Conflito ambiental e existencial na comunidade dos pescadores de Porto Rico, Estado do Paraná.

Item Type Thesis/Dissertation

Authors Parolin, Eloisa Silva de Paula

Publisher Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Biologia. Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais.

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Link to Item http://hdl.handle.net/1834/10144 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECOLOGIA DE AMBIENTES AQUÁTICOS CONTINENTAIS

ELOISA SILVA DE PAULA PAROLIN

Conflito ambiental e existencial na comunidade dos pescadores de Porto Rico, Estado do Paraná

Maringá 2007

ELOISA SILVA DE PAULA PAROLIN

Conflito ambiental e existencial na comunidade dos pescadores de Porto Rico, Estado do Paraná

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais do Departamento de Biologia, Centro Centro de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Ambientais. Área de concentração: Ciências Ambientais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luzia Marta Bellini

Maringá 2007

"Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)" (Biblioteca Setorial - UEM. Nupélia, Maringá, PR, Brasil)

Parolin, Eloisa Silva de Paula, 1968- P257c Conflito ambiental e existencial na comunidade dos pescadores de Porto Rico, Estado do Paraná / Eloisa Silva de Paula Parolin. -- Maringá, 2007. 88 f. : il. (algumas color.). Tese (doutorado em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais)--Universidade Estadual de Maringá, Dep. de Biologia, 2007. Orientador: Prof.ª Dr.ª Luzia Marta Bellini 1. Ecologia humana - Pescadores de Porto Rico - Paraná (Estado). 2. Pescadores de Porto Rico, Comunidade de - Conflito existencial e sobrevivência - Paraná (Estado). 3. Pescadores de Porto Rico, Comunidade de - Paraná (Estado) - História oral. 4. Antropologia ecológica - Memória e natureza - Pescadores de Porto Rico - Paraná (Estado). I. Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Biologia. Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais.

CDD 22. ed. -304.28098162 NBR/CIP - 12899 AACR/2

Maria Salete Ribelatto Arita CRB 9/858 João Fábio Hildebrandt CRB 9/1140

ELOISA SILVA DE PAULA PAROLIN

Conflito ambiental e existencial na comunidade dos pescadores de Porto Rico, Estado do Paraná

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais do Departamento de Biologia, Centro de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Ambientais pela Comissão Julgadora composta pelos membros:

COMISSÃO JULGADORA

Prof.ª Dr.ª Luzia Marta Bellini Nupélia/Universidade Estadual de Maringá (Presidente)

Prof. Dr. Hélio Sochodolak Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro)

Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Prof. Dr. Fábio Amôdeo Lansac-Tôha Nupélia/Universidade Estadual de Maringá

Prof.ª Dr.ª Liliana Rodrigues Nupélia/Universidade Estadual de Maringá

Aprovada em: 20 de março de 2007. Local de defesa: Anfiteatro Prof. “Keshiyu Nakatani”, Nupélia, Bloco G-90, campus da Universidade Estadual de Maringá.

Para meus avós maternos Manoel e Abegail. Pessoas humildes, solidárias e com uma sabedoria extraordinária.

AGRADECIMENTOS À Profª Drª Luiza Marta Bellini, orientadora e amiga, que nestes seis anos e meio juntas, esteve sempre ao meu lado, contribuindo com seus conselhos, com sua experiência de vida, e com o enorme conhecimento que possui. A confiança que depositou em mim foi um dos mais importantes estímulos para a realização deste trabalho. Se houvessem mais Martas Bellinis nas instituições de pesquisa brasileiras, a universidade com a qual sonhamos seria muito mais fácil de ser alcançada.

Aos moradores da cidade de Porto Rico-Paraná, que gentilmente concordaram em partilhar suas memórias comigo, contribuindo de forma inestimável para a realização deste trabalho.

À professora Sara Pereira Dantas pela colaboração prestada ao facilitar o nosso acesso a alguns dos moradores entrevistados.

Aos funcionários da Universidade Estadual de Maringá, Alfredo Soares da Silva e Sebastião

Rodrigues pela ajuda nos trabalhos de campo.

À Aldenir Cruz de Oliveira atual secretária do Programa de Pós-Graduação pelo carinho e atenção com os quais sempre nos atendeu, e as ex-secretárias Cláudia A.C. Francisco e

Márcia H. Leonel, que apesar da distância também permanecem em nosso coração.

Aos funcionários da Biblioteca Setorial do Nupélia, Maria Salete Ribelatto Arita, João Fábio

Hildebrandt e Márcia Regina Paiva pelo carinho com o qual sempre nos atenderam.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos

Continentais, em especial a Prof.ª Dr.ª Liliana Rodrigues e ao Prof. Dr. Fábio A. Lansac-Tôha por atenderem prontamente os convites que lhes fizemos para participarem de nossa qualificação no mestrado e doutorado, contribuindo para nosso trabalho, com críticas e sugestões sempre muito construtivas. À professora Áurea Viana de Andrade, chefe do Departamento de Geografia da Faculdade

Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, por compreender a minha ausência em sala de aula neste início de ano letivo, e contornar a situação no Departamento e na sala de aula.

Aos professores Edson N. Yokoo e José Antônio da Rocha, do Departamento de Geografia da

Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, pelas sugestões bibliográficas.

À Maycon e Mateus Gozer, Otávio Longo Ferlin, Mauro Parolin e Elisa Silva de Paula, pelo apoio dado na transcrição das entrevistas.

À Elisa Silva de Paula pela leitura e revisão gramatical do texto.

Aos meus tios, tias, primos e primas maternos, por compreenderem a minha ausência e estarem sempre ao meu lado, incentivando-me.

À meus pais Eloina Silva de Paula e Luiz Cassiano de Paula, in memorian , pelo amor e dedicação, e acima de tudo por terem me incentivado a estudar desde pequena, a paixão pelos livros e o amor pelo conhecimento: lhes serei eternamente grata.

Aos meus irmãos que considero as pessoas mais especiais do mundo: Eliane, Luiz Antônio,

Leandro e Elisa. Sinto-me a pessoa mais “sortuda” do mundo por tê-los como irmãos e amigos: amo muito vocês.

Aos meus cunhados e cunhadas: Jair, Evanise, Gilmara, Tuti e Nilton pela amizade e apoio que sempre me dispensaram, e pelas palavras de incentivo.

Aos meus sobrinhos e sobrinhas, crianças e adolescentes maravilhosos: Renan, Vivi,

Miguelzinho, Carol, Juju, Zézi, Drei, Vinícius e ao Gabriel, meu pequeno companheirinho de viagens: agora nós dois poderemos fazer aquela lista de coisas divertidas para fazermos em

Maringá.

À família de meu irmão Luiz, Gil e as crianças, por terem me recebido em Florianópolis no segundo semestre de 2005, para que pudesse cursar uma disciplina no programa de Pós-

Graduação em Filosofia na UFSC. Foi muito bom conviver com vocês naquele período! À Mauro: Existem muitos tipos de prisões sob as quais encerramos nossas consciências, e a mais cruel das ironias é o fato de que somos os únicos a criá-las, e portanto, somos também os

únicos a termos as chaves que nos permitirão conquistar a liberdade. Nestes últimos vinte e dois anos de convivência, você tem sido os raios de luz que, atravessando insistentemente por entre as pequenas frestas das “gigantescas” paredes imaginárias, alimentam a esperança de um dia, em um amanhecer ou anoitecer quaisquer, as grades que nos separam do mundo sejam finalmente rompidas.

Todos os vivos se tocam e todos cedem ao mesmo formidável impulso. O animal encontra seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga na animalidade e a humanidade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, na nossa frente e atrás de nós, numa carga contagiante, capaz de pulverizar todas as resistências e franquear muitos obstáculos, talvez mesmo a morte.

(HENRI BERGSON)

Conflito ambiental e existencial na comunidade dos pescadores de Porto Rico, Estado do Paraná RESUMO

A pesquisa com a memória individual/coletiva permite ao pesquisador das diversas áreas sociais abrange os homens em seu espaço original de ação, criação e representação do mundo, uma vez que é na intersecção entre a memória individual e a memória coletiva, que se estabelecem os conflitos, as interpretações, e as atitudes dos homens frente às profundas contradições que permeiam a existência. Inicialmente, a pesquisa tinha por objetivo discutir a pertinência da identidade entre o conflito ambiental e o conflito existencial na relação entre os pescadores de Porto Rico, PR, com a natureza. Contudo, o contato com a população local nos levou a incluir um grupo muito especial que compõe essa comunidade: as mulheres. As primeiras entrevistas nos revelaram a participação expressiva das mulheres na atividade pesqueira da região. Desta forma, envolvemos a história de vida das pescadoras e ex- pescadoras da região. A recuperação e o registro da memória individual/coletiva foram realizados por meio de entrevistas em cuja elaboração e aplicação utilizamos as técnicas da história oral, com um roteiro de perguntas semiestruturadas. Na análise das entrevistas, foi possível verificar a presença de conflitos existenciais sob os conflitos dos moradores de Porto Rico diante das alterações do meio ambiente em que vivem, da ausência de políticas públicas que compreendam a importância de se preservar as comunidades humanas de uma extinção iminente, e da presença de legislações ambientais nem sempre interpretadas com critérios que levem em consideração os interesses das populações pobres e marginalizadas. Presente também no âmbito das relações entre o homem e a natureza, e na relação dos homens entre si, a questão existencial assume duas formas distintas. O caráter imanente do conflito existencial se manifesta na situação quase unânime em que se encontram os moradores entrevistados na cidade de Porto Rico, principalmente os que foram forçados a sair da ilha Mutum, submetidos a um sistema desagregador, por meio do qual as antigas convivências que mantinham com o seu hábitat de origem são dissolvidas, e com elas o delicado tecido de experiências cotidianas divididas com os demais membros da comunidade. E, no quadro geral das experiências de vida dos moradores, no qual se articulam os contatos estabelecidos com os membros da família e com os membros da comunidade, e no conjunto das reações que estes esboçam frente às vicissitudes originadas na luta pela sobrevivência na região, é que se define o espaço onde a questão existencial adquire seu caráter transcendente. Caráter este que se configura na luta pela manutenção das condições mínimas de sobrevivência, e que é sempre mais nítido quando comparado ao conflito quase silencioso dos homens que buscam compreender o seu lugar no mundo, seja este mundo representado pela sociedade construída coletivamente pela espécie humana, ou representado pela expressão “mundo natural”, do qual participamos como entidades biológicas e no qual partilhamos com os demais seres vivos uma jornada comum no transcurso da história planetária. Palavras-chave : Crise existencial. Crise Ambiental. Existencialismo. História Oral. Memória. Natureza.

Environmental and existential conflicts presents in the fishermen comunity of Porto Rico - Paraná State - Brazil

ABSTRACT

The research about individual and collective memory to make to researcher of several social areas possible he reaches the men in their original space of action, creation and representation of the world, considering that the conflicts the interpretations and the men attitudes in front of deeply contradictions presents in the existence establish themselves in the intersection between individual memory and the collective memory. In a first moment, the research, started with Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais in 2003, had such objective to discuss if the identity between the environmental conflict and the existential conflict in the relation among fishermen of Porto Rico – Paraná with the nature had a relevance. Nevertheless, the contact with local population to lead to include a special group that to take part in the community: the fisherwomen. The first interview revealed us that the women participation in fishing activity that region was and nowadays is more intense than we thought at beginning. This way, we chose to involve in our research the life history of these fisherwomen and ex-fisherwomen that region. The recovering of life history and the record of individual and collective memory these people that collaborated with our work was realized by an interviews join with, a whole, fourteen citizens: seven women and seven men, with the 38-78 age group. These residents that was interviewed, they dedicate direct and indirect to fishing activity.We used the techniques of oral history in the elaboration and application of the interviews, with a questions schedule semi structured, and we tried to intervene, while we realized the interviews, to a minimum in the interviewers’ narration. It was possible in the interviews’ analyses to verify the presence of existential conflicts under the conflicts from Porto Rico residents in front of the environmental changes in their residential space; in front of lack of publics’ policies that to consider the importance of human communities’ preservation and don’t to leave them to imminent extinction; in front of environmental laws’ interpretations that don’t consider the interest of these poor and marginalized population. The existential conflicts are presents too in the scope of relations between man and nature and of relation between man and itself, when this existential question displays two distinct shapes. By the way, the immanent character of existential conflict displays itself in almost unanimous situation, in which the residents interviewed from Porto Rico city are, mainly those was forced to get out of the Mutum island, and submitted by a system that disjoin, by which aged living, that they had with their original habitat, are solved and with them are solved the delicate cloth of the daily experiences shared with others community members. By the other way, the existential question to acquire your transcendent character in the space, which is defined in the general picture of life experiences from these residents, where the contacts established with the family members and with the community members are articulate; and is defined too in the reactions’ join that they draw up in front of the vicissitudes originated in fight by surviving in that region. Character that figures in the fight to obtain minimum of conditions to survive and it is always more clear when it is compared to conflict almost silent from the men that try to understand their place in the world, been this world represents by society built collectively by human species, or represents by the expression “natural world”, in which we participate such biological entity and in which we share with the others living a common journey in the course of planetary history. Keywords : Existential crisis. Enviromental crisis. Existentialism. Oral History. Memory. Nature.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 11

2 PENSANDO A NATUREZA... PENSANDO A VIDA ...... 14

3 PENSANDO A VIDA... PENSANDO A NATUREZA ...... 36

3.1 Mulheres de Porto Rico: uma história à parte...... 48

4 CONSIDERAÇÕES... NEM UM POUCO FINAIS ...... 65

REFERÊNCIAS ...... 84

11

1 INTRODUÇÃO

Quando iniciamos nosso trabalho de pesquisa junto ao Programa de Pós-

Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais em 2003, a proposta que apresentamos naquele momento tinha por objetivo discutir na relação travada entre os pescadores de Porto Rico – Paraná (figura 1) com a natureza, a pertinência da identidade entre o conflito ambiental e o conflito existencial. Para nossa surpresa, o contato com a população local, logo nos mostrou o equívoco que cometeríamos se não déssemos a atenção adequada a um grupo muito especial que compõe essa comunidade: as mulheres. Os primeiros contatos nos revelaram que a participação das mulheres na atividade pesqueira da região, foi e é muito mais intensa do que pensávamos a princípio. Para tanto, optamos por ampliar o leque de nossa investigação, envolvendo em nosso trabalho a história de vida das pescadoras e ex-pescadoras da região pois, apesar de não serem reconhecidas profissionalmente, as mulheres que entrevistamos dedicaram-se, e em alguns casos ainda se dedicam, à pesca ao lado dos maridos, pais e irmãos.

Figura 1. Mapa da Região de Porto Rico. Fonte: Adaptado de Parolin e Stevaux (2001). 12

Para a recuperação da história de vida e o respectivo registro da memória individual/coletiva das pessoas que colaboraram com nosso projeto, realizamos um conjunto de entrevistas com um total de quatorze moradores da cidade, sendo sete mulheres e sete homens, em uma faixa etária que vai de trinta e oito a setenta e oito anos, os quais atualmente dedicam-se direta ou indiretamente à atividade pesqueira.

Para a elaboração e aplicação das entrevistas, utilizamos as técnicas da história oral, com um roteiro de perguntas semi-estruturadas, procuramos promover o mínimo de intervenção na narrativa dos depoentes, evitando sempre que possível paralisar o fluxo natural das recordações à medida que vinham à consciência de nossos entrevistados (BOM

MEIHY, 2002, p.79).

A memória individual/social, capturada por meio das técnicas de entrevista da história oral, representa para o estudo das sociedades humanas uma dimensão única, que permite ao pesquisador das diversas áreas sociais, alcançar os homens em seu espaço original de ação, criação e representação do mundo, pois é na intersecção entre a memória individual e a memória coletiva, que se estabelecem os conflitos, as interpretações, e as atitudes dos homens frente às profundas contradições que permeiam a existência.

“(...) a memória resgata as reações ou o que está submerso no desejo e na vontade individual e coletiva” (MONTENEGRO, 1994, p.20), o trabalho com a memória apresenta ainda uma inestimável função social: a preservação da identidade. Identidade que também é ameaçada pela aceleração da vida, pelas forças desagregadoras de um sistema econômico que arrancam dos homens o tempo de sonhar, o tempo de criar e o tempo de lembrar.

No quadro atual das sociedades contemporâneas temos observado que as questões ambientais estão profundamente ligadas ao problema da sobrevivência do homem no planeta, ou seja, os problemas ecológicos não estão desvinculados dos grandes temas sociais 13

como a fome, a miséria, a violência, o desemprego, as profundas diferenças sociais que se ampliam a cada ano entre as pessoas de uma mesma sociedade, a dominação de países ricos sobre a maioria dos países do mundo, as guerras, a corrida armamentista, em suma a tudo que temos construído coletivamente. Assim, as crises ecológicas a cada tempo, seriam também, um reflexo mais amplo das crises existenciais experimentadas por todos os homens.

Partindo da concepção da relação entre crise existencial e crise ambiental procuramos no primeiro capítulo deste trabalho, a partir de um esboço do debate sobre o conceito de natureza como um conceito que remete à vida, demonstrar a indissociabilidade entre conflito ambiental e conflito existencial, tomando como pano de fundo a análise do conceito de angústia presente na da obra de filósofos existencialistas como Sartre,

Kierkeegaard e das contribuições sobre a mesma temática em Heideggerd e Bergson.

E no segundo capítulo apresentamos o resultado das entrevistas com os moradores da cidade de Porto Rico, nas quais destacamos as recordações que mais firmemente se fixaram em suas memórias, e por meio das quais foi possível identificar o conflito destes moradores com a natureza entendendo este conflito como conflito existencial.

14

2 PENSANDO A NATUREZA...PENSANDO A VIDA

Havendo recebido em grande cópia seres vivos, mortais e imortais, este mundo se tornou um animal visível que abrange todos os animais visíveis, um deus sensível feito à imagem do inteligível, supremo em grandeza e excelência, em beleza e perfeição: este céu único e singular em espécie. (PLATÃO, 1977, p.112)

Com estas idéias, Platão encerra o seu único diálogo dedicado à cosmologia: o Timeu. Escrito em uma linguagem controversa, o belo texto platônico nos oferece, entre uma história e outra, a narrativa mítica da criação do mundo. Obra de um demiurgo

(arquiteto) criado pelo Bem, o mundo ou kósmos se configura em uma cópia do mundo inteligível, das formas perfeitas, das idéias (ou eîdos ) eternas, tomadas como o modelo a ser impresso na matéria caótica e desordenada (CHAUÍ, 2002, p.269).

Porque a divindade, desejando emprestar ao mundo a mais completa semelhança com o ser inteligível, mais belo e o mais perfeito em tudo, formou-o à maneira de um só animal visível que em si próprio encerre todos os seres vivos aparentados por natureza (PLATÃO, 1977, p.48).

Este grande animal que conteria em si mesmo todos os demais seres, fora dotado ainda de alma e inteligência; como um organismo, todas as suas partes comporiam juntas uma sinfonia singular; animais e plantas participando “psiquicamente, em determinado grau, no processo vital da ‘alma’ do Mundo” (COLLINGWOOD, 1986, p.10).

A natureza estava constantemente presente na vida dos antigos gregos, e em um sentido mais amplo, na própria representação que faziam de si mesmos e do meio social em que viviam, pois a idéia de kósmos se origina da organização das diversas atividades da comunidade grega na pólis: das cerimônias religiosas; da dança; ou mesmo da organização do exército. A filosofia que se origina na Grécia no século VI a.C. é antes de tudo uma cosmologia, um esforço original do pensamento humano, empreendido na busca de uma explicação para a natureza (CHAUI, 2002, p.45). 15

Não apenas entre os gregos a natureza esteve sempre muito próxima,

Heródoto (1985, p.110) em suas viagens pelo Egito descreveu o sentimento de profundo pesar manifestado pelos habitantes do Nilo quando seus animais domésticos morriam: em sinal de luto, era costume os egípcios rasparem as sobrancelhas quando perdiam o gato da família por morte natural, e o corpo todo quando o mesmo acontecia com o cachorro.

Os antigos egípcios, como os demais povos da antigüidade oriental, compreenderam de forma significativa a dependência que mantinham com relação ao meio natural. A utilização dos recursos naturais era indispensável para a sobrevivência dos habitantes dos desertos, das montanhas e das planícies costeiras. Conhecer o meio natural e a dinâmica da vida nas regiões onde viviam, aguçava as sensibilidades de homens e mulheres que passaram a contemplar mais detidamente, ainda que de forma não sistemática, o mundo a sua volta. A observação da natureza não seria então exclusividade dos homens do século XVI e XVII; muito antes das revoluções científicas ou dos adventos das “civilizações” antigas, os primeiros seres humanos buscaram entender a dinâmica dos fenômenos da natureza

(LENOBLE, 2002, p.28).

Não é difícil imaginar como a natureza tornou-se “sagrada” para nossos ancestrais; mesmo hoje as tempestades provocam sentimentos divergentes em algumas pessoas: medo; espanto ou a mais profunda admiração pelo espetáculo provocado por raios e trovões, sons vigorosos ecoando pelo céu, denunciando a energia contida que se despedaça em cores enquanto rasga as nuvens em um vai e vem frenético, cujo ritmo nos leva a crer, se assemelha em intensidade ao da própria vida. Mais do que o medo da morte, as tempestades provocariam em nós uma sensação de descoberta, a sensação de que partilhamos com elas, de alguma forma, um determinado grau de parentesco, pois, a energia e a força dos raios estão presentes, em intensidades diferentes, na explosão vibrante das conexões sinápticas neuronais. 16

Neste sentido, François Dagognet (2000, p.165) observou bem que a idéia de natureza em sua raiz etimológica é indissociável das idéias de “vida” e de “força”.

Originada do grego phýsis , a palavra natureza possui três significados “principais”: em primeiro lugar pode ser traduzida como a “força” que permite o nascimento e o desenvolvimento constante de todas as coisas; em segundo lugar, a expressão caracteriza um ser em si mesmo, ou seja, a sua “natureza” ou o seu “caráter espontâneo”; e, finalmente, como aquilo que constitui todos os seres, a phýsis é a “manifestação visível da “arkhé” (origem), o

“princípio absoluto (primeiro e último) de tudo o que existe”. (CHAUÍ, 2002, p.46-47).

Heidegger (1999, p.46-47) chama a atenção ainda para o fato de os antigos gregos compreenderem phýsis como sendo o “ente como tal em sua totalidade”, e contrariamente ao significado desenvolvido posteriormente no sentido do “físico”, o vocábulo englobaria a princípio o “psíquico” e o “vivente”, opondo-se então a tékhne , ou seja, a tudo o que diz respeito ao que é produzido pelo homem e não pode ser “fabricado” pela natureza

(CHAUÍ, 2002, p.512).

Esta relação íntima entre os conceitos apresenta implicações singulares para a reflexão dos conflitos (ou por que não dizer conflitos existenciais) que têm marcado os confrontos dos homens entre si e destes com a natureza. Toda a reflexão sobre a natureza é em um sentido mais amplo, uma reflexão sobre a vida, tomada em suas várias dimensões. A este respeito Edgar Morin já havia assinalado:

De fato, não cessamos de encontar/ultrapassar a natureza, de a encontar ultrapassando-a (é por termos ultrapassado os limites e as imposições ecológicas que encontramos a natureza), de a ultrapassar encontrando-a (pois os regressos à natureza desenvolvem novas complexidades antroposssociais). Mais do que nunca temos de encontrar a natureza, isto é, de relacionar e relativizar nela todos os nossos problemas humanos, inclusive os nossos problemas existenciais (...) (MORIN, 1999, p.93).

Desde que chegamos ao mundo, como uma espécie consciente de si mesma, não cessamos de nos questionar sobre nossas origens, sobre as razões de nossa existência; aliás, quase sempre procuramos deseperadamente encontrar algum significado para nossas 17

vidas. A ciência, a filosofia, a arte, e em todas as criações do homem é possível encontrarmos o esforço humano em busca de respostas, em busca da compreensão de nós mesmos e da realidade na qual estamos inseridos.

Temos compartilhado o planeta com uma multiplicidade de seres vivos e não-vivos, com os quais mantemos relações concretas, e embora nem sempre pacíficas, configuram-se como “realidades” que não nos permitem uma fuga imediata. Como observou

Jean-Paul Sartre (1997, p.620): “Assim, desde que existo, sou lançado no meio de existências diferentes de mim, que desenvolvem à minha volta suas potencialidades, a meu favor e contra mim”, ou seja, como ser-no-mundo, expressão heideggeriana, o homem não pode escapar à condição de ser livre e constituir-se como um “projeto” de si mesmo, sendo portanto, o resultado de suas escolhas (SARTRE, 2004, p.30).

As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver nos espelhos tal como seus amigos as vêem. Não tenho amigos: será por isso que minha carne é tão nua? Dir-se-ia – sim, dir-se-ia a natureza sem os homens. (SARTRE, 1996, p.37)

A angústia de Antoine Roquentin, personagem central na trama de A

Náusea de Sartre, está ligada a esta descoberta que o homem faz de “si-mesmo” como um ser livre. Mas, diferente dos “outros seres”, o homem não apenas “é”, ele existe, pois há uma importante “distinção entre existir e ser”; enquanto todas as coisas e os demais seres simplesmente são, apenas o homem existe, pois somente o homem é livre (PENHA, 1985, p.64).

Como um projeto sempre inacabado, criando-se continuamente, e não tendo mais ou menos importância do que qualquer outro ser colocado no mundo, o homem não poderia considerar sua existência como tributária de uma existência sobrenatural, uma vez que existindo ou não a figura de um Deus, este fato não “liberta” o homem de sua condição de

“ser livre”, ao contrário, ele está irremediavelmente “condenado à liberdade” (SARTRE,

2004, p.37-40). 18

Contudo, mesmo que tenhamos ou não vivenciado o sentimento despertado pela “náusea” sartreana, sentimento que nos invade diante do desvelamento do “absurdo do real” e da “contingência essencial” a qual nos revela a “gratuidade” da vida, a ausência de finalidade e de sentido para tudo o que existe e vemos assim estarrecidos, que “a existência não é necessidade” (REALE; ANTISERI, 2006, p.227), é impossível sermo-nos totalmente indiferentes ao meio e aos seres que nos cercam, pois como um pintor a compor sua tela, o real imprime sobre nós um conjunto singular de formas, cores, luzes, sabores, com a diferença específica de que neste caso, a tela reage diante do artista, devolvendo-lhe suas próprias impressões, discordando dos tons, reclamando das formas, ou freqüentemente duvidando da existência de ambos: autor e obra.

Com a vida da qual participamos, e mesmo com a ausência dela (não-vivo), experimentamos a percepção da semelhança e da diferença, da singularidade, da identidade, e, sobretudo com a primeira, experimentamos a percepção da morte. A morte, companheira da vida (BICHAT, 1994, p.57), condição única contra a qual lutamos incessantemente; ponto de convergência entre o desespero da finitude e a esperança enraizada na forte crença de que ao ultrapassá-la, poderemos encontrar novamente além dela: a vida.

Entretanto, a liberdade que por vezes recusamos ou buscamos escapar

(FROMM, 1983, p.114-165), acreditando ser mais fácil ceder a outrem o controle de nossos destinos; a liberdade que nos conferiria a singularidade característica da humanidade: somos seres históricos e culturais, capazes de construir o próprio presente, modelando-o por meio de nossas decisões, ao mesmo tempo em que nos projetamos a um futuro possível, mas ainda virtual; enfim, esta liberdade “responsável” ainda pelo enorme “abismo” que nos separaria dos outros animais (FERRY, 1994, p.75), nos transformando em animais solitários (MORIN,

1979, p.35), seria uma experiência relativa apenas aos seres humanos? 19

Esta espécie “solitária”, como acredita Morin, vagando por séculos nesse planeta, transformando gradativamente a face de todos os territórios onde resolveu fixar-se, descrevendo um percurso que mesmo não se caracterizando por um contínuo lógico, vem carregando desde então todo o resultado das escolhas feitas por seus grupos: individual ou coletivamente somos responsáveis pelo desaparecimento de outras formas de vida; por interferências em níveis diferentes nas diversas comunidades orgânicas (sem levarmos em consideração ainda os contatos entre as diferentes sociedades humanas, quase sempre beligerantes); e por alterações profundas no meio físico.

Como “protagonistas tardios” em um universo gerado por um Big Bang

(MORIN, 2002, p.26), ou se preferirmos abdicar de tal teoria: como habitantes de um universo infinito no espaço e no tempo (NEVES, 2000, p.192-193), pequenos pontos de matéria e energia que brevemente podem eclipsar-se, ou seríamos como sugere Comte-

Sponville (2000, p. 83), contemporâneos da eternidade, uma vez que para o filósofo francês a eternidade não seria “um tempo que duraria sempre, mas o sempre presente da duração; não sua infinidade em potência, mas sua perenidade em ato”.

Contudo, se por um lado o “distanciamento” da natureza teria contribuído para a geração de uma “espécie solitária”, capaz de subverter as pressões do meio físico e os mecanismos biológicos condicionantes, na trajetória descrita pelo processo de sua autocriação, a espécie humana dividiu com a natureza uma história em comum:

A eclosão de uma linha crítica assinalando a erupção da nossa espécie, distanciando-a das outras espécies, não indica uma pretensa saída da natureza: essa ruptura nunca aconteceu. Na tão estudada passagem do animal ao homem, ela marca a transição da primeira história comum, em que o homem surge como um produto, à segunda história, a sua própria história, em que ele se produz a si mesmo como princípio ativo. (MOSCOVICI, 1977, p.20)

Ao contrário de Sartre e em um sentido mais próximo ao pensamento de

Moscovici, o filósofo francês Henri Bergson propõe uma teoria sobre a vida e a natureza, na qual a liberdade e a consciência não são atributos exclusivos da espécie humana. Considerado 20

por alguns como o “Heráclito moderno”, e tendo as suas obras anexadas ao Index

Prohibitorum da igreja Católica em 1914 (WHITROW, 1993, p.192), Bergson havia elaborado uma crítica contundente às ciências positivas, em especial as abordagens mecanicistas da natureza, que buscavam explicar a vida tomando como referência os mesmos critérios adotados para a matéria inerte (BERGSON, 2005, p.213-214).

A crítica bergsoniana reclama uma verdadeira “reforma do entendimento – todas as dimensões do saber deverão sofrer uma reformulação radical” (PRADO JR, 1988, p.166), pois para Bergson os “quadros” da inteligência, do pensamento são estreitos demais para abarcar a vida como duração, como fluxo incessante, como criação contínua

(BERGSON, 2005, p.X).

Para compreendermos a vida em seu processo constante de criação, é necessário recorrermos à intuição, que em Bergson se constitui também em um método: “o método do bergsonismo” (DELEUZE, 1999, p.7):

De fato, na humanidade de que fazemos parte, a intuição é quase que completamente sacrificada à inteligência. Parece que a consciência tenha preciso esgotar o melhor de sua força em conquistar a matéria e em reconquistar-se a si própria. Essa conquista, nas condições particulares em que se deu, exigia que a consciência se adaptasse aos hábitos da matéria e concentrasse toda sua atenção neles, enfim, que se determinasse mais precisamente em inteligência. A intuição está aí, no entanto, embora vaga e sobretudo descontínua. É uma lâmpada quase que apagada, que só se reanima de longe em longe, por alguns instantes apenas. Mas reanima-se, em suma, ali onde um interesse vital está em jogo. Sobre nossa personalidade, sobre nossa liberdade, sobre o lugar que ocupamos no conjunto da natureza, sobre nossa origem e talvez também sobre nosso destino, projeta uma luz vacilante e fraca, mas que nem por isso rasga menos a obscuridade da noite em que nos deixa a inteligência.(BERGSON, 2005, p.290)

A inteligência fora “modelada” no processo evolutivo da vida para atender as exigências da ação, permitir ao ser vivo responder ao meio físico, “prever” as situações que seriam enfrentadas em suas relações com ele (BERGSON, 2005, p.32), contudo, somente a intuição é capaz de penetrar a duração, somente a intuição nos “conduzirá ao interior da vida”(REALE; ANTISERI, 2006, p.355). 21

A duração é o componente próprio do ser, o sentimento da duração que experenciamos não é senão, o da “coincidência de nosso eu consigo mesmo”, o aprofundamento deste sentimento e paralelamente a completude desta coincidência, permite à vida “absorver” a intelectualidade, e assim superá-la (BERGSON, 2005, p.218).

A duração, como fora teorizada por Bergson, permitiu uma nova forma de filosofia da natureza; ao “pensar todas as coisas” sob o prisma deste movimento ininterrupto de auto-criação, o “filósofo compreende a duração como o próprio ser da natureza”(VIEILLARD-BARON, 2004, p.11-18).

A teoria da evolução criadora, como uma crítica ao evolucionismo mecanicista de Spencer, inaugura a cosmologia bergsoniana – uma nova teoria capaz de dar conta do movimento de constante fazer-se tão próprio da evolução da vida; e concomitantemente explicita a trajetória descrita pela consciência em seu desenvolvimento inicial (PRADO JR, 1988, p. 170). Em tal teoria os conceitos de vida e matéria não são mais antagônicos, antes são as expressões interdependência, unidade indissociável da duração, auto-criação, que vêm substituir a realidade fragmentada pelas ciências positivas, por uma realidade na qual todos os seres vivos e não-vivos possuem uma relação íntima, cuja solidariedade se inscreve no conceito de elã (impulso) vital, pois nesta realidade todos os seres vivos compartilham de um mesmo elã originário:

Tudo se passa como se uma larga corrente de consciência houvesse penetrado na matéria, carregada, como toda consciência, de uma multiplicidade enorme de virtualidades que se interpenetram. Arrastou a matéria para a organização, mas isso fez com que seu movimento fosse ao mesmo tempo infinitamente retardado e infinitamente dividido. De um lado, com efeito, a consciência teve de adormecer, como a crisálida no invólucro no qual prepara suas asas, e, de outro, as tendências múltiplas que encerrava repartiram-se por séries divergentes de organismos, que aliás, antes exteriorizavam essas tendências em movimentos do que as interiorizavam em representações. Ao longo dessa evolução, enquanto uns adormeciam cada vez mais profundamente, outros despertavam cada vez mais completamente, e o torpor de uns servia a atividade dos outros. (BERGSON, 2005, p.196-197)

22

O elã original do qual os seres vivos participam é o responsável por empurrar a vida em direção a “formas cada vez mais complexas”, fenômeno perceptível “em um simples lance de olhos nas espécies fósseis”, não se trata de rejeitar a idéia de adaptação – diz-nos o filósofo francês – mas de conhecer os seus limites: “a adaptação explica as sinuosidades do movimento evolutivo, mas não as direções gerais do movimento, muito menos o próprio movimento”(BERGSON, 2005, p.111-112). Na expressão de Maria Luiza

Landin (2001, p.187), em função da vida “emergir” da duração, todos os “seres naturais” possuem por conseqüência , um “parentesco ontológico”.

O processo rumo à complexificação da espécie humana, descreve na história da vida, a libertação da consciência frente ao “esmagamento” proporcionado pela matéria

(BERGSON, 2005, p.286); a consciência nos demais seres vivos, sobretudo entre os outros animais, mesmo englobando um “campo enorme”, ainda permanece “comprimida por uma espécie de prensa”, representada neste caso pelo nível de organização e complexidade do sistema nervoso (BERGSON, 2005, p.194.).

Antes de Sartre, Bergson (2005, p.292) já afirmava a consciência como liberdade, teoria que começa a elaborar em sua tese de doutorado: os Ensaios Sobre os Dados

Imediatos da Consciência (1988, p.117-120), na qual apresenta a relação direta do ato livre com a manifestação intensa do “eu fundamental”, com a pura duração. A consciência então, não é a vida voltando-se sobre si mesma, no sentido sartreano de ser um “ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo” (SARTRE, 1997, p. 35), mas a consciência é a própria vida enquanto processo criador.

A vida tomada como duração apresenta implicações ainda mais originais, uma vez admitido o fluxo sempre constante de criação, indiviso, exceto para a inteligência, torna-se absurdo imaginar a existência de um objetivo para a vida, pois isto seria “supor, no 23

fundo, que tudo está dado”(BERGSON, 2005, p.56), e, portanto, negar o movimento incessante das coisas, negar a duração. Ao mesmo tempo, pensar a vida sobre este ângulo é recusar a figura de um criador como um ponto de partida, pois Deus “nada tem de já pronto; é vida incessante, ação, liberdade”(BERGSON, 2005, p.270).

Em Bergson o conceito de vida está associado ao conceito de memória, esta conexão se explica pela “conservação e acumulação do passado no presente”(DELEUZE,

1999, p.39), e pela importante distinção que o filósofo faz neste processo, entre memória, recordação e percepção: “a memória coincide e se identifica com a própria consciência”, memória é duração; a recordação é o ato pelo qual o passado necessário à vida imediata, torna-se simultâneo do presente, ou seja, por meio da recordação as lembranças “funcionais para a inserção de nosso organismo na situação presente, através das percepções” se realizam

(REALE; ANTISERI, 2006, p.352).

Que somos nós, com efeito, que é nosso caráter, senão a condensação da história que vivemos desde nosso nascimento, antes mesmo de nosso nascimento, já que trazemos conosco disposições pré-natais? Sem dúvida, pensamos apenas com uma pequena parte de nosso passado, mas é com nosso passado inteiro, inclusive nossa curvatura da alma original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado, portanto, manifesta-se nos integralmente por seu impulso e na forma de tendência, ainda que apenas uma sua diminuta parte se torne representação (BERGSON, 2005, p.5-6).

Para esclarecer o processo de “presentificação” do passado, por meio do qual a lembrança pura, que contém todo o conteúdo do passado apreendido e que não foi ainda evocado pelo presente, se converte em lembrança-imagem (recordação), Bergson montou a figura de um cone invertido:

24

A B

P

S

Figura 2. Cone invertido de Bergson. Fonte: Bergson (1999, p.178).

SAB representa o conjunto de todas as lembranças que estão acumuladas na memória, a base AB corresponde ao passado ainda não presentificado, S é o presente em seu movimento freqüente de apelo ao passado, enquanto “toca o plano móvel P”, plano de nossas

“representações” atualizadas do universo (BERGSON, 1999, p. 178).

O passado não apenas coexiste com o presente, mas se desloca “inteiro” em cada novo presente no momento da percepção, da percepção pura que se atualiza e se converte em uma percepção concreta, complexa. A percepção pura é “apenas um ideal, um limite”

(BERGSON, 1999, p.285), como um conceito-limite, ela expressa uma forma de percepção capaz de “obter da matéria uma visão ao mesmo tempo imediata e instantânea”, ou seja, na percepção pura, o passado ainda não participa, não a preenche completamente com dados de experiências anteriores. Por ser um “conceito-limite”, a percepção pura está “impregnada de lembranças-imagens”, desta forma, “perceber acaba não sendo mais do que uma ocasião de lembrar”(BERGSON, 1999, p.69), para Bergson não existe percepção que não esteja repleta de experiências já vividas.

O processo de atualização da memória, do “passado integral”, obedece a dois diferentes movimentos: um de translação, no qual a memória se desloca em sua totalidade sobre a experiência (percepção); e um movimento de rotação em torno de si mesma, 25

recuperando dados que sejam mais necessários à experiência; a memória, portanto, é também seletiva.

Da análise do mecanismo de funcionamento da memória, podemos inferir que é do presente que parte o chamado ao qual o passado responde, porém, se todas as percepções estão “impregnadas de lembranças”, passado e presente são duas realidades coexistentes. Em meio a um jogo dialético, surge o “mais profundo paradoxo da memória: o passado é

‘contemporâneo’ do presente que ele foi”(DELEUZE, 1999, p.45).

Em sua teoria, Bergson se opõe à concepção materialista da memória, para a qual o cérebro se constituía em um mero receptáculo onde os acontecimentos seriam registrados de forma mecânica, e na qual teríamos uma “paralelismo” entre as atividades da consciência/memória e as atividades cerebrais (BERGSON, 2005, p. 285). O corpo e, de uma forma mais específica, o sistema nervoso, como centros de ação não poderiam engendrar representações, mas, caberia ao corpo a importante função de “orientar a memória para o real e de ligá-la ao presente”(BERGSON, 1999, p.208).

Como duração, a memória não poderia ser ainda uma particularidade humana; nos outros animais, tomando como exemplo o cachorro, Bergson (2005, p.195) afirma que a lembrança “permanecerá cativa da percepção; só despertará quando uma percepção análoga vier recordá-la”, pois somente nos homens as lembranças podem ser evocadas em qualquer momento, “independentemente da percepção atual”.

Bergson sofreu muitas críticas ao estabelecer a identidade memória/duração/consciência, as mais contundentes vieram de um de seus ex-alunos, o sociólogo Maurice Halbwachs. Para Halbwachs (1990), quando nos encontramos a sós e nos colocamos a recordar um determinado momento já vivido, imaginamos que esta recordação seja exclusivamente posta pelo sujeito-que-recorda. Esta condição é impensável, sem que o conjunto de relações com as quais cada pessoa opera seja levado em consideração. Cada um 26

de nós faz parte de um ou mais grupos sociais que interagem entre si e com outros grupos mais distantes. A memória de cada indivíduo fica, portanto, indissociada da memória do grupo, que por sua vez, forma em um contexto mais amplo a memória coletiva.

A outra crítica endereçada por Halbwachs, relacionada à conservação total do passado, constitui-se em um dos pontos essenciais das divergências que este irá manter com relação à teoria do filósofo francês (BOSI, 1994, p.54). Segundo Halbwachs (1990, p.77), não existe “nenhuma galeria subterrânea de nosso pensamento” repleta de imagens prontas capazes de nos permitir lembrar, mas ao contrário, na sociedade é que encontraríamos os indícios necessários para reconstruirmos o nosso passado.

É importante frisar a este respeito, que Bergson não negava a participação de outras pessoas ou grupos na constituição da memória, antes sua preocupação fora mostrar que a memória como duração apresenta conseqüências ontológicas mais abrangentes. Podemos encontrar indícios do que afirmamos, na reflexão do autor sobre a filosofia necessária para dar conta do devir:

Mas uma tal doutrina não facilita apenas a especulação. Dá-nos também mais força para agir e para viver. Pois, com ela, não nos sentimos mais isolados na humanidade, a humanidade também já não nos parece isolada na natureza que ela domina. Assim como o menor grão de poeira é solidário de nosso sistema solar inteiro, arrastado com ele nesse movimento indiviso de descida que é a própria materialidade, assim também todos os seres organizados, do mais humilde ao mais elevado, desde as primeiras origens da vida até os tempos em que estamos, e em todos os lugares bem como em todos os tempos, não fazem mais que tornar perceptível pelos sentidos uma impulsão única, inversa do movimento da matéria e, em si mesma, indivisível (BERGSON, 2005, p.293).

A memória não se confunde com a duração ou com a vida, ela é duração, a memória é vida. A memória comporta todas as lembranças, não apenas do indivíduo, mas como duração, comporta em si mesma toda a memória da vida, “tudo se passa como se o universo fosse uma formidável Memória”(DELEUZE, 1999, p.61). Bergson refere-se neste sentido, a uma memória cósmica. 27

Para Maria Luiza Landin (2001, p. 186-218), na filosofia de Bergson encontramos um pensamento de “reconciliação” entre homem e natureza, cujas implicações se estendem para a reflexão ecológica, mais propriamente para os resultados efetivos da aplicação da ética que se desprende sob o fundo da filosofia da Duração, ética que como a memória se faz cósmica, englobando todos os seres da natureza, opondo-se ao modelo ético antropocêntrico, para o qual “a racionalidade é a única base da moralidade”. Landin vai ainda mais longe, imaginando a posição que Bergson tomaria no atual debate ecológico; posiciona-o como um

“defensor” do “valor intrínseco da natureza”.

Além da possibilidade de uma “ética cósmica”, possível a partir da concepção de duração como vida e liberdade, como um “fundo idêntico a todos os seres” (LANDIN, 2001, p.190), a solidariedade entre os seres vivos por intermédio do elã vital, conceito retomado por

Bergson em sua filosofia, é uma antecipação na esfera ontológica , do esforço de Edgar Morin

(1999, p.14) em buscar um pensamento “capaz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real”, em elaborar assim, um pensamento complexo. Bergson o faz, entretanto, pela via da intuição enquanto método.

O aspecto complexo que caracteriza a evolução da vida, como abordado por

Bergson, permite entrever uma dialética semelhante à utilizada por Morin (1979, p.96-97) em suas reflexões sobre o processo multidimensional que levou à humanização do homem:

Sentimos perfeitamente, também, que, mesmo que nos atenhamos ao mundo organizado, não é lá mais fácil provar que tudo nele seja harmonia. Os fatos, interrogados, diriam com igual propriedade o contrário. A natureza põe os seres vivos em confronto uns com os outros. Apresenta-nos por toda parte a ordem ao lado da desordem, a regressão ao lado do progresso (BERGSON, 2005, p.44).

Como já observara Landin (2001), e mais próximo de Moscovici (1977) como dissemos anteriormente, Bergson não poderia admitir uma ruptura completa entre homem e natureza, antes, o impulso vital como um traço de união entre os seres vivos, transformou na 28

trajetória evolutiva da vida, os animais em nossos “úteis companheiros de viagem”(BERGSON, 2005, p.289).

No seio desta trajetória compartilhada, o homem tem se vangloriado em algumas de suas autobiografias, do enorme poder investido a si mesmo para interferir profundamente no cenário do planeta. As sociedades da antigüidade com uma organização complexa, eram aplaudidas por historiadores conservadores, mais por seu poder invejável de transformar extensos desertos em áreas agrícolas, de intervir diretamente no curso dos rios, do que pela compreensão que tinham da dependência de suas comunidades em função do meio natural, como é o caso específico dos antigos egípcios.

Desta forma, as sociedades consideradas mais “avançadas” seriam aquelas que desenvolveram a técnica e “dominaram” precocemente os recursos naturais, e souberam a partir daí expandir seus domínios sobre as demais sociedades consideradas “primitivas”, as quais por sua vez eram organizadas dentro de um modo de produção semelhante ao adotado no período neolítico, ou seja, possuíam uma atividade produtiva baseada na caça, na coleta e em uma agricultura de subsistência.

O domínio da técnica tornou-se desta forma, um padrão de medida para avaliar as diferenças entre as diversas culturas humanas e, ao mesmo tempo, um importante indicador de

“supremacia intelectual”.

A tecnologia como já dissera Marx (1989, p.425) reflete a forma como o homem age com a natureza. No período de transição das sociedades européias para o modo de produção capitalista contemporâneo, o meio natural foi paulatinamente subordinado aos interesses da indústria e do comércio, sobretudo entre os séculos XVIII e XX, com o advento das duas grandes Revoluções Industriais, este período veria nascer também a ideologia do progresso, guia infalível das sociedades capitalistas na condução de seus destinos em direção ao paraíso do desenvolvimento ilimitado: 29

O homem, que com sua práxis ‘escreve’ na natureza, indica com sua atividade uma direção ao processo de progresso e desenvolvimento e o faz por estar necessariamente inserido num contexto histórico, isto é, ele não é um homem abstrato, mas a corporificação da burguesia portadora do espírito do capitalismo (ALMEIDA, 2001, p.171).

Se “qualquer historiador é implicitamente um filósofo, pois que decide sobre o que se considera antropologicamente interessante”, como advertira Paul Veyne (1989, p.6), é exatamente como filósofo que o historiador, e mesmo outros cientistas interessados nos conflitos entre o homem e o seu meio natural, não poderá deixar passar desapercebida, sob as raízes desta magnífica trama de relações que se desenrolou nos últimos cinco séculos, a presença constante de questões existenciais, ou mais especificamente, como não perceber em nossos conflitos com a natureza as marcas de nossas angústias existenciais.

“A filosofia tem por objetivo essencial expor o homem a ele mesmo, de tal maneira que ele se reconheça autenticamente”; Jean Beaufret (2000, p.11-12) sinaliza como conseqüência desta reflexão, a existência de dois tipos diferentes de filósofos: de um lado, surgem aqueles que tomando o homem em suas análises, somente conseguem atingi-lo ao fim de suas pesquisas, por meio de “pontos de vista abstratos sobre Deus, o ser, o mundo, a sociedade, as leis da natureza”, enfim, só apreendem o homem por vias indiretas, por meio de conexões interconceituais. Por outro lado, encontramos um outro grupo direcionado ao homem em sua existência concreta, e, “visando o próprio vivo em seu existir”, erigem uma forma de filosofia voltada para “esclarecer o enigma que o homem é para ele mesmo”. Neste

último grupo de filósofos, os existencialistas, a angústia existencial está ligada ao fenômeno da liberdade:

O eu é formado de finito e de infinito. Mas sua síntese é uma relação que apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que é a liberdade. O eu é liberdade (...) Quanto mais consciência houver, tanto mais eu haverá, pois que , quanto mais ela cresce, mais cresce a vontade , e haverá tanto mais eu quanto maior for a vontade. Num homem sem vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a vontade, maior será nele a consciência de si próprio (KIERKEGAARD, 1984, p.207).

30

Para Kierkegaard a angústia existencial é o efeito do “delírio da liberdade”, o afastamento da natureza teria possibilitado ao homem aumentar o seu domínio sobre o meio natural, mas ao conquistar a condição de ser livre, a espécie humana adquiriu a “perda de amparo natural”(SCHULTE; TÖLLE, 1981, p.64). “A superioridade do homem sobre o animal está pois em ser suscetível de desesperar”(KIERKEGAARD, 1984, pp. 197-201) – o desespero kierkegaardiano se explica pela luta constante do homem em libertar-se de si mesmo para alcançar assim, a condição de ser algo criado por ele próprio. Kierkegaard já procura mostrar em seu texto, o esforço humano em escapar ao paradoxo da liberdade como componente inerente ao eu, como dirá Sartre (1997, p.678) mais tarde: o homem está condenado à liberdade, esta é a única condição da qual ele não poderá se libertar.

Retomando o tema angústia/liberdade, Heidegger (1995, pp.247-252) apresenta uma continuidade em relação ao pensamento de Kierkegaard, analisando a angústia como uma “disposição privilegiada”, por meio da qual a pre-sença (Dasein ou ser-aí) se apercebe como um ser-no-mundo, aberto a possibilidades, como uma individualidade singular

- a “ angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo”. A angústia para Heidegger permite ao ser chegar a uma existência autêntica, e, por meio dela, o homem se depara consigo mesmo em toda sua

“instabilidade”e indeterminação, compreendendo a situação em que se encontra no mundo que o “absorveu” (RÉE, 2000, pp.38-39).

Sartre (1997, p.72) concordaria ainda com ambos os filósofos no que diz respeito a identificar a liberdade como característica intrínseca do ser, e acrescentaria o fato da angústia constituir o próprio “modo de ser da liberdade como consciência de ser”, é o momento em que a liberdade toma a si mesma como objeto de seu ser. Esta angústia prende- se também ao primado da responsabilidade ética dos homens entre si, uma vez que, ao 31

descobrir-se livre, o homem torna-se responsável por si mesmo e ao mesmo tempo torna-se responsável por todos os homens (SARTRE, 2004, pp.31-37).

Mas, se a angústia existencial é uma experiência ligada à descoberta do homem (existência concreta) como o território da “contingência”, da “indeterminação” e da

“liberdade” (HUISMAN, 2001, p.128), capaz de escolher a si mesmo e também aos outros homens, e de definir o seu futuro e de toda a humanidade; este sentimento “nauseante” despertado no momento em que nos apercebemos como “seres lançados-no-mundo”, um mundo cujo significado se despedaça frente à compreensão de que somos freqüentemente devorados ou subjulgados por aquilo que criamos: este sentimento seria restrito apenas à descoberta da liberdade que somos, liberdade alcançada com o afastamento do homem em relação a natureza?

Como vimos, para Sartre (1997, p.25) todas as coisas são, mas apenas o homem existe: “toda existência consciente existe como consciência de existir”, não é possível imaginar uma existência que não seja consciente de si mesma.Assim, o mundo só tem sentido para o homem, as alterações climáticas, os fenômenos da natureza como um todo que agem sobre o cotidiano das cidades e campos não fazem o menor sentido, a não ser quando lhe atribuímos algum: “se o ciclone pode trazer a morte de seres vivos, esta morte não será destruição, a menos se vivida como tal”(SARTRE, 1997, p.49).

A filosofia de Bergson contrasta com esta afirmação sartreana, ao tomar a vida como duração, e conseqüentemente como consciência e liberdade:

Buscamos apenas determinar o sentido preciso que nossa consciência dá à palavra ‘existir’ e descobrimos que para um ser consciente, existir consiste em mudar, mudar, em amadurecer, amadurecer, em criar-se indefinidamente a si mesmo. Poder-se-ia dizer o mesmo da existência em geral? (BERGSON, 2005, p.8).

Nas páginas seguintes, o filósofo procura mostrar uma resposta afirmativa para esta questão, acentuando a relação íntima existente entre a vida espalhada pelo planeta.

Mesmo retornando aos períodos mais longínquos da história da vida, encontraremos esta 32

relação, pois o princípio vital de cada indivíduo é “solidário” ao de seus ancestrais, e, no processo evolutivo esta solidariedade se expandiu às outras formas de organização vital que se destacaram, permanecendo “unido por liames invisíveis à totalidade dos seres vivos”

(BERGSON, 2005, p.47).

Para Collingwood (1986, pp.152-157), a teoria da matéria tal como aparece em Bergson “é um paradoxo monstruoso e intolerável”, ao subordinar a matéria à vida, o

“vitalismo” bergsoniano não criaria apenas mais dualismos (intelecto/intuição, matéria/vida e ação/intelecto), mas elaboraria uma cosmologia na qual nada mais tem importância, a não ser a vida.

Talvez, se Colingwood tivesse repassado os olhos mais de uma vez sobre as mesmas linhas de Bergson que lemos agora, mais especificamente em A Evolução Criadora, poderia ter notado com mais atenção que o filósofo francês não estabeleceu uma cisão entre a realidade e o sujeito-que-conhece, ou entre matéria e vida, antes, foi um crítico dos modelos de entendimento dominantes nas ciências da vida que tratavam o fenômeno vital dentro dos moldes “estreitos” do mecanicismo e do finalismo , como nos diz Reale e Antiseri (2006, p.

349): Bergson “foi o teórico da fidelidade a uma realidade não reduzida nem distorcida nos estreitos ‘fatos’ dos positivistas, mas aberta para a dimensão do espírito”. A respeito da matéria é interessante observar o ponto de vista de Bergson:

Veremos que a matéria tem uma tendência a constituir sistemas isoláveis, que possam ser tratados geometricamente. É até mesmo por essa tendência que a definiremos. Mas não é mais que uma tendência. A matéria não vai até o fim, e o isolamento nunca é completo. Se a ciência vai até o fim e isola completamente, é para a comodidade do estudo (...) Nosso sol irradia calor e luz para além do planeta mais longínquo. E, por outro lado, move-se arrastando consigo os planetas e seus satélites, em uma direção determinada. O fio que o prende ao resto do universo é sem dúvida bastante tênue. No entanto, é por esse fio que se transmite, até a menor parcela do mundo em que vivemos, a duração imanente ao todo do universo. O universo dura. (BERGSON, 2005, pp.11-12).

Como já afirmamos antes, não há para Bergson uma oposição entre matéria e vida, mas, neste cenário podemos utilizar outra vez a expressão “solidariedade”: ao definir o 33

“corpo vivo” como um indivíduo, uma “extensão” solidária com o restante do meio físico, esbarra-se em outra dificuldade - como estabelecer o que é ou não um indivíduo? Pois, a

“individualidade comporta uma infinidade de graus e que em parte alguma, nem mesmo no homem, se realiza plenamente”(BERGSON, 2005, pp.13-14). Admitir isto, não é para o autor um motivo para rejeitar a individualidade como uma “propriedade característica da vida”.

Interessa-nos aqui, entretanto, retomar a questão da angústia existencial sob o prisma novo da filosofia bergsoniana, e, perguntarmo-nos novamente se tal sentimento é derivado somente da tomada de consciência da liberdade humana, ou se, nos segundos de duração em que a sensação da“náusea” se faz sentir, não estaríamos vivenciando a emoção de entrar em contato com a pura duração. Tudo deixa de fazer sentido, o sentido se desfaz na auto-criação da vida, na percepção dos liames existentes entre os seres vivos, e destes com a matéria. Como Bergson sugeria a respeito da filosofia intuitiva, este seria um momento singular no qual a intuição filosófica não ficaria restrita apenas a uns poucos “iniciados”, mas permitiria àqueles que a sentem, viverem a “coincidência da consciência humana com o princípio vivo de onde emana, uma tomada de contato com o esforço criador”(BERGSON,

2005, p.398).

Não haveria nesta experiência a percepção de uma “perda do amparo natural” em função da conquista de uma liberdade desagregadora, uma “liberdade-abismo”, como sugere Ferry (1994), mas a percepção (ou desespero) de que mesmo a liberdade não nos confere o afastamento completo da natureza – percebermo-nos livres é perceber em nossas liberdades a liberdade da vida, de todas as vidas, é compreendermos que mesmos as diferenças que nos “separariam” dos demais seres da natureza, comportam junto de si mesmas as semelhanças, mas, muitos preferem acreditar na teoria da espécie privilegiada, criada a partir de um modelo perfeito; ainda estamos surdos aos sons e às vozes dos demais seres da natureza: 34

Portanto, qual luz nós estamos seguros de contemplar, para declarar cegos todos os outros olhos que não sejam os do homem? Qual significação, portanto, estamos certos de ter dado à vida em nós, para declarar estúpidos todos os outros comportamentos que não são os nossos? Sem dúvida o animal não sabe resolver todos os problemas que nós lhe colocamos, mas é porque estes são os nossos problemas e não os deles. (CANGUILHEM, 2003, p.13).

A sensação de estarmos sozinhos, isolados no meio natural, de sermos os

únicos capazes de conduzir o destino do planeta e dos demais seres vivos, resultou de uma inspiração racionalista radical herdada do cartesianismo. Caracterizado pela cisão entre homem e natureza, e pela transformação desta última em algo “objetivo” e

“impessoal”(MAY, 2000, p.112), o ideário cartesiano que se fixou no imaginário coletivo das sociedades modernas, construiu-se dentro de um processo histórico bem definido: o da transição das sociedades feudais para as sociedades capitalistas no período moderno.

Com o advento das novas sociedades vimos surgir a“cultura capitalista”, espaço onde se operou uma reorganização de valores e a elaboração de novas formas de ação/representação do mundo, e, ao mesmo tempo em que a modernização industrial criava seres humanos fragmentados, física e mentalmente controlados por uma rotina de trabalho extenuante, alargavam-se as distâncias entre o homem e a natureza se: trabalho alienado igual

à natureza alienada, estranha, esquecida. Neste contexto, como uma mercadoria que produz outra, o homem esvaziou-se de sentido, tornando-se mais angustiado, inseguro e solitário.

Se nas condições históricas reais, em meio as quais os homens elaboram suas relações, erigem as suas civilizações, produzem distintas culturas, ritos, mitos, símbolos, representações, são redesenhadas as variadas formas de contato entre os seres humanos e a natureza; e se no sentido apontado por Marx (1989) e Keith Thomas(1996), as relações que os homens mantêm entre si, configuram as relações que estes estabelecem com a natureza, os incontáveis conflitos existenciais sofridos pelos homens no decorrer de sua história, estão profundamente ligados às contraditórias e intolerantes atitudes humanas para com o mundo 35

natural. Em um sentido mais amplo, podemos afirmar: em todo conflito com a natureza vislumbramos os conflitos existenciais humanos, e em algumas circunstâncias específicas é possível entrevermos na trama destas relações complexas que estabelecemos com o mundo vivo e não-vivo a nossa volta, a presença deste sentimento singular denominado pelos existencialistas de angústia existencial.

Sobre este quadro geral no qual esboçamos as relações entre natureza e vida, buscando na filosofia existencialista e na ontologia bergsoniana elementos para compor uma análise dos conflitos ambientais vividos pelo homem como conflitos existenciais, é que pretendemos analisar as relações dos moradores de Porto Rico com o seu meio natural. A realidade singular vivida pelas pessoas que colaboraram com nossa pesquisa é marcada inicialmente pelas mudanças drásticas sofridas pelo rio Paraná, com a construção das hidrelétricas de Itaipu e Porto Primavera; e somadas às alterações ambientais, a região onde está localizada foi convertida em Área de Proteção Ambiental (APA) em 1997, situação que agravou as condições de vida da população mais pobre da cidade.

36

3 PENSANDO A VIDA...PENSANDO A NATUREZA

(...) o rio Paraná se acabou...você sabe disso. Todo mundo sabe...olha, de Rosana para cá só tem esse trecho até Guaíra. Só tem esse pedacinho de rio que corre...só esse aqui que tem corredeira, o mais, é tudo lago de barragem. (...) aquele rio Paraná que nós falávamos, que nós conhecemos, não é? Não existe mais (Francisco Vicente Vieira, pescador de Porto Rico, maio de 2006).

Para as pessoas que vivem às margens do alto rio Paraná desde o início dos anos 60, como é o caso do senhor Francisco Vieira, e tiveram a oportunidade de acompanhar as muitas transformações sofridas pelo rio e seus afluentes nesses últimos quarenta e seis anos, não é difícil imaginar que o rio em contato com o qual teceram a trama de suas vidas, componente sempre presente em suas memórias, não seja mais o mesmo que conheciam.

Infelizmente, esta é uma constatação em situação extrema da conhecida máxima do filósofo grego Heráclito de Éfeso (1996, p.92): “nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”; é a constatação de uma realidade marcada por profundas e irreversíveis mudanças ambientais provocadas pela ação humana.

A região de Porto Rico, área em que residem os moradores entrevistados para o nosso trabalho de pesquisa, está localizada na parte média do alto rio Paraná, “a cerca de duzentos quilômetros a montante do remanso do reservatório de Itaipu”, e a jusante da

Usina Hidrelétrica de Porto Primavera; este trecho do rio apresenta uma importante característica: é o “único segmento” que ainda se encontra livre de barramentos (SOUZA

FILHO; STEVAUX, 1997, p.5).

O impacto das duas principais barragens (Itaipu e Porto Primavera) sobre a planície de inundação do alto rio Paraná tem sido estudado desde 1987, por meio das pesquisas realizadas pelo Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aqüicultura

(NUPELIA), e pelo Grupo Multidisciplinar de Estudos do Ambiente (GEMA), ambos

“integrados no Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aqüáticos

Continentais” (AGOSTINHO; ZALEWSKI, 1996, p.65). 37

Estes impactos, entretanto, são parte constante dos discursos dos moradores de Porto Rico, obtidos em nosso trabalho por meio de depoimento oral. Em quase todas as entrevistas é possível encontrarmos referências sobre a influência das represas de Itaipu e

Porto Primavera na dinâmica da vida natural da região. O senhor Francisco, por exemplo, vai mais longe ao explicar porque o rio Paraná já não existe mais:

(...) o rio Paraná hoje... só tem esse pedaço... de Rosana à Guaíra. É, o outro acabou tudo....porque, quantas barragens não tem no meio? Em todo lugar, aquele tempo dizia assim: “Rio Paraná: “Vai para Porto Epitácio?” “Vou”. “Por onde?” “Pelo rio Paraná.” Hoje é diferente: “Vai para Porto Epitácio?” “Vou”. “De quê?” “Eu vou de lancha.” “Mais tu vais por onde?” “Eu vou pelo lago”. Não é mais pelo rio Paraná...(risos). Veja acabou até pelo nome, não é? Até no nosso dizer aqui não existe mais. Você diz: “Até onde vai pescar?” “Aonde tu vais pescar?” “Vou pescar no rio Paraná”. “Na região de Rosana à Guaíra.” “Tu vais pescar aonde?” Fala para o outro. “Ah, eu vou no lago”. “De Rosana à Porto Epitácio ou de Guaíra à Foz do Iguaçu.” Quer dizer que de rio, só tem esse pedacinho... no mais acabou o nome... não tem mais.

Para o senhor Francisco existem dois rios Paraná: o que ele conheceu quando chegou em Porto Rico no final de 1959, e este trecho não represado; o primeiro não existe mais, “acabou tudo”, e o segundo é um rio diferente, estranho, que perdeu inclusive o sentido semântico. Ele continua o seu raciocínio:

Então, por isso que o meio ambiente quer preservar este pedacinho. Eles querem ter o maior cuidado. Não querem que nós joguemos a cabeça do armau dentro do rio. Ah...são tantas coisas que eles não querem que faça mais, depois que acabou, vai querer conservar um pedacinho...mas é bom... ao menos fica de lembrança para o povo...aonde existia o rio Paraná era aqui...é aonde existia, que hoje não tem mais...aquele rio daquele tempo acabou tudo. Apesar de... acabou com precisão, não é? E...a energia hoje é, é o que sustenta as coisas, não é? Mas, quem quiser falar de rio Paraná tem que só escutar as histórias que os outros contam, não é?

É interessante observar na narrativa do pescador, a pequena pausa que faz em seu discurso: “depois que acabou, vai querer conservar um pedacinho...”, completada por um ponto de vista positivo em relação à preservação do rio: “mas é bom... ao menos fica de lembrança”. Não há para o senhor Francisco uma razão clara, ou melhor, pelo menos uma

“razão ecológica” para se proteger o remanescente do rio Paraná, pois: “Apesar de...”, a destruição do rio foi necessária, a energia “sustenta as coisas”, apesar de tudo, o que restou 38

pode servir como referência para a memória daquelas pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer o “outro” rio Paraná, cuja existência sobrevive nas lembranças dos moradores mais antigos da região. O rio se transformaria assim, em uma espécie de peça de museu, ainda que incompleta, a cópia de um original já perdido no tempo, destruído pela ação do homem.

Esta ausência de razão se explica ainda pela idéia expressa no início do trecho: “o meio ambiente quer preservar este pedacinho”. O meio ambiente é uma espécie de “entidade” à parte, personificada na exigência legal de se proteger o que restou da planície de inundação do alto rio Paraná.

O seu “Chico” (figura 3), como é mais conhecido pelos moradores locais, atual presidente da Colônia de Pescadores Z-14, nasceu no estado de Pernambuco, e desde criança enfrentou a violência social a que eram submetidas as comunidades do interior nordestino:

Naquele tempo era difícil para os meninos poderem viver. (...) Nós vivíamos em uma aldeinha chamada Serrote, ali tinha o meu tio que era o coronel, é quem mandava na briga...no que fosse...se fosse preciso prender um, ele mandava amarrar, e era desse jeito assim. Ali naquele tempo era assim, lá era desse jeito, tudo aldeia, não é? (...) E ali cada lugarzinho tinha um líder que dominava aquele povo. (...) então cada coronel daqueles dominava o povo, prendia, mandava matar...mandava soltar e...fazia assim, naquele tempo era desse jeito. A infância minha com dezesseis anos, naquele tempo dezesseis anos era criança, era briga de faca! A fama daquele tempo no nordeste era o cara bom na faca (risos), era briga de faca. Então, nós como não podíamos brigar de faca, nem na ferramenta, nós fazíamos de pau. Cada um fazia uma peixera deste tamanho, com cabo tudo bem feitinho, amolava e arrojava um no outro. Era furada nos braços, era na costela .E cada um que se defendesse, era para valer mesmo, para treinar, para ficar bom mesmo na faca. Então era a diversão da molecada, era essa naquele tempo... tempo difícil menina, não era que nem hoje. Hoje o menino tem carrinho, tem bicicleta, pega bicicleta hoje, amanhã ela está rangindo...é já está velha...vai arrumar outra coisa. Então, a infância daquele tempo era desse jeito...era sofrido. Mas tinha uma coisa também, era época, era essa...que cada coisa, cada geração, ela vai funcionando segundo o tempo passa, não é? (...) naquele tempo não era assim, ninguém se formava para nada, eu lembro que fui para escola, acho que três meses, meu pai dizia, eu tinha vontade de fazer alguma coisa, mas meu pai não deixava, eu dizia que queria fazer isso fazer aquilo, ele: “Não”. Eu tinha uma vontade doida de aprender tocar, era a minha idéia, ele dizia: “Não, tocar é para vagabundo...tem que ir para a enxada, para foice, para o machado”... e ele não deixava, um dia eu comprei um bandolin, um bandolin assim de tocar de corda, ele pegou o bandolin quebrou, mas fazer o quê? Ele quebrou, e eu parei com o negócio, naquele tempo era desse jeito as coisas, tudo difícil, então foi, um pouco da era que 39

eu vivi foi essa.(...) Você rapaz novo, tinha que ser bom de briga, na faca mesmo; ou tinha que ser vaqueiro, cabra que corre atrás do boi no mato e arregaça tudo, pega o boi.

A primeira viagem do jovem Francisco foi para o Maranhão, e de lá, para fugir da vida difícil no sertão, foram “trinta e seis dias de viagem” até a cidade do Rio de

Janeiro, “trinta e seis dias em cima de um caminhão de arroz”. Em Porto Epitácio (figura 4),

São Paulo, o senhor Francisco “conheceu” a pesca, e desde então, não se dedicou mais a outra atividade.

Figura 3. Senhor Francisco Vicente Vieira.

Figura 4. Senhor Francisco em Porto Epitácio, 1955.

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Entre os pescadores mais antigos de Porto Rico, encontramos também o senhor José Barbosa. Nascido em Paiquerê, no estado do Paraná, o seu “Zé Curimba” (figura

5), como é apelidado na cidade, já não se recorda mais da data em que chegou a Porto Rico

(1955 ou 1956), e em sua opinião, o rio Paraná mudou muito nas últimas décadas:

O rio era diferente, que de primeiro o rio, ele ficava tempo sem...a água ficava só naquele tipo, aquela água assim olha, ficava sempre no normal, a água agora não, agora todo dia água sobe e desce, sobe e desce, enche, abaixa, enche e abaixa, e modificou o rio. O rio agora não tem mais controle, não é? Devido à “barrada”, acabou com o controle do rio. Não tem mais controle. Acho que devido isso, que o peixe também...você põe uma rede hoje aqui olha, esta água aqui, quando é amanhã ali já está tudo no seco. Não tem mais jeito. A natureza mudou o clima da...barragem, não sei se é a barragem lá? Não tem, de primeiro a água ficava tempo aqui, aquilo é normal, não é? Era mais seco o rio, era mais baixo o rio, ficava em uma metade só o rio, mas agora não fica mais não.. enche e abaixa, enche e abaixa o rio, fica desse jeito o rio. Para o pescador está difícil. Eu pesquei muito, peguei muito peixe, muito...antigamente, não é? Naquele tempo pegava bastante, pegava...cem, duzentos quilos de peixe. Até baratinho, mas é melhor do que hoje, do que vender aí...um pintado, um quilo de peixe por dez, doze reais. Naquele tempo a vida era mais, muito melhor a vida. A vida era tão boa quanto tem de peixe.

Inconformado com a mudança, e sem saber ao certo se as barragens são responsáveis pelas mudanças do rio, ou se a “natureza mudou o clima”, o senhor José Barbosa continua pescando com sua filha Ivone, também uma pescadora profissional.

Figura 5. Senhor José Barbosa da Silva e esposa.

Mesmo entre os pescadores mais jovens, o discurso sobre a influência das barragens no rio apresenta matizes semelhantes. Na percepção do senhor Antônio Justino 41

(figura 6), filho de pescador, nascido em Porto Rico em 1969 e criado na barranca do rio, as barragens provocaram a saída de muitos moradores da região, em função de grande enchente de 1983, e a mortandade elevada de peixes no período que se seguiu à entrada em funcionamento da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera:

Pessoal nas ilhas assim, não é? Tinha bastante pescador. Acho que o número de pescadores era maior do que hoje, eu lembro. E lá assim era pura lavoura, não é? Então, a vegetação na ilha na verdade era diferente, a vida era mais limpa, que hoje tem mais mato, mais mata fechada, as ilhas estão ficando mais matagal. Antigamente assim você tem muito, a cada cem, duzentos metros você tinha uma casa. É, a população era bem grande, a ilha tinha muita gente. É, é uma faixa de setenta, setenta e cinco, setenta e seis, até oitenta e dois era bem povoada. Aí depois veio aquela enchente grande, aí o pessoal passou. Lembro. Eu era rapazinho, tinha treze, quatorze anos. Olha, foi uma enchente grande, não é? Ela durou quase seis meses. Aí o pessoal, costumava ir, voltava, saía para as ilhas e voltava, como ela demorou muito as pessoas foram embora, não é? (...) O próprio governo na época deu terra para o povo. É, o governo deu terra, não é? Para o povo que morava nas ilhas. Então, foram lá para o lado de Minas, não se adaptaram, outros foram para o lado de Mato Grosso aqui, muitos voltaram. Quando voltaram as ilhas já não eram mais espaço para o que eles queriam adquirir, não é? (...) O principal culpado, foi da enchente. Antes da enchente grande o pessoal fazia muita roça. (O ciclo das “enchentes”) Olha, é geralmente era só uma vez por ano, geralmente ela dava, não é? Daí dava tipo dezembro até março era risco de enchente. Mas todo ano dava enchente, era sagrado. Chegava o mês de dezembro... quem tinha, fazia roça, já fazia onde ficava mais alto. Faziam, plantavam antes para não perder com a enchente não é?

Sobre as mudanças no rio Paraná e a morte dos peixes o pescador acrescenta:

(...) O rio era mais fundo, não é? Tinha regiões aí que você dava trinta metros, trinta e um metros. Hoje se passar de doze, treze metros no máximo. Aterrou muito. Canal aí que você para passar era fundo, hoje você passa praticamente andando a pé! Então, mudou muito, de mais, ichi! O rio que era e o que é hoje nem se compara. Beira de barranco mesmo, antigamente tinha muito pé de fruta, muita figueira grande, hoje com o tempo foi caindo, tem mais nada. Figuera para o peixe tem pouca. Hoje esses peixes que nem piau, piapara, eles eram muito preguiçosos, não é? Porque se depender de comida caída das ilhas, da natureza, cai bem pouca. Olha a gente vê que mudou, não é... o problema foi essas barragens com a parada da água que deram. Foi, o rio não voltou ao nível que era normal antigamente. O pessoal aqui se engana muito hoje. O rio antigamente era bem baixo. Hoje não, hoje o 42

rio mantem aí um metro, um metro e pouquinho direto, direto, direto, não voltou ao normal, do que era, não voltou não. Só depois que começou essas barragens a fechar, acabou. Vinha capengando, capengando, capengando, quando foi que acabou de fechar ali em cima, acabou de matar aqui embaixo. Primavera. Olha, primeira coisa, logo que eles fecharam aqui: o que morreu de peixe foi coisa de louco! Tinha dia de eu andar aí, cinco, dez mil quilos de peixe por dia, morto. Era uma urubuzada nessas ilhas aí, isso foi, olha, foi quinze, vinte dias direto passando peixe morto. (...) Até ainda veio um pessoal que eles tiveram uma reunião uma vez aí, para indenizar o pessoal. Negócio de tralha, o pessoal perdeu muita tralha. Mas foi só para dar conversa, não foi para frente.

A narrativa do senhor Antônio descreve a trajetória de muitos moradores das ilhas do rio Paraná, a exemplo da ilha Mutum próxima de Porto Rico, que tiveram de sair de suas casas em função das enchentes de 1982/83. Segundo Maria Cristina Rosa (1997, p.383), a “expulsão” dos ilhéus para as regiões vizinhas resultou em conflitos maiores, pois estes locais não conseguiam receber o contingente excessivo de pessoas que buscavam encontrar frentes de trabalho para se estabelecerem.

Figura 6. Senhor Antônio Marcos Justino.

Outra preocupação do pescador em sua entrevista é mostrar ainda que a diminuição dos peixes no rio Paraná não seria responsabilidade dos pescadores, a este respeito ele segue em suas lembranças:

(...) as águas com tranqueira que saíam da barragem, o cheiro forte, era mais para o lado de lá. É, cai mais para aquele lado de lá. Joga mais para o Mato Grosso. Então, quando você passava na beira do rio...tinha dia que você passava na beira do rio, tinha que ficar 43

desviando de peixe, dia inteiro, direto, direto por causa do peixe. Era mais o armau. Morreu quantidade grande. Olha, eu uma vez fui de bicão em uma reunião que teve em um hotel ali, e tinha um advogado que estava aí na cidade, e recebeu umas indicações, dos comerciantes, não é? Que estavam sendo prejudicados por causa da barragem, negócio de peixe; aí estava comentando que parece que fecharam a barragem sem limpar lá por dentro, não é? Tinha mato, cortar aquela mata... que é isso que é aquilo...eu não entendo. Enfim, eles tinham que fazer uma limpeza dentro, e não fizeram, e tinha muita pressa porque tinha pouca energia tal, demanda de energia, aí eles fecharam. E essa água depositada ali dentro fermentou, não sei o que que deu mais, e aconteceu alguma coisa com os peixes. Assim que ele comentou. Que tinha umas plantas lá tal, e essa água tirou...o oxigênio, tirou o oxigênio da água, conforme eles soltaram a barragem aqui para soltar para baixo, os peixes que estavam mais perto ali foram morrendo. Então, essas barragens que na verdade...tem que ter, na verdade barragem tem que ter porque energia precisa, não é? Mas, prejudicou bastante, prejudicou. O rio mesmo: eles mataram o rio. É, mataram. Porque o pessoal falava, muitos comentam, não é? “Ah! é o pescador; é o pescador.” Mas antigamente tinha, vamos dizer hoje... trezentos a quatrocentos pescadores a mais do que tem hoje.

Apesar de “matar” o rio, as barragens são necessárias para a produção de energia. Neste aspecto o senhor Antonio Justino concorda com o senhor Francisco, a

“escassez” de energia justificaria a construção de hidrelétricas, mesmo que os efeitos destas sejam intoleráveis ao meio ambiente. Com o senhor Francisco, podemos traçar ainda um outro paralelo, no início da narrativa citada, o senhor Antônio comenta: “a vegetação na ilha na verdade era diferente, a vida era mais limpa, que hoje tem mais mato, mais mata fechada, as ilhas estão ficando mais matagal”. O pescador associa a vegetação das ilhas, que entrou em processo de reconstituição, sobretudo após a criação da Área de Proteção em 1996, com a idéia de “sujeira”, a vida limpa corresponderia à terra cultivada, desflorestada, o que nos recorda a análise de Warren Dean (1997, p.23-24) sobre a história florestal do planeta - em seu transcurso o homem foi transformando o mundo natural em ‘paisagem’ – entornos domesticados” com a finalidade de atender aos interesses “práticos” e “estéticos” da espécie humana. A idéia de terra limpa associada à vida, indica o distanciamento emocional do 44

pescador em relação ao meio natural, reduzindo a fitodiversidade das ilhas em uma confusa estrutura amorfa, ora denominada “mata” ou “mato”, ora encerrada na expressão “matagal”.

O menino Antônio, que teve uma “infância normal de criança pobre” e “não tinha nada para brincar”, exceto um enorme espaço de diversões chamado rio Paraná, hoje se dedica a uma atividade extra para completar a renda da pesca. Dono de um “barco de aluguel”, o senhor Antônio trabalha com os turístas que vêm a Porto Rico nos períodos de férias, ou nos finais de semana e feriados.

A busca de alternativas para sobreviver levou outro pescador, na mesma faixa etária do senhor Antônio, a abandonar a profissão: “(...) eu abandonei a pesca, que não dá mais para sobreviver de pesca não. Porque tem minha esposa, tem duas crianças para tratar. Não está dando não. Agora eu tive que parar, estou trabalhando de servente de pedreiro aí, se não não sobrevive não”.

O senhor Luiz Carlos de Aragão (figura 7) nasceu em Cornélio Procópio e chegou em Porto Rico aos sete anos de idade, quando o pai veio para a cidade trabalhar em um porto de areia. Além de atuar como servente de pedreiro, o senhor Luiz Carlos, a exemplo do senhor Antonio Justino, dedica-se também a pilotar barcos para os turistas em períodos de veraneio. A opinião do ex-pescador quanto à ação das barragens sobre o rio é a mesma do colega piloto:

Barragem lá em cima de Primavera, trancou lá em cima lá, não deu mais enchente. Deu, o ano...retrasado deu enchente pequena, e esse ano está enchendo um pouco o rio...graças à Deus. Mas, depois que terminou, fez a barragem ali, acabou peixe aqui para baixo. Até esse biri que nunca existiu aqui, apareceu no rio agora. É. Biri, é um matinho verde que está saindo dentro da água assim...onde nasce...você olha assim, tampa tudinho...vai lá na lagoa da garça, chega a tampar a lagoa da garça, eles não tem... nem para andar de barco ali não tem jeito mais. Não, nunca existiu isso aqui antes.(...) Essa morte que teve agora. É recentemente, você encontrava muito botuado rodando aí no rio. Morto aí. Bom, eu ouvi dizer que foi um veneno lá, que eles passaram lá, para matar aqueles mariscos. Na barragem. Porque antes de ter barragem, a gente tinha enchente no rio todo ano. Esse mês é...toda época de janeiro, é época de enchente no rio aqui. Daí como fez a barragem agora, daí eles seguram muita água lá, daí não enchem as lagoas, os varjões aí, para o peixe procriar. (...) E as lagoas também onde eles desovam dentro, não tem como eles entrar lá para desovar, e no caso eles desovam dentro, não é? E 45

daí o rio baixava, daquela época ficava ali, aí criavam os peixinhos, criavam ali sem ter problema de outro bicho matar ele, daí no outro ano, conforme o rio enchia de novo, o peixe entrava para desovar, aqueles maiores um pouco saíam para o rio.

Figura 7. Senhor Luiz Carlos de Aragão e família.

As recordações do senhor Luiz Carlos nos mostram que, em sua experiência cotidiana acumulada ao longo dos anos dedicados à pesca, como ocorre com os demais pescadores, existe uma soma importante de informações sobre a dinâmica da vida que se espalha por todos os pontos do rio. Este conhecimento tradicional é confirmado em pesquisas realizadas na planície de inundação do alto rio Paraná; Vazzoler; Lizama e Inada (1997, p.278) e Agostinho, Júlio Jr, Gomes, Bini e Agostinho (1997, p 202.) afirmam a influência das barragens sobre o pulso de inundação do rio como um fator que reduz o aporte de nutrientes necessários à comunidade ictíica, e as áreas alagáveis disponíveis, interferindo na rota migratória de várias espécies, afetando ainda o ciclo reprodutivo da “maioria das espécies migradoras e não migradoras”. A respeito do ciclo reprodutivo da comunidade de peixes em lagoas e várzeas do rio Paraná temos ainda:

Existem espécies que desenvolvem todas as fases do ciclo de vida nas áreas inundadas (sedentárias), enquanto que outras utilizam essas áreas somente em parte de seu ciclo (migradoras). (...) Isso evidencia a importância desses ambientes para a manutenção de estoques de peixe, principalmente de espécies reofílicas, que utilizam a área como local de desova. Além disso, as regiões de várzea e lagoas marginais presentes nessas áreas constituem biótopos essenciais para o desenvolvimento inicial, crescimento e alimentação dessas espécies, fatos que consolidam a necessidade de 46

preservação desse ecossistema (NAKATANI; BAUMGARTNER; CAVICCHIOLI, 1997, p.303)

O discurso sobre as barragens ainda continua nas lembranças do senhor

Otávio Pereira Cândido (figura 8), residente em Porto Rico desde o início dos anos 60. Vindo de Pernambuco, sua terra natal, estabeleceu-se na ilha Mutum logo que chegou na região.

Com a a ilha, o Senhor Otávio tem fortes laços afetivos, pois ali viu nascer quase todos os seus filhos, e por mais de quarenta anos vem acompanhando as transformações do rio Paraná e da cidade de Porto Rico; hoje é um dos críticos acirrados das barragens, e do modelo de

“parque ecológico” existente no alto rio Paraná:

Então, a situação foi essa, não é? Que acabou com toda essa região foram as barragens. As barragens, vieram as barragens e ninguém...esse parque aí, que que nós temos com esse parque aqui? Nós não temos nada, esse parque... por quê que não foi fundado esse parque há uns vinte anos, trinta, quarenta anos atrás? Mas só agora depois aí da barragem foi que surgiu esse parque aqui, foi assim que acabou de tirar a maioria do povo, não quero dizer do município de Porto Rico não, de todos esses municípios de beira de rio, não é? Pessoal que morava nas ilhas, saíram...saíram tudo, era muita gente, era cheio de gente...tinha gente de tudo, tinha ilha dessa, ilha pequena que era dividida em três, não é? Só que ali o pessoal vivia ali dentro...ali um criava porco, criava galinha, plantava roça, vendia banana. Todos esses portos aqui era um...vinha caminhão de São Paulo pegar banana aqui. Essa banana aqui hoje, nós temos ela aqui, que está vindo de lá, ela ía daqui para lá. E eu com dois salários mínimos, morando na ilha, sem pagar água, sem pagar energia, sem... não é? E mil covas de banana produzindo, eu vivia o resto da vida, que mil covas de banana não vai dois ou três alqueires de terra, não...não é?

Figura 8. Senhor Otávio Pereira Cândido e a esposa Cléia.

Em seu depoimento O senhor Otávio chama a atenção para outra séria dificuldade enfrentada pela população de Porto Rico, a transformação da região em uma Área de Proteção Ambiental (APA). 47

O contexto histórico revolucionário do século XIX, marcado pela consolidação da burguesia no poder político e econômico dos países mais ricos da Europa, compõe em parte o cenário no qual o primeiro modelo de parque ecológico surge. O palco central é os Estados Unidos com a criação do parque nacional de Yellowstone. Originalmente concebido como um espaço “preservado” da natureza ainda não modificada pela ação antrópica, e com a finalidade de se constituir em atrativo “estético”, garantindo assim a salvaguarda das espécies nele contidas, seu modelo de criação que tornava incompatível a presença humana neste tipo de área de preservação, seria mais tarde importado por países do chamado “Terceiro Mundo”. (DIEGUES, 2000a, p.13).

A realidade em que vivem os moradores de Porto Rico que entrevistamos se enquadra neste contexto de “parques importados”, pois esta conversão das ilhas e várzeas do rio Paraná em Área de Proteção Ambiental, pelo Decreto Federal de 30 de setembro de 1997, mesmo não retirando os moradores da região, tem contribuído de forma significativa para o declínio das condições de vida da população mais pobre, fato já apontado por Silva (2002, p.52-67) em seu estudo sobre a situação dos moradores e ex-moradores da ilha Mutum. Os ilhéus que não foram expulsos com as enchentes dos anos 80, tiveram que enfrentar a proibição do uso da terra para atividade agrícola, e o decréscimo da atividade pesqueira, o que acirrou os conflitos com os representantes dos órgãos de fiscalização responsáveis pela região.

O senhor José Barbosa é um dos pescadores que acreditam inclusive na interferência da Área de Proteção no resultado que vêm obtendo com a pesca:

O que atrapalhou na pesca? Foi essa mudança dessa área ecológica só, que atrapalhou tudo, não é? Os pescadores, tirou tudo os pontos dos pescadores. Essa área ecológica atrapalhou...que virou área ecológica. Então, não teve mais ponto aí. Ficou os pescadores tudo aqui no rio Paraná. Aí acabou com tudo, não tem mais ponto não, os pescadores não têm mais ponto, nem no Ivinhema, nem no Baía, então só tem o Paranazão que está aqui. E mudou muito também o negócio ali, de medida de peixe. (...) primeiro tinha medida também, mais era mais baixa um pouco a medida. Dá menos um pouco da medida... medida foi muito.

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À vida de “fartura” e “prosperidade”, tão característica dos moradores da ilha Mutum nos anos anteriores ao surgimento das barragens e da criação da nova área de proteção ambiental (SILVA, 2002, p.131), contrastam-se os problemas surgidos com a mudança para a cidade, como podemos observar na entrevista da Senhora Maria Cardoso dos

Santos, mais conhecida pelos moradores como “Dona Maria do seu Júlio”, uma ex- pescadora refugiada em Porto Rico:

Olha, esses últimos anos que eu voltei para cá eu não acho bom porque eu pago aluguel, não é? A gente paga luz, paga água, não é? [...] A gente está aqui...mais não...está assim, dá para viver, mas não é tranqüilo não. Se a gente não fizer uma economia, não sobra nem para comprar arroz...nada. Eu comprei essas coisas aqui olha, mais é na economia, não é?

As reações dos moradores que entrevistamos com relação à criação da Área de Proteção, são marcadas por um sentimento de revolta, como no caso do senhor Otávio

Cândido, que ainda sonha com a possibilidade de retornar algum dia à ilha Mutum e voltar a praticar ali uma agricultura de subsistência, ou pela indignação da senhora Maria Cardoso que vive em Porto Rico pagando aluguel, enquanto já tivera outrora uma pequena área para plantar o suficiente para seu sustento, e do senhor José Barbosa que olha para o “parque ecológico” como um opositor tão ameaçador quanto a própria legislação ambiental.

3.1 Mulheres de Porto Rico: uma história à parte

Quando chegamos em Porto Rico no início de nosso trabalho, e nos preparávamos para realizar as primeiras entrevistas com os pescadores locais, não imaginávamos a dimensão do universo feminino relacionado à atividade pesqueira. Estudos como os de Tomanik, Godoy e Ehlert (1997, p. 407), revelam que a participação das mulheres na pesca da região é bastante restrita, fato reconhecido como já “esperado”, uma vez que tal atividade “parece ser considerada eminentemente masculina”, e assim, mesmo ajudando os pais, maridos e irmãos com a pesca na infância e na adolescência, “normalmente elas deixam de participar mais ativamente dessas tarefas quando se tornam mães”. 49

No entanto, não foi isto que percebemos na história de vida da maioria das mulheres participantes de nossa pesquisa, a senhora Maria Rosa de Jesus (figura 9), por exemplo, descreveu-nos a última pescaria da qual participou :

Aí nós estávamos morando...eu já estava na barranca do rio, sabe. Nós morávamos em uma...tinha um fazendeiro alí no Baía, então, tinha uma casinha lá desocupada, ele pegou e deu para nós não ficarmos na beirada do rio, ele deu essa casinha para...só que era pertinho do rio; para nós morarmos; nós ficávamos lá e mais tarde saíamos para o rio pescar, a gente ficava lá, ía pescar ou subia no rio pescar. Eu estava esperando esse bebê aí, não é? E bateu bastante curimba na frente de casa, e meu velho falou: “Vamos Maria lá, pegar aquelas curimba”. Aí nós fomos, chegamos lá, nós esticamos a rede. Porque nós já tínhamos a rede, o barco, a bateia, ele pôs e saiu puxando e eu fiquei assim na beirada do rio, assim, dentro de um pouco d’água, como daqui alí na frente eu fiquei segurando na rede e ele foi soltando, fazendo “lança” assim. Aí ele chegou; quando ele chegou do outro lado lá, da onde eu estava, aí nós começamos a puxar e tinha muita curimba dentro desse lance de rede. E já estava tarde, que já era umas quatro horas. Aí, quando nós acabamos de puxar, já era cinco e pouco já; já estava quase escurecendo. Aí ele...pegamos e puxamos na barranca; aí ele pegou e mandou eu para lá: “Vai Maria, cuidar que está vai ficando de noite, tem que fazer comida para dar para os moleques”. Aí eu saí de dentro daquela água lá, toda molhada, um buchão! Aí passei na vizinha, e ela ainda ficou brava: “Larga desse jeito Maria, entrando dentro da água, nessa friagem menina! Vá embora em casa, e toma um banho de água quente”. Aí eu fui para casa tomar o banho para tirar a roupa molhada. Aí minhas costas começaram a ferroar, não é? As costas. Aí eu tiro a janta, tomei banho, fiz janta, dei para os meninos, e aí ele pegou e falou: “E agora nós vamos lá na barranca limpar aquelas curimbas”; já de noite. E daí acendi a lamparina, nós limpávamos na barranca do rio de noite. Aí: “Pára, que eu não vou não que eu estou com dor nas costas, uma ferroada nas costas, eu não vou não”. Aí eu fiquei em casa. Aí depois eu arruinei, os meninos gritaram para ele, ele veio em casa, aí ele foi lá e chamou a mulher, não é? Para vir em casa, que só tinha essa mulher lá, mas ela não compreendia bem direito, e o neném jogou o umbigo para fora e ela não soube agasalhar para dentro, não é? Aí o neném morreu afogado, ele nasceu morto.

O bebê que a senhora Maria Rosa perdeu não era o seu primeiro filho, ele seria o seu caçula, o “ derradeiro”, como ela mesmo nos disse. Apesar do triste episódio, a senhora de setenta e oito anos afirma: “a vida era complicada, mas só que eu gostava assim mesmo; com tudo que eu passava apurada lá no rio”. 50

Figura 9. Senhora Maria Rosa de Jesus e a neta Bianca.

Maria Rosa, mais conhecida em Porto Rico pelo apelido de “Maria Lobó”, nasceu no estado de Minas Gerais em 1929. As lembranças de infância desta antiga moradora da cidade , somente em Porto Rico passou “cinqüenta e poucos anos”, são marcadas como em todas as mulheres entrevistadas, por muito trabalho dividido com as brincadeiras de criança.

“Quando peguei a idade de nove anos eu já trabalhava para mim mesmo, para eu comprar minha roupinha, para eu comprar meu chinelino.” – Maria Rosa ajudava ainda o pai confeccionando “pinera de bambu”, com o dinheiro da venda, e após comprar as suas coisas, o que restava “ficava para ele ajudar na cozinha”.

A menina que não gostava de brincar com boneca, mudou-se com a família para o estado de São Paulo, onde conheceu o seu já falecido marido. De São Paulo a Mato

Grosso, e de lá para o Paraná, a senhora Maria Rosa começou a trabalhar ajudando o marido em todas as atividades:

Aí; daí para cá aqui, depois começamos a trabalhar aqui no Paraná; meu marido passou a pescar, foi pescar; que quando nós já viemos lá do Mato Grosso para cá, nós já pescávamos no Mato Grosso; aí a turma veio para cá. E eles vieram, mas íam para lá pescar, nós não ficávamos aqui. Só vínhamos fazer compra. (...) Morava na barranca. Morava embaixo de lona, nós não tínhamos casa, era lona. Fazíamos os barracos, e nós morávamos. E eu gostava, se esse tempo voltasse, eu queria(risos). Eu gostava de ficar na barranca do rio, debaixo de lona, olhava para lá e para cá, vendo o rio. Mas olha, que esse tempo não volta mais. Acabou.

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Todas as dificuldades que surgiram em sua vida não foram suficientes para desanimar a ex-pescadora; a senhora Maria Rosa se recorda com saudade deste “tempo que não volta mais”, mesmo sendo um tempo em que se submetia a uma rotina de trabalho exaustiva, acompanhando o marido na pesca, e dando conta das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos.

(...) nós não tínhamos nada, nós estávamos começando a trabalhar com esse serviço, não é? Nós não tínhamos bote, nós não tínhamos bateia, nós não tínhamos nada; nós só pescávamos assim, de barraca. Nós andávamos por meio dos matos, por meio das lagoas, atravessava a lagoinha dentro da água, aí pescava lobó; e nós pegávamos era muito...e aí nós botávamos pescado de lobó com vara nas costas no meio do mato. Aí depois nós pegamos uns amigos do meu velho, eles começaram a arrumar a bateia velha, não é? Começamos a sair com essa bateia, depois já conseguiu arrumar um bote com motor, aí já ficou melhor, nós saíamos assim, de rede, ía longe...viajava de noite, no meio daqueles matos para acampar, para pescar no outro dia, e foi a família, e eu gostava; tudo a molecada dentro do bote (risos). Cinco moleques.Esse tempo eram tudo pequeno e era o tempo mais bom que a gente teve pa...tudo cabia. Levava as coisa de dormir, alimento, tudo, tudo para não passar fome. E minha vida era essa.

A bateia e o barco a motor vieram acompanhados pelo crescimento dos filhos, a preocupação era então ficar na cidade e assim dar oportunidade de estudo para as crianças, mas, um pouco mais de tranquilidade surgiria quando “apareceu um abençoado lá de

Mandaguari; e aí arrumou uma casa, um clube aqui para ele, ele tinha clube aqui, não tinha quem tomasse conta”. O marido da senhora Maria Rosa passou a cuidar deste clube, e ali junto com a família “ele terminou a vida dele”.

A dedicação à pesca em condições precárias, trabalhando mesmo durante a gravidez, e cuidando também dos filhos e da família, parece um resumo da vida de Maria

Rosa, mas estamos falando de outra ex-pescadora: a senhora Maria Odete dos Santos (figura

10), que nos contou:

Quando nós casamos, aí já meu marido disse: “Agora nós não vamos mais ter casa. Agora nós vamos só viver pescando.” Aí nós já começamos a descer para o rio. Aí já passamos para o Baía, do Baía nós já pegamos o Curutuba. Do Curutuba assim, nós pescando.Aí já ganhei a menina mais velha. Que tem quatro filhas. Ganhei a menina mais velha pescando, não 52

tinha casa para morar, era só barraco. Aí mudamos mais, subiu mais para frente...que ficava de noite aqui...um mês na frente.. outro mês mais lá para frente. Não era paradeiro assim, não é? Só que arrumou essa menina, e com mais um ano, não durou um ano, e já veio mais outro filho. Aí eu disse assim: “Mas essa vida não está boa”. Falava para ele: “Essa vida não está boa não”. Porque olha, arrumando filho, vivendo em um barraco assim, não está bom. Não, mas está dando para nós vivermos. (...) Quando era para ganhar o filho, eu vinha, passava na casa da minha mãe. Ficava na casa da minha mãe um mês. Ganhava aquele neném. Depois pegava para o barranco dormir. Aí voltava, porque acabava a dieta, aí voltava para o meu barraco de novo. Aí tocava para frente pescando. E ía embora pescar. Que a vida era só pescar. Engravidava de novo, vinha para casa do meu pai. (...) três filhos eu ganhei na casa do meu pai assim. No quarto, aí eu já ganhei no barraco, fora de perto dele.

Mais do que exceções, no que diz respeito ao trabalho pesado até os últimos meses de gravidez, as mulheres de Porto Rico parecem compartilhar uma história de vida em comum. Um ritmo de vida intenso, devotado exclusivamente ao trabalho, aos filhos, e ao marido.

Figura 10. Senhora Maria Odete dos Santos e o marido Senhor Francisco.

A senhora Maria Odete dos Santos nasceu no estado de Sergipe em 1950, passando a sua infância em São Paulo, onde se dedicou à agricultura e à pesca em apoio ao pai. As recordações de infância, que lhe vieram no momento da narrativa, foram marcadas pelo trabalho em casa, sendo responsável pelo serviço doméstico, pela atenção aos irmãos menores, e por uma enorme surra que levou aos dez anos por acompanhar a mãe até o campo 53

sem que ela soubesse: “quando ela chegou em casa, eu estava de cama, doente...de tanto que ela bateu...que não era para eu sair de casa e deixar os irmãos.”

Desde solteira que eu fui sofrida assim, trabalhar na roça, trabalhar no rio. Tem tudo essas coisas. E depois que eu casei, continuou a mesma luta, mesmo sofrimento. Quando estava com onze anos de casada, o marido foi embora, carregou outra, me deixou...com quatro filhos...eu fiquei. Ele carregou uma com cinco filhos e deixou eu com quatro. Aí eu fiquei aquela vida sozinha criando eles. Fiquei quatro, cinco anos sozinha, não é? Trabalhando...sozinha não, com Deus, não é? Que Deus me deu força. Então, fiquei trabalhando, lutando, pescando com eles. Eu deixava uns aqui na minha mãe, levava os outros para o rio comigo. Era assim: os mais velhos ficavam aqui, começaram a estudar o primeiro ano. Eu falei: “Não quero que eles se criem burros igual eu”. Porque eu sou burra, não é?(...) Então vocês ficam aqui com a tua avó, e a mãe leva os outros para o rio comigo. Eu levava os dois que não estudavam e ficavam dois com ela aqui estudando. E ficavam os outros no barraco comigo. Pesquei cinco anos nessa luta.

Entretanto, mesmo antes de ser abandonada pelo marido, a pescadora passou por momentos muito difíceis vivendo às margens do rio Paraná.

Aí começou a adoecer todos meus filhos. Uma maleita! Essa filha mais velha...quase morri. Quando nós viemos de lá, já não esperava mais nem de ter eles vivos. Porque estava já tudo desenganado. Uma maleita! Um sofrimento, meu Deus do céu! (...) Chegamos no Urutu, paramos lá, tinha umas casas, aí paramos lá. Tudo ruim, tudo doente. Aí estava doente os três filhos, o marido. Só estava sã eu e o filho mais novo. Os outros estavam tudo doente. Aí paramos lá, eles falaram: “Não, não posso ficar desse jeito...vamos caçar recurso”. Aí colocaram dentro de um bote. E trouxemos eles aqui para o Porto Rico. Quando nós chegamos aqui no Porto Rico, vai procurar recurso. Aí foi entregar na mão da malária, não é? Que a malária ataca. Aí a malária foi em cima. Que não deu um ano tratando deles. (...)Até conseguiu tratar. Aí tratamos eles. Aí nós falamos: “Agora não vou mais para esse mundo, para lá não...porque só pega doença”. Esse tempo nós continuamos pescando, do Baía ao Ivinhema direto. E nesse Poitã. Pescando só nesse Poitã. Direto, direto nessa vida.

Ao ficar sozinha com quatro filhos para sustentar, em momentos nos quais faltava até comida para alimentar a família, a senhora Maria Odete não encontrou outra alternativa, a não ser dedicar-se ao trabalho que melhor conhecia: a pesca. O medo das marés a fez preferir pegar carona para chegar aos pontos do rio Baía onde montava sua barraca, e passava a semana pescando:

Casa para morar também lá no rio não tem. Não, casa do rio é uma lona, igual essa daí. A gente enfia dois paus, um lá, outro aqui, passa um varão em cima, enfia um toquinho lá, enfia outro cá, e amarra as pontas da lona sabe? E ali monta a cama, não é? Que não tem cama (risos), enfia umas forquilhas, 54

põe umas tábuas em cima e coloca o colchão em cima para dormir, é desse jeito. Que a gente de barraca não tem nada não. Não, é só mesmo as panelinhas para comer e colchãozinho para dormir e pronto(risos).

“Então, nós sofremos muito. Eu falo para eles sempre que eu tinha que falar: eu não gosto nem de lembrar dessa vida. Porque hoje nós estamos as mil maravilhas, não é?

Que a vida do pescador não é fácil não. Esse é bem sofrido.” Atualmente casada com o senhor

Francisco Vieira, divide com o marido o trabalho na peixaria que montaram na cidade.

Contudo, a opção por um segundo relacionamento não foi fácil para a senhora Maria Odete, pois temia que os filhos pudessem ser maltratados por um segundo marido. Finalmente acabou aceitando o conselho de seu filho mais velho, com quatorze anos o adolescente lhe dissera: “ah mãe, mas a senhora tem que falar para a vó, que a vó vai entender que a mãe não vai viver toda vida sem...nós um dia vamos casar, nós um dia vamos casar, a mãe tem que arrumar um marido.”

Então, é uma coisa assim, que é boa, e é sofrido sabe? Que dá muito ensino para as pessoas. É que o pescador não tem valor, não é? Sabe disso? É que o povo não dá valor para pescador, pescador não é uma pessoa assim que, disse assim: não é um trabalhador! Com tudo que ele trabalha, mas ele não sabe que é um trabalhador, ele passa por preguiçoso.

Atenta às mudanças sofridas pelo rio Paraná, e apesar de reconhecer a importância do trabalho desenvolvido pelos pescadores, grupo profissional do qual fez parte, a senhora Maria Odete acredita que uma parcela da responsabilidade pela diminuição dos peixes no rio é dos próprios pescadores:

Agora, eu creio que o peixe diminuiu porque apareceu muito pescador, e os pescadores tiraram o respeito, pescadores de respeito entendeu? Eles começaram a atacar, está pescando com muita malha pequena. Então no que foi pescando com a malha foi diminuindo.(...) Porque, você põe uma planta aqui, ela cria um ano dois brotos, você naquele ano mata, tirou aqueles dois brotos, que naquele ano ela ía dar mais dois brotos, você tirou, como que ela vai produzir? Ela não vai render, ela não vai...vai fracassando.

A situação se complicaria ainda com o surgimento das barragens, pois com a construção das duas hidrelétricas mais próximas a Porto Rico, as “enchentes” foram diminuindo, afetando a reprodução dos peixes: 55

A derradeira cheia que deu dessas, eu estava no Poitã, que eu morava aqui no Porto Rico, não tem o que? Tem trinta anos o caçula? Que deu essa cheia. E nunca mais deu uma cheia para ter espaço para o peixe desovar, para peixe criar, eles não criam mais.

Sofrimento parece ser a palavra de ordem para resumir a vida das mulheres de Porto Rico, em todos os depoimentos encontramos com facilidade palavras como“luta”,

“difícil”, mas encontramos também a crença de cada uma delas na vitória que alcançaram em suas vidas, apesar das adversidades.

“Eu sofri muito, mas graças a Deus eu venci”, assim a senhora Maria

Cardoso dos Santos (figura 11) se expressa em vários momentos da entrevista. Sempre muito animada, narrou a sua história de vida em meio a muitas gargalhadas, como se por meio delas fosse possível depurar o passado de sofrimentos, e suportar as lembranças nem sempre fáceis de serem trazidas à consciência.

Figura 11. Senhora Maria Cardoso dos Santos.

Paulista de Ibitinga, a senhora Maria Cardoso aos sessenta e oito anos, mesmo estando aposentada, ainda encontra forças para trabalhar, ora limpando casas de outras pessoas, ora carpindo na lavoura da região: “eu sou uma mulher que sempre trabalhei e hoje estou aqui porque não tinha aonde plantar nada”. Esta frase sintetiza bem o sentimento de pesar que expressa em vários momentos da entrevista, sentimento relacionado a sua saída da 56

ilha Mutum, e como outros ex-ilhéus recorda com saudade o tempo de “fartura” vivido na ilha:

Mas era fartura minha filha, chegava na barranca do rio ali, você tinha do que comprar. Agora ninguém pode mais viver nas ilhas. (...) o tempo que a gente tinha banana, nós plantávamos banana nanica, banana maçã, e aqueles cachões assim minha filha, a gente, ichi! Era uma beleza, vivia tranqüilo, a gente nem pensava...às vezes se não desse cheia, a gente colhia arroz, se não colhia a gente comprava de saco lá em Loanda na máquina, um saco de sessenta quilos e trazia para casa, não é? Era a única coisa que a gente comprava. Era isso...mas feijão, toda vida a gente plantou, colheu, vendeu, na ilha nós plantamos de tudo... soja... nós tínhamos até café na ilha. É, a ilha é uma beleza minha filha, agora hoje Porto Rico está nesse “rapador” aí... aqui vive quem pode, quem não pode vai arrastando.

A ilha Mutum tornou-se um lugar quase “mágico” para os ex-moradores, um lugar onde a miséria poderia ser vencida, um refúgio para as atribulações cotidianas, e a possibilidade de retorno a ela, a solução para os problemas de exclusão social: “E na ilha é um lugar, parece que foi um lugar mais sagrado que eu já vi, porque é uma terra que você cuidou de lá, você plantou, você tira mesmo”.

Contudo, este sentimento é contraditório se observarmos o relato da senhora

Maria Cardoso, narrando uma das cheias com que conviveu durante a sua permanência na ilha

Mutum:

Aí depois; quando nós chegamos, demorou para dar cheia; aí o Júlio pegou, foi pescar para baixo; eu fiquei, não é? Que eu tinha as duas gêmeas pequenas; aí quando o rio encheu e abaixou; quando do abaixar do rio ele foi; quando fez... oito dias que ele desceu, a água lavou, eu ainda quebrei trinta balaio de milho dentro do bote, que a gente tinha pouco; as galinhas, que podiam subir nas coisas...subiam; a pintaiada morreu tudo; aí o compadre Fortunato me deu ali para pôr as galinhas que ficaram, e ali no fundo, dentro daquele clube ali amarelo ali, era do... seu Julinho. Do homem que veio de Paranavaí, e ele deu a casinha que tinha no fundo; quando o Júlio chegou, estávamos ali, não é? Aí depois, aí o Júlio chegou, eu falei para ele: “Júlio, nós não vamos voltar mais para ilha não, porque na ilha não é lugar de gente não”; quando eu vi perder todo o arroz amarelando; milho tudo secando; não é? Ele falou para mim: “Se quiser ir você vai, se não quiser, você fica”. Falei: “Olha, o Tonho Neca, o Zé Neca ali está dando café ‘a meia’; e café por ‘centar’, porque nós não vamos pegar?”(...) E ele falou para mim: “Se você quiser ir você vai, se não quiser”, eu falei: “e todo mundo que foi naquela época está tudo tranqüilo hoje, não é? Ele não quis, voltamos para a ilha de novo; “vai pescar?”, quando é um dia nós vamos pescar, quando vai indo...nós tínhamos quebrado o milho Dona Maria! Quando vai ver rede, está o cordão de água tudo...carregando o milho, tudo assim com a cheia. Quando eu cheguei aqui, eu sofri demais minha filha, eu 57

por meu gosto não tinha ficado lá nem um dia, porque a gente sofria demais. Pernilongo? Você ia para rede, você fazia assim no braço, o braço da gente estava cheio de sangue! Aí depois; quando deu aquela de sessenta... que de foi, que ficou três meses ali em riba de...não é Dona Maria? Ficou três meses ali em riba? As imbaúbas morreram tudo.

Este sentimento confuso, entretanto, não é difícil de compreender: hoje morando em uma casa de dois cômodos onde tem de pagar aluguel, e vendo a cidade sendo frequentada por um número maior de turistas, alguns dos quais chegaram a construir casas na cidade, a senhora Maria Cardoso tem motivos para se lembrar com saudades de um tempo, no qual apesar das atribulações na rotina de vida dos moradores das ilhas em época de cheia, ela possuía uma casa para viver sem precisar pagar por isto. A respeito do turismo ela acrescenta:

Desde que começou a vir esses turistas de fora. E sempre mais, ali mesmo para cima do campo agora, vai sair uns condomínios, perto daquela fazenda que tem aqui, vai sair um condomínio ali, aqui olha, Porto Rico de primeiro era só do povo de Porto Rico e...os fazendeiros, e as coisaradas tudo aí, não é? O pessoal das ilhas, que antigamente tinha muita gente nas ilhas. Muito, muito mesmo, daí você tirava galinha, você tirava porco, única coisa que a gente quase não tirava nas ilhas era arroz. É que no tempo do arroz a cheia vinha. Eu achava assim...que nem por exemplo, que tem muitos coitados que pagam aluguel que nem eu mesmo. Se saíssem essas casinhas, embora a gente pagasse, como agora que a gente paga aluguel, não é? Mas, você está sabendo que é teu.

A senhora Maria Cardoso percebe na realidade uma contradição bem maior, uma das contradições que caracterizam o sistema capitalista como um todo: a existência de pessoas que possuem o capital, e em alguns casos passam a controlar a força de trabalho, e de outro lado, pessoas como ela mesma, expropriadas dos meios de produção, e lançadas em um meio no qual a sobrevivência dependerá de uma luta constante entre forças de trabalho, ou melhor, entre “mercadorias humanas” que se chocam em um espaço ilusório coletivo denominado mercado de trabalho.

A vida em Porto Rico não foi mais fácil para as mulheres jovens que entrevistamos: a professora Sara Pereira Dantas (figura 12) e a pescadora Ivone Barbosa da

Silva(figura 13). Ambas têm em suas histórias de vida alguns aspectos em comum. As duas 58

cresceram em ilhas da região, e tiveram uma infância dedicada ao trabalho combinado com as diversões características de crianças que vivem em áreas agrícolas:

Era uma vida bastante difícil assim, porque a gente não tinha quase conforto. Mas por mas por outro lado uma vida boa, porque a gente vivia em contato com a natureza, e a minha infância toda foi em contato com a natureza, com animais, com pássaros, com rios, com vegetação natural, que a gente andava por dentro do mato, tinha muitas brincadeiras que a gente fazia dentro do mato, esconde-esconde, de salva, de pique, e também a gente tinha casas construídas de bruta, de pau a pique, cobertas de capim, que os pais faziam. Toda menina, toda família, todo pai tinha uma preocupação, de fazer uma casinha, um ambiente para as meninas brincarem, até mesmo porque havia muita união entre as famílias. As famílias eram muito unidas, então, eles se misturavam para brincar e os pais não tinham aquela preocupação em ficar cuidando, de ficar olhando o que eles estavam fazendo.E aí eles preparavam um local para as meninas brincarem, as mães faziam boneca de pano, é, a gente brincava muito com brinquedos feitos de coisas da natureza, como bucha.Aquela bucha a gente fazia vaquinha de bucha, levava essas vacas para pastar no meio do mato, buscava essas vacas, ou levava no rio para tomar água, e boneca, não tinha boneca de plástico igual hoje, as nossas bonecas eram de cabeça de espiga de milho.

Figura 12. Senhora Sara Pereira Dantas. 59

Figura 13. Senhora Ivone Barbosa da Silva.

A professora Sara Dantas nasceu na cidade de Porto Rico em 1968, e três dias depois já estava na ilha Mutum, de onde saiu com a família somente com as cheias de

1982/83. A ênfase de suas entrevistas foi dada à solidariedade dos moradores da ilha, sempre dispostos a se ajudarem nas tarefas diárias, ou então ao repartirem entre si produtos da colheita ou da pesca, na relação entre os ilhéus e o meio natural, considerada por ela não destrutiva, e ainda nas mudanças dos costumes da população local nas últimas décadas.

(...) nasci e cresci lá na ilha, minha infância toda passei quase toda lá. Nós íamos para roça, brincávamos lá na roça, nossas bonecas eram espiga de milho (risos). (...)Foi gostoso minha infância lá na ilha, que eu me lembro eu não tinha brinquedo não, mas era gostoso, nós íamos para casa do vizinho brincar. E era bem diferente de agora, hoje eu tenho duas filhas. Eu acho tão diferente, até eu compro todos os brinquedos para elas, mas parece que não é mesma coisa.Parece que nós éramos mais felizes naquela época, tinha mais felicidade do que hoje. Havia muitas famílias, tinha muitos vizinhos perto. Aí nós nos reuníamos a noite sabe, para contar “causo”, nós contávamos muitos “causos”(risos). Cada causo até eu ainda esses tempos atrás estava lembrando; falei: “Nossa nós sentávamos lá, em volta da casa, não é? Aí o pai ficava contando aquelas histórias, e hoje em dia, não tem mais nada disso, que hoje é televisão.

A senhora Ivone Barbosa, mesmo como pescadora profissional, acompanha atualmente seu pai nas pescarias. A dedicação à pesca teve início em sua infância na ilha

Japonesa, local onde nasceu. “Quando nós pegamos idade, nós ajudávamos o pai na roça, nós armávamos a rede, pescávamos. Nós armávamos os pedacinhos de rede”. Esta idade a que 60

Ivone se refere ainda pertence à infância; como a senhora Ivone nos contou, seu pai fez uma

“banquinho” para que ela e a irmã pudessem socar arroz no pilão. A utilização do trabalho infantil está presente em todas as entrevistas, nas quais os moradores falaram mais detalhadamente sobre suas épocas de infância, este fato também está relacionado ao número de filhos dos casais, neste sentido, a senhora Sara, que teve mais nove irmãos, afirmou: “ as mulheres às vezes puxavam água do poço para lavar roupa de vinte, dez, quinze...que era a média dos filhos. Era de dez para cima. Não havia família com um, dois filhos, era raro”.

A semelhança entre as duas mulheres terminam nas brincadeiras de criança, e no trabalho executado nas ilhas onde moraram. A senhora Ivone, exceto por um intervalo de tempo em que morou em São Paulo, cidade na qual não se adaptou em função da “muita poluição” para alguém criada em Porto Rico, continuou pescando na região:

Aí nós vamos pescar, aí eu pesco com ele. Quando foi agora, depois que ele aposentou eu vim fazer minha carteira, aí pai falou assim: “Agora você tem que fazer sua carteira.” E sabe porque eu não fiz? Porque eu não tinha condições de fazer. E porque tem que pagar lá na colônia, tem que pagar os papéis, tinha que pagar no cartório, e nós não tínhamos. Você vê, com pai que, que eu ajudava ele mais era mais para ele comer. Só que tinha meu marido que me dava comida. Falei...então, aí eu ajudava ele, e não pagava, só pagava assim, lá de vez em quando. (...) Porque eu tinha, tinha dó do pai. Aí eu ajudava ele, e hoje meu pai me ajuda. Aí hoje em dia nós pescamos, e quando eu estou precisando, ele me ajuda.

Para ganhar um pouco mais com a pescaria, a senhora Ivone comprou um freezer para não ter de entregar o peixe na Colônia, pois, “na Colônia está muito barato, aí eu vendo aqui, daí os peixes que eu vendo, é eu e o pai, nós dividimos o dinheiro”. Para a pescadora, outro problema que os pescadores enfrentam, é representado pelos turistas.

Eu acho que turista mesmo, turista acaba muito com o rio. Porque o turista vem aí, e pode comprar isca boa, não é? Eles têm o jeito deles. Então, eu acho que eles pegam mais peixe que o pescador profissional. Daí eles vêm aí e levam os peixes tudo embora, e os pescadores ficam quase sem nada. Eu quero que minhas filhas não sejam pescadoras não. Eu quero que elas estudem para ser outra coisa na vida, menos pescadoras, porque a gente sofre muito, pescador sofre muito. Então, isso eu não desejo para minhas filhas não, eu já sou pescadora e não quero que minhas filhas sejam pescadoras.(risos).

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A opinião contrária ao turismo na região, em virtude de concorrência entre estes e os pescadores, contrasta na memória da senhora Ivone, com as leis relativas à pesca:

Eles íam passar arrastão, que hoje em dia é proibido passar arrastão na praia, menina do céu mais trazia peixe hein?Vinha cheia a bateia de peixe. E hoje em dia não; que não pode, não é? Passar arrastão, muita coisa foi proibida de lá para cá também. Para o pescador, não pode quase nada. Então, fica difícil. E era bom que às vezes não tinha ninguém para proibir de você fazer as coisas, não é? Então era bem fácil.(...) Que nem essas malhas das redes, umas malhas de rede gigante, passa um tubarão lá e não pega! Porque as malhas são muito grandes, primeiro a malha era: doze, dez, oito. Podia usar, hoje não, hoje tem que usar a quatorze, a dezesseis e a dezoito. E anzol também. Então, para o pescador é muito ruim.

A senhora Ivone repassa neste trecho o mesmo ponto de vista de seu pai, ou seja, a Área de Proteção e as legislações ambientais em vigor estão entre os principais fatores responsáveis pelo agravamento nas condições de trabalho dos pescadores locais. E, o

“sofrimento”, termo continuamente associado às vidas reveladas pelos depoimentos orais, e experimentado pelos pescadores em seu cotidiano, é suficiente para não desejar que a profissão permaneça na família.

A professora Sara, ao contrário da senhora Ivone, não seguiu os passos do pai, no seu caso específico, a preferência foi pela atividade desenvolvida pela mãe, que era professora primária na Escola Euclides da Cunha, a única existente na ilha Mutum.

Antes de ser professora, a senhora Sara Dantas trabalhou como empregada doméstica em Porto Rico nos anos que se seguiram as enchentes do início da década de oitenta, e depois na lavoura enquanto cursava o magistério: “porque na lavoura eu ía dois, três dias, e tirava um dia para estágio, então não me atrapalhava”.

A ex-ilhéu compartilha com os outros moradores que entrevistamos a mesma visão da ilha Mutum, como um “paraíso idílico”, espaço que para ela também não havia tantas “brigas”, e somavam-se ações de amizade:

E as pessoas que viveram lá na Ilha naquela época eram pessoas felizes, não tinha essa brigaiada, as pessoas não brigavam à toa. Hoje qualquer coisa estão brigando,estão falando alto, estão batendo boca, não existia isso naquela época. Olha, era a coisa mais difícil você ouvir dizer que um vizinho estava de mal com o outro. É, então do lado pessoal eu vejo uma mudança 62

tremenda e assustadora! Porque a violência que não havia naquela época, hoje ela está acentuada na família e na comunidade. Então, a criança aprende a violência em casa, e ela traz essa violência para sala de aula, e às vezes ela influi o professor, o professor, às vezes ele sai da sala de aula com dor no peito, com depressão, com um monte de coisa por causa desse comportamento que hoje é um comportamento agressivo. E naquela época, é, havia também pessoas que bebiam, mas as pessoas bebiam, maridos que bebiam, chegavam em casa eles dormiam, eles não espancavam...nunca assim ouvi falar de espancamento de esposa.

Segundo Silva (2002, p.106), apesar de não existir “estatísticas” a respeito do alcoolismo em Porto Rico, sabe-se que existem muitas pessoas viciadas no município, bem como a cidade enfrenta problemas com a prostituição, inclusive com a prostituição infantil.

Em contrapartida, a opinião da professora sobre a relação dos moradores da ilha Mutum com a natureza, segue a mesma linha de pensamento:

A paisagem, ela não era uma paisagem assim danificada, porque embora a ilha fosse cultivada, mas cada ilhéu, cada agricultor tinha a área de cultivo e tinha a área de reserva. Ele não derrubava toda a área que ele tinha, vamos supor que ele tinha lá, é que era base mais ou menos, seis, sete alqueires por ilhéu, então ele cultiva três, quatro e dois, mais ou menos, ele mantinha a mata nativa, nunca...não existia lei ambiental naquela época, mas, mesmo assim eles respeitavam, os agricultores respeitavam isso aí, essa área de preservação, até mesmo porque, mesmo uma família grande como era a nossa, não dava conta de cuidar de seis alqueires de terra por exemplo. Então, por isso eles não desmatavam tudo, porque não havia necessidade, e depois também, o solo era muito rico, muito fértil. Então, você plantava lá um alqueire de arroz, você colhia lá quarenta, cinqüenta sacas de arroz, e esse arroz não tinha mercado consumidor, porque tirava um pouco para consumo e o restante você vendia, mas não adiantava produzir muito, porque todo mundo produzia, então não tinha para quem vender.

De acordo com o seu depoimento, as famílias da ilha não depredavam o meio natural, mesmo antes da legislação ambiental, estas já guardavam uma porção do espaço como área de reserva. A concepção de natureza da senhora Sara Dantas é profundamente religiosa:“Meu Deus, como Deus é maravilhoso, não é? Fez uma diversidade...como que Deus pode fazer uma diversidade de coisas? Principalmente na natureza, tem árvores assim, que você olha para elas, são árvores de cinqüenta, sessenta anos, e que estão ali: belas e formosas”. 63

A natureza para ela, representa ainda um papel importante: em sua análise sobre a mudança dos costumes e dos valores da comunidade, ou mesmo do comportamento dos alunos nas escolas, a natureza figuraria como um importante fator para explicar estas transformações:

E hoje eu vejo a violência muito grande, e eu considero isso falta de estrutura das famílias, porque enquanto os pais antes sentavam para conversar...os filhos para brincarem, de brincadeira que hoje eles consideram bobas. Então, acho que falta essa parte do diálogo entre os pais e os filhos e principalmente do contato com a natureza. Porque quem viveu em contato com a natureza, igual eu vivi, e aprendeu a amar. (...) E eu atribuo então essa violência que as crianças chegam na escola, e hoje uma criança na pré- escola, ela chega e nunca vê se a mãe entrega na porta da sala de aula e fala: “Professora, eu não sei mais o que fazer com ele.” Às vezes traz, a gente leva a criança que esta ali, indisciplinada que esta ali na sala de aula, para Diretora, a Diretora chama a mãe, a mãe fala assim: “Entrega para o Conselho Tutelar. Que eu não dou mais conta.” Aí eu fico pensando: “Será que essa criança não brinca com terra? Será que essa criança toma um banho de rio?” Por que tudo isso ajuda. Você vai tomar um banho no rio, o povo fala que o rio está poluído, realmente, o rio não é mais aquele rio como era a quarenta e poucos anos atrás, é claro que já existe um grau de poluição.

A natureza desempenharia assim o papel de Phármakon , um remédio para os males da sociedade moderna, ou como uma terapia alternativa para contrabalançar os efeitos da violência social e da miséria, presentes na sociedade de Porto Rico. Uma aproximação do modelo rousseauneano, que contrapõe a imagem do selvagem,

“naturalmente” bom, por estar em contato com a natureza, com a dos homens vivendo em sociedade, e portanto, “naturalmente” perversos.

As mulheres de Porto Rico, em toda a riqueza dos detalhes narrados em seus depoimentos, que longe capturar a vivacidade e a coragem delas, são personagens importantes na história da comunidade, e principalmente na história da pesca, e da relação dos moradores da região com a natureza.

É interessante notar que esta observação aparentemente simples não é tão visível como imaginamos, um exemplo disto foi a surpresa que tivemos com a trajetória do nosso próprio trabalho, em nossa descoberta pessoal; outro exemplo verificado na própria comunidade, pois quando nos referíamos a estas mulheres para buscarmos informações com 64

algumas pessoas que vivem na cidade , chamou-nos a atenção a forma como se dirigiam a elas: a senhora Maria Cardoso dos Santos, é conhecida como a “Maria do seu Júlio Preto”, a senhora Maria Odete dos Santos, como a “esposa do seu Chico”, presidente da Colônia, a senhora Ivone Barbosa da Silva, como a “esposa do Paulo Janela”, a senhora Maria Rosa de

Jesus como “a mãe do Tião da Base”, e mesmo a professora Sara Dantas, já reconhecida por sua profissão, é mais identificada por ser a filha do “seu Otávio Pernambucano”.

Esposas, filhas, mães, a luta das mulheres de Porto Rico por sua sobrevivência, enfrentado as duras condições de trabalho no rio Paraná, parece ser também acompanhada pela insistência de um meio social em transformá-las em coadjuvantes no processo histórico construído coletivamente, obliterando suas identidades, silenciosamente escondidas nas sombras das figuras masculinas com as quais convivem, ou conviveram.

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4 CONSIDERAÇÕES...NEM UM POUCO FINAIS

E daí segue que ora o homem se maravilha com o vivo e ora, se escandalizando de ser um vivo, forja para seu próprio uso a idéia de um reino separado. (CANGUILHEM, 2003, p.13)

Qual é o nosso lugar no mundo? Esta não é necessariamente a primeira pergunta que estamos acostumados a fazer, quando iniciamos nossa aventura pessoal em direção ao reino das especulações metafísicas, mas sem dúvida é a primeira a vir ao pensamento quando observamos a realidade em que vivem os moradores de Porto Rico, cujas memórias compõem uma parte importante deste estudo.

Por estas memórias, podemos vislumbrar a complexidade e as contradições desta realidade, dividida em dois momentos muito nítidos: o primeiro, marcado no discurso da maioria dos moradores pela idéia de muita “fartura”, sobretudo nas ilhas, onde todas as pessoas eram solidárias, repartindo o produto da colheita e da pesca com os demais moradores vizinhos; o paraíso idílico em que o peixe era abundante, e sobrava comida na mesa:

[...] a gente na ilha, eu gostava muito porque alí você tinha fartura, você plantava, tudo que você plantava...a gente plantava cebola colhia, você plantava alho colhia, não é? Não precisava comprar. De fato que esse negócio de ter acabado com as ilhas foi um fracasso para Porto Rico...e muito, e muito, e muito, e muito, e muito, muito mesmo. Agora ninguém mais planta na ilha, agora só tem fome na ilha.

A senhora Maria Cardoso afirma com veemência a importância das ilhas para a cidade, mesmo tendo sofrido muito com as cheias, ao perder parte da colheita e pequenos animais de criação em algumas delas, a vida “naquela época” ainda era mais tranqüila, pois a sua família possuía uma casa, pela qual não pagavam aluguel, e em função de se dedicarem à agricultura, não necessitavam comprar em mercados a maioria dos alimentos que consumiam. A quase independência em relação aos mercados locais pode ser notada também no depoimento da senhora Ivone Barbosa:

[...] de vez em quando o pai vinha vender os mantimentos, aí ele levava óleo. Porque nós não tínhamos, pois era banha, ele comprava pouca coisa, acho que no mínimo ele levava um saquinho, era muito pouca coisa que ele 66

comprava naquela época. Hoje não é. Hoje até fruta você tem que comprar. Ele plantava tudinho, tudinho, até a coisa de horta o pai plantava lá na ilha.

A ruptura deste processo histórico, inaugurando um segundo momento nas narrativas, tem início com o funcionamento da hidrelétrica de Itaipu, e posteriormente, com a criação da Área de Proteção Ambiental em 1997, e com a construção da Hidrelétrica de Porto

Primavera. A respeito das hidrelétricas, a Senhora Maria Cardoso acrescentaria: “A barragem foi o que acabou com os peixes, é depois que fizeram a barragens aí foi que acabou os peixes”. A mesma opinião é compartilhada pela Senhora Maria Odete dos Santos, com uma vasta experiência em pesca artesanal; a filha de pescador conclui:

Depois que surgiram essas barragens aí acabou as enchentes, acabou a desova de peixe, o peixe não tem mais o tempo certo da desova. Porque primeiro o peixe desovava de novembro até fevereiro, fevereiro já estava parado, não tinha mais desova, não é? Mas agora não...olha, se pegar fevereiro, tem peixe com ova. Agora quando a pesca abriu, ainda se pega peixe com ova. Porque não teve enchente, para eles desovarem suficiente. Não teve o tempo para o peixe criar ovas, para desovar. Então tudo isso está fracassando. Esta só que fracassa, só que diminui, então é isso.

A percepção dos moradores revelada pelos depoimentos, antes de apontar a importância do conhecimento das populações tradicionais para pesquisa ecológica, como já demonstrara Diegues (2000b, p.38), reforça as discussões acerca da estreita ligação que os homens mantêm com o espaço no qual estão inseridos (BOSI, 1994, p.451), ligação relacionada à constituição da identidade e da memória coletiva dos agrupamentos humanos.

Assim, retomando a questão feita anteriormente: qual é o nosso lugar no mundo? Sob os conflitos dos moradores de Porto Rico, diante das alterações do meio ambiente em que vivem, da ausência de políticas públicas (e por que não falar também em

“políticas científicas”?) que compreendam a importância de se preservar as comunidades humanas de uma extinção iminente, e da presença de legislações ambientais nem sempre interpretadas com critérios que levem em consideração os interesses das populações pobres e marginalizadas, observamos a presença de conflitos existenciais. 67

No âmbito das relações entre o homem e a natureza, mas presente também na relação dos homens entre si, a questão existencial assume duas formas distintas. De um lado, o caráter imanente do conflito existencial se manifesta na situação quase unânime em que se encontram os moradores entrevistados na cidade de Porto Rico, principalmente os que foram forçados a sair da ilha Mutum: submetidos a um sistema desagregador, por meio do qual as antigas convivências que mantinham com o seu habitat de origem são dissolvidas, e com elas o delicado tecido de experiências cotidianas divididas com os demais membros da comunidade. Sistema este legitimado pelas conveniências legais, pois, embora se proponha

“preservar” a diversidade biológica da região, na prática a legislação ambiental em vigor tem se esquecido que o homem também compõe esta diversidade.

As lembranças da professora Sara Pereira nos indicam claramente os estreitos laços que uniam a comunidade da ilha Mutum:

E uma coisa que havia de muito bom também, é que durante as pescarias, que geralmente aconteciam de dia, aconteciam de noite, e quando um pescador ía pescar, e ele voltava com o barco abarrotado de peixe, ele saía no vizinho pedindo ajuda. E ali vinha dois três vizinhos para ajudar a limpar (peixe). E isso acontecia, era uma troca, então quando um pegava, chamava o outro, e assim vice-versa. E as comadres, as mulheres, vinham uma na casa da outra para assar pão. Eu me lembro da minha mãe, a dona Maria do seu Júlio, que você já falou com ela, elas tinham um forno de lenha, então elas falavam assim: “O comadre, vamos fazer pão?” Aí, ía uma na casa da outra, elas faziam duas fornadas de pão, aí depois, uma trazia um pouco, a outra ficava com um pouco, outra já dava para vizinha de cima, para o vizinho do lado, então era muito bom. (...) A gente plantava na ilha feijão. Aí o feijão do outro chegava primeiro. Então, aquele outro que colhia primeiro, aí ele dava para aquele que estava com a colheita atrasada. Aí quando aquele outro colhia, ele também fazia mesma coisa. Então, tinha abóbora lá sobrando:“O compadre, o senhor tem porco? Vem aqui buscar abóbora.” Levava abóbora para os porcos, mandioca, peixe. Porque nem todo mundo que morava na ilha tinha afinidade com pescaria, mas, tinha aquelas pessoas que viviam mais da agricultura mesmo,(...) Mas, com aqueles...nunca ficavam sem comer peixe também. Porque quem morava perto já sabia:“Aquele fulano lá não gosta muito de pescar. Vamos mandar uma bacia de peixe para ele.” E mandava aquela baciada de peixe, aí comia um dia, dois, fresquinho. Depois charqueava, comia o charque e é era assim.

Neste aspecto, passa a fazer sentido a pergunta do Senhor Otávio: “esse parque aí... o que que nós temos com esse parque aqui? Nós não temos nada”; ele 68

acrescentaria ainda uma observação interessante em sua entrevista: “O cara nascido e criado lá na ilha, não é? Ele vai fazer o que lá dentro de Maringá? [...] O índio, se você tirar do mato, ele morre...tem muita gente ainda lá...que se tirar de lá...”

Em um momento singular de sua história (a princípio todos os momentos o são), a humanidade inauguraria na virada do último milênio, nas palavras de Edgar Morin

(2000, p.63-78), a “fase da mundialização”, e com ela poderíamos falar em uma “identidade terrena”, ou de uma consciência capaz de “conduzir-nos à solidariedade e à comiseração recíproca, de indivíduo para indivíduo, de todos para todos”, entretanto, o que estamos assistindo ainda é a continuidade do fenômeno de distanciamento, estranhamento, não somente em termos de homem-natureza, mas na relação entre os homens. Estamos assistindo a destruição gradativa das consciências e identidades de alguns homens que, jogados em uma espécie de limbo social, não podem pertencer a um meio teoricamente “preservado” nos moldes de uma área de preservação, e ao mesmo tempo não são totalmente acolhidos pelo modelo de organização denominado urbano-industrial. Assistimos realmente a morte física e psíquica de muitas pessoas, entre as quais, os habitantes de Porto Rico não se constituem exceção no Brasil, o que dificulta ainda mais o caminho em direção à “solidariedade ecológica”, defendida por Morin.

“[...] o ódio aos artifícios ligados a nossa civilização do desenraizamento é também ódio ao humano como tal”, esta conclusão de Luc Ferry (1994, p.28) é conseqüência de uma crítica do autor à ecologia profunda. A “Deep Ecology”, como é mais conhecida, professa como premissa básica em seu ideário a interferência excessiva do homem sobre o meio natural, cujos limites devem ser fixados na e pela satisfação das necessidades vitais da humanidade. Marcadamente “biocêntrica”, e por vezes criticada severamente por apresentar propostas neomalthusianas, a ecologia profunda influenciou a política conservacionista dos países ricos, a exemplo do esquema colocado em prática nos Estados Unidos, apresentando 69

uma estreita relação com o modelo de biologia de conservação que defende a preservação do meio natural entendendo-o como “habitats despovoados e dotados de grande beleza estética”

(DIEGUES, 2000b, p.10).

Parafraseando Ferry, este modelo presente na prática conservacionista, em países como o Brasil, tem contribuído de forma paradoxal para o aumento do ódio à natureza.

No caso específico de Porto Rico, o sentimento em relação à Área de Proteção Ambiental é ainda confuso, ora marcado pela indignação ou pela revolta daqueles que não podem mais plantar nas ilhas, ora representado por idéias como a do senhor José Barbosa, que credita “ao parque ecológico” a responsabilidade sobre a precariedade das condições de pesca na região.

Agora ninguém pode mais viver nas ilhas. Ninguém pode mais viver em ilhas, porque...diz que não pode...agora é das cobras, das capivaras, das onças (risos). E a ilha aqui era o coração de Porto Rico. É, as ilhas eram o coração de Porto Rico, aqui era uma fartura que dava gosto!

A senhora Maria Cardoso reforça o ponto de vista dominante entre os entrevistados, pois, mesmo existindo pessoas morando nas ilhas atualmente, “viver nas ilhas” tem um outro sentido para a ex-pescadora: viver nas ilhas é poder cultivar a terra.

A análise das narrativas nos leva a perceber uma profunda contradição presente nos depoimentos orais: de um lado, a maioria dos moradores têm uma compreensão da influência das hidrelétricas de Itaipu e Porto Primavera sobre o pulso de inundação do rio, e sobre o volume de peixes disponíveis para a pesca; por outro lado, não vêem a Área de

Proteção como necessária para a manutenção das condições mínimas de existência das demais espécies que habitam a planície de inundação do alto rio Paraná.

Esta atitude se explica pelo sentimento de distanciamento em relação à natureza, destes homens e mulheres que, em luta incessante, buscam resistir a sua própria extinção. A natureza, ou o “ meio ambiente” torna-se elemento de oposição à sobrevivência; como nos disse a senhora Maria Cardoso, as ilhas pertencem agora às cobras, às capivaras e

às onças, enquanto ela mesma espera conseguir uma casa própria para morar em Porto Rico. 70

Esse “meio ambiente” que agora quer “ preservar este pedacinho” do rio Paraná, como afirmou o senhor Francisco, representado pelo “parque ecológico” ou pela “área ecológica” - expressão que alguns moradores utilizam para denominar a Área de Proteção, tornou-se assim um usurpador. As coisas mudaram muito na cidade, “mudou que virou tudo meio ambiente, modificou tudo, virou tudo em sertão de novo”:

Cidades e sertões são termos que traduzem novas sensibilidades surgidas no processo acelerado de concentração populacional e de urbanização, por que algumas regiões passaram na primeira metade deste século. Mais propriamente, pode-se falar que se trata de ‘lugares da memória’ do processo de urbanização vivenciado de diferentes formas por diversos contingentes populacionais. Processo de transformação das paisagens, de construção e reelaboração de representações sobre o território e populações, em razão do qual surgiram imagens como as atribuídas ao Estado de São Paulo, como um lugar ‘moderno’, urbanizado e desenvolvido. No início do século, mais da metade do seu território era considerado ‘ sertão’, desde que se considere ‘sertão’ como oposto de ‘cidade’. Foi no processo de transformação da paisagem de grande parte do território paulista, do norte do Paraná e outras regiões, que se eliminou da ‘memória’ a representação daqueles espaços como ‘sertões’ (ARRUDA, 2000, p. 14).

Para o senhor José Barbosa, meio ambiente e sertão são sinônimos, e em um processo inverso ao descrito por Gilmar Arruda, a cidade de Porto Rico retorna à fase anterior a sua ocupação, regredindo à condição de espaço inculto, “atrasado”, em oposição ao espaço urbano considerado “civilizado”.

O que podemos perceber nesta discussão, em que figura a oposição ou mesmo a conciliação entre os dois termos chaves: Homem e Natureza, é a pertinência constante do conceito de natureza que se faz presente, conceito difícil de ser exprimido;

“signo de oposição – incapaz de manifestar-se por si mesma”, segundo Clément Rosset (1989, p.19), a palavra natureza é a expressão marcante do conflito existencial sobre o qual falamos.

O homem, ser do “desenraizamento” – expressão tão cara a Ferry (1994) - construtor de culturas, de modos de vida, da racionalidade e da ciência, mantém-se ligado ao que denominamos natureza em uma relação que não deixa de ser uma relação “natureza-natureza”

(MOSCOVICI, 1977, p.17). 71

Eu sei que a natureza não tem nada de verde nem de cinza, que ela representa ao contrário uma paleta infinita de cores. Ela é para nós a idéia que compreende todos os caminhos possíveis, no tempo, entre o acaso e a necessidade constrangedora. Por que esta desconfiança com relação à idéia de uma natureza? Ela não necessita ser precisa para exprimir uma realidade. Quase todas as realidades vividas pela humanidade, inclusive aquelas descobertas pela ciência, são veiculadas por idéias que parecem a princípio imprecisas. (MOSCOVICI, 2002, p.24)

A narrativa dos moradores que entrevistamos nos permite entrever, inclusive nos silêncios, a forma como cada um elaborou e reelaborou sua comunicação com o meio, criou condições de sobreviver, a despeito das mudanças que ocorreram, e, em um esforço particular, buscou ultrapassar os limites impostos pelas transformações ambientais e pelas pressões políticas. Mesmo antes das barragens, das leis ambientais, da violência institucional ainda mais premente, as condições de vida destes moradores não foram desprovidas de sofrimento:

Eu vou falar a verdade...olha tem hora que eu falo para o meu marido, para esse outro que tenho agora: ai gente, eu não acredito mesmo que eu já passei por esse caminho todo, não é? Porque muito perigoso, ali no Ivinhema mesmo tem um lugar que nós acampamos, escutava onça...vinha assim urrando assim. Parece que vinha pertinho do barraco. E eu fazia...e era obrigada saí, deixar meus filhos dentro do barraco sozinhos. Que eu ía pescar mais ele, tinha que deixar os filhos no barraco. Ia embora pescar. (...) Um dia mesmo aconteceu isso comigo. Eu não gosto nem de lembrar... quando nós fomos pescar a noite toda, era umas quatro horas da manhã, nós vínhamos descendo, pegamos, colocamos os peixes tudo na barranca, que não vai pescando e colocando no rio, na beirada, não é? Aí no chão, porque bateia era pequena e não podia por. Pegamos tudo os peixes, nós vimos vindo, eu escutei aquele choro longe assim. Aí eu falei para ele assim: “João é o choro do nêgo”, que era o menininho pequeno...acho que apelidamos ele de nêgo. “É o choro do nenê, é do nêgo!” E ele falou: “É nada, você está com ele na cabeça, pensamento do choro do menino”. Falei: “É, escuta um pouco”. Parei de remar e fiquei escutando. Escutei aquele choro longe assim. Que eu...para dizer que ele não tinha fim. Daí falei: “É sim”, toquei o remo, lasquei o remo. Quando cheguei no barraco, ele não estava na cama. Aí nós assim, nos tocamos de dentro, beirando pela barraca assim, que era lagoa...e nós tocamos beirando a lagoa atrás dele. Fomos e fomos, até que chegamos lá na frente e encontramos ele chorando. De noite! Aí eu falei que aquele lá passou pela mão de Deus, porque eu não sei como o jacaré não pegou, porque ali tem muito jacaré.[...] Um ano e meio minha filha. Olha um ano e meio. Era o menino caçula.

Neste depoimento da senhora Maria Odete destaca-se a atuação singular das mulheres da região. Muitas delas, mesmo não tendo como comprovar com documentos 72

trabalhistas, dedicaram-se desde pequenas à atividade pesqueira, atividade que as acompanhou depois de casadas. Este é o caso da entrevistada, casada duas vezes com pescadores. Ao ser abandonada junto com os quatro filhos pelo primeiro marido, foi forçada a praticar a pesca, enfrentando sozinha a rotina de trabalho no rio Paraná e seus afluentes.

Subvertendo as condições sociais impostas pelo domínio masculino, mesmo sem o reconhecimento justo de suas atuações, estas mulheres de Porto Rico são um exemplo concreto da realidade vivida por muitas mulheres brasileiras em seu constante esforço para alcançar a igualdade e o respeito que merecem, mulheres cujo sofrimento é tão intenso, que é bom “nem lembrar”, o que nos remete a Nietzsche (s.d., p.109) em sua reflexão sobre a

“negação do sentido histórico” ser necessária à saúde do “indivíduo”, havendo portanto, o momento certo de lembrar, e o momento certo para esquecer:

Mas na mais pequena como na maior felicidade, há sempre qualquer coisa que faz com que a felicidade seja uma felicidade: a possibilidade de esquecer, ou, para dizer em termos mais científicos, a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da história.

Assim, no quadro geral das experiências de vida dos moradores, no qual se articulam os contatos estabelecidos com os membros da família e com os membros da comunidade, e o conjunto das reações que estes esboçam frente às vicissitudes originadas na luta pela sobrevivência na região, é que se define o espaço onde a questão existencial adquire seu caráter transcendente.

O caráter transcendental que se configura na luta pela manutenção das condições mínimas de sobrevivência (manutenção das existências individuais), é sempre mais nítido quando comparado ao conflito quase silencioso dos homens que buscam compreender o seu lugar no mundo, seja este mundo representado pela sociedade construída coletivamente pela espécie humana, ou representado pela expressão “mundo natural”, do qual participamos como entidades biológicas e no qual partilhamos com os demais seres vivos uma jornada comum no transcurso da história planetária. 73

Neste cenário de lutas entre os homens e mulheres de Porto Rico com a natureza, um outro fenômeno local tem tomado espaço nos conflitos, o aumento da atividade turística.

O turismo tem sido apontado em alguns trabalhos científicos, como uma alternativa para melhorar as condições de vida da população da região, em virtude da pressão legal sobre a atividade pesqueira. Agostinho e Zalewski, por exemplo, sugerem:

Avaliação do potencial de uso da área para o turismo ecológico, expandindo a estrutura presente em Foz do Iguaçu (Parque Nacional do Iguaçu e Reservatório de Itaipu), criando alternativas para o desenvolvimento regional e compensando as restrições de uso impostas à area de Reserva (AGOSTINHO; ZALEWSKI, 1996, p.69-71).

Os autores propõem ainda para a “preservação da área” remanescente do rio

Paraná, a necessidade de se desenvolver “ um plano de manejo para a região”; a criação de

“um núcleo de preservação permanente” englobando o trecho compreendido entre a “foz do rio Ivinhema e a cidade de Porto Rico, projetando-se, à esquerda, até a foz do rio Baía”, e “à direita envolvendo a área de proteção do rio Paraná”; a promoção de “um amplo programa de pesquisa”; e por último a criação de um”consórcio de entidades”, envolvendo “governos municipais, instituições de pesquisa, órgãos governamentais e organizações não- governamentais” (ONGs), aos quais caberiam o “gerenciamento da área e delineamento das prioridades em pesquisa e manejo”.

Adriana Rosa Carvalho (2002, p. 64), em sua tese de doutorado, além de defender a pratica da atividade turística para a região de Porto Rico, sugere “um programa de formação de pescadores-guias para turistas locais”, que seria implantado na Colônia de

Pescadores, bem como “cursos profissionalizantes” voltados para que os trabalhadores da pesca tenham condição de se adaptarem às exigências desta atividade econômica.

Entretanto, as opiniões dos moradores com relação ao turismo são divergentes entre si, apontando em certos momentos algumas contradições: 74

Depois que o turista entrou valorizou bem mais. Mas para o pobre ficou mais dificil, não é? Adquirir um terreno é mais dificil, mudança assim não teve muita, não é? Que aumentou muito foi o turismo. Turismo aumentou muito, de uns anos para cá. Olha é um...turismo é bom, não é? Se a gente soubesse, conseguisse explorar ele bem, não é? O turismo. O pessoal trabalhasse diferente como acho que ele é bom, não é? Acho que aqui não está ainda bem adaptado pa...Eu acho assim...não sei, acho que a cidade não tem estrutura assim...digamos, não é? Ainda boa para um turismo ainda. Para conseguir explorar, o pessoal...são meio desgarrado. Não tem união. Até o culpado somos nós pecadores mesmos, a união é bem pouca. Pescador é uma classe que não é bem unida. Pescador é assim, é uma das classes mais desunidas que tem é o pescador.

O senhor Antônio Justino acredita na atividade turística, porém, critica os companheiros de classe pela desunião, fator que dificultaria o desenvolvimento do turismo na cidade. No início de sua fala, aponta uma das conseqüências da prática do turismo na cidade: este provocou um aumento no custo de vida da população mais pobre, supervalorizando os imóveis. O mesmo pescador afirma ainda:

Hoje a gente vê, hoje a cidade é grande, bem espalhada, o pessoal fala: “Ah, Porto Rico cresceu bastante, não é?” Mas você pode ver, a maioria das casas estãos vazias, não é? (figura 14) São casas de turísmo. Só de final de semana, não é? É, pode correr essas ruas aí tudo, você vai ver bastante casa fechada. Esse quarteirão mesmo aqui meu olha: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, só nesse quarteirão aí tem umas seis, sete casas que é só de turista, que tem bastante casa, a maioria de turista. E aqui nessa quadra de casa tem sete famílias que moram. Nesse terreno tem assim é uma, duas, três, quatro, cinco. Aí olha, tem seis famílias e sete casa de turista. Tem mais casas de turismo do que de família que está morando mesmo. Uns anos para cá aumentou.

Além do problema imobiliário, o turismo provocou a elevação dos preços praticados pelos comerciantes na cidade, obrigando parte da população a fazer as suas compras nas cidades vizinhas. Godoy e Ehlert (1997, p.443) firmam já em 1997, o descontentamento dos empresários locais com relação a este fato, para estes últimos seria importante que a população mudasse a sua “mentalidade”, caso contrário, a cidade ficaria 75

mais “pobre” com a perda dos recursos que estariam migrando para o comércio de outras cidades:

Então, aqui no Porto Rico, foi até bom da gente viver esses anos atrás, que não tinha...que agora a cidade, é turista, não é? Não é, não tem mais...não tem que nem aquele tempo, que era o Porto Rico...Rico mesmo. Agora é remediado (risos). É...é mediado mesmo minha filha, porque você não tem condição de se... aqui esses dias estava vendendo dois reais o litro de óleo, eu não, eu não faço compra aqui não, faço compra em Loanda. Graças a Deus, eu faço compra lá, tenho o meu cartão de lá, eu compro as coisas lá, aqui eu não compro não, aqui eu não compro nem um comprimido. Comprimido que eu pego, é ali no posto para pressão, mais eu não compro nada aqui não. Porque aqui não compensa e aqui só tem uma farmácia, e eles aproveitam da gente. Não é? Então, isso que eu falo para você, eu faço compra em Loanda, faço minhas coisas tudo em Loanda. Não é desfazendo daqui não, porque se você...uma coisa que aqui se compra um, lá dá para você comprar um e meio ou talvez dois. Viu? Ah, não vejo, acho que o turismo na cidade, é assim...se eles põem muito caro, porque eles pensam que todo mundo tem dinheiro que nem eles, que eles tem dinheiro, não é? Que eles vêm de lá, eles têm dinheiro. (...) Ontem uma mulher foi comprar uma vassoura e um Omo do mais barato, foi dez reais, uma vassoura daquelas minha lá, dez reais, e um sabão, um meio quilo de Omo para nós lavarmos a casa, fiquei besta! Dez reais minha filha! Não, aqui não tem condição hoje não, aqui eles aproveita mesmo. Então, a maior parte do povo aqui, não faz compra no Porto Rico, um é em São José, outro aí no Monte Castelo, não é? Porque aqui não tem condição da gente comprar um quilo de carne. Eu mesmo não compro nada, eu compro tudo lá em Loanda.

Figura 14. Casas de turistas vazias na cidade de Porto Rico.

Interessante imaginar que tipo de “mentalidade” os comerciantes gostariam que a população tivesse, aquela cujo traço marcante seria o da subserviência ao domínio da elite local? A estratégia usada pela senhora Maria Cardoso é a forma que encontrou para 76

valorizar a pouca renda que possui, pois só o aluguel consome sessenta reais por mês de sua aposentadoria.

Aqui eu vejo movimento de turista, eu sou contra o turismo. Sou contra pelo seguinte: o turista como...porque aqui não tem turista, aqui é visitante, visitante eu também sou visitante, e quando eu...quando eu conheci Porto Rico, eu vim lá de Maringá. Então, é o que acontece é isso. Mas, o prefeito tem uma noção diferente, ele fala de turista porque...turista tem lá em Porto Seguro, lá tem...na ilha de Santa Catarina que tem praias grandes, não é? Tem muito verde, as matas ciliares, não é? Então, tem o que você ver. Agora, você vai, entra, atravessa mais...ali tem uma estradinha que nós atravessamos, vai lá para minha casa, aqui por dentro, eu duvido, tem época que eu duvido que você passa lá, se conseguir passar, de tanto inseto que tem, de tanto mosquito que tem. Então, qual é a atração? É quando se tinha o peixe.

Na entrevista do senhor Otávio é importante observar que, ao contrário das cidades turísticas mais conhecidas, não há nada para ver em Porto Rico, pois o que atrai o turista, ou melhor, o “visitante” para a cidade é somente o peixe. Na memória do ex-ilhéu, a região não possui “matas ciliares”, “praias”, mas apenas “mosquitos”; é a persistência em seu imaginário da região como o espaço habitado pelo homem, a região é a sua casa - e como a sua casa pode ser uma atração turística?

É impossível imaginar uma reflexão sobre o problema do turismo na região de Porto Rico, sem levar em consideração a história local, as tradições, a memória, e principalmente os pontos de vista da própria população com relação a si mesma, e com relação a todas as adversidades que enfrentam cotidianamente.

Como vimos, a sugestão de Agostinho e Zalewski de “se formar um consórcio de entidades” com o objetivo de pensar ações concretas para solucionar as contradições mais graves vividas pela população, e ao mesmo tempo de promover a proteção da área, por meio da pesquisa e manejo, pode ser até interessante, mas, faltou acrescentar a este “grupo de consorciados”, aquela a quem mais interessa qualquer atitude que venha a ser tomada: a comunidade de moradores de Porto Rico e região, pois, o conhecimento desta região não é domínio exclusivo de cientistas, membros de ONGs, ou mesmo de burocratas do 77

estado; e estes também não são os únicos capazes de encontrar o caminho mais adequado para alcançarmos uma sociedade, onde homem e natureza não sejam mais vistos como termos antagônicos.

Henri Bergson (1978, p.221) observou bem que: “a natureza, precisamente porque nos fez inteligentes, nos deixou livres para escolher até certo ponto nosso tipo de organização social”, e, esta escolha não pode ser tomada apenas por alguns poucos eleitos, ou, definida e pensada por critérios que excluam todas as formas de saber não-científicos.

Contudo, quase sempre as soluções para questões ambientais são refletidas sobre uma base de saber científico, em boa parte fundamentada por “fórmulas mágicas” tiradas das brilhantes cartolas dos teóricos da economia liberal moderna, que pretenciosamente acreditam dar uma nova vida às atividades econômicas, atribuindo a elas o adjetivo “ sustentável”, imaginando com isto, transformá-las em ações menos agressivas ao meio natural. Tomando a si mesmas como “politicamente corretas”, estas “novas fórmulas” procuram maquiar antigas formas de exploração, e, ao dar-lhes feições mais modernas, esperam garantir a manutenção de uma ordem social pretensamente harmônica e “natural”.

Como já notaram Castoriadis e Cohn-Bendit (1981, p.15-20), o sistema capitalista sobrevive porque “consegue a adesão das pessoas àquilo que é”, mesmo que esta adesão não seja sempre “pacífica”; ao criar continuamente novas necessidades, o sistema busca “ensinar” às pessoas “que a vida não vale a pena ser vivida” sem a satisfação destas necessidades.

(...) o homem habita um mundo no qual não há ciência e esta, por sua vez perdeu sua destinação humana, ‘a busca da justa vida e do bom viver’. O céu desceu à Terra, o homem foi devolvido a si mesmo sem saber que lugar ocupa no Universo. E ainda, a ciência objetivista se faz e se protege na ideologia da racionalidade tecnológica, onde todas as escolhas especulativas que afetam o conjunto dos viventes do universo e a natureza se fazem passar por ‘decisões técnicas’, abolindo o que o mundo moderno propunha como novidade: a liberdade do homem e sua autonomia de reflexão. A cultura contemporânea produz a homogeneidade nas maneiras de pensar e de ser. Sem falar no desencantamento psíquico, na ‘frieza burguesa’ e no mundo da indiferença – cuja ‘infra-estrutura’ é a queda de todos os valores da tradição em valor de troca. Quanto à economia, ela se impõe como única maneira de pensar e ser (MATOS, 2006, p.85-86). 78

A razão instrumental, objeto de crítica de Olgária Matos (2006, p.92), não se caracteriza somente no uso do “cálculo” e da “probabilidade” para submeter a natureza ao seu controle, ela pretende igualmente se constituir “no exercício de um poder do pensamento abstrato” para “dominar”, “violentar”, e “sacrificar” a natureza e todos os seres vivos. Neste sentido, a economia como esta forma “única de pensar e ser” manifesta-se claramente como um exemplo no interior da ciência moderna, desta prática própria da razão instrumental em transformar a natureza “ em um conjunto de objetos disponíveis e manipuláveis pela vontade de saber que é vontade de poder”.

A vida, e portanto a natureza, constituem um “território” dificilmente redutível a modelos de explicação calcados estritamente na linguagem matemática, a este respeito Bergson igualmente comentara:

Mas, na astronomia, na física e na química, a proposição tem um sentido bem determinado: significa que alguns aspectos do presente, importantes para a ciência, podem ser calculados em função do passado imediato. Nada de semelhante no território da vida. Aqui, o cálculo tem jurisdição no máximo sobre alguns fenômenos de destruição orgânica. Pelo contrário, no que diz respeito à criação orgânica, aos fenômenos evolutivos que constituem propriamente a vida, nem sequer vislumbramos o modo pelo qual poderíamos submetê-los a um tratamento matemático (BERGSON, 2005, p.21-22).

Assim, as implicações da estreita ligação conceitual entre natureza e vida vão ainda mais longe, e atingem-nos em nossas concepções pessoais acerca da ciência que escolhemos inicialmente estudar, e da qual retiramos os principais instrumentos teóricos para explicar e compreender a realidade. Para os historiadores do final século XX, após a revolução iniciada com o movimento dos Annales em 1929, ampliaram-se as possibilidades de pesquisa, por meio do diálogo entre a História e as outras ciências (BURKE, 1992, p.33).

Tal fato se refletiu na preocupação da História em abarcar como um dos seus objetos, as

“relações entre sociedade e natureza”, na intenção de fornecer por esse meio: “uma postura mais crítica frente aos debates sobre o ambiente”, o que faria surgir pela primeira vez nos 79

Estados Unidos em 1977, o termo que daria vazão a uma nova especialidade: a “história ambiental” (DUARTE, 2005, p. 32).

“O desconforto que a distinção sujeito/objeto sempre tinha provocado nas ciências sociais propagava-se assim às ciências naturais”, afirma Boaventura de Souza Santos

(1998, p. 51), evocando com este pensamento a descoberta do Princípio da Incerteza por

Werner Heisenberg na mecânica quântica, na qual não seria mais possível “fazer observações sem perturbar os fenômenos”, uma vez que “os efeitos quânticos que introduzimos com nossa observação instauram, automaticamente, um grau de incerteza nos fenômenos a serem observados” (HEISENBERG, 1996, p. 124). O próprio Heisenberg escreveria anos mais tarde, que a ciência não atinge a natureza em si mesma; sendo apenas um componente da relação entre o homem e a natureza, a ciência tem por objeto de pesquisa a “natureza subordinada à maneira humana de por o problema” (HEISENBERG: 1980, p.23-28).

Como a exemplo do físico de partícula que compreende a interação/interferência entre o cientista e o seu “objeto” (tema de estudo que resolveu recortar do real ) de estudo, o que o limnólogo realmente “vê” quando observa um ambiente aquático,

é mais do que sua imagem refletida na água, antes de tudo, é a si mesmo que percebe na construção racional e sistemática dos métodos e saberes que elaborou para explicar a dinâmica das variáveis limnológicas dos ecossistemas aquáticos.

Em vários sentidos a aproximação entre as ciências tem sido profícua para a pesquisa, contudo, ainda existem resistências quanto ao desenvolvimento de trabalhos científicos multidisciplinares; alguns destes obstáculos estão na própria estrutura acadêmica, organizada dentro do modelo pouco flexível de um currículo mínimo, dificultando ao aluno freqüentar disciplinas em cursos diferentes daquele que escolheu para a sua formação, ou ainda na estrutura de alguns cursos de pós-graduação quase herméticos, que evitam abrir espaço para “disciplinas” de outras áreas do conhecimento. Estes obstáculos podem estimular 80

a manutenção de um modelo de ciência reducionista, incapaz de explicar e responder às crises atuais das sociedades contemporâneas em relação às práticas aniquiladoras que mantêm com a natureza. Neste sentido Diegues (2000b, p.15) afirma:

Os modelos biológicos têm dificuldades em incluir o homem, assim como a teoria dos ecossistemas que, por exemplo, é incapaz de integrar o homem em suas pesquisas, apesar das aspirações de seus promotores, como Odum. Ela privilegia o estudo dos ecossistemas menos tocados pelo homem, ainda que sua totalidade já tenha sofrido a intervenção humana.Compreende-se assim que os ecólogos tenham preferido deixar o homem de fora dos ecossistemas, pois a sua inclusão introduz variáveis socioculturais de análise complexa.

Para o autor esta situação vem sendo modificada com o surgimento do que denominou “enfoques alternativos” promovidos pelos críticos da ecologia profunda, principalmente os ecólogos sociais e os eco-socialistas (DIEGUES, 2000b, p. 19). Entretanto, historiadores da ecologia como Jean-Paul Deléage (1993, p. 255) entendem como um desafio para a ecologia do futuro: o de tornar-se uma ciência capaz de elaborar esta “análise complexa”, da qual fala Diegues, reclamando a presença do homem em todos os seus quadros.

Esta presença é condição essencial, conforme Morin (1999, p. 69), para que a ecologia consiga escapar a sua “mutilação”.

Ainda sob o prisma do pensar a natureza como um pensamento que remete à vida, e na exigência de Deléage no tocante à ecologia, no âmbito das ciências isto implicaria de certo modo, em uma mudança na concepção que temos da tradicional divisão que interpõe de um lado as ciências humanas, e de outro as ciências naturais. Todas as ciências são humanas (afinal ainda desconhecemos a existência de uma ciência alienígena), pois figuram entre as criações mais prestigiadas da humanidade; mas a implicação de uma idéia de natureza que se confunde com a idéia de vida, coloca-nos diante de uma novidade epistemológica, já aventada por Morin (1999): todas as ciências seriam também, de uma maneira ou de outra, ciências da vida e ciências da natureza.

A ciência progride, não apenas por ajudar a explicar fatos recém- descobertos, mas também por nos ensinar, reiteradamente, o que pode significar a palavra ‘compreensão (HEISENBERG, 1996, p. 146). 81

Reiterando esta “compreensão” para uma abordagem das ciências em seu conjunto como ciências da vida e da natureza, acrescentamos um outro elemento na discussão: “Um ser vivo” - disse-nos Bergson (2005, p.16) - “distingue-se de tudo que nossa percepção ou nossa ciência isola ou fecha artificialmente. Seria, portanto, um erro compará-lo a um objeto”. A vida como território da indeterminação, do acaso, da irredutibilidade, da imprevisibilidade, é um conceito sobre o qual as certezas rapidamente se esvanecem. Parece- nos sempre mais fácil intuí-la, como sugere Bergson, do que tecer a seu respeito explicações exclusivamente racionais, julgadas sempre mais convincentes.

Neste território de difícil penetração, as ciências deverão imbuir-se do cuidado necessário, para evitar solapar os possíveis entendimentos que deverão travar entre si, e promover assim uma abertura constante de suas fronteiras, permitindo desta forma, o livre trânsito dos saberes e dos fazeres científicos, agora sem pátria alguma.

Ainda refletindo sobre o papel da ciência e das instituições de pesquisa, principalmente as universidades, não poderíamos deixar de fora desta discussão, o trabalho de pesquisa desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aqüicultura –

NUPELIA, da Universidade Estadual de Maringá, uma vez que os moradores de Porto Rico convivem direta ou indiretamente com os pesquisadores ligados ao Núcleo, ou com os alunos do Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aqüáticos Continentais. Este contato entre pesquisadores e comunidade surgia sempre nas conversas informais, e, em especial na entrevista do senhor Antonio Justino, o tema assumiu uma tonalidade diferente:

Até a própria UEM, a Base ela poderia dar uma força eu acho. É, eu acho que poderia começar a participar mais, fazer assim é... orientar, fazer umas reuniões de vez em quando, não é? Com esses pescadores daqui. É, porque o pescador, a gente sabe, não tem noção, não é? Quem sabe resolve alguma coisinha, não é?

Esta seria para o pescador, uma das atitudes a ser tomada para ajudá-los a solucionar o conjunto de problemas enfrentados na região, em especial àqueles relativos à 82

organização dos pescadores, considerados por ele, como vimos anteriormente, uma classe muito desunida.

De uma forma geral, percebemos em quase todos os entrevistados o respeito que dispensam à Universidade e aos pesquisadores que atuam em Porto Rico, respeito mostrado na forma gentil como nos receberam, quando nos apresentávamos como alunos da

Universidade Estadual de Maringá.

O senhor Francisco, enquanto nos explicava a situação de muitos peixes que eram capturados com marcas de ferimentos, atribuídos por ele à luta travada por eles sob as pedras, onde procuravam desesperadamente “escapar do frio”, pois: “você vê, nós temos nossos panos para nos cobrirmos, eles entram na pedra e se mandam”, nos diz logo na seqüência:

(...)Não sei se os doutores, os pesquisadores já viram isto...se eles descobrem...se eles sabem disto. Não sei se vocês que pesquisam, que entrevistam, se alguém já sabe o que é assim, se não sabe, é, é precisa aprender, porque olha, aonde nós pescávamos a pé, com a tarrafa aqui olha...dois, três peixes levantava dentro... hoje tem dois metros e meio, três metros de fundura, nunca mais descobriu.

O apelo do senhor Antônio é ao mesmo tempo: o reconhecimento deste saber que acreditam poder apoiá-los para melhorar as condições de vida dos moradores de

Porto Rico; e por outro lado, um importante chamado para os pesquisadores se envolverem mais ativamente com a comunidade de pescadores.

Portanto, é um momento propício para ampliar a aproximação entre universidade/comunidade, entre conhecimento tradicional/conhecimento científico, conhecimento tradicional este que compõe um “legado cultural” continuamente destruído pelas barragens, conforme Medeiros e Bellini (2001, p.184), e assim fortalecer entre ambos o laço sem o qual, a universidade não pode realizar uma de suas mais importantes funções sociais: a de socialização do conhecimento produzido em suas fronteiras, fronteiras que esperamos nunca se encontrarem fechadas. Este elo de ligação poderia ser aprofundado ainda, 83

com a criação no NUPELIA de um laboratório de Educação Ambiental, e um centro de documentação e memória da pesca no rio Paraná, memória por meio da qual a história de vida dos pescadores e seus familiares poderia ser preservada, e com ela o conhecimento desta população tradicional que se encontra à beira da extinção, pois como nos disse ainda o senhor

Francisco, estas barragens que alteraram o pulso de inundação do rio, “ essa mesma barragem desacatou os peixes”, e junto com eles desacatou também os homens que vivem às margens do rio Paraná.

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