O Legado De Lelio Basso Na América Do Sul E Seus Arquivos De Roma
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ARTIGOS ACADÊMICOS O LEGADO DE LELIO BASSO NA AMÉRICA DO SUL E SEUS ARQUIVOS DE ROMA: AS PARTICULARIDADES HISTÓRICAS DAS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS NOVOS DIREITOS1 Alberto Filippi Doutor em Filosofía, Universidade de Roma La Sapienza (Itália) Professor da Universidade de Camerino (Itália) e Buenos Aires e Córdoba (Argentina) Simbolicamente, com este VII Seminário, organizado pela Universidade Federal da Paraíba, Lelio Basso retorna ao Brasil. Nesses dias de novembro, completaram-se 34 anos da viagem feita por Lelio para presidir o “I Congresso Brasileiro pela Anistia”, realizado no período de 2 a 5 de novembro de 1978, na cidade de São Paulo, poucas semanas antes de sua morte em Roma, no dia 16 de dezembro. O “I Congresso” foi organizado, entre outras pessoas, pelo Deputado Ulisses Guimarães, por Terezinha Zerbini (fundadora do Movimento Feminino pela Anistia), pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, pelo jurista Hélio Bicudo (Comissão Justiça e Paz de São Paulo), por Hélio Silva (Associação Brasileira de Imprensa), por Eduardo Feabra e outros intelectuais e representantes da sociedade civil, que começava a exigir, publicamente, no Brasil, a lei da “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, que foi promulgada em 28 de agosto de 1979. A delegação Europeia, juntamente com Lelio Basso, estava integrada por Etienne Bloch (Comitê de Solidariedade Brasil-França), Louis Joinet (ex-presidente do Sindicato Francês de Magistrados, membro da Associação 1 Conferência proferida no VII Seminário Internacional de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), realizado com o apoio da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em celebração ao anúncio da digitalização do fundo documental do Tribunal 94 Russel II pelo Estado brasileiro. Internacional de Juristas Democráticos de Bruxelas e da Pax Romana de Paris), André Jacques (Organização Internacional de apoio aos Refugiados do Mundo Inteiro), Jean Bernand Weber e Paul Guilly Hart (Suíça). Porém, quais seriam os antecedentes da viagem de Basso? Brevemente, veremos o cenário político e o contexto internacional e americano dessa época para compreender o significado das lutas contra as ditaduras e as violações sistemáticas dos direitos na América do Sul, e poder entender, hoje – quase meio século depois – os textos conservados nos “seus arquivos” da Fondazione Basso em Roma: porque eles iluminam o presente da memória. Efetivamente, estudar os documentos destes arquivos exige e implica em aprofundar-nos em nossas histórias, deixando evidentes os fatos e conjunturas que permitam valorizar as diversas formas como se aunaram a resistência popular com a reivindicação dos direitos que a ditadura negava a todos os brasileiros. Também permite analisar, em retrospectiva, e compreender, no nível “nacional” e “internacional”, as formas que foi assumindo a construção social, jurídico- política e institucional dos direitos, no meio de continuidades e rupturas, ao longo dos anos da elaboração da justiça de transição e do novo estado constitucional de direito, em cada um dos países sul-americanos que saíam das ditaduras. 1. BASSO, PRECURSOR DA JUSTIÇA TRANSICIONAL. ETAPAS E TEMAS DO SEU VÍNCULO COM A AMÉRICA LATINA Para estudar as contribuições de Basso nos seus contextos americanos, é indispensável distinguir cinco momentos chaves das suas intervenções e as incisivas contribuições para os processos de democratização e para a justiça transicional daqueles anos, em que foi um precursor e promotor de “novos” direitos: 1. A “Anistia e as Liberdades Democráticas na Venezuela” (1965). 2. A “Transição jurídico-política rumo ao socialismo” na experiência do governo da Unidade Popular no Chile (1971-1973). 95 3. “Análise, denúncias e sentenças contra as Ditaduras da América do Sul” nas três Sessões do Tribunal Russell (1974-1975-1976). 4. A “Anistia Geral, Direta e Irrestrita” na democratização do Brasil (1978). 5. Dos direitos da “pessoa humana” aos direitos dos povos e a Carta de Argélia (1978), que estende para novos sujeitos e comunidades a titularidade dos direitos que já tinham sido reconhecidos como direitos humanos referidos (só) à “pessoa”. Vamos tratar dos desenvolvimentos e extensões no reconhecimento dos novos direitos – da “terceira geração”, poderíamos dizer, continuando na cronologia das etapas indicadas por Norberto Bobbio – para grupos de pessoas ou comunidades, historicamente excluídos como sujeitos jurídicos, que sofreram condições excepcionais de negação dos direitos como “pessoas” que tinham sido objetos dos “desaparecimentos forçados”, direitos reconhecidos muitos anos depois por meio de uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, do dia 20 de dezembro de 2006.2 Todos e cada um destes cinco momentos da relação de Basso com a América do Sul – como veremos – estão relacionados, além de sua ordem cronológica, com a visão primordial e essencial que Basso teve como “constituinte” da Constituição italiana de 1947. E com sua militância prática e teórica na construção de uma alternativa jurídico-política radical e revolucionária frente ao fascismo, junto com as diferentes forças políticas como as socialistas, as católicas, comunistas e republicanas, que durante as lutas da Resistência tinham prefigurado a concepção democrática da futura Constituição. Basso, então, teórico e prático do direito e do Estado constitucional (democrático e social) de direito, jurista socialista das transições democráticas e da justiça que precede, acompanha e define os processos transicionais, cujo primeiro laboratório foi a Itália que saía do nazi fascismo e, depois, a América Latina das terríveis décadas do final do século passado. Àqueles que não viveram estes tempos da cultura política europeia com relação à América Latina se surpreende que, em torno de Basso, desde quando estava organizando sua mudança (nos meados dos anos sessenta) de Milão para Roma, assim como a fundação do Istituto per lo Studio della Societá contemporânea, organizou um grupo interdisciplinar de análise da América Latina que, com a exceção da Fundação Einaudi, não tinha, então – e não teve por muito tempo – outra instituição à altura na Itália, entre os centros de estudos latino-americanos que não estivessem 2 O famoso livro de Norberto Bobbio tem o nome de L’età dei diritti, Turín, Einaudi, 1990, no qual publica novamente o seu pioneiro artigo sobre o tema, “La dichiarazione universale dei diritti dell’uomo”, em AAVV, La dichiarazione universale dei diritti dell’uomo, Arti 96 Grafiche Plinio Castello, Turim 1951, pp.53-70. APRESENTAÇÃO ENTREVISTA ARTIGOS DOSSIÊ ESPECIAL DOCUMENTOS ACADÊMICOS vinculados às universidades. De Celso Furtado até Miguel Angel Asturias, os irmãos Carlos e Ángel Rama, Rafael Alberti, Darcy Ribeiro, Arnaldo Córdoba, Alonso Aguilar; de Armando Córdoba aos irmãos José Agustín e Hector Silva Michelena, Manuel Antonio Garretón, André Gunder Frank, Norberto Lechner, Theotonio dos Santos, Juan Carlos Portantiero, Julio Cortázar, Darío Pavez Basso, Francisco Delich, (e muitos outros que agora não me lembro), foram passando pela via Della Dogana Vecchia, ou reuniam-se com Lelio em Roma, alimentando um diálogo e um conhecimento sobre a realidade latino-americana que foi excepcional no nível europeu, e fizeram de Basso um interlocutor privilegiado para as esquerdas latino-americanas desse irrepetível período, de utopias e fracassos das gerações entre os sessenta e os setenta. Quase todos nós – em solidariedade com o exemplar esforço que Lelio estava fazendo para dar vida ao Issoco e instalá-lo na estupenda sede do centro, a poucos metros da Praça do Panteão – trabalhamos sempre ad honoren e, graças à ampla cultura política e jurídica, convivemos com quem vinha das mais diversas experiências acadêmicas e da militância, desde Franco Zannino até Sergio De Santis, Antonio Lettieri, Guido Calvi, KRUSCHEV INAUGURA O CONGRESSO MUNDIAL DA PAZ (JULHO DE 1962). A FUNDO, LÉLIO BASSO, PRESIDENTE DA DELEGAÇÃO ITALIANA. Guglielmo Ragozzino, Rino Petralía, Umberto Di Giorgi, Giovanni Battista Zorzoli, desde Linda Bimbi até Ignazio Delogu, Roberto Magni, Luigi Ferrajoli, Salvatore Senese, e participantes convidados como Paolo Sylos Labini, Luigi Spaventa, Federico Caffé, Umberto Cerroni, Albert Hirschman, entre outros. Aconteceu que, no ano de 1970, fui chamado para dar início aos estudos sobre a América Latina no Curso de Ciências Políticas que acabava de instituir-se na Universidade de Camerino, e como devia passar muitos dias longe de Roma, meu vínculo com o Issoco diminuiu, por motivos óbvios. No entanto, em muitas atividades, mantive uma estreita colaboração. É importante lembrar agora que, em plena harmonia com Basso – e no âmbito da primeira sessão do Tribunal Russell (em Roma, entre 30 de março e 6 de abril de 1974) – organizamos, na Universidade de Camerino, o primeiro congresso europeu sobre “A experiência político-institucional do Chile da Unidade Popular” (8-9 de maio) com o apoio da Facoltá di Giurisprudenza e do Istituto Giuridico, dirigidos pelos juristas Gino Labruna e Giorgio Gaja. Participaram muitas pessoas que também foram os protagonistas, ao mesmo tempo, da resistência à ditadura de Pinochet e do estabelecimento do começo da reflexão crítica sobre a esperada e lenta transição democrática no Chile: José Antonio Viera-Gallo, Bernardo Leighton, Jorge Arrate, Luigi Berlinguer, Umberto Cerroni, Gino Giugni, Luigi Ferrajoli e Guido Calvi. 97 Em termos gerais, e para concluir esta introdução, digamos que os grandes núcleos conceituais das contribuições de Basso podem se resumir (em evidente