A Ironia Romântica No Romance Histórico De José De Alencar Geisa

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A Ironia Romântica No Romance Histórico De José De Alencar Geisa A ironia romântica no romance histórico de José de Alencar Geisa Mueller (UFPR – Universidade Federal do Paraná) Resumo: Este artigo objetiva abordar o uso da ironia romântica no romance As Minas de Prata (1865-1866), de José de Alencar, com o propósito de apontar a questão da autorreferencialidade na ficção alencarina. A teoria poética elaborada pelo primeiro romantismo alemão, principalmente os fragmentos de Friedrich Schlegel (Athenäum, 1798), consiste no lugar teórico articulado ao uso da ironia romântica no romance analisado. Assim, nosso objetivo é demonstrar como o narrador utiliza a ironia para referendar a prática ficcional e, ao mesmo tempo, desvelar incongruências políticas e sociais do Brasil da segunda metade do século XIX. Palavras-chave: José de Alencar; ironia romântica; romance histórico. Abstract: The purpose of this article is to demonstrate how the romantic irony used in the José de Alencar’s novel As Minas de Prata (1865-1866); our focus is to indicate the question of self-referentiality in Alencar’s fiction. In this respect, we will analyze the José de Alencar’s novel through the poetic theory developed by the first generation of German Romantics; more specifically, this that was gathered in the Schlegel’s fragments (Athenaeum, 1798). The objective is to demonstrate how the narrator refers to his own work, and exposes the Brazil’s incongruities in the context of second half of the 19th Century. Keywords: José de Alencar; romantic irony; historical novel. Assim, se vós o resolverdes, vai finalmente correr mundo, de um modo condigno, a obra de um escritor de nota. Apesar dos grandes dotes do autor, que o escrito descobre, apesar de ser a obra tida em conta, como justificam as muitas cópias que dela se tiraram, mais de dois séculos correram sem que houvesse quem se decidisse a imprimi-la na íntegra. (F. A. de Varnhagen sobre o Tratado descritivo do Brasil) Introdução Como já sabido são diversas as orientações do romantismo enquanto corrente estética, de modo que o movimento romântico se estende aproximadamente desde o final do século XVIII até meados do século XIX, tendo como principais países de irradiação a Alemanha, a Inglaterra e a França. Contudo, é sempre bom relembrar que, por se constituir primeiramente como um movimento filosófico e poético, também abarcando o aspecto político da vida em sociedade, o romantismo instiga a tensão entre os valores éticos e artísticos e o universo burguês em ascensão. Destarte, ao contrário do que comumente é inculcado pelo esforço didático, o aspecto sentimental do movimento diz respeito à subjetividade exaltada através da teoria poética do primeiro romantismo alemão; tal teoria não considera o Eu uma força motriz em detrimento da coletividade, mas um agente capaz de insuflar vigor criativo nas relações sociais depauperadas pelo advento do capitalismo. Sob esse aspecto, ao reportamo-nos a uma perspectiva marxista relacionada ao cerne da visão romântica, a proposição é de que a exaltação da subjetividade não é destacada como sendo a principal característica do movimento romântico, mas como um dos aspectos que corrobora a resistência à reificação. Pois [...] quando esses indivíduos se transformam em individualidades subjetivas, explorando e desenvolvendo seu mundo interior, seus sentimentos particulares, entram em contradição com um universo baseado na estandartização e na reificação. E quando reivindicam o livre trâmite de sua faculdade de imaginação, esbarram na extrema platitude mercantil do mundo engendrado pelas relações capitalistas. Nesse aspecto, o romantismo representa a revolta da subjetividade e da afetividade reprimidas, canalizadas e deformadas (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 48). Nossa abordagem do romance As Minas de Prata, de José de Alencar, não perceberá a fatura alencarina segundo a tipologia de orientação marxista (cf. LÖWY; SAYRE, 2015), entretanto, é importante reter do excerto acima a ótica na qual a primazia do subjetivo está localizada menos na efusão sentimental do poeta/do intelectual que na crítica realizada a partir do embate da potência desse Eu (concebido pela filosofia fichteana) com o embotamento da sensibilidade, esgarçamento social ocorrido pelas prerrogativas da mais-valia. Embora a questão da existência de classes sociais no Brasil oitocentista não seja tratada neste trabalho, gostaríamos de explicitar nossa ciência sobre a tardia industrialização do Brasil e também enfatizar que justamente por ser a discussão a respeito da luta de classes no Brasil oitocentista chão pantanoso, significa, então, que não é improfícua. A revolta contra a mercantilização engendrada pelo capitalismo é pauta na pena de José de Alencar, já que ela atua como crítica contundente da modernidade, por exemplo, denunciando a especulação das ações relacionadas às concessões para a construção da rede ferroviária, conforme folhetim publicado em 8 de julho de 1855, no Correio Mercantil: Dantes os homens tinham as suas ações na alma e no coração; agora têm-nas no bolso ou na carteira. [...] Aquelas ações do tempo antigo eram avaliadas pela consciência, espécie de cadinho que já caiu em desuso; as de hoje são cotadas na praça e apreciadas conforme o juro e interesse que prometem (ALENCAR, 2004, p. 408-409, grifo no original). Uma das características da concepção artística romântica é considerar todos os escritos como uma obra total, fator que nos leva a apreender a visão de mundo de Alencar não somente através dos textos ficcionais e dos paratextos, como também pelos folhetins, visto que a versatilidade em conduzir uma gama de assuntos em um espaço restrito exigiu do folhetinista certo folguedo da palavra, que a nosso ver finca-se no uso da ironia. Outrossim, ao sublinharmos a envergadura romântica, no que toca o abscesso social ocasionado pelo lucro, buscamos uma frincha que mova nosso olhar para fora do lugar-comum indicado pela fortuna crítica em relação à escolha estética de José de Alencar, já que boa parte da recepção crítica do século XX repete a seguinte fórmula: a invenção e a fantasia demasiadas são o percalço da ficção alencarina. Dessa fórmula são derivadas variantes contendo a feição do mesmo argumento, por exemplo: “Excessiva concessão ao gosto da época pelo romanesco [...]” (AMORA, 1969, p. 254). Se for prestada a devida atenção, o despudor romanesco de José de Alencar – nesta análise o termo “romanesco” designa enredos cuja tônica é a aventura – ainda ecoa na crítica contemporânea. Isso posto, apenas indicaremos, ainda nesta introdução, o porquê As Minas de Prata pode ombrear com os principais romances históricos da literatura mundial. O enredo de As Minas de Prata se passa na primeira década do século XVII (1609) e conflagra a cobiça envolvendo a busca do roteiro das minas de prata de Robério Dias, o Muribeca. O núcleo dos contendores é formado por D. Francisco de Sousa, a serviço de Felipe III; pelo visitador da Companhia de Jesus, o padre Gusmão de Molina e, provindo das classes populares, fazendo valer o adágio que professa serem os últimos os primeiros, o herdeiro de Robério Dias – da linha genética de Diogo Álvares Caramuru –, o herói Estácio Correia. No intuito de apontar as diferenças entre a fabulação de As Minas de Prata e a de Waverley, de Walter Scott, Vasconcelos (2008) compara ambas as narrativas e demonstra que o romance de Scott realiza a figuração das forças históricas atuantes no evento da união da Escócia à Inglaterra, diferentemente do romance de Alencar, que não poderia figurar forças antagônicas porque o modelo scottiano não condiz com o chão histórico brasileiro. Portanto, Estácio não corresponde aos heróis medianos de Scott, já que estes têm a função de atuar como o meio-termo entre as duas frentes adversárias. Além disso, os heróis médios são “[...] apenas corretos e nunca heroicos [...]” (LUKÁCS, 2011, p. 49), assim, a diferença entre Waverley e Estácio ocorre fundamentalmente por causa da forma com que na fabulação são articulados “[...] elementos realistas e convenções romanescas [...]” (VASCONCELOS, 2008, p. 27). Nesse sentido, a fatura de Alencar lança mão do atributo imaginativo fazendo com que os dados históricos sejam secundários na elaboração da trama, já no enredo de Scott a crônica histórica é enleada ao substrato ficcional equilibradamente. Daí o veio realista transparecer, em As Minas de Prata, através das personagens secundárias que, periféricas no enredo e [...] alheias aos interesses políticos e econômicos que unem e opõem senhores de engenho, governantes e jesuítas, parecem desempenhar papel de meras coadjuvantes, mas narram, na verdade, uma história a contrapelo, na contramão do registro romanesco que preside o enredo principal (VASCONCELOS, 2008, p. 30). A história narrada a contrapelo traz à tona a violência como elemento estrutural de nossa sociedade e, segundo Vasconcelos (2008), isso acontece à revelia do autor. A conclusão é que tal figuração da violência, como modo de indicar o descompasso entre ideal e realidade social, possivelmente tenha se dado sem a consciência do escritor de Senhora. Logo, deduzimos que o projeto romântico de idealização do passado acorrente as possibilidades interpretativas do romanesco criado por José de Alencar, tendo em vista que o desenvolvimento da argumentação, para formular uma provável explicação para a possível inconsciência de Alencar, suscita a leitura que Schwarz (2000) realiza da obra de Machado de Assis. Pois, em Machado, a veia realista faz com que as personagens secundárias passem a ser o centro dos eventos ficcionais, recurso que possibilita a figuração das incongruências políticas e econômicas da sociedade brasileira oitocentista. Entretanto, se não houvesse consciência de José de Alencar a respeito da possibilidade de o romanesco revelar tais incongruências, o autor não teria construído a personagem Agrela – também uma personagem secundária atuando na periferia dos eventos ficcionais de O sertanejo (romance que também figura o período colonial) – de forma a rebaixar seu patrão, o Capitão-mor Gonçalo Pires Campelo, assim expondo a estupidez e a truculência do “mandão de Quixeramobim” (ALENCAR, 1967b, p. 242), ou seja, escancarando a violência como expediente da política colonial.
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