. Carta n. 62, Sainte-Marie (Martinica), 26 de maio de 1825, in DESSALLES, Pierre. La vie d'un colon à la Martinique au XIXème Siècle – Correspondance 1808 – 1834. Présentée par Henri Frémont. Courbevoie: H. de Frémont, 1980, p. 157. 73 A venda de “nègres épaves” ocorria até esta época de acordo com uma Decisão do Conselho Soberano da Martinica de 1726. Estes leilões públicos ocorriam trimestralmente, e o governo metropolitano se preocupava com o valor arrecadado nas vendas dos escravos. Ver Dépêche Ministérielle relative à la vente des nègres épaves, 27 de janeiro de 1826. AUBERT-ARMAND, Code de la Martinique, Tomo VIII, p. 203. 74 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 307. 189

Uma vez trancafiados, o Regulamento do Governo de 1828 ditava que “os escravos que não forem retirados da cadeia dentro dos três meses que seguirem [seguissem] a sua prisão, serão [seriam] declarados épaves e colocados à disposição do domínio, para serem vendidos administrativamente em leilão público, em benefício do tesouro”. Durante este trimestre de encarceramento, o carcereiro responsável tinha obrigação de divulgar uma vez por mês nos jornais da colônia os nomes e outras possíveis características que poderiam auxiliar no reconhecimento dos escravos aprisionados. Depois do período determinado de prisão, se ninguém reclamasse a propriedade sobre o cativo enclausurado, ele seria vendido como épave.75 Caso o escravo fosse reconhecido por seu senhor ou patrono antes do leilão público, deveria pagar os encargos referentes à alimentação, pouso e carceragem pelo tempo de emprisionamento, e as publicações de anúncios nos jornais, além de taxas de processos judiciais, caso houvesse. Dessa maneira, os patrocinados, que por algum motivo deixavam de ser “invisíveis” ou se descuidavam da sua condição clandestina, eram punidos com prisão e encargos financeiros, ou mesmo possível reescravização.

Mesmo depois de 1830, quando os livres de fato passaram a ser reconhecidos oficialmente, se não portassem um bilhete de seus patronos, ainda eram presos na Martinica como épaves, como “vagabundos” ou simplesmente por andar pelas ruas “em hora indevida”, mesmo que se declarassem patrocinados (ou livres). Na sessão “Esclaves détenus à la Geole” (Escravos detidos na Cadeia) do Journal Officiel de la Martinique, podemos observar vários exemplos dessa situação, vivenciada por homens e mulheres. Em dois de março de 1831, entre os escravos detidos estava Jean-Louis, considerado “nègre épave”, enviado à cadeia de Saint-Pierre pelo comandante da paróquia de Basse-Pointe (vilarejo próximo à cidade de Saint-Pierre). No dia 17 de maio de 1831, Joseph, 32 anos, “se dizendo livre de Santa Lúcia” foi preso também na cadeia de Saint-Pierre como “vagabundo”. Dois meses depois, um aviso sobre sua detenção foi publicado informando que seria o último. Assim, se nenhuma pessoa se apresentasse para intervir, fosse como patrono ou senhor, para auxiliá-lo a provar que era um “livre de fato”, ele poderia ser vendido como épave em leilão público, mesmo afirmando que tinha uma carta de alforria estrangeira.

Em maio de 1831, o governo da colônia havia publicado um “Aviso Oficial” na primeira página do Journal Officiel de la Martinique (JOM), informando que os comissários

75 Règlement du Gouverneur, en conseil, concernant la vente des Épaves, Fort-Royal, 8 de janeiro de 1828. Bulletin Officiel de la Martinique, 1828, p. 40-41 (ANOM). 190 comandantes das paróquias deveriam entregar aos “livres de fato” as cartas que certificavam sua qualidade de “patrocinado”, indicando o número de controle sob o qual eles seriam registrados. Informava, ainda, que todo patrocinado que fosse encontrado sem este documento seria preso e detido na cadeia mais próxima até que provasse sua identidade. Em outubro de 1831, Rosilliette, “em torno de 18 e 20 anos, 1,57 de altura, vestindo uma saia xadrez vermelha e uma camisa de algodão branca”, “câpresse patrocinada, se dizendo de Rivière- Pilote”, e que declarava “ter sido inscrita no inventário de seu Victor, da dita paróquia”, 76 foi detida na cadeia de Saint-Pierre. Além daquele aviso oficial sobre os patrocinados, de acordo com a legislação colonial, os escravos eram obrigados a carregar cartas de seus senhores que os autorizavam a se afastarem de suas localidades. Embora seu estatuto não fosse de escrava, a patrocinada Rosilliette foi presa porque não levava consigo o bilhete de seu patrono, seu Victor. Este provavelmente era um homem livre de cor, porque seu sobrenome não é mencionado e é tratado por “sieur” e não por “monsieur”, mais formal e utilizado apenas no tratamento aos homens brancos (ao menos até 1833). Talvez tivesse até mesmo alguma relação de parentesco com sua patrocinada. Os livres e libertos (regulares) não deixavam de compartilhar as consequências da perseguição aos livres de fato e constantemente tinham que provar seu estatuto civil. Em todo documento oficial que registrassem, constava-se a verificação de suas liberdades. Nos registros civis, em qualquer ato referente à “gente livre de cor”, fosse nascimento ou morte, sempre constava ao final do documento a certificação da liberdade: “a liberdade acima depois de ter sido vista, verificada pelos senhores membros do comitê, foi anexada aos registros do Estado Civil depositados nos arquivos do tribunal desta vila” [“ la liberté ci-dessus après avoir été vue, vérifiée par messieurs les membres du comité á été annexée au registre des actes de l’état civil déposé au Greffe de cette ville ”]77. Além disso, no corpo do texto do documento geralmente constava a data de concessão ou verificação da alforria e o nome do Procurador Geral que havia autorizado a liberdade. Assim, em setembro de 1815, Rose, de 37 anos, “mulata livre como constatado por autorização demandada em juízo e concedida pelo Senhor De Valmenier, Procurador Geral desta ilha em data de 26 de novembro de 1814”, registrava a certidão de nascimento de sua filha Marie Sophie, mulata livre, que havia nascido

76 JOM, 05/10/1831 (ANOM). 77 ANOM, État-Civil, Saint Pierre Le Fort, Martinica, 1815. Verificado em: http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/caomec2/. 191 em janeiro de 181278 — quando a mãe ainda não tinha sua alforria oficial. O mesmo padrão se observa nas certidões de nascimento de outras crianças, filhas de mulheres “livres de cor”, neste mesmo ano dos registros civis. Mas também no ato da morte a liberdade de homens e mulheres deveria ser certificada. Em novembro de 1815, Alexandre Lévéc, 50 anos, sapateiro, e Alexis Labaye, 32, alfaiate, homens livres de cor, moradores da paróquia do Mouillage (Saint Pierre, Martinica), registraram o falecimento de Petronille dita Petrone, “mulata livre como constatado pela confirmação de liberdade registrada (…) na data de 12 Fructidor, ano 11”79 — ou seja, alforria confirmada em 30 de agosto de 1803, período daquelas verificações instauradas pelo governador Vilarret-Joyeuse.

Nos registros notariais também deveria constar a certificação da alforria legal das pessoas livres e libertas, em qualquer documento, de qualquer natureza. Em 1823, Marie Luce dita Zozotte, “mulher livre de cor, de acordo com certidão confirmativa de sua liberdade, concedida pelos Senhores Administradores desta ilha”, registrava uma “obrigação” junto ao notário Bernard Faissal, por conta de uma dívida contraída com Jean François Fourcade, a quem ela devia uma quantia de três mil libras pelo aluguel da casa onde morava na rua Dauphine, paróquia do Fort em Saint Pierre80.

No Brasil, ainda que o acesso à alforria não fosse tão repleto de restrições legais como nas colônias francesas, situação semelhante ocorria com aqueles afrodescendentes que não conseguissem provar sua condição de liberto. Sidney Chalhoub afirma que “negros presos pela polícia por suspeição de que fossem escravos, ainda que alegassem liberdade, permaneciam escravos até que conseguissem provar a sua condição de livres”, sendo considerados, assim, “bens do evento”, de acordo com a definição jurídica, “escravos, gado ou bestas, achados sem se saber do senhor ou dono a quem pertençam”. Frequentemente essas pessoas eram leiloadas publicamente, para que fossem arrematadas por interessados em obtê- las como propriedade81.

Louis Fabien narra um caso marcante ocorrido na Martinica em 1829. O Procurador do Rei ordenou que fosse vendida em leilão público uma mulher patrocinada que vivia como liberta há mais ou menos trinta e cinco anos. Ela tinha dois filhos maiores de idade,

78 Idem, p. 93. 79 Idem, p. 90. 80 ANOM, DPPC/NOT/MAR – 291, BERNARD-FAISSAL, 1823. 81 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1a. Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 227-252. 192 patrocinados como ela, que inclusive serviam nas milícias para conseguirem suas cartas de alforria oficiais. No entanto, um deles sofreu a acusação de um crime e, reconhecido como “escravo”, foi condenado à morte e enforcado. Nas colônias francesas os cativos não tinham direito à apelação em nenhum processo jurídico. Marie-Anne, a mãe do condenado, foi presa e seria exposta em praça pública para ser vendida em benefício do tesouro colonial82, se não fosse a articulação feita por afrodescendentes livres como Cyrille Bissette e Louis Fabien, que viviam em Paris nesta época. Sua pressão política forçou a intervenção do Procurador Geral da Martinica sobre o caso. Assim, Marie-Anne conseguiu permanecer em liberdade83 (FABIEN, 1831, p. 9). Esta história e outras, como aquela de Marie-Catherine Savignac e seus filhos, narradas por Louis Fabien, no libelo em apoio aos livres de savana e patrocinados, revelam que havia libertos irregulares e livres de cor na Martinica que se comunicavam com seus “representantes” em Paris sobre os abusos que ocorriam na colônia. Victor Schoelcher afirma que nas colônias francesas “a liberdade, em todos os casos, para os negros e os mestiços, era sempre vista como exceção”84. Diferentemente do Brasil, na Martinica as taxas de alforria oficial eram baixas. Havia uma preocupação extrema da classe senhorial em evitar que a população de livres e libertos da colônia crescesse. Ademais, o sistema de leis e regulamentos coloniais sustentavam restrições à alforria, alimentando uma situação de precariedade da liberdade que africanos e afrodescendentes pudessem conquistar. A própria elite de senhores brancos da Martinica admitia que os livres de savana e patrocinados viviam uma liberdade precária e que esta condição assim deveria permanecer. Isso revela o quanto esta situação era estrutural para a manutenção do sistema colonial e indispensável para a reprodução das relações de dependência pessoal da ideologia senhorial, tendo como um de seus nexos essenciais as fronteiras incertas entre escravidão e liberdade85. No entanto, a reestruturação política da França a partir da Revolução de Julho de 1830 atingiria o sistema colonial e as visões de liberdade e escravidão tanto da classe de senhores, como dos escravos e libertos irregulares das colônias.

82 Léo Elisabeth também narra rapidamente esta história, a partir de documentação do Conselho Privado de 1829. ELISABETH, 1972, p. 145. 83 FABIEN, op cit (1831), p. 9. 84 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 306. 85 CHALHOUB, op cit (2011), p. 409-410; CHALHOUB, op cit (2012), p. 225. 193

4.3 – A LUTA POLÍTICA DOS PATROCINADOS E LIVRES DE SAVANA DURANTE A MONARQUIA DE JULHO

Michel Savignac, na carta enviada à Louis Fabien em abril de 1831, afirma que com a chegada do novo governador da Martinica, General Dupotet, após a Revolução de Julho de 1830 na França, a classe dos patrocinados foi reconhecida. No entanto, “silêncio profundo se mantinha sobre o estado civil das pessoas livres de fato ou portadoras de títulos irregulares ditos liberdades estrangeiras”. Mesmo com o reconhecimento dessa categoria, os patrocinados ainda pagavam a “capitação anual de 30 francos por cabeça”86, imposto cobrado sobre a propriedade escrava. Ironicamente, foi por meio dessa tributação que os “patrocinados” foram reconhecidos oficialmente, e pela primeira vez, em um texto de lei do governo da Martinica em 1831. Antes disso, um decreto da administração colonial de janeiro de 1827 havia isentado do imposto de capitação os vários escravos alistados por anos nas milícias para a obtenção de suas alforrias oficiais, sem que os definisse como “patrocinados”, “livres de savana” ou “livres de fato”. Esta questão foi debatida secretamente pelo Conselho Privado da Martinica na época (1826-1827), para que evitassem tocar pública e amplamente na questão das liberdades irregulares e ilegais87. No entanto, em fevereiro de 1831, uma decisão do governo da Martinica modificaria novamente o teor daquele decreto de 1827. Informava, então, que “os indivíduos patrocinados ou portadores de alforrias estrangeiras”, alistados nos batalhões de milícias depois de 15 de novembro de 1831, seriam taxados de acordo com a capitação dos escravos, definida para o ano de 1831. Dessa vez, a lei tributária reconhecia a existência dos “patrocinados” ou “livres de fato”, ainda que sob o estatuto civil de escravo. Contraditoriamente, a mesma decisão do governo considerava também a possibilidade destes escravos patrocinados serem proprietários, algo interditado às pessoas escravizadas. Poderiam registrar inventários de propriedades (escravos e bens móveis) junto ao domínio, o que deveria ser feito não apenas para a garantir a posse, mas também para as tributações e recenseamentos da colônia. Isso era algo que até então concernia apenas aos livres de cor

86 Carta de Michel Savignac à Louis Fabien, 26 de abril 1831. FABIEN, op cit (1831), p. 15. 87 ANOM, GÉNÉRALITÉS, Carton 160, Dossier 1319 – Martinique – Conseil Privé – Extrait du procès- verbal de la séance du 9 janvier 1827: Sur la question de savoir s’il convient de soumettre à la capitation les hommes de couleur régulièrement enrôlés et servant pour leur liberté. 194

(com liberdade regularizada) e à população branca. Entretanto, os patrocinados precisavam provar que exerciam algum ofício ou possuíam “meios de existência” suficientes para pagar sua capitação anual por eles mesmos88. Em setembro de 1831, essa decisão seria reforçada por meio de uma “medida especial”, específica para ao patrocinados:

art. 1o. Os indivíduos patrocinados, aptos a retirar as laudas de inventário [demi- feuilles de dénombrement], (...) somente poderão recebê-las após terem comprovado com [a apresentação do] recibo do tesoureiro, constatando que não devem nada, seja por eles ou por seus patronos, por sua capitação. art. 2o. Os patrocinados que não forem aptos a receber as laudas de inventários, continuarão inscritos, com a menção sobre sua qualidade, nos inventários de seus antigos patronos, que permanecerão responsáveis por sua capitação (...)89

A despeito dessas decisões sobre a política tributária da colônia, os patrocinados seguiam sem acesso a qualquer outro direito civil reservado aos livres de cor90, como a qualificação de sieur ou dame, o registro de uma certidão pública, ou casar-se como livres. Assim, esta nova instituição formava, de fato, uma “classe mista na Martinica”, como afirma Michel Savignac, constituída por pessoas que, sem uma carta de alforria oficial, eram “praticamente escravos”91. Certamente, ainda que fosse pública e oficialmente reconhecido, o estatuto de “patrocinado” seguia ambíguo. Em 1833, em uma audiência na França metropolitana, na qual se debatia acerca das punições imputadas aos patrocinados quando cometiam crimes, um magistrado explicita a imprecisão da condição desses sujeitos:

(…) parece constante na Martinica e em outras colônias que, entre seus habitantes, há aqueles que são inteiramente livres, outros inteiramente escravos, e outros, enfim, que foram alforriados por seus senhores, mas cuja emancipação não foi autorizada ou sancionada pela autoridade colonial. Esta última classe, conhecida

88 Décision du Gouverneur en conseil, modificative de celle rendue le 5 janvier, au sujet de la capitation des individues enrôlés dans les milices pour l’obtention de leur liberté, Fort-Royal, 7 de fevereiro de 1831. JOM, 28 de fevereiro de 1831 (ANOM). 89 Décision du Gouverneur, concernant le recouvrement des taxes par les Patronés pour capitation. Fort- Royal, 13 de setembro de 1831. Journal Officiel de la Martinique, 17 de setembro de 1831 (ANOM). 90 Em dezembro de 1830 uma Decisão do Governador da Martinica revogou várias leis que restringiam os direitos da população livre e liberta, muitas delas já em desuso nesta época: que indicava quais roupas deveriam vestir; restrições aos ofícios que poderiam exercer; etc. Uma delas dizia respeito a utilização dos título de Sieur e Dame por funcionários publicos e padres em registros oficiais. Assim, a partir de novembro de 1830, livres e liberdos não poderiam ser identificados como “ homem livre de cor ” ou “ mulher livre de cor ” em documentações públicas, nem mesmo como “ le nommé ” ou “ la nommée ”, como era utilizado em registros paroquiais para se referir a escravos ou escravas. Arrêté du gouverneur concernant diverses dispositions relatives aux gens de couleur libres et affranchis, 12 de novembro de 1830. Bulletin Officiel de la Martinique, 1830, pp. 259-261 (ANOM). 91 Carta de Michel Savignac à Louis Fabien, 26 de abril 1831, FABIEN, op cit, p. 16. 195

pelo nome de patrocinados, por causa dos patronos escolhidos por eles, forma uma parte bastante considerável da população das Antilhas. Os patrocinados usufruem de certas faculdades; eles são autorizados a exercer, sob permissão da justiça, certas atividades e a fazer mesmo parte da milícia. Quanto ao exercício direto e pessoal dos direitos civis, apanágio exclusivo dos homens de condição livre, os patrocinados somente o adquire assim que sua alforria estiver revestida do carimbo da autoridade pública. No entanto, se é difícil observá-los, os homens que de fato possuem certos direitos civis, como pertencentes ainda à classe dos escravos propriamente dita, é difícil também compreendê-los como homens inteiramente livres, porque as ordenações coloniais os reputam escravos. Mas disso resulta, dessa espécie de estado intermediário entre a escravidão e a liberdade, que eles possam ser legalmente condenados com as mesmas penas que os escravos …?92

Diversos casos de condenação envolvendo libertos irregulares, ainda em 1831, demonstram como nos tribunais eles eram julgados tão rigidamente quanto as mulheres e homens escravizados. Muitos indivíduos reconhecidos como “patrocinados” e envolvidos numa Revolta que ocorreu tanto nas redondezas como na cidade de Saint-Pierre (Martinica), em fevereiro de 1831, foram julgados como escravos e condenados à morte93. A “escrava” Adèle foi sentenciada a ser chicoteada “por ter cantado La Parisienne” pelas ruas de Saint- Pierre94. A condição dos “livres de fato”, “patrocinados” e “livres de savana” estava sendo discutida oficialmente, mas ainda era muito complexa e dúbia dentro do sistema escravista. Nesse sentido, é interessante notar que os abolicionistas Louis Fabien e Bissette, mesmo atuando conjuntamente, referem-se à Adèle de formas diferentes. Fabien narra rapidamente sua história e diz que ela era “patrocinada”95. Bissette apresenta um “pedido de clemência” ao rei Louis Phillippe em favor de Adèle, referindo-se a ela como uma “jovem escrava”:

No momento em que toda a França saudou o advento de sua majestade ao trono, e repetiu os refrões da canção nacional, a Parisienne, na Martinica, uma jovem escrava se rendeu ao eco de alegria dos franceses: mas a legislação bárbara das colônias, que o reinado de Vossa Majestade finalmente irá modificar, proibindo os escravos de pensar, castiga-os quando eles cantam; e Adèle foi condenada por um tribunal de exceção, em nome do rei francês Louis-Phillippe I, a ser despojada de suas roupas, deitada ao chão com os membros presos a quatro estacas, e a receber, neste estado, da mão do executor de obras da justiça, 29 chibatadas. Esta execução terrível já teria ocorrido se a infeliz não estive grávida. Este estado cessará, mas lhe valerá mais que um adiamento do suplício, sem dúvidas, os sinais de toda vossa

92 “Rapport de M. de Chantereyne”, audiência de 9 de março de 1833, Cour de Cassation (Paris), reproduzido em FABIEN, Louis. Procès d’un patroné de la Martinique. Paris: Imprimerie de Dezauche, 1833, p. 6 (BNF – Gallica). 93 SCHLOSS, Rebecca Hartkopf. "The February 1831 Slave Uprising in Martinique and the Policingof White Identity", French Historical Studies, Vol. 30, No. 2 (Spring 2007), pp. 203-236. 94 FABIEN, op cit (1831), p. 4. 95 Idem, ibidem. 196

bondade real. Senhor, nós que fomos atingidos por um decreto injusto das colônias, e que somos uma prova da falibilidade dos juízes coloniais, nós ousamos implorar a Vossa Majestade que conceda graça plena e completa à infeliz Adèle. 96 [grifo meu]

Provavelmente Adèle era “patrocinada”. Porém, naquele momento logo após a revolta escrava, talvez fosse mais prudente e eficiente procurar ajudar a jovem com um pedido de clemência ao rei, o único recurso possível aos escravos condenados por crimes, que esperar um processo que provasse que ela era “livre de fato” e, por isso, não deveria estar submetida àquela punição. A despeito do pedido de clemência apresentado por Bissette, Adèle sofreu sua punição, executada por ordens de Pierre Dessalle, Procurador Geral interino na época97. Semelhante condenação foi dada a Louisy Adzée, “nègre patroné”, como ele mesmo se apresentou à corte98, alistado na companhia dos homens de cor da milícia de Saint- Pierre (Martinica). Seu crime foi ser “cúmplice” em uma briga entre um jovem negro e um rapaz branco. Na noite de 30 de novembro de 1830, um jovem branco de quinze anos, Jules Joyau, “foi golpeado pelo escravo Michel”, que estava “acompanhado de Léo, também escravo, e de Louisy”, patrocinado. Todos os três foram condenados a receber 29 chibatadas em praça pública, permanecer por duas horas expostos no pelourinho e ficarem acorrentados por dois anos na cadeia de Saint-Pierre99. Segundo Louis Fabien, um pedido de “clemência” foi feito para os escravos Michel e Léo, que não tinham dezesseis anos quando cometeram “o crime de golpear um colono privilegiado”. Ademais, a condição deles não possibilitava, como aquela de Louisy, que se apresentasse uma ação de apelação junto aos tribunais da Martinica e da França contra a sentença imputada. É importante ressaltar, devido ao olhar sobre as questões de gênero que envolvem esta tese, que ainda que a punição de Adèle tenha recebido a atenção dos abolicionistas negros em Paris, o caso de Louisy foi tratado de forma especial e incisiva. O processo contra sua condenação fez emergir amplamente o debate acerca do estatuto intermediário dos patrocinados nas colônias francesas. Como afirma André Dupin, Procurador Geral da Cour de Cassation (Corte de Cassação da França), “pela primeira vez, um entre eles [patrocinados]

96 BISSETTE, Cyrille-Charles-Auguste. Demande en grâce pour Adèle, jeune esclave de la Martinique, condamnée à la peine du fouet pour avoir chanté "La Parisienne" (assinado por Bissette e Fabien, 19-28 julho de 1831). (BNF-Gallica). 97 FABIEN, op cit (1831), p. 4. 98 FABIEN, op cit (1833), p. 13. 99 Idem, ibidem. 197 levantou a voz contra vós [colonos brancos]”100. Dessa forma, o caso de Louizy Adzée, com o auxílio de abolicionistas brancos e negros, na Martinica e na França, foi levado a julgamento e ganhou, inclusive, as páginas dos jornais franceses. Nestes, foi exposto todo o debate feito, principalmente, entre o advogado de defesa de Louisy Adzée (Adolphe Gatine) e o Procurador Geral da Martinica101, acerca daqueles “escravos” que não tinham senhores e que viviam como libertos. A condição de “patrocinado” ou “livre de savana” era tão ambígua, que em seu interrogatório, o próprio Louisy informou que era “negro, escravo da senhorita Charlotte Ducasson”, “comerciante de carvão”, estando ligado a ela “na qualidade de patrocinado”. Louisy tinha o ofício de latoeiro e habitava na Grande-Rue da Paróquia do Fort (Saint-Pierre), enquanto sua patrona habitava na Place du Fort, ou seja, não moravam no mesmo domicílio102. Charlotte Ducasson, devido a sua profissão e o fato de ser “demoiselle” (senhorita), provavelmente era uma mulher “livre de cor”. No entanto, o caso de Louisy não foi o único. Durante os primeiros anos da Monarquia de Julho, ainda podemos encontrar vários casos de condenações de patrocinados cujas penas era muito severas. Mesmo que não sentenciassem mais os livres de fato à punição de “coups de fouet aux quatre-piquets” — o escravo era amarrado ao chão, despido, com os braços e pernas presos a quatro estacas, e assim levava os golpes de chibata —, à qual Adèle foi condenada. Em março de 1833, o patrocinado Charlery dito Célery, por exemplo, foi sentenciado a uma hora de exposição no pelourinho e a cinco anos de prisão por um crime banal. Foi “acusado de roubar na madrugada e em uma savana, um carneiro, em prejuízo do senhor Desormeaux103, habitante da vila de Rivière-Pilote”104. Para a elite dos colonos da Martinica, o “patrocinado” era um escravo e a introdução deste estatuto no sistema colonial era uma ameaça à ordem e a suas famílias, porque colocava no caminho da emancipação uma grande quantidade de “escravos”, ameaçando aumentar bruscamente o número de livres de cor da colônia. É o que revela o

100 FABIEN, op cit (1833), p. 23. 101 SCHLOSS, op cit, 2009, p. 149-150. 102 “Réquisitoire de M. Dupin, Procureur-Général a la Cour de Cassation, Dans l’affaire du sieur Louisy, Patroné de la Martinique, prononcé devant la section criminelle de la Cour, le 9 mars 1832”, in FABIEN, op cit (1833), p. 31. 103 O sobrenome Desormeux é um vertente da família de franceses Gros-Dubois, que se estabeleceram na Martinica no século XVIII, tornando-se eminentes proprietários sobretudo no século XIX, como Gros Desormeux, adquirindo grandes propriedades rurais na região de Rivière-Pilote e Vauclin. BRUNEAU- LATOUCHE & CORDIEZ. 209 familles subsistantes de la Martinique, 2010, pp. 535-536. Ver em fr.geneawiki.com/index.php/Fonds_Bruneau-Latouche_et_Cordiez. 104 BOM, 1833. 198 trecho da carta de um colono, na qual ele narra os acontecimentos que ocorreram na Martinica, em fevereiro de 1831, devido à Revolta de escravos em Saint-Pierre. Em seu discurso, aterrorizado pela possibilidade de conquista da liberdade oficial pelos patrocinados, suas palavras parecem fazer eco àqueles debates ocorridos em 1828 nos Conselhos da Martinica:

Neste momento, passada a crise, a agitação continua mais forte do que nunca entre os escravos; a introdução de um novo elemento no Sistema Colonial, aquele da classe dos patrocinados, os quais foram retirados bruscamente das fileiras de escravos e colocados no caminho da emancipação, dobra de um só golpe o número da gente de cor livre [gens de couleur libre]. A eles se solidarizaram os homens de cor e se uniram na tropa numerosa e feroz de barqueiros, catraieiros, pretos de ganho [nègres de jounée], pretos tanoeiros, etc. A vila de St Pierre se tornou seu domínio: no mar, nas praças públicas, eles se mostram senhores do lugar e os brancos são obrigados a usar de grande circunspecção, para evitar insultá-los (…)105 [grifos meus]

O reconhecimento oficial dessa classe de fato os colocava “no caminho da emancipação”. Porém, para que fossem reconhecidos como livres ainda precisavam conseguir uma carta de alforria concedida pelas autoridades coloniais. Em sua carta à Louis Fabien, Michel Savignac afirma que não bastavam seus registros como “patrocinados”. Para aqueles em sua situação, era necessário que fosse promulgada uma ordenação real que autorizasse a concessão de alforria a todo indivíduo que habitasse nas colônias e que com qualquer título pudessem provar seus direitos, sem que dependessem do “favor” para conseguir sua liberdade legal. Segundo Savignac, uma grande parte das cartas de alforria que estavam sendo concedidas pelo governo da Martinica no início de 1831 seria “acordada aos milicianos alistados depois de muitos anos”. Uma outra parte, em um pequeno número, seria “concedida devido à proteção, ao favor”. Dessa forma, ele lamenta que aqueles que eram “dignos” e que não haviam procurado e solicitado aos seus “ardentes antagonistas uma proteção”, que ao final lhes seria “recusada”, provavelmente, nunca usufruiriam “da vantagem inestimável de um título regular”106. De fato, as primeiras alforrias oficiais concedidas aos livres de fato contemplaram principalmente os homens alistados nas milícias e alguns escravos patrocinados por senhores brancos. Em maio de 1831, uma decisão do Governador e do Conselho Privado, “portando

105 “Relation des événements qui ont eu lieu à la Martinique en février 1831”, ANOM, Série Géographique, Carton 18, Dossier 160 (manuscrito). 106 Carta de Michel Savignac à Louis Fabien, 26 de abril 1831, FABIEN, op cit, p. 17. 199 alforria de vários indivíduos por ocasião da festa do Rei”, concedeu o “benefício da liberdade àqueles indivíduos” que lhes parecessem merecedores. Nesta decisão, foram acordadas alforrias “por serviço realizado nas milícias”, “liberdades do General Rochambeau”, “liberdades acordadas aos patrocinados e livres de savana” e “liberdades acordadas a escravos por serviços prestados aos seu senhores”. A despeito dos vários registros de manumissão feitos por patronos livres de cor junto aos notários dos arrondissements de Saint-Pierre e Fort- Royal na época, todos os escravos agraciados com a benevolência do governo, em maio de 1831, foram recomendados por senhores brancos, a maioria homens. Entre o final de 1830 e o primeiro semestre de 1831, as alforrias outorgadas pela administração colonial ainda dependiam principalmente da “recomendação” dos comissários-comandantes de cada localidade, ou dos notários das principais vilas, ou de outros membros da elite colonial107. Desse modo, a classe senhorial, com apoio do governo da colônia, tentava ainda manter a alforria como um favor a ser concedido de acordo com a relação de dependência e patronagem com os senhores brancos, como uma ferramenta de controle senhorial. No entanto, durante a Monarquia de Julho, o contexto político na França proporcionou mais espaço e visibilidade para a luta dos livres de fato. O próprio magistrado da Cour de Cassation destacou, no caso do patrocinado Louizy Adzée, em 1833, que era a primeira vez que o tema das liberdades irregulares era debatido na França continental. O novo governo, a mentalidade política e os debates públicos da época passaram a ser instigados pelas ideias do movimento abolicionista, devido ao crescimento de sua esfera de influência na metrópole. Ademais, alguns livres de cor exilados em Paris, como Bissette, Fabien e Mondésir Richard, empenharam-se para garantir os direitos plenos de cidadão aos afrodescendentes livres nas possessões francesas. Em comunicação constante com pessoas das colônias, obtinham informações sobre a situação dos patrocinados e dos escravos, e demandavam na metrópole providências sobre a questão da alforria de forma ampla. Dessa forma, algumas medidas foram realizadas pelo novo governo metropolitano, que passaram a facilitar o processo de oficialização das alforrias dos livres de fato. Em março de 1831, foi abolido o imposto que deveria ser pago à Caixa Colonial108 para se obter uma alforria que validasse o estatuto social de forro. O valor dessa tarifa teria variado

107 Ver Arrêté du Gouveneur en Conseil, portant affranchissement de plusieurs individus, à l’occasion de la fête du Roi, 20 maio 1831, BOM, 1831, pp. 138-150. 108 Esta ordenação foi promulgada na Martinica em maio de 1831. “Art. 1er. A compter de la publication de la présente ordonnance, il ne sera perçu, dans nos colonies, aucune taxe administrative pour affranchissement”. Ordonnance du Roi. Donné à Paris, le 1er Mars 1831. JOM, 13 de maio de 1831 (ANOM). 200 entre três mil à mil e duzentos francos desde o século XVIII até sua extinção109, equivalendo ao preço de um escravo. Antes dessa decisão, se um escravo ou escrava conseguisse pagar ao seu proprietário o valor de seu corpo, ainda precisaria quitar o imposto pela alforria oficial para ser legalmente reconhecido como livre, caso este procedimento fosse autorizado pelo governo colonial. Além da extinção do imposto sobre a alforria, em julho de 1832, o governo metropolitano promulgou uma medida legislativa que tinha como um de seus objetivos principais conceder as cartas de alforria oficial aos “indivíduos que usufruíam nas Colônias de diversos títulos de liberdade de fato”. Dessa forma, a “Ordenação Real relativa às alforrias dos escravos” determinava na letra da lei que todos os “patrocinados” e “livres de savanas” poderiam apresentar diretamente à administração colonial uma demanda para serem definitivamente reconhecidos como livres. Como uma “Disposição Transitória” dessa lei, seu sétimo artigo dita que:

Todo indivíduo que usufrui de uma liberdade de fato, exceto em caso de fuga [marronage], poderá apresentar, por um intermediário, seja seu patrono, seja o Procurador do Rei, uma demanda para ser definitivamente reconhecido como livre. Igual demanda poderá ser apresentada, por intermédio do procurador do Rei, por toda pessoa ainda não alforriada legalmente que, à época da promulgação da presente ordenação, terá cumprido oito anos de serviço na milícia110 [grifo meu].

Assim, a partir de 1833, por efeito da ordenação de 12 de julho de 1832, vários patrocinados e livres de savana, e mesmo escravos, passaram a conseguir suas alforrias oficiais, sem necessariamente depender das relações de favor e proteção com senhores brancos ou patronos. Diferentemente de todo o período anterior, uma grande quantidade de cartas de alforria oficiais foram emitidas pelo governo da Martinica, e a maior parte delas foram concedidas aos escravos “patrocinados” (patronnés) ou “livres de savana” (libres de savane). Entre 1830 e 1847, 26.058 libertos e libertas receberam suas alforrias regulares da administração da colônia, número extremamente atípico em relação a qualquer período da história da escravidão no Caribe francês até a sua abolição definitiva em 1848. Entre esses alforriados, 15.092 eram considerados “livres de fato”, ou seja, 58% do total das liberdades

109 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 305. 110 L’Ordonnance Royale relative aux affranchissements des esclaves (Paris, 12 julho de 1832), promulgada na Martinica em 13 de setembro de 1832, publicado no BOM, 1832, pp. 318-321 (ANOM). 201 registradas na Martinica durante a Monarquia de Julho111. Finalmente, os patrocinados se tornaram “de fato” visíveis no sistema escravista e colonial francês.

4.4 – REGISTROS DE MANUMISSÃO A ESCRAVOS PATROCINADOS (1831-1832)

A despeito da pressão política feita pela classe senhorial na época — e apesar das críticas apresentadas por Michel Savignac a Louis Fabien —, a partir de 1831 uma grande quantidade de homens e mulheres começaram a se movimentar para conseguirem suas cartas de alforria chanceladas pelas autoridades da colônia. Em 31 de dezembro de 1830, um aviso oficial publicado no Journal Officiel de la Martinique informava que: “com exceção dos alforriados por tempo de serviço nos caçadores de montanha e nas milícias, as cartas de alforria somente serão concedidas aos outros libertos que apresentarem a desistência de seu senhor, registrada por ato autenticado”. Assim, na primeira semana de janeiro de 1831 já havia certidões de “desistência” de propriedade sobre vários indivíduos, que equivaliam a registros de manumissão112, assentados junto aos notários da Martinica. Contudo, sabemos que essa ação era apenas parte do processo, pois a alforria oficial ainda deveria ser sancionada pelo governo colonial. Para esta pesquisa, os dados utilizados foram coletados na documentação notarial do arrondissement de Saint-Pierre113, especialmente os registros feitos por Pierre Joseph

111 Os dados gerais sobre as alforrias concedidas entre 1830-1847 foram tirados de duas fontes. Entre 1830 e 1832, considerou-se os dados fornecidos por Scholcher; entre 1833 e 1847 foram considerados os dados fornecidos pelas administrações coloniais ao Ministério da Marinha e das Colônias (França): Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1847 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1851; SCHOELCHER, op cit (1842), p. 305, pp. 435-436. 112 Em Saint-Pierre, os notários, em geral, registravam as declarações de manumissão como “Désistement” (desistência ou renúncia) de propriedade em favor de um indivíduo que era cativo de outro. Ver ANOM – Notaires (Damaret fils) / Martinica / 786 – 787. O notário Ferriez, de Fort-Royal, em 1831, registra estes documentos como atos de “manumission” (manumissão). Já o notário Leyritz, também de Fort-Royal, em 1831, registra-os como atos de “affranchissement” (alforria). ANOM – MAR/NOT/REP 7, Ferriez, Fort- Royal; ANOM – MAR/NOT/REP 3, Leyritz, Fort-Royal. 113 Minha pesquisa tanto na documentação do État-Civil como na documentação notarial se restringiu principalmente à cidade de Saint-Pierre e à região de suas redondezas. Mais de uma fonte afirma que era em Saint-Pierre e em suas redondezas que se encontrava a maior população de “livres de savana” e “patrocinados”. Na introdução, justifico com mais detalhes este recorte espacial. Arrondissement é uma unidade administrativa de cada departamento francês, aglomerando várias sub-prefeituras. O arrondissement 202

Damaret fils114. Este, diferentemente dos outros notários dessa cidade, forneceu todas as duplicatas115 à metrópole daqueles atos de manumissão registrados entre 1831 e 1832 — estes registros de desistência se tornaram desnecessários no segundo semestre de 1832, devido à publicação da “Ordenação Real relativa às alforrias dos escravos”. Ademais, Damaret fils foi destacadamente o oficial que mais registrou tal tipo de documento. Entre janeiro de 1831 e setembro de 1832, ele assentou 234 certidões de desistência de propriedade sobre indivíduos116, quase todos patrocinados ou livres de fato, e vários desses atos incluíam famílias inteiras de libertos irregulares. A maior parte destes documentos foi produzida entre junho e julho de 1831, muito provavelmente como consequência da ordenação real que estabeleceu a gratuidade sobre a carta de liberdade, publicada em 13 de maio do mesmo ano. Com a extinção do pesado imposto de alforria e o reconhecimento do estatuto de patrocinado, indicando que as perseguições que sofriam por conta de suas liberdades clandestinas chegariam ao fim, muitos livres de fato saíram da sombra, como afirma Miryam Cottias117. Compareceram, então, para certificar sua situação, com o auxílio de seus patronos ou outras pessoas que registravam declarações atestando sua condição de liberto e seus meios de existência. O rico conjunto documental produzido neste período nos permite, finalmente, visualizar muitos livres de savana e patrocinados, suas famílias, seus meios de existência e profissões, quem eram seus patronos, suas redes de relações, seus fragmentos de história.

de Saint-Pierre, ao norte da ilha da Martinica, por volta de 1830, era formado, além do município de Saint- Pierre, pelas vilas e burgos de Carbet, Case-Pilote, Prêcheur, Basse-Pointe, Macouba, Grand’Anse, Marigot, Sainte-Marie, Trinité, Gros-Morne, Robert, François. 114 Os notários da região de Saint-Pierre nesta época, além de Damaret fils, eram Jacques Gaspard Alexis Fillasier (notário entre 1825-1837), Charles Dulieu (notário entre 1829-1844) e Joseph Marie Bally. Fillassier registrou 41 atos de “desistência de propriedade” ou “declarações” que certificavam a condição de manumitidos de homens e mulheres. Bally assentou em torno de 70 “affranchissements” (alforrias) ou desistências de propriedade. Dulieu registrou 38 documentos dessa natureza, no entanto, não forneceu as duplicatas à metrópole, apenas o repertório que informa a natureza do registro. Conferir esta documentação em ANOM – Notaires – Martinique. 115 Os funcionários e oficiais das colônias, desde de 1776, deveriam fornecer ao Dépôt de Papier Public des Colonies (DPPC) na França, duplicatas dos principais documentos produzidos nas colônias – os quais estão atualmente nos Archives Nationales d’Outre Mer (ANOM – Aix-en-Provence, França). No entanto, para alguns registros, os notários poderiam enviar apenas um “repertório” (répertoire), tipo de lista ou sumário que indicava resumidamente o conteúdo dos documentos. Nessas listagem, geralmente informavam apenas o tipo de registro, os nomes dos indivíduos envolvidos e as datas. Porém, não se tem acesso ao documento integral. Os únicos originais em papel (ainda que duplicatas) dessa documentação notarial completa da Martinica estão acessíveis apenas no ANOM. Nos Archives Départementales de la Martinique (ADM), este conjunto documental está disponível apenas em cópia microfilmada. Veja no website do ADM: http://www2.cg972.fr/arch/html/pagecoll.htm. 116 ANOM – Notaires (Damaret fils) / Martinique / 786 – 787. 117 COTTIAS, Myriam, “Le Partage du Nom – Logiques Administratives et usages chez les nouveaux affranchis des antilles aprés 1848”, Cahiers du Brésil Contemporain, 2003, no. 53/54, p. 165. 203

Nestes documentos notariais percebemos, por exemplo, que mesmo os patronos ou patronas não sabiam como definir o estatuto do seu patrocinado. Em carta anexada ao registro de desistência de propriedade sobre uma mulher, o sieur (seu) Jean Joseph se refere à “nommée [denominada] Euphrosine” como sua “escrava”, e ao mesmo tempo diz que era apenas seu patrono:

Eu, assinado Jean Joseph, proprietário morador do Macouba, autorizo o sieur Cyr Athis a se apresentar junto ao Senhor Damaret, notário, na cidade de Saint-Pierre, a fim de me representar para fazer registro em um ato de desistência em favor de minha escrava Euphrosine, e de encaminhar uma petição a Sua Excelência Senhor Contra Almirante Dupotet, governador desta colônia, para lhe suplicar que queira bem acordar um título de liberdade a denominada Euphrosina e suas crianças, os quais eu declaro não me pertencerem, [pois] que estiveram sempre listados em meu inventário, mas eu era apenas seu patrono; que ela possui um carré de terra, com uma casa e dependências, e dois domésticos, e que além disso, caso ela se encontre em necessidade, obrigo-me a alimentá-la, vesti-la e ajudá-la na saúde como na doença, durante sua vida, para que ela nunca esteja a cargo do Governo 118. [grifo meu]

Em geral, nos atos de manumissão, os senhores ou patronos declaravam desistir de todos os seus direitos de propriedade sobre determinada pessoa, e quando esta era livre de fato, o declarante reconhecia ainda ser apenas patrono ou patrona do indivíduo, e autorizava o governo a conceder a “carta de liberdade necessária para lhe conferir os direitos e prerrogativas dos quais usufruem os livres e libertos” da Colônia. Por fim, era necessário que o senhor ou patrono informasse que o liberto tinha seus meios de existência (seu ofício e/ou pecúlio) e ainda deveria declarar que cuidaria das necessidades da pessoa alforriada, em caso de miséria ou enfermidade, de maneira que o liberto não se tornasse jamais responsabilidade do governo. Tais documentos permitem observar o nome e, às vezes, o sobrenome dos patrocinados, sexo, idade, sua condição (escravo, patrocinado, livre de savana, se possuía uma carta de alforria estrangeira ou de Rochambeau); seu ofício ou “meios de existência”, sua “casta” (mulato, negro, câpre, mestiço, quarteron). Além desses dados sobre os patrocinados, também podemos obter informações sobre os patronos: nome e sobrenome; homem ou mulher; a “classe”119 do proprietário, isto é, “branco” ou “livre de cor”; o ofício de

118 ANOM – DPPC – NOT – Martinica – Damaret fils, 21/06/1831. 119 Aqui, utilizo o termo “classe” de acordo com a noção que era utilizada na época nas colônias francesas. Os grupos sociais eram divididos de acordo com uma suposta origem étnica, definida como “raças”, entre indivíduos da “raça branca europeia”, indivíduos da “raça negra africana” e indivíduos “das variedades de mestiços [sang-mêlés] provenientes do cruzamento destas duas raças”. Além disso, as classes também eram divididas de acordo com o estatuto social (livre ou escravo), formando por fim três classes: a classe dos 204 proprietário; seu local de residência. Algumas vezes podemos observar as relações de parentesco entre os patronos e patrocinados. Ademais, vários registros certificam a desistência de propriedade sobre toda uma família, revelando, assim, os laços parentais entre os escravos. Para esta pesquisa, foi analisada uma amostra de manumissões registradas por 87 senhores e senhoras, contemplando 208 escravos patrocinados, entre mulheres, homens e crianças. Entre os 87 senhores, 31 (15 mulheres e 16 homens) pertenciam à classe dos brancos e 56 (27 mulheres e 29 homens) à classe dos livres de cor. O objetivo foi verificar quem eram seus patronos, se eram homens ou mulheres, afrodescendentes ou brancos, buscando, assim, observar quais relações possivelmente eram estabelecidas entre patronos e patrocinados. Bernard Moitt, em seu artigo sobre as “mulheres de cor” e os “livres de fato” nas Antilhas Francesas, afirma que grande parte dos patrocinados eram mulheres que conseguiam suas liberdades devido às suas relações de concubinagem com seus senhores brancos:

Um número significativo de escravos patrocinados eram mulheres miscigenadas e suas crianças, e em menor número, mulheres negras e suas crianças miscigenadas. (…) mulheres de cor e suas crianças geralmente contavam no mínimo dois terços dos indivíduos que eram listados nos jornais coloniais. Os patronos dessas mulheres de cor eram quase sempre homens brancos. Isso não pode ser coincidência. Muito frequentemente, estes homens possuíam as mulheres e eles eram às vezes também o pai de suas crianças, as quais ele também possuía, em virtude da lei que definia que os filhos de uma mulher escrava pertencem ao senhor da escrava120.

De fato, como podemos observar na Tabela 10 (abaixo), as mulheres representam uma parte significativa (56,7%) dos patrocinados que foram declarados manumitidos nos registros notariais em Saint-Pierre, em 1831. No entanto, ainda que uma parcela tivessem como patronos homens brancos, a maioria delas vivia sob a patronagem de pessoas “livres de cor”. Ademais, entre aqueles patronos dessa classe, quase metade eram mulheres (patronas). Veremos, ainda, no último capítulo, na análise de outras “amostragens” sobre as alforrias pronunciadas nas décadas de 1830 e 1840, que um padrão semelhante a este se repete sobre os proprietários que alforriaram escravos no período. Por que destacar, então, assim como no discurso dos brancos senhores de escravos, que a maioria das mulheres patrocinadas conseguiam viver como libertas por conta de suas supostas relações íntimas estabelecidas com

brancos, a classe dos livres de cor (gens de couleur libre ou affranchis) e a classe dos escravos. Ver Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, pp. 1-5 (BNF – GALLICA). 120 MOITT, op cit, p. 48. 205 senhores brancos? Isso não é destacado quando um escravo homem consegue a liberdade de suas senhoras brancas. Mesmo porque, neste caso, as fontes silenciam, como se intencionassem proibir desde o “não registro”, sobre as relações entre “homens de cor” e “mulheres brancas”121. De qualquer forma, a tabela 10 abaixo, produzida a partir daquela documentação notarial comentada acima, demonstra que, entre as mulheres patrocinadas, em torno de 65% tinham patronos e patronas que pertenciam à classe dos “livres de cor”; entre essas, em torno de 45% eram patrocinadas por outras mulheres e 55% por homens. No quadro geral destes atos de manumissão, as mulheres patrocinadas por homens brancos representam 13% do total. Dessa forma, a amostra fornecida por este conjunto documental revela que as mulheres patrocinadas ou livres de savana não conquistavam suas liberdades, mesmo que clandestinas e precárias, na maior parte dos casos, devido as suas relações com os homens brancos — mesmo se considerarmos que todos homens brancos da amostra tinham relações de concubinagem com suas escravas patrocinadas. Além de ser significativa a quantidade de pessoas livres e libertas que patrocinavam libertos irregulares, o número de mulheres “livres de cor” que atuavam nestas relações de proteção e dependência também é muito significativo.

Tabela 10 – Registros de desistência de propriedade dos senhores sobre seus escravos patrocinados, janeiro a junho de 1831: sexo e classe dos senhores / sexo dos escravos patrocinados Senhor(a) ou escrava escravo Total Patrono(a) patrocinada patrocinado

mulher livre de cor 34 26 60

homem livre de cor 43 32 75

mulher branca 14 8 22

homem branco 27 24 51

Total 118 90 208

Fontes: ANOM – DPPC/NOT/MAR – 784 / 785, Damaret fils

121 Schloss relata o caso de um casal que aportou na Martinica em 1815. Um homem negro, casado uma mulher branca, chegou da França na Martinica naquele ano e teria causado grande escândalo na colônia. O fato é inclusive é tratado na correspondência entre o governador da Martinica e o Ministro da Marinha e das Colônias. SCHLOSS, op cit, pp. 73-74 206

Quanto à classe do patrono ou patrona, a partir de 1831 os registros notariais não designavam mais as pessoas “livres de cor” por este termo. No final de 1830, uma decisão do governo colonial revogou as leis que proibiam os oficiais da colônia usarem os pronomes “sieur”, “dame” e “demoiselle” em documentos públicos para se referir aos indivíduos afrodescendentes livres. No entanto, é fácil observar que os notários, ao menos entre 1831 e 1832, ainda mantinham uma forma de diferenciação entre as classes dos brancos e dos livres de cor. Utilizavam para se referir aos primeiros os pronomes de tratamento “monsier”, “madamme” e “mademoiselle”, mais formal, e para os outros “sieur”, “dame” e “demoiselle”. Além disso, era muito comum que os proprietários da classe dos livres de cor declarassem não saber escrever nem assinar, por isso não assinavam o registro de desistência de propriedade. Há casos ainda que os patronos declaram suas relações de parentesco com os patrocinados manumitidos e, nestes casos, eram sempre pessoas livres de cor. Foi dessa forma que a classe dos senhores, que registraram as manumissões de seus escravos patrocinados em 1831, foi definida nas análises aqui apresentadas. Alguns senhores ou patronos livres de cor registraram a manumissão de mais de um escravo ou escrava. Judith Flora, tratada por demoiselle, proprietária e moradora da paróquia do Fort, alforriou cinco escravos patrocinados entre janeiro e maio de 1831: Rose, 20 anos, e seus dois filhos, Joseph de 3 anos e Philippe, que tinha em torno de um mês; Jean Philippe, dito Jean Jean, caprê, de 24 anos e carpinteiro; Joseph dito Chéri, mestiço, de 20 anos, alfaiate. A profissão de Rose não foi informada, mas Judith Flora declarou que ela possuía um pecúlio de 1500 francos. Judith Flora era uma mulher livre de cor que, provavelmente, trabalhava com comércio na cidade de Saint-Pierre e possuía imóveis122. Jean Philippe Munier registrou a manumissão de três escravos: Rosette, 41 anos, mulata, lavadeira, que, além de seu ofício, tinha um pecúlio de 1200 francos tanto em valores monetários como em objetos mobiliários que lhe asseguravam seus ganhos; Lucien dito Jean, 28 anos, que tinha uma carta de alforria estrangeira, estava alistado na milícia de Saint-Pierre, e tinha um pecúlio avaliado em cinco mil francos, tanto em dinheiro como em objetos mobiliários; e Elisabeth dita Zabeth, lavadeira, 40 anos. Jean Philippe Munier era uma homem livre de cor, comerciante, identificado como mestiço. Em 1817, casou-se com Marie Clotilde Lamode,

122 Em outubro de 1830 Judith Flora venderia um escravo e seria identifica no documento notarial como “femme de couleur libre” (mulher livre de cor). Em agosto de 1831 ela venderia uma casa a madame viúva Angny. ANOM/MAR/NOT/787, Damaret fils. 207

“mulata livre”, filha legítima de Geneviève, viúva de Maximim Lamode. No contrato de casamento, Geneviève, que também era comerciante na época, doou ao casal sua casa localizada na paróquia do Fort, em Saint-Pierre, onde possuía ainda um espaço de loja “propício ao estabelecimento da atividade comercial” de Jean Philippe Munier. Tudo isso sob a condição de que ela viveria com sua filha e seu genro e seria amparada pelo casal até sua morte123. Assim, tanto Judith Flora como Jean Joseph Munier eram comerciantes e pessoas livre de cor bem estabelecidos, na medida do possível em uma sociedade escravista e racializada, pois tinham propriedades e sabiam escrever. É importante destacar, ainda, que Munier inclusive tivera a ajuda de sua sogra, também uma mulher livre de cor. No entanto, a maioria das pessoas livres de cor que registraram a manumissão dos escravos patrocinados não tinham a mesma realidade econômica e cultural de Judith Flora e Jean Philippe Munier. A maioria, tanto entre os homens como entre as mulheres livre de cor, declarava não saber escrever nem assinar. Contudo, muitos eram “proprietários”, o que significa que poderiam ter um imóvel, um espaço de comércio e/ou escravos, e alguns eram até mesmo “habitant propriétaire”, o que significa que possuíam uma propriedade rural, mesmo que de pequenas proporções e com alguns poucos escravos. Auguste Rufin, “homem livre” ou “negro livre”, comerciante até 1823, adquiriu um propriedade rural de 13,5 carrés124 de terra nos altos do Fond Canonville, com dez escravos, muitos em idade avançada, no município de Saint Pierre em 1824, com sua esposa, Marie Elizabeth Laurent, também uma pessoa livre de cor125. Em 1831, ainda como proprietário rural no Fundo Canonville, Auguste Rufin registraria a manumissão de dez escravos patrocinados. Não foi possível verificar se seriam os mesmo cativos que faziam parte de sua propriedade rural, ou se eram outras pessoas, libertos irregulares que ele patrocinava, que são eles: Amélie, mestiça, costureira, 26 anos, e seu filho, Ernest, mestiço, 5 anos; Thermence, câpresse, costureira, 26 anos; Jeanne Rose, 51 anos, e sua filha Adelaide, 17 anos, que tinham um pecúlio em mercadorias para seu meio de existência; Adée, 37 anos, e seus 3 filhos, Célestine, 12 anos, Roséline, 4 anos, e Amédée, 2 anos, família que provavelmente vivia do trabalho rural, pois possuía um cavalo e uma carroça; e Téophile dito Saint-Esprit, negro, 51 anos, que era carpinteiro, mas provavelmente também vivia do trabalho rural, pois possuía um cavalo e um cabresto, e ainda

123 LOUIS, Abel. Marchands et négociants de couleur à Saint-Pierre (1777-1830): Milieux socioprofissionnels, fortune et mode de vie. Vol. 2. Paris: L’Harmattan, 2015, p. 337. 124 Na Martinica, 1 carré de terra equivale à 1 hectare 29 ares 26 centriares. Ver Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 50. 125 LOUIS, op cit (2015), p. 470-472. 208 tinha três escravos126. No caso de Téophile, é possível inferir que estes três cativos fossem de sua família, como era muito comum ocorrer, ou seja, havia escravizados que declaravam parte de suas famílias como sua propriedade ou libertos que registravam seus parentes em seus inventários como escravos ou patrocinados. Tanto no caso de Judith Flora como de Jean Joseph Munier e Auguste Ruffin, aparentemente nenhum de seus escravos tinham relação de parentesco com seus senhores- patronos. No entanto, observa-se com frequência pessoas livres de cor registrando a manumissão de parentes. A demoiselle Rufine era uma mulher livre de cor, que não sabia escrever nem assinar, e “habitante” no município do Carbet (arrondissement de Saint-Pierre). Declarar-se como “habitante” significa que morava na área rural, em alguma porção de terra que não era sua propriedade, pois não era “habitante proprietária”. Rufine declarou, em junho de 1831, a manumissão de toda sua família, quatro filhos e sete netos, entre os quais alguns provavelmente viviam com ela no mesmo local, pois eram moradores no mesmo município do Carbet, e outros moravam em Saint-Pierre. Todos estavam registrados como escravos em seu inventário, mas ela já havia declarado aos comissários-comandantes do Carbet e de Saint- Pierre que eles eram apenas patrocinados por ela. Marie Toinette dita Adèle, 24 anos, e seu filho Emille, 2 anos, Louise dita Lodaiska, 16 anos, e Jules, 20 anos, moravam em Saint- Pierre e tinham cartas de alforria estrangeira, concedidas pelo governo da Ilha de Sainte-Croix (Santa Cruz). Provavelmente, por viverem numa cidade grande como Saint-Pierre, onde estariam mais suscetíveis a abordagens de policiais, e por não habitarem no mesmo local que sua senhora-patrona, haviam feito aquilo que muitos outros libertos irregulares faziam. Buscavam uma carta de alforria nas ilhas vizinhas à Martinica, na esperança de evitarem uma reescravização como épaves, esperando conseguir em algum momento regularizar sua situação. A filha mais velha de Rufine, Françoise, de 33 anos, morava no Carbet com seus seis filhos: Théele dita Elianne, 15 anos, Charles, 13 anos, Julien, 11 ano, Théodore, 9 anos, Louis dito Louisy, 7 anos, Alexandre dito Ludovic, 6 anos. Entre os 208 escravos e patrocinados manumitidos naqueles atos de desistência de propriedade entre janeiro e junho de 1831, 146 foram libertos com seus parentes, formando um total de 38 famílias. Dessas, a grande maioria (30) eram grupos familiares formados por mães com seus filhos. Quatro famílias eram constituídas pela mulher com filhos e netos, incluindo neste número a família de Rufine. Duas famílias eram formadas por mães com suas

126 ANOM/MAR/NOT/786, Damaret fils. 209 crianças manumitidas pelo marido/pai. O sieur Stanilas Marie Jeanne, mestre pedreiro, morador na paróquia do Fort em Saint-Pierre, registrou a manumissão de Marie Louise, 46 anos, e de seus filhos, Joseph, 17 anos, Stanilas, 12 anos, e Monique, 7 anos. Ele declarou, no mesmo registro de desistência de propriedade sobre estes seus patrocinados, que se obrigava a oficializar o casamento com Marie Louise e efetuar a legitimação de seus três filhos127. É interessante notar que alguns dias antes, o mesmo senhor Stanilas Marie Jeanne havia registrado a manumissão de outras duas escravas patrocinadas, Marie, 41 anos, e sua filha, Rosilia, 15 anos128. O sieur Jean Baptiste Lorrade, que era proprietário de terra no Fundo Canonville, no município de Saint-Pierre, declarou desistir de sua propriedade sobre os patrocinados Lucette, 67 anos, e seus filhos, François, 7 anos, Touissant, 20 anos, Auguste, 24 anos, Pierre, 22 anos e Jean-Baptiste, 21 anos. Estes três últimos tinham todos o ofício de alfaiate e Touissant era carpinterio. O senhor Lorrade declarou, ainda, que esse registros tinham por fim oficializar seu casamento com Lucette e, assim, reconhecer e legitimar seus cinco filhos, obrigando-se a assegurar seu bem-estar por meio da transmissão legal de seus bens àqueles seus herdeiros. Foi manumitida, ainda, uma família formada pelo homem, a mulher e os filhos. A demoiselle Josephine Mézière, “habitante” na zona rural de Saint-Pierre, registrou a manumissão de quatro escravos patrocinados, Charles, 34 anos, e Césarine dita Sévérine, os dois exercendo a profissão de comerciantes (marchands), além de suas duas filhas, Claire Mariette, 12 anos, e Marie Claire, 9 anos. Josephine ainda declarou que Charles e Césarine eram casados canonicamente129. Por fim, um caso interessante de um casal que foi manumitido em um mesmo registro de desistência de propriedade, mas por senhores diferentes. Evariste, 35 anos, tinha o ofício de cozinheiro, era patrocinado pela demoiselle Marie Thérèse Hachard, provavelmente mulher livre de cor, que morava na paróquia do Fort, em Saint-Pierre, na rua da Consolation. E Rosalie, 39 anos, que tinha o ofício de lavadeira e era patrocinada pelo sieur Michel Littée130, homem livre de cor, que tinha o ofício de mestre marceneiro e também morava na rua da Consolation. Os dois senhores-patronos ainda declararam que Evariste e Rosalie eram casados canonicamente desde 1827. Os dois escravos

127 ANOM/MAR/NOT/784, Damaret fils, 09/06/1831. 128 ANOM/MAR/NOT/784, Damaret fils, 03/06/1831. 129 ANOM/MAR/NOT/784, Damaret fils, 17/06/1831. 130 Louis Abel fala de Michel dito Littée, também conhecido como Michel Littais. Era um homem livre de cor, mestiço, que se casou em 1798 com Elizabeth, mestiça livre, filha de Marie Jeanne Laporielle. LOUIS, op cit (2015), pp. 335-336. 210 patrocinados, além de exercerem seus ofícios como meio de existência, possuíam um pecúlio de quatro mil francos em dinheiro e objetos mobiliários131. A grande maioria das mulheres livres de cor que registram a manumissão de seus escravos não eram casadas, identificadas como demoiselles (senhoritas). Do total de 27 mulheres livres de cor que alforriaram 60 indivíduos patrocinados (34 mulheres e 26 homens), 20 eram “demoiselles” e 7 eram “damas viúvas”, ou seja, casadas e viúvas. Entre as mulheres brancas, que registraram desistência de propriedade sobre escravos e patrocinados, a proporção se inverte, pois a maioria era “madame viúva” (12), e apenas algumas “mademoiselles” (3), ou seja, “senhoritas”, mulheres solteiras. Quanto aos homens, não foi possível identificar se eram casados ou solteiros. Para isso, seria necessária uma pesquisa mais minuciosa nos documentos notariais, pois os pronomes de tratamento utilizados, monsieur e sieur, eram empregados para as duas situações civis, diferentemente das mulheres. A maior parte dos atos de manumissão assentados até junho de 1831 concerniam aos escravos e escravas patrocinados. Na amostra analisada, apenas em torno de 10% das certidões de desistência de propriedade se referiam a indivíduos que não haviam recebido uma manumissão anterior, eram escravos e não patrocinados. Notadamente, todas essas declarações foram registradas por senhoras e senhores brancos. Entre essas, destacam-se duas que foram feitas na forma de alforrias condicionais, por senhoras, mulheres brancas, uma delas viúva. Assim, em janeiro de 1831, a Madame Solger de St. Maurice, viúva do senhor Gallet de St. Aurin, que fora conselheiro do antigo Conselho Soberano132, registrou a manumissão do negro Jean Léon, de 46 anos, “seu escravo”, em “recompensa pelos bons e longos serviços prestados”. Ela desistia de todos os seus direitos de propriedade sobre ele, com a condição, no entanto, que ele continuasse a lhe dedicar “seu serviço até a morte da dita dama”. Consequentemente, a Madame Solger declarava, então, que apenas após seu falecimento consentiria que o governo concedesse a Jean Léon uma “carta de liberdade, que lhe confere os direitos e prerrogativas das quais usufruem os livres e libertos desta Colônia”. Além dessa condição, a senhora ainda deixava registrado que o pagamento do imposto para obtenção da carta de alforria ficaria a cargo de Jean Léon. Como comentado anteriormente,

131 ANOM/MAR/NOT/784, Damaret fils, 18/05/1831. 132 O Conseil Souverain de la Martinica, depois Conseil Supérieur, era uma instância judiciária da Colônia que funcionou até 1820, quando se tornou Cour Royale (futura Cour d’Appel). Ver Liliane Chauleau, Conseil souverain de la Martinique – Inventaire analytuque. 1712-1791 (Tomo 1); 1791-1820 (tomo 2). Fort-de- France: Archives Départementales de la Martinique, 1985, 1999. 211 este imposto seria abolido logo em março de 1831133, tornando menos desafortunado o destino de Léon. A senhora Marie Françoise Modeste Cardinal de Chalancé, mulher branca, proprietária e residente em Saint-Pierre, declarou desistir da propriedade sobre uma família de escravas, “por justas causas e considerações”, mas com a condição de que lhe servissem “até o dia de sua morte, época a qual, ela [a senhora], consente que o governo acorde e entregue toda a certificação necessária, para lhes conferir os direitos e prerrogativas que usufruem os livres e libertos desta colônia”. Provavelmente Anne, de 26 anos, era uma cativa doméstica da senhora Cardinal de Chalancé, que alforriava ainda as três filhas da escrava: Marie Madelaine dita Amanda, 6 anos; Luce, 2 anos; e Marie Solitude, seis meses de idade. Marie Françoise declarou também, neste mesmo documento, que aquele registro de manumissão seria estendido aos rebentos de Anne que ainda poderiam nascer134. Não foram encontrados mais elementos para explicar com precisão porque os proprietários da classe dos brancos registraram manumissões condicionais de “escravos”, enquanto nenhuma desse gênero foi assentada por senhores livres de cor, ao menos do arrondissement de Saint-Pierre. Contudo, esse fato demonstra que existia alguma diferença entre ser um senhor livre de cor e um senhor branco na Martinica. Talvez sejam indícios importantes para se pensar as inter-relações entre raça, classe e propriedade escrava no Caribe Francês. Ainda que se trate de uma realidade bastante diferente das colônias francesas, as análises de Robert Slenes sobre a alforria no Brasil tem destacado a importância de se observar quem eram os senhores que alforriavam seus escravos, como uma forma de compreendermos o significado da alforria nos sistemas escravistas das Américas e do Caribe. Em artigo recente135, o autor procura demonstrar como e porquê pequenos proprietários (que possuíam entre um e dez escravos) alforriavam mais seus escravos que aqueles proprietários que tinham grandes escravarias. Além disso, Slenes destaca que uma significativa porcentagem dos pequenos proprietários no Brasil, que haviam passado da condição de “camponeses” para aquela de possuidores de reduzidas porções de terras e de alguns escravos,

133 ANOM – DPPC – Notaires - *MAR//784 – 5-jan a 17-maio 1831, DAMARET fils, Pierre Joseph Alexandre 134 ANOM – DPPC – Notaires - *MAR//789 – março a 15/junho de 1832, DAMARET fils, Pierre Joseph Alexandre. 135 SLENES, Robert Wayne Andrew. Peasants into Precarious Masters: Hard Bargaining and Frequent Manumission in Brazilian Small Slave Holdings, c. 1750-1850. In: BHATTACHARYA, Sabyasachi ; BEHAL Rana P. (orgs.). The Vernacularization of Labour Politics. New Delhi, India: Tulika Books, 2016, p. 146-177. 212 eram pessoas libertas ou livres de cor. Slenes argumenta que estes senhores “precários” provavelmente tinham relações mais próximas e íntimas com seus escravos, e poucos recursos para prover as necessidades destes. Dessa forma, eram mais frequentemente impelidos a negociar a manumissão de seus cativos. Contudo, no Brasil, não apenas os pequenos proprietários rurais afrodescendentes alforriavam com mais frequência seus escravos. Comerciantes e negociantes, igualmente livres de cor, que viviam no meio urbano, também se destacaram na quantidade de manumissões concedidas durante o período escravista. Sheila de Castro Faria136 tem demonstrado que mulheres libertas, Minas em sua origem — termo genérico usado para identificar escravos trazidos de regiões da África Ocidental137 —, prosperaram como pequenas comerciantes proprietárias de escravos, vendendo comida e produtos (“quitandeiras”) na cidade do Rio de Janeiro, no final do período colonial. Estas mulheres, em geral, não casavam, não tinham filhos e alforriavam uma proporção substancial de suas escravas, durante a vida, por cartas de alforria, ou após a morte por meio de seus testamentos. Inclusive, elas frequentemente legavam a suas escravas dinheiro ou propriedade, nomeando as recém libertas ou seus filhos como seus herdeiros. Ademais, Slenes afirma que era comum que senhores de poucas posses nas áreas urbanas mantivessem escravos ao ganho — que alugavam seus serviços, nas colônias francesas, journalières —, prática que dava aos escravos mais autonomia e maiores oportunidades de juntar um pecúlio e comprar sua liberdade138. Na Martinica, os proprietários livres de cor, em geral, possuíam um pequeno número de escravos, fosse na área rural ou urbana139. Observando os dados analisados neste capítulo, podemos constatar que provavelmente situações semelhantes àquelas descritas por Slenes em relação ao Brasil, sobre a relação entre alforria e o tamanho das posses, também ocorressem nas colônias francesas. Contudo, podemos inferir, ainda, que uma outra prática decorria no caso dos libertos irregulares. É possível que os escravos que conseguiam uma forma de manumissão inicial de senhores brancos, geralmente proprietários de grandes

136 FARIA, Sheila Siqueira de Castro, “Damas mercadoras: as pretas minas no Rio de Janeiro (século XVIII a 1850)”, in SOARES, Mariza de Carvalho (org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do benim ao rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, pp. 101-134. 137 Sandra Graham afirma que o termo “mina” era usado no Rio de Janeiro nos Setecentos para se referir a todos os africanos ocidentais, incluindo os chamados daomeanos, falantes de várias línguas gbe, e os falantes de iorubá, oriundos de diversos grupos dentro do reino de Oyó ao norte e vários estados vizinhos ao sul. Ver GRAHAM, Sandra Lauderdale, “Ser mina no Rio de Janeiro do século XIX”, Afro-Ásia, 45, pp. 25-65, 2012. 138 SLENES, op cit (2016). 139 LOUIS, op cit (2015), pp. 455-472. 213 escravarias, a partir do momento que se tornavam livres de savana, necessitando da proteção de uma pessoa livre, a maioria procurava se aliar a pessoas livres de cor como seus patronos. Alguns desses devido a relações de parentesco. Durante aqueles anos iniciais da Monarquia de Julho, as mulheres patrocinadas libertas obtiveram mais manumissões que os homens, sobretudo aquelas com suas crianças. Isso leva a pensar a relevância de uma análise de gênero sobre a questão da alforria, como alguns autores e autoras tem aos poucos demonstrado140. Nesse sentido, provavelmente, a principal questão seja observar a importância do papel das mulheres escravizadas e libertas como mães, na organização dos lares e como arrimos de família. Neste caso, quais eram os ofícios que exerciam, como conseguiam acesso à terra, qual sua contribuição para o pecúlio coletivo, e assim, na conquista de mais autonomia. Ademais, garantir a alforria das mulheres significava que seus filhos seriam livres ou nasceriam livres. No caso das mulheres livres de fato, conseguir sua liberdade outorgada pelo governo colonial lhes proporcionava a oportunidade de registrar seus filhos e assegurar que, mesmo já maiores de idade, também pudessem conquistar suas alforrias regulares.

140 BRANA-SHUTE, “Sex and Gender in Surinamese Manumissions” (2009); COWLING, Camillia. Conceiving freedom: women of color, gender, and the abolition of slavery in Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013. 214

CAPÍTULO 5 – ALFORRIA, DIREITO E POLÍTICA COLONIAL (1830 – 1848)

Durante o governo da Monarquia de Julho na França foi muito marcante o entrelaçamento desses temas: alforria, direito e política colonial. Naquele período, a conquista do título de liberdade regular nas Colônias Francesas se tornou muito significativa devido às mudanças ocorridas nas leis e na política metropolitana em relação às possessões francesas de além mar, juntamente às transformações encenadas nas próprias Colônias, conjunto que denominamos aqui de política colonial. Este capítulo procura esmiuçar o contexto de debates e ações em torno da questão da alforria e da emancipação dos escravos durante os últimos anos de escravidão nas Antilhas Francesas. Contudo, o foco neste texto não é a luta antiescravista disseminada no continente europeu. Ademais, algumas obras importantes já foram escritas sobre o abolicionismo francês neste período1. O objetivo desta parte da pesquisa é tentar demonstrar como as ações de libertos e livres de cor, na Martinica e na França, assim como dos próprios escravos e escravas, influenciaram ou participaram desse período, cujo processo reorganizou, e até mesmo desestruturou, o sistema escravista francês antes de 1848. É interessante observar a necessidade das análises acerca da legislação sobre a alforria dos escravos antes e depois de 1830. No primeiro capítulo, demonstramos como se deram as restrições à alforria na Martinica, por meio de medidas legislativas ao longo do século XVIII até o início do século XIX. Nesta parte, o objetivo é demonstrar como e porquê nas décadas de 1830 e 1840 essa política colonial foi desmantelada. Além disso, alguns pontos do capítulo expõem especialmente as leis promulgadas entre 1831 e 1845 que tocaram a “arca santa” do domínio senhorial. A metrópole, ao centralizar o poder de legislar sobre a questão da alforria, interferiu no direito dos senhores, e abriu um flanco para a ação dos escravos e libertos. A grande quantidade de alforrias conquistas entre 1830 e 1847 se deve, em parte, às mudanças políticas e legislativas e às abordagens jurídicas ocorridas neste curto período de tempo. No entanto, para se compreender as questões em torno do direito e da

1 SCHMIDT, Nelly. Abolitionnistes de l’esclavage et réformateurs des colonies: 1820-1851 – analyse et documents. Ana. Paris: Karthala, 2000; JENNINGS, La France et l’abolition de l’esclavage, 1802-1848. 215 alforria nesta época, é necessário observá-las como resultado de tensões entre senhores, escravos, autoridades administrativas, abolicionistas e governo metropolitano. Além disso, e sobretudo, como os escravos e livres de fato passaram a utilizar as arenas do direito e da justiça para conquistarem — ou fazerem com que fossem reconhecidas — suas liberdades oficiais e de suas famílias. Como afirma Keila Grinberg, nos últimos anos a historiografia brasileira tem demonstrado “as formas pelas quais o direito simultaneamente contribuiu para perpetuar o poder de proprietários sobre seus escravos e serviu como base a partir da qual escravos e libertos conseguiram desafiar este poder de seus senhores ”. Assim, no século XIX, as arenas do direito e da justiça se transformaram “ao mesmo tempo em possibilidade de perpetuação da escravidão e em veículo para garantia da cidadania ”2. Diferentemente do Brasil, antes deste período da Monarquia de Julho, dificilmente encontraremos ações de liberdade na Martinica. As alforrias estavam praticamente interditadas nesta ilha desde o início da década de 1820, e antes deste período, o acesso à alforria oficial era um verdadeiro calvário a ser percorrido. Talvez, batalhar por uma liberdade de savana fosse a possibilidade mais acessível e real para vários escravos e escravas na Martinica. As leis dificultavam o acesso à alforria legal e o sistema judiciário era controlado pela elite branca de senhores de escravos. Um processo, uma ação de liberdade era praticamente algo impossível antes da década de 1830. Contudo, o período da Monarquia de Julho foi marcado por um evento ainda pouco estudado pela historiografia que aborda a história da escravidão no Caribe francês. Comparado a qualquer outro momento da história da escravidão e do colonialismo francês, a utilização do sistema jurídico e judiciário pelos escravos e escravas foi uma completa inovação, especialmente em ações de liberdade. Neste sentido, os casos mais emblemáticos foram aqueles de mulheres que procuraram as arenas jurídicas para conquistarem suas alforrias e de seus filhos. As mães escravas e libertas tiveram um papel fundamental na busca por suas liberdades e de suas famílias, imprimindo mudanças importantes sobre as questões em torno da alforria, das relações entre senhores e escravos e da percepção de escravas e escravos sobre a nova ordem política e jurídica. Aquelas mulheres e as ações pela liberdade de

2 GRINBERG, Keila, “ Escravidão, Direito e Justiça no Brasil Colonial” (Resenha de LARA, Silvia, Legislação sobre escravos africanos na América Portuguesa), Tempo, vol. 9, n. 17, 2004, pp. 1-6. 216 suas famílias, ainda que individualmente pequenas, foram cumulativamente significativas, e ajudaram a moldar o curso da abolição da escravidão.

5.1 – TOCANDO A “ARCA SANTA”: EMBATES POLÍTICOS E LEGISLATIVOS SOBRE POLÍTICA COLONIAL E ALFORRIA (1830-1836)

“Cegos, eles [os senhores] ainda pesam numa mesma balança as barricas de açúcar contra a liberdade de 250.000 escravos, e acham a liberdade muito leve. Eles atacam, e às vezes até proíbem, as leis, as ordenações reais acusadas de tocar a arca santa, isto é, o direito do senhor.”3

Ao longo do século XVIII, quando foram promulgadas as leis que dificultavam a concessão de manumissão aos escravos, os proprietários não demonstraram fortes objeções quanto à intervenção do Reino e da administração da colônia no domínio senhorial. Sobretudo os grandes proprietários de terras, que influenciavam as decisões políticas sobre as Antilhas Francesas, não se manifestaram contra aquelas medidas legislativas e administrativas que supostamente interferiam em seu direito de dispor como desejassem sobre sua propriedade escrava, como definia o artigo 55 do Code Noir4. Todavia, como lembra o senhor de escravos guadalupano, André Lacharrière, entre meados do século XVII e final do século XVIII, as Antilhas Francesas tinham certa autonomia legislativa e judiciária, exercida pelo Conseil Souverain (Conselho Soberano)5. Criado em 1645, o Conselho Soberano da Martinica tinha a prerrogativa de encaminhar propostas de ordenações e regulamentos ao rei. Geralmente, o soberano apoiava as decisões desse Conselho, cujos membros pertenciam à elite colonial.

3 “Aveugles, ils pèsent encore dans une même balance, des boucauts de sucre, contre la liberté de 250.000 esclaves, et trouve la liberté trop légère. Ils gourmandent, et mettent quelquefois en interdit, les lois, les ordonnances royales accusées de toucher à l’arche sainte, c’est-à-dire au droit du maître”, in GATINE, Adolphe. Procès Virginie, de la Guadaloupe: plaidoirie et arrêt de cassation, 22 novembre 1844. Paris: Imprimerie de Ph. Cordier, 1844 (manioc.org), p. 2. 4 “Les maîtres âgés de 20 ans pourront affranchir leurs esclaves par tous actes entre-vifs ou à cause de mort, sans qu’ils soient tenus de rendre raison de l’affranchissement, ni qu’ils aient besoin d’avoir de parents, encore qu’ils soient mineurs de 25 ans”, in Moreau de Saint-Méry, Loix et Constitution, tomo 1, pp. 414-424 5 LACHARRIÈRE, Andre. Observations sur les Antilles Françaises. Paris, Imprimerie de Auguste Auffray, 1831, pp. 27-28 (BNF – Gallica). 217

Além disso, funcionava como um tribunal que julgava matérias criminais e civis — excetuando questões relativas ao comércio exterior, restritas às responsabilidades dos intendentes das colônias. No século XIX, o Conselho Soberano — na época, Conselho Superior —, nos termos de uma ordenação de 1819, foi convertido na Cour Royale, que conservava apenas suas atribuições judiciárias, as quais seriam exercidas mais tarde pela Cour d’Appel. Ademais, durante a década de 1820, a representação dos colonos brancos seria feita no Conseil Général (Conselho Geral), responsável por debates políticos e legislativos, com uma função (que deveria ser) puramente consultiva6. Contudo, foi comum, até a Monarquia de Julho, que este Conselho decidisse efetivamente sobre questões políticas e legais importantes, sem interferência da metrópole, como aquelas referentes aos livres de savana e patrocinados em 18287, examinadas no capítulo anterior. No entanto, as barricadas de julho de 1830 em Paris forçaram uma mudança profunda na política francesa nos dois lados do mundo atlântico. No turbilhão de ações que caracterizou o início do novo regime, certas indicações levavam a crer que as reformas da monarquia progressista tocariam o domínio colonial. Durante o período da Monarquia de Julho (1830 – 1848), os debates antiescravistas galgaram espaços privilegiados na Metrópole, pois a elite dirigente do novo regime incluía numerosos membros da antiga oposição liberal que criticavam a escravidão e o tráfico negreiro8. No outono de 1830, formou-se uma comissão composta por célebres ativistas “simpatizantes às causas dos negros” das Colônias, como Isambert, conde D’Argout, Victor Destutt de Tracy, entre outros, com o intuito de propor uma legislação que tratasse a questão da emancipação individual dos escravos9. Na mesma época, Cyrille Bissette, em Paris, sentia-se a vontade para demandar reformas quanto aos direitos civis dos livres de cor nas colônias e reformas quanto à situação dos escravos e ao acesso à liberdade, observando alguns simpatizantes dessas causas no seio do gabinete do novo governo10. Desde 1828, devido a perseguições sofridas nas colônias caribenhas e à

6 CHAULEAU, Dans les îles du vent, pp. 64-69; pp. 223-224. 7 ANOM, Généralités – Carton 160, Dossier 1321. Analyse des Délibérations du Conseil Général de la Martinique. Affranchis irréguliers dits libres de savanne, corps à moi, patronés, etc. Novembro de 1828. Ver no Capítulo 4 desta tese, “Visões senhoriais sobre as liberdades irregulares na Martinica – século XIX”. 8 Sobre o movimento antiescravagista francês e contra o tráfico negreiro antes de 1830, ver JENNINGS, op cit (2010), pp. 15-37. Ainda sobre as políticas de supressão do tráfico de escravos francês e britânico, ver KIELSTRA, Paul Michael. The politics of slave trade suppression in Britain and France, 1818-48: Diplomacy, Morality and Economics. Londres: Macmillan Press, 2000. 9 JENNINGS, op cit (2010), pp. 39-60. Ainda sobre este perído da Monarquia de Julho, focando sobretudo o que se passava na Martinica, ver SCHLOSS, 2009, pp. 132-225. 10 JENNINGS, op cit (2010), p. 39. 218 condenação ao exílio11, um grupo de homens livres de cor vivia em Paris, trabalhando juntos pelos interesses de sua “classe”, liderados por Bissette. É interessante destacar que o advogado francês Isambert, que fazia parte daquela comissão do novo governo para tratar a questão colonial, havia atuado na defesa de Bissette, Louis Fabien e outros livres de cor da Martinica, nos processos de apelação sobre as condenações criminais que haviam sofrido desde 182412. Recebendo o encorajamento e um apoio financeiro limitado dos livres de cor da Martinica e de Guadalupe, a partir de 1830, três deles tomaram o título de “mandatários dos homens de cor” — Bissette e Louis Fabien pela Martinica, e Mondésir Richard por Guadalupe — e representavam informalmente sua classe. Em Paris, os apoiadores dos senhores de escravos tentaram deslegitimar esta representação na tribuna da câmara de deputados. Contudo, um grupo de livres de cor da Martinica escreveu uma petição, logo em 1830, na qual ressaltavam que compartilhavam sim das opiniões defendidas por seus compatriotas e representantes na metrópole, e que reconheciam todas as petições apresentadas por seus “mandatários” junto às Câmaras:

Um orador expôs na tribuna que nós não compartilhamos das opiniões de nossos compatriotas em Paris, que reivindicam para eles e para nós o gozo dos direitos civis e políticos. Nós protestamos contra tais insinuações e declaramos reconhecer todas as petições apresentadas às Câmaras, para a melhoria de nossa sorte, por nossos irmãos que também são nossos mandatários.13

De acordo com uma ordenação real de agosto de 183014, cada colônia poderia indicar dois delegados, eleitos pelos Conselhos Gerais das Colônias, que defenderiam os interesses coloniais na Metrópole. Porém, estes representantes eram sempre escolhidos entre os colonos brancos, que obviamente não intercediam pela gens de couleur. Bissette aborda este problema em um memorial escrito ao Ministro da Marinha e das Colônias, no qual ele destaca que era necessário que o governo escutasse também os representantes dos livres de cor15. O governo metropolitano consultava estes mandatários, mas apenas como

11 Sobre a história dessas perseguições e condenações de vários livres de cor da Martinica, conhecida como affaire Bissette, ver THÉSÉE, op cit (1997), pp. 147-189. 12 Ver ISAMBERT, François André (avocat aux conseils du Roi). Mémoire pour les déportés de la Martinique. Paris: J. Tastu, 1824. (BNF – Gallica). 13 Pétition des hommes de couleur de la Martinique. Paris: Duverger, 1830, p. 6, citado em PÂME, Stella. Cyrille Bissette: 1795-1858. Tese de Doutorado – Faculté des Lettres et Sciences Humaines, Université de Paris I: junho de 1978, p. 186. 14 LACHARRIÈRE, op cit (1831), p. 32. 15 BISSETTE, Mémoire au Ministre de la marine et des colonies, 12 de junho de 1831, citado em PÂME, op cit, pp. 186-187. 219 representantes “não oficiais”, diferentemente dos delegados das colônias, que ocupavam funções públicas legalmente reconhecidas. Ainda assim, Bissette e seus companheiros se faziam ouvir, por meio das várias cartas e petições enviadas ao governo e da publicação de libelos e de textos na imprensa metropolitana. Ademais, o novo governo, sob Louis-Phillippe I, inquietava os senhores de escravos das colônias, principalmente porque indicava que mudaria as regulamentações sobre os processos de acesso à liberdade por escravos e escravas, as quais poderiam levar a mudanças profundas no sistema colonial, ao tocar na relação entre senhores e escravos, e mesmo entre senhores e libertos irregulares. Como abordado no capítulo anterior, uma das primeiras medidas sobre a questão da alforria, sob a Monarquia de Julho, foi encaminhar decisões que regularizassem as liberdades irregulares, ou seja, autorizar a concessão de cartas de alforria legal aos escravos que viviam como livres de savana ou livres de fato, “patrocinados” por seus senhores-patronos. A comunicação entre alguns livres de fato das colônias —principalmente da Martinica — e os mandatários dos livres de cor em Paris foi essencial neste processo16. Um dos delegados da Martinica, Barão de Cools, publicou em 1832 um texto no qual manifestava as insatisfações dos senhores de escravos nas Antilhas Francesas em relação às mudanças legislativas que estavam em tramitação na Metrópole. Cools aborda o debate a partir de leis promulgadas durante a revolução francesa, que conferiam um estatuto legislativo específico às colônias, relembrando intencionalmente um outro período de intensas mudanças. De acordo com Cools, pelos decretos de 8 e 28 de março de 1790 e de 24 de setembro de 179117, ao regulamentar sobre as atribuições das assembleias coloniais, investiu-as do poder e do direito de fazer (e de submeter diretamente à sanção real) todas as leis de interesse local e

16 Louis Fabien publica as cartas e informações que teria recebido de alguns patrocinados da Martinica (1831) e as articulações que procurou fazer na metrópole sobre a questão dos patrocinados; veja FABIEN, op cit, 1831. Devido às articulações feitas por Fabien e Bissette e às cartas enviadas ao Ministro da Marinha e das Colônias relatando a situação dos patrocinados nas colônias, o governador da Martinica viu-se obrigado a responder um despacho do ministro de 8 de julho de 1831, no qual questionava a administração da colônia sobre as questões apresentadas pelos mandatários dos livres de cor. Veja ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 160, Dossier 1319 – Martinique: État des individus de couleur libres. 17 “L’assemblée nationale déclare que, considérant les colonies comme une partie de l’Empire Français, et désirant faire jouir de l’heureuse régénération qui s’y opérée, elle n’a cependant jamais entendu les assujettir à des lois qui pourraient être incompatibles avec leurs convenances locales et particulières” (Décrets des 8 et 28 mars 1790); “… Au surplus, l’assemblée nationale met les colons ainsi que leurs propriétés sous la sauvegarde de la nation; déclare criminel envers la nation quiconque travaillerait à exciter des soulèvements contre eux” (lois de 10 mars et 9 avril 1790), trechos citados em COOLS, Baron A. de (Délégué suppléant de la Martinique). Droit et Nécessité des garanties sociales et politiques réclamées par les colonies françaises ou Observations sur les rapports des lois organiques coloniales présentées a la chambre des députés pendant la session de 1831. Paris: Delaunay, Libraire, 1832 (BNF – GALLICA). 220 do regime interior das colônias, compreendendo naturalmente “aquelas relativas ao estado das pessoas não livres”. À legislatura metropolitana se reservaria todos os objetos de um interesse misto, como o comércio exterior. Os colonos acreditavam que a nova constituição de 1830 indicava neste mesmo sentido, mas os projetos de lei na metrópole apontavam outra direção. Contudo, essa questão sobre os poderes legislativos era um preâmbulo ao problema central para os senhores de escravos, isto é, quem legislaria sobre as concessões de alforria: “No novo sistema, as Câmaras instaladas na Europa tomaram o direito de fazer, além das leis de interesse misto, aquelas destinadas a regulamentar […] todo o regime interno das colônias […] e, em particular, aquilo que toca as concessões de alforria”18. Assim, acerca da legislação sobre esta matéria, argumentava que, baseado no direito de propriedade, este ponto concernia apenas à sociedade colonial, e aqui ele parece igualar “sociedade colonial” e “domínio senhorial”:

Sobre este assunto [as concessões de alforria], os delegados já haviam declarado que, por uma confusão acerca do direito propriedade, do direito civil e do direito político, desejava-se estabelecer nas atribuições da câmara uma matéria que ela não tinha nenhum interesse a regulamentar, e para a qual os meios de uma justa apreciação poderiam faltar em suas doutrinas e seus hábitos. A alforria, disseram os delegados, interessa apenas à sociedade colonial; é a ela que deve pertencer os meios de fixar as garantias necessárias para que a alforria não se torne um fardo, nem para aquele que a recebe, nem para o público. O governo da metrópole, acrescentaram, apenas tem interesse em intervir no momento em que o liberto é chamado para usufruir os direitos políticos; e esta intervenção não foi contestada pelos delegados (…) 19 (grifo meu)

De acordo com Cools, ao governo metropolitano caberia apenas a questão dos direitos civis e políticos das pessoas livres. Contudo, este tema, também em debate na época, era da mesma forma objeto de críticas dos colonos, a despeito daquilo afirmado ao final da citação acima. É interessante notar que quando o novo governo metropolitano passou a indicar que mudaria as leis sobre a concessão de liberdade individual aos escravos, de maneira que facilitaria os processos de pedidos de alforria, aparentemente interferindo menos na vontade senhorial, os proprietários de escravos pareciam se sentir ameaçados e ressaltavam seu direito sagrado à propriedade. Provavelmente, em parte, porque previam que haveria pressões para a abolição da escravidão. Ademais, para o colonos, as regulamentações sobre as concessões de liberdade deveriam ser definidas pelas colônias, e não pela metrópole, para que

18 COOLS, op cit, p. 22. 19 Idem, p. 22 221 assim os escravos continuassem a entender que a conquista de sua liberdade era um benefício concedido pelos senhores, e não pelo estado. Assim como o Barão de Cools, Félix Patron, representante dos colonos brancos de Guadalupe, também postulava a sacralidade da propriedade escrava e ressaltava os limites necessários às decisões legislativas metropolitanas em relação às colônias. Ainda que seus compatriotas franceses na metrópole acreditassem que fosse possível mudar o sistema colonial, ele afirmava que “a lei pode[ria] fazer mudanças no estado das pessoas, mas das pessoas livres. Ela não pode[ria] operar naquele dos escravos, porque desde que estas pessoas são escravos, elas tem senhores e são sua propriedade”. Patron reiterava, então, que para os colonos proprietários nas colônias, o “direito de propriedade é tão sagrado quanto aquele dos habitantes da França”20. Dizia ainda que “o governo, depois de ter tomado todas as precauções necessárias para garantir a existência destes sujeitos [os escravos]”, tentava naquele momento implementar toda espécie de inovação. Por um lado, os colonos ressaltavam a importância de sua experiência e de seu conhecimento sobre a sociedade e o sistema colonial, por outro, afirmavam que eram herdeiros de uma tradição e de um sistema iniciado e propagado pela França metropolitana21. Neste período, era comum os colonos e seus apoiadores afirmarem que os escravos não desejavam a liberdade, que esta seria um peso para eles. De Cools afirma que cabia aos conselhos coloniais decidirem sobre as alforrias, entre outros motivos, porque a liberdade poderia se tornar um “fardo” para aqueles que a recebiam e para a sociedade colonial. Desse modo, apenas as pessoas que viviam nas colônias saberiam decidir sobre as alforrias22. Félix Patron, procurando imprimir autoridade a seus argumentos, ressalta que por ser um colono, proprietário de terras e de escravos, vivia nas colônias e conhecia os “pretos” (“nègres”). Afirma, então, que “a liberdade seria para eles mesmos um bem inútil, um verdadeiro fardo que, longe de conduzi-los à um estado melhor, os levaria a cometer os

20 PATRON, Félix. Quelques Question relatives aux colonies françaises. Paris: Barba Libraire, Palais-Royal, 1832, pp. 11-12 (BNF – Gallica). 21 Conil, representante dos senhores de escravos da ilha de Bourbon afirma que a escravidão era um “fato” e um “direito” nas colônias, “onde foi constituída pelas leis da metrópole, sobre os interesses da metrópole, e pelos homens da metrópole; o que os colonos fizeram foi apenas herdar um ordem de coisas que lhes foi transmitida; não há nem crime, nem erro, nem ilegalidade em sua possessão, e que, porque são franceses, eles tem direito como os reinícolas à proteção que a carta estende sobre todos os proprietários”. CONIL (Délégué de l’île Bourbon). Observations sur la proposition de M. de Passy relative à l’affranchissement des esclaves qui naitront a l’avenir aux Colonies Françaises. Paris: Imprimerie de Guiraudet et Ch. Jouaust, 1838, p. 7 (BNF – Gallica). 22 COOLS, op cit, p. 22. 222 crimes mais horríveis, e os afundaria em um estado tão miserável quanto aquele de seus compatriotas de São Domingos”23. Patron, ainda, faz como muitos escravistas da época e compara a vida dos escravos africanos com aquela dos trabalhadores franceses do campo e da cidade, “uma multidão de brancos infelizes a morrer de fome e de frio”, e afirma, de forma provocativa, que estes são miseráveis, “porque eles não tem a vantagem de ser escravo” (grifo no original). Assim, os franceses da metrópole deveriam se preocupar com seus trabalhadores livres, pois os trabalhadores escravizados das colônias eram problemas dos colonos24. A argumentação Patron e De Cools sobre o suposto “fardo” da liberdade para as pessoas escravizadas indica, ainda, que os senhores de escravos nas colônias francesas não eram muito propensos a alforriar seus escravos. Mesmo que a alforria pudesse criar um espaço de negociação no qual o senhor conseguisse manter seu domínio e desestruturar solidariedades horizontais25 nos ateliers. Alguns dados demonstram que de fato os escravos na Martinica envelheciam nas fazendas. Em 1835, havia na colônia 6011 escravos acima de 60 anos e 2308 pessoas livres (brancos e livres de cor) na mesma faixa etária26, ou seja, mais pessoas idosas escravizadas que pessoas livres. Isso pode nos levar a inferir que, até a década de 1830, os grandes proprietários rurais da colônia dificilmente manumitiam seus escravos, mesmo depois de anos de dedicação ao trabalho, e muito menos procuravam oficializar a alforria daqueles que conseguiam uma liberdade de savana. É interessante notar que nas colônias francesas, principalmente na Martinica, aparentemente a dificuldade de acesso à alforria legal se constituiu em estratégia significativa do domínio senhorial e, assim, do próprio sistema colonial e escravista francês. Entretanto, após 1830, a elite colonial passou a perder espaço na disputa política sobre alforria e emancipação. Num primeiro momento, tentaram frear as ações legislativas na metrópole sobre a regularização da situação dos escravos patrocinados ou livres de savana.

23 PATRON, Félix. Des noirs, de leur situation dans les colonies françaises. L’esclavage n’esti-il pas un bienfait pour eux et un fardeau pour leurs maîtres? Paris: Charles Mary Libraire, 1831, p. 23 (BNF – Gallica). 24 PATRON, op cit (1831), p. 13. 25 Robert Slenes faz críticas importantes à historiografia brasileira que aborda principalmente a questão da alforria sobre este viés, ou seja, de que a conquista da alforria reforçava o domínio senhorial e desestruturava a possibilidade de uma “consciência de classe” entre os escravizados de uma plantation. Ver SLENES, Robert W., “A ‘Great Arch’ Descending: Manummission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and Free(d) Black identities in Southeastern Brazil, 1791-1888”, in GLEDHILL, John & SCHELL, Patience A. (orgs.). New approaches to Resistance in Brazil and Mexico. Durhan, London: Duke University Press, 2012, pp. 100-118. 26 Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 51 (BNF – Gallica). 223

Entre 1831 e 1832, a câmara dos deputados em Paris debatia um projeto de lei sobre a concessão de títulos de liberdade oficial aos livres de fato, o qual também regulamentaria as solicitações de alforria dos escravos em geral. Os colonos queriam evitar que a metrópole promulgasse essa lei que tornaria em um direito legal a concessão de alforria aos patrocinados, e que revogaria as ordenações anteriores, que dificultavam o acesso à liberdade. O problema era que tal legislação, vinda diretamente da metrópole, interferiria nas dinâmicas costumeiras das colônias. Dessa forma, provavelmente abalaria as relações do domínio senhorial que, mesmo com a intervenção do governo colonial, favorecia-se com as formas de controle administrativo local sobre a alforria. Cools afirma que “o patrocinado é um escravo que recebeu a manumissão, isto é, a liberdade de fato, mas que não tinha ainda recebido o título legal de sua alforria” 27. Argumentava, então, que as propostas feitas para o projeto de lei seriam desnecessárias, pois os patrocinados já estariam recebendo os títulos que regularizariam sua situação. Segundo Cools, em dezembro de 1831, o governador da Martinica teria concedido em torno de 1800 alforrias oficiais aos livres de fato; e depois disso, a cada mês, entre 200 e 300 títulos estariam sendo entregues, de modo que os nove a dez mil patrocinados que existiam na Martinica provavelmente seriam libertos regulares antes que a lei fosse promulgada28. De fato, como visto no capítulo anterior, entre 1831 e 1832, os escravos patrocinados estavam oficializando seu estatuto como livres. No entanto, como afirmou o livre de fato Michel Savignac, na carta a Louis Fabien em 1831, esse processo ainda dependia fortemente de relações de favor e dependência com a elite de senhores brancos29. De acordo com Cools, a situação “mista” dos patrocinados existia exclusivamente devido às antigas ordenações metropolitanas. Dessa forma, eximia os colonos da formulação daquelas leis que restringiam a alforria, e mesmo da sustentação desse sistema, e culpava a metrópole pela existência dos livres de fato. Porém, ainda em sua argumentação contra o projeto de lei, afirma que com a extinção do imposto sobre a concessão de alforria (lei de março de 1831), os senhores de escravos estariam bastante dispostos a se livrarem da responsabilidade da patronagem, que pesava sobre eles. Ademais, diz que não havia entre os colonos a menor intenção de prolongar a existência de uma situação que todos concordavam ser um “desagradável percalço”. Desse modo, segundo Cools, naquele momento, para

27 COOLS, op cit, p. 8. 28 Idem, pp. 8-9. 29 Carta de Michel Savignac à Louis Fabien, 26 de abril 1831, FABIEN, op cit (1831), p. 17. 224 extinguir completamente tal condição, seria necessário apenas recomendar que não se permitisse mais o crescimento do número de patrocinados — ou seja, que se proibisse a “desistência de propriedade” sem o aval da administração local —, e que deixasse o governo colonial continuar a controlar a regularização da situação daqueles existentes. Para o delegado dos colonos, isso seria suficiente para atingir o objetivo que a comissão teria em vista no que concernia aos patrocinados30. De fato, naquele momento, o governo da Martinica já teria agido de acordo com os anseios da elite colonial. Em fevereiro de 1832, publicou um aviso no jornal oficial da colônia, solicitando aos habitantes que não concedessem mais a “liberdade de corpo” aos seus escravos, sem comunicar oficialmente os comissários comandantes. Estes estavam encarregados de receber as declarações dos senhores de desistência de propriedade sobre os cativos, e transmiti-los ao governo, para que assim o número de patrocinados pudesse ser controlado31. Contudo, um dos problemas mais graves sobre o projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados, segundo Cools, concernia ao artigo que dizia que “toda pessoa que desfrutava de uma liberdade de fato” estaria apta a solicitar seu título de alforria oficial. De acordo com Cools, esse tipo de redação em um texto legislativo poderia colocar as colônias em perigo. Tal disposição legal substituiria uma “presunção de escravidão” por aquela de “presunção de liberdade”. Isso poderia incentivar os escravos a levantarem reivindicações sobre suas liberdades irregulares e, “sem nenhum direito”, tentariam arrastar seus senhores diante dos tribunais para garantir a alforria oficial32. Ainda que sob uma visão senhorial, Cools deixa entrever nesta afirmação que os próprios escravos eram capazes de perceber as contradições estabelecidas pelos conflitos entre as elites locais e a metrópole e, assim que possível, tentariam explorar essas oportunidades em benefício próprio. Seria “sábio”, então, deixar a situação como estava. Desse modo, para os senhores de escravos era interessante que, apesar dos conflitos existentes, a administração colonial controlasse o acesso à alforria, e que isso não fosse transformado em texto de lei, isto é, em um direito legal. Para Cools, a ação do governo colonial seria justa e política, mantendo a ordem33, ou seja, estava agindo de uma forma que evitava a insubordinação e não perturbava de fato os interesses da elite colonial. Os senhores de escravos nas colônias tinham até então influenciado as ações dos governos

30 COOLS, op cit, p. 9. 31 Journal Officiel de la Martinique, 4 de fevereiro de 1832, p. 1 (eurescl.org). 32 COOLS, op cit, p. 10. 33 COOLS, op cit, p. 11. 225 coloniais e, provavelmente, acreditavam que continuariam exercendo um maior controle sobre o sistema de acesso à liberdade se as câmaras metropolitanas não realizassem as mudanças que estavam sendo apontadas. Se os senhores de escravos viam realmente a patronagem dos escravos livres de fato como um peso, por que esta situação havia se mantido de forma tão significativa na Martinica até aquele momento? Como vimos nos debates sobre as liberdades irregulares em 1828, os colonos brancos não reconheciam de fato a condição dos vários escravos manumitidos ilegalmente, denominando-os de “falsos livres”34. Além disso, preferiam manter a situação de liberdade precária dos patrocinados, com o intuito de evitar que mais escravos almejassem a alforria e que a população de libertos regulares aumentasse. A liberdade precária dos livres de fato proporcionava um vínculo de dependência entre libertos irregulares e seus senhores-patronos e, ademais, mantinha-os numa situação de instabilidade e vulnerabilidade em relação ao domínio da classe dos senhores brancos. Do ponto de vista da ideologia senhorial, aquelas relações pareciam ser essenciais para a manutenção do sistema colonial e escravista nas colônias francesas. Sidney Chalhoub aponta análises interessantes sobre a questão do domínio senhorial e da alforria no Brasil, mas que auxiliam a compreender a resistência dos senhores de escravos da Martinica, e de outras colônias francesas, às propostas legislativas da Metrópole no início da Monarquia de Julho. De acordo com Chalhoub, “a escravidão é uma forma de organização das relações de trabalho assentada nas relações de subordinação e dependência dos escravos para com os senhores” e, conforme a ideologia senhorial, a alforria não deveria significar “um rompimento brusco dessa política de domínio”, pois, o negro, supostamente “despreparado para as obrigações de uma pessoa livre, devia passar de escravo a homem livre dependente”. Assim, no Brasil, o poder de alforriar deveria permanecer nas mãos do senhor. Dessa forma, o “escravo precisava entender que o caminho para a liberdade passava pela obediência e submissão devidas ao proprietário”35. Nas colônias francesas, ainda que a administração local interferisse na concessão da alforria oficial, o poder de manumitir um escravo ainda permanecia sob o domínio senhorial. Apenas o proprietário poderia intervir junto à administração colonial para formalizar a solicitação de outorga da liberdade dos escravos. Contudo, ainda que Cools afirme que os senhores sentiam o peso da dependência

34 ANOM, Généralités – Carton 160, Dossier 1321. Analyse des Délibérations du Conseil Général de la Martinique. Affranchis irréguliers dits libres de savanne, corps à moi, patronés, etc. 35 CHALHOUB, op cit (1990), pp. 135-136. 226 dos patrocinados, por outro lado demonstra que para os colonos brancos este laço não deveria ser rompido bruscamente e, muito menos, ganhar ares de um direito legal adquirido e concedido pelo governo metropolitano. Os senhores de escravos provavelmente visualizavam nestas propostas legislativas um risco ao seu domínio sobre o sistema colonial. No entanto, a promulgação da “Ordennance Royale relative aux affranchissemens des esclaves” (Ordenação Real relativa às alforrias dos escravos), assinada em Paris em 12 de junho de 1832, parecia concretizar que esta batalha dos senhores de escravos havia sido perdida. Esta lei tinha como objetivo fornecer à administração pública “novas facilidades” em relação às concessões de alforria, e revogava qualquer disposição contrária a esta ordenação que pudesse existir na legislação anterior concernente à alforria. Como demonstrado no capítulo anterior, um de seus objetivos principais era regularizar a situação dos indivíduos que usufruíam de uma liberdade de fato. Mantinha-se a redação do projeto inicial, criticada pelos senhores de escravos, que dizia no seu sétimo artigo, como uma “disposição transitória”, que a “todo indivíduo que usufrui de uma liberdade de fato, exceto em caso de fuga [marronage], poderá apresentar, por um intermediário, seja seu patrono, seja o Procurador do Rei, uma demanda para ser definitivamente reconhecido como livre”36. Ao contrário daquilo que é enunciado no caput da ordenação, o novo processo de solicitação da alforria oficial não parecia trazer “facilidades”. Notadamente, o texto da lei não utiliza em nenhum momento o termo “maître” (senhor), utilizado em legislações e documentos oficiais anteriores, concernentes ao trabalho escravo e à alforria. Nesse sentido, define que “toda pessoa” que quisesse alforriar seu escravo deveria primeiramente fazer uma declaração ao funcionário encarregado do estado civil em sua localidade de residência. Esta declaração seria inscrita em um “registro especial” e transmitida ao Procurador do Rei, no Tribunal de Primeira Instância do arrondissement. Havia um tribunal de primeira instância em Saint-Pierre e outro em Fort-Royal, as duas principais e maiores cidades da ilha na época, centros das duas regiões administrativas (arrondissement) que compunham a Martinica. O procurador do rei deveria, então, cuidar para que a declaração de manumissão fosse fixada à porta da administração municipal da localidade de moradia do “declarante”, ou seja, do senhor que alforriava seu escravo. Além disso, tal declaração deveria ainda ser publicada três vezes consecutivas nos periódicos oficiais da colônia. Dessa forma, as

36 L’Ordonnance Royale relative aux affranchissements des esclaves (Paris, 12 julho de 1832), promulgada na Martinica em 13 de setembro de 1832, BOM, 1832, pp. 318-321 (ANOM). 227 oposições que pudessem surgir ao pedido de alforria poderiam ser apresentadas num período de até seis meses, também ao Tribunal de Primeira Instância, e deveriam ser notificadas ao Procurador do Rei e ao declarante. O ministério público também poderia contestar as manumissões, caso a escrava ou o escravo fosse reconhecido como incapaz de sustentar sua própria subsistência, devido à idade ou enfermidade. Se não houvesse nenhuma oposição à declaração de alforria, ou se aquelas apresentadas não fossem consideradas sem fundamento, o Procurador-Geral apresentaria ao Governador uma decisão (arrêté) para que o escravo ou escrava fosse definitivamente inscrito como livre nos registros do Estado Civil. Para todas estas ações, de acordo com a ordenação, seria cobrado a princípio apenas um franco. Uma taxa a mais, de 4 francos e 50 centavos, seria cobrada na Martinica para subsidiar as publicações nos jornais oficiais da colônia e o trabalho dos oficiais do Estado Civil, e que deveria ser paga por cada indivíduo que recebesse o certificado de liberdade37. Bissette criticaria essa mudança ocorrida na Colônia, afirmando que o governador da Martinica não havia hesitado em “violar” a ordenação sobre as alforrias, sem mesmo se dar ao trabalho de prevenir o Ministério da Marinha e das Colônias38. Não foi possível encontrar as declarações de manumissão registradas a partir da promulgação da ordenação real de 1832, talvez porque tenham sido feitas em um “registro especial”, como enuncia a lei. No entanto, estes documentos possivelmente teriam um conteúdo similar às certidões de desistência de propriedade registradas pelos patronos dos livres de savana e livres de fato, entre 1831 e 183239. Assentados junto aos notários das localidades, esses documentos são acessíveis, e servem de referência para se ter uma ideia de como as manumissões foram registradas, para que, assim, o governo concedesse a alforria oficial. A grande maioria dos senhores e senhoras, que naquele período (1831-1832) registraram a manumissão de seus escravos, declaravam exercer somente a função de patronos. Nestes casos, a declaração enunciava apenas a desistência de propriedade sobre o indivíduo, sem registrar, por exemplo, que o escravo ou escrava recebia aquele favor pelos “bons serviços prestados” ao seu senhor ou senhora. Dessa forma, em junho de 1831, a

37 “Arrêtés concernant la fixation des frais de publications et impressions dans le Journal offciel, de déclarations d'affranchissement, et le mode de leur recouvrement”, 9 de janeiro de 1834, BOM, 1834, pp. 45- 46. 38 BISSETTE, Cyrille-Charles-Auguste. Examen rapide des deux projets de Loi relatifs aux Colonies, adressé a la Chambre des Députés. Paris: De l’Imprimerie d’Éverat, 1833, pp. 5-7 (BNF – Gallica). 39 Como tratado no capítulo 4, em 31 de dezembro de 1830, um aviso oficial publicado no Journal Officiel de la Martinique informava aos patrocinado que “as cartas de alforria somente” seriam concedidas aos “libertos que apresentarem a desistência de seu senhor, registrada por ato autenticado”. 228 demoiselle Judith Flora, mulher livre de cor, “proprietária”40, residente em Saint-Pierre, declarou:

“(…) desistir pura e simplesmente de todos os direitos de propriedade e outros que ela tenha ou possa pretender sobre a denominada [la nommée] Rose, idade de 20 anos, e sobre seus dois filhos, Joseph, idade de 3 anos, e Philippe, idade em torno de um mês (…) todos os três inscritos no inventário da senhorita comparecente, que reconhece além disso ter sido apenas sua patrona ou protetora, como declarou ao Senhor Comissário Comandante da paróquia do Fort. Em consequência, ela consente que o Governo entregue à dita Rose e a seus dois filhos, toda certificação que possa lhes conferir os direitos e prerrogativas das quais usufruem os livres e libertos desta Colônia. Declara a dita senhorita comparecente que a dita Rose possui, independentemente dos meios de existência que sua indústria lhe assegura, uma soma de 1.500 francos, tudo em dinheiro e outros bens de valor; obriga-se, além disso, a senhorita comparecente, de prover todas as necessidades que a dita Rose e seus dois filhos possam ter, em caso de miséria ou de enfermidades, de maneira que ela não dependa jamais do Governo ou da Colônia”41.

Era condicionante que, nestes registros de desistência de propriedade, o senhor ou patrono declarasse que o escravo em vias de liberdade tinha seus meios de existência e quais eram estes — sua profissão, sua indústria, algum pecúlio. Além disso, deveria se responsabilizar pelas pessoas alforriadas, com o propósito de garantir que estes indivíduos não se tornariam um problema para o Governo e a Colônia, caso se encontrassem em algum momento de suas vidas em situação de miséria ou enfermidade. Essas declarações exigidas nos atos de manumissão eram muito questionadas por Cyrille Bissette e Louis Fabien. Argumentavam que os escravos que conseguiam a manumissão de seus senhores, em geral, tinham chegado a este ponto por seu ofício e indústria, sendo desnecessário atestar seus meios de existência. Quanto à exigência de se responsabilizar pelos libertos, afirmavam que tal imposição poderia desencorajar o senhores a registrar as desistências de propriedade. Durante o período da Monarquia de Julho, as manumissões outorgadas pela administração colonial eram publicadas nos periódicos oficiais da Martinica, nas “Decisões do Governador contendo as alforrias de vários indivíduos” (Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement de divers individus dans la colonie). Entre 1830 e 1832, o conteúdo destes documentos ainda ressaltava a concessão da liberdade oficial como uma recompensa àqueles “indivíduos que se fizeram dignos” deste ato de “favor” do governo, devido aos serviços

40 Definir a profissão como “proprietária” ou “proprietário”, indica que tem escravos e/ou bens imóveis. 41 ANOM – DPPC – Notaires - *MAR//785 – 28 mai à 20 juin 1831, DAMARET fils, Pierre Joseph Alexandre. 229 prestados nas milícias — neste caso apenas os homens escravizados —, ou pela idade avançada, ou pela “devoção ao seu senhor”. Nesse mesmo sentido, na última decisão publicada antes que a lei de 1832 entrasse em vigor, o “benefício da alforria” agraciou apenas patrocinados e livres de fato que tivessem “provado sua boa conduta”42. Após essa deliberação, somente um ano depois, em agosto de 1833, as alforrias oficiais voltariam a ser outorgadas. Então, as “Decisões do Governador contendo as alforrias de diversos indivíduos” passariam a corresponder às regulamentações da ordenação real de julho de 1832. O teor do texto muda completamente, a alforria oficial ganha ares de direito adquirido, e não mais um favor concedido pelos senhores e pelo governo colonial, ao menos no texto enunciado:

Nós, Governador da Martinica, observando a ordenação do Rei dos Franceses, datada de 12 de julho de 1832; observando as declarações feitas em conformidade com esta ordenação; considerando que todas as formalidades exigidas pela ordenação precitada foram cumpridas; sobre a proposição do Procurador Geral do Rei, decidimos o seguinte: Art. 1. São declarados livres e serão definitivamente inscritos nesta qualidade nos registros do Estado Civil do município de [nome do município], os indivíduos cujos nomes seguem abaixo; Art. 2. A transcrição da presente decisão será entregue por excerto aos libertos aqui denominados; Art. 3. O Procurador do rei é encarregado pela execução da presente decisão, que será inscrita nos registros do Estado Civil do município [nome do município], e onde for necessário, e publicada no Bulletin des Actes Administratifs e no Journal Officiel da Colônia.43.

Todavia, os colonos da Martinica, de Guadalupe, da Guiana Francesa e da ilha de Bourbon aparentemente ainda mantinham a esperança de que talvez pudessem reverter essa situação com a tramitação em curso, entre 1832 e 1833, de um projeto de lei acerca do regime legislativo das colônias. Em uma petição apresentada à Câmara dos Deputados em 28 de abril de 1833, os delegados dessas colônias44, evocando, assim como no libelo do Barão de Cools, as leis de 1790 e 1791, ressaltavam acreditar que a Carta de 1830 lhes davam garantias sobre

42 “Nous Gouverneur de la Martinique, voulant récompenser, par le bienfait de l'affranchissement, les individus qui s'en sont rendus dignes, soit par leurs services dans les milices, soit par leur grand âge et leur dévouement, envers leurs maîtres, ainsi que les individus porteurs de titres non ratifiés, et ceux des patronnés qui ont fait preuve de leur bonne conduite; […] Art. 1er. Les individus servant dans les milices pour l’obtention de leur liberté, ceux porteurs de titres non ratifiés, ainsi que les autres dont les noms sont compris dans les états qui suivent, sont déclarés libres et affranchis de toute servitude. Ils jouiront dès ce jour et à l'avenir, de la liberté, de la manière et ainsi qu'en usent les autres libres et affranchis de cette île”. BOM, 07 de agosto 1832, pp. 273-285. 43 BOM, 14 de agosto de 1833, pp. 199-250. 44 Esta petição é assinada por Fleriau e Barão de Cools (delegados da Martinica), Foignet (delegado de Guadalupe), Favard (delegado da Guiana Francesa), Sully Brunet e Azema (delegados de Bourbon). Pétition des délégués des colonies françaises à la Chambre des Députés, 28 mars 1833. Paris: Imprimerie de Guiraudet, 1833 (BNF – Gallica). 230 o direito das colônias de legislar sobre “tudo aquilo que pertence a seu regime interior e a seus interesses especiais”. Contudo, o projeto de lei, que estava em debate em Paris, desapontava suas expectativas. Mais uma vez destacavam, sobretudo, a questão da concessão de alforrias, mas também aquela acerca das melhorias a serem feitas sobre a situação dos indivíduos escravizados. De acordo com o projeto de lei, estas duas matérias seriam regulamentadas por ordenações reais, e os conselhos coloniais ou os delegados das colônias teriam uma função apenas consultiva. Segundo os representantes dos colonos, eles mesmos proprietários de escravos e de terras, “para os países onde a possessão de escravos constitui a parte mais importante da propriedade, onde a força moral do senhor não pode ser comprometida sem risco, para a manutenção da ordem e mesmo para o bem-estar do escravo”, visto que a tramitação do projeto de lei já estava em curso, eles tinham a obrigação de reclamar, “antes de tudo”, que as questões acerca das “regras a seguir para a concessão da alforria” e “das melhorias a serem introduzidas sobre o estado das pessoas não livres” deveriam permanecer “inviolavelmente inscritas nas atribuições da legislatura local”45. Assim, solicitavam aos membros da Câmara dos deputados que deixassem às assembleias coloniais, “produto da eleição dos homens livres”, a definição das regras sobre as alforrias, porque, dessa forma, o “benefício da liberdade” seria feito diretamente do senhor ao escravo. Dessa maneira, “faria nascer deste benefício, pelo reconhecimento daquele que é objeto [o escravo], os novos laços de ordem e harmonia, tão essenciais à nova combinação social, resultante da extensão progressiva das alforrias”. Da mesma forma, a questão sobre as mudanças a serem feitas sobre a situação dos escravos também deveriam ser legisladas pelas assembleias coloniais (e submetidas à sanção real), pois, assim, “reforçariam os laços que, tanto no interesse de um como do outro, deve ligar o senhor ao escravo”46. No entanto, ao final, as elites coloniais foram derrotadas nesta segunda batalha legislativa destes primeiros anos da Monarquia de Julho. Em 24 de abril de 1833, foi promulgada a Loi concernant le régime législatif des colonies, e as atribuições legislativas da metrópole e das colônias foram definidas de forma muito similar ao que havia sido proposto no projeto de lei desesperadamente criticado pelos senhores de escravos47. Para completar a

45 Idem, p. 5. 46 Pétition des délégués des colonies françaises à la Chambre des Députés, pp. 5-6. 47 De acordo com o 3o. artigo desta lei, seriam instituídos por ordenações reais, sendo os conselhos coloniais ou seus delegados “previamente ouvidos”, entre outros pontos, “as condições e as formas de alforrias, assim como os recenseamentos” e “as melhorias a serem introduzidas sobre a condição das pessoas não livres, que serão compatíveis com os direitos adquiridos”. Esta lei foi promulgada na Martinica em 25 de junho de 1833. Loi concernant le régime législatif des colonies, in BOM, 1833, pp. 83-93 (ANOM). 231 derrota dos colonos brancos, na mesma data desta legislação, foi promulgada ainda a “Loi concernant l’exercice des Droits Civils et des Droits politiques dans les Colonies”, a qual garantia que “todas as pessoas nascidas livres” ou que tivessem “adquirido legalmente a liberdade” nas colônias francesas usufruiriam todos os direitos civis e políticos, independente da cor da pele. O segundo artigo dessa lei, ademais, revogava “notadamente todas as restrições ou exclusões” que tivessem sido pronunciadas, “quanto ao exercício dos direitos civis e dos direitos políticos dos homens de cor livres e dos libertos”48. Até o final da década de 1820, as pessoas livres de cor das possessões francesas sofriam várias restrições legais quanto às profissões que poderiam exercer, que lugares poderiam ocupar em locais públicos (como na igreja ou no teatro), quanto ao vestuário, porte de armas, não poderiam ser referidos nos registros oficiais como “sieur” ou “dame”, muito menos “monsieur”, “madamme” ou “mademoiselle” — usava-se la nommée ou le nommé (denominado/a), assim como se referiam às pessoas escravizadas. Várias dessas restrições já haviam sido revogadas em novembro de 1830, uma das primeiras ações significativas do novo governo colonial sob a Monarquia de Julho49, e bastante conflituosa em relação aos colonos brancos. Contudo, somente em 1833 essa medida legislativa local foi transformada em lei de estado. Sob a pressão dessa nova ordem social que abalou as fronteiras raciais que existiam nas colônias, o governo acabou estabelecendo regras destinadas a garantir o quanto possível as barreiras sociais em torno da classe dos "brancos". Nesse sentido, em abril de 1836 foi promulgada uma ordenação real que estipulava como se deveria proceder quanto aos registros dos nomes e sobrenomes dos libertos nas colônias50. Esta lei, de certa forma, retomava algumas regras de uma ordenação de 24 de junho de 1773, a qual impedia a “gente de cor” de portar sobrenomes de famílias brancas da colônia51. Desse modo, contrariava a legislação de 24 de abril de 1833, que garantia a igualdade civil e política entre pessoas livres de cor e brancas. De acordo com o texto da ordenação de abril de 1836, os novos regulamentos sobre as alforrias necessitavam de disposições complementares em relação às formalidades legais de registros de nomes e sobrenomes dos indivíduos libertos.

48 Loi concernant l’exercice des Droits Civils et des Droits politiques dans les Colonies, 24 de abril de 1833; esta lei foi promulgada na Martinica em 25 de junho de 1833, ver BOM, 1833, pp. 81-83. 49 “ARRÊTÉ du gouverneur concernant diverses dispositions relatives aux gens de couleur libres et affranchis”, assinada pelo governador Dupotet, 12 de novembro de 1830, publicado em BOM, 1830, pp. 259-261. 50 “Ordonnance du Roi concernant les noms et prénoms à donner aux affranchis dans les colonies”, Paris, 29 de abril 1836. BOM, 1836, pp. 161-163. 51 COTTIAS, Myriam, “Le Partage du Nom – Logiques Administratives et usages chez les nouveaux affranchis des antilles aprés 1848”, Cahiers du Brésil Contemporain, 2003, no. 53/54, p. 163-174. 232

Regulamentava, então, que as outorgas de alforria, na Martinica, em Guadalupe, na Guiana Francesa e em Bourbon (Ilha de Reunião), deveriam registrar os “nomes patronímicos” e os “prenomes” que seriam dados aos alforriados, além de enunciarem “o sexo, os nomes usuais, a casta, a idade e a profissão do escravo”, como já faziam. No entanto, nenhum registro de alforria poderia conter “nomes patronímicos conhecidos por pertencer a uma família existente”, a não ser que houvesse o “consentimento expresso e por escrito de todos os membros desta família”. Se esse regulamento não fosse cumprido, o liberto ou liberta poderia ter problemas para receber sua carta de alforria oficial. Ademais, quanto aos prenomes, determinava-se que seriam inscritos nos registros do estado civil apenas “os nomes usados no calendário gregoriano e aqueles de pessoas conhecidas na história antiga”. A despeito dessa última ordenação, aqueles embates políticos e legislativos, e a agência dos escravos, patrocinados e livres de cor, nos primeiros anos da Monarquia de Julho, forçaram mudanças significativas sobre a questão da alforria. A “arca santa” havia sido tocada e os direitos coloniais e senhoriais já não eram mais os mesmos que tinham regido as colônias durante duzentos anos de escravidão no Caribe Francês.

5.2 – LIVRES DE COR, LIBERTOS E ESCRAVOS: ANTIESCRAVISMO, CIDADANIA E RESISTÊNCIA

“Assim, em nossa solicitude filantrópica, não nos inquietamos apenas com os escravos da raça africana, nossos compatriotas, nossos irmãos; mas, ainda, com todos os escravos. Europa, África, Ásia, América, Oceania, não importa! Nós queremos homens livres, trabalhadores felizes sobre toda a superfície da terra.”52

Naqueles debates (e embates) legislativos tratados anteriormente, as ações de deputados antiescravagistas na metrópole pareceram se destacar nas perturbações causadas ao domínio dos senhores de escravos das colônias. No entanto, é essencial evidenciar que livres

52 “Aussi, dans notre sollitude philanthropique, ne nous inquiétons-nous pas seulement des esclaves de race africaine, nos compatriotes, nos frères; mais encore de tous les esclaves. Europe, Afrique, Asie, Amérique, Océanie, il n’importe! Nous voulons des hommes libres, des travailleurs heureux sur toute la surface de la terre”, Cyrille Bissette, Revue des Colonies, janeiro de 1835, citado em SCHMIDT, Nelly. Abolitionnistes de l’esclavage et réformateurs des colonies, 1820-1851 – Analyse et documents. Paris: Karthala, 2000, p. 247 233 de cor, libertos e escravos estavam agindo paralelamente, e como podiam, para conseguirem reverberar suas questões relativas ao sistema colonial e à escravidão, tanto nas colônias como na França continental. Depois de 1830, Cyrille Bissette, Louis Fabien e Mondésir Richard publicaram várias brochuras53, comunicavam-se constantemente com o Ministro da Marinha e das Colônias e entregaram várias petições à Câmara dos deputados concernentes aos direitos civis e políticos dos livres de cor, ao regime legislativo das colônias, à liberdade dos patrocinados e à situação dos escravizados e sua emancipação. Ademais, intermediaram ações em defesa de escravos e livres de fato da Martinica, como nos casos vivenciados pelos patrocinados Michel Savignac e Alfred Agnès54, Adèle55 e Louisy Adzée, e os escravos Michel e Léo56, e outros que comentaremos adiante. Além disso, fizeram os senhores de escravos sentirem sua pressão nas próprias colônias, provavelmente até mais que as tensões que estes últimos vivenciaram nos debates legislativos e na imprensa metropolitana. Em uma carta a seu irmão que vivia na França, em janeiro de 1832, o colono martinicano Pierre Dessalles (escrevendo de Sainte-Marie, Martinica) comentou que Bissette havia solicitado às Câmaras em Paris a libertação dos escravizados. Não sabemos o que teria ocorrido de fato na Metrópole, no entanto, qual tenha sido a atitude de Bissette, sua reverberação na Martinica teve o efeito de um rastilho de pólvora, atingindo não apenas a classe dos senhores brancos, mas causando um impacto importante também sobre os libertos e os escravos. De acordo com Dessalles, o governador da Martinica acreditava que os homens livres de cor da colônia, que haviam indicado Bissette como seu representante, estariam bastante dispostos a se opor à demanda de emancipação dos escravos. Sobretudo porque, havia promulgado recentemente uma decisão local que autorizava os livres de cor se tornarem oficiais das milícias coloniais, e entre dez e doze homens daquela classe já haviam recebido as dragonas referentes ao cargo na Martinica57. Na visão da elite branca, e mesmo do governo colonial, os livres de cor tinham obtido algumas concessões de privilégios, e acreditava-se que, assim, acalmariam seus ânimos quanto às mudanças em curso na Metrópole e nas colônias. Por isso, o governador procurou alguns “dos

53 Segundo Jennings, somente entre 1828 e 1834, Bissette teria publicado 21 brochuras em favor dos livres de cor. JENNINGS, op cit (2010), p. 44. 54 FABIEN, op cit (1831), pp. 11-15. 55 BISSETTE, Cyrille-Charles-Auguste. Demande en grâce pour Adèle, jeune esclave de la Martinique, condamnée à la peine du fouet pour avoir chanté "La Parisienne" (assinado por Bissette e Fabien, 19-28 julho de 1831). (BNF-Gallica). 56 FABIEN, Louis. Procès d’un patroné de la Martinique. Paris: Imprimerie de Dezauche, 1833 (BNF – Gallica). 57 Carta de Pierre Dessalles, 07/01/1832, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 82. 234 mais proeminentes homens de cor de Fort-Royal, todos amigos ou que tinham relações com Bissette”, provavelmente aqueles com maiores fortunas e proprietários de escravos, para que assinassem uma carta que refutava às declarações de seu mandatário em Paris. Contudo, eles recusaram a proposta feita diretamente pelo governante da colônia. De acordo com Dessalles, um deles teria declarado, ainda, que apoiava as ações de Bissette e que estava disposto a perder os escravos que possuía, se assim conseguisse se vingar de todas as humilhações que sua classe sofria:

[… ] longe de protestar contra a ação de Bissette, a quem eles devem todas as concessões que obtiveram, ele estava disposto a sacrificar os escravos que possuía e, até mesmo, seu último centavo para vingar todas as humilhações as quais ele fora submetido. Eles não escondem mas seus objetivos hoje; se o governo leva à sério a preservação das colônias, lamentavelmente está mal informado sobre as intenções dessa classe infame, cujo sonho mais ardoroso é a destruição dos brancos..58

Cyrille Bissette escreveu em novembro de 1831 uma “carta” ao Ministro da Marinha e das Colônias, na qual tratava “a necessidade de parar a reação nas Antilhas Francesas” às mudanças em curso. Bissette publicou este texto e o distribuiu também aos deputados em Paris, dando ampla divulgação à situação que ainda viviam os livres de cor, os libertos e os escravos nas colônias, mesmo depois da Revolução de 1830. Inicia a carta afirmando que “depois de muito tempo, as cabeças fermentam nas Colônias pela aplicação dos direitos civis e políticos devidos aos homens livres de cor, e para a alforria progressiva da escravidão dos negros”59 — Bissette usa o termo “noir” e não “nègre”, geralmente utilizado pelos escravistas. É possível que este texto tenha causado a reverberação que Pierre Dessalles narra, pois os delegados dos colonos brancos das Antilhas se empenharam em responder tal carta aberta, escrevendo ao ministro da marinha e também publicando estes seus textos em resposta às críticas de Bissette60. Segundo o representante dos livres de cor da Martinica,

58 Carta de Pierre Dessalles, 07/01/1832, FORSTER & FORSTER, op cit, p. 82 59 BISSETTE, Cyrille-Charles. Lettre au Ministre de la Marine et des Colonies sur la nécessité d’arrêter la réaction aux Antilles Françaises (2 de novembro 1831). Paris: Imprimerie de Auguste Mie, 1831, p. 3 60 Em seu texto, Bissette relata situações vivenciadas por livres de cor, patrocinados e escravos na Martinica e em Guadalupe, acusa a “aristocracia colonial” e mesmo o governo da Martinica. Os delegados dessas colônias publicam textos refutando as acusações concernentes à colônia que cada um representava. Ver FLEURIAU & BARON de COOLS, Lettre adressée au ministre de la marine, par MM. les délégués de la Martinique. 18 novembre 1831. Paris: Imprimerie de Auguste Auffray, 1831; LACHARIÈRE, Andre & FOIGNET, Alexandre, Lettre au Ministre de la Marine et des colonies, en réponse aux calomnies contenues dans celle de M. Bissette par A. de Lacharière et A. Foignet, délégués de la Guadeloupe. 20 novembre 1831. Paris: Imprimerie de Auguste Auffray, 1831. (BNF – Gallica) 235 mesmo depois de 1830 a “aristocracia colonial” vinha agindo com “arrogância e tirania”, pois, “não apenas ultraja[va]m os homens livres de cor”, como também não reconheciam os direitos dos patrocinados, e abusavam da “infelicidade dos escravos”61. De acordo com Bissette, mesmo depois que o governo metropolitano havia feito revogar as ordenações que restringiam alguns direitos civis dos livres de cor, Fleuriau, delegado dos colonos da Martinica, circulou um comunicado aos seus semelhantes, que teria percorrido toda a Colônia, e no qual ele afirmava que o Ministro da Marinha havia prometido restabelecer o “respeito aos brancos”, imposto às pessoas de cor62. Bissette relata, então, vários “fatos” que teriam se passado nas colônias, devido a este princípio de “respeito aos brancos”, sustentado pela elite colonial, com apoio dos sistemas judiciário e policial, e mesmo do governo da colônia. Os fatos narrados por Bissette demonstram mais uma vez que os livres de cor das colônias mantinham uma correspondência constante com seus mandatários em Paris, informando-os de qualquer problema ou situação que consideravam injusta e que vivenciavam ou observavam nas colônias. Nesta mesma carta, Bissette solicitou ao Ministro da Marinha que fizesse parar “a vigilância especial” que era feita sobre aqueles seus “compatriotas” que mantinham “correspondência aberta e lícita” com ele e seus amigos na metrópole. Que não sofressem mais com a perseguição “inquisitorial” feita na Martinica, para que assim pudessem lhes informar, “com segurança”, tudo que pudesse interessar à defesa de seus direitos. Dessa forma, seus mandatários em Paris teriam condições de “esclarecer o governo” sobre a situação de sua classe63. Além disso, os casos narrados por Bissette também revelam algumas das interações sociais que se davam entre patrocinados e livres de cor, e ainda, entre estes e as pessoas brancas. Evidenciam também a batalha das pessoas livres e libertas para que o mínimo de “cidadania” que haviam conquistado fosse respeitada, e como as pessoas brancas ainda resistiam a estas mudanças. Como afirma John Savage, em uma época em que a teoria liberal estava em seu apogeu e que teóricos políticos estavam forjando um sofisticado modelo de “cidadania capacitária”, é importante destacar que cidadania não era um fenômeno determinado exclusivamente de forma teórica64. Nestes embates políticos discutidos neste

61 BISSETTE, op cit (1831), p. 4. 62 BISSETTE, op cit (1831), p. 4. 63 BISSETTE, op cit (1831), pp. 15-16 64 SAVAGE, John Savage, “Unwanted Slaves: The Punishment of Transportation and the Making of Legal Subjects in Early Nineteenth-Century Martinique”, Citizenship Studies, vol. 10, n. 1, pp. 35-53, fevereiro de 2006, p. 48. 236 capítulo, infelizmente não se encontram fontes que expressem as opiniões das mulheres negras, muito menos documentos escritos por elas. No entanto, algumas narrativas encontradas nos textos analisados revelam que elas também estavam atentas às transformações políticas, legislativas e sociais, e lutavam em seus cotidianos contra as situações de injustiça que vivenciavam. Em um dos casos, Bissette narra um evento envolvendo três mulheres: uma mulher patrocinada (Bissette não cita seu nome) pela demoiselle Desclerice Romeny, mulher de cor, possuía a metade da propriedade de animais com uma senhora branca, Camille Le Roy. Esta teria vendido uma novilha da propriedade conjunta em julho de 1831, e declarado à patrocinada, co-proprietária, 40 francos a menos que o valor que havia recebido pela venda. A senhorita Desclerice, tendo adquirido a prova deste dolo, reclamou, em nome de sua patrocinada, sua afilhada, junto à dama Le Roy. Esta, “para escapar da vergonha de sua conduta”, e para não ter que dar conta da metade dos 40 fr devidos, achou como melhor meio de resolver a querela, de acordo com Bissette, invocar a “ordenação dita do respeito aos brancos”. Assim, Camille Le Roy apresentou uma queixa ao comandante da vila do Gros-Morne, senhor Timoléon Dufougeray, o qual mandou acorrentar Desclerice Romeny no calabouço. Enviada no dia seguinte ao governador, este a condenou a se desculpar com a senhora Camille Le Roy. Como a condenada se recusou a este ato, o governador ordenou que ela fosse levada presa para longe de seu domicílio, em um outro município da Colônia65. Fleuriau, ao tentar contestar esta narrativa de Bissette, afirmou que se Desclerice Romeny havia sido presa, era porque tinha “insultado e ameaçado de punho” (grifo no original) o comandante Dufougeray66. De qualquer forma, essa justificativa do representante dos colonos parece apenas confirmar a crítica de Bissette sobre o princípio do “respeito aos brancos”. Desclarice, em sua condição de mulher livre, agindo apenas para conseguir o que era justo para sua afilhada patrocinada, provavelmente tentou resistir contra a ação arbitrária do comandante Dufougeray, que defendia a atitude indevida da senhora branca, e foi condenada e encarcerada certamente por não respeitar os brancos, ou melhor, por não aceitar a atitude dos brancos em relação aos livres de cor. Em outro caso narrado por Bissette, uma “dama de cor, portadora de um título de liberdade estrangeira”, ou seja, também uma liberta irregular como no caso anterior, teria sido ameaçada pelo senhor Morel, procurador do rei de Saint-Pierre, pressionado pelo senhor Désabaye, comissário comandante da vila da Grand’Anse (Martinica), de ser vendida em

65 BISSETTE, op cit (1831), pp. 4-5. 66 FLEURIAU & BARON de COOLS, op cit (1831), p. 6. 237 leilão público com toda sua família, se ela recusasse reconhecer o “princípio de respeito aos brancos”67 — Bissette não fornece mais detalhes sobre o ocorrido. No Lamentin, em 10 de julho 1831, o senhor Aly fils, homem de cor, foi encarcerado por ordem do senhor Lagrange Chancel, comissário comandante da comuna, por ter respondido à este funcionário, o qual lhe havia perguntado se ele pretendia ser igual a um branco, e Aly teria dito “que ele acreditava ser” [igual aos brancos]68. Na Martinica, na comuna de Trinité, o senhor Marc, homem de cor, foi detido por doze dias, ilegalmente, sob uma ordem de Desgages, comissário comandante da vila, que dizia: “Le nommé Marc se rendra provisoirement en prison pour manque de respect à M. Jay, et d’après la plainte portée par ce dernier” [O denominado Marc está provisoriamente preso, pela falta de respeito com o Monsieur Jay, e de acordo com a queixa feita por este último]. Segundo Bissette, Marc “tinha alimentado durante um mês o senhor Jay” e este não havia lhe pagado os serviços. Sentindo-se ofendido com as reclamações de cobrança de Marc, Jay prestou queixa ao comandante Desgages69. Algumas situações relatadas por Bissette implicavam pessoas livres regulares, mas a maioria envolvia pessoas livres de fato, cuja liberdade precária e irregular lhes deixavam mais vulneráveis às ações arbitrárias da justiça e da polícia da ilha, controladas pela classe dos brancos. Por outro lado, demonstram que a população afrodescendente (liberta e patrocinada) procurava estabelecer formas de solidariedade e proteção entre os seus, buscando denunciar e resistir ao domínio dos brancos na ilha de Martinica, mesmo que não fosse de forma belicosa. Bissette em sua carta, prometendo dar toda publicidade ao que vinha ocorrendo nas Colônias, alerta o Ministro que não se enganasse, pois “a paciência dos homens de cor não é uma prova de fraqueza”70. Ademais, Bissette informou que apesar da proibição ao tráfico de escravos, ele continuava a existir na Martinica, pois em agosto de 1831, na comuna do Marin, um navio negreiro havia desembarcado sua “carga”. E ainda que o Moniteur de 19 de outubro tivesse “desmentido este fato relatado pelo Courrier-Français”, as cartas que recebia declaravam que o fato era positivo e que o tráfico era constante71. Também relatou casos envolvendo escravos, sobretudo situações de castigos abusivos realizados por senhores brancos. O senhor Garnier de Saint-Omer, grande proprietário das redondezas de Fort-Royal, tinha uma predileção por

67 BISSETTE, op cit (1831), p. 5. 68 BISSETTE, op cit (1831), p. 6. 69 Idem, p. 8. 70 Idem, p. 4. 71 Idem, p. 9. 238 maltratar seus escravos, sobretudo as mulheres. Em uma de suas ações de crueldade, ele havia obrigado o irmão de uma jovem escrava a chicoteá-la até a morte. Manteve uma outra escrava encarcerada por seis semanas, com os tornozelos acorrentados à parede de uma forma que ela não conseguia nem se deitar. Além disso, mantinha várias outras jovens escravas, entre dezoito e vinte anos, com pesadas correntes de ferro ao pescoço, colocadas a “intensos golpes de martelo”72. Bissette narrou com detalhes vários casos de severos castigos realizados contra os escravos, levados até mesmo à morte, envolvendo o senhor Vermeil, gerente da habitation Spoutourn, propriedade da Madame Dubuc de Saint-Prix (que não vivia na colônia), no município de Trinité (Martinica). Vermeil havia feito chicotear vários escravos da fazenda, que teriam se queixado contra ele, devido aos excessivos maus-tratos, com o juiz de paz da região, senhor Belletête, cuja “imparcialidade provocou o ódio dos colonos”. De acordo com Bissette, os colonos brancos já haviam demandado a destituição de Belletête devido a sua atitude diante das reclamações dos escravos da localidade. Vermeil teria sido acusado formalmente e, sendo condenado, seria preso, mas os “colonialistas” teriam favorecido e protegido sua fuga para uma colônia estrangeira — a ilha de Dominica, colônia inglesa, vizinha à Martinica. Pierre Dessalles, procurador-geral na época, havia ainda ordenado outra investigação, com o objetivo de inocentar Vermeil e “comprometer o magistrado que tinha ousado persegui-lo”73. De acordo com Fleuriau, estas acusações contra Vermeil eram todas “pura calúnia”. Porém, se de fato um processo chegou a ser aberto, provavelmente alguma verdade havia naquelas acusações, e os escravos da fazenda, observando um magistrado predisposto a receber suas queixas, haviam tentado conseguir alguma defesa junto ao sistema judiciário da ilha. Além disso, os detalhes fornecidos por Bissette indicam ainda que provavelmente existiam redes informais que transmitiam relatos entre escravos e livres de cor, ou mesmo brancos, até que as denúncias dos escravizados fossem enunciadas por aqueles que tinham acesso ao governo e aos meios de comunicação mais amplos, como os mandatários em Paris. Dessa forma, é possível que a carta de Bissette, amplamente publicizada em novembro de 1831, repleta de eventos envolvendo libertos, escravos e patrocinados, tenha provocado as situações narradas por Pierre Dessalles, naquela sua carta de janeiro de 1832.

72 BISSETTE, op cit (1831), p. 9. 73 Idem, pp. 9-10. 239

Dessalles ainda relata outro efeito interessante da reverberação das declarações de Bissette (de Paris) na Martinica. Havia chegado ao conhecimento dos escravos a proposta do governador aos livres de cor notáveis de Fort-Royal, e a resposta destes à sua solicitação. Com tal história rodando a colônia, os escravos estariam, então, fazendo canções sobre o ocorrido e dizendo que enquanto “os brancos eram contrários a sua emancipação, os homens de cor estavam insistentemente reivindicando-a”. Segundo Dessalles, devido a estes acontecimentos, “a mentalidade do preto tinha drasticamente mudado”, e que estava “muito difícil comandá-lo”74. No entanto, há outras fontes que indicam que a atitude dos escravos perturbavam os proprietários desde que tomaram conhecimento sobre a revolução de 1830 nas colônias. De acordo com um relato de um colono da Martinica, de fevereiro de 1831, a notícia sobre a revolução chegou na ilha “nos primeiros dias de setembro” de 1830 e trouxe com ela uma “inquietude” que desestabilizou a “tranquilidade das Colônias”, ainda que essa “tranquilidade” seja apenas retórica, pois a década de 1820 não foi pacífica para os senhores de escravos da Martinica75. Da mesma forma que Dessalles, também relata que “canções sediciosas” eram cantadas pelos escravos, assim como se ouvia falar de “ameaças de incêndio e de morte”. Segundo o autor da carta, nestas canções cheias de ditos significativos, na maneira dos “gestos” e da “linguagem”, revelava-se uma revolução em curso na mentalidade dos afrodescendentes da colônia:

A inquietude aumentou entre uns, a efervescência entre outros [negros e livres de cor]. Canções sediciosas estavam em todas as bocas, ameaças de incêndio e de morte em muitas; adágios significativos, uma certa maneira de gestos e de linguagem anunciavam um revolução já feita nas ideias e preste a explodir para fora.

O historiador Lawrence Jennings argumenta que não foram nem os fatores econômicos, nem a resistência dos próprios escravos que levaram à abolição definitiva da escravidão nas antigas colônias francesas, mas o desenvolvimento, durante a Monarquia de

74 Carta de Dessalles, 07/01/1832, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 82. 75 Em 1822 ocorreu uma grande revolta de escravos no município do Carbet e há evidências sobre outra tentativa de revolta escrava na mesma localidade em 1826 (John Savage relata a denúncia do senhor Asselim, sobre uma conspiração entre os escravos de sua fazenda); em 1823-24, ocorreu o “caso Bissette”, quando dezenas de homens livres de cor foram acusados de conspiração e condenados à prisão, ao exílio e até à marca com ferro quente; entre 1822 e 1827, houve alarde da elite branca em relação aos casos de “envenenamento” na Martinica, levando à condenação vários escravos e patrocinados. Ver THÉSÉE, Françoise. Le général Donzelot à la Martinique. Vers la Fin de L’Ancien Régime colonial (1818-1826). Paris: Karthala, 1997, pp. 77-114; SAVAGE, op cit (2006), pp. 35-36. 240

Julho, de uma “cultura antiescravista”, que realizou seus objetivos na Revolução de 184876. Ele afirma que ocorreu durante este período uma “ausência de auto-libertação dos escravos”, ainda que historiadores como Josette Fallope demonstrem que houve bastante “resistência passiva” da parte dos escravos (trabalho lento, recusa a obedecer às ordens, falsas doenças), e mesmo ações de insubordinação aberta (envenenamento de animais, incêndios, marronage)77. Jennings argumenta que, ainda que estas ações inquietassem as autoridades locais, há poucas provas que elas tenham reduzido de forma significativa a produção de mercadorias, ou mesmo que tenham tornado menos viável o sistema colonial78. Afirma que as correspondências oficiais dos governos coloniais com a metrópole sugerem que o único meio que os escravos poderiam avançar na conquista de sua própria liberdade seria se insurgindo em massa entre 1833 e 184879. Por um lado, Jennings destaca a importância da ação política dos abolicionistas em seus debates de ideias, por meio da imprensa e da publicação de livros e panfleto, e em suas movimentações dentro do governo francês, conjunto de ações que ele denomina de “cultura abolicionista”. Por outro, o autor acredita que a agência dos escravos somente poderia ser efetiva por meio de uma insurreição declarada e ampla. Dessa forma, minimiza e desconsidera outras formas de resistência da população negra, e mesmo outros meios de pressão sobre a questão da emancipação escrava. O fato dos escravos da Martinica transformarem em canções suas visões e revoltas em relação ao sistema colonial e escravista não é nem mesmo mencionado pelos historiadores que abordam a história da escravidão nas Antilhas Francesas. Jennings valoriza e destaca a ação da imprensa abolicionista80, mas está longe de tentar compreender o que significava nas colônias as estratégias dos escravos frente ao contexto político, que visivelmente, pelas fontes comentadas anteriormente, perturbavam os senhores de escravos. Enquanto os abolicionistas escreviam e usavam a tribuna, os escravos cantavam nos campos de cana e nas ruas das cidades coloniais, espalhando sua mensagem e sua “cultura escrava antiescravista”. Jennings também ignora as questões relativas à alforria que, como demonstrado até aqui, certamente

76 JENNINGS, Lawrence C., “Le second mouvement pour l’abolition de l’esclavage colonial français”, Outre- mers, tomo 89, n. 336-337, 2o. Semestre 2002, pp. 177-191. 77 Jennings cita o seguinte trabalho: FALLOPE, Josette. Esclaves et citoyens: les noirs de la Guadaloupe au XIXe siècle dans les processus de résistance et d’intégration, 1802-1910. Basse-Terre, Guadaloupe: Société d’Histoire de la Guadaloupe, 1992. 78 JENNINGS, op cit (2002), pp. 178-180. 79 Jennings cita as seguintes fontes disponíveis nos ANOM: Correspondance Générale – Colonies françaises, 1833, Ministre aux gouverneurs; Généralites 174 (1389) e Correspondance Générale – Ministre aux gouverneurs, 21 agosto 1838. JENNINGS, op cit, p. 179. 80 JENNINGS, Lawrence C., “Slavery and the Venality of the July Monarchy Press”, French Historical Studies, vol. 17, no. 4 (autumn, 1992), pp. 957-978. 241 mexeram com o sistema colonial sustentado sobre a escravidão, pois os próprios senhores de escravos tocaram neste ponto constantemente. De fato, a ascensão do movimento abolicionista durante a Monarquia de Julho teve uma importância fundamental, mas sem as ações e estratégias dos escravos na busca pela liberdade, ainda que não de uma forma organizada e explosiva, como numa grande insurreição, e a ação de intermediários como os livres de cor nas colônias e na metrópole, o sistema escravista francês não teria passado pelo abalo que sofreu. Contudo, logo depois da Revolução de Julho, em fevereiro de 1831, uma revolta de escravos ocorreu na cidade de Saint-Pierre (Martinica) e em seus arredores. De acordo com Jennings, revoltas como esta e outra que ocorreu também na Martinica, no município da Grand-Anse, em 1833, foram eventos menores em comparação à grande insurreição de escravos na Jamaica, em 1831-1832, que teve sucesso em pressionar a política inglesa em relação à abolição da escravidão81. No entanto, ainda que a revolta em Saint-Pierre não tenha derrubado o sistema escravista, sua ocorrência demonstra que os escravos e escravas da Martinica não estavam passivos diante das mudanças em curso. Em uma carta que relata a Revolta de 1831, sob a visão dos colonos brancos, o autor (anônimo) narra que na véspera da insurreição, na noite entre cinco e seis de fevereiro, uma bandeira tricolor com a inscrição “La liberté ou la mort”, foi colocada na porta da igreja da paróquia do Mouillage, em Saint-Pierre. O incêndio começou nas fazendas nos arredores da cidade no dia sete e continuou até a noite de nove de fevereiro82. Era período de Carnaval83. Os relatos sobre essa insurreição afirmam que vários escravos atacaram e incendiaram 11 habitations sucrière (engenhos de açúcar) próximas à cidade de Saint-Pierre, passando de fazenda em fazenda, invocando o fervor

81 JENNINGS, op cit (2002), p. 179. 82 "Relation des événements qui ont eu lieu à la Martinique en février 1831”, in ANOM – DPPC –- Série Géographique – Martinique – Carton 18, dossier 160: Correspondance – Révolte de février 1831 (St. Pierre) – Coupures de presse, affiches. 83 O trabalho de Eric Brasil sobre uma revolta em Trinidad, no carnaval de 1881, e a prática do Canboulay, leva-nos a pensar se essa revolta em Saint-Pierre em 1831, na época do carnaval, não teria um significado mais profundo que os senhores de escravos e mesmo os historiadores perceberam. O Canboulay era uma encenação, onde grupos se “enfrentavam” durante a festa de carnaval em Trinidad, e num cortejo com tambores, os homens levavam bastãos e tochas, e mulheres e crianças eram responsáveis por prover estes objetos. O termo Canboulay “teria sua origem ligada a um expediente comum nas plantations de cana-de- açúcar, associado ao uso de fogo, incêndios controlados e estratégias para controlar incêndios realizadas pelos escravos das fazendas. O termo deriva da expressão francesa Cannes Brulées [Cana queimada]. O termo francês seria transformado pela língua crioula em Canboulay e assim entraria para a história do carnaval”. BRASIL, Eric, “Carnaval como direito: a revolta Canboulay de 1881, em Port-of-Spain, Trinidad”, Revista eletrônica da ANPHLAC, n. 20, jan/jun 2016, pp. 48-77, http://revista.anphlac.org.br. 242 revolucionário que recentemente havia chacoalhado a França84. A elite branca ficou exasperada, reagindo implacavelmente contra os libertos e escravos da colônia, com o apoio do governo colonial. Contudo, os senhores de escravos aproveitaram este momento também para tentar argumentar que as ações metropolitanas e do governo da Martinica estavam agitando os ânimos na Colônia e colocando em risco a população branca, e mesmo o sistema colonial. Acreditavam que as “concessões feitas às pessoas de cor” nos primeiros meses do novo regime ameaçava “todo o sistema colonial”, que se baseava “sobre a supremacia dos brancos, que nada mais é do que o poder do senhor”:

Todo o sistema colonial é baseado na supremacia dos brancos, que nada mais é do que o poder do senhor. No princípio, todo aquele que não era branco era escravo. As concessões de liberdade somente vieram depois; mas os senhores, que não tinham o direito de concedê-la, podiam colocar condições expressas ou tácitas, à frente das quais, sem dúvida, deveria colocar a necessidade de sua própria conservação. Bom! A melhor maneira de manter a autoridade do senhor era cercar os brancos com um tipo de prestígio, uma grande força moral, e para isso era necessário que, qualquer que fosse a distância, a mácula original da escravidão não pudesse nunca ser apagada. Essa ideia é quase tão antiga nas colônias quanto a escravidão, e sempre teve aqui a mesma utilidade. Aqueles que se fizeram apóstolos da filantropia, e que nos difamam sem nos conhecer, não entenderam que quanto mais se enfraquece esse poder moral, mais necessário será pressionar pela força material, isto é, apertar os grilhões da escravidão.85

De acordo com o senhor martinicano que escreveu a carta, se o sistema colonial deixasse de funcionar da maneira como descreveu anteriormente, levaria todas as esperanças dos escravos em direção à liberdade, “e a liberdade para eles é inseparável do incêndio e do massacre: São Domingos provou bem isso”. Contudo, em vez de prevenir o efeito que a notícia da revolução de julho e a aparição da bandeira tricolor poderiam causar nos escravos, o governo decidiu de súbito fazer “as concessões às pessoas de cor”. Sem “a intervenção, e mesmo contra a vontade dos brancos”, o governador tinha revogado as ordenações antigas que continham várias restrições aos afrodescendentes livres. Segundo o autor do texto, recebendo todas as queixas dos livres de cor, sempre lhes dando razão, o governo teria aumentado as esperanças dos negros, e abriu caminho para “a crise mais eminente e mais

84 SCHLOSS, Rebecca Hartkopf, “The february 1831 slave uprising in Martinique and the Policing of white identity”, French Historical Studies, vol. 30, n. 2, 2007, p. 204. Ainda sobre esta revolta, ver MAUVOIS, Georges. Un complot d’esclaves, Martinique, 1831. Lamentin, Martinica: Editions Les Pluriels de Psyché, 1998. 85 “Lettre sur les derniers événements de Saint-Pierre-Martinique”, de 14 de fevereiro de 1831, pp. 4-5. ANOM – DPPC –- Série Géographique – Martinique – Carton 18 / dossier 160: Correspondance – Révolte de février 1831 (St. Pierre) – Coupures de presse, affiches. 243 perigosa”, ou seja, uma possível luta pela liberdade. Dessa forma, os frutos dos problemas causados por estas ações não tardaram a aparecer, referindo-se à revolta de fevereiro de 1831. Assim, o problema central não era a questão dos livres de cor em si, mas como ela estava diretamente ligada aos escravos, porque os livres de cor mantinham todo tipo de ligação com eles. Questiona, então, qual não seria o efeito sobre os escravos, a “emancipação súbita dos homens de cor unidos a eles por tantos laços”:

(...) à exceção de algumas famílias antigas de libertos, o estado social dos homens de cor os confunde mais com os escravos (…). Eles são unidos entre eles de toda sorte de laços: laços de cor, laços de família, laços de amizade, laços de profissão, laços mesmo, se assim se pode exprimir, de pobreza e de ignorância.86

Nos dias que se seguiram à revolta, 300 negros foram presos, foi decretado estado de sítio na Martinica e decisões que impunham restrições aos deslocamentos de escravos e patrocinados, no campo e nas cidade. Em poucas semanas, dezenas de pessoas foram acusadas em um tribunal extraordinário (Cour d’Assises), convocado por um decreto do governador da colônia. Entre os 49 indivíduos intimados, cinco eram escravos patrocinados, dois eram livres de cor, e um era um homem branco, Xavier Bosc, gerente da fazenda Dariste. O restante era escravos, entre os quais uma parte trabalhava no ganho ou como operários em Saint-Pierre, e outra parte trabalhava em fazendas nas cercanias da cidade. Adèle, aquela moça para quem Bissette solicitou a clemência do rei, era uma mulata, “ignorante de sua idade”, que trabalhava como lavadeira, escrava da demoiselle Citote, moradora em Saint- Pierre. Louis Fabien afirma que Adèle era uma escrava patrocinada, ou seja, provavelmente usufruía uma liberdade de fato, sob a proteção da senhorita Citote, certamente uma mulher livre de cor. Talvez houvesse mais indivíduos como Adèle, cujo estatuto no processo foi definido como escravo, mas eram patrocinados. Em maio de 1831, as sentenças foram deferidas e 20 pessoas absolvidas das acusações de participar dos eventos ocorridos ou ter conhecimento sobre o plano da revolta. Contudo, 26 escravos foram sentenciados à morte por enforcamento87, dois escravos condenados a dois anos de prisão, e Adèle, como já sabemos,

86 “Lettre sur les derniers événements de Saint-Pierre-Martinique”, p. 5. 87 As fontes e a historiografia divergem quanto a este número. Bissette e Gatine, em uma petição de 1832, falam em 24 escravos; Rebeca Schloss afirma que o governador Dupotet indica em seu relatório o enforcamento de 22 escravos; e as fontes do processo indicam a condenação à morte de 26 escravos. Mantive esta última informação. 244 condenada a receber 29 chibatadas88. De acordo com Schoelcher, no momento das execuções, os escravos sentenciados à morte teriam caminhado “ao cadafalso com uma coragem heroica, gritando: Viva a liberdade!”89. Na mesma época desta revolta de grandes proporções, envolvendo quase todo o município de Saint-Pierre, seis escravos daquela mesma propriedade rural Spoutourn (município de Trinité), da qual Vermeil tinha sido gerente, foram acusados de incitar à revolta o atelier, e teriam colocado fogo em algumas casas e edificações da habitation. Condenados como “sujeitos perigosos”, haviam sido sentenciados à deportação pelo Conselho Privado da Martinica. A livre de fato Tine, que prestava serviços na fazenda Spoutorn como enfermeira, recebendo 40 francos por mês, também foi acusada de participar da conspiração, “usando de sua influência entre os negros para arruinar seus senhores”, segundo Fleuriau90. De acordo com Bissette, não sendo propriedade de ninguém, Tine estava nas mãos do Governo da ilha, e apesar de ter sido inocentada, sofreria a mesma pena de deportação que os outros escravos acusados91. Segundo Fleuriau, tanto Tine como os outros escravos eram “sujeitos perigosos” e deveriam ser “conduzidos a uma colônia estrangeira”92. O historiador John Savage argumenta que todas as turbulências sociais e políticas que ocorreram entre as décadas de 1820 e 1840 no Caribe Francês — perseguição ao tráfico ilegal de escravos, independência do Haiti, efeitos da revolução de 1830, etc — contribuíram com a tendência à ansiedade e à paranoia dos senhores de escravos, por isso, estes procuraram aumentar a disciplina e repressão sobre os cativos. Uma das principais formas adotadas para conter os escravos rebeldes, considerados “sujeitos perigosos”, naquele período foi o exílio, a “transportação para outras partes do Caribe, América do Norte, e mesmo para a África”. Segundo Savage, essa forma de disciplina expunha os limites tanto das autoridades públicas como privadas sobre os escravvizados93. Talvez Tine fosse uma mulher experiente, que tivesse conquistado sua liberdade de savana por conta de seu ofício, cuidando da saúde das pessoas da fazenda. Como ao olhar do branco ela era uma “enfermeira”, não é difícil inferir que tinha conhecimentos sobre as artes da cura para além dos conhecimentos da medicina europeia, e assim, exercia um papel

88 A revolta de fevereiro de 1831 em Saint-Pierre, Martinica, é tratada em uma vasta documentação, disponível nos ANOM: FM – 6 DPPC – 918 (Cours d'Assises de St. Pierre 1830-1832); Série Géographique (SG) – Martinique, carton 18, dossiers 159, 160, 161 e 162. 89 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 376. 90 FLEURIAU & BARON de COOLS, op cit (1831), pp. 11-12. 91 BISSETTE, op cit (1831), p. 11. 92 FLEURIAU & BARON de COOLS, op cit (1831), p. 12. 93 SAVAGE, op cit (2006), pp. 36-37. 245 influente entre os escravos da fazenda. Dessa forma, decerto tenha incitado-os a se rebelarem, pois, provavelmente ela era responsável por tratar as chagas dos escravos que sofriam constantes castigos abusivos dos gerentes da fazenda. Não há mais informações sobre esta revolta na fazenda Spoutourn, porque não foram encontradas outras fontes, além dos breves relatos de Bissette e Fleuriau. É possível que a elite branca, que controlava os sistemas policial e judiciário da colônia, evitava o quanto possível dar publicidade a estas sublevações dos escravos, inclusive evitando os registros destes processos ou, ao menos, não os enviando à metrópole. Por conta da forma como foi tocado o processo criminal sobre os escravos envolvidos na revolta de Saint-Pierre em 1831, Bissette, Louis Fabien e Adolphe Gatine, advogado da Cour de Cassation na Metrópole, apresentaram uma petição à Câmara dos deputados, em agosto de 1831, cujo objeto era, segundo os autores, “da maior importância para as Colônias da América”. Tratava-se do “direito negado aos escravos de apelação” em matéria criminal94. Para introduzir o assunto da petição, comentaram os eventos ocorridos na Martinica entre fevereiro e maio de 1831, e questionavam sobretudo a ação judicial contra os escravos acusados e suas condenações:

(...) estes eventos, reais ou provocados, serviram de pretexto para organizar um deplorável sistema de terror contra os escravos. Vinte e quatro foram enforcados para se fazer justiça. Teria sido necessário que vinte e quatro merecessem igualmente todos serem mortos? Deu-se na Colônia o espetáculo de uma execução da justiça, ou um ato de violência que poderia ser qualificado como muito severo? Melhor ficar em uma dúvida absoluta, que agarrar-se a uma ou outra certeza95.

De acordo com Bissette, Fabien e Gatine, os escravos acusados tinham sido condenados e enforcados, apesar de suas tentativas de recorrer na justiça contra a sentença imputada. Segundo informações fornecidas pelos advogados de defesa, a apelação dos escravos não tinham sido recebidas nos tribunais da colônia, por ordem expressa dos procuradores-gerais96, Arsène Nogues e Pierre Dessalles. A petição provavelmente obrigou o governo da Martinica a prestar esclarecimentos sobre essa acusação, pois o Chefe do Tribunal de Primeira Instância de Saint-Pierre, “nesta qualidade, depositário das minutas dos processos da Cour d’Assises do arrondissement”, foi impelido a apresentar uma declaração, na qual

94 BISSETTE, Cyrille; FABIEN, Louis; GATINE, Adolphe. Pétition relative au droit dénié aux esclaves de se pourvoir en cassation. 11 août 1831. Paris: Imprimerie de Auguste Mie, 1831, p. 1 (BNF – Gallica). 95 Idem, p. 4-5. 96 Idem, p. 5. 246 afirmava não ter recebido em sua jurisdição nenhuma apelação contra a decisão da corte extraordinária que julgou o caso dos incêndios em Saint-Pierre97. Aparentemente, isso não era verdade. Bissette, que possivelmente tinha informantes, talvez pessoas livres de cor, que trabalhavam ou tinham acesso às correspondências dos órgãos judiciários da colônia, cita uma carta, de março de 1831, do Procurador-Geral da Martinica, Arsène Nogues. Na correspondência, Nogues repreendeu o Procurador do Rei de Saint-Pierre, porque este havia dado sequência à apelação do “escravo” Louizy — refere-se à Adzée, aquele patrocinado condenado por se envolver numa briga entre jovens brancos e dois rapazes escravos. Na carta, o procurador geral se manifestou inconformado com o funcionário que havia recebido tal recurso, apesar de suas instruções sobre o assunto. Provavelmente, Nogues tinha instruído os tribunais da colônia que não atendessem nenhuma apelação de escravos e patrocinados, pois, segundo ele, referindo-se ao caso de Adzée, os “patrocinados não usufruem nenhum direito atribuído aos livres”98. No entanto, Bissette, Fabien e Gatine argumentavam em seu texto que, além da apelação (pourvoi en cassation) ser um direito natural, apanágio da própria defesa, os escravos tinham adquirido o direito de interpor recursos judiciais nas Colônias, de acordo com as leis que regiam essa matéria na época. Segundo os autores da petição, a legislação antiga das colônias não reconhecia os escravos na sua “qualidade de homens”, mas apenas como “coisas”, não lhes permitindo que apresentassem recursos na justiça quando eram condenados. A ordenação de 4 de julho de 1827 seria a “última expressão dessa legislação anterior”, pois prescrevia em seu artigo IX que os escravos condenados por crimes tinham como único recurso a “clemência do Rei”99. No entanto, este regulamento era apenas uma legislação transitória; em 12 de outubro de 1828 foi promulgada uma outra ordenação, “Portant application du Code d’instruction criminelle a l’île de la Martinique et à l’île de la Guadeloupe”, que de certa forma anularia as leis anteriores. De acordo com os peticionários, nesta legislação nova não se encontravam nenhuma das disposições proibitivas existentes nas

97 “Certifie qu’il n’a été fait ni par conséquent reçu en mon greffe aucune déclaration de pourvoi en cassation contre l’arrêt rendu dont l’affaire des incendies par la dite Cour aux assises extraordinaires tenues les deux et jours suivants au mois de mai dernier”, em ANOM – FM – Généralités, carton 639 – dossier 2760 – Affaires gens de couleur libres, 1824-1833. 98 Nogues escreveu, em 27 de março de 1831, ao Procurador do Rei de Saint-Pierre: “Je reçois à l’instant la lettre dans laquelle vous m’annoncez le pourvoi en cassation de l’esclave Louizy, condamné par la cour d’assises de Saint-Pierre. Je ne puis croire que le greffier, à qui j’avais donné des instructions à ce sujet, ait reçu ce pourvoi. Veuillez, je vous prie, prendre de nouveaux renseignements, et m’informer de leur résultat (…). Les patronés ne jouissent d’aucuns droits attribués aux libres. Si le pourvoi a été formé par un avocat, faites-le moi connaître”. BISSETTE, op cit (1831), p. 7. 99 BISSETTE, FABIEN, GATINE, op cit (1831), p. 6. 247 lei precedentes. No artigo 417 desse código criminal, afirmava-se que o “acusado” tinha direito à apelação. Este termo (acusado) incluiria necessariamente os escravos, assim como os livres. Em todo caso, a lei não proibia mais formalmente as apelações envolvendo escravos nos tribunais e, ademais, não limitava, como na ordenação de 1827, que os escravizados condenados poderiam recorrer apenas à clemência do Rei. Contudo, de acordo com os autores da petição, era muito comum, nas Antilhas Francesas, que os escravos fossem “submetidos a penalidades especiais e exorbitantes”, sendo ainda sujeitados à aplicação de suplícios do Code Noir100. O direito dos escravos à apelação não era mais interditado formalmente pela legislação que naquele momento se aplicava à Martinica e à Guadalupe. Porém, os procuradores-gerais ainda proibiam a recepção desses recursos nos tribunais das colônias, fundando-se em leis que haviam sido revogadas101. Assim, afirmavam aos deputados que:

(...) todo cidadão deve solicitar a nossos representantes que intervenham junto ao governo metropolitano, para fazer enfim remover as interdições feitas até hoje nos tribunais das Colônias de receberem as apelações dos escravos; porque, hoje, tais interdições são contrárias não apenas aos direitos da natureza e da humanidade, como, doravante, elas se tornaram também contrárias à legislação positiva atual de nossas Colônias americanas102.

O maior problema era enfrentar a resistência do sistema judiciário colonial e, assim, fazer com que os recursos judiciais de escravizados chegassem à Cour de Cassation em Paris. Não era fácil ultrapassar a barreira imposta pelos magistrados nas próprias colônias, onde eles, na maioria dos casos, eram também senhores de terras e de escravos ou tinham relações familiares com colonos proprietários. Louis Fabien escreveu uma obra em 1831, na qual propunha sobretudo uma reforma judiciária para que as mudanças legislativas da Monarquia de Julho conseguissem atingir as colônias. Para isso, sugere que era “indispensável e urgente excluir da magistratura todos os crioulos”, e substituí-los por europeus. Os magistrados deveriam ser substituídos depois de um período, para que pudessem

100 Apenas em abril de 1833 foram abolidas as penalidades contra os escravos que usavam a marca à ferro quente e a mutilação: “Considerando que a legislação referente aos escravos contém penalidades que faz-se necessário revogar explicitamente, seja porque a aplicação tenha cessado há tempos, seja pelo desuso, seja de acordo com ordens ministeriais ou dos atos de autoridade local, (…) [ordena] art. 1er. São e permanecem abolidos, nas colônias francesas, as penas de mutilação e de marcas, estabelecidas, seja como penas principais, seja como penas acessórias, pela legislação concernente aos escravos; Art. 2: Todas as disposições contrárias contidas no Édito do mês de março de 1685, na declaração do Rei de primeiro de março de 1768, e de todas as outras emitidas seja do governo metropolitano, seja pela autoridade colonial, estão e permanecem revogadas”. Veja “Ordonnance du Roi, portant abolition de la marque et de la mutilation”, 30 de abril de 1833, BOM, 1833, pp. 95-96. 101 BISSETTE, FABIEN, GATINE, op cit (1831), pp. 10-11. 102 Idem, pp. 5-6. 248

“conservar sua independência” nos cargos e conseguirem fazer “justiça, livres de qualquer influência de cor, de fortuna ou de preconceito”103. Ainda em 1842, um crioulo das ilhas caribenhas testemunharia a Schoelcher que os “tribunais e o ministério público” das colônias eram dedicados aos colonos brancos e se “pronuncia[va]m como eles deseja[va]m”104. Os indivíduos não livres apenas seriam de fato reconhecidos como sujeitos legais pela ordenação de 18 de julho de 1845. No entanto, os mandatários dos livres de cor e advogados abolicionistas continuariam tentando dar suporte aos escravos em processos criminais e por liberdade ao longo das décadas de 1830 e 1840. O advogado abolicionista francês Adolphe Gatine atuaria na defesa de Luizy Adzée, cujo caso foi levado à Cour de Cassation em 1833, o primeiro patrocinado a enfrentar a elite colonial naquela corte suprema105. Gatine também interviria na apelação feita pelos livres de cor e escravos condenados por conta da revolta da Grand’Anse (Martinica) em dezembro de 1833. Devido a uma suposta conspiração envolvendo em torno de 300 gens de couleur naquele municiípio, ao norte da Martinica, 173 pessoas foram acusadas num processo criminal (135 livres de cor e 38 escravos), das quais 93 foram condenadas nos primeiros meses de 1834106. Bissette, Fabien e Gatine mais uma vez agiriam de forma incisiva, pois além da comunicação com os livres de cor da Martinica e da atuação em defesa dos condenados, em abril de 1834, enviaram uma requisição ao rei, em nome de quinze pessoas livres de cor da Martinica (homens e mulheres). Neste documento, solicitavam permissão para mover uma ação judicial contra funcionários do governo da Martinica, devido à perseguição e à repressão aos afrodescendentes livres e escravos na Grand’Anse e aos assassinatos durante a reação das milícias lideradas pelos colonos brancos em dezembro de 1833. Assim, requisitavam a autorização real para processar o ex-governador da Martinica, Joseph Dupotet, aparentemente obrigado a deixar seu cargo devido à reverberação desse conflito entre brancos e afrodescendentes na colônia, pois foi substituído em março de 1834107; Rosaly, o Diretor Geral do Interior da Martinica; Desabaye, o comissário comandante do município da

103 FABIEN, Louis. Des colonies, avant et après la Révolution de juillet 1830, et Observations nouvelles sur le régime qui leur convient. Paris: Dandely, 1831, p. 61, citado em SCHMIDT, op cit (2000), p. 250. 104 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 310. 105 FABIEN, op cit (1833), p. 23. 106 GATINE, Adolphe. Procès de la Grand’Anse (Marinique). Mémoire pour les 93 condamnés, soumis á la Cour de Cassation saisie de leur pourvoi, au Gouvernement, aux Chambres, à la Nation. Paris: Imprimerie de Dezauche, octobre 1834. (BNF – Gallica). Ver uma abordagem sobre esta revolta da Grand’Anse in SCHLOSS, op cit (2009), pp. 154-164. 107 Em março de 1834 chegou à Martinica o conselheiro de Estado e vice-almirante Halgan, nomeado governador da colônia, substituindo o contra-almirante Dupotet. Ver BOM, 1834, pp. 84-85. 249

Grand’Anse, envolvido anteriormente em casos narrados por Bissette, sobre o problema do “princípio de respeito aos brancos” em 1831; e o capitão comandante da companhia militar em Saint-Pierre108. Obviamente, esta requisição seria negada109, mas revela mais uma forma de embate político e judiciário colocada em prática pelos livres de cor da Martinica, com apoio de intermediários na França continental, para além das revoltas e conspirações. Em um momento em que a elite colonial tentava utilizar o evento da Grand’Anse para criticar a conquista de direitos civis e políticos pela população afrodescendente livre e apontar os “perigos” dessa situação, ações como esta tentativa de processo no mínimo demonstravam que estavam dispostos a lutar e reforçar sua cidadania, não apenas no enfrentamento corpo a corpo ou armado. Contudo, provavelmente suas ações não pararam por ai, pois as penas imputadas aos condenados envolvidos na revolta da Grand’Anse foram amenizadas por meio de três ordenações reais promulgadas entre 1835 e 1836. Os sentenciados à morte tiveram suas penas reduzidas a 15-20 anos de trabalhos forçados; outros que haviam sido condenados a trabalhos forçados perpetuamente, teriam que cumprir de 5 a 10 anos de trabalho forçado110. Outros 23 indivíduos de “condição livre”, que haviam sido sentenciados ao exílio perpétuo, ou seja, banidos da Martinica, receberam a clemência do rei pela ordenação de janeiro de 1836, a qual determinava que estas pessoas poderiam retornar à ilha, contudo, seriam submetidas durante cinco anos à “surveillance de la haute police” [intensa vigilância policial]111. Na década de 1840, Gatine ainda atuaria na Cour de Cassation (Corte de Cassação) em ações de liberdade envolvendo mães escravas e libertas, separadas de seus filhos por venda ou alforria — estes casos serão tratados mais detalhadamente em outro tópico deste capítulo. Estes processos geralmente eram atravancados o máximo possível nos tribunais das colônias ou mesmo indeferidos, e apenas com a insistência das escravas ou

108 BISSETTE, FABIEN & GATINE. Au Roi, en son conseil. Requête a fin d’autorisation de poursuites, 2 avril 1834. Paris: J.-S. Cordier, 1834 (BNF – Gallica). A requisição ainda era assinada pelas seguintes pessoas: Auguste Eugénie (proprietário eleitor), Jean-Baptiste Laboulique, Fréjus, os herdeiros de Lorville (assassinado na Grand-Anse) e a senhorita Delphine, todos moradores do município da Grand-Anse; Louis Léonce, Félicien Assier, William, Amédée Boyer, Roseley Berne, moradores do município de Saint-Pierre; Joseph Albert e Maxime, pai e filho, moradores da vila de Basse-Pointe; Henry Laroche, de Fort-Royal; os herdeiros do senhor Maurice, assassinado em Sainte-Marie. 109 “Déliberation du Conseil d’État rejetant la demande de poursuivre plusieurs fonctionnaires de la Martinque, 20 janvier 1835”, BOM, 1835, pp. 144-146. 110 “Ordonnance du Roi, portant commutation de peines en faveur de dives condamnés dans le procès de l'insurrection de la Grand'Anse, 28 décembre 1834” e “Ordonnance du Roi portant commutation de peine de divers condamnés de la Grand'Anse, 29 avril 1835”, BOM, 1835, pp. 89-90; 192-194. 111 “Ordonnance du Roi portant comutation de peines à divers condamnés de la Gran’Anse, 23 janvier 1836”, BOM, 1836, pp. 55-56. 250 libertas envolvidas, e o auxílio de alguns intermediários e advogados, estes casos chegaram, através de apelações formais, ao tribunal superior na metrópole, conquistando assim algum sucesso. Nelly Schmidt destaca, em sua obra sobre os abolicionistas e reformadores coloniais, a atuação de magistrados e advogados nas Antilhas Francesas e na França continental durante a Monarquia de Julho. Alguns deles teriam publicado textos e relatórios denunciando os senhores de escravos, os quais, além do abuso de poder como proprietários, ainda intervinham e obstruíam constantemente o funcionamento da administração e da justiça locais112. Nas colônias, os magistrados que ousavam acatar as denúncias de escravos ou suas apelações em processos criminais devido às condenações excessivas, eram tachados como “negrófilos”, e a elite colonial frequentemente solicitava que fossem retirados de seus cargos113. John Savage afirma que foi no domínio da lei e da justiça que ocorreram as maiores tensões entre colônia e metrópole. Enquanto muitos historiadores dedicaram bastante atenção ao movimento abolicionista durante a Monarquia de Julho (1830-1848), muito menos tem sido dito sobre como o sistema judiciário colonial se transformou em um espaço privilegiado de disputas diversas. Savage argumenta que sobretudo os julgamentos de crimes de escravos considerados “perigosos” tiveram um papel decisivo na dinâmica de mudança das relações coloniais114. Incluiríamos nessa afirmação de Savage os processos criminais contra os livres de cor e libertos patrocinados115 Ao longo das décadas de 1830 e 1840, cada vez mais pessoas escravizadas e livres de cor conseguiram utilizar os sistemas jurídico e político para enfrentar as situações de injustiça, perseguição e repressão sofridas nas colônias, incluindo a luta pela liberdade, diferentemente de qualquer outro período da história do Caribe Francês. Essas mudanças ocorreram não apenas por causa dos esforços de líderes abolicionistas, de administradores coloniais ou senhores de escravos, cada um fazendo seus cálculos sobre como poderia preservar ou minar a sobrevivência da escravidão francesa. Aconteceram também devido à

112 SCHMIDT, op cit (2000), pp. 185-190. 113 Maximilien Just (aparentemente um pseudônimo), publicou em 1847 uma obra, com apoio de Victor Schoelcher, na qual denuncia a cumplicidade entre o Ministério da Marinha e das Colônias e os senhores de escravos e como isso se refletia nas nominações de magistrados das colônias, que não cumpriam seu papel na “proteção dos escravos”. Ver JUST, Maximilien. Les magistrats des colonies depuis l’ordonnance du 18 juillet 1841. Publié par V. Schoelcher. Paris: Pagnerre, 1847 (manioc.org). Seu texto é comentado em SCHMIDT, op cit (2000), p. 190. 114 SAVAGE, op cit (2006), pp. 35-53. 115 Nelly Schmidt também sugere que os processos e condenações exemplares, que levaram ao exílio livres de cor e libertos envolvidos em revoltas e complôs nas Colônias provocaram uma reorganização dos grupos subalternos envolvidos, que levaram o governo metropolitano a dar respostas jurídicas à questão da política colonial. Veja SCHMIDT, op cit (2000), pp. 248-250. 251 agência e percepção das pessoas escravizadas e libertas, e ainda, ao fracasso dos esforços escravistas em tentar excluí-las como sujeitos atuantes politicamente. Nesse sentido, segundo Savage, a centralização metropolitana do sistema legislativo colonial curiosamente reforçou a resistência dos escravos nas Antilhas francesas116. Diria que, sobretudo, a centralização da legislação que transformou as formas de acesso à liberdade. Conil, delegado dos colonos brancos da ilha de Bourbon, referindo-se aos projetos de leis de emancipação gradual, reconhece que a população escrava compreendia com um “instinto admirável” as “simpatias manifestadas” em relação à ela, assim como a força das palavras “alforria” e “liberdade”. Ainda que sua intenção fosse ressaltar as consequências perigosas que aquelas “hostilidades contra os senhores” (legislação sobre as alforrias) poderiam causar:

As palavras alforria, liberdade, não são jogadas em vão no meio de uma população escrava, que compreende com admirável instinto que as simpatias manifestadas por ela são também testemunhos de hostilidades contra seus senhores, e que, portanto, conta antecipadamente com a impunidade sobre suas desordem, porque ela [a população escrava] apenas coloca em prática as doutrinas que lhe são pregadas, com tão lamentável obstinação.117

Ainda que Stella Pâme ressalte a luta contínua de Bissette pelos direitos civis e políticos dos livres de cor das colônias francesas118, ele e os outros mandatários em Paris também atuaram no sentido de pressionar por melhores condições para as pessoas escravizadas das colônias. Nesse sentido, diria mesmo, empenharam-se a garantir mais recursos para que, de alguma forma, os próprios escravos pudessem se defender do sistema escravista ou conquistar suas liberdades. Na mesma época que as câmaras discutiam o projeto de lei acerca do regime legislativo das colônias, quando as questões sobre as concessões de alforria e a regularização da situação dos escravos patrocinados pareciam minimamente encaminhadas por lei, Bissette, Fabien e Richard entregaram uma petição à câmara dos deputados em Paris, em dezembro de 1832. Neste documento, os autores afirmavam que o “bem-estar de todas as classes, a harmonia, a boa inteligência entre elas é um problema a ser resolvido” e “um dos meios para se atingir este fim é a melhoria da sorte dos escravos”119.

116 SAVAGE, op cit (2006), p. 49. 117 CONIL (Délégué de l’île Bourbon). Observations sur la proposition de M. de Passy relative à l’affranchissement des esclaves qui naitront a l’avenir aux Colonies Françaises. Paris: Imprimerie de Guiraudet et Ch. Jouaust, 1838, p. 22 (BNF – Gallica). 118 PÂME, op cit, p. 149. 119 BISSETTE, Cyrille; FABIEN, Louis; RICHARD, Mondésir. Pétition a la Chambre des Députés, relative a l’amélioration du sort des esclaves aux colonies, 5 décembre 1832. Paris: Imprimerie Dupont et Laguionie, 252

Para isso, as principais medidas que eles sugeriam aos deputados, “como as primeiras bases de um melhor regime para os escravos”, seriam: 1. o direito dos cativos apresentarem apelação em matéria criminal — ponto que Bissette, Fabien e Gatine já haviam demonstrado a importância e viabilidade em 1831, e cujos argumentos seriam repetidos pelos mandatários nesta petição de 1832 —; 2. o direito de comprarem suas alforrias por meio de um valor fixado por lei, sendo o senhor obrigado a alforriar o escravo que pudesse pagar por sua liberdade (seria o “resgate forçado”); 3. a supressão do uso do chicote e do encarceramento na prisão disciplinar a pedido dos senhores, como forma de punição por mal comportamento; 4. a inviolabilidade do direito à liberdade daqueles escravos que deveriam ser alforriados quando tocassem o solo metropolitano; 5. a abolição da indenização aos senhores por cativos executados devido a decisões judiciárias; 6. o direito dos escravos herdarem qualquer bem legado a ele. É interessante destacar que várias dessas demandas enunciadas pelos mandatários dos livres de cor, feitas ainda em dezembro de 1832, entrariam na agenda de debates políticos e legislativos, que provocariam mudanças no sistema escravista francês, entre a segunda metade da década de 1830 até os últimos anos de escravidão na década de 1840. Não pretendemos afirmar, ou talvez não seja possível provar, que foram simplesmente estas reivindicações que impulsionaram tais ações antiescravistas e abolicionistas na França, e mesmo decisões legislativas, durante toda a Monarquia de Julho. No entanto, é curioso, e não podemos deixar de ressaltar, que foram eles que primeiro argumentaram, de forma incisiva e pragmática, sobre aqueles “direitos” aos escravos das colônias francesas. O historiador Léo Elisabeth também sugere que as medidas tomadas pelos governadores da Martinica e pelas Câmaras na França, para melhorar a situação dos escravos e prepará-los para a liberdade durante as últimas duas décadas de escravidão, foram incentivadas pelas ações dos livres de cor antilhanos que viviam em seu exílio na metrópole. De acordo com Elisabeth, Bissette e seus camaradas seriam acusados de “moderação excessiva” num momento posterior. Contudo, suas propostas teriam desencadeado reações consideráveis nas colônias do Caribe e, na época, mesmo o abolicionista Victor Schoelcher as considerava muito ambiciosas120. O direito ao resgate da alforria e ao pecúlio dos escravos seria proposto em projetos legislativos de deputados abolicionistas entre 1838-1839, mas definido apenas na lei

1832, p. 2 (BNF – Gallica). 120 ELISABETH, Léo, “L’Abolition de l’esclavage à la Martinique”, in Annales des Antilles, Mémoires de la Société d’histoire de la Martinique, n. 5, Forte-de-France, 1983, pp. 6-7. 253 de 18 de julho de 1845, conhecida como Lei Mackau. Schoelcher também proporia esta medida em sua obra de 1833, fazendo referência breve à demanda dos homens de cor, mas de forma crítica, porque eles propunham a fixação de um valor legal que deveria ser aceito pelo senhor e pago pelo escravo que desejasse comprar sua alforria121, o que o abolicionista francês achava injusto122. Sobre a possibilidade do escravo herdar qualquer bem legado por seu senhor123, o Código Negro, pelo artigo 28, proibia que as pessoas escravizadas pudessem ter qualquer propriedade ou receber uma herança124. A decisão colonial de novembro de 1805, que promulgou o Código de Napoleão na Martinica, conservava as leis que regulavam a condição dos cativos, o estatuto dos libertos e seus descendentes, e a “linha de demarcação que sempre existiu entre a classe branca e as duas outras”. Dessa forma, “os direitos dos filhos naturais na sucessão de seus pais e mães” somente seriam executados na colônias “de brancos para brancos e de libertos ou descendentes de libertos, entre eles”125. A lei de 11 de junho de 1839, que definiu mais regras sobre a concessão de alforrias, consideraria o escravo capaz de ser legatário do senhor, e neste caso ele seria considerado “livre de direito”126. Contudo, a prerrogativa de se tornarem proprietários e legatários seria definida, de fato, apenas pela mesma Lei Mackau de 1845. O quarto artigo dessa legislação autorizava que “pessoas não livres” poderiam ter propriedades mobiliárias, exceto barcos e armas, estavam aptas a receber heranças de bens mobiliários ou imobiliários de pessoas livres ou não, poderiam adquirir bens imóveis por compra ou troca. No entanto, enquanto proprietários, teriam somente os direitos

121 BISSETTE, FABIEN & RICHARD, op cit (1832), p. 5. 122 “Les délégués des hommes de couleur demandent que l’on fixe une somme légale pour le valeur du nègre qui voudrait se racheter. Cela est injuste!”. SCHOELCHER, Victor. De l'esclavage des Noirs, et de la législation coloniale. Paris: Paulin Librarie, 1833, pp. 110-111 (BNF – Gallica). 123 BISSETTE, FABIEN & RICHARD, op cit (1832), p. 9. 124 “Déclarons les esclaves ne pourvoir rien avoir qui ne soit à leurs maîtres, et tout ce qui leur vient par industrie ou par la libéralité d’autres personnes ou autrement, à quelque titre que ce soit, être acquis, en pleine propriété à leurs maîtres, sans que les enfants des esclaves, leurs pères et mères, leurs parentes et tous autres, y puissent rien prétendre par successions, dispositions entre-vifs ou à cause de mort, lesquelles dispositions nous déclarons nulles, ensemble toutes les promesses et obligations qu’ils auraient faites, comme étant faites par gens incapables de disposer et contracter de leur chef”, Durand-Molard, Code de la Martinique, tomo 1, pp. 40-55. 125 Arrêté Colonial, concernant la promulgation du Code civil, à la Martinique. Du 16 brumaire an XIV (7 novembre 1805), DURANT-MOLARD, Code de la Martinique, vol 5, p. 75. 126 “Ordonnance royale du 11 juin 1839 sur les affranchissements”, art. 1o.: “Sont affranchis de droit, dans les colonies de la Martinique, de la Guadeloupe et dépendances, de la Guyane Française et de l'île Bourbon (…) 5o. L'esclave qui aura été fait légataire universel par son maître, ou nommé soit exécuteur testamentaire, soit tuteur de ses enfants ; in BOM, 1839, pp. 288-294. 254 de “menores emancipados” (de acordo com o Código Civil), e no caso do escravo sem testamento ou herdeiros, seus bens pertenceriam ao seu senhor127. Quanto à inviolabilidade do direito à liberdade para aqueles escravos que deveriam ser alforriados quando tocassem o solo metropolitano, Bissette, Fabien e Richard ressaltaram em sua petição que este era um “antigo privilégio da terra da França”. Ainda que fosse conhecido nas colônias, este princípio não era respeitado pelos proprietários que levavam seus cativos à metrópole128. Essa questão perpassou as colônias e a França metropolitana desde o século XVII. Como demonstra Sue Peabody, com a ampliação do colonialismo e do escravismo francês, mais senhores passaram a viajar das possessões coloniais para a metrópole com seus escravos domésticos no final do século XVII. Por conta disso, foi requisitado, então, ao rei Louis XIV, que se estabelecesse uma política em relação às pessoas escravizadas que chegavam à costa francesa na Europa. Num primeiro momento, o monarca enfatizou por meio de uma ordenação real de 1696 o “princípio da liberdade”, que aparentemente remonta ao século XIV, determinando que todo escravo que pisasse na metrópole francesa seria considerado “livre”. Os formuladores da política francesa reconheciam que a escravidão era um “mal necessário”, que poderia ser aceito e mesmo encorajado nas colônias, onde era vista como uma solução inevitável para o problema da mão de obra e justificada pelo imperativo missionário cristão, questões concretizadas no Code Noir (1685), mas não um problema que deveria existir na França metropolitana129.

127 “ Loi du 18 juillet 1845, relative au régime des Esclaves dans les colonies françaises ”, art. 4.: “ Les personnes non libres seront propriétaires des choses mobilières qu'elles se trouveront posséder à titre légitime, à l'époque de la promulgation de la présente loi, ainsi que de celles qu'elles acquerront à l'avenir, à la charge par elles de justifier, si elles en sont requises, de la légitimité de l'origine de ces objets, sommes ou valeurs. La disposition qui précède ne s’applique ni aux bateaux ni aux armes: ces objets ne pourront jamais être possédés par des personnes non libres. Les esclaves seront habiles à recueillir toutes successions mobilières ou immobilières de toutes personnes libres ou non libres. Ils pourront également acquérir des immeubles par voie d'achat ou d'échange, disposer et recevoir par testament ou par acte entre vifs. En cas de décès de l'esclave, sans testament ni héritiers, enfant naturel ni conjoint survivant, as succession appartiendra à son maître. Dans tous les cas, l'esclave ne pourra exercer sur les objets à lui appartenant, que les droits attribués au mineur émancipé par les art. 481, 482, 484 du code civil. Le maître sera de droit le curateur de son esclave, à moins que le juge royal ne croie nécessaire de lui en nommer un autre. Dans le cas où des biens viendraient à échoir à des esclaves mineurs, par succession ou donation, l'administration desdits biens appartiendra au maître, à moins qu'il ne juge convenable de provoquer, de la part du juge royal, la nomination d'un autre administrateur. Toutefois, le juge royal pourra toujours, s'il le croit nécessaire, nommer un autre administrateur. Une ordonnance royale réglera le mode de conservation et d'emploi des meubles et valeurs mobilières appartenant aux esclaves mineurs”. BOM, 1845, pp. 385-393. 128 BISSETTE, FABIEN & RICHARD, op cit (1832), p. 7. 129 PEABODY, Sue. “There are no slaves in France”. The political culture of race and slavery in the Ancien Régime. New York: Oxford University Press, 1996, pp. 6-12. 255

No entanto, um caso ocorrido na Martinica em 1704 trouxe à tona a questão sobre o estatuto dos ex-escravos que teriam viajado à França com seus senhores e retornado à colônia. O problema central naquele momento era que o édito de 1696 considerava o escravo que pisasse no solo francês metropolitano como “livre de nascimento” (libre) e não como “liberto” (affranchi). O caso que levantou esta polêmica foi do ex-escravo Louis, que tinha vivido na França durante quatorze anos com seu senhor e, retornando à Martinica, requeria por meio de uma petição o reconhecimento de sua liberdade “pelo privilégio” concedido pelo Rei da França em fevereiro de 1704. A administração da Martinica solicitou orientações ao Ministro da Marinha e das Colônias sobre aquele evento, mas, antes que obtivesse uma resposta, viu-se obrigada a reconhecer Louis como “livre”, porque seu ex-senhor havia tentado confiscar sua liberdade e vendê-lo para uma embarcação que seguiria para a Espanha. No entanto, devido a esta situação, a administração da colônia demandou que o governo francês reconhecesse os escravos que conquistassem suas liberdades na França, e que regressassem às colônias, como “libertos”. Assim, seriam alimentados e receberiam uma pequena quantia pelos trabalhos prestados aos seus ex-senhores (entre 10 e 12 libras por ano), servindo-os pelo resto de suas vidas. Dessa forma, evitaria o que o governo da Martinica na época definiu como uma “devassidão indecente” dos libertos, mas sem “perturbar os privilégios do reino”. Peabody não encontrou a reposta do governo francês para aquela solicitação da administração da ilha. Contudo, em 1707, o ministro afirmaria em carta aos administradores coloniais que o escravo que viajasse à França não poderia ser forçado a retornar às colônias como escravizado, mas, se pelo seu “livre arbítrio” escolhesse regressar “voluntariamente” para o “local da escravidão”, ele não poderia reivindicar a liberdade do solo francês130. Devido aos casos cada vez mais frequentes nos tribunais franceses, que não sabiam como lidar com as ambiguidades e equívocos acerca do estatuto dos escravos que viviam na França metropolitana, em outubro de 1716 foi promulgado um édito que autorizava os proprietários das colônias e os oficiais militares levarem temporariamente seus cativos para a metrópole. Porém, essa autorização seria válida se fosse para o escravo aprender um ofício ou receber instrução na fé católica, sob a condição dos senhores solicitarem uma permissão ao governador da colônia antes da partida para a Europa. Ao mesmo tempo, esta lei também formalizava a prerrogativa do escravo processar seus senhores nos tribunais para reivindicar sua liberdade na França (não nas colônias)131.

130 Idem, pp. 13-14. 131 PEABODY, op cit, pp. 16-22. 256

No entanto, uma declaração real de 1738 debilitaria mais ainda o “Princípio da Liberdade”, em um esforço para restringir a grande quantidade de negros que entravam na França. Esta determinação definia que o indivíduo escravizado poderia viver na metrópole no máximo até três anos, e ainda, proibia que o proprietários alforriassem seus escravos na França. Qualquer violação das estipulações feitas por essa legislação faria com que, ao invés de libertar o cativo, este seria confiscado pelo reino e retornado à colônia como escravo do domínio132. Essa sequência de ordenações tornou ambíguo o “princípio da liberdade” ao longo do século XVIII, período durante o qual a França estava se tornando, de um lado, fortemente enredada pelo sistema atlântico de escravidão e, por outro lado, desenvolvendo um novo discurso político radical baseado nas noções de liberdade, igualdade e cidadania. De acordo com Peabody, o uso de “sanções raciais” para preservar o compromisso da França com o “princípio abstrato de liberdade” pode parecer contraditório e, até mesmo, hipócrita na época atual. Porém, “nossa reação anacrônica” confunde os princípios de liberdade e igualdade social que estavam apenas sendo concebidos no final do século XVIII133. Provavelmente, em parte por isso, e por todos os processos disparados após as revoluções nas colônias e na metrópole entre o final do século XVIII e o início do XIX, somando à esteira destes eventos a revolução de 1830, em 1836 foi promulgada uma ordenação que retomou o princípio do solo livre na França continental em relação aos escravos das colônias que lá pisavam134, sem possíveis brechas que os senhores pudessem usar para manter pessoas escravizadas na metrópole. E os mandatários dos livres de cor teriam reivindicado a retomada e o repeito a este princípio anos antes. A partir dessa lei, todo habitante que quisesse levar um escravo à França deveria alforriá-lo antes, conforme as regulamentações daquela ordenação de 12 de julho de 1832. A partir da ordenação de 1836, todo escravo levado ou enviado à França, sem que esta condição tivesse sido cumprida, poderia se tornar “livre de pleno direito”, a contar do desembarque na metrópole, recebendo, consequentemente, uma carta de alforria. Estas disposições seriam aplicáveis aos antigos escravos dos dois sexos ainda não legalmente alforriados e que se encontravam naquele momento no território continental francês.

132 Idem, pp. 23-40. 133 Idem, p. 8. 134 “Ordonnance du roi, au sujet de l'affranchissement des esclaves conduits en France”, Paris, 29 avril 1836. BOM, 1836, pp. 129-130; promulgada na Martinica em 22 de junho de 1836. 257

Poucas alforrias foram concedidas na Martinica por conta desta lei, mas uma delas se destacou. A liberdade conquistada por Calixte Hauzan, escravo doméstico de Pierre Dessalles, célebre senhor de escravos da Martinica, por ser um grande proprietário de terras, dono de engenho de açúcar e de fazenda de café, mas principalmente porque suas cartas e diários foram reunidos e publicados. Em seus registros, Pierre Dessalles comentou sobre o “negro Calixte” em 16 de março de 1840, dois meses antes da decisão do governo que alforriaria o escravo. Calixte havia servido seu filho, Adrien Dessalles, enquanto este estudava na França. Tomando conhecimento sobre a lei de abril de 1836, procurou seu senhor, Dessalles pai, solicitando um carta de liberdade. Porém, Dessalles narra que lhe recusou tal pedido, dando a entender que reconhecia uma certa insolência na atitude de Calixte, o qual havia se comportado bem na França e, de volta à Martinica, acreditava que aquela ordenação real “se aplicaria a ele”:

O negro Calixte, antigo criado de meu filho, veio me pedir um certificado de liberdade, mas eu me recusei a dar isso a ele. Este jovem negro conduziu-se bem na França. Em seu retorno à colônia, ele pensou que um decreto real que acordava a liberdade a todos os escravos que tenham tocado o solo francês se aplicaria a ele; eu mesmo acreditei nisso também. Mas quando Calixte partiu para a França, tal assunto era regido por uma lei diferente; a menos que o decreto real tenha um efeito retroativo, Calixte nunca deixou de ser escravo. Ele enviou solicitação ao governador, que recusou lhe conceder seu título de liberdade.135

No entanto, contrariando a vontade senhorial de Pierre Dessalles, Calixte Hauzan foi alforriado por uma decisão do governo que constava apenas sua alforria, “Arrêté portant affranchissement du nommé Calixte (Hauzan)”, de 21 de maio de 1840. De acordo com o texto de outorga, ele teria recebido sua alforria oficial, tornando-se “livre de pleno direito” em virtude do artigo II daquela ordenação real de 29 de abril de 1836, ou seja, pelo fato de ter sido levado ou enviado à França por seu senhor. A história de Calixte Hauzan se revela mais interessante ainda porque apenas um ano depois de conquistar sua alforria, ele libertou a escrava Caroline, “negra africana”, de 25 anos, que passaria a se chamar Rose Boëcan após a liberdade. Não foi possível descobrir em qual momento Calixte obteve a propriedade sobre Caroline e qual era a relação entre eles. Porém, é muito interessante notar que Calixte tinha a profissão de “doméstico” quando recebeu sua alforria e, depois de liberto, quando alforriou Rose Boëcan, sua profissão foi indicada como “vivrier” no município de Sainte-Marie. Isso

135 Diário de Dessalles, 16/03/1840, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 139. 258 significa que cultivava víveres, mas não temos certeza se tinha a “propriedade” da terra, pois nestes casos a profissão do senhor seria indicada como “habitant vivrier” (dono de “habitation vivrier”, de um sítio de produção de gêneros alimentícios) ou “habitant propriétaire” (proprietário de habitation). Suponho que o rapaz alforriou Rose Boëcan para que pudessem se casar e juntos conseguirem tocar a produção de víveres. Uma pesquisa nos registros notariais ou do État-Civil da vila da Sainte-Marie talvez fornecesse elementos para que este fragmento de história tivesse continuidade. Contudo, nas colônias, aparentemente o governo e o judiciário continuaram a resistir a estas leis que reconheciam os “direitos” dos escravos à liberdade, agindo de forma a manter o domínio senhorial, e mesmo na metrópole, a Direção das Colônias, no Ministério da Marinha, parecia dificultar a entrega de títulos de liberdade às pessoas escravizadas que tocavam o solo francês europeu. Em 1845, Bissette escreveria várias cartas ao Ministro da Marinha e das Colônias e aos deputados Lamartine e Marquês de Larochefoucald-Liancour, empenhando-se em suas críticas sobre a situação vivida por escravos libertos na França. Desde 1843, Bissette reclamava os títulos de liberdade regulares de dois libertos de Guadalupe, Phillipe Lambert e Emilie Sion. Aparentemente ainda habitavam na França, mas, apesar da insistência de Bissette como seu mandatário, não haviam recebido ainda suas cartas de alforria. De acordo com Bissette, Phillipe Lambert havia inclusive se deslocado ao escritório da Direção das Colônias e recebido um “papel” que diziam ser sua carta de alforria, mas, sem saber ler, ele não pode protestar que recebia um documento sem valor136. Seria interessante, seguindo o caminho traçado por Sue Peabody sobre a questão do “solo livre” no século XVIII, uma pesquisa que analisasse as experiências vividas por escravos e libertos na França no século XIX, depois da promulgação daquela lei de 1836. Ainda sobre as demandas apresentadas pela petição de Bissette, Fabien e Richard em 1832, eles solicitavam também a abolição da indenização paga aos senhores por escravos executados devido a decisões judiciárias. Esta instituição tinha sua origem no Código Negro (art. 40)137 e definia que a execução de um escravizado condenado à morte por um processo

136 “A M. A. de Lamartine, député de Saone-et-Loire, 25 janvier 1845”; “Requête a M. le Ministre de la Marine et des Colonies, Paris, 9 janvier 1845”; “A. M. le Marquis de Larochefoucald-Liancourt, député du Cher”; in BISSETTE, Cyrile. Lettres politiques sur les colonies, sur l’esclavage et sur les question qui s’y rattachent. Avant-propos de Adolphe Gatine. Paris: Ebrard Libraire, 1845, pp. 9-12; pp. 13-16; pp. 19-34. 137 “L’esclave puni de mort sur la dénonciation de son maître, non complice du crime pour lequel il aura été condamné, sera estimé devant l’exécution, par deux des principaux habitants de l’île, qui seront nommés d’office, par le juge, et le prix de l’estimation sera payé au maître, pour à quoi satisfaire, il sera imposé par l’Intendant, sur chaque tête des nègres payants droits, la somme portée par l’estimation, laquelle sera répartie sur chacun des nègres, et levée par le Fermier du domaine royal, pour éviter les frais”, in DURAND- 259 criminal poderia ser considerada uma expropriação por utilidade pública e, assim seu senhor deveria ser ressarcido pela perda. Os mandatários dos homens de cor argumentavam que, no entanto, quando se tirava, pelos mesmos motivos, um pai de família de seus filhos de baixa idade, um filho de seus pais velhos, que era seu suporte, causava-lhes sem dúvida um problema bem mais desastroso que a perda de um escravo por seu senhor, sem falar do prejuízo material para as próprias famílias. No entanto, o estado não indenizava os órfãos sem apoio, ou a viúva sem suporte. Além dessas considerações, de acordo com os mandatários, a indenização poderia induzir os senhores a abrirem mão de sua propriedade e deixar que seus cativos fossem executados. Nesse sentido, o interesse do senhor deveria garantir que o escravo não fosse levado às últimas consequências da lei penal, como reparação de pequenos delitos, pois as penas eram, em geral, arbitrárias e excessivas em relação às pessoas escravizadas138. Schoelcher abordaria esta questão em sua proposta de legislação em 1833, de forma superficial e com argumentos mais moderados, mas sem fazer referência à proposição dos mandatários dos livres de cor139. Contudo, esta indenização não seria abolida até o final do período escravista. Quanto à supressão do encarceramento na “chaîne de police” a pedido dos senhores e do uso do chicote, estas formas de punição do “regime disciplinar dos escravos” seriam regulamentados apenas em 1842 e em 1846, ainda que nesta época o governo já estivesse interferindo mais na organização do trabalho escravo nas fazendas, através da patronagem estatal instituída pela ordenação de 5 de janeiro de 1840140. Os mandatários dos livres de cor defendiam que o suplício do chicote deveria ser abolido para sempre como “imoral e bárbaro”, fosse aquele realizado nas fazendas, fosse aquele executado em praça pública pelos carrascos, a pedido dos senhores, muitas vezes apenas pela “mais leve contravenção”, como por exemplo uma “falta de respeito” em relação a um indivíduo de uma das classes livres. Os peticionários não excluem os proprietários livres de cor dessa conduta.

MOLARD, Code de la Martinique, t. 1, p. 50. 138 BISSETTE, FABIEN & RICHARD, op cit (1832), p. 8. 139 “L”indemnité pour les esclaves justiciés serait abolie. Cette indemnité est le plus étrange privilège que jamais caste privilégiée ait obtenu. Quand vous avez un animal domestique enragé, la société le tue, sans vous donner de prime. Les esclaves ne sont pour leurs maîtres que de animaux domestiques ”. SCHOELCHER, op cit (1833), p. 107. 140 Esta ordenação instituía que funcionários do governo estavam autorizados a visitarem as fazendas afim de assegurar a execução dos regulamentos relativos aos escravos e de reportarem suas investigações aos governadores e ao ministro da marinha e das colônias sobre as condições dos cuidados com os escravos (alimentação, vestuário e cuidados médicos), do regime disciplinar (castigos aplicados aos escravos), das horas de trabalho e repouso, da instrução religiosa. “Ordennace du Roi sur l’instruction morale et religieuse et pour le patronage des esclaves, 5 janvier 1840”, in BOM, 1840, pp. 106-108. 260

Ademais, criticavam duramente a justificativa de que o chicote era necessário para submeter os escravos ao trabalho, como se as pessoas escravizadas fossem “burros de carga” ou como se a “preguiça” devesse ser punida igualmente a um crime. É inevitável observar a diferença de argumentação entre os antiescravistas negros na metrópole e os abolicionistas franceses. Schoelcher afirmaria em 1833, quando ainda defendia um processo de emancipação gradual, que não era possível abolir o chicote enquanto houvesse escravidão. Dessa forma, forçados a tolerar por mais um tempo o sistema escravista, argumentou que era preciso aturar também a punição do chicote, mesmo que ela fosse revoltante e que lhe causasse tanta indignação, pois, se tirasse este meio do proprietário disciplinar seus trabalhadores, ele não poderia mais fazer com que seus escravos trabalhassem141. Em sua obra de 1842, o abolicionista argumentaria de outra forma ao defender a abolição imediata da escravidão. De acordo com Schoelcher, o chicote era “parte integrante do regime colonial”, sua “alma” e “agente principal”. Assim, a questão não era mais discutir se aquele instrumento era um meio de coerção útil em relação aos negros, pois, era exatamente porque eles eram flagelados que não deveria mais existir a escravidão. Também trata de alguns casos de senhores da Martinica e de Guadalupe, com os quais havia conversado durante sua viagem às Antilhas, que diziam não utilizar mais o chicote, ou que o evitavam. Se de fato estes proprietários mudaram os meios de disciplinar os escravos, seria interessante entender porque estes senhores passaram a agir dessa forma na década de 1840. Segundo Schoelcher, seria pela questão da “eficácia”, porque os escravos trabalhariam melhor em algumas dessas fazendas sem o uso da chibata, de acordo com os senhores. Contudo, Schoelcher não comenta nenhum caso de revolta ou resistência dos trabalhadores escravizados quanto a esta ou outras formas de punição142. Pierre Dessalles, por exemplo, em várias cartas da década de 1820, narra diversas situações nas quais os escravos reagiram aos castigos abusivos do feitor da fazenda. O colono martinicano teria insistido durante três anos com um feitor metropolitano, Chignac, que agia de “maneira despótica” em relação aos escravos, de acordo com Dessalles, quem se via obrigado em vários momentos a “baixar seu tom”143. Contudo, as atitudes de Chignac

141 SCHOELCHER, op cit (1833), capítulo XVI – Des peines corporalles. On ne peut les abolir immédiatement sans danger, pp. 123-131. 142 SCHOELCHER, op cit (1842), 83-98. 143 Carta de Pierre Dessalles, 30/12/1822, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 51. 261 provocaram forte revolta entre os escravos, que constantemente “atormentavam” Dessalles, conspirando contra o feitor144. Depois de quase três anos com Chignac gerenciando a habitation sucrière, alguns animais da fazenda, de propriedade do feitor e do senhor, começaram a morrer. Dessalles acreditava que tais perdas tinham sido provocadas por envenenamento realizado por alguns escravos como resposta à gerência violenta de Chignac. Os escravos do engenho de açúcar vieram uma noite procurar Dessalles, que ficou assombrado de ver todos os negros do atelier acorrentados. Eles pediram de joelhos que o senhor os libertassem do castigo e que não haveria mais perdas na fazenda, que a “devastação do veneno” pararia. Com esta ação dos escravos, Dessalles admitiu, então, que a partida de Chignac era inevitável, porque todas as “desgraças” que vinha sofrendo na propriedade eram consequência do “ódio dos escravos” pelo feitor. Afirmava na carta a sua mãe que não queria se render à pressão feita por seus negros demitindo Chignac, que isso seria considerado um sinal de fraqueza, mas a situação estava insustentável145. Outras situações são relatadas por Dessalles em suas cartas e em seu diário sobre a atitude dos cativos em relação ao que entendiam como justo ou não dentro do domínio senhorial. Contudo, anos mais tarde, sob a Monarquia de Julho, a questão não seria mais apenas quais eram os limites observados pelos escravos na relação privada com seus senhores, mas o que passava a ser reconhecido como um direito. Em 1840, Dessalles relataria em seu diário que aquela ordenação sobre a patronagem estatal sobre os escravos estaria interferindo na atitude dos negros da fazenda. Em maio daquele ano afirmaria que “os negros sabem exatamente o que está acontecendo; desde a chegada da ordenação real, eu acho que os meus estão menos dóceis e mais difíceis de lidar”146. Em julho, novamente relataria que “desde a ordenação de cinco de janeiro [de 1840], os negros se tornaram muito difíceis de lidar”147. Nesse sentido, talvez a redução do uso do chicote na década de 1840 não fosse uma mudança de atitude que teria partido unicamente da decisão de alguns senhores sobre o gerenciamento das fazendas, como sugere Schoelcher. Os escravos e escravas estavam atentos às mudanças políticas e jurídicas, e encontravam seus meios de fazer com que os senhores reconhecessem seus “direitos” adquiridos.

144 Carta de Pierre Dessalles, 26/07/1823, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 57. 145 Carta de Pierre Dessalles, 06/12/1824, in FORSTER & FORSTER, op cit, pp. 72-73. 146 Diário de Pierre Dessalles, 15/05/1840, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 141. 147 Diário de Pierre Dessalles, 04/07/1840, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 143. 262

Sobre a chaîne de police [correntes de polícia], Bissette, Fabien e Richard afirmariam em 1832, que não se poderia permitir que o escravo fosse submetido a esta “vraie galère”, aprisionado mesmo que momentaneamente a pedido de seu senhor, por qualquer motivo, às vezes apenas porque o senhor estava descontente com seu escravo148. A chaîne de police era uma forma de emprisionamento feito fora da fazenda, em uma prisão onde cativos eram acorrentados e colocados em “trabalhos forçados”. Em 1842, foi promulgada uma ordenação real sobre o encarceramento de escravos em prisões disciplinares das colônias francesas, que mantinha essa forma de punição, mas regulamentava seus limites. Os indivíduos escravizados poderiam ficar detidos no máximo três meses nos “atelier de discipline” [oficinas de disciplina] a pedido dos senhores, a não ser em casos que envolvessem “escravos reconhecidos como perigosos”, denunciados por seus proprietários ao governador da colônia, e nestes casos a administração colonial decidiria a duração da pena de acordo com o crime denunciado. Nas fazendas, os senhores não poderiam aprisionar seus escravos mais que quinze dias consecutivos nos espaços destinados a este fim. No entanto, apesar de manter estas formas de castigo e punição do regime disciplinar, a lei determinava que os proprietários que infringissem este regulamento poderiam ser punidos com uma multa de 25 a 500 francos, e ainda poderiam ser presos até dez dias, dependendo da infração cometida pelo senhor. Se houvesse reincidência da atitude do proprietário, excedendo os limites do regime disciplinar regulamentado, a multa poderia chegar a mil francos149. Esta lei seria promulgada na Martinica apenas no começo de 1842, quando seria publicada ainda, nos periódicos oficiais da colônia, uma circular ministerial sobre a execução da ordenação. Ao tocar no domínio senhorial, na forma os escravos eram “disciplinados” no espaço privado, o Ministro da Marinha e das Colônias provavelmente se sentiu obrigado a explicar e detalhar os motivos da promulgação daquela ordenação, cuja matéria era tema de várias críticas na metrópole por conta de denúncias e processos realizados sobre os excessos cometidos pelos senhores:

Como sabem, em várias ocasiões, e particularmente, devido aos processos recentes que chamaram a atenção da Câmara dos Deputados acerca do regime das habitations coloniais, foram expressas opiniões muito divergentes, tanto nas colônias quanto na metrópole, sobre o emprisionamento dos escravos por ordem imediata dos proprietários. Nas colônias, aparentemente se acreditava que esta

148 BISSETTE, FABIEN & RICHARD, op cit (1832), p. 6. 149 “Ordonnance du Roi relative à l’emprisonnement des Esclaves dans les Colonies françaises, 16 septembre 1841”, JOM, 08/12/1841, p. 1 (eurescl.org). 263

faculdade poderia ser exercida de uma maneira que, de certo modo, fosse ilimitada, e como consequência do direito de posse; aqui, ao contrário, argumentou-se que nenhuma disposição da legislação em vigor sobre a escravidão atribuía explicitamente aos senhores o poder de prender negros como medida disciplinar, e, além disso, demandou-se ou a supressão deste poder, ou sua limitação ao tempo necessário para que os negros pudessem ser levados à justiça, em todos os casos nos quais eles desconsiderem a autoridade de seus senhores.150

Na lei de 1846151, sete artigos regulamentariam as formas e os limites de “disciplina” que os senhores poderiam aplicar sobre seus cativos. Os proprietários tinham o “direito de disciplinar e policiar seus escravos” nos seguintes casos: quando se recusavam a trabalhar ou se ausentavam do trabalho; por desobediência às ordens do proprietário, do gerente, do feitor ou do capataz, quando fossem ordens dadas dentro dos limites do poder atribuído aos senhores, relativas à manutenção da ordem e para o ensino religioso ou elementar; em caso de fuga, quando não excedesse oito dias consecutivos, e constatado por uma declaração entregue pelo senhor à autoridade local; por rixas e vias de fato entre os escravos; bebedeira e “ações contrárias à moral e aos costumes”; por danos e roubos cometidos na fazenda. Quaisquer outros delitos ou contravenções cometidos pelos escravos deveriam ser julgados pelos tribunais das colônias. O uso do chicote seria preservado, mas poderia ser aplicado somente nos homens, apenas uma vez por semana, e não deveria em caso algum ultrapassar quinze golpes. O instrumento de flagelação (a chibata ou o chicote) não poderia ser carregado pelo capataz nem por outros empregados da fazenda nos locais de trabalho, a aplicação desse tipo de punição poderia ser feita apenas depois de seis horas da falta cometida pelo escravo e deveria ser aplicada na presença dos homens do atelier reunidos. O artigo seis ainda garantia que os escravos poderiam apresentar queixas das punições que excedessem as regras determinadas. De fato, entre 1846 e 1847, vários processos foram abertos contra proprietários, devido aos castigos excessivos aos quais submetiam seus escravos152. Schoelcher, em sua obra de 1847, relata várias dessas ações judiciais. Ressalta, contudo, alguns nos quais os senhores haviam sido até mesmo absolvidos, apesar das denúncias de vários escravos, além dos processos em que os proprietários haviam

150 “Circulaire ministérielle sur l'éxecution de l'ordonnance relative à l'emprisonnement des esclaves, Paris, 12 novembre 1841”, BOM, 1842, p. 169. 151 “Ordonnance du Roi du 4 juin 1846, concernant le régime disciplinaire des esclaves”, BOM, 1846, pp. 349- 353. 152 Alguns processos envolvendo senhores de escravos da Martinica, ganharam inclusive espaço na imprensa e podem ser observados em ANOM – FM – Série Géographique – Martinique, carton 33, dossiers 288 (Esclavage: sévices contre esclaves), 281 (Affaire Jaham de Haumont), 281 (Sévices contre esclaves), 286 (Esclavage – Sévices – Affaires Dispagne et De Jaham). 264 cometido terríveis brutalidades, mas eram condenados a multas irrisórias153. Schoelcher argumenta que “ou a lei é insuficiente, ruim, incapaz de atingir seu fim, ou os magistrados que a aplicam desta maneira são culpados de prevaricação”154. Ademais, é interessante notar que Schoelcher compara o proprietário de fábrica na França e sua relação com o operário e a relação entre o senhor e o escravo, e afirma que não eram diferentes, ou seja, um não era mais (ou menos) cruel que o outro. A diferença fundamental seria que na França a lei não permitia que o fabricante pudesse aplicar castigos corporais contra os operários155. Ao final de sua petição, Bissette, Fabien e Richard afirmariam que “o monstruoso abuso da escravidão não pode permanecer sobre a terra como um fato eterno (...) essa longa injustiça social terá seu fim, precisamos providenciar a transição; precisamos de um novo regime escravista, que os prepare para a liberdade”156. Ainda pensavam a emancipação dos escravos por meio de uma abolição gradual, assim como outros abolicionistas da época. Em um artigo publicado no Journal de Débats, em 22 de outubro de 1832, eles defenderiam abertamente uma emancipação geral dos escravos, mas progressiva, “não súbita”157. Ainda assim, esta atitude pareceu extremamente subversiva aos senhores brancos das colônias, que procuraram, em 1833, assim como o governador Dupotet no final de 1831, conseguir o apoio dos homens de cor da Martinica, solicitando que se manifestassem contra a proposta de seus mandatários, exposta no periódico metropolitano. Porém, os mais influentes dessa classe recusaram o convite dos colonos brancos158. No entanto, a partir de 1834, Bissette passaria a defender a abolição geral e imediata159, e as pessoas livres de cor das colônias aparentemente estariam conectadas com esta posição. Em dezembro de 1836, Bissette publicou na Revue de Colonies, periódico do qual era editor e um dos fundadores160, uma petição enviada à câmara dos deputados, assinada

153 SCHOELCHER, Victor. Histoire de l’esclavage pensant les deux dernières années. Deuxième partie. Paris: Pagnerre, 1847, pp. 188-259 (BNF – Gallica). 154 Idem, p. 239. 155 Idem, p. 246. 156 BISSETTE, FABIEN & RICHARD, op cit (1832), p. 10. 157 SCHMIDT, op cit (2000), p. 251. 158 O governador da Martinica, general Dupotet, escreveria em 23 de fevereiro de 1833: “A la réception du Journal des Débats du 22 octobre (…) la classe blanche a été profondément indignée des doctrines prêchées par ces fauteurs de troubles, elle proposa franchement aux hommes de couleur de se réunir à elle pour protester (…) Cette proposition faite aux plus influents d’entre ceux qui résident au Fort-Royal et que l’on savait diriger l’esprit de leur classe fut repoussée (…)”, citado em ÉLISABETH, op cit (1983), p. 8. 159 SCHMIDT, op cit (2000), p. 257. 160 Bissette, Louis Fabien, Jean-Baptiste Volny e Mondésir Richard fundariam em Paris em 1834 a “Société des Hommes de Couleur”, que publicava a “Revue des Colonies. Recueil mensuel de la politique, de l’administration, de la justice, de l’instruction et des mœurs coloniales par une société d’hommes de couleur”. Demandaram desde os primeiros números a supressão imediata da escravidão nas colônias 265 por 191 afrodescendentes livres da Martinica. Neste documento, demandavam a emancipação geral e imediata dos escravos, que reestabelecesse “a igualdade entre todos os habitantes das colônias, negros, mulatos e brancos”, e afirmavam acreditar que a abolição deveria ter um caráter “legislativo e geral”. A proposta dos livres de cor martinicanos não era nada revolucionária, pois defendiam que a emancipação faria renascer pelo trabalho livre e assalariado a “segurança, a ordem e a tranquilidade”, assim como defendiam muitos outros abolicionistas franceses da época, os quais, no entanto, acreditavam que a abolição imediata era uma proposta muito radical:

Convertidos em soldados e cidadãos, os libertos estarão interessados em manter a ordem pública e defender o país onde nasceram. […] Assim, a emancipação dos escravos será um ato de humanidade, de justiça e de boa política; nós a invocamos com todos os nossos votos, e reprovamos antecipadamente todas as resoluções contrárias. Com ela [emancipação], será restaurada a segurança, a ordem e a tranquilidade; com ela, o trabalho livre e assalariado substituirá o trabalho forçado e humilhante, que desmoraliza tanto o senhor como o escravo; por ela serão formados laços de família incompatíveis com o estado de escravidão, seja qual for.161

De acordo com Bissette, esta petição respondia à “acusação banal” que a aristocracia colonial constantemente fazia a sua classe, afirmando que os homens livres de cor somente queriam “liberdade e reformas que atendessem aos seus interesses”162. Muitos livres de cor eram proprietários de escravos nas colônias francesas e, frenquentemente, foram vistos como o baluarte propício aos brancos contra a insurreição dos ateliers de escravos163. Ademais, os afrodescendentes livres e libertos eram a principal força das milícias e dos “caçadores de montanhas”, que perseguiam escravos revoltosos ou fugitivos, pois eram em maior número que os homens brancos nas colônias. Inclusive, como abordado no capítulo anterior, a participação durante longos períodos nestes corpos policiais foi utilizada, até 1831,

francesas. Prometiam em seu “Prospectus” defender a “grande questão da abolição da escravidão, pedra fundamental da liberdade”. SCHMIDT, op cit (2000), pp. 254-255. 161 “Pétition des hommes de couleur em faveur de l’abolition de l’esclavage”, assinada em Saint-Pierre (Martinica), em 24 de novembro de 1836. Revue des Colonies, dezembro de 1836, n. 6, p. 243-244 (BNF – Gallica). 162 Revue des Colonies, décembre 1836, no. 6, p. 243. 163 Léo Elisabeth coloca questões interessantes sobre o fato dos livres de cor e libertos possuírem escravos: “Comment réagissent ces mulâtres de la Martinique que des pamphléraires parfois stipendiés et même Schoelcher montrent du doigt en répétant qu’ils sont encore plus durs avec leurs esclaves que des blancs, et qu’ils feraient bien de commencer par affranchir leurs frères de race? N’y a-t-il pas là des affirmations faciles que permettent de passer sous silence le fait que beaucoup, même parmi les plus égoïstes, font déjà des efforts considérables pour racheter leurs parents et que de toute façon, la libération sans contrepartie de leurs vrais esclaves les ruinerait sans ébranler l’institution?”, ÉLISABETH, op cit (1983), p. 5-7. 266 para barganhar a alforria oficial de homens libertos irregulares, desde que tivessem uma boa conduta e se destacassem na repressão aos escravos. Mesmo Louis Fabien admite, em um texto de 1831, que sua classe era a “força da colônia contra a insurreição dos ateliers”, no entanto, estavam “saturados das injustiças e humilhações”164. Léo Elisabeth analisa as ações e atitudes das pessoas livres de cor da Martinica no século XIX para compreender a importância dessa classe no processo de abolição da escravidão nas colônias francesas. De acordo com Elisabeth, é preciso admitir que as atitudes dos afrodescendentes livres nas sociedades coloniais francesas resultavam de situações extremamente complexas. Bissette e seus camaradas, por exemplo, marcharam contra os escravos na revolta que ocorreu no município do Carbet em 1822, contudo, como questiona Elisabeth, eles poderiam fazer de outra forma? O historiador martinicano argumenta que talvez não tivessem que atuar nas milícias se fossem “proprietários sem profissão” e tivessem a epiderme mais clara, pois, quanto mais próximos do trabalho escravo e da pele negra, mais provavelmente seriam convocados para perseguir os cativos fugitivos165. Segundo Elisabeth, as lideranças dos livres de cor, mesmo os mais radicais, estavam até a revolução de 1830 preocupados primeiramente com a questão da igualdade civil e política. Porém, é preciso ver nisso apenas “uma prioridade, uma escolha política, e não uma marca de egoísmo ou de falta de consciência”166 em relação aos africanos e afrodescendentes escravizados. Afinal, antes de 1830, a questão da (des)igualdade civil era ainda um grande obstáculo a ser ultrapassado. Uma carta do governador Donzelot, de 1823, indica nesse sentido. Ordenando aos comissários comandantes que prendessem os envolvidos na distribuição do manifesto “De la situation des gens de couleur libres, aux Antilles Françaises”167 na Martinica, afirma que “os brancos nunca consentirão em ver a si mesmos como iguais aos homens, que, como a maioria dos mulatos e aqueles entre eles que fazem mais barulho, têm parentes próximos em nossas senzalas”.168 Depois da Revolução de Julho, e principalmente após a lei de 1833, que garantiu a igualdade de direitos civis e políticos, a questão da liberdade se tornaria a principal luta de livres de cor influentes na Martinica169. Uma carta do governador da colônia de 27 de julho de

164 FABIEN, Des colonies, avant et après la Révolution de juillet 1830, p. 12, in SCHMIDT, op cit (2000), p. 250. 165 ÉLISABETH, op cit (1983), p. 5. 166 ÉLISABETH, op cit (1983), p. 5. 167 Foi a distribuição deste panfleto em 1823, na Martinica, que deu início ao Affaire Bissette, levando vários livres de cor da Martinica a serem marcados com ferro quente e serem banidos da colônia. 168 ÉLISABETH, op cit (1983), p. 6. 169 Idem, pp. 8-19. 267

1836, na qual comenta sobre as petições do livres de cor da Martinica em apoio à abolição imediata, demonstra a vigilância que o governo colonial procurava submeter os afrodescendentes livres que se organizavam em torno da questão da liberdade dos escravos. Por outro lado, revela como as ações e manifestações favoráveis dessa classe à abolição da escravidão era efetiva, causando inquietude entre a administração e a elite colonial. De acordo com Léo Elisabeth, durante as décadas de 1830-40, tornou-se difícil aos livres de cor, mesmo quando eram proprietários de escravos, apoiarem abertamente o sistema escravista. O inverso se produziu entre os brancos das colônias, e as pressões desta classe se exerceram no sentido contrário, reprovando aqueles que se diziam favoráveis à emancipação. Segundo Léo Elisabeth, historicamente as ações dos livres de cor durante a Monarquia de Julho, tanto nas colônias como na metrópole, coloca-os na vanguarda do combate antiescravista. Comparativamente, as propostas da Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão (organizada em Paris) eram mais modestas, e mesmo o abolicionista Victor Schoelcher se pronunciaria pela abolição imediata da escravidão apenas em 1842170.

5.3 – ABOLIÇÃO GRADUAL DA ESCRAVIDÃO NAS COLÔNIAS FRANCESAS NOS TEMPOS DO SEGUNDO ESCRAVISMO

Até o final do século XVIII, época das revoluções, apenas São Domingos, Jamaica e Brasil produziam mais açúcar que a Martinica. Após este período de instabilidades, sobretudo a partir de 1815, a monocultura de cana de açúcar nesta colônia francesa ganhou proporções sem precedentes e a exploração do trabalho escravo foi intensificada, devido às transformações do mercado mundial171. Era uma época de grandes mudanças nos sistemas coloniais e escravistas da América e do Caribe172. Contudo, ao contrário do que afirma um colono citado anteriormente, não houve “tranquilidade” na ilha no período anterior à 1830. Tanto os escravos como os libertos realizaram ações e expressaram atitudes que

170 Idem, p. 19. 171 TOMICH, Dale. W. Slavery in the circuit of sugar. Martinique and the World Economy, 1830-1848. Baltimore e Londres: The Johns Hopkins University Press, 1990, pp. 76-91. 172 TOMICH, Dale W. “A ‘Segunda Escravidão’”, in TOMICH, Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: EDUSP, 2011, pp. 81-97. 268 demonstravam descontentamento, inquietude e revolta com o sistema colonial e escravista das colônias francesas. São Domingos – Haiti, que assombrou o imaginário senhorial, que era citada a todo instante nos textos dos escravistas, conseguiu que, mediante uma pesada indenização paga aos ex-senhores de terras e escravos, sua independência fosse reconhecida pela França em 1825, o que causou a indignação dos colonos brancos nas Antilhas. Pierre Dessalles, em carta a sua mãe em agosto de 1825, afirma que “as notícias sobre a independência de São Domingos foi devastadora para toda a população branca” das colônias173. Como afirma Savage, “o Haiti era um farol de liberdade para os escravos da colônia nesses anos antes do anúncio da emancipação nas colônias britânicas”174. Nesse sentido, depois da república negra haitiana, a abolição da escravidão nas colônias inglesas em meados da década de 1830 foi um dos golpes que mais atingiu as convicções dos escravistas franceses, de que conseguiriam protelar por muito tempo as questões relativas à emancipação dos escravos. Em 28 de agosto de 1833, anunciou-se que os 674 mil escravos das ilhas britânicas seriam completamente livres em 1840, depois de um período de “aprendizagem”, contudo, a emancipação definitiva foi instaurada em primeiro de agosto de 1838, dois anos antes da data prevista.175. André Lacharrière, delegado dos colonos de Guadalupe, afirmaria em 1836 que “uma grande questão foi resolvida na Inglaterra” e passava a ser discutida na França, e se tratava “de nada menos que a abolição da escravidão nas colônias”176. A emancipação dos escravos nas colônias inglesas do Caribe, muito próximas às possessões francesas, passou a dar o tom dos debates e, talvez mesmo, das ações nas Antilhas. Para acalmar os ânimos dos colonos brancos e, provavelmente, também para arrefecer as possíveis pretensões dos escravos, o Ministério da Marinha e das Colônias declarou, assim que recebeu a notícia, em agosto de 1833, que o governo monárquico francês permaneceria como “espectador passível das graves medidas tomadas pela Inglaterra” em relação a suas colônias. Ainda em abril de 1835, o almirante Duperré afirmaria na tribuna da Câmara dos Deputados que “a grande tentativa de nosso vizinho impôs ao Governo a obrigação de esperar a experiência e os

173 O monarca Carlos X aceitou a independência de São Domingos – Haiti mediante uma indenização de 150 milhões de francos, que seria distribuída entre os ex-proprietários de terras da ex-colônia. Carta de Pierre Dessalles, 22/08/1825, in FORSTER & FORSTER, op cit, p. 78. 174 SAVAGE, op cit, p. 36. 175 LATIMER, James, “The Apprenticeship System in the British West Indies”, The Journal of the Negro Education, vol. 33, no. 1, 1964, pp. 52-57; William A. Green. British Slave Emancipation: the Sugar Colonies and the Great Experiment, 1830-1865. Oxford: Clarendon Press,1991 (1976), pp. 129-162. 176 LACHARRIÈRE, Andre. De l’affranchissement des esclaves dans les colonies françaises. Paris: Eugène Renduel, 1836 , p. 1 (BNF – Gallica). 269 resultados” para pensar em tomar a mesma via177. No entanto, em circular de primeiro de agosto de 1835, o ministro da marinha solicitou que os governadores das colônias consultassem os conselhos coloniais, de forma cautelosa, sobre suas opiniões quanto às medidas mais convenientes a serem tomadas para a emancipação dos escravos, declarando que a intenção formal do governo não era de realizar tal ação sem que pudesse dar aos colonos garantias de segurança e uma indenização178. Contudo, o governo metropolitano sugeria também que os conselhos coloniais avaliassem três sistemas de emancipação gradual sem indenização: a alforria por resgate forçado, a alforria das crianças e a libertação dos negros entre 15 e 40 anos, mediante uma subvenção que o estado lhes forneceria e que seria paga com um “engajamento” de trabalho durante um período determinado. Nenhuma dessas propostas foi aceita pelas colônias179. O Conselho Colonial da Martinica somente responderia a esta consulta um ano depois (1836), num tom de completo descontentamento, lamentando a “impaciência reformadora que não sabe conservar, nem esperar”. Recusavam tanto uma proposta de emancipação geral, cujos perigos vinham sendo demonstrados pela experiência inglesa, assim como as “medidas parciais”. Nesse sentido, segundo os representantes da elite colonial martinicana, o grande número de alforrias concedidas nas colônias demonstravam um mal resultado, e a legalização do pecúlio e do resgate forçado carregava o “grande inconveniente” de interferir no domínio senhorial180. Os senhores de escravos franceses, que já haviam perdido algumas batalhas políticas e legislativas nos três primeiros anos da Monarquia de Julho, foram impelidos a mudar o foco de seu discurso. Lacharrière, que havia argumentado em seu texto de 1831 que a “escravidão foi uma das necessidades da humanidade”181, viu-se obrigado a tratar, em 1836, “quando e quais maneiras” seriam convenientes às possessões ultramarinas para “fazer cessar” o sistema escravista182. Contudo, continuava a argumentar que a “escravidão [antiga] foi uma conservação e um progresso”, assim, “criticar a escravidão” significava desaprovar “a marcha progressiva da humanidade”183. Como afirma Jennings, a tática fundamental dos senhores de escravos nesta época, logo após a pressão causada pelo Abolition Bill nas colônias

177 Rapport fait au nom de la Commission chargée de l’examen de la proposition de M. Passy sur le sort des esclaves dans les Colonies françaises. Par M. de RÉMUSAT (Député de la Haute-Garonne). Séance 12 juin 1838. Chambre des Députés (France), junho de 1838, p. 37 (BNF – Gallica). 178 Idem, p. 38. 179 Idem, p. 40. 180 Idem, pp. 38-39. 181 LACHARRIÈRE, op cit (1831), p. 44. 182 Idem, p. 2. 183 Idem, p. 18. 270 britânicas, consistia em aceitar a emancipação em seu princípio, mas buscar protelar sua realização o maior tempo possível, exigindo condições inacessíveis para colocá-la em prática184. A Société Française pour le Abolition de la Esclavage, fundada em 1834, logo depois da abolição nas colônias inglesas, inspirada mesmo por este acontecimento, era formada por importantes figuradas do governo orleanista185. Estes fatos faziam com que os senhores de escravos procurassem refutar suas propostas. Lacharrière explicita em seu texto que se dirigia “principalmente aos membros da Sociedade pela Abolição da Escravidão”186. Da mesma maneira que Félix Patron em 1831, Lacharrière procurou dar autoridade às suas críticas aos abolicionistas franceses, afirmando que, diferentemente deles, tinha “nascido no meio da população escrava, tendo vivido com ela” e assim, conhecia “seu caráter e suas necessidades”. Dessa forma, não lutava com “teoria e eloquência”, mas trazia “conhecimentos locais e o fruto de uma longa experiência”187. Além disso, a base de sua argumentação era que a humanidade deveria “avançar pelo trabalho” e que era necessário uma “força” que o impusesse, “para submeter ao jugo, a natureza rebelde do selvagem”, ou seja, do escravo africano e afrodescendente. De acordo com o colono, dois sistemas estavam em discussão sobre a emancipação dos escravos, a “alforria individual ou por partes” e a “alforria geral, isto é, em massa”. Esse debate ocuparia a cena política francesa acerca das questões coloniais até a abolição da escravidão em 1848. No primeiro sistema, o que mais causava a desaprovação da elite colonial era a proposta sobre o “resgate forçado”. Sugerido pelos mandatários dos homens de cor em 1832, esta proposta de emancipação gradual já havia sido colocada em prática nas colônias inglesas em 1826188. Os colonos rejeitavam a alforria individual nestes termos, ou seja, que o senhor fosse obrigado a vender a liberdade ao escravo que conseguisse acumular o pecúlio

184 JENNINGS, op cit (2010), p. 88. 185 De acordo com Jennings, o Journal de la Société de la morale chrétienne de agosto de 1834 anunciava que uma sociedade abolicionista vinha a ser criada em Paris “à effet d’aviser aux mesures à prendre pour imiter l’exemple de l’Angleterre en parvenant à l’émancipation général des esclaves” (Journal de la Société de la morale chrétienne, t. 6, 2a. Série, no. 1, julho de 1834, p. 49). Esta revista também apontava que a Sociedade pela Abolição da Escravidão tinha sido formada no “seio da Câmara dos Deputados”; o duque de Broglie, antigo presidente da Société de la morale chrétienne, foi nomeado presidente em razão de seu papel importante na batalha contra o tráfico de escravos durante a Restauração; e segundo Jennings, Broglie havia sido escolhido devido a sua importância no primeiro escalão da classe dirigente orleanista. JENNINGS, op cit (2010), pp. 63-64. 186 LACHARRIÈRE, op cit (1836), p. 2. 187 Idem. 188 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 91. 271 necessário, de acordo com um valor mediado pela lei ou pelo governo. Os senhores de escravos não procuravam mais apenas argumentar diretamente sobre a necessidade de se respeitar seu domínio senhorial e o direito à propriedade, mantendo a alforria como um benefício que deveria ser concedido apenas entre o senhor e o escravo. Lacharrière argumentava, então, que o sistema de resgate forçado despojaria os ateliers de seus melhores escravos, os mais robustos, referindo-se aos homens. Nesse sentido, afirmava que sobretudo os homens escravizados, que tinham “mais força para o trabalho” e “mais indústria”, seriam os mais beneficiados desse sistema que os proprietários combatiam, e as alforrias sucessivas destes sujeitos deixariam nas fazendas apenas “as mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos”189. Essa argumentação de Lacharrière demonstra como os senhores de escravos expressaram muitas vezes um ponto de vista que não considerava de fato a realidade vivenciada pelos escravos e libertos. Primeiramente, os números demonstram que as mulheres e crianças foram os escravos que mais conseguiram a alforria, mesmo depois de 1845, quando o resgate forçado seria legalizado. Segundo, sob uma visão patriarcal, desconsidera a importância do trabalho das mulheres, que, como ele mesmo afirma, eram em maior número nos ateliers das fazendas. Ademais, como vimos anteriormente, elas exerciam várias funções na produção de açúcar, desde a plantação e colheita da cana até a moenda. Por fim, Lacharrière preconizava que “a primeira condição para operar uma boa emancipação” seria conservando a “característica agrícola” da população negra. Declarava, assim, que entre a abolição gradual e a total, esta última opção seria melhor, se feita depois de um longo e determinado período, quando deveriam ser implementadas políticas de preparação dos escravos, para que continuassem no trabalho rural após a liberdade. Os senhores de escravos procuravam dessa forma evitar que as propostas de emancipação gradual avançassem na Câmara de Deputados. Contudo, em fevereiro de 1838, o deputado Hippolyte Passy, membro da Sociedade Francesa pela abolição da Escravidão, propôs um projeto de lei que regulamentaria a alforria dos nascituros nas colônias e o direito ao pecúlio e ao resgate forçado (Proposition de M. Passy sur l’affranchissment des esclaves à naître dans les Colonies). Este projeto não foi aprovado pela comissão da Câmara responsável por sua avaliação, principalmente devido à pressão feita pelos senhores de escravos das colônias, cujos delegados haviam sido consultados durante os trabalhos da comissão190. No

189 LACHARRIÈRE, op cit, p. 107. 190 Rapport fait au nom de la Commission chargée de l’examen de la proposition de M. Passy sur le sort des esclaves dans les Colonies françaises. Par M. de RÉMUSAT (Député de la Haute-Garonne). Séance 12 juin 272 entanto, os deputados propunham que em dois anos (1840) retomassem este debate e, então, a França deveria decidir entre a abolição geral e imediata ou a emancipação gradual, baseada em propostas como aquela de Passy191. Ademais, os parlamentares franceses, sobretudo aqueles que faziam parte da Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão, deixavam claro sua intenção de que a passagem da escravidão à liberdade deviria ser feita de uma forma que o governo fosse o “senhor da operação”. Nesse sentido, o estado francês e seus representantes na metrópole decidiriam as medidas que fariam a população negra passar sem agitação de um regime ao outro, “substituindo a servidão perpétua” pelo “engajamento provisório” e “colocando o poder da lei”, ou melhor, do estado, “no lugar daquele do senhor”192. Em 1839, o deputado Victor Destutt de Tracy (Marquês de Tracy), também membro da Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão, apresentaria novamente um projeto com conteúdo semelhante ao de Passy, que seria novamente rejeitado pela comissão da câmara dos deputados, responsável pela avaliação de sua proposta legislativa. No entanto, encabeçada por Tocqueville, esta comissão, que também havia consultado os delegados das colônias193, avançaria em relação aos encaminhamentos daquela de 1838. Primeiramente, propunha que, em 1841, fosse apresentado à Câmara dos Deputados um projeto de lei que fixaria a data aproximada para a abolição geral da escravidão nas colônias francesas. Segundo, esta proposta legislativa determinaria, ainda, o valor das indenizações a serem pagas aos proprietários, e asseguraria o ressarcimento do Estado, mediante uma taxa sobre os salários dos novos libertos. Por fim, o mesmo projeto lançaria “as bases de um regulamento destinado a garantir o trabalho, esclarecer e moralizar os libertos, e prepará-los para os hábitos do trabalho livre”194. De acordo com o relatório de Tocqueville, era unânime entre os membros da comissão que a emancipação geral apresentava “menos inconvenientes e oferecia menos perigos que a emancipação gradual”. Escolhendo este caminho da abolição geral, assim como a comissão de 1838, os deputados afirmavam mais uma vez que a transição entre a escravidão

1838. Chambre des Députés (France), junho de 1838, pp. 48-52 (manioc.org). 191 Idem, p. 70. 192 Rapport fait au nom de la Commission chargée de l’examen de la proposition de M. Passy, p. 69. 193 Participaram da consulta feita pelos deputados, os delegados: De Cools (Martinica), Vidal de Lingendes (Guiana), De Saint-Georges e Laurence (ilha de Bourbon), De Jabrun (Guadalupe). TOCQUEVILLE, Alexis de (Député de la Manche). Rapport fait au nom de la Commission chargée d’examiner la proposition de M. de Tracy, relative aux esclaves des colonies. Séance du 23 juillet 1839. Paris: Imprimeur de la Chambre des Députés, julho de 1839, p. 57-98 (BNF – Gallica). 194 TOCQUEVILLE, op cit (1839), p. 56. 273 e liberdade deveria ser completamente dirigida pelo Estado. Este se tornaria o principal e único tutor da população negra liberta, procurando destruir todas as relações que existiam sob a escravidão entre senhor e escravo. Logo após a emancipação, previam que os negros não observariam mais o “magistrado [como] um senhor, mas [como] um guia e um libertador”, tornando este momento o mais propício para o Governo “fundar seu império sobre o espírito e os hábitos da população negra, e adquirir a influência salutar”, a qual “logo seria necessária” para dirigir tal população à “liberdade completa”. Para isso, nos próximos anos, deveriam pensar em uma data para a abolição geral, destruindo a escravidão de um só golpe, substituindo o poder do senhor por aquele do Estado195. A ideia de uma abolição geral, ainda que pudesse surpreender à princípio, parecia mesmo ser “universalmente admitida nas próprias colônias”196. Parece até mesmo uma inversão de papeis, pois, por um tempo, na segunda metade da década de 1830, observamos escravistas, de certa forma, argumentarem no sentido de uma abolição geral, e abolicionistas submeterem propostas de emancipação gradual, como o projeto de lei de Passy, que representava a estratégia da Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão. Os membros dessa sociedade defendiam uma emancipação gradual, realizada com precaução. Sublinhavam que a libertação dos escravos deveria ser um “ato de prudência, assim como de humanidade”, e que não eram favoráveis a ações precipitadas, porque tinham clareza “de todas as dificuldades que poderiam ocorrer com a abolição da escravidão”. Era formada por uma elite que tinha grande influência sobre o governo francês. De acordo com Jennings, a maioria dos dirigentes da organização — de Broglie, presidente; Tracy, vice-presidente; Passy, vice- presidente — eram bastante próximos do rei, e até mesmo ministros em potencial. Isso explica porque a sociedade conseguiu existir e agir, dentro de certos limites bem definidos, apesar das leis governamentais que proibiam a maioria das associações197. No entanto, foram os senhores de escravos que mudaram de forma muito engenhosa seu discurso sobre a emancipação, acreditando que, assim, ganhariam tempo sobre a questão, que avançava com

195 “La Commission a pensé qu'il serait infiniment conforme à l'intérêt des nègres, aussi bien qu'à celui des colons, de détruire d'un seul coup tous les anciens rapports qui existaient entre le maître et son esclave , et de transporter à l'État la tutelle do toute la population affranchie. Cette manière d'agir a plusieurs avantages considérables. Des gênes inévitables accompagnent le passage de l'esclavage à la liberté. Il faut éviter, autant que possible, qu'elles soient ou qu'elles paraissent imposées au nouvel affranchi par son ancien maître. En pareille matière, il est sage de laisser au Gouvernement toute la responsabilité, avec le pouvoir”, TOCQUEVILLE, op cit (1839), pp. 50-52. 196 Idem, p. 11. 197 De acordo com Jennings, dos 92 membros confirmados da sociedade, 52, ou seja, 56%, eram deputados ou pares (Câmara dos Pares). JENNINGS, op cit (2010), pp. 67-68. 274 força devido a escalada abolicionista na metrópole. Além disso, defendendo uma abolição geral, que não deveria ocorrer imediatamente, em contraposição à emancipação gradual, também era uma forma de evitar que novas medidas tocassem na questão das alforrias, como a proposta do resgate forçado. Contudo, em 11 de junho de 1839 mais uma Ordenação real concernente à questão das alforrias nas colônias foi promulgada. Os dez artigos dessa legislação regulamentavam, sobretudo, acerca de uma nova definição de alforria muito interessante, a “alforria de direito” (affranchissement de droit), a qual tocava, principalmente, aqueles escravos e escravas que tinham alguma relação de parentesco com seus senhores ou senhoras. Desse modo, eram considerados “libertos de direito” (affranchis de droit), nas colônias da Martinica, Guadalupe e dependências, Guiana Francesa e ilha de Bourbon: 1) o escravo que selasse um contrato de casamento com seu senhor ou sua senhora; 2) o escravo que, com o consentimento de seu senhor, se casasse com uma pessoa livre, e neste caso, seus filhos naturais, nascidos antes do registro oficial de casamento e alforria, seriam considerados igualmente libertos de direito; isso valeria também para os escravos que tivessem, com consentimento de seu senhor, casado com pessoas livres antes dessa lei; 3) os escravos adotados, com consentimento de seus senhores, por uma pessoa livre, de acordo com as regulamentações do Código Civil; 4) o escravo que fosse declarado legatário universal por seu senhor, ou nomeado executor testamentário ou tutor dos filhos de seu senhor; 5) os filhos naturais, registrados como escravos de seus pais ou de suas mães livres, reconhecidos por eles; 6) o pai ou mãe, registrados como escravos de seus filhos; 7) os irmãos ou irmãs, registrados como escravos de seus irmãos ou irmãs livres; 8) as crianças nascidas posteriormente à declaração de alforria de suas mães, a não ser nos casos em que a alforria oficial não fosse efetivamente aprovada 198. Curiosamente, essa legislação não causou burburinho nas colônias. Possivelmente, porque ela tocaria especialmente na relação entre senhores livres de cor e seus escravos, entre os quais, não raramente, havia ou se estabeleciam laços familiares, como pela oficialização do casamento. Porém, a noção de “alforria de direito” provavelmente mexeu com a compreensão das pessoas escravizadas nas colônias francesas sobre o que passava a significar ter “direito” à liberdade. Não pensariam mais a alforria apenas como um favor ou benefício concedido pelo senhor, mas, quiçá, como um direito (a ser) adquirido.

198 “Ordonnance Royale du 11 juin 1839 sur les affranchissements”, BOM, 1839, pp. 288-294. 275

No entanto, os trabalhos de uma nova comissão da Câmara dos Deputados, liderada pelo duque de Broglie199, entre 1840 e 1843, mais uma vez forçaria os senhores de escravos das colônias e seus porta-vozes na Metrópole a mudarem suas estratégias políticas. Em junho de 1840, tal comissão escreveu ao Ministro da Marinha e das Colônias, solicitando que apresentasse aos conselhos coloniais e governadores das colônias uma série de questões sobre três sistemas de emancipação, que aos olhos da Comissão pareciam “compatíveis com a justiça e a prudência”200. Mais uma vez, os deputados insistiam naquelas propostas apresentadas desde 1838. O sistema de emancipação parcial e gradual, proposto por Tracy, no qual alforriariam, a princípio, os nascituros, com o pagamento de uma indenização módica aos proprietários, deixando-os aos cuidados de seus pais escravizados, na condição de aprendizes, trabalhando para o senhor até determinada idade. Aos outros escravos seria legalizado o pecúlio, que os usos coloniais já lhes asseguravam, e seria autorizado que resgatassem sua liberdade por meio de suas economias, a um valor mediado pelo governo. Cada escravo chegaria, assim, à liberdade, pelo “preço de seu trabalho” e da “boa conduta”. O sistema de emancipação simultânea, pela via de resgate pago pelo Estado, no qual os colonos seriam desapropriados de seus escravos pelo estado francês, sob o pagamento de uma indenização, ou seja, uma expropriação forçada e universal, e a autoridade estatal substituiria durante um período determinado o lugar dos antigos senhores. As condições e a duração dessa situação intermediária seriam regulamentadas por lei, e o estado alugaria aos antigos senhores o trabalho dos libertos, e retirariam de seus salários uma soma suficiente para amortizar pouco a pouco o valor pago pela indenização. O sistema de emancipação simultânea, precedida por uma aprendizagem, processo similar àquele empregado nas colônias inglesas. Todos os escravos seriam declarados livres imediatamente e uma indenização seria assegurada aos colonos. Sob a proteção do estado, os libertos permaneceriam sob a autoridade dos antigos

199 Esta comissão era composta pelos seguintes membros: conde de Saint-Cricq e marquês de Audiffret (membros da Câmara dos Pares); os deputados, conde de Sade, Wustemberg, de Tracy, Bignon, conde Pellegrino Rossi (economista de origem italiana), Reynard (deputado por Marselha); Henri Galos (funcionário do Ministério da Marinha e das Colônias - MMC); deputados vice-almirante Barão de Mackau (ex-governandor da Martinica, 1836-1837), contra-almirante Conde de Moges, Filleau de Saint-Hilaire (Conselheiro de Estado e Diretor das Colônias – Ministério da Marinha), Jubelin (Comissário Geral da Marinha); Mestro (secretário e chefe do Escritório da Direção das Colônias – MMC). SCHMIDT, op cit (2000), p. 123. 200 Analyse des délibérations et avis des Conseils Coloniaux, des gouverneurs et des administrateurs des colonies sur les projets d’émancipation de la Comission présidée par M. le Duc de Broglie, par M. Jollivet, membre de la Chambre des Députés. Paris: Imprimerie Bruneau, 1843, pp. 5 (BNF – Gallica). 276 senhores na condição de “aprendizes”, mediante o pagamento de um salário, durante um período determinado, amortizando aos poucos o valor pago pela indenização201. A emancipação imediata, como foi realizada em São Domingos no final do século XVIII, havia sido completamente descartada pelos parlamentares franceses202. A comissão de Broglie declarou que a abolição da escravidão havia sido decidida como “princípio” a ser seguido pelo governo francês. Aos governadores e conselhos das possessões ultramarinas cabia somente decidir a época o a forma de emancipação dos escravos. Os quatro conselhos coloniais (Martinica, Guadalupe, Guiana Francesa e ilha de Bourbon) acusaram a comissão de “vontades ditatoriais”, e resolveram deliberar e dar sua opinião não apenas sobre a época e a forma, mas também sobre o princípio da emancipação. Assim como na década de 1830, eles rejeitaram os três sistemas propostos pela comissão, e proclamaram, em sua “íntima convicção esclarecida pela experiência”, que a “emancipação, no estado atual da sociedade colonial, qual seja o sistema a ser adotado, seria tão funesto aos negros quanto aos brancos, e levaria à ruína inevitável e próxima” das colônias203. O Conselho Colonial da Martinica avaliava que as questões apontadas pela Comissão presidida pelo duque de Broglie tinham tomado uma característica de tal “gravidade”, que a decisão sobre elas era uma “questão de vida ou de morte para a colônia”204. Contudo, apesar da influência de deputados abolicionistas como Broglie, Tracy e Passy, outras forças ganhavam espaço dentro do governo monárquico francês na década de 1840. O Ministro da Marinha e das Colônias, Albin Roussi, deixou claro nesta época que a “escravidão era um fato” e a emancipação não, assim, as comissões destinadas a analisar a situação das colônias deveriam ter como objetivo estudar “toda a questão colonial”. Dessa maneira, o sistema escravista deveria ser examinado exaustivamente “com uma grande circunspecção” como parte integrante da estrutura política e social das colônias. Uma vez conhecida as intenções reais do governo, a decepção se tornou evidente nos círculos abolicionistas franceses205. Estava claro para Isambert, por exemplo, membro da Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão, que o governo desejava retardar a emancipação. Em correspondência com os abolicionistas ingleses em 1840, ele afirmaria que o governo não

201 Analyse des délibérations et avis des Conseils Coloniaux, des gouverneurs et des administrateurs des colonies sur les projets d’émancipation de la Comission présidée par M. le Duc de Broglie, pp. 5-6. 202 SCHMIDT, op cit (2000), p. 124. 203 Analyse des délibérations et avis des Conseils Coloniaux, des gouverneurs et des administrateurs des colonies sur les projets d’émancipation de la Comission présidée par M. le Duc de Broglie, pp. 3-4. 204 Procès-verbaux du Conseil Colonial de la Martinique, 1840-1841, p. 40 (BNF – Gallica). 205 JENNINGS, op cit (2010), p. 152. 277 defendia a escravidão, mas pretendia com todos aqueles debates uma “adiamento ilimitado” de sua abolição. De acordo com Jennings, Isambert acreditava que, além dos colonos, o “rei era o principal obstáculo à libertação dos escravos”206, devido a sua influência sobre a estrutura governamental. Na Comissão presidida por Broglie, o almirante René Armand de Mackau se distinguiu como o membro mais determinado a proteger os interesses coloniais, mostrando-se hostil às propostas de emancipação, à exceção de uma abordagem do problema da forma mais prudente e mais gradual possível. O Barão de Mackau, casado com uma mulher nascida nas colônias, tinha servido como comandante chefe da base naval francesa nas Antilhas durante os anos 1830, e ainda tinha ocupado o cargo de governador da Martinica entre 1836 e 1837. Como a maior parte dos altos funcionários coloniais, e ainda devido aos seus laços de parentesco por intermédio de sua esposa, tinha sido exposto à influência dos senhores de escravos, e observava a escravidão através dos olhos dos colonos207. Na Comissão Broglie, ele insistiu sobre o fato de que “o interesse dos proprietários, longe de ser um peso secundário sobre a questão” da libertação dos escravos, deveria “ser colocado em primeiro lugar nas considerações” sobre a matéria208. De acordo com Mackau, sem a garantia de que o trabalho nas lavouras teria continuidade e sem uma indenização generosa, era impossível realizar a abolição da escravidão. Os senhores de escravos, o governo e mesmo a maior parte dos abolicionistas concordavam sobre a necessidade de uma indenização aos proprietários, ao mesmo tempo que o governo francês não considerava a questão da escravidão como uma de suas prioridades orçamentárias209. Desse modo, o melhor caminho eram as reformas sobre o trabalho e a educação moral e religiosa dos negros, como meio de prepará-los para a liberdade mais tarde. Guizot, ministro das Relações Exteriores210, Mackau e o Rei pareciam pouco inclinados a colocar em prática as opções propostas pelo relatório da comissão Broglie em 1843, demonstrando uma grande determinação em seguir uma política de tergiversação que marcou toda a Monarquia de Julho, de acordo com Jennings211. Mesmo que os senhores de escravos estivessem sendo contrariados em suas intenções de protelar os projetos de alforria

206 JENNINGS, op cit (2010), p. 149. 207 Idem, p. 193. 208 Idem, pp. 193-194. 209 Idem, pp. 195-196. 210 François Guizot, Ministro das Relações Exteriores na época, afirmou na tribuna da câmara dos deputados em 4 de maio de 1844: “O sistema de abolição que recomendam as petições, a abolição imediata e em massa, é totalmente impossível, que eu não conheço ninguém nesta Câmara que ousa apresentar esta proposta”. SCHMIDT, op cit (2000), p. 128. 211 JENNINGS, op cit (2010), p. 195. 278 parcial, o relatório indicava que a questão da emancipação dos escravos seria abordada pelo governo pela via da abolição gradual. No entanto, de forma bastante lenta, revelando um jogo de correlação de forças na metrópole. Em 1843, Mackau assumiria o Ministério da Marinha e das Colônias. De acordo com Jennings, a chegada de fieis defensores dos interesses coloniais àquele gabinete pressagiou um futuro sombrio para os antiescravistas. O historiador caracteriza o período pós 1840 como um momento de impasse e regressão quanto à questão da abolição da escravidão, e define os anos de 1842 e 1843 como os mais sombrios para o abolicionismo francês212. Entre 1844 e 1845, Mackau submeteria um projeto de lei às câmaras, “relativo ao regime dos escravos nas colônias francesas”, legalizando o pecúlio e os resgates forçado e amigável. Contudo, garantiria que os novos alforriados deveriam trabalhar por um determinado período para uma pessoa livre, prestando um serviço da mesma natureza que aquele realizado durante a escravidão, ou seja, os trabalhadores rurais deveriam permanecer na lavoura. Observe que a legislação promulgada e comentada até aqui, no que se refere à alforria, não faz menção à compra da liberdade pelos próprios escravos — o resgate (rachat). Por conta das leis e restrições sobre a alforria promulgadas ao longo do século XVIII, qualquer pedido de alforria deveria ser autorizado pelo governo colonial, assim, legalmente os escravos e escravas não poderiam comprar suas liberdades de seus senhores. Obviamente, isso acabava acontecendo, dando origem, inclusive, às liberdades de savana. Um relatório feito pelos governos coloniais a pedido do Ministério da Marinha e das Colônias, publicado em 1836, comentou esta situação: “Em direito, eles não podem possuir nada; mas, de fato, aqueles que conseguem adquirir alguns valores mobiliários ou algum dinheiro, dispõem destes ao seu bel-prazer, e frequentemente os empregam na compra de sua liberdade”213. Apenas a Lei de 18 de julho de 1845, “Relative au régime des esclaves dans les colonies françaises”214, conhecida como Lei Mackau, que legislava sobre várias questões em torno do trabalho escravo, regulamentaria finalmente o “rachat” (“resgate”), definindo a possibilidade de “resgate amigável” e de “resgate forçado”. Nesse sentido, em seu artigo V, definia que “as pessoas não livres” poderiam resgatar sua liberdade, ou a liberdade de seus familiares — pais, mães, avós, esposas e filhos, legítimos ou naturais. Para definir o preço do

212 JENNINGS, op cit (2010), pp. 195-196. 213 Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, pp. 4-5 (BNF – GALLICA). 214 “Loi du 18 juillet 1845, relative au régime des Esclaves dans les colonies françaises”, BOM, 1845, pp. 385- 393. 279 resgate, se este não fosse acordado amigavelmente entre o senhor e o escravo, ele seria fixado, para cada caso, por uma comissão composta pelo magistrado presidente e mais um membro conselheiro da Cour Royale, e mais um membro do Conselho Colonial, colegiado onde estavam representados os colonos brancos, senhores de terras e de escravos. O pagamento do preço fixado deveria sempre ser feito antes da entrega da carta de alforria, a qual mencionaria a quitação do resgate. No entanto, esta ordenação, ao mesmo tempo que facilitava a autorresgate pelos trabalhadores escravizados, também procurava controlar a organização do trabalho agrícola, tentado coagir os libertos a permanecerem no trabalho nas lavouras de cana- de-açúcar. Desse modo, esta ordenação ainda regulamentava que o escravo alforriado, pela via do resgate ou outro, deveria, durante cinco anos, comprovar seu engajamento de trabalho com uma pessoa de condição livre. Este engajamento deveria ser feito em uma propriedade rural se o forro, antes de conquistar sua liberdade, trabalhasse em uma exploração rural, fosse como operário qualificado, fosse como cultivador. Se durante o período de cinco anos, o alforriado recusasse ou negligenciasse o trabalho determinado pela lei, o senhor poderia reivindicar na justiça que o liberto fosse condenado a trabalhos forçados. No entanto, os grandes senhores de escravos não estavam satisfeitos nem mesmo com estas medidas que pretendiam forçar o trabalhador liberto a trabalhar em suas lavouras de cana-de-açúcar. Em sessão do Conselho Colonial da Martinica de maio de 1846, os conselheiros afirmariam que as medidas tomadas pela Coroa e pelo governo colonial eram na realidade uma “emancipação disfarçada”. De acordo com representantes da aristocracia colonial, o “resgate forçado” (rachat forcé) exauria a propriedade, porque arrebatava das senzalas (ateliers) a “elite de trabalhadores”, pois, as últimas interpretações do artigo V da lei de julho de 1845 não asseguravam de fato a obrigação dos trabalhadores de permanecerem prestando seus serviços nas propriedades rurais215. Talvez os indivíduos escravizados que acumulavam o pecúlio necessário para solicitar a alforria pelo resgate forçado, sendo seus senhores obrigados a conceder suas liberdades, estivessem conseguindo, de alguma forma, evitar o engajamento forçado nas lavouras de cana-de-açúcar. Cyrille Bissette publicou em 1844 uma análise crítica ao projeto de lei do ministro Mackau, na qual denunciava a “invenção” de uma nova terminologia no seio do Ministério da Marinha e das Colônias, que consistia em designar os escravos como “pessoas não livres”, e

215 Procès-Verbal du Conseil Colonial de la Martinique. Quatrième Législature (1846). Fort-Royal-Martinique: Imprimeurs du Gouvernement, 1847, pp. 20-21 (GALLICA – BNF). 280 os “negros” e “mulatos” libertos como “homens pertencendo à antiga classe de cor”216. Nesse sentido, para Bissette, a ordenação sobre o regime intermediário pelo qual as “pessoas não livres” seriam preparadas para a liberdade era um texto dedicado à ineficácia, por meio do qual “o ministro quis se divertir às custas dos abolicionistas”. Demandava a Mackau coragem para propor às Câmaras um projeto de lei pela abolição imediata da escravidão217. Contudo, mesmo os deputados abolicionistas se contentariam com a Lei Mackau de 1845. O Duque de Broglie afirmaria que essa legislação era “uma lei de preparação para a emancipação”, que chegaria “um dia a melhorar a condição dos negros e torná-los dignos da liberdade”218. Na década de 1840, o movimento abolicionista francês na metrópole estava dividido. Uma parte passou a defender a proposta de uma abolição imediata da escravidão, inspirados sobretudo pela abolição da escravidão nas colônias inglesas, e mesmo pela influência direta de abolicionistas ingleses219. Além disso, estava evidente que o governo orleanista protelaria a abolição o quanto pudesse. Contudo, uma das estratégias de alguns abolicionistas foi menosprezar as alforrias conquistadas pelos escravos e patrocinados até aquele momento. Schoelcher apresentaria vários argumentos contra a alforria individual e as propostas de emancipação gradual em sua obra de 1842, pois passava a defender a abolição imediata. Nesse sentido, minimizou a importância das alforrias outorgadas na década de 1830 e início dos anos 1840, porque a grande maioria teria sido concedida aos escravos patrocinados:

As trinta e quatro mil liberdades pronunciadas em nossas colônias desde 1830 não devem iludir ninguém. Ao tomá-las por aquilo que são, é impossível lhes atribuir o valor que procuram dar a elas. Veja porque: um decreto de primeiro de março de 1831 suprimiu todos os impostos sobre as concessões de liberdade; uma outra ordenação real de 12 de julho de 1832 previa a regularização de todas as liberdades, as quais ainda não haviam recebido a sanção legal. É em virtude dessas duas medidas que o número de libertos de 1830 se tornou tão considerável.220

216 BISSETTE, Cyrille. Du Projet Mackau tendant à violer la loi du 24 de avril 1833 sur le régime législatif des colonies. Paris: Imprimerie administrative de Paul Dupont, 1844, p. 16, in SCHMIDT, op cit (2000), p. 128-129. 217 BISSETTE, op cit (1844), p. 22. 218 SCHMIDT, op cit (2000), p. 127. 219 De acordo com Jennings, a criação da British and Foreign Anti-Slavery Society em 1839 levou a Société Française pour l’abolition de l’esclavage a se reaproximar dos abolicionistas ingleses, que tentaram atuar na França, sofrendo certas restrições por parte do governo francês. JENNINGS, op cit (2010), pp. 147-148. Nelly Schmidt afirma que não é possível compreender a história do pensamento abolicionista francês e todos os seus meandros sem recorrer às fontes inglesas, e dedica um capítulo de seu livro às “influências britânicas”. SCHMIDT, op cit (2000), p. 5; pp. 139-162. 220 SCHOELCHER, op cit (1842), p. 304. 281

Alguns historiadores seguem uma linha semelhante de argumentação, provavelmente influenciados por estas fontes abolicionistas. Lawrence Jennings afirma que suprimir o imposto pago ao governo para a concessão de alforrias221 apenas “remediou uma situação que havia favorecido o surgimento daqueles que eram denominados patronnés, negros livres de fato mas não de direito”. Dessa maneira, o governo orleanista teria adotado uma “abordagem mais fragmentada que global das reformas coloniais, e assim agiria até o fim”222. De fato, ainda que o acesso à alforria nas colônias francesas tenha sido flexibilizado durante a Monarquia de Julho, aparentemente não havia a intenção de abolir a escravidão de forma imediata. A despeito da Lei Mackau e das notícias governamentais da década de 1840 sobre o regime escravista, que sugeriam uma emancipação gradual da escravidão, o Ministério da Marinha e das Colônias afirmaria, em um relatório sobre as estatísticas populacionais das colônias de 1843, que as melhorias no sistema escravista, a estabilização das alforrias concedidas, o aumento da taxa de natalidade e diminuição na taxa de mortalidade, permitiriam manter o trabalho escravo por anos. Isso às vésperas da Revolução de 1848 e da abolição da escravidão nas colônias. A introdução deste relatório publicado em 1847 apresenta uma breve síntese sobre as populações das possessões francesas ultramarinas, e o enfoque sobre a população escrava é evidente. Ao analisar os dados demográficos da Martinica, destacando o aumento da população livre (sobretudo livres de cor) e a diminuição da população escrava, a conclusão da análise toca exclusivamente a questão da escravidão:

Se acrescentamos a isso que, doravante, o excedente de nascimentos em relação às mortes deve ser o movimento normal, e que as perdas por alforria permaneceram quase estacionárias, chega-se a esta dupla conclusão: 1o. que a melhoria da condição material dos escravos é comprovada pela taxa de natalidade comparada à de mortalidade; 2 o. Que a sociedade colonial, se nenhuma outra causa intervier, manterá a escravidão em seu seio por um tempo indeterminado, já que os nascimentos parecem tender a compensar completamente as mortes e as alforrias reunidas.223

Dessa maneira, a conclusão do relatório do Ministério da Marinha e da Colônias parecia ter a intenção de passar uma previsão de tranquilidade aos proprietários de escravos, afirmando que “a sociedade colonial” tinha condições de manter a “escravidão durante um

221 Jennings se refere à primeira lei e uma das mais importantes sobre a questão do acesso à liberdade pelos escravos e escravas das colônias francesas, que foi a proibição da cobrança de um imposto sobre a concessão de alforria oficial pelo estado, em maio de 1831, já comentada em outros momentos nessa tese. 222 JENNINGS, op cit (2010), p. 46. 223 Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1843 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1847, pp. 20-21. 282 tempo indeterminado”. Os senhores de escravos da Martinica, entre 1840 e 1841, tinham lamentado que no ritmo que as alforrias foram concedidas na década de 1830, em trinta anos não haveria mais escravos na colônia, e expressaram isso como se fosse um intervalo de tempo curto para a liquidação do sistema escravista:

A emancipação já marcha em passos rápidos por conta das alforrias parciais; em 1830, o número de escravos na Martinica era de 91.343 indivíduos e, em 1838, era apenas de 76.517. Desde essa época, foram concedidas 19.296 alforrias, o que dá uma média de 2144 alforriados por ano. Se esta cifra se reproduzir nos próximos anos, poderíamos dizer matematicamente […] que 42 anos seriam suficientes para a libertação total dos escravos, e como estamos no 12o. ano desta via, poderíamos assegurar que em 30 anos não haverá mais escravos na Martinica.224

Quanto aos escravos e escravas, antes mesmo de observarmos os dados numéricos, se levarmos em conta as transformações culturais e sociais que as novas leis conduziram, a análise muda seu sentido. A característica tradicional da alforria, como um benefício concedido pelo senhor ao escravo, foi confrontada com a ideia de alforria como um direito depois das leis de 1839 (alforria de direito) e 1845 (direito ao resgate forçado). Nesse sentido, durante a década de 1840, os indivíduos escravizados se mostraram cada vez mais impacientes. De acordo com correspondência do governador da Martinica, no final de 1847, a maioria dos escravos não se recusavam a trabalhar, mas agiam com “indiferença” e empregavam formas de resistência ao trabalho, como chegar tarde ao eito e partir cedo, diminuindo o ritmo da jornada. Contudo, havia também nas senzalas “princípios de fermentação que obrigavam a redobrar a vigilância por parte das autoridades” sobre alguns escravos que poderiam causar sérias desordens, de acordo com o mesmo relatório do governo martinicano225. Alguns colonos acreditavam que a batalha contra a emancipação dos escravizados já estava perdida desde meados da década de 1830. Depois da abolição da escravidão nas colônias inglesas, segundo a visão de Louis Vitalis, proprietário branco de terras e escravos da Martinica, o sistema escravista nas Américas e no Caribe estaria por um fio226. Historicamente, sabe-se que isso não é verdade, pois como bem têm demonstrado alguns

224 Procès-Verbal du Conseil Colonial de la Martinique. Quatrième Législature (1846). Fort-Royal-Martinique: Imprimeurs du Gouvernement, 1847. 225 ANOM, Martinique – carton 11, dossier 108, citado in ELISABETH, op cit (1983), p. 31. 226 VITALIS, Louis. Pétition a MM. les Membres de la Chambre des Députés. Abolition de l’esclavage, division des terres, indemnité; par un propriétaire d’esclaves. Paris: L. Hachette, 1836, p. 9 (BNF – Gallica). Foi por meio da obra de Nelly Schmidt que conheci o texto de Louis Vitalis, ver SCHMIDT, op cit (2000), pp. 191-194. 283 historiadores, a força da escravidão227 se restabeleceria ainda durante um longo período em alguns espaços vitais da economia mundial, processo definido por Dale Tomich como “segundo escravismo”228. De qualquer forma, o depoimento de Vitalis sobre seu tempo revela alguns dos sujeitos e forças que pesavam sobre o processo de transformação e, mesmo, de desestruturação do sistema escravista francês. De acordo com Vitalis, naquele “estado atual da civilização europeia”, que influenciava a opinião pública francesa, tanto os senhores como os próprios cativos sabiam que a escravidão não se sustentaria por muito mais tempo. Para o proprietário martinicano, a emancipação dos escravos, promulgada pela Inglaterra, estava apenas sendo adiada na França, e ressalta que mesmo a população escravizada reconhecia aquela situação: “é um fato reconhecido mesmo entre nossos negros”229. Para Vitalis, as colônias estavam definitivamente sob a inevitável ameaça de uma rebelião escrava e suas palavras revelam uma tensão social que reinava então nas colônias230, onde os administradores e os delegados dos colonos, contrariamente, insistiam em dizer que os cativos estavam “tão submissos quanto em qualquer outra época” e que sua “docilidade (…) nunca fora tão grande”231. No entanto, não negavam que os escravos sabiam o que se passava nas ilhas inglesas, e que sua “imaginação” havia sido “atingida” por este fato. Por isso, “deseja[va]m sua emancipação”232. Diferentemente de Lacharrière e de outros senhores de escravos, Vitalis não afirmava que os indivíduos escravizados nas colônias tinham repulsa ao trabalho rural, não preconizava que após a liberdade eles simplesmente deixariam o trabalho no campo, pois, a “única ambição” dos escravos, segundo ele, era a possessão de “um acre de terra”233. Contudo, estas opiniões de Vitalis eram extremamente raras entre os senhores de escravos das possessões francesas ultramarinas, e até censuradas pelos colonos brancos. Para os escravos e escravas, de fato não havia nenhuma repulsa ao trabalho rural, se mantivessem seus roçados e suas casas, como bem demonstra Dale Tomich234. Na

227 CHALHOUB, A força da escravidão, 2012. 228 TOMICH, Dale W. “A “Segunda Escravidão””, in TOMICH, Pelo Prisma da Escravidão, 2011, pp. 81-97. Utilizo o termo “segundo escravismo”, apesar dos tradutores da obra de Tomich utilizarem “segunda escravidão” (second slavery), por sugestão do Prof. Robert Slenes, e de acordo com Sidney Chalhoub. CHALHOUB, op cit (2012), p. 43; p. 301 (nota 19). 229 VITALIS, op cit, p. 6. 230 VITALIS, op cit, p. 9. 231 Rapport fait au nom de la Commission chargée de l’examen de la proposition de M. Passy, op cit, p. 49. 232 Idem, p. 49. 233 VITALIS, op cit, p. 24. 234 TOMICH, “Uma petite guinée”, op cit (2011), pp. 185-207. 284

Martinica e em Guadalupe, desde o século XVIII havia a prática de distribuir aos escravos rurais um pequeno pedaço de terra235 para que produzissem para a sua própria subsistência em seu tempo “livre”, ou seja, quando não se dedicavam ao eito da lavoura. Os proprietários visavam com isso substituir a distribuição da ração semanal (ordinnaire) e reduzir os custos com o cultivo de provisões. Segundo Tomich, os escravizados na Martinica se apropriaram de suas roças de subsistência nas plantations e de seu tempo disponível nos “sábados negros”. Desse modo, embora o cultivo dessas porções de terra significasse mais trabalho para eles, aumentaram sua independência em relação ao senhores, limitaram seu tempo de dedicação à produção do proprietário, e assim, adquiriram um meio de resistir à intensificação do trabalho no exato momento em que a transformação do mercado açucareiro mundial exigia níveis mais altos de produtividade e maior exploração da mão de obra nas plantations. Sobretudo depois da lei Mackau de 1845, que regularizou o que já era uma prática consuetudinária, dando-lhe sansão legal. Embora a terra continuasse sendo propriedade do senhor, sua produção pertencia ao escravo. A própria capacidade dos proprietários de impor a participação dos escravos nas novas condições de vida e trabalho, e a complexidade e originalidade da resposta dos escravos, alteraram o caráter da relação escravista. Dessa forma, os escravos confrontavam a escravidão dentro de suas próprias relações e processos, e o resultado foi simultaneamente o fortalecimento e o enfraquecimento do sistema escravista236. De acordo com Tomich, embora tenham existido virtualmente desde o início da escravidão na colônia, essas práticas assumiram nova importância com as variáveis econômicas e políticas nas décadas de 1830 e 1840, e a perspectiva de uma iminente emancipação237. Talvez por isso, pelo desejo de se manterem em seus roçados, em suas casas, com suas famílias, e devido à intuição de que a abolição da escravidão não tardaria, os ateliers de escravos da Martinica somente se revoltariam em massa logo depois da instauração da Segunda República, quando o governo republicano na Metrópole demorava em tomar a

235 A Lei Mackau extendeu a legalização dessa prática à Guiana Francesa e à ilha de Bourbon: L'art. 2 - De l'Ordonnance royale du 15 octobre 1786, pour la Guadeloupe et la Martinique, portant qu'il sera distribué, pour chaque nègre ou négresse, une petite portion de l'habitation, pour être par eux cultivée à leur profit, ainsi que bon leur semblera, est déclaré applicable aux colonies de la Guyane et de l'île Bourbon et dépendances. “Loi du 18 juillet 1845, Loi relative au régime des Esclaves dans les colonies françaises”, BOM, 1845, pp. 385-393. 236 TOMICH, “Uma petite guinée”, op cit (2011), p. 199-206. 237 Idem, p. 187 285 decisão sobre a abolição, e as pessoas escravizadas já não toleravam mais os abusos dos senhores de escravos238. Lawrence Jennings trata amplamente os debates sobre abolição durante a Monarquia de Julho, focando sobretudo no movimento abolicionista e nas ações da Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão, ou seja, nos debates e movimentações na Metrópole. A despeito da relevância de seu trabalho de pesquisa, o autor observa somente o que se passou no continente europeu, e acredita que apenas a ação abolicionista mais radical, empreendida por uma elite francesa, como ele mesmo demonstra, teria levado à abolição da escravidão em 1848. Nesta visão de Jennings, como aponta Nelly Schmidt, a escravidão teria sido abolida pelos abolicionistas, isto é, seria “uma medida vinda do exterior das colônias, uma iniciativa generosa e humanitária tomada por um governo republicano que receberia o reconhecimento e a homenagem das populações coloniais”239. Jennings minimiza muito ou simplesmente ignora o que se passou nas colônias francesas, sobretudo as ações dos livres de cor e das pessoas escravizadas, que inclusive forneciam informações e elementos para que os abolicionistas negros pudessem agir na metrópole. Jennings pensa o movimento abolicionista entre “gradualista” e “imediatista”, dividido em períodos entre as décadas de 1830 e 1840. Nesse sentido, o autor afirma que quando o abolicionismo imediatista ganhou força, depois de 1845, os representantes dessa corrente teriam feito acontecer a abolição da escravidão em 1848, principalmente pela atuação de Victor Schoelcher240. Apesar de destacar a importância do abolicionista negro Cyrille Bissette, a ausência de uma análise mais aprofundada sobre a presença e a importância dos homens de cor na França metropolitana enviesa a análise de Jennings sobre a atuação abolicionista francesa e seu papel durante a Monarquia de Julho. Diferentemente de Nelly Schmidt241, o autor não dedica nem um capítulo inteiro à atuação dos livres de cor em relação à emancipação dos escravos. Ademais, como demonstrado anteriormente, argumenta que as ações dos indivíduos escravizados não tiveram nenhum impacto no processo de abolição da escravidão durante aqueles últimos dezoito anos de escravidão nas colônias francesas. Contudo, o processo que levou à abolição do cativeiro não teria ocorrido apenas, nem principalmente, devido à escalada abolicionista. Arriscamos dizer que se os escravos e

238 ELISABETH, op cit (1983), pp. 33-76; PAGO, Gilbert. Les femmes et la liquidation dy système esclavagiste à la Martinique, 1848-1852. Paris: Ibis Rouge, 1998, pp. 111-131. 239 SCHMIDT, op cit (2000), p. 6. 240 JENNINGS, op cit (2010), pp. 233-285. 241 Capítulo 14: Libres et affranchis des colonies, in SCHMIDT, op cit (2000), pp. 247-266. 286 libertos nas colônias não tivessem dado concretude por meio de suas ações às críticas e medidas antiescravistas, o sistema seguiria quase que intacto ainda por muito tempo. A conjuntura geral, a repressão ao tráfico, a abolição da escravidão nas colônias inglesas, os desdobramentos da independência do Haiti e o rearranjo da economia global certamente são fatores que impactaram fortemente o processo de abolição da escravidão nas colônias francesas. No entanto, ainda foi pouco demonstrado as ações ao rés-do-chão, e como estas, por vezes observadas como pouco significativas, tiveram consequências importantes na desestruturação do sistema escravista francês. Naqueles últimos anos de escravidão, nas possessões francesas e na metrópole, houve tensões nos tribunais e no parlamento entre o que era admitido nas colônias, por influência da elite dos senhores de escravos, e as mudanças que começavam a ser forçadas no campo da lei e nos debates políticos. A atuação de deputados, militantes e advogados abolicionistas foi essencial, mas se observamos juntamente à agência dos afrodescendentes livres, na metrópole e nas Antilhas Francesas, e também dos escravos e escravas nas colônias242. Isso não significa que os africanos e afrodescendentes das colônias francesas simplesmente venceram a luta contra a exploração, o preconceito e o racismo. Como demonstra Céline Flory, outros projetos de exploração do trabalho dos africanos foram colocados em prática pelo império colonial francês depois da abolição da escravidão nas colônias, por meio dos contratos de engajamento dos africanos resgatados do tráfico atlântico ilegal243. No entanto, isso não descarta a importância de buscarmos compreender a agência dos escravos e escravas, e outros sujeitos, aparentemente invisíveis nas ações globais nas análises sobre os processos de emancipação e abolição da escravidão. Dessa forma, as alforrias conquistadas pelos africanos e afrodescendentes escravizados nas Antilhas Francesas nos anos precedentes à abolição, fosse em consequência das novas legislações ou das ações de

242 Sobre o processo de abolição, os movimentos abolicionistas e a agência dos escravos nas últimas décadas de escravidão no sudeste do Brasil, Elciene Azevedo demonstra “como a politização institucional se consolidou, em consonância com o processo de popularização do abolicionismo, e foi forjada na dinâmica da relação entre expectativas e experiências escravas com a justiça e a atuação de advogados que encampavam suas reivindicações”. AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na Província de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 31. 243 A autora expõe uma prática reintroduzida nos territórios africanos do império francês em 1852, e aplicada em grande escala entre 1857 e 1862, com o objetivo de fornecer trabalhadores para as Antilhas Francesas, para a Guiana e para a ilha de Reunião, que concernia numa forma de alforria por resgate que não libertava, “um artifício que trouxe de volta a dependência e o servilismo”. FLORY, Céline. "Alforriar sem libertar: a prática do “resgate” de cativos africanos no espaço colonial francês no século XIX", Revista Mundos do Trabalho, vol. 3, n. 6, julho-dezembro de 2011, p. 95; ver também FLORY, Céline. De l’esclavage à la liberté forcée. Histoire des travailleurs africains engagés dans la Caraïbe française au XIX siècle. Paris: Karthala, 2015. 287 liberdade que começaram a chegar aos tribunais coloniais e metropolitanos, tiveram uma importância fundamental na história da luta por liberdade no Caribe Francês. E este trabalho de pesquisa procura demonstrar o papel essencial das mulheres nesse processo, como veremos no próximo tópico.

5.4 – MÃES ESCRAVAS E ALFORRIA: O PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA FAMÍLIA (NEGRA) E AÇÕES DE LIBERDADE

“[…] o caso Virginie impulsionou um grande movimento; que se faça perscrutar em todos os tristes arquivos da escravidão, e encontrar em muitos, sob o torpor e as fraudes da servitude, um título imperecível de liberdade!”244

“Ó lutas de grandes dias, ó do livre Palácio / Queridas e doces lembranças, inefável vitória / Santos enlaces que Deus fez à família negra / Amor e Liberdade, últimas palavras do julgamento, / Foi o grito da alma e foi o sucesso.”245

Virginie era escrava da madame de Bellecourt, proprietária em Guadaloupe, uma das colônias francesas no Caribe. Em 1822, a senhora Bellecourt registrou seu testamento, no qual legava à Virginie sua liberdade, com a condição de que a servisse até sua morte. Sua mãe, chamada Modeste, também foi incluída no mesmo “legs de liberté”, mas não sabemos se ela teria sobrevivido para conquistar sua alforria. Quando sua senhora morreu dez anos depois, Virginie tinha dois filhos, nascidos depois que o testamento havia sido feito. O mais novo, Simon, ainda estava sendo amamentado e a filha Amélie tinha seis anos. Virginie queria

244 “(…) l’arrêt Virginie a imprimé un grand mouvement; qu’il fait fouiller partout les tristes archives de l’esclavage, et retrouver à beaucoup, sous la torpeur et les fraudes de le servitude, un titre impérissable de liberté!”, in BISSETTE, Cyrille Charles Auguste. A M. Dupin, député de la Nièvre, procureur général à la Cour de Cassation, 25 août 1845 (BNF – Gallica), p. 20 245 “Ô luttes de grands jours, ô du libre Palais / Chers et doux souvenirs, ineffable victoire / Des saints nœuds qui Dieu fit à la famille noire! / Amour et Liberté, derniers mots du procès, / C’était le cri de l’âme, et ce fut le succès”. Referência de Adolphe Gatine à ação de liberdade do affaire Virginie, na Cour de Cassation (“libre Palais”), em seu poema autobiográfico sobre as experiências abolicionistas, in GATINE, Ad. Souvenirs d’un abolitioniste. Paris: Philippe Cordier, 1864 288 manter seus filhos consigo, “dizendo que não poderiam separá-los dela”, mas eles permaneceram como escravos dos herdeiros de Bellecourt246. Livre desde 1832 pelo desejo expresso no testamento de sua senhora, Virginie apenas obteve sua carta de alforria da administração colonial em 18 de fevereiro de 1834247. Ela tentou insistir que os filhos pequenos permanecessem com ela, mesmo que tivesse que pagar um “aluguel” aos senhores. Aparentemente, essa não era uma prática incomum nas colônias francesas do Caribe. Em um outro caso, semelhante ao de Virginie, uma mulher liberta da Martinica, Élia Plata, cuja liberdade a tinha separado de seus seis filhos, todos ainda impúberes, para ter ao menos as duas filhas menores consigo, pagava um aluguel mensal a uma das herdeiras de sua ex-senhora — quatro francos por uma e três francos pela outra. Contudo, isso não garantia que ao menos parte da família pudesse se manter reunida. Quando uma de suas filhas pequenas ficou doente, Élia Plata recebeu ordens para que retornasse as crianças à fazenda dos senhores248. Provavelmente acreditavam que Plata não era capaz de cuidar de suas próprias filhas, devido ao preconceito que sempre impregnou a visão dos senhores e europeus sobre as famílias escravas e libertas249. No caso de Virginie, os proprietários de seus filhos, apesar destes serem ainda muito pequenos, acreditavam que as crianças escravas não poderiam ficar com a mãe liberta nem mesmo temporariamente. Argumentavam que se experimentassem as “vantagens” e as “doçuras” da liberdade, ao retornarem ao poder de seus senhores, na “idade da razão”, perceberiam a diferença entre uma condição e outra e se tornariam escravos indisciplinados, situação indesejável “à ordem pública das Colônias”250.

246 GATINE, Adolphe. Procès Virginie, de la Guadaloupe: plaidoirie et arrêt de cassation, 22 novembre 1844. Paris: Imprimerie de Ph. Cordier, 1844, p. 3 (manioc.org). 247 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 51. 248 “Lettre de um magistrat de la Martinique”, 21/03/1842, citada por Gatine, que representava também o caso de Élia Plata na Cour de Cassation em Paris, para que conseguisse a liberdade de seus filhos, com a mesma jurisprudência que seria criada pelo caso de Virginie. GATINE, op cit (1844), p. 10. 249 Robert Slenes, em seu importante trabalho sobre a formação das famílias escravas, parte de uma citação do publicista francês Charles Ribeyrolles, que afirma em seu relato de viagem ao Brasil que nas habitações dos escravos “não há famílias, apenas ninhadas (…) Por que manteria a mãe [escrava] seu cubículo e os filhos limpos? (…) Nos cubíbulos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem nem esperanças nem recordações” [grifo meu]. De acordo com Slenes, a metáfora de Ribeyrolles “resume bem o consenso sobre a matéria [famílias escravas] existente não apenas entre os viajantes europeus da época, mas também, até há pouco tempo, entre os historiadores”. O trabalho de Slenes é uma crítica a esta visão, procurando demonstrar como “as relações de parentesco constituem um nexo importante para a (re)criação das esperanças e recordações das pessoas: isto é, para a formação de memórias, projetos, visões de mundo e identidade”. SLENES, Na senzala uma flor (2011, c. 1999), epígrafe-contraponto e p. 27. 250 Declaração dos senhores dos filhos de Virginie, no processo de liberdade, citado por Gatine: “que les enfants ne pourraient même être remis temporairement à leurs mères, parce que, ayant goûté avec elle tous les avantages, toutes les douceurs de là liberté, replacés ensuite sous la puissance de leur maître, à l'âge de raison, où ils commenceraient à apprécier la différence de ces deux états, ils seraient nécessairement des 289

Apenas em maio de 1837, Virginie ousaria requisitar aos herdeiros Bellecourt a restituição de seus filhos por meio do sistema judiciário, inciando um processo no tribunal de primeira instância de Pointe-à-Pitre, em Guadalupe. Seu caso seria julgado por esta corte apenas um ano depois251. A história dessa ação de liberdade foi narrada em textos de Adolphe Gatine, Cyrille Bissette e Victor Schoelcher. Foi possível ter acesso apenas à defesa montada por Gatine e comentários de abolicionistas em libelos sobre este caso, além dos textos das decisões do tribunal superior e do tribunal real de Poitiers (França), publicadas pelo advogado abolicionista. Gatine, como advogado da Cour de Cassation (Corte de Cassação), representou os interesses de Virginie nos processos que chegariam a este tribunal superior em Paris em 1841 e em 1844. Sobre as ações de liberdade envolvendo as mães escravas (e libertas) e suas famílias, além da importância de suas redes de relações com pessoas livres e libertas, o papel exercido por curadores e advogados, nas colônias e na metrópole foi fundamental. Infelizmente, as fontes que tivemos acesso apenas ressaltam a atuação de Adolphe Gatine, mas seu trabalho obviamente merece destaque. Esse advogado francês é menos célebre que abolicionistas como Victor Schoelcher ou mesmo Auguste-François Perrinon, martinicano afrodescendente que assumiu a administração da Martinica depois da Revolução de 1848, ainda que Gatine tenha assumido a mesma função em Guadalupe, como comissaire général. Ele partiu em oito de maio de 1848 na mesma embarcação para as Antilhas, acompanhado de Perrinon252. A história dos quatro meses de sua administração abolicionista em Guadalupe é exposta em seu livro, “Abolition de l’esclavage à la Guadaloupe, quatre mois de gouvernement dans cette colonie”. Anteriormente ao período da Monarquia de Julho, sabe-se basicamente que ele nasceu em Paris, em 30 de março de 1805. O historiador Adelaïde-Merlande afirma que Gatine parece ter se empenhado bem cedo, como “advogado dos Conselhos [do rei]” (e da Cour de Cassation), às causas coloniais. Por causa de suas atividades com os livres de cor martinicanos, sobretudo Bissette e Fabien, a partir de 1831, Adelaïde-Merlande presume que foi por intermédio deles que Gatine foi levado a se fazer o defensor dos direitos dos livres de

esclaves indisciplinés, ce qui serait contraire à l'ordre public des Colonies”. GATINE, op cit (1844), p. 10. 251 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 51. 252 ADÉLAÏDE-MERLANDE, Jacques, “Introduction”, in GATINE, Adolphe. L’abolition de l’esclavage à la Guadaloupe (1848): quatre mois de gouvernement dans cette colonies. (Introdução e notas de Jacques Adélaïde-Merlande). Paris: Karthala, 2012, p. 11. Não encontrei mais nenhum trabalho de pesquisa sobre a vida deste advogado abolicionista. 290 cor e dos escravos nas colônias253, como por exemplo no caso da Grand’Anse (Martinica). Contudo, de acordo com o historiador, o processo que o tornaria célebre nos meios abolicionistas seria o caso de Virginie254. No entanto, nos tópicos anteriores deste capítulo, observou-se que Gatine se envolveria em outras questões antiescravagistas em parceria com Bissette e outros afrodescendentes livres das colônias que viviam exilados na metrópole. Aparentemente, as informações e denúncias que chegavam da Martinica e de Guadalupe, via estes homens de cor em Paris, foram essenciais para a atuação de Gatine. A introdução de Jacques Adélaïde-Merlande ao livro de Gatine sobre sua adminstração em Guadalupe tem o seguinte título: “Introduction: Adolphe Ambroise Alexandre Gatine, un compagnon de Scholcher” [grifo meu]. Isso porque, entre outros fatos, em 1848, Gatine faria parte da comissão de abolição da escravidão, presidida por Schoelcher, além da influência determinante deste, de acordo com Adélaïde-Merlande, sobre a indicação de Gatine para o posto de comissário comandante em Guadalupe depois da revolução de fevereiro255. Contudo, diria que ele foi mesmo um compagnon de Bissette, que o definia como seu “amigo” em seus textos256. Gatine escreveu o prefácio de uma coletânea de “cartas políticas” escritas por Bissette na década de 1840 ao Ministro da Marinha e das Colônia e a vários deputados, tratando questões sobre a alforria e a emancipação geral dos escravos da colônias. Naquele prólogo, o advogado abolicionista caracteriza Bissette como um “soldado” isolado, mas persistente na luta em defesa de “seus irmãos”, procurando “cada dia uma brecha, para conseguir a liberdade de alguns pobres negros [noirs]”257. Além disso, em seu “Souvenirs d’un abolitioniste”, Gatine cita Bissette e Fabien como mártires258, ressaltando a importância dos militantes afrodescendentes na luta antiescravista, sem destacar a atuação de Schoelcher259, para quem estas lutas jurídicas e por alforrias individuais pareciam ter menos

253 ADÉLAÏDE-MERLANDE, op cit (2012), p. 7. 254 Idem, p. 8. 255 Idem, p. 11. 256 Na carta ao procurador da Cour de Cassation, deputado Dupin, Bissette se refere a Gatine como seu “honorable ami”, que estava encarregado de formar as apelações na Cour de Cassation representando os interesses de mães e filhos escravizados reinvindicando suas liberdades. BISSETTE, op cit (1845), p. 20. 257 “Infatigable défenseur de ses frères (…) il est chaque jour sur la brèche, pour obtenir la liberté de quelques pauvres noirs (…) M. Bissette ne rencontre pas toujours des approbateurs; et pourtant des encouragements, des éloges sont dus sans aucun doute au soldat de la presse qui, seul pour ainsi dire, réduit à ses propres ressources, et sans autre appui que la cause même où il retrempe incessamment ses forces, soutient l’effort d’adversaires puissants, à qui la clef d’or ouvre si facilement certaines consciences et les feuilles de certains journaux”. GATINE, Adolphe, “Avant-Propos”, in BISSETTE, Cyrille. Lettres politiques sur les colonies, sur l’esclavage et sur les questions qui s’y rattachent. Paris: Ebrard Libraire, 1845, pp. 5-8. 258 GATINE, op cit (1864), p. 2; 6. 259 Gatine faz referência a Schoelcher em duas notas; na primeira, cita seu nome em meios a vários outros abolicionistas franceses, e em outra nota se refere à um texto de Schoelcher sobre os escravos “Marrons”, 291 importância, por exemplo, que para Bissette. Na Revue de Colonies de dezembro de 1836, Bissette afirmaria que “a missão libertadora da Revue deve se manifestar não somente pela força das teorias, mas também por aquela dos fatos, e que a liberdade de alguns devido à nossa perseverança enuncie em voz alta cada vez pela emancipação geral”260. Voltando ao caso de Virginie e sua luta pela liberdade de seus filhos, acerca do processo em Guadalupe, obtivemos informações apenas acerca de parte da argumentação utilizada no julgamento e o resultado, sem mais elementos sobre, por exemplo, quem teria sido o advogado (curador) de Virginie na colônia e como seu caso teria chegado à Cour de Cassation. Porém, é imprescindível abordar este processo de liberdade. A história de Virginie e de seus filhos nos tribunais franceses se tornou emblemática e abriu um caminho que seria trilhado por várias ações de liberdade. O resultado de seu processo influenciaria outros que, como o dela, há anos batalhavam nos tribunais das colônias por um desfecho que não favorecesse os senhores e que garantisse por meio da liberdade a reunião de famílias de ex- escravos. O Código Negro proibia em seu artigo 31 que os escravos pudessem participar de qualquer processo civil261, situação que mudaria, em parte, apenas em 1845, com a Lei Mackau. Contudo, no caso de Virginie, tornando-se liberta em 1834, obtinha os direitos civis e políticos garantidos pela lei de 24 de abril de 1833262, como qualquer pessoa livre, independente da cor da pele. Isso provavelmente sustentou sua empreita ao tentar enfrentar nos tribunais os senhores de seus filhos As ações de liberdade de Virginie demonstram, sobretudo, a reinterpretação daquela legislação antiga, a qual, influenciada pela missão moralizante da igreja católica (francesa) em relação à escravidão dos povos africanos, tinha como objetivo incentivar a formação de famílias entre os escravos e evitar que fossem separadas nas transações entre senhores. De maneira astuciosa e legítima, a partir do affaire Virginie, nas décadas de 1830 e 1840, o Código Negro passaria a ser utilizado por mães escravas e libertas e advogados abolicionistas no sentido de conquistar a liberdade de famílias escravas inteiras. Desse modo,

entre outros textos de outros autores sobre o mesmo tema. GATINE, op cit (1864), p. 6; 9. 260 Revue des Colonies, décembre 1836, no. 6, p. 225 (BNF – Gallica). 261 Art. 31 do Code Noir: “Ne pourront aussi les esclaves être parties ni citer en matière civile, tant en demandant qu’en défendant, ni être parties civiles dans les matières criminelles, sauf à leurs maîtres d’agir et défendre en matière civile, et de poursuivre en matière criminelle, la réparation des outrages et excès qui auront été commis contre leurs esclaves”, DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, tomo 1, p. 48. 262 “Loi concernant l’exercice des Droits Civils et des Droits politiques dans les Colonies”, 24 de abril de 1833, BOM, 1833, pp. 81-83. 292 o debate jurídico feito sobre esta questão abordou a aplicação do artigo 47 do édito de 1685, que dizia:

Art. 47: Não poderão ser confiscados e vendidos separadamente, o marido e a mulher, e seus filhos impúberes, se estiverem sob o poder do mesmo senhor. Declaramos nulas as confiscações e vendas que assim forem feitas; [...] que ocorra nas alienações voluntárias, sob pena, contra aqueles que as fazem, de serem privados daquele ou daqueles que eles tenham mantido, que serão adjudicados aos compradores, sem que sejam obrigados a pagar qualquer valor suplementar.263 (grifo meu)

Esta disposição era frequentemente desrespeitada pelos senhores de escravos, não sendo de fato executada nas possessões francesas. De acordo com Gatine, um relatório do Conselho Colonial de Guadalupe sobre a situação da colônia informou que durante 15 anos, entre 1825 e 1839, 37.871 escravos foram vendidos em Guadalupe, entre os quais 7.698 (20,3%) eram crianças entre um e treze anos. Isso poderia indicar que, provavelmente, muitas entre elas estariam sendo vendidas separadamente de suas mães264. De acordo com Gatine, Virginie teria invocado o artigo 47 do Código Negro desde a primeira ação no tribunal civil de Guadalupe (1837-1838). Contudo, o juiz dessa corte decidiu que não se tratava de “uma venda da mãe sem os filhos”, como previsto pela lei, e que o caso de Virginie não deveria ser entendido sob “o pretexto de analogia” (em decisão de 5 de julho de 1838)265. Virginie não desistiu do processo e apresentou uma apelação à Cour de Cassation. Em 1o. de março de 1841, este tribunal enunciaria em suas conclusões sobre o caso que “o favor que se liga à liberdade do homem deve fazer interpretar em um sentido mais amplo as leis que, diretamente ou indiretamente, tem por objeto a liberdade”. Dessa forma, os juízes da corte de apelação interpretaram que no artigo 47 do édito de 1685, ao prescrever que proibia a venda separada do marido, da mulher e dos filhos impúberes, quando pertenciam ao mesmo senhor, o legislador tinha em vista proibir qualquer “separação” que pudesse ser fatal às crianças ou ferir as “leis de humanidade e os princípios do direito natural”, fosse pela alforria de sua mãe ou pelo efeito de uma venda. Nesse sentido, concluíram que a proibição enunciada na

263 Art. 47 do Code Noir (Édito de 1685): “Ne pourront être saisis et vendus séparément, le mari et la femme, et leurs enfants impubères, s'ils sont sous la puissance du même maître. Déclarons nulles les saisies et ventes qui en seront faites; ce que nous voulons avoir lieu dans les aliénations volontaires, sous peine, contre ceux qui font ces aliénations, d'être privés de celui ou de ceux qu'ils auront gardés, qui seront adjugés aux acquéreurs, sans qu'ils soient tenus de faire aucun supplément de prix”, in DURAND-MOLARD, Code de la Martinique, tomo 1, pp. 40-55. 264 GATINE, op cit (1844), p. 5. 265 GATINE, op cit (1844), p. 6; SCHOELCHER, op cit (1847), p. 45. 293 legislação antiga, quanto à separação das famílias escravas, poderia ser aplicada em ambas situações. Desse modo, o caso de Virginie e de seus filhos deveria ser julgado novamente, em outro tribunal266. Para o novo julgamento, foi indicada a Corte Real de Bordeaux (França), escolha que pareceu temerária aos abolicionistas. Sabia-se que os portos da costa francesa eram dominados pelos grandes interesses nos negócios colonias. Esse ambiente influenciado por senhores de escravos ou seus representantes poderia induzir os membros da Corte de Bordeaux a uma posição contrária a toda matéria favorável à emancipação267. Além disso, fazia parte daquele tribunal Imbert de Bourdillon, antigo procurador-geral da Martinica, onde, de acordo com Schoelcher, distinguiu-se “por sua fúria contra os escravos”. Temia-se que em razão de “seus conhecimentos especiais”, Imbert de Bourdillon exercesse uma influência indesejável à causa de Virginie sobre a decisão de seus colegas268. De fato, a Corte Real de Bordeaux, que poderia julgar o processo em seis semanas, deliberou sobre o caso apenas 18 meses depois da decisão da Cour de Cassation acerca da apelação de Virginie. Nesta época, à Virginie restava apenas sua filha Amélie, para quem solicitava a liberdade, pois Simon, com 12 anos de idade, havia falecido em poder dos seus senhores269 — não há relatos claros sobre os motivos de sua morte. Assim como se temia, em 30 de junho de 1842, a Corte de Bordeaux decidiu por um veredito semelhante ao tribunal de Guadalupe, afirmando que o artigo 47 do Código Negro proibia a separação da mãe escrava e dos filhos em caso de venda e confiscação de bens, mas que poderiam ser separados se um ou outro fosse alforriado. Ademais, o procurador geral da Corte de Bordeaux argumentou que os senhores não alforriariam mais se tivessem que perder os filhos da escravas também (e vice versa), prejudicando as concessões de alforrias, objetivo inverso ao pretendido pelos abolicionistas. Esse argumento era, inclusive, usado pelos colonos, por seus delegados e pela imprensa que representava seus interesses na metrópole270. Alegava, ainda, que se a decisão daquele tribunal favorecesse a demanda de Virginie comprometeria muitos interesses das colônias, pois um grande número de escravos reclamaria suas liberdades, “se a nova teoria da Cour de Cassation viesse a prevalecer”271.

266 Decisão da Cour de Cassation, Paris, 1 de março de 1841, citada em SCHOELCHER, op cit (1847), p. 45. 267 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 45-46. 268 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 46. 269 Idem. 270 GATINE, op cit (1844), p. 13. 271 Argumentos do Procurador-Geral da Corte Real de Bordeaux, comentados em GATINE, op cit (1844), p. 13. 294

No entanto, Virginie, persistente, novamente recorreu à Cour de Cassation contra as decisões dos tribunais de Guadalupe e de Bordeux. No novo julgamento realizado, Adolphe Gatine foi mais uma vez o advogado do tribunal de apelação que representou os interesses de Virginie. Em suas alegações, Gatine demonstraria de maneira sagaz que o artigo 47 do Código Negro era aplicável à situação vivida por Virginie e seus filhos. Primeiramente, afirma que de fato não houve uma venda propriamente dita, seja forçada ou voluntária, mas que ocorreu um legado de uma herança. Isso posto, ressalta que a lei não enunciava apenas os termos “venda” e “confiscação de bens”, mas também se referia de forma ampla a “alienações voluntárias”, ou seja, a toda espécie de cessão de bens. Nesse sentido, de acordo com o art. 711 do Código Civil em vigor na década de 1840, a herança era uma via de transmissão de bens. Dessa forma, segundo Gatine, ceder a liberdade a uma escrava por meio de uma herança, alforriando-a por um testamento, certamente significava alienar esta propriedade, e assim, por esta forma de alienação, a escrava liberta não poderia se separar de seus filhos. De acordo com o advogado, se a herança fosse legada em benefício de um terceiro, não haveria nenhuma dúvida quanto a isso, pois um outro legatário que adquirisse a propriedade sobre Virginie, reclamaria também os filhos impúberes como seus escravos. Como a disposição do testamento foi feita em benefício de Virginie, “la chose léguée et le légataire” [a coisa legada e o legatário] coincidiam. Ela mesma havia adquirido a “propriedade” de seu corpo, e poderia da mesma forma que outros “herdeiros” requisitar que seus filhos lhe fossem entregues, “como sendo inseparáveis de sua mãe”272. Segundo Gatine, o Código Negro preconizava no artigo 47 de forma ampla o “princípio da indivisibilidade da família” (escrava), ao menos até a puberdade das crianças. A questão era saber se este “grande princípio” deveria cessar assim que a mulher escrava alcançasse uma condição melhor, como quando conquistava sua alforria273. Gatine desenvolveria mais suas alegações favoráveis à causa de Virginie, apelando também ao “direito natural” e ao “direito de gente”, pois mesmo que a escrava (ou seus filhos) não tivesse direitos civis, restava-lhe ainda o “direito de pessoa” em sua função como mãe. O advogado abolicionista recorre à obra do jurista alemão Samuel Pufendorf (1632-1694), Droit de la nature et des gens, “Du pouvoir paternel” (Liv. 6, chap. 2)274, quando

272 GATINE, op cit (1844), p. 6. 273 Idem, p. 9. 274 Gatine não apresenta a referência completa da obra utilizada, mas há uma tradução do latim para o francês desta obra, traduzida por Jean Barbeyrac, publicada em 1706 (Amsterdã) e 1740 (Londres). PUFENDORF, Samuel von. Le droit de la Nature et des gens ou systeme général des principes les plus importans de la 295 afirma que “toda mulher se torna ao mesmo tempo mãe e senhora da criança que ela coloca no mundo”, e argumenta que o direito à maternidade é “um direito anterior aquele dos colonos das Antilhas, um direito inalienável, inviolável”. Neste “direito sagrado”, estavam entremeados seus deveres e suas alegrias: a mãe deve amamentar seus filhos, criá-los, protegê-los, velar sobre eles a todo momento. Segundo a interpretação de Gatine, argumentando naquele sentido do direito natural, por trás das intenções do artigo 47 estaria também a questão dos direitos e deveres da maternidade275. A Cour de Cassation mais uma vez seria favorável à aplicação ampla daquela disposição do Código Negro, contra a separação entre a mãe e filhos escravos em caso de alforria. A decisão final desse tribunal parece até mesmo uma reescrita de algumas das alegações apresentadas por Gatine em suporte à causa de Virginie. Por exemplo, a argumentação sobre a herança entendida como alienação e, assim, a própria alforria testamentária da escrava reconhecida como uma forma deste tipo de transferência de bens276. Ressaltaria ainda, assim como o advogado abolicionista, os direitos e deveres da maternidade em relação à fragilidade da primeira idade das crianças. Dessa forma, segundo o que interessava à “moral pública” e “ao benefício que se liga à liberdade”, estes motivos determinavam que se interpretasse em um sentido mais amplo “uma legislação toda de exceção”, garantido um retorno aos “princípios do direito natural”. Por fim, determinava que a interpretação do artigo 47, sobre a indivisibilidade das famílias escravas, seria aplicável também no caso em que o senhor se despojasse de sua propriedade, mãe de um ou vários filhos impúberes, por meio da alforria, criando uma jurisprudência que seria marcante nas ações de liberdade nos últimos anos de escravidão nas colônias francesas. A Cour de Cassation, neste julgamento de 1844, ainda anulou as decisões dos tribunais de Guadalupe e de Bordeaux e reenviou o caso de Virginie à Corte Real de Poitiers277. A Corte de Poitiers (França), considerada bem menos sensível às influências coloniais que a Corte de Bordeaux, não mudaria a decisão da Cour de Cassation em sua essência, mas iria mais longe. No texto de sua deliberação, além de alegações semelhantes

morale, de la jurisprudence, et de la politique. Tome premier. Amsterdam: Henri Schelte, 1706; Londres: J. Nours, 1740. (BNF – Gallica). 275 GATINE, op cit (1844), pp. 8-9. 276 “Cour de Cassation. Virginie de la Guadaloupe, réclamant la liberté de ses deux enfants contre les héritiers de Bellecourt. Arrêt des Chambres réunies em audience solennelle”, 22 de novembro de 1844, in GATINE, Adolphe. Nombreuses libérations au cours de l’année judiciaire 1844-1845: Guadeloupe, Martinique, Guyane, Sénégal. Plaidoiries, mémoires et arrêts de cassation. Paris: Ph. Cordier, agosto de 1845 (BNF – Gallica), pp. 6-7. 277 Idem, pp. 7-8. 296

àquelas da corte de apelação, ainda enunciaria uma afirmação de fundo antiescravista, declarando que a “escravidão é uma exceção”. Finalmente, reconheceria como livre a filha de Virginie que havia sobrevivido, Amélie, já com 18 anos na época, determinando que ela deveria ser imediatamente enviada à sua mãe. Ademais, considerava que Virginie havia sofrido danos consideráveis devido à recusa dos herdeiros de lhe deixar com seus filhos. Por isso, condenava todos os beneficiários da sucessão da senhora Bellecourt a pagarem uma indenização de 15 mil francos à Virginie, além de arcarem com todas as custas dos processos que haviam ocorrido em Guadalupe, Bordeaux e Poitiers278. Os herdeiros Bellecourt contestariam a decisão de Poitiers279 e não sabemos se Virginie realmente recebeu a indenização devida. Porém, a liberdade de sua filha estava decretada e a jurisprudência sobre a interpretação ampla do artigo 47 do Código Negro, no caso de separação de mães e filhos escravos pela alforria, estava concretizada. Além disso, a “condenação pecuniária” era um elemento novo, sentenciando os ex-senhores a uma indenização por danos causados. De acordo com Schoelcher, esta questão, que mexia mais a fundo no bolso dos proprietários, poderia mudar seus cálculos acerca da manutenção ilegal de indivíduos escravizados, como no caso dos filhos de Virginie280. É interessante destacar que nos debates sobre indenização dos senhores de escravos em caso de uma abolição geral da escravidão nas possessões francesas, Bissette foi um dos únicos abolicionistas que argumentava que os libertos deveriam ser indenizados, e não os proprietários. Mesmo Schoelcher estimava que uma forma de compensação deveria ser paga aos senhores se a França decidisse pela emancipação universal dos escravos281. O sistema judiciário das colônias, influenciado pelo poder dos senhores de escravos, era uma pedra no caminho das ações de liberdade. Em 1845, Cyrille Bissette escreveu uma carta à Dupin, deputado e procurador geral da Cour de Cassation, na qual narrou vários casos de filhos impúberes (menores de 14 anos) separados de suas mães devido à alforria das crianças naqueles últimos anos. Denunciava que a administração e a justiça colonial dificultavam o acesso à liberdade e não estavam respeitando a jurisprudência criada pela Cour de Cassation no caso Virginie282. Provavelmente, os relatos sobre essa conjuntura eram enviados por seus interlocutores nas ilhas do Caribe, como já demonstrado

278 “Arrêt de la Cour Royal de Poitiers”, citada em SCHOELCHER, op cit (1847), pp. 51-52. 279 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 53. 280 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 54. 281 JENNINGS, op cit (2010), p. 76. 282 BISSETTE, op cit (1845). 297 anteriormente. Num julgamento realizado em uma das colônias em 1842, comentado por Gatine e relatado a ele por Bissette, sobre o caso da liberta Azède e seus filhos ainda em cativeiro, o juiz teria acusado a mãe de preferir sua liberdade, tendo “violado os laços de família”. Nesse sentido, o magistrado concluiu que Azède não tinha o direito de reclamar seus dois filhos, pois era sua falta ter se “separado voluntariamente” deles. Gatine ironiza a decisão do juiz, afirmando que “falta estranha ter preferido a liberdade à escravidão!”283. Em documento que escreveria em 1846 para servir de base de consulta às reclamações de liberdade, Gatine afirmaria que a jurisprudência criada pelo caso Virginie foi considerada “subversiva” nas colônias, contrária ao “direito colonial”. Dessa forma, ainda que as ações de liberdade geralmente conseguissem uma deliberação favorável aos escravos e escravas nos tribunais coloniais de primeira instância, frequentemente eram anuladas pelas Cortes Reais de Guadalupe e da Martinica, as quais não estavam adotando a interpretação do artigo 47 conforme a orientação da Cour de Cassation284. De acordo com o advogado abolicionista, as pessoas escravizadas e seus defensores, ao receberem as sentenças negativas, tinham o desejo de recorrer à Corte de Cassação na Metrópole. Porém, um primeiro obstáculo era a falta de recursos financeiros para tocar o processo. “Tarifa-se a fonte das alforrias judiciárias”, afirmava Gatine285. Para apresentar uma apelação ao tribunal superior era preciso pagar uma tarifa de 165 francos ou requisitar um certificado de indigência. O ponto central da crítica de Gatine era que não deveria haver dúvidas que um escravo ou uma pessoa que o representasse, geralmente alguém recém-egresso da escravidão, deveria receber o “certificado de indigência” para não ter que arcar com as custas dos processos, quando estivesse solicitando sua liberdade em uma ação legal. Em sua argumentação, fica evidente que nestas ações de liberdade estavam envolvidas além das famílias, também outras pessoas, quase que exclusivamente pessoas livres de cor, que auxiliavam as libertas ou libertos nas demandas de alforria de seus parentes que permaneciam no cativeiro. No entanto, a administração local, geralmente as prefeituras dos municípios, atravancavam a certificação do estado de pobreza daquelas pessoas, dificultando dessa maneira que dessem continuidade aos processos, sem despesas.

283 GATINE, op cit (1844), p. 11. 284 GATINE, Adolphe. Mémoire à consulter. Esclavage. Réclamations de liberté. Paris: Imprimerie d’E. Duverger, 1846, p. 3 (BNF – Gallica). 285 GATINE, op cit (1846), p. 6. 298

Em uma declaração feita para auxiliar a obtenção de um certificado de indigência para Marie Noël, cuja liberdade era reclamada por seu filho liberto, cinco homens livres de cor de Saint Pierre286 (Martinica) assinaram o documento, afirmando que era de seu conhecimento que aquela mulher vivia numa “indigência a mais extrema”. Contudo, o prefeito da cidade afirmaria que não conhecia em qual “posição social” se encontrava a mulher mencionada, não podendo “atestar seu estado de indigência”287. O prefeito de Saint- Pierre negaria ainda o certificado de pobreza para os filhos menores de idade de outras três mulheres escravas, além de Marie Noël, que separados de suas mães pela alforria, desejavam iniciar um processo de liberdade por suas progenitoras, obviamente com o apoio de alguém que os protegia e auxiliava na condição de libertos. Eram eles, Louisy Trebmy, 13 anos, filho de Antoinette Trebmy; Alexandre Niflo, 5 anos, filho de Eugénie; Émile Monbeau, 3 anos, filho de Rosella; Anténor, 11 anos, filho de Marie Noël. O representante da administração pública teria justificado que não poderia considerar estes menores de 14 anos “indigentes”, porque alguns estavam sob a tutela de seus pais e recebiam deles os cuidados necessários em sua idade, outros estavam sob a proteção de um patrono (ou patrona) que, ao solicitar sua alforria, havia se responsabilizado por prover todas as necessidades da criança liberta288. Estes casos ilustram como este primeiro passo para iniciar uma ação de liberdade na Cour de Cassation não era facilmente ultrapassado por aquelas pessoas que não tinham recursos suficientes. Durante os oito anos que decorreu o processo de Virginie (1837-1844), apenas um outro recurso de natureza semelhante teria sido levada à Corte de Cassação, o caso de Marie Luce, sobre o qual Gatine não fornece mais detalhes289. No entanto, depois do resultado do affaire Virginie, essa situação mudaria consideravelmente. Em 1847, Gatine listaria vários processos cujos resultados positivos sobre a liberdade de escravos e escravas decorriam do

286 Assinaram o documento os senhores Guary, E. Nouillé, V. Savane, A. Agnès, Sauvignon, todos afrodescendentes livres de Saint-Pierre. Eduard Nouillé tinha uma alfaiateria com sua esposa, era comerciante e esteve envolvido no affaire Bissette, julgado em 1824 (THÉSÉE, op cit, 1997, p. 232); Alfred Agnès fora um livre de fato, que manteve comunicação com Louis Fabien, para conseguir que a alforria de sua mãe fosse reconhecida, e assim a sua e de sua irmã, o que teria ocorrido ao final de 1831 (FABIEN, op cit, 1831, pp. 15-16); Sauvignon provavelmente era filho dos negros libertos Pierre Sauvignon e Marie- Anne, comerciantes, que obtiveram suas alforrias em 1807 e 1819, e casaram-se civilmente em 1822 (ele com 60 anos e ela com 50 anos), reconhecendo seus filhos naturais, Jacque-Léandre, 19 ano na época, e Rose Valère, 12 anos na época (LOUIS, Abel. Marchands et négociants de couleur à Saint-Pierre (1777- 1830): Milieux socioprofissionnels, fortune et mode de vie. Vol. 2. Paris: L’Harmattan, 2015, pp. 308-309). 287 Documento assinado pelo prefeito de Saint-Pierre, pelo Direitor do Interior e pelo Governandor da Martinica em dezembro de 1845, citado em GATINE, op cit (1846), p. 6. 288 GATINE, op cit (1846), p. 7. 289 GATINE, op cit (1844), p. 17. 299

“Arrêt Virginie”. Em três anos (1844 – 1847), 34 famílias, contando um total de 120 indivíduos, foram beneficiadas pela jurisprudência criada pela Cour de Cassation. Em Guadalupe, 5 famílias (contando a de Virginie), somando 16 indivíduos; na Martinica, 25 famílias, somando 100 indivíduos290. Mesmo no Senegal, onde o Código Negro nunca havia sido promulgado — mas reconhecia-se que várias das disposições deste édito eram aplicados nesta colônia na África pelos usos e costumes, constituindo o “direito de escravidão no Senegal” —, algumas famílias estavam conquistando a liberdade de seus membros por meio da jusrisprudência do caso Virgine291. De acordo com Gatine, a cada dia aumentava mais o número de “liberdades do art. 47”, resultando de julgamentos ou ainda de “resgates facilitados”292. Segundo informações que havia obtido, este número poderia chegar a 1200 alforrias naquele ano293. Muitos casos eram diferentes daquele de Virginie, ainda que a grande maioria se referisse a famílias formadas por mães e seus filhos. Em vários processos, as crianças libertas, representadas por seus pais ou outra pessoa responsável por elas após a alforria, solicitavam a liberdade de suas mães que haviam permanecido na escravidão. Várias histórias com esta característica seriam narradas por Bissette naquela carta ao deputado Dupin, denunciando ainda que todas aquelas famílias passavam por dificuldades para seguirem com suas ações de liberdade dentro do sistema judiciário da colônia. Em agosto de 1840, o senhor Lavau, proprietário da habitation Petit Marigot em Guadalupe, vendeu o menino Alcide, de oito anos de idade, à senhora Augustin Amédée, tia da criança, pelo preço de 500 francos. A alforria de Alcide foi solicitada pela senhora Amédée e concedida pelo governo de Guadalupe em outubro de 1842. Um ano depois, em 22 de outubro de 1843, a viúva Amédée, em nome de Alcide, reclamou a liberdade de sua mãe, Cécé, que permanecia como escrava de ganho, morando em Basse-Pointe, pagando suas jornadas de trabalho ao senhor Lavau. A alegação da ação de liberdade se pautava sobre o fato de que mãe e filho menor de idade haviam sido separados por um ato de venda seguido de alforria. Como a administração colonial não fez

290 GATINE, Adolphe. Causes de Liberté. Résultats de l’arrêt Virginie. Paris: Ph. Cordier, S/D (BNF – Gallica) 291 Fatema contre la Dame Guillemain. Jugement du Tribunal de Première Instance de Saint-Louis, 22 de fevereiro de 1845. Fatema, que havia comprado sua liberdade da senhora Guillemain, conseguiu que sua filha, Gualada (que havia permanecido sob a posse de sua ex-senhora), fosse liberta após este processo. GATINE, Nombreuses libérations, op cit (1845), pp. 13-16. 292 Algumas famílias escravas, cuja situação permitia a aplicação da interpretação do artigo 47, conseguiram negociar suas alforrias, por intermédio do resgate forçado (depois da lei de 1845), preferindo acertar um valor sobre suas liberdades que esperarem os longos processos; essas alforrias por resgate forçado serão tratadas no próximo capítulo. 293 GATINE, Causes de Liberté. Résultats de l’arrêt Virginie, 1847 300 nada para encaminhar a solicitação da senhora Amédée, a própria Cécé se dirigiu pessoalmente ao Procurador do Rei para pedir que tomasse as medidas necessárias sobre a demanda de sua alforria. Contudo, os funcionários do governo não encaminharam seu caso até 1844, quando, por conta da insistência de Cécé e sua família, chamaram o senhor Lavau diante do tribunal para perguntar se ele consentia a alforria de sua escrava. Lavau respondeu que a autorizaria sob a condição de que Cécé lhe pagasse 500 francos. A escrava rejeitou esta proposta e continuou insistindo em seu direito à liberdade. No entanto, quando Bissette narrou essa história de Cécé e Alcide, seu caso ainda não tinha sido resolvido294. No ato da venda de Alcide a sua tia, Lavau teria feito registrar que realizava aquela venda “sob a condição expressa” de que a senhora viúva Amédée se comprometia a alforriar seu sobrinho no prazo de um ano. Se não o fizesse, ele teria o direito de retomar a propriedade sobre Alcide, devolvendo à senhora Amédée duzentos francos a menos do valor da venda. Bissette ironiza a atitude de Lavau, que além de cobrar um valor alto pela criança escrava, ainda se apresentava no documento como o benfeitor responsável pela promessa de liberdade a Alcide295. Talvez o senhor dos escravos acreditasse que assim evitaria configurar a transação como uma venda separada de mãe e filho, o que possibilitaria uma demanda de alforria posterior, como de fato ocorreu. É possível, ainda, que a atitude de Lavau fosse uma reação ao fato de que em Guadalupe e na Martinica a questão das alforrias conquistadas por pessoas escravizadas vinha perturbando o domínio senhorial desde 1831. Como afirma Chalhoub em relação ao Brasil, “um dos pilares da política de controle social na escravidão era o fato de que o ato de alforriar se constituía numa prerrogativa exclusiva dos senhores”. No entanto, nos últimos anos de escravidão, “a alforria como parte de uma política de domínio senhorial” já vinha falindo havia quase duas décadas296. Guardadas as diferenças em relação à história do Brasil, passava-se algo semelhante na década de 1840 nas colônias francesas. Na situação da alforria de Alcide, sua liberdade deveria partir da vontade de seu senhor e ser reconhecida como um benefício concedido por ele. Dessa maneira, talvez Lavau tentasse evitar que seu domínio sobre o cativeiro ou a liberdade de sua propriedade escrava não fosse abalado pela ação de uma mulher livre de cor (a senhora Amédée), que, ademais, ainda tinha laços de parentesco com seus escravos. Contudo, sua atitude se tornou duplamente

294 BISSETTE, Cyrille Charles Auguste. A M. Dupin, député de la Nièvre, procureur général à la Cour de Cassation, 25 août 1845, pp. 2-4. 295 BISSETTE, op cit (1845), p. 2. 296 CHALHOUB, op cit (1990), pp. 99-100. 301 improfícua quando Cécé e a senhora Amédée passaram a batalhar juntas pela alforria da primeira, ação que demonstra mais uma vez como os escravos, sobretudo as mulheres escravizadas e libertas, estavam lutando pela liberdade nos últimos anos do sistema escravista nas colônias francesas, confrontando a classe senhorial, e dando seu bocado ao processo histórico de abolição da escravidão. Em outro caso narrado por Bissette, ele conta a história de Claude Pontif, Zabeth e seus filhos. Pontif era um liberto, carpinteiro, que prestava serviços ao senhor Lespinasse, em sua propriedade rural em Trois-Rivières, na ilha de Guadalupe. Provavelmente havia conseguido comprar sua liberdade deste senhor, mas ainda viviam como escravos de Lespinasse sua mulher Zabeth e seus nove filhos. Em outubro de 1839, o senhor Lespinasse vendeu à Pontif seu filho mais novo, Saint-Saint, de 3 anos, como pagamento pelos serviços prestados pelo liberto na fazenda, pelo valor de 600fr297, preço alto para um escravo de três anos. Porém, Pontif provavelmente não quis nem mesmo discutir isso, pois havia conseguido dessa forma que o senhor autorizasse a alforria de seu filho. Pontif obteve o registro da liberdade oficial de Saint-Saint em outubro de 1842. Zabeth e os outros filhos seguiam no cativeiro, como escravos da fazenda Lespinasse. Além disso, uma outra filha do casal tinha sido vendida pelo proprietário da família, em 1827, ao senhor Corneille-Marcel, quando ela tinha apenas seis anos de idade. Em 1844, Pontif solicitaria as alforrias de Zabeth e de suas crianças, em nome de seu filho liberto, que havia sido vendido separadamente de sua mãe, contrariando o artigo 47 do Código Negro. O Procurador do Rei escreveria sobre esta demanda ao senhor Marius Courtois, genro e herdeiro da sucessão de Lespinasse, informando sobre as intenções de Zabeth e sua família. Na resposta de Courtois ao procurador, ele lamentava a atitude ingrata de Zabeth e Pontif em relação ao falecido senhor Lespinasse. Ademais, afirmava que Zabeth vivia de tal forma na fazenda, com seu casebre e suas “pequenas mordomias”, que ele acreditava não haver “liberdade melhor no mundo” que a dela. O herdeiro de Lespinasse pediria mais tempo ao Procurador do rei, antes que desse prosseguimento ao processo, e o caso de Zabeth e seus filhos também seguia ainda sem nenhum encaminhamento até a época que Bissette escreveu a Dupin298. Bissette narra outros casos de crianças vendidas aos seus pais naturais, cujas mães permaneciam na escravidão, e assim como Claude Pontif, solicitavam a alforria da mulher,

297 BISSETTE, op cit (1845), p. 8. 298 BISSETTE, op cit (1845), p. 9. 302 muito provavelmente suas companheiras, mas que enfrentavam a resistência da administração e do sistema judiciário das colônias. Havia também processos que envolviam famílias extensas, nos quais a mulher liberta demandava a liberdade de seu marido, filhos e netos, baseando-se ainda em outras leis para justificar a alforria de escravos e escravas nas ações de liberdade, além do artigo 47 do Código Negro. Em 1847, Gatine representaria na Corte de Cassação um caso marcante devido à quantidade de alforrias solicitadas para uma única família. Marie Sainte Platon, liberta na Martinica, reclamava a liberdade de quatorze pessoas: de seu marido, de seus nove filhos e de quatro netos299. No caso de Virginie, ela era uma escrava urbana que trabalhava como doméstica, que tinha proximidade com sua senhora e, assim, provavelmente teve mais facilidade de provar sua dedicação e negociar sua alforria pelos serviços prestados. No entanto, o caso de Marie Sainte se sobressai, além da quantidade de liberdades requisitadas, porque sua família vivia e trabalhava no meio rural. Alguns historiadores e historiadoras, que abordam processos de liberdade em outros espaços escravistas da América e do Caribe, destacam ações realizadas sobretudo por escravos e escravas que viviam no meio urbano300, e parece ser uma constante a ausência de histórias de lutas judiciárias pela liberdade como esta vivenciada por trabalhadores escravizados que moravam no campo301. Marie Sainte e François eram escravos da fazenda de cana-de-açúcar Casse-Cou, propriedade indivisível de vários coproprietários, no município Le François, na ilha de Martinica. A “união perseverante” deste casal lhes deu numerosos filhos. Marie Sainte, com 46 anos de idade quando foi alforriada, teve com François dez filhos. Como afirma Gatine,

299 GATINE, Adolphe. Cour de Cassation. Causes de Liberté. Marie Sainte Platon, de la Martinique, réclamant les quatorze libertés de son mari et des ses enfants ou petits-enfants. Paris: Imprimerie de Ph. Cordier, 1847 (BNF – Gallica). 300 Camillia Cowling, ao abordar as ações de liberdade envolvendo mulheres libertas e suas famílias escravas em Cuba e no Rio de Janeiro, destaca amplamente as experiências vividas nas cidades. Ver COWLING, Camillia. Conceiving freedom: women of color, gender, and the abolition of slavery in Havana and Rio de Janeiro. The University of North Carolina Press, 2013, pp 123-150. Keila Grinberg afirma que as ações de liberdade aumentaram no Brasil a partir do final do século XVIII, mas sobretudo no século XIX, porque os “escravos urbanos perceberam que esta era a hora certa para reivindicar a liberdade pessoal” por conta das turbulências sociais e políticas. Ver GRINBERG, Keila, “Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 27, 2001, p. 76. Sidney Chalhoub também aborda especialmente casos de ações de liberdades realizadas por escravas e escravos urbanos. Ver CHALHOUB, Visões da Liberdade. 301 Hebe Mattos aborda algumas ações de liberdades envolvendo escravos e escravas das áreas rurais da região sudeste do Brasil e destaca que de fato ocorriam bem menos frequentemente; contudo, esses “processos contam também incríveis sagas familiares, algumas passando por várias gerações, em que se mantém a memória do cativerio ilegítimo de uma mãe, avó ou mesmo bisavó”. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Campinas: Ed. da Unicamp, 2013, p. 182. 303

“nos antigos hábitos coloniais, uma tal fecundidade teria por recompensa ordinária a alforria gratuita”302. No entanto, não foi isso que ocorreu. Com a ajuda de um pecúlio formado com a contribuição de toda a família — Gatine se refere a um “pecúlio comum” —, Marie Sainte pode comprar sua liberdade. O resgate foi consentido pelo senhor Desvergers de Chambry, um dos coproprietários e administrador dos negócios da fazenda, representando os outros herdeiros desde aquele ano de 1840. De Chambry talvez tenha concordado com a venda e alforria de Marie Sainte por alguns cálculos. Pelo fato dela ter “contribuído” com a propriedade, gerando vários filhos, e por pagar um preço que não era baixo para uma mulher em sua idade. O ato de resgate foi registrado em 23 de março de 1840, e foi feito na forma de uma venda da escrava Marie Sainte ao senhor Michel Aristote, pelo valor de 1000 francos303. Michel Aristote304 provavelmente era um homem livre de cor, amigo ou parente da família de escravos, que os auxiliava na transação pela liberdade de Marie Sainte. Sua alforria oficial foi publicada no Bulletin Officiel de la Martinique, em 5 de fevereiro de 1841: “Marie-Sainte, negra crioula de 46 anos, attaché à la culture [escrava da lavoura], nascida e residente no François, escrava, [alforriada] pelo senhor Michel Aristote, proprietário no François”305, registrada no estado civil como Marie Sainte Platon. Permaneceram no cativeiro seu companheiro, seus netos e seus filhos, entre eles, três ainda impúberes: Marie Luce, 11 anos, Hedwige, 9 anos, e Anatole, 5 anos. Marie Sainte e François aspiravam legitimar sua união assim que conquistassem suas alforrias. Contudo, em 1842, François foi tomado por uma grave doença e, devido à insistência do casal, conseguiram do senhor Desvergers de Chambry o consentimento necessário para o casamento religioso, enquanto o companheiro de Marie Sainte era ainda escravo. A cerimônia religiosa foi celebrada rapidamente em 8 de novembro de 1842, na

302 GATINE, op cit (1847), p. 2. Abordamos essa questão no capítulo 2 desta tese, sobre as leis e costumes que levavam alguns senhores a concederem uma liberdade de savana às mulheres escravas que tinham mais de seis ou nove (dependendo da colônias) filhos, que sobrevivessem até a puberdade. 303 GATINE, op cit (1847), p. 2. 304 Com este sobrenome, fazendo referência ao nome do filósofo grego Aristóteles - “Aristote” é a tradução francesa deste nome –, talvez Michel fosse até mesmo um recém liberto. A Lei de 29 de abril de 1836, que legislava sobre “os sobrenomes e nomes dados aos libertos nas colônias”, estabelece no artigo 6 que “seriam apenas reconhecidos como prenomes, para registros no estado civil, os nomes em uso no calendário gregoriano, e aqueles de pessoas conhecidas da história antiga”. É possível que alguns libertos seguissem a mesma regra feita para os prenomes, para escolherem seus sobrenomes. Outra coincidência é que Marie Sainte seria registrada com o sobrenome Platon (Platão), também nome de um filósofo grego. Esses indícios podem indicar que Marie Sainte (ou seu marido, François) talvez tivesse alguma relação de parentesco com Michel. 305 “Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 68 esclaves et de 2 patronés”, 5 de fevereiro de 1841, BOM, 1841, p. 31. 304 própria habitation Casse-cou, realizada pelo padre da paróquia do François. Estavam presentes os senhores Desvergers de Maupertuis e Desvergers de Chambry, coproprietários do casal e dos filhos, e assinaram com o pároco o registro canônico. Gatine ressalta em seu relato que os proclamas do casamento religioso, feitos nas missas dominicais anteriores a sua realização no município do François, onde residiam nove dos dezessete coproprietários da habitation Casse-cou, não provocaram nenhuma oposição ao matrimônio anunciado e celebrado306. De acordo com Gatine, nestes fatos se encontravam ao menos duas causas que justificariam a liberdade da família escrava. A princípio, nos termos da ordenação de 11 de junho de 1839, François, escravo, ao se casar com uma pessoa livre, tornava-se “livre de direito”, assim como as crianças originadas da união do casal ainda na escravidão307. Além disso, nos termos do art. 47 do Código Negro, sob a jurisprudência criada pelo caso Virginie, os três filhos impúberes separados de sua mãe quando esta foi alforriada, deveriam se tornar livres com ela. Assim, uma ação de liberdade, apoiada sobre este duplo fundamento, foi apresentada por Marie Sainte Platon no tribunal de primeira instância de Saint-Pierre. Após o julgamento dessa ação, em 26 de maio de 1846, o juiz Meynier declarou “livres de direito” François, os nove filhos e os quatro netos do casal: Jean Philippe (nascido em 3 de janeiro de 1816); os filhos de Nancy dita Annecy, falecida em 31 de dezembro de 1845, Anna (nascida em 5/02/1839), Noël (nascido em 30/05/1841) e Cléry (nascida em 31/12/1843); Alexandre (nascido em 08/12/1821); Sainte-Catherine (nascida em 15/05/1823); Sainte-Croix (nascido em 18/10/1824); Adrien (nascido em 16/05/1825); Elisa (nascida em 22/06/1826) e seu filho, Eldof (nascido em 15/12/1845); Marie Luce, idade de 16 anos; Hedwige, idade de 14 anos; e Anatole, idade de 10 anos308. A maioria dos coproprietários da fazenda Casse-cou aceitaram esta notável sentença de liberdade de toda uma família escrava da área rural da Martinica. No entanto, seis dos dezessete proprietários — os cinco herdeiros Gallet e a senhora De La Pommeraye — apresentaram uma apelação contra a sentença, na Corte Real de Saint-Pierre, presidida pelo magistrado Morel, e conseguiram a anulação da decisão. Marie Sainte e sua família não

306 GATINE, op cit (1847), pp. 2-3. 307 “Art. 1er Sont affranchis de droit, dans les colonies de la Martinique, de la Guadeloupe et dépendances, de la Guyane française et de l'île Bourbon, (…) 2o. L'esclave qui, du consentement de son maître, contracte mariage avec une personne libre. Dans ce cas, les enfants naturels qui, antérieurement, seraient issus des deux conjoints, sont également affranchis de droit”, “Ordonnance royale du 11 juin 1839 sur les affranchissements”, BOM, 1839, pp. 288-194. 308 GATINE, op cit (1847), p. 3. 305 desistiram do processo de alforria e conseguiram levar seu caso para a Corte de Cassação na metrópole. Gatine, representando o caso de Marie Sainte Platon, primeiramente argumentaria que houve na Martinica uma “violação de autoridade sobre a coisa julgada”, pois a família escrava havia conquistado “irrevogavelmente sua liberdade” no tribunal de primeira instância, e onze dos coproprietários haviam concordado com a decisão do primeiro juiz. Nestas circunstâncias, Gatine afirma que a Corte Real da Martinica nem mesmo deveria receber o recurso apresentado pelo herdeiros Gallet e pela senhora De La Pommeraye309. Além disso, segundo Gatine, o julgamento da Corte Real da Martinica violava com sua decisão a ordenação de 11 de junho de 1839, mesmo que o casamento realizado tenha sido apenas religioso. Desde a Revolução Francesa310, a França laicizou os registros de nascimento, casamento e morte, função exercida pela igreja católica durante o Antigo Regime. Na Martinica e em Guadalupe, esse processo passou a ocorrer apenas a partir de 1802. A princípio, os párocos ficaram responsáveis pela dupla função, do registro religioso, mas também dos registros civis. A partir de janeiro de 1806, apenas os documentos do Estado Civil teriam valor legal, e após 1812 uma ordenação determinou que o prefeito ou comissário comandante dos municípios coloniais passassem a assumir a responsabilidade pelos registros civis, e progressivamente essa função saiu das mãos do clero das colônias311. Essa era uma das principais argumentações dos coproprietários para a anulação do primeiro julgamento, porque Marie Sainte e François tinham realizado apenas o casamento religioso (e sem registro civil) e, ainda assim, utilizaram esta união como justificativa para a “alforria de direito” de toda a família, apoiando-se na lei de 1839. Na Corte de Cassação, Gatine, então, argumentou sobre a validade legal do casamento canônico dos escravos. Sob a regulamentação do Código Negro, até a lei de 18 de julho de 1845, o escravo era apenas considerado “coisa”, um “bem móvel”, sem personalidade civil. Contudo, isso não impedia que os escravos pudessem se casar, porque na antiga legislação, o casamento era um sacramento, antes de ser um contrato. Nesse sentido, o

309 GATINE, op cit (1847), p. 4-5. 310 Pelo decreto de 20 de setembro de 1792, a Assembleia Legislativa passou a responsabilidade do registro do “Estado Civil” para as prefeituras das localidades. Marie-Noëlle Bourguet aborda das pesquisas estatísticas feitas pelos prefeitos dos municípios franceses durante o governo napoleônico, a partir desta laicização dos registros civis, com o objetivo de obter dados no sentido de uma unificação do Estado. Ver BOURGUET. Déchiffrer la France. La statistique départementale à l’époque napoléonienne. Paris: Éditions des Archives Contemporaines, 1988. 311 COUSSEAU, Vincent. Population et anthroponymie en Martinique du XVIIe siècle à la première moitié du XIXe siècle: Étude d’une société coloniale à travers son système de dénomination personnel. Tese de Doutorado - Histoire. Martinica: Université des Antilles et de la Guyane, 2009, pp. 78-84. 306

Código Negro não lhes recusava nenhum dos benefícios da religião, permitindo que pudessem se casar, e seu casamento seria celebrado da mesma forma que dos livres, ou seja, “nas formas observadas pela igreja” (art. 10 do édito de 1685). No casamento misto, entre livres e escravos, seguia-se as mesmas solenidades. Depois da Revolução Francesa, como tratei anteriormente, o casamento se torna um contrato essencialmente civil, e não poderia mais produzir efeitos legais se não fosse celebrado diante de oficiais públicos. No entanto, nas colônias, estes novos princípios não foram aplicados aos escravos, privados do estado civil e incapazes, assim, de contratar o casamento civilmente, sendo ainda regidos pelo Código Negro sobre esta matéria. A lei de 18 de julho de 1845 conferiu aos escravos certos direitos, tornando-os “pessoas não livres”, mas como pessoas ainda ligadas e sob a incapacidade civil da servitude. Apenas a emancipação os tornaria capazes de contratar civilmente como os livres. Dessa maneira, Gatine concluiu que as normas do casamento escravo não eram as mesmas estabelecidas pelo Código Civil e, como ainda não havia outra ordenação que regulamentasse essa situação, o casamento celebrado entre escravos e entre livres e escravos ainda deveriam seguir as prescrições do Código Negro, isto é, “nas formas observadas pela igreja”. Desse modo, um casamento canônico seria válido e “suscetível de produzir o efeito” desejado pela ordenação de 1839 sobre as alforrias de direito312. Isto posto, o casamento de Marie Sainte Platon e François, celebrado diante da igreja, não poderia ser anulado, por nenhuma razão, pois fora realizado de acordo com as solenidades requisitadas, e com o consentimento dos senhores dos escravos. O tribunal de primeira instância de Saint-Pierre, reconhecendo o casamento como válido, declarou toda a família como livre de direito, nos termos da ordenação de 1839, negligenciando ainda a aplicação do artigo 47 do Código Negro. Ao considerar a aplicação da outra lei como absoluta sobre o caso, era inútil observar que Marie Luce, Hedwige e Anatole eram impúberes, sendo desnecessário se ocupar da questão das crianças menores de 14 anos separadas da mãe pela alforria313. Na Corte Real da Martinica, ao contrário, considerando o casamento nulo, a liberdade de direito foi desfeita. Dessa forma, o juiz deveria avaliar, então, a possibilidade das três crianças impúberes se tornarem livres como inseparáveis da mãe. Contudo, isso não foi feito, pois o magistrado recusou a reclamação de liberdade em termos absolutos, mesmo em relação aos impúberes, simplesmente anulando o julgamento de

312 GATINE, op cit (1847), pp. 6-7. 313 Gatine cita parte da decisão do Tribunal de Primeira Instância da Martinica, in GATINE, op cit (1847), p. 14. 307 primeira instância. Dessa forma, o julgamento da Corte Real da Martinica se limitou a discutir a aplicação da ordenação de 1839, e ignorou a aplicação do art. 47 do Código Negro314. A ação de liberdade de Marie Sainte Platon, solicitando o reconhecimento das alforrias de toda sua família, foi vitoriosa na Corte de Cassação em 1847. Gatine cita seu caso na lista de causas que havia defendido naquele tribunal cujo resultado tinha sido a alforria de várias escravas e escravos315. Contudo, não tivemos acesso ao texto da decisão final da corte superior na França. Além disso, não encontramos nenhuma menção ao título de alforria oficial dos membros da família, que deveria ser concedido pelo governo, nos periódicos oficiais da Martinica. É possível que o decreto de abolição de 1848316 tenha libertado a família de Marie Sainte antes que eles fossem registrados como livres no État-Civil do município do François (Martinica). No entanto, isso não invalida (ou apaga) a história da persistência de Marie Sainte, trabalhadora rural, no sistema judiciário para conquistar a liberdade de seu marido, filhos e netos, utilizando as leis e se colocando contra a escravização ilegal de sua família. Nestes processos de liberdade que se multiplicaram na década de 1840, encontramos também o caso emblemático de uma família de livres de fato ainda batalhando por suas alforrias regulares, mesmo mais de dez anos depois que a questão dos patrocinados havia sido encaminhada por leis como aquela de 1832317. Mais uma vez envolvia uma mãe escrava e seus filhos e netos. O caso de Catherine Léonarde foi citado por Gatine como um dos processos da Cour de Cassation realizados entre 1844 e 1845, que formavam um “corpo de doutrina especial” e “um evangelho judiciário em matéria de escravidão e liberdade”318. Catherine e seus filhos e netos conseguiram em 1840 que o Procurador do Rei de Saint-Pierre confirmasse suas alforrias regulares. No entanto, esta declaração foi anulada por uma decisão da Corte Real da Martinica, em agosto de 1841, devido à oposição apresentada pelo casal Cazeneuve, senhores daquela família escrava.

314 GATINE, op cit (1847), pp. 14-15. 315 A família de Marie Sainte seria uma das vinte e cinco da Martinica, que impetraram ações de liberdade vitoriosas entre 1844 e 1847. Ver GATINE, Causes de liberté. Résutats de l’arrêt Virginie. 316 O “Décret relatif à l’abolition de l’esclavage dans les colonies et possessions françaises” é de 27 de abril de 1848 e definia que a escravidão seria abolida nas colônias dois meses depois da promulgação deste decreto. Mas devido à pressão dos escravos e escravas, na Martinica a escravidão foi abolida imediatamente em 23 de maio de 1848, por uma decisão do governo provisório da colônias, “Arrêté portant abolition de l’esclavage à la Martinique”, Journal Officiel de la Martinique, 24/05/1848, p. 1. 317 Esta lei definia em seu artigo 7 uma disposição transitória que dizia que todo indivíduo que vivesse como livre de fato poderia por um intermediário, fosse seu patrono ou o Procurador do Rei, solicitar ser definitivamente reconhecido como livre. “Ordennance Royale Relative aux affranchissements des esclaves”, de 12 de junho de 1832, BOM, 1832, pp. 318-321. 318 GATINE, op cit (1845), p. 1. 308

Contudo, a história de escravidão e liberdade de Catherine Léonarde começa quase cinquenta anos antes deste processo. Primeiramente com sua mãe e seus irmãos, e depois com seus filhos, Catherine e sua família passariam, por conta de doações de bens e herança, pelas mãos de diferentes senhores até se tornarem propriedade do casal Cazeneuve. Em 6 de junho de 1781, o senhor Voisin-Duplessy se casou com a senhorita Luce Lesage. Esta, pelo contrato de casamento, possuía como sua propriedade a capresse Lisette, que tinha em torno de 15 anos de idade. Aparentemente, o casal Voisin-Duplessy não teve filhos, ao menos que tivessem sobrevivido, pois quando a senhora faleceu em 1797, deixou um testamento no qual instituía como sua legatária universal Marie-Anne Voisin, sua sobrinha, esposa do senhor Juramy. Assim, em setembro de 1797, a senhora Juramy recolheu como parte dos bens da sucessão a escrava Lisette e seus três filhos, Benjamin, Marie-Thomassine e Catherine-Léonarde. Em 1809, a dama Juramy doou como dote de casamento à sua neta, senhora Cazeneuve, a escrava Catherine-Léonarde, em torno de 18 anos na época, e seus filhos. No entanto, Catherine, nascida por volta de 1791, havia sido batizada como livre, em 4 de janeiro de 1794, pelo padre da paróquia do Prêcheur (Martinica), e seu registro de batismo informava que ela havia sido alforriada um ano antes pelo senhor Voisin-Duplessy, antigo senhor de sua mãe, Lisette319. Em 1812, o senhor Cazeneuve, esposo da senhora que havia recebido Catherine e seus filhos como dote de casamento, solicitou ao Procurador do Rei de Saint-Pierre que o registro de batismo da escrava fosse retificado, para que não constasse a condição de liberta de Catherine neste documento. De acordo com várias ordenações e decretos do século XVIII, os párocos não poderiam registrar as “crianças de cor como livres” nos registros de bastimo se não fosse apresentado o título de alforria oficial, chancelado pelo governo da colônia. Esta alegação foi utilizada e a demanda do senhor Cazeneuve foi acolhida por uma decisão do tribunal de Saint-Pierre, que proibiu naquela época que Catherine-Léonarde se dissesse ou se pretendesse livre. Muito tempo depois, Catherine Léonarde, seus filhos e netos ainda permaneciam como propriedade do casal Cazeneuve. Contudo, a família escrava, provavelmente tendo

319 A história do processo de Catherine Léonarde contra o casal Cazeneuve é narrada na sessão “Jurisprudence de la Cour de cassation – Esclave – Affranchissement – Acte de Baptême”, in Recueil général des lois et des arrêts, en matière civile, criminelle, administrative et de droit public. Fondé par J.-B. Sirey, redigé, depuis 1831 par L.-M. Devilleneuve, avocat a la Cour Royale de Paris, et par A.-A. Carette, docteur en droit, avocat aux conseils du Roi et a la Cour de Cassation. Paris: 1845, pp. 353-356 (este documento será referido como Recueil général des lois et des arrêts, 1845). 309 clareza de sua condição de livres de fato e de seu direito à liberdade, solicitou ao Procurador do Rei de Saint-Pierre suas alforrias regulares, apresentando o registro de batismo de Catherine. O procurador do rei aprovou a solicitação e a família de Catherine foi declarada livre em 1840. O senhor Cazeneuve se opôs formalmente à liberdade dessa família, afirmando que não tinha conhecimento de nenhuma manumissão concedida à Catherine Léonarde. Ademais, argumentava que se o senhor Voisin-Duplessy havia feito enunciar na certidão de batizado da escrava que ele a tinha alforriado um ano antes, tinha feito isso sem apresentar ao padre que a batizou o título de alforria oficial. Dessa forma, de acordo com o pedido de anulação de Cazeneuve, o registro de batismo de Catherine, de 1794, era contrário à legislação colonial320. Ademais, argumentava que, em todo caso, o senhor Voisin-Duplessy não poderia dispor das crianças de Lisette, porque esta era propriedade reservada à sua esposa, Luce Lesage. No entanto, o julgamento de 3 de maio de 1841, realizado no tribunal de primeira instância de Saint-Pierre, considerou válida a declaração de alforria feita pelo Procurador do Rei, e rejeitou, consequentemente, a oposição feita pelo senhor Cazeneuve. Algo relevante no caso de Catherine é que Cazeneuve, seu (ex-)proprietário, era o chefe do escritório central da Direção de Interior em Saint-Pierre, função que ocuparia até sua morte em 1843321. Não era o Diretor do Interior, cargo de destaque na hierarquia do governo colonial, que ficava logo abaixo do governador322, e nesta época era ocupado por Frémy. Contudo, Cazeneuve era um funcionário importante, exercendo um posto de representação logo abaixo do Diretor do Interior, e responsável pelos assuntos dessa direção no arrondissement de Saint-Pierre. Nesse

320 Cazeneuve argumentava que a alforria enunciada no resgistro de batismo de Catherine contrariava, notadamente, uma sequência de leis e decretos coloniais, que mais demonstram como entre o século XVIII e o início do XIX, a elite e o governo coloniais tentaram cercear as alforrias: a decisão do Conselho de Estado de 24/10/1713, a ordenação real de 06/12/1738, as ordenações locais do governo da Martinica de 07/07/1720, de 11/2/1767, de 02/02/1768 e 10/9/1789; aos arrêtés coloniais de 15/03/1803 e 07/1/1804; ao despacho ministerial de 4/10/1805, e à decisão de 28/06/1808. Recueil général des lois et des arrêts, 1845, p. 354. 321 Cazeneuve pai faleceu em 1843, quando foi substituído por Olivier Besson, como “chef du bureau central de la direction de l’intérieur” em Saint-Pierre (BOM, 1843, p. 130-131). O filho de Cazeneuve, Jean- Baptiste Cazeneuve, era notário em Saint-Pierre (BOM, 1845, p. 325), além de proprietário de terras e escravos como o pai: em 1843 alforriaria Aulien, um mulato de 41 anos, “cabrouetier” – carroceiro responsável pelo transporte de cana (BOM, 1843, p. 206). 322 De acordo com Liliane Chauleau, se o governador exerce o controle superior da administração, o Direitor do Interior é o responsável direito pela administração dos municípios, estando acima dos prefeitos de cada localidade. Auxilia o Conselho Geral quando era solicitado, substituia o governador em sua ausência, era responsável pela administração dos correios, das bibliotecas e ensino público. Além disso, era responsável pela fiscalização dos vagabundos, malfeitores e ainda feiticeiros, “aqueles que se dedicam à melefícios e sacrilégios”. CHAULEAU, op cit (1993), p. 220. 310 sentido, Catherine Léonarde e sua família tentavam outorgar suas alforrias contra a vontade de uma família de senhores influentes na Martinica. Cazeneuve não aceitou aquela veredito de primeira instância e entrou com uma apelação na Corte Real da Martinica. Este tribunal seguiu a linha de argumentação apresentada pelo senhor dos escravos em sua primeira oposição. A decisão do juiz afirmava, então, que sendo a declaração de alforria de Catherine e de seus filhos e netos baseada naquele registro de batismo, era insuficiente para confirmar a condição de liberdade. Argumentou que a afirmação enunciada na certidão de Catherine, de que “tinha sido alforriada no ano precedente pelo senhor Duplessy-Voisin”, não provava que o título de alforria havia sido produzido, nem verificado. Além disso, havia sido provada a condição de escrava de Catherine Léonarde, cuja posse havia passado das mãos do casal Duplessy-Voisin à sucessão da senhora Juramy, e dessa às mãos do casal Cazeneuve. Argumentava também que o senhor Duplessy-Voisin não tinha o direito de se despojar da propriedade de Catherine, cuja mãe constava como propriedade pessoal de sua esposa, à qual estava reservado o direito de dispor de suas escravas, fosse por doação, testamento ou outras formas de alienação de bens. Enfim, concluía que Catherine e seus filhos eram propriedade do casal Cazeneuve e não poderiam ser alforriados pelo Procurador do Rei de Saint-Pierre. Nesta época, o Procurador do Rei de Saint-Pierre era o senhor Londe, quem ocupava interinamente o cargo. Curiosamente, ele não desistiu do caso, e em sua função como representante do ministério público, entrou com uma apelação junto à Cour de Cassation, em nome de Catherine Léonarde, contra o casal Cazeneuve. Argumentou, então, que a decisão da Corte Real da Martinica havia aplicado falsamente as leis e ordenações locais relativas às formas de registro de batismo e às declarações de liberdade que poderiam conter. A decisão da Corte de Cassação em Paris, de 11 de março de 1845, que decidiu de forma totalmente favorável à alforria de Catherine Léonarde e sua família, demonstra mais uma vez a transformação que estava se passando nas instituições francesas. Devido à insistência de mulheres escravas, libertas e suas famílias, legislações antigas, que restringiam a alforria, estavam sendo reinterpretadas no sentido de provar a condição de liberdade de indivíduos ilegalmente escravizados:

Considerando o que resulta de tudo isso que precede, que não havia obrigação para os padres de fazer menção ao título de alforria nas certidões de batismo que eles redigiam; que, portanto, a ausência dessa menção não poderia ser justamente 311

oposta às pessoas de cor que teriam sido batizadas como livres, nem destruir as declarações de alforria que se encontravam em seus registros de batismo, e que, em todo caso, a interpretação mais favorável deve prevalecer […] ao declarar, na certidão de Catherine Léonard, que ela havia sido alforriada no ano anterior, o pároco do Prêcheur suficientemente reconheceu que havia sido colocado diante de seus olhos o título de liberdade desta criança, e nenhuma circunstância da causa destrói ou enfraquece a autoridade desse fato.323

A Corte de Cassação anulou a decisão da Corte Real da Martinica de agosto de 1841, considerando livres Catherine e seus filhos e netos, cujo caso ainda passaria pela Corte Real de Paris. Apenas em novembro de 1847, aquela família escrava seria declarada definitivamente livre, por uma Decisão do Governandor, que os definia como “livres de fato” e “antigos escravos do senhor Cazeneuve pai”. Foram alforriados, então, Catherine-Léonarde, mulata, 56 anos, doméstica, nascida no Prêcheur, e seus filhos e netos, todos nascidos em Saint-Pierre: Marceline, costureira, 39 anos; Clementine, 28 anos; Virginie, costureira, 23 anos; Charles, carpinteiro, 21 anos (filhos de Catherine); Louis-Hippolyte, 16 anos; Denis- Sixius, 14 anos; Emilie-Jeanne, 11 anos (filhos de Marceline e netos de Catherine); Louise- Hermina, 11 anos, e Rose, 8 anos (filhas de Clementine e netas de Catherine). Todos moravam na cidade de Saint-Pierre e seriam registrados no Estado Civil com o sobrenome Montalin324. Este caso é muito interessante porque se remete à luta pela liberdade de uma família inteira de “livres de fato” e, ainda, à sua resistência contra aquelas leis do século XVIII e início do XIX que procuravam restringir o acesso à alforria. Sua história apresenta mais elementos para pensarmos a condição vivida por escravos patrocinados nas Antilhas Francesas. Antes do processo, Catherine e sua família inteira ainda eram considerados propriedade dos Cazeneuve. Contudo, observando as profissões de suas filhas (costureiras) e de seu filho (carpinteiro), ofícios geralmente exercidos por libertos ou escravos que viviam no meio urbano e conquistavam uma maior autonomia em relação aos seus senhores, possivelmente haviam conseguido negociar alguma liberdade com o casal Cazeneuve. Dessa forma, provavelmente pagavam “alugueis” aos senhores para que pudessem viver essa liberdade negociada, mas não oficial. Quando tentaram se livrar da situação de exploração e escravização, seus proprietários reagiram contra este ato de audácia frente a seu domínio senhorial e ao direito à propriedade. No entanto, foram derrotados pela persistência de Catherine Léonarde e de sua família.

323 GATINE, Nombreuses libérations, p. 19. 324 “Arrêté du Gouverneur, du 5 novembre 1847, portant affranchissement de 10 anciens esclaves”, BOM, 1847, pp. 475-476. 312

Podemos tentar inferir, ainda, o que teria acontecido no final do século XVIII, quando apenas Catherine, entre os filhos de Lisette, foi batizada como livre a pedido do senhor Duplessy-Voisin. É possível que ela fosse filha deste senhor, que aparentemente não teve filhos legítimos com sua esposa, Luce Lesage. Lisette era considerada “capresse” e Catherine “mulata”, o que significa que possivelmente o pai de Catherine era um homem branco, ou de pele mais clara que a mãe, de acordo com as classificações raciais praticadas nas colônias francesas do Caribe, entre os séculos XVIII e XIX. Se foi essa a situação, não saberíamos precisar em quais condições Lisette engravidou de Duplessy-Voisin. Contudo, muito provavelmente esta relação tenha ocorrido sob a complexa situação de violência que as mulheres escravas, principalmente as domésticas, frequentemente estavam submetidas, como narrado em várias histórias abordadas por historiadores e historiadoras, e mesmo nos poucos relatos de mulheres negras escravizadas no Caribe no século XIX. Mary Prince viveu como escrava na ilha de Bermudas no século XIX, colônia inglesa na época. Em seu relato, narra como teria passado por diferentes proprietários, mas destaca-se em sua narrativa sua experiência como escrava doméstica. Nesse sentido, ela descreve como ela e outras escravas que trabalhavam na mesma função foram duplamente vítimas do senhor cruel e lascivo e de sua esposa, tão cruel quanto o primeiro, quem ademais sofria com o ciúmes pelo marido que abusava das mulheres escravizadas em sua casa, descontando nelas sua ira325. Keila Grinberg aborda a história da escrava Liberata e de sua família, vivida no Brasil na primeira metade do século XIX, e na qual as experiências de abuso sexual sofrido pela escrava e de sua alforria se cruzam. Liberata tinha dez anos quando foi comprada por seu senhor que, “escondido de sua mulher e filhos, passou a persegui-la pelos remotos e despovoados da região”, até que “um dia ele conseguiu levá-la para os matos e, finalmente, a possuiu”. Suas investidas se tornaram um hábito, mas Liberata relata, em sua ação de liberdade ocorrida entre 1813-1814, que “nunca permitia de bom grado os tratos ilícitos que com ela seu senhor tinha, por medo da senhora e de sua filha Ana”. Contudo, acabou consentindo a mancebia, pois provavelmente não tinha muita escolha. Ademais, seu senhor havia prometido libertá-la assim que sua mulher descobrisse o caso. Liberata acabou parindo filhos de seu senhor, mas não foi por conta disso que obteve sua alforria em 1814. Apesar da ação judicial para conquistar sua liberdade, ela teria conseguido negociar a autorização de sua

325 FERGUSON, Moira (org. e introd.). The history of Mary Prince, a West Indian Slave, related by herself. Michigan: University of Michigan Press, 1997 [c.1987], pp. 66-68. 313 alforria provavelmente porque sabia de crimes cometidos por seu senhor e a filha legítima dele326. No caso de Catherine Léonarde, talvez sua mãe, Lisette, tenha tido uma relação semelhante a essas narradas anteriormente com o senhor Duplessy-Voisin. A partir disso, é possível que Lisette tenha negociado a liberdade de Catherine, ou ainda, seu senhor, não concebendo filhos com Luce Lesage, teria procurado uma forma de tentar garantir a liberdade de Catherine, provavelmente sua filha natural, sem a autorização de sua esposa. É provável, ainda, que a senhora Duplessy-Voisin desconfiasse de algo, pois não deixou espaço para que Lisette e muito menos Catherine fossem alforriadas após sua morte, legando a propriedade sobre elas à sua sobrinha. No entanto, seria muito simplista apenas argumentar que Catherine conquistou sua alforria, e ainda de seus filhos e netos, simplesmente porque sua mãe tivera uma relação com o senhor branco, muito provavelmente sob condições de coerção e desigualdade, ainda que tenha consentido em algum momento, e ele teria intentado alforriar seu rebento ilegítimo. Catherine e sua família foram mantidos como escravos dos Cazeneuve até ao menos 1840, quando ela procurou usar sua certidão de batismo para conseguir suas alforrias, numa época em que os escravos passaram a perceber uma situação mais propícia para solicitar suas liberdades. Dessa forma, a alforria dessa mulher e de toda sua família foi garantida por meio de um processo judicial, graças a sua sagacidade frente ao momento político, às mudanças que ocorreram nas leis e que vinham ocorrendo no sistema judiciário. Restam ainda muitas questões sobre estes processos de alforria envolvendo mães escravas, seus filhos, suas famílias. Por que a ação de liberdade de Virginie conseguiu chegar à Corte de Cassação em Paris, o primeiro da história das colônias? Como seu caso conseguiu furar o bloquei feito pela administração colonial e seu sistema judiciário? Por que alguns abolicionistas teriam se dedicado tanto a este tipo de ação de liberdade, para unir as famílias na liberdade? Por que estas famílias escravas se destacam nas batalhas judiciárias na década de 1840, muito mais do que outras pessoas que viviam em situações diferentes de escravização ilegal? Gatine postulou na defesa do caso de Virginie o “princípio da indivisibilidade da família”, utilizado depois em outras ações de liberdade. A Corte de Poitiers, no processo de Virginie, enunciou em sua deliberação que era necessário “favorecer

326 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade – as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, pp. 5-9 (disponível on-line: www.bvce.org). 314 a família entre os escravos, e conservar as crianças sob os cuidados de seus pais”327. De acordo com Myriam Cottias, os abolicionistas franceses fundaram suas críticas ao sistema escravista em parte na “ausência da família no seio da população escrava”, “ao menos a ausência de uma família estruturada em volta de um homem e registrada oficialmente por meio de uma certidão de casamento”, pois o matrimônio era visto como uma “aspiração cidadã” que “funda a família, torna o trabalho possível e eficaz, e estabiliza a propriedade”328. Gatine de fato afirmaria em suas alegações no processo de Virginie que era necessário “sobretudo constituir a família, para iniciar o escravo na liberdade”, para que o novo liberto pudesse dizer “minha mulher é minha, meus filhos são meus”, e assim, “se moralizar, cuidar dos seus e do futuro, se libertar enfim da longa degradação”329. No entanto, ainda que a crítica sobre esta forma de observar a centralidade da família patriarcal e burguesa seja importante e necessária, essas são as visões “brancas” e “europeias” sobre a família. Resta ainda observar a insistência de Virginie e de outras mulheres escravizadas e suas tentativas, mesmo que por meio de intermediários, de utilizar as leis e a justiça para conseguir a alforria de seus filhos, maridos e netos, e manter unida a família, que já existia sob a escravidão, também depois da liberdade. Não é uma tarefa fácil compreender a luta cotidiana e as visões dessas mulheres sobre sua condição no sistema escravista e colonial, acerca de questões em torno da família, do trabalho e da construção de espaços de autonomia na busca por liberdade. Na documentação produzida pelos homens brancos, a família escrava é praticamente ausente porque sempre procuram o casamento canônico (ou civil) como referência, condenando em seu discurso a frequente “concubinagem” entre os escravos, e mesmo entre os livres de cor e libertos. Ademais, as mulheres africanas e afrodescendentes são geralmente o principal alvo desses quadros sociais construídos pelas visões dos homens brancos, ressaltando sobretudo sua suposta vida sexual em detrimento de sua atuação em seus lares, seu trabalho nas cidades e nas fazendas. Seria necessário um estudo mais aprofundado sobre as experiências de laços familiares entre escravos na Martinica e em Guadalupe para compreender as visões de “família” que influenciaram Virginie, Marie Sainte Platon, Catherine Léonarde e outras escravas e escravos (libertas e libertos) que lutaram pela liberdade dos seus parentes. Talvez a forma como

327 Decisão da Corte de Real de Poitiers sobre o caso de Virginie, reproduzida em SCHOELCHER, op cit (1847), p. 52. 328 COTTIAS, Myriam, “Um gênero colonial? Casamento e cidadania nas Antilhas francesas (séculos XVII- XX)”, Clio, n. 26-2, 2008, pp. 37-58 (tradução de Christine Rufino Dabat), p. 41. 329 GATINE, op cit (1844), p. 20. 315 abordamos suas história aqui ressalte excessivamente o mito da poto mitan330. Contudo, o objetivo disso não é ignorar as outras formações de famílias escravas e libertas, com a presença por exemplo dos pais ou maridos, ou ainda as redes de relações que as auxiliavam, como foi demonstrado em alguns casos analisados anteriormente. Camillia Cowling, em seu estudo sobre ações de liberdade realizadas especialmente por mulheres em Cuba e no Rio de Janeiro no século XIX, afirma que as mulheres eram mais propensas que os homens a buscarem as liberdades para seus parentes, particularmente para seus filhos, como uma parte fundamental de suas próprias lutas com a lei e com o sistema judiciário. No entanto, por esta mesma razão, não agiam sozinhas. Suas redes de relações, especialmente com membros das família, eram fundamentais em suas ações. Um importante grupo nestes processos eram certamente os pais de suas crianças. Mesmo que as crianças escravizadas fossem registradas geralmente apenas como filhos naturais da mãe, não significa que as mulheres agiram sem a ajuda dos progenitores de seus filhos. De acordo com Cowling, os homens, escravos ou libertos, apareciam menos que as mulheres como principal reclamante da liberdade de seus filhos, por várias razões, mas mais provavelmente porque os pais eram separados de suas crianças pela venda de escravos mais frequentemente que as mães. Além disso, em Cuba e no Rio de Janeiro, as estruturas burocráticas e legais ajudaram a silenciar o papel dos amigos e das famílias daqueles que demandavam suas alforrias, deixando um “quadro de lutas atomizadas pela alforria individual”. Raramente, por exemplo, a fonte do dinheiro oferecido pela mulher escravizada para a liberdade de suas crianças é discutido. Além do trabalho e o pecúlio das mulheres, sabe-se que muito dos fundos para conseguir a liberdade eram contribuições de parentes. Ademais, as relações “familiares” tanto em Cuba como no Brasil se estendiam também, além das ligações sanguíneas, para uma rede mais ampla de famílias adotivas, nas quais geralmente as madrinhas eram as mais propensas a

330 “Poto mitan” é uma palavra crioula que designa a mulher que mantém sozinha seu lar e seus filhos. A tradução literal do termo é “o pilar do meio”. Myriam Cottias afirma que depois de 1848, e principalmente a partir do final do século XIX, pouco a pouco, instalou-se um modelo da “mãe-coragem” ou da “mulher poto- mitan”, aquela que enfrenta sozinha a vida e gere tanto as questões econômicas quanto íntimas (como a criação dos filhos). Ao mesmo tempo que esta figura foi tão consolidada, valorizava-se o papel e definia-se o “destino” das filhas da elite “de cor”. O casamento deveria garantir uma cidadania plena e inteira, em conformidade com os valores morais promulgados pela metrópole. Nestas condições, até mesmo com direitos diminuídos, apenas as mulheres da elite “de cor” eram capazes de atingir o ideal republicano. Ao utilizar o casamento como fator de diferenciação, as mulheres pobres foram “etnicizadas”, isto é, rejeitadas numa completa alteridade: sua identidade estava enraizada no passado escravista, sem possibilidade de mudar seu estatuto de dominado. Nos discursos, estas mulheres “patológicas”, “poto mitan”, foram excluídas da cidadania integral, tal como era definida pela República e da competição social que ela induzia”. COTTIAS, op cit (2008), pp. 52-55. 316 iniciar ações legais por seus afilhados, representando as mães que estavam incapacitadas de fazer isso por elas mesmas. Dessa forma, de acordo com Cowling, as ações de liberdade envolvendo mulheres afrodescendentes eram frequentemente apenas uma parte da história, pois, parentes e toda uma rede de apoios as auxiliavam em suas batalhas nos tribunais331. Por outro lado, é essencial ressaltar a importância das mulheres escravizadas e livres de cor como “pilar do meio” (poto mitan), mesmo que não mantivessem sozinhas seus lares e seus filhos, que batalhassem por suas alforrias e de suas famílias com o apoio de amigos, parentes, companheiros e outros intermediários. Os casos narrados neste capítulo demonstram como as escravas e libertas do Caribe Francês procuraram usar as leis e a justiça para garantir a liberdade de seus filhos, de suas famílias. Além disso, revelam a importância de seu papel no processo de emancipação dos escravos nos últimos anos de escravidão, pois abriram precedentes importantes sobre as transformações em curso nas colônias francesas. De acordo com Gatine, por causa do processo de Virginie, os colonos procuraram contestar a aplicação do art. 47 do Código Negro, afirmando que jamais esta lei tinha sido entendida da forma que ocorreu neste caso. No entanto, como afirma o advogado abolicionista, nunca a interpretação dos colonos havia sido contestada por reclamações de alforria diante dos tribunais, situação que passava por mudança. E arremata: “é sem dúvida uma grande audácia, é algo que não foi visto durante duzentos anos de escravidão colonial”332. Victor Schoelcher, apesar de reconhecer a importância daquelas ações, ainda considerava limitada a amplitude de seus resultados, pois acreditava que apenas um pequeno número de escravos conseguiria atingir a liberdade por essa via333. Ele não deixa de ter razão, sobretudo em seu papel de militante abolicionista, e com o objetivo de justificar a importância de uma abolição imediata e geral. Em 1847, as colônias francesas “ à esclaves ” — Martinica, Guadalupe e dependências, Guiana Francesa e Bourbon, ou seja, sem considerar as colônias na África e na Índia — contavam com um total de 253.514 pessoas escravizadas334. Se considerarmos os números otimistas apontados por Adolphe Gatine, em 1847 em torno de 1200 escravos chegariam a ser alforriados por ações de liberdade, ou resgates facilitados, nas colônias e na metrópole, devido aos precedentes criados pelo caso de Virginie e de outras

331 COWLING, op cit, pp. 138-142. 332 GATINE, op cit (1846), p. 13. 333 SCHOELCHER, op cit (1847), p. 64. 334 Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1847 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1851, p. 10-11. 317 mulheres escravas e seus familiares. Isso representava em torno de 0,5% dos escravos das quatro colônias de produção agrícola. No entanto, sob o olhar historiográfico, trata-se não apenas de observar os números, ainda que sejam essenciais também. Mesmo que se refira a uma porcentagem pequena de indivíduos em relação à grande população cativa das colônias francesas, comparado a qualquer outro período, a utilização do sistema legislativo e judiciário pelos escravos foi um um evento marcante e transformador, especialmente nas ações de liberdade. Nesse sentido, destaca-se a influência que processos como aqueles analisados neste capítulo imprimiram sobre a questão da conquista da alforria, das relações entre senhores e escravos, da percepção de escravas e escravos sobre a nova ordem política e jurídica. Ainda, como tudo isso marcou o processo de desestruturação do sistema escravista francês nos últimos anos de escravidão nas colônias. Aquelas mulheres e as ações pela liberdade de suas famílias, ainda que individualmente pequenas, foram cumulativamente significativas, e ajudaram a moldar o curso da emancipação. 318

CAPÍTULO 6 – A LIBERDADE EM NÚMEROS: QUESTÕES EM TORNO DE GÊNERO, RAÇA E CLASSE

Um dos primeiros historiadores franceses a escrever sobre a história da escravidão nas colônias francesas, baseando-se em documentos legislativos e administrativos dos arquivos coloniais, foi Lucien Peytraud, no final do século XIX. Em um dos capítulos de sua obra, Peytraud comenta sobre situações “honráveis” nas quais os escravos conseguiam obter suas alforrias. Estas ocorriam sobretudo quando os homens escravizados prestavam “serviços à causa pública”, ou seja, quando lutavam como soldados contra os inimigos da coroa francesa que tentavam tomar as colônias, e quando auxiliavam na captura de escravos fugitivos ou na repressão a rebeliões escravas. Nestes casos, havia principalmente a intervenção da administração colonial e do governo metropolitano, pois muitos senhores não admitiam a alforria de seus escravos, mesmo nestas situações. No entanto, quando as mulheres conquistavam suas liberdades, segundo Peytraud, era sempre um caso de imoralidade:

[…] além dessas causas honrosas de alforria, devemos citar uma, que teve efeitos muito mais consideráveis, e não foi outra senão o fato da corrupção dos hábitos. […] Tornar-se a escrava favorita ou uma das escravas preferidas do senhor, era, na maior parte do tempo, a ambição das negras. E quantos senhores, nesse caso, sabiam resistir a não libertar o objeto de sua fraqueza, a mãe de seus filhos e mesmo estas crianças?1

De fato, um maior número de alforrias foi concedido às mulheres e às crianças, ao menos nas últimas décadas de escravidão na Martinica, e outros historiadores demonstram que o mesmo padrão teria ocorrido em períodos anteriores2. No entanto, o objetivo desta pesquisa tem sido demonstrar que o acesso à alforria nas sociedades coloniais e escravistas francesas, sobretudo pelas mulheres, ocorreu sob um quadro sociocultural e político muito mais complexo que aquela imagem estereotipada. Por vezes, essa imagem foi reproduzida pela historiografia sem uma análise crítica mais contundente acerca das questões de gênero,

1 PEYTRAUD, Lucien. L’esclavage aux Antilles Françaises avant 1789, d’après des documents inédits des Archives coloniales. Paris: Librairie Hachette, 1897, pp. 405-406. 2 ELISABETH, Léo. La société martiniquaise aux XVIIe et XVIIIe siècles, 1664-1789. Paris: Karthala, 2003. 319 raça e classe que tocam a conquista da liberdade por escravos e escravas nas Antilhas Francesas. As taxas de alforria oficial no Caribe Francês, sobretudo no século XVIII e início do XIX, foram historicamente baixas em comparação a outros espaços escravistas na América e no Caribe, como Brasil e Cuba, ainda que maiores que as taxas de alforria no Caribe Inglês (Jamaica e Barbados) e nos EUA3. A pesquisa acerca dos processos, características e sujeitos envolvidos no acesso à liberdade regular nas Antilhas Francesas antes de 1830 é um verdadeiro desafio. Como observado em capítulos precedentes, no período anterior à Monarquia de Julho, as alforrias oficiais não eram facilmente concedidas nas colônias francesas, e mesmo que fossem controladas pelos governos coloniais, não são facilmente encontradas em documentos oficiais disponíveis nos arquivos. Alguns historiadores4 encontraram em suas investigações alforrias concedidas em registros notariais da Martinica. Contudo, estas fontes, antes de 1831, não parecem completamente confiáveis para um estudo mais acurado sobre a concessão e conquista da liberdade oficial pelos escravos e escravas dessa colônia. Ainda assim, a pesquisa de Léo Elisabeth é essencial por demonstrar estas dificuldades. Este historiador analisou documentos assentados por 18 notários da Martinica, entre 1770-1829, e conseguiu encontrar 949 manumissões registradas na documentação notarial, principalmente em testamentos. De acordo com suas análises, o período de ocupação inglesa representa um parêntese importante da atividade de registros de liberdade: 396 alforrias foram pronunciadas em atos notariais entre 1794 e 1802, e apenas 129 entre 1802 e 18285. De acordo com Guillaume Durand, considerando o crescimento da população livre de cor, estes registros notariais de alforrias não representam provavelmente todas as liberdades conquistadas, pois, avaliando dessa forma, apenas entre 3% e 16% do total de alforrias teriam

3 Por volta de 1800 e 1808, os libertos e livres de cor configuravam 41% da população total de Minas Gerais e 18,8% em São Paulo. Na mesma época, na Jamaica, representavam 2,9% da população total, e em Barbados, 2,6%. Nos EUA, neste mesmo período, eram 2,7% da população total do Upper South, e 0,8% no Lower South. Em Cuba, por volta de 1774, este grupo representava 20,3% da população total. Na Martinica, em 1802, os libertos e livres de cor representavam 7,1% da população total, mas 40% da população livre, incluindo os brancos. Em São Domingos, por volta de 1784, os livres de cor representavam 4% da população total, porém, quase 40% da população livre, incluindo os brancos. COHEN, David W. & GREENE, Jack P. (orgs). Neither slave nor free: the freedmen of African descent in the Slave Societies of the New World. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press, 1972, pp. 3-10. 4 Ver ULRIC-GERVAISE, Delphine. Les anglais à la Martinique, libres de couleur et affranchissements, 1793-1802. (Mémoire de Maîtrise d’Histoire, direction de Marcel Dorigny). Paris: Université Paris VIII, 2003; ELISABETH, op cit (2003). 5 ELISABETH, op cit (2003), pp. 421-425. 320 sido registradas em atos notariais6. Além disso, outro percalço deve ser considerado. As alforrias por testamento não necessariamente se convertiam em alforrias oficiais, devido às leis que regiam as colônias desde o século XVIII, restringindo este tipo de alforria testamental, e a liberdade apenas era regularizada com a outorga do governo colonial. Ainda assim, principalmente as informações fornecidas por Léo Elisabeth acerca dos indivíduos que registraram estas alforrias nos documentos notariais devem ser consideradas. De certa forma, demonstram algumas características sobre os senhores e senhoras que tentaram alforriar seus cativos naquele período. Entre 1777 e 1793, Elisabeth encontrou 424 registros notariais onde a alforria de um escravo foi mencionada7: 42% foram registradas por homens brancos, 20% por mulheres brancas, 17% por homens livres de cor e 21% por mulheres livres de cor8. Considerando as restrições e dificuldades que as pessoas livres de cor provavelmente encontravam quando pretendiam alforriar escravos, especialmente neste período, e ainda sua representação na população total da Martinica na época, a porcentagem de senhoras e senhores livres de cor que pretendiam alforriar seus escravos é significativa. Frédéric Régent, apesar de se pautar em fontes secundárias, ao menos quando se refere à Martinica e à São Domingos no século XVIII9, afirma que não era raro uma “doméstica” conseguir sua liberdade e de suas crianças, cujo “senhor é provavelmente o pai”10. O autor ainda destaca que um homem escravizado era mais frequentemente libertado “pelos serviços que presta[va] que uma mulher”. Esta seria “muito mais emancipada graças aos laços sentimentais com seu senhor” e isso “explica porque mais mulheres são alforriadas”11. No entanto, os “laços sentimentais” que algumas escravas que trabalhavam como domésticas estabeleciam com seus senhores provavelmente também tinham relação com os trabalhos que prestavam a eles, os cuidados com as crianças, com velhos e com o lar.

6 DURAND, Guillaume. Les noms de famille de la population martiniquaise d’ascendance servile. Origine et signification des patronymes portés par les affranchis avant 1848 et par les “nouveaux libres” après 1848 en Martinique. Paris: L’Harmattan, 2011, p. 59. 7 ELISABETH, op cit (2003), pp. 423. 8 Em 1776, a população de livres de cor da Martnica era composta po 2.892 indivíduos, e a populações de brancos, 11.619; Em 1789, havia 5.236 livres de cor na colônia e 10.634 brancos. Ver no primeiro capítulo, Tabela 1 - População da Martinica, dividida entre brancos, libertos e escravos, 1700 – 1802. 9 Frédéric Régent pesquisa sobretudo a história da escravidão e da mestiçagem em Guadalupe no período das revoluções. Mas neste livro, no qual faz uma importante síntese sobre a história da escravidão nas Antilhas Francesas, os dados que apresenta e analisa sobre Martinica e São Domingos foram obtidos na obra de Léo Elisabeth (La société martiniquaise aux XVIIe et XVIIIe siècles) e na obra de John Garrigus (A Struggle for respect: the free coloreds of Saint-Domingue, 1760-1769, Johns Hopkins University Press, 1988). 10 RÉGENT, La France et ses esclaves, 2007, p. 188. 11 Idem. 321

Nesse sentido, a maneira como observarmos o trabalho das mulheres também é essencial para pensarmos nossas análises sobre a alforria nas sociedades escravistas, e não apenas as relações sentimentais ou sexuais. Devemos procurar observar os trabalhos domésticos e de cuidados, geralmente a cargo das mulheres, como “trabalho” essencial à organização da vida doméstica e, assim, da organização da sociedade de forma geral, e não apenas como fontes de relações sentimentais. Um dos poucos estudos que analisam as alforrias concedidas durante a Monarquia de Julho foi feito por Guillaume Durand. O principal objetivo desse historiador em sua pesquisa foi analisar as origens dos patronímicos escolhidos pelas pessoas de origem servil, utilizando exatamente os registros de liberdade publicados no Bulletin Officiel de la Martinque e no Journal Officiel de la Martinique. No entanto, como estas fontes são ricas em informações exatamente sobre a alforria, o autor dedica alguns capítulos de sua obra a analisar não apenas os patronímicos dos indivíduos escravizados que conquistaram a liberdade regular nas décadas de 1830 e 1840, mas também outros dados, como o sexo, as classificações de cor da pele, a profissão e as faixas etárias dos escravos. Durand observou estas informações em mais de 17 mil alforrias concedidas entre 1832 e 1835, em 1839 e em 184612. Contudo, o autor apresenta quadros com excessos de informações — por exemplo, divide as faixas etárias em períodos de 4 anos, o que torna as tabelas muito poluídas — e apresenta suas análises sobre as alforrias de forma resumida e em tópicos13. Ademais, Durand não observa as relações de parentesco entre os escravos, ao menos não apresenta este dado, nem as informações sobre os proprietários que alforriaram as pessoas escravizadas. Contudo, algumas de suas conclusões são os pontos mais problemáticos de sua análise sobre a conquista da alforria ao longo do período da Monarquia de Julho. Ao observar que na faixa etária entre 60 e 64 anos as mulheres conquistaram mais alforrias que os homens da mesma idade, conclui que elas eram “certamente amas de leite (“das”) dos senhores brancos” ou ainda “das crianças destes”14. Afirma isso apenas analisando o sexo e a faixa etária dos escravos alforriados, sem abordar outras informações ou questões. Além disso, ao considerar a grande quantidade de alforrias auferidas por crianças entre 0 e 14 anos, em torno de 40% ao longo do período, e o fato da maior parte desses indivíduos serem designadas como “mulatos”, Durand conclui

12 DURAND, Les noms de famille de la population martiniquaise d’ascendance servile, 2011, pp. 63-82. 13 DURAND, op cit, pp. 83-84. 14 DURAND, op cit, p. 83. 322 simplesmente que estas crianças eram “filhos dos senhores brancos”15, sem expor mais elementos que possam sustentar tal conclusão. Este capítulo se revelará mais árido que os anteriores, possivelmente por conta da dança de números e do desfile de tabelas que observarão adiante. Contudo, uma das principais críticas dessa pesquisa se refere às análises impressionistas de alguns historiadores ao abordarem a questão da conquista da liberdade no Caribe Francês, sobretudo pelas mulheres escravizadas. Sendo assim, era crucial realizar uma análise quantitativa das alforrias pronunciadas nas décadas de 1830 e 1840, anos finais de escravidão nas colônias francesas, ou ao menos de uma amostragem do conjunto. Para isso, foi formulado um banco de dados com as informações observadas nos periódicos oficiais da Martinica, o qual será explicado adiante. Considero importante registrar ainda que, apesar da suposta neutralidade necessária ao exercício do ofício de historiador social para lidar com as fontes, alguns temas abordados neste capítulo me causaram desconforto. Será analisado, por exemplo, o preço dos escravos, como foram avaliados individualmente para conseguirem pagar pelo resgate forçado, entre 1846 e 1847. A exposição sobre este fenômeno é imprescindível, mas deixo registrado que me causou um grande mal-estar tratar o preço de mulheres, homens e crianças como se fossem pedaços de carne. Contudo, este evento será narrado de forma direta, pois talvez seja a melhor forma de compreendermos a situação insustentável e inacreditável do mercado de humanos sob a escravidão. Além disso, a exposição sobre as classificações de mestiçagem e nuances da cor da pele também foi um tema controverso a ser abordado, mas impossível de ser ignorado, estando tão presente e frequentemente enunciado nas fontes e na bibliografia. Por outro lado, foi fundamental perceber a agência de pessoas escravizadas lutando pela posse de seus próprios corpos e de seus parentes, apesar das adversidades deste processo.

15 DURAND, op cit, p. 83. 323

6.1 – A ALFORRIA EM NÚMEROS: A CONQUISTA DA LIBERDADE REGULAR NA MARTINICA, 1830 – 1848

Entre 1831 e 1848, foram publicadas em torno de 435 decisões do governador portando a alforria de diversos indivíduos na Martinica (Arrêté du Gouvernement, portant affranchissement de divers individus dans la Colonie). Em maio de 1848, quando, em Paris, o Decreto de abolição imediata da escravidão em todo território francês já havia sido assinado — em 27 de abril, publicado em 2 de maio —, na Martinica, 31 pessoas ainda estavam recebendo suas alforrias oficiais individuais por uma decisão de 6 de maio daquele ano16. A quantidade de alforrias oficiais concedidas na colônia sob o governo da Monarquia de Julho é um número extremamente atípico em relação a qualquer período da história da escravidão no Caribe francês até a sua abolição definitiva em 1848. Daquelas 435 decisões do governador concedendo as alforrias individuais, um total de 25.925 pessoas foram alforriadas na Martinica. Entre 1833 e 1847, obtiveram a alforria oficial do governo martinicano 20.064 pessoas: 9.271 patrocinados e patrocinadas, de acordo sobretudo com a ordenação 12 de junho de 1832 (regulamenta concessões de alforria de forma geral); 9.548 escravos e escravas, de acordo com a ordenação de 12 de junho 1832 e com a ordenação de 29 de abril de 1836 (alforrias por pisar no solo metropolitano); 705 escravos e escravas, de acordo com a ordenação de 11 de junho de 1839 (“alforrias de direito”, definidas sobretudo pelas relações de parentesco entre senhores e escravos); 474 escravos e escravas com alforrias por resgate forçado, com auxílio dos fundos do estado, e 26 indivíduos, sem auxílio do estado, de acordo com as ordenações de 18 e 19 de julho de 1845; 40 escravos que pertenciam ao domínio colonial. As mulheres são a grande maioria entre os alforriados (8.158 alforrias ou 40,65%), seguidas pelas crianças abaixo de 14 anos (7028 alforrias ou 35,03%) e, por fim, os homens (4878 alforrias ou 24,32%). Veja a tabela 11, abaixo.

16 Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement de 27 esclaves, 06 de maio de 1848, BOM, 1848, pp. 328- 331. 324

Tabela 11 – Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 - 1847 Mulheres Homens Crianças Total Patrocinado(a)s, ordenação de 1832 3.782 2.374 3.115 9.271 Escravo(a)s, ordenações de 1832 e 1836 3.989 2.242 3.317 9.548 Escravo(a)s, ordenação de 1839 222 111 372 705 Escravo(a)s, resgate forçado COM auxílio do 144 121 209 474 estado, ordenações de 1845 Escravo(a)s, resgate forçado SEM auxílio do 12 7 7 26 do estado, ordenação de 1845 Escravos e escravas do domínio, ordenações 9 23 8 40 de 1846 e 1847 Total 8158 4878 7028 20.064 % 40,65% 24,32% 35,03% 100%

Fonte: Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1847 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1851. Observação: as crianças recenseadas tem idade até 14 anos.

Das quatro colônias francesas onde havia produção de açúcar e escravos africanos e afrodescendentes, o maior número de alforrias oficiais conquistadas entre 1830 e 1847 foi obtido na Martinica. Em Guadalupe e dependências17, 16.111 escravos e escravas foram alforriados neste período; na Guiana Francesa, 2.603; e na ilha de Bourbon, 5.865. Para se ter uma ideia sobre os números populacionais dessas colônias, em 1847: na Martinica havia uma população total de 121.130 indivíduos, dos quais 9.542 eram brancos, 38.729 livres de cor e 72.850 escravos; em Guadalupe e dependências, numa população total de 129.109, 41.357 era livres (não apresenta dados separados para brancos e livres de cor) e 87.752 escravos; na Guiana Francesa, numa população total de 19.375, 1.264 eram brancos, 5.168 livres de cor e 12.943 escravos; em Bourbon, numa população total de 103.284, 31.218 eram brancos, 11.211 livres de cor e 60.260 escravos18.

17 Desde o século XVII, eram designadas como dependências da ilha de Guadalupe o arquipélogo próximo a esta Antilha Francesa: Marie-Galante, Désirade e Saintes. Ver Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, pp. 137-138 (BNF – Gallica). 18 Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1847 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1851, p. 11 (BNF – Gallica). Esta fonte será referida adiante como Tableaux de population, 1847. 325

Tabela 12 – Alforrias oficiais concedidas nas Colônias Francesas, 1830-1847 Período Martinica Guadalupe Guiana Bourbon Total Francesa 1830 – 5597 1798 371 230 7996 1832(*) 1833 7347 3178 306 189 11020 1834 2320 1471 318 1054 5172 1835 1114 1240 185 742 3281 1836 1192 964 137 366 2659 1837 946 711 123 443 2223 1838 662 563 95 269 1580 1839 436 486 89 220 1240 1840 952 557 72 406 1987 1841 741 681 110 206 1738 1842 811 527 59 308 1705 1843 787 352 63 247 1449 1844 591 772 61 259 1683 1845 616 573 60 256 1505 1846 1013 1137 252 366 2768 1847 791 1101 302 295 2480 Total 25.925 16.111 2.603 5.865 50.504

Fonte: Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1847 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1851. Observações: Quadro geral de alforrias oficiais concedidas entre final de 1830 e 1847, em quatro colônias francesas: Martinica, Guadalupe, Guiana Francesa e Bourbon (Bourbon, torna-se La Réunion, a partir de março de 1848). (*) Do fim de 1830 até o período que foi colocada em execução a ordenação de 12 de junho 1832.

A maior população de pessoas escravizadas era de Guadalupe e dependências, onde havia quase 15 mil escravos a mais que na Martinica em 1847. Porém, ainda assim, foi nesta última ilha que os escravos conquistaram o maior número de alforrias, em torno de 9.800 liberdades oficiais concedidas a mais que em Guadalupe. Nesse sentido, uma das diferenças marcantes entre estas duas colônias se observa na quantidade de alforrias auferidas pelos escravos patrocinados. Entre 1833 e 1847, enquanto na Martinica foram alforriados 9.271 livres de fato, em Guadalupe foram alforriados 4.357, na Guiana Francesa, 331, e em 326

Bourbon, 206 patrocinados19. De acordo com os dados apresentados por Victor Schoelcher para a Martinica em sua obra de 1842 (veja tabela 13), entre 1830 e 1839, 15.100 patrocinados conquistaram suas alforrias oficiais na colônia, enquanto que 4.937 alforrias foram concedidas aos escravos em geral no mesmo período20. Os anos mais expressivos quanto a estas alforrias dos livres de fato da Martinica são 1832 e 183321, sendo este último o mais marcante, quando 6.370 escravos patrocinados conquistaram suas liberdades definitivas. Provavelmente, este número se deve ao fato que somente a partir de 1833 a ordenação de 12 de junho de 1832 passou a ser aplicada realmente na Martinica, e a “disposição transitória” dessa lei tornava um direito a possibilidade do escravo patrocinado regularizar sua condição de livre22. A partir de 1835, o número de alforrias concedidas aos escravos em geral passou a ser maior que o número de liberdades oficiais conquistadas pelos livres de fato; e, em 1839, as 78 alforrias oficiais outorgadas a este grupo já são bem menos expressivas, se comparadas às 369 auferidas pelas pessoas escravizadas. Essa mudança ocorreu certamente porque grande parte dos patrocinados procuraram obter suas cartas de alforria oficiais ao longo da década de 1830. A existência de um maior número de livres de fato na Martinica na década de 1830 talvez possa ser explicada, se nos remetermos a todos os processos e eventos ocorridos sobre a questão das liberdades irregulares na colônia, ao longo do século XVIII e início do XIX, como abordado no capítulo quatro desta tese.

19 Tableaux de population, 1847, p. 32. 20 Os números fornecidos por Schoelcher – observados nos periódicos oficiais da Martinica – não correspondem exatamente àqueles fornecido pelo Ministério da Marinha e das Colônias (apresentados na tabela 11: “Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 – 1847”); contudo, são bastante próximos e Schoelcher separa as alforrias dos escravos patrocinados para cada ano, informação não disponível nos relatórios estatísticos do governo francês. Para o ano de 1840, Schoelcher apresenta apenas o número de alforrias aprovadas pelo governo martinicano até abril, assim não considerei esse dado na tabela 13. Veja SCHOELCHER, op cit (1842), pp. 435-436. 21 Ainda sobre os anos de 1832 e 1833 e os dados fornecidos por Schoelcher, Dale Tomich indica em sua obra que em 1832 foram pronunciadas 8.976 alforrias e em 1833, 2.129 alforrias. Por um pequeno erro na forma de registrar as alforrias na tabela produzida por Schoelcher (1842), Tomich acabou somando parte das alforrias de 1833 para o ano de 1832. Como verifiquei todas as decisões do governo da Martinica sobre as alforrias, publicadas no período, posso seguramente afirmar que em 1833 o número de liberdades concedidas foi maior, ao contrário do que aparece na tabela apresentada por Tomich. Veja TOMICH, op cit (1990), Tabela 3.2, p. 83. 22 “L’Ordonnance Royale relative aux affranchissements des esclaves”, Paris, 12 julho de 1832, BOM, 1832, pp. 318-321 (ANOM). 327

Tabela 13 – “État de toutes les libertés données a la Martinique” (Schoelcher), 1830-1839 1830 1831 1832 1833 1834 1835 1836 1837 1838 1839 Total Patrocinados 137 2175 3509 6370 1423 461 417 215 315 78 15.100 Escravos 22 107 44 982 749 624 771 683 586 369 4937 Total 159 2282 3553 7352 2172 1085 1188 898 901 447 20.037

Fonte: Victor Schoelcher, Des Colonies Françaises, abolition immédiate de l’esclavage, 1842, pp. 435- 436

Nesta pesquisa, um total de 1.218 alforrias foram analisadas, outorgadas entre 1833 e 1847. Este período foi recortado porque engloba as liberdades oficiais regulamentadas, sobretudo, pela lei de 1832, concedidas apenas a partir de agosto de 1833. Contudo, abrange também as alforrias reguladas pelas leis de 1836 (livre de direito, ao pisar no solo francês metropolitano), 1839 (alforria de direito) e 1845 (resgate forçado). Além disso, as liberdades autorizadas pelo governo da Martinica entre 1830 e 1832, como demonstrado em capítulo precedente, ainda dependiam muito da recomendação dos comissários comandantes das paróquias ou de membros da elite colonial. Dessa forma, quando divulgadas nos periódicos da colônia, geralmente, eram enunciados os nomes das pessoas que recomendavam a alforria do indivíduo escravizado ou patrocinado. Por isso, é difícil observar quem eram os senhores ou patronos dos escravos e livres de fato que obtiveram suas liberdades oficiais naqueles primeiros anos da Monarquia de Julho. Entre as 1.218 alforrias, foram analisadas 553 concedidas nos anos de 1833, 1835, 1836 e 1838 (“alforrias da década de 1830”); 400 outorgadas entre 1840 e 1844 (“alforrias da década de 1840”); e 265 autorizadas entre 1846 e 1847 (“alforrias por resgate forçado”). As informações sobre estas liberdades outorgadas pelo governo da Martinica entre 1833 e 1847 foram assim divididas nestes três grupos para que fosse possível analisar as diferenças entre os períodos e, mesmo, as características do conjunto de escravos e senhores envolvidos nestas conquistas e concessões de liberdade. A quantidade de alforrias analisadas na amostra em relação ao total daquelas concedidas no período recortado é pequena. No entanto, isso se explica pela preocupação com a qualidade das informações coletadas. Para cada período ou grupo de tipos de alforria foi criado um formulário, e um banco de dados23, que possibilitasse

23 Para o tratamento dos dados sobre as alforrias concedidas no período analisado, coletados principalmente no Bulletin Officiel de la Martinique e no Journal Officiel de la Martinique, foi montado um banco de dados com o programa Epi-INFO 7, seguindo a sugestão e orientação do Prof. Robert Slenes. O Epi Info é um programa, disponível gratuitamente, comumente utilizado por profissionais de saúde pública para conduzir investigações epidemiológicas, administrar bancos de dados para vigilância de saúde pública e outras 328 inserir as informações disponíveis, de uma forma que respondesse às questões apontadas por este trabalho de pesquisa. Ao pensar a organização dessas informações em uma base de dados, observamos as orientações de Tiago Gil, em seu trabalho de pós-doutorado sobre a construção de bancos de dados para as pesquisas na área de História24. Gil utiliza a expressão “artesanato automatizado” para definir sua proposta de uso pontual e deliberado de recursos informáticos nas pesquisas historiográficas. Segundo o autor, os bancos de dados devem ter relação direta com nossas perguntas e podem servir para “escancarar nossas posições teóricas mais ocultas e até mesmo indesejadas”. A primeira posição teórica a ser admitida é acreditar que seja possível reduzir a complexidade do social a ponto de fazê-la caber na forma de registros de uma tabela, tal como os historiadores acreditam ser possível fazer nas linhas de um texto25. De acordo com Gil, sem comparar, classificar ou contar, ficamos privados de qualquer afirmação que inclua expressões como “a maioria”, “a menor parte”, “um bom número”, “poucos”. Nesse sentido, “formalizar nossos critérios em um banco de dados facilita a comparação e permite uma clareza maior do universo que estamos estudando”26. Em parte por essas questões, a base de dados sobre as alforrias concedidas na Martinica nas décadas de 1830 e 1840 acabou se limitando a 1.218 entradas. Algumas informações não foram coletadas apenas nas fontes onde foram publicadas as alforrias oficiais. Certamente, se examinássemos apenas as informações sobre sexo, idade, cor da pele, profissão e local de moradia das pessoas alforriadas, seria possível coletar informações de um número muito maior. No entanto, era fundamental observar não apenas os escravos e escravas alforriadas, mas também seus senhores. Os dados sobre os proprietários que alforriaram seus escravos foram consideradas essenciais para procurar responder às questões colocadas por essa pesquisa. A mesma importância se aplica às relações de parentescos entre os escravos de uma mesma família alforriados conjuntamente e as ligações familiares entre escravos e senhores ou patronos. Compreender quem é o senhor que alforria, se é homem ou mulher, a qual “classe” pertence, isto é, se era branco ou livre de cor, são pistas importantes para compreendermos os padrões sobre a conquista da liberdade nas Antilhas Francesas, por meio

tarefas, e aplicações gerais de bancos de dados e estatísticas. No entanto, suas ferramentas são facilmente adaptáveis para qualquer banco de dados e cruzamento de suas informações, pois é um programa feito exatamente para tratar questões populacionais. Sem muita dificuldade, podemos desenvolver formulários, adaptar o processo de entrada de dados e produzir as análises de dados de acordo com os objetivos pretendidos. Veja mais informações sobre o programa em http://wwwn.cdc.gov/epiinfo/ . 24 GIL,Tiago. Como se faz um banco de dados (em história) [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Ladeira Livros, 2015 (documento em PDF – acessando em 10 de novembro de 2015, academia.edu). 25 Idem, pp. 8-9. 26 Idem, p. 21. 329 de questões que englobam raça, classe e gênero. Essas referências nos auxiliam a pensar principalmente como os escravos construíram seus caminhos para a liberdade e como negociaram seu acesso à alforria oficial, sobretudo as mulheres, visto que elas conquistaram o maior número de alforrias no período. Principalmente, a “classe” dos senhores exigiu um empenho de pesquisa em outras fontes primárias e secundárias para que fosse determinada. O termo “classe” é utilizado aqui segundo a noção que era usada na época nas colônias francesas. Os grupos sociais eram divididos de acordo com uma suposta origem étnica, definida como “raça”, entre indivíduos da “raça branca europeia”, indivíduos da “raça negra africana” e indivíduos “das variedades de mestiços [sang-mêlés] provenientes do cruzamento destas duas raças”. Ademais, eram divididos de acordo com o estatuto social (livre ou escravo), formando por fim três classes: a classe dos brancos, a classe dos livres de cor (gens de couleur libre ou affranchis) e a classe dos escravos27. Isso é definido em um relatório de estatísticas populacionais das colônias francesas, publicado pelo Ministério da Marinha e das Colônias em 1837, ou seja, apesar da lei de 1833, que estabelece igualdade civil e política para a população livre, ainda diferenciavam brancos e livres de cor. Essa distinção provavelmente tinha seus reflexos nas interações sociais nas colônias, expressando uma possível e complexa intersecção entre classe social e origem étnica. Contudo, apesar destes relatórios estatísticos, publicados entre 1837 e 1847, indicarem os números da população de livres de cor da Martinica neste período, desde 1830, e principalmente a partir de 1833, nenhum distinção poderia ser feita nos documentos oficiais produzidos na colônia quando se referisse aos “livres de cor”. Dessa forma, os funcionários da administração colonial não poderiam utilizar, principalmente em documentos notariais e do Estado Civil, ou mesmo nos registros de alforria, quando o senhor era afrodescendente, aqueles termos que marcavam a condição “intermediária” dos libertos e livres. Tais como as terminologias de nuances de cor da pele e de classificações de mestiçagem, ou ainda expressões como “pessoa de cor”, “homem de cor” e “mulher de cor”. Diante disso, para identificar a “classe” dos senhores, foram necessárias minuciosas pesquisas de informações observadas em outras fontes da Martinica e consultas em obras e teses que apresentam informações de nomes e genealogias sobre as famílias de

27 Ver Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, pp. 1-5 (BNF – GALLICA). 330 brancos e de livres de cor da Martinica28. Dessa forma, foram elaboradas duas listas de notas biográficas, uma na qual foram coletados nomes e sobrenomes de “livres de cor”, a maioria homens, e o mesmo para a classe dos “brancos”29. Este material foi utilizado especialmente para auxiliar a designar a classe dos senhores e patronos envolvidos nas concessões de alforria entre 1833 e 1847. Além disso, foram observadas as análises historiográficas e antroponímicas sobre as designações de nomes na Martinica no século XIX, procurando orientações sobre como identificar a classe dos indivíduos a partir de seus seus nomes e sobrenomes, ou a ausência destes. De acordo com a pesquisa de Guillaume Durand, sobre os nomes de famílias de origem servil da Martinica, contrariamente à noção por vezes divulgada por historiadores, a grande maioria dos libertos da colônia não utilizavam os sobrenomes dos senhores brancos. Isso teria ocorrido mais comumente entre o final do século XVII e primeira metade do século XVIII, entre livres de cor herdeiros de senhores brancos, mas, ainda assim, estes casos eram bastante raros30. Ademais, desde a ordenação de 177331, que proibiu os livres de cor de usarem patronímicos de famílias brancas instaladas ou conhecidas na ilha, muito dificilmente encontramos uma pessoa afrodescendente livre com um sobrenome de indivíduos de origem europeia, principalmente aqueles usados pelas famílias brancas mais conhecidas na ilha. Segundo Durand, uma quantidade quase inexpressiva de libertos usaram nomes de famílias

28 HAYOT, E., Les gens de couleur libres du Fort-Royal, 1679-1823 (1969); LOUIS, Abel A., Les libres de couleur en Martinique, des origines à 1815 (2011); DURAND, G., Les noms de famille de la population martiniquaise d’ascendance servile (2011); LOUIS, Abel. Marchands et négociants de couleur à Saint- Pierre (1777-1830) (2015); PIERRE-LOUIS, J., Les libres de couleur face au préjuge (2015); COUSSEAU, V., Population et anthroponymie en Martinique du XVIIe siècle à la première moitié du XIXe siècle (2009); THÉSÉE, F., Le général Donzelot à la Martinique: vers la fin de L’Ancien Régime colonial (1818-1826) (1997); SCHLOSS, R. H., Sweet liberty: the final days of slavery in Martinique (2009); BRUNEAU- LATOUCHE, Eugène & CORDIEZ, Chantal, 209 anciennes familles subsistantes de la Martinique (2010); BRUNEAU-LATOUCHE, E., Familles diverses de la Martinique (2015). Estas duas últimas obras de genealogias de famílias da Martinica estão acessíveis em https://pt.geneanet.org/biblioteca 29 Além das referências observadas nas obras citadas na nota anterior, utilizei as fontes que tive acesso ao longo da pesquisa. Tanto no BOM como no JOM, até mais ou menos 1832, as pessoas mencionadas com os pronomes “monsieur” e “madamme” certamente são brancas, e certas profissões também eram dificilmentes exercidas por livres de cor até a década de 1830. Além do BOM e do JOM, consultei outras fontes em busca de nomes e informações sobre pessoas livres da Martinica. Sempre que consultava a documentação notarial (ANOM, FM – DPPC – Notariat: Martinique) e do Estado Civil (ANOM, FM – DPPC – État Cil, Martinique), procurava inserir nomes e informações resumidas nas listas, sobretudo sobre a “classe”. Além disso, consultei o Almanach de la Martinique, pour l’année commune 1837, Fort-Royal: Thoubeau, 1837; as cartas e diário de Dessalles, além da lista de famílias “amigas” e “aliadas” dos Dessalles, apresentada por Henri Frémont ao final da obra (DESSALLES, Pierre, La vie d'un colon à la Martinique au XIXème Siècle, pp. 203-216); sites de genealogias, como https://familysearch.org/ e http://www.geneanet.org/. 30 DURAND, op cit (2011), p. 275. 31 Ordonnance de MM. les Général et Intendant faisant défenses aux Gens de couleur de porter les Noms des Blancs, Martinica, 6 de janeiro de 1773, DURAND-MOLARD, op cit, n°472, p.151-152. 331 brancas crioulas nas fontes que pesquisou: 23 ocorrências em 19.391 sobrenomes listados pelo autor32. A partir de suas análises acerca dos sobrenomes registrados entre 1763 e 1848 nos municípios de Lamentin e Gros-Morne, Durand observou que alguns patronímicos utilizados na França metropolitana às vezes eram usados por livres de cor da Martinica, mas sem relação com os brancos da colônia. A maior parte dos homens brancos, cujos sobrenomes eram transmitidos aos livres de cor, eram “petits blancs” (artesãos, soldados, comerciantes) ou proprietários de média importância. Nestes casos, foram, em geral, transmitidos em casamentos mistos. Durand cita um exemplo de 1832, caso raro nesta época. Louis Marie Daude, francês originário do Cantal, agrônomo de profissão, legitimou sua união com Marie Justine Jenette, dita Sosotte, alforriando ela e seus três filhos33. Contudo, as obras sobre famílias da Martinica, como de Bruneau-Latouche, não mencionam a existência de mulatos ou negros nas genealogias das famílias brancas mais importantes economicamente, como os Jaham, Gaigneron, Lecurieux, Hayot, Houdin, Huygues. Segundo Durand, as famílias de cor que hoje em dia levam sobrenomes de famílias brancas são descendentes reconhecidos ou de uniões realizadas no pós-abolição. Algumas características observadas por Vincent Cousseau e Guillaume Durand, acerca dos nomes e patronímicos na Martinica antes de 1848, auxiliaram a diferenciar os senhores livres de cor dos brancos, quando as fontes não apontam mais diferenças de cor. Até esta época, ainda era comum encontrar pessoas livres de cor sobre as quais, nos documentos oficiais, indicava-se apenas o prenome, sem sobrenome. A ausência de nome de família é um indício certo de que o indivíduo era livre de cor, pois, isso nunca ocorria com as pessoas brancas naquele período34. Outra característica observada por Durand é que numerosos patronímicos martinicanos se originavam a partir do prenome dos libertos. Mais frequentemente do prenome da mãe, às vezes do pai, ou ainda do cônjuge, ou mesmo do filho ou filha. Desse modo, é significativa a quantidade de sobrenomes de famílias martinicanas formados com um prenome feminino (Annette, Marie-Anne, Marie-Jeanne, Marie-luce, Maire-Joseph, Lise, Adélaïde, Fanchonette) ou masculino (Joseph, Alexandre, Patrice, Edouard, Firmin, Jean-Pierre, Jean-Baptiste). Segundo Durand, isso não é uma especificidade antilhana, pois na França e em outros países, vários nomes de família se originaram em um prenome de um ancestral. No entanto, particularmente nas Antilhas francesas (Martinica e

32 DURAND, op cit (2011), p. 277. 33 Idem, p. 286. 34 COUSSEAU, op cit, p. 117; DURAND, op cit (2011), p. 335. 332

Guadalupe), este fenômeno foi muito recorrente entre os patronímicos dos libertos, e depois dos “novos cidadãos” (libertos pós 1848), mas tendo ocorrido muito mais frequentemente antes de 183635. Para este tipo de análise, quanto à “classe” do senhor, no banco de dados foram utilizadas as categorias “branco”, “possível branco”, “livre de cor”, “possível livre de cor” e “não identificado”. Classificações como “possível livre de cor” podem ser polêmicas, no entanto, tornam, a princípio, a indicação da informação mais honesta e até mais precisa. Este tipo de identificação foi utilizada quando não foram encontradas referências sobre o sobrenome do senhor. Neste caso, geralmente era um patronímico aparentemente de origem francesa36, mas sem referência entre os sobrenomes de famílias brancas mais ou menos conhecidas na ilha, observadas principalmente em obras genealógicas37. Porém, outros elementos, como a profissão ou a forma como se usa um pronome de tratamento para se referir a pessoa (sieur e dame ou monsieur e madamme), também foram tomados como indícios para definir um senhor como “possível livre de cor”. Em alguns casos é bastante evidente que a pessoa pertence à classe dos livres de cor. Por exemplo, Jean Marcel alforriou Suzette, 65, negra crioula, e Marcel, 11 anos, negro crioulo, em registros separados, mas na mesma decisão do governador. Além de Jean Marcel possuir um sobrenome originado em um prenome, ele autorizou que os dois escravos alforriados utilizassem seu patronímico, fortes indícios de que ele era livre de cor. Foi mais fácil definir a classe das senhoras de escravos, pois os indícios e as diferenciações entre mulheres negras e brancas são mais evidentes. As mulheres brancas geralmente são casadas, a maioria viúva, e, além da indicação do patronímico do marido, frequentemente seu sobrenome de solteira também é mencionado. Isso nunca ocorre com as mulheres livres de cor, mesmo que sejam casadas, e geralmente são solteiras (demoiselles). Um outro caso é quando além de ser demoiselle, indica-se o sobrenome da mulher com um “dite”, como Marie Catherine Elizabeth dite Descressonnière. Isso nunca ocorre com as mulheres brancas, ao menos entre 1830-1847. Contudo, nestes casos, se não há outros

35 DURAND, op cit (2011), p. 333. Em 1836, foi promulgada uma ordenação que regulamentou o registro de sobrenomes dos libertos, retomando a essência daquela lei de 1773, pois não poderiam registrar patronímicos de famílias da colônia, a não ser que conseguissem autorização por escrito de todos os membros da família. Essa lei foi comentada no capítulo 5 desta tese. 36 Utilizei como referência um website, no qual o autor apresenta informações sobre as origens de milhares de sobrenomes franceses: http://jeantosti.com/noms/a1.htm. 37 BRUNEAU-LATOUCHE, & CORDIEZ, 209 anciennes familles subsistantes de la Martinique (2010); BRUNEAU-LATOUCHE, Familles diverses de la Martinique (2015). 333 indícios, indico a classe como “possível livre de cor”. No entanto, se a senhora do escravo é mulher, “demoiselle”, sem indicação de sobrenome, com alguma profissão como lavadeira ou costureira, certamente ela era livre de cor. A mesma conclusão foi aplicada aos homens. Se sua profissão é “cultivador”, sem nenhuma indicação se é proprietário, se não há registro de seu sobrenome no registro de alforria, este senhor certamente era da classe dos livres de cor. O mesmo foi feito para a classificação “possível branco”, para os casos que não foi possível ter certeza sobre a “classe” do senhor, mas o patronímico indica que talvez fosse um homem branco. Por exemplo o senhor Rossignol, da paróquia do Prêcheur, que alforriou um escravo em 1840. Rossignol era o sobrenome de um notário e senhor de terras no final do século XVIII38. No banco de dados, quanto aos senhores, além da classe, nome e sobrenome, ainda foram observadas informações sobre o sexo (feminino ou masculino), profissão, se tinha relação de parentesco com a escrava ou escravo alforriado e qual o tipo de parentesco — mãe, pai, avó (não encontramos nenhum avô que alforriasse os netos), tia, tio, irmã, irmão, marido, esposa, filho, filha. Quanto aos escravos, foi possível observar, de acordo com as informações fornecidas nas decisões do governo da Martinica sobre a alforria de vários indivíduos: nomes e sobrenomes, sexo, idade, profissão, classificações de nuances da cor da pele, origem (se africano ou crioulo, nascido na ilha), condição (patrocinado ou escravo); local de moradia. Quanto à idade, para facilitar a análise e o cruzamento de informações, será observado nas tabelas expostas adiante que foram estabelecidas faixas etárias. Nas colônias francesas, eram consideradas crianças aqueles indivíduos escravizados até 14 anos. Porém, no banco de dados foram estabelecidas uma faixa etária de zero a 8 anos e outra de 9 a 14, para observar a quantidade de crianças maiores e crianças pequenas. Os escravos entre 15 e 60 anos eram considerados em idade produtiva e acima de 60 anos, velhos. Diferentemente do Brasil, nas colônias francesas nunca foi promulgada uma “Lei dos sexagenários”. A partir dos 14 anos, então, foram criadas faixas etárias de 15 em 15 anos: 15 – 30, 31 – 45, 46 – 60, acima de 60 anos. Essas faixas etárias foram importantes para observar, por exemplo, as mulheres, que começam a ter filhos cedo, por volta dos 14 ou 15 anos, e ainda estão jovens aos 30. Quanto aos nomes e sobrenomes, apenas a partir de 1836 as pessoas alforriadas foram obrigadas a indicar um patronímico para o registro como liberto no Estado Civil, mas

38 LOUIS, op cit (2011), p. 678. 334 estes dados não foram tabulados para as análises que serão feitas adiante. Contudo, a partir destas informações — nome, sobrenome e ainda local de moradia —, algumas vezes foi possível observar pessoas que conquistavam suas liberdades oficiais e que depois alforriavam outros escravos. Quanto às categorias de nuances da cor da pele, negro, caprê, mulato, mestiço, quarteirão e griffe foram as designações que apareceram nas fontes sobre as concessões de alforria analisadas. É importante notar que apesar dessas designações não serem mais utilizadas para classificar os livres de cor neste período, as escravos e escravos ainda eram referidos dessa forma em diferentes documentos. Sobretudo no momento do registro de suas alforrias, a cor da pele era frequentemente e minuciosamente indicada. Quanto ao local de moradia, optou-se por um recorte espacial que foi observado também nos registros notariais de desistência de propriedade, analisados no capítulo sobre os patrocinados e livres de fato, recorte justificado na introdução dessa tese. Desse modo, observamos as alforrias concedidas em alguns municípios do arrodissement de Saint-Pierre: Basse-Pointe, Carbet, Case-Pilote, Grand-Anse (Lorrain), Gros-Morne, Macouca (du Nord), Prêcheur, Sainte-Marie, Robert. A cidade de Saint-Pierre às vezes é referida nas fontes observadas apenas dessa forma, com o nome do município, e às vezes diferencia-se a paróquia do Fort (“Saint-Pierre-Fort”), paróquia do Mouillage (“Saint-Pierre-Mouillage”) e as redondezas da cidade, certamente área rural (“Saint-Pierre Extra-muros”). Além dessas informações individuais sobre as escravas e escravos alforriados, ainda foram criados campos no banco de dados para indicar as relações de parentesco entre os escravos. Muitos registros de alforria são coletivos, ou seja, em uma mesma solicitação de liberdade oficial são alforriadas várias pessoas da mesma família. Isso permitiu observar quem era alforriado com família e quem era alforriado individualmente. Ademais, as informações disponíveis nos registros de alforria ainda permitiram constatar com quem da família a pessoa era alforriada, e muito frequentemente eram mães com seus filhos. Ainda foi utilizado um campo denominado “arrimo de família”, mas a ideia era apenas identificar a “cabeça” do grupo familiar alforriado, o que auxiliou contabilizar a quantidade de famílias alforriadas na amostra analisada para cada período. Como comentado anteriormente, foram elaborados bancos de dados diferentes para períodos distintos. Antes de construir as bases de dados, foi possível observar nas fontes que havia diferenças entre as décadas de 1830 e 1840. Na década de 1830, como comentado anteriormente, os patrocinados conquistaram muito mais liberdades oficiais que os escravos 335 em geral. As decisões do governo da Martinica que atenderam à lei de 11 de junho de 1839, a qual regulamentava as “liberdades de direito”, começaram a ser publicadas em 1840, o que suscita outras características sobre as alforrias a partir deste período. As alforrias por resgate forçado com subsídio do governo, isto é, aquelas que tocaram escravas e escravos que tinham algum pecúlio e receberam uma parte do valor de sua alforria de fundos do governo destinados para este fim, a partir das leis de 1845, foram concedidas em decisões especiais do governo da Martinica, entre 1846 e 1847. Dessa forma, indicamos a seguir as informações sobre as fontes estudadas para a composição de cada análise: “alforrias da década de 1830”, “alforrias da década de 1840” e “alforrias por resgate forçado”. Essas alforrias foram divulgadas em “Decisões do Governador portanto alforria de diversos indivíduos”, publicadas no Bulletin Officiel de la Martinique (BOM)39, fonte impressa que foi investigada nos Archives Nationales d’Outre Mer (Aix-en-Provance, França). Provavelmente, devido às diferenças na forma dos oficiais responsáveis registrarem as solicitações de alforria de cada localidade, algumas listagens não informam, por exemplo, a profissão do escravo, ou não indicam em um mesmo registro coletivo as alforrias de uma mesma família, ainda que seja possível observar que existiam relações de parentesco entre alguns escravos da listagem geral. Em razão disso, foram selecionados os registros de alforrias de municípios, de acordo com o recorte espacial, que indicassem o maior número de informações sobre os escravos e os senhores. Ao final da lista de fontes utilizadas, expomos uma imagem dessas decisões do governo da Martinica publicadas no BOM, para que o leitor possa ter uma ideia de como eram divulgadas.

Para a análise das “alforrias da década de 1830”, foram observadas as seguintes “Decisões [do Governador] portanto alforria de diversos indivíduos”, publicadas em 1833, 1835, 1836 e 1838: 1) Arrêté portant affranchissement de divers individus, 11 de outubro de 1833, BOM, 1833, pp. 365-389. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; ainda que contenha as alforrias de vários municípios do arrondissement de Saint-Pierre, observamos apenas aquelas concedidas nos municípios do Carbet e Robert, com o objetivo de analisar localidades rurais do norte da Martinica.

39 Estas Decisões do governo também foram publicadas no Journal Officiel de la Martinica (JOM), mas serão indicadas apenas as referências sobre o BOM. 336

2) Arrêté portant affranchissement de divers individus, 24 de fevereiro de 1835, BOM, 1835, pp. 97-99. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; ainda que contenha as alforrias de vários municípios do arrondissement de Saint-Pierre, observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Carbet e Robert 3) Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de divers individus, 3 de março de 1836, BOM, 1836, pp. 58-62. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; ainda que contenha as alforrias de vários municípios do arrondissement de Saint-Pierre, observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Carbet, Sainte-Marie e Prêcheur 4) Arrêté portant affranchissement de divers individus, 22 de novembro de 1836, BOM, 1836, pp. 284-287. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; observamos todos os municípios listados, pertencentes ao arrondissement de Saint-Pierre: Saint-Pierre, Sainte- Marie, Marigot, Basse-Pointe, Gros-Morne, Prêcheur, Grand-Anse 5) Arrêté portant affranchissement de divers individus, 17 de novembro de 1838, BOM, 1838, pp. 190-196. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; apesar das várias localidades listadas nesta decisão, observamos os seguintes municípios do arrondissement de Saint-Pierre: Saint-Pierre, Grand-Anse, Carbet e Sainte-Marie

Para a análise das “alforrias da década de 1840”, algumas “Decisões portanto alforria de diversos indivíduos” listam apenas e separadamente as “alforrias de direito”, de acordo com a ordenação de 11 de junho de 1839. Nestas decisões, geralmente constam poucas alforrias, por isso foi necessário observar várias delas. Seguem as referências das fontes utilizadas para este período: 1) Arrêté du Gouverneur en conseil portant affranchissement de 17 patronés et 163 esclaves, 06 de abril de 1840, BOM, 1840, pp. 125 – 137. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; ainda que contenha as alforrias de vários municípios do arrondissement de Saint-Pierre, observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Sainte-Marie, Gros-Morne, Trinité, Macouba, Carbet, Case-Pilote, Prêcheur, Grand'Anse e Basse-Pointe. 2) Arrêté portant affranchissement de deux individus, em vertu de l’art. 2 de l’ordonnance du 29 avril 1836, 06 de abril de 1840, BOM, 1840, p. 146. Estas alforrias concedidas a escravos domésticos que foram levados por seus senhores à França 337 metropolitana, e que geralmente retornavam à colônia, eram bastante raras, mas consideramos importante inserir algumas no banco de dados. Esta decisão se refere a indivíduos que moravam no município de Saint-Pierre. 3) Arrêté du Gouverneur en conseil portant affranchissement de 12 esclaves en vertu de l’ordonnance du 11 juin 1839, 06 de abril de 1840, BOM, 1840, pp. 147-148. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Trinité e Robert. 4) Arrêté portant affranchissement de 6 esclaves, en exécution de l’ordonnance du 11 juin 1839, 06 de setembro de 1840, BOM, 1840, pp. 348-349. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Carbet e Gros-Morne. 5) Arrêté portant affranchissement de 6 esclaves, en exécution de l’ordonnance du 11 juin 1839, 06 de setembro de 1840, BOM, 1840, pp. 350-351. “Alforrias de direito”, concedidas no município de Saint-Pierre 6) Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement de 6 esclaves, en vertu de l’ordonnance du 11 juin 1839, 05 de fevereiro de 1841, BOM, 1841, pp. 24-26. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Robert, Macouba e Basse-Pointe. 7) Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement de 9 individus, en vertu de l’ordonnance du 11 juin 1839, 24 de julho de 1841, BOM, 1841, pp. 210-211. “Alforrias de direito” concedidas nos municípios de Saint-Pierre e Robert. 8) Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement de 26 libres de droit, 24 de julho de 1841, BOM, 1841, pp. 211-214. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Prêcheur, Trinité, Sainte-Marie e Grand-Anse. 9) Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement de 7 libres de droit, 30 de agosto de 1841, BOM, 1841, pp. 245-246. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Carbet e Trinité. 10) Arrêté du Gouverneur, portant affranchissement, en vertu de l’ordonnance du 11 juin 1839, de 7 libres de droit, 07 de outubro de 1841, BOM, 1841, pp. 278-279. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Carbet e Trinité. 11) Arrêté portant affranchissement de 6 individus libres de droit, en vertu de l’ordonnance du 11 juin 1839, 07 de dezembro de 1841, BOM, 1841, pp. 324-325. “Alforrias de direito”, concedidas no município de Saint-Pierre. 338

12) Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 42 esclaves et de 2 libres de fait, em vertu de l’ordonnance du 12 juillet 1832, 07 de dezembro de 1841, BOM, 1841, pp. 314-317. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; ainda que contenha as alforrias de vários municípios do arrondissement de Saint-Pierre, observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Sainte-Marie, Gros-Morne, Trinité e Macouba. 13) Arrêté portant affranchissement de 7 individus libres de droit, 04 de julho de 1842, BOM, 1842, pp. 258-259. “Alforrias de direito”, concedidas no município de Saint- Pierre, paróquias do Fort e do Mouillage. 14) Arrêté portant affranchissement de 122 esclaves et 2 patronés, 03 de outubro de 1842, BOM, 1842, pp. 469-477. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Sainte-Marie, Gros-Morne, Macouba e Carbet. 15) Arrêté portant affranchissement de 89 esclaves, 28 de fevereiro de 1843, BOM, 1843, pp. 67-74. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Trinité, Case-Pilote, Basse-Pointe, Prêcheur e Carbet. 16) Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 16 individus libres de droit, 29 de agosto de 1843, BOM, 1843, pp. 298-301. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Gros-Morne, Trinité, Case-Pilote e Grand-Anse (Lorrain). 17) Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 11 individus libres de droit, 29 de fevereiro de 1844, BOM, 1844, pp. 72-74. “Alforrias de direito”, concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Carbet, Case-Pilote, Grand-Anse (Lorrain) e Sainte-Marie. 18) Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 45 esclaves, 25 de fevereiro de 1844, BOM, 1844, pp. 115-119. Alforrias de acordo com a ordenação de 1832; observamos apenas aquelas concedidas nos municípios de Saint-Pierre, Case-Pilote, Macouba, Prêcheur, Carbet, Grand-Anse, Gros-Morne, Trinité e Sainte-Marie.

Para a análise das “alforrias por resgate forçado, 1846-1847”, foram observadas as cinco decisões do governo da Martinica portanto alforrias por resgate forçado com a subvenção estatal, entre agosto de 1846 e maio de 1847, concedidas de acordo com as ordenações de 18 e 19 de julho de 1845. Uma sessão deste capítulo é especialmente dedicada 339 a explicar e analisar o processo que envolveu a avaliação e concessão dessa tipo de alforria por resgate forçado. As cinco decisões do governo que tocam estas alforrias incluem indivíduos dos arrondissements de Saint-Pierre e de Fort-Royal, mas foram inseridas no banco de dados e analisadas apenas as informações sobre os escravos libertos nos municípios do arrondissement de Saint-Pierre: 1) Arrêté portant affranchissement par suite de rachat forcé de 54 esclaves, auxquels il a été accordé une subvention, en exécution des ordonnances des 23 et 26 octobre 1845, 07 de agosto de 1846, BOM, 1846, tabelas anexadas sem paginação. As ordenações de 23 e 26 de outubro de 1845 apenas regulamentam a forma de concessão de alforria definida pelas ordenações de 18 e 19 de julho de 1845. 2) État des esclaves compris dans la distribution des fonds alloués par la loi du 19 juillet 1845, 01 de setembro de 1846, BOM, 1846, pp. 481-486. 3) Arrêté du Gouverneur, du 2 novembre 1846, au sujet d’une allocation de 34,850 fr, pour subvention à titre de complément des prix de rachat d’esclaves dénommés dans l’état annexé, 2 de novembro de 1846, BOM, 1846, pp. 600-602. 4) Arrêté du Gouverneur, du 24 décembre 1846, au sujet d’une allocation de 15,361 fr. 85 c., pour subvention à titre de complément des prix de rachat d’esclaves dénommés dans l’état annexé, 24 de dezembro de 1846, BOM, 1846, pp. 671-676. 5) Arrêté du Gouverneur, du 4 mai 1847, au sujet d’une allocation de 83.000 fr., pour subvention à titre de complément des prix de rachat d’esclaves dénommés dans l’état annexé. État des esclaves compris dans la distribution des fonds alloués pour le rachat, par la lois du 19 juillet 1845, 4 de maio de 1847, BOM, 1847, pp. 189-191.

Nas próximas sessões, todas as tabelas que serão observadas têm como referências específicas as fontes listadas anteriormente para cada período. Assim, não será indicada fonte por fonte, mas apenas mencionaremos em cada tabela à qual grupo de alforrias concerne: “alforrias da década de 1830”, “alforrias da década de 1840” e “alforrias por resgate forçado, 1846-1847”. Outras tabelas foram construídas a partir dos relatórios estatísticos do Ministério da Marinha e das Colônias e, nestes casos, a fonte é referida. 340

Imagem: “Arrêté portant affranchissment de divers individus”, 25 de fevereiro de 1835, Bulletin Officiel de la Martinique 341

AS ALFORRIAS DA DÉCADA DE 1830

As liberdades conquistadas por escravos e escravas ao longo da década 1830 foram basicamente regulamentadas pela lei de 12 de julho de 1832. Visando uma abordagem mais aprofundada das características e da diversidade da experiência de conquista da liberdade neste período, foi analisada uma amostragem de 552 alforrias oficiais autorizadas pelo governo da Martinica, divididas entre os anos de 1833, 1835, 1836 e 1838. Uma grande quantidade de patrocinados e livres de fato conquistaram suas liberdades oficiais e definitivas nesta época. Os patrocinados tinham patronos ou senhores que os registravam em seus inventários como escravos. De acordo com um aviso oficial do governo da Martinica de 1831, tinham que declarar aos comissários comandantes de cada paróquia sua condição de patrocinado e quem era seu patrono, caso houvesse alguém40. Rosiette, mulata crioula de 56 anos, que trabalhava como lavadeira, conseguiu sua alforria oficial em março de 1836. Até esta data, ela usufruía uma liberdade de fato e estava inscrita, provavelmente como escrava, no inventário do senhor Bellefeuille fils, ourives na paróquia do Fort, em Saint-Pierre41. Contudo, os patrocinados nessa situação geralmente ressarciram seus patronos com parte de suas jornadas de trabalho, além da capitation, imposto cobrado por cada escravo de um proprietário, mas que os libertos irregulares também pagavam devido à sua condição ambígua42. Era comum, ainda, que fossem patrocinados por uma pessoa próxima de sua convivência social, frequentemente alguém com quem tinham uma relação de parentesco sanguíneo ou espiritual — neste caso, geralmente madrinhas —, estabelecendo um vínculo de proteção e dependência, às vezes até mesmo sem exploração do trabalho da pessoa patrocinada. De acordo com a tabela 14, abaixo, observa-se que 65% das alforrias analisadas para a década de 1830 foram concedidas a patrocinados ou livres de fato. Estes termos eram

40 Em maio de 1831, o governo da colônia publicou um “Aviso Oficial” na primeira página do Journal Officiel de la Martinique, relativo aos patrocinados, informando que os comissários comandantes das paróquias deveriam entregar aos “livres de fato” as cartas que certificavam sua qualidade de “patrocinado”, indicando o número de controle sob o qual eles deveriam estar registrados. Informava, ainda, que todo patrocinado que fosse encontrado sem esta carta seria preso e detido na cadeia mais próxima até que provasse sua identidade. 41 “Rosiette, mulâtresse créole de 56 ans, blanchisseuse, jouissat de la liberté de fait, portée sur le dénombrement du sieur Bellefeuille fils, orfévre, domicilié au Fort”, in Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de divers individus, 3 de março de 1836, BOM, 1836, p. 59 42 Este imposto e como era cobrado sobre os patrocinados na década de 1830 são abordados no capítulo 4 desta tese. 342 utilizados como sinônimos neste período. No entanto, é importante esclarecer que a partir de 1833, vários indivíduos que viviam como livres de fato solicitaram suas alforrias oficiais diretamente ao procurador do rei sem o intermédio de um patrono, pois a lei de 1832 possibilitava esta situação. Marie dita Henriette, mulata crioula de 39 anos, que trabalhava como costureira no município do Carbet, solicitou ela mesma sua alforria e de seus cinco filhos, com idades entre um e doze anos, todos, incluindo ela, designados como livres de fato43. O fato de demandar sua própria liberdade oficial pode significar duas situações diferentes. Que Marie Henriette não tivesse mesmo um patrono ou senhor, que talvez tenha nascido de uma mãe livre de fato (livre de savana ou patrocinada), quem nunca pôde oficializar sua condição de liberta. Poderia ser também que contasse com a proteção de alguém próximo, provavelmente um parente, que tivesse inscrito ela e seus filhos em seu inventário como seus escravos patrocinados, contudo, o patrono ou patrona não acreditava ser necessário se apresentar diante do oficial responsável pela solicitação de alforria, desde que isso não era necessariamente obrigatório na época. De acordo com a amostra analisada, entre os 360 livres de fato que conseguiram suas liberdades definitivas, 173 demandaram diretamente suas alforrias oficiais à administração colonial; 22 pessoas possuíam uma carta de liberdade estrangeira, e também solicitaram suas liberdades sem intermédio de um patrono ou patrona; e 165 alforrias de livres de fatos foram solicitadas pelos patronos ou patronas. Em torno de 35% das alforrias observadas na amostra analisada foram concedidas a pessoas que tinham a condição de escravo. É interessante notar que entre estas, a quantidade de mulheres e homens é quase a mesma, enquanto que entre os livres de fato, a parcela de indivíduos do sexo feminino, em torno de 59%, é significativamente maior que do sexo masculino, em torno de 41%.

Tabela 14 – Alforrias da década de 1830: Condição e sexo do(a) escravo(a) alforriado(a) Condição / sexo Feminino Masculino Total escravo 97 95 192 livres de fato 211 149 360 total 308 244 552

43 Arrêté portant affranchissement de divers individus, n. 24, 11/10/1833, BOM, 1833, pp. 366. 343

Seguindo o padrão de concessões de alforria de qualquer período, as mulheres e crianças são os escravos (e livres de fato44) que mais conquistaram a liberdade, de acordo com a amostra analisada. Em torno de 56% das alforrias foram auferidas por indivíduos do sexo feminino. Observando a tabela 15, abaixo, as crianças até 8 anos foram as mais beneficiadas com a liberdade oficial. Considerando o conjunto de crianças entre zero e 14 anos, este representa quase 45% do total de alforrias, seguido pela faixa etária de 15 a 30 anos, 24,5% do total. Dessa forma, contrariando alguns padrões de alforria de outras sociedades escravistas, neste período na Martinica, escravos e escravas jovens conseguiram mais acesso à liberdade que escravos mais velhos. Contudo, considerando os adultos entre 15 e 60, os quais pagavam a capitação, sendo considerados adultos “produtivos”, estes representam quase 50% do total de alforrias. Até 30 anos, as quantidades de indivíduos do sexo masculino e feminino por cada faixa etária são bastante próximas. Curiosamente, se somarmos os números de meninas e mulheres e de meninos e homens das três faixas etárias até 30 anos, o resultado é exatamente o mesmo, 191 alforrias para cada grupo dividido por sexo. A partir de 31 anos, as mulheres alforriadas sempre formam uma parcela muito mais significativa que os homens, especialmente acima de 60 anos. Isso talvez indique que mais mulheres envelheciam como escravas, ou que mais homens conseguiam suas alforrias antes dos 60 anos. Acima dos 15 anos, as mulheres representam em torno de 34% do total de alforrias analisadas para este período, número um pouco abaixo da porcentagem sobre o conjunto total de alforrias concedidas entre 1833 e 1847, 40,65% conquistadas por mulheres acima de 15 anos45, mas, ainda assim, próximo desse valor. Os homens acima de 15 anos representam 21% do total analisado, sendo um resultado bastante próximo da porcentagem sobre a totalidade de alforrias auferidas entre 1833 e 1847, 24,32% concedidas aos homens46. Podemos, assim, considerar a amostra representativa da totalidade de liberdades conquistadas na Martinica ao longo da Monarquia de Julho.

44 Para facilitar a análise da amostragem e fluidez do texto, quando generalizações forem necessárias, vou me referir aos indivíduos que conquistaram a alforria oficial apenas como escravos e escravas a partir deste momento do texto. 45 Veja Tabela 11 – “Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 – 1847”. 46 Idem. 344

Tabela 15– Alforrias da década de 1830: sexo do(a) escravo(a) e faixas etárias (anos) Sexo 0 – 8 9 – 14 15 – 30 31 – 45 46 – 60 Acima Total escravo de 60 Feminino 80 40 71 54 39 24 308 Masculino 74 53 64 27 19 7 244 Total 154 93 135 81 58 31 552 % 28% 17% 24,5% 14,5% 10,5% 5,5%

Quanto às relações de parentesco entre os escravos (veja a tabela 16), 61% do conjunto analisado foram alforriados com a família, formando um total de 86 grupos familiares, e 39% obtiveram a liberdade oficial individualmente. Isso foi possível ser observado porque os indivíduos de uma mesma família geralmente eram listados num mesmo registro de alforria coletiva e as relações de parentesco são mencionadas. Em torno de 70 famílias alforriadas eram formadas por mães com seus filhos, ou seja, a grande maioria. A maior parte dessas mães conseguiram a liberdade com um ou dois filhos (em torno de 54%), e uma parte significativa com três (13%) ou seis filhos (13%). Não descartamos a possibilidade de que algumas dessas famílias estavam sendo alforriados pelos pais das crianças, talvez companheiros das mulheres, principalmente quando os indivíduos libertos são patrocinados. Contudo, as informações disponíveis nas fontes não permitiram avaliar quando isso ocorria. São bem raros os casos de alforria de uma família envolvendo o homem (pai e marido), com a mulher e seus filhos, mas nesta amostra foi possível observar duas ocorrências. Em alguns casos, por volta de cinco famílias, uma mulher foi alforriada com seus filhos e netos. Ainda foram considerados como “família” alguns grupos formados apenas por irmãos, em geral, crianças abaixo de 14 anos. 345

Tabela 16 – Alforrias da década de 1830: Alforria com família ou individual, por faixa etária (anos) 0-8 9-14 15-30 31-45 46-60 Acima Total de 60 Alforria 133 76 70 38 14 4 335 com família Alforria 21 17 65 43 44 27 217 individual Total 154 93 135 81 58 31 552

A “origem” dos escravos e escravas, apresentada na tabela 17, abaixo, refere-se ao local de nascimento dos indivíduos, se nasceram na África (africano) ou nas colônias francesas (crioulo). A maioria esmagadora das escravas e escravos alforriados na década de 1830 são crioulos. Das 552 alforrias analisadas, apenas 8 são africanos, 6 mulheres e 2 homens, todos adultos entre 20 e 60 anos. É muito raro encontrar africanos livres de fato. Contudo, observamos um caso que se destaca. Em outubro de 1833, no Carbet, Clémence, “negra caplaou”, com 40 anos, conquistou sua alforria e era uma “livre de fato”. Sua profissão era “habitante”, ou seja, provavelmente cultivava uma porção de terra no município do Carbet, região predominantemente rural. Porém, talvez não tivesse a posse da terra, pois não era uma “habitante proprietária”. No banco de dados, sua profissão foi indicada como “cultivadora”. Clémence solicitou diretamente à administração colonial, sem intermédio de um patrono, sua alforria e de seus 5 filhos: Sophie, 9 ano; Magdeleine, 7 anos; Joseph dito Yoyo, 4 anos; Edouard, 3 anos; Victorin, 2 anos; todos os filhos classificados como “negros crioulos”47. Sobre a origem específica de Clémence, no Caribe Francês eram designados por caplaou os escravos originários da Costa do Marfim, que embarcavam no Cap Lahou (Cabo Lahou) e arredores48.

47 Registro n. 141, Carbet, “Arrêté portant affranchissement de divers individus”, 11 de outubro de 1833, BOM, 1833, p. 372 48 De acordo com Pierre Pluchon, os caplaou estavam presentes no vodu haitiano. PLUCHON, Pierre. Vaudou, sorciers, empoisonneurs de Saint-Domingue à Haïti.Paris: Karthala, 1987, p. 275, nota 75 346

Tabela 17 – Alforrias da década de 1830: Origem (africano ou crioulo) / sexo do(a) escravo(a) Origem Feminino Masculino Total Africano 6 2 8 Crioulo 302 242 544 Total 308 244 552

Sobre as classificações de nuances da cor da pele (veja tabela 18, abaixo), uma parte significativa dos escravos alforriados na década de 1830 foram designados como mulatos, 40% do total analisado. Contudo, uma parcela igualmente expressiva foi definida como negros e câpres, também 40% do total. Os mestiços, supostamente indivíduos de pele mais clara, representam apenas 5% do total. Para alguns indivíduos nada foi mencionado sobre a cor da epiderme, em torno de 15% do conjunto, quase todos crianças até 14 anos. É interessante observar que, apesar da lei exigir que a “casta” do indivíduo — como se referem às classificações de mestiçagem e cor da pele — fosse designada nos registros de alforria desse período49, nos relatórios estatísticos sobre as colônias francesas, produzidos pelo Ministério da Marinha e das Colônias, não consta nenhuma informação sobre esta categoria racial. Guillaume Durand analisou mais de 10 mil indivíduos alforriados na Martinica entre 1833 e 1835, e observou que mulatos e mestiços juntos não representaram mais que 51% do total. Para o ano de 1839, sobre o qual analisou a alforria de 433 indivíduos nas decisões do governo martinicano, apenas em torno de 30% eram mulatos. Conclui, então, que o número de escravos alforriados e designados com a cor da pele mais clara não foi tão preponderante como frequentemente se afirma acerca da conquista da liberdade nas Antilhas Francesas50. Durand analisou em sua pesquisa o sexo, a cor, a profissão e as faixas etárias das escravas e escravos libertos durante a década de 1830, contudo, sem cruzar, por exemplo, as informações sobre as relações de parentesco. Mesmo assim, ao observar que as crianças

49 Ainda que as “castas” já fossem mencionadas desde 1833 nos registros de alforria, a “Ordonnance du Roi concernant les noms et prénoms à donner aux affranchis dans les colonie ”, de 29 de abril de 1836, determina no art. 1: “A dater de la publication de la présente ordonnance dans les colonies de la Martinique, de la Guadeloupe, de la Guyane française et de Bourbon, les déclarations d'affranchissement énonceront, outre le sexe, les noms usuels, la caste, l'âge et la profession de l'esclave; les noms patronymiques et les prénoms qui devront lui être donnés”. BOM, 1836, pp. 161-163. 50 DURAND, op cit (2011), pp. 82-83. 347 alforriadas, entre zero e 14 anos, eram majoritariamente designadas como mulatas, conclui precipitadamente que eram “filhos de senhores brancos”51. Contudo, Durand não examina nenhum dado sobre os senhores e patronos que alforriaram seus escravos, por exemplo, a classe e o sexo. Apesar disso, sugere que a grande quantidade de crianças designadas como “mulatas” indica que eram filhos de mulheres negras com homens brancos, mas, não considera em nenhum momento que as mulheres mulatas e mestiças provavelmente tinham filhos também com homens considerados mulatos, e sua prole seria definida com a mesma cor da pele dos pais. Poderia apresentar outras combinações de cor da epiderme que demonstrariam o resultado da união entre pessoas de cor. No entanto, como abordado no capítulo dois desta tese, essas classificações de mestiçagem e nuances da cor da pele não deveriam ser observadas como uma equação simples, e outras questões sociais precisam ser consideradas. Além disso, se Durand observasse os senhores que alforriaram escravos neste período, perceberia que não apenas homens brancos estavam envolvidos nesse processo. O caso da alforria de Jeanne-Emélie-Aglaé exemplifica o caminho equivocado tomado pelo pesquisador. Ela era uma mulata, de 29 anos, costureira, e foi alforriada com mais dois filhos, ambos designados como mulatos. Foram alforriados por sua patrona, demoiselle Pauline, uma mulher livre de cor. De outro modo, a situação de Marie-Louise dita Adèle, câpresse de 31 anos, livre de fato e “proprietária” na comuna do Robert, patrocinada pelo senhor Marcel Gabriel, também demonstra como pode ser superficial a análise de Durand. Ela conquistou sua alforria oficial com mais duas filhas, Edwige, 13 anos, e Servilie, 10 anos, as duas designadas como mulatas. Marcel Gabriel tem um sobrenome formado a partir de um prenome, fenômeno que indica, segundo o estudo do próprio Durand, que a pessoa muito provavelmente era livre de cor. Portanto, a nuance da pele designada para as meninas, mais clara que da mãe, talvez indique apenas que o pai é um livre de cor com a epiderme mais clara que Marie Louise (câpresse), e não que ele seja um homem branco.

51 DURAND, op cit (2011), p. 83. 348

Tabela 18 – Alforrias da década de 1830: Faixas etárias (anos) / classificação de cor da pele do(a)s escravo(a)s Mestiço Mulato Câpre Negro Nada Total mencionado 0 – 8 7 47 26 23 51 154 9 – 14 5 37 13 14 24 93 15 – 30 12 63 23 29 8 135 31 – 45 2 37 19 23 0 81 46 – 60 0 27 11 20 0 58 Acima de 60 0 9 3 18 1 31 Total 26 220 95 127 84 552 % 5% 40% 17% 23% 15% 100%

No entanto, certamente houve casos de homens brancos que alforriaram as mulheres escravas e os filhos que possivelmente tiveram com elas. Marie-Luce, 45 anos, designada como mulata, tinha a profissão de “habitante”52 e era livre de fato. Em outubro de 1833, conquistou sua alforria oficial com 10 pessoas de sua família, seus filhos e netos, que também eram patrocinados: Louise-Bérénise, 22 anos, habitante; Jan-Louis-Corasemain, 21 anos, carpinteiro; Marie-Ursule, 19 anos, lavadeira; Geneviève-Anastasie, 15 anos, costureira; Lucile, 14 anos, costureira; Emèlise, 10 anos, costureira; François dito Xavier, 7 anos; Marie- Josèphe, 2 anos; Jean-Marie, 3 anos; Marie-Josèphe, 18 meses. No registro coletivo de alforria da família não foi mencionado quem eram os filhos ou netos, mas supomos que estes últimos fossem os quatro mais jovens. Todos os filhos e netos foram classificados como “mestiços” e “mestiças”. A alforria oficial desse grupo familiar foi solicitada pelo senhor Jean-Baptiste Saint-Aimé, habitant no município do Robert53. Não foi possível confirmar se Jean-Baptiste era o pai dos filhos de Marie-Luce, mas muito provavelmente ele era um homem branco. O sobrenome Saint-Aimé era utilizado por famílias de brancos na Martinica, porém, compondo um patronímico, como Saint-Aimé de la Haye. Talvez Jean-Baptiste fosse

52 O termo “habitant(e)”, em francês, na forma como era usado nas colônias francesas, teria o sentido de “sitiante”, em português, ou “fazendeiro”. Este último seria a tradução mais adequada quando o indivíduo é designado no “habitant propriétaire”, sendo proprietário de uma fazenda de cana-de-açúcar ou de café. No banco de dados, quando o escravo ou escrava era “habitant(e)”, foi designado como “cultivador(a)”, agricultor. 53 Registro n. 13, Robert, “Arrêté portant affranchissement de divers individus”, 11 de outubro de 1833, BOM, 1833, p. 373 349 um “petit blanc”, por isso seu nome era menos pomposo. Contudo, somando isso ao fato que ele alforriou toda uma família de 11 indivíduos livres de fato, que eram “habitantes” como ele; ademais, a circunstância de Marie-Luce ser mulata e os filhos e netos designados como “mestiços”; todos estes elementos juntos levaram a presumir que Jean-Baptiste era branco e possivelmente pai e avô dos filhos e netos de Marie-Luce. Porém, essas relações de parentesco não foram apontadas no banco de dados sobre as alforrias da década de 1830, pois não foi possível comprová-las. Na amostra analisada nesta pesquisa para a década de 1830, 155 senhores e senhoras (ou patronos e patronas) alforriaram 357 escravos e escravas, lembrando que 195 livres de fato solicitaram suas liberdades oficiais sem o intermédio de um patrono/senhor. De acordo com a tabela 19, abaixo, que expõe o sexo e a classe dos senhores, em torno de 46,5 % pertenciam à classe dos livres de cor, e 26,5% à classe dos brancos. Se considerarmos as categorias “possível livre de cor” e “possível branco”, os senhores e senhoras livres de cor representam por volta de 62,5% do conjunto, e os brancos 32,5%. Ainda observando dessa forma, considerando na somatória as categoria “possível livre de cor” e “possível branco”, os homens brancos configuram 24% do total de senhores, e em torno de 34% eram homens livres de cor. Nessa mesma abordagem, as mulheres livres de cor representam 29% do total observado, ou seja, alforriaram mais que os homens brancos. As senhoras brancas configuram apenas 9% dessa amostra. Contudo, deve-se levar em consideração que as mulheres brancas, geralmente, apenas poderiam atuar na negociação de propriedades, como a solicitação da alforria de escravos, quando eram casadas e com a permissão do marido — permissão frequentemente mencionada nos registros notariais —, ou quando eram viúvas. Entre as 10 mulheres brancas que alforriaram seus escravos, 5 eram “damas”, ou seja, casadas, e 5 eram “damas viúvas”. Entre as 39 senhoras ou patronas livres de cor, 35 eram “demoiselles” (senhoritas), ou seja, solteiras, 2 “damas” e 2 “damas viúvas”. Diferentemente das mulheres brancas, as mulheres livres de cor tinham uma atuação mais evidente e significativa na vida econômica da sociedade colonial e escravista, principalmente quando não eram casadas oficialmente54.

54 Veja ROGERS, Dominique, “Réussir dans un monde d’hommes: les stratégies des femmes de couleur du Cap-Français”, The Journal of Haitian Studies, vol. 9, no. 1, 2003, pp. 40-51; LOUIS, Abel. Marchands et négociants de couleur à Saint-Pierre (1777-1830): Milieux socioprofissionnels, fortune et mode de vie. Vol. 1 e 2. Paris: L’Harmattan, 2015 350

Tabela 19 – Alforrias da década de 1830: Sexo do senhor / classe do senhor Sexo Branco Possível Livre de Possível Não Total senhor(a) branco cor livre de cor identificado Feminino 10 3 39 6 4 62 Masculino 31 6 33 19 4 93 Total 41 9 72 25 8 155 % 26,5% 6% 46,5% 16% 5% 100%

Os números que preenchem a tabela 20, abaixo, se referem aos 357 escravos alforriados pelos senhores, divididos de acordo com sua classe e sexo. No total, considerando a categoria “possível livre de cor”, os livres de cor alforriaram 63% dos escravos e escravas. Nessa mesma abordagem, os brancos alforriaram 32%. Os homens alforriaram mais que as mulheres: 62% dos escravos foram alforriados por indivíduos do sexo masculino, e 38% por indivíduos do sexo feminino. Contudo, os homens livres de cor alforriaram em torno de 37% do total de escravos, enquanto que os homens brancos alforriaram 22%. As mulheres livres de cor alforriaram 26%, e as mulheres brancas 10% do total de escravos.

Tabela 20 – Alforrias da década de 1830: sexo do senhor / classe do senhor e número de escravos alforriados Sexo Branco Possível Livre Possível Não Total % senhor(a) branco de cor livre de cor identificado Feminino 13 24 81 12 6 136 38% Masculino 55 24 74 57 11 221 62% Total 67 48 155 69 17 357 – % 19% 13% 44% 19% 5% – 100%

Observação: Os números que preenchem esta tabela se referem ao número de escravos alforriados por classe/sexo dos proprietários.

Nesta amostragem da década de 1830, para a maioria dos senhores a profissão não foi mencionada nas fontes. Contudo, entre aqueles que o ofício ou ocupação foi informada, os que mais alforriaram escravos foram os senhores que definiram sua profissão como “habitant” ou “habitante”, ou seja, produtores rurais. Isso ocorreu provavelmente porque nesta amostra dos anos 1830, muitas alforrias foram concedidas em municípios predominantemente rurais, como Carbet e Robert. É interessante notar que, frequentemente, 351 estes habitantes alforriaram vários escravos, ou ainda, patrocinados (livres de fato ou livres de savana), como Jean-Baptiste Saint-Aimé, quem libertou uma família de 11 indivíduos. O senhor Rosemond, do município do Carbet, também alforriou vários escravos e livres de fato, mas que não eram necessariamente da mesma família. De acordo com a pesquisa acerca de seu sobrenome, Rosemond foi classificado como “possível livre de cor” no banco de dados. Um dos indivíduos alforriados, Rosette, 46 anos de idade, designada como mulata, trabalhava como marchande no Carbet e era patrocinada pelo senhor Rosemond. Ela foi alforriada com suas duas filhas, Cecilia, 10 anos, e Marie-Thérèse, 12 anos, sobre as quais não foi mencionada a cor da pele. O senhor Rosemond libertou também “escravos”, em registros separados e individuais, todos do sexo masculino e que trabalhavam como pescadores no Carbet: Auguste, 35 anos de idade, negro crioulo; Léandre, 38 anos de idade, negro crioulo; Agapy, 27 anos, negro crioulo; e Louis, 12 anos, câpre, sem profissão. A segunda profissão de senhores mencionada e que mais se destaca nos registros de alforria é a de “proprietário”. Neste caso, significava que o senhor ou senhora tinha propriedade de escravos e/ou de imóveis. A terceira profissão é a de “marchand(e), principalmente declarada pelas mulheres que trabalhavam com o comércio. Contudo, não é possível apresentar os números ou um cálculo preciso sobre os ofícios dos senhores com a irregularidade de informações disponíveis. Ainda foram citadas as seguintes profissões dos proprietários ou patronos: açougueiro, carpinteiro, sapateiro, costureira, lavadeira, diretor do Hospital Marítimo, doutor em medicina, fabricante de cigarros, jurisconsulto, marinheiro, marceneiro, negociante e ourives. Desde de 1833, as decisões do governo martinicano, nas quais eram promulgadas as alforrias de vários indivíduos, tinham um teor que dava ares de direito adquirido às alforrias oficiais, sem referências à concessão da liberdade como um favor concedido pelos senhores e pelo governo colonial, ao menos no texto enunciado55. Contudo, por vezes encontramos marcas e indícios dessas relações, procurando ressaltar a “benevolência” dos

55 Geralmente, os textos dessas decisões e declarações de alforria eram assim: “Nous Gouverneur de la Martinique, vu l’ordonnance du Roi des Français, en date du 12 juillet 1832; Vu les déclarations [dos senhores] faites en conformité de cette ordonnance; considérant que toutes les formalités exigées par l'ordonnance précitée ont été accomplies; sur la proposition du procureur général du Roi, avons arrêté et arrêtons ce que suit: Art. 1er. Sont déclarés libres et seront inscrits définitivement en cette qualité sur les registres de l'état-civil de la commune de [nome da vila ou vilarejo], les individus dont le noms suivent [segue uma lista com nomes]; Art.2. Ampliation du présent arrêté sera délivrée par extrait aux affranchis et y dénommés. Art. 3. Le Procureur Général du Roi est chargé de l’exécution du présent arrêté, qui sera enregistré sur les registres de l’état-civil de la commune de [nome da vila ou vilarejo], et partout où besoin sera, et inséré au Bulletin des Actes Administratifs et dans le Journal Officiel de la colonie” 352 senhores brancos. Em 1838, Robertine, sobrenome Philomène, mulata de 58 anos, livre de fato, teve sua alforria “demandada por seu benevolente, M. Chalvet, proprietário”, na paróquia do Fort, em Saint-Pierre56. Alguns detalhes se destacam neste registro de alforria. Primeiro, neste período, nestas decisões sobre alforria quase todos os homens, independente da “classe”, eram tratados pelo pronome “sieur”, menos formal que “Monsieur” (M.), pronome utilizado para se referir ao senhor Chalvet, de forma abreviada. Ademais, Chalvet foi mencionado como o “bienveillant” de Robertine. Além desse tipo de menção ser incomum nestes registros de alforria após 1833, Robertina era uma escrava patrocinada, livre de fato, ou seja, já havia sido manumitida em algum momento anterior por Chalvet. A profissão de Robertine não foi mencionada, mas pelas características do registro e sua idade, é possível que ela tenha sido uma escrava doméstica de Chalvet. Nesta mesma decisão de outubro de 1838, o colono Pierre Dessalles registrou a alforria de Louis Nicaise, seu escravo doméstico e pessoal, sobre quem ele comenta frequentemente em seu diário, entre 1837 e 184757. Assim como Chalvet, Dessalles também foi tratado como “monsieur” (M.) no registro de alforria, e sua profissão designada como “habitant-propriétaire” no município de Sainte-Marie58, onde possuía um engenho de açúcar e uma fazenda de café. Estes são indícios de que alguns senhores brancos, da elite colonial, eram tratados com uma distinção que os diferenciava dos outros senhores de escravos, principalmente dos proprietários livres de cor. Nesse sentido, certamente as pessoas escravizadas também observavam estas diferenças, que interseccionavam classe social e origem étnica. A questão da origem — a África, mas também a escravidão na colônia — e a cor da pele poderiam aproximar, de alguma forma, indivíduos escravizados e livres de cor, a despeito da condição civil. Ainda sobre a alforria registrada por Pierre Dessalles, Nicaise era um negro crioulo e tinha 22 anos quando conquistou sua liberdade oficial. Seu caso demonstra que não apenas as mulheres que trabalhavam como domésticas para os senhores brancos poderiam estabelecer relações “sentimentais” e, assim, serem beneficiadas com a alforria. Contudo, provavelmente uma outra circunstância pode ter contribuído para a ação de Dessalles ao alforriar Nicaise. Em março de 1838, ele partiu para a metrópole, onde estavam sua esposa e

56 Registro n. 2752, Saint-Pierre: “Robertine (Philomène), mulâtresse créole de 58 ans, Saint-Pierre, libre de fait, demandé par son bienveillant M. Chalvet, propriétaire, [paróquia do] Fort” (grifo meu), in Arrêté portant affranchissement de divers individus, 17 de novembro de 1838, BOM, 1838, p. 291 57 FOSTER & FOSTER (org./trad.), Sugar and Slavery, Family and Race – The letter and diary of Pierre Dessalles, Planter in Martinique, 1808-1856, op cit, pp. 89-203 58 Registro n. 284, Sainte-Marie, Arrêté portant affranchissement de divers individus, 17 de novembro de 1838, BOM, 1838, p. 293 353 suas filhas, e Nicaise acompanharia Pierre Dessalles, permanecendo com ele e sua família até 1839. Nicaise ainda retornaria à França, novamente acompanhando Dessalles, entre 1844 e 184759. Por conta da lei de 29 de abril de 1836, Dessalles não poderia levar Nicaise à metrópole sem que antes solicitasse ao governo martinicano a alforria de seu escravo, e foi isso que ele fez. Contudo, Nicaise, depois que foi liberto, continuou trabalhando como empregado doméstico e pessoal de Dessalles. Por fim, um elemento a mais para refletirmos sobre as alforrias solicitadas por senhores e senhoras livres de cor. Pierre Dessalles comenta em seu diário, em novembro de 1837: “Sylvie veio me pedir para deixá-la comprar sua neta Victorine”60. Não foram encontradas outras referências sobre Sylvie ou Victorine, mas, talvez ela fosse uma mulher liberta e estava solicitando a Dessalles que lhe vendesse sua neta, escrava daquele senhor, com a intenção de em algum momento alforriá-la61. Na década de 1830, raramente encontramos nos registros de alforria referências diretas sobre as relações de parentesco entre senhores e escravos alforriados. Contudo, provavelmente vários senhores e senhoras livres de cor, talvez mesmo recém libertos, estavam alforriando seus familiares, escravos ou patrocinados.

59 FOSTER & FOSTER, op cit, p. 19 60 Registro do diário de 11 de novembro de 1837, in FOSTER & FOSTER, op cit, p. 115 61 Robert Slenes ressalta em seus trabalhos a importância fundamental das relações de parentesco e compadrio entre escravos para a conquista da alforria. Ver Robert Slenes, “Senhores e subalternos no Oeste Paulista”, in ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004 (7a. reimpressão) 354

AS ALFORRIAS DA DÉCADA DE 1840

As alforrias oficiais concedidas na Martinica, e nas outras colônias francesas, na década de 1840 continuaram a ser regulamentadas pelas ordenações de 12 de julho de 1832 e de 29 de abril de 1836. Contudo, neste período, uma outra lei passou a interferir nas características do acesso à liberdade no Caribe Francês, a ordenação de 11 de junho de 1839, que regulamenta as “alforrias de direito”. É importante esclarecer que em 29 de abril de 1836, duas medidas legislativas foram promulgadas em relação à alforria dos escravos: a “Ordenação do rei sobre a alforria dos escravos conduzidos à França” e a “Ordenação do rei referente aos sobrenomes e prenomes a dar aos libertos nas colônias”. Esta última, além das regras sobre nomes e sobrenomes, já comentadas anteriormente, ressaltava a exigência de que nos processos de solicitação e declaração de alforria fossem mencionados o sexo, a “casta”, a idade e a profissão do escravo. Esta ordenação, apesar da questão dos patronímicos, foi estabelecida como um complemento àquela de 1832. No quadro abaixo, são expostas as quantidades de alforrias, da amostra analisada, regulamentadas por cada uma dessas ordenações, mas, a referência “ordenação de abril de 1836” concerne às liberdades conquistadas por escravos que foram levados à França metropolitana com seus senhores. Estes casos são muito minoritários, mas na amostra analisada foram encontrados aos menos dois indivíduos. Entre 1840 e 1847, foram concedidas na Martinica em torno de 6.300 alforrias62. Desse conjunto, os escravos alforriados de acordo com a ordenação de 1839 representaram em torno de 11% do total63. Desse modo, observando a tabela 21, abaixo, percebe-se que os “libertos de direito” estão representados numa porcentagem bem maior na amostra, configurando 28% do total. Contudo, esta foi uma escolha no sentido de observar as características e os efeitos dessa forma de acesso à liberdade, quem eram os sujeitos envolvidos. Ademais, ao final dessas análises sobre as décadas de 1830 e 1840, serão apresentados alguns quadros comparativos e, no total das alforrias analisadas para os dois períodos, os libertos de direito não estão retratados acima da proporção que configuram sobre todas as liberdades auferidas na Martinica entre 1833 e 1847.

62 Ver tabela 12 – “Alforrias oficiais concedidas nas Colônias Francesas, 1830-1847” 63 Ver tabela 11 – “Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 - 1847” 355

Tabela 21 – Alforrias da década de 1840: Principais Ordenações que regulamentaram as alforrias concedidas, de acordo com a amostra analisada Ordenação No. de % escravo(a)s Julho de 1832 286 71,5% Junho de 1839 112 28% Abril de 1836 2 0,5% Total 400 100%

Nos anos analisados na amostragem da década de 1830 (1833, 1835, 1836 e 1838), foram concedidas na Martinica um total de 10.315 alforrias oficiais64, e desse conjunto, em torno de 7.560 indivíduos eram livres de fato e 2.960 eram escravos65. Entre 1840 e 1844, anos nos quais foi observada a amostra das alforrias da década de 1840, um total de 3.882 indivíduos conquistaram suas liberdades66. Entre eles, uma maioria acachapante eram escravos e uma quantidade muito pequena eram livres de fato. Nesse sentido, se considerarmos apenas as cifras referentes aos indivíduos de condição “escrava”, ou seja, excluindo os patrocinados, a quantidade de escravos e escravas que conquistaram suas alforrias nos quatro primeiros anos da década de 1840 é maior do que nos anos citados da década de 1830. Nesta pesquisa, entre as 400 alforrias analisadas para a década de 1840, apenas 15 indivíduos eram patrocinados e 385 eram escravos. A historiografia e mesmo alguns autores da época, como Schoelcher, frequentemente menosprezam as alforrias oficiais auferidas nas colônias francesas na primeira década da Monarquia de Julho, porque a grande maioria foi concedida aos patrocinados e livres de fato. Contudo, observamos em capítulos anteriores que este fenômeno não deve ser tratado como pouco relevante diante da experiência de conquista da liberdade oficial, pois os patrocinados viviam uma condição instável e uma liberdade precária, sendo tratados pela elite colonial como não-livres. Ademais, os sujeitos envolvidos nestes processos de aquisição da alforria oficial, tanto livres de fato como escravos, contribuíram individualmente com seu quinhão para desestabilizar em conjunto o sistema escravista francês. Nesse sentido, a

64 Ver tabela 12 – “Alforrias oficiais concedidas nas Colônias Francesas, 1830-1847”. 65 Os números do total não batem porque correspondem a fontes diferentes, como observado anteriormente, mas são bastante próximos. A separação entre patrocinados e escravos das alforrias concedidas na década de 1830 foi feita apenas por Schoelcher. Ver tabela “État de toutes les libertés données a la Martinique” (Schoelcher), 1830-1839. 66 Ver tabela 12 – “Alforrias oficiais concedidas nas Colônias Francesas, 1830-1847”. 356 comparação feita anteriormente, sobre a quantidade de indivíduos de condição escrava de cada período, tem apenas o intuito de destacar que as pessoas escravizadas na Martinica continuaram a buscar por suas liberdades no decorrer do período da Monarquia de Julho, talvez até com mais confiança e afinco, e a expressividade desse fenômeno na época requer um olhar atendo dos historiadores e historiadoras. Na amostra analisada para as alforrias da década de 1840, observando a tabela 22 abaixo, os indivíduos do sexo feminino configuram 63,7% do total. Contudo, se considerarmos apenas as mulheres alforriadas com idade acima de 15 anos, incluindo aquelas com mais de 60 anos, elas representam quase 44% do conjunto analisado. Este número está um pouco acima da porcentagem de mulheres no conjunto total de alforrias concedidas entre 1833 e 1847, 40,65% acima de 15 anos67, mas, ainda assim, próximo dessa cifra. Os homens acima de 15 anos configuram quase 19% do conjunto, sendo este resultado baixo em comparação à porcentagem de homens sobre a totalidade de alforrias auferidas entre 1833 e 1847, 24,32% das liberdades concedidas68, mas não discrepante. As crianças alforriadas até 14 anos representam em torno de 37,5% do total analisado, cifra bastante aproximada da porcentagem de 35% de crianças que conquistaram a liberdade entre 1833 e 1847. Dessa forma, assim como a amostra da década de 1830, podemos considerar essa amostragem da década de 1840 também representativa da totalidade de liberdades conquistadas na Martinica ao longo da Monarquia de Julho

Tabela 22 – Alforrias da década de 1840: sexo do(a) escravo (a) e faixas etárias (anos) Sexo 0 – 8 9 – 14 15 – 30 31 – 45 46 – 60 Acima Total % escravo de 60 Feminino 68 12 70 49 27 29 255 63,7% Masculino 58 12 39 20 12 4 145 36,3% Total 126 24 109 69 39 33 400 – % 31,5% 6% 27,3% 17,3% 9,7% 8,2% – 100%

67 Ver Tabela 11 – “Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 – 1847”. 68 Ver Tabela 11 – “Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 – 1847”. 357

Ainda observando a tabela 22, acima, as crianças com idade até 8 anos foram mais beneficiadas com a alforria, 31,5% do conjunto, em comparação com as outras faixas etárias, seguida pele intervalo de idades de 15 a 30 anos, o qual representa 27,3 % do total. Isso provavelmente expressa o fato de que muitas alforrias foram conquistas por mães escravas com seus filhos pequenos. Considerando as três primeiras faixas etárias, essas configuram quase 65% do conjunto analisado, ou seja, assim como na amostra da década de 1830, escravos e escravas jovens da Martinica conseguiram mais acesso à liberdade que escravos mais velhos. Podemos observar que os números de cada faixa etária diminuem quanto mais velhos são os indivíduos libertos. A quantidade de mulheres alforriadas acima de 60 anos é desproporcionalmente maior que a de homens do mesmo recorte etário, assim como na amostra da década de 1830. Sobre as classificações de cor da pele, observando as tabelas 23 e 24, abaixo, uma parte significativa dos escravos alforriados na década de 1840 foram designados como negros, 38% do conjunto analisado, seguidos pelos indivíduos designados como mulatos, 34% do total. Contudo, se somarmos os indivíduos cuja cor da epiderme era considerada mais escura — negros, câpres e griffes —, eles representam 61% da amostra analisada. Os escravos e escravas designados como mulatos, mestiços e quarteirões, classificações consideradas de pele mais clara, eles configuram 39%. Esta cifra não está muito distante do resultado obtido por Durand em sua análise sobre um conjunto de 909 alforrias concedidas em 1846, único ano da década de 1840 examinado pelo autor. Durand afirma que, naquele ano, em torno de 30% dos indivíduos alforriados foram classificados como mulato, mestiço ou quarteirão69. Desse modo, as alforrias concedidas na Martinica na década de 1840 foram conquistadas por escravos e escravas com a cor da pele mais escura, diferentemente da década de 1830. Estes números também destoam daquilo que geralmente é observado sobre alforria e mestiçagem pelos historiadores que estudam outras sociedades escravistas das Américas e do Caribe. Comumente, afirma-se que escravos de epiderme mais clara, classificados como mulatos ou mestiços, tinham mais chances de acesso à liberdade. As crianças até 14 anos totalizam 150 alforrias do conjunto. Se novamente somarmos os indivíduos negros, câpres e griffes dessa faixa etária (82 indivíduos), eles representam quase 55% da parcela de 150. As crianças do mesmo grupo etário, designadas como mulato, mestiço e quarteirão, representam 45%. Observando o intervalo de idades de 15

69 DURAND, op cit (2011), p. 83. 358 a 45 anos, totalizando176 indivíduos, grupo etário onde poderiam estar as mães daquelas crianças, os indivíduos designados com a cor da pele mais escura representam 60% desse grupo, e aqueles de pele mais clara, 40%. Desse modo, aparentemente, a quantidade de adultos entre 15 e 45, das nuances da epiderme mais clara e mais escura, equivale às somatórias de porcentagens de crianças de acordo com as mesmas designações sobre a cor da pele. Isso indica que possivelmente as categorizações da cor da epiderme das mães são praticamente as mesmas de suas crianças, contrariando a noção de que a alforria ocorria, frequentemente, em consequência da mestiçagem, fruto das relações entre mulheres negras e homens brancos. O objetivo dessa forma de análise é refutar conclusões como aquelas feitas por Guillaume Durand em seu estudo sobre as alforrias concedidas sob a Monarquia de Julho. Em suas conclusões, o autor afirma que não pretende contestar “o fato que os filhos e concubinas dos brancos foram globalmente majoritários entre os escravos emancipados”70, quando analisa faixas etárias e classificações de cor da pele.

Tabela 23 – Alforrias da década de 1840: Faixas etárias (anos) / classificação de cor da pele dos escravos Quarteirão Mestiço Mulato Capre Griffe Negro Nada Total mencionado 0 – 8 1 11 46 44 2 22 0 126 9 – 14 0 1 9 2 1 11 0 24 15 – 30 1 2 51 22 1 31 1 109 31 – 45 0 1 15 14 0 38 1 69 46 – 60 0 0 8 5 0 26 0 39 Acima 0 0 7 2 0 24 0 33 de 60 Total 2 15 136 89 4 152 2 400

70 DURAND, op cit (2011), p. 85 359

Tabela 24 – Alforrias da década de 1840: sexo e classificação de cor da pele do(a) escravo(a) Quarteirão Mestiço Mulato Câpre Griffe Negro Nada Total mencionado Feminino 1 10 88 55 4 95 2 255 Masculino 1 5 48 34 0 57 0 145 Total 2 15 136 89 4 152 2 400 % 0,5% 4% 34% 22% 1% 38% 0,5% 100%

A “origem” dos escravos e escravas, apresentada na tabela 25, abaixo, refere-se ao local de nascimento dos indivíduos, se nasceram na África (africano) ou nas colônias francesas (crioulo). Assim como na década de 1830, nesta amostra da década de 1840, a grande maioria dos indivíduos são crioulos. Contudo, ainda comparando os dois períodos, observamos que entre 1840 e 1844 mais escravos de origem africana foram alforriados do que nos anos analisados para a década de 1830, quando apenas oito indivíduos dessa origem foram libertos. Nestas alforrias da década de 1840, os escravos africanos representam 6% do total, número próximo da porcentagem de africanos libertos depois da abolição da escravidão, quando configuraram 7% da população de “novos cidadãos”71. Os 24 escravos africanos que conquistaram suas liberdades eram adultos com idades entre 20 e acima de 60 anos: 8 libertos estavam na faixa etária entre 20 e 30 anos; 6 na faixa etária entre 31 e 45 anos; 5 na faixa etária entre 46 e 60 anos; 4 na faixa etária acima de 60 anos. As mulheres de origem africana conquistaram quase o dobro de alforrias que os homens. É interessante notar que um número significativo dessas africanas e africanos tinham menos de 30 anos. Considerando que os tráfico de escravos foi definitivamente proibido nas colônias francesas em 183172, provavelmente alguns entre eles foram introduzidos ilegalmente na Martinica. Sobre as profissões desses africanos, para 11 libertos nada foi mencionado. Para o restante, foram contabilizados um(a) cozinheiro(a), dois cultivadores, um escravo do ganho (journalier), três doméstico(a)s, uma fabricante de cigarros e duas lavadeiras.

71 DURAND, op cit, p. 83. 72 “Loi concernant la représsion de la Traite des Noirs”, Paris, 4 de março de 1831. Esta lei foi promulgada na Martinica em 9 de junho de 1831. Ver BOM, 1831, pp. 152-157. 360

Tabela 25 – Alforrias da década de 1840: Origem (africano ou crioulo) / sexo do(a) escravo(a) Origem Feminino Masculino Total Africano 15 9 24 Crioulo 240 136 376 Total 255 145 400

Quanto às relações de parentesco entre os escravos da amostra analisada para a década de 1840, observando a tabela 26, abaixo, 31% dos indivíduos foram alforriados com a família e 69% individualmente. Essas proporções são praticamente inversas àquelas da amostra sobre a década de 1830. Este fenômeno talvez possa ser explicado, em parte, pelo fato que entre as liberdades concedidas na década de 1840 estão aquelas definidas como “alforrias de direito”. Dessa forma, estas foram solicitadas majoritariamente por senhores que eram parentes libertos dos escravos, de acordo com as regulamentações da lei de 11 de junho de 1839. Foi possível observar que nestes casos, geralmente estes parentes não alforriavam mais que um indivíduo. De acordo com a ordenação de 1839, eram considerados “libertos de direito” (affranchis de droit), nas colônias da Martinica, Guadalupe e dependências, Guiana Francesa e ilha de Bourbon: 1) o escravo que selasse um contrato de casamento com seu senhor ou sua senhora; 2) o escravo que, com o consentimento de seu senhor, se casasse com uma pessoa livre, e neste caso, seus filhos naturais, nascidos antes do registro oficial de casamento e alforria, seriam considerados igualmente libertos de direito; isso valeria também para os escravos que tivessem, com consentimento de seu senhor, casado com pessoas livres antes dessa lei; 3) os escravos adotados, com consentimento de seus senhores, por uma pessoa livre, de acordo com as regulamentações do Código Civil; 4) o escravo que fosse feito legatário universal por seu senhor, ou nomeado executor testamentário ou tutor dos filhos de seu senhor; 5) os filhos naturais, registrados como escravos de seus pais ou de suas mães livres, reconhecidos por eles; 6) o pai ou mãe, registrados como escravos de seus filhos; 7) os irmãos ou irmãs, registrados como escravos de seus irmãos ou irmãs livres; 8) as crianças nascidas posteriormente à declaração de alforria de suas mães, a não ser nos casos em que a alforria oficial não fosse efetivamente aprovada73. O artigo II dessa medida legislativa determinava que as pessoas livres que tivessem alguma dessas relações com seus escravos

73 Art. 1, “Ordonnance Royale du 11 juin 1839 sur les affranchissements”, BOM, 1839, pp. 288-294. 361 tinham um prazo de três meses para solicitar suas alforrias, e o mesmo se aplicava às ligações de parentesco que se estabelecessem depois da publicação da lei. Caso não cumprissem este prazo para a demanda da liberdade de direito dos parentes escravos que estavam inscritos como sua propriedade, a pessoa proprietária pagaria uma muita de 25 a 300 francos, de acordo com o caso, por cada um dos indivíduos que deveriam ser libertos74. Os 125 indivíduos que foram alforriados com a famílias compõem um total de 46 famílias. Assim como na amostra da década de 1830, a maioria destes grupos familiares são compostos por mães e seus filhos: 35 mulheres foram alforriadas com seus filhos; 2 mulheres com filhos e netos; 9 famílias formadas apenas pelos irmãos, nestes casos, geralmente crianças com idades abaixo de 14 anos. Nenhum caso de família composta pelo homem (pai e marido), com a mulher e seus filhos foi encontrado nesta amostra, diferentemente daquela da década de 1830, pois, são mesmo muito raros. A maioria dos indivíduos que foram alforriados com a família são crianças com idades entre zero e 14 anos. Entre os indivíduos acima de 15 anos, 50 conquistam a liberdade com parentes. Contudo, neste caso, o maior número de adultos estava na faixa etária entre 15 e 30 anos, e certamente grande parte eram aquelas mulheres que foram alforriadas com seus filhos. Dessas, 16 conseguiram a liberdade com apenas uma criança, 8 foram alforriadas com 2 filhos; 10 foram alforriadas com 3 filhos; e uma foi alforriada com 4 filhos.

Tabela 26 – Alforrias da década de 1840: Alforria com família ou individual, por faixa etária (anos) 0 – 8 9 – 14 15 – 30 31 – 45 46 – 60 Acima Total de 60 Alforria com 64 11 31 14 3 2 125 família Alforria 62 13 78 55 36 31 275 individual Total 126 24 109 69 39 33 400

Na amostra analisada para a década de 1840, 302 senhores e senhoras, e alguns poucos patronos e patronas, alforriaram 391 escravos e escravas, e 9 indivíduos livres de fato solicitaram diretamente suas liberdades oficiais, ou seja, sem o intermédio de um patrono. De

74 Art. 2, “Ordonnance Royale du 11 juin 1839 sur les affranchissements”. 362 acordo com a tabela 27, abaixo, que expõe o sexo e a classe dos senhores, em torno de 58% pertenciam à classe dos livres de, cor e 19% à classe dos brancos. Se considerarmos as categorias “possível livre de cor” e “possível branco”, os senhores e senhoras livres de cor representam por volta de 71% do conjunto e os brancos 23%. Assim como na amostra da década de 1830, na década de 1840 a quantidade de senhores livres de cor é majoritária, contudo, uma porcentagem maior foi observada no último período. Este fenômeno possivelmente foi influenciado pelas “alforrias de direito” contabilizadas na amostragem das liberdades conquistadas na década de 1840, pois, nestes casos, todos os senhores que alforriaram seus parentes pertenciam à classe dos livres de cor. Considerando na somatória as categoria “possível livre de cor” e “possível branco”, os homens brancos configuram 16% do total de senhores e em torno de 39% eram homens livres de cor. Nessa mesma abordagem, as mulheres livres de cor configuram 31% do total observado, ou seja, representam quase o dobro de homens brancos. As senhoras brancas representam apenas 7% do conjunto analisado, cifra similar àquela observada para a década de 1830 (9%). Na sessão anterior foram comentadas as hipóteses sobre esta baixa presença de mulheres brancas entre os proprietários que alforriaram seus escravos na Martinica.

Tabela 27 – Alforrias da década de 1840: Sexo do senhor / classe do senhor Sexo Branco Possível Livre de cor Possível Não Total senhor(a) branco livre de cor identificado Feminino 17 5 85 9 4 120 Masculino 41 8 89 29 15 182 Total 58 13 174 38 19 302 % 19% 4% 58% 13% 6% 100%

Nos registros das “alforrias de direito” sempre são mencionadas as relações de parentesco entre os senhores e seus escravos, quando existem. Dessa forma, foi possível observar, na amostra analisada, que 93 senhores e senhoras livres de cor libertaram 112 escravas e escravos, de acordo com a ordenação de 1839, isto é, indivíduos que eram seus parentes e, assim, “libertos de direito”. Dessa forma, 57 indivíduos foram alforriados por mulheres livres de cor, e 55 indivíduos foram libertos por homens livres de cor, que declaram o parentesco com o escravo ou escrava: 8 indivíduos foram alforriados pela avó; 8 alforriados 363 pela filha; 6 alforriados pelo filho; 7 alforriados pela irmã; 3 alforriados pelo irmão; 34 alforriados pela mãe; 40 alforriados pelo pai; 2 mulheres alforriadas pelos esposos; 3 indivíduos foram alforriados pela tia; e um indivíduo foi alforriado pelo tio. Uma das mulheres de origem africana contabilizada nesta amostra foi liberta de acordo com a ordenação de 1839. Madeleine, “negra africana” de 63 anos, trabalhava como lavadeira em Saint-Pierre, era “escrava e mãe do senhor André”, que trabalhava como pintor na mesma cidade, e alforriou sua mãe em agosto de 1840. Madeleine foi registrada com um sobrenome formulado a partir do nome de seu filho, Andréry75. A presença dos pais que libertaram seus filhos é bastante significativa, sendo sua representação neste conjunto até mesmo maior que das mães que alforriaram suas crianças. Alguns desses pais solicitaram a alforria oficial de mais de um filho, principalmente quando estes eram muito pequenos, situação menos frequente entre as mães que libertaram seus rebentos. Alphonse Burin, homem livre de cor que trabalhava como journalier (do ganho) em Saint-Pierre, alforriou seu filho Paul-Rosemond, menino negro de cinco anos, e Ursule-Marie- Louise, menina negra de um ano. Possivelmente, ambos estavam inscritos no inventário de tributação de Burin como “escravos”, pois, dessa forma que foram designados no registro de alforria, e não como “patrocinados”. Burin provavelmente não era casado oficialmente com a mãe das crianças. No registro de alforria consta que Ursule era “escrava e filha reconhecida de seu pai, senhor Burin”76. Isso significa que não era filha “legítima”, ou seja, fruto de um casamento oficial. Talvez a mãe das crianças fosse escrava e o pai liberto havia conseguido comprar e alforriar as crianças. Se foi este o caso, provavelmente não era o proprietário da mulher, porque, nesta situação, possivelmente teria alforriado ela também. Contudo, foi mais comum encontrar mulheres livres de cor que alforriaram filhos e netos numa mesma decisão, do que senhores do sexo masculino. Em setembro de 1840, a demoiselle Calixte, costureira, moradora da paróquia do Mouillage, Saint-Pierre, alforriou sua filha Marinette Marie, 27 anos e designada como câpresse. Nascida no Carbet, habitava na mesma paróquia que a mãe e trabalhava também como costureira. Calixte alforriou ainda seus

75 Veja “Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 7 individus libres de droit”, 30 de agosto de 1841, BOM, 1841, p. 245. 76 Veja “Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 16 individus libres de droit”, 29 de agosto de 1843, BOM, 1843, p. 299. 364 netos, os três filhos de Marinette Marie: Clara (10 anos, mulata), Marie Oracia (6 anos, mulata) e Sylvestre (3 anos, mulato), todos nascidos em Case-Pilote77. Entre as mulheres livres de cor que alforriaram seus filhos, algumas haviam conquistado recentemente suas liberdades, e suas crianças tinham nascido logo depois desse evento. A demoiselle Jeannine Lindar, marchande em Saint-Pierre, solicitou a alforria de seu filho Louis-Henry, câpre de um ano. Este caso é interessante porque Jeannine foi alforriada em 1840 e Louis-Henry nasceu, provavelmente, em 1842, pois sua alforria foi declarada em uma decisão de agosto de 1843, quando ele tinha em torno de um ano de idade78. Desse modo, quando Louis-Henry nasceu, Jeannine estava liberta há dois anos. Por que, então, ela não o registrou como uma criança nascida livre? Ela trabalhava como vendedora na cidade de Saint- Pierre, assim, o acesso aos oficiais do Estado Civil não era tão difícil como poderia ser para alguém que morasse no meio rural. Ainda não temos uma resposta para esta situação, mas tentaremos explanar algumas hipótese adiante. Estes casos de senhores e senhoras que alforriaram seus parentes de acordo com a ordenação de 1839 têm características diversas e seria interessante narrar vários deles. Contudo, destacaremos apenas mais uma dessas histórias, que talvez tenha relação com algumas questões apontadas por este trabalho de pesquisa. A demoiselle Marie Luce dita Clarice, mulher livre de cor e costureira em Saint-Pierre, alforriou seu filho Charles Raymond, idade de 17 anos, que trabalhava como carpinteiro na mesma cidade. Charles foi designado como “quarteirão”. Este é um indício de que talvez seu pai fosse um homem branco. Contudo, Charles estava registrado como escravo de sua mãe e foi alforriado por ela, e não pelo suposto pai branco. Os números que preenchem a tabela 28, abaixo, referem-se aos 391 escravos alforriados pelos senhores, estes divididos por sexo e classe. No total, considerando na somatória a categoria “possível livre de cor”, os senhores livres de cor alforriaram em torno de 66% dos escravos e escravas. Nessa mesma abordagem, os brancos alforriaram em torno

77 Arrêté portant affranchissement de 6 esclaves, en exécution de l'ordonnance du 11 juin 1839, 6 de setembro de 1840, ANOM, BOM, 1840, pp. 350-351. 78 O registro de liberdade de Louis-Henry é o n. 7139 das alforrias da cidade de Saint-Pierre: “Louis-Henry, câpre d’un an, né et demeurant à Saint-Pierre, libre de droit, étant né postériurement à la déclaration faite pour l’affranchissement de sa mère Dlle. Jeannine Lindar, marchande à Saint-Pierre, sou le n. 3471 ”. Este número corresponde ao registro de alforria de Jeannine, na cidade de Saint-Pierre, e é devido a ele que foi possível saber que ela foi alforriada em 1840. Contudo, não foi possível encontrar seu registro. Sobre o registro de Louis-Henry, ver Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 16 individus libres de droit, 29 de agosto de 1843, BOM, 1843, p. 299. 365 de 25% dos escravos e escravas. Ainda considerando as categorias “possível livre de cor” e “possível branco”, os homens livres de cor alforriaram 159 indivíduos; as mulheres livres de cor, 106 indivíduos; os homens brancos alforriaram 62 indivíduos, e as mulheres brancas, 35 indivíduos. Os homens livres de cor foram os senhores que mais alforriaram indivíduos do sexo feminino, 96 escravas, e as mulheres livres de cor alforriaram 69 escravas. Os homens brancos alforriaram 38 indivíduos do sexo feminino, representando apenas 10% do total de escravos alforriados na amostra analisada.

Tabela 28 – Alforrias da década de 1840: sexo do senhor / classe do senhor e número de escravos alforriados Sexo Branco Possível Livre de Possível Não senhor(a) branco cor livre de cor identificado Total F M F M F M F M F M

Feminino 18 5 8 4 59 35 10 2 5 5 151

Masculino 33 18 5 6 78 44 18 19 12 7 240 Total 51 23 13 10 137 79 28 21 17 12 parcial 391 Total 74 23 216 49 29

Observações: Os números que preenchem esta tabela se referem à quantidade de escravos alforriados por classe/sexo de senhores. Assim, “F” e “M” se referem ao sexo dos escravos. Por exemplo, os senhores do sexo masculino e brancos alforriaram 33 indivíduos do sexo feminino.

Em muitos dos casos de mães alforriadas com seus filhos, os senhores são homens, e frequentemente estes são homens livres de cor. Por exemplo, em 1840, em Sainte- Marie, município predominantemente rural, no norte da Martinica, seu (sieur) Philippe alforriou seus escravos Julie Polly, “negra africana” de 25 anos, e os três filhos dela, Emmanuel, “câpre” de sete anos, Jean, “câpre” de quatro anos, e Philippe Sufirin, “câpre” de um ano. Todos seriam registrados com o sobrenome “Pollyette”, o qual visivelmente deriva do segundo nome da mãe. Não há indicação da profissão de Philippe, nem da profissão de Julie. Talvez Phillippe tivesse um ofício considerado “qualificado”, como tanoeiro ou pedreiro, mas devido à ausência de indicação de uma profissão artesanal, pelo fato de habitar em uma região predominantemente rural (Sainte-Marie), é bastante provável que ele tivesse uma porção de terras e cultivasse gêneros alimentícios, que fosse um vivrier. Há indícios de 366 que os filhos de Julie Polly talvez fossem seus filhos também. O mais novo se chama “Philippe”, como o senhor que o alforria. Na Martinica, esta situação, segundo Cousseau, ocorria mais frequentemente entre familiares (pais, tios, avós) ou quando a criança tinha o nome dos padrinhos79. A designação de cor da pele das crianças (“câpre”) indica que talvez fossem filhos de uma pessoa “negra” com uma pessoa considerada “mulata”. Ademais, não há indicação do sobrenome de Philippe. Desse modo, muito provavelmente ele era um homem livre de cor. Porém, se de fato ele era pai das crianças de Julie Polly, por que não os teria reconhecido oficialmente e os alforriado de acordo com a ordenação de 1839? Há uma predominância de homens que alforriam grupos familiares, mas há também os casos em que as senhoras alforriam famílias, especialmente mulheres afrodescendentes. Demoiselle Marie Alexandrine, sem profissão, alforriou, em uma decisão de abril de 1840, Elianne dita Mélianne, “câpre”, 34 anos, e seu filho Louisy, mulato, 16 anos. Eles seriam inscritos nos registros do Estado Civil com o sobrenome “Ménivier”, e não há indicação de suas profissões. Todos, tanto Marie Alexandrine quanto Elianne e seu filho, moravam em Saint-Pierre (paróquia do Mouillage). Marie Alexandrine certamente era uma mulher livre de cor, mas, não encontramos mais indícios para saber se havia alguma ligação de parentesco com Elianne ou se ela era apenas uma senhora que libertava seus escravos80. Mulheres livres de cor e proprietárias de terras também alforriavam seus escravos. Um caso que se destaca é de demoiselle Solitude (sem indicação de sobrenome), “habitante propriétaire” no município de Gros-Morne, também uma paróquia predominantemente rural. Ela alforriou seis escravos, três mulheres com seus filhos, todas agricultoras, em três diferentes registros, um para cada núcleo familiar. Foram alforriadas Marie-Adeline, negra, 28 anos, “cultivant la terre” e seu filho, Avril, negro, sete anos (escolheram o sobrenome Patrol); Agnès dita Céline, negra de 25 anos, “cultivant la terre” (sobrenome Lafée); Agnès-Solitude, negra, 27 anos e suas duas filhas, Louise dita Adée, três anos, negra, e Marie-Luce, um ano, negra (sobrenome registrado, Cotap). Todas as escravas e seus filhos nasceram no Gros- Morne e lá habitavam, assim como sua senhora. Estas alforrias não foram enquadradas como “alforrias de direito”, ou seja, Solitude não declarou nenhuma relação de parentesco com as escravas alforriadas. No entanto, as diferenças de idades entre Marie-Adeline, Agnès dita Céline e Agnès-Solitude possibilitaria que fossem irmãs e o fato desta última ter o nome

79 COUSSEAU, op cit, pp. 613-615. 80 Arrêté du Gouverneur en conseil, portant affranchissement de 17 patronés et 163 esclaves, 6 de abril de 1840, ANOM, BOM, 1840, pp. 125-137. 367

“Solitude”, indica alguma relação de parentesco, talvez espiritual, com a demoiselle Solitude. Este caso é interessante porque narra um fragmento de história de “pequenas proprietárias mulheres”, certamente livres de cor, agricultoras, que alforriavam seus/suas escravas. Na circunstância de Solitude, destaca-se o fato de ter alforriado três escravas mulheres, com seus filhos, sem homens ou companheiros81.

SÍNTESES E COMPARAÇÕES: ALFORRIAS DAS DÉCADAS DE 1830 E 1840

Entre os registros de liberdades publicados pelo governo da Martinica nas décadas de 1830 e 1840, excluindo aquelas por resgate forçado, foram analisadas nesta pequisa um total de 952 alforrias. Dessas, as mulheres representam 38% do conjunto (363 alforrias), as crianças até 14 anos, 42% do total (397 alforrias: 200 meninas e 197 meninos), e os homens, 20% do total (192 alforrias). Os indivíduos na faixa etária entre 15 e 45 anos conquistaram 41% das alforrias analisadas, cifra próxima da porcentagem de crianças libertas, configurando um quadro de maior número de escravos jovens com acesso à liberdade. Neste último, provavelmente estavam as mães de muitas crianças alforriadas. Como observados nos tópicos anteriores deste capítulo, quando as alforrias eram coletivas, auferidas por grupos familiares, estes muito frequentemente eram formados por mães com seus filhos. Quanto a estas alforrias coletivas, 460 indivíduos tiveram a liberdade outorgada com a família, 48,3% do total de 952, e 492 obtiveram suas alforrias individualmente, ou seja, 51,7% do quadro geral das amostras. Dessa forma, ainda que o número de alforrias individuais seja maior, a quantidade daquelas conquistadas com familiares foi bastante significativa. Quanto às classificações de cor da pele, somando os indivíduos cuja cor da epiderme era considerada mais escura (negros, câpres e griffes), eles representaram 54% do

81 Arrêté du Gouverneur portant affranchissement de 55 esclaves et d'un patroné, en vertu de l'ordonnance royale du 12 juillet 1832, 15 de maio de 1843, ANOM, BOM, 1843, pp. pp. 203-207. Este caso não entrou na amostragem trabalhada no banco de dados, analisada para a exposição neste texto, mas foi um caso que se destacou quando foi feita o arrolamento geral das Decisões do Governador contendo alforrias de diversos indivíduos. 368 total de 952 alforrias. Os escravos e escravas designados como mulatos, mestiços e quarteirões, classificações consideradas de pele mais clara, configuraram 46% desse conjunto. Desse modo, nota-se que durante a Monarquia de Julho, os escravizados de pele mais escura tiveram mais acesso à liberdade que aqueles considerados mulatos e mestiços, diferentemente daquilo que geralmente os historiadores observam sobre a conquista da alforria em outras sociedades escravistas das Américas e do Caribe.

Tabela 29 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: Faixas etárias (anos) / classificação de cor da pele dos escravos (1830 e 1840) – 952 escravos Faixa Cor da Mestiço Mulato Câpre Negro Nada Total etária pele mencionado 0 – 8 19 93 70 47 51 280 9 – 14 6 46 15 26 24 117 15 – 30 15 114 45 61 9 244 31 – 45 2 52 33 61 1 149 46 – 60 0 35 16 46 1 98 Acima de 60 0 16 5 42 1 64 Total 42 356 184 283 87 952

Observação: Para facilitar a comparação e visualização dos dados na tabela, foram somados os indivíduos considerados “quarteirões” com mestiços, e “griffes” com negros

A tabela 30, abaixo, informa quantas alforrias foram consideradas por município observado no arrodissement de Saint-Pierre. A cidade de Saint-Pierre era a mais populosa da Martinica na época, dividida entre as paróquias do Fort e do Mouillage, e ainda o que era definido como “Saint-Pierre extra-muros”, área rural do município. Algumas vilas, como Carbet e Robert, estão representadas acima daquilo que seus números de habitantes representavam na população total da Martinica, principalmente o município do Carbet. Contudo, a intenção não era analisar cada município de forma proporcional, mas muito mais observar diferenças entre as vilas predominantemente rurais e a cidade de Saint-Pierre. Nesse sentido, nestas amostras analisadas para as décadas de 1830 e 1840, 361 alforrias foram registradas em Saint-Pierre, quase 38% do conjunto. Encontramos apenas um recenseamento, feito em 1826 na Martinica, que informa a população de cada vila e cidade. De acordo com este documento, a população escrava do município de Saint-Pierre representava em torno de 369

30% da população escrava total de sua região (arrondissement)82. Essa porcentagem é bastante similar àquela encontrada na amostra analisada, observada sobre o número de escravos alforriados na cidade de Saint-Pierre.

Tabela 30 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: local de moradia e sexo do(a)s escravo(s) Local de Moradia Feminino Masculino Total Basse-Pointe 4 2 6 Carbet 154 112 266 Case-Pilote 10 4 14 Grand-Anse / 15 11 26 Lorrain Gros-Morne 23 12 35 Macouba / du Nord 5 2 7 Marigot 1 3 4 Prêcheur 9 10 19 Robert 85 55 140 Sainte-Marie 19 12 31 Saint-Pierre 62 27 89 Saint-Pierre Extra- 6 5 11 Muros Saint-Pierre-Fort 66 51 117 Saint-Pierre- 82 62 144 Mouillage Trinité 22 21 43 Total 563 389 952

Os escravos e patrocinados que moravam no município de Saint-Pierre e conquistaram suas alforrias, geralmente trabalhavam em ofícios artesanais, no comércio, como domésticos, no ganho. Contudo, não descartamos a possibilidade de que vários viviam em terrenos nos arredores da cidade, labutando de alguma forma na cultura da terra, produzindo víveres, mesmo quando declaravam a profissão como “costureira” ou “carpinteiro”, principalmente aqueles alforriados por pessoas livres de cor. Em maio de 1831,

82 ANOM – SÉRIE GEOGRAPHIQUE – Carton 52, Dossier 432 – Cahier de Statistique Martinique 1826 e 1828. 370 a viúva Anne Rose, mulher livre de cor e esposa do falecido Jean Baptiste Beauclair (também livre de cor), registrou uma “declaração” constatando os meios de existência da dita Rose Zizi, para que o governo da Martinica considerasse seu pedido de alforria oficial. Rose Zizi não tinha senhor nem patrono, pois não há nenhum registro de desistência de propriedade sobre ela. Na declaração da viúva Anne Rose, afirma-se que Rose Zizi possuía, para seu próprio sustento, “além de seus talentos como costureira, uma porção de terra na comuna de Grand'Anse, no Cantão de Saint-Pierre”, deixada a ela por sua mãe e administrada por seu Séraphin, tio materno de Rose83.Isto é, ela exercia um ofício considerado mais qualificado e até mesmo urbano, mas tinha ainda um terreno herdado de sua progenitora e do qual outros parentes também usufruíam. Não há nenhuma informação mais precisa sobre a mãe de Rose Zizi, mas muito provavelmente ela era livre de savana, uma escrava manumitida apenas por seu senhor, e que vivia do cultivo de sua “porção de terra” junto com seus familiares. Nascida nessa condição, a filha Rose Zizi procuraria se especializar em ofícios mais “bem considerados” para aqueles que eram livres, como o ofício de costureira, mas mantendo sua relação com a produção rural na roça da família.

A escrava Justine, “negra” de 44 anos, era patrocinada e possuía uma “porção de terra em savana” no município de Saint-Pierre, onde tinha ainda animais, plantações de víveres e “edificações”. Provavelmente nada em grande quantidade ou tamanho, pois todo seu patrimônio foi avaliado em 2300 francos. Uma escrava adulta da idade de Justine, naquele período, valia entre 1200 a 2000 francos, então, ela tinha um pouco mais que o “valor de seu corpo”, como se dizia na época. Esse fragmento da história de Justine foi observado num dos registros de “desistência de propriedade”, assentado em 1831. Os bens de Justine estavam no nome de Louis Ismaël, seu patrono e homem livre de cor, que declarou não saber ler nem escrever84, descrito como “habitante residente”. Em geral, um proprietário de escravos e de uma “habitation” (propriedade rural) era identificado como “habitante proprietário”. No caso de Louis Ismaël, sendo “habitant resident”, indica-se assim que morava na roça, mas não era proprietário dela. De fato, como ele mesmo declara, a dona da roça era Justine.

Contudo, a “porção de terra em savana” de Justine não tinha título de propriedade, nem mesmo em nome de Louis Ismaël, pois o registro notarial de sua manumissão não especifica a

83 ANOM – Notaires, Martinica, 785, Damaret fils, “Déclaration constatant les moyens d’existence de la nommée Rose Zizi”, 25/05/1831. 84 O fato de não saber ler nem escrever é um indício de que não nasceu livre, pois, nas Antilhas francesas, era comum entre a população livre de cor que aqueles que nasciam de mães libertas aprendessem a ler e escrever, principalmente os homens, como no caso de Michel Savignac. 371 localização, os limites fronteiriços e muito menos as dimensões do terreno. Informa apenas que ficava no Morne Rouge, morro próximo à cidade de Saint-Pierre85. Isso indica que, talvez, Justine havia ocupado um sítio em um local onde poderia plantar mandioca e outros gêneros alimentícios, sem arriscar que um grande proprietário reclamasse o terreno, pois a cana e o café eram cultivados prioritariamente nas planícies. A proximidade com Saint-Pierre provavelmente lhe possibilitava, ainda, vender o excedente de seu cultivo nos mercados e feiras da cidade. De acordo com Abel Louis, a “interpenetração entre a cidade e o campo em Saint- Pierre era possível devido à proximidade entre estas duas esferas de influência e da presença de habitations nas entradas da cidade”86. A cidade de Saint-Pierre tinha a particularidade de possuir nos limites da área urbana propriedades rurais e casas de campo que faziam parte de seu perímetro geográfico e administrativo. Félix Renouard, em seu relato sobre a Martinica em 1822, destaca que a paróquia do Mouillage possuía 776 casas e, além disso, na periferia do mesmo bairro estavam localizadas quatro habitations sucrières e um grande número de habitations vivrières e casas de área rural. Ainda de acordo com Renouard, a paróquia do Fort era marcada mais ainda pela presença de sítios que produziam gêneros alimentícios e de casas de campo em sua periferia, onde se encontravam também 12 habitations sucrières87. Abel Louis observa que vários livres de cor que viviam do comércio em Saint- Pierre, tinham bens fundiários, como terrenos, casas, e mesmo porções de terras, geralmente habitations vivrières, tanto nos arredores da cidade, como em outros municípios do arrodissement de Saint-Pierre, englobando os burgos do Carbet, Prêcheur, Basse-Pointe e Macouba. Louis Bardury, homem livre de cor e comerciante em Saint-Pierre na primeira metade do século XIX, adquiriu uma porção de terras no município do Prêcheur, e dividia seu tempo entre o meio rural e urbano88. A partir de sua pesquisa nos registros notariais de Saint- Pierre, Abel Louis contou ao menos 11 comerciantes livres de cor que adquiriram propriedades rurais de pequeno porte (de produção de café ou de víveres), com poucos cativos (um a dez escravos, no máximo), em localidades como aquelas citadas acima89. Vincent

85 ANOM – Notaires, Martinica, 785, Damaret fils, “ Désistement de propriété sur la nommée Justine ”, 20/06/1831. 86 LOUIS, op cit (2015), p. 470. 87 RENOUARD, Félix (marquis de Sainte-Croix). Statistique de la Martinique, ornée d’une carte de cette île, avec les documents authentiques de sa population, de son commerce, de sa consommation annuelle et de ses revenus. Paris: Chaumerot, 1822, tomo II, p. 77, citado em LOUIS, op cit (2015), pp. 458-459. 88 LOUIS, op cit (2015), pp. 459-466. 89 Idem, p. 470. 372

Cousseau afirma que a maior parte dos livres de cor na Martinica eram pequenos proprietários de terras, que plantavam gêneros alimentícios com a ajuda da família, ou com alguns escravos. Segundo os autor, a ideia de que os livres de cor e libertos da colônia rejeitavam a cultura da terra é refutada pelos fatos, e observa que, aqueles que conseguiam, investiam em uma pequena gleba rural90. Na primeira metade do século XIX, a Martinica era dividida principalmente em municípios rurais, com duas principais cidades, Saint-Pierre, a capital econômica da ilha, e Fort-Royal, capital administrativa da colônia. Em 1839, a população total da Martinica era formada por 115.066 indivíduos. Os cidadãos livres estavam divididos entre 10.105 brancos e 30.718 livres de cor. Dessa população livre, 16.616 indivíduos moravam nas cidades e nas vilas e 24.117 nas áreas rurais. Neste mesmo ano, havia 74.333 escravos na colônia, sendo em torno de 35 mil indivíduos do sexo masculino e 39 mil do sexo feminino, ou seja, havia mais mulheres escravas. Dessa população de escravizados, em torno de 10 mil moravam nas cidades e vilas (13,5%) e 64 mil no campo (86,5%)91. Voltando à tabela 29, acima, se considerarmos apenas a cidade de Saint-Pierre (com as paróquias do Mouillage e do Fort) como uma área essencialmente urbana, e as outras vilas como áreas essencialmente rurais, apenas como subterfúgio com o objetivo de comparação, em torno de 37% dos indivíduos alforriados, nas amostragens das décadas de 1830 e 1840, moravam no meio urbano, e 63% no meio rural. Contudo, observando os dados sobre a população escrava total em 1839, 13,5% dos escravizados moravam nas cidades, e 86,5% no campo. Desse modo, proporcionalmente, os escravos “urbanos” tiveram mais oportunidades de conquistar a alforria oficial que os escravos “rurais”, de acordo com a análise da amostra. Quanto às profissões dos escravos, observando a tabela 31, abaixo, o ofício não foi mencionado para 205 indivíduos e 369 foram designados como “sem profissão”. Entre estes, a grande maioria eram crianças com idades até 14 anos, em torno de 320 libertos dessa faixa etária. Considerando apenas os escravos e escravas para os quais a profissão foi mencionada (378 pessoas), as mulheres que declararam seu ofício como “costureira” foram os indivíduos que mais conquistaram sua alforrias no período, representando quase 22% desse conjunto. Contudo, a profissão de cultivador(a)92 vem logo em seguida, segunda mais

90 COUSSEAU, op cit, p. 241. 91 Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1839 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1842, pp. 16-17. 92 O termo “cultivateur” (cultivador ou agricultor) designava trabalhadores rurais, que trabalhavam na lavoura. 373 mencionada, configurando quase 21% dos trabalhadores, e mais mulheres agricultoras do que homens. Estas porcentagens são bastante similares às cifras obtidas por Guillaume Durand93. O autor constata em sua pesquisa que costureiras e lavadeiras foram as escravas (e livres de fato) que mais conquistaram a alforria no período, notadamente pela sua predominância nas cidades de Saint-Pierre e Fort-Royal, ainda que o número de cultivadores das comunas rurais se revele muito próximo das cifras daquelas duas profissões94. Também no estudo de Durand, os trabalhadores domésticos estão entre os escravos e escravas que mais conquistam a liberdade, porém em menor número que agricultores, ou costureiras, ou lavadeiras ou carpinteiros. As escravas e escravos domésticos representaram em torno de 9,5% do total de indivíduos que mencionaram o ofício nas amostras analisadas nesta pesquisa, e Durand encontrou a cifra de 9% de trabalhadores domésticos entre as alforrias que observou, concedidas em toda a ilha de Martinica95. É interessante destacar a expressividade da profissão de “lavadeira” nas amostras analisadas nesta pesquisa, pois o número de mulheres que declararam este ofício foi quase o dobro daquelas que trabalhavam como domésticas. Aquela profissão provavelmente oferecia mais circunstâncias de certa autonomia às mulheres escravizadas, que poderiam alugar seus serviços de lavar e passar à vários senhores e senhoras, diferentemente das domésticas, e assim acumular um pecúlio que possibilitasse comprar sua liberdade. Lafcadio Hearn96, em sua viagem à Martinica no final do século XIX, dedica um capítulo inteiro (Les blanchisseuses) de sua obra a narrar a presença marcante das lavadeiras que trabalhavam todos os dias na ribeira do rio Roxelane, que corta a cidade de Saint-Pierre. A despeito de se referir a uma época posterior à abolição da escravidão, a forma como descreve o trabalho das centenas de lavadeiras em Saint-Pierre sugere que tal trabalho ainda era realizado de maneira similar a períodos anteriores. O viajante e escritor narra com uma sensibilidade impressionante as sutilezas e dificuldades desse ofício. Lafcadio Hearn fala de

93 Entre as alforrias que observou nos anos de 1833, 1834, 1835, 1839 e 1846, as costureiras configuraram 21% do conjunto observado pelo autor, e os cultivadores (e outras profissões agrícolas), 19%. DURAND, op cit, pp. 114-116. 94 DURAND, op cit, p. 118. 95 DURAND, op cit, p. 115. 96 Patrick Lafcadio Hearn (1850-1904) foi um escritor e publicista, de origem irlandesa, mas nascido na Grécia, que ficou mais famoso principalmente por seus livros sobre o Japão, onde morou, adquiriu cidadania japonesa e faleceu em 1904. Entre 1877 e 1888, ele morou em New Orleans, escrevendo para o jornal Times Democrat. Seus escritos nessa cidade se concentraram na história crioula, na culinária peculiar, no Vodu. Em 1889, o Times Democrat enviou Hearn para as Antilhas Francesas, onde permaneceu durante dois anos, principalmente na Martinica. Foi quando escreveu seu relato de viagem Two Years in the French West Indies e o romance Youma, the story of a west indian slave, ambos publicados e 1890. 374 centenas de mulheres que se colocavam ao longo do rio, muitas delas mulheres pobres que lavavam suas próprias roupas e outras que cuidavam da limpeza do vestuário de seus patrões. No entanto, entre elas era possível identificar as lavadeiras profissionais. Entre estas, as lavadeiras mais velhas e experientes tinham até mesmo aprendizes, a quem ensinavam os segredos do trabalho pesado de lavar roupa na beira do rio, ofício repleto de métodos e que requeria tal aprendizagem. Hearn comenta que, ainda que os salários na Martinica fossem, em geral, muito baixos na época, as lavadeiras conseguiam ganhar um dinheiro considerável. O autor dedica várias páginas descrevendo detalhes do trabalho das lavadeiras de Saint-Pierre. Vale a pena recortar alguns trechos, ainda que longos, que podem reproduzir um pouco das imagens e circunstâncias observadas pelo escritor sobre este ofício, revelando a importância de tal ofício entre as mulheres afrodescendentes:

Qualquer pessoa que permanecer por alguns meses em Saint-Pierre, com certeza, mais cedo ou mais tarde, vai passar uma meia hora ociosa naquele lugar charmoso de ociosos da Martinica — a bela Savana do Fort — e, uma vez lá, é quase igualmente certo que irá se inclinar sobre o parapeito musgoso do muro do rio para observar as lavadeiras trabalhando. É curiosamente interessante este espetáculo de labuta primitiva: o canal profundo do Roxelane, que se desenrola sob os morros coroados de palmeiras do Fort; a brancura ofuscante dos tecidos estendidos para alvejar por quilômetros sobre os enormes pedregulhos de pórfiro e basalto prismático; e as mulheres de pele escura, com as faces escondidas sob imensos chapéus de palha, e joelhos na correnteza apressada, formam uma cena que faz pensar nas primeiras civilizações. Mesmo lá, nesta moderna colônia, que tem quase três séculos de idade; e provavelmente continuará assim na Rivière des Blanchisseuses [Rio das Lavadeiras] por mais outros trezentos anos […] O público estava bastante contente com as velhas formas de lavar roupa, e não via benefício algum em abandoná-las; — quando as lavadeiras e passadeiras eram contratadas pelos proprietários de lavanderias por salários mais altos que elas nunca haviam conseguido antes, logo elas se cansavam do trabalho no espaço fechado, abandonavam aquela situação, e retornavam com uma sensação de alívio ao antigo modo de trabalhar fora sob o céu azul e na brisa das colinas, com seus pés na água da montanha e suas cabeças sob o sol terrível […] As profissionais experientes e que levantavam cedo garantiam os melhores lugares e opções de pedras; e entre as centenas no trabalho […] mesmo que as profissionais nem sempre ocupassem uma certa parte bem conhecida do canal, elas poderiam facilmente ser distinguidas de outras por sua maneira rápida e metódica de trabalhar […] Além disso, entre o grande número de profissionais muitas são também professoras, mestras (bou’geoises), e têm suas aprendizes ao lado delas — meninas de doze a dezesseis anos de idade. Entre estas apprenti, como são chamadas no patoá [creole] […] Se, após um ano de instrução, a aprendiz falhar em se provar como uma boa lavadeira, provavelmente ela não se tornará uma jamais; e há alguns ramos do comércio que exigem um período mais longo de ensino e prática. A jovem primeiro aprende simplesmente a ensaboar e lavar a roupa no rio, cuja operação é chamada de “esfregação” (frotté em creole); — depois que ela conseguir fazer isso muito bem, 375

aprende a curiosa arte de bater (fessé). […] Mesmo em um país onde os salários são quase incrivelmente baixos, as lavadeiras ganham um dinheiro considerável. Não há uma escala fixa de preços: é até costumeiro barganhar com essas mulheres antecipadamente. 97

Imagem: “Rivière des Blanchisseuses”

Fonte: LAFCADIO HEARN, Two years in the French West Indies, New York: Harper & Brothers Publishers, 1890, entre as pp. 142-143. No prefácio, Lafcadio agradece ao Cônsul Britânico que vivia em Saint Pierre, William Lawless, quem fez várias fotografias sobre as quais foram preparadas as ilustrações deste livro de Hearn

Entre os ofícios exercidos apenas por homens, a profissão de carpinteiro98 se destacou, configurando 10% do total de indivíduos para os quais o ofício foi mencionado nas amostras analisadas (veja tabela 31, abaixo). Esta cifra também é próxima da porcentagem encontrada por Durand em sua pesquisa, na qual carpinteiros e marceneiros representaram em torno de 11% dos indivíduos que observou, alforriados em diversos municípios da Martinica.

97 LAFCADIO HEARN, Patrick. Two years in the French West Indies. New York: Harper & Brothers Publishers, 1890, pp. 241-253 (manioc.org). 98 A grande maioria dos trabalhadores que trabalham com madeira e construção de móveis de madeira se identificaram como “carpinteiros” e alguns como “marceneiros”; os dois ofícios foram especificados separadamente no banco de dados, mas na análise do resultado final, foram somados. 376

Depois dos carpinteiros, os homens agricultores (escravos cultivadores) conquistaram mais alforrias que outros trabalhos artesanais, e exercidos, geralmente, nas áreas urbanas. A quantidade de alforrias auferidas por escravos e escravas que trabalhavam em profissões rurais talvez pareça um pouco surpreendente, pois, geralmente, supõem-se que eram explorados em excesso, sem maiores possibilidades de juntar um pecúlio e conquistar a liberdade. Contudo, as leis sobre a concessão de alforria, promulgadas durante a Monarquia de Julho, talvez tenham oferecido mais oportunidades aos escravizados do campo. Além disso, o fato de muitos senhores livres de cor alforriarem seus escravos, vários parentes entre esses, provavelmente também afetou o número de cativos que exerciam trabalhos agrícolas entre a população alforriada entre 1833 e 1847, mas principalmente na década de 1840. Ademais, numa sociedade cuja a economia era baseada na produção açucareira, a maior parte dos 70 a 80 mil escravos da Martinica no século XIX exerciam ofícios ligados ao trabalho rural. De acordo com um relatório sobre as colônias francesas, publicado pelo Ministério da Marinha e das Colônias em 1837, entre os novos libertos que moravam no campo, uns exerciam “profissões mecânicas” e outros viviam “da cultura de uma pequena porção de terra” que lhes era cedida por um aluguel ou por uma compra, que eles adquiriam de acordo com arranjos estabelecidos com os proprietários. Com o trabalho na terra, produziam seus víveres e vendiam o excedente nas feiras das vilas e cidades, sustentando, assim, sua sobrevivência99.

99 Notices statistiques sur les colonies françaises. France, Ministère de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, 1837, p. 4 377

Tabela 31 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: Profissão e sexo do(a)s escravo(a)s Profissão feminino masculino Total alfaiate 0 2 2 barqueiro 0 1 1 Bonbonnière/confiseur* 2 0 2 carpinteiro (e marceneiro) 0 40 40 costureira 82 0 82 cozinheiro(a) 2 5 7 cultivador(a) 46 32 78 do ganho (journalièr/e) 6 2 8 doméstico(a) 27 9 36 fabricante de cigarros 5 0 5 lavadeira 52 0 52 marinheiro 0 3 3 parteira 1 0 1 padeiro 0 1 1 pedreiro 0 13 13 pescador 0 12 12 proprietário(a) 2 0 2 refinador 0 1 1 sapateiro 0 3 3 seleiro 0 4 4 tanoeiro 0 8 8 torneiro 0 1 1 vendedor (marchand/e) 17 1 18 sem profissão 187 182 369 nada mencionado 136 69 205 Total 563 389 952

Segundo aquele mesmo relatório citado anteriormente, os livres de cor da Martinica não possuíam mais que 11% das propriedades mobiliárias da colônia. Em 1837, das 2.466 casas existentes em Fort-royal e Saint-Pierre, as principais cidades da Martinica, os brancos possuíam 1.516, avaliadas em torno de 1.424.276 francos, e os livres de cor possuíam 378

951 casas, avaliadas em torno 505.954 francos100. Informa, ainda, que apenas um sexto da população livre de cor possuía propriedades em geral, e avaliam que por volta de 4.430 carrés de terras eram cultivados por essa classe, enquanto os brancos possuíam em torno de 26 mil carrés. No entanto, segundo pesquisa realizada por Cousseau, em 1836, os livres de cor detinham a metade das fazendas de café da ilha e seis em cada dez habitation vivrière. Destaca, contudo, que as fazendas de café que pertenciam aos livres de cor eram, em média, menores que aquelas que pertenciam aos brancos. Os cafezais do primeiros tinha em torno de 2,6 hectares e uma média de 5 escravos, e dos segundos, em torno de 3,3 hectares e uma média de 10 escravos101. Quanto à propriedade escrava, da população de 78.076 escravos da Martinica em 1835, apenas 13.585 pertenciam aos livres de cor, e os brancos possuíam 64.491 cativos102. Em 1846, dos 75.339 escravos e escravas, 63.305 pertenciam à população branca, e 12.034 aos livres de cor103. Desse modo, entre 1835 e 1846, os senhores brancos teriam alforriado, e perdido, devido à taxa de mortalidade, 1.186 cativos, enquanto que o senhores livres de cor teriam alforriado (e perdido) 1.551 escravos. Em 1835, os livres de cor da Martinica somavam em torno de 29 mil indivíduos, e a população branca, por volta de 9 mil indivíduos. Em 1846, da população de pessoas livres da Martinica, 37.746 eram homens e mulheres afrodescendentes, e 9.606 eram brancos. A população de livres de cor e libertos era maior que a classe de brancos da colônia, e inclusive aumentou significativamente ao longo do período da Monarquia de Julho, sobretudo por conta das alforrias conquistadas por escravos e livres de fatos. Apesar de seu maior número, a classe dos afrodescendentes livres possuíam bem menos escravos que os brancos, e alforriaram mais. É isso que demonstram as análises das amostragens observadas nesta pesquisa, sobre as décadas de 1830 e 1840. De acordo com a tabela 32, abaixo, somando as categorias “livre de cor” e “possível livre de cor”, os indivíduos dessa classe representaram quase 68% dos senhores e senhoras que alforriaram oficialmente seus escravos e patrocinados nas amostras analisadas. Os homens livres de cor representaram em torno de 37,2% do total de senhores observados, e as mulheres livres de cor, por volta de 30,4%.

100 Notices statistiques, op cit, p. 50. 101 COUSSEAU, op cit, p. 244. 102 Notices statistiques, op cit, p. 50. 103 “Tableau détaillé de la population pour l’année 1846 – Martinique”, in Ministère de la Marine et des Colonies, France. Tableaux de population, de culture, de commerce et de navigation, formant pour l’année 1846 (…) insérés dans les Noticies Statistiques sur le Colonies Françaises. Paris: Imprimerie Royale, 1850, pp. 12-13. 379

Tabela 32 – Alforrias das décadas de 1830 e 1840: Sexo do senhor / classe do senhor

Sexo Branco Possível Livre de cor Possível livre Não Total senhor(a) branco de cor identificado Feminino 27 8 124 15 8 182 Masculino 72 14 122 48 19 275 Total 99 22 246 63 27 457

Aparentemente, os grandes senhores brancos das Antilhas Francesas não eram muito inclinados a alforriar seus escravos. Félix Patron, colono branco de Guadalupe, expressa sua visão senhorial sobre o trabalho dos escravos negros e sobre a manumissão, em seu livro publicado em 1831. Afirma, então, que o “preto [nègre] entende por liberdade, viver sem trabalhar” e que aqueles que obtinham a manumissão devido à “bondade ou à fraqueza de seus senhores, não tardam a reconhecer que [a liberdade] é um verdadeiro fardo, e a lamentar por sua escravidão, que era especialmente suave para aqueles que viviam ao abrigo de um senhor que lhes tinha tanta afeição ao ponto de lhes alforriar”104. Durante todo seu texto, Patron ressalta a “afeição” entre senhores e escravos, e, inclusive, narra um causo interessante para justificar sua convicção sobre essa ideia:

Eis um fato do qual posso garantir a autenticidade: um negro, que havia chegado há quase quatro ou cinco anos da costa da África, descobriu que ocorreria uma venda de negros novos na vila vizinha; ele foi encontrar seu senhor e disse a ele: — Senhor, eu quero comprar uma negra. — Isso é bom, respondeu-lhe o senhor rindo, mas para isso, tu precisas de dinheiro. — Eu tenho algum; aqui cinquenta moedas” (em torno de 1.800 francos). — Mas se tu és rico, seria melhor te comprar a ti mesmo. — Nenni; pas si bête, maître [nada disso; eu não é tão estúpido, senhor (sic)]; o senhor provém todas as minhas necessidades, e uma vez livre, seria necessário que eu provesse eu mesmo [sic]. Eu quero comprar uma negra para fazer dela minha mulher, para que ela cuide de minha cabana, e que ela trabalhe comigo para o senhor. Nada poderia fazê-lo mudar sua resolução: ele comprou sua negra, agora mora com ela, e a faz trabalhar a seu lado na roça de seu senhor.105

O abolicionista francês Victor Schoelcher comenta esta "curieuse anecdote" que Félix Patron teria publicado106. Ainda que seja mesmo apenas uma anedota, esta história narrada por Patron parece atestar, diferentemente daquilo que ele pretendia, a capacidade do

104 PATRON, op cit (1831), p. 13. 105 Idem, p. 14. 106 SCHOELCHER, op cit (1833), pp. 17-19. 380 escravo de lidar com a ideologia de domínio senhorial centrada na alforria. O escravo da história narrada provavelmente sabia que não bastava seu pecúlio para conseguir comprar sua liberdade. Tal ação tinha que partir da vontade de seu senhor e, além disso, ainda que conseguisse pagar por sua manumissão, sua alforria oficial deveria ser aprovada pelo governo colonial por meio da intermediação de seu proprietário. Era mais fácil convencer este o quanto ele se sentia agradecido por ser seu escravo, mostrando desejar permanecer sob sua proteção. Comprando uma mulher para si, teria como constituir família e aumentar seu pecúlio, e ainda convencer seu senhor de que era um bom escravo, disciplinado, que constitui família, que trabalha para o ganho do senhor, talvez conseguindo dessa forma uma liberdade de savana para ele e mesmo para sua esposa e filhos. Isto posto, não pretendemos afirmar que os escravos simplesmente elaboravam “estratégias de sobrevivência”, que envolvessem doses de manipulação, astúcia e dissimulação. Seguindo o caminho trilhado por Sidney Chalhoub para compreender a visão dos escravos sobre a escravidão e a liberdade no Brasil, é “plausível pensar que a ideologia da alforria “seduzia” de certa forma os escravos, tornando-se uma das sutilezas da dominação escravista”. Contudo, os escravos poderiam ao mesmo tempo ter introjetado o imaginário das formas de dominação da ideologia escravista sobre a alforria e, ainda assim, “extrair desse fato lições ou justificativas para atitudes diametralmente opostas às expectativas senhoriais” — como inferimos no caso do escravo de Félix Patron. Nos casos analisados por Chalhoub, o historiador observa situações sobre escravos libertos as quais revelam que “na mesma pessoa podiam coexistir sentimentos de agradecimento e até de afeto em relação a um senhor específico e uma percepção bastante crítica da sociedade como um todo”107. Aquela história narrada por Patron ainda demonstra como alguns escravos, homens, compravam escravas, ainda que não pudessem ter nenhuma propriedade em seu nome, ao menos até 1845, e porque as compravam. Além de conseguir uma esposa, podendo ele mesmo escolhê-la, e não ser levado a se casar com outra mulher escolhida pelo senhor, o escravo se tornava também um senhor, um proprietário, caminho que o aproximava do estatuto de uma pessoa livre. Ademais, a mulher trabalhava em várias frentes, desde a doméstica até a lavoura, incluindo a confecção de roupas como costureiras, os cuidados com limpeza e o trabalho no cultivo de alimentos. Com uma esposa escrava (e depois talvez liberta), o homem teria mais chances de conseguir aumentar sua família, seu pecúlio e cuidar

107 CHALHOUB, op cit (1990), pp. 150-151. 381 de seu roçado, aumentando suas possibilidades de ascensão econômica e mesmo de mudança do seu estatuto social. Robert Slenes, ao analisar projetos e estratégias de famílias escravas, que buscavam sobreviver ao sistema escravista e mesmo conseguir suas liberdades, destaca um caso narrado pela viajante Maria Graham de “um mulato remador”. Era o escravo de mais confiança da fazenda, e que havia constituído fortuna, “porque foi tão industrioso, que conseguiu uma boa porção de propriedade privada”. Esse escravo há anos “havia se ligado a uma negra crioula, nascida, como ele, na fazenda; mas não se casou com ela senão quando obteve bastante dinheiro para comprá-la, de modo que seus filhos, se os tivesse, nascessem livres”. Depois de resgatar a mulher da escravidão, o casal conseguiu dinheiro suficiente para comprar a liberdade do escravo industrioso. No entanto, seu senhor não queria lhe vender sua liberdade “por serem os seus serviços valiosos demais para dispensá-los, apesar de sua promessa de ficar trabalhando na fazenda”108. Nestas histórias, nas quais as mulheres conseguiam sua alforria junto aos homens, com seu esposo ou amásio, destaca-se a importância de ambos, mas sobretudo da mulher para o crescimento do pecúlio da família, o que os aproxima da conquista da liberdade. Peter Eisenberg, buscando explicar o maior número de mulheres entre os alforriados da cidade de Campinas (São Paulo, Brasil) no século XIX, menciona seus preços mais baixos em relação aos homens, além do fato da mulher escrava possuir mais oportunidades para estabelecer laços afetivos com seus senhores. Contudo, Eisenberg sugeriu ainda uma terceira hipótese para a compreensão de tal fenômeno, destacando a atuação da família escrava. Segundo o princípio do partus sequitur ventrem, os filhos seguiam a condição legal da mãe, assim, “a própria família escrava deveria ponderar sobre a importância de salvar da escravidão os futuros irmãos, filhos e netos, através da alforria das escravas” e, assim, “a mulher escrava seria preferida para a alforria”109.

108 Trechos entre aspas in GRAHAM, Maria, Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 220-1, citados e comentados em SLENES, Na senzala uma flor (2011), p. 206-207. 109 EISENBERG, Peter, “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”, Estudos Econômicos, São Paulo, 7 (2), maio/ago. 1987, p. 184. Atentei para as análises e conclusões de Eisenberg, assim como outros autores que comentam sobre o maior número de alforrias conquistadas pelas mulheres em diferentes regiões brasileiras, a partir da excelente análise historiográfica sobre padrões de alforria no Brasil escravista, observada em FREIRE, Jonis, op cit (2014), pp. 219-252. 382

6. 2 – AS ALFORRIAS POR RESGATE FORÇADO: MARTINICA, 1845-1847

As alforrias por rachat – resgate (forçado ou amigável) –, regulamentadas a partir de 1845, merecem destacadamente uma análise a parte. Os senhores de escravos tentaram resistir desde o início da década de 1830 à introdução desse modo de alforria, que tornava a compra da liberdade pelos próprios escravos um “direito”, especialmente para aqueles que conseguissem juntar um pecúlio referente ao seu valor, ou quase. Essa forma de alforria sempre foi tratada pelos proprietários como um grande inconveniente. Argumentavam que interferiria de forma completamente indesejável na relação entre senhor e escravo, podendo levar as colônias à desordem e mesmo à ruína. É importante enfatizar que, se as liberdades regulares conquistadas pelos escravos e escravas nas décadas de 1830 e 1840 nas colônias francesas foram raramente analisadas pela historiografia, as alforrias por resgate forçado (1846-1847) são basicamente citadas pelos autores, e mais comumente, encontram-se apenas referências pontuais, ainda que importantes, ao efeitos que a Lei Mackau teria causado110. Excetuando um artigo excepcional de Bernard Moitt111, no qual, inclusive, observa principalmente as experiências das mulheres com as alforrias por resgate forçado no Caribe Francês, talvez a escassez de análises sobre este fenômeno se deva ao seu curto período de existência e, ainda, por ter ocorrido praticamente às vésperas da abolição da escravidão nas colônias francesas, entre o final de 1845 e o começo de 1847. Contudo, sua relevância sobre a história da conquista da liberdade no Caribe Francês é inquestionável, assim como para as questões apontadas nesta tese. Para tanto, foi analisada uma documentação manuscrita pouco abordada pela historiografia, contendo relatórios da administração colonial da Martinica acerca deste por resgates forçados e os registros individuais produzidos por oficiais do governo colonial sobre os escravos e escravas (ou famílias) contemplados com essa forma de alforria. Ademais, foi observada a correspondência do Ministério da Marinha e das Colônias

110 Céline Flory aborda a questão do “resgate” da liberdade em sua obra, na qual trata a história de trabalhadores africanos resgatados do tráfico ilegal de escravos depois de 1848; a autora analisa a ideia de “resgate” da alforria, colocada em prática com a lei Mackau, e expõe críticas importantes sobre o discurso que procurou legitimar o resgate dos africanos no pós abolição, como uma obra “humanitária, civilizadora e abolicionista”; ver FLORY, op cit (2015), pp. 105-123. Dale Tomich e John Savage analisam, cada historiador com sua forma de abordagem, as consequências da Lei Mackau especificamente no que concerne aos terrenos que os escravos tinham “direito” para cultivar seus gêneros alimentícios. TOMICH, “Uma Petit Guiné” e “Terrenos contestados”, op cit (2011); SAVAGE, “Unwanted Slaves”, op cit (2006). 111 MOITT, Bernard, “Freedom from bondage at a price: women and redemption from slavery in the French Caribbean in the Nineteenth Century”, Slavery and Abolition, vol. 26, n. 2, agosto 2005, pp. 247-256. 383 com as administrações coloniais e com o rei acerca do resgate forçado e da aplicação do fundo estatal que subsidiou esta forma de alforria e, finalmente, as informações publicadas nos periódicos da Martinica sobre os indivíduos que conseguiram suas liberdades oficiais por meio desses processos. Especialmente duas leis devem ser consideradas para a análise dessas alforrias: a própria Lei Mackau de 18 de julho de 1845, Loi relative au régime des Esclaves dans les colonies françaises, e a Lei de 19 de julho de 1845, a qual definiu entre outras coisas, um fundo estatal de 400 mil francos para subvencionar a compra da liberdade pelos próprios escravos, montante que deveria ser utilizado entre 1845 e 1846112, mas acabou ocorrendo entre 1846 e maio de 1847. Como afirma o Ministro da Marinha e das Colônias em um despacho de agosto de 1847, contendo instruções gerais sobre as disposições legislativas relativas ao resgate forçado dos escravos113, ainda que essa forma de alforria e a utilização dos fundos do estado para o resgate fossem regulamentados em leis diferentes, havia entre estas duas medidas uma conexão que não permitia tratá-las separadamente em relação à execução de cada uma delas. O artigo 4 da lei de 18 de julho de 1845 (Lei Mackau) autorizava que as “pessoas não livres” poderiam ter propriedades mobiliárias, exceto barcos e armas, a receber heranças de bens mobiliários e imobiliários de pessoas livres ou não livres e a adquirir bens imóveis por compra ou troca. Desse modo, a legislação possibilitava que os escravos e escravas das colônias pudessem declarar e justificar seus pecúlios, e com isso, estes poderiam ser usados

112 O título desta lei faz referência especialmente a subvenção da introdução de lavradores (cultivateurs) europeus nas colônias: Loi 19 juillet 1845 qui ouvre un crédit de 930.000 fr pour subvenir à l’introduction de cultivateurs européens dans les colonies, à la formation d’établissements agricoles, etc. O crédito aberto pelo governo francês formava um total de 930 mil francos. Parte substancial deste valor deveria financiar a introdução de operários e agricultores europeus para trabalharem especialmente na produção de açúcar nas colônias (120 mil francos) e a formação de vias de trabalho livre e assalariado, estabelecimentos agrícolas, oficinas de trabalho e de disciplina (360 mil francos). Esta lei foi promulgada na Martinica em 27 de setembro de 1845. Ver BOM, 1845, pp. 394-397. No entanto, em um relatório do Ministro da Marinha e das Colônias ao Rei francês em 1847, sobre os fundos de subvenção criados por essa lei de 1845, fica evidente que a tentativa de emplementar um política de introdução de trabalhadores europeus havia falhado; o ministro comenta que as iniciativas para introdução dos trabalhadores europeus nas colônias não tiveram resultados satisfatórios, pois parte do fundo havia sido utilizado para financiar a passagem de apenas 53 trabalhadores de origem europeia – 3 com destino à Martinica e 50 para Guadalupe –, os quais trabalhariam nas usinas centrais das colônias antilhanas, mas alguns desses contratos de engajamento haviam sido encerrados e os trabalhadores repatriados. Ministère de la Marine et des Colonies. Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845 sur le régime des esclaves, la création d’établissements agricoles par le travail libre, etc. Paris: Imprimerie Royale, mars 1847, p. 25 (BNF – Gallica). 113 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1191 – Rachat des esclaves sur les fonds de l’État: Dossier commun, et Martinique (1845-1847): Ministère de la Marine et des Colonies – Direction des Colonies – Bureau du Régime Politique – Instructions générales sur l’exécution des mesures législatives concernant le rachat forcé des esclaves et l’emploi des fonds de l’État destinés à concourir aux rachats – Paris, 21/08/1847. 384 para a compra de suas liberdades. Nesse sentido, o artigo 5 dessa mesma lei definia que “as pessoas não livres” poderiam resgatar sua liberdade, ou a liberdade de seus familiares: pais, mães, avós, esposas e filhos (legítimos ou naturais). Para definir o preço do resgate, se este não fosse acordado amigavelmente entre o senhor e o escravo, ele seria fixado, para cada caso, por uma comissão composta pelo magistrado presidente e mais um outro membro conselheiro da Cour Royale (Corte Real), instância judiciária superior de cada colônia, e um membro do Conselho Colonial, colegiado onde estavam representados, sobretudo, os colonos brancos. O pagamento do preço fixado deveria sempre ser feito antes da entrega da carta de alforria, a qual mencionaria a quitação do resgate. De acordo com um relatório do Ministro da Marinha e das Colônias ao rei em 1847, esta lei, “sem abordar diretamente a questão da abolição da escravidão”, tinha “modificado de maneira sensível o estado da população escrava, melhorando sua condição material, conferindo-lhe o direito de propriedade e aquele da alforria por resgate”114. Sobre o crédito aberto para subvencionar os resgates forçados dos escravos das colônias, definido pela lei de 19 de julho de 1845, uma ordenação real foi publicada em 26 de outubro do mesmo ano para regulamentar a aplicação do montante de 400 mil francos destinados àquele fim. O valor da subvenção somente poderia ser utilizado como complemento do preço do resgate, o qual seria definido pela comissão mencionada anteriormente. À Martinica seria destinado metade do valor total do crédito reservado às quatro colônias de escravos (Martinica, Guadalupe, Guiana francesa e Bourbon), totalizando 122 mil francos, que seriam aplicados durante o ano de 1846, e e um crédito complementar 83 mil francos, que seriam empregados em maio de 1847. Até a abolição da escravidão não haveria mais outras liberações de crédito pelo governo metropolitano para a subvenção dos resgates forçados. Ainda de acordo com o artigo 5 da Lei Mackau, o modo que deveria proceder a Commission de Rachat (Comissão de Resgate) seria definido por uma outra ordenação real, a qual foi publicada em outubro de 1845. A partir das orientações dessa ordenação, o governador da Martinica publicou um decreto115 que fixava as formas de atuação da dita

114 Ministère de la Marine et des Colonies. Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845 sur le régime des esclaves, la création d’établissements agricoles par le travail libre, etc. Paris: Imprimerie Royale, mars 1847, pp. 1-2 (BNF – Gallica). A referência a esta fonte será feita adiante como Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845. 115 “Arrêté du 1er décembre 1845, qui fixe le mode de procéder de la commission de rachat”, assinado pelo governador A. Mathieu e pelo procurador geral da Martinica, G. Morel, in BOM, 1845, pp. 534-535. 385 comissão, “assim como as medidas necessárias para a conservação dos direitos de terceiros sobre o preço dos escravos”. Nesse sentido, havia uma preocupação, pronunciada já na ordenação real de 23 de outubro, em assegurar o acerto de dívidas dos senhores aos seus credores, caso seus escravos conseguissem aprovar sua alforria pelo resgate forçado116. Essa regulamentação foi decretada em primeiro de dezembro de 1845, em situação de urgência, para atender provisoriamente a execução da lei de 18 de julho. Definia então, que todas as demandas relativas à fixação do preço do resgate forçado seriam transmitidas à comissão por intermédio do Procurador Geral da colônia. Os Procuradores do Rei dos arrondissements da Martinica (de Saint-Pierre e de Fort-Royal) receberiam as demandas de avaliação e intermediação dos resgates forçados, fosse diretamente, fosse por meio dos prefeitos de cada município ou juízes de paz de cada cantão, e os enviaria ao Procurador Geral com todas as informações recolhidas para a apreciação das demandas. Outras fontes demonstram que estas eram feitas pelos próprios escravos ou seus patronos e, em alguns casos, até mesmo pelos senhores. A comissão tomaria as decisões sobre os relatórios a ela submetidos e poderia ainda convocar as partes envolvidas (escravos e senhores) para lhes consultar separadamente ou mesmo frente à frente, e solicitar todas as informações necessárias para sua decisão final. Após este processo, a comissão deveria enviar todas as decisões tomadas sobre as demandas de avaliação de resgate forçado ao Procurador Geral, e este providenciaria o depósito do valor fixado, para subvenção da alforria do escravo aprovado pela comissão, na Caixa Colonial. A carta de alforria seria entregue apenas quando os valores do pecúlio do escravo e da subvenção quitassem o valor total do preço do indivíduo, definido pela comissão117. Esse decreto do governador da Martinica definia ainda que o título de liberdade deveria conter menção ao engajamento de trabalho prescrito pelo parágrafo 5o do artigo 5 da Lei Mackau. Esta ordenação, ao mesmo tempo que regulamentava o direito ao resgate da alforria pelos próprios trabalhadores escravizados, também procurava controlar a organização do trabalho agrícola, determinando o engajamento compulsório dos libertos com o objetivo principal de mantê-los no eito das lavouras de cana-de-açúcar. Dessa forma, a lei determinava

116 Victor Schoelcher aborda a importância e interferência dos credores dos senhores de escravos na questão da alforria: “Une des milles raisons, en effet, dont nous parlions tout à l’heure, qui s’opposent à une émancipation successive par ces voies, malgré même les meilleurs désirs des propriétaires, c’est que la plupart d’entr’eux étant obérés, ils ne peuvent de bonne foi disposer d’un bien, seul gage de leurs créanciers. Toute émancipation que se permettrait la libéralité de leurs vices et de leurs vertus deviendrait criminelle, puisqu’elle serait un vol fait à leurs prêteurs”, SCHOELCHER, op cit (1842), p. 304. 117 “Arrêté du 1er décembre 1845, qui fixe le mode de procéder de la commission de rachat”, assinado pelo governador A. Mathieu e pelo procurador geral da Martinica, G. Morel, in BOM, 1845, pp. 534-535. 386 que o escravo alforriado, fosse pela via do resgate ou outro, deveria, durante cinco anos, comprovar um engajamento de trabalho análogo à profissão que exercia durante sua servitude, prestando seus serviços a uma pessoa de condição livre. Dessa forma, este engajamento deveria ser feito em uma propriedade rural, se o forro, antes de conquistar sua liberdade, trabalhasse em uma exploração rural, fosse como operário qualificado, fosse como cultivador. Se durante o período de cinco anos, o alforriado recusasse ou negligenciasse o trabalho determinado pela lei, o senhor poderia reivindicar, diante do juiz de paz, que o liberto fosse condenado a trabalhos forçados118. Essa era uma das questões que passou a ser motivo das reclamações dos senhores de escravos aos governos colonial e metropolitano, já que não tinham mais como evitar o resgate forçado. Nesse sentido, a determinação do decreto do governador da Martinica sobre registrar nas cartas de alforria a obrigação do engajamento, determinação que não constava nas orientações do governo metropolitano, provavelmente tinha uma dupla intenção. Tanto ressaltar aos libertos, em suas próprias cartas de alforria, que eram obrigados a manter um engajamento de cinco anos, como indicar aos senhores que o engajamento dos ex-escravos seria exigido, tentando, assim, tranquilizá-los. No entanto, a legislação não especificava que o escravo liberto deveria trabalhar para seu ex-senhor, mas para uma “pessoa de condição livre”. Desse modo, de acordo com a elite dos senhores de escravo da Martinica, as últimas interpretações do artigo 5 da lei de julho de 1845 não asseguravam de fato que os trabalhadores libertos permanecessem prestando seus serviços nas propriedades rurais de seus ex-proprietários119. A partir das informações analisadas nas fontes disponíveis, não foi possível confirmar o que de fato as libertas e libertos fizeram após a alforria. No entanto, nos relatórios do Procurador Geral da Martinica, este buscou ressaltar que os escravos e escravas selecionados para o resgate forçado com o subsídio do governo eram indivíduos industriosos e “bons sujeitos”, que se mostravam dispostos a permanecer prestando serviços aos seus ex- senhores120. É possível que em alguma medida isso tenha ocorrido, desde que eles pudessem manter suas cabanas e seus terrenos de roçado nas propriedades de seus ex-proprietários, como quando ainda eram escravos. Como já apontamos em outros momentos, há evidências

118 “Loi du 18 juillet 1845, Loi relative au régime des Esclaves dans les colonies françaises”, BOM, 1845, pp. 385-393. 119 Procès-Verbal du Conseil Colonial de la Martinique. Quatrième Législature (1846). Fort-Royal-Martinique: Imprimeurs du Gouvernement, 1847, pp. 20-21 (GALLICA – BNF). 120 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47: Martinique – Administration de la Justice – Fort-Royal, le 7 Août 1846. 387 de que após a abolição da escravidão em 1848, os “novos cidadãos” libertos que trabalhavam em propriedades rurais procuraram reivindicar como suas propriedades as casas e as roças que cultivavam nas propriedades rurais de grandes senhores da Martinica. Ainda que estas leis mencionadas anteriormente tenham sido promulgadas em julho de 1845, as alforrias por resgate forçado na Martinica, utilizando os fundos do governo para subvencioná-las, começaram a ser anunciadas apenas em agosto de 1846. Estas alforrias por resgate forçado seriam registradas e publicadas nos periódicos oficiais da Martinica em decisões separadas e especiais, principalmente quando eram subvencionadas pelo Estado. A alforria por “resgate amigável” passava, então, a ser entendida como a situação na qual o escravo ou escrava, tendo acumulado um certo pecúlio, conseguia negociar diretamente com seu senhor a compra de sua liberdade. Nos costumes da colônia, na realidade, essa forma de negociação já ocorria frequentemente. Porém, a diferença marcante é que a partir de 1845 ela passaria então a ser definida por lei e considerada um “direito” dos escravos. Este tipo de alforria (resgate amigável) seguiria as formalidades da ordenação de 1832, e seria listada normalmente com as outras alforrias, que não fossem aquelas relativas às leis de 1836 (escravos que pisavam no solo metropolitano) e 1839 (alforrias de direito). Por isso, não é possível ter informações precisas sobre estes acordos “amigáveis” entre senhores e escravos, pois os registros de alforria publicados não as diferenciam das alforrias concedidas pelo governo colonial nas décadas de 1830 e 1840, muito menos informam os valores acordados. Segundo o relatório do Ministro da Marinha e das Colônias ao Rei em 1847, estas alforrias por resgate amigável provavelmente foram mais numerosas em 1846 que nos anos precedentes, avaliando o crescimento total do número de alforrias naquele ano121. Acreditava- se, assim, que as alforrias por resgate amigável poderiam ser consideradas em grande parte como resultado indireto do direito conferido aos escravos e escravas ao resgate forçado, e que desse modo teriam impelido muitos senhores a este tipo de negociação sem a intervenção do governo122.

121 Na Martinica, o governo colonial pronunciou entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 1846, 1013 alforrias, assim divididas, de acordo com o relatório do Ministro da Marinha e das Colônias ao Rei: 640 manumissions volontaires (Ordenação de 12 de julho de 1832); 4 affranchissement par suite de voyage en France (Ord. de 29 de abril de 1836); 74 affranchissement de droit (Ordenação de 11 de junho de 1839); 14 rachats forcés sans concours des fonds de l’état e 284 rachats forcés avec concours des fonds de l’état. Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, p. 21. Nos anos anteriores na Martinica, para se ter uma base de comparação, 787 alforrias foram pronunciadas em 1843, 591 alforrias em 1844 e 616 alforrias em 1845. 122 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, p. 20. 388

Entre as alforrias por resgate conquistadas na Martinica entre 1846 e 1847, um pequeno número foi realizado sem o subsídio do Estado, ou seja, os 26 escravos e escravas envolvidos nestas negociações por liberdade pagaram com seus pecúlios o valor total definido pela comissão do resgate. Contudo, apesar da pequena quantidade, ainda é interessante notar que a presença de um maior número de mulheres novamente se destaca: 12 mulheres alforriadas dessa forma, 7 homens e 7 crianças abaixo de 14 anos123. As alforrias por resgate forçado com auxílio do governo concedidas no mesmo período ocorreram numa quantia bem maior, um total de 474 alforrias. A quantidade de mulheres (144 escravas alforriadas) foi novamente maior que dos homens (121 escravos libertos), mas as crianças escravas abaixo de 14 anos foram alforriadas em um número mais expressivo, 209 alforrias124. Na Martinica, para a concessão dessas alforrias por resgate forçado com o subsídio do governo, o Procurador-Geral, responsável pelos procedimentos relativos a estas demandas, estabeleceu “categorias” de escravos, baseando-se sobretudo na “conduta” dos indivíduos avaliados, mas também em outros elementos. Nesse sentido, os escravos e escravas, cujas demandas foram contempladas pela aprovação da comissão de resgate na ilha, foram avaliados basicamente em duas grandes categorias. Primeiramente, os indivíduos que possuíam um pecúlio significativo125 e cujos antecedentes oferecessem “todas as garantias para o futuro” em liberdade126. Nas tabelas que listam os indivíduos beneficiados com as concessões das alforrias por resgate forçado com auxílio dos fundos estatais apresentadas pelo Ministro da Marinha ao Rei, constavam os “motivos” para a alocação de subsídios para cada demanda. Entre estes “motivos das alocações” indicados para cada indivíduo ou família, provavelmente aqueles que atendiam a esta primeira categoria eram aqueles escravos cujos motivos eram definidos como: “très bon sujet” ou “excellent sujet”; “conduite irréprochable”; “active et industrieuse” ou “active et zélée” (mulheres); “intelligent et laborieux” ou “intelligent” (homens); “offre toute garantie” ou “très bons antécédents”; “bonne ouvrière” (uma escrava doméstica); “bonne conduite”; “d’une bonne moralité” ou

123 Veja neste capítulo, a tabela 11 – “Alforrias concedidas em virtude das Ordenações de 1832, 1836, 1839 e 1845, Martinica, 1833 – 1847”. 124 Idem. 125 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47: Adminsitration de la Justice, n. 62 – Martinique. Proposition d’affranchissement en faveur de 70 personnes par suite de rachat forcé et moyennant subvention sur les fonds de l’état. 2 novembre 1846. Despacho do Procurador Geral ao Governandor da Martinica. 126 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47: Martinique – Administration de la Justice – Fort-Royal, le 7 Août 1846. 389

“religieuse” (caso de uma mulher); “sujet précieux”; “se recommande sous tous les rapports”127. Os “motivos” mais comuns são aqueles que caracterizam os escravos de ambos os sexos como “muito bom sujeito” ou “excelente sujeito”, ou ainda, aqueles que caracterizam uma boa conduta moral ou laboriosa. Curiosamente, os motivos que caracterizam o indivíduo como “inteligente” – seja “inteligente e laborioso” ou mesmo “inteligente e fiel” — foram direcionados apenas a escravos do sexo masculino. Por outro lado, “ativa e zelosa” ou “ativa e industriosa” apenas às mulheres escravas. Estas características que alimentam as justificativas para que escravos e escravas fossem contemplados com o duplo “benefício” do estado, a liberdade regular por resgate forçado e o subsídio de parte do valor da alforria, provavelmente não traduzem simplesmente o comportamento dos escravos e escravas, mas carregam em parte a visão dos brancos sobre suas atitudes. É importante destacar que a maioria dos relatórios individuais dos escravos entregues ao Procurador-Geral eram formulados por funcionários do governo, autoridades oficiais como os prefeitos de cada município, juízes de paz, párocos, provavelmente comissários comandantes, cargos ocupados, ainda na década de 1840, por pessoas da classe dos brancos e, ainda, pelos próprios senhores dos escravos. Desse modo, as escravas e escravos que apresentavam suas demandas para o resgate forçado dependiam da visão que estes homens brancos tinham sobre suas condutas, além de relatos provavelmente feitos por pessoas que tinham alguma respeitabilidade nas localidades, podendo inclusive ser pessoas livres de cor. Algumas das definições dos “motivos”, por exemplo, “se recommande sous tous les rapports, demonstram essas situações, assim como algumas descrições observadas nos relatórios individuais dos escravos (“état des notices individuelle”). Nesse sentido, provavelmente acreditavam que existiam características muito mais femininas, como “zelosa”, o que traduz de certa forma o conjunto de tarefas que a maioria das mulheres escravizadas e adultas provavelmente tinham que executar, como o trabalho de cuidados com crianças e velhos, seu trabalho no ambiente doméstico. E “ativa”, pois além de tudo isso, ainda cuidavam de hortas, roçados e trabalhavam nas lavouras. Por outro lado, possivelmente as pessoas que redigiam os relatórios individuais também acreditavam em características peculiares aos indivíduos do sexo masculino, como a “inteligência”. É muito curioso apenas os homens serem caracterizados com a capacidade de se expressar com inteligência, mas isso refletia a mentalidade da época.

127 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, pp. 236-245. 390

A segunda categoria definida pelo Procurador Geral da Martinica concernia àqueles indivíduos escravizados cuja “posição de família” os colocava “em primeira linha para sair dos laços da escravidão”. Nesse sentido, nesta segunda categoria foram consideradas famílias “que contam com vários indivíduos válidos” e que “encontram na profissão que exercem todos os recursos necessários para viver no estado de liberdade e sustentar aqueles que tem direto aos seus cuidados”; e “mães com filhos pequenos que poderão ser criados nos sentimentos e com os cuidados que orientam a via do progresso”128. As famílias que atenderam a estas categorias, de acordo com os relatórios da administração colonial, eram caracterizadas como “famille très-digne d’intérêt, très-laborieuse” ou apenas “famille digne d’intérêt”. Ainda que o Procurador-Geral da Martinica não deixe isso claro, o fato de alguns escravos serem casados oficialmente (canonicamente), além de possuir algum pecúlio, aparentemente era levado em consideração nessa segunda categoria. Thomas era um escravo lavrador (cultivateur), de 34 anos, e pertencia aos herdeiros Collignon, no município do Lamentin. Ele tinha um pecúlio de 1.100 francos e conseguiu a aprovação de um subsídio de 900 fr, pois a comissão do resgate avaliou seu preço total em 2000fr. Contudo, além do pecúlio significativo, o “motivo” para conquistar a alocação do fundo estatal era o fato de ser “casado com uma escrava, e pai de duas crianças”129. Ademais, sob o motivo “mariage e légitimation” (casamento e legitimação) foram aprovados ainda aqueles escravos e escravas que, além da posse de um pecúlio, declararam que iriam oficializar a união com seu companheiro e legitimar seus filhos após a liberdade. Como o caso de Lúcia, lavradora, escrava do senhor Régis Linée130, habitant vivrier no município da Grand-Anse, assim como seus quatro filhos, Jean, 15 anos, Nicolas, 12 anos, Jeanne-Rose, 8 anos, e Firmine, 5 anos. Eles foram avaliados inicialmente pela comissão do resgate pelo valor de 4.500 francos, mas possuíam um pecúlio de 1000fr. Um acordo foi intermediado com o proprietário que aceitou que o preço final fosse de 2500fr. Assim, a família conseguiu um subsídio de 1500 francos para comprar a liberdade dos cinco membros,

128 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47. 129 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, p. 241. 130 Possível livre de cor, proprietário de habitation vivrière no município da Grand-Anse. Apesar do sobrenome de origem francesa, aparentemente não havia famílias brancas na ilha com este patronímico. Acerca do sobrenome Liné: Egalement écrit Linée, devrait désigner un lieu où l'on cultive le lin. Autre possibilité: variante de 'lignée' (= alignement), également toponyme. Le nom a été porté dans la Mayenne, mais c'est en Picardie qu'il semble le plus répandu. Pour la Mayenne (Chailland), il s'est transformé en Linais, Linet, Linay, au gré des rédacteurs des différents actes. Conferir em Noms de Famille: http://jeantosti.com/noms/l10.htm. 391 que seriam registrados no Estado Civil com o sobrenome Ravens. Porém, isso ainda não explica o motivo da aprovação dessas alforrias ter sido “casamento e legitimação”. Nesse sentido, a história de Lúcia e sua família se revela mais interessante ainda em seu relatório individual. De acordo com este documento, o resgate dessa família asseguraria ainda, como resultado, a “alforria gratuita” de dois escravos idosos: Adèlaïde, mãe de Lucia Ravens, e de Firmin, pai das quatro crianças, que se comprometia a casar-se com Lucia afim de legitimar seus filhos. Firmin era um homem negro de 63 anos, e Adélaïde, uma mulher negra de 67 anos, ambos também cultivadores como Lucia e escravos do senhor Régis Linné. Suas alforrias somente seriam oficializadas em junho de 1847, sendo informadas na sessão “Rachats Amiables” (resgate amigável) do Journal Officiel de la Martinique. As confirmações de suas liberdades oficiais não foram publicadas em uma “decisão do governador”, como normalmente eram pronunciadas as alforrias regulares, mas tinham sido solicitadas (affranchissement requis d’office) pelo Procurador do Rei. Firmin seria registrado como pessoa livre com o patronímico Mitiga, e Adélaïde com o mesmo sobrenome de sua filha, Ravens. Além disso, nesta mesma publicação, informa-se que “a senhorita Lucia Ravens, cultivadora, domiciliada na Grand-Anse, filha de Adélaïde, intercedeu no ato e se comprometeu, colocada sob sua responsabilidade pelo senhor Régis Linné, sustentar estes dois velhos durante suas vidas”131. Esta questão do casamento oficial e legitimação dos filhos foi um tema constante nos debates e relatórios do governo metropolitano durante a Monarquia de Julho. Acreditavam que era necessário incentivar os escravos, por meios dos senhores, a legitimarem suas uniões matrimoniais132. Contudo, como pudemos observar, entre as pessoas afrodescendentes, fossem escravas ou libertas, muitas viviam e dependiam de suas relações familiares e de parentesco mais amplo, mesmo que isso não fosse registrado civilmente ou canonicamente. É interessante notar que no século XVIII, a “ausência” do casamento canônico entre os africanos e afrodescendentes foi motivo de queixa, sobretudo, dos representantes da igreja

131 “(…) la Dlle. Lucia Ravens, cultivatrice, domiciliée à la Grand’Anse, fille d’Adélaïde, est intervenue dans l’acte et à pris l’engagement, mis à sa charge par ledit sieur Régis Linné, d’entretenir ces deux vieillards leur vie durant”, JOM, 19/06/1847 (ANOM). 132 Esta questão foi debatida constantemente também por deputados abolicionistas, foi tocada de certa forma pela “Ordennace du Roi sur l’instruction morale et religieuse et pour le patronage des esclaves”, de 5 de janeiro de 1840. O termo “patronagem” utilizado nesta lei se refere à ação do estado sobre a proteção dos escravos a partir dos limites que ela impõe sobre as condições do trabalho escravo. A questão da necessidade de incentivar o matrimônio entre os escravos foi abordada novamente em um relatório publicado pelo Ministério da Marinha e das Colônias, em 1844: Exposé général des résultats du patronage des esclaves dans les colonies françaises, imprimé par ordre du Ministre Secrétaire-d’État de la Marine et des Colonies. Paris, Imprimerie Royale, juin 1844 (BNF – Gallica). 392 católica, que tinham seu quinhão de controle das almas do reino. Os grandes senhores de escravos usavam o matrimônio entre os escravos também como uma forma de manter seu poder privado e a ordem em suas habitations, usando o casamento como uma estratégia de controle e ao mesmo tempo um sistema de recompensa sobre suas escravarias. Pierre Dessalles, em suas correspondências pessoais entre 1808 e 1834, revela indícios dessas arenas de negociação cotidiana entre senhores e escravos. Em 1822 ele teria realizado cinco casamentos de escravos em sua propriedade: entre Germain e Laurence; Saint-Cyr e Marie Barnabé; Jean-Pierre e Jeanne-Rose (estes já tinham duas crianças pequenas); Edouard- Bibianne e Adrianne; Lafortune e Monique. Ademais, Dessalles comenta em carta endereçada à mãe, acerca dessas uniões realizadas, que concedia essas “regalias” aos escravos porque se tornariam em “ganhos” aos seus senhores e deveriam “restabelecer a moral” nas senzalas, que, no seu “modo de ver”, poderia “afastar o mal e as más intenções”133. Contudo, no século XIX, a estatística paternalista e secular do estado francês substituiria a autoridade da igreja, a partir, sobretudo, da instituição do État Civil, e, nestes últimos anos de escravidão, até mesmo a autoridade privada dos senhores de escravos134. Desse modo, o estado francês ressaltava que os escravos e libertos deveriam procurar se casar oficialmente e ter filhos legítimos, premissa que interferiria na vida nos “novos cidadãos” libertos após a abolição da escravidão, e sobretudo na vida das mulheres135. Ainda sobre a segunda categoria, acerca das famílias escravas que foram contempladas com as alforrias por resgate forçado com subsídio do governo na Martinica, estavam incluídos também os casos de “as mães de filhos impúberes libertos que poderiam reivindicar suas alforrias nos tribunais”. Sobre este último grupo de indivíduos beneficiados, o procurador geral explica em seu relatório que eram mulheres cujos filhos menores de idade e libertos poderiam solicitar a alforria da mãe pelas vias jurídicas, apoiando-se na “jurisprudência adotada pela Corte de Cassação relativamente à interpretação dada ao artigo 47 do édito de 1685”136.

133 “Je leur fait des avantages qui tourneront à notre profit et qui doivent rétablir la morale, qui dans ma manière de voir, peut seule écarter le mal et les mauvaises intentions”, in DESSALLES, Pierre. La vie d'un colon à la Martinique au XIXème Siècle – Correspondance 1808 – 1834. Présentée par Henri Frémont. 1980, p. 60-61. 134 A partir das regulamentações sobre as condições de vida e trabalho dos escravos, estabelecidas tanto pela “Ordennace du Roi sur l’instruction morale et religieuse et pour le patronage des esclaves”, de 5 de janeiro de 1840, como pela Lei Mackau, de 18 de julho de 1845. 135 Ver COTTIAS, Myriam, “Um gênero colonial? Casamento e cidadania nas Antilhas francesas (séculos XVII-XX)”, Clio, n. 26-2, 2008, pp. 37-58. 136 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47: Martinique – Administration de la Justice – Fort-Royal, le 7 Août 1846. 393

Esta última categoria faz referência a situações como aquelas tratadas no capítulo anterior, principalmente algumas narradas sobretudo por Bissette em relação à Martinica, de filhos impúberes libertos enquanto as mães continuavam na escravidão. De acordo com o relatório do Procurador-Geral, as medidas tomadas em relação a estas mães escravas e seus filhos as levavam à liberdade sem lhes “deixar expostas à sorte e à lentidão dos processos” judiciários e “sem lesar os interesses dos senhores”, os quais se encontravam como “vítimas” dos benefícios que haviam concedido anteriormente aos escravos. Além disso, garantir a alforrias dessas famílias por meio do resgate com auxílio do estado evitava “a agitação e a desordem inerentes à discussão pública de semelhante questão diante dos tribunais”137. O procurador-geral da Martinica se detém longamente em explicar ao Governador da Martinica e ao Conselho Privado estes casos contemplados com os fundos estatais. Em suas explanações, fica evidente que sua maior preocupação se dirigia no sentido de evitar que os senhores de escravos fossem arrastados aos tribunais por suas escravas, cujo resultado seria provavelmente a alforria sem nenhuma remuneração, mas também a visibilidade política que esta situação ganharia na colônia. No relatório do procurador, ele afirma ainda que tomando estas medidas, contemplava os “interesses” e as “susceptibilidades” dos proprietários, que até aquele momento não compreendiam que “um benefício” concedido por eles poderia “servir de base à aplicação de uma disposição penal”. Contudo, insiste em dizer que a maior parte das escravas e escravos que poderiam invocar aquela jurisprudência criada pela Corte de Cassação demostravam “sentimentos de justiça” e ainda de “repugnância” sobre a possibilidade de processar seus senhores. De acordo ainda com o procurador-geral, muitas dessas escravas não hesitaram em oferecer o pecúlio que haviam reunido, e concorrer, assim, a um ato que lhes parecia “cheio de justiça”. Dessa forma, poderiam usufruir o “benefício da liberdade”, evitando o tempo que tomava a conclusão de um processo, que as colocaria diante da “sorte” e das “inquietudes” que sempre ocorriam nestes processos138. A aprovação desses resgates forçados de mães e filhos escravizados que tinham direito à liberdade, de acordo com a jurisprudência estabelecida pela Corte de Cassação em Paris diante do affaire Virginie, demonstram duas faces da mesma moeda. Por um lado, o governo da Martinica estava manipulando os fundos estatais para contemplar proprietários

137 ANOM – GEN, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47: Martinique – Administration de la Justice – Fort-Royal, le 7 Août 1846. 138 ANOM – GEN, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47: Conseil Privé – Martinique – Extrait des Procès-verbaux de la session extraordinaire du mois d’Août 1846 – Libération de 107 esclaves au moyen de subventions sur les fonds de rachat. 394 que mantinham ilegalmente suas escravas. Ainda que os processos fossem lentos, como vimos no capítulo anterior, a decisão dos tribunais franceses metropolitanos tendiam amplamente a garantir a liberdade das mães e filhos impúberes separados pela alforria de um ou outro. Desse modo, ao final, os senhores dessas escravas perderiam sua propriedade sem qualquer remuneração, e provavelmente ainda teriam que pagar as custas dos processos. Contudo, com o resgate forçado, além da escrava aplicar seu pecúlio, o governo ainda complementava o valor necessário para alforriar aqueles indivíduos que estavam em situação de “liberté litigieuse” (liberdade litigiosa), um dos “motivos” de alocação dos fundos estatais que aparece naquela lista reproduzida no relatório do Ministro da Marinha ao rei139. Por outro lado, provavelmente estas mulheres escravizadas que sabiam de seu direito à alforria, de acordo com a interpretação vigente do artigo 47 do Código Negro, decerto consideravam a lentidão e os problemas que acarretavam um processo judiciário. Como bem vimos anteriormente, de fato era assim que ocorriam, com lentidão, apelações, dinheiro investido, risco de serem maltratadas ou verem seus filhos maltratados enquanto o processo não findava. Se conseguiam juntar algum pecúlio, fosse com seu trabalho ou com o apoio de sua rede de relações, e ainda visualizando a oportunidade que poderia garantir as alforrias por resgate forçado com o subsídio do governo, provavelmente preferiam esta opção do que o processo judiciário. Quanto aos “sentimentos de justiça” e de gratidão em relação aos seus senhores, estas questões são mais difíceis de serem constatadas e analisadas. No entanto, se levarmos em consideração os processos analisados no capítulo precedente, as relações entre as escravas e libertas com seus senhores não poderiam ser simplesmente resumidas a estes sentimentos. Aparentemente, o desejo de conquistar sua liberdade ou de seus filhos estava acima de tais “sentimentos” em relação aos seus senhores. Porém, evitar o processo e pagar uma parte do valor definido pela comissão de resgate provavelmente lhes dava um “valor social”, uma garantia de respeitabilidade, de manutenção das relações quase que inevitáveis, principalmente às classes subalternas, numa sociedade escravista e racializada. Nesse sentido, provavelmente todos estes elementos contavam na decisão das escravas e de suas famílias. Os senhores e senhoras certamente faziam também seus cálculos sobre estes casos de “liberdades litigiosas”. É interessante notar que as categorias listadas pelo Procurador Geral da Martinica em 1846 mudam um pouco nos últimos relatórios relativos às concessões das alforrias. A

139 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, pp. 236-245. 395 segunda categoria, relativa às famílias escravas a serem alforriadas, passa a restringir-se quase que unicamente àqueles casos de liberdades litigiosas. O funcionário colonial ressalta que a primeira categoria ainda abarcava aqueles indivíduos que tinham um “boa conduta” e uma pecúlio significativo, e que este grupo ultrapassava bastante em número a segunda. Contudo, esta categoria sobre as “famílias”, nas decisões de final de 1846 e início de 1847, contemplou quase que exclusivamente as escravas que, “de acordo com a jusrisprudência adotada pela Corte de Cassação sobre o artigo 47 do édito de 1685, ou por qualquer outro motivo, poderiam reivindicar diante dos tribunais suas alforrias e que, no entanto, preferiram reunir um pecúlio e recorrer à subvenção”. O relator afirma que os senhores teriam contribuído com a decisão dessas escravas, por conta de seus “direitos litigiosos” sobre elas, e teriam concordado em conceder descontos sobre os valores avaliados pela comissão do resgate140, procurando evitar os tribunais. Como o próprio advogado Gatine havia indicado acerca daqueles processos que chegaram no tribunal superior na França, cada vez mais famílias escravas solicitavam seu direito à liberdade, baseando-se sobretudo na jurisprudência criada a partir do caso de Virginie, e isso estava interferindo diretamente nas demandas de resgate forçado. Durante o ano de 1846, foram concedidas 284 alforrias por resgate forçado com o auxílio do fundo estatal em toda a ilha de Martinica. Desse total, 62 pessoas, quase 22% do total, conseguiram suas liberdades porque seus senhores tinham sobre elas “direitos litigiosos” de propriedade, ou seja, estes escravos e escravas viviam circunstâncias que lhes permitiam, provavelmente, demandar diante dos tribunais seu direito à liberdade. A maioria dos motivos para a aprovação do subsídio a essas alforrias foi listada como “liberté litigieuse”141, expressão que evidencia a condição contenciosa da pessoa escravizada. Contudo, observamos um caso, cujo motivo foi indicado como “réunion de famille”142, mas há claras evidências de que se tratava de situação semelhante às “liberdades litigiosas”. Foi o caso dos quatro filhos da liberta Surélie, alforriada em junho de 1845, que permaneceram como escravos do senhor Bertrand, de Fort-Royal, e eram todos menores de dez anos. Por conta disso, foram selecionados pela procurador geral para serem beneficiados com a subvenção do governo, sob o motivo de “reunião de família”. Possuíam um pecúlio fornecido pela mãe no valor de 432

140 ANOM – GEN, Carton 139, Dossier 1188 – Correspondace et rapport relatifs à des affranchissements à la Martinique 1846-47. 141 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, pp. 236-245. 142 Idem. 396 francos, e o governo forneceu o montante de 2.518, para complementar o preço de 2950 francos estimados pela comissão do resgate, ou seja, uma média de 737fr pelo valor de cada criança. Esse preço médio estava acima do valor médio estimado sobre uma criança escrava até dez anos na época. O conjunto de 62 indivíduos, cujos motivos da alforria por resgate forçado foram indicados como “liberdade litigiosa”, era formado por 21 mulheres acima de 16 anos, um rapaz de 19 anos e 40 crianças abaixo de 14 anos, ou seja, muito provavelmente quase todas se enquadravam naqueles casos de liberdade sob a interpretação da Corte de Cassação sobre o artigo 47 do Código Negro. Apesar disso, os preços estimados pela comissão do resgate, por cada família ou indivíduo nesta situação, que preferimos denominar de “escravização litigiosa”, eram bastante elevados, seguindo o padrão de valores designados para todos os escravos que conseguiram aprovar seus resgates forçados. Acerca das profissões das mães escravas alforriadas, que estavam à frente dessas famílias em situação de “escravização litigiosa”, cinco eram trabalhadoras domésticas, cinco eram lavradoras (cultivatrices), quatro eram journalières (do ganho), três lavadeiras e três costureiras. A historiografia em geral, que aborda a questão da alforria nas sociedades escravistas, observa que os escravos urbanos conseguiam em maior número o acesso à liberdade, entre outros motivos, porque tinham mais condições de prestar serviços diversos nos centros urbanos e, assim, acumular mais rapidamente os montantes necessários para a compra de suas alforrias. No entanto, entre estas famílias em situação de escravização litigiosa na Martinica, como são em menor número, foi possível observar que aquelas mulheres que viviam e trabalhavam no meio rural (cultivatrices), em geral, possuíam as maiores quantias de pecúlio. As outras que supostamente moravam nas cidades de Saint- Pierre e Fort-Royal, trabalhando como lavadeiras, domésticas, costureiras e no ganho possuíam pecúlios entre 300 e 700 francos. Entre as cinco lavradoras, três tinham pecúlios acima de 1500 francos: Francillete, 37 anos, cultivratrice, tinha um pecúlio de 1600 francos para pagar por sua alforria e de seus dois filhos, escravos do senhor Papin Dupont, do município do Lamentin (arrondissement de Fort-Royal)143; Mizérine144, 36 anos, e seus quatro

143 A comissão avaliou o preço de Francillette e de seus dois filhos, Tullus Sully, 13 anos, lavrador, e Marie Annozia, 3 anos, no valor de 2800fr; com o pecúlio de 1600fr, conseguiram um subsídio de 1200fr. Veja “État des esclaves compris dans la distribution des fonds alloués par la loi du 19 juillet 1845, pour le rachat”, referente à decisão de 1 de setembro de 1846, in BOM, 1846, pp. 481-486. 144 Em seu relatório individual, afirma-se que ela era ainda mãe de uma outra criança impúbere, “libéralement affranchi” por seu senhor, ou seja, separada dela pela alforria – talvez situação semelhante àquela vivida por Zabeth e Claude Pontif, narrada no capítulo anterior. De acordo com o relatório, Mizérine não quis procurar 397 filhos — Corine, 9 anos, Denise, 6 anos, Hortense, 2 anos, Amédée, 1 ano — eram escravos do senhor Louis-Claude Desabaye, no município do Précheur, e possuíam um pecúlio de 1500 francos145; e Adelaïde, que possuía um pecúlio expressivo de 2000 francos, cuja história merece ser narrada com mais detalhes. “Liberdade litigiosa” foi a justificativa da aprovação de subsídio à alforria por resgate forçado da escrava Adelaïde, 56 anos, cultivadora, e seus 4 filhos146: Adolphe, 19 anos, carpinteiro; Céphise, 16 anos, lavadeira; Gustave Montout, 12 anos, aprendiz; e Marius, 3 anos. Na listagem de alforrias por resgate forçado publicada nos periódicos oficiais da Martinica, o preço total dessa família vivendo uma situação de escravização litigiosa foi avaliado em 5.050 francos147, ou seja, em torno de 1000 fr por indivíduo, sendo que o pequeno Marius tinha apenas três anos. No entanto, o relatório produzido pela administração colonial sobre estes sujeitos revela que o preço inicial avaliado pela comissão de resgate para essa família de escravos rurais era ainda mais elevado. Ademais, narra uma história que evidencia outros detalhes acerca das “liberdades litigiosas” dessas mães escravas e seus rebentos e suas alforrias por resgate forçado. Adélaïde e seus filhos eram escravos do senhor Berthet, de Saint-Pierre, engenheiro assistente da colônia (sous-ingénier colonial), certamente um homem branco148. Ao ser liberta, essa família registrou como sobrenome o patronímico Thérbert149, um forma anagramática do sobrenome de seu ex-senhor. Tal circunstância, sem outras referências, poderia levar a deduções precipitadas. Por exemplo, que o senhor Berthet era pai dos filhos de Adélaïde, a qual teria, então, uma relação de concubinagem com seu senhor, e que, enfim, por

se beneficiar da jurisprudência da Cour de Cassation e “s’est adressée à la bienveillance du Gouvernement pour obtenir une subvention de 1400fr”, destinada a completar o valor estimado para a alforria de sua família. ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles ”, no. 48-52, decisão de 02/11/1846. 145 “État des esclaves compris dans la distribution des fonds alloués par la loi du 19 juillet 1845, pour le rachat”, referente à decisão de 2 de novembro de 1846, in BOM, 1846, pp. 600-60. 146 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, p. 245. 147 “État des esclaves compris dans la distribution des fonds alloués par la loi du 19 juillet 1845, pour le rachat”, referente à decisão de 24 de dezembro de 1846, in BOM, 1846, pp. 671-676. 148 Considerei como um branco, porque nesta época este tipo de cargo público ainda era quase que exclusivamente ocupado por homens dessa classe. Até 1830, as pessoas livres de cor da colônia, por mais que conseguissem se destacar social e economicamente, sofriam várias restrições estabelecidas por lei. E mesmo após 1833, quando conquistaram direitos civis e políticos, continuaram a sofrer com o preconceito de cor no dia a dia e constante desconfiança da classe dos brancos, que dominavam econômica e politicamente a colônia. Berthet é um sobrenome de origem francesa. No Almanach de la Martinique de 1837, ele já aparece entre os funcionários da Sous-direction du génie militaire et des ponts et chaussées, na cidade de Saint-Pierre. Almanach de la Martinique, anné commune 1837. Fort-Royal: Thoureau, 1837, p. 116. 149 “État des esclaves compris dans la distribution des fonds alloués par la loi du 19 juillet 1845, pour le rachat”, referente à decisão de 24 de dezembro de 1846, in BOM, 1846, pp. 671-676. 398 estes fatos, ela havia conseguido sua alforria. No entanto, o relatório feito pelo Procurador Geral, aprovando o subsídio para o resgate forçado dessa família, apresenta informações interessantes que demonstram como este tipo de conclusão é, em geral, bastante insipiente, se observamos apenas a superfície das fontes mais acessíveis. Adélaïde era mãe de sete filhos, todos propriedade do senhor Berthet, contudo, três deles não seriam incluídos no conjunto de alforrias por resgate forçado mencionado anteriormente, situação que será explicada mais adiante. O pai de todos os rebentos de Adélaïde era o senhor Pécou, homem liberto há muitos anos — não informam há quanto tempo — e, naquele momento, proprietário de uma pequena habitation nos arredores da cidade de Saint-Pierre. Adélaïde era casada canonicamente com Pécou, mas a data do casamento também não foi informada no relatório. Este fato era apresentado por Pécou como base de sua solicitação para a alforria de sua esposa e de seus filhos, os quais ele afirmava “nunca ter perdido de vista”150. A circunstância vivida por essa família possibilitava que recorressem à ordenação de 11 de junho de 1839, sobre as alforrias de direito, como no caso de Marie-Sainte Platon e François, narrado no capítulo anterior. No entanto, provavelmente para evitar os percalços de um processo judiciário, buscaram por meio do resgate forçado conquistar sem demora a alforria daqueles que permaneciam na escravidão. Por conta disso, apresentaram uma demanda à Comissão responsável em julho de 1846. O valor da estimativa inicial feita para a alforria de Adélaïde e seus sete filhos foi o montante absurdo de 11.850 francos. Eles possuíam um pecúlio de 2000 francos para investir na compra de sua liberdade, quantia considerável para uma família de pessoas escravizadas, mas ainda muito abaixo do valor apreciado. A Comissão do resgate e o Procurador Geral da Martinica aprovaram uma subvenção de 3050 francos151, soma significativa, mas ainda assim não quitava o preço solicitado. Assim, um acordo foi intermediado entre o senhor Pécou e o senhor Berthet. Com o pecúlio que Pécou havia depositado na caixa colonial, mais o subsídio do governo, Adélaïde e quatro dos seus sete filhos seriam alforriados, o que ocorreu na decisão do governo publicada em dezembro de 1846152. Os outros três filhos de Adélaïde e de Pécou — Laurencin, Elie e Léopold (não informam idades e profissões) —, seriam alforriados por um “resgate amigável” diretamente pelo senhor Berthet, que faria um “desconto” de 3800 francos sobre aquele valor total de 11.850 francos, sob a “promessa de trabalhos” que o senhor Pécou

150 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles ”, no. 38-42, referente à decisão de 24/12/1846. 151 A média de valor por escravo nesta solicitação foi de 1500 fr. e a média de subvenção foi de 350 fr. 152 BOM, 1846, pp. 671-676. 399 se engajaria a realizar, representando um valor de 3000 francos, acordo que, aparentemente, segundo o relatório, já estava em execução153. Desse modo, ao final, além dos 5050 francos, Berthet receberia mais 3000 francos em serviços prestados por Pécou, Adélaïde e seus filhos. Este fragmento de história evidencia como a conquista da liberdade era um processo repleto de complexidades e dificuldades. No caso de Adélaïde e Pécou, eles tinham direito à liberdade da mulher e dos filhos de acordo com a legislação vigente, sem ter nem mesmo que pagar por ela caso passassem por um longo processo judiciário. Apesar disso, essa família de libertos teria que ressarcir com seus serviços o senhor Berthet, que “generosamente”, segundo a visão da administração colonial, havia feito um “desconto” sobre o valor abusivo estimado pela comissão de resgate. Por outro lado, esse processo demonstra como a conquista da liberdade poderia envolver em uma mesma circunstância escravos e libertos, mães e pais casados ou não oficialmente, famílias inteiras, dedicando-se à compra da alforria de seus parentes. Na decisão de maio de 1847, acerca da alocação do fundo estatal de 83 mil francos para o resgate forçado, foram contemplados 192 escravos e escravas. Nas avaliações sobre esses indivíduos, a administração colonial da Martinica e a comissão de resgate foram um pouco mais cautelosos quanto aos valores apreciados sobre os casos de direito litigioso dos proprietários, provavelmente porque o governo metropolitano já indicava que esta circunstância não deveria ser resolvida dessa forma154. Tirza (sobrenome Vidissem), 29 anos, doméstica, e seu filho, Jules-Charles, dois anos, eram escravos do senhor Edouard Brunet, padeiro em Saint-Pierre — a classe do senhor não foi identificada. Tirza tinha um outro filho impúbere liberto. Por isso, tal circunstância lhe garantia o direito de invocar a jurisprudência da Corte de Cassação. Porém, segundo o procurador geral da Martinica, ela repugnava “qualquer ação que pudesse prejudicar seu senhor, a quem ela alugava seus serviços constantemente”, e a quem ela devia “um justo reconhecimento”155. Por conta do direito litigioso de seu senhor, a Comissão do resgate estipulou o preço de Tirza e Jules-Charles em 1000 francos. Se compararmos com outros valores mencionados anteriormente sobre uma mãe e um filho pequenos, observamos que tal cifra estava abaixo do padrão. Tirza tinha um pecúlio de 300 francos e conseguiu um subsídio do governo de 700 francos.

153 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 38-42, referente à decisão de 24/12/1846. 154 ANOM – GÉNÉRALITÉS, Carton 139, Dossier 1191 – Rachat des esclaves sur les fonds de l’État: Dossier commun, et Martinique (1845-1847), p. 9. 155 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 185-186, referente à decisão de 04/05/1847. 400

Em outro caso dessa mesma decisão de maio de 1847, Adolphine (sobrenome Denard), 34 anos, servante (criada), escrava do casal Charleroy Marraud, proprietários em Saint-Pierre, foi beneficiada com o subsídio estatal em seu resgate forçado, também por causa do direito litigioso de seus senhores sobre ela. A família de sobrenome Marraud era formada por proprietários brancos imigrados de São Domingos depois da revolta de escravos no final do século XVIII156. Tinham propriedades rurais em várias localidades da Martinica, como Macouba, Grand-Anse e Saint-Pierre. O resgate de Adolphine foi solicitado por seu irmão, Jean Louisy, homem livre. Além disso, ela era mãe de uma criança liberta — não informam quando e por quê —, por isso, “poderia invocar contra seus senhores o benefício do artigo 47 do édito de março de 1685”, ação que não desejava realizar, de acordo com o relatório. A princípio, seus senhores haviam consentido que sua alforria fosse resgatada pelo valor de 1000 francos, mas diante da comissão pediram a anulação do acordo privado feito entre eles e Adolphine. Recusavam formalmente o compromisso ajustado anteriormente, que seria realizado como um resgate amigável, e pretendiam receber da escrava Adolphine seu “valor pecuniário integral”, estimado pela Comissão de resgate em 1300 francos. Contudo, com a intervenção do procurador geral, devido à situação de escravização litigiosa de Adolphine, a comissão redefiniria seu valor em 1000 francos. Ela possuía um pecúlio de 700 francos e conseguiu um subsídio de 300157. Uma situação interessante ocorreu com certa frequência nestes resgates forçados que envolviam mães escravas as quais tinham direito à alforria devido ao artigo 47 do Código Negro. Ao que parece, algumas mulheres livres de cor, que possuíam escravas que empregavam no ganho, geralmente alforriavam os filhos dessas suas escravas. Talvez agissem assim como uma forma de gratificar as escravas em sua propriedade, provavelmente as únicas ou uma das poucas que possuíam. Contudo, a partir de 1845, com o resgate forçado e, ainda, com a jusrisprudência criada pelo affaire Virginie, as escravas dessas proprietárias livres de cor estavam procurando meios de conquistar suas alforrias. Noëmie (sobrenome Labelle), 42 anos, costureira, e seus filhos, Désir, 16, Lolo, 9 anos e Anne-Magdeleine, 20 meses, eram escravos da demoiselle Lapoquiotte158, proprietária em Saint-Pierre. Dois outros filhos de Noëmie tinham sido vendidos por sua senhora ao pai

156 HAYOT, Les gens de couleur libres du Fort-Royal, 1679-1823, op cit, vol. 1, p. 19. 157 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 170, referente à decisão de 04/05/1847. 158 Possível livre de cor, pois este sobrenome não é observado entre os brancos, nem em nomes de origem francesa, além de ser uma mulher solteira (demoiselle), situação muito mais frequente entre as mulheres livres de cor do que entre as mulheres brancas. 401 das crianças e um outro teria sido alforriado diretamente pela senhorita Lapoquiotte, na forma de um resgate amigável. Devido a estas circunstâncias e ao seu direito à alforria, Noëmie e sua família tinham iniciado um processo contra Lapoquiotte, e obtido um resultado positivo no tribunal de primeira instância de Saint-Pierre. Contudo, este veredito foi anulado por conta de uma apelação feita à Corte Real da Martinica. Por conta disso, Noëmie apresentou sua solicitação à comissão de resgate, para conseguir subsidiar a compra de sua alforria e de seus filhos, que permaneciam com ela como escravos de Lapoquiotte. O preço da alforria de Noëmie e seus filhos foi estimado pela comissão de resgate em 3650 francos. Porém, a própria Lapoquiotte limitou suas pretensões em 1959 francos, valor sobre o qual declarou que já havia recebido 759fr. Restaria ainda 1200fr para quitar o valor da alforria. Noëmie tinha um pecúlio de 600fr e a comissão e o procurador geral aprovaram um subsídio de 600 francos159, assim, estariam oficialmente livres. Julienne dita Reinette (sobrenome Roso), 30 anos, lavadeira, e seu filho, Félicien- Paul, 8 anos, eram escravos da demoiselle Mairose Desfourneaux160. Julienne era mãe de uma outra criança alforriada “por um ato de generosidade de sua senhora”, segundo o relatório do procurador geral. Por isso, Julienne teria o direito de invocar a jurisprudência da Corte de Cassação, mas rejeitava completamente “toda ação que pudesse causar danos à sua senhora”, a quem ela sempre “alugou” seus serviços e devia um “justo reconhecimento”161. O preço da alforria de Julienne e seu filho foi estimado em 2400 francos. De acordo com o relatório, a própria senhora, Mairose Desfournaux, depositou um pecúlio de 1200fr na caixa colonial, fazendo sua parte por conta de seu “direito litigioso” sobre sua escrava162. É possível que neste caso, Julienne tenha feito algum acordo com sua senhora, para que continuasse lhe prestando serviços e, assim, pudesse pagar este pecúlio de 1200 francos. Em um outro caso, dessa mesma decisão de maio de 1847, Reinette (sobrenome Miny), 35 anos, doméstica, e seu filho, Jules-Adrien, dois anos, eram escravos da demoiselle Victoire Alba, mulher livre de cor e proprietária em Saint-Pierre. No relatório individual de Reinette, afirma-se que Victoire Alba não era de forma alguma “fortunée” (rica), no entanto, alforriou gratuitamente vários filhos de Reinette. Esta escrava havia sido orientada a processar

159 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 173-176, referente à decisão de 04/05/1847 160 Este sobrenome “Desfourneaux” está ligado, no século XIX, a uma proeminente família livre de cor de Saint-Pierre. Ver SCHLOSS, op cit, pp. 142-145. 161 “(…) elle répugne à toute action qui pourrait nuire à sa maîtresse dont elle a eu toujours à se louer et à laquelle elle doit une juste reconnaissance”, in ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 171-172, referente à decisão de 04/05/1847. 162 Idem. 402 sua senhora, de acordo com a jurisprudência da Corte de Cassação, para obter sua alforria, mas ela teria se recusado a conquistar sua liberdade por este meio. A senhora Victoire Alba solicitou diretamente à administração colonial a alforria por resgate forçado de Reinette e seu filho, com o subsídio do governo. A comissão do resgate estimou o preço da alforria dos dois escravos em 1700 francos. Contudo, devido ao seu “direito litigioso” sobre Reinette, Victoire Alba concordou em fazer um desconto de 700 francos sobre o valor estipulado. Reinette tinha um pecúlio de 300 francos e a comissão aprovou um subsídio de 700163. No entanto, o governo metropolitano, em correspondência de 1847, desaprovou essas medidas tomadas pelo governo da Martinica, referente ao uso da subvenção estatal para complementar o preço da alforria de escravas e escravos que estavam na situação de uma “liberdade litigiosa”. Segundo as instruções do Ministro da Marinha e das Colônias, nos casos que se enquadravam na interpretação do artigo 47 do Código Negro, os escravos tinham direito a sua liberdade sem que tivessem que quitar o preço de seu corpo. Dessa forma, o resgate forçado seria uma contradição em relação à situação desses cativos, e o ministério público da colônia deveria encaminhar medidas necessárias para que obtivessem suas alforrias sem que pagassem nenhum valor. Contudo, o ministro fez uma ressalva que, de certa forma, distorcia a jusrisprudência criada pela Corte de Cassação. Afirmava, então, que este princípio, do direito à liberdade de mães e filhos separados pela alforria de um ou outro, não deveria ser aplicado aos escravos e escravas cujos parentes tivessem conquistado a liberdade por meio do resgate forçado. Essa determinação não era prevista em nenhum texto jurídico. Contudo, de acordo com o ministro, em matéria de resgate forçado, se a “doutrina da indivisibilidade da família” fosse aplicada, seria necessário que os membros de uma mesma família obtivessem a liberdade conjuntamente e que seu preço coletivo pudesse ser quitado. Caso contrário, se conquistassem a liberdade individualmente por meio do resgate forçado, com o objetivo de posteriormente solicitar a alforria dos outros parentes, baseando-se na interpretação do artigo 47, abririam uma via de liberações forçadas e gratuitas que “constituiriam um verdadeiro sistema de espoliação dos senhores”164. Nas alforrias por resgate forçado com subvenção estatal, em geral, as mulheres adultas eram avaliadas entre 1000 e 1800 francos, e os homens adultos entre 1500 e 2000 francos. Uma cultivadora de 25 anos teve o preço estimado pela comissão em 1500fr e o

163 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 144-145, referente à decisão de 04/05/1847. 164 ANOM – GEN, Carton 139, Dossier 1191 – Rachat des esclaves sur les fonds de l’État: Dossier commun, et Martinique (1845-1847), pp. 9-14. 403 mesmo valor foi definido para uma lavadeira de 30 anos. Um cultivador de 24 anos teve o preço estimado em 2000fr e o mesmo valor foi designado para um escravo tanoeiro de 29 anos. Os preços avaliados sobre os indivíduos escravizados variavam, então, mais ou menos de acordo com a idade e o sexo, e os valores dos homens escravizados eram, geralmente, mais altos que das mulheres. No entanto, sempre encontramos exceções, pois observamos uma doméstica de 28 anos ter seu preço avaliado em 1800fr. Em outro caso, Suzanne Médelle, 29 anos, trabalhava como marchande na cidade de Fort-Royal e era escrava da dama viúva Didier. O preço por sua liberdade foi avaliado em 1800 francos. Ela tinha um pecúlio de 900 francos e sua senhora reduziu 300 francos do valor estimado pela comissão. Assim, Suzanne recebeu um subsídio de 600fr para completar a quantia de seu resgate. Na justificativa para a alocação do subsídio do governo, ela foi descrita como uma escrava de “conduta impecável”165. Sua senhora, a dama viúva Didier, era comerciante e pertencia a uma das “mais notáveis” famílias de livres de cor de Fort-Royal, segundo o historiador Émilie Hayot, descritos como “mestiços” que desde o final do século XVIII trabalhavam sobretudo com o comércio na capital política da Martinica166. O governo da colônia acreditava ser útil publicizar as alforrias por resgate forçado e expor o “exemplo das recompensas concedidas aos [escravos] merecedores”. Desse modo, a população escrava seria “encorajada em sua marcha” para seguir as “ideias de ordem e boa conduta”. A divulgação dessas alforrias por resgate forçado poderia fazer a colônia observar os “sacrifícios” que a população escrava se impunha para obter a liberdade e, ainda, “conhecer os nomes dos senhores que, compreendendo o movimento”, acolheram “generosamente” as demandas de alforria. Nesse sentido, o governo da Martinica pretendia representar publicamente essa forma de alforria como um ato que conciliava o “sacrifício dos escravos” e a “benevolência dos senhores”. Nos primeiros relatórios da administração colonial sobre os resgates forçados com o subsídio estatal, os senhores foram apresentados como grandes benfeitores, sobretudo devido aos descontos que alguns faziam sobre os preços dos escravos definidos pela Comissão. Contudo, o resgate forçado era exatamente um meio utilizado por escravas e escravos quando os senhores não aceitavam negociar suas alforrias ou solicitavam preços abusivos. Ambroise Milan, 33 anos, era escravo do senhor Martin, no município do Macouba,

165 Compte Rendu au Roi de l’exécution des lois 18 et 19 juillet 1845, pp. 236-245. 166 HAYOT, Émilie. Les gens de couleur du Fort-Royal, 1679-1823 (1re partie). In: Revue francçaise d’histoire d’outre-mer, tome 56, n. 202. 1o trimester 1969, pp. 34; 37; 53; 91. 404 e trabalhava como carpinteiro na fazenda de seu senhor. Ambroise provavelmente alugava sua força de trabalho e prestava bons serviços na paróquia, pois foi “particularmente recomendado pelo senhor prefeito desta localidade ao Senhor Diretor do Interior”. O senhor Martin demandava que Ambroise pagasse o valor exorbitante de 5000 francos por sua alforria. De acordo com o relatório individual de Ambroise, essa alta quantia que seu senhor solicitava por sua liberdade já havia atravancado negociações anteriores entre o senhor e o escravo. Por isso, Ambroise recorreu à comissão de resgate forçado, a qual estimou seu valor em 2000fr167. Em outro caso, envolvendo uma escrava doméstica, o relatório do procurador geral deixa transparecer como o senhor havia ficado contrariado com o processo iniciado por sua escrava para a obtenção da alforria. Rosillette, 29 anos, trabalhava como doméstica, descrita em seu relatório individual como uma “costureira habilidosa e uma mulher preciosa em uma casa pela diversidade de seus talentos”. Ela era escrava do monsieur Glandut168, o qual “não pôde, à princípio, dissimular seu mau humor ao saber dos movimentos de sua escrava para chegar à liberdade” e “procurou lhe colocar obstáculos”. Contudo, segundo o relato do procurador geral, Glandut teria “recobrado ideias mais saudáveis” e concordou em depositar o valor de 336 francos na caixa colonial, para complementar o pecúlio de 864 francos de Rosillette. Provavelmente, ela teria que pagar posteriormente com seus serviços esta quantia cedida por seu senhor. O procurador geral ainda faz algumas observações intrigantes. Afirma que “as diferentes fases pelas quais este caso passou” lhe obrigava a “facilitar a alforria desta mulher”, solicitando uma subvenção de 600 francos para complementar o valor estimado pela comissão do resgate de 1600 francos169. Teria o senhor Glandut repreendido ou aplicado punições violentas sobre Rosillette ao longo do processo?

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167 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles ”, no. 43, referente à decisão de 02/11/1846. 168 Muito provavelmente o senhor Glandut era um homem branco, pois no relatório foi tratado por “monsieur”, o que dificilmente ocorre com senhores livres de cor. Além disso, encontrei outros membros da família Glandut que estabeleceram uniões matrimoniais com famílias da elite de crioulos brancos da Martinica. Em 1862, um Louis Félix Adolphe Glandut se casou com Marie Thérèse Lydie Le Roux Préville – os Le Roux Préville era uma família importante de crioulos brancos da martinica. Aparentemente os Glandut migraram para a martinica no século XIX, vindo de Sainte-Lucie, colônia inglesa. Ver BRUNEAU-LATOUCHE, Familles diverses de la Martinique, op cit, p. 495. 169 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 62, referente à decisão de 02/11/1846. 405

Os registros de alforria por resgate forçado têm características diferentes daqueles analisados para a década de 1830 e para o período entre 1840 e 1844. Nas listagens dos indivíduos que conseguiram suas liberdades dessa maneira, publicadas nos periódicos oficiais, não constam, por exemplo, aquelas classificações de mestiçagem ou nuances de cor da pele170. Nenhum escravo que conseguiu a alforria dessa forma era de origem africana ou, ao menos, isso não foi informado nos relatórios individuais. Como estas alforrias geralmente contam com um subsídio do estado, tanto o valor desse auxílio como o pecúlio do escravo são mencionados nas publicações oficiais. Ademais, a intenção nesta pesquisa, ao fazer um banco de dados separado para essas alforrias, foi avaliar se os sujeitos envolvidos nestes processos, escravos e senhores, tinham características gerais diferentes daqueles que conquistaram e concederam a alforria de acordo com os recortes analisados anteriormente. Uma primeira diferença se refere às fontes disponíveis acerca dessas alforrias por resgate forçado, cuja maioria foi subsidiada por um fundo estatal. Para a aprovação dessas subvenções, como vimos anteriormente, existem relatórios individuais e resumidos sobre os escravos e seus senhores. O procurador geral era responsável por estas avaliações, com auxílio de outros representantes da administração colonial nas municipalidades da Martinica, as quais eram, em geral, comunidades pequenas. Nesse sentido, pressupomos, por exemplo, que seria quase impossível relações de parentesco sanguíneo, ou mesmo espiritual, entre os escravos e senhores observados nestas concessões de alforria, pois seria difícil ao governo colonial justificar o financiamento público da alforria de indivíduos escravizados que tivessem tais ligações com seus senhores. Desse modo, este foi um ponto considerado a priori, a impossibilidade de relações de parentesco de sangue entre proprietário e cativo. Na análise dessas alforrias, foram utilizados dois tipos de fontes: as listagens com as alforrias outorgadas pelo governo colonial e publicadas no Bulletin Officiel de la Martinique e no Journal Officiel de la Martinique, e ainda os relatórios individuais produzidos sob a responsabilidade do Procurador Geral. Nesse conjunto documental, ainda que entre 1846 e 1847 tenham sido declaradas 474 alforrias por resgate forçado para toda a ilha da Martinica, para a análise quantitativa foram observadas apenas aquelas pronunciadas para os municípios do arrondissement de Saint-Pierre, totalizando uma amostra de 265 liberdades. Este recorte foi feito para que fosse possível tratar com mais acuidade quem eram

170 Apenas em um relatório individual (na documentação manuscrita) comentou-se a cor da pele dos escravos, no caso de Lucia Raven, sua mãe Adélaïde e seu marido, Firmin Mitiga, designados como “negros”. 406 os senhores e escravos envolvidos nestes processos de alforria por resgate forçado, e restringir os relatórios individuais (fontes manuscritas) que precisariam ser observados. Seguindo o padrão observado até aqui, observando a tabela 33, abaixo, as escravas do sexo feminino também conseguiram o maior número dessa forma de alforria: 54,7% libertas e 45,3% libertos. É interessante notar que estes números se aproximam das proporções de ambos os sexos sobre o total de trabalhadores escravizados na Martinica. Em 1846, havia 75.339 escravos na ilha, sendo 53% do sexo feminino (39.902 mulheres e meninas) e 47% do sexo masculinos (35.437 homens e meninos). Se considerarmos as faixas etárias, separadas entre crianças e adultos, os indivíduos com idade abaixo de 14 anos representaram em torno de 45% do total de alforrias analisadas, as mulheres 32% e os homens 23% do conjunto. Novamente as faixas etárias de zero a 8 anos e de 15 a 30 anos foram os grupos mais beneficiados com a liberdade, assim como nas amostras das décadas de 1830 e 1840. Apesar do número significativo de crianças com idades até 14 anos, a maioria das alforrias foram concedidas a adultos “jovens”, entre 15 e 45 anos, representando 50% do conjunto analisado. Contudo, isso se explica, em parte, pela forma que a administração colonial selecionou os indivíduos que seriam contemplados com estes resgates forçados subsidiados, considerando, a princípio, escravos e escravas que tivessem condições de se manter na liberdade, saudáveis e exercendo uma profissão. A única pessoa acima de 60 anos era uma mulher, Angèle Angely, 76 anos, antiga enfermeira da habitation Hâvre et Société, no município da Grand’Anse. Angèle e Jean- Baptiste Venise, 54 anos idade e antigo feitor (commandeur) da mesma fazenda, foram alforriados juntos em um mesmo registro, mas não há indicação de relação de parentesco entre os dois escravos. Seus relatórios individuais informam que, apesar dos “bons antecedentes”, estes dois escravos de idade avançada, sobretudo Angèle, estavam encarcerados em um tipo de prisão171 na habitation Hâvre. Jean-Baptiste havia servido por mais de vinte anos como feitor da propriedade, mas sob suspeitas as quais o relatório não informa, ele teria ficado por três anos acorrentado em um alojamento insalubre da fazenda, o que fez com que suas pernas atrofiassem. Não fica claro se Angèle permaneceu no mesmo cárcere que Jean-Baptiste, mas ela também, sob uma suspeita que não foi relatada, teria ficado quase dois anos presa em um tipo de sótão da propriedade rural. De acordo com o relatório do

171 O relatório afirma que estavam presos em um galetas, cuja tradução pode ser “sótão”, mas também um quarto ou alojamento em condições miseráveis, em mau estado. Ver Dictionnaire de l'Académie française, 5th Edition (1798), em Dictionnaires d’autrefois, http://artfl-project.uchicago.edu/node/17. 407 procurador geral, tais suspeitas sobre estes escravos não tinham nenhum fundamento ou prova, mas não comenta se os proprietários da habitation Hâvre sofreriam algum processo pelo abuso cometido na punição destes escravo. Por outro lado, a comissão ainda pagou aos senhores 150 francos pela alforria de Angèle e 250 francos pela liberdade de Jean-Baptiste172.

Tabela 33 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: sexo do(a) escravo(a) / faixas etárias (anos) Sexo 0 – 8 9 – 14 15 – 30 31 – 45 46 – 60 Acima Total de 60 Feminino 42 19 40 39 4 1 145 Masculino 41 17 31 22 9 0 120 Total 83 36 71 61 13 1 265 % 31% 13,6% 27% 23% 5% 0,4% 100%

De acordo com a amostra, entre as 265 pessoas libertas nos municípios do arrondissement de Saint-Pierre, 196 foram alforriadas com a família, ou seja, 74% do total de indivíduos (veja a tabela 34, abaixo). É uma proporção mais significativa que aquela da década de 1830, quando 61% dos escravos e escravas foram alforriados com seus parentes. Os 196 indivíduos formam 62 conjuntos familiares, considerando-se “família” quando o registro de alforria era coletivo e enunciava as relações de parentesco entre os escravos e escravas. Desse modo, 54 famílias eram formadas por mães escravas com seus filhos; 2 famílias formadas pelo casal (um homem e uma mulher); 2 famílias escravas formadas pelo marido, a mulher e os filhos; 4 famílias apenas com os irmãos, em geral, crianças impúberes. Quase todas as crianças abaixo de 14 anos foram alforriados com suas famílias, majoritariamente com suas mães. As mulheres foram alforriadas mais com família do que os homens, observando-se uma situação inversa entre os escravos que conquistaram a liberdade individualmente: 128 indivíduos do sexo feminino e 68 do sexo masculino foram alforriados com família; 17 pessoas do sexo feminino e 52 do sexo masculino foram alforriados individualmente. Mais uma vez se observa a preponderância e importância das mães escravas para suas famílias, alforriadas em maior número com seus filhos. No caso das alforrias por resgate

172 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 168-169, referente à decisão de 04/05/1847 408 forçado com auxílio do fundo estatal na Martinica, observamos que a administração colonial favoreceu as demandas que envolviam sobretudo aquelas escravas e suas crianças que tinham direito à liberdade devido à jurisprudência criada pela Corte de Cassação na França Metropolitana, a partir do artigo 47 do Código Negro. Por outro lado, as famílias escravas estavam atentas a esta situação, como se observou anteriormente nos relatos sobre experiências vividas por várias famílias enquadradas nesta circunstância ou outras de escravização litigiosa, como aquela de Adélaïde, Pécou e seus filhos.

Tabela 34 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: quem alforria com família 0-8 9-14 15-30 31-45 46-60 Acima Total de 60 Alforria com 82 35 37 33 9 0 196 família Alforria 1 1 34 28 4 1 69 individual Total 83 36 71 61 13 1 265

Quanto às profissões desses escravos e escravas alforriados por resgate forçado, observando a tabela 35, abaixo, entre os 83 indivíduos “sem profissão”, todos eram crianças com idades até 14 anos: 77 na faixa etária de zero a 8 anos, 6 na faixa etária entre 9 e 14 anos. Para 45 indivíduos, nada foi mencionado sobre a profissão: 4 crianças com idades entre 0-8 anos; 27 entre 9-14 anos; 13 adultos na faixa etária entre 15 e 30 anos e um adulto entre 46 e 60 anos. Por fim, a profissão de 137 indivíduos adultos foi mencionada. Seis mulheres definiram seu ofício como “servante”, que poderia ser traduzida como “criada”, e foram contabilizadas como “doméstica”. No quadro geral, a profissão de cultivador(a) se destaca, configurando 38% do conjunto de indivíduos cujo ofício foi mencionado, homens e mulheres exercendo essa profissão rural quase na mesma proporção. Contudo, para as mulheres, a profissão que mais se destacou foi a de serviços domésticos e manutenção da vida diária, considerando cozinheira, lavadeira, costureira, somando 48 mulheres ou 35% do conjunto de trabalhadores. É interessante notar que nas amostras de alforrias concedidas nas décadas de 1830 e 1840, a profissão de costureira foi a mais mencionada entre os ofícios exercidos pelas mulheres. Porém, nestas alforrias por resgate forçado a frequência dessa profissão foi bastante baixa, abaixo mesmo dos ofícios de lavadeira e de marchande. Excluindo os lavradores e 409 domésticas, as outras profissões indicadas foram mencionadas quase que pontualmente. Entre os homens, se considerarmos as profissões artesanais (alfaiate, carpinteiro, ferreiro, latoeiro, pedreiro, sapateiro e tanoeiro), estas foram mencionadas por um total de 16 indivíduos.

Tabela 35 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Profissão / sexo do(a) escravo(a)

PROFISSÃO Feminino Masculino Total Alfaiate 0 1 1 Carpinteiro 0 4 4 Commandeur (feitor/capataz) 0 1 1 Costureira 3 0 3 Cozinheira 1 0 1 Cultivador(a) / lavrador(a) 27 25 52 Do ganho (Journalier/ère) 3 2 5 Doméstico(a) 36 5 41 Enfermeira 1 0 1 Ferreiro 0 2 2 Latoeiro 0 1 1 Lavadeira 8 0 8 Marchande 5 0 5 Operário (Ouvrier) 0 2 2 Patron de canot (chefe de 0 1 1 canoa) pedreiro 0 4 4 Raffineur (refinador) 0 1 1 Sapateiro 0 2 2 Tanoeiro 0 2 2 Sem profissão 40 43 83 Nada mencionado 21 24 45 Total 145 120 265

Sobre o local de moradia dos indivíduos alforriados por resgate forçado, Saint- Pierre se destaca (veja tabela 36, abaixo). Isso se justifica em parte pelo fato da população dessa cidade ser a maior de sua região e de toda a Martinica na época. A questão de divisão sobre meio rural e urbano já foi abordado anteriormente. Contudo, especialmente nesta 410 amostra, observou-se escravos que eram da cidade Saint-Pierre, mas exerciam a profissão de lavrador. A quantidade de indivíduos do município do Carbet foi significativa, considerando que sua população era menor, por exemplo, que aquelas do Robert ou da Grand-Anse173.

Tabela 36 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Local de moradia do(a)s escravo(a)s Local de Moradia Feminino Masculino Total Basse-Pointe 0 6 6 Carbet 13 10 23 Case-Pilote 12 8 20 François 2 13 15 Grand-Anse/Lorrain 7 7 14 Gros-Morne 7 1 8 Macouba/du Nord 11 8 19 Marigot 3 0 3 Prêcheur 5 3 8 Robert 0 2 2 Saint-Pierre 79 54 133 Saint-Pierre-Extra-Muros 3 0 3 Trinité 3 8 11 TOTAL 145 120 265

Uma das diferenças mais marcantes nestas alforrias por resgate forçado, em comparação com as amostras das décadas de 1830 e 1840, foi observada quanto à classe dos senhores (veja tabela 37, abaixo). A maioria dos proprietários envolvidos nestas negociações de alforrias subsidiadas pelo governo pertenciam à classe dos brancos. Um total de 128 senhores alforriaram o conjunto de 265 indivíduos escravizados. Considerando as categorias “possível branco” e “possível livre de cor”, 55% dos proprietários pertenciam à classe dos brancos e 31% à classe dos livres de cor. Contudo, é importante notar que não foi possível identificar a classe de 14% dos senhores de escravos. Quanto à divisão dos proprietários por sexo, estiveram envolvidos nestes processos de alforria 43 mulheres e 85 homens. Os homens

173 Veja tabela “População escrava da Martinica, dividida nos municípios do arrodissement de Saint-Pierre, 1826”, neste capítulo 411 brancos foram os mais presentes. Se considerarmos os “possíveis brancos”, representam mais de um terço do total de proprietários, em torno de 39%. O número de senhoras livres de cor (20 mulheres) foi quase a mesma quantidade de senhores livres de cor (19 homens) e, ainda, de senhoras brancas (21 mulheres). Os proprietários da elite de colonos brancos da Martinica, que possuíam grandes propriedades e escravarias, em termos proporcionais, alforriaram pouquíssimos escravos nas décadas de 1830 e 1840. Contudo, alguns nomes de famílias da elite branca da colônia se destacaram entre os proprietários dessa amostra de alforrias por resgate forçado, como: Pécoul; Perrinelle (proprietário de engenho de açúcar em Saint-Pierre), Pothuau Desgatières, Cornette de St Cyr, Dama viúva de Chalvet (o senhor Chalvet faleceu em abril de 1844), Dama viúva Assier de Pompignan (Assier de Pompignan até hoje é conhecida como uma família de bekés174 da Martinica), dama viúva Alcide Deslandes, herdeiros Lalanne, Ducaurroy, Saulger de St Maurice (os Saulger de St Maurice era uma família de franceses que imigraram para a Martinica no período da Revolução Francesa, quando os ingleses tomaram a colônia), Louis Claude Desabaye, comissário de polícia na Grand-Anse, filho de Edmé Desabaye, antigo membro do Conselho Superior da Martinica; dama viúva Coqueran de Bellisle; Barão de Courcy; Louis Michel Brière de Bretteville, prefeito da Comuna do Norte (Basse-Pointe e Macouba), por volta de 1845.

Tabela 37 – Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Sexo e classe dos senhores Sexo Branco Possível Livre de cor Possível Não Total senhor(a) branco livre de cor identificado Feminino 15 6 11 9 2 43 Masculino 43 7 7 12 16 85 Total 58 13 18 21 18 128 % 45% 10% 14% 17% 14% 100%

174 Termo utilizado sobretudo na atualidade para se referir às famílias de colonos brancos das Antilhas Francesas. 412

A tabela 38, abaixo, indica mais ou menos os valores de pecúlio que os indivíduos ou as famílias escravas possuíam. Os valores mais altos se referem aos montantes investidos em alforrias coletivas. Em torno de 13 indivíduos não possuíam nenhuma poupança para a compra da alforria, solicitando subsídio completo do governo: nove pessoas do sexo feminino e quatro do sexo masculino. Esta situação ocorreu sobretudo nos casos de “liberdades litigiosas” ou, ainda, naquele caso de Angèle e Jean-Baptiste, mantidos em cárcere injustificável e abusivo pelos proprietários da habitation Hâvre. Na tabela, o sexo do escravo se refere ou ao indivíduo ou à pessoa mais velha do grupo familiar alforriado. A maioria dos indivíduos ou famílias possuíam montantes de até 1300 francos, e as diferenças entre os pecúlios declarados por homens e mulheres não são expressivas. De fato, o pecúlio aplicado pelos escravos individualmente ou por famílias, resultavam não apenas das poupanças dos indivíduos envolvidos. O procurador-geral comenta em seu relatório de novembro de 1846, acerca das “economias feitas pelos escravos”, que “as ajudas que encontraram, fosse entre seu companheiros de infortúnio, fosse entre os homens de sua raça, contribuíram poderosamente para aquele resultado”. Isso significa que conseguiam auxílio de outros escravos e de outras pessoas de “sua raça”175, referindo-se, com esta expressão, provavelmente a pessoas livres de cor. O artigo 5 da Lei Mackau regulamentava que “as pessoas não livres” poderiam resgatar sua liberdade ou a liberdade de seus pais, mães e outros ancestrais, de suas esposas e filhos. Contudo, segundo a relatório do procurador geral da Martinica, foi entendido, “a fortiori, que este direito poderia ser exercido pelos parentes livres em relação aos seus parentes escravos”. Desse modo, os libertos também contribuíam com o pecúlio depositado na caixa colonial em benefício daqueles indivíduos que pretendiam auxiliar na conquistar da alforria, mesmo quando não havia nenhum laço de parentesco176.

175 ANOM – GEN, Carton 139, Dossier 1188: Gouvernement de la Martinique, n. 755 – Administration du Procureur Général – direction des colonies – Bureau du régime politique - “l’envoi d’un extrait du conseil privé (séance du 2 novembre) relatif à 70 affranchissements prononcés par suite de rachat forcée et avec concours des fonds de l’état 176 ANOM – GEN, Carton 139, Dossier 1191 – Rachat des esclaves sur les fonds de l’État: Dossier commun, et Martinique (1845-1847), pp. 32-33 413

Tabela 38 - Alforrias por resgate forçado, Martinica, 1846-1847: Valores dos pecúlios de indivíduos e famílias escravas Valor do pecúlio Feminino Masculino total (francos) 100 – 300 9 3 12 400 – 500 9 5 14 575 – 700 12 12 24 701 – 900 9 6 15 901 – 1100 10 13 23 1150 – 1300 10 9 19 1400 2 0 2 1500 2 2 4 1600 0 1 1 2000 – 2074 2 0 2 2200 2 0 2 3000 0 1 1 4000 0 1 1 Total 67 53 120

O montante mais alto indicado na tabela, de 4000 francos, pertencia à uma família formada pelo pai, a mãe e seus filhos. Todos conquistaram conjuntamente suas alforrias por resgate forçado, em uma decisão publicada em maio de 1847. Théodore Reinette, 49 anos, era casado canonicamente com Rosillette Babet, 38 anos, e tinham 4 filhos: Théodorie, 13 anos, Lucien-Anselme Petit-Frère, 10 anos, Marius, 7 anos, e Ruffin, um ano. Talvez tivessem filhos mais velhos, mas apenas estes foram alforriados com eles. Eram escravos lavradores do engenho de açúcar dos Perrinelle, uma das famílias mais ricas de proprietários brancos da Martinica nesta época. Théodore foi descrito no relatório sobre a família, como “o homem mais ativo e mais inteligente da importante habitation que a família Perrinelle possui na vizinhança de Saint-Pierre”. A comissão do resgate estimou o preço da família de Théodore e Rosillette em 5.900 francos e o senhor Perrinelle não fez nenhum desconto sobre este valor. Conseguiram, então, um subsídio do governo de 1.900 francos. Contudo, um dos elementos mais interessante nas informações fornecidas sobre esta família concerne à composição de seu pecúlio. O montante expressivo de 4.000 francos foi formado por uma soma que envolvia 414

1000 francos que Théodore havia economizado; um valor de 1.500 francos que Théodore conseguiu reunir com a venda de joias de sua esposa Rosillette, das camas de seu casebre e de empréstimos de pessoas de Saint-Pierre, onde ele era “conhecido e estimado”; e por último, um montante significativo de 1.500 francos que havia sido doado pela mãe de Rosillette Babet, escrava enfermeira de longa data da habitation Perrinelle, e que permanecia na escravidão177. É raro encontrar nos relatório individuais este tipo de descrição detalhada sobre a composição do pecúlio dos indivíduos ou das famílias escravas. Contudo, aquela mencionada anteriormente é uma evidência preciosa sobre os meios e sujeitos envolvidos na formação dos montantes utilizados pelos escravos para a compra de suas alforrias. Estas fontes escritas por homens brancos, em geral, ressaltam apenas a agência dos homens escravizados nestas negociações, por exemplo, quando mencionam o valor de 1.000 francos, poupado “por Théodore”. É provável que ele e Babet tenham economizado este pecúlio vendendo o excedente de seu roçado na cidade de Saint-Pierre, de onde moravam tão próximos. Certamente Théodore não teria poupado este valor sem o trabalho de Babet, e mesmo das crianças mais velhas, no eito da roça e da família. A atuação da mãe de Babet também salta aos olhos, ao doar um pecúlio tão alto para a alforria de sua filha, genro e netos, enquanto ela permaneceria como escrava da fazenda. Contudo, apesar disso, seu nome nem foi citado no relatório, ainda que fosse enfermeira da habitation Perrinelle. Em um outro caso bastante interessante de alforrias conquistadas na decisão de 1847, o pecúlio de uma família foi auxiliado em parte por uma lista de subvenções particulares. Céphise, 49 anos, e seus filhos, Marthe, 16, Luis-Lazare, 11, eram escravos lavradores do senhor Doëns, proprietário de engenho de açúcar no município de Case-Pilote. O companheiro e pai das crianças de Céphise era Albéry, 45 anos, também escravo da habitation Doëns, e ele era um “panseur de serpent” (“curandeiro de serpente”) muito renomado na região. Por conta disso, quatro anos antes dessa decisão, o senhor de Albéry havia sido encorajado por vários proprietários da região a pensar em acordar a liberdade do curandeiro de serpentes e de sua família. Para atingir este objetivo, Doëns fez uma lista de subscrições, na qual anunciava que as contribuições a serem feitas deveriam atingir a cifra de 3000 francos para alforriar toda a família de Albéry. Contudo, as expectativas do senhor

177 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 77-82, referente à decisão de 04/05/1847. 415

Doëns e da família escrava não foram atingidas, pois a subscrição não arrecadou mais que 1500 francos. Segundo o procurador-geral, desde a chegada dos primeiros recursos para os resgates forçados da Martinica em 1846, ele mesmo informou o senhor Doëns que estava disposto a solicitar a alforria da família de Albéry, com um subsídio estatal de 1500 francos que complementaria o valor das doações recolhidas e atingiria o preço fixado pelo proprietário. Contudo, Doëns não aceitou esta proposta do oficial do governo, argumentando que as condições eram diferentes daquelas quando havia consentido o resgate de Albéry quatro anos antes. Como a “subscrição não havia sido completada dentro do prazo moral que estava em sua mente” no momento que escreveu o montante que esperava pela família escrava, Doëns se supunha “livre de todo compromisso” feito e esperaria o resultado das estimações de preço que seriam feitas pela comissão do resgate. Albéry, Céphise e seus filhos foram avaliados em 5400 francos, ou seja, 2400 francos acima do valor que Doëns havia fixado na subscrição feita anteriormente. Se descontasse o valor de 1500 francos arrecadados, ainda assim, segundo o procurador geral, não poderia solicitar uma subvenção de 3900 francos178. É interessante observar que havia de fato um interesse público em alforriar Albéry e sua família, por conta do reconhecimento das práticas de cura que o escravo realizava em pessoas que eram atacadas por serpentes. A grande quantidade desses répteis na Martinica era um fenômeno comumente destacado por viajantes que passavam pela ilha179. Etienne Rufz de Lavison, médico e cientista crioulo e martinicano do século XIX, publicou até mesmo um estudo sobre o assunto, intitulado Enquête sur le serpent de la Martinique. Apesar do olhar enviesado pelo preconceito e escárnio do médico180, ele fornece algumas informações

178 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 187-189, referente à decisão de 04/05/1847. 179 Granier de Cassagnac afirma, sua narrativa de viagem às Antilhas (1840-1841), que amava a Martinica, mas que não moraria jamais nesta colônia exatamente por causa das milhares de serpentes venenosas que habitavam suas matas e savanas. Ele algumas páginas de seu relato a tratar dos problemas que as serpentes causavam, como os escravos reagiam quando as encontravam na plantação de cana, etc. Eis um pequeno trecho: “La Martinique a donc reçu du ciel, en compensation de faveur sans nombre, un petit serpent marbré, dont la piqûre est à peu près toujours mortelle; et en outre, ces serpents sont tout ce qu’il y a de plus commun. Ils ont presque détruit les nègres marrons dans les bois. (…) C’est principalement dans les champs de cannes que les serpents se tiennent (…). Veja GRANIER DE CASSAGNAC, op cit (1842), pp. 348-352. Alphonse Maynard também comenta em seu relato de viagem à Martinica em 1842 o problema da grande quantidade de serpentes na ilha, veja MAYNARD, op cit, pp. 49-50. 180 Rufz de Lavison afirma que as “pratiques superstitieuses accompagnent toujours le pansement, lorsque le pansement est fait par un nègre” e classifica os relatos que ouviu na Martinica sobre estas práticas como “bizarreries”. RUFZ DE LAVISON, Etienne. Enquête sur le serpent de la Martinique. Paris: Germer Baillière, 1859 (2a. Edição), p. 144. 416 interessantes acerca das práticas de cura que os negros da Martinica utilizavam para lidar com as picadas de serpente. Rufz fala de um “nègre panseur” (negro curandeiro) da fazendo do senhor Lalung, escravo que sabia manipular as ervas usadas para tratar as mordidas do réptil venenoso. Este curandeiro:

[…] começa se informando se o negro picado pela serpente se engajou em quaisquer atos, durante as últimas vinte quatro horas, e, como quase sempre isso ocorreu, o curandeiro, antes de dar o remédio, desloca-se até o rio mais próximo, cruza-o várias vezes, onde lava sua camisa, etc, etc, e tudo isso com o ar mais sério do mundo, assim como um homeopata ou um magnetizador, e é somente depois que ele faz todas essas bufonarias que retorna ao paciente. Mais comumente, o curandeiro só opera em segredo, fora da vista do senhor, e sobretudo dos médicos […]. Um curandeiro não deve tocar a compressa feita por um outro curandeiro. Foi-me dito […] que há curandeiros que não tocam nem mesmo a picada [da serpente], mas que ele se contenta em tratar, isto é, curar o membro do lado oposto.181

Na visão de Rufz de Lavison, o “panseur” (curandeiro) era um “charlatão”, porque além da forma que curava as pessoas picadas por serpentes, também dominaria estes répteis. Ele teria visto um curandeiro de serpentes em ação, e apesar de tê-lo “desmascarado”, não conseguiria explicar porque estes “panseurs de serpent” eram tão conhecidos, renomados e respeitados na ilha182. Albéry era uma dessas figuras e sua respeitabilidade era tão expressiva que o procurador geral estava disposto a forçar o senhor Doëns a efetivar seu compromisso. Nesse sentido, iniciou uma ação no Tribunal de Primeira Instância de Saint-Pierre, com a esperança de que aquilo que Doëns havia escrito na subscrição fosse interpretada pela corte em um sentido diferente daquele que o senhor do escravo pretendia atribuir quando Albéry e a família estavam sendo avaliados pela comissão do resgate, e que conseguisse, assim, forçá-lo a aceitar o montante de 3000 francos pelas alforrias. Diante deste fato, o senhor Doëns aceitou estabelecer uma negociação com o procurador geral. Este, depois de várias propostas, conseguiu convencer o senhor de Albéry a aceitar um acordo. Uma subvenção de 2000 francos foi aprovada pelo Conselho Privado. Doëns somaria mais 100 francos ao montante da subscrição, assim, 1600fr seriam depositados como pecúlio da família na caixa do tesouro colonial. Com este valor de 3600 francos, seriam alforriados Céphise e seus filhos, e Doën se comprometeria a alforriar Albéry por meio de um resgate amigável na mesma data que sua família fosse declarada liberta, compromisso feito

181 RUFZ DE LAVISON, op cit, p. 144. 182 RUFZ DE LAVISON, op cit, p. 145. 417 diante do Procurador do Rei de Saint-Pierre. Desse modo, Albéry e sua família conquistaram finalmente suas alforrias em maio de 1847, “família interessante e cuja emancipação pode ser considerada um benefício para a Colônia”183, segundo o relatório do Procurador Geral. Mais comumente, os escravos e escravas tinham o apoio de parte da família já liberta para acumular o pecúlio necessário à compra da alforria. Marie Joseph dita Juliette, 35 anos de idade, e seu filho Joachin dito Emile, três anos, eram escravos do senhor Alexandre Doëns, membro de uma antiga família de colonos brancos, estabelecidos na região do Gros- Morne, talvez parente daquele senhor de Albéry, o curandeiro do município de Case-Pilote. Marie Joseph trabalhava como lavradora na fazenda de cana-de-açúcar de Doëns, localizada naquele município do Gros-Morne. Ela era filha de Marcelin Vonin e Adélaïde, antigos escravos do mesmo senhor, casados canonicamente desde 1828, e que tinham comprado suas liberdades logo depois deste período. Eles deixaram vários filhos e netos escravizados na habitation de Doëns. Contudo, segundo o relatório do procurador geral, Vonin, com mais de setenta anos, “desde que conseguiu a liberdade, ele teve apenas um objetivo, apenas um desejo, aquele de levar à liberdade seus filhos e netos que permaneceram escravos”, e já havia resgatado quatro membros da sua família. Vonin depositou na caixa colonial um pecúlio de 1300 francos para a alforria de Marie Joseph e seu filho Emile. A comissão do resgate estimou o preço da mãe e do filho em 2200 francos, o senhor Doëns não fez nenhum desconto sobre este valor alto e, assim, foi aprovado um subsídio de 900 francos para garantir o resgate da filha e neto de Vonin e Adélaïde184. O senhor Marcelin Vonin era “um velho soldado que prestou incontestáveis serviços ao país”, de acordo com o procurador geral. Veremos adiante que era muito comum a atuação de mães libertas no resgate da alforria de seus filhos e netos que permaneciam na escravidão. Contudo, nestes casos, o procurador geral por vezes nem cita o nome da mulher. Quanto ao senhor Vonin, o oficial exalta a perseverança do pai e avô liberto:

No dia em que esse homem de bem veio ao meu fórum para solicitar permissão para depositar na caixa do tesouro este pecúlio de 1300fr, fiquei profundamente comovido, ao ouvi-lo exprimir seu espírito, seu amor pela família. Com mais de 70 anos de idade, deteriorado pelo trabalho, ele me disse com lágrimas nos olhos que ele sentia somente medo, uma dor profunda, de chegar ao fim de sua carreira antes de realizar a nobre tarefa que ele empreendeu: levar à liberdade todos os membros

183 “(…) famille intéressante et dont l’émancipation peut être regardée comme un bienfait pour la Colonie”, ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 187-189, referente à decisão de 04/05/1847. 184 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 95-96, referente à decisão de 04/05/1847. 418

dispersos de sua família. É algo admirável esta conduta do senhor Marcellin Vonin.185

Os elogios à determinação do senhor Vonin em unir sua família na liberdade foram merecidos, principalmente sendo ele um ex-escravo lavrador com mais de 70 anos. Contudo, é importante observar como os funcionários do governo colonial tratavam de maneiras diferenciadas os homens e as mulheres, pais e mães, que se dedicavam a auxiliar suas famílias na conquista da alforria. As mulheres geralmente são subestimadas e tratadas no máximo como coadjuvantes destas ações nos documentos registrados por homens brancos, principalmente quando eram casadas, como Adélaïde Vonin ou Rosillette Babet. Irinée dita Jeannine, sobrenome Théret, tinha 18 anos, era escrava lavradora na habitation do senhor Ferdinand Ithier, proprietário no Parnasse, no município de Saint-Pierre. Seu senhor havia solicitado 1500 francos por sua alforria. No entanto, Irénée compareceu diante da comissão do resgate, acompanhada de sua mãe, cujo nome não é informado, e esta mulher teria feito “observações no sentido de fazer moderar o preço estimado pelo senhor” sobre sua filha. A comissão considerou “os dizeres da mãe” e fixaram o preço de Irenée em 1300 francos, ou seja, abaixo do valor solicitado pelo proprietário. Irenée tinha um pecúlio de 1000 francos e conseguiu um subsídio de 300 francos para quitar o preço de sua alforria 186. Robertine, 28 anos, era escrava doméstica da dama Lescouet, em Rivière-Pilote. Ela possuía um pecúlio de 1500 francos para comprar sua liberdade e de seus três filhos: Amélie, 13 anos, Herminie, 8 anos, Louis Marie, 3 anos. A mãe e uma das irmãs de Robertine, cujos nomes não são mencionados, haviam “amigavelmente resgatado” suas alforrias em 1838, e agora solicitavam a alforria de Robertine e de seus filhos e a auxiliavam com o pecúlio. O preço de suas liberdades foi avaliado pela comissão do resgate em 3000 francos. Conseguiram, então, um subsídio de 1500 francos para complementar o montante, e Robertine e seus filhos foram alforriados em novembro de 1846187. A alforria de Adrien, escravo de 19 anos, que trabalhava como latoeiro na cidade de Saint-Pierre, foi solicitada por sua mãe, demoiselle Louise188. Em um caso interessante, a demoiselle Reinette Nivor solicitou a alforria de seus três irmãos, Henry, 15 anos, César, 37 anos e Henri Coco, 32 anos, todos escravos lavradores da senhora Ducaurroy, uma das

185 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 95-96, referente à decisão de 04/05/1847. 186 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 112, referente à decisão de 04/05/1847 187 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles ”, nos. 12-15, referente à decisão de 02/11/1846 188 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 58, referente à decisão de 02/11/1846 419 proprietárias da habitation Casse-Cou, no município do François189. Victorine Drapeau, 20 anos, era escrava doméstica da dama viúva Louisy Fabre, mulher livre de cor e proprietária em Saint-Pierre. O resgate de Victorine foi solicitado por sua mãe, demoiselle Marie Betzy, vendedora de peixe (marchande de poisson) em Saint-Pierre, e foi ela quem forneceu o pecúlio de 1300 francos para a alforria da filha190. Louisia, 16 anos, escrava que trabalhava como lavadeira, era filha da demoiselle Rose Emilie, alforriada havia pouco tempo, pelo testamento de sua senhora. Essa mãe conseguiu a atenção do procurador geral, o qual comentou em seu relatório que “esta mulher perseguiu com um empenho digno de elogio a alforria de Louisia”. Rose Emilie poupou um pecúlio de 700 francos para comprar a alforria de sua filha191. Os números foram importantes para observarmos o quadro geral dessas alforrias por resgate forçado na Martinica, mas os fragmentos de histórias narrados nos relatórios individuais forneceram informações essenciais para compreendermos a alforria, sobretudo sob uma abordagem atenta ao protagonismo das mulheres escravas e de suas famílias. Eduardo Paiva afirma algo importante sobre os processos de alforria no Brasil, mas que se encaixa ao contexto martinicano analisado neste capítulo. Segundo o historiador, “a recorrência da alforria entre as escravas e seus filhos é um dos melhores exemplos do emprego de artimanhas e estratagemas, do estabelecimento de acordos com os senhores e de uma autonomia que elas conquistaram no cativeiro e que levaram para a vida pós-manumissão”192. Embora estivesse longe de uma emancipação geral, a lei Mackau e os subsídios públicos para a compra da alforria representaram uma nova relação entre indivíduos escravizados e o estado nas colônias francesas, interferindo definitivamente no domínio senhorial. De acordo com John Savage, a estatística paternalista do Novo Imperialismo, que substituiria a autoridade privada e paternal dos senhores de escravo no pós abolição, já estava implícita nas políticas coloniais da década de 1840193. Nas alforrias por resgate forçado, o governo colonial procurou definir quais eram os sujeitos “merecedores” do duplo benefício concedido pelo estado — o subsídio e a outorga da alforria oficial —, e estabelecer, assim, parâmetros baseados no trabalho e na família, sob uma ordem social tutelada e orientada pelo

189 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, nos. 38-40, referente à decisão de 02/11/1846. 190 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 158, referente à decisão de 04/05/1847. 191 ANOM/GEN/139/1188: “État des notices individuelles”, no. 60, referente à decisão de 04/05/1847. 192 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001, p. 212. 193 SAVAGE, op cit, p. 49. 420 estado Francês. Ao mesmo tempo, nas colônias, procuraram divulgar estas alforrias por resgate forçado também como um ato de benevolência dos senhores. Contudo, as famílias escravas e libertas utilizaram como puderam os recursos disponíveis para unirem seus membros na liberdade, a despeito da vontade de seus senhores e da tutela do estado. 421

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas ideias do senso comum sobre a mulher negra estiveram no centro de debates que perpassaram questões políticas e sociais no Caribe Francês, sobretudo na Martinica. O lugar-comum da mulata, que se apaixona pelo petit-blanc, sendo condenada a nunca ser respeitada por ele ou pela sociedade, tem seu eterno retorno, até o romance autobiográfico Je suis Martiniquais, de Mayotte Capécia, que ainda hoje alimenta debates intensos sobre gênero e raça, e acerca da memória do colonialismo e do escravismo francês 1. Essa obra é o leitmotiv da crítica devastadora que Frantz Fanon faz às relações íntimas entre mulheres negras e homens brancos, julgando de forma negativa especialmente as “mulheres de cor”, no segundo capítulo (“La femme de couleur et le Blanc”) de sua obra Peau noire, masques blancs. Em seu livro, Mayotte Capécia narra uma aventura amorosa e sua paixão por um soldado francês metropolitano, que teria vivido na Martinica durante a segunda guerra mundial. Fanon destaca um trecho do livro, sobre o qual constrói sua crítica, onde Capécia afirma que gostaria de se casar, “mas com um branco”. Ela comenta que, contudo, sabia que “uma mulher de cor” não se faria jamais “respeitável aos olhos de um branco”, “mesmo que ele a amasse”2. Fanon usa o texto de Capécia para argumentar sobre o problema do sentimento de inferioridade, o qual deveria ser expurgado, presente na psique dos afrodescendentes das sociedades de passado colonial e escravocrata, como a Martinica. Contudo, ainda que em sua obra critique de forma excepcional algumas heranças culturais, sociais e econômicas da escravidão e da colonização, no capítulo mencionado anteriormente, Fanon acaba ressaltando um esteriótipo construído sobretudo durante o período escravista, e

1 A abordagem de Fanon sobre o romance de Mayotte Capécia é fonte de acirradas polêmicas e debates. James Arnold afirma que Fanon foi vítima de um engôdo, pois acreditou numa trapaça editorial e explica o que significava este romance com este teor naquele momento em que as colônias francesas se tornavam departamentos, e que o debate sobre “negritude” liderado por Aimé Cesaire ecoava na França hexagonal. Porém Myriam Cottias e Madeleine Dobie reeditaram dois romances de Capécia, e argumentam que, ainda que ela tenha sido influenciada pelos editores de suas obras, os textos seriam de sua autoria. Veja ARNOLD, A. James, “Frantz Fanon, Lafcadio Hearn et la supercherie de “Mayotte Capécia””, Revue de littérature comparée, 2002/2 (n. 302), pp. 148-166; COTTIAS, Myriam & DOBIE, Madeleine. Relire Mayotte Capécia: une femme des Antilles dans l’espace colonial français (1916-1955). Paris: Armand Colin, 2012. 2 “J’aurais voulu me marier, mais avec un blanc. Seulement une femme de couleur n’est jamais tout à fait respectable aux yeux d’un blanc. Même s’il l’aime. Je le savais”. Trecho do livro Je suis martiniquais, de Mayotte Capécia, citado em FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Paris: Éditions du Seuil, 1952, p. 34. 422 alimentado no pós abolição, ao condenar as atitudes e sentimentos das mulheres afrodescendentes antilhanas em relação aos homens brancos. O problema dessas relações íntimas não se centra em sua ocorrência, mas, principalmente, sobre a maneira como foram observadas e descritas ao longo da história do Caribe Francês, e sobre quem as teria narrado, ignorando, por uma lado, as condições de violência e submissão vivenciadas pelas mulheres, e, por outro, distorcendo sua agência e suas estratégias de sobrevivência e autonomia. No caso de Mayotte Capécia, ela é a narradora de sua própria história. Contudo, durante o período escravista nas Antilhas Francesas, os relatos sobre as relacionamentos sentimentais e sexuais entre mulheres afrodescendentes e homens de origem europeia foram quase sempre registrados e julgados por indivíduos do sexo masculino e brancos. Os discursos construídos por estes sujeitos, presentes em narrativas de viagens, na literatura e em documentos oficiais, marcaram o imaginário sobre as mulheres negras e mulatas, escravas ou libertas, descritas como insolentes e lascivas, que seduziam os homens brancos de forma interesseira. Nestes registros, desde o final do século XVII, afirmava-se que as mulheres negras escravizadas preferiam a concubinagem com os homens brancos que com os escravos, na esperança de se tornarem libertas e terem crianças livres e “mestiças”. Essa pode ter sido, de fato, uma das estratégias utilizadas pelas escravas africanas e afrodescendentes para conseguir se livrar do cativeiro. No entanto, ressaltamos desde o início dessa tese que em todo o Caribe Francês, ao tratar da questão da alforria, várias fontes produzidas entre os séculos XVIII e XIX exprimiram a noção segunda a qual a maioria das liberdades concedidas nas colônias foram acordadas às escravas que eram as “concubinas favoritas dos brancos” e aos filhos dessas relações. Por conta disso, ao abordar a história da conquista da alforria na Martinica no século XIX, o principal objetivo deste trabalho de pesquisa foi observar as experiências e peculiaridades vivenciadas principalmente pelas mulheres afrodescendentes nesse processo, assim como por seus familiares. A partir da análise acerca, sobretudo, dos lugares das mulheres escravas no mundo do trabalho no Caribe Francês, procuramos demonstrar seu papel na economia informal dos escravos, no eito da lavoura e de suas famílias. Dessa forma, observamos possíveis vias pelas quais elas poderiam construir espaços de autonomia, de mobilidade social e econômica, em meio à exploração e violência do sistema escravista. Nesse sentido, intentamos evidenciar a fragilidade do argumento o qual afirma que o acesso à alforria para as mulheres escravizadas ocorreu predominantemente por meio de suas relações 423 afetivas e desiguais com os senhores homens brancos, como se esse fosse o principal meio pelo qual as mulheres negras pudessem construir seus caminhos para a liberdade. Durante o governo da Monarquia de Julho na França foi muito marcante o entrelaçamento entre questões acerca da alforria, do direito e da política colonial. Destacaram- se as transformações que ocorreram, em relação a períodos anteriores da história do Caribe Francês, sobre, principalmente, os direitos dos afrodescendentes livres e as restrições à alforria dos escravos. Naquele período, a conquista de um título de liberdade regular se tornou muito significativa devido às mudanças ocorridas nas leis e na política metropolitana em relação às possessões francesas de além mar, e, ainda, às transformações encenadas nas próprias colônias. Ao longo desse período, durante a crise final do escravismo francês, a alforria assumiu novos significados e cada vez mais se tornou uma força política de oposição à escravidão. O Estado, suas medidas legislativas e seus agentes tiveram um peso efetivo na maneira como as colônias francesas vivenciaram suas últimas décadas de regime escravista, já que foi através deles, em última instância, que se concedeu, reconheceu ou legitimou uma nova condição civil aos indivíduos, fossem eles despidos de quaisquer direitos formais, como eram os escravos e escravas, ou tivessem acesso limitado a eles, como era o caso das pessoas libertas e livres de cor. Nesse sentido, é interessante observar as maneiras que o Estado articulou e disponibilizou meios pelos quais os trabalhadores escravizados e libertos lutaram por objetivos próprios por dentro mesmo dos mecanismos que procuravam garantir a continuidade da hegemonia da classe senhorial nas possessões francesas. No Caribe Francês, as ambiguidades na formulação das leis revelaram o próprio Estado, em sua relação com as colônias, como vazado por contradições que permitiram a atuação de mulheres e homens escravizados na luta pela conquista da liberdade e por direitos3. Nessa conjuntura, foi marcante também, e sobretudo, a atuação de afrodescendentes livres, tanto na França metropolitana como nas Antilhas Francesas. Seus representantes que viviam seu exílio na metrópole, como Cyrille Bissette, Louis Fabien e Mondésir Richard, comunicando-se constantemente com camaradas livres de cor e libertos da Martinica e de Guadalupe, por meio dos quais ainda recebiam informações sobre as situações ilegais e de violência vivenciadas pelos escravos e escravas nas colônias, agiram

3 Essas conclusões sobre estado e escravidão se baseiam no próprio exame feito nas fontes documentais para esta pesquisa, mas também foram influenciadas pelas análises observadas no trabalho de Keila Grinberg sobre alforria e direito. Veja GRINBERG, Keila, “Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 27, 2001, pp. 63-83. 424 incessantemente e como podiam para fazer reverberar suas questões e reivindicações relativas ao sistema colonial e à escravidão. Além disso, e talvez mais importante, tanto os indivíduos livres de cor como os escravizados fizeram os senhores da elite colonial sentirem sua pressão nas próprias colônias, provavelmente até mais que as tensões que estes últimos experimentaram por conta das mudanças legislativas implementadas pelo estado francês. Podemos afirmar que, historicamente, as ações dos livres de cor durante a Monarquia de Julho, tanto nas colônias como na metrópole, colocou-os na vanguarda do combate antiescravista, pois mesmos os abolicionistas na França continental apresentaram propostas mais modestas e realizaram ações menos conectadas com os afrodescendentes, livres e escravos, das possessões ultramarinas. Por outro lado, é essencial ressaltar a importância das mulheres escravas e libertas como “pilar do meio” (poto mitan) nesses processos históricos, mesmo que não mantivessem sozinhas seus lares e seus filhos, que batalhassem por suas alforrias e de suas famílias com a apoio de parentes, amigos, companheiros e outros intermediários. Contrariamente ao protagonismo das mulheres nas suas lutas legais por liberdade, como observado no quinto capítulo desta tese, em suas redes de relações com pessoas livres, nos momentos que era necessário certificar ou declarar algo que requeria um certo reconhecimento sobre a pessoa que auxiliava a mulher escrava ou liberta frente às instituições administrativas coloniais, a presença dos homens foi constante e marcante. Geralmente, depois da liberdade, entre as pessoas livres de cor e libertas, as disputas políticas parecem ter sido mais acessíveis aos indivíduos do sexo masculino. Bissette e Fabien são exemplos de como os homens de cor se destacaram nas lutas por direitos neste período, enquanto as mulheres livres de cor são invisibilizadas. As fontes mais facilmente acessíveis — documentação produzida pelos governos colonial e metropolitano, textos de abolicionistas e de colonos escravistas, ou relatos de viajantes e do clero das colônias — para tentarmos compreender a história das colônias francesas no Caribe, frequentemente ou silenciaram ou construíram esteriótipos grosseiros sobre a atuação das mulheres afrodescendentes escravizadas e libertas, difíceis de serem ultrapassados se uma pesquisa mais aprofundada não é feita em outros tipos de documentos. Além disso, provou-se crucial neste estudo um olhar sensível e atento a uma perspectiva que procurasse considerar questões em torno de gênero, raça e classe, nas análises histórico- sociais daqueles processos de confronto e rupturas, que provocaram reações, negociações e estratégias de aliança. 425

Os processos em torno da questão da alforria, bem como as legislações que regularam as formas de libertação dos indivíduos escravizados, não apenas revelam as atitudes da classe senhorial em relação aos cativos, mas também fornecem evidências acerca da agência escrava. Os amplos padrões de manumissão e a importância das estratégias dos escravos e escravas na busca da conquista da liberdade são questões essenciais para se compreender a história do escravismo no Mundo Atlântico e precisam ser entendidos à luz dos processos e contextos de cada sociedade colonial e escravista. No entanto, se destacarmos os indícios que revelam o papel primordial das mulheres africanas e afrodescendentes na manutenção das famílias, na transmissão oral das crenças e valores, nas culturas escravas em toda a América e no Caribe, é possível mesmo argumentar que elas foram “os primeiros agentes da emancipação das comunidades afrodescendentes na diáspora”4. Parte essencial desta pesquisa se centrou em um exame de dados demográficos específicos acerca das alforrias outorgadas pelo governo da Martinica nas últimas décadas de escravidão nas colônias francesas. Arriscamos dizer que essa análise quantitativa e qualitativa foi a parte mais importante deste trabalho historiográfico. Contudo, procurou-se privilegiar, ainda, uma metodologia centrada na observação de micro-histórias de indivíduos ou de grupos familiares que auferiram suas alforrias oficiais ao longo da Monarquia de Julho. A partir disso, notamos alguns elementos importantes e reveladores sobre os processos de conquista e concessão da liberdade nas Antilhas Francesas durante aquele período. Entre 1833 e 1847, foram outorgadas mais de vinte mil alforrias na Martinica, número extremamente atípico se comparado com outras épocas da história do Caribe Francês. Desse quadro geral, as mulheres escravas foram os sujeitos que mais tiveram acesso à alforria naquela ilha, configurando quase 41% do total de liberdades oficializadas no período, seguidas pelas crianças, as quais representaram em torno de 35%, e, por fim, os homens, por volta de 24%. Primeiramente, é importante destacar que na Martinica, em 1835, por exemplo, em uma população escrava de mais de 78 mil indivíduos, as crianças até 14 anos formavam quase 30% desse conjunto populacional, as mulheres acima da 15 anos, em torno de 37%, e o homens, nessa mesma faixa etária, configuravam por volta de 33% dos indivíduos escravizados. Dessa forma, considerando que estas proporções se mantiveram mais ou menos as mesmas durante a Monarquia de Julho, havia uma quantidade maior de escravas adultas em

4 SOARES, Carlos Eugênio Líbano & GOMES, Flávio, “Negras minas no Rio de Janeiro: nação e trabalho urbano no século XIX, in SOARES, Mariza de Carvalho (org), Rotas Atlânticas da Diáspora Africana: da Baía do Benin ao Rio de Janeiro. Niteroi: EdUFF, 2007, p. 192. 426 toda a colônia, fenômeno que, provavelmente, também interferiu de alguma forma nos números das alforrias oficiais. Segundo, analisando não apenas os dados numéricos, mas também vários casos individuais e coletivos, o fato das escravas adultas serem mais frequentemente alforriadas expressou, sobretudo, a importância da atuação das mulheres como mães, na organização dos lares e como arrimos de família, e mesmo as consequências de seu papel no mundo do trabalho escravo, tanto rural como urbano. As análises sobre as manumissões ilegais, principalmente as liberdades de savana, demonstraram o quanto as mulheres foram protagonistas na conquista de mais espaços de autonomia e de condições que favoreciam o aumento do pecúlio dos grupos familiares, apesar das situações de precariedade e da exploração escravista de seus corpos. Além disso, observou-se que as próprias famílias escravas, e mesmo redes de amigos libertos, provavelmente, ponderaram sobre a importância de resgatar do cativeiro as mães dos futuros filhos, irmãos, netos, sobrinhos e afilhados. No caso das mulheres livres de fato ou patrocinadas, conseguir sua liberdade outorgada pelo governo colonial significava a oportunidade de comprovar e garantir que seus filhos, nascidos depois de sua condição de liberta irregular, mesmo já maiores de idade, também pudessem conquistar suas alforrias regulares. Ademais, a alforria de crianças menores de 14 anos também foi bastante significativa. Aparentemente, houve também um esforço das famílias escravas e libertas de salvarem os indivíduos mais jovens do fardo e da mácula da escravidão, provavelmente motivados, ainda, pela conjuntura política e legislativa, na qual os meios de acesso à alforria foram flexibilizados, além de apontar no sentido da conquista de direitos para cidadãos livres e libertos das colônias, independente da cor da pele. Visando uma análise mais qualitativa dos dados, nesta pesquisa foi examinado um conjunto mais restrito das alforrias, em torno de 1200, concedidas nas décadas de 1830 e 1840. Nesta amostragem, as crianças até 14 anos representaram 42% dos indivíduos libertos, as mulheres acima de 15 anos, 37%, e os homens nesta mesma faixa etária, 21%. Essas porcentagens da amostra são distintas daquelas obtidas sobre a totalidade de liberdades outorgadas pelo governo martinicano entre 1833 e 1847, mas, ainda assim, são bastante próximas. Contudo, devemos destacar que as alforrias de crianças se sobressaíram na amostragem recortada, provavelmente, por conta tanto das “alforrias da década de 1840” como por aquelas de “resgate forçado”. No primeiro conjunto, examinamos uma grande quantidade de “alforrias de direito”, e entre estas, a maioria foi solicitada por mães e pais 427 libertos que tinham seus filhos registrados como escravos em seus inventários. A ordenação de junho de 1839 definiu como um direito a alforria de cativos que tinham relações de parentesco com seus senhores, e determinou que estes deveriam oficializar a liberdade de seus parentes. A partir da promulgação da Lei Mackau em 1845, o “resgate forçado” ampliou a noção acerca da alforria como um direito, embora estivesse longe de uma emancipação geral. Doravante, os indivíduos escravizados ou seus parentes libertos poderiam solicitar as alforrias diretamente à administração colonial, caso não conseguissem negociá-las amigavelmente com os proprietários, e se tivessem o pecúlio necessário para pagar pela libertação da propriedade escrava. Entre as alforrias por resgate forçado concedidas na Martinica, foi expressiva a presença de famílias formadas especialmente por mães escravas com seus filhos, sobretudo por conta das situações litigiosas, de escravização ilegal, que conferiam a eles o direito à liberdade. Por essas razões, a quantidade de crianças libertas foi maior que a de mulheres adultas no conjunto de alforrias analisadas. É importante enfatizar, ainda, que mesmo na amostragem geral o número de indivíduos que conquistaram a liberdade com parentes (54%) foi maior que daqueles que foram alforriados individualmente (46%). Entre aquelas alforrias coletivas, as famílias formadas por mães com seus filhos foi uma maioria esmagadora em todos os períodos selecionados entre as décadas de 1830 e 1840. Para se ter uma ideia, entre as alforrias por resgate forçado (1846 – 1847), 74% dos indivíduos libertos desse modo foram alforriados com membros de suas famílias, e 87% destes grupos familiares eram formados por mães escravas com seus rebentos. Outros resultados obtidos sobre a amostragem se revelaram bastante interessantes no que concerne ao campo de estudos sobre a alforria. Diferentemente de alguns padrões observados em outras sociedades escravistas nas Américas e no Caribe, entre as décadas de 1830 e 1840 na Martinica, escravos e escravas mais jovens conseguiram mais acesso à liberdade que aqueles mais velhos. No conjunto de alforrias analisadas, 68% dos indivíduos libertos se encontravam na faixa etária entre zero e trinta anos. Outro dado que deve ser ressaltado, ainda que seja um tema controverso, mas impossível de ser ignorado, estando tão presente e frequentemente enunciado nas fontes e na bibliografia, refere-se às designações de cor da pele dos escravos libertos. Na amostra, entre aqueles indivíduos cuja a classificação da cor da epiderme foi mencionada, em torno de 54% tinham a pele mais escura (negros, câpres e grifs) e 46% tinham a pele mais clara (mulatos, mestiços e quarteirões). Entre estes últimos, a grande maioria foi declarada como “mulato(a)”. Esse quadro também destoa daquilo que 428 geralmente os historiadores observam sobre a conquista da alforria em outros espaços de escravidão colonial no Mundo Atlântico. Frequentemente, afirma-se que os escravos afrodescendentes com a pele mais clara, sobretudo “mulatos”, tinham mais chances de obter a liberdade. Os escravos das cidades e vilas tiveram proporcionalmente mais oportunidades de conquistar a alforria na Martinica que aqueles que habitavam no campo, ainda que estes tenham se destacado. A interpenetração entre o mundo rural e o urbano era um fenômeno comum naquela colônia francesa no século XIX, em parte, devido ao fato da ilha ter uma área pequena, com poucas cidades e vilarejos, e muitas habitations em suas redondezas, com uma grande quantidade de pessoas escravizadas vivendo nas “savanas”. Em 1839, em torno de 13% da população escrava morava nas áreas urbanas, e 87% no campo. Talvez isso explique, em parte, a significativa quantidade de alforrias auferidas por escravos e escravas que trabalhavam em profissões rurais, sobretudo na década de 1840. Em geral, acerca de outras sociedades escravistas e coloniais, a historiografia observa que os escravos urbanos, principalmente aqueles que trabalhavam “no ganho”, tinham mais possibilidades de juntar um pecúlio e comprar sua liberdade. Contudo, na Martinica, aparentemente, o costume das roças de escravos e do “samedi” (“sábado negro”), reservados aos cativos para o plantio de víveres , conferiu aos trabalhadores do campo vias de maior independência e produção de uma economia interna, que contribuiu com a poupança de famílias escravas do mundo rural. Os valores dos pecúlios dos grupos familiares que viviam nas fazendas se destacaram, por exemplo, nas alforrias por resgate forçado. Ademais, as leis sobre a concessão de alforria, promulgadas durante a Monarquia de Julho, ofereceram maiores oportunidades de obtenção da liberdade, e isso provavelmente abriu caminhos para a ação dos trabalhadores rurais. O acesso à alforria já não dependia apenas do domínio senhorial, a noção da alforria como um direito foi se ampliando sobretudo ao longo da década de 1840, e, dessa forma, ampliaram-se os meios de negociação entre escravos e senhores, inclusive mediados pelo estado. Além disso, o fato de muitos proprietários livres de cor, que possuíam pequenos sítios de gêneros alimentícios nas fronteiras urbanas, alforriarem seus escravos, vários parentes entre esses, provavelmente também afetou o número de cativos que exerciam trabalhos agrícolas entre a população alforriada entre 1833 e 1847, mas principalmente depois de 1840. Naqueles processos de conquista e concessão da alforria, os dados indicam que havia muito mais pessoas da classe dos “livres de cor” que demandaram a liberdade oficial a 429 escravos e patrocinados na Martinica do que senhores brancos. Nesse sentido, se levarmos em conta aquele axioma sobre a frequência de relações conjugais entre escravas e seus senhores, houve mais mulheres escravizadas que se relacionaram com homens livres de cor, pequenos proprietários. Contudo, as mulheres libertas também tiveram um papel fundamental na alforria dos escravos ao longo da Monarquia de Julho, ou como patronas que solicitavam a liberdade oficial para seus patrocinados, ou como senhoras de escravos. Além disso, tanto as mulheres como os homens libertos se revelaram bastante atuantes nos processos de alforria de seus familiares que permaneciam na escravidão, auxiliando-os a juntar um pecúlio ou intermediar a solicitação de outorga da liberdade junto ao governo colonial. Ainda que seja sobre uma realidade bastante diferente das colônias francesas, as análises de Robert Slenes sobre a alforria no Brasil têm destacado a importância de se observar quem eram os senhores que alforriavam seus escravos, como uma forma de compreendermos o significado da alforria nos sistemas escravistas das Américas e do Caribe. Em artigo recente5, Slenes procurou demonstrar como e porquê pequenos proprietários (que possuíam entre um e dez escravos) alforriavam mais seus cativos que aqueles senhores que tinham grandes escravarias. Além disso, Slenes destaca que uma significativa porcentagem daqueles pequenos proprietários no Brasil, que haviam passado da condição de “camponeses” para aquela de possuidores de reduzidas porções de terras e de alguns escravos, eram pessoas libertas ou livres de cor. Slenes afirma que estes senhores “precários” provavelmente tinham relações mais próximas e íntimas com seus escravos e poucos recursos para prover as necessidades destes, assim, eram mais frequentemente impelidos a negociar a manumissão de seus cativos. Slenes afirma, ainda, que era comum que senhores de poucas posses nas áreas urbanas mantivessem escravos ao ganho (que alugavam seus serviços, nas colônias francesas, journalières), prática que dava aos escravos mais espaços de autonomia e maiores oportunidades de formar um pecúlio e comprar sua alforria6. Na Martinica, as pessoas livres de cor em geral, quando eram senhores de escravos, possuíam um número reduzido de escravizados, fosse na área rural ou urbana7. Observando os dados analisados, pudemos constatar que provavelmente situações

5 SLENES, Robert Wayne Andrew, “Peasants into Precarious Masters: Hard Bargaining and Frequent Manumission in Brazilian Small Slave Holdings, c. 1750-1850”, in BHATTACHARYA, Sabyasachi ; BEHAL Rana P. (orgs.). The Vernacularization of Labour Politics. New Delhi, India: Tulika Books, 2016, p. 146-177. 6 SLENES, op cit (2016). 7 LOUIS, op cit, 2015, pp. 455-472. 430 semelhantes àquelas descritas por Slenes em relação ao Brasil ocorressem nas colônias francesas. Contudo, podemos inferir, ainda, que uma outra prática ocorria no caso dos libertos irregulares da Martinica. É possível que conseguindo uma manumissão inicial de um senhor branco, proprietário de escravarias maiores, a partir do momento que se tornavam livres de savana e que necessitavam da proteção de uma pessoa livre, a maioria procurava se aliar a pessoas livres de cor como seus patronos. Alguns desses devido a relações de parentesco. Após as mudanças legislativas entre as décadas de 1830 e 1840, as análises observadas na segunda parte da tese demonstraram que as famílias escravas e libertas utilizaram como puderam os recursos jurídicos disponíveis para unirem seus membros na liberdade, a despeito da vontade dos senhores e da tutela do estado. Contudo, foi interessante observar que entre as alforrias por resgate forçado, processo no qual os indivíduos e famílias escravas procuravam a mediação do estado para forçar seus senhores a lhes conceder a liberdade, a maioria dos proprietários envolvidos eram da “classe dos brancos”. Esse dado destoou das alforrias das décadas de 1830 e 1840, sobretudo aquelas regulamentadas pelas ordenações de 1832 e de 1839, nas quais grande parte dos senhores que alforriaram seus escravos pertenciam à “classe dos livres de cor”. Esses fenômenos provocaram, ao final dessa pesquisa, questionamentos em torno da intersecção entre classe social e origem étnica. A insistência da elite senhorial, com o apoio da administração da colônia, em produzir e procurar manter distinções sociais e legais baseadas na cor da pele, entre brancos e afrodescendentes, demonstrou uma densa questão racial no Caribe Francês. Somando a este processo as ideias acerca da “mácula servil” e as fortes restrições à alforria ao longo do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX, todos este fatos apontam para o problema da racialização das relações sociais e econômicas, fenômeno que certamente interferiu na construção de identidades e de consciência de classe na Martinica nos Oitocentos.

A despeito da lei de 1833, que estabeleceu igualdade civil e política para a população livre, independente da cor da pele, ainda ocorreram várias situações na colônia que revelaram a persistência de discriminações sofridas pelos livres de cor, por conta da hegemonia política e econômica da classe dos brancos. Observamos indícios de que alguns senhores de origem europeia, da elite colonial, eram tratados com uma distinção que os diferenciava dos outros senhores de escravos, principalmente dos proprietários afrodescendentes. Nesse sentido, certamente as pessoas escravizadas também observavam estas diferenças, que 431 interseccionavam classe social e origem étnica. A questão da origem — a África, mas também a escravidão na colônia — e a cor da pele poderiam aproximar, de alguma forma, indivíduos escravizados e livres de cor, a despeito da condição civil. Os próprios colonos brancos destacaram em seus textos, principalmente a partir da década de 1830, essa “proximidade” entre os indivíduos afrodescendentes, fossem eles escravos ou libertos. Isso nos leva a questionar se seria possível a construção de uma identidade de classe, influenciada pelas questões raciais produzidas pelo escravismo. As configurações de antipatias, alianças e identidades sociais dentro e fora das senzalas, formadas a partir de culturas e experiências comuns, radicalmente opostas àquelas dos senhores brancos, e percebidas muitas vezes como severamente opressivas, podem ter levado à construção de uma identidade baseada em classe. Destacando-se certas características culturais compartilhadas de origem africana, e mesmo elementos culturais domesticados de procedência europeia, a própria linguagem creole usada por escravos e libertos, podemos observar um processo que, provavelmente, combinou classe social e origem étnica.

Com as profundas transformações que ocorreram no mundo ocidental a partir do final do século XVIII e durante o XIX, novas formas de organização da sociedade, da política, do trabalho e da economia desafiaram as bases intelectuais, morais e econômicas da escravidão. De acordo com Henrique Espada, para os sujeitos escravizados na América e no Caribe, tais transformações os compeliram a dar um novo sentido a suas expectativas e lutas. Sobretudo a ideia de “liberdade” adquiriu um significado novo, passando a carregar a promessa de acesso a direitos universais, “entre eles o direito ao trabalho, mas também à propriedade, à remuneração digna, ao sustento próprio”. Dessa forma, os “libertos, a seu modo, tentavam construir ativamente vínculos sociais e garantias suficientes para lidar com a incerteza e a precariedade, reorganizando laços de dependência e interdependência que permitissem sua filiação a uma ordem social minimamente viável — isto é, que organizasse de algum modo suas expectativas e conferisse alguma segurança com relação ao futuro”8.

A despeito da mentalidade e do poder da elite colonial francesa e das repetidas ações do governo no sentido de restringir o acesso à alforria, vários indivíduos resistiram em uma luta cotidiana por uma condição mais estável e por direitos de cidadãos livres, traçando estratégias sobre as quais foi possível visualizar alguns indícios e avançar em algumas hipóteses sobre suas experiências. Apesar da liberdade precária dos patrocinados e livres de savana no Caribe

8 ESPADA, op cit (2005), pp. 310-312. 432

Francês, eles conseguiram forçar o reconhecimento legal de sua condição e, assim, conquistar suas alforrias oficiais entre as décadas de 1830 e 1840. Podemos inferir que estas conquistas foram resultado tanto do ato pessoal daqueles que solicitaram suas cartas de alforria, assim como de uma ação coletiva, não exatamente organizada, mas apoiada em redes de solidariedades, de relações de parentesco e, talvez até mesmo, de identidades políticas e sociais em torno da luta contra a escravidão. O processo que levou à abolição do cativeiro não teria ocorrido apenas, nem principalmente, devido à escalada abolicionista durante a Monarquia de Julho. Arriscamos dizer que se os escravos e libertos nas colônias não tivessem dado concretude por meio de suas ações às críticas e medidas antiescravistas, o sistema seguiria quase que intacto ainda por muito tempo. A conjuntura política geral, a repressão ao tráfico, a abolição da escravidão nas colônias inglesas, os desdobramentos da independência do Haiti e o rearranjo da economia global certamente são fatores que impactaram fortemente o processo de abolição da escravidão nas colônias francesas. No entanto, ainda foi pouco demonstrado as ações ao rés- do-chão, e como estas, por vezes observadas como pouco significativas, tiveram consequências importantes na desestruturação do sistema escravista francês. Naqueles últimos anos de escravidão, nas possessões francesas e na metrópole, houve tensões nos tribunais e no parlamento entre o que era admitido nas colônias, por influência da elite dos senhores de escravos, e as mudanças que começavam a ser forçadas no campo da lei e nos debates políticos. A atuação de deputados, militantes e advogados abolicionistas foi essencial, mas se observamos juntamente à agência dos afrodescendentes livres, na metrópole e nas Antilhas Francesas, e também dos escravos e escravas nas colônias. Isso não significa que os africanos e afrodescendentes dos espaços coloniais franceses simplesmente venceram a luta contra a exploração, o preconceito e o racismo. No entanto, isso não descarta a importância de buscarmos compreender sua agência, aparentemente invisível nas ações globais nas análises sobre os processos de emancipação e abolição da escravidão. Dessa forma, as alforrias conquistadas pelos africanos e afrodescendentes escravizados nas Antilhas Francesas nos anos precedentes à abolição, fosse em consequência das novas legislações ou das ações de liberdade que começaram a chegar aos tribunais coloniais e metropolitanos, tiveram uma importância fundamental na história da luta por liberdade no Caribe Francês. 433

REFERÊNCIAS

FONTES

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