Impacto Da Construção Ferroviária Sobre a Cidade De Lisboa
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Impacto da construção ferroviária sobre a cidade de Lisboa Magda Pinheiro- CEHCP-ISCTE Em 1856, quando o primeiro troço de caminho de ferro é inaugurado em Portugal, do plano de construção de estradas de 1842/1843 apenas algumas centenas de quilómetros estavam concluídas. No entanto Lisboa estava situada na foz do maior rio navegável do País e, como mais importante porto nacional, estava ligada por barco a vapor à sua segunda maior cidade, o Porto. Ao Norte Viana do Castelo, no centro Figueira Foz, ao Sul Setúbal e os vários portos do Algarve punham a capital em contacto com o litoral e com as zonas servidas por transportes fluviais. Estas circunstâncias geográficas explicam em parte que os primeiros projectos de construção ferroviária tivessem por objectivo uma ligação com a fronteira de Espanha. Ao analisar a rede ferroviária portuguesa é-se inevitavelmente levado a concluir que a sua construção contribuiu, a partir dos anos sessenta do século XIX, para aumentar o fosso entre a velocidade de crescimento demográfico do País e a da sua capital1. A rede ferroviária, construída após 1853, tem o seu ponto de partida em Lisboa e em menor medida no Porto, desenvolvendo-se por ramificação. Esta forma arborescente facilita as trocas entre Lisboa e os diversos pontos do interior ao mesmo tempo que mantém as dificuldades de comunicação entre as diversas zonas situadas longe da plataforma costeira. Em termos de crescimento económico poder-se-à ainda considerar relevante o facto de, em 1897, o preço da condução das mercadorias e passageiros desde as sedes de concelho até às estações ferroviárias ser ainda muito elevado, exprimindo a baixa densidade de caminhos de ferro e a permanência de um défice na construção de estradas2 . Os constrangimentos que produziram esta rede ferroviária têm de origens variadas e em grande parte preexistentes à sua construção. Num contexto de penúria financeira as escolhas foram feitas no sentido de concentrar um máximo de procura de transporte em cada linha e não de fornecer o melhor serviço a cada zona ou localidade. O resultado não foi revolucionário pois apenas acentuou características existentes de longa data que faziam de Lisboa uma cidade mais facilmente ligada ao exterior do que ao interior do País. Os interesses das companhias ferroviárias, que procuravam defender o seu tráfico ou o escoamento de produtos de companhias com administradores comuns, tiveram o seu papel mas também será relevante lembrar que a rede ferroviária se instala num contexto de concorrência portuária em que a estratégia de transformar Lisboa num porto com importância ibérica e internacional também contou. A transformação de Lisboa num grande porto internacional, recuperando posições de redistribuição de géneros coloniais perdidas, permanecerá um grande desígnio para Portugal ao longo de todo o século XIX. Se invertermos a perspectiva e quisermos analisar o contributo dos caminhos de ferro para a expansão urbanística na actual área metropolitana, então é forçoso considerar Lisboa uma capital ainda hoje muito mal servida em linhas férreas. A própria ligação de Lisboa à rede de caminhos de ferro nacional é defeituosa não existindo uma ligação directa à rede de Sul e Sueste mesmo depois da inauguração, em 1999, do caminho de ferro sobre a ponte Vinte Cinco de Abril. A história desta relação não se avalia no entanto só em termos dos resultados ( manifestem–se eles pela positiva ou por uma negativa expressa em termos de inexistência) e teve um pulsar que procuraremos explicitar nesta comunicação. Esse pulsar associa as elites de políticos e engenheiros que delinearam as vias férreas e dirigiram a sua construção, encontrando os recursos para a levar a cabo, aos milhares de trabalhadores que as construíram. As primeiras escolhas 1853-1866 Lisboa, sendo uma cidade situada na embocadura de um rio navegável tem na amplitude desse rio um limite geográfico muito marcado. Em 1846 o engenheiro Dupré afastou a ideia de fazer seguir o caminho de ferro pela margem esquerda do rio considerando a localização no Cais dos Soldados como a mais desejável. Salientou que “ As cidades capitais “eram” essenciais no rendimento dos caminhos de ferro e haveria uma grande quebra nos rendimentos do caminho de ferro Luso- Espanhol se, porventura, a capital ficasse separada do seu ponto de partida, não só por uma distância de mais de três léguas, mas pelo inconveniente da defesa de um trajecto que era algumas vezes difícil, muitas vezes moroso, e outras impossível”3. Em 1852, com a partida pela margem direita assegurada, o engenheiro inglês Rumball, considerou a localização da estação na zona ribeirinha como pondo problemas de expropriações de terrenos industriais, sendo passível de inundações e cortando a zona oriental da cidade do rio. Propôs que a gare se situasse no nordeste da cidade, no largo do Intendente, e daí se dirigisse a Sacavém. Esta opção não contemplava as necessidades de um embarque de mercadorias provenientes do caminho de ferro e foi abandonada, primeiro em proveito do cais das Carvoarias ( 1853), depois do cais dos Soldados (1855). O Estado aceitou a existência de despesas extraordinárias com expropriações e com aterros. A opção de instalar o terminus do caminho de ferro na zona ribeirinha oriental de Lisboa veio reforçar a expansão da cidade nesse eixo4. Houve, é certo, um corte em relação ao rio mas o cais do caminho de ferro era, em 1865, um dos poucos acostáveis da cidade5. Esta opção também duplicava o trajecto até então feito rio a baixo e rio acima por barcos a vapor e faluas que no entanto sobreviveram longamente no transporte de mercadorias6. O troço comum às linhas de Norte e de Leste estendeu-se até ao Entroncamento e veio a servir também o ramal de Cáceres (1882) e as linhas da Beira Alta (1882 )e Beira Baixa (1897). Viadutos, aterros e trincheiras à saída de Lisboa foram difíceis de construir, e as crises demográficas originadas pelo cólera ( 1855) e pela febre amarela (1857) abateram-se sobre os trabalhadores tornando necessária a instalação de um hospital de campanha. No entanto as dificuldades iniciais não nos podem fazer esquecer a lógica da implantação escolhida face aos objectivos finais da construção da linha e até às localizações da indústria na cidade7. Ainda antes da crise de 1856 foi aprovada a construção de uma linha de caminhos de ferro em direcção ao Alentejo e ao Algarve. Neste caso a gare terminal foi a, 26 de Agosto de 1854, provisoriamente estabelecida no Barreiro, na margem esquerda do Tejo, onde ainda hoje permanece8. Em 1861 o primeiro troço abriu à circulação ligando o Barreiro às alturas de Bombel e em 23 de Janeiro de 1861 o caminho de ferro chegava a Vendas Novas e a Setúbal para só atingir o Algarve em finais dos anos oitenta. Os trabalhos de construção de uma linha de caminho de ferro de lazer ligando Lisboa a Sintra, falada desde 1851, foram solenemente inaugurados em 1855 junto à Torre de Belém9. O caminho de ferro deveria partir de um cais que se estendia até junto ao do Arsenal de Marinha, que a empresa se propunha também construir, e dirigir-se a Sintra por Barcarena. A construção desta linha, em direcção a Sintra, foi vítima da luta entre o Crédit Mobilier dos irmãos Pereire e o banqueiro Prost sendo abandonada para só ser construída, com outro trajecto, 32 anos mais tarde10. Assim em 1866 Lisboa tinha apenas uma estação ferroviária onde desembocava o tráfico vindo das linhas do Porto e de Leste. Esta última ligava a cidade a Madrid por Elvas e Alcazar de San Juan. A estação ferroviária de Santa Apolónia, cuja primeira pedra foi lançada em 1862, e cuja inauguração se fez no 1º de Maio de 1865, foi desenhada por engenheiros portugueses e espanhóis e não se tornou num edifício arquitectonicamente marcante na cidade. Era servida por uma ponte cais e estava parcialmente construída num aterro. Em frente à estação formou-se um largo. O tráfico proveniente das linhas de Sul e Sueste era trazido no vapor até ao cais da Alfândega, junto ao Terreiro do Paço, onde não existia uma estação definitiva para o receber. A crise financeira que se abateu na Primavera de 1866 sobre as companhias ferroviárias teve reflexos noutras obras públicas provocando o desemprego de muitos milhares de trabalhadores. Em Março e Abril de 1868 atingiu o seu auge quando um grande bando precatório percorreu as ruas da cidade pedindo pão e trabalho 11. Junto à estação de Santa Apolónia foi estabelecida em meados dos anos sessenta uma oficina de reparações e construção de vagons. Esta ardeu, em 1895, após um conflito laboral em torno de um novo regulamento de trabalho12. A oficina da Companhia Real tinha então 600 trabalhadores e, na pobreza do panorama industrial do país, era uma unidade de grandes dimensões. Contribuía também para a feição marcadamente industrial da zona oriental da cidade13. Jorge Custódio considera que o caminho de ferro constituiu um elemento fundamental no crescimento da zona industrial que se estende até Sacavém e Santa Iria, as empresas podendo beneficiar da instalação de ramais particulares. Na margem esquerda do Tejo, a oficina dos caminhos de ferro de Sul e Sueste foi sendo sucessivamente ampliada pelos engenheiros portugueses e constituiu um importante foco de mão de obra especializada na metalurgia no Barreiro mas foi sempre muito mais pequena do que de Santa Apolónia14. A presença do caminho de ferro no Barreiro tem sido associada ao crescimento da grande viticultura nos campos que se estendem até Pinhal Novo. A margem Sul era ainda, se excluirmos os núcleos antigos das sedes de concelho e alguns lugares que se começavam a industrializar, largamente agrícola. Até ao fim dos anos setenta esta situação não conheceu nenhuma alteração e o contributo dos caminhos de ferro para a transformação urbanística da cidade de Lisboa não se traduzira em grandes novidades.