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O patrimônio histórico-cultural e o turismo na Cidade Heróica de Cachoeira-BA: potencialidade x realidade Historical-cultural patrimony and tourism in the Heroic City of Cachoeira-BA: potentiality x reality El patrimonio histórico cultural y el turismo en la Ciudad Heroica de Cachoeira-BA: potencialidad x realidad Armando Alexandre Castro*

Recebido em 15/04/2005; revisado e aprovado em 20/05/2005; aceito em 18/08/2005.

Resumo: A relevância da indústria turística no mundo contemporâneo é inquestionável. Desde o encontro e (con)vivência de pessoas e culturas díspares, passando pela produção do (re)conhecimento, até às questões econômicas e de sustentabilidade, apresentam a atividade turística como uma das mais significativas plataformas estratégicas de arrecadação de divisas, geração de emprego e outros bens sociais. Os números crescentes, apesar dos incidentes internacionais, reforçam a necessidade do poder público - de qualquer lugar do planeta com potencialidade para esta atividade - alinhavar suas diretrizes neste assunto com seriedade e real interesse em suas benesses. No Brasil, a potencialidade para o turismo de alguns municípios que se encontram com suas economias combalidas, parece esbarrar na burocracia, no desconhecimento e na falta de interesse em mudar a realidade. Palavras-chave: Patrimônio histórico-cultural; turismo cultural; Cachoeira (BA). Abstract: The relevance of the tourist industry in the contemporary world is unquestioned. Whether it is the convergence of people and cultures, or issues of economic sustainability, it is demonstrated as one of the most significant strategical platforms in delivering economic dividends, employment and social benefits. The increasing numbers, despite international incidents, strengthen the necessity of the public sector- at any place on the planet with potential for this activity- to tack its line of directions in this matter with seriousness and real interest. In , the potential for tourism in some municipalities with battered economies, seems to drown in bureaucracy and lack of knowledge and interest in changing the current reality. Key words: Historic cultural landmark; cultural tourism; Cachoeira (BA). Resumen: La relevancia de la industria turística en el mundo contemporáneo es incuestionable. Desde el encuentro y (con)vivencia de personas y culturas dispares, pasando por la producción del (re)conocimiento, hasta las cuestiones económicas y de sustentación, presentan la actividad turística como una de las más significativas plataformas estratégicas de recaudación de divisas, creación de empleo y otros bienes sociales. Los números crecientes, a pesar de los incidentes internacionales, refuerzan la necesidad del poder público - de cualquier lugar del planeta con potencialidad para esta actividad - hilvanar sus directrices en este asunto con seriedad y real interés en sus ganancias. En Brasil, la potencialidad para el turismo de algunos municipios que se encuentran con sus economías debilitadas, parece toparse con la burocracia, en el desconocimiento y en la falta de interés en cambiar la realidad. Palabras clave: Patrimonio histórico cultural; turismo cultural; Cachoeira (BA).

1 Introdução realidade, utilizando-se como referência a cidade heróica e histórica de Cachoeira, No Brasil, os dados e as estatísticas , pelo viés do turismo cultural. Para demonstram que a indústria turística não tanto, dentre as várias potencialidades que pára de crescer. O turismo interno/domés- a localidade oferece, foram selecionadas ape- tico vem apresentando retas cada vez mais nas duas: o patrimônio histórico e o cultural. ascendentes, principalmente a partir da des- A intenção é a de explicitar a riqueza valorização do real – 1998 –, e dos ataques histórico-cultural e a decadência por qual do 11 de setembro. Entretanto, há a necessi- passa a cidade de Cachoeira, além de pro- dade de uma maior profissionalização do por uma reflexão e curiosidade acerca de setor, assim como dos administradores pú- como os administradores públicos munici- blicos perante esta dinâmica e sua demanda. pais vêm tratando o turismo no Brasil. Vale O turismo, principalmente em países com ressaltar que não há, aqui, generalizações, excelentes recursos naturais/culturais – ne- pois se trata de apenas um município. cessários para a atividade turística – e tristes Neste estudo, o levantamento de da- indicadores sócio-econômicos, não pode ser dos e informações foi realizado a partir da tratado com amadorismo e falácia política. análise de fontes primárias e secundárias O presente texto apresenta um peque- obtidas no período de janeiro (2004) a maio no estudo de potencialidade turística versus (2005), para a Dissertação de Mestrado em

* Professor da Universidade Católica de Salvador e Mestrando em Cultura e Turismo – UESC/UFBA. Avenida Carlos Gomes, 400 – Centro - Salvador-Bahia. CEP: 40060-410 ([email protected]).

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Cultura e Turismo. Dentre eles, destaque intermédio da tristeza e lamentação, mas para o IBGE, Bahiatursa - órgão responsá- como também potencialidade capaz de pro- vel pela atividade turística do Estado da Bahia duzir novas e bem vindas realidades. –, SEI/Ba – Superintendência de Estudos Econômicos do Estado da Bahia –, e Secre- 2 O locus taria de Cultura e Turismo do município de Cachoeira. A cidade de Cachoeira, de incompa- A atividade turística vem exigindo, há rável beleza arquitetônica e importância muito tempo, a utilização do conhecimento historiográfica para o país, está situada há já produzido e sistematizado, daí a perfeita 110 Km de Salvador. Atualmente com espa- simbiose que pode ser produzida entre po- ço físico bem reduzido – área de 403 km2 –, der público e as universidades/faculdades. e com uma população que pouco ultrapassa O marketing e o planejamento turístico são trinta mil habitantes (IBGE, 2000) é um dos necessários para a formatação do produto menores municípios do Estado. como afirma Doris Ruschmann (1997, p. 10) Localizada numa região comumente O planejamento é fundamental e indispensável chamada de Recôncavo – que significa fun- para o desenvolvimento turístico equilibrado do de baía, neste caso, a baía de todos os e em harmonia com os recursos físicos, culturais e sociais das regiões receptoras, evitando, Santos –, foi denominada, inicialmente, de assim, que o turismo destrua as bases que o Vila de Cachoeira. Passou à Freguesia de fazem existir. Nossa Senhora do Rosário do Porto da Ca- Para fins metodológicos, concei- choeira em 1674, uma vez que o número de tuais e exposição de sua importância, utili- seus moradores avançava. Em 1693, através za-se aqui a definição de turismo cultural de da Carta Régia de 27 de dezembro, passou Sônia Lucas, na qual a ser chamada de Vila de Nossa Senhora do Seja chamado turismo cultural, turismo de Rosário do Porto da Cachoeira. A emancipa- patrimônio ou turismo de patrimônio cultural, ção política só ocorreu através da Lei Provin- o fenômeno de viajantes em busca de encontros cial nº 43 de 13 de março de 1837, dada a excitantes e educativos com as pessoas, as tradições, a história e a arte dos povos é uma sua relevância econômica e política à época. tendência emergente na indústria do turismo. A margeabilidade com o rio É uma maneira de atrair mais visitantes de Paraguaçu – o maior da Bahia, e que per- outras nações, assim com satisfazer à crescente passa as regiões da Caatinga, Chapada demanda do turismo doméstico [...] Mais do que isso, exemplos de todo mundo demons- Diamantina e o próprio Recôncavo –, adqui- tram que um sistema de turismo cultural no re relevância fundamental no desenvolvi- qual as próprias comunidades investem na mento econômico da cidade, uma vez que preservação, no desenvolvimento e na suas barcaças, saveiros e vapores, nos sécu- promoção de seus principais sítios históricos e los XVIII e XIX, perfaziam constantes idas e tradições culturais, pode constituir-se em parte de uma estratégia mais ampla de desenvol- vindas ao porto de Salvador, que, à época, vimento sustentável (2004, p. 3). era o mais importante do Brasil – sendo o A estruturação deste trabalho está divi- porto de Cachoeira o segundo maior do Es- dida de forma que o leitor, no primeiro mo- tado. Some-se, ainda, outros fatores con- mento, conheça a cidade, sua localização, cli- tributivos à progressão sócio-econômica de ma, entre outras. No segundo, evidencia-se o Cachoeira como o clima e o solo propícios patrimônio histórico (potencialidade I), a im- para a plantação de açúcar, viabilizando, portância da cidade junto às lutas pela Inde- assim, a construção de inúmeros engenhos. pendência da Bahia e Brasil. Logo após, apre- A proximidade com o Sertão baiano, senta-se parte do patrimônio cultural o porto atuante, a alta produtividade (potencialidade II), deixando, por demais açucareira, sua localização estratégica ante abastecido em sedução, a instigação, o outras regiões, logo transformariam a cida- determinismo de viagem e a curiosidade de de de Cachoeira em relevante zona de esco- quem lá conseguir fincar sua leitura. Por últi- amento de mercadorias. Destaque para o mo, após apresentar as duas potencialidades fumo, a mandioca, o algodão, o café, o gado escolhidas para o momento, desnudam-se as e o principal produto do Brasil colonial pro- estatísticas da cidade de Cachoeira - não pelo duzido na região: o açúcar. A importância

INTERAÇÕES Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 7, N. 11, Set. 2005. O patrimônio histórico-cultural e o turismo na Cidade Heróica de Cachoeira (BA): 115 potencialidade x realidade econômica de Cachoeira atraiu a visita dos 3 A cidade heróica (Patrimônio histórico) – imperadores D. Pedro I e D. Pedro II. Potencialidade I Por quase um século - segunda meta- de do século XVIII até meado do século se- A Independência do Brasil com a fa- guinte -, Cachoeira configurou-se como uma mosa passagem do “Grito do Ipiranga” – 7 das mais prósperas e populosas Vilas do Brasil de setembro de 1822 – aparece, em boa parte Colonial. Desta forma, os senhores-de-enge- dos livros didáticos, como o fim da submis- nho juntamente com o poder público e ecle- são nacional às tropas portuguesas, da rela- siástico empreenderam inúmeras construções ção metrópole-colônia, um basta à coloniza- arquitetônicas com grande influência barro- ção exploratória e usurpadora – ainda tão ca, que se constituem como ícones referen- evidente no cotidiano e memória nacional. ciais de grande atratividade turística e de Formatações à parte, na Bahia, o po- relato de parte da história para os visitantes derio militar português ainda ocupava es- e população local. São casas, casarios, pré- paço e tinha na figura do Brigadeiro Madei- dios, igrejas, capelas que desnudam a tempo- ra de Mello o representante da mais pura ralidade, o espaço e a certa discussão entre ordem e vontade lusitana. Ou seja, a Inde- preservação e conservação do patrimônio. pendência do Brasil ainda não se constituía O povoamento da cidade de Cachoei- uma verdade para todo o território, uma vez ra seguiu o mesmo percurso de povoamento que a Bahia, mais precisamente a cidade do do Brasil. De núcleos indígenas logo ataca- Salvador, ainda continuava ocupada. dos, conheceu o estrangeiro e o negro vio- Os vários confrontos e conspirações lentado e transportado como produto de contra Madeira de Mello e seu governo na menos valia. Há, ainda, na cidade histórica, cidade de Salvador resultaram que, segun- uma grande concentração de negros descen- do o historiador baiano Luis Henrique Dias dentes dos escravos – fato que torna a cida- Tavares (1981, p. 131), “um número apreciá- de como um marco de identidade étnica e vel de famílias abandonou a cidade. Iam para de resistência sociocultural. Recentemente - o Recôncavo: Santo Amaro, São Francisco do mais precisamente no dia 25 de junho de Conde, Cachoeira, ...” A esta al- 2004 –, o governo federal, através da Funda- tura, o Recôncavo e, principalmente Cacho- ção Palmares e do Incra, certificou, oficial- eira, já servia como o foco principal de resis- mente, dez comunidades quilombolas exis- tência para os portugueses. tentes no município de Cachoeira1. As co- Em 20 de junho de 1822, Madeira de munidades reconhecidas foram Caonge, Mello com o intuito de conter os ânimos pa- Calembá, Engenho da Ponte, Dendê, Enge- trióticos que Cachoeira oferecia, envia uma nho da Praia, Caimbongo Velho, Imbiara, canhoneira lusitana que fundeia no Calolé, Tombo e Engenho da Vitória2. Paraguaçu. Cachoeira, em 25 de junho de A situação de capital da província e a 1822, já sediando o Conselho Interino da corajosa participação dos cidadãos Província, reage com extremo patriotismo às cachoeiranos na luta de Independência do investidas ameaçadoras de Lisboa, como Brasil e da Bahia conferiu a Cachoeira o tí- descreve Tavares (1981, p. 132) tulo de “Cidade Heróica” e sua conversão A 21 de junho há uma reunião de proprietários, lavradores, militares, na qual inventariam armas em Monumento Nacional ocorreu com o e munições; em 24 de junho concentram-se Decreto Presidencial 68.045 de 18 de janeiro soldados e oficiais milicianos sob o comando dos de 1971. grandes proprietários e coronéis das milícias José Dentre seus filhos mais ilustres, desta- Garcia de Moura Pimentel e Aragão e Rodrigo que para Maria Quitéria – uma das heroínas Antonio Falcão Brandão, no sítio de Belém, povoado pouco acima da Vila de Cachoeira. nas lutas pela Independência da Bahia –, e Foram esses que oficiaram convocando uma Ana Neri, que em 1865, com mais de 50 anos, reunião da Câmara. E reunida às 9 horas da manhã ofereceu-se para prestar serviços como en- de 25 de junho de 1822, essa Câmara indaga “do fermeira voluntária na Guerra do Paraguai povo e tropa” (...) “se erão contentes que se aclamasse a S. A. R. o Sr. D. Pedro de Alcântara, por Regente e – guerra esta, que tinha seus filhos em algu- Perpétuo defensor e protector do Reino do Brazil” . Com mas frentes de batalha. a resposta afirmativa, o procurador da vila Manoel jogou o estandarte da Câmara

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para o povo e a tropa reunidos na praça, Baiano, ‘tornou-se’ carioca, e tem, ainda aparentemente significando que lhes entregava hoje, suas mais puras raízes em cidades do aquele símbolo do poder. Lavrou-se uma ata. Recôncavo. Atualmente, em Cachoeira, exis- Algumas decisões foram tomadas e, tem dezenas de grupos de samba-de-roda. dentre elas, o envio de mensageiros às demais Em plena atividade, estes conjuntos retra- vilas e povoados do Recôncavo, informando- tam em suas letras e melodias parte da his- lhes sobre a Aclamação do Príncipe e a situa- tória que lhes foi passada, via oralidade, pe- ção de batalha em Cachoeira, evidenciada los antecessores. Ressalte-se, então, que a não somente pela canhoneira, mas também memória é irrefutável arma capaz de com- pelos portugueses residentes que reforçavam por e recompor identidades. Essa constitui as hostilidades. um capital simbólico a ser oferecido a turis- Ainda sobre o episódio, escreveu tas, visitantes sensibilizados e toda a popu- Tavares (1981, p. 132) lação residente. Aproveitaram uma “velha peça de ferro” para improvisar a arma com que responderam aos Dentre os grupos, destaque para o sam- disparos da canhoneira. Também utilizaram ba-de-roda “Suerdieck” – o mais antigo da vaivéns mandados vir dos engenhos. E muito cidade, fundado na década de 50 (séc. XIX) embora fossem precárias, essas armas serviram por Dalva Damiana dos Santos – enquanto – e no entardecer de 28 apareceu uma bandeira branca na canhoneira, de onde vieram presos o charuteira da fábrica homônima –, o “Amor capitão e 26 marujos. de Mamãe”, o “Esmola Cantada”, “Filhos O Conselho Interino – formado por do Caquende”, “Filhos da Barragem”, entre Cachoeira, Santo Amaro, São Francisco, outros. , Maragogipe, , Pedra Do samba-de-roda, seus ritos e ges- Branca, Abrantes, , Valença, Água tuais, ressaltam-se a disposição e simpatia Fria, , Maraú, Rio das Contas, dos senhores e senhoras que são fundadores , Santarém e – teve relevan- e participantes dos grupos. A senhoridade te participação política, militar e administra- não afastou o gosto e a necessidade fisioló- tiva ao longo das lutas pela Independência gica da expressão através do corpo, através da Bahia. Organizou batalhões, recolheu e de músicas e cantigas que retratam temas distribuiu armas e munições e fincou postos escravocratas, de relacionamento, de situa- de defesa em vários pontos do Estado. ções engraçadas, de solicitações codificadas, Após seguidas batalhas entre portu- de reza musicada e compassada com o coti- gueses e brasileiros, no dia 02 de julho de diano de uma gente simples. 1823 adentra por alguns pontos da cidade Cachoeira oferece uma das mais con- do Salvador o Exército Brasileiro, ficando ceituadas festas de São João do Estado. É ini- esta data reservada para a reverência patrió- ciada com a tradicional Feira do Porto – tar- tica dos baianos aos seus ancestrais que luta- de do dia 22 de junho –, com gastronomia ram incansavelmente pela Independência. típica junina e regional, como laranja, milho, Era a consolidação da separação do Brasil aipim, mandioca, amendoim, fubá, bolos e de Portugal, que teve parte de seus embates mingaus variados, entre outros. Há, ainda, a e resistência na cidade de Cachoeira. Em tem- apresentação de grupos de samba-de-roda, po: Cidade Heróica de Cachoeira. das filarmônicas da cidade, pau-de-sebo, qua- drilhas, casamento na roça e shows de ban- 4 O patrimônio cultural – Potencialidade II das e artistas populares em palco apropriado e com expressiva participação popular. A confluência das culturas indígena, As duas filarmônicas existentes na ci- negra e portuguesa – e a imbricação destas e dade são a Sociedade Orféica Lira Ceciliana e a outras tantas – conferiu ao Recôncavo e, Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana, principalmente, a Cachoeira, um caleidoscó- fundadas em 1870 e 1878, respectivamente. pio cultural de variados matizes e peculiari- Em plena atividade, as filarmônicas apresen- dades amarradas num ethos repleto de flu- tam-se em boa parte da vasta programação xos identitários e auto-afirmativos. de festas de Cachoeira e da região. E, em se Um destes matizes é o samba em sua falando de calendário de festas, a cidade não vertente mais original: o samba-de-roda. pode se queixar. Destaque para a Festa do

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Divino (maio), São João/Feira do Porto, Festa existência já contabilizava a visitação de cer- da Independência (junho), Festa de Nossa ca de 40 mil pessoas, e, vem, segundo Rubens Sra. da Boa Morte (agosto), São Cosme e Rocha (2002, p. 83) “se consolidando como Damião (setembro), Festa de Nossa Sra. do ponto de referência da arte contemporânea Rosário do Porto de Cachoeira (outubro), e de encontro das mentes pensantes e criati- Festa de Nossa Senhora da Ajuda (novem- vas em Cachoeira”. bro), Festa de Santa Bárbara (dezembro), Sobre o Rio Paraguaçu, Damário entre tantas outras proporcionadas pelos Dacruz escreveu: “Esse rio/cabe apenas/ inúmeros grupos musicais e terreiros de can- nos meus sossegos/Essa água/Acumula nas domblé lá existentes. marés/Os meus segredos/Essa ponte/Jun- A participação negra no desenvolvi- ta gente/Separa medos/Essa gente/Mata o mento sócio-econômico-cultural de Cacho- rio, a água, a ponte/E os próprios dedos”. eira pode ser constatada em várias dinâmi- Há, ainda, nas manifestações culturais cas ainda desenvolvidas na cidade. Do can- locais o Terno de Reis, as Cabeçorras, o Bumba domblé, passando pela capoeira, pelo meu Boi, o trança-fitas, os Mandus, etc. maculelê, até a aceitação do samba-de-roda Na culinária do Recôncavo baiano, e do reggae como gênero musical étnico e destaque para as mais variadas moquecas, identitário, reforçam o status de Cachoeira além da Maniçoba – também conhecida em como uma cidade de grande referencial da outras regiões do país –, iguaria feita com a negritude – este fato ainda pode estimular e folha da mandioca e as carnes que acompa- reforçar um tipo de turismo para o local: o nham a feijoada – pode ser apreciada na ci- turismo étnico. dade nos poucos estabelecimentos comerci- A secular Irmandade de Nossa Senho- ais existentes. ra da Boa Morte – confraria de senhoras ne- gras que têm na dupla-pertença3 religiosa 5 A realidade – Potencialidade III uma de suas marcas –, também tem sua sede em Cachoeira. Sua festa, sempre realizada Mitsu Golias (2001, p. 74), em matéria no meio do mês de agosto, atrai pessoas de publicada na revista Terra de novembro de toda parte do mundo. 2001, após percorrer sua história e realida- A perseguição ao Candomblé na cida- de, afirmou: “Duas vezes sede do governo de de Salvador – fato esse ocorrido até a dé- estadual, hoje Cachoeira cochila à espera das cada de 70 do século anterior – e a alta con- verbas de Salvador”. Realmente, é lastimá- centração de negros escravos direcionados vel conhecer a história desta cidade e para os engenhos do Recôncavo, proporcio- contrastá-la com seus dias atuais. naram a cidades como Cachoeira um núme- Atualmente, o município baiano de ro respeitável de terreiros da religião afro- Cachoeira ocupa a posição de sexagésimo brasileira. A presença de turistas é comu- sexto na economia estadual. A população mente percebida nas festas realizadas por está dividida entre 50% no meio rural e o estas casas religiosas. restante na cidade. As feiras públicas reser- Os quatro museus em atividade mere- vam o grande encontro entre os consumido- cem destaque, não somente pelo que apre- res e os pequenos produtores locais. O Rio sentam da história e arte locais, mas tam- Paraguaçu raramente estabelece ligação en- bém pela beleza arquitetônica de suas cons- tre Cachoeira e Salvador – existem vários truções. O Museu da Casa da Câmara e da acessos rodoviários, tanto pela BR 324 quan- Cadeia, por exemplo, localizado na Praça da to pela BR 101. Aclamação, foi construído entre 1698 e 1712 A atividade turística ainda é tímida. e sediou o Governo da Bahia na Revolução Seus quatro elementos básicos (OMT, 1998) da Sabinada4. – oferta, demanda, espaço geográfico e ope- O poeta Damário Dacruz escolheu a radoras do mercado –, ainda não conhece- cidade de Cachoeira para fixar sua residên- ram um poder público capaz de produzir cia. Reformou lentamente um sobrado, ao formatação para este produto. Nem mesmo qual deu o nome de Pouso da Palavra. Inau- o Plano de Turismo do Recôncavo, idealiza- gurado em 2000, nos dois primeiros anos de do pelo governo do Estado na década de 70

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(séc. XX), conseguiu alavancar a economia namentais. Uma delas – abril/2005 –, que cachoeirana. Poucas e pequenas operadoras visa a atração de milhares de turistas afro- disponibilizam este trajeto e, na maioria das americanos para o Estado da Bahia, excluiu vezes, o retorno está programado para o Cachoeira – de forte herança africana – dos mesmo dia. roteiros turísticos5. A espera e dependência do poder pú- No âmbito das políticas públicas posi- blico municipal com relação às verbas do tivas, o “Projeto Monumenta”, do Ministé- Prodetur são uma constante. Os recursos rio da Cultura, tem previsto para investir – e naturais, as manifestações culturais, a histó- já o vem fazendo – cerca de R$ 19 milhões ria e todo o enorme e rico acervo arquitetô- na recuperação arquitetônica dos casarios e nico citadino vêm sendo submetido às intem- prédios coloniais de Cachoeira6. Parte da ci- péries do tempo e esquecimento, ao passo dade que é monumento nacional desde 1971, em que poderia estar sendo “utilizada” – de se encontra em obras. forma equilibrada e sustentável – junto a Ao considerar a atividade turística projetos turísticos e educacionais. como estratégica para o desenvolvimento de Parte da população não conhece a ri- Cachoeira, através de suas vantagens eco- queza das muitas passagens históricas de nômicas e socioculturais, pela vertente – nes- seus antepassados. E, com sua economia sen- te momento – do turismo cultural, há de se sivelmente abalada, “exporta” seus filhos salvaguardar que esta deve estabelecer sig- com ímpar regularidade para cidades como nificativa influência na sociedade e em seus Salvador. outros setores. Deve aquecer e estimular a Contrário a tudo isto que foi dito neste economia local e regional, através das teias tópico, a cidade de Cachoeira, anualmente, produtivas que devem conseguir proporcio- observa a turistização de uma de suas festas: nar. Ele, por si só, é o que já acontece em a Festa da Irmandade da Boa Morte. Tal di- festas como a da Irmandade da Boa Morte. nâmica religiosa e profana vem atraindo uma Mas é preciso mais que um fato isolado... É multidão de turistas e jornalistas das mais preciso desenvolvimento local sustentável variadas partes do mundo que vêm conhe- que, no primeiro momento, deve ser estimu- cer parte do ritual de celebração a assunção lado por políticas públicas sérias e realmen- de Nossa Senhora aos Céus. O problema, te concentradas em melhorar a qualidade de então, passa a ser outro: a falta de infra-es- vida da população. trutura receptiva. Aos empregos diretos e indiretos que O município possui apenas um hotel pode proporcionar, deve-se agregar outros ti- fazenda (inclusive com turismo rural), qua- pos de vantagens. Dentre elas, a sensibilização tro pousadas e um hotel – destes, só um é de da comunidade local para a atividade turísti- médio porte. O que torna a hospedagem, ca como encontro sócio-econômico-cultural nestes dias, para parte da população local relevante, a possibilidade de preservação e in- que disponibiliza suas residências, uma for- terpretação do patrimônio natural, cultural e ma alternativa de renda. arquitetônico – para turistas e residentes –, a cidadania e seu exercício inclusivo, etc. 6 Estratégias desenvolvimentistas para Não se trata, em hipótese alguma, de Cachoeira viabilizar o turismo cultural em Cachoeira, através de suas reconhecidas potencialida- Cachoeira sofreu e sofre com os res- des, tendo de submeter seus residentes à quícios dos insucessos administrativos de atuação falseada de suas passagens históri- suas gestões políticas – a gestão atual aqui cas. Nem, ainda, a recriação e execução for- não está sendo comentada pela brevidade çada de suas manifestações culturais mais de sua posse. Décadas de abandono, desca- legítimas. Trata-se de um projeto mais am- so e ausência de políticas públicas exclusivas plo, no qual o turismo, o turista, os residentes para Cachoeira, se somaram ao clientelismo e os setores público e privado competentes politicóide que ainda impera em parte do estejam emancipados (Krippendorf, 1989). país. Não bastasse, ainda padece com a fal- Mais que isso, estimular a chamada cadeia ta de conhecimento de algumas ações gover- produtiva no turismo.

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Deve-se criar e/ou fortalecer o encon- da Irmandade da Boa Morte, as irmãs devem tro da indústria do turismo – seu trade -, o freqüentar a religião católica e a afro-brasileira. 4 A Sabinada foi uma revolução separatista ocorrida poder público, a comunidade receptiva e as na Bahia no período regencial. O objetivo era o demais organizações civis interessadas, com desligamento do governo provincial da Regência. o intuito de propor fóruns de discussão que 5 Os destinos oficiais para o turismo étnico até agora auxiliem a utilização – com base sustentável anunciados incluem Salvador, , Lençóis – e preservação do patrimônio a ser visita- e o Complexo de Sauípe. 6 Fonte: Minc. do. Desta forma, com o sucesso do destino turístico, a população tanto se configura Referências como beneficiada como fiscal de seu acervo – neste caso, sua matéria prima para o turis- ARNIZÁU, José Joaquim de Almeida e. Memória topográfica, histórica, comercial e política da Vila da Cachoeira da Província mo como atividade capaz de melhorar os ín- da Bahia. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da dices de qualidade de vida. Bahia / Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1998. O produto turístico Cachoeira, seja ele BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano – açúcar, fumo, cultural, histórico e natural, seja religioso e mandioca e escravidão, 1780-1860. Rio de Janeiro: Ed. científico, tem potencialidade, mas esbarra, Civilização Brasileira, 2003. ainda, na falta de sensibilização e planeja- CASTRO, A. C. C. A festa e a música na Boa Morte. 92 f. mento turístico que alavanque a sua econo- Trabalho de conclusão de curso (Especialização em mia e a sociedade. História Social e Educação) – Universidade Católica do Salvador. Salvador, 2003. Ainda assim, cabe a advertência que a cultura pode até ter a sua economia, assim KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. como o turismo ter o seu marketing, mas des- de que a força da grana que ergue e constrói LUCAS, S. M. M. de. Turismo cultural e desenvolvimento sustentável: Cinco princípios e quatro passos para coisas belas (Caetano, 1978) tenha como res- preservar e desenvolver o patrimônio cultural para o ponsáveis seres, realmente humanos, que turismo sustentável. Rio de Janeiro. (No prelo) respeitem e compreendam – ao mesmo tem- MURTA, Stela Maris; ALBANO, Celina (Orgs). po e sem interrupções -, o silêncio de uma Interpretar o patrimônio – um exercício do olhar. Belo senhora a rezar e os transes extra-corporais Horizonte: Ed. UFMG / Território Brasilis, 2003. de pessoas que - há séculos - vêm amargan- OMT. Introdución al turismo. Madrid: OMT, 1998. do o horror de um progresso vazio. QUEIROZ, Lúcia Aquino de. Turismo na Bahia: estratégias para o desenvolvimento. Salvador: Notas Secretaria da Cultura e Turismo, 2002. ROCHA, Rubens. A Fascinante Cachoeira – jóia do 1 Quilombolas são os habitantes dos quilombos ou das Recôncavo baiano. [S.l.: s.n.], 2002. comunidades descendentes destes. 2 Fonte: Jornal A Tarde, 27/06/2004, p. 9. RUSCHMANN, Doris. Turismo e planejamento sustentável: 3 Expressão utilizada pelos antropólogos para pessoas A proteção do meio ambiente. Campinas: Papirus, 1997. ou grupo que freqüentam duas religiões TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. São concomitantemente sem nenhum embaraço. No caso Paulo: Ed. Ática, 1981.

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