Universidade Federal do

A ATUALIDADE CLÁSSICA NAS TRILOGIAS TRÁGICAS DE E AUTRAN DOURADO

Roberto de Andrade Lota

Faculdade de Letras da UFRJ Rio de Janeiro, 2015

A ATUALIDADE CLÁSSICA NAS TRILOGIAS TRÁGICAS DE ADONIAS FILHO E AUTRAN DOURADO

Roberto de Andrade Lota

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.

Orientador: Ronaldes de Melo e Souza

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

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A ATUALIDADE CLÁSSICA NAS TRILOGIAS TRÁGICAS DE ADONIAS FILHO E AUTRAN DOURADO

Roberto de Andrade Lota

Orientador: Ronaldes de Melo e Souza

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.

Aprovada por:

______Presidente, Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza Faculdade de Letras –UFRJ

______Professor Doutor André Luiz Lima/ Instituto de Letras – UFF

______Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani / Faculdade de Letras – UFRJ

______Professor Doutor Marcos Estevão Gomes Pasche / Instituto de Letras – UFRRJ

______Professor Doutor Ronaldo Lima Lins / Faculdade de Letras – UFRJ

Suplentes:

______Antônio José Jardim e Castro / Faculdade de Letras – UFRJ

______Godofredo de Oliveira Neto / Faculdade de Letras – UFRJ

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

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Lota, Roberto de Andrade Lota A atualidade clássica nas trilogias trágicas de Adonias Filho e Autran Dourado/ Roberto de Andrade Lota. – Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2015. x, 248f.; 31cm Orientador: Ronaldes de Melo e Souza Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2014. Referências bibliográficas: f. 235-246. 1. Prosa Brasileira. 2. Narrativa. 3. Adonias Filho, 1915-1990. 4. Autran Dourado, 1926-2012. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em letras Vernáculas. III. Título.

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Os esforços que empregamos em nossa vida só possuem verdadeiro sentido quando o dividimos. Seja com uma causa, seja com uma crença, seja com uma ideia, é fundamental que repartamos o fruto do trabalho sob pena de ele se tornar estéril. Por isso, essa tese, nascida da abnegação de várias horas em prol de sua conclusão, é toda dedicada à Luana, minha esposa, sem a qual a vida perderia todo o sentido.

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Agradecimentos

Os agradecimentos escritos nem sempre traduzem plenamente nossa real intenção, porque ficam marcados de frieza que a frase acalora e que o toque suaviza. Contudo, vão as palavras abaixo como forma de eternizar aqui – e aonde quer que elas possam ir – meus mais verdadeiros sentimentos.

Agradeço a Deus e a Jesus, os quais colocaram em meu caminho e em minha vida todas as pessoas que muito contribuíram para que eu chegasse até aqui.

Agradeço à Luana, que esteve comigo nas maiores tormentas da vida (dessa e de outras, sem dúvidas), mas ergueu célere e firme braço norteando nosso navegar. Ao final, olhando o sol que nascia entre as nuvens escuras, que já perdiam as forças, ela trouxe para nosso mundo nossa filha Ísis.

Agradeço à força, ao exemplo e ao carinho do meu pai.

Agradeço à companhia, o afeto e o amor da minha mãe.

Agradeço à jovialidade esperançosa da minha irmã, que vive o presente sem se esquecer do futuro.

Agradeço ao meu caríssimo amigo Marcos, que palmilhou comigo muitos importantes momentos da vida.

Agradeço aos meus professores Ronaldes e Ronaldo que me ensinaram a amar a Literatura e modificaram toda a minha concepção de mundo.

Agradeço ao CELD, que sempre mostra um ponto muito valioso de seguranças nas paragens desta vida.

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Resumo

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.

LOTA, Roberto de Andrade. Atualidade clássica nas trilogias trágicas de Adonias Filho e Autran Dourado. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

A tese a Atualidade clássica nas trilogias trágicas de Adonias Filho e Autran Dourado estuda de que maneira Os Servos da morte, Memórias de Lázaro e Corpo vivo, do primeiro autor, e Lucas Procópio, um Cavalheiro de Antigamente e Ópera dos Mortos, do segundo, ratificam a construção de uma prosa de fortes valores trágicos na literatura brasileira. Para isso, observamos de que modo eles se valeram da crítica literária para não caírem diante do gigantesco legado grego, ao mesmo tempo que criam obras de arte verdadeiramente originais. Em nossa metodologia visitamos os românticos da Escola de Jena com o objetivo de descobrir ali as raízes do trágico que se converte de forma em sentido. Assim, somos capazes de compreender como os autores brasileiros que estudamos conseguiram representar pelo gênero narrativo uma potência do gênero dramático. Nossa metodologia também estudou os elementos da narrativa que serviam para a concretização de uma característica eidética. Após isso, nos valemos de um capítulo exegético para cada autor, a fim de nos dedicarmos mais detidamente às idiossincrasias de suas obras.

Palavras Chave: Tragédia grega. Literatura Brasileira. Adonias Filho. Autran Dourado.

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ABSTRACT

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.

LOTA, Roberto de Andrade. Título em inglês. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

The thesis classical Date in the tragic trilogies Adonias Filho and Autran Dourado studying how the books Servos da Morte, Memórias de Lázaro e Corpo Vivo, from the first author, and Lucas Procópio, Um cavalheiro de Antigamente e Ópera dos Mortos ratify the construction of a prose with strong tragic values in . To achieve this, we observed how they made use of literary criticism not to fall under the gigantic Greek legacy ,while they created genuinely original artwork. In our methodology, we visited the romantic from Jena School in order to discover in there the roots of the tragic which converts from shape to meaning. Thereby we are able to understand how the Brazilian authors we studied could be able to represent through the narrative genre a power of dramatic genre. Our methodology also studied the narrative elements which served for the realization of an eidetic characteristic. After that, we make use of an exegetical chapter for each author in order to devote more closely in to the idiosyncrasies of his literary works.

Keywords: Greek Tragedy. Brazilian Literature. Adonias Filho. Autran Dourado.

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A arte, sob suas formas diversas (...) é a expressão da beleza eterna, uma manifestação da poderosa harmonia que rege o Universo; é o raio de luz que vem do alto e que dissipa as brumas, as obscuridades da matéria e nos faz entrever os planos da vida superior. A arte é, por si mesma, plena de ensinamentos, de revelações, de luz. (Léon Denis)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

CAPÍTULO I – A CRÍTICA LITERÁRIA...... 11 1) O método crítico da Escola de Jena...... 20

2) Os estágios da crítica no Brasil...... 28 2.1) e Antonio Candido: missão e valor...... 31 2.1.1) Machado de Assis...... 31 2.1.2) Antonio Candido...... 34

3) As críticas de Autran Dourado e Adonias Filho...... 37 3.1) Autran Dourado...... 37 3.2) Adonias Filho...... 42

CAPÍTULO II – ESTILIZAÇÃO E MATERIAL LITERÁRIO ...... 49 1) Recursos dialógicos...... 51 2) O personagem...... 55

3) Questões sobre o narrador...... 64 3.1) O narrador na trilogia adoniana...... 65 3.1.1) Corpo Vivo...... 65 3.1.2) Os Servos da Morte...... 70 3.1.3) Memórias de Lázaro...... 72

4) Forma, material e conteúdo ...... 75

5) Regionalismo ...... 79

CAPÍTULO III – A TRADIÇÃO E A REVOLUÇÃO DA TRAGÉDIA ÁTICA ..84

1) A Revolução Nietzschiana...... 90

2) A filosofia do trágico...... 92

3) O conteúdo trágico ...... 115

CAPÍTULO IV – A TRILOGIA DE ADONIAS FILHO E A ATUALIDADE TRÁGICA...... 119

1) A Forma e o sentido trágicos...... 122

2) A trilogia adoniana...... 125 2.1) Os Servos da Morte...... 125 2.2) Memórias de Lázaro...... 139

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2.3) Corpo Vivo...147

3) A atualidade trágica em Adonias Filho...... 158

CAPÍTULO V – A TRILOGIA DE AUTRAN DOURADO E A ATUALIDADE TRÁGICA...... 171

1) A trilogia autraniana...... 177 1.1) Lucas Procópio...... 177 1.2) Um Cavalheiro de Antigamente...... 188 1.3) Ópera dos Mortos...... 201

2) A ideia do personagem como metáfora...... 205

3) Os símbolos...... 208 3.1) As voçorocas...... 209 3.2) Os relógios...... 212 3.3) O sobrado...... 215

4) A atualidade trágica em Autran Dourado...... 220 4.1) A trilogia de Sófocles...... 223 4.2) Antígona...... 227 4.3) O Culto aos mortos...... 228

5) CONCLUSÃO...... 234

6) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 236

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Introdução

O título deste trabalho, A atualidade clássica nas trilogias trágicas de Adonias Filho e Autran Dourado, aborda uma inquietude em torno da capacidade criativa existente na produção desses dois autores brasileiros, valendo-se do consórcio entre formas de arte que se erigiram no passado – remontando os gregos – e a inventividade ficcional no romance moderno – cuja demarcação cronológica se situará a partir do século XVI, com Miguel de Cervantes. Se o passadismo, entendido como retorno fácil às formas helênicas, seria matéria imediata de escritores menos hábeis, iremos demonstrar como, em Adonias Filho e Autran Dourado, essas formas do pretérito constituirão fértil recurso de valoração da própria atualidade da obra literária, reflexo da individualidade do estilo que tais ficcionistas conseguiram invencionar . Se forma e mensagem constituem o cerne de um discurso literário, é a sofisticação do amálgama desses elementos – tanto quanto a qualidade individual de cada um – que torna o arcabouço literário portentoso. Assim, é a Literatura, em seus expoentes superiores, a tentativa constante de criação por indivíduos os quais não se sujeitem às fórmulas pré-concebidas, mas que antes compreendam que a arte literária é um processo de sequência, ou, usando as palavras do protagonista João da Fonseca Nogueira, de A serviço Del-rei, de Autran Dourado:

O escritor não era ele sozinho, mas todos os escritores que escreveram bem antes deles. (...) Ninguém é um escritor sozinho, somos uma continuidade, trabalhamos na e pela linguagem. Literatura é linguagem carregada de sentido (2000, p.35).

A arte, para isso, apresenta-se libertária, inventiva, individual, e, com o escopo de atingir essa essência, propicia um mergulho nas condições anímicas do sujeito, condição sem a qual não se realizaria a contento. Pois bem, sendo isso uma realidade, podemos entender o que seja uma obra de valor quando se atingem tais pontos, a qual não deve – por sua vez – se restringir ao momento de sua promulgação, mas ecoar em várias fases da existência da humanidade. Quer dizer, a grande obra ataca o centro nevrálgico das condições humanas e, uma vez que os dramas do homem perpassam por todas as épocas de sua existência – e são os mesmos desde o princípio da humanidade (muda-se a forma, mas o conteúdo é sempre ressignificado) –, a obra de arte verdadeira tem a capacidade de atualização à realidade circundante. É claro que ela pode se valer

12 de fórmulas que atendam ao gosto da época (como a tragédia para os gregos e o romance para os românticos), mas sua essência toca, por interpretações e reinterpretações, cada momento em que é experienciada. Aqui reside o primeiro aspecto de nossa análise: quando falamos de modernidade, quando falamos de atualidade? A significação de moderno e de atual parece, ao longo do tempo, atingir uma sinonímia perfeita. Já prescreve a semântica, contudo, que tal possibilidade de exata igualdade é inexistente, visto que as palavras assumem distintas aplicações práticas que vão além dos seus valores meramente significativos. Assim, para que prossigamos nos estudos dos pressupostos a que nos detemos agora, é fundamental que tentemos empreender alguma diferença proficiente entre esses conceitos, para depois aplicá-los de maneira mais adequada. A atualidade, então, será entendida por nós como aquilo que existe no tempo presente. O sentido é óbvio, mas guarda um detalhe importante: é aquilo que se constata como elemento do hoje, sem que sua existência se desenvolva em questões comparativas anárquicas, revolucionárias ou ideológicas. Em outras palavras, a atualidade é o hoje que se percebe, e que não se realiza por questões combativas, embora se compreenda, também, a partir de um critério cronológico, de uma progressão temporal. O ontem vem antes do hoje, tal qual o hoje antecede o amanhã. É uma questão além da factual já que suscita maiores divagações: sujeito alheio ao tempo em que está para que se relativize a contagem dos minutos e das horas, tornando o passado como o presente do ontem e o futuro como o presente do amanhã. A modernidade, a seu turno, encerra questões interpretativa mais diversas. No nível semântico, entender-se-á a modernidade como um novo em contraposição a um antigo. Lembremos, aqui, Baudelaire, em Sobre a Modernidade, que afirma que ―houve uma modernidade para cada pintor antigo (1996, p.26)‖. Ao dizer isso, ele pressupõe que há a criação de um modelo novo – nem melhor nem pior (necessariamente) – mas que é a marca de um distinto estado de coisas. Há, é claro, a cronologia, mas não se deve interpretá-la como uma sequência ascendente (e, portanto, nem descendente) do tempo, porque o critério agora está na implantação de um novo status quo. Façamos uma pequena digressão no objetivo primeiro de nosso estudo para que possamos alicerçar bem tais conceitos de modernidade. Conquanto diversos autores tenham se embrenhado nos estudos da modernidade, um dos primeiro investigadores desse atual estado de coisas foi Charles

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Baudelaire que, na obra citada acima, analisa as considerações do desenhista, aquarelista e gravador Constantin Guys. A noção base de Baudelaire que contribui significativamente para grande parte da crítica moderna é a ideia de que a distinção do passado em relação ao presente não é em nível qualitativo, mas sim na afirmação do presente: ―o passado é interessante não somente pela beleza, mas pelo valor histórico. O mesmo vale para o presente e não somente pela beleza que o pode revestir, mas sua qualidade essencial de presente‖ (1996, p.9). Baudelaire também faz uma importante associação entre vida e arte, porquanto afirma que para que a ―Modernidade seja digna de se tornar Antiguidade, é necessário que ela extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere‖(1996, p. 27). A modernidade se fundamenta, então, pelo fugidio e pelo transitório. Sendo, pois, essa afirmação do presente, que se marca pelo efêmero, o estudo do clássico seria um ato de falsidade, como vaticina: ―Ai daquele que estuda no antigo outra coisa que não a arte pura, a lógica e o método geral‖ (1996, p. 28) e conclui ―quase toda a nossa originalidade vem da inscrição que o tempo imprime às nossas sensações‖ (1996, p. 28). Em nosso objeto de estudo, a perspectiva do fugidio não ocorre, porque, para os autores que estudamos, o passado será epistemologicamente uma forma de se observar o presente, e isso, por si só, já se afasta dos conceitos que atribuímos à modernidade de Baudelaire. Contudo, um traço de relevante expressividade será a sua teoria sobre o estudo das formas clássicas. Ao longo de nosso trabalho, iremos demonstrar que o comportamento de Autran Dourado e o de Adonias Filho refletem um estudo da forma poetológica helênica, sem cair na reprodução neoclássica ou parnasiana, formas (e o dizemos com cautela) reinterpretadas da cultura grega. Acresce que o objetivo dos autores brasileiros no estudo do método é a criação do estilo próprio, na formulação de uma obra de arte que não se perca nos labirintos de uma modernidade de modernismos. Na verdade, é latente o processo de construção de uma Literatura independente desse passado (ainda que lhe seja tributária), de modo que Autran e Adonias acompanham, na lição de Baudelaire, o estudo do passado para construírem de forma espitemológica e ontológica as relações entre o ser, o mundo e a arte. O que há nesses autores brasileiros é o resgate do conhecimento do passado o que será de crucial importância para a constituição do que iremos chamar, mais à frente, de sentido trágico. Aqui residirá a inovação desses autores. A prosa tanto de Autran Dourado como a de Adonias Filho são sempre um processo duplo de retorno e ressignificação às e das antigas medidas e temas clássicos, sem que sintamos nisso um déjàvu. O que na verdade percebemos é o

14 processo de transformação que Baudelaire pontua, em que o passado, conservando o seu gosto antigo, irá recuperar a luz e o movimento da vida, transmudando-se em presente. A modernidade será atualidade. Segundo Marshall Berman, em Tudo o que é sólido desmancha no ar, a cultura moderna tem a capacidade de reunir as mais distintas formas de agentes e crenças, de modo a não ser um ―culto aos mortos‖ (2007, p.12), isso porque a modernidade está ―aberta‖ (2007, p.16), permitindo a discussão e a construção dos seres que lhe estão ao redor. A modernidade é o momento quando o homem confirma sua ―dignidade no presente‖ (2007, p.19). E não faz isso o Édipo, ao proferir a sentença para os assassinos de Laio e assim preservar a cidade? Suas ações reverberaram a atitude do ser que põe diante de si o homem que acha saber de tudo e que tenta ―controlar o próprio futuro‖ (2007, p.19). A lição de Sófocles, por sua vez, é que ele precisou se curvar à sabedoria de Tirésias e, portanto, do Oráculo. Sabendo de tudo, Édipo era aquele que nada sabia. Quer dizer, Édipo é altamente moderno, pois os níveis paradoxais da modernidade, que despejam no homem ―um turbilhão de mudanças‖ (2007, p.4), exalam de suas ações representam bem a idiossincrasia de seu caráter. Berman afirma que ser moderno é viver numa atmosfera de ―agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreias morais e dos compromissos pessoais, autoexpansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – é a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna‖ (2007, p.28). As relações de sentido que convergem frontalmente para um centro criado de forças opostas é o paradoxo da modernidade. Sobre isso, Arnold Hauser afirma no seu História Social da Literatura e da Arte:

a característica mais impressionante da literatura inglesa do período [datado como moderno], em contraste com a francesa, é a propensão para o paradoxo, para o modo de expressão surpreendente, bizarro e deliberadamente chocante, para a argúcia intelectual, a complacência galante e a total ausência de preocupação com a verdade que hoje em dia parece ser de tão mau gosto. É óbvio que essa predileção pelo paradoxo nada mais é do que o espírito de contradição e tem sua verdadeira origem no desejo de ―épater le bourgeois‖ ( Grifos nossos. 2003, p.931).

Hauser, como sabemos, possui uma análise fundamentalmente marxista da realidade moderna. Tanto o é que se vale da imagem do dândi de Baudelaire para distingui-lo do boêmio. Duas imagens em si contraditórias, embora possam aparentar

15 certas aproximações. Contudo suas diferenças são visíveis, o dândi é ainda um burguês, é o homem que anda pelo culto e cultiva o belo e combate a trivialidade, mantendo um ar estoico diante das circunstâncias da vida. Já o boêmio é o proletário, o homem mal vestido enchafurdado na bebida e na pobreza. Maltrapilho, não preserva um ar, digamos, genuíno dentro dos limites sociais. Nossa proposta, é claro, não é aqui nos debruçarmos sobre as causas sociais, políticas ou econômicas formadoras desse novo espírito das coisas, mas, reconhecendo o oxímoro de multiplicidades existentes dentro do fenômeno da modernidade, partirmos do pressuposto de que ela seja observada como um momento assentado para, então, raciocinar sobre sua contribuição no pensamento dos escritores que nos são objetos de estudo. Assim, se fazemos essa digressão na análise de Hauser é para que não creiamos que a modernidade de Adonias Filho e Autran Dourado perpasse por um paradoxo das questões sociais. O paradoxo nesses dois autores – como o afirmamos antes – é de razão fundamentalmente ontológica. Filho do conflito interno, da bipartição de realidade, e da própria vida que se digladia com a morte (sendo que, se uma vence, a outra imediatamente se anula, pois só existe algo pela existência de nêmesis), o paradoxo nos autores brasileiros se perpetua em todos os tempos, o que confere a suas obras o aspecto da modernidade e da atualidade. O conceito do paradoxismo, que melhor seria chamar de síntese (se pensarmos na dialética), parece se mostrar quando ouvimos as noções do dionisíaco e do apolíneo de Nietzsche e as do orgânico e aórgico de Hölderlin, que tanto contribuíram para nosso entendimento do procedimento de construção das tragédias gregas. A tragédia que, aliás, pela sua grande capacidade de apreensão dos sentimentos de compaixão e terror (opostos, mas necessariamente, reunidos), associa-se às questões da modernidade. Rogel Samuel (2007, 160) afirma que ―a arte trágica da Modernidade se escreve na violência (por onde, aliás, sempre passou) e afirma que ―a violência é a reação provocada pela não realização de um desejo latente ou manifesto, desejo este considerado como condicionante e às vezes expansivo‖ (2007, 160). Continuando sua análise, o crítico, lembrando Walter Benjamin, assevera que ―o verdadeiro herói do mundo moderno é a figura do operário que, na vida diária, enquanto tem vitalidade, vive um esforço heroico. A figura dos heróis clássicos estava associada à imortalidade. O herói moderno se relaciona com a transitoriedade‖ (2007, 161). Ficando claros os conceitos de atualidade e de modernidade, é preciso também um pequeno aposto explicativo sobre o conceito de modernismo.

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Este último se refere aos movimentos da arte ocorridos no início do século XX e tinha como objetivo a negação dos procedimentos artísticos impostos pela tradição. Assim, para a presentificação da realidade contemporânea, modernidade se confunde ao próprio conceito de modernismo, quando enxerga a rápida atualização do passado. Quando, porém, vê no passado um tempo a ser extinto por níveis qualitativos, a visão se distingue, pois passa a ser modernista. A modernidade é, numa palavra, a inovação e não a reprodução do quadro vigente. Não é uma ―inovação pela inovação‖, mas pelo desenvolvimento original de um estilo individual e próprio, que dá, para além das marcas da obra, os sinais da humanidade do autor. E sobre isso é preciso que se afirme que buscamos com nosso trabalho percorrer os traços da prosa romanesca de Adonias Filho e Autran Dourado, observando até que ponto seus aspectos inventivos são frutos da originalidade ou de traço tributário a uma literatura mais antiga. Vemos, assim, que, num certo grau, a modernidade se ramifica em vários tracejados que ajudarão a compreender como isso se enformará nas obras. Entretanto, um ponto distinto parece já se delinear, e para isso se deve entender modernidade como sinônimo de modernização, ou seja, momento de rápido crescimento econômico e social por que o mundo passou. Há, aqui, o sentimento do novo, mas não em aspectos experimentais, pois que negava a reificação do homem, de modo a se tornar um desejo de emancipar pela literatura o homem de seu estado servil. Os paroxismos desses dois autores se mostram numa atualidade negadora da tradição literária a que ingenuamente são colocados pela crítica (alcunha-os de regionalistas). Assim, são modernos porque são lidos hoje por uma geração que lhes entranham a essência espiritual e literária. Em suma, o que se observa, tanto em Adonias quanto em Autran, é uma convergência de caracteres oriundos dos conceitos de atualidade tal qual aos de modernidade. Porém, numa dada parte, aquele se sobrepõe a este, porquanto se entende a modernidade como mudança, combate, momento histórico ou mesmo um aspecto fugidio. O conceito de atual é a que nos propusemos dar, por sua vez, é um hoje, digamos, contínuo, é o presente em fluxo, é, em oposição à ideia de transitividade e negação, a condição de perenidade artística e afirmação do ser.

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** Modernidade e atualidade marcam, como vimos, duas condições distintas na realidade das coisas. Mas a perquirição a que submetemos nossos autores só ficará completa se levarmos em consideração a perspectiva crítica de que fazem parte. Ambos possuem uma contribuição assaz relevante e particular, que se revela imprescindível elemento de transformação de um material literário clássico em moderno, sem ser um clássico passadista ou um moderno modernista. Isso só se dá pois o saber literário conduz à humanização, e todo esse processo é, por sua vez, proveniente da investigação literária. A crítica é um dos elementos fundamentais de constituição da Literatura como forma ontológica, visto que liberta a Literatura de seu espaço e tempo unicamente contemporâneo para levá-la a correlacionar-se a qualquer outro tempo, lugar e, consequentemente, a qualquer outra forma literária. Assim, fugindo-se das condições de uma Literatura que viva presa ao passado ou ao presente, Adonias Filho e Autran Dourado convertem-se em críticos, pois, somente pela crítica (de suas obras e de outros períodos), o saber literário pode ser extraído, valorizado, mas não mimetizado (o que em si diminuiria a potência da obra gerada, visto que se converteria num pastiche de obra de valor). Isso explica os seus legados críticos: Adonias, a partir da avaliação de outros autores, deixa entrever suas concepções literárias em suas análises; Autran, a partir da metacrítica, discute seu próprio fazer literário. Ao encontrar na crítica o modo de majorar o passado, mas sem tentar repeti-lo no presente, os autores assumem olhar analítico semelhante ao dos autores da escola de Jena, em que vemos, por exemplo, as exegeses de Hölderlin e Schiller: ―Embora admirassem a arte grega, os românticos não foram soterrados pela antiguidade, graças a pioneira importância que concederam à história‖1. A crítica liberta do passado ou para resgatá-lo e/ou para transformá-lo. Se para tão longo amor, tão curta a vida, deixemos para um espaço mais adequado a demonstração desse fenômeno da crítica literária na composição formal e conteudística desses autores. O que fica patente neles, no entanto, é a utilização do sentido trágico que, na tragédia ática, tão bem demonstra o espírito e a vontade grega, na tentativa de esse povo sobreviver à sua própria inclinação para dor e para o sofrimento.

1 Pedro Duarte de Andrade, 2008, p.191.

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Diante da linha de raciocínio que resulta na unificação dos elementos mais paradoxais e, assim, humanos, o drama trágico (que se apresenta como forma maior de unificação entre a epistemologia e a ontologia) será o alvo de Adonias Filho e Autran Dourado, pois que constatam nele a unidade entre o vigor de conteúdo e o rigor de composição. E aqui reside o propósito de nosso trabalho: verificar a atualidade da tragédia grega na literatura brasileira, essencialmente nas obras de Adonias Filho e Autran Dourado; artistas que comportam, cada um a seu turno, uma trilogia de cuja essência podemos retirar o sentido trágico, que se mostrará, em maior ou menor grau, concretizado na forma. O método de investigação será o diacrônico, partindo das perspectivas da lógica de Aristóteles até chegar à análise radical de Nietzsche e Hölderlin, autores que elucidam a maneira grega de enxergar a existência e sua consequente demonstração artística. Para nós, o magistério trágico realiza a complementação dos contrários, desenvolvendo o conhecimento da unificação. Assim, quando Adonias Filho e Autran Dourado personificam o sentido trágico, relega-se a contemporaneidade2 à inferioridade, a fim de abrir espaço para o verdadeiro papel do saber literário: a emancipação consciencial e existencial configurada a partir de tal magistério. Além disso, ao resgatar a tragédia, os constructos estilísticos (ainda que adaptados à nova realidade – como mais à frente elucidaremos) consorciarão as pulsões passionais que regem a natureza humana à racionalidade do narrador, responsável pela organização arquitetônica do romance, de sorte que duas situações, antes excludentes, serão unificadas: o saber racional do narrador e a emoção empírica do personagem. A tragédia ática fornece, pois, valiosos ensinamentos na perspectiva estética e conteudística que favorecerão tais autores a remontarem um sentido que recupere o princípio espistemológico da tradição clássica. O retorno (longe de ser um anacronismo – é preciso apontar) será corporificado nas trilogias Os Servos da Morte, Memórias de Lázaro e Corpo Vivo, de Adonias Filho e em Um Cavalheiro de Antigamente, Ópera dos Mortos e Lucas Procópio, de Autran Dourado

2 O conceito deve ser entendido como a condição histórica da modernidade, ou seja, a demarcação do tempo em níveis unicamente cronológicos, não contemplando, por isso, os aspectos de negação do status quo, por exemplo. 19

Capítulo I - A crítica literária

Na tentativa de mapear os influxos da tragédia, o processo crítico literário será fundamental em pelo menos dois pontos. O primeiro é fornecido pelas perspectivas artístico-literárias que Adonias Filho e Autran Dourado irão fornecer, comportando-se ora como críticos ora como metacríticos. O segundo ponto, por sua vez, tem sua importância identificada quando se observa que esses autores retomam (sem passadismo) o sentido trágico dos antigos dramas gregos (fundamentalmente os do século V) a fim de criar uma obra de arte autônoma. A crítica é, portanto, uma ferramenta de escopo essencialmente ontológico. Sendo essa noção ontológica o ponto central de nossa análise, é preciso mostrar, conquanto com brevidade, que tal entendimento crítico nasceu pelos autores da Escola de Jena, berço do Romantismo alemão.

1) O método crítico da Escola de Jena

A formação de um novo espírito advém da construção progressiva de uma nova percepção das coisas do mundo. Livrando-se das amarras que o castravam, o mundo repele conceitos que o impõem à subserviência e ergue-se soberano, ainda que a princípio sustentado por pernas frágeis, para não mais se sujeitar aos açoites ideológicos milenarmente construídos. Essa nova realidade é sentida de forma significativa a partir do pensamento crítico de Kant, cujos esforços se dirigiam para a negação da metafísica clássica o que, consequentemente, permitiam a libertação do homem da manipulação ideológica. A liberdade é, então, o ponto central, pois ela facultava a ação. A ação, por sua vez, consorciava-se aos procedimentos de seu Imperativo categórico que, alicerçando-se no princípio da autonomia, afirmava: ―Age de tal modo que a máxima de tua ação sempre e ao mesmo tempo possa valer como o princípio de uma legislação universal‖. Mas Kant não impôs a razão como única forma de observar a realidade. Se se afastou dos sistemas racionalistas de sua época, o fez por perceber os desvios da própria razão. E foi quando chegou a essa conclusão que sua crítica se tornou mais apurada e revolucionária, visto que ―a atitude crítica, para se manter, precisa reconhecer os limites

20 da razão‖3 (2005, p. 128). Ao limitar a potência epistemológica da razão, a experiência passa a (re) ocupar um lugar (relativo, é verdade) de vital importância na completude das questões do conhecimento. É o que afirma Kant em sua Crítica da razão pura:

Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; do contrário, por meio do que a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão através de objetos que toquem nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento para compará-las, conectá-las ou separá-las e, desse modo, assimilar a matéria brutas das impressões sensíveis a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto, nenhum conhecimento em nós precede a experiência, e todo o conhecimento começa com ela. Mas embora todo conhecimento comece com a experiência, nem por isso todo ele se origina justamente da experiência (1980, p.23).

A formalização desses conceitos avassaladores da sociedade dos séculos XVII e XVIII, que se iniciaram com Hume4 e desembocam em Kant, legaram ao mundo uma cisão, que foi a crise da metafísica clássica, ponto esse fundamental para a inserção de um novo pensamento crítico, do qual a escola romântica alemã será a voz mais eloquente. Mas de que modo esse novo pensamento crítico ganha força? Recorramos ao estudo de Ronaldes de Melo e Souza, desenvolvido em ―A filosofia de Fichte e a poesia Moderna‖5. No ensaio, se o autor contribui para a elucidação da proposta de Fichte (relativa ao intercâmbio das potências passionais e racionais que servirão de base fundamental à consolidação de um novo status quo), ele também expõe, explora e destrincha os aspectos formativos dos autores românticos alemãs, sustentáculos da Escola de Jena e fundamentais à instauração do que mais tarde se chamará de Modernidade. Assim, nomes como Novalis, Schlegel e Schelling, além do próprio Fichte, desenvolvem uma teoria original ao convergirem as estruturas contrárias não para síntese harmônica de anulação dos antagonismos, mas para uma reunião de antinomias, em que tais relações antagônicas se mantêm com força autônoma, gerando, por sua vez,

3 REZENDE, Antônio.[org.] Curso de Filosofia, 13ª.ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Ed. 2005. p.128. 4 As considerações de Hume puseram por terra a noção de causalidade, porquanto esta se baseava na concepção, tida por ele como errônea, de que as ideias não eram somente hábitos arraigados e sucessivamente repetidos. 5 SOUZA, Ronaldes de Melo. ―A filosofia de Fichte e a poesia Moderna‖. In. Ensaios de Poética e hermenêutica. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010.

21 não a anulação, mas a complementaridade. Para realizarem isso, três foram as condições desenvolvidas: a) o intercâmbio entre filosofia e poesia; b) o modo de interação entre essas potências aparentemente distintas que se interligam para oportunizar a integralidade da essência humana e c) o papel da ironia crítica, como forma exegética. Entre as potências aparentemente divergentes demonstradas nas figuras da ciência e da filosofia, determina-se a presença da razão e da emoção, respectivamente. Tal divergência, contudo, não faz parte da natureza original das coisas, mas é fruto de uma reflexão iniciada em Platão e ratificada no cientificismo cartesiano de que o mundo físico se distingui do mundo das ideias e do espírito. Se tais considerações no plano das reflexões teóricas comportam algum tipo de justificativa ou mesmo pertinência, o mesmo não se dá no que toca à existência humana, complexa, divergente de identidades e convergentes de dissensões. Sendo assim, a originalidade de Fichte reside exatamente no processo de unificação dessas ideologias distintas, visto que representaria, em uníssono, uma forma completa de conhecimento, resultando na própria complementaridade da vida. Se Kant não enxergava na razão toda a resposta para as considerações acerca da observância da pluralidade da vida, Fichte, em linha análoga (mas não idêntica), assentia que algo mais deveria dar conta da unificação da ideia. O primeiro enxergava o empírico, o segundo a poesia. Nesse sentido ―a força formativa de Fichte resolve o problema da separação kantiana das faculdades teórica, ética e estética‖ (2010. p.134) Essas ideias demonstram que a força de composição (rigor) e a potência imaginativa (vigor) ajuntam-se, como nas potências apolíneas e dionisíacas nietzschianas, para a formulação da completude. Todavia, tal proposta investigativa proposta por Ronaldes Melo e Souza só consegue atingir a nossos objetivos se trouxermos à luz o terceiro conceito, relativo à ironia romântica. Numa palavra, a ironia romântica será entendida como análise, portanto, crítica. Assim, como afirma Ronaldes de Melo e Souza,

na obra de arte regida pelo princípio da ironia, o que importa é a capacidade de um eu se desdobrar em eu-sujeito e eu-objeto. O eu verdadeiramente irônico ri de si mesmo, e não simplesmente dos outros. Nesse sentido é que a ironia se denomina romântica. Define-se a ironia romântica como expressão dialética da síntese antitética peculiar ao consórcio da ciência da reflexão e da arte da imaginação. À nostalgia romântica do infinito ou absoluto se contrapõe a redução irônica ao finito ou relativo. O conceito de ironia romântica se impõe como princípio de construção da obra de arte que congrega em si mesma a linguagem do entusiasmo e a metalinguagem da reflexão

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crítica. A ironia sem o entusiasmo é forma retórica vazia, e o entusiasmo sem ironia é ingenuidade pura (Grifos nossos. 2010, p.135).

E complementando essas considerações, o ensaísta cita um estudo de Márcio Suzuki, que por sua vez afirma que ―para ser um ‗gênio do gênio‘, o filósofo e o poeta terão de se tornar um ‗crítico histórico‘. E é essa crítica que Novalis emprega em seu próprio fazer artístico, que sua poesia assume o caráter autorreflexivo. No contexto brasileiro, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto foram mestres nesse processo, porque, somente a partir dessa realidade, torna-se um artista completo. Leitor de si mesmo, crítico da própria obra, autor e leitor se pluralizam numa verdade menos subjetiva, porque vária, mas não excludente ou sofismática. Cada campo abordado revela um traço de valor da obra: o filológico, o mitológico, o teológico. Não por acaso Schelling empreendeu diversas filosofias. Compreendeu com Fichte a egoidade6 (Ichheit), depois com Novalis o ―princípio configurador dos possíveis eus‖, para, então, entender que tudo era egoidade e que o princípio formativo residia em todas as coisas, que, portanto, iam além da subjetividade do indivíduo:

A fim de corresponder à diversidade dos sujeitos, Schelling elabora uma filosofia da religião, uma filosofia da natureza, uma filosofia da mitologia, uma filosofia da arte. As filosofias de Schelling se harmonizam como variações em torno da unidade proliferante da filosofia da vida em formação e transformação. A originalidade de Schelling no contexto do idealismo alemão consiste na concepção da intimidade relacional do espírito e da natureza. O espírito humano e a natureza mutuamente se correspondem, porque são perpassados pela força formativa da vida, que subage continuamente na proliferação das formas naturais e nas criações espirituais (2010.p.140).

Com efeito, após a instauração dos conceitos de complementaridade, a crítica romântica poderá se enxergar como o ser-sujeito e como o ser-objeto, pressentindo que, sendo um e o outro, é capaz de lidar com suas identidades e diferenças. A partir daí, o romantismo consegue livrar-se daquilo que poderia ser a sua ruína: a imitação da arte grega, resgatada pelo pensamento do classicismo oitocentista. A estratégia do romantismo alemão é bem traduzida no binômio ―absorção-inovação‖. Tal binômio mostra que a absorção dos conceitos da arte grega servirá como elementos de inspiração. Já a inovação evitará que tal olhar para o passado se revele uma cópia das

6 Segundo Ronaldes de Melo e Souza, egoidade pode, também, ser compreendida como a atividade pura de autoplasmação.

23 formas antigas. A criação se dará como elemento de vigor na obra literária. Mais à frente em nosso estudo, iremos ver de que modo as atitudes críticas de Adonias Filho e de Autran Dourado farão papel semelhante ao usado pelos românticos alemães juntamente ao seu retorno no tempo e à atualização no presente. A perspectiva de Friedrich Schlegel, em O Dialeto dos Fragmentos7, aponta para as correlações fundamentais que devem (ou não) existir entre o escritor e o público. Tais considerações são um ponto de destaque bastante representativo já que, em última estância, caberá ao crítico o estabelecimento dessas nuances. Schlegel, para tanto, produz uma obra de fragmentos8, demonstrando, nesse processo metanarrativo, de que modo se realiza a construção da arte. Posto isso, começaremos a demonstrar de que maneira a metanarrativa e a crítica serão os elementos fundamentais para a compreensão do status quo e mais: como ela será capaz de refletir sobre as forças artísticas do passado, legando ao presente a faculdade de revisitá-los, não com o intuito de mimetizá-lo, mas sim de reinventá-lo. Nos fragmentos críticos de Lyceum, o filósofo destrincha o valor da arte grega, afirmando que ―até agora nada de verdadeiramente hábil, nada que contenha profundidade, força e destreza, foi escrito contra os antigos, sobretudo contra sua poesia‖ (Fragmento 4. 1997, p.21). Essa reflexão acerca da força da arte grega não deve, contudo, ser interpretada como se a arte helênica não fosse passível de ser superada em

7 Nome dado pela reunião de textos proposta por Márcio Suzuki. 8 Na introdução a Novalis, Pólen (São Paulo, Iluminuras, 1988, p. 11.) Rubens Rodrigues Torres Filho comenta que ―as esplêndidas construções sistemáticas que a tradição filosófica nos legou sob o título de ‗idealismo alemão‘ (Fichte, Schelling, Hegel) edificam-se sobre um solo de crise – a metafísica minada pela crítica da razão (Kant) – e erguem sua travação conceitual como que a esconjurá-la. Do que se pensou no reverso desses sistemas, no epicentro dessa crise, os escritos do primeiro romantismo (Novalis, Tieck,os irmãos Schlegel) dão alguma medida, e não é de admirar que, já na forma, se apresentem como fragmentários‖. O romantismo, dessa forma, não é visto como filosofia, por não adotar os grandes sistemas, mas sim o fragmento. Esse traço fragmentário, contudo, não será visto como algo negativo ou mesmo sinônimo de inanição criativa, antes um estado de desenvolvimento intelectual, por conta das relações que ora irão se impor. Num mundo em crise (após o ―despertamento dogmático‖ kantiano), a realidade se fragmenta e consequentemente as visões da realidade e do próprio mundo. O homem, e o artista em último grau, não mais podem engendrar a vista às certezas absolutas e por isso ele se fragmenta. Márcio Suzuki, na Apresentação de Dialetos dos Fragmentos, afirma tais considerações ao dizer que ―a percepção da fragmentação e dilaceramento da consciência poderia ser antes considerada como um dos instantes em que o idealismo alemão se dá conta de seus limites, em que passa a investigar seus próprios pressupostos e a corrigir seus desvios: abdicar da pretensão de estabelecer pelo viés da teoria, um sistema do saber absoluto, minimizando o alcance especulativo da dialética. No caráter assistemático da reflexão schlegeliana já se evidenciam os principais elementos deflagradores da crise do idealismo, cujo desfecho será a filosofia positiva do último Schelling e a filosofia da vida do próprio Schlegel‖ (1997. p. 12).

24 algum momento. A verdadeira reflexão é que ela não foi superada em seu momento. Digamos, então, de outra forma, nos valendo de duas considerações críticas. Autran Dourado, em A serviço Del-rei, afirma que ―os antigos sabiam de tudo, os gregos, nem se fala‖. Já Machado de Assis diz, mais parcimonioso, em Notícia da Atual Literatura Brasileira9, que “nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum‖ (2008, p.123). Ambas as visões apontam para o valor inegável do passado, contudo é a última que trabalha com o valor do momento presente. E como esse momento presente se impõe? Quer dizer, como se é possível construir uma arte de valor a partir das considerações do presente, quando a grande arte parece já ter sido inventada e estar todo pronta? Quando se revisita o passado, podemos enxergá-lo de duas formas. A primeira é aquela que se mostra a partir de uma olhar feliz por termos superado as vicissitudes. Deslumbramo-nos com as nossas conquistas presentes e percebemos o quanto evoluímos. Extraindo dos momentos pretéritos nossa essência atual, vemo-nos, em alguns momentos, nostálgicos. A segunda maneira que temos de olhar para o passado é registrando nele certo desdém pela nossa vida pregressa, normalmente por colocarmos nela os objetivos futuros que se demonstraram debalde no presente. Assim, o passado se revela como o tempo que guarda a presentificação das ilusões perdidas. Pois bem, quando agimos assim, exigimos de nós uma força de renovação contínua em que queremos impor à nossa vontade o desejo de superação. Quando nossa ação tende para essa realidade, nosso comportamento (para lembrarmos Hölderlin, em suas Reflexões) associa-se à forma como devemos nos colocar diante à antiguidade:

Sonhamos com formação, piedade, etc., mas não possuímos nenhuma. São apenas pretensão – sonhamos com originalidade e autonomia, acreditamos enunciar o novo em alto e bom tom, mas tudo isso não passa de reação, de uma espécie de vingança suave contra a escravidão que norteia o nosso relacionamento com a antiguidade. Parece que, realmente, quase não se oferece uma outra escolha senão deixar-se soterrar pelo já assumido, pelo positivo, ou, com a mais violenta soberba, contrapor a vida de nossas forças a tudo o que foi dado, aprendido, a todo o positivo (1994, p.21).

Considerações sobre as relações existentes entre o clássico, o romântico e o moderno, encontram-se no estudo de Pedro Duarte de Andrade10. Lá, o autor traz à tona reflexões de como os românticos alemães conseguiram resolver a problemática existente

9 In. O ideal do Crítico 10 Revista O que nos faz pensar no..24, PUC/RJ. 2008.

25 entre a valorização do passado e a liberdade de se criar uma arte verdadeiramente autônoma da modernidade, dizendo que só o conseguiram fazer por conta da história: ―Embora admirassem a arte grega, os românticos não foram soterrados pela antiguidade, graças à pioneira importância que concederam à história‖ (1989, p. 25). Numa palavra, eles compreenderam como engendrar o princípio da absorção e da inovação. Schlegel aponta para a história como forma de a modernidade não sucumbir à força grega. Nietzsche, a seu turno, aponta para circunstância semelhante, ao demonstrar que também a cultura helênica, ao se relacionar com o passado e o futuro quando a arte grega permaneceu. Como afirma Anna Hartmann Cavalcanti, em Nietzsche e a História11,

foi pela capacidade de entrar em si mesma, esquecendo e elaborando o passado,refletindo e buscando o futuro, que a cultura grega pôde ser criadora (...).Parece que Nietzsche une o passado e o futuro a partir de um mesmo princípio; o que orienta como um sinal o momento de esquecer o passado, orienta também a formação de uma atmosfera fértil na qual os homens possam amadurecer uma imagem do futuro. Este princípio é a vida e é esta que orienta os homens à expansão e ao crescimento (1989, p. 30).

Também Benedito Nunes estuda esse processo de historicização dos componentes clássicos como forma de livrar o espírito romântico do mimetismo. Para isso, resgata as considerações kantianas relativas ao Belo e o belo da natureza, mostrando que a natureza só é bela12 quando revestida dos aspectos da Arte. Tais aspectos ganham contorno quando perpassam pela perspectiva do artista, de modo que, agora, o eu poético ganha a autonomia de sua subjetividade. O poeta é, então, o gênio da faculdade produtiva (e não mais reprodutiva), colocando-se no lugar do genérico clássico o indivíduo romântico. A partir de tais considerações acerca da imaginação produtiva do gênio romântico kantiano, Benedito Nunes traça um paralelo com as ideias estéticas de Schiller, que se debruçou sobre as poesias clássica e romântica, a fim de não somente lhes reconhecer as diferenças, como também tentar compreender a mudança de valor

11 Revista O que nos faz pensar no. 1 PUC/RJ. 1989 12 ―Quando chamamos de bela a Natureza, é como se lhe atribuíssemos uma certa intenção formadora, uma certa intenção artística, como se, por intermédio do Belo, acrescentássemos à natureza mecânica, newtoniana, tal como é conhecida, porque só há um conhecimento através de conceitos determinativos, as categorias, na medida em que elas servem de base aos juízos, condicionando o alcance empírico que eles possuem‖(2007. p.34-35).

26 que se opera entre essas duas perspectivas, sem que entre elas haja, necessariamente, valor qualitativo, mas sim apreciação relativa ao momento de produção.

Schiller que discutia em sua correspondência com Goethe a questão da decadência do gênero trágico, perguntava o que caracteriza nossa poesia em relação à dos antigos? A verdade, responde Schiller, é que não podemos mais fazer poesia como os antigos, porque perdemos a conformidade com a natureza em que eles viviam. A poesia antiga é ingênua enquanto nos transmite algo dessa conformidade, que vem de um relacionamento harmonioso com a natureza. Por certo que a Antiguidade grega foi, então, idealizada; a história da Grécia passou a representar um passado harmonioso. A harmonia, que havia se quebrado, perdurava em “nossa” época, sob a forma de insatisfação nostálgica. E era essa nostalgia como sentimento individual a chispa da poesia romântica. Ora, a nostalgia, como sentimento, é insaciável, e a insaciabilidade só poderia ser suprida com algo infinito. Os românticos usam a expressão Sebnsucht [saudade, ânsia] para traduzir a permanente busca desse objetivo nostálgico, que nada do que é finito poderia preencher. E por isso, ao contrário da poesia antiga, ingênua porque limitada, finita, a poesia sentimental dos modernos é uma arte da infinitude (2007, p.36. Grifos nossos.).

Tal problemática passa a se resolver com Schlegel e Goethe, com este último, particularmente, contribuindo para que os românticos alemães vissem uma ―poesia universal progressiva‖ (2007, p.38). A partir disso, é como se se pudesse reconhecer uma família espiritual que indicará uma continuidade e não mais uma sequência (meramente cronológica) de autores clássicos até os modernos, que deveriam ser copiados. Haverá agora a observância de uma forma autodelimitada e, portanto, fruto de uma consciência reflexiva, ―por isso admitirão os românticos a comunidade dos gênios, que vai informar a primeira perspectiva histórica da literatura e da poesia‖ (2007, p.39). Ao colocarem ao cargo da história o valor da arte grega, reconheceram suas potencialidades num tempo específico, de modo que sua reprodução na atualidade fragilizaria sua essência. O passado fica como elemento pedagógico, mas compreendido em seu tempo. Schelegel13 afirma que ―jamais se deveria evocar o espírito da antiguidade como uma autoridade (...) também aqui o mais rápido e concludente seria demonstrar a posse da verdadeira fé através de boas obras‖ (1997, p.27). Essas boas obras podem ser entendidas como a capacidade de se criar formas que atendessem às necessidades dos espíritos da época; afinal, as artes do passado ficavam circunscritas a ele. Sobre isso, Pedro Duarte de Andrade, então, conclui dizendo que

13 Fragmento 44 de Dialeto dos Fragmentos.

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a antiguidade não é o máximo absoluto, mas apenas o máximo relativamente condicionado do seu tempo. Não criaram os antigos simplesmente uma beleza sobre a qual nada mais belo poderia ser pensado. Tanto poderia que os modernos voltaram os olhos para os gregos para criar sua beleza sobre a deles. Desse modo, embora destruída de valor modelar eterno, a arte grega faz parte da aproximação, jamais superável, do absoluto. Ela conta, segundo Schlegel, como ―exemplo que compreende a ideia inalcançável, que se torna aqui, essencialmente, completamente visível‖ (2008, pp.196- 197).

3) Os estágios da crítica no Brasil A partir dessa breve abordagem sobre as condições da crítica, é preciso também verificar sua chegada e respectivo desenvolvimento em terras brasileiras. Para tanto, iniciemos uma análise diacrônica. Historiograficamente se constatam as mais diversas acepções que o termo ―crítica‖ obteve, partindo, inicialmente, das relações sinonímicas com gramática e com a filologia. Após esse primeiro estágio, como afirma Roberto Acízelo, a crítica ―ampliou seu domínio, prestando-se a veicular conceito fundamental na filosofia a partir de Kant, em cujo sistema filosófico significa (...) a atitude de perquirição acerca das possibilidades do conhecimento e das condições de sua validade‖(2006, p.112). Com relação ao método, as abordagens se modificaram ao longo dos séculos. A do século XVIII, por exemplo, se ligou às inspirações subjetivas da arte iluminista, refletindo os ideais do belo e do gosto. Já a do século XIX se fundamentou no valor objetivo, embora ainda dividisse espaços com o conhecimento mais impressionista, herança da escola anterior. Destarte, esse panorama refletiu, no século XX, o conflito desenvolvido entre a crítica e a Teoria da Literatura, desde o momento que esta última se impôs a condição de detentora do completo conhecimento literário. Com o escopo de, portanto, salvar a crítica de uma visão negativista, Acízelo propõe três condições de validação da crítica: a) uma modalidade etimológica, remontando ao ―verbo grego kriveivi, cujo primeiro sentido é ‗separar para distinguir‘ o que há de característico e constitutivo‖ (2006, p.116); b) uma modalidade valorativa, que seria capaz de definir ―um valor de relação, dizendo respeito ao que aproxima e diferencia o discurso literário do mítico e do onírico‖ (2006, p.117); e, por fim, uma modalidade de julgamento, que se associa a ―preferências mais ou menos arbitrárias mediante a certos refinamentos e conceitos do problema central do ato crítico‖ (2006, p. 117).

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Bom, mas se entendemos o problema da crítica e das suas consequentes formas de resolução das dificuldades empregadas, temos que entender agora como ela se realiza num contexto existencial para a construção da identidade de um ser e, para isso, é preciso apontar, nas particularidades das letras brasileiras, até que ponto se realizam as condições que revelam, por um lado e por outro, o intercâmbio entre literatura, sujeito e sociedade. Acízelo14 faz um interessante panorama da crítica brasileira oitocentista mostrando de que maneira se fundamentou no país um espaço de discussão teórica que logo mais iria se revelar no plano poético e ficcional. Como eixo teórico de exegese dos conceitos da crítica, ele assinala que a sua arquitetura:

numa apresentação dedutiva, configura-se como integração de quatro instâncias solidárias: determinação do conceito de literatura; proposição de princípios e procedimentos para a análise de obras literárias; estabelecimentos de critérios para a aferição de valor das produções literárias; consideração analítica de composições literárias, visando à estimativa de seus méritos estéticos (2013, p.14).

Ele desenvolve, a partir daí, o retrato do que foi o Brasil oitocentista, percorrendo o encômio15 e o apadrinhamento16 que tanto ocupavam os espaços dos jornais da época. Nessa crítica tout court o profissionalismo da análise não encontrava

14 ―A crítica literária no Brasil oitocentista:um panorama, encontrado na obra: Crítica literária brasileira: um panorama, 2013. 15 João Cezar de Castro Rocha lembra sempre o caso das polêmicas no meio literário da época, como forma de se fazer conhecido ou de se aumentar a fama. São notórios os casos de autores menores que ofereciam suas obras aos grandes mestres, como Machado de Assis, como modo de lhes conseguir a simpatia. Em outra instância, observam-se autores que criticavam os maiores a fim de que seus nomes ficassem não pela qualidade, mas pela verborragia do palavrório‖. José Luís Jobim em ―Machado de Assis: o crítico como romancista‖ ensaio que consta em A crítica literária brasileira em perspectiva, afirma que ―... a polêmica empolga o meio cultural provinciano. Nos mais diversos grupos acompanham-se com atenção as lutas de Alencar contra Nabuco, José de Castilho e Franklin Távora, como as arremetidas sempre contundentes de Laet, ou a batalha (que, como a de Itararé, não houve) do Realismo e do Parnaso‖(2013, p.77). Na mesma obra, Maria Eunice Moreira, no ensaio: ―O Brasil em papel: ideias e propostas no pensamento crítico‖ confirma essa ideia, acrescentando que isso foi elemento fermentador do próprio conceito de nação: ―Os exemplos poderiam se suceder, mas deixando de lado a guerra entre os polemistas, a hipótese que gostaria de propor para discutir a crítica romântica é a de que o Romantismo abre-se com um debate – do Minerva Brasiliense expande-se com a polêmica sobre A Confederação dos Tamoios e fecha-se com a discussão entre José de Alencar e . Literatura e política, nesse quadro, mesclam-se e colaboram para a definição da nação‖(2013, p.31). 16 Sentindo ainda até meados do século vinte o ranço desse tipo de crítica, Afrânio Coutinho irá publicar um conjunto de textos contrários a essa atividade pouco proficiente. Esses estudos mais tardes irão ser reunidos no livro No Hospital das Letras.

29 espaço, vista a finalidade de se alcançar um público mais amplo (relativizando, é claro, o alcance da época). Convivendo em lugar e tempo, a autocrítica encontrou guarida nos romances e em algum grau na metapoesia17. Os romances, como bem o sabemos, buscavam a formação ou a manutenção do gosto burguês, por isso eles tinham um caráter, para além de pedagógico, moralizador, ainda que se concentrassem fundamentalmente na obra em questão. Concomitante a essa estética, visava-se também demonstrar que a literatura possuía um veio nacionalizante e que era por e para isso sua existência. Conforme essa realidade crítica perde o fôlego (muito decorrente do paulatino amadurecimento do leitor), outra se faz soar (ainda que menos retumbante que a tout court): a metacrítica. Filho dos antigos cursos de oratória e poética, tal procedimento ainda era muito devedor do conceito clássico de arte em que ―prudência, coragem, temperança‖ eram os itens inolvidáveis. Digamos então que a crítica demorou a ter sua própria identidade. Os autores que poderiam fazer isso praticamente não o fizeram ou fizeram pouco. José Veríssimo, por exemplo, se exime: ―Criticar a crítica é a coisa mais difícil que conheço‖ (2013, p.20). Silvio Romero assume postura semelhante dizendo que desconhece ―respostas sérias e completas‖ (2013, p.21), de maneira que o século XIX brasileiro experienciou basicamente três obras que contemplasse a metacrítica: de Bernardo Guimarães, Revista Literária (1859); de Macedo Soares, Da crítica brasileira (1860); e de Machado de Assis, O Ideal do Crítico (1865). Roberto Acízelo de Souza, ainda em seu panorama, mostra que mesmo após os primeiros anos do modernismo praticamente pouca coisa mudou, ficando ainda a crítica legada aos meios mais jornalísticos do que universitários. Contudo, parece que tudo começa a modificar a partir dos anos 40, com Afrânio Coutinho e seus esforços de se ter uma crítica menos diletante e mais profissional. Reconhece o valor da crítica literária como forma de se criar um espírito mais desenvolvido. Bom, a partir daqui (e já se sentem os ventos dos anos 60), essa nova crítica (a despeito de dissensões e rusgas, como Afrânio teve, por exemplo, com Álvaro Lins, este mais afeito à crítica nos moldes tradicionais) passa a ter mais prestígio, junto (e talvez por isso) à ascensão dos cursos de letras nos níveis de graduação e posteriormente de Mestrado e Doutorado.

17 Acízelo lembra também os textos de Gonçalves Dias em que isso era mais bem observado, como ―A Minha Musa‖ (Primeiros Cantos, 1847) e ―Lira Quebrada‖ (Últimos Cantos, 1851), assim como em , com ―O fantasma e a Canção‖ e ―Poesia e Mediocridade‖(Espumas Flutuantes, 1870). 30

Quando chegamos a esse momento de nosso estudo, fica mais claro entendermos como a crítica assume um caráter que não se restringe ao norteador do gosto, mas como um elemento capaz de modificar não somente instituições e países, como principalmente ideologias e condições existenciais. Vejamos, então, em dois de nossos maiores críticos literários – Machado de Assis e Antonio Candido – o propósito de transformação ontológica como forma de se atingir uma condição de conhecimento sui generis.

2.1) Machado de Assis e Antonio Candido: missão e valor

2.1.1) Machado de Assis

Na apresentação de O ideal do Crítico (2008, pp. 07-21), Miguel Sanches Neto faz um breve estudo sobre o papel crítico exercido por Machado de Assis em meados do século XIX. Trazendo as reflexões de Mário de Alencar, observa-se que a formação literária de Machado parte primeiro da sua composição como crítico para depois de se dar como romancista. Analisando a ―Advertência da edição de 1910‖, de Mário de Alencar, um dos amigos mais próximos de Machado de Assis, Miguel Sanches Neto lembra que duas considerações poderiam ter feito Machado afastar-se da crítica: a falta de material consistente para engendrar um estudo de valor semanal e a recepção de sua própria obra:

A crítica nos moldes em que ele a defendia seria, com certeza, se levada adiante, um fator de conflito na vida literária provinciana, marcada por grandes emotividades. O crítico agia racionalmente, avaliando obras, mas recebia como troco reações de ódio. Tímido, ele teria preferido escrever seus livros, exercendo obliquamente a crítica. A busca do sucesso, conquistado diplomaticamente, seria incompatível com a crítica verdadeira – e Machado então desiste dela (Grifos nossos ,2008, p.13).

Exercendo a crítica indiretamente por seus romances, evitava o conflito direto como aqueles sobre cujas obras analisara18e manteve-se, na maior parte de sua vida

18 Notório é o caso em que Machado de Assis criticou a forma poética de Sílvio Romero e o seu Os Cantos do fim do século e foi depois duramente atacado pelo mesmo Sílvio em O naturalismo em Literatura, que em sua personalidade explosiva e passional, mais agredia o homem Machado do que o escritor, valendo-se de termos como ―homenzinho sem crenças‖, ―tênia literária‖...

31 literária, firme aos seus ideias sobre o papel do crítico, que não poderia cair no acordo de compadres e no jogo de amizades, que se desenvolvem em favores encomiásticos mútuos na busca de se produzir uma Literatura lida entre os amigos do mesmo grupo19. Mas a vida é diferente da arte e, se o escritor deve comprar o pão para alimentar o corpo, a alma pode ser alimentada pelo pão criado, ofício supremo do escritor. Assim, se o escritor Joaquim Maria, vez ou outra, precisava ser menos rígido numa consideração20, o autor Machado de Assis se permitia ir mais longe. Nesse sentido seus romances davam conta do projeto crítico que o espírito menos truculento do autor não o conseguiria realizar diante de uma briga ou contenda. José Luís Jobim21 assinala que

Machado de Assis, em sua crítica literária, antecipa linhas de encaminhamento que realizará em sua produção romanesca, ainda que seja pelo negativo: o que vai condenar na crítica servirá como modelo negativo para o que ele vai empreender como escritor. Ou seja, ele evitará o que condena no modelo negativo (2013, p.76).

E Machado de Assis tinha uma razão muito objetiva, embora num manto messiânico, para agir desse modo. Para ele, a crítica, verdadeira e sincera, se constituiria tal qual um instrumento de desenvolvimento da Literatura brasileira, porque seria ela a responsável pela formação no gosto do público leitor, ainda incipiente e acostumado a uma Literatura presa aos modelos europeus. A formação desse gosto leitor, é claro, não

19 Machado de Assis mostra em O ideal do Crítico como deve comportar-se a crítica literária, querendo estabelecê-la ―pensadora, sincera, perseverante, elevada – será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos‖ condenar ―o ódio, a camaradagem e a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje;‖ pondo ―em lugar delas a sinceridade, a solicitude e a justiça – e só assim que teremos uma grande literatura‖. Atualíssimo, Machado parece também antever um traço marcante de nossa Literatura atual, que busca afirmação por nichos, ou a partir do que se chama de romances de minoria, nos romance policiais ou mesmo a tentativa de tentar apontar, indistintamente, traços do cânone nos autores menores. No mundo das grandes redes sociais ou no próprio pulular de blogs (que parecem legitimar como ―grande autor‖ qualquer um que se coloque a escrever) somos bombardeados por aquilo que Todorov chamou de Literatura solipsista, que é ―uma atitude complacente e narcisística que leva o autor a descrever detalhadamente suas menores emoções, suas mais insignificantes experiências sexuais, suas reminiscências mais fúteis: quanto mais repugnante, mais fascinante é o mundo!‖ É aqui, então, que reside o esforço que deve ser empregado pelos críticos mais novos: lutar para que a Literatura continue sendo uma forma de conhecimento e de transformação existencial e não caia no pastiche barato, na confissão simplista e na produção de livros por encomenda, em que o artesanato artístico perde espaço para o capitalismo e para a diplomacia barata. 20 José Luís Jobim, no ensaio ―Machado de Assis: o crítico como romancista‖, afirma que ―a referência à imparcialidade como horizonte ideial para a crítica, que deveria então reconhecer os defeitos dos ―amigos‖ e as qualidades dos ―inimigos‖, tem endereço certo em um meio literário restrito, no qual tanto as avaliações positivas quanto as negativas não se distanciavam as relações pessoais‖ (2013, p.77) 21 José Luís Jobim, no ensaio ―Machado de Assis: o crítico como romancista‖ (2013).

32 se restringe aos aspectos unicamente literários, mas são mais sutis, visto que a partir daí dão início a uma reflexão mais profunda. Para Machado de Assis, a Literatura era uma forma de conhecimento e, a partir disso, uma maneira de se transformar a realidade e a essência humana, visto que julgava ser o mundo não feito apenas do progresso científico-material, mas também ideológico. É isso o que afirma no ensaio ―O ideal do Crítico‖ 22:

O que nós queremos (...), é que a sociedade não se lance exclusivamente na realização desse progresso material, magnífico pretexto de especulação, para certos espíritos positivos que se alentam no fluxo refluxo das operações monetárias (...) o talento pede e tem também direito aos olhares piedosos da sociedade moderna: negar- lhos é matar-lhe todas as aspirações, é nulificar todos os esforços aplicados na realização das ideias mais generosas, dos princípios mais salutares, e dos germens mais fecundos do progresso e da civilização (2008, p. 32-33).

E conclui que para que tenhamos uma literatura bem desenvolvida, também é fundamental que o literato seja igualmente um homem imerso nas condições sociais, para que a Literatura possa exercer o seu papel transformador. Assim, diz Machado em ―O passado, o presente e o futuro da Literatura‖ 23

No estado atual das cousas, a literatura não pode ser perfeitamente um culto, um dogma intelectual, e o literato não pode aspirar a uma existência independente, mas sim tornar-se um homem social, participando dos movimentos da sociedade em que vive e de que depende (2008, p.32).

É pelo papel de modificação da realidade, pelo aspecto de transformação do ser humano e sobre a convicção diante dos ideais na realização da obra que Adonias e Autran se aproximam da de Machado. E mais, nos três há a preocupação com a forma (sem formalismo), como elemento de desenvolvimento do conteúdo. Quer dizer, é a forma que dá o sentido das ideias, pois sem ela o texto perde o tônus. Quando, por exemplo, Machado analisou Os Cantos do fim do século, de Sílvio Romero, criticou-lhe a ausência do que chamou de ―genuína forma poética‖. Em ―Notícia da atual Literatura brasileira: Instinto de Nacionalidade‖, Machado aponta que falta aos escritores de sua época ―um pouco mais de correção e gosto;‖ peca-se ―na intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens, na obscuridade do pensamento‖ (2008,

22 In. O Ideal do Crítico, 2008. 23 Idem.

33 p.118). Na forma mostra-se o homem. E cabe a literatura, como dirá Antonio Candido ao reconhecer que o mundo é uma espécie de caos, cabe a ela a ordenação de que depende o ser humano.

2.1.2) Antonio Candido Partamos, agora, de algumas considerações de Antonio Candido, sobre a realização do processo crítico. Em O método crítico de Sílvio Romero, Candido analisa o modus operandi da crítica romeriana, e, ao fazer isso, demonstra como se realiza o seu próprio método. Para ele, a catalogação, a divisão da literatura em períodos literários é uma concentração no que o estudo literário tem de mais acessório:

Como ele [Sílvio Romero], alguns praticantes de nossa crítica têm pendor acentuado por tudo que é acessório em literatura. Haja vista a mania classificatória e metodológica, que substitui a investigação e análise pela divisão dos períodos; a discussão de origens e limites cronológicos; a catalogação de escritores em agrupamentos mais menos inócuos; o debate gratuito sobre definições; a mania polêmica e reivindicatória (2006. p.12 e 13).

Como a uma balança, Candido observa o processo de crítica literária sendo a busca por um equilíbrio que nasça, fundamentalmente, daquilo que se retira da obra e não daquilo que a ela se impõe. Ele reconhece que a obra é um elemento autêntico e único, mas não é estanque do tempo em que pertence, seja para negá-lo, seja para reiterá-lo. Sabemos que mesmo o silêncio diante de uma pergunta que nos constrange é uma forma de resposta. Assim, o comportamento do artista reflete em parte a sua ideologia. Ao analisar o método de Sílvio Romero, Candido destaca as suas porções parciais de enxergar o fenômeno literário.

Por tudo isto, a reimpressão do presente livro [Método Crítico de Sílvio Romero] talvez sirva para mostrar a glória e a miséria dos dogmatismos, e fazer ver aos jovens (penso, sobretudo, nos meus alunos) de que modo as visões parciais do processo crítico e da natureza da obra literária têm a sua função histórica e o seu risco teórico. Sílvio achincalhava o que lhe parecesse ―esteticismo‖; muitos dos críticos atuais repelem (de boca) o recurso a qualquer ―fator externo‖. Em ambos os casos, posições parciais apresentadas com a mesma imodéstia, deformando a inteligência plena do fenômeno literário, que se quer integralmente apreendido (2006, p.13-14).

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Esse fenômeno literário e o método crítico que a ele se impõe, contudo, guarda, obnubilado, um traço que se deve destacar. Candido reitera, sim, o valor da obra e o valor do homem (―afirmar que a obra vale por si, e em si mesma deve ser considerada, independentemente da pessoa do escritor, não nos furtamos à curiosidade que este nos desperta‖ [Ficção e Confissão, 2006, p.69]), mas, ao fazê-lo, destaca que os elementos sociais partícipes desse processo analisado não são bem os da realidade empírica. Em entrevista concedida ao PROLEDE, da UFPE, ele tece importantes considerações sobre esse social na literatura que ajudam a compreender essa sutileza.

O mais importante, e isso é um método dialético e não um método da Sociologia acadêmica, é ver como é que o social na Literatura não é propriamente o social, é alguma coisa diferente, é aquela coisa que o Forster diz em Aspectos do romance, o homo fictus é muito diferente do homem sapiens. O homo fictus não vai ao banheiro, não escova os dentes, não atende ao telefone, não paga a conta. A menos que seja fundamental para o enredo, o importante é o enredo, o homem que está dentro da ficção pode parecer demais com a vida real, mas ele já é outra coisa, ele foi extraído da vida real e posto num sistema interno de relações. Aquilo que era externo passa a ser interno. Por isso é que o romance é, ao mesmo tempo, tão parecido e tão diferente da vida real. Joyce, por exemplo, fez uma tentativa admirável de procura descrever a vida de um homem, do personagem dele, em certos momentos do dia, tudo, o que ele pensa, o que se passa na cabeça dele e isso acaba por um grande monólogo interior. É uma tentativa extraordinária, lindíssima, mas que é um caso extremo que ainda mostra como é que a Literatura se faz de seleção. Essa seleção, portanto, não corresponde à realidade, é uma coisa nova. No romance a pessoa tem que ter casa, mulher, filho, parente, ordenado, tudo aparece. Só que aparece de uma maneira composta completamente diferente pelo romancista (2013, p. 47, 48).

Tais considerações nos forçam a observar, particularmente, a literatura de Autran Dourado. Mais de uma vez, em seus estudos metaliterários, o autor afirmou que o enredo ―serve para distrair o leitor, enquanto lhe batemos a carteira‖ (1996, 35). Ele afirmava que a forma era o fundamental e não a história. O caso será retomado mais adiante, mas é salutar que elenquemos os pontos de força para a discussão futura. Autran Dourado, ao afirmar isso, considera que a Literatura deve ser feita por artesãos, ou seja, autores que conheçam a melhor maneira de construção de um romance. Por conta disso, seus romances negam a obrigatoriedade do enredo lógico e linear, por entender que dessa forma a literatura recai no entretenimento vazio e não produz um saber verdadeiramente consolidado. Além do que, a desimportância do enredo não significa ausência, mas a não intenção do desenrolar simplório da história, mas sim a

35 inserção de refinados elementos ficcionais. Autran reconhece que a forma é um elemento essencial para o valor humanizador da Literatura. A despeito de tudo isso, o autor é um exímio narrador, além de um firme contador de histórias, o que produz um efeito de despiste que ele almejava. Suas habilidades narrativas prestam-se, então, a esse propósito. Voltemos agora ao pensamento de Antonio Candido e no estudo de dois conceitos para a observação da Literatura como missão num sentido epistemológico. Na mesma entrevista, o crítico destaca que para o aspecto missionário foi fundamental à Literatura desenvolver o gosto na massa (gosto este tributário, segundo ele, ao Iluminismo), porque se passou a fazer da Literatura um bem para o grupo e não para o indivíduo. Já para o sentido epistemológico, Candido diz que ele se dá tanto pela forma quanto pela mensagem, explicando que

a grande função social da Literatura e o grande efeito humanizador que ela exerce, exerce tanto pela forma quanto pela mensagem. Porque, geralmente, nós pensamos que o impacto da Literatura é a mensagem. Se eu leio um romance, um romance kitsch, por exemplo, em que, vamos supor, a bondade é descrita de maneira convincente, aquela romance é um romance que procura me transmitir uma mensagem: as pessoas devem ser boas. Mas não é isso que faz o efeito fundamental da Literatura, isso pode ser feito de qualquer maneira, é o modo pelo qual o escritor faz isso. Então, o importante é que a Literatura estabelece em nosso espírito um reflexo da ordem que o autor escrever. Porque o mundo para nós é uma espécie de caos. Literariamente, o mundo antes da Literatura é uma espécie de caos (...). Quando eu formalizo, é a formalização que humaniza (...). Por isso é que eu o digo em Literatura e Sociedade, o estudo social deve ser feito através do formal, e não o contrário (...) (2013. p.71,72).

E finalmente conclui que é preciso

Uma preocupação teórica para impedir que nós queiramos dizer que a Literatura tem valor na medida em que ela reflete um aspecto da sociedade ou que ela tem uma grande função educacional; ela tem uma grande função educacional e reflete um aspecto da sociedade na medida em que ela é independente delas e é forma literária (2013. p.74).

Com todos os elementos teóricos expostos, e o panorama crítico bem alicerçado, nossa intenção agora é demonstrar em Autran Dourado e Adonias Filho suas contribuições analíticas como forma de compreender as relações com a construção de suas obras. Se já partimos da ideia de que haverá neles o conceito de absorção e renovação do passado para desenvolverem uma obra inédita, ainda que recuperem

36 alguns traços de antanho, também vemos que a crítica pode servir como constatação de modelo negativo, ou seja, no reconhecimento das dificuldades do outro se pode criar algo inédito. Partamos então para as análises.

3) As críticas de Autran Dourado e Adonias Filho

3.1) Autran Dourado Uma coisa latente na Literatura Brasileira é a raridade de autores que empregam um método crítico no que tange ao seu próprio24 fazer poético. Talvez procedam assim ou porque guardem ainda a ideia do culto do gênio25 (o qual tende a manter a obra num etéreo espaço que não se poderia abrir aos não iniciados) ou porque queriam evitar a prática narcisística. É curioso, no entanto, pensar que o trabalho crítico de um autor sobre a sua própria obra poderia abrir muitos espaços mais produtivos de exegese. É claro que fica sempre a questão: se quando termina de escrever o autor passa a ser mais um leitor, falar, então, sobre a obra não é escrever novamente? Pelo sim ou pelo não, tal atitude sempre propicia novos momentos de interpretação, porque o autor traz à tona determinadas análises que direcionam o método investigativo, ainda que ao crítico não seja vedada a anuência ou a divergência. Se na poesia normalmente nos lembramos disso em Carlos Drummond, em ―Legado‖, em Manuel Bandeira, em ―Itinerário de Pasárgada‖, ou de quase toda a obra de João Cabral (em que a metalinguagem se torna fundamental à compreensão do sentido do texto e do processo criativo), e se na prosa, vemos um Alencar, em Como e por que sou romancista, ou um satírico Mário de Andrade em Macunaíma, no capítulo ―Carta para icamiabas‖, em Autran Dourado isso é exponencialmente radicalizado, pois sua ars poética é matéria

24 Considerações acerca dessa condição são trazidas por Acízelo no ensaio ―A crítica literária no Brasil oitocentista:um panorama, encontrado na obra: Crítica literária brasileira: um panorama. Aqui, o autor demonstra que o processo metacrítico, tão proclamada no Romantismo, nasceu da necessidades que os artistas tinham de se explicar para um público. Acreditavam eles serem incompreendidos sem os prefácios e advertências. Julgando-se, assim, notadamente idiossincráticos eram, na verdade, coletivos, com a assimilação da modernidade romântica. A partir de 1880, essas ideias formais se extinguem e migram para a própria poesia crítica, mais sofisticada, mesmo no que tange à critérios estruturais‖. (2013. p.16 e 17). 25 Autran Dourado em depoimento prestado na faculdade de Letras da UFMG em 1992 aborda um traço que se não é o mesmo que o culto do gênio (herança direta do romantismo) traduz ainda uma perspectiva interessante sobre como se vê o ofício. Assim ele afirma: ―O Brasil cultiva vários mitos, entre eles o do escritor ignorante. Numa dessas minhas peregrinações por faculdades e colégios, um aluno me perguntou se eu achava que a cultura atrapalha o romancista. Fiquei muito impressionado com a pergunta e não sei mais o que respondi‖.

37 tanto de ensaios (Breve Manual de Estilo, O meu mestre imaginário e Poética do Romance: Matéria de Carpintaria,) quanto dos romances analíticos (Um Artista Aprendiz, A Serviço Del-Rei) e da biografia (Gaiola Aberta). E, se ele nos ensina algo sobre a formação de sua obra, isto é a unidade. Unidade, não repetição. A unidade é claramente observada num plano mais imediato, pois a argamassa está assentada em todos os níveis: temático, geográfico e estrutural. Já a não repetição se observa de forma mais sutil, visto que ela se mostra no estilo individual de cada romance. Ou seja, outrando-se o autor se despersonaliza e passa a favorecer a voz do texto como voz de maior destaque. Como cada um possui suas próprias idiossincrasias, fica-se diante de uma grande ópera, polifônica.

Há muito tempo cheguei à conclusão de que a frase de Buffon ―O estilo é o homem‖ não é correta; o estilo é a matéria, é o assunto. Assim eu não devia então buscar um estilo, o estilo Autran Dourado, que seria uma consequência. Devia buscar uma unidade a mais diversificada possível, de tal maneira que cada obra minha tivesse uma forma, uma técnica, um estilo, uma poética, um jeito de ser diferente. Cada romance pediria a sua forma: para usar uma expressão platônica: ―como a substância busca a forma‖ (1996, p.34) 26.

Essa unidade, portanto, advém por todos os lados de sua obra. O mais recorrente e explícito desse processo se vê no ―traço obsessivo do autor na reconstrução da sua própria narrativa‖ 27 (2008: p.09), que se traduz na recorrência de personagens entre as obras. Em nosso estudo sobre os traços trágicos, iremos explorar um pouco mais esse conceito. ** Para, então, compreendermos com clareza os mecanismos críticos de Autran Dourado, é fundamental que reconheçamos que sua análise passa tanto pela plasmação artística do universo realista, num sentido (auto) biográfico como por questões de teorização essencial. Tal plasmação ocorre em A serviço-del Rei, Um Artista Aprendiz e O Novelário de Donga Novais. Naquele romance, narram-se os bastidores da política brasileira. Na seara de As cartas chilenas, de Gonzaga, Autran Dourado ficcionaliza nesse texto os

26 O depoimento aos alunos de pós graduação da UFMG encontra-se no livro Autran Dourado, organizado por Eneida Maria de Souza. 27 Em 2008, na tese de doutorado Autran Dourado em romance puxa romance ou a ficção recorrente, Leonor da Costa Santos faz um interessante estudo sobre a intratextualidade dos personagens autranianos, verificando que esse método dialógico se inicia no século XIX, com Balzac.

38 anos que serviu como assessor de imprensa do então presidente Juscelino Kubitschek. O ponto de interesse nessa discussão associa-se diretamente à obra Gaiola aberta, memórias que dão conta da narração do mesmo período histórico. Num diálogo entre as duas obras, estão presentes a podridão política, o jogo de interesses, a literatura que deveria servir ao poder a fim de propiciar ao escritor a possibilidade de escrever. O que os difere e o que os aproxima é a presença de um narrador que se converte como personagem de si mesmo, por isso não se deve crer que, nesse jogo de espelhos de Velásquez, a verdade seja indiscutível. Focado em cima de memórias e ficção, a realidade é uma, mas não o res, necessariamente, pois sempre advém da percepção do mediador. Dessa forma, Autran Dourado de Gaiola Aberta é o alter-ego de Autran Dourado autor, tal qual o é o João da Fonseca Nogueira de A serviço del-rei. Seguindo a mesma linha de uma teorização narrativa a partir da narração ficcional, Um Artista Aprendiz e O Novelário de Donga Novais são romances, digamos, de formação e complementação. Se no primeiro, o alter-ego João Nogueira percorre a travessia literária por que passou Autran, desde seus primeiros estudos de filosofia, seu contato com os escritores portugueses e depois com os grandes artesãos da literatura mundial, como Baudelaire; no segundo livro, toca-se em ponto, digamos, menos iluminativos da caminhada, pois a obra de Autran que revelaria as próprias fraquezas como escritor. Donga Novais é homem detentor de um saber antigório de sua região que vive entre o tempo passado, presente e futuro contanto e recontando, contanto e recriando as histórias: ―Só inventando outro tempo de verbo que seja mais que passado e imperfeito, um passado-presente, um eterno presente-futuro, sempre o mesmo, no entanto, se refazendo, como um rio, um novelo‖ (1976, p.7). Em depoimento a alunos de pós-graduação da UFMG, Autran afirma que o fracasso é a combustão que o alimenta como escritor, pois que lhe dá a sensação de ter algo a terminar. E será isso o ponto nevrálgico para que atinja suas mais complexas teorizações:

O livro narra e, ao mesmo tempo, conta como está narrando. É um livro muito bonito em relação à minha obra. É pequenininho, mas mostra, em recorrência, os vários temas que venho tratando. É como se fosse a minha costura, o meu bordado. É através dele que eu espero encontrar não o leitor ideal ou o leitor de um ou dois romances meus, mas o leitor que já me tenha lido todo. O Novelário vem, sobretudo, unir e dar uma expressão de toda a minha narrativa. É uma suma de tudo que diz que eu procurei fazer e mesmo do que fracassei. É assim

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que eu gostaria que ele fosse lido. Mesmo o fracasso, repito. Na sua completude, todo escritor fracassa, e é por isso que ele parte para outro livro. Se eu não fracasse, se eu fizesse um livro perfeito, eu pararia (Grifos nossos. 1996. p. 50).

O segundo mecanismo crítico empregado por Autran Dourado é de teorização – digamos – essencial. Isso porque quando os expoentes artísticos parecem se demonstrar afastados, na verdade, ao se corporificarem em forma literária, viram estilo e enredo e nesse ponto pode o autor manuseá-los de modo mais concreto (e completo). A partir disso, o autor, ser ardiloso nos caminhos da prosa, vale-se de um recurso, sobre o qual se pronuncia Autran: ―mas o enredo continua sendo o que sempre foi: uma maneira de manter presa a atenção do leitor. Serve para distrair o leitor, enquanto lhe batemos a carteira‖ 28. E se para ele literatura é ―pensamento e linguagem‖ 29, a arte poética deve se constituir tanto de inventividade como de uma forma única que dê conta da demonstração dessa inventividade. Diante disso, o leitor reconhece na obra de arte não o encadeamento lógico de ações, mas sim a verdade da epistemologia artística e, consequentemente, retira um saber literário. Sendo assim, os limites entre romance e crítica literária são sempre muito tênues. É o que vemos no tom conversador do professor imaginário, Erasmo Rangel, que tantas vezes parece com a voz, mais madura, porém, da que ecoa em Matéria de Carpintaria. Quer dizer, Autran Dourado é autor, mas converte-se em personagem de si mesmo na constituição das obras: ―um autor só é autor no momento exato em que escreve, depois, passa a ser um leitor a mais de sua própria obra‖ (2005, p.22), diria, quem sabe, Erasmo Rangel, em O Meu Mestre Imaginário. Assim, os ensaios essencialmente críticos são Uma poética do romance: matéria de carpintaria (1976), O meu mestre imaginário (1982) e Breve Manual de estilo e romance (2003). Uma poética do romance: matéria de carpintaria é o fruto colhido de um curso oferecido na PUC/RJ como escritor visitante aos alunos de Letras. O valor do livro se explicita por conta de suas condições fundamentais. Na primeira parte, o autor fala sobre as estruturas dos grandes romances universais, com foco predominante para a estruturação de seus principais componentes, como a falsa 3ª pessoa, a narrativa e

28 Eneida de Souza, 1996, p,35. 29 Idem, p,36.

40 blocos, a presença do personagem30, assim como as próprias semelhantes e dessemelhanças de seu estilo com os de outros grandes autores. Na segunda parte da obra, ressoa a parte que, linhas acima, apontamos como elemento de singularidade na obra de Autran: a explanação sobre a ―planta baixa‖ de suas obras, ou seja, a explicação e o desenvolvimento sobre o modus operandi de seus romances. Aqui, o autor não se furta de desenvolver a estrutura de Ópera dos Mortos, A barca dos homens, Uma vida em segredo e Os Sinos da Agonia. Em O Meu Mestre Imaginário, a composição de Autran Dourado assume forma nova, lembrando alguns aforismos de Schlegel e Goethe em seus diálogos e reflexões, respectivamente. Nesta obra, Autran filia o mestre Erasmo Rangel (de essência fundamentalmente eidética) ao escritor Godofredo Rangel, grande contribuidor do início literário de Autran, ainda em Minas Gerais. Pantemporal (tal qual Donga Novais), Erasmo iniciara Autran na filosofia, na Literatura e no amor pelos clássicos, de modo que sua voz ecoará sempre em conjunto à mente do escritor. Em forma de máximas e pensamentos, esse livro traz várias reflexões sobre os conceitos de teoria literária, como os mitos, o logos, a distinção entre matéria e forma, o papel do escritor, além de mostrar autores que compartilham aquilo que ele chama de família literária, na qual irmana Joyce, Flaubert, Faulkner31, artistas artesãos. Na obra literária, o artesanato está, exatamente, no cuidado com as formas simétricas (prazer do escritor), sob as quais a clareza (prazer do leitor) assenta, ainda que desenvolvendo, sub-repticiamente, um monstro do labirinto, ou melhor, algo que não se percebe explicitamente: ―nada é igual na aparência, mas tudo se justifica‖ (2005, p.37). Breve Manual de Estilo e Romance, finalmente, é o último livro de ensaio de Autran Dourado. Aqui suas teorizações tornam-se senão mais cristalinas, mais robustecidas, visto que é quando o autor emprega de forma bastante direta suas perspectivas sobre a arte literária, sobre o papel emancipador da Literatura, sobre como deve se escrever. Aponta também que a escrita nada tem a ver com o culto do gênio romântico, para quem a inspiração era preponderante para o ato criativo. Autran, por via oposta, mostra que somente o burilamento da palavra poderá ser eficaz na construção de

30 Sobre os elementos ficcionais utilizados por Autran Dourado (e Adonias Filho) dedicaremos um capítulo para maiores explanações. 31 Ainda no discurso proferido na UFMG, Autran lembra a respeito da tradução de seu livro na França. Na ocasião, o editor afirmara que, tendo o Faulkner, não haveria a necessidade de mais um. Autran confirma as semelhanças com o americano e, com isso, demonstra os pontos que se são parecidos não são idênticos. Os editores, por fim, acabam por publicá-lo. 41 um texto verdadeiramente artístico. Nesse livro, o narrador autraniano, de forma despojada, conversa com o leitor, embora se sinta, seguramente, aquele tom barroco, de uma fala que se ajusta à escrita (ou a escrita à fala). Para nosso estudo, é importante destacar o valor que Autran Dourado dedicava aos gregos: ―procure imitar os gregos, que diziam da maneira mais simples e concreta as coisas mais profundas; ao contrário dos modernos, que dizem as coisas mais banais da maneira mais rebuscada e fluida‖(2003: p.09). Tal destaque de deve ao fato de o autor passar toda a sua vida buscando aperfeiçoar a sua escrita, talhá-la de modo a construir uma obra grandiosa (como realmente o fez). Contudo, assim como a fortuna grega, todo o legado literário que obteve não o fez ser um exaltado estéril no que se refere ao passado clássico, mas um autor capaz de recuperar os conceitos epistemológicos fundamentais na construção de um estilo próprio. Isso porque, para ele, ―os clássicos têm esta utilidade: estão sempre à nossa espera, são nossos eternos contemporâneos‖ (2003, p.58). Sendo nossos contemporâneos, dão a inspiração, mas não se dão à imitação gratuita e simplória. Se a Literatura, a grande Literatura é, assim, uma humanização, como disse algures Antonio Candido, o homem é então o estilo.

3.2) Adonias Filho

Na construção de uma fortuna literária, há alguns tipos de autores: aqueles que se dedicam unicamente ao seu ofício literário, como Clarice Lispector, aqueles que também se dedicam ao estudo de sua obra, como Autran Dourado e aqueles que analisando o contexto em que se inserem, refletem sobre ele e literariamente o transcende, tornando-se muitas vezes seu maior expoente, não em termos mercadológicos, ao menos em termos qualitativos (o único que assegura continuidade sólida no universo cultural). Neste último estágio, situamos Adonias Filho. Assim, no processo de compreensão das estratégias literárias de um romancista, vários caminhos podem levar a realização desse intento. É possível somente a leitura de sua obra; é possível o diálogo com outros críticos, e é possível até mesmo entrevistas e conversas com o escritor. Os métodos, aliás, na medida do possível, devem ser somados e não excluídos para que a análise se mostre completa. No caso específico de Adonias Filho, podemos extrair o modus operandi a partir de outros métodos: a leitura de suas críticas literária e ensaios, para que assim, da leitura que ele faz de seus colegas de ofício, enxerguemos o moto formador de sua personalidade artística.

42

Em Modernos Ficcionistas Brasileiros, ensaio de 1965, Adonias Filho aponta sua concepção literária, ao afirmar, por exemplo, que ―o conteúdo temático não justificaria (a ficção) como literatura‖. Nesse estudo, sua análise se concentra no chamado ―regionalismo‖ e na ficção documentária, sobre os quais escrevem os autores que produziram a partir da década de 30. Adonias faz, então, uma retrospectiva das principais transformações sentida pela literatura brasileira pós geração heroica do modernismo e sua paulatina, mas assentada independência:

Após a libertação linguística, que marcará para sempre o modernismo como um movimento literário de interesse culturalmente histórico, e sem que se desvinculasse da linha documentária, pôde a ficção – e já a ficção moderna, porque a partir de 1930 coincidindo com a revolução militar e política – renascer, em sua afirmação artística dentro do complexo social brasileiro‖ (1965, p. 08).

Analisando as obras de Luís Lopes Coelho, , Érico Veríssimo, , entre outros, o crítico discute sobre de que forma a realidade social se transforma em matéria literária. Indo além nesse conceito, afirma que o fato de se ter uma literatura, em algum grau, documentária, não se anula necessariamente a legitimidade da ficção literária:

O documento, porém, que sempre acompanhou o romance, o conto e o teatro no drama ou na comédia (sobretudo ), não anula a legitimidade da ficção como provam José de Alencar, Aluízio de Azevedo e Lima Barreto. Os dados literários, principalmente os de inflexão estilísticas, se vingam na ‗literatura de não ficção‘ – a crônica, a biografia e o memorialismo –, não têm como omitir-se nos gêneros ficcionais. Esses dados se extravasam, são componentes, situam-se como linguagem, atmosfera, personagem e episódio. Os ficcionistas (...) articulam-se com o fundo brasileiro da ficção sem que comprometam sua própria experiência literária (1965, p.8).

O empenho de construção ensaística também ganha forte relevo em O Romance Brasileiro de 30. Estudando 12 autores sobre os mais diferentes matizes, contempla as inclinações da geografia cacaueira de Jorge Amado, passando tanto pelas paragens sulistas de Érico Veríssimo como o romance urbano de Marques Rabelo e José Geraldo de Oliveira. Destacam-se também as análises sobre romancistas, digamos intimistas, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e Octávio de Faria. O próprio Adonias Filho, a seu turno, irá compor em O Largo da Palma uma obra novelística com intimismo de rara

43 sensibilidade. Nesta obra, Adonias Filho segue uma tradição literária distinta daquela pela qual normalmente é conhecido, já que a delicadeza será o ponto mais alto. Ocorrendo no Largo da Palma, em Salvador, as histórias se interligam não só pelo espaço, mas também pela recuperação de referências que pululam ao longo das narrativas (como quando menciona a lojinha de pãezinhos de queijo, o Mercado Modelo, a pequena Igreja) favorecendo a percepção (quase impressionista) de um espaço plural que se mostra, entretanto, uno. O Largo é o protagonista e o agregador; o palco onde ocorrem os dramas humanos. Sua localização temporal, no decorrer das tramas, é sempre sugerida, ainda que o ano de 1989 (que aparece somente no último conto) pareça ser uma data inicial acertada: ―A casa não guardou o dia exato em que ele chegou, o primeiro morador. Não esqueceu o ano, porém, porque precisamente o da proclamação da República‖ (1981, p. 94). O lirismo é outro ponto patente em todas as novelas. Em ―A Moça dos pãezinhos de queijo‖,por exemplo, percebemos o poder de transformação que o amor gera num jovem casal. Descobrindo-se na recíproca dependência espiritual, eles não vencem somente as barreiras de suas limitações físicas (o garoto era mudo), mas também a opressão familiar, no propósito de ficarem juntos. O amor, a entrega e a densidade do sentimento são as colunas capazes de operar milagres, como devolver a voz ao rapaz. Na construção artística, o flashback não irá somente retornar a um evento para que se dê o esclarecimento de uma consequência que ora se observa; antes, remontará aos dramas existenciais, os quais explicam o enredo e dão significado às ações, pois os atos obedecem a uma motivação interior do personagem. É o que ocorre em ―O Largo de Branco‖ e em ―Um avô muito velho‖. No primeiro, a personagem Eliane relembra a vida que viveu com seu primeiro marido, cuja fidelidade do amor persiste por mais de vinte anos (mesmo quando ela o abandona e se casa com outro homem). No segundo, narra-se a história de Loio, que presencia o sofrimento da neta, a qual tinha sido estuprada. Tomada de extrema desolação, ele resolve dirimir-lhe a dor por meio da eutanásia. Nessas duas novelas, a recuperação do passado tem como objetivo primeiro a presentificação das emoções. De forma geral, em O Largo da Palma, a vida se mostra sempre a partir da subjetividade de seus personagens. Na obra, mais do que uma simples correlação de eventos, haverá uma correlação de paixões. No tocante aos ensaios, Adonias volta à sua tese do documentário como forte elemento de construção da literatura brasileira, particularmente a que eclodiu da

44 primeira metade do século XIX até meados do século passado. Nessa análise sobre a condição social em relação ao constructo literário, Adonias recuperara o sentido artístico que se não se curva aos imperativos exteriores à obra e também deles não prescinde. É o que diz em O Romance Brasileiro de 30.

Mas, se submerso no brasiliano como acervo poderoso e repositório indispensável, o romance é sobretudo novelística – e, portanto, autêntica literatura – porque os romancistas não sacrificam os componentes (a atmosfera, a problemática, a ação episódica, a caracterização da personagem) ao depoimento mesmo como expressão social e humana. A infra-estrutura literária é maior que a estrutura documentária. (Grifos nossos. 1969, p. 13).

Dessa forma, o objetivo no todo é apenas um: demonstrar a heterogeneidade de autores que – contemporâneos – não fogem à condição de similitude ou mesmo de aproximação em sua verve documentária dos elementos extra-literários. Como um estudo mais aprofundado, Adonias debruça-se na poesia de Cornélio Pena. Publicado no ano de 1960 pela editora Agir, o estudo aponta os eventos históricos que circunscreveram a vida de Cornélio. Adonias, se percebe a história como fato constitutivo da sociedade humana, não delega a ela todas as responsabilidades pela construção anímica do ser. Assim, dos traços históricos, ele retira as correntes artístico- literárias que irromperam na Europa e depois no Brasil, particularmente no início do século XX, quando as correntes modernistas propuseram profundas transformações linguísticas.. A literatura, como o sabemos, não é uma mimese opaca do real, mas sua transformação e na pena dos grandes escritores sua extrapolação. Cônscio desse papel modificador, Adonias aponta na obra de Cornélio a característica de precursor do intimismo pós-guerra no Brasil. Ele chega a afirmar que ―todos esses acontecimentos, de interesse humano e que por isso mesmo repercutiam em sua formação, marcariam de tal modo Cornélio Pena que, muito depois, se refletiriam em sua obra de romancista‖ (1960, p.7) Há aqui o importante traço de transformação do material histórico em material literário, mas não sem antes a presença da poeticidade do escritor, como nos mostra seu lado intimista que revela a consciência subjetiva do narrador consubstanciado ao pioneirismo existencialista.

Esses dados sociais de mudança, que se movem entre as duas guerras, e que vão interferir no comportamento estético da arte – sobretudo da poesia e da ficção –, não conseguirão penetrar na

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auscultação que Cornélio Pena realiza. Visando a criatura, e no extremo mesmo de sua condição, é intemporal no sentido em que a projeta como ser contemporâneo de todos os tempos (1960, p. 8).

Em Adonias Filho, essa manipulação do real é bastante significativa e não deve nunca ser confundida como uma mímesis do real. Quando nos deparamos com a obra O Forte, somos convidados a acompanhar o desenrolar de um drama humano que é simbolizado com a imagem de um forte, cuja destruição causada por uma guerra na região irá selar o destino dos personagens. A indeterminação dessa guerra, o espaço baiano que se por um lado é marcado geograficamente poderia também representar o mundo todo, mostra a transfiguração da realidade. Ela existe e se desenha como perímetro para os personagens, mas não os determina e nem os impulsiona a agir de modo distinto do que bradam suas consciências. Um escritor também só aprende com grandes artesãos, como dizia Autran Dourado. Se só se aprende o ofício com os maiores, há esse traço de força em Cornélio Pena que pode, em algum grau, ter influenciado a escrita de Adonias Filho. E é o domínio da técnica e do artesanato narrativo que levará o crítico a reconhecer os elementos constitutivos da escrita de Cornélio Pena.

A linguagem, embora significativa em si mesma – e, sobretudo, porque afirma o escritor no poder da expressão artística –, não conseguiria impor o romancista se este não dispusesse de meios para executar os romances no sentido do enquadramento técnico. O escritor de formação clássica, no círculo da construção, surgiria como um ‗arquiteto do romance‘. Em todos os romances, apesar da narrativa linear que se hipertrofia em A Menina Morta, logo se encontra o projetista que não permite ao ficcionista possa falhar nos elementos fundamentais. É incensurável, no fundo da carpintaria tradicional, a correlação desses elementos: matéria ficcional e episódios, personagens e aço, cenários e situações. Os romances, no extremo, se oferecem como quadros plásticos (1960, p.11).

E são os traços de mergulho anímico que se consorciam à representação formal que o romance de Cornélio Pena não fica nem memorialista e nem formalista (ou mesmo preciosista). É a essa desconstrução da arquitetura da obra que se vemos em Cornélio podemos enxergar também em Adonias, de maneira a consorciar o domínio da técnica de A Menina Morta, Fronteira, Repouso, Dois romances de Nico Horta do primeiro com os procedimentos estéticos do segundo, em Os Servos da Morte:

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(....) o enquadramento técnico é incensurável. É a sua realização o que surpreende. E, se surpreende, é porque o romancista Cornélio Pena, precisamente a trabalhar uma problemática subjetiva e complexa, movimenta o mais desordenado dos mundos que é o das paixões humanas. Atingindo-as em densidade, fazendo-as emergir do coração e da consciência, dos sentidos e dos instintos, levando, por vezes, a inteligência ao extremo da especulação, seria natural que não pudesse contê-las na força do extravasamento. Mas dominando-as para entrosá-las nos romances em uma conversão ficcional, o romancista não provou apenas ser capaz de realizar o enquadramento plástico de valores inobjetivos. Associava seu poder imaginativo – a sua imaginação de romancista – ao enquadramento quando, limitando as margens das tramas, submetia os romances ao espaço exato. É decisiva, na cobertura técnica, essa percepção do espaço (1960, p. 12).

O que a leitura dessa análise de Adonias Filho mostra é um diálogo entre os dois autores em certo procedimento estético que é o mergulho na interioridade anímica do personagem. Contudo, mais do que um mergulho que se mostre meramente intimista, isso revelará a condição de sujeito a partir da emersão das angústias essenciais. Para Cornélio Pena e Adonias Filho, a Literatura só é verdadeiramente significativa quando faz emergir os dramas da existência humana. Em Tasso da Silveira e o tema da poesia eterna, Adonias Filho se debruça num ensaio sobre o poeta de Fio d´Água, de 1918. Num trabalho exegético em que o crítico reverencia o poeta manifestando uma linguagem que se compagina ao etéreo, ao sugestivo e ao espiritual (tão próprios da poesia de Tasso da Silveira), o ensaísta vai revelando, pouco a pouco, que o trabalho artístico se perpetua no eterno por ter uma construção fundamentalmente ontológica.

O trabalho de pensamento, manifestação restrita à pessoa, atuando como energia ontológica, liga-se ao eterno. Funde-se no eterno, é verdade, porque nasce na criatura como uma explosão ética, afirmando um princípio de santidade. Faz-se, por isso, entre as fronteiras do espírito, uma realidade de face intencionalmente moral (1940, p. 5).

Reconhecendo a construção dicotômica de Tasso da Silveira, Adonias enxerga na construção dual um objetivo perscrutador das paixões anímicas:

A poesia de Tasso da Silveira é uma poesia que discute, e perquire, e protesta. Que examina paixões, as terríveis paixões concernentes à edenização do ser. Agita-se, entre a humildade e o orgulho, entre o humano e o místico, mas agita-se como uma crise, sempre uma crise de impulsividade contraditórias. Mansa por vezes, ingênua de simplicidade, falando parábolas, é quase um capítulo evangélico. Por vezes é complexa, de percepção obscura, de miragem satânica. A poesia de Tasso da Silveira é assim (1940, p. 12-13).

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Ponto curioso na sua formação ensaística é, sem dúvida, a escolha de seu corpus. Se os autores estudados se distanciam um dos outro, paradoxalmente se reúnem a partir de um ponto que, caso olhado muito rapidamente, não se delineia: a construção crítica do ensaísta. Digamos de outra forma, estudando autores que possuem aproximações temáticas ou ideológicas, Adonias Filho mostra na crítica a sua própria produção. É claro que uma breve leitura entre Jorge Amado e Tasso da Silveira não nos faria observar semelhanças dignas de estudo comparativo, mas quando entra em cena o olhar de Adonias, observa-se que o traço social do primeiro que se manifesta em arquitetura literária somado às contradições espirituais da poesia de Tasso da Silveira unem-se em conflito harmônico, ou dialetismo conflituoso não na crítica literária de Adonias, mas em sua narrativa. Não observamos, porém, o processo seletivo que mencionamos acima como falta de capacidade crítica, mas um processo ideológico e estilístico que se aponta desde os seus primeiros anos de produção artístico-intetelectual. Mas onde se pode observar esse fato? Em Jornal de um escritor, Adonias reúne, em publicação do Ministério da Educação e Cultura, apontamentos publicados em mídia impressa sobre os mais diversos autores estrangeiros. Passando por Rousseau, Kafka e Wassermann, o autor analisa os elementos que constituem o saber literário observando, não raro, os estatutos formais de composição estrutural. Assim, afirma que em sua leitura sobre Cervantes, coloca-se como ―uma aluno interessado em apreender (...) o mecanismo da aventura‖ (1954, p. 5). Quando estuda os procedimentos experimentalistas tão em voga a partir do modernismo, defende a ideia de que a poesia não deve prescindir da linguagem, uma vez que ―ao contrário do pintor e do escultor que visualizam a forma e dispõem naturalmente da cor e do relevo, o poeta conta apenas com um veículo de expressão que é a linguagem‖(1954, p.7) E continuando sua análise, diz que ―deformando esse instrumento, impedindo-o de organizar em conceitos as noções abstratas (...) anulou-se poesia como valor racional (1954, p.7). Sua construção crítica, assim, não se limita a um estudo superficial de autores a partir de uma zona de conforto intelectual, antes é a consequência de um saber maduro e lapidado ao longo dos anos que reflete o conhecimento tanto dos meios para interpretar uma obra de arte como também da forma para se construir, no romance, obras-primas.

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Capítulo II – Material Literário

Após se demonstrar que a crítica literária foi o método utilizado por Adonias Filho e Autran Dourado para não serem soterrados pela pródiga potência grega, o nosso próximo passo é apresentar de que maneira seus romances executam essa empresa. Tal apresentação se faz importante, porque a arte grega a que recorremos vinha em forma de teatro. Sendo o gênero teatrológico distinto do romancesco, é importante mostrar como se deu a importância de recursos, estruturas e sentido (este último, fundamentalmente, o ponto de convergência a que chegaremos). De acordo, portanto, com nossa direção primordial, nosso estudo se assenta nas respectivas trilogias de cada um (Os Servos da Morte, Corpo Vivo e Memórias de Lázaro – de Adonias Filho; e Lucas Procópio, Um Cavalheiro de Antigamente e Ópera dos Mortos – de Autran Dourado). Cumpre também observar que a melhor exegese será mais proficiente a partir da análise do material literário de ambos os autores, fazendo os comentários mais particulares quando as circunstâncias assim se fizerem necessárias, visto que dedicaremos um capítulo para cada autor, onde as idiossincrasias do estilo ocuparão maiores espaços.

Introdução A primeira etapa sobre a qual devemos alicerçar nosso estudo reside na condição essencial do que é drama. Drama, em análise etimológica, significa ação. É preciso, pois, entender que essa ação se refere ao dinamismo que faculta uma força anímica dos personagens e não uma consecutividade lógica de situações que engendram conflitos: isso é enredo. Sábato Magaldi, em Iniciação ao teatro, citando Gouhier lembra que ―a ação é, pois, um esquema dinâmico com personagens que tendem a ser encenadas, vida e representação estando dirigidas num certo sentido‖ (1985, p.17), já ao se referir a enredo, diz que este é o responsável pela possibilidade de realização do conflito, cujos obstáculos deverão ser vencidos, assim: ―o enredo igualmente essencial à obra, opera a encarnação, para oferecer à ação à possibilidade de desenrola-ser num tempo datado, de exteriorizar-se num espaço habitável‖ (1985, p.17). A partir daqui, sigamos ainda um pouco mais com as considerações de Sábato Magaldi, para tatearmos os conceitos que começamos (ainda que superficialmente) a desvelar. Bom, sabemos que as análises textuais tendem, num primeiro momento, a

49 observar os gêneros textuais buscando uma cultuada pureza estilística, como se as marcas de outros gêneros não se lhe imiscuíssem na forja. Assim, na interpretação de autores e obras, não raro, se tende, à força de martelada, a delimitação criativa partir da corrente em voga do pensamento. Essa tendência, contudo, assenta-se num erro, visto que as obras não são puras em si e nunca o foram, como já asseverou Aristóteles, em sua Poética: ―Quanto às partes constitutivas, umas são comuns à epopeia e à tragédia, outras são próprias dessa última. Por isso quem nessa última souber discernir o bom e o mau, sabê-lo-á também na epopeia. Todos os caracteres que a epopeia apresenta encontram-se na tragédia...‖(199-?, 246). A tragédia postulada fundamentalmente pelos exemplos dos três grandes tragediógrafos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, assentar-se-á, a partir disso, numa dualidade interpretativa32, que representa aqui o diálogo de gêneros e sentidos. Se para Aristóteles, ela seria a encenação daquilo que o homem tem de melhor (ao passo que na comédia seria aquilo que o homem tem de pior), Magaldi lembra que ainda Aristóteles, reconhecendo na tragédia elementos da epopeia, conclui que foi Homero ―o primeiro que traçou as linhas fundamentais da comédia (1985, p.18). Assim, para chegarmos à nossa ideia precípua da transformação dos elementos do drama no narrativo, citemos uma vez mais Sábato Magaldi:

Há quem negue a possibilidade da tragédia, no mundo moderno, porque a partir do cristianismo se desenvolveu a ideia do livre- arbítrio, incompatível com os postulados da religião grega. Como acreditar hoje em vontade superior dos deuses, regendo o destino humano? Os dramaturgos, atraídos pelo gênero trágico, procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria falha interior (1985, p.20).

É nesse contexto que assenta a atualidade trágica de Adonias Filho e Autran Dourado. Ela não está na forma, mas no sentido. A recuperação de alguns elementos teatrológicos indicam a miscelânea dos gêneros e não a absorção formal de todas as características. De posse dessas informações, alguns pontos crucias devem também ser trazidos à luz, a fim de que possamos aprofundar os conceitos da atualidade da tragédia. O primeiro deles é reconhecer qual recurso dialógico esses dois autores devem utilizar na construção do sentido. Após isso, é imperioso verificar o ponto nevrálgico que irá

32 Essa dualidade interpretativa reside apenas nas considerações desenvolvidas pelas linhas de raciocínio de Aristóteles e não cumpre, por ora, a visão nietzschiana das forças contrárias de Apolo e Dioniso.

50 distinguir os dois constructos que fazem parte, respectivamente, de cada gênero: o personagem. Num terceiro e último momento, deve-se mostrar como o conteúdo temático dos autores romperá com a definição regionalista, sob a qual foram em maior ou em menor grau colocados.

1) Recursos dialógicos Partamos com a investigação dos conceitos dialógicos, iniciando pelo estudo etimológico do vocábulo sinonímico intertextualidade, que ocorre na correlação entre dois ou mais textos em níveis formais e/ou conteudísticos. Em Introdução à linguística textual, Ingedore Koch preconiza que

a intertextualidade scricto sensu ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade ou da memória discursiva (domínio estendido da referência, cf. Garrod, 1985) dos interlocutores. A intertextualidade será explícita quando, no próprio texto, é feita menção à fonte de intertexto(...). Por outro lado, a intertextualidade será implícita quando se introduz no intertexto alheio, sem qualquer menção da fonte, com o objetivo quer de seguir-lhe a orientação argumentativa, quer de colocá-lo em questão, para ridicularizá-lo ou argumentar em sentido contrário (...) Em se tratando de intertextualidade implícita, o que ocorre, de maneira geral, é que o produtor do texto espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto, pela ativação do texto fonte em sua memória discursiva, visto que se tal não ocorrer, estará prejudicada construção do sentido, particularmente no caso de subversão (Grifos nossos. 2011, p.145-146).

A intertextualidade implícita, então, será a maneira mais eficaz de que se valerão as trilogias que ora estudamos para se corporificarem. No embate entre as forças apolíneas e dionisíacas, que traduzem a racionalidade e a harmonia em oposição paradoxalmente convergentemente à passionalidade e ao caos, a tragédia será fonte plural de conhecimento que não se redundará em apenas uma das forças formativas. Segundo Ronaldes de Melo e Souza,

a fim de encenar o drama dOs Servos da Morte, a arte narrativa de Adonias Filho se notabiliza pela inserção do mecanismo estrutural do enredo trágico na trama de efabulação romanesca. A interação dialética do rigor de composição e do vigor da paixão, que singulariza o drama trágico, comparece na estrutura arquitetônica da narrativa de Adonias Filho. (... ). Do diálogo intertextual com a tragédia grega, a que se reporta a apropriação romanesca do princípio arquitetônico da

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trilogia de Ésquilo, resulta a revolução estrutural a que o romancista submeteu a tradição do romance brasileiro (2001, p.?).

Autran Dourado, por sua vez, corporifica a estruturação trágica em sentido, a princípio, sub-reptício, que se põe em relevo à medida que o drama (e a trama) se desenvolve. Em Ópera dos Mortos, fica-se notória a preocupação de que a obra atinja os patamares do espetáculo teatral. Como ópera, os sentidos33 se pluralizam no espaço físico – entendido como teatro –, no discurso lírico, no aspecto etimológico de trabalho e na acepção de canto, dança e orquestra. Este último sentido, que aqui melhor nos interessa, resgata a concepções mais antigas, quando as correlações entre música e palavra se faziam fortemente antagônicas:

Com a tragédia clássica francesa, por exemplo, em que a palavra atingiu a perfeição do aproveitamento cênico, a música desapareceu do espetáculo. Data daí, por outro lado, o interesse crescente pela ópera, na qual a música praticamente ofusca a palavra. Alguns teóricos se satisfazem em cortejar a tragédia grega e a ópera, distinguindo-as pela predominância do elemento literário ou musical: na primeira, a hegemonia é da palavra, ao passo que na segunda o canto dispensa até o claro entendimento do discurso (1985, p.41).

Nesse sentido, Autran reúne em sua obra as características dos gêneros distintos, assim como fez (guardando as diferenças de método) Adonias Filho. Mas poderíamos dizer que no escritor de Um Cavalheiro de Antigamente a música ofusca a palavra? Não e sim. Não, se considerarmos o fato de que, quando o texto narrativo recupera parte das potências interpretativas do drama, ele além de ser lido pode ser declamado, garantindo, assim, a força do discurso oral. Sim, se levarmos em conta que o fenômeno do coro de vozes pode ser realizar de maneira diversa da simples possibilidade auditiva. Nesse ponto, a possibilidade de construção do sentido será dada pela pluralidade de vozes; não por um grupo de pessoas que falem em uníssono, mas vozes que representem individualidade e vitalidade, em suma, que representem as mundividências dos seres. Tal processo de mundividência só irá se realizar a contento se outro elemento dialógico ganhar força: a polifonia. Façamos, pois, mais algumas breves explicações sobre o conceito. De acordo com Koch, ―o conceito de polifonia (...) exige apenas que se representem, encenem (no sentido teatral), em dado texto, perspectivas ou pontos de

33 Em Romance de carpintaria, Autran Dourado elenca os significados de ópera que ele pretendeu atingir na intitulação do seu livro e consequentemente na construção do sentido (2000, p148).

52 vista de enunciadores diferentes‖(154, 2011). É o que se vê, por exemplo, em Corpo Vivo, quando Cajango foge com a mulher para a selva ou quando se ouve a descrição de Lucas Procópio, no livro homônimo. Ambas as narrativas trazem em seu enredo um conhecimento coletivo que se espargia nas regiões onde estavam os protagonistas. Tal conhecimento, porém, ladeia o saber narrativo do narrador, sem que, no entanto, nenhum dos dois se afirme como verdade única, visto que as duas verdades passam, agora, a serem válidas. Esse procedimento em que as vozes soam resguardando as potencialidades da individualidade dos personagens foi preconizado antes por Mikhail Bakhtin, em Problemas da Poética de Dostoiévski. Nessa obra, conceitua-se a polifonia:

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combina numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante (2008, p.5).

E o que se ganha com esse processo? Autonomia, independência e substância existencial. Sendo a literatura um correlato para a vida, não poderia ela amarrar as consciências e permitir que fossem suas experiências e raciocínios ditados, arbitrariamente, por um juízo ou um condutor maior, que seria o narrador. É preciso permitir que as capacidades humanas se desenvolvam de maneira própria facultando aos personagens colocarem-se como sujeitos de suas realidades. Especializando, então, os conceitos dialógicos a que estamos submetendo nosso texto, chegamos à conclusão de que a intertextualidade irá construir um sentido. Assim, Adonias e Autran precisam fazer com que seus discursos não sejam meros processos parafrásicos das antigas tragédias, onde eles foram buscar suas bases e (quem sabe não possamos dizer) suas inspirações. Já abordamos com vagar que foi a partir da crítica que eles não foram soterrados pelo legado grego. Por agora, estamos mostrando que, a partir da intertextualidade, os recursos passam a se imiscuir; e a obra, se perde uma pureza (se é que em alguma há ou houve), ganha em riqueza de tema, de sentido e de estrutura, já que pode veicular vários tipos de circunstâncias e condições do espírito.

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Para então seus discursos serem válidos, por conta da originalidade, é preciso que eles se assentem na absorção das semelhanças e na transmutação das diferenças. A semelhança faz parte do discurso parafrásico; a diferença, do parodístico. Dos dois, somente este último é capaz, pela veiculação das diversas vozes, de acionar o movimento, que levará a estilização e esta à apropriação (uma produção inédita) que, em último grau, dará a demonstração da diferença máxima, pois residem aí as condições idiossincráticas do autor. E quem ensina sobre essas circunstâncias do discurso dialógico é Affonso Romano de Sant‘Anna, em Paródia, paráfrase & Cia:

Do lado da ideologia dominante, a paráfrase é uma continuidade. Do lado da contra-ideologia, a paródia é uma descontinuidade. Assim como um texto não pode existir fora das ambivalências paradigmáticas e sintgmáticas, paráfrase e paródia se tocam num efeito de intertextualidade, que tem a estilização como ponto de contato. Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças. Enquanto a paráfrase é um discurso em repouso, e a estilização é a movimentação do discurso, a paródia é o discurso em progresso (2007. p.28).

É nesse aspecto de movimento, oriundo da estilização dramática consorciada à estruturação dos mecanismos trágicos, que as obras de Adonias Filho e Autran Dourado absorverão a realidade circundante (histórica ou presentificada) e transformarão, pelo estilo, em obra de arte. O autor congrega em sua inventividade as maiores capacidades criativas pela limitação34 de suas referências estruturais. Fruto de uma observação do mundo, a definição derradeira da realidade em personagens, cuja alma é um livro aberto para o criador, propicia maior clareza de suas nuances, dificuldades e de suas próprias existências. Em O Personagem de Ficção, Anatol Rosenfeld explica que

precisamente pela limitação da orações, as personagens têm maior coerência do que as pessoas reais, (...) maior exemplaridade, (...) maior significação; e paradoxalmente, também maior riqueza – não por serem mais ricas do que as pessoas reais, em virtude da

34 É preciso aqui lembrar os ensinamentos de Antonio Candido que assevera que a natureza limitada dos traços que configuram ao personagem profundidade deve dar a ideia, ou melhor, a ilusão de profundidade. ―Graças aos recursos de caracterização (isto é, os elementos que o romancista utiliza para descrever e definir a personagem, de maneira a que ela possa dar a impressão de vida, configurando-se ante o leitor), graças a tais recursos, o romancista é capaz de dar a impressão de um ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza; mas nós aprendemos, sobrevoamos essa riqueza, temos a personagem como um todo coeso ante a nossa imaginação (2011, p.59). 54

concentração, seleção, densidade e estilização do contexto imaginário, que reúne os fios dispersos e esfarrapados da realidade, num padrão firme e consistente (2011, p.35).

Se agora não é o momento oportuno de aprofundarmos tais considerações, nada nos impede de apontar para o procedimento onto-epistemológico na formação das obras que Adonias e Autran irão impetrar, exatamente por reconhecerem que, no momento em que se enxerga além da opacidade humana, se demonstra e se vê com clareza suas idiossincrasias, reconhecendo-se, portanto, a autonomia dos personagens que ora soam como seres vivos.

2) O personagem

O ponto nevrálgico de nossa discussão chega quando nos referimos ao personagem. A prevalência desse elemento dentro do texto não é somente por sua natureza ativa no corpus narrativo (sendo teatral ou romanesco), mas sim pela maneira que é executado e, a partir daí, desenvolvido. Bom, a primeira coisa, então, que temos que ter em vista é a diferença entre a apresentação do drama e do romance. Em linhas gerais, romance é mediação, ou seja, conta necessariamente com a presença de um narrador. Esse narrador assume em cada autor uma especificidade. Assim, o romance de tese do século XIX propaga um narrador científico e onisciente que procura impor uma ideologia. Já o narrador do século XX, quando produzido por autores menos tributários a uma visão impositiva dos aspectos literários, é menos condutor do que arquiteto. Quer dizer, este narrador é mais responsável pela organização dos elementos estruturais da narrativa (como os blocos temáticos da obra, os monólogos interiores, o fluxo de consciência, e demais organizações) do que pelo direcionamento arbitrário das perspectivas exegéticas da obra para o leitor. Não raro esse narrador deixa pontos em aberto ao longo da narrativa que deverá ser preenchido pelo próprio leitor no decorrer da trama. Devemos lembrar que, na mediação, o autor, de alguma maneira se consubstancia ao personagem ainda que, aparentemente, se afaste dele por critérios linguísticos, como a escolha da terceira pessoa. O que prova esse afastamento aparente é a utilização de referências dêiticas, que não poderiam soar se a linguagem fosse a de um historiador, porque, como professa Anatol Rosenfeld, ―advérbios de tempo (e em menor grau de lugar) como ―amanhã‖, ―hoje‖ (...) têm sentido somente a partir do ponto zero

55 do sistema de coordenadas espaço-temporal de quem está falando ou pensando‖ (2011. p.24). O crítico literário continua suas explicações, as quais transcrevemos abaixo:

O sintoma linguístico evidentemente só pode surgir no gênero épico (narrativo), porque é nele que o narrador em geral finge distinguir-se das personagens, ao passo que no gênero lírico e dramático, ou está identificado com o Eu do monólogo ou, aparentemente, ausente do mundo dramático das personagens. Assim, somente no gênero narrativo podem surgir formas de discurso ambíguas, projetadas ao mesmo tempo de duas perspectivas: a da personagem e a do narrador fictício. Mas a estrutura básica do discurso fictício parece ser a mesma também nos outros gêneros (Grifos nossos. 2011, p.25.).

O gênero épico (narrativo) não é um privilégio da prosa, afinal prosa e poesia se se distinguem pela forma, não se distinguem necessariamente pelo gênero com que possam ser utilizadas. O que na verdade deve ficar claro é que a polifonia reside essencialmente nesse gênero narrativo, pela possibilidade superior de veicular mais de uma interioridade anímica, concomitantemente. E mais, a partir desse processo, se desenrola a pesquisa da interioridade da vivência com a reflexão da consciência35. Nesse gênero ouve-se uma voz a mais, que é a do narrador ou ainda de um eu lírico. As possibilidade, então, de as vozes soarem juntas, ainda que devendo representar mundividências distintas, atesta a existência da polifonia. Tentemos demonstrar a potencialidade dessa confluência de recursos que trazem à tona o pensamento do personagem a partir de breve interpretação da obra O Forte, de Adonias Filho, pois, neste romance, o drama existencial alcança grande profundidade. Dando-se no sul da Bahia, o mote do texto reside na conturbada relação amorosa de Tibiti e Jairo. Focando essa relação, a narrativa vai costurando sutilmente, sob o plano principal, a vida de Olegário, o avô de Tibiti. O idoso é o responsável direto por vaticinar aos jovens que não resistiriam ao arrastamento o qual seriam submetidos e por predizer a Jairo que lhe será designada a aniquilação do Forte. Realizada a primeira parte do vaticínio, o jovem pressente a iminência da segunda. Não conseguindo se afastar de sua execução, Jairo constata a problemática envolvida em destruir o Forte. O lugar, personificando-se tanto na figura da mulher (que irá acrisolar o filho de Jairo dentro de si) quanto na do próprio idoso, o avô de Tibiti, idoso (que se reveste do mistério), resistia à realização de seu destino. Assim, Jairo sabia: destruir o forte era aniquilar aqueles que compartilhavam a essência do local. A

35 Esse conceito, também denominado de narrativa personativa, será mais bem desenvolvido à frente.

56 concretude do Forte, desse modo, se mostrava para ele não na realidade, mas na eteridade conciliatória das partes, que nunca se desenvolve na existência em si mesma. No que tange ao arcabouço textual, o romance O Forte é referência na produção de Adonias Filho, por conta da maturidade atingida no uso do recurso que o autor veio desenvolvendo: a introspecção psicológica. Tal introspecção se verifica no intenso lirismo concretizado não só no conteúdo como também na formação estrutural. Assim, para que se privilegiem as pulsões emocionais dos personagens, a linguagem deverá acompanhar a subjetividade imprecisa da qual se encharca o enredo. Os períodos curtos, criadores de uma imagem fotográfica (e não cinematográfica), por sua vez, contribuem para constituir uma narrativa cujo foco será o da descrição dinâmica:

As vozes dos cantadores com a música dos violões. Evocavam da Bahia e, em torno, a multidão quieta e silenciosa. As lâmpadas já acesas, as árvores encolhidas, mais noite de Salvador. O Terreiro de Jesus, naquela hora, era uma atração para ele. Ouvir os cantadores, escutá-los perdido na multidão, e andar em paz na grande liberdade. Guardava as palavras, vi os dedos nos violões, o negro agigantado sempre muito perto. Noites começaram assim: a multidão, ele e o negro, os cantadores (1973, p.13).

A coordenação das frases nominais amplia o tom épico da trama, da mesma maneira que pospor o adjetivo destaca a qualificação do substantivo: ―Largos são os passeios que o rodeiam e neles a multidão passa durante o dia...‖(Grifos nossos. 1973,p.15). Tal processo qualificatório também ocorre, em outro grau, quando, no entrecortar do fluxo sintático, se inserem estruturas adverbiais de natureza adjetiva, para se criar uma descrição realizada pelo encadeamento de sintagmas nominais:

As palavras, fossem pássaros, não voariam tanto. ‗Vêm para o assalto!‘ A cidade alerta, naquela hora da tarde, era um formigueiro agitado. Nos pontos mais altos, como as torres das igrejas, vigiavam as sentinelas. Perto dos ancoradouros, emborcadas nas trincheiras, as tropas esperavam. No ar, música que se ouvisse, vibravam os sinos. (...) A Bahia, naquela hora, parecia uma cidade morta. Ruas desertas, becos vazios, ladeiras mudas (1973, p. 43 – grifos nossos).

Outro ponto que igualmente se destaca se refere à ênfase às noções físicas e emocionais, como a fome e a sede; o ódio e a brutalidade, marcas telúricas que vêm do instinto e não da racionalidade. Os sentimentos de amor e ódio, equipotentes no homem, não se digladiam, pois o ódio nada pode contra o amor, quando este último é sentido e praticado em toda a sua potência. Disso, decorre que o nível subjetivo de realização

57 dramática deve ser a do filtro narrativo pela perspectiva sensorial dos personagens. Tendo o Forte como o verdadeiro protagonista da obra, Jairo e Olegário são os responsáveis pela organização estrutural da narrativa. Dessa maneira, o lirismo ganha âmbito especial, e a narração se torna poética: ―Noites seguidas, ano atrás de ano, dia atrás de dia, no fundo do silêncio. A cama, as grades, o coração batendo. Pôde conhecer o Forte, muito de perto, em todos os segredos‖ (Grifos nossos. 1973. p. 24). Construída sob o signo da memória, o enredo vai, passo a passo, tornando-se mais imagético e sensível:

Sentam-se nas tábuas, as frutas e o vinho, o sol deve colorir a Bahia. Chumbo no mar, azul no céu, as ilhas cinza, brancas as praias, todas as árvores verdes. O povo nas ruas, seus filhos em casa, a humanidade inteira, tudo começa a morrer. Os dentes de Tibiti, da cor do pão, mordem a manda. Na boca o vinho parece sangue. Enrijecem- se os paredões do Forte, o barro se fazendo pedra, para guardá-los, a Tibiti e Jairo, como gêmeos em um ventre. E, com o sumo da fruta aos lábios, a mulher fitando-o com os olhos de ferrugem, Jairo não pode conter as imagens. Boiam como destroços em uma inundação, na superfície das águas, a correnteza por baixo (1973, p.73).

Todo processo personativo explica a metáfora-base do Forte como um organismo que congrega e dilacera os seres ao seu redor. Ao ouvir de Olegário sobre seus anos de prisão no Forte, Jairo conclui que, colocado numa ponte eterna com o passado, também será um prisioneiro. Sendo Tibiti um destroço desse Forte, ela lhe guarda as mesmas potencialidades, porquanto amarra Jairo à sua própria existência, da mesma forma que, ao engravidar, enclausura uma alma dentro de si. Tibiti, como o Forte, também pode ser Vida. O que verificamos é que, no romance, o narrador é o mediador. No drama, não, pois que não há mediação, visto que as vozes dos personagens são veiculadas por eles mesmos, quer dizer, dirigem-se à plateia diretamente. Sem narrador na construção da cena narrativa, caberá ao personagem a exposição de sua força vital, que dependerá, em maior ou menor grau, é claro, da potência de atuação do ator36, que guarda, em sua exposição sempre alguns traços seus.

36 Façamos aqui uma breve diferença entre ator e comediante, a serviço dos ensinamentos de Sábato Magaldi, em Iniciação ao teatro. Após desenvolver as reflexões acerca das condições de realização da tragédia e da comédia, a partir das perspectivas aristotélicas da representação das maiores e piores virtudes do homem, respectivamente, o crítico teatral aponta que o intérprete/ator vê, ―à sua maneira, uma matéria dada, e a corporifica de acordo com a exegese. O mundo de palavras e de marcações de uma personagem escrita supõe uma plurivalência de

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Mas como pode o drama, o teatro, representar as dores anímicas dos personagens? Essa questão toca em um ponto importante de nossa discussão, visto ser ela capaz de reconhecer o a diferença entre os gêneros romanesco e dramático e o porquê da escolha de um pelo outro. Bom, primeiramente temos que dizer que o teatro não é – em comparação à narrativa – o espaço mais adequado à encenação do mergulho anímico do personagem, visto que o teatro sendo fundamentalmente ação37 (e nesse sentido sua importância ao enredo é essencial) teria dificuldades de representar um texto que fosse repleto de silêncios, sugestões e imprecisões. Se tal dificuldade existe, ela, contudo, não é intransponível, porquanto muitos dramaturgos já se valeram da presença do confidente, do aparte e do monólogo. De todos esses recursos, contudo, o que mais ressoa em validade ao nosso estudo é um até mais antigo: o coro. Sobre ele, vejamos o que ensina Décio de Almeida Prado, em A personagem de ficção: Assim devemos compreender o coro da tragédia que, se por um lado era pura expressão lírica, por outro lado desempenhava funções sensivelmente semelhantes à do narrador do romance moderno: cabia a ele analisar e criticar as personagens, comentar a ação, ampliar, dar ressonância moral e religiosa a incidentes que pó si não ultrapassariam a esfera do individual e do particular. (...) Autor e personagem – pois que o coro, a seu modo, também é personagem – fundem-se a tal ponto que somente uma análise um tanto artificial poderia dissociá-los (2011, p.87).

O coro possui, dessa forma, esse valor metanarrativo, pois que analisa os eventos, o drama e obra em que está inserido. É o que se enxerga, por exemplo, na primeira parte de Lucas Procópio. O narrador coral se coloca no centro da narração e descreve Lucas Procópio, o vero, à imagem de um cavaleiro – ainda que anacrônico. Fixando-se entre os limites da potência do real e a do mitológico, há o tênue – mas significativo – interpenetrar de essências. Para construir o papel de interpretação

sentidos, captada e expressa pelo intérprete‖. E citando Jouvet, em sua Enciclopédia Francesa, discorre sobre as dessemelhanças entre ator e comediante, citando que o primeiro ―só pode representar certos papéis, os outros ele deforma, na medida de sua personalidade. O comediante pode representar todos os papeis. O ator habita uma personagem, o comediante é habitado por ela‖ (1985, p.24-25). 37 O drama e, por consequência, o teatro vale-se das complicações do enredo para que ação se realize. Lutando contra um obstáculo, transpondo determinadas situações adversas, o protagonista concretiza a encenação, pois ao agir dessa forma, ele revela toda a sua interioridade. Não se deve, todavia, confundir ação com movimento, pois o silêncio e a passividade também são formas de agir.

59 coletiva, próprio da natureza do coro, o narrador não pode estar refém da subjetividade (por isso se vale da refletorização38 visual dos moradores que veem a chegada da ―triste figura‖) e nem do tom memorialista. Para isso, desenvolve-se, estilisticamente e estilizadamente, a narração histórica, mitológica e tradicional, fugindo das percepções individuais, de modo que a unidade virá mais da sucessão e plenivalência de vozes do que da exclusão de ideologias representadas. Falando estruturalmente, notam-se constructos sintagmáticos realizando-se a partir da inserção gradual e coordenada. Dessa forma, o cenário se revela aos poucos, como uma câmera que se afasta ou se aproxima. A presença de adjetivos gera (ou confirma) outra percepção: a de que o narrador participa emocionalmente da construção do espaço, colocando-se, assim, emocionalmente envolvido no texto.

A gente aqui sabia seu tanto de História. Nunca, porém se vira cara, vestimenta, cavalo, arreio, armas iguais, tudo antigório. (...) Constituía a novidade do cavaleiro a vestimenta extravagante, folgada no corpo, roupa com certeza herdada de defunto maior e mais encorpado. A gente ficou sabendo depois ser aquela a usança diária de tão estapafúrdia figura. Se ele ficasse com a gente, acabaria sendo, por força das circunstâncias e da intimidade, um doidinho de chacota a mais na cidade (2002, p. 14-15).

Na parte II, intitulada ―Persona‖, encontramos outro Lucas Procópio. Após assassinar o verdadeiro, Pedro Chaves assume sua riqueza e sua identidade. Impõe-se uma máscara. Agora rico, busca ser aceito na alta sociedade, por isso se casa com Isaltina, filha do falido Barão das Datas, Cristino Sales. Eles têm três filhos: Isabel, Tereza e João Capistrano. Diante a esse casamento, a essência de Lucas Procópio, o falso, vai assumindo diferentes matizes. Tornando-se mais cordato e mais educado (ainda que longe de ser um caval(h)eiro), o coronel Honório Cota ganha, paulatinamente, nova identidade. É claro que a antiga natureza ainda lhe grita forte no espírito, mas à força Isaltina concebe-lhe nova aparência. Para um critério comparativo, descrevemos abaixo, respectivamente, a descrição das duas naturezas de Lucas Procópio: o vero e o falso.

38 Refletorização é o fenômeno em que se narra um evento ou um personagem por uma perspectiva sensorial do refletor. O fenômeno será mais bem desenvolvido na parte em que se discute o estatuto do narrador. 60

Pela primeira vez em sua longa peregrinação de cavaleiro andante pelos sertões solitários mineiros, para edificação do povo das Minas Gerais, a sua mensagem foi ouvida em silêncio; não houve nem riso nem mofa, um milagre se deu. Lucas Procópio se transfigurava: pálido, em torno da sua cabeça uma aura esplendia, um místico prestes a levitar. A gente nunca mais na vida viu coisa igual. De dentro do silêncio vieram vindo as primeiras notas de um canto, o palavreado de um cantochão. Dos olhos de Lucas Procópio pingava lume, ele fitava o azul luminoso do céu e os longes do além. A sua voz, agora um fiozinho de voz, ele cantava diretamente para Deus, a gente não existindo. O rosto cor de cera, uma palidez mortal. A gente até pensou que ele podia bambolear e cair. E de repente se deu o milagre, daquilo que gente nunca cogitou. (...) O canto de Lucas Procópio só Deus podia ouvir e entender. E todos na maior unção se uniam e se fraternizavam no canto monocórdio subindo e descendo, uníssono, sem ritmo, plano, chão: músicas das esferas celestiais (2002, p.20-21).

Aqui, o narrador coral, mais uma vez, analisa, de forma impressionista, a constituição do personagem em processo de metamorfose de caráter e de existência.

Como Isaltina se amatronasse (belo produto da civilização e das artes), ganhou mesmo em sutileza aquela beleza viril das mulheres maduras, só para raras, só para poucas. E assim como do estrume nasce a pura beleza das flores, cresceu em virtude e sabedoria. Embora com jeito e delicadeza, conseguiu mudar o marido a tal ponto que ele ganhou uma máscara (a persona que ele duramente, sofridamente usava para representar o personagem com que sonhava o seu coração e que ele vinha criando penosamente), a tal ponto que a gente chegava a duvidar se aquele era o mesmo nosso velho conhecido coronel, se todas aquelas histórias não passavam de exagero dos nossos olhos e ouvidos, de invenção da gente: tão outro era ele agora (a cabeça grisalha, os gestos mais lentos e medidos), um bicho amestrado mas um bicho, viam olhos sábios, argutos, de sonhosos adivinhadores. Até a sua cara mudou: ganhava outras feições, crescia em distinção e delicadeza, por mais absurdo e estranho que possa parecer (Grifos nossos.2002, p. 185).

Em resumo, é preciso fazer pequena distinção sobre os narradores de que falamos. O narrador polifônico é aquele que encena diversas vozes, não se restringindo somente à visão do personagem. Assim, unindo vários pontos de vista distintos, pode- se, por exemplo, observar a mesma história sem o autoritarismo de uma única visão. Esse tipo de narrador faculta a existência de demais tipos, visto que amplia as possibilidades de pontos de vista. Em Ópera dos Mortos, por exemplo, haverá o monólogo interior de Juca Passarinho no instante em que fazia amor com Rosalina. Assim, além da voz de Juca, é possível ouvir a voz de Rosalina, que, contudo, não irá sobrepor-se à voz do amante e nem a do narrador; haverá uma sinfonia de vozes.

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Por quanto tempo este corpo seria seu, se perguntava com medo de que tudo pudesse de repente acabar. Porque ele vivia em suspenso, nas trevas, de repente tudo podia acabar. De repente ela podia se arrepender, fechar-lhe as portas, como lhe negava a alma e os olhos. Os olhos que, como a alma, podiam ser dos mortos, talvez Emanuel. Quando ela extenuada depois de fazer, o corpo lasso e derrotado, ainda nua, o olhava, os olhos eram de um brilho apagado, pareciam desconhecê-lo. Olhavam no como a um estranho a seu lado. Ela estava bêbada, pensava enquanto procurava ver no fundo dos olhos de Rosalina a visão que morava lá dentro. Os olhos de Rosalina se negavam, queriam dizer na sua mornidão diáfana que só o corpo era dele; só o corpo, quando o corpo ainda estava carregado. (1995, p. 168)

O narrador multiperspectivado, por sua vez, não encena o drama, mas personifica em si diversas vozes. Na fala desse narrador, ouvem-se todos os outros personagens, de modo que ele (o narrador) soa como a voz de um coro; o coro da tragédia grega. Ainda em Ópera dos Mortos, Rosalina vive no intermédio de duas vidas: a do pai e a do avô. Aqui já seriam duas Rosalinas, que se multiplicam quando ela passa a representar todos os seus antepassados, além dos irmãos natimortos. O narrador também irá assumir essa postura múltipla, não só quando representar as várias Rosalinas, mas quando mostrar as visões (multiperspectivadas) dos outros personagens sobre a heroína: a visão de Juca Passarinho, da população da cidade, de Quiquina. É somente dessa forma que a literatura se instaura como um discurso genuinamente autônomo. Sem a preocupação com outros gêneros ou área do saber, a trama não se constrói como sinônimo de um discurso vário, ou o enredo, que não mais irá funcionar como pretexto para uma análise de outra natureza. Nas palavras de Autran Dourado: ―nada há de mais acidental e secundário num romance do que o enredo, que é apenas um dos elementos de sustentação da história, a maneira que o escritor encontra de manter viva a atenção do leitor‖ (Matéria de carpintaria. 2003, p. 28). Se isso elucida a diferença entre a função do enredo no romance e a no drama, também demonstra que a utilização do coro é um dos traços estruturais que remontam à tragédia grega. Porém, se vislumbramos a forma, o que impera é a absorção do sentido. A transmutação que Autran Dourado e Adonias Filho executam ocorre num nível essencialmente significativo. E isso decorre de três pontos. O primeiro atende a necessidade do autor de criar personagens que se adéquem a uma mensagem. Não queremos dizer que eles precisem ser títeres de uma ideologia única ou não terem autonomia vital, mas atenderem aos dispositivos de uma coerência

62 interna da obra, que obedece, por sua vez, à intenção final do autor. Lembremos aqui Antonio Candido, em A personagem de Ficção:

... a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista. Quando, por exemplo, se está interessado em traçar um panorama de costumes, a personagem dependerá provavelmente mais da sua visão dos meios que conhece, e da observação de pessoas cujo comportamento lhe parece significativo. Será, em consequência, menos aprofundado psicologicamente, menos imaginado nas camadas subjacentes do espírito, – embora o autor pretenda o contrário (2011. p.74).

Essa citação, é claro, não pode ser vista a partir de uma perspectiva simplista, porque a complexidade que se destina a personagem se relaciona diretamente com a complexidade que se quer atingir na obra. Se o objetivo for, então, na problemática humana, adensam-se as relações entre os personagens (e no personagem) de tal modo a ele se soerguer diante de todo o cenário do enredo. O enredo, é preciso que se diga, muitas vezes soa na obra como um pretexto para a construção de um sentido maior. Curiosamente, uma leitura rápida pode nos levar a concluir o contrário, afinal, são as implicações e os acontecimentos que fazem o texto andar. Contudo, o que conduz, verdadeiramente, o texto narrativo são as potências dos personagens, haja vista que é no drama que se precisa das ações e dos obstáculos para que tais potências se desenvolvam e se explicitem. E mais, tais potências dos personagens só se podem realizar se estiverem compostas convencionalmente. Explicamos o advérbio usado há pouco, resgatando duas considerações de Antonio Candido, que dão conta do valor da estrutura e da matéria artística:

Conclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não de sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente (2011. p.75).

E depois afirma que ―a convencionalização é, basicamente, o trabalho de silenciar os traços, dada a impossibilidade de descrever a totalidade de uma existência‖(2011. p.75). Autran Dourado, em seu ensaio crítico Uma Poética do Romance – Matéria de Carpintaria, corrobora, como mais de uma vez já o afirmamos, o pensamento de Candido, afirmando que o no romance o enredo é apenas o pretexto de

63 que se vale o autor para apreender a atenção do leitor, conclui dizendo que ―personagem tem a ver é com a estrutura‖ (2000, p.105). Nessas acepções em que a construção de um romance se refere à própria construção do personagem, não prescindimos, porém, da presença do narrador (que em algum grau se transforma em personagem do romance) na arquitetura do texto. Mas, além dos elementos estruturais que sustentam obra, o sentido é o objetivo a ser alcançado. Inseparáveis, essas duas estâncias do ato criativo são responsáveis pelo vigor da obra de arte. É por isso que, nas trilogias que estudamos, alguns dos elementos da trilogia ática (absorção) assumem um caráter inédito (transmutação) para, a partir do estilo e da originalidade, criarem novos sentidos. O sentido trágico, portanto, se soergue com suas implicações nas trilogias a partir das seguintes concepções: a decadência da oligarquia mineira dos Honório Cota, o tempo coagulado no passado de Rosalina, os personagens refém das forças atávicas de Lucas Procópio, em Autran Dourado; a vingança das forças não-humanas as obre Paulino Duarte, o erotismo mortuário de Alexandre, a moira destrutiva de Cajango, em Adonias Filho.

3) Questões sobre o narrador

Discutimos em nosso trabalho as duas perspectivas que distinguem as diferenças entre o gênero dramático e o narrativo. Assim afirmamos que o gênero dramático – do qual a ação é oriunda – dispensando a mediação de um narrador, dá conta de uma encenação que respeita uma duração limitada de algumas horas39 (segundo as concepções aristotélicas) e que tende, pela correlação indissociável de suas partes, a uma tensão. No caso do gênero narrativo (épico), algumas considerações a mais devem ser feitas. Bakhtin afirma que o autor só reconhece seus conceitos axiológicos em relação ao outro, pois, em si, seus olhos turvam a visão do todo, que nele está inserido. Assim, é

39 Helena Parente cunha lembra, em Teoria Literária, que as unidades de tempo, espaço e ação, conquanto alçadas a status de inatacáveis pela tradição renascentista e classicista, não foram o suficiente para imporem suas força modelar irrevogável aos autores de gênio, ―haja vista Shakespeare que passa por cima das unidades de lugar e de tempo, modificando a cena e dilatando a ação durante semanas ou meses, sem com isto desmantelar a tensão dramática. (...) O tempo se estende por alguns dias, entre o primeiro encontro de Romeu e Julieta, o banimento de Romeu, a combinação do casamento de Julieta com Páris (...) Mas a unidade de ação se mantém densa na trama de todos os acontecimentos, em torno da desavença das famílias Capuleto e Montecchio, que obstou a união dos jovens‖ (1979, p.119).

64 necessário no processo criativo o distanciamento. O afastamento, a seu turno, leva ao confronto direto com as perspectivas individuais de que o autor é portador. Por esses termos, no gênero narrativo, o narrador assume postura semelhante a do autor, pois que narra – em algum grau – a distância. Essa distância, contudo, é relativa e respeita as condições inerentes a cada obra, porquanto o narrador, ao mergulhar na essência da obra, pode converter-se em personagem. Assim, ele ficará sujeito a duas naturezas, ou melhor, a duas perspectivas: como narrador será responsável pela organização arquitetônica da obra; como personagem será capaz de sentir as pulsões emocionais, advindas da experiência. Esse duplo aspecto narrativo garante à Literatura uma estância superior de conhecimento, pois que reúne forças distintas, mas complementares em sua criação. Chegamos agora ao ponto em que é importante organizar e clarificar os elementos narrativos que espargirmos ao longo do capítulo. Acima, se mostramos como alguns desses elementos se corporificaram na trilogia de Autran Dourado, agora iremos elucidar como isso ocorre em Adonias Filho. Pretextaremos com a explicação a análise da trilogia.

3.1) O narrador na trilogia adoniana

3.1.1) Corpo Vivo Corpo Vivo é o romance que narra a realização da vindita de Cajango aos assassinos de sua família. Único sobrevivente da chacina, o menino é levado a seu tio, o índio Inuri, por padrinho Abílio. O índio será o responsável pela formação bélica, e se mostrará um companheiro fiel durante a guerra que se travará pelo interior da Bahia, criando a imagem mítica de Cajango no imaginário da população. A narrativa de Adonias Filho tem seu ponto mais alto no drama da existência, e isso se executa a partir do momento que se colocam na camada mais exterior os sentimentos que impulsionam o homem. Esses sentimentos, contraditórios em si mesmos, se desenvolvem a partir do conflito entre amor e ódio, esperança e desesperação, sanidade e loucura, que representam tanto a condição individual do ser como também a própria organização estrutural da obra, que dessa forma, longe de ser linear, terá de se valer de dois expedientes específicos para a construção de seu sentido. De um lado, os eventos relativos à causalidade paradoxalmente não deverão produzir uma necessária consequência (Cajango só extingue sua vingança quando se apaixona e

65 resolve se exilar – a vingança, como fato narrativo aberto, não se fecha); por outro, a narrativa não deve obedecer a um olhar único, que, ao mostrar somente uma perspectiva, veicule apenas uma única ideologia. Assim, Adonias Filho opta pelo multiperspectivismo, que no plano da enunciação se corporifica a partir de, por exemplo, descrever-se Cajango pelos olhos do padrinho Abílio e João Caio. O procedimento, entretanto, não se concretiza apenas para o herói. Os demais personagens também passam por um processo de refletorização (conceito que pode ser compreendido como o filtro somático na representação de uma cena ou de uma personagem, isto é, são as perspectivas sensoriais as responsáveis pela imagem que se narra). Dessa forma, não há um único olhar, uma vez que todos os personagens podem ser responsáveis pelo processo narrativo. Como exemplo, pode-se mostrar uma complexa estrutura arquitetônica que ocorre quando João Caio escuta as palavras que Lourenço Dias ouviu do negro Setembro. As palavras, no entanto, não são sobre o negro, mas sobre a desgraça que aconteceu à família de Cajango. Nessa estrutura, João Caio funciona como o refletor das palavras que já foram refletorizadas por Lourenço Dias a partir da perspectiva do negro sobre os fatos.

E o negro, com lentidão de quem quisesse que a mata ouvisse, disse o que vivera. Suas palavras queimavam os meus ouvidos assim como o fogo queima a lenha. Negra como a noite era a sua pele, mas, em sua voz, havia o calor das chamas. Meus olhos, enquanto ele falou, não puderam se afastar da cruz de arame. Estivera com Januário ao meio-dia. Fora avisar que iria embrenhar- se na mata, medir as tarefas que derrubariam na próxima semana. Era a última vez que via o patrão. Na mata, abraçado ao rifle, dormira quatro noites. Quando voltara, e a vista dava para alcançar a casa da fazenda, estranhara o silêncio. Aproximara-se com o rifle nos braços, pronto para atirar. E, topando a porta aberta, entrara na casa para não ver ninguém. No chão, o sol batendo, vira as manchas de sangue. Saíra ao terreiro e logo alcançara a grande cova com a cruz de madeira em cima. Ali estariam todos, os assassinados, inclusive o menino Cajango. Retomara à despensa, em busca das armas, e não as encontrara. Em sua cabeça, porém vibrava a pergunta: ―Quem teria enterrado os corpos?‖ E ganhara a estrada em busca da tapera de Alonso. Encontrara a mulher de Alonso, assustada no fundo da tapera, e assim que ela falara compreendera o erro de padrinho Abílio. Não devia ter deixado, sozinha, a mulher de Alonso. Cajango estava vivo e padrinho Abílio o levara para as selvas do Sul. Alonso fora a Ilhéus para confiar a mulher de padrinho Abílio aos parentes. Foi então que ela revelou o erro ao negro Setembro: dissera a outro, que passara no dia anterior, que o menino estava vivo. Um mateiro que vinha com a espingarda e dois cachorros. Pedira água e falara do massacre. ―Todos morreram‖, ele dissera. E ela explicara, impetuosamente, sem pensar:

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―Não, não morreram todos!‖. Falou então de Cajango e do padrinho Abílio, de Alonso e da mulher de padrinho Abílio. A doida criatura só não disse para onde o menino tinha ido (1974, pp. 28-29).

Ainda como forte elemento que contribui para a construção desse multiperspectivismo, há a presença da polifonia, que, na perspectiva bakhtiniana, leva em consideração a sinfonia de vozes conservando a plenivalência de todas elas, sem que haja, por isso, uma que se soerga com maior relevância. Bakhtin, entretanto, reconhece o valor de composição organizacional da qual o narrador é dono, de modo – é claro – a ser capaz de dar mais atenção a uma ou mesmo à outra voz. A inovação reside, contudo, no fato de não haver por parte do narrador um juízo de valores sobre a condição das vozes, mesmo porque a voz do narrador irá valer tanto quanto a do próprio personagem. O fragmento que trouxemos à luz dá conta dessa sinfonia, em que todas as vozes ocupam um espaço de relevância, veiculando mais do que informações e ações, mas sentimentos e paixões. Essa plenivalência assume um caráter complexo quando, em dado momento da narrativa, Cajango foge para o interior da serra com sua mulher, Malva. Perseguido por aqueles que tinham sido o alvo de sua vingança, lembra-se das palavras do índio Inuri, que matara após a discussão sobre a permanência ou não de Malva no bando:

– Temos que sair logo. É o que diz. Sabe, naquele momento, o que significa sair. É ter que lutar para romper o cerco, ainda ter que matar, necessitando da sorte para escapar com a mulher. As cartucheiras estão cheias e sobram dois rifles para cada homem. Tomarão o lado norte, selva adentro, dia e noite, na retirada. Ouve, porém a pergunta de padrinho Abílio: – E para onde iremos? Três segundos imóvel, vazio o olhar, à mercê da memória. Quem sai das sombras é Inuri, deitado ao pé do fogo, a recomendação queimando. Oito anos, sepultas em si mesmo, aquelas palavras: “Se eu morrer, e tudo estiver ocupado, procure a serra”. Não poderá contar as léguas para o norte até encontrá-la. “Os homens não a conhecem”, a voz de Inuri. A serra que é uma montanha, as nuvens cobrindo o dorso, ladeira que pés não subirão em dez anos. O bugre estivera com as mãos em sua base. “Vá para a serra, Cajango, se eu morrer”, a voz de Inuri. – Para onde iremos? – Iremos para o norte (1974, pp. 111- 112. Grifos nossos).

No processo de construção artística que soa na obra, a presença de um elemento fundamental da tragédia ática soa aqui com potência: o coro. A propriedade metaficcional do coro é interpretada por Almeida Prado, em A Personagem de Ficção

67 como a estrutura a que cabia ―analisar e criticar as personagens, comentar a ação, ampliar, dar ressonância moral e religiosa a incidente que por si não ultrapassariam a esfera do individual e do particular‖ (2011,p. 87). E é o coro que descreve a personalidade complexa do mateiro Dico Gaspar, mostrando nele as duas potências antagônicas do dionisíaco e do apolíneo. Assim, num momento, vemos a selvageria, a virilidade e a morte nas mãos de Dico Gaspar, ao assassinar friamente um homem e os cães que lhe foram algozes:

Na manhã de hoje, assim que o sol subiu, obrigaram o povo a se reunir em torno da jaula. Homens, mulheres e crianças eram como sombras mudas. Empurrado por quatro cabras, trouxeram o caboclo Juca e, frente aos olhos apavorados, atiraram-nos aos dentes dos cães dentro da jaula. Muitos não viram que fecharam os olhos. Outros não ouviram que taparam os ouvidos. Mas se terrível foi o grito do homem – um único grito –, não menos terrível foi a arremetida dos cães. As mandíbulas à mostra ganindo e aos saltos dilaceraram o corpo que se converteu numa pasta informe. Rasgando a carne, com os pelos sujos de sangue, teriam comido aquilo não fosse o chefe ter manejado o rifle. Vomitando fogo, em suas mãos, a arma não deixou um só cão vivo. E, no silêncio aflitivo que se fez, em seu calção de couro de carneiro, exclamou: – É assim que Dico Gaspar mata os vermes! (1974, pp.12-13).

Em outro, sua porção humana se mostra de forma bastante patente, revelando altruísmo ao salvar uma criança de uma casa em chamas:

A salamandra abriria, como ele, caminho entre as chamas. Os braços se moviam com agilidade incrível e seu corpo atravessava as brechas como talvez não façam os demônios nos infernos. Seu sumiço na onda de fumaça e nas chamas, embora durasse poucos minutos, nos pareceu um século. Reapareceu como entrara, a faca ainda nos dentes, a vassoura de mato verde em uma das mãos, a outra comprimindo a menina de encontro à sua barriga. Ganhou a porta aos saltos e nos entregou a menina. ―O fogo está morrendo‖, disse. E voltando-se para o homem acrescentou: ―Procure o vizinho mais perto e cuide das queimaduras‖. Foi então que a mulher perguntou o seu nome. Pondo as cartucheiras, apanhando o rifle, respondeu: ―Eu sou o Dico Gaspar‖. E sem que se despedisse, ganhou a estrada que a nuvem de fumaça ainda sombreava (1974, p.14).

Na representação do gênero trágico, os dramas existenciais ganham relevo fundamental e se corporificam, no plano da enunciação, por uma narrativa repleta de fragmentações, digressões e inserção de vozes que se alternam como partícipes

68 plenivalentes do momento narrativo. Ronaldes de Melo e Souza irá afirmar, em O Romance Dramático de Adonias Filho, que

Regida pela trama imagética de efabulação, a narrativa é necessariamente descontínua, pois a cada momento se enquadra uma nova imagem. Não há nenhum narrador substantivo, porque o sujeito se dessubstancializa, diferindo continuamente de si mesmo, transformando-se numa função narrativa que se modifica de acordo com a imagem que o domina. Solidariamente vinculada ao enunciado trágico, a enunciação é radicalmente dramática. Supõe uma despersonalização, a que se seguem diversas personificações (2001, p.6).

Narrativa descontínua, no entanto, não deve ser entendida aqui como narrativa fragmentada (a um gosto, por exemplo, de experimentalismo vanguardista). Antes disso, é uma escolha que se casa arquitetonicamente com o sentido trágico da obra. Para deixarmos essa ideia mais clara, observemos a construção do prólogo da primeira parte do livro que se inicia assim: ―Tudo começou no sábado. Lembrou-me a mulher, quando jantávamos, que o compadre Januário nos esperava na segunda-feira, lá na fazenda dos Limões‖(1974, p.5). Daqui se inicia a história de Cajango, sua vida, suas desgraças e sua vingança. A descontinuidade da narrativa se mostrará, agora, com as representações anímicas dos personagens sendo o foco principal. Na segunda parte da obra, a história parece retomar a cronologia dos eventos:

É de repente que tudo recomeça. A voz de padrinho Abílio morre e renasce. As imagens retornam aos olhos, cobrindo os quadros em frente, enquanto anda. Bem-Bem, agora está na vanguarda. Inuri não querer ouvir e não desejar ver. Volta o que aconteceu, a viagem longe de terminar. A mata em silêncio, os arbustos úmidos, um homem assobia. E a serra novamente reaparece, as curvaturas de pedra, silvos e uivos nas florestas que assombram. Agora, com Cajango, um homem está morando entre as feras (1974, p.63).

Conclui-se, a partir dessas duas construções, que a narrativa, na verdade, não segue o fluxo convencional, já que ela não só é filtrada pelo personagem como também se constrói a partir de eventos que já aconteceram. Por conta disso, na trama, a memória funciona como a responsável pela organização cronológica, esta concretizada na disposição estrutural dos prólogos. Quando tais prólogos se reunirem aos seus respectivos epílogos, seremos capazes de enxergar algo como um corredor, um emparedamento em que se coloca a narrativa, fazendo com que ela se corporifique sobre

69 o símbolo da travessia existencial, pela qual se processarão as múltiplas transformações de Cajango: o menino e o adulto, a inocência e a maldade, o amor e o ódio, a vida e a morte.

3.1.2) Os Servos da Morte A perplexidade da crítica literária diante desta obra foi de fato bastante pertinente. Os Servos da Morte, com seu espírito visceral, agônico e tanático, gera no leitor uma espécie de dor muda que se amplia página a página, quando se acompanha a derrocada físico-moral da família de Paulino Duarte. Isso lembra a afirmação de Temístocles Linhares, na orelha da obra, em sua 6ª. edição, de 1986: ―Não se pode lê-lo sem uma espécie de respeito‖. O romance se funda sobre o signo que já se explicita no título: os personagens que são asseclas dos desígnios da morte. Tornemos esse signo mais claro. A personagem Elisa, após a falência financeira da família, se vê obrigada a casar com Paulino Duarte, rico e feroz criador de cavalos. Após o enlace, e incitado a remir as dívidas do pai de Elisa, Paulino se percebe vítima de um ardil, já que enxerga o matrimônio como um jogo de interesses financeiros. A partir daí, o homem se mostra cada vez mais agressivo e possessivo, tornando a vida da mulher um verdadeiro martírio. Com ele, Elisa tivera três filhos: Rodrigo, Quincas e João, os quais, parecendo- se a a cada dia mais com o pai, tanto lhe amargurava o coração. Ela, por conta da grande miséria existencial em que vivia, arquiteta um plano para minar Paulino. Uma vez sendo incapaz de vencê-lo pela força física, resolve levar adiante sua empresa utilizando dois métodos: primeiramente engravidar de outro homem, para que a vergonha pudesse aniquilar moralmente o marido; e, depois, conduzir esse filho, como um arauto de uma vontade e intento demoníacos, ao parricídio do pai adotivo. A gravidez se consuma e dela nasce Ângelo, o anjo da morte predestinado a cumprir a vingança da mãe. Para a construção desse drama trágico, Adonias se vale dos mesmos expedientes narrativos que já demonstramos em Corpo Vivo: a polifonia, o multiperspectivismo, a refletorização. Tais procedimentos, que aqui eram inaugurados (por ser o primeiro romance publicado), associam-se para a realização da natureza integral do homem. Seguindo na composição trágica, a história se realiza também a partir da lembrança. Cego (como resultado de um candeeiro aceso que Elisa lhe jogou no rosto), Paulino

70 lembra a vida que foi e escuta pela voz da mulher os sons do passado extinto que não quer continuar morto. Há nessa obra, outro recurso que se mostra imprescindível no investigar da auscultação interior: o monólogo narrado, que consiste na reprodução do pensamento do personagem, tendo o narrador a única preocupação de organizá-lo esteticamente, não lhe cabendo intervir ideologicamente. Quer dizer, esse monólogo narrativo possui a especificidade de se colocar distinto do monólogo dramático, em que as demarcações estruturais apontam para a fala do personagem. Aqui, contudo, imiscuem-se duas potencialidades distintas, mas convergentes para o vigor narrativo: a perspectiva dual, em que consciência (do narrador) e experiência (do personagem) produzem, de forma inédita, a transmissão de um duplo conhecimento. Em outras palavras, se no fluxo de consciência o pensamento é narrado como se fosse o fluxo de rio que rompe a represa que o cerceava os movimentos e, se, no discurso indireto livre, já havia um posicionamento ideológico do narrador, no monólogo narrado temos ciência da integridade essencial do pensamento do personagem que se desenvolve a partir da estruturação física e organizacional do narrador. Isso ocorre, por exemplo, a partir da reprodução do pensamento de Elisa. Nessa construção em que ficamos diante da perspectiva existencial da mulher e, embora gramaticalmente se construa com a 3ª.pessoa (a falsa 3ª. pessoa), estamos diante das emoções subjetivas (de primeira pessoa do discurso) da personagem.

Sacudiu a cabeça numa crise de choro e compreendeu, pelos gritos dos filhos, que devia ser meio-dia. Paulino Duarte não tardaria em chegar para o almoço. Com uma caneca, os gestos impetuosos, lavou os olhos e os lábios ainda doridos. Foi à sala, pôs os pratos na mesa, chamou os filhos. As quatro crianças se sentaram nos bancos que ficavam um de cada lado da mesa (Grifos nossos. 1986, p.27).

A vingança é a essência do romance. Mais afiada do que a de Cajango, a de Elisa é visceral, fazendo o marido paulatinamente viver uma vida que não é vida, pois não subsiste, não se realiza, apenas não se finda. Paulino vive perseguido, em memória, pela imagem de Elisa e, na realidade somática, é perseguido por Ângelo. Após reduzir a alma de Paulino a um pequeno feixe de luz, Ângelo, na derradeira hora do pai, lhe recusa a água que poderia amortecer sua morte causada por uma febre alucinante e apenas o observa morrer. Realizando o rito mortuário que se iniciou desde antes de ser gerado, Ângelo sente-se livre da influência da mãe, a ponto de se tornar mais humano e não mais se observar cindido entre duas naturezas. Analisando todas as vidas que teve

71 de destruir para aniquilar o pai, Ângelo, agora sem a interferência da mãe morta, passa a refletir sobre os acontecimentos.

Da completa ruína que alcançara Celita – miséria provocada por ele, e tão somente por ele – poderia brotar em si a certeza do eu, a convicção da liberdade. Sentir-se senhor do próprio sangue, alcançar- se como um responsável, isso, apenas isso, era tudo o que pedia como consequência da desgraça que presenciava. No entanto, ainda que se julgasse uma forma invisível para os próprios olhos, num volume sem consciência, compreendia aquele pedido como se derivando da vontade de vingança. De início, trabalhando sobre a consciência de Rodrigo, preparava a vingança, premeditava para Celita um destino tremendo, a resposta para a recusa, o pagamento por haver exumado a sombra da morte. Agora, vendo-a tombada sobre o leito de ferro, verificava que não era de todo um perdido. Poderia ainda viver, existir, mas que seria preciso para tanto? Que seria preciso agora? Descer, unir-se à ideia de que sacrificara Rodrigo, Lisinha, Claudinha, simplesmente para vingar-se (1986, p.239 – grifos nossos).

Os personagens estão sempre no limiar da existência, por isso que a vingança de Elisa-Ângelo se realiza, pois todos se afinizam na dramatização da morte. Todos os personagens, em algum grau, são seus mensageiros e seus servos. Rebelam-se contra essa predestinação, mas não atingem êxito. Suas essências gritam forte dentro do peito, na tentativa de subsistirem ao exterior que as corrompem (seja o espaço, as coisas ou as pessoas). Assim, a revolta contra a violência e a dureza é paga com a mesma dureza – é na brutalidade que se tentará existir; agredindo-se a todos e a si mesmos, os personagens gastam suas energias físicas num desenfreado animalismo. A vingança se constitui como uma forma de vida, ao mesmo tempo como propósito e danação, pois, enquanto alimenta, mata, tal qual um câncer que se origina nas mais recônditas fibras.

3.1.3) Memórias de Lázaro

Em Memórias de Lázaro, Adonias Filho continua o tema da dilaceração e violência humana, mas acrescenta agora um novo procedimento revelador da natureza dual do personagem: a narrativa de primeira pessoa. Segundo Ronaldes de Melo e Souza, em O romance tragicômico de Machado de Assis, esta narrativa ocorre quando o eu narrante e o eu narrado são um e o mesmo; quando há entre eles um distanciamento temporal e este distanciamento temporal implica mudança existencial. E disso decorrem três possibilidades de narração em 1ª. pessoa, porquanto se pode

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1º.) Narrar o evento do ponto de vista do narrador ironicamente distanciado de si mesmo; 2º.) narrar o evento sob a ótica do protagonista emocionalmente envolvido no contexto intersubjetivo das ações sociais; 3º. Narrar o evento através dos focos alternados ou simultâneos do narrador e do protagonista, de que resulta a perspectiva dual da narrativa em primeira pessoa... (2006, p.139)

O fenômeno pode ser observado num trecho do livro destacado abaixo:

Era como se atrás de mim não ficasse ninguém. Expulso de uma onda de fumaça, desfeita a paisagem, não sei ainda agora como as minhas mãos resistiram, e minhas pernas, e meu cérebro. Padecimento, se houve, não o senti. Imagens e sensações, todo o movimento inteiro se despedaçava como águas represadas, de repentes soltas, que inundam e afogam. Aflorava a lucidez, em raros momentos, mas logo tudo se converteria naquele vento que me levava, arrastando-me – eu, um fantasma, sem carne, sem sangue, sem vida. Não foi uma viagem, mas um voo sem asas. Homens ou animais, pântanos ou pedras, por eles não passei. Sacrificou-se, à atração do vale, a realidade comum (1986, p.174).

Esses elementos agem em Memórias de Lázaro a partir da constituição narrativa de Alexandre. Narrando o que viveu e o que vive, ele (Alexandre) funciona como pivô para a construção de uma história que não só perpassa pelas suas impressões sobre a realidade que o circunda como também dá azo para a construção de sentidos dos outros personagens, a partir do monólogo narrado e da refletorização. Os personagens são, assim, mandantes e mandados da fatalidade do mundo (que se apresenta na figura do vale) ou na fatalidade da própria existência humana, que luta para se erguer contra as mazelas não somente do mundo circundante, mas também das próprias pessoas que se cercam e se destroem. Construído sobre o signo do espaço geográfico Vale de Ouro (que se ergue como uma força que arrasta, como um buraco negro, a vida para dentro de si), Memórias de Lázaro narra a trajetória rememorativa de Alexandre. O caminho, contudo, assemelha- se à hostilidade de um cemitério de essência onírica agonizante, para onde convergem as naturezas humanas mais agressivas e perversas possíveis. O homem (aqui entendido pela perspectiva do latim vulgar homine; e daí, húmus) é o reflexo da brutalidade telúrica que se corporifica em todos os personagens e coisas, não excluindo, para tanto, nem as mulheres e nem os espaços. Num lugar sem lei, não há a perspectiva de uma realidade imoral, mas de uma amoralidade que parece retomar a gênese dos tempos, quando tudo era instinto, vontade e realização.

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Afora essa constituição em que a animalidade parece ser a única forma de existência, a humanidade se perpetra a partir da negatividade. Rosália, por exemplo, arquiteta um plano diabólico que levará à morte de todos ao seu redor. A mulher vivia de extrema perversidade. Ela, por exemplo, regozija-se em arrancar as pernas dos pássaros e de lhes furar os olhos. Após ser espancada pelo progenitor, que a pega em flagrante atitude, deforma-lhe o rosto. Tencionando, então, sair da casa paterna, vê no casamento a única maneira. Assim, após conhecer e conquistar Alexandre, ela o convence a lhe tirar da tutela do pai, que se julgava responsável por acolher aquele ser demoníaco. O genitor, por isso, não aceita que Alexandre se case com a filha, ocorrendo daí uma feroz luta entre os homens. Aproveitando-se da situação, Rosália, matando o pai, realiza parte de seu desejo, vivendo a partir de agora com Alexandre. Embora morando juntos como casados, não se havia consumado entre eles o ato sexual, uma vez que, pelas surras que tomara do pai, o corpo de Rosália estava destruído. Além disso, havia outra razão para que não houvesse contato entre eles: a mulher alegara que tinha sido forçada a manter uma suposta relação incestuosa com Roberto, e que disso engravidara. A condição máxima de terror (para aqui lembrarmos Aristóteles com o dispositivo trágico da compaixão e do terror para se gerar a catarse) ocorre quando Roberto diz flagrar a irmã seduzindo o leproso do vale, Gemar Quinto. Sua intenção era adquirir aquela doença para transmiti-la para Alexandre e para todas as pessoas do Vale. Roberto, então, como que tomado por aquela responsabilidade do pai, decide que a irmã não poderia viver, que sua maldade deveria ter fim. Ele então a mata e a enterra na própria casa. A narrativa aqui ganha uma certa significação especial, pois as afirmações de Rosália – de que estaria grávida – ou de Roberto – de que teria matado a irmã – parecem soar menos seguras, quando se examinam o corpo da mulher e não podem nem descobrir se havia nele um feto ou a causa da morte. Em suspenso, as informações ficam no campo de uma sugestão a partir da qual caberá ao leitor definir seu próprio caminho interpretativo. Após isso Alexandre, encharcado de ódio, ceifa a vida de Roberto, não sem antes lhe ouvir a confissão do que fizera e da revelação do que era realmente a alma de Rosália. Após matar o cunhado, Alexandre passa a viver entre a dúvida sobre o que lhe disse Rosália e o que lhe disse Roberto. Sem mais paz em seu espírito, é perseguido pela imagem da mulher morta. Nas palavras de Ronaldes de Melo e Souza, em O Romance Dramático de Adonias Filho, ―o terror se implanta no centro de suas órbitas.

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Completamente dominado pela sinistra visão, Alexandre erra sem destino, alheio a tudo e a si mesmo, completamente convertido no servo da morte, no escravo da morta‖ (2001, p.3). A inteligência de Rosália, assim, presta-se sempre e somente para o mal. Tal maldade não é fruto, porém, de uma racionalidade, de um empenho meticuloso e orquestrado para atingir uma condição social ou herança financeira, mas apenas para atender a vontade anímica. Na composição do sentido trágico da obra, Ronaldes de Melo Souza, uma vez mais, analisa essas potências antagônicas que se realizam no paradoxismo ao afirmar que “a lição trágica é que o mal não pode ser vencido pela astúcia da razão. Não resulta de um erro racional, mas de uma errância passional. Na experiência da paixão, e não na consciência da razão, é que se viabiliza a catarse do mal‖ (2001, p.4). Se essa errância passional é que vemos em Rosália, os personagens da trilogia romancesca de Adonias Filho vivem sempre sobre o signo desse conflito trágico. Néo Leite Rodrigues assevera, em A presença do mito trágico em Memórias de Lázaro, que, para Alexandre, as forças libertadoras do trágico são opositoras, o que vem evidenciar a atuação de valores pertencentes à limitação de Alexandre como criatura humana, em confronto com valores externos subjetivados em seu íntimo, que motivam o impacto e criam a dissolvência gradativa da personagem; valores externos que surgem como forças situadas acima de todo transitório, forças externas e complexas. É o mundo das aparências: O Vale de Ouro, o nascimento de Alexandre, a morte de Roberto, o incesto da mulher, em suma, toda a ambiência com seus inumeráveis recursos (1980.p. 76).

4) Forma, material e conteúdo Na sua Estética da Criação Verbal, no ―Problema do Autor‖, Bakhtin discute as condições de existência que vimos desenvolvendo acerca da correlação entre Literatura e vida. Para tanto, o crítico russo aborda o princípio da produção artística pelo viés do autor e do personagem; do conteúdo, da forma e do material. No que tange às questões relativas ao autor, Bakhtin aponta que a única maneira de percebermos os traços axiológicos diante dos momentos da vida é a partir do ―outro‖, pois que ao nos colocarmos como sujeito de uma realidade, não a observamos de um – digamos – terceiro olho, capaz de enxergar a completude de um evento. Não nos enxergamos nem como corpo e nem como alma, de maneira que as particularidades do caráter do observador são percebidas como parte do mundo do observado:

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...continuando eu mesmo para mim, não posso ser ativo e um espaço e um tempo esteticamente significativo e condensados, neles não existo axiologicamente para mim, neles não me crio, não me enformo e não me determino. (...) A relação axiológica comigo mesmo é absolutamente improdutiva em termos estéticos, eu para mim sou esteticamente irreal. Posso ser apenas portador da tarefa de enformação e do acabamento artístico, mas nunca seu objeto – a personagem (2003, p.174).

Por conta dessa necessidade da existência do outro, o autor não pode se converter em personagem40, pois que se tornando objeto padeceria da nulidade de uma análise judiciosa de valor. Mas, se o autor não pode se converter em personagem, o pode o narrador. Este, então se transmuta numa perspectiva personativa (no sentido de personagem) que se traduz num traço ou ponto de vista qualquer, que a ele (autor) é inerente, traduzindo, assim, uma realidade, uma verdade multifacetada. E é nesse ponto, em que um (o autor) toma consciência axiológica pelo outro (o personagem), que a obra de arte se define e se impõe como ―conhecimento artístico vivo – momento significativo de um acontecimento único e singular da existência‖ (2003, p.175). A vida é o momento supremo da condição humana e principal elemento trabalhado na grande Literatura. Ela subsiste em diversos matizes significativos e na arte ocorre a propósito da força enformadora do autor. Este, então, abarca as linhas contraditórias e divergentes do mundo, reunindo-as, harmonicamente, dando-lhe vigor. No processo criativo, novos planos se desenrolam e um novo homem sob novo contexto axiológico aparece. Bakhtin, mais do chegar a essa conclusão, postula as condições para que essa estância existencial inédita ocorra:

O autor deve estar situado na fronteira do mundo que ele cria com seu criador ativo, pois se invadir esse mundo ele lhe destrói a estabilidade estética. Nós sempre podemos definir a posição do autor em relação ao mundo apresentado pela maneira como ele representa a imagem externa, como ele produz ou não uma imagem transgrediente integral dessa exterioridade, pelo grau de vivacidade, essencialidade e firmeza das fronteiras, pelo entrelaçamento da personagem com o mundo circundante, pelo nível de completude, sinceridade e intensidade da solução e do acabamento, pelo grau de tranquilidade e plasticidade da ação, de vivacidade das almas das personagens (ou estas são apenas tentativas vãs do espírito de transformar-se por suas próprias forças em alma). Só quando se observam todas essas condições o mundo estético é sólido e se basta a si mesmo, coincide

40 Ainda segundo Bakhtin, sedo o personagem a consciência do outro – a outra consciência – ela constitui o objeto da visão artística, ―o qual reveste essa visão de objetividade estética‖ (p.184).

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consigo mesmo na visão estética que temos dele (2003, p.177. Grifos nossos).

Após as explicitações sobre a condição do autor, podemos nos debruçar sobre as relações entre forma, conteúdo e material. De maneira bastante direta, afirma-se que enquanto o material se refere aos elementos constitutivos da estrutura (como a língua na poesia; o mármore na escultura e a tinta na pintura), o conteúdo refere-se à ―tensão vital; ético cognitiva da personagem‖ (2003, p.177). Sendo assim, a forma é o comportamento que assume o material na intenção de provocar um determinado sentido. Por isso, no intercâmbio dessas três fontes, não se é possível dissociá-los, quer dizer, um só pode ser entendido se condicionado ao outro. O melhor exemplo do que expusemos acima é dado por Bakhtin quando se refere ao procedimento linguístico, material utilizado nas produções literárias. O russo demonstra que o uso da língua só pode ser feito em sua essência puramente (ou puristamente) linguística pelo linguista, pois que o artista a torna ―meio de expressão artística‖(2003, p.178), ou seja, ele a supera. Essa expressão artística, então, é o conteúdo, que vem veiculado pela expressão (forma) e a língua (matéria). O caso do conteúdo, pois, vai se tornando mais complexo e, consequentemente, atendendo aos propósitos de nosso estudo. Bakhtin afirma que para superar a palavra é preciso que ela se torne uma expressão do mundo dos outros – e mais, que ela se torne também uma expressão do intercâmbio do autor com esse mundo. Pois bem, a forma trágica implica um conteúdo trágico (pois senão se esbarra na paródia), mas o conteúdo trágico não precisa da forma trágica, necessariamente, para se realizar. A matéria linguística é outra, mas se busca atingir o mesmo conteúdo, tornando essa matéria a expressão do mundo de outrem. O conteúdo sempre está hierarquicamente superior ao material, pois este reduz o sentido a níveis o mais fono-morfo-sintático possível, sem que daí se resultem pulsões emocionais que deem à obra potência artística. Dessa maneira, a forma trágica se converte em conteúdo e por sua vez no sentido. Não é necessário o mesmo material e nem o mesmo gênero, mas a mesma relação axiológica essencial. Toda essa condição é resultado do estilo, da condição criativa do autor que, nas palavras de Bakhtin:

O estilo propriamente verbalizado (a relação do autor com a língua e os meios de operação com esta, determinados por tal relação) é o reflexo do seu estilo artístico (o reflexo da relação com a vida e o mundo da vida e do meio de elaboração do homem e do seu mundo

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condicionado do mundo e da vida); esse estilo pode ser definido como um conjunto de procedimentos de enformação e acabamento do homem e do seu mundo, e determina a relação também com o material, a palavra, cuja natureza, evidentemente,deve-se conhecer para compreender tal relação (2003, p.180).

Tal sentido trágico observamos nas trilogias de Adonias Filho e Autran Dourado. Vejamos, pois, esse sentido pela perspectiva de Steiger, lembrada por Helena Parente Cunha, ―quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e única deixa de existir, nasce o trágico‖(1979, p.123). Em Adonias Filho, esse sentido ocorre, em Corpo Vivo, com a chacina da família de Cajango; em Os Servos da Morte, com a morte de Elisa; em Memórias de Lázaro, com a morte de Rosália. Em Autran Dourado, isso se verifica, em Lucas Procópio, com o extermínio da existência e da identidade de Lucas Procópio, por Pedro Chaves; em Um Cavalheiro de Antigamente, com a loucura41 de João Capistrano; em Ópera dos Mortos, com a pluralidade de existência de Rosalina. Sendo o estilo42 a marca do autor e a sua visão axiológica, por usa vez, a marca que determina a condição do literário e do material, podemos com Bakhtin concluir que ―a arquitetônica do mundo artístico determina a composição da obra (a ordem, a disposição e o acabamento, o encadeamento das massas verbais) e não o contrário‖(2003, p.182). Isso em si demonstra o esforço da enformação do material artístico disponível que vem de estâncias atávicas e atuais que, ao se digladiarem entre si, impigem ao criador a necessidade de ordenação do caos e da desarmonia.

41 Sobre as condições da loucura dos personagens trágicos, Helena Parente Cunha, em Gêneros Literários, afirma que ―a personagem trágica, quando não se suicida, termina louca ou prostrada sob os escombros do seu mundo. Fedra, depois de lutar desesperadamente contra sua paixão fatídica, não resiste à vergonha e se suicida. Nero sofre um acesso de loucura a seguir ao assassinato de Britânico, porque perde Júnia, em quem projetou sua ânsia de poder. Madalena e Manuel vão esconder-se, prostrados à beira da ruína de suas vidas. O sentimento trágico se estriba num fracasso que derruba o ideal supremo de um ser, como a virtude de Fedra, o poderio de Nero, a honra de Madalena e Manuel. E o amor de Romeu e Julieta.‖ (Biblioteca Tempo Brasileiro – Teoria Literária. No. 42, Rio de Janeiro, 1979, p.122). 42 Bakhtin ainda define o estilo como ―a unidade de procedimentos de enformação e acabamento da personagem e do seu mundo e dos procedimentos, por estes determinados, de elaboração e adaptação (superação imanente) do material (p.186).

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5) Regionalismo

Ficando claros então os conceitos de material, forma e conteúdo, podemos mostrar como esses elementos em Autran Dourado e Adonias Filho serão utilizados na criação de uma obra original. No uso de elementos retirados das circunstâncias locativas, não se deve entender, na obra de Adonias e Autran, a apropriação dos elementos espaciais como fenômeno da cor local. Isso porque os temas são inerentes ao ser humano e não a um lugar com característica enformadora, para não repetirmos aqui o determinismo naturalista, que legou a uma geração de autores certos aspectos que a tradição chamou de regionalismo. Para, então, elucidarmos esse conceito do regionalismo, façamos um breve estudo, iniciando nossa interpretação em Afrânio Coutinho, que inicia o olhar nos primeiros anos do século XX, particularmente às denominadas gerações modernistas:

O experimentalismo da primeira fase dá lugar, na segunda, ao florescimento de um extraordinário surto novelístico, nas suas direções tradicionais da ficção brasileira: a regionalista e a psicológica e de costumes, ambas marcadas por um cunho de brasilidade e de intensificação da marca brasileira na literatura.

a) Corrente social e territorial. O quadro predomina sobre o homem, seja o ambiente das zonas rurais, com os seus problemas geográficos e sociais (seca, cangaço, latifúndio, banditismo etc.); seja o urbano e suburbano, a vida de classe média e do proletariado, as lutas de classes. Adota, de modo geral, a técnica realista e documental. (...) b) Corrente psicológica, subjetivista, introspectiva e costumista. Herdeira do Simbolismo e do Impressionismo, ligada também ao neo- espiritualismo e à reação estética, desenvolve-se no sentido da indagação interior, acerca de problemas da alma, do destino, da consciência, da conduta, em que a personalidade humana é colocada em face de si mesma ou analisada nas suas reações aos outros homens. São problemas psicológicos, religiosos, morais, metafísicos, ao lado de problemas de convivência que a preocupam (...) (2004, pp 275- 277).

Nesse último grupo, Afrânio Coutinho encerra as prosas de Adonias e Autran. O mérito do crítico está em reconhecer a inovação da linguagem e, embora coloque as obras desses autores meramente tributárias a uma linha intimista ou psicológica, mostra que tal intimismo é na verdade de vários matizes. Se por um lado é válido seu esforço de minuciar o que normalmente se chamava de segunda geração modernista, não percebeu o crítico que tal intimismo ou psicologismo – ou mesmo os traços

79 regionalistas descritos naquela corrente social e territorial – não era o fim, mas o meio para se atingir um saber Mas não nos restrinjamos apenas à interpretação de Afrânio Coutinho e percorramos outras fontes. Em Breve História da Literatura Brasileira, Érico Veríssimo afirma que

a década de 30 trouxe à literatura brasileira sua maioridade. Os traços da adolescência – um pendor ao mero jogo de palavra e cores, a falta de espírito de análise – desapareciam.( Machado de Assis, no século anterior, fora uma espécie de milagre na área da ficção, e , um precursor nos domínios da história e da sociologia) (1996, p.119).

Não parando sua análise por aí, concluiu que

depois de 1930, os escritores em meu país começaram a se interessar pelos problemas sociais e filosóficos de seu tempo. Os horizontes da crítica se expandiram. A maioria dos nossos romancistas agora escrevem suas histórias em torno de problemas sociais. E aqueles que pensam não serem capitais os fatores econômicos aderem ao romance psicológico. De qualquer modo, sabem que um romance é mas do que um enredo inteligente ou uma série de eventos contados com graça só para fim de entretenimento.(Grifos nossos. 1996, p.119- 120.).

A contribuição de Érico Veríssimo é fundamental na compreensão daquela maioridade intelectual que no vintênio do início do século ainda era incipiente. Há, contudo, um ponto em sua afirmação que, olhada de soslaio, parece deixar passar uma crítica. Ele afirma que os escritores que ―pensam não serem capitais os fatores econômicos aderem ao romance psicológico‖. Com essa afirmação, o crítico aponta dois caminhos que parecem se contradizer, visto que aquele que não escolhe a verve social, por julgá-la menos importante, cai no romance psicológico. De forma sub-reptícia, a informação que daqui se extrai é que estamos diante de um romance em algum grau alienante das condições sociais. Não percebeu, com agudeza, o crítico, que não refletir o social é a situação essencial de qualquer romance, pois, se tratando de ficção, lhe será impossível traduzir a realidade externa. Toda a realidade dentro de um romance já faz parte desse romance e por mais dialética que ela se faça do espaço externo, ela não será mais do que uma ficção.

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E nesse ponto que o valor da obra de arte se constrói, pois a partir do momento que o autor domina das estruturas do seu ofício e limita43 as condições de existência dos personagens, o drama se adensa, o mergulho na interioridade anímica do personagem se torna completa e a literatura age como forma superior de conhecimento, capaz de veicular conhecimento racional e passionalidade existencial. Esse talvez seja o ponto crucial da discussão. Sem dúvidas o homem, inserido numa sociedade, é influenciado por ela. Na forma de agir, falar e se comportar, o homem social precisa, de certa forma, acatar aos desígnios da maioria, sob pena de ser excluído; marginalizado. No entanto, o que homem tem de mais livre ao seu comando é o pensamento, a capacidade de pensar e a partir daí formar uma nova realidade. Por outros termos, se o homem é produto da sociedade que o cerca (lembrando Rousseau) é bem verdade que a sociedade só sai da inércia e da passividade quando se tem os grandes que conseguem transgredir. O homem não é só um produto, mas um ser capaz de modificar o meio que o rodeia, mas do que objeto das ações sociais, ele é sujeito. E é em cima dessas considerações que podemos ver a obra de Adonias Filho e Autran Dourado. A crítica literária sofre da constante vontade de se criar uma linha, um grupo em que as características sejam marcadas para assim ser mais fácil a leitura. Isso é um total engano. Sabendo que a obra (se) compõe (de) mundividêncas é impossível colocar os grandes nomes da literatura numa mesma fornada criativa, isso porque quando acionavam outras áreas do saber para a construção do seu sentido artístico, não o faziam a fim de minorar a potência literária, mas como forma de se criar um instrumental suplementar, nunca complementar. Quer dizer, o embasamento literário deve ser o suporte que possibilita a interpretação da obra permitindo que outros discursos façam parte da leitura. Sendo assim a literatura regionalista parte do pressuposto que o foco é o regional, ou mais: distingue a sociedade sempre pelo ponto de vista de determinada elite. De forma brilhante escreveu Antonio Candido, em Iniciação à Literatura Brasileira, ao afirmar que muitas vezes o que se chamou de regionalismo nada mais foi do que distância geográfica, visto que, tendo como referência intelectual o Rio de Janeiro, o país olhava como exótico tudo que não tivesse por base a sua capital. É claro, entretanto, que a valorização da literatura muito se deveu à safra dos escritores que

43 Usamos o termo resgatando aquela definição usada por Antonio Candido em A personagem de ficção.

81 emergiram na década de 30. É bem verdade que no início do decênio de 30 houve várias formas de regionalismo. Isso muito foi tributário daquele gosto romântico indianista que pregava o exotismo e o pitoresco na construção dos nossos enredos, o que, por sua vez, valorizou o povo. Vale aqui, portanto, mencionarmos o dizer de Antonio Candido sobre a questão, em Brigada Ligeira:

O romance no Nordeste surgiu e se colocou pela primeira vez na literatura nacional, como um movimento de integração ao patrimônio da nossa cultura da sensibilidade e da existência do povo, não mais tomado como objeto e de contemplação estética, mas de realidade rica e viva, criadora de poesia e de ação, a reclamar o seu lugar na nacionalidade e na arte, que, neste momento, tocava o ponto vivo de sua missão no Brasil. Há sempre para ela um papel a desempenhar, e feliz quando consegue fazê-lo. Estava procedendo à descoberta e conseqüente valorização do povo; ligando-o, portanto, ao nosso patrimônio estético e ético, num magnífico trabalho de preparo ao aspecto político da questão, por que ainda esperamos. E estava, ao mesmo tempo, garantindo à literatura brasileira a sua sobrevivência como fenômeno cultural, porque lhe mostrava o caminho a serem realizados (2004. p.42).

Mister também é salientar o comentário que Adonias Filho dirige ao estado de brasilidade do romance. E, ainda que não seja essa a linha do nosso trabalho, abramos um breve parênteses explicativo sobre o viés interpretativo a partir do qual irá se pronunciar sua voz crítica, em O Romance Brasileiro de 30. Na obra, o autor-crítico afirma que o documento é o princípio que revela ―a matéria ficcional como de inspiração decisiva‖ (1969, p.11). Ampliando as afirmações de Afrânio Coutinho, Adonias esclarece também, que tal documento

sendo principalmente o testemunho, não alJena ou elimina – no fundo mesmo dessa percepção realista – a grande auscultação ou a sondagem maior em torno da condição comum. Não falta a interiorização em busca psicológica como também não falta a dialética em força de debate. Uma das suas características desse romance brasileiro que se realiza mais à sombra dos valores nacionais que sob interferências de escolas como o romantismo e o naturalismo, é precisamente a de concentrar-se em torno de todas as exigências literárias sem perder a constante documentária (Grifos nossos. 1969, pp 11-12).

Se não devemos entender estilização com base nesse processo de regionalizar os traços universais, tampouco devemos confundi-lo ao sentido de paródia. Isso porque esta é uma retomada ao texto anterior a partir da subversão do seu sentido original. Ao submeter o produto artístico a esse procedimento, é comum resultar ou um tom

82 bonachão ou um tom mais pretensioso do que realizador de sentido válido. Já o segundo conceito – a estilização –, ao recuperar a esse texto anterior, não só o reconhece como digno de valor, como o aperfeiçoa e o sofistica. Adonias afirma que ―a infra-estrutura literária é maior que a estrutura documentária (...) e o ―romance, em consequência, é o veículo para o documento e não o documento em si mesmo‖. Diante desse quadro a estilização, pois, individualiza um texto, adequando-o a uma modernidade – sem modernismos.

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Capítulo III A tradição e a revolução da tragédia ática

Nas mais diversas acepções que podem espargir da palavra ―trágico‖, duas considerações guardam valor altamente significativo. A primeira refere-se à natureza do trágico como gênero. A segunda – com implicações mais intrincadas – refere-se a um sentido artístico e social que serão indissociáveis na construção da realidade. Como vimos no capítulo 2, quando se associa à ideia de gênero, a acepção de trágico guarda traços formais e conteudísticos próprios do Drama, que, numa palavra, pode ser entendido como encenação. Ou seja, sem a presença de um mediador (o narrador), a trama se desenvolve pela ação vívida dos personagens que estão a cargo de (des)envolver o(no) espectador as mais diversas sensações. Centrando seus esforços no impacto da tensão, no drama ―não se admite retardamento na ação nem desperdícios de por menores‖44. Isso pode, por exemplo, ser analisado e comprovado em Édipo Rei, em que o início da tragédia já revela todas as ações que foram vividas pelas personagens, pois que Tebas já era alvo da ira dos deuses, furiosos por testemunharem os mais terríveis crimes, neste caso cometido pelo próprio Édipo. Helena Parente Cunha45, citando Steiger, lembra que

Convém restringir o tempo, economizar espaço e escolher um momento expressivo da longa história, um momento pouco antes do final, e daí desse ponto reduzir a extensão a uma unidade sensivelmente palpável, para que ao invés de partes, grupo coesos, ao invés de passagens isoladas, o sentido global fique claro, e nada do que o espectador deva fixar se perca (1979, p.118).

Ainda nas considerações sobre a forma, podemos retornar as primeiras teses. No Livro VII de A República, no famoso Mito da Caverna (responsável por cindir a sociedade ocidental posterior em essência e aparência, corpo e alma, matéria e espírito), Platão, na voz de Sócrates, afirma que, para se chegar à verdade de todas as coisas, era necessária a presença iluminadora do sol (Apolo) e da luz, uma vez que as trevas (Dioníso) produziam uma noção turva da realidade. Glauco, rindo, já asseverava: ―Ó Apolo! quanta superioridade!‖ (2000, 314). Daí o filósofo conclui que o Bem (condição de ater-se às coisas não perecíveis para se suportar a vista do ser) permite a visualização da verdade; já o conhecimento seria a capacidade dessa visão, e a verdade – por sua vez

44 CUNHA, Helena Parente. ―Gêneros Literários‖. Teoria Literária. Biblioteca Tempo Universitário. No.42, Rio de Janeiro, 1979.p. 118. 45 CUNHA, Helena Parente. Op.cit., p.118.

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– seria o objeto visto na sua validade universal e normativa. Instaurando a gradação corporificada em conjectura, fé, entendimento e razão, Platão forja para sempre o princípio racional como ápice das condições de verdade. Aristóteles, a eu turno, em sua Arte Retórica, Arte Poética, mantém a razão como elemento basilar e impõe a ordem e, consecutivamente, a lógica como método de reconhecimento dos elementos da arte e da própria constituição do ser. Fortemente assentado em conceitos matemáticos, formais e de caráter, o filósofo submete a tragédia a uma composição dramática, conceituada como o desenvolvimento de uma ação (e por isso o enredo será o elemento mais importante), na qual a arte irá imitar46 os caracteres e as emoções. Assim ele definia o gênero:

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções. (...) Sem ação não há tragédia (Grifos nossos. 199?, p.248).

A tragédia também se caracteriza pela representação do homem melhor do que é47. Essa representação é atingida pela imitação de ações que, por sua vez, leva a um fim advindo de uma maneira de agir e não de ser. Mas como Aristóteles propõe a obtenção da imitação trágica? Para ele, ―parte da tragédia consiste no belo espetáculo oferecido aos olhos, (...) à musica e (...) à elocução (199?, p.248). E daí, no desenvolver desses conceitos, afirma que

...a elocução como dissemos antes consiste na escolha dos termos, os quais possuem o mesmo poder de expressão, seja em prosa seja em verso. (...) o canto: é o principal condimento (do espetáculo). Sem dúvidas a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas não faz parte da arte nem tem nada a ver com a poesia. A tragédia existe por si independentemente da representação e dos atores. Quanto ao trabalho da encenação, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta (199?, p.249).

Em resumo, vemos que Aristóteles aponta que os elementos da tragédia são: o enredo, o caráter, o pensamento, a elocução, o espetáculo e a música. Em conjunto, eles

46 Para Aristóteles, essa imitação é originada do prazer que por sua vez advém do que se compreende do que se aprendeu. 47 Lembramos aqui a já estudada teoria de que a comédia, em contraposição à tragédia, seria a representação do homem pior do que é.

85 serão capazes de indicar a forma e a finalidade da tragédia que, em última estância, é provar no espectador um efeito48: a catarse. Assim define Roberto Machado, em O Nascimento do trágico: ―a elocução e a música são os meios de imitação; o enredo, o caráter e o pensamento, seu objeto; e o espetáculo, a maneira de a tragédia imitar‖ (2006, p.26). Procuremos aqui compreender mais claramente o uso que Aristóteles faz de alguns conceitos. Esse ―estilo agradável‖ é o resultado da utilização do ritmo, do canto, do metro; ―certa extensão‖ refere-se a uma duração que não exceda ―uma revolução solar‖ (nesse sentido, afastando-se da extensão da epopeia). Já a ―ação apresentada por atores‖ – ponto de relevância na percepção exegética – dá o tom de força do gênero, tanto por propiciar o espetáculo aos olhos como por produzir a imitação. Em cima, então, dos elementos que levarão à finalidade catártica – e respectivamente dos seus efeitos de compaixão e terror que são suscitados no espectador –, Aristóteles quer conduzir à purificação das emoções, com a intenção (ainda que aparentemente contraditória) de se chegar ao prazer. As mais diversas interpretações sobre o trágico, todavia, esbarram em questões de ordem históricas, razões pelo qual nosso estudo tende a ser apenas um direcionamento norteador dos mais relevantes princípios trágicos e não um mergulho profundo em questões mais pormenorizadas. Sobre as dificuldades de perquirição, aponta o professor de grego da Universidade de Oxford, Hugh Lloyd-Jones:

A tragédia grega é uma forma de drama, com leis próprias, diferencia-se das leis de qualquer outro tipo de drama, inclusive daqueles que ajudou a modelar. Essas leis devem ter sido condicionadas pelas circunstâncias peculiares à sua origem, por mais obscura que essa origem, infelizmente, seja (1977, p.93).

A segunda consideração sobre o conceito de ―trágico‖ é mais complexa, pois unifica certos traços estilísticos com circunstâncias relativas aos aspectos ontológicos e axiológicos. Para isso devemos observar de que maneira a tradição aprendeu as lições

48 Roberto Machado, analisando as condições de existência desse sentimento para Aristóteles, demonstra que a compaixão é originada não do simples sentimento do outro, mas sim do sofrimento imerecido que ao outro se impõe. E acrescenta que o enredo trágico, para se operar, deve demonstrar que houve o erro cometido por uma ignorância, ou seja, a hamartia. Lessing, todavia, vê que o efeito catártico decorre do sentimento de compaixão que sentimos, mas que, na verdade, é uma compaixão que se refere a nós mesmos, receosos de que a desgraça que se abateu sobre o outro repercuta em nós ou mesmo nos assole. A esse sentimento de compaixão trágica, ele dá o nome de afeto.

86 de Aristóteles e de que modo a revolução de Friedrich Nietzsche apontou significativamente para nova visão dos fatos. No que tange ao pensamento nietzschiano, devemos antes fazer uma breve reflexão de como ele participou de uma tradição bastante proficiente que existiu na Alemanha do século XVIII. Só assim seremos capazes de compreender de que modo o autor absorve e inova os conhecimentos sobre as antinomias que, em maior ou menor grau, apontarão para uma convergência. Para esse último estudo, nos serviremos das reflexões teóricas de Roberto Machado, em O Nascimento do trágico – de Schiller a Nietzsche, momento em que pretextaremos a utilização de outros autores que também viram no trágico a manifestação da genialidade do espírito grego, como Hölderlin. No mais, além dos autores em questão, iremos, também nos debruçar sobre as perspectivas teóricas de Albin Lesky. Para as futuras interpretações, é importante destacar que o gênero trágico se ramifica até a modernidade. Sendo este último o foco de nosso trabalho (e sobre o qual nos deteremos um pouco mais à frente), aludamos antes à explicação de Rogel Samuel que, lembrando Hegel, diz que

na tragédia antiga, pelo fato de sua elevação plástica, mostra-se ainda ―exclusiva‖ porque evidencia o poder das forças morais e o poder das necessidades, sem procurar, diz ele [Hegel], aprofundar a subjetividade e a individualidade dos personagens. (...) A tragédia moderna, pelo contrário, fundamenta-se no ―princípio da subjetividade‖ como elemento propulsor do trágico. É a interioridade subjetiva do seu caráter, e não uma simples personificação moderna ou clássica das forças morais, que constitui o seu objeto, seu conteúdo, e é que o faz dom que tanto a explosão dos conflitos como o desenlace dependam de conjecturas acidentais (2002. p.29).

Além disso, podemos destacar, ainda que a princípio de soslaio, que a revolução nietzschiana é radical aos preceitos aristotélicos. Isso porque o filósofo alemão entende a tragédia como uma revalidação anímica dos conceitos lógicos, uma vez que verifica o saber não pela razão, mas pelo sofrer, isto é, pela experiência, pois coloca como centro da ação a individualidade passional, não a objetividade racionalizante. Diz-se, agora, que o fim ao qual se pretende chegar é oriundo de uma maneira de ser e não de agir. Minorando a potência da ação, muda-se também o conceito de imitação. Contudo, como tal sentido normalmente se atrela ao de mímesis, vale distingui-los, e, para isso, resgatemos a análise de Ronaldes de Melo e Souza, em O Romance Tragicômico de Machado de Assis:

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Comportando-se como ator teatral, o narrador machadiano é o narrador mímico-dramático, o narrador que difere sempre de si mesmo, que se despersonaliza a fim de personificar cada um dos papéis disponibilizados pela diversidade qualitativa da atuação histórico-social dos homens. Mímesis nada tem a ver como imitatio.Mimesthai, a que se reporta mímesis, significa comportar-se como ator de um mimo (Sörbom, 1966). Se o mimo é grave, o ator é a gravidade em pessoa, se leviano o mimo, leviano o ator etc. O ator não é, senão enquanto devém na mímesis de um outro eu (2006, p.17).

A partir dessa nova conceituação, entende-se a referência de Aristóteles a uma imitatio e não a uma mímesis; isso porque, enquanto aquela traduz uma cópia de atitudes e comportamentos, esta guarda as potências do ser, pois manifesta uma pluralização de essências, ao exprimir genuinamente a voz do outro. À luz das exegeses nietzschiana e hölderliniana essa mímesis revela o papel epistemológico da arte. No olhar de Nietzsche, haverá a conciliação entre a dionisíaca força da experiência com a apolínea enformação racional das pulsões, mediante um aparato artístico. Somente será possível ver holisticamente a cultura helênica clássica, caso se considere essa unidade, e por isso Nietzsche, observando que a cultura grega é essencialmente trágica, assinala que ela se constrói na desordem do ditirambo atrelado à simetria apolínea. Com essa teoria, o filósofo alemão amalgama na unidade dual os princípios da epistemologia e da ontologia. Na tragédia, os eventos narrados já ocorreram quando se inicia sua leitura ou sua dramatização, de modo que se desenvolvem os dramas da existência e não a trama de ações. Quer dizer, se o ato se realiza, ele é um efeito da vontade do espírito e sobre essa vontade, afirma Nietzsche, em O nascimento da tragédia:

O grego conheceu e sentiu as angústias e os horrores da existência: para que lhe fosse possível viver, era necessário que se interpusesse o fervilhante esplendor do sonho olímpico. Essa enorme desconfiança para com as forças titânicas da natureza, essa Moira que reinava sem compaixão sobre todos os conhecimentos, esse abutre do grande amigo da humanidade, Prometeu, esse horrível destino do sábio Édipo, essa maldição da raça dos Atridas, que força Orestes a assassinar sua mãe, numa palavra, toda essa filosofia do deus das florestas, com os mitos que a elas se ligam, essa filosofia em virtude da qual morreram os melancólicos estrucos – tudo isso foi, perpetuamente e sem trégua, superado, vencido pelos gregos, pelos menos velado e afastado de seu olhar, com a ajuda desse mundo intermediário e estético dos deuses olímpicos. (...) Como esse povo de emoções tão delicadas, de desejos são impetuosos, esse povo tão

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excepcionalmente capacitado para o sofrimento, teria podido suportar a existência, se não a tivesse contemplado em seus deuses, circundada de uma glória radiante? Esse mesmo instinto, que reclama a arte na vida, como o ornamento, o coroamento da existência, como o encanto que nos leva a continuar a viver, gerou também o mundo olímpico que foi, para a ―vontade‖ helênica, o espelho em que sua própria imagem se refletia transfigurada (2011, p.39).

É desse antagonismo, pois, que se forma o princípio criador: ―o desenvolvimento da arte está ligado à dualidade do dionisíaco e do apolíneo: da mesma maneira que a dualidade dos sexos gera a vida no meio de lutas perpétuas e por aproximações periódicas‖ (2011, p.27). O filósofo verifica, aqui, a existência da construção artística a partir do caos e do conflito, num olhar muito aproximado ao de Hölderlin, para quem (sendo a unidade distinta de sua própria essência) a inspiração dionisíaca se unifica ao rigor de composição apolíneo. No que tange à estrutura, não pode haver nas tragédias o desenrolar temporal configurado a propósito das relações de início, meio e fim, definidos por Aristóteles, já que elas não mais se preocupam – como já o dissemos – com as ações, mas com as paixões. Em Ésquilo, por exemplo, observa-se a transgressão aos elementos do status quo (seja religioso, político ou ético) quando Orestes assassina sua mãe que por sua vez articulara a morte do marido, o pai do herói. De seu ato, será ele (Orestes) perseguido pelas Erínias e julgado diante de Palas Atenas. Em Sófocles, podemos enxergar a rebeldia de Antígona contra a condição de deixar insepulto o corpo do irmão. Arriscando sua própria vida, ela resolve enterrá-lo. Todas as ações já ocorreram e o que fica são os sentimentos diante dos graves embates sobre os quais tentam subsistir os personagens. É preciso, então, lembrar que a tragédia grega, ao centrar-se num conflito, leva o homem a realizar uma reflexão. Néo Leite Rodrigues, em A presença do mito trágico em Memórias de Lázaro, afirma que ―a tragédia grega centraliza a ação num determinado conflito, que leva as personagens a interrogarem-se sobre a vida e o destino do homem, e sobre a legitimidade das intenções divinas‖ (1980, p.11). A partir dessas reflexões, a personagem reconhece seu estado diante das organizações cósmicas do Universo e da disposição que é colocada diante aos deuses e se rebela (hýbris). Rodrigues, citando Camus, afirma que essa rebelião ―consiste num resoluto protesto contra um destino intolerável que exclui tanto a esperança de uma saída como a resignação de um consentimento‖ (1980, p.11). De modo geral, esse conflito gera uma

89 contradição. Albin Lesky, lembrando Goethe, diz que ―todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o trágico‖ (1971, p. 23). Se Goethe, como conclui Lesky, aponta para dois polos diametralmente opostos, ele não resolve quais são os elementos encontrados em cada extremidade. Essa é a questão a ser perseguida, observando que, a despeito das antinomias, o radicalismo (que se converterá em unidade dialética) irá sempre se realizar.

1) A revolução Nietzschiana

O estudo sobre a revolução nietzschiana só abarcará a potência máxima de sua representação se antes fizermos uma retrospectiva sobre como esse sentimento de combate às forças meramente apolíneas na tragédia se alicerçaram no espírito alemão. Para a visualização desse fenômeno, partiremos do estudo feito por Roberto Machado no seu importante O Nascimento da Tragédia – de Schiller a Nietzsche, pois é aqui que o ensaísta mostra que, para além do trágico, há uma essência do trágico, conceito que ele recupera de Schelling e, se demonstra por um lado a valorização do pensamento grego, também se traduz na busca de uma identidade alemã, no que concerne à construção da modernidade e do teatro nacional. Tais efeitos de absorção e inovação dos conceitos antigos já foram expostos por nós no primeiro capítulo deste estudo, contudo à guisa de maior elucidação do processo, resgatemos os pontos de força mais significativos. Se a modernidade pode ser iniciada com a revolução filosófica de Descartes, Roberto Machado prefere uma discussão do termo a partir das considerações de Kant, que demonstrava o seu estágio de modernidade, na condição de colocar o sujeito como condição de possibilidade do saber empírico. Nesse sentido, o saber não mais se aliava a coisa (res), ou seja, a coisa que deve se aliar ou concordar com o saber. Kant modifica esse paradigma ao centrar o homem como sujeito, ou seja, um ser agente que terá a capacidade de participação no princípio do saber. De acordo com o filósofo, é a subjetividade do sujeito que determina a objetividade do objeto. Mas é em Goethe que as ideias que vimos desenvolvendo de um sentido trágico ganha traço mais elucidativo, principalmente se tomarmos como exemplo a peça Ifigênia, em que o clássico não se demonstra em suas formas, mas sim em seu conteúdo. Por outros termos, há em Goethe a grandeza da modernidade (um tipo de humanidade

90 mais elevado, nas palavras de Schiller49), dialogando com o conceito kantiano de do sujeito como possibilidade do conhecimento. E mais, lembrando Hegel, Roberto Machado diz que ―em Goethe (...) o personagem ‗só acredita na verdade que traz em si e que reside na alma humana‘. O que faz a peça de Goethe, além de clássica do ponto de vista da forma, algo de profundamente moderno quanto ao conteúdo‖(2006, p.20). Se citamos acima as considerações sobre Goethe e se o reconhecemos como aquele que tem o conceito da Grécia como o ápice artístico, é válido demonstrar como o alemão se coloca sobre essa questão, encontrada no artigo Antigo e Moderno e em Conversações com Eckermann. Pela validade da explanação, abramos um espaço para a citação:

A clareza da visão, a alegria da concepção, a leveza da transmissão são coisas que nos encantam; e se acrescentarmos que encontramos todas essas coisas nas obras autenticamente gregas, realizadas da maneira mais nobre, com o conteúdo mais precioso, com execução segura e perfeita, nos compreenderão porque sempre partimos dessa arte e sempre voltamos a ela. Que cada um seja grego a seu modo! Mas que o seja. (...) Quando procuramos um modelo, é preciso que voltar sempre aos gregos antigos, cujas obras representam sempre o homem no que ele tem de mais belo. (...) Que se estude Molière, que se estude Shakespeare, mas antes de tudo os gregos antigos, e sempre os gregos (2006, p.21)

Lessing, a seu turno, muito contribui para a formação da estética moderna do teatro alemão. Para tanto, criticando a tragédia francesa50 do século XVII, a contrapôs ao drama de Shakespeare, com um teatro de que os alemães poderiam se valer para a constituição da nacionalidade na representação burguesa (perfil que para Lessing seria o futuro do povo germânico). A isso, na tentativa de remontar à tragédia grega pura e autêntica, unia-se a conceitos51, que se veem

pela concepção do drama como representação de uma ação acabada. Pela defesa da superioridade da unidade de ação sobre as unidades de tempo e de lugar, defesa que o leva a distinguir a acomodação às regras, caso dos Antigos. (...) E, sobretudo – pois se trata do ponto que ele mais valoriza na poética aristotélica –, pela teoria da catarse, que tem na compaixão seu elemento essencial e no temor, ‗a compaixão referida a nós mesmos‘, o meio de atingir a compaixão‘(2006, p.38-39).

49 In. MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico. p.17. 50 Lessing acreditava que os franceses distorceram as interpretações das ideias aristotélicas a ponto de suas tragédias serem não-clássicas. Sua interpretação da tragédia tinha um fundo moralizante, visto que afirma que a arte torna o homem mais humano, pois que desenvolve o amor à virtude e o ódio aos vícios. De teatro em Literatura 77ª.parte, p.74-5. 51 Roberto Machado. p.38-39.

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2) A filosofia do trágico

Se os valores e as formas do trágico são discutidos na Alemanha de maneira a ampliar determinados conceitos do trágico por Aristóteles, coube a Schelling a demonstração da modernidade do fenômeno do trágico, ou seja, das condições de tragicidade. Em sua obra O nascimento do trágico, Roberto Machado chama a isso de filosofia do trágico, que é o elemento o qual estabelece a essência do trágico, responsável não pela organização arquitetônica – como queria Aristóteles na epopeia – , mas pelo vigor e pela visão trágicos que desabaram sobre o homem. A partir dessas condições, trágico passa a desempenhar o sentido do princípio da tragicidade, visto que agora ele irá transcender os aspectos do gênero, filiando, assim, a uma mundividência. É o que afirma Anatol Rosenfeld, no prefácio à edição brasileira de Tragédia Grega, de Albin Lesky:

Sempre quando se fala nesta obra de ―o trágico‖, este termo não se refere aos que escrevem ou representam tragédias, mas à categoria estética ou ao princípio filosófico do trágico que encontram a sua expressão mais pura na tragédia, embora possam manifestar-se, também, no romance, na música, as artes plásticas, às vezes até na comédia, para não falar da tragicidade de situações da vida real. O conceito ultrapassa de longe a concretização específica na tragédia (2010, p.14).

Tais considerações desembocam numa própria revisitação do olhar sobre a tragédia, pois agora não se desenvolvem papéis relativos à encenação e ao espetáculo, mas se preenche de pulsões anímicas o gênero, dotando-o, em último e maior grau, de uma ―interpretação ontológica (2006, p.44). E é nessa ontologia52 que a tragédia se afasta das considerações políticas e se aproxima dos dramas da existência humana. Aqui já se observa um fenômeno curioso: a construção de um raciocínio dialético para com os elementos do trágico. Esse dialetismo se inicia com Platão e se desdobra em Kant, com a sua tentativa de conciliar as antinomias. Deve-se lembrar, contudo, que Platão, de maneira – digamos – inversa (ou pela negação), foi usado pelos modernos alemães para a nova concepção da tragédia. Isso porque havia no grego o gérmen da construção dicotômica53, porquanto Platão, não vendo na tragédia um documento ontológico, busca segregar a poesia da filosofia. Pois bem, Platão, ao criticar

52 Ou ontoteologia, no dizer de Heidegger. 53 Roberto Machado cita o estudo de Jacques Taminiaux, em Le théâtre des philosophes como validação dessa linha de raciocínio.

92 a tragédia, alegando que ela, por imitar uma realidade a qual seus artistas não conhecem (pois o ―poeta imita qualquer coisa sem saber o que é‖ (2006, p.45)), acaba por expulsar os poetas da República, suprimindo a tragédia da vida política em nome de uma cidade ideal. Assim, a poiesis platônica na cidade ideal – ―que imita em estância última a verdade‖ (2006, p.46) – somada à crítica à tragédia, que apenas irá refletir o falso, pois que não reproduz um modelo verdadeiro, apresentam as duas concepções da tragédia. O que deve haver, portanto, é um teatro filosófico, único capaz de levar ao Bem e, consequentemente, à Verdade. Sobre essas discussões, Roberto Machado lembra que os alemães, a despeito das críticas, estudavam Platão, mas enxergavam a tragédia a partir da perspectiva ontológica54 e de um consequente afastamento político – o que garantiria, nesse teatro filosófico – uma tragédia verdadeira. É interessante observar também o estudo de Lacoue-Labarthe que Roberto Machado traz, para entendermos, agora, que uma filosofia do trágico é, na verdade, ―uma teoria do efeito trágico‖ (2006, p.47). O francês irá demonstrar que Schelling55, investigando Aristóteles, irá dar conta da explicitação do constructo trágico, assinalando quais devem ser os elementos que precisarão ser rechaçados e quais serão privilegiados na composição do enredo, corroborando, assim, o conceito do efeito em predominância ao encadeamento lógico e sistemático. Todos esses passos, em maior ou menos grau, se unem na identificação moderna da tragédia sob uma perspectiva dual e dialética que ―apresenta dramaticamente uma contradição‖ (2006, p.49). Essa contradição, por sua vez, se espraiará na essência dos alemães e desaguará em Nietzsche, como cita Roberto Machado, acerca do processo trágico na Alemanha:

Eis por que dizia inicialmente que considero só ser possível compreender profundamente a significação do pensamento de Nietzsche sobre a tragédia, e até mesmo sua ambição, característica do último período de sua filosofia, de ser o primeiro filósofo trágico ou o inventor do ditirambo dionisíaco, se o inserirmos nesse movimento de ideias sobre a tragédia e o trágico existente na Alemanha desde o início da modernidade, movimento sem paralelo em nenhum outro país. Winckelmann deu início, na Alemanha da segunda metade do século XVIII, a um estudo dos gregos, ou mais precisamente, da arte

54 Vai se demonstrar no correr desse capítulo que houve um processo contínuo e não abrupto do desenvolvimento desse valor ontológico para o estudo do trágico por parte da modernidade alemã. 55 SCHELLING, Friedrich Von. Cartas sobre dogmatismo e criticismo. Abril Cultural, 1979.

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grega, interpretação da Grécia em que está em jogo a construção da própria Alemanha; Lessing iniciou, na mesma época, uma reflexão sobre um teatro nacional independente do teatro clássico francês. Goethe e Schiller retomaram e aprofundaram essas questões. Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer vão além de seus antecessores, iniciando e desenvolvendo um pensamento sobre o trágico que forma a tragédia ou a herança teórica que chegará finalmente a Nietzsche, uma de suas mais sublimes expressões (2006, p.43-44. Grifos nossos).

Dando continuidade à travessia pela tragicidade de herança alemã, chega-se a Schiller, filósofo considerado um dos mais kantianos autores do trágico. Isso porque seu pensamento perpassa pela tragédia a partir de traços dicotômicos que se unificam entre a vontade e o instinto humanos. Sua teoria, contudo, não se prende aos traços relativos à essência do trágico, mas aos seus elementos poetológicos. Para Schiller, a tragédia é a apresentação sensível do supra-sensível56. Enquanto este é entendido como a subjetivadade humana que lhe dota (ao homem) de vontade livre, aquele se relaciona aos sofrimentos dos personagens, meio do qual se utiliza para atingir o estágio de liberdade. Assim

o aspecto sensível do homem tem de sofrer intensamente para que o seu aspecto racional possa manifestar sua independência. E quanto mais o afeto é forte, que significa dizer, quanto mais a dor, o sofrimento, é violento – pois na base da experiência trágica apresentada pela tragédia se encontra o desprazer –, mais gloriosa é a manifestação da autonomia moral do homem (2006, p.56).

A grande contribuição de Schiller, entretanto, se dá quando ele associa os conceitos apresentados com a ideia do sublime e do prazer estético. Bom, é preciso ter em mente que o elemento é o objeto que desperta no homem a subjetividade, levando-o, por sua vez, ao sublime. No caso do prazer estético, busca-se harmonizar o entendimento e a imaginação a partir do objeto. No caso do sublime, esse objeto apresenta-se amorfo ou ilimitado, o que força a conciliação entre imaginação e razão. Por isso o sublime denota tal subjetividade, superando, inclusive o belo, por conta do fato de que, no sublime a razão, sem a participação dos impulsos e da influência física, propicia a completa liberdade moral.

56 Roberto Machado lembra que o supra-sensível em Schiller ―não diz respeito a uma entidade metafísica, no sentido de um além-mundo ou de um absoluto, mas à subjetividade humana, ao homem, pensado como vontade livre ou liberdade moral, numa perspectiva muito mais moral do que propriamente metafísica (2006, p.54).

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Mas de que maneira isso se realiza? Retomando a dicotomia do sublime matemático e a do sublime dinâmico. Schiller em sua terminologia fala de um sublime teórico (ou contemplativo) e de um sublime prático (ou patético). E esse último é aquele que serve de alicerce para se pensar o trágico. É como ensina Roberto Machado:

Isso significa que, privilegiando o sublime dinâmico kantiano para esclarecer a visão de mundo apresentada pela tragédia, esses textos sobre o sublime, o patético e o trágico partem da ideia de que o sublime é provocado por um objeto atemorizador, pavoroso, cuja representação leva nossa natureza sensível a sentir os seus limites ou a sua impotência, pelo fato de pôr em perigo nosso impulso de conservação. Mas não basta haver algo atemorizador ou pavoroso para haver sublime. Também é necessário que o objeto pavoroso leve nossa natureza racional a sentir a sua superioridade, a reconhecer sua capacidade de resistência moral, sua liberdade em relação a limites. Perante um objeto sublime, é possível não ter nenhuma segurança física e sempre perder fisicamente, mas também é possível se elevar moralmente acima dele, isto é, ter uma segurança interior, ideal, moral em relação a ele (2006, p.68-69).

São nessas ideias que reside a dualidade de Schiller, vendo desta maneira que, para a existência do sublime, deve haver o sofrimento físico de uma lado e a resistência moral ao sofrimento do outro. É o que ocorre, por exemplo, com Rosalina, em Ópera dos Mortos, de Autran Dourado. Dividida entre a imagem viril do avô (diante cuja força dominadora todos se curavam) e a constituição fantasiosa e caval(h)eiresca do pai, Rosalina, como um pêndulo, assumia de manhã as feições do pai e à noite as do avô. Assim, reunia em si o combate entre duas potências antagônicas. Ela, contudo, não é o princípio, mas o resultado da educação que o genitor recebeu. Ela é a consequência, a resistência moral (que, se sucumbe à noite, se soergue todas as manhãs) do sofrimento físico de João Capistrano infligido por Lucas Procópio. Em outras palavras, percebe-se aqui, em exemplo, a contradição trágica proposta por Schiller, que se observa entre as relações entre impulso e vontade. De modo que é a partir do momento em que a arte validar a construção do estatuto libertário do homem, constituído pela exclusão da força derradeira do destino, que haverá uma construção superior. E é exatamente por isso que o filósofo alemão afirmava a superioridade da tragédia moderna em relação à tragédia grega. Essa relação com o destino repercute em Adonias Filho e Autran Dourado, no que tange às trilogias que estudamos? Se por ora ainda não é o momento de nos

95 determos em todos os pormenores da questão, podemos, no entanto, respondermos em parte. O fatalismo da Moira (ou do fado) é essencialmente presente na trilogia de Autran Dourado. Os personagens, como que expectadores da própria vida, ficam na iminência da explosão de um traço personalístico irresistível. Assim, a força do nome Lucas Procópio (o vero) irá atingir tanto o filho quanto a neta daquele que usurpou a identidade, Pedro Chaves, legando-lhes o gérmen da loucura. E sobre isso se assenta a égide que norteia a trilogia de autraniana. Em Adonias Filho, isso já não ocorre de forma tão direta ou tão absoluta. Não há o fatalismo do destino, impondo a necessária realização do fato, mas a movimentação dos personagens que veem na atividade a única forma de livrarem-se da situação em que se colocaram (ou foram colocados). Nesse sentido, estão em contradição com fatalismo, pois acreditam ser capazes de modificar a realidade circundante. É o que acontece com a vindita da Cajango, em Corpo Vivo; assim como ocorre com Rosália, em Memórias de Lázaro, e seu duelo contra o pai, por conta da vontade da moça de sair de casa, o que, em última estância, representava a vontade suprema de se ver livre de qualquer tipo de relação. Contudo, em Memórias de Lázaro a força de libertação não atinge a realização, pois todos estão predestinados, pela força do Vale do Ouro, a sucumbirem no húmus, no lodo de suas próprias existências. Mesmo quando tentam livrar-se dessa situação (a fuga de Alexandre, ou o nascimento do neto monstruoso de Natanael) tudo retorna à condição primeira. Quer dizer, os personagens parecem digladiar contra suas potências destrutivas, mas ou fraquejam diante de si mesmos ou diante de outros. É, por exemplo, o que ocorre com o rito mortuário a que Ângelo, em Os Servos da Morte, é submetido como forma de vingar a mãe. Voltando a Schiller e ao relacionando com os estudos que realizamos, fica mais claro entender – ainda que brevemente – que o filósofo propunha uma ―vitória da razão ou da vontade humana sobre o sofrimento‖57.Tal relação, contudo, atinge o espectador, que se deleita com essa vitória, porque:

Se o espectador pode sentir prazer com a dor representada, é porque a razão, ou melhor, a vontade do herói trágico é capaz de triunfar sobre essa dor, é capaz de se comportar perante essa dor com a maior dignidade, ou de maneira sublime, ao manter completa liberdade em relação ao ‗impulso egoísta‘. Se a tragédia é o gênero

57 MACHADO, Roberto. In. O nascimento do trágico. 2006, p.75.

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literário que nos proporciona o prazer moral mais elevado, deleitando através da dor, é porque nos mostra a autonomia legislativa da razão, pela vitória da lei moral sobre o sofrimento. A tragédia é a representação da liberdade. E por isso dá prazer, um prazer superior, o prazer moral da compaixão (2006, p.77).

Partindo de algumas dessas teorias de caráter moral e antropológico, surge a imagem de Schelling com o conceito do absoluto, elemento representador da arte, que se calca em circunstâncias ontológicas e especulativas. Vejamos, então, por partes, de que maneira o pensamento de Schelling irá contribuir para uma filosofia do trágico. Na arte, o sensível pode apresentar o absoluto a partir da intuição58 intelectual59 (em si arquetípica e criadora). Isso será decorrente da interpretação schellinginiana de que a arte, sendo um ―organon filosófico60‖, leva à ―independência em relação ao sujeito‖ (2006, p.87), porque o absoluto – dado por um conhecimento não intelectual – implica um ato de liberdade, visto que, para que haja essa liberdade, o princípio não pode ser empírico. Corroborando a tese que defendemos das condições de reunião dos conflitos, Schelling afirma que o que a arte tem de superior é fornecido pelo princípio interior, associado à intuição intelectual do mundo ―que surge pela unificação instantânea dos dois princípios de unificação‖ (2006, p.87). Schelling, a partir dessas considerações, passa a tecer os elementos qualitativos da arte como sendo os pontos de reflexão privilegiados da identidade absoluta e como sendo a forma de tentar superar as antinomias expostas na perspectiva de Kant. Acerca desse caráter libertário e conciliatório da arte, Roberto Machado se pronuncia:

Se a arte é o lugar em que o absoluto se revela, é por ser uma atividade: atividade, ao mesmo tempo, intelectual e intuitiva, objetiva e subjetiva, consciente e inconsciente, espiritual e natural, livre e necessária. Se a filosofia de Schelling, nesse momento, é a tentativa de superar as contradições apresentadas na filosofia kantiana – sujeito e objeto, liberdade e necessidade, fenômeno e número, etc. – é porque a

58 Para haver a intuição, é preciso uma relação sensível com os objetos. Essa sensibilidade se dá de forma empírica (quando há o contato com o objeto) e pura (quando nada pertence à sensação, sendo apenas a forma pura de sensibilidade). Conhecimento é o resultado da associação da intuição (sempre sensível) com o pensamento (vazio em si). 59 Kant distingue intuição intelectual de intuição sensível. Esta decorre do interrelacionamento dos conceitos de entendimento pela imaginação. De maneira que se a intuição intelectual é originária, a sensível é passiva e derivativa, quer dizer, não é criadora. 60 Roberto Machado, interpretando Kant, afirma que o filósofo entendia o organon como as diretivas que dizem respeito ao modo de chegar a um determinado conhecimento, como é dito na introdução da Lógica. Na Crítica da razão pura, ele define o organon da razão pura, como ―o conjunto desses princípios, pelos quais são adquiridos todos os conhecimentos puros a priori e realmente constituídos‖(2006, p.86).

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intuição estética que supera as contradições não é fundamentalmente algo contemplativa, mas inclui a produção de uma obra. A intuição intelectual, mais do que uma apreensão da realidade, é uma produção de seu próprio objeto. A condição de toda produção é a oposição da atividade consciente da atividade inconsciente, mas como elas devem coincidir absolutamente, toda luta deve ser suprimida, toda contradição deve ser conciliada. Deste modo, a produção estética provém do sentimento de uma contradição interna entre o consciente e o inconsciente e termina com o sentimento de uma harmonia infinita. Como se vê, essa ideia tem dois aspectos, ou melhor, dois momentos. Por um lado, a produção estética procede do sentimento de uma contradição infinita, de uma separação, em si infinita, das duas atividades que são separadas em toda produção livre. Por outro lado, é preciso que o sentimento que acompanha a conclusão de uma obra de arte seja o de uma satisfação infinita. Como essas duas atividades devem ser apresentadas unidas na obra, um infinito será assim apresentado de modo finito por essa obra. A beleza consiste na manifestação de uma harmonia que dá a quem a contempla o sentimento de uma satisfação infinita. Mais ainda: é a solução de um antagonismo. O sentimento do belo é a expressão da satisfação de ver apreendido o infinito no âmago do finito (2006, p.90,91. Grifos nossos).

Vendo a arte como a única maneira de se captar o absoluto, Schelling torna-se o grande marco na reflexão sobre o trágico. É claro que isso só pode ser demonstrado a contento quando há o afastamento temporal ou a releitura de seus predecessores. Primeiramente, Schelling atribui ao gênio61 o papel de conciliar as contradições. É preciso, portanto, encarar, num raciocínio simples, sendo como gênio o artista. Em um segundo momento, ele se afasta das concepções aristotélicas quando não retorna à estrutura do trágico e ao seu efeito, primando agora pelas condições ontológicas. Nesse ponto, distancia-se também de Schiller, em sua perspectiva moral62 e antropológica, que se demorava em elementos da teatralidade. Ainda com relação ao afastamento de Schiller, Schelling privilegiava as tragédias gregas às modernas, pois viu que a tragédia concilia duas forças: de um lado a liberdade humana – que em si é a subjetividade pura – e o destino. Por essa concepção, o herói grego, se sucumbe, sucumbe porque se recusa passivamente a sofre por qualquer falta e se impõe em sua auto-afirmação. Incapaz de

61 Schelling conceitua o gênio como aquele que dá a regra à arte, sem, no entanto, saber ensinar ou explicar tais regras. Por esse aspecto, o gênio pode se contrapor ao conceito de artesão, que é aquele que conhece o seu ofício a tal ponto de ser capaz de esmiuçar todo o processo de construção. 62 A perspectiva moral aqui deve ser relativizada, pois Schelling entendia essa moralidade como a força que o herói trágico realiza para se impor diante das forças do destino. Quer dizer, é preciso grandiosa força anímica do personagem para se impor em sua subjetividade.

98 lutar contra a força portentosa do destino, o herói cai, mas proclama a sua vontade livre, ―o que é uma maneira de a tragédia grega honrar a liberdade, manifestar o triunfo supremo da liberdade, sua afirmação na necessidade‖(2006, p.96). Ao se afirmar, o herói luta, digladia com a vida a fim de fazer valer a sua liberdade, conquanto o preço a pagar seja a própria morte. Agora, a concepção de arte trágica sai de um aspecto meramente estrutural para se ligar às condições ontológicas e metafísicas. E como Schelling buscava harmonizar essas antinomias? Usando o Édipo como suporte, ele demonstra que a conciliação entre liberdade e determinismo levava a um saber fundamental na cultura grega. É o que ele afirma em Cartas filosóficas:

Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando ele mesmo contra a fatalidade e, contudo, terrivelmente castigado pelo crime que era a obra do destino! O fundamento dessa contradição, aquilo que o tornava suportável, estava em um nível mais profundo do que onde o procuraram, estava no conflito entre a liberdade humana e a potência do mundo objetivo, no qual o mortal, se aquela potência é uma potência superior (um fatum), tinha necessariamente de ser derrotado,e, contudo, porque não foi derrotado sem luta, tinha de ser punido por sua própria derrota. Que o criminoso, que apenas sucumbiu à potência superior do destino, fosse punido, era um reconhecimento da liberdade humana, uma honra que se prestava à liberdade. A tragédia grega honrava a liberdade humana, fazendo com que seu herói lutasse contra a potência superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, para reparar também essa humilhação imposta pela arte à liberdade humana, tinha de fazê-lo expiar – mesmo que pelo crime cometido pelo destino. Enquanto ainda é livre, ele se mantém ereto contra a potência da fatalidade. Assim que sucumbe, deixa também de ser livre. Depois de sucumbir, lamenta ainda o destino pela perda de sua liberdade. Liberdade e submissão, mesmo a tragédia grega não podia harmonizar. Somente um ser que fosse despojado da liberdade podia sucumbir ao destino. Era um grande pensamento suportar voluntariamente até mesmo a punição por um crime inevitável, para, desse modo, pela própria perda de sua liberdade, provar essa mesma liberdade e sucumbir fazendo ainda uma declaração de vontade livre (Carta 10 - p.208).

Em resumo, se a definição de catarse para Aristóteles é aquela que faz com que os homens purifiquem suas paixões e para Schiller é a que liberta o homem da dor pela purificação da alma, para Schelling será aquela que reconcilia as duas para criar uma concepção metafísica. Nessa nova condição, o enredo faz parte do raciocínio dialético a partir da conversão das forças opostas em forças positivas: ―o negativo (a privação da liberdade) converte-se em positivo (a realização da liberdade) graças à reduplicação do negativo (a provocação do castigo, a vontade de perder a liberdade)‖ (2006, p.99-100).

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Na filosofia de Hegel, em que se mantêm os valores metafísicos e ontológicos, a tragédia é enxergada como o ápice da perfeição63. Para essa conclusão, o filósofo concebe a tragédia como o divino64 que se manifesta eticamente (ou seja, a partir de uma perspectiva coletiva ou social) através da força individual (concepção moral). Essas características, por si só, já ligam Hegel à tradição filosófica de Schelling. Hegel, assim, vê nessa eticidade, a condição de realização do trágico. Se fosse na moralidade, haveria referência à subjetividade. Sendo relativo à ética, o ponto de predominância são os costumes e as normas sociais, que, quando recaem sobre o herói, lhe eximem da culpa ou da absolvição, já que ―a responsabilidade do herói independe de seu conhecimento, ciência ou de suas intenções. O que conta, na ordem ética, é a conduta exterior e suas consequências‖ (2006, p.129). Nesse contexto, a partir do momento que essas forças éticas entram no mundo, a substância ética se realiza como pathos individual. Na tragédia, esse divino, ao se particularizar, encontra no herói a identidade de sua potência, pois que o indivíduo agora trará latente determinados conteúdos essenciais, como o amor, o ódio, a vida religiosa... Cumpre acrescentar também que a teoria do trágico de Hegel se associa as termos de conciliação e contradição. O conflito que aqui se opera decorre do fato de os personagens – que estão encharcados dessas potências éticas essenciais – defenderem direitos equipotentes em legitimidade65. É o afirma Hegel, na Estética, citado por Roberto Machado em O nascimento do trágico: ―o herói trágico é inocente-culpado, no sentido de que se, por um lado, é alguém que nem escolhe nem delibera, por outro sua

63 Na Estética, Hegel afirma que ―o verdadeiro conteúdo da ação trágica e dos fins perseguidos pelos autores destas ações é fornecido pelas forças universais que regem a vontade humana e se justificam por si mesmas: o amor carnal, o amor paternal e maternal, o amor filial, o amor fraternal e, consequentemente, o direito natural; depois os interesses da vida civil, o municipalismo e o patriotismo dos cidadãos, a autoridade dos reis; a vida religiosa, não sob forma de um misticismo resignado que renunciou à ação, ou como obediência passiva à vontade de Deus, mas pelo contrário, sob a forma de uma intervenção ativa nos interesses reais e uma perseguição também ativa destes interesses. Esta atividade e este vigor são inerentes a qualquer caráter verdadeiramente trágico (2009, p.590). 64Podemos, portanto, dizer, de uma maneira geral, que o divino constitui o verdadeiro tema da tragédia primitiva; o divino, não como o vê a idolatria religiosa, mas tal como oculto se manifesta no mundo da ação individual em desenvolvimento, sem, todavia, sacrificar o seu caráter individual e sem se ver mudado no contrário (2009, p.590). 65 Ao realizarem isso, Hegel vê que as personagens se tornam igualmente culpadas: ―Em princípio, o lado trágico consiste em que ambas as partes opostas têm igualmente razão, ao passo que na realidade cada uma concebe o verdadeiro conteúdo positivo do seu fim e do seu caráter como uma negação do fim e do caráter adversos e os combate, o que as torna igualmente culpadas‖ (2009, p. 591).

100 parcialidade pode levá-lo a atos culpáveis e sangrentos, dos quais ele assume a responsabilidade provocando admiração‖ (2006 p.131). Situando a oposição trágica como ponto nevrálgico de suas discussões teóricas, Hegel demonstra de que maneira elas podem se realizar, citando a dualidade entra a vida ética do Estado e a vida ética da família. E será em Antígona que Hegel vê o exemplo perfeito dessa relação dual66, onde não existe nem o inocente e nem o culpado. Ele também cita o conflito entre o que o homem faz conscientemente e o que ele faz sem conhecimento (e aqui o filósofo ilustra com Édipo Rei e Édipo em colono), afirmando que O direito de nossa consciência moderna, mais profundo, não reconheceria estes crimes como atos da própria pessoa, visto que são estranhos ao conhecimento e à vontade do autor: mas o grego, no seu caráter plástico, assume a responsabilidade do que realizou como indivíduo, sem fazer distinção entre a subjetividade formal da consciência e o fato objetivo (2009, p. 608).

Diante da existência das contradições trágicas, Hegel conclui que eles levam à necessária reconciliação, a partir da harmonização das forças opostas. Assim, a tragédia helênica representa a vitória da substancialidade (justiça eterna) sobre a individualidade (justiça relativa), mas isso só haverá se, na reconciliação entre os indivíduos, se acabarem com as forças particulares e unilaterais e, por isso, a extinção do indivíduo que, mantendo-se contínuo em sua própria individualidade, não se harmoniza com os demais seres. Hegel, então, propõe a reconciliação que se assenta na forma de unificar as forças éticas. E como ele realiza isso? Pela supressão da unilateralidade do indivíduo, porque, neste, a paixão ainda não se apoderou completamente ao ponto de ser o único

66 ―Sob esse aspecto, basta-me recordar Os sete contra Tebas, de Ésquilo, e, sobretudo, a Antígona de Sófocles. Antígona venera os laços de sangue e s deuses subterrâneos, ao passo que Creonte só venera Zeus a potência divina que rege a vida pública e da qual depende o bem-estar da comunidade. Encontramos conflitos idênticos na Ifigênia em Aulida, assim como no Agamenon, nos Coéforos e nas Eumênides de Ésquilo. Como rei e duque do exército, Agamenon sacrifica a filha aos interesses dos gregos e da expedição contra Troia; destrói assim os laços de amor carnal que o prendiam à filha e à esposa, laço que esta, Clitemnestra, conserva no fundo do coração, embora prepare uma vingança humilhante contra o marido. Orestes, o filho, adora a mãe, mas, forçado a intervir para defender o direito do seu pai, rasga o ventre que o gerou. A lei do sangue, no amor e na morte, oferece ao teatro um conteúdo válido para todas as épocas, e a representação de tais conflitos, a despeito das diferenças nacionais, desperta sempre a nossa compaixão humana até satisfazer o nosso gosto artístico‖ (2009, p.607). Hegel irá considerar a Antígona como a mais reconciliadora tragédia.

101 elemento diretivo da vontade. O filósofo, sobre isso, apresenta dois tipos de reconciliação: a objetiva67 (em que não há a supressão dos personagens) e a subjetiva68 (em que as próprias personagens decidem abandonar a sua unilateralidade). Seguindo uma linha ontológica, Hegel passa a estudar as condições do coro. Assim, ele o define como a expressão dos pensamentos coletivos, o que dá ao coro, por encarnar a consciência substancial superior na tentativa de solucionar os conflitos, o aspecto ontológico. Quer dizer, se o herói reflete o conflito desencadeado como reivindicação ética, o coro para Hegel precisa ser

A substância real da vida e da ação heroicas e morais, perante os heróis representa o povo, e o solo fecundo no qual crescem os heróis, tal como as flores e as árvores, crescem unicamente no terreno que lhes próprio e natural. O coro pertence essencialmente a uma fase em que as leis políticas e os dogmas religiosos fixos e intransgressíveis não regem ainda as relações morais, nem resolvem os casos de consciência, a uma fase em que a moralidade só se afirma na sua primitiva e direta espontaneidade para manter o equilíbrio da vida contra as terríveis colisões provocadas pela oposição mútua das ações individuais. Que existe um asilo seguro contra estas colisões é o que coro nos comunica para tranquilizar a nossa consciência. (...) É, pois, uma opinião inteiramente falsa a que considera o coro como um apêndice inútil ou uma simples sobrevivência do antigo drama grego (2009, pp. 604-605).

Com relação a esse coro, Hegel volta a Aristóteles, mas modifica-lhe o ponto de vista. Para isso ele afirma que devemos ―dirigir o nosso interesse e a nossa atenção para o conteúdo cuja expressão artística nos deve libertar desses sentimentos‖ (2009, p. 562). Esses sentimentos, por sua vez, se referem à compaixão ao terror que em Aristóteles era forma, para, agora, serem conteúdos em Hegel. É por isso que ele demonstra que o terror ante a grandiosidade do infinito na verdade se relaciona ―à força moral que é uma

67Hegel aqui cita as Eumênides, explicando que a peça ―não terminha pela morte de Orestes ou pela ruína das Eumênides; [as Eumênides] têm por missão vingar as afrontas contra o sangue maternal e o sentimento religioso, em oposição com Apolo, que, querendo manter a dignidade do chefe de família e do rei, assim como a veneração que lhe é devida, incita Orestes a matar Clitemnestra, mas o castigo é poupado a Orestes e as honras são atribuídas aos deuses. Esta conclusão decisiva mostra-nos ao mesmo tempo o que os deuses representavam para os gregos e o valor que lhe atribuíam quando os representavam sob aspecto de particulares aparentemente inconciliáveis (2009, p.612). 68 Citando Édipo em Colono, Hegel demonstra que o herói se adapta relativamente à harmonia, encontrando mesmo uma satisfação subjetiva: ―Esta transfiguração pela morte representa, tanto para ele quanto para nós, uma reconciliação com a própria individualidade e personalidade‖ (...) ―A transfiguração de Édipo (...) permanece ainda conforme a antiga concepção do restabelecimento do acordo entre as forças morais, empenhadas na luta e adapta-se à harmonia do conteúdo moral‖(2009, p. 613).

102 determinação da própria razão livre‖ (2009, p.592). E que a compaixão que toca o homem de alma nobre ―é a que se esforça por simpatizar com a justiça da causa e a nobreza moral do caráter de quem sofre‖ (2009, p.592). Afirma, pois, o filósofo alemão que

não devemos confundir o interesse pelo desenlace trágico com a ingênua satisfação provocada por uma história triste ou uma desgraça como tal. (...) Um sofrimento verdadeiramente trágico (...) vincula-se às personagens como consequência dos próprios atos simultaneamente legítimos e culpados por causa dos conflitos que ocasionam atos que os indivíduos não podem subtrair, impelidos como são pelas totalidades do próprio eu (2009, p.593).

Para depois concluir sobre as condições de reconciliação promovidas pela arte trágica:

Acima do terror e da simpatia trágica encontra-se o sentimento de conciliação que a tragédia nos ocasiona pela contemplação da eterna justiça, cujo poder absoluto impregna a justificação relativa dos fins e das paixões exclusivas, por não poder admitir que o conflito e a contradição das forças morais, harmônicas na sua essência, se perpetuem e se afirme vitoriosamente na vida real (2009, p.593).

A partir dessas análises de Hegel, Roberto Machado desenvolve um estudo sobre as Observações sobre Édipo e Observações sobre Antígona, de Hölderlin. Nesse momento, verifica-se a perspectiva de Hölderlin, o que, por sua vez, potencializa as condições estruturais e conteudísticas, relativas ao próprio gênero trágico, observando sua essência. Seguindo nessa linha, vislumbramos o primeiro Hölderlin que se afasta das perspectivas relativas à época do seu Empédocles para analisar o estatuto da obra de arte. Tal procedimento repercute na construção artística, alicerçada em constructos formais, afeitos ao trabalho artesanal. Seguindo as linhas da construção, lembramos aqui as orientações de Edgar Allan Poe e de Autran Dourado. Em sua Filosofia da Composição, o autor de ―o Corvo‖ afirma que

a originalidade (a não ser em mentes de força muita rara) não é uma questão, como alguns supõem, de impulso ou intuição. Em geral, para ser conseguida, ela deve ser extremamente trabalhada, e embora seja um grande mérito, para ser alcançada, ela exige mais negação do que invenção (2011. p.27).

103

Já em Autran Dourado, Eneida de Souza, ao prefaciar um depoimento do autor, analisa a técnica cíclica (herança de Vico) do corsi-recorsi e demonstra o valor arquitetônico da obra do autor de Tempo de Amar, dizendo que

A circularidade estrutural da narrativa, mecanismo de sustentação de sua verossimilhança interna, inscreve-se com a letra do destino e confere valor trágico ao universo autraniano, em virtude de sua natureza ritualística. Restringe-se, portanto, o livre trânsito das personagens, uma vez que se encontram tragicamente condenadas a desempenhar o papel preestabelecido pelo autor (1996, p.17).

Mas é o próprio Autran Dourado que mostra o valor da técnica não somente como forma de se atingir a clareza como também como forma de se atingir o estilo. É das palavras de Godofredo Rangel (em O Meu Mestre Imaginário) que ouvimos as lições:

Quando ainda pensava que eu era um talento criador, espantava de mim o diletantismo, essa aura deletéria, dizia eu então, como se fosse uma nuvem de preguiça. Hoje transformei o que podia ser um defeito em excelsa virtude, quer dizer – criei o meu estilo. Como o estilo, dizem sem razão, é o homem (para muitos é matéria e assunto), procuro retocá-lo com gustativa paciência a fino esmeril, para atingir o sublime de que falava o pseudo Longinus; do autor do tratado pouco se sabe, nem mesmo nome (2005, p.39).

Voltado a Hölderlin, a compreensão com que o filósofo via o teatro irá influir no modo de produção poética dos modernos, para os quais se deveriam transmitir as leis da poesia, visto que tais artistas ainda eram tributários de uma visão subjetiva do fazer poético. Essa lei é o equilíbrio. E, para isso, o filósofo cunha a tese que o ―transporte trágico69 é vazio e o mais desprovido de ligação‖ (2006, p.145). Entretanto, para que haja esse equilíbrio, é preciso correlacioná-lo ao conceito de cesura, que, por sua vez, é entendido como o momento em que, havendo uma ruptura no curso da tragédia, põe-se em relevo o sentido essencial dessa tragédia. Para Hölderlin, tanto em Édipo quanto em Antígona, será nas palavras de Tirésias – ―guardião do poder da natureza, que tragicamente retira os homens de sua esfera vital, do ponto central de sua vida interior,

69 Roberto Machado, citando Hölderlin, defende a ideia de que esse transporte precisa mostrar ―na sucessão rítmica das representações, sendo necessária uma cesura, uma suspensão anti- rítmica nessa mudança das representações para que a própria representação trágica apareça‖ (p.145).

104 arrastando-os para um outro mundo e para a esfera excêntrica dos mortos‖ (2008, p. 70) – que esse momento se realizará. Digamos isso melhor, levando, portanto, em consideração as próprias conceituações de Hölderlin sobre como os elementos irão se entrelaçar na busca de um equilíbrio, a partir da justaposição de forças complementares realizadas a partir da força das palavras do cego Tirésias, que serão mais brandas na primeira parte do Édipo e na segunda parte da Antígona. Partindo do princípio de que ―tudo é fala e contra fala‖ (2008, p.78), Hölderlin ao desenvolver o conceito de cesura demonstra como ela se realiza tanto no Édipo como na Antígona. Citemos a maneira como o filósofo alemão avalia de forma exemplar a constituição do conceito de cesura nas obras de Sófocles.

(...) na consecução rítmica das representações em que o transporte se apresenta, torna-se necessário o que na métrica se chama cesura, a palavra pura, a interrupção anti-rítmica, a fim de ir ao encontro da mudança torrencial [reissend] das representação, em seu ápice [Summum], de tal maneira que então aparece não mais a alternância das representações, mas a própria representação. Com isso, divide-se a consecução do cálculo, o ritmo, e suas duas metades se relacionam de tal maneira que elas aparecem com o mesmo peso. Já que o ritmo das representações é tal que, em uma rapidez excêntrica, as primeiras são mais arrastadas pelas seguintes, então a cesura, ou a interrupção anti-rítmica, precisa ficar para frente, de modo que a primeira metade esteja como que protegida contra a segunda, e o equilíbrio, exatamente porque a segunda metade é originalmente mais rápida e parece pesar mais, pende mais de trás para o início, por causa do efeito contrário que a cesura tem. Se o ritmo das representações é tal que as seguintes são mais pressionadas pelas iniciais, a cesura, então, se encontrará mais para o fim, porque é o fim que precisa ser como que protegido do começo, e por conseguinte, o equilíbrio penderá mais para o fim, porque a primeira metade se estende mais, de forma que o equilíbrio só surge mais tarde. Isso quanto à lei calculável. A primeira das leis trágicas aqui indicadas é a de Édipo. A Antígona segue a segunda aqui mencionada. (2008, p.69-70).

A partir daqui, podemos partir para a reflexão de como se realiza a essência do trágico na filosofia alemã. Para isso, é preciso voltar, vez por outra, ao objetivo desse capítulo para não sairmos muito da intenção final: analisar os elementos tradicionais da tragédia para entender como a forma de transmuta em conteúdo a fim de criar um sentido. Assim, quando observamos o pensamento alemão desenvolvido no século XVIII (e sua tentativa reconciliatória das antinomias), encontramos a essência do trágico em Hölderlin como diálogo do divino com o humano. Vejamos assim, se para

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Nietzsche a arte trágica é um remédio metafísico70, para Hölderlin (cujo divino nada tem a ver com o da metafísica71), ela é o remédio contra o próprio erro (hamartia), que ela provoca. Em outros termos, se o trágico é a experiência da falta, a tragédia é a purgação dessa falta. Mas essa essência do trágico que se apresenta fundamentalmente no segundo Hölderlin (o das Observações sobre Édipo e não o das Empédocles) apresenta uma purificação a partir da interação72 com o divino, de maneira que ela não se realiza pela dialética convencional, porque agora se trata ―de uma lógica paradoxal (...) um movimento hiperbólico pelo qual se estabelece a equivalência dos contrários levados ao extremo da contrariedade‖ (2006, p.162). Dessa forma, por conta de um antagonismo que não leva a uma reconciliação, Hölderlin se afasta das concepções teóricas de Hegel e Schelling. Nas Observações sobre Édipo e nas Observações sobre Antígona, ao afirmar que ―a unificação ilimitada se purifica por meio de uma separação ilimitada‖ (2008, p.78), Hölderlin se aproxima do conceito de afastamento categórico que se realiza a partir do momento em que o homem assume a sua finitude no intercâmbio dialógico da infinito com o divino. É preciso entender que Hölderlin recupera o conceito de conciliação existente entre a arte e natureza de Homero. Para o filósofo alemão, o povo grego tinha a predisposição para compreender que a obra de arte institui o mundo. Dessa forma, cabe a Homero a construção artística mediante o equilíbrio e a sobriedade no trato dessas forças. Se falamos em equilíbrio, referimo-nos às potências antagônicas que se realizam numa unidade de consonância dissonante ou de uma dissonância consonante a fim de chegarem à mais perfeita harmonia. Na tensão harmônica dos contrários (em que aórgico e orgânico se plenificam), todas as forças redundam num equilíbrio. Assim, a tragédia tem como função purificar o desejo trágico de fusão com o infinito que é, nas palavras de Roberto Machado, ―a loucura grega‖.

70 O conceito de remédio metafísico na perspectiva nietzschiana será desenvolvido mais à frente. 71 Conquanto nosso objetivo não seja nos espraiarmos mais detidamente nestas considerações, não nos escusamos de mencionar que Hölderlin não via o ser como algo ―posto‖, tal qual Kant, pois que, para ele, o ser é construído pelo homem, e não algo cuja existência vem a priori. Dessa forma, Hölderlin compreende que a relação entre ser e homem foi destruído exatamente pela metafísica, que lhes rompeu o diálogo, o qual lhes permitiria a integração. 72 Falamos, aqui, numa interação, visto que o uso do signo ―acasalamento‖, ―reunião‖ daria a ideia do místico.

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Aqui, para compreender a purificação perpetrada por esse desejo trágico, e de como a separação pode se realizar em níveis que levam à destruição física ou espiritual, é que Roberto Machado discute que ―nem sempre a relação do homem com o deus acarreta a morte‖ (2006, p.163). Na verdade, isso depende da condição de palavra, que pode ser mortuária ou mortificante, de maneira que, se a primeira atinge o corpo, a segunda deve atingir o espírito, provocando, assim, uma morte em vida. A primeira – como em Antígona – ocorre na morte do corpo; a segunda, na errância exílica de Édipo, ocorre no espírito. Sobre as condições de morte em vida, vislumbram-se em Autran Dourado os seus Sinos da Agonia, com a morte em efígie de Januário. Ronaldes de Melo e Souza, em Ensaios de Poética e hermenêutica, ao estudar a obra do brasileiro, associa-o a essa tradição, em que a vida dos personagens não se realiza, observando que estes, mortos em vida, articulam-se ao princípio teleotanático73:

O princípio teleotanático, que singulariza o universo ficcional de Autran Dourado, transmuta o círculo da vida e da morte no movimento retilíneo e uniforme do rapto mortal, que se processa no início, e não apenas no fim da trajetória vital. Morto em vida, o ser humano realiza uma catábase às avessas, uma descida extemporânea ao reino da morte. Por isso mesmo se nos apresenta completamente anômalo e apátrida, sinistro, trágico, mas também patético, porque não mora nem se demora com os mortos nem com os vivos. Subsiste apenas como cadáver insepulto da vida exaurida (2010, p.163 – grifos nossos).

Se para Hölderlin a tragédia interage com o divino (regida pela tensão harmônica dos contrários), para Schopenhauer, ―o assunto da tragédia é o espetáculo de um grande infortúnio (2006, p.182). Esse infortúnio, segundo ele, vem a partir da utilização de três recursos que o autor traz à tona, a saber: a perversidade monstruosa, o destino cego e o resultado da conduta dos caracteres humanos. A partir disso, ele, Schopenhauer, analisa a visão trágica do mundo que a tragédia apresenta: a) o conteúdo da tragédia e sua finalidade e b) o efeito trágico sobre o espectador. O conteúdo correlacionava-se à demonstração das agruras e a toda sorte terrível em que estavam colocados os homens. Contudo, ao apresentar essa dor e esse

73 Do grego itélos thanáthoio. O conceito pode ser aproximado à ideia de fim proporcionado pela morte.

107 sofrimento, a tragédia purificava a dor anulando, pois, a vontade. Esse era o efeito que se queria atingir no espectador. De maneira que, para Schopenhauer, a purificação pelo sofrimento indica uma vontade de viver extinta. É a negação da vontade que advém da purificação pelo sofrimento a grande característica do herói trágico. Neste contexto, a dor santificante, a negação da vontade, o conhecimento e a resignação são os pontos nevrálgicos de aproximação e admiração de Schopenhauer pelas tragédias. E é esse espírito de resignação – tão caro e encontrado nos modernos e tão incompreendido pelos antigos (nas palavras do filósofo) – que Schopenhauer irá afirmar (tal qual Schiller) a superioridade da tragédia moderna sobre a antiga. A título de exemplo dessa consideração, poderíamos citar a aceitação de sua realidade por parte de Alexandre, em Memórias de Lázaro. Cônscio da incapacidade de transformação de sua existência, ele sucumbe à força do Vale do Ouro e se suicida no pântano, unindo-se, assim, à própria natureza mortuária, da qual, na verdade, nunca conseguira escapar. Posto isso, é preciso compreender também o efeito trágico nessa perspectiva de Schopenhauer. Para ele, a catarse não pode ser o fim, mas o meio de provocar a verdadeira finalidade da tragédia: a resignação. Numa postura que mais tarde seria fortemente combatida por Nietzsche, o filósofo afirmava que ―a catástrofe trágica – conhecimento de que a vida é sofrimento – agindo como calmante da vontade, conduz à renúncia, à abdicação da vontade de viver‖ (2006, p.186). Numa palavra, ao expectador experienciar os grandes horrores dos sofrimentos existenciais, ele adquire conhecimento até mesmo sobre uma nova forma de existência. Mas para que essa força da catástrofe trágica acalme o homem e liberte o personagem, a vontade, ao reconhecer a sua essência dolorosa, deve ser resignação. Aparece aqui, dessa forma, a importância que a tragédia fornece ao conhecimento artístico:

pois tendo a vontade, no homem, compreendido ser dor e sofrimento, ela pode voltar-se contra si própria, deixar de querer, aceitar seu próprio desaparecimento, seja libertando permanentemente o personagem, seja acalmando momentaneamente o espectador de seus respectivos desejos (2006, 186).

Mas a tragédia para Schopenhauer liga-se aos conceitos do sublime e não do belo, de modo então que o herói trágico possui um caráter essencialmente sublime. E o que esse sublime significa ao ser relacionado do belo? Belo e sublime se assemelham

108 por ser contemplação pura e conhecimento das ideias. Contudo se distinguem quando se leva em conta relação existente com o conhecimento puro, porque na presença do belo esse conhecimento de despreende a despeito da vontade; já no sublime o conhecimento puro se liberta violentamente das relações com o objeto, colocando-se em posição acima da vontade. A partir dessas duas considerações e observando que para Kant o sublime é desacordo, pode-se entender de que o modo o caráter sublime se associa ao herói trágico que, por sua vez, representa a certeza da impotência diante da satisfação essencial o que é, por consequência, o responsável por não haver ligação. Sendo assim, conclui Roberto Machado que

essa relação entre o sublime e o trágico é bem patente no pensamento de que a visão do aspecto terrível da vida, que a tragédia nos apresenta, nos faz não mais querer a existência, libertando-nos assim da vontade; mas, ao mesmo tempo, nos faz compreender a existência de um mundo diferente, do qual só podemos ter um conhecimento negativo, indireto, pelo sentimento provocado em nós (2006, 190).

No capítulo final do seu Nascimento do trágico, Roberto Machado analisa a contribuição original e radical de Nietzsche no que toca à ideia da Alemanha do século XVIII de conciliação da dualidade de princípios metafísicos ou ontológicos. Mais do que isso, irá caber, agora, ao filósofo alemão, reconhecer uma tragédia não mais tributária da forma, mas sim do sentido trágico, elaborado por um ―pensamento filosófico através da palavra poética e de sua construção de narrativa e dramática‖ (2006, p.202). Para isso, Nietzsche analisa duas potências criadoras, manifestadas no rigor, no cálculo e nas leis de Apolo74, consubstanciada ao rigor, à passionalidade e ao caos de Dioniso75. Mas para compreender de que modo estes deuses puderam representar essas

74 Em O nascimento da tragédia, Nietzsche diz ser Apolo ―o deus da forma‖ (2011, p. 30) e define as potências do deus ao dizer que ―de igual modo os gregos representaram sob a figura de seu Apolo essa alegre necessidade da experiência do sonho: Apolo, como deus de todas as faculdades criadoras de formas, é ao mesmo tempo o deus adivinho. Ele que, segundo a sua origem, é o ‗resplandecente‘, a divindade da luz, reina também sobre a bela aparência do mundo interior da imaginação. 75 Nietzsche, na mesma obra citada acima, quando estuda o princípio da individuação na perspectiva de Schopenhauer, desenvolve o conceito de Dioniso: ―Na mesma passagem Schopenhauer nos descreveu o espantoso horror que acomete o homem, quando ele, repentinamente, se engana nas formas de conhecimento do fenômeno, no qual o princípio da razão, em algumas manifestações, parece sofrer uma exceção. Se, ale desse horror,

109 antinomias, era preciso antes, para Nietzsche, compreender ―o ódio e a cruel volúpia do grego‖ (2006, p.203) a fim de mostrar como os helenos lidaram com questão da crueldade – que dominava o mundo pré-homérico – e que terá como proteção a ―ilusão artística homérica‖ (2006, p.203). Esta ilusão guarda o princípio apolíneo. Tal princípio se configura como o enformador do próprio mundo da arte, tanto que Nietzsche chega a afirmar que conquanto a essência da natureza seja dionisíaca, ―deve se exprimir simbolicamente‖ (2011, p.36). E essa simbologia ocorre a partir dos elementos apolíneos, já que o símbolo é manifestação dos gestos e atitudes da dança, como também a simbologia dos lábios, do rosto e das palavras. Mas Nietzsche, outrossim, assentava sua interpretação sobre o princípio apolíneo no conceito de principium individuationis76, de Schopenhauer. Essa circunstância em que apoiado no deus solar se encharca o homem de vigor acerca das circunstâncias que lhe são impostas (aqui entendidas como a crueldade do mundo pré-homérico), o indivíduo combate para a glória. Esse indivíduo heroico (modelo para todos os homens), ―consequência da criação dos deuses olímpicos‖ (2006, p.205) deve suportar a morte a fim de tornar-se eterno77, ainda que mortal, tal fez Aquiles em Troia, em que pese as advertências de sua mãe. Nietzsche, em A visão dionisíaca do mundo, vê na epopeia uma forma de amenizar as sombras e os horrores do mundo pela luz e pelo brilho de Apolo, mas tudo isso acabava sendo uma grande ilusão porque

O mundo brilhante do Olimpo só vencer porque era preciso ocultar pelas figuras luminosas de Zeus, Apolo, Hermes etc. a sombria atividade da moira, do destino, que impõe a Aquiles morrer jovem e a Édipo contrair um casamento abominável (Nietzsche, apud Roberto Machado. 2006, p.208).

considerarmos o êxtase delicioso que, diante dessa ruptura do principium individuationis, se eleva do fundo íntimo do homem, da própria natureza, então começamos a entrever em que consiste a essência do dionisíaco, que melhor ainda compreendemos pela analogia da embriaguez‖(2011, p.30). Para Nietzsche, o princípio dionisíaco aniquila o homem para um esquecimento de si mesmo. 76 Sobre o princípio, Nietzsche afirma na página 30 que ―poder-se-ia dizer que a inabalável confiança nesse princípio e a calma segurança daquele que dele está penetrado encontram em Apolo a sua expressã mais sublime e poderia até mesmo reconhecer em Apolo a imagem divina e esplêndida do principium individuationis, por meio de cujos gestos e olhares nos falam toda a alegria e sabedoria da ‗aparência‖, junto com sua beleza‖. 77 Nietzsche defende a ideia de que os gregos precisavam usar o sonho olímpico para sobrepujarem as morte, vencendo as forças da natureza e o próprio destino.

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Nesse contexto é a arte que permite ao homem encobrir essas dores e criar – deliberadamente ou não – a ilusão de forma e ordem para lidar com o sombrio. E a epopeia homérica, ocultando as forças portentosas da natureza e da Moira, pelo brilho e pela luz, tornava a vida desejável. Ou relembrando as palavras de Nietzsche, em O nascimento da tragédia:

Como esse povo de emoções tão delicadas, de desejos tão impetuosos, esse povo tão excepcionalmente capacitado para o sofrimento, teria podido suportar a existência, se não a tivesse contemplado em seus deuses, circundada de uma glória radiante? Esse mesmo instinto, que reclama a arte na vida, como o ornamento, o coroamento da existência, como o encanto que nos leva a continuar a viver, gerou também o mundo olímpico que foi, para a ―vontade‖ helênica, o espelho em que sua própria imagem se refletia transfigurada (2006, p.39).

Mas Nietzsche não desenvolve, em suas considerações, o saber puramente apolíneo porque este, não dando conta da afirmação integral da vida e tampouco oferecendo uma alternativa ao magistério da racionalidade, não contempla a potência dionisíaca. Para ele, somente da reunião, da integração entre essas duas potências que se realiza o saber genuinamente trágico, o qual – princípio e fim, respectivamente do conflito entre os deuses Apolo e Dioniso – se realiza num mundo em que a ordem apolínea ressoa a desmedida, a contradição e o êxtase dionisíaco. E será esse êxtase o estado propício que se revela no abandono dos preceitos apolíneos, no abandono do eu no mundo. Se até aqui alguns traços sobre a originalidade de Nietzsche começam a despontar, deve-se observar, antes, que ele estava inserido num contexto próprio da Alemanha do século XVIII. Isso fica bastante claro no capítulo 7 do seu Nascimento da Tragédia. É nesse capítulo que o filósofo inicia o contraste e a divergência existentes nas primeiras teorias políticas e sociais na explicação da tragédia, não para aproximá- las, mas para rechaçá-las, pois para ele ―qualquer ideia política ou social é estranha à sua origem puramente religiosa‖ (2006, p.57). No início, então, das discussões sobre a origem da tragédia, ele trabalha, primeiramente, com os conceitos da tradição, para depois negá-los. Nesse momento, afirma que de acordo com a tradição, ―a tragédia surgiu do coro trágico‖, o ―expectador ideal‖, para lembrarmos a expressão de Schlegel. A crítica de Nietzsche se desenvolve já a partir do momento em que ele conceitua esse expectador ideal:

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De fato tínhamos sempre pensado que o verdadeiro expectador, fosse quem fosse, deveria ter sempre plena consciência que é uma obra de arte que está diante dele e não uma realidade empírica, enquanto o coro trágico dos gregos é necessariamente obrigado a reconhecer, nas personagens em cena, seres que existem materialmente (2006, p.58).

Ainda desbastando a teoria de Schlegel, ele afirma que ―o expectador sem espetáculo é um contrassenso‖ (2011, p.58). Schiller, por sua vez, expressa sobre o coro: ―o coro é uma muralha viva de que se cerca a tragédia, a fim de se separar do mundo real e salvaguardar seu domínio ideal e sua liberdade poética‖ (2011, p.58). E aqui já há o ponto de originalidade de Nietzsche diante de Schiller, o fato de o primeiro dar movimento o lirismo do coro, com o escopo de que esse se transforme em imitação do dionisíaco. Essa postura é também asseverada por Albin Lesky, que enxerga o acontecimento do trágico nascente da dramaticidade dinâmica sob a qual o destino do indivíduo se mostra. O pensador austríaco retoma as próprias condições da epopeia homérica para fazer essa observação, porque vê nela as condições de realização do trágico, a partir do momento que ela rompe com as questões da vida como uma cadeia de acontecimentos para tornar-se, agora, um encadeamento de ações, de personagens e suas respectivas motivações. Já se coloca claro aqui a perspectiva de um drama anímico superando as formalidades meramente consecutivas do enredo lógico. As aproximações e dissensões que Nietzsche faz são muitas e várias, atingindo os espíritos que, à época, também pensaram o trágico. Assim, ao afirmar sobre a essência do trágico no capítulo 7 que ―qualquer ideia política ou social é estranha à sua origem puramente religiosa‖, ele também critica a postura de Hegel a qual tributa a Aristóteles, que vê esses mesmos caracteres sociais e políticos. Já contra Schlegel, ele afirma que o corro nunca poderia ser retirado da interioridade do público, visto que enquanto público sabe que presencia uma obra de arte, o coro acredita estar diante de figuras efetivamente reais. Em Schiller, também cumpre acrescentar, Nietzsche retoma o conceito de ingênuo e sentimental na co-relação ao seu apolíneo e dionisíaco, respectivamente, Antes de continuarmos as reflexões sobre o pensamento nietzschiano, é preciso, por um momento, fazer pequena nota elucidativa sobre as questões aristotélicas que agora levantamos. Aristóteles compreendia o valor pedagógico nas tragédias gregas, contudo não os observava a partir de uma reflexão moral, porquanto, para o pensador

112 grego, a falha (hybris) cometida poderia vir de um homem de caráter reprovável ou mesmo perfeito, mas sim do homem médio, que era, digamos, um pouco acima em virtudes do homem comum. Segundo Albin Lesky, quem deturpou o conceito de culpa trágica associando-o à culpa moral foi Sêneca78, de aspecto essencialmente estóico- cristão, e verdadeiro propagador da tragédia no Ocidente. Quer dizer o erro trágico é fruto não de uma falta moral79, mas de um falta intelectual. Assim, o efeito trágico, para existir, precisa ser a realização de um erro que se não é subjetivamente imputável, objetivamente existe. Nesse sentido, a tragédia apresenta uma intenção educadora. Na verdade, dizendo assim, dizemos mal, porque o conceito é controverso. Lessing, por exemplo, é favorável a essa questão, embora ela seja contestada por muitos autores, inclusive Goethe. Albin Lesky, de sua parte, procura estipular uma relativização, compreendendo que a tragédia deve ter uma tendência educativa e não o um efeito educativo, e para isso se apoia no autor do Fausto: ―Pois uma boa obra de arte poderá ter, e certamente terá, consequências morais; mas exigir do artista objetivos morais equivale a estragar-lhe o ofício‖(2010,p.48). Quer dizer, se a tragédia ensina algo que o tragediógrafo sabe sobre os homens, sobre os deuses ou sobre os mundos, não significa que ela tenha como efeito final esse objetivo. Voltando a Nietzsche e seu afastamento e aproximação das reflexões germânicas do século XVIII, podemos ver que a sua referência essencial está em Schopenhauer, em que a vontade se liga ao uno originário e a representação à aparência. Quer dizer, em ambos os filósofos a vontade se mostra como universal80. E é nesse uno originário que Nietzsche enuncia o efeito mais imediato da tragédia:

78 Numa época em que o mundo latino vivia o que se chamou de Idade de Prata (século I d.C) – muito por conta do prestígio da ciência e da filosofia em detrimento das artes – foi Sêneca o responsável por resgatar o gênero trágico ático, de tal forma que foi capaz de influenciar os futuros autores, tanto os da idade Média como os do Renascimento. Como afirma Johnny José Mafra, em Cultura Clássica Grega e Latina: ―No decorrer da Idade Média, Sêneca continua a ser comentado e citado e, a partir do século XV, as suas tragédias reaparecem, sob forma de traduções, reedições e adaptações‖ (2010, p.120). O autor, contudo, não foi capaz de manter o fôlego helênico – tanto em estilo quanto em vigor – conquanto tenha conseguido difundir seus conceitos que, segundo Mafra, podem ser entendidas como ―exercícios de declamação e de exposição das ideias estoicas‖ (2010. p.120) 79 Cumpre acrescentar que, se é possível enxergar a culpa moral em Ésquilo, ela não se realiza em associação a uma natureza cristã. 80 Essa tese é defendida por Roberto Machado, embora ele enxergue a dificuldade de compreendê-la. Contudo, ele pretende resolver o problema a partir de duas perspectivas: a) as reflexões que outros estudiosos fazem sobre esse comentário de Nietzsche levam em conta as obras póstumas, cujos valores – conforme alega Machado – não pode ser o mesmo de quando o

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O efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade, numa palavra, os abismos que separa os homens uns dos outros, desaparecem diante de um sentimento irresistível de identificação que os reconduz ao coração da Natureza (2011, p.60).

Na concepção que estamos fortemente desenvolvendo vai se clareando que o consórcio entre o apolíneo e o dionisíaco ocorre em Nietzsche numa potência brutal e irrefreável. A força rigorosa de Apolo, assim, não resistiu à força vigorosa de Dioniso. O conhecimento que paralisa a ação (pois ele faz ver a fraqueza do homem diante do mundo) causa o horror e o sofrimento e o homem então cede à força dionisíaca, que é a força da arte e disso conclui Nietzsche:

E nesse perigo iminente da vontade, a arte se aproxima então como um deus que salva e cura: só ele tem o poder de transmudar esse desgosto daquilo que há de horrível e absurdo na existência em representações com a ajuda das quais a vida é tornada possível. Estas são o sublime, como dominação artística do horrível, e o cômico, como consolo do desgosto do absurdo. O coro dos sátiros do ditirambo foi o ato salvador da arte grega; as crises que descrevemos se esvaíram graças a mundo intermediário desses companheiros de Dioniso (2011, p.62).

A partir dessas considerações, o filósofo insere-se na tradição do sublime, entendido aqui como apresentação negativa, porque enquanto na epopeia se oculta a verdade pelo brilho, na tragédia a verdade dionisíaca se mostra pela aparência apolínea. Nesse sentido, a tragédia é a arte sublime que produz o domínio simbólico do monstruoso da natureza. A partir disso então, qual é, para Nietzsche, a finalidade da tragédia? Para responder a isso, antes é preciso compreender que o filósofo, primeiramente, critica a postura que não observa o aspecto estético da tragédia, mas si o moral. Essa última acepção equivale a postura de Aristóteles e de Schiller. Nietzsche também critica a concepção de catarse aristotélica que a concebia como capaz de converter a experiência emotiva do sofrimento em prazer. Nietzsche contrapõe uma interpretação moral da

filósofo estava vivo; b) além disso, na mesma época, ainda se encontravam escritos do filósofo que já iam em direções contrárias: ―A vontade pertence à aparência...‖ contra ―a vontade é universa, a representação é o que diferencia‖.

114 tragédia a uma interpretação metafísica81, daí originando a consolação metafísica que, sendo sinônimo do efeito trágico, é a base para a conciliação entre o apolíneo e o dionisíaco. É o que afirma Roberto Machado:

Se ao apresentar a sabedoria dionisíaca através de meios apolíneos, a tragédia produz alegria com o aniquilamento do indivíduo, é porque a representação trágica é capaz de fazer o próprio indivíduo experimentar, temporariamente, por trás das aparências das figuras mutantes, o eterno prazer da existência pela identificação, pela fusão com o ser primordial, o uno originário. Fundada na música, a tragédia não apenas o conhecimento da vontade, como também proporciona a afirmação da vontade, grande originalidade do primeiro livro de Nietzsche em relação à teoria da tragédia de Schopenhauer (2006, p.238).

E é diante da sua construção metafísica que O nascimento da tragédia se coloca como uma obra devastadora, porque se por um lado o filósofo não foi o primeiro a reconhecer os aspectos contraditórios da tragédia, por outro viu no gênero uma arte essencialmente musical, de modo a construir uma concepção verdadeiramente estética (e um sentido) que é uma grande ―metáfora que interpreta a tragédia a partir da dualidade de princípios‖ (2006 p.242).

3) O conteúdo trágico

Como já vimos definindo, nosso estudo quer se construir sobre a visão do trágico como conteúdo e não necessariamente como forma, cuja origem retomaria ao conceito do teatro e, portanto, do drama. Sendo assim, nossa perspectiva agora se centra na visão de Albin Lesky, considerando um dos mais importantes estudiosos do trágico. Em A tragédia grega, o estudioso demonstra que o cerne da problemática do trágico é oriundo, peremptoriamente, do fenômeno que foi a tragédia grega, de maneira que constantemente as formas desse gênero, inevitavelmente, retornam a esse momento, cujo século V marca o ápice do estilo. E para isso se faz mister compreender o posicionamento dos gregos diante da sua realidade cotidiana, para então entender a formação do gênero dramático.

81 Segundo Roberto Machado, o adjetivo ‗metafísico‘ ―é empregado para qualificá-los [a alegria e o prazer] (...) porque eles dizem respeito ao aniquilamento do indivíduo e à identificação momentânea do espectador com o ser primordial, o uno originário, a vontade universal‖ (2006, p.238).

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Lesky lembra que nas grandes narrativas dos feitos heroicos, o herói é sempre glorioso, mas, diante a ele, contrapõe-se a morte, a qual o leva ao nada. Em Homero, por exemplo, coloca-se esse herói face aos deuses. Mas enquanto para os deuses o destino humano é lidado com capricho, para os homens tudo se põe a ganhar e também a perder, irremediavelmente. E a partir do momento que a obra de Homero rompe com as questões da vida como mera cadeia de acontecimentos, tornado-se agora um encadeamento de personagens e motivações, a obra se agiganta e se eleva. Lesky, nesse sentido, faz coro com Nietzsche quando entende na tragédia uma forma de o homem se soerguer diante das dilacerações da morte. Em Lesky, então, será dessa dramaticidade dinâmica que irá nascer o acontecimento trágico. Observamos que o trágico, no entanto, não se encontra, é claro, somente na epopeia homérica. Com o renascimento da tragédia no Ocidente, o termo trágico adquiriu novos matizes, tais como destinos fatídicos e uma maneira de ver o mundo, entretanto, afirma o austríaco que

a palavra continua sempre indicando algo que ultrapassa os limites do normal. Não a encontramos em lugar algum provida de peso de cosmovisão com que aparece em nossos dias, ainda que às vezes se apresente, no uso comum, e acepções descoradas e descompromissadas (2010, p.28).

Essa interpretação plurissignificativa (ainda que convirja para o além do normal) nasceu do fato de os gregos não terem desenvolvido uma teoria do trágico. E nem do clássico. Sobre isso, Lesky mostra que o conceito de clássico passa tanto pela noção de nomeação de um período histórico quanto como um caráter bastante amplo, tal qual uma ―mera casca verbal‖ (2010, p.28). Essa falta de teoria e polivalência interpretativa convida às reflexões de Autran Dourado sobre esse último conceito, quando ele afirma, em O Meu mestre imaginário, que tanto o barroco quando o clássico, para além de gêneros literários, são também uma forma de posicionamento existencial. Em comum, a obra do austríaco e a do brasileiro se tocam pelo fato de enxergarem a construção artística como mundividência e não apenas manifestação literária. Pelo sim ou pela não, Lesky vai desenvolvendo sua teoria do trágico remontando aos conceitos antes desenvolvidos por Goethe, para quem o trágico significa uma ―contradição inconciliável‖ (2010, p.31). Assim, após afirmar a dificuldade em se definir os pólos do trágico, tenta aproximar as conceituações o mais possível:

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Determiná-los [os pólos da contradição insuperável] seria a tarefa específica para todo o campo do trágico, tanto na obra de arte, quanto na vida real. Essa tarefa se revela especialmente fecunda, sobretudo para a tragédia grega, e aqui aludimos concisamente às possibilidades que nela encontramos objetivadas: a contradição trágica pode situar-se no mundo dos deuses e seus pólos opostos podem chamar-se Deus e homem ou pode tratar-se de adversários que se levantem um contra o outro no próprio peito do homem (2010, p.31).

Desenvolvendo daí seus conceitos de trágico, Albin Lesky volta às primeiras considerações de Chaucer, que enxergava a tragédia em formato de prosa, compreendendo, embora timidamente, o conceito de conteúdo trágico. Tal conteúdo, portanto, é aprimorado por Lesky, porque enquanto Chaucer, assim como Aristóteles, viam na tragédia a questão para a miséria de reis e senhores (numa clara visão social), o austríaco faz uma contraposição a essas ideias e apresenta o conceito da ―considerável altura da queda‖: ―O que temos de sentir como trágico deve significar a queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da desgraça ineludível‖ (2010. p.33). A partir disso, ele pode apontar para quatro condições para a formação do trágico: a) Se a tragédia está sempre ligada a acontecimentos de grande dinamismo ela não pode ser imitação das pessoas, mas das ações e da vida; b) É preciso que nos sintamos atingidos em nosso mundo íntimo com os acontecimentos para que o trágico se realize; c) O sujeito enredado no conflito não pode sofrer as consequências sem saber por que sofre. Ele precisa estar consciente do conflito insolúvel. d) É preciso haver a conciliação inconciliável, como afirmava Goethe.

Sobre esse último aspecto é importante demonstrar o pensamento de Lesky visto que será ele o ponto de grande originalidade no estudo do filósofo. Isso porque, ao estudar as grandes tragédias, percebe que elas possuem conciliação, como ocorre nas Oresteia e também em Édipo em Colono. É claro que não podemos dizer que a obra de Ésquilo e de Sófocles, respectivamente, não sejam tragédias. Mas, partindo do princípio de que o conceito de Goethe não é incorreto, como conciliar as duas ideias? Para isso, Lesky volta ao conceito histórico da palavra tragédia, tendo como suporte a definição de Wilamowitz, a qual em nenhum momento exclui a possibilidade do final feliz e da reconciliação:

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Uma tragédia ática é em si uma peça completa da lenda heroica, trabalhada literariamente em estilo elevado, para a representação por meio de um coro ático de cidadãos e de dois ou três autores, e destinada a ser representada no santuário de Dioniso, como parte do serviço religioso público (2010, p. 36).

O que Lesky a partir daqui faz é, ao resgatar os conceitos aristotélicos de tragédia, lembrar que o em comum entre as peças trágicas é o ―acontecimento repleto de sofrimento‘ (2010, p.37) o que daí a associou a peças tristes (trauerspiel como sinônimo de tragédia). Nesse sentido, os conflitos trágicos se associariam ao irremediável. E é neste ponto que reside a originalidade de Albins Lesky, nascida da resposta a esta questão: se as tragédias podem terminar de modo feliz ou reconciliador, o que as faz serem tragédia no sentido moderno? Lesky responde de pronto: a dolorosa caminhada até essa reconciliação. Para justificativa de sua tese, lembra, por exemplo, que Orestes deve matar a mãe, e Édipo precisa proscrever-se, até serem, respectivamente, julgados pelas Erínias e descansarem em paz, acontecimentos que marcam com clareza a conciliação. Quer dizer, ainda que não haja o final triste há o discurso, ou seja, as tormentas do caminhada. Assim, pode haver o trágico que embora se afaste dos conceitos de Goethe (o conflito trágico cerrado82) apresente o conteúdo trágico, porque dentro dele há a situação trágica. De forma geral, Albin Lesky partilha das condições ontológicas da tragédia e, portanto, da sua relação sempre aberta à possibilidade de relação com o próprio ser. Isso é fundamental a partir do momento que agora se desenvolve o conceito do saber trágico. Segundo Aristóteles, ―o verdadeiro sofrimento trágico deveria ser ao mesmo tempo um sofrimento imerecido‖ (2010, p. 48). Porém, ao se colocar de lado a visão aristotélica, passou-se a destacar que o acontecer trágico era recheado de sentido, e, para isso, muito contribuiu a visão de Schopenhauer que afirmava, entre outros conceitos, que existe ―o trágico das circunstâncias, que se produz quando entram em conflito dois ou mais contrários igualmente válidos‖ (2010, p.49). E baseado nessas considerações que ele recomenda que o estudo do trágico seja feito não só de autor para autor como também

82 O conflito trágico cerrado faz parte da tríade que Lesky desenvolve a fim de reconhecer o fenômeno da tragicidade. São eles, a visão cerradamente do mundo (―concepção do mundo como sede da aniquilação absoluta de forças e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente‖(2010, p. 38); o conflito trágico cerrado (é aquele que se associa aos conceitos de Goethe) e a situação trágica (a falta de escapatória contudo ainda permite se ver uma luz da salvação). É preciso acrescentar que os três conceitos tratam do trágico autêntico que tem a sua origem primeira em determinadas (dolorosamente experimentadas) realidades da existência humana.

118 de obra para obra e, além disso, levanta alguns questionamentos fundamentais que nortearão os seus estudos e também os nossos, nas análises a que nos propomos:

Assim, pois, é da conexão com o tratamento da tragédia ática, autor por autor e, às vezes, obra por obra, que surgirá a questão de saber se o que nelas há de trágico aponta, segundo as intenções de seu criador, para um nada absurdo ou para um mundo transcendente de ordem superior (...). Como já vimos, no tratamento das obras isoladas, aplicar-nos-emos a saber se elas participam do trágico através da situação trágica ou do conflito trágico cerrado. Já se tornou claro que ambos os casos são possíveis: pode apresentar-se a libetação do terrível, ou este tem de perdurar até o naufrágio? Mas agora em primeiro plano coloca-se a seguinte questão: quando, no conflito trágico cerrado, somos testemunhas da destruição do protagonista sofredor, será só isto que o autor é capaz de nos mostrar? Será que nenhuma de suas palavras nos leva além da ação terrível, para um mundo em que há ordem e sentido? Ele nos deixa sair com a sensação de aniquilamento, ou espera que, com fria concordância passiva, nos conformemos com um mundo que se dirige para a destruição, e nada além da destruição? Ou será que pelo exemplo trágico, ele nos eleva à consciência de que tudo isso acontece sob o signo de um mundo de normas e valores absolutos, um mundo que permite ao homem conservar o que não pode ser perdido, nem em meio às trágicas tempestades? (2010, p.55)

Nessa linha é que se começa a delimitar as perspectivas de Adonias Filho e Autran Dourado e sua contribuição para a atualização do sentido trágico e não da forma. Nos próximos capítulos, então, nos debruçaremos sobre a análise individualizada de cada um deles.

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Capítulo IV A trilogia de Adonias Filho e a Atualidade Trágica

Introdução

Nos três primeiros capítulos de nossa tese, fizemos uma análise bastante teórica sobre a tragédia, a fim de enxergarmos, agora, como tal fenômeno irá repercutir, especificamente, na obra de Adonias Filho. Nossa intenção foi dar conta de uma teoria que sentimos, em parte lacunar, a qual entende a trilogia adoniana a partir das relações com o mito trágico. Trabalhos como os de Ronaldes de Melo e Souza e Thereza da C.A Domingues estão neste esforço percuciente de mostrar de que modo Adonias Filho constitui uma rede intertextual com a tragédia, sem, no entanto, prender-se a uma repetição de estrutura e sentido, mas sim no intuito de ressignificar o mito para criar uma literatura com vigor, autonomia e personalidade. Assim, após nosso passeio pelas teorias do trágico, ficamos mais seguros para adentrarmos nas especificidades conteudísticas deste capítulo, que terá, por metodologia, a seguinte constituição. Apresentação da análise individual das três obras, em três sub-capítulos, e posterior interpretação agrupada de seus sentidos, buscando compreender de que forma há o diálogo com a Oresteia, de Ésquilo. Começando, pois, pelo início, dizemos que a morte, ou mais claramente posto, a vingança (a verdadeira hybris) é o tema central. A vingança é sempre uma rebelião contra o determinado estado das coisas que, se não se colocou de forma moral (ou social), existe, ao menos, em seu aspecto mais subjetivo. Por esse aspecto, a morte guarda um contorno especial, porque não é somente a validação de uma nova condição que se assenta, mas também é a garantia do contrário que se prepondera – a vida. O que sustenta as personagens adonianas é o ódio contínuo e recíproco, com o qual vivem e sobrevivem. Não conhecem outra forma de existência, e, por isso, executam no cotidiano um permanente rito mortuário em que morrer não é livrar-se das angústias e sofrimentos a partir de uma transcendência metafísica (impossível), mas morrer é apenas cumprir um ciclo perpetrado no imo do tempo pela própria natureza. E é exatamente a metamorfose – entendida aqui como um estágio intermediário entre dois polos – que ocorre na existência humana. Em níveis analíticos mais profundos a vingança é o cerne e a potência das condições anímicas dos personagens. Possuindo essência fundamentalmente destrutiva, ela (a vingança), num processo de correlato objetivo, se produz – ou se reproduz – num

120 espaço de nadificação que o reverberar no ser (agente e paciente do próprio destino) o qual passa a ser visto e entendido a partir de traços físicos e personalísticos em consequência da rudeza locativa. Mas se o ódio a todos os personagens irmana, não há a fraternidade em seu sentido prático. Quer dizer, não se realiza a fraternidade unificadora fruto da dor coletiva. Há uma ligação consanguínea ou afinizações decorrentes de encontros ao longo de uma extensa caminhada, mas, em verdade, os personagens estão plenamente abandonados à sua própria sorte. Sozinhos – mas não são solitários – veem a solidão crescer como uma sombra aterradora que enevoa o tempo e acinzenta o céu. Nem o vermelho da vingança é capaz de retirar o grisalho dos cenários. A solidão, assim, coloca-se como elemento numa ação trágica. E de que maneira ou por que ocorre essa lancinante solidão? Se o apóstolo Pedro afirmou que ―o amor cobre uma multidão de pecados‖ (I, Pedro, v. 4:8) tudo se resolveria com o desabrochar desse sentimento. Ele salvaria a Alexandre, a Paula e a Roberto, em Memórias de Lázaro; salvaria a Ângelo, a Celita e a Elisa, de Servos da Morte. Ele salvou a Cajango, em Corpo Vivo. Mas o quão difícil é amar desmesuradamente, não egoisticamente. De onde vem a solidão de Roberto senão de ser incompreendido pelo outro? De onde vem a dor de Rosália senão do fato de carecer desesperadamente de afeição? E mais, por que todos os personagens não realizam a catábase de seus sentimentos para que se dê o soerguimento de suas próprias errâncias? Porque são vitimados pelo fatalismo e porque, em algum grau, lhes falta o estofo anímico de transmutação de suas próprias realidades. Fruto das forças atávicas, os personagens sucumbem diante das pulsões que lhes flexionam os joelhos. Poderiam resistir e (re)existir se, ao olharem o passado, verificassem que a dor e a vontade era parte do que já se foi, mas como arrastam o pesar até o presente, não só se dilaceram com as suas dores atuais como também desabam com as dores que recebem de legado. E é aqui que reside a falta de estofo, pois se sentem fracos diante do peso do mundo. Os personagens são vaticinados e o resultado é sempre o ódio, o sofrimento, a desesperação e a morte.

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1) A forma e o sentido trágicos Já falamos antes como se deu a transmutação da forma em sentido83 e como isso se liga aos conceitos de absorção e inovação, assim como também apresentamos os conceitos hölderlianos do aórgico e do orgânico que estarão presentes na caminhada trágica. Nesse ponto, duas das grandes transmutações serão a assimilação do enredo trágico a partir do princípio dialético nietzschiano (com a enformação apolínea do conteúdo dionisíaco) e a presença do monólogo em detrimento do coro84. Na construção da narrativa adoniana, o tempo, coagulado no passado, é a representação de um tempo ante-histórico. É desse passado que a história é narrada. Tudo já aconteceu, de modo que, ao narrar o passado, a presentificação não somente atualiza a cena como também (re)vivifica a dor. Ou dizendo pelas palavras de Raúl M. Castagnino: ―Tenho a certeza profunda, inamovível, de que tudo é presente. Não há mais que um plano do tempo, e neste plano – presente sempre – está tudo. Junto a nós pressentimos como presente o passado e o futuro‖ (1969, p. 123). Em Servos da Morte, a rememoração de Paulino Duarte conduz o fio narrativo entre o passado imageticamente apresentado nas belas imagens em contraposição às imagens presentes da casa maldita. Em Memórias de Lázaro, por sua vez, entre passado e presente, Alexandre desloca-se por dois planos temporais: o profano e o mítico. Contudo, sua realização é no mítico, pois que ali a consecutividade é interrompida. Eliade afirma que a realização do tempo mítico ocorre no momento em que o homem, abolindo o tempo profano, mostra-se mais verdadeiro, o que ocorre em rituais e atos importantes:

83 Assim afirma Néo Leite, em A presença do mito trágico em Memórias de Lázaro: ―Adonias Filho utiliza na obra elementos-chave do mito trágico. O trágico está presente nas ações do protagonista e no sentido da existência do mesmo. O trágico aparece na obra como uma colocação de permeio, numa forma de abstração mais interpretativa que informativa: presença entre aspas, inclusa no conflito do personagem principal, forçada a remoer seu insulamento pela transgressão, na irrisão da luta de uma natureza emotiva e primordial. Esta captação de um sentido trágico aprece numa comparação, como se existência trágica e mito trágico fossem sinônimos. Dito de outra maneira, a tragédia clássica não aparece na obra de Adonias Filho sem seu tratamento formal. O mito trágico mergulha na urdidura do mesmo, pela antinomia dos sentimentos mistos e pela inocente incongruência dos instintos. A busca de uma dialética, no sentido de existência trágica, leva o autor, muitas vezes, ao encontro de formas simbólicas para explicar as personagens, para colocá-las à vontade no âmbito das tensões de caráter telúrico. O alegórico tem coerência em toda a obra‖ (1980, p. 97). 84 É preciso dizer, aqui, que nos referimos ao coro no sentido teatral, que, se desaparece em conceitos formais, se mantém em conceitos ideológicos, já que os recursos da mediação complexa, do multiperspectivismo e da refletorização facultarão a sua ocorrência em maior em menor grau em determinadas circunstâncias.

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A abolição do tempo profano e a projeção do homem no tempo mítico não se produzem, naturalmente, senão nos intervalos essenciais, isto é, aqueles que o homem é verdadeiramente ele mesmo no momento dos rituais ou dos atos importantes. (...) O resto de sua vida passada no tempo profano e desprovido de significação: no devenir (1972, p. 41).

Bom, mas, se o tempo está no passado, a alma também. É por essa razão que a vingança não é esquecida: a presença do vale, a mãe morta, o assassinato da família. Busca-se realizar essa vingança contra alguém ou contra o mundo. Assim é que em Memórias de Lázaro o suicídio de Alexandre é um ato de estar vencido; a ação mortuária de Ângelo, em Servos da Morte, mostra que a vingança se realizou. Mas de todos esses personagens, somente Cajango, em Corpo Vivo, deixando para trás uma vida de desgraças mortes e revide, une-se à Malva, a mulher que amava, para transcender uma existência de miséria e encontrar o que se poderia chamar felicidade. Mas no trágico, o homem, visto como razão e emoção, associa-se também aos conceitos do fatalismo. Mais do que fatalismo, porém, o trágico é uma questão de mundividência (para lembrarmos Schiller), de uma caminhada, reflexo das dores e dos dramas máximos da existência. Por isso que sendo ou não um fatalismo, a caminhada, a travessia trágica não se anula, ou mesmo, não anula a condição de situar a obra como trágica. Desse modo, pode-se estabelecer entre o mito e o trágico uma relação entre significantes e significados, respectivamente, pois que o mito convida o homem a assumir a sua condição de mortal, e o trágico, por sua vez, é uma subversão a essa condição, quer dizer, é como o homem reage ao mito. No que tange ao fatalismo, deve-se lembrar que as forças de dilaceração do ser não nascem a priori de si (conquanto estejam neles alocadas em gérmen), mas a posteriori, acionadas, então, por forças externas. Nelas, o princípio da maldição, da loucura ou da dor (executadas com um fatalismo divino) se realizam a despeito da consciência. Que forças divinas são essas: o Vale do Ouro, Elisa e Inuri, respectivamente em Memórias de Lázaro, Servos da Morte e Corpo Vivo. Tais forças são capazes de levar os personagens, cada um à sua maneira, a reconhecerem as suas próprias limitações, e, a partir disso, tornarem explícita complexidade trágica. Para observarmos de que maneira os sentidos se manifestam na forma, partamos da ideia de Bakhtin de que a forma é o componente do material. A essa informação, unamos as palavras de , em História Concisa da Literatura Brasileira, o

123 qual afirma que Adonias Filho possui uma linguagem elíptica. Na verdade, essa linguagem elíptica é uma manifestação do sentido trágico que se encerra na revolta contra a ordem olímpica. Em forte fervor dionisíaco, os personagens encharcados de hamartía (entendida aqui como o erro por ignorância), impõem-se dolorosas condições para se afirmarem, o que os leva, paradoxalmente, a nadificação. Quer dizer, o castigo trágico a que serão submetidos deverá, portanto, ser maior do que a ordem estabelecida pelos homens. Em A presença do mito trágico em Memórias de Lázaro, Néo Leite Rodrigues afirma que

Uma das características do trágico está na sua restrição à fatalidade, por poderes contrários aos anseios humanos. Estes poderes reafirmam sua presença na consciente integração da personagem às situações criadas, a não aceitação destas e a fuga ou a luta com o intento de livrar-se da desgraça (1980, p. 78).

Na mesma linha, o que buscam os personagens é restabelecer o equilíbrio e, por isso, a vingança serve como chave para solucionar o imbróglio. Em Servos da Morte, com a morte de Paulino Duarte, Ângelo cumpre seu destino e se pacifica; em Memórias de Lázaro, com a morte de Roberto, procura-se resolver o conflito criado a partir da ideia de que a sua irmã tinha engravidado de um filho seu. Sem essa certeza, tal conflito não se encerra, apresentando-se insolúvel. Em Corpo Vivo essa mesma situação vingativa assume conceitos de grande vigor ontológico. Primeiro porque Cajango só é uma fera infeliz por conta de Inuri e não necessariamente pelo assassinato de sua família; segundo porque não cumpre a vingança dos pais, mas resolve transcender sua vida, indo para a serra com Malva. Em todo o caso, o conflito aqui também não se fecha, mas se revolvem as condições existências do personagem quando ele, com grande estofo existencial, toma as rédeas da sua própria vida e não mais se permite títere de forças atávicas, divinas ou do destino. Diante disso, as três obras representam um grande esforço de Adonias Filho na construção de um sentido trágico em vivo contato com a trilogia esquiliana. Dessa forma, após essa introdução, estudemos a trilogia adoniana para, por fim, fazermos um paralelo com a trilogia do grande tragediógrafo grego.

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2) A trilogia adoniana

2.1) Os servos da Morte

O estudo da trilogia de Adonias Filho normalmente repercute o espaço baiano e por conta disso se analisam as obras a partir da visão de uma trilogia cacaueira. Tal definição crítica (que não é a do autor) falha num ponto: o de considerar que o espaço do cacau é o elemento enformador da personalidade e das condições da narrativa e não o lugar em que as cenas se desenvolvem. Se o espaço, de alguma forma, molda parte da personalidade do personagem não o faz mais do que faria qualquer outra condição externa. Mas há aqui uma sutileza do raciocínio: o espaço não garante as condições de existências, mas sim aciona um gérmen que, cativo, eclode diante de um estímulo. De Adonias Filho, uma obra não ficcional que demonstra como esse intercâmbio pode ser proficiente na prática literária do próprio autor é Sul da Bahia: chão de cacau. É interessante notar que o romancista Adonias Filho se afasta um pouco do crítico, porque sua construção analítica aponta para um homem formado e forjado no espaço e ao lugar devedor de sua identidade. Já como romancista, o espaço, conquanto acachape a formação do homem, não lhe moldará indelevelmente o caráter, o que se justificará em seus romances, por exemplo, a partir da luta (mas não necessariamente da vitória) dos personagens contra o fatalismo a que poderiam estar expostos. O ensaio analisa as condições sócio-econômico-culturais que perpassaram pela formação da identidade do homem baiano. Dessa forma, sendo o cacau o pano de fundo de uma cultura, sua contribuição mais significativa residirá, então, no campo axiológico, uma vez que vem forjado no consórcio da cultura com os valores definitivos da civilização que se desenvolverá ao redor. Assim, seu cultivo e sua prática deverão ser analisados detidamente para perceber de que maneira isso se levanta para a representação do comportamento humano. Bom, sabemos que a obra não é tributária aos elementos externos, mas isso não quer dizer que ela lhe seja indiferente (para falarmos como Bakhtin). Adonias reconhece esse conceito literário e, se entendermos sua produção ensaística como outro lado de sua produção narrativa (tal qual enxergaríamos num quadro cubista), não veríamos a negação pela diferença, mas a ratificação pela complementaridade. Digamos então de outra forma. Se o valor de uma obra incide sobre os elementos passionais, seu tema não deve ter cores regionalistas, mas universais, que dizer, ainda que a obra fale de

125 elementos regionais ela não lhe transcreve as idiossincrasias, mas as utiliza como forma de representação de um corpus temático maior. Quando em Sul da Bahia: chão de cacau Adonias mostra os tipos sociais como o desbravador e o coronel, ele apontará a diferença entre os primeiros – que constroem tudo à força de suas próprias mãos – e os segundos – que se valem dos escravos para seu crescimento econômico. E, seguindo a máxima de sua narrativa libertária, os elementos que serão privilegiados em suas obras são os desbravadores, homem que, embora enriqueça, continua somente com a posse do necessário, vivendo em casas rústicas sendo mais próximos da terra e da selva do que os coronéis, distantes dos elementos mais animalizados. Esses desbravadores que formarão outra estância do coronel são demonstrados, por exemplo, na vida familiar dos personagens de Os Servos da Morte ou na construção social da vila de Corpo Vivo. Cidades rústicas, assim como esses coronéis, as vilas se moldam em torno das primeiras fazendas de cacau, convertendo-se num processo de ruralização da cidade enquanto se urbaniza a fazenda. Com a ascensão social e econômica dos desbravadores (agora coronéis), o tipo social se modifica, desenvolvendo uma sociedade antiaristocrática e antiescravocrata, uma vez que a força de construção sempre esteve na mão do homem que dominava a própria terra. Essa rusticidade humana é por conta da rusticidade da própria terra e dos constantes conflitos com os índios, que a todo tempo se revelam contrários à colonização cacaueira das florestas. A presença do índio, por sua vez, é marcante. Está na imagem da velha índia Tari Januária de As velhas, na presença de Inuri, em Corpo Vivo, como também na ajuda do velho Pindá a Beto Guriatã, em Fora da Pista, a pretexto de salvaguardar seu espaço. Dessa construção elaborada dos elementos fundamentais na construção de um espaço social, o elemento cultural ganha novo contorno e começa a se desenvolver uma literatura em torno do cacau. Afirma Adonias Filho que

dessa consciência regional participando e completando a civilização do cacau – sendo de ambas um dos traços fundamentais –, uma literatura própria que nasceu do processo de mudança do sul da Bahia e que, com uma realidade cultural, converteu-se necessariamente em fonte de ficção em prosa e poesia. É por isso mesmo que o material de ficção, desde as fundações se fazendo em torno de figuras, ambientes e acontecimentos, já se mostrava na saga oral: ―E saindo da oralidade, com aproveitamento do ambiente, dos costumes que a literatura surgisse documentária pela força das figuras, dos temas e dos problemas (Grifos nossos – 1978, p. 100- 101).

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Diante dessa realidade locativa e das condições essenciais do seres humanos que habitam os espaços nordestinos do quais fala Adonias Filho, podemos partir para a análise pormenorizada dos romances da trilogia. Comecemos, então, por Servos da Morte. Já fizemos uma breve sinopse do livro, atentando para a maneira a qual os expedientes formais convergiam na formação do sentido. Agora, indo ao intuito do aprofundamento dos processos, desenvolveremos, parte a parte, a construção dos múltiplos sentidos interpretativos da obra em si e como ela converge para o entendimento da trilogia, como um todo. A primeira coisa que devemos analisar é o título, porque ele guarda a essência ontológica e axiológica que os personagens demonstraram ao longo da obra. Por essa perspectiva, o signo Servos já se associa, num primeiro momento, à presença de Ângelo, o qual é o grande assecla da morte. Filho de Anselmo e Elisa, ele é gerado com a intenção materna de eliminar o marido, Paulino Duarte, que lhe transformara a vida em verdadeiro suplício. Ângelo, portanto, era o máximo da representação de um anjo mensageiro do vaticínio da extinção vital do pai ilegítimo. Mas vejamos esse signo mortuário de modo mais claro, porquanto ele se converte em diferentes seres ao longo da narrativa. Num primeiro e mais claro momento, a morte é simbolizada por Elisa. Tal percepção vem pelo filtro do raciocínio de Paulino que, na tentativa de encontrar as respostas para o mistério da morte refletia, em solilóquio, acerca das palavras do louco Emílio. Tais palavras se convertem em condição de possibilidade concreta e não mais ficam no plano da abstração oral. Como o verbo criador dos elementos físicos do mundo real, as palavras de Emílio se colocam como coisas cuja reverberação atiça a perspectiva sensorial de Paulino. E de que maneira isso dá à Literatura poder? Primeiro porque põe em relevo o caráter construtivo e criador da Literatura; segundo porque, como no caso do romance em questão, retira da morte e, consequentemente, de Elisa, o caráter surreal e imaginativo da existência para espraiá-lo na realidade sensível:

As últimas palavras de Emílio, pronunciadas com agilidade chegaram até Paulino Duarte com lentidão. Dir-se-ia havê-las o ar da noite contido para melhor marcar-lhes as expressões. E quando o

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alcançaram, em conjunto, a sua consciência, ele as recebeu, e sentiu que caíam na alma, aos degraus, como alguém que descesse uma escada. No fundo agregadas em uma só ideia, na ideia da morte, ampliaram-se, distenderam-se como um monobloco irremovível. Paulino Duarte, preso ao seu poder mágico, persuasivo, num trabalho mental de comoção, pensou também na ação tenebrosa das palavras. De onde nasceriam elas, por que os sons criados pelos lábios de Emílio acordavam na sua carne e no seu sangue, nos seus nervos e nos seus sentidos, o pavor da morte? Por quê? (1986, p. 50).

E é a partir desse momento que Paulino inicia sua reflexão sobre a morte, sobre o nascimento da vida e sobre a presença de Elisa que circunavega em derredor de sua casa.

Abandonado como um grande contemplativo, os ouvidos surdos, moveu os lábios numa pergunta, quase numa queixa: ―Morremos, e por que morremos?‖ Justapondo-se ao vácuo que se abrira com a exteriorização da pergunta, substituindo-a, veio a necessidade de análise, de exame para o corpo. (...) Neste momento, embalado por uma alegria rápida, teve a impressão de que os homens nasciam diretamente da terra, saindo dos grotões como a água da fonte. ―Não – disse ele, caminhamos para a experiência, é ela que nos completa.‖ E ouviu, confessadas em tom de segredo, a consciência fatigada, quase adormecido: ― Na manhã de cada dia sempre há promessas de nova experiência. O próprio ato de morrer não constitui experiência, a última experiência?‖ Depois, renovando-se, reconduzindo-o à luta, uma explosão imprevista, terrível: ―A morte é uma desgraça! Eu a odeio, sinto medo dessa desgraça que nunca chega.‖ Ferindo-o, penetrando na carne, fundindo novamente o corpo à terra, um grito agudo, de vibração tenebrosa. Ela Elisa, era a morte rondando a casa. Ele andou, os olhos abertos, investigando as salas, procurando entre as paredes altas (1986, p. 50-51).

Sendo Elisa-morta uma realidade, ela se coloca concretamente no filho. E como isso tudo ocorre? A vida de Elisa era gradativamente destruída dia a dia por Paulino Duarte, atingindo o ápice da dor e do sofrimento quando o marido lhe proíbe de ver a mãe que estava na iminência de falecer. Com a morte da mãe, Elisa reflete que sua vida, ao lado do marido e dos filhos (―Quatro filhos, todos eles indomáveis, herdeiros da violência do pai‖ (1986, p.36)) era de uma eterna solidão. Seu corpo cansado e sua alma destruída prenunciavam a morte. Elisa sabe, então, que não pode deixar toda aquela situação sem punição. Precisava vingar-se:

Casara-se há anos, anos passara naquela casa, temendo Paulino Duarte como uma cadela. E, reaparecendo nos seus nervos, provocando no seu corpo uma comoção incrível, o ódio, o grande ódio que exigia vingança. Vingar-se, precisava vingar-se antes da morte ( Grifos nossos –1986, p. 37).

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Deste momento, todas as cenas de Elisa e Paulino se urdem em contornos altamente significativos de uma gradação tenebrosa, onde a relação entre os dois se torna cada vez mais menos possível de convivência. Elisa estava doente, seu corpo padecia pouco a pouco da desgraça daquele casamento demoníaco. Ela percebeu que deveria começar a lutar por sua liberdade, ou melhor, por sua libertação. Não iria mais ceder seu corpo a Paulino, para que legado do homem não se lhe prolongasse em sua carne: ―Elisa percebeu o desejo impresso na fisionomia do homem, na petulância dos gestos, e sentiu nojo. Sentiu que reagiria, que lutaria como uma louca, mas não se entregaria. Não, aquele homem não mais prolongaria a herança maldita através de sua carne‖ (Grifos nossos –1986, p.54-55). Um recurso narrativo importante que nasce dessa constituição das dores de Elisa é o correlato objetivo. Após sair de casa, depois de ter jogado um candeeiro aceso no rosto do marido (o que o desfigurou), Elisa corre pela roça até chegar a um desfiladeiro. Olhando para baixo tenciona se matar, contudo conclui ser ainda muito cedo para isso. Essa vingança não seria o suficiente para dilacerar Paulino. Nisso, coloca, como num quadro expressionista, duas dilacerações pessoais no espaço em que está inserida, transformando-o num lugar de considerações de intensas dores:

―Sim, o sofrimento está impresso em tudo. Há uma tragédia viva em todas as coisas do mundo, no pó dos caminhos, na quietude dos arbustos, no canto das aves‖. Levantou-se e viu, na luz dos relâmpagos, a imensa escuridão do céu. A chuva desceu, incessante, anunciando o caminho da vingança na sua alma (1986, p. 56).

Elisa, pois, trama engravidar do vizinho Anselmo para destruir a integridade moral do marido, Paulino. Ela sabia, no imo, que aquela gravidez não lhe permitiria viver. Contudo, se vivesse, não efetuaria a vingança a contento, pois que estaria presa àquela casa, àquelas condições e ao próprio Paulino Duarte. Morta, estaria livre no espaço e poderia destruir integralmente o esposo. É por isso que quando chega a hora de dar à luz a Ângelo, seu corpo relaxa e sua alma se desprende do corpo para unir-se ao corpo do filho. Com a morte, tudo ainda estaria para acontecer. Elisa, então, ri um último e mortuário sorriso.

A pequena bola de carne suja, entre os seus [de Emílio] dedos nervosos e quentes, chorava como um brinquedo. Elisa, a luz convergindo sobre o seu rosto, estava pálida, risonha no seu desmaio. (...) Elisa não respirava. [Emílio] Rangeu os dentes num acesso de

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raiva, balbuciou: ―Morta‖. E, somente então, verificou que a mulher tinha os olhos abertos. Desejou fechá-los mas, possuído de grande cansaço, retornou ao quarto. (...) Via Elisa, os olhos claros e mansos, os lábios abertos no último sorriso (Grifos nossos –1986, p.65).

Saindo do mundo dos vivos, Elisa deixa seu herdeiro, seu enviado e assecla para a realização de uma missão, da qual ele não conseguiria fugir. Ângelo era, também, prisioneiro da mãe: ―Como fugir, como abandonar tudo aquilo se a morta vivia ali, se ela o espreitava confiante não sua ação? Não, ele devia ficar‖ (1986, p. 89). Sua missão registrava-se em todo seu personalismo e condições físicas. Para isso, ele não iria poupar esforços na realização de sua tarefa, nem que para tanto tivesse que sacrificar todos os que lhes estavam ao redor. É o que ocorre, por exemplo, com o casal Cláudia e Quincas (cunhada e irmão de Ângelo), ambos indispensáveis à vingança.

A casa, no fundo da sua alma, apareceu como sendo um castigo; os mesmo hábitos, as intrigas, as pessoas se encontrando nas salas, tudo velado, oculto pelas janelas e as grossas paredes. [Ângelo] Atordoado, enfraquecido pela febre que aumentava, fugiu. No quarto, contorcendo-se na cama ainda ouviu a voz de Rodrigo chamando pelo pai. E pensou em Quincas, na mulher, como elementos indispensáveis à sua vingança (1986, p. 107).

Diferentemente dos irmãos, ele não nascera com a selvageria telúrica. Isso é até bastante claro, visto que não era filho do mesmo pai. Mas há aqui algumas considerações importantes que devem ser observadas. Num primeiro lugar, ele herda o ódio da mãe por Paulino, e isto o próprio domador de cavalo consegue ver:

Ele quis examinar-lhe o rosto, procurar um sinal de Elisa nos traços delicados. (...) Encontrara, nos olhos da criança, uma luz da manhã em que lhe morderia o peito, da noite em que lhe jogara o candeeiro no rosto. A morta havia deixado no filho um sinal diabólico – e Paulino Duarte começou a sentir que a vingança se prolongaria, que o ódio de Elisa estava presente e vivo nos olhos daquela criança (Grifos nossos –1986, p.72-73).

Num segundo momento, Ângelo representa outra geração de emissários da morte. Deixemos essa ideia um pouco mais clara. Nossa análise está se detendo no título ―servos da morte‖, mas, para além da análise unicamente do sintagma que nomeia a obra, vamos percebendo que a expressão elucida todo um sentido interno do romance, que organiza tematicamente a narrativa. Quando partimos para essa segunda linha interpretativa, entendemos a natureza dos filhos de Paulino e Elisa. Todos são

130 emissários da morte e, como agentes responsáveis pela destruição do mundo, atuam como os cavaleiros do apocalipse. O que se deduz daqui? Que se eles são os cavaleiros, Paulino, o domador de cavalos, é o próprio Apocalipse. O elemento destruidor da harmonia e da paz divina. Ela rivaliza com a ternura do mundo, produzindo, em sua selvageria e brutalidade, todo o oposto das questões sacrossantas. Por isso é tão clara a diferença entre ele e Ângelo. Filho de outro homem, Ângelo é um anti-cristo às avessas, pois luta contra as forças diabólicas impostas e legadas à família de Paulino Duarte. Ele é um emissário que fecundado em Elisa, por um ser externo à família, Anselmo 85, o Espírito Santo, que passará a ser o grande confrontador daquela realidade hostil. Mas a imagem de Ângelo não deve ser associada à de Jesus. Sua ação não é nobre e nem cordata. Ela é apenas uma só: ser o agente da vingança. Um anjo que guarda as potências bélicas das imagens do Antigo Testamento e não do Novo. O justiceiro que permitirá a alma de sua mãe descansar, quem sabe mesmo nos umbrais do inferno. Não há salvação para ninguém. E aqui chegamos ao ponto de afirmar que Ângelo é o segundo elemento de uma linhagem de servos da morte, já que não serve a Paulino (que ―tinha os mortos dentro de si‖. 1986, p.90)). Mas diante disso, poder-se-ia afirmar que Ângelo, deveria ter uma atitude totalmente diferente da dos irmãos. Ele não tem. Após vingar-se do pai, a brutalidade do lugar, do espaço e das pessoas acachapam sua própria essência, revelando o que já trazia em gérmen, pois que agora é o momento de sua essência fazer-se ouvir. Era como se a mãe o protegesse das influências externas. Seu corpo, sentindo as constantes lutas da alma, vivia em febres e delírios, até quando a vingança se realiza plenamente, pois somente com Paulino Duarte morto, ele, Ângelo, pôde se libertar da presença funesta da mãe. Neste cenário, duas condições serão necessárias para a manutenção da realidade existencial de Ângelo. A primeira é a dor como símbolo do crescimento. Ele precisava da miséria para poder subsistir. E segundo é a satisfação que sentira com a morte. Tudo isso, para ele, indicava uma única coisa: libertação. Toda a sua visão passa agora a ter mais sentido. A dor é o que o aproxima da concretude do mundo, porque num mundo

85 O nome ―Anselmo‖, de origem germânica, remete àquele que é protegido pelos deuses. Anse (deuses, da tradição escandinava) helm (capacete). Nosso estudo não visa à análise pormenorizada da etimologia dos nomes, fazendo apenas pequenas considerações ao longo. Contudo, observamos que os nomes são bastante significativos para a compreensão da natureza íntima dos personagens, ensejando, para o futuro, debruçamentos mais detidos.

131 onde ninguém existe sem a presença do sofrimento, sofrer é viver. Tais dilacerações são patentes quando Ângelo passa, além de ter um corpo, a ter somente um espírito, já que no afastar-se de sua mãe, ele não mais dividia a vida com uma outra essência espiritual. Por isso, seus irmãos tinham compreensão de mundo que lhes faltava. A manutenção do corpo e das misérias da existência era uma forma de viver. Mas diante a isso, Ângelo se perguntava: ―Por que a necessidade daquela miséria? Por que a infâmia de ser corpo? (...) Ser corpo era a última maldição‖ (1986, p. 174). Vejamos, pois, em citação de maior extensão como se dá, pelo monólogo narrado, a tomada de consciência de Ângelo após a libertação do jugo perverso da mãe.

Entre os irmãos, sentindo a monotonia com que os dias passavam, Ângelo se apegava à observação da própria vida. Alegrava-se, sabendo que os seus gestos, agora, eram livres. Via os homens com mais compreensão, entendia melhor as suas lutas. Surpreendia-se com a descoberta da semelhança, verificando que o seu corpo exigia a mesma miséria, necessitava do mesmo heroísmo pútrido para subsistir. Enxergava, afinal, no íntimo dessa aproximação aos semelhantes, a certeza da sua humanização revelada na inquietude e na piedade com que vigiava Rodrigo. Somente o homem ligado ao destino comum, submerso na banalidade dos sentimentos coletivos, somente um homem assim, pensava, seria capaz de sofrer pelas torturas de outrem. Ele sofria pela desgraça de Rodrigo, sabia bem. E que indicava aquele sofrimento, que direção marcava, senão o fim de sua inocência, sua própria queda nos limites do homem? Ah, apenas o homem completo, destino a lamentar o sofrimento alheio, o irmão que enxuga as lágrimas e põe o bálsamo nas feridas, apenas esse é uno de carne e de vida! Amar o semelhante que sofre, e socorrê-lo, só os da natureza completa o fazem. A solidariedade no sofrimento, o sacrifício do consolo, só o consolo, só o praticam aquelas aprisionados ao humano. Sim, porque esses afirmam um conflito impossível contra a baixeza da própria condição. Diminuindo a dor na carne alheia, ou adormecendo os corações em crise, tentam estancar na terra as fontes vivas do sangue. O humano está no corpo, é lágrima ou é sangue, e todo aquele que corta essa lágrima, e reduz este sangue, levanta contra ele uma mão de revolta. E quem poderá ir contra o humano, quem debruçará sobre as feridas, quem desses sentirá piedade, senão o escravizado ao mesmo abismo, destinado também ao mesmo inferno? Vendo Rodrigo, amando-o pela sua desgraça, Ângelo se reconhecia um homem, sim, um homem de inocência perdida, da alma agora suja da primeira traição. Rejubilava-se, por isso. Sentia-se salvo, totalmente liberto do passado criado por Elisa. Agora, poderia viver, degradar-se, amar. Seria julgado como um homem, um homem! Não, não mais a insensibilidade em face do sofrimento! Não mais a pureza revelada pela impiedade! (Grifos nossos – 1986, p.198-199)

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A miséria, o sofrimento como forma de existência dependiam, contudo, de um entendimento. A compreensão da própria ignorância, por exemplo, já extingue a possibilidade de ignorância. Se Ângelo não tinha corpo, seus irmãos eram só o telúrico. É desse amálgama dos entes fraternos que irá se embebedar Ângelo o que lhe dará a mesma brutalidade a ponto de tentar estuprar Cláudia: ―Cego, sem consciência da energia animal e bruta que adquirira, levando a mulher de encontro à parede, subjugou-a de tal modo que a impediu mesmo de se mover‖ (1986, p. 220). O fatalismo do destino trágico irá acometer Ângelo. Incapaz de resistir aos caprichos dos deuses é um títere diante de suas forças: ora é o anjo da vingança ora é um serviçal das potências de Paulino, que se espargem na fazenda Baluarte86. Os irmãos de Ângelo nasceram das mesmas potências destrutivas que forjaram a personalidade de Paulino Duarte, contudo, tentavam resistir, ao preço das próprias vidas, à miséria em que estavam inseridos. Isso porque, segundo Elisa, seus filhos adultos eram ―ignorantes, estúpidos, irascíveis e perversos como o pai‖ porque eram fruto do desejo ―de dois corpos que se odiavam‖ (1986, p. 37). Para demonstrarmos melhor como se veem os filhos e suas respectivas gêneses, partamos da reflexão do narrador e da refletorização de Cláudia. Assim profere o narrador:

E os dias, infindáveis na sua monotonia, passavam marcando as coisas, empretecendo as paredes, embrutecendo os filhos. Soltos no campo, matavam pássaros, corriam como animais nos caminhos enlameados. Banhavam-se no ribeirão entre risadas e gritos. Os vizinhos, entre os quais Anselmo, viam-nos como futuros criminosos, pequenos brutos criados à margem das convenções dos homens. Fechados na fazenda, convivendo com aquele pai estúpido e silencioso, ignorantes, selvagens, nada sabiam fazer senão cansar os corpos e descansá-los nas longas noites de mormaço. Odiavam Paulino Duarte, sentiam por ele verdadeiro pavor. Paulino Duarte sabia disso e tratava-os com violência, aos berros, xingando-os como aos cães. Certas vezes, por qualquer coisa, brigavam. Atracavam-se, rolavam no chão, mordendo-se, em barulho infernal. Assim cresciam, desprezados, ouvindo nas madrugadas, os lamentos do velho Emílio, os gritos da mãe Elisa, nos pesadelos constantes. Agora, para que Ângelo não morresse – o pobre Ângelo que, chorando parecia uma rã no leito de ferro – viria Etelvina (1986, p. 76).

Já a segunda faz a seguinte colocação:

86 Optamos por manter a grafia de Baluarte em itálico, em respeito à escolha deste tipo de fonte pelo autor, no romance Os Servos da Morte. 133

[Elisa] Fora uma inocente que se desgraçara e sacrificara a vida na fecundação daqueles brutos. Como devia ter sofrido, espancada, escravizada como uma besta à fúria de Paulino Duarte! Caíra entre aquelas paredes – ali presentes, firmes, desafiando novos destinos – jovem ainda, para morrer com o ódio no coração, a injúria nos lábios. Como certas plantas malditas que se isolam, e devastam as próprias árvores, e inutilizam até a própria terra, aqueles homens possuíam uma herança da peste, pertenciam ao mundo dos renegados. Incompreensíveis como a morte, enclausurados na mesma cólera, destruíam os que se aproximavam. Grosseiros, rudes, perversos – necessitavam de criaturas humanas para matá-las, sacrificá-las, endoidecê-las numa determinação monstruosa. As vítimas rolavam entre as paredes, os lamentos cresciam, tudo continuando o caminho aberto por Miguel Duarte. Miguel Duarte, quem seria ele? Que inferno o trouxera até ali, que crime teria cometido, por que a sua solidão, a amizade aos cães, a sua fuga dos homens? Que danação o castigava, algum demônio na consciência, a imagem eterna de algum remorso? Ninguém o sabia. Era o mistério pesado, insondável, talvez infinito (1986, p.217).

A leitura de Servos da Morte se fecha na existência do personagem Paulino Duarte. Se o livro é sobre a vingança, sobre a vida, sobre a morte e sobre a desesperação diante de um mundo violento tudo isso só é possível porque existe a figura do domador de cavalos. Ele é a essência de tudo o que reflete. Ele mesmo é fruto de uma educação capenga e hostil, e, longe de conseguir lutar contras as forças que o levaram à enorme tensão existencial, ele repete a única forma de educação e mundividência que conheceu. Indubitavelmente sua personalidade, que fora moldada para o ódio e para o rancor, segue o seguinte caminho: educado por Juca a odiar a família de Anselmo, essa raiva irá tomar conta de sua condição anímica, a ponto de ele querer se vingar do mundo e, consequentemente, de Elisa. Esse ódio, contudo, não era uma maldade irrefreável ou somente fruto do determinismo fatalista, mas um medo enorme dentro da alma.

Paulino Duarte sabia, desde que Miguel Duarte morrera, ele sabia que, bem no abismo da sua alma, havia um grande medo inexplicável. Uma coisa inexprimível, irreversível, estagnante, que o fazia ouvir vozes, particularmente aquela voz vazia que pronunciava o nome de Lica. Era como alguém que endoidecia, vagando pela casa fechada, trêmulo, escutando alarido do vento nas palmeiras do quintal (Grifos nossos – 1986, p. 42)

E é esse sentimento a condição chave que o levará a querer dominar. Por isso escraviza Emílio, por isso mata Ubaldo, ao se sentir acuado. Paulino Duarte luta contra o sofrimento brutalizando as suas ações. Infeliz na infância, o passado traduz um laivo

134 de sua personalidade, pois que, ao olhar o céu e a natureza lhes percebia a beleza. Isso era uma forma de lutar contra as durezas do mundo.

O pai se virava no leito. Sentia medo, pensava no pai castigando-o, espancando-o sem piedade. Mas, lá fora, estava o céu alto, as nuvens quietas, a música noturna cantava nos seus ouvidos. (...) A lagoa, tão mansa, parada, prendia a sua atenção. Indiferente, andando como uma sombra, encontrava-se embaixo, próximo ao lajedo de pedras. Corria e, embevecido, não sentia a umidade da relva. Agora, as mãos pequenas na água da lagoa, os joelhos na relava, sorria para ver o rosto refletido na água. (...) Pensava, então, na mãe, nas histórias que Juca Pinheiro contava. ―Ela tinhas as mãos compridas, os cabelos longos...‖ Sim, pensava naquelas histórias, e desejava por tudo que a alma da mãe aparecesse, e fosse boa, e tivesse as mãos macias para alisar seu rosto sempre ferido pelos bofetões do pai. Desejava e pedia, pedia muito – e as nuvens sempre correndo, a lagoa parada como uma terra (1986, p.52).

E aqui há um ponto que deve ser trazido à luz: a condição de uma alma torturada entre a realidade do que é e do que foi formado. Paulino Duarte sabia amar. De forma bruta, rústica, animalizada, mas seu coração não era infenso aos sentimentos mais brandos. Tal circunstância se demonstra claro quando ele observa a mulher em avançado estado de febre. Todo o seu corpo num esforço de ocultar a preocupação que tinha por Elisa. Nesse ponto, outro discurso (ou outra voz) se faz ouvir em nossa interpretação, a voz de Paulo Honório, em São Bernardo, de Graciliano Ramos. Em circunstância análoga, quando Madalena adoecida sofre acamada, Paulo Honório, num misto de amor e ódio, observa a mulher e, intimamente, dialoga consigo demonstrando as duas pulsões antagônicas que o regiam. Comparemos as duas construções, para entendermos a força narrativa do monólogo narrado na construção da cena, como também para percebermos de que forma o rigor interpretativo do fato observado reverbera na interioridade anímica dos personagens. Primeiro vejamos em São Bernardo.

―O senhor conhece a mulher que possui.‖ Que frase! Padilha sabia alguma coisa. Saberia? Ou teria falado à toa? Conjecturas. O que eu desejava era ter uma certeza e acabar depressa com aquilo. Sim ou não. ―O senhor conhece a mulher que possui.‖ Conhecia nada! Era justamente o que me tirava o apetite. Viver com uma pessoa na mesma casa, comendo na mesma mesa, dormindo na mesma cama, e

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perceber ao cabo de anos que ela é uma estranha! Meu Deus! Mas se eu ignoro o que há em mim, se esqueci muitos dos meus atos e nem sei o que sentia naqueles meses compridos de tortura! Já viram como perdemos tempo em padecimentos inúteis?(...) Se eu tivesse uma prova de que Madalena era inocente, dar-lhe-ia uma vida como ela nem imaginava. Comprar-lhe-ia vestidos que numa mais se acabariam, chapéus caros, dúzias de meias de seda. Seria atencioso, muito atencioso, e chamaria os melhores médicos da capital para curar-lhe a palidez e a magrém. Consentiria que ela oferecesse roupa às mulheres dos trabalhadores. Esse eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um dia inteiro. Mas logo me enjoava do pensamento feroz. Que rendia isso? Um crime inútil. Era melhor abandoná-la, deixá-la sofrer. E quando ela tivesse viajado pelos hospitais, quando vagasse pelas ruas, faminta, esfrangalhada, com os ossos furando a pele, costuras de operações e marcas de feridas no corpo, dar-lhe uma esmola pelo amor de Deus (Grifos nossos. 1981, p. 148-149).

Agora analisemos em Os Servos da Morte.

Durante uma semana delirou, com febre, falando coisas ininteligíveis. Paulino Duarte via o corpo da mulher, suado, quente e contraía os músculos na ânsia de ocultar os sentimentos. Os objetos, trabalho quotidiano, tudo se obscurecia, e ele só conseguia ver os braços de Elisa. Em esforço desesperado, o mormaço provocando enorme fadiga, tentava acalmar aquele corpo ponto os dedos molhados nos lábios cortados e secos. Elisa sacudia a cabeça violentamente, agitava-se, encolhia-se gritando muito alto como se o próprio demônio a castigasse cm um azorrague invisível. Ele sentia pena, profunda piedade, e, ouvindo o choro dos filhos, debruçava-se sobre a doente, abraçava-a, beijava-a prolongadamente, desejando que os sofrimentos passassem para o seu corpo. O calor da pele esquentava- lhe o pelo, sem atinar porque a amava tanto, sem entender porque era mau. Sentia que a maldade, aquela obsecante vontade de gritar, e bater, existia nos seus nervos como uma condição terrível (Grifos nossos – 1986, p. 38).

Nesse mundo onde o amor é mais sinônimo de ódio do que o seu antônimo, todos os personagens vivem no limiar da existência e, por isso, mais do que agentes vitais que tentam se impor à absorção da morte, são personagens que gravitam em torno do sofrimento e da nulidade. Mortos em vida, não resistem às condições de existência em que são colocados e, por isso, sucumbem diante das dificuldades do mundo.

Apesar dos dias, das semanas decorridas sem outro grande delírio de Ângelo, a casa não perdia a sua atmosfera de exasperação e

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angústia. (...) Junto a eles, cada dia mais decrépito, Paulino Duarte arrastava a vida. Muitas vezes, nas tardes longas e frias, era visto falando sozinho, batendo palmas, ou se dirigindo agitadamente aos cães. No interior, no quarto onde morrera Elisa, como um duende, Ângelo guardava leito. Causava pavor, pavor e repugnância, sem sangue, sem carnes, a voz um sussurro gasto. Não se podia levantar. (...) Ali, fechado no quarto, um verdadeiro espectro para todos, agonizante quase, Ângelo não via nada senão a figura da mãe rondando a casa, lutando contra o frio e o vento (1986, 9. 93-94).

Não devemos perder de vista, na análise de Servos da Morte, que sua constituição estrutural guarda, veementemente, os efeitos da encenação. Sem, é claro, confundirmos o conceito com o gênero (na acepção da forma), reconhecemos o efeito teatral no fato de os personagens atuarem como verdadeiras metáforas. Ângelo, por exemplo, é o elemento intermediário entre os dois mundos. É ao mesmo tempo o anjo da vingança e da morte, como também o anjo da vida, pois reafirma a presença e a existência da mãe morta. Cláudia, a seu turno, funciona à guisa de um coro, já que em sua presença se esclarece a história e passamos, então, a entender a densidade existencial dos personagens. O seu olhar inicialmente é externo, conquanto ela ainda venha a guardar certos sentimentos que a irmane à família. Nesse momento, deixando de ser coro, ela funciona como um narrador personagem. Mas como Cláudia não teria sentimentos por aquela família, quando na verdade o que há são sentimentos humanos que estão ampliados, ainda que em estado bruto.

No primeiro momento petrificada, Cláudia esperou que o velho prosseguisse. Ele sentou-se, cruzou as pernas, e tossiu, um pigarro seco, arrastado. Segundo depois, certa de que ele não mais tentaria reavivar os planos, conduzida por espantosa intuição, pensou medir no homem a profundidade da superstição e medo. Seria fácil. Bastaria contornar a queda que a alma sofrera, astuciosamente, evitando que a consciência se fechasse. Passo a passou, indagou se ele não temia a morta, o duende perdido que vagava invisível nos cantos da casa, na grande terra da Baluarte. (...) A mulher se aproximou da janela, os olhos descidos sobre as pastagens, as cercas de arame sinuosa e infindáveis. Sentiu-se calma, risonha quase, por observar que ia conhecendo as raízes daquele drama, relacionando-se com acontecimentos obscuros e estranhos. Sabia agora que todo o terror que cercava o velho e os filhos, que os fazia ver em Ângelo um fantasma vivo, tudo aquilo vinha de Emílio, o homem de quem Anselmo se recusara contar a história (1986, p. 149).

A encenação também se faz ver na absorção de alguns elementos próprios do gênero teatral, como o coro e o palco dramático, de modo a dar à obra um arcabouço de

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ópera. Vejamos por partes. Assim como elucidaremos mais à frente, há a presença em Os Servos da Morte da mesma estrutura de prólogos e capítulos que há em Corpo Vivo. Esse recurso favorece a noção de emparedamentos – construções que denunciam um espaço limítrofe em que um agente, neste caso a memória, é o fio condutor. A memória que produz o caminho seguido é a de Paulino Duarte. Além do fenômeno dos prólogos, há também a concepção do palco dramático, que se encerra pela própria estrutura do gênero teatral, seguindo, para isso, a marcação gráfica do fenômeno de ação. Isso ocorre quando há a fala de Anselmo, e o narrador opta por explicitar o modo de se realizarem as ações dos personagens em cena. Observemos abaixo:

(Anselmo calou-se bruscamente. Passou a mão no rosto, estendeu as pernas, assim ficou durante alguns segundos. Depois sacudindo a cabeça, como se afastasse uma ideia inquietante, prosseguiu) (1986, p. 126).

Todavia, a obra – convém sempre afirmar – é essencialmente narrativa, visto que há, em intenção e predominância, a mediação. Como a mediação se demonstra pela figura do narrador, ele será o responsável pelo travejamento estrutural e condução do fio interpretativo. No caso de Adonias Filho, seus narradores libertam-se da intenção de enformação ideológica, propiciando a libertação de conceitos, a fim de permitir uma leitura não presa a um único ponto de vista. Por isso, o autor se vale de uma pluralidade de mediadores. E mais do isso, ele não só pluraliza aqueles que narram como também reflete em determinados personagens certas condições que serão observadas por outros agentes. Assim, há pluralização de refletorizações. Para isso ficar mais claro, podemos abaixo demonstrar, em duas citações, as respectivas refletorizações: a) de Elisa sobre Paulino e b) de Paulino Duarte sobre Elisa. Na de Elisa, observamos, junto à refletorização sobre Paulino Duarte, o uso da falsa terceira pessoa.

a) Algumas horas depois, ainda submersa em inexprimíveis devaneios, Elisa ergueu as pálpebras. Ouviu a gritaria das crianças. Sentiu que odiava aqueles meninos robustos, indomáveis, brutos como o pai. (...) Nervosamente, a vista pousada nas paredes, em desesperada lentidão, conseguiu associar os pensamentos dispersos. Descobriu, naquele momento, a causa que a fazia odiar Paulino Duarte. Odiava-o, era certo, porque sabia de sua ferocidade, sabia-o possuidor de uma herança capaz de das maiores baixezas e dos crimes mais selvagens. Duplo de animal sanguinário e idiota. Recordava-se bem de quando ele a segurara pelos cabelos, os olhos em sangue, a testa suada, e

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deixara cair os lábios, sobre os seus seios, a saliva quente, viscosa. (...) Suporta-o, suportaria-o ainda durante muitos anos, não fora perceber que a doença se transmitiria, ali estava na carne dos seus filhos. Quase enlouquecera ao verificar ter sido o instrumento, sim, o instrumento – por ele usado para desenvolver aquela herança maldita. (1986, p. 08).

b) Ele recordaria a cor da sua pele, a forma dos seus braços, o tamanho dos seus seios. A silhueta do corpo – uma silhueta, em verdade, porque se colocara em frente do sol – jamais sairia dos olhos daquele homem. O grande lenço azul, preso ao pescoço como uma gravata, talvez definisse, na virgindade daquele bruto, o começo da tortura carnal. (1986, p. 25).

A partir da interpretação dessa obra, partamos para o estudo de Memórias de Lázaro. ** 2.2) Memórias de Lázaro

O estudo do trágico como mundividência em Adonias Filho traduz-se de forma explícita na construção e desenvolvimento do tema da vingança. Tal assunto servirá não só como mote de ligação entre as obras (de maneira geral, quer dizer, vai para além do estudo da trilogia) como elemento de contribuição fundamental para o entendimento da trama e do drama romanesco, visto que a composição física do enredo se alicerçará em ações que remetem tanto ao comportamento dos personagens quanto à disposição das formas do texto. Para focarmos mais especificamente nas trilogias, observamos que a vingança das forças não-humanas ocorre na fúria de Paulino Duarte, no erotismo mortuário de Alexandre e na moira destrutiva de Cajango. Mas como isso se torna sentido no que é forma? Adonias recupera em forma e em conteúdo a tragédia de Ésquilo, de maneira que cada obra encenará uma etapa que remonta às Eumêmides87. Concentremo-nos, pois, por agora, ao estudo da vingança como tema, pretextando, para isso, a análise das obras. **

A vindita, como vimos falando, é um dos temas recorrentes na ficção de Adonias Filho. Sua presença, contudo, não é fruto apenas das relações de causalidade e consequência. Ela, na verdade, é a própria manifestação de estágios anímicos que

87 Esse ponto discutiremos mais à frente.

139 repercutem de forma distinta, de acordo menos com a situação do que com os personagens. Tomemos, por exemplo, as novelas presentes em Léguas da Promissão, para percebermos um tipo de vingança. As seis novelas presentes na obra mantêm o vigor narrativo, o telurismo e a brutalidade remontadas pela memória, que já se percebe como ponto de força na obra de Adonias Filho. Mais do que essas características, outro ponto saliente é a interação estrutural, pois que as novelas não existem isoladamente, mas são artisticamente reunidas, por um narrador (o pai) que conta a um interlocutor (o filho), durante uma viagem de trem, acerca da origem de Ilhéus, o que funciona como elemento de interligação temática das novelas. Na oralidade, todas as histórias se desenvolvem pela rememoração, configurada não a partir de dados necessariamente historiográficos, mas sim representativos de uma tradição cultural. Em outras palavras, na estrutura da obra, mais do que uma narrativa, se implanta uma teogonia de deuses telúricos e humanos. É o que se dá, por exemplo, no conto ―Imboti‖, quando um pai presencia a morte do filho no momento derradeiro de lhe entregar a tutela da recém-nascida Imboti. O idoso não se compadece, pois se reconhece parte de uma constituição natural da vida: ―Pôs a manta no chão, a menina chorando, fitou sem qualquer emoção o filho morto. Morrer é como nascer, ele sabia, um serviço da natureza. Debruçou-se, com a faca na mão, para cortar o corpo‖ (1975, p.13). Na composição dramática, preserva-se a arquitetura artística, tal qual a conciliação dos elementos contrários, como que na tentativa de impor uma integridade. Ponto de destaque é a ação humana em prol do amor, ainda que impelida pelos instintos mais selvagens. A vingança, por exemplo, nesse cenário, é um respeito a quem foi morto, um compromisso assumido com a memória da vítima, com o escopo de que se puna o responsável por lhe tirar da vida. A violência e a animalidade, desse modo, funcionam como efeitos colaterais de um processo intrínseco ao ser humano, mas que, na verdade, sempre lhe revela as contradições e os elementos que tornam a humanidade algo tão complexo. Em Memórias de Lázaro o tema da vingança se torna totalmente distinto. Sobre isso, façamos uma análise um pouco mais detida. Na análise percuciente da obra, a exegese do título propicia a localização temática do romance. O signo ―memória‖ remete à própria releitura dos tempos idos que não se querem deixar passar. Na permanência pela reminiscência, a morte é impossível como realização subjetiva, porquanto a vida subsiste a despeito da cessação do corpo

140 material (morte objetiva). Em Memórias de Lázaro, o binômio vida-morte é constante, pois que o sujeito enunciante e o Vale do Ouro são os responsáveis romanescos pela sustentação de um tipo de existência. Assim, é Alexandre o enformador racional das forças passionais do Vale do Ouro. Ora como sujeito ora como personagem, Alexandre conduz a narrativa a fim de harmonizar seus conflitos insolúveis: a morte do pai, a proscrição e o retorno ao Vale, o suposto estupro da esposa. Aqui reside a validade de um procedimento narrativo fundamental para a sustentação do sentido. Com tudo sendo memória, somente a narrativa personativa, a única genuinamente em primeira pessoa, poderá dar o tom a essa proposta, uma vez que a partir disso, a perspectiva passa a ser ontologicamente dual. O signo ―Lázaro‖, a seu turno, garante o estatuto paradoxal que se forma com o binômio vida-morte. De acordo com o Evangelho, Lázaro foi aquele que, após, morto, ressuscitara por Jesus. Ao mesmo tempo, o termo remete à hanseníase (mal de Lázaro). Em outras palavras, é a pele que se deteriora. Digamos, ainda, de outra forma: o organismo que se rejeita – quando em morte – é o mesmo que renasce – ou melhor, ressuscita e se aceita após o milagre de Jesus. É a vida e a morte se associando e se repelindo (mas em permanente contato) à condição temática de formação do texto. O romance, como gênero, apoia arquitetonicamente os elementos estruturais, de modo que a obra revela na forma as imposições do sentido. Tais sentidos, por sua vez, realizam-se na narrativa de Alexandre e na apresentação do Vale do Ouro. Alexandre é o resultado funesto da Moira trágica. Consequência desgraçada de quatro essências degradadas: neto de uma prostituta; filho de Abílio, homem atormentado e feroz e de Paula [filha de João Cardoso], mulher que vivia à beira da loucura:

Finalmente, com a revelação que Jerônimo acaba de fazer, podia explicar certas coisas. Podia analisar-me e situar em quatro criaturas a origem de tudo: a rameira de Ilhéus, João Cardoso, Paula e Abílio. Em mim, o conjunto. Eu seria a consequência daqueles destinos e nada seria mais humano que a vibração dos meus nervos, a angústia do meu sangue, a impulsividade do coração. O grande ódio incontrolável me parecia explicado (2007, pp. 27-28).

Para Alexandre não havia escapatória ao não se comungar com o mesmo destino doloroso. Ele, Alexandre, possuía quatro gêneses, mas, no fundo, não era oriundo de nenhum lugar, porque nenhuma dessas pessoas o acolhe. A mãe, não o poderia, pois que

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é morta e o pai, após a morte da mulher, se esquece do filho, deixando-o com o Jerônimo. Entender um pouco sua origem mostra-lhe certos traços atávicos, mas não lhe dá conforto, pois que no mundo vivia só. Seu mundo e suas lembranças. Um traço do trágico que aqui pode ser desenvolvido foi o que Néo Leite Rodrigues em A presença do Mito trágico em Adonias Filho aponta, associando tal abandono ao conflito existente entre o pai e o filho, sendo este conflito uma condição presente também no Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona: ―Na primeira, Édipo mata o pai; em Colona, mostra seu ódio contra os filhos. Na tragédia de Antígona, é o ódio mortal entre Hêmon e Creonte‖ (1980, p.74). A narrativa é, contudo, narrada a partir da refletorização de Jerônimo, amigo de Abílio, acolhendo-o após sua fuga de Ilhéus para o Vale. E é a partir daqui que Alexandre começa e melhor entendera natureza dos seus genitores, vendo pelos olhos de Jerônimo:

Você, Alexandre, precisava ter conhecido Abílio. Alguém que falava com os olhos e nos olhos refletia um ódio selvagem. Quando o encontrei pela primeira vez, ele era ainda uma criança. Fugira de Ilhéus, dissera-me, porque a cidade o esmagava, todos o repelindo, a mãe encerrada numa cada de mulheres perdidas. Desprezado, solto nas ruas, inutilmente procurava identificar o pai. Podia ser um ou outro, o dono da venda em que se empregara ou o fazendeiro de cacau que engraxara os sapatos – o pai, afinal, podia ser qualquer um, mesmo Alfredo, o idiota, ou Ernesto, o ladrão (2007, pp.20-21).

Após sua fuga, Abílio trabalha em diversas atividades em que a selvageria, a violência e a agressividade eram as únicas formas de se permanecer vivo: ―Uma criatura feliz, alguém que não traga ferrugem nos ossos, não viverá aqui. Fugirá temendo o negrume do céu, a solidão do vale estrangulada pelo vento doido‖ (2007, p.23). A dureza de Abílio, entretanto, não lhe minimiza a reflexão, a intelectualidade – como o fazia, em parte, a Jerônimo. Vejamos o que este diz, para entendermos as implicações desse fenômeno em níveis romanescos e ontológicos:

Quando entrou em minha caverna, a barba enorme, o peito arfando sob o pano esfarrapado, foi que senti. Alexandre, quanto eu era bruto. O fogo refletindo nos olhos que seu olhar era forte e duro, Abílio me convenceu de uma coisa espantosa: eu devia ter tido um pai e uma mãe. Outros, atrás de mim, explicavam a minha origem. Ainda hoje, Alexandre, tantos anos passados, não compreendo muito bem. Sei que porém, que,antes de Abílio, em nada pensava senão trabalhar a terra com as mãos e nada sentia a não ser o cansaço, a fome e a sede. Foi Abílio quem me criou cérebro, eu juro. Aprendi a proteger-me e,

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somente depois dele, foi que percebi a solidão em que vivia (2007, p.23).

Observamos que neste ponto a narrativa é de Jerônimo, mas a fala é a de Abílio. É ele que conduz o pensamento (―Foi Abílio quem me criou cérebro‖) e, mesmo depois de morto, ainda ressoa sua concepção de mundo. Tal processo polifônico contribui para, na recuperação do discurso de um, se ouvir a fala do outro e, a partir daí provocar o reavivamento de Abílio. Se isso ocorre em níveis romanescos, em níveis ontológicos é no comportamento de Alexandre que vemos essa porção de Abílio. O pai se impõe em existência, a despeito da cessação da vida do corpo e, para isso, transforma em rigor narrativo as pulsões ocasionadas pela dor, pelo dilaceramento e pela solidão. Alexandre, como que herdeiro dessa essência paterna age em linha análoga e, a partir do momento em que engendrar a sua narrativa será – essencialmente – para se afirmar como a essência do Vale. Toda a narrativa é, então, essa tentativa constante de se permanecer vivo. Essa vivência – ou essa vontade de viver – era, contudo, mortuária, pois que Alexandre, ao descobrir sua essência nota o fatalismo do seu destino por conta da destruição do seu início. Ele já fora marcada para padecer diante de uma realidade. Seu esforço trágico reside exatamente em lutar contra essa caminhada em direção ao abismo. Se ele pressente que essa é a melhor forma, não consegue, todavia, colocá-la em ação. O que Alexandre trava para si é uma vingança contra as condições do mundo e de sua própria vida. Ele a exterioriza quando retorna ao Vale, quando se vinga de Roberto, julgando que este lhe matou a esposa. Mas no fim, a vingança de Alexandre acaba redundando numa ação contra si mesmo, pois depreende que não é páreo para se defrontar não somente com as forças atávicas como também com as forças externas que lhe vão comprimindo o mundo interior. Em citação de maior extensão, podemos demonstrar parte dessas forças atávicas que redunda na explicitação de uma ascendência degenerada. Ouvimos tudo pela voz de Jerônimo.

Perdoe-me, Alexandre – você que foi o único filho do casal –, mas Jerônimo não sabe esconder a verdade. E a verdade, Alexandre, não envergonha. Manda que diga não ter sido Paula, sua mãe, uma mulher igual às outras mulheres do vale. Morta quando você tinha pouco mais de três meses, é natural que sobre ela você ignore tudo. É natural que você não se recorde de sua sombra, do seu braço doente, do olhar vazio, da impassibilidade diante de tudo. Sua mãe, Alexandre, foi uma idiota. No vale, a não ser eu e Abílio, ninguém a conheceu de perto. João Cardoso a trazia escondida no fundo da casa.

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Com Abílio, seu pai, sua vida se tornou ainda mais isolada. Vagava entre as paredes como uma finada, balbuciando coisa, o braço doente eternamente pendido. Confundiu-me, muitas vezes, com Abílio. E muitas vezes, perdida num relaxamento espantoso, necessitava do marido para os menores atos. Repulsiva para mim, repulsiva também para quem quer que a conhecesse, repulsiva talvez para o próprio Gemar Quinto – inexplicável a atração que por La sentia Abílio, seu pai. Vivia e torno daquele corpo enfermo e para aquela alma existia. Foi assim, Alexandre, que sobreveio a gravidez. Perdoe-me, Alexandre, mas a verdade é triste. Paula inchou as pernas, deformou- se, vomitava em todos os lugares, na mesa como na cama. Os cabelos ficaram imundos. Crescendo o ventre, um braço inútil, o vestido roto mostrando os peitos cheios, os pés nus, podia ter os olhos abertos mas juro que Paula não via. Abílio, uma ocasião disse: ‗Ela não sabe, Jerônimo, que está grávida. Ela não nada, Jerônimo.‘ Dia e noite, era aquela vigilância. O medo de que ela saísse, também o medo de que, sozinha, pudesse praticar um desatino. Não fosse eu, Alexandre – eu que ia e voltava - , e eles teriam morrido de fome. Mas não vi quando você nasce. Vi Paula no começo as dores, as mãos no ventre, Abílio a detendo na cama quase à força. Saí, na metade da noite, a pedido de Abílio. Quando voltei, na manha seguinte, Abílio me recebeu com a notícia. Você, Alexandre, acabara de nascer. Paula dormia (2007, pp.26-27).

Mas o que busca Alexandre ao descortinar a sua origem? Ele procura entender seu final. Aqui é outro ponto crucial, também, para entender sua rebelião contra o mundo. Entendendo o seu final ele entenderá o caminho por que passou e sua vida fará sentido. É por conta disso que ele se empenha em se contrapor a tudo e para isso, em sua caminhada de retorno ao Vale do Ouro, ele tenta se unir à imagem do pai, tencionando, como vimos acima, identificar nos rostos dos desconhecidos a imagem prototípica do genitor. E é neste ponto que o efeito artístico se desenvolve sobremaneira. Sabemos que a voz de Alexandre e de Jerônimo se imiscuem no procedimento de uma narrativa em que a primeira pessoa assume o delicado matiz de não se configurar somente a primeira pessoa gramatical, mas também a primeira pessoa do discurso. Deste modo, ao se destacar sua errância na própria identidade, Alexandre coloca-se como o agente da enunciação no monólogo que engendra, no final do romance, momento também em que a sua vida material irá cessar e ele, então, poderá consumar o rito trágico-mortuário sob o qual sempre este submetido e de onde a culpa, pela lembrança, ganha voz.

Desfaça-se, no fundo do vale, este eco que já não me pertence – mas ao vento que nos cerca, como combatentes invisíveis, neste pedaço de terra. Fujam, todos, neste instante. Já não preciso de ouvidos humanos, dispenso a compaixão e a misericórdia, que todos se afastem. Estas paredes mudas, que caiam, com estrondo. Apague-se

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a lanterna. Venha a luz, com a manhã, e sustente no vale a sua cólera. Jerônimo, eu sei, chegará muito tarde. Agora, unicamente o maravilhoso caminho, aquele caminho que se não pode comparar à estrada do vale, mas o caminho que se abre, aos meus olhos, pela mão de Abílio, meu pai. Vejo-o, na minha frente, a guiar-me. Em volta, o que resta é negro. O meu pobre coração já não enxerga, inúteis as minhas mãos – não mais doem, no meu corpo as feridas. O cérebro não interroga, a língua não fala. Mas andam os pés, vagarosos. É possível que os vivos já não me possam alcançar. Em silêncio, malditos espectros sem morada nos mundos, é possível que me espreitem os mortos. Rosália, a quem não vejo. Natanael, a quem não escuto. Paula, a quem não conheci. Espreitem, esperando, mas sem ânsia. Chegarei a eles, e breves minutos, porque o caminho que me leva não é longo e infinito como a estrada do vale. Meus pés resvalam, o corpo tromba, a boca sem um grito. É pútrido o último ar. O lodo que me absorve, e asfixia, no canal, é viscoso. Ocultam-se, num corte fulminante, o vale o vento. Tudo se vai fechando, aos poucos, com serenidade e imensa quietude (2007, p.175-176)

Esse é o ponto nevrálgico da questão trágica de Alexandre, pois que é a falta do entendimento completo da situação em que está inserido que reside a sua hamartía. Tal qual Édipo, sua racionalidade não o salva, mas o destrói. Aquele que tudo sabe e vê, em realidade, é cego, pois que sucumbe às forças mais elementares do destino, crendo-se livre dessas imposições. Sua razão organiza a estrutura dos pensamentos, não clarifica o seu coração, o homem, então, neste cenário, se torna incompleto, porque encharcado apenas de uma das potências da existência. Alexandre procura enformar o mundo a partir do seu monólogo, do seu discurso, da vontade de entender sua realidade a partir do ato enunciativo que trava por toda a sua caminhada, mas sua razão é cega. Alexandre, é preciso dizer, comporta-se menos pelas porções apolíneas do que pelas dionisíacas. Sua tentativa racional, assim, é vazia e menos capaz de definir o constructo humano holístico. Em sua caminhada, o erro ganha força de verdade. Ele foge do Vale, mas depois regressa à dureza daquele lugar. Tem a oportunidade de residir na casa de Natanael (contraponto apolíneo da desordem dionisíaca do Vale), mas opta por se afastar dali. O que Alexandre não entende é que o Vale, inscrito a fogo no coração dos homens lhe são oriundos, nunca mais pode ser excluído.

Falando a verdade, digo que o vale existe porque existe a estrada. Tudo, homens e choupanas, paixões e ódios, se concentra em torno do seu leito como o corpo em torno de uma espinha. (...) Força alguma, dentro ou fora do vale, conseguirá desfazer o seu mau destino – e

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sortilégio algum conseguirá obscurecer a sua presença, o trajeto que se impõe, a linha sem origem que se alarga precisamente no instante e que a água se torna salobra (2007, p.8).

Tal aspereza se torna indelével em todos, moldando-os e selecionando-os para aquele espaço áspero:

Um lamento que assusta e provoca o endurecimento dos nervos. (...) Sobretudo, nos homens. Aqui, embora as moças cantem na colheita e possam os rapazes domar os potros entre gritos, negra é a alma e bruto é o coração. Não que alucine o medo de destruído pelo semelhante, a necessidade da força física, a assistência para não ser devorado na luta impiedosa. Os fracos, aqui, morrem nos seios das mães. Os enfermos se isolam, apodrecem, são naturalmente eliminados. Restam as feras que se apaixonam com ódio, insensíveis e rudes (2007, pp 9-10).

A vida neste espaço não existe, mas subsiste continuamente prendendo-se no vale, fonte de sua energia e responsável por sua destruição:

Mas, agarrados à crosta do vale como prisioneiros, como animais enjaulados numa planície sem céu, refletem na angústia do sangue o pânico da obscuridade e da solidão. A comunidade, porém, é antiga. Gerações se sucederam sobre esta mesma terra, plantando e colhendo, zelando pelos rebanhos. Quase primitiva, a vida se restringe – do vale ao sítio, do sítio à estrada, da estrada ao terreiro, do terreiro à casa (2007, p.10).

Em suma, a estrada que corta o Vale e lhe constitui os limites geográficos é a mesma que impele os homens a agirem condicionados à idêntica realidade. Não há liberdade ou libertação. O próprio livre-arbítrio dos personagens é fruto de uma ilusão de possibilidade agentiva. Tomemos como primeiro exemplo Natanael, cuja escolha de se livrar fisicamente do Vale não lhe eximiu de uma descendência monstruosa. Num segundo momento, podemos ver Alexandre que ao se casar com Rosália ―por escolha‖ (p.35), insere-se numa nova rede de destruição de sua essência e ao se suicidar é colhido para dentro da efervescência demoníaca do Vale, a única, no entanto, que lhe soa como paz. O Vale do Ouro é, então, a própria condição de vida, mas é uma vida aterrada, côncava em angulação, pois que assimilada, engolida – se pensarmos na geografia do Vale – que absorve, como um buraco negro, tudo para o seu denso e escuro centro. A travessia trágica essencialmente ontológica em Alexandre é percebida em níveis formais, na estrutura do texto. Quem demonstra a formação da composição trágica é Vera Lúcia dos Reis, em Memórias de Lázaro: o avesso do mito:

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Vivendo da enunciação dos outros sobre o mundo e sobre cada acontecimento, Alexandre escolherá a morte de onde surgirá a sua própria enunciação. (...) Na sua enunciação o presente, que assinala o passado, representa o eterno. Alexandre, vivo, seria o cego, enquanto que morto terá a visão do Édipo que fura os olhos e ganha uma visão profunda das coisas. Esse eterno foi oferecido a Lázaro, e conquistado por Alexandre. Enquanto no primeiro tudo é passivo menos a fé que tem Marta, a irmã, em Alexandre tudo é ativo, menos o desespero que o limita. Em ambos, a caminhada para a Luz/luz é a procura de uma forma de conhecimento que se completa para Lázaro no reino Celestial, a Terra Prometida, e para Alexandre, na fuga de um mundo cujos valores estão para o Paraíso em negativo, um de ausências (1973, pp.36-37).

Mas quando isso pode ser ontológico? Quando esse conhecimento busca a compreensão da própria existência. É por isso que em Memórias de Lázaro há a fusão de vozes, há a falsa primeira pessoa: no fundo todas elas encenam partes do drama de Alexandre. Deve-se, contudo, lembrar que não há o desdobramento personalístico aqui, mas a imagem multiperspectivada que obedece ao olhar do refletor, capaz de ao ver as partes essenciais do personagem, contribuir para a posterior percepção holística. Tal condição é a que ocorre com Cajango, em Corpo Vivo, e sobre o qual, a partir de agora, vamos então tratar.

** 2.3) Corpo Vivo

Corpo Vivo encerra a travessia trágica iniciada com Servos da Morte, passando por Memórias de Lázaro, encenando o drama da existência humana devastada pela dor, pela vingança e pela violência. Dessa forma, Corpo Vivo corporifica as condições do trágico em níveis do sentido e do desenrolar da trama, diferentemente dos dois romances predecessores88, em que o determinismo das forças da Moira se instalava esmagadoras. Assim, há em Servos da Morte a destruição de Ângelo e de sua vida, após a morte de Paulino Duarte; há o suicídio de Alexandre, em Memórias de Lázaro, quando sua hamartía tem como consequência a dilaceração de suas fibras mais íntimas. Mas em Corpo Vivo, não. Neste romance, lutando contra o fatalismo que lhe poderia

88 Escolhemos para nosso estudo uma ordenação dos livros que levassem em conta a constituição cronológica do efeito trágico e por isso abrimos mão da sequenciação cronológica das datas de publicação das obras, anteriormente já apresentada.

147 destruir, Cajango coloca-se frontalmente contra tal condição e, a partir daí, vence o seu destino. Corpo Vivo é, assim, um romance de conciliação. Desde o seu título, procura-se dirimir os espaços que possam afastar o telúrico do espiritual, como se observa na relação entre os signos corpo: matéria; vivo: espírito. Não há mais aqui a condição de possibilidade para um corpo inerte e, por isso, o binômio vida-morte (que apresentamos em Memórias de Lázaro) assume agora outro matiz significativo. Vida e morte passam a ser a valorização da existência, visto que a paralisação de uma determinada circunstância – seja para caracterização do personagem seja para a própria análise da obra – conduziria para a dissecação mortuária. Mas de que modo o texto se afasta dessa condição destrutiva? A partir de três expedientes formais: 1) a circularidade narrativa; 2) a linguagem elíptica que associa a dicção coloquial para se criar uma estilização da forma erudita (para falarmos como Assis Brasil) e 3) o multiperspectivismo dos vários narradores. Vejamos, então, como cada um desses recursos impõe à obra uma valorosa significação. A circularidade narrativa é percebida em dois níveis: a partir de um expediente maior que amarra toda a narrativa e por dois menores que, no entanto, pululam na narrativa. Quanto aos menores, lembramos do episódio em que o Sangrador, um dos asseclas de Cajango, mata oito meninos. Tal feito, leva ao primeiro expediente que se demonstra na repetição da expressão: ―Mataram os passarinhos de Deus‖, proferida por Hebe, um tipo de pitonisa ou oráculo. Deve-se lembrar que a fala de Hebe não é gratuita, pois que é ouvida sempre que há uma guinada na sorte (ou no azar) do bando de Cajango. Após a incursão fracassada do grupo de Bem-Bem, João Caio pensa em tudo o que houvera, principalmente agora que Cajango fora para a serra. A voz de Hebe, contudo, continua a ecoar.

Entrega o rifle e a cartucheira. Lembra-se de Cajango, também na estrada, ao pedir as armas. Permanece de pé, sem mover-se, enquanto o bando se afasta erguendo o pó do chão. Os pássaros voam em torno, sobre sua cabeça, tão baixo que escuta o bater das asas. Padrinho Abílio, ali estivesse, recordaria o negro Setembro. Um selvagem, saltando com rifle da morte, aquele Dico Gaspar. E a esperança, escapando da face da mulhe, para concentrar-se nos olhos de brasa. Recua, um pouco tonteado, sem saber para onde seguir. Nos ouvidos, como chibaa vibrando em sua mão ao domar um cavalo, o grito de Hebe: ―Mataram os passarinhos de Deus‖ (1974, p.122).

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Interessante também é o fato de que – tal qual na tragédia, as ações já ocorreram de modo que a fala da pitonisa é ouvida nos mais diferentes momentos, mesmo quando as crianças ainda não haviam morrido.

Era como se ordenasse, a voz precipitada nos minutos que correm. E, já montados, atravessam o arruado em disparada, ele [João Caio] em sua besta ruana e o velho [Lourenço Dias] na mula roubada. A poeira novamente encobre o casario e novamente a pequena multidão pensa na bruxa que passara há dias. No balandrau cor de terra, os cabelos brancos quase noção, a mulher, como que via apenas a sua própria sombra. Era Hebe e seu grito ficara em todos os ouvidos: ―Mataram os passarinhos de Deus!‖ (1974, p.24).

O segundo expediente é a expressão ―Encontrarão ninho‖, que ocorre no primeiro e no último período do romance. Já nesse momento há a possibilidade de algumas interpretações. O procedimento cíclico aponta para a tentativa de um recomeço, pois existe o reforço dessa estrutura de modo a marcar não somente um limite aparentemente linear dos acontecimentos da trama, mas a consciência de que o retorno é contínuo e constante para o início de todas as coisas. Mas como isso será realizado? Somente a partir do conhecimento de que esse mesmo renascimento será possível. Para entendermos essa ideia melhor, lembremos que Alexandre, em Memórias de Lázaro, não consegue de todo vencer suas pulsões instintivas, o que demonstra que sua vitória sobre o mundo e o Vale do Ouro está na paradoxal entrega ao ambiente, afogando-se no pântano. Em Corpo Vivo, por sua vez, a situação é distinta, porque Cajango sabe o que deve fazer e como fazer, assim, ao executar tais ações consegue vencer o determinismo a que poderia estar sujeito. Com isso, o que Cajango realiza? Ele realiza uma vida não trágica, pois rompe com as consequências determinísticas do destino. Não realiza o que estava programa a fazer – que era vingar a morte dos pais – e assume agora o domínio de sua própria existência – dirige-se para a Serra. Ainda observando o nível formal, nota-se, no romance, que ele é feito a partir de um prólogo e de quatro partes que representam quatro respectivos blocos narrativos. Cada bloco pode ser lido como trama ou fábula, mas, em todo caso, todos, de algum modo, remetem ou ao bloco anterior ou à obra como um todo. Por exemplo, o prólogo da segunda parte engendra um diálogo com o da primeira parte. Quer dizer, os prólogos são, na verdade, o tempo cronológico que permite, no desenrolar da narrativa, o

149 aparecimento das tensões passionais, como se houvesse epílogos, a guisa de constructos interpretativos parabáticos, em que há a transmutação e expressão constante da voz coral. O segundo expediente formal que visa afastar o texto de uma condição destrutiva é a linguagem de dicção coloquial associada à estilização da erudição. Deve- se observar que, sob esse aspecto, enxergam-se construções sintáticas que marcam um estilo anacrônico que remetem ao tom épico. Comparemos, abaixo, dois exemplos extraídos do mesmo trecho. No primeiro caso, vejamos a fala de Pereira, pai de Leonel e Malva. Ambos eram companheiros de Cajango desde a batalha de Arataca.

Tivemos que abandonar tudo: o casebre e o cacau. Mais cedo ou mais tarde, no Arataca, acabaríamos mortos. E, se Leonel partira com Cajango, tomei as estradas de Itabuna. Malva devia esconder-se ali, em casa da tia, a irmã de sua mãe. Logo a deixei sob os cuidados da tia, com a trouxa nas mãos e o olhar triste. Retornei sobre os passos para encontrar-me com Leonel e Cajango. De então para hoje, e já não sei o tempo que conta, tem sido a guerra de todos os dias. Leonel já não treme a mão quando mata. E eu próprio que sempre gostei da solidão dos cacaueiros, aprendi a viver agregado como um lobo no bando (1974, p.55)

Acerca da citação, podemos atentar para duas expressões: ―Malva devia esconder-se ali, em casa da tia, a irmã de sua mãe‖ e ―De então para hoje, e já não sei o tempo que conta‖. Nas duas expressões, a coloquialidade se apresenta de forma patente. No primeiro caso, isso ocorre por conta da sucessão subordinativa que se realiza após a referência à tia, e à casa. Assim, o aposto serve como marca de referenciação mais explícita, uma vez que a construção sintática obedeceu à velocidade da fala. No segundo caso, a marcação adverbial temporal se mostra de forma inusitada, por conta do aspecto dêitico a que o texto faz menção. Por conta do filtro da memória de Pereira, o tempo de realização das ações fica comprometido em seus caracteres mais específicos ou referenciais. Para elucidar melhor a diferença entre um tom coloquial e épico, citemos dois momentos que corporificam esse segundo tom. Segue então o primeiro, recheado de metáforas:

Está viva no corpo, os cão não a puderam cortar, a serra protegendo como se fosse a mãe. Voltaram com as mãos vazias, eles, os cães. Escorraçados pela montanha, loba enraivecida, as lascas das

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pedras como garras. As próprias nuvens poderiam cair, contraindo ainda mais o alijão, para esmagá-los na lama do barro. A corda no chão, seu baque surdo, os rifles inúteis (1974, p.122).

E o segundo:

Não estremecendo com o que escuta, a mulher também não estremece com o que diz. – Na hora quando a hora chegar, saberemos morrer juntos. Sente-se forte naquele momento. O fogo, nele pusesse as mãos não as queimaria. É tão somente a mulher a abrigar-se no corpo de um homem (1974, p.98).

Notamos o hipérbato da oração adverbial condicional do segundo período do terceiro parágrafo para criar, mediante a topicalização, o efeito insólito. Tal efeito se presta, por sua vez, à descrição de uma cena em que a espiritualidade não seria permitida e, por isso, o uso de construções metafóricas, a partir de elementos de essência telúrica: é o fogo que não queima, embora a força que agora sinta Cajango tenha nascido do amor e da afinidade com Malva. Aqui se demonstra o valor da matéria, visto que a mulher se assenta no corpo do homem. Não é apenas a união de corpos, mas é a mulher, o corpo, o espírito e a matéria: É o corpo vivo. O terceiro expediente é a visão multiperspectivada dos vários narradores. Em Corpo Vivo, não se deve perder do foco que a sua originalidade e força estão no fato de se terem vários narradores que apresentam, sob diversos pontos de vista, o personagem Cajango. Como, porém, no romance, tais matizes de narrador valorizam em si respectivos efeitos e de que forma se manifestam no sentido, quando vistos ao nível da estrutura? No caso da narrativa em blocos, há o favorecimento da polifonia e da técnica cinematográfica, na qual o espaço proposto pela narrativa de João Caio se abre em silêncio para a fluência do espaço, filtrado pelos outros personagens, o que cria um efeito de idas e vindas no constructo espacial. Esse procedimento liga-se, também, diretamente a conceitos temporais, visto que quando houver retornos a passados e presentes e deslocamentos futuros89, a narrativa passa a manter vivas todas as etapas da

89 Sobre esses deslocamentos, falaremos mais à frente como eles acontecerão e como estarão dispostos entre alguns expedientes específicos de enformação da trama.

151 existência, já que são elas – sem nenhum tipo de predominância a perspectiva enformadora da realidade anímica. Em Adonias, a forma expressa toda a matéria90. Diante do quadro polifônico cumpre acrescentar que as vozes – equipotentes em relevância – são, no entanto, alteadas ou abaixadas diante da intenção romanesca do autor-artesão, de forma a intensificar um ou outro traço mais significativo do contexto da obra. Quer dizer, na plural descrição de Cajango, pelas perspectivas de padrinho Abílio e Dico Gaspar, por exemplo, têm-se o garoto e o mito, respectivamente. Assim fala o padrinho, quando encontra o afilhado, quando chega à fazenda onde jaziam os seus pais:

Foi neste momento que, saindo das trevas, correndo para mim, surgiu o menino, Cajango, meu afilhado. O sangue empretecido dos pais e dos irmãos estava em seus cabelos, em suas mãos em suas roupas. (...) O menino caiu nos meus braços sujos de terra e, quando se afastou a luz dos fachos mostrou seu rosto. (...) Não fez uma pergunta, é verdade, mas observei nas linhas do rosto que Cajango já não era uma criança (1974, p.08).

Agora, vê-se João Caio, a caminho do encontro com Cajango, fazendo suas conjecturas sobre o homem.

Para Ibitupã, montados viajam agora. Na frente vai Lourenço Dias, acurvado na sela, metido em seus pensamentos. Logo atrás, mordendo a palha apagada, ele, João Caio, deixa o corpo acompanhar a cadência do animal. Pode dizer que assim, sentado na sela, passou a maior parte da sua vida. (...) Longe, com a cruz de arame do negro Setembro no peito, também esperará Cajango. A fera deve estar intranquila, no fundo da selva, aguardando os batedores. É difícil pressentir como seja o seu acampamento e como trata os homens. Ouvira falar que traça os planos na terra riscando-a com a ponta da faca (1974, p.33).

Esse processo multiperspectivado engendrará duas circunstâncias: a narrativa coral e a absorção da experiência do personagem (a falsa 3ª. pessoa). No primeiro caso, há a presença de um coro, de uma voz que analisa o drama que está sendo encenado. Sendo João Caio o grande narrador da obra, ele contribui para a encenação de vários dramas, sem, contudo, focar efetivamente numa única parcela de observação. Por essa

90 Em A técnica da Ficção, Percy Lubbock, ao discorrer sobre o Guerra e Paz, de Tolstoi, ensina sobre as relações que deve haver entre forma e conteúdo: ―A melhor forma é a que tira o maior proveito do tema – não existe, na ficção, outra definição do significado de forma. O livro bem feito é o livro em que tema e forma coincidem, não se distinguindo um do outro – o livro em que toda a matéria é usada na forma; em que a forma expressa toda a matéria (1986, p.33). 152 condição, ele pode não somente narrar os acontecimentos dos quais participou como também daqueles que não estava presente. Quem contribui para isso é a presença do coro: Os tropeiros recuam instintivamente, fitando-o com assombro, como se Dico Gaspar não fosse uma criatura como eles. João Caio lembra-se é o selvagem que enche as conversas nas roças de cacau. Seu nome está em todas as bocas e todos os caminhos. Em poucos minutos, enquanto penetra na sala para sentar-se ao lado de padrinho Abílio com as costas na parede e o rifle sempre a mão, os tropeiros se recordam do que ouviram em suas andanças pelos povoados e vilas. Os episódios retornam, narrados por vozes diferentes, e estão nos ouvidos de João Caio (Grifos nossos –1974, p. 12).

Já a falsa 3ª. pessoa pode ser percebida a partir do momento que padrinho Abílio refletoriza as percepções auditivas de Cajango-menino, quando este presenciou a devastação de sua família.

E deitado estava quando, ouvindo tiros e gritos, se refugiara atrás dos sacos de cacau. Ouvira as súplicas damãe, a gritaria dos irmãos, não escutara porém a voz do pai. Ele já devia estar morto quando acordara. Os gemidos, aseguir. A voz alta de um homem que ordenava – ―Não deixem ninguém vivo!‖ – e os tiros de misericórdia nos que gemiam. Depois ainda escutara os gritos de Maria Teresa que, diminuindo, diminuindo, cessaram definitivamente. Percebera os homens abandonando a casa, os passos pesados, e o silêncio finalmente tudo dominou (1974, p.09).

Quando padrinho Abílio narra os acontecimentos tenebrosos vividos por Cajando, ele reflete na audição do garoto a trama que se desenvolveu e o drama que marcou a alma do menino. Vemos que, a partir disso, em realidade, não é mais Abílio quem fala, mas sim a experiência vivida e sentida por Cajango. Mas a refletorização é geral de maneira que o foco pode ser tanto Cajango quanto qualquer outro ser. Abaixo demonstraremos isso a partir de uma sucessão de citações, a saber em a) com a refletorização em Lourenço Dias: ―Era um homem aos onze anos. Revejo Cajango naquela idade à tarde, entre os cachorros que latiam, caçando preás com o negro Setembro. O menino e o negro, aos gritos, dentro do capinzal (1974, p.27). Em b) vê-se a refletorização de Cajango pelo Alto:

Reaparecia homem o menino de quem o negro Setembro tanto me falara. Tinha o olhar atento e vi os dois homens se aproximando – Inuri e Cajango – sem qualquer emoção. Padrinho Abílio, Lourenço Dias e o negro Setembro detiveram-se, espantados, como imobilizados

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pela surpresa. (...) Oito anos, ao lado de Inuri, tinha vivido na selva. Usava calça zuarte e tinha os pés descalços. Os olhos verdes e os cabelos ruivos davam a ele um aspecto esquisito. Fortes eram os seus braços e tão fortes que pensei em pedras. Vi as mãos grossas, calejadas, capazes de torcer um árvore ou um corpo humano. Seu cinturão era uma cartucheira e nele estava a faca. Apertou a mão de todos nós (1974, p.35-36).

Em c) há a refletorização de Inuri sobre Cajango. Essa talvez seja uma das refletorizações mais importantes, porque o processo de transformação de Cajango se demonstra em trânsito, porquanto ele se realizara pelas mãos do índio:

Afastei-me, dando as costas a padrinho Abílio, e o menino não tardou a seguir-me. Juntos penetramos na selva. Padrinho Abílio avisara que, tendo nascido na mata, não seria difícil adaptar-se. Neto do meu pai, seu sangue era igual ao meu. Isso eu entendi no primeiro dia quando, avançando na trilha, percebi que se sentia como se estivesse em casa. Ele, Cajango, tinha onze anos e seus olhos não eram tão verdes como hoje. (... ) Ele viu o que todos nós vemos na selva. É mentira dizer que lhe ensinei isso ou aquilo. Já veio sabendo nadar e pescar. Caçar, sim, foi o que ensinei. (...) Ali, no fundo do rancho, falávamos pouco. Ficava sentado horas inteiras com o olhar vazio, os cabelos crescidos, recordando talvez o bando sangrento invadindo a casa do pai.(...) O homem, em Cajango, surgiu de repente. Vendo-o tomar do machado para derribar as árvores, manter-se no jirau para abater as pnças, mergulhar como lontra atrás das lontras, mover a faca para sangrar o veado apanhado vivo, assim vendo-o disse para mim mesmo: ―Padrinho Abílio já pode voltar‖. A luta seria pior que a das feras. E, para que pudesse realizá-la, Cajango tinha que aprender com as próprias feras. (...) Perto, em outra armadilha, estava o veado que apanhara vivo. Era ainda um filhote e senti sua pele macia quando o carreguei nos braços. Seguia-me o menino, curioso, que perguntou quando nos aproximamos do fosso [onde havia uma onça faminta aprisionada]: ―Que vai fazer?‖ Detive-me, sem responder na borda do fosso. Embaixo, rodando sobre o corpo, a onça. Nos meus braços, percebendo-a o veado tremia. O menino fitava o fosso quando atirei e em menos de um minuto era uma posta de carne, o sangue espirrando, vermelhas as mandíbulas da fera. Em Cajango, e vi com alegria, um músculo não se moveu. Acabara de comprovar que tinha o coração duro (1974, p.41-44).

Em d), observa-se, por parte de João Caio, uma refletorização, só que agora é de Malva, quando este, por ordem de Cajango, deve buscá-la em Itabuna. No retorno, João Caio passa a narrar as percepções de Malva:

Os olhos da mulher, que fitam João Caio de relance, não podem alcançar o cérebro. As imagens, Cajango e Leonel, que os

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congestionariam por segundos, já não vibram. O homem calado, que risca a terra com o dedo, ocupa todo o espaço. ―Vai entregar-se a Cajango‖, é o que pensa. Carpo que ficará nu, seios e ventre, o bruto no cio. Cajango, em um minuto de cólera, poderá matá-la, torcendo aquele corpo como a ventania um arbusto. O dedo na terra, riscando. Levanta-se, sem ousar fitá-la, para dizer: – Vamos indo (1974, p.79).

Mas há também, em Corpo Vivo, a forte presença de um coro – não na forma do gênero dramático –, mas no sentido da tragédia como mundividência, pois que se dará pela observação metanarrativa. Na estrutura do drama, o narrador projeta o futuro, trazendo o seu passado que, na convivência com Cajango, se presentifica Devemos observar, também, que a memória, recuperando o tempo e o atualizando, se vê na trilogia de Adonias Filho. É Alexandre, de Memórias de Lázaro, que procura entender seu caminho percorrido; é Paulino, de Servos da Morte, buscando, em sua cegueira compreender toda a devastação de sua vida junto à mulher morta Elisa; é Cajango, tentando entender como se realizou seu caminho até chegar à obrigação da vindita. É preciso, contudo, perceber que em todos eles há um distanciamento narrativo que faculta a presença de refletores, que veem pelos seus olhos, que analisam e pronunciam suas emoções e sentidos a fim de tornar a narrativa mais pulsante e vívida No contexto em que Cajango é o protagonista, a perspectiva, para ele, converge como força de atração. Diante de sua persona e de sua essência, as vozes fundamentais para entender suas condições elementares não está na sua própria enunciação, mas na enunciação do outro, e esse outro, em realidade, são dois: Inuri e Malva. É a compreensão da essência desses dois que a essência de Corpo Vivo pode ser depreendida. Cajango, após a morte da família, é levado ao tio, o índio Inuri, responsável por protegê-lo, mas, acima de tudo, prepará-lo para a vingança contra os seus algozes. Aqui começa um árduo treinamento do menino que é violentado em suas fibras mais íntimas (―Era uma casa alegre‖ – p.27) para se transformar numa fera: ―Quando crescer, se crescer, tem que matar os assassinos do pai‖ (1974, p.19). Cajango é educado na selva do Camacã, lugar isolado por Inuri, onde poucos são os que nela conseguem habitar. O bugre é como a sentinela dos portões que seria os do próprio inferno. Naquele espaço entre o real e o insólito, somente um segundo nascimento poderia permitir a entrada. Por isso o antigo Cajango deve morrer para que o novo consiga penetrar naquelas paragens. Neste local, Cajango vai cumprindo o seu

155 destino (―reconhecem que Cajango está cumprindo um dever‖, p.21) e o fatalismo diante das forças que o impulsionam, como certa vez impulsionou Aquiles a enfrentar a Heitor, a cumprir – por obrigação ou vontade – a vindita. Tudo, pois, se encaminha para o trágico. Entretanto, o trágico, entendido que o fatalismo que subjuga o herói não acontece, mas sim aquele que diz que o herói se coloca diante da Moira, afirmando-se como indivíduo e dono do seu próprio caminho. Ao se impor isso – sob pena de encontrar a morte, Cajango enfrenta Inuri, porquanto nele via a culpa por sua natureza e vida miseráveis. Sua condição existencial criava para ele uma persona, mais do um ente, pois que sua essência parecia guardar-se (e aguardar) dentro de si, como se na expectativa de emergir no melhor momento. Por exemplo, é o que conclui Padrinho Abílio, ao dizer que ―se não fosse Inuri, não existiria Cajango‖ (1974, p.11). Essa conclusão a que chega também Cajango será desenvolvida ao longo da narrativa, pois que a perspectiva de Abílio parece ser privilegiada de modo a ele afirmar isso bem antes do próprio estado de consciência de Cajango. Para que este se dê conta do que está acontecendo será preciso que haja Malva. Ela é a pedra de toque, ela é o momento em que sua consciência se desgruda de Inuri, ainda que ela possa ser a perda de tudo. Isso porque a perda de tudo a que ela pode representar é a perda de um mundo de morte, de selvageria e agressividade para o qual não mais se dirigia Cajango. Para que essas análises fiquem mais claras, devemos lembrar a conversa de Chico das Bonecas e do tropeiro Dico Gaspar, o maior narrador de Corpo Vivo. O diálogo aponta para o vaticínio de Hebe, dizendo que ―a mulher chegaria (1974, p.99)‖ e que a partir dela Cajango não seria mais o mesmo. Neste contexto, Inuri sempre se apresentava como um empecilho à realização amorosa entre eles, porque ela poderia ser um grande impeditivo à vingança que deveria ocorrer. Para o índio, não há a possibilidade de a vingança não acontecer, nem que para isso ele mesmo tivesse que matar Cajango. O índio se colocava como o verdadeiro agente do destino, pois que para ele a condição de vingança era irrevogável. Ele, Cajango, deveria se vingar. É o que afirma a Padrinho Abílio quando este lhe pergunta o que se fará do garoto. O índio responde:

‗Quando crescer, se crescer, tem que matar os assassinos do pai‘, esta foi a resposta. ‗Todos nós, sangue de Januário, temos que matar eles‘, acrescentou. Abaixei a vista para não fitá-lo. E disse: ‗Eles,

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Inuri, são muitos. Têm fazendas de cacau, gado muito, e centenas de homens na repetição. Vocês serão apenas dois‘. Levantou-se e, com o braço na direção da selva, soltou as palavras com lentidão. Os mortos estavam no chão e, se a terra fora roubada, às mãos de Cajango voltaria. Tinha que ser mortos os que mataram. E na idade, se Cajango não o quisesse fazer, ele o mataria porque não pode viver que não vive para vingar o pai e a mão. Arrastara-se no sangue dos irmãos, eu sabia, e esse sangue não trairia. Concluiu, a voz calma sem precipitação: ‗É pena que demore a crescer!‘ (Grifos nossos – 1974, p.19-20).

É, por isso, que Chico das Bonecas acredita que Cajango deveria ter matado Hebe, como se aquele que vê futuro fosse o responsável pela sua realização. Mas, diante das forças titânicas em que se colocam tanto o índio quanto Cajango, um não mais pode existir se o outro existir. É o que conclui João Caio:

‗Uns aos outros se destruirão‘. Hebe apenas vira o inevitável. Cajango, um homem, não conseguiria afastar a mulher que encontrara. Ela estaria nele como a raiz em uma árvore. Insurgindo-se Inuri ou Dico Gaspar seria fatal que a raiva contra eles se voltasse (1974, p.100).

Chama atenção o fato que, a despeito dessa conclusão a que se esperaria de Cajango, ela vem filtrada pela consciência do negro Setembro, que funciona como o narrador, cuja voz irá se fundir à mente de Cajango, na reunião de duas consciências que, em realidade, revela apenas uma.

A culpa inteira cabia a Inuri. Que padrinho Abílio a ele o tivesse levado – e quando o caçavam, ainda menino, para matá-lo – entendia muito bem. Inuri era o irmão do seu pai, um parente de sangue, dela a obrigação de proteger órfão. Trancava-o na selva, porém. Em seus nervos implantara a vingança e o ódio, criara-o como a uma fera, impedira que se tornasse um homem como os outros. Seu nome, agora faz estremecer o povo. É como uma peste, uma seca, um dilúvio. Ele, sim, fora ele quem matara os passarinhos de Deus! (1974, p.101)

É a partir deste momento que Cajango de destruidor vira o ser destruído. Observemos que desde a construção barroca na reunião dos contrários (seca x dilúvio) até o ponto de o garoto ser os passarinhos de Deus, a morte a que Inuri impõe a Cajango é de diversos matizes, pois matou a sua adolescência, a sua fase adulta, agora que limiar o amor de sua vida, a única condição de possibilidade para que se salve. Sem Malva, Cajango seria plenamente aniquilado. E isso o índio não vê. Ou não quer ver. Após tantos anos em sua companhia, Cajango percebe, agora, a sua relação com Inuri e de que modo Malva, ―uma mulher a ferir as entranhas da fera (1974, p.55) pode

157 salvá-lo, pode curá-lo. Malva, a planta curativa que se personifica na mulher. A metáfora abaixo deixa bem claro de que modo Cajango irá querer se soerguer. Ele, a cobra, necessitando do poder curativo da mulher, a planta, para viver: ―As malvas do campo. Pequenas touceiras que pediam sol, folhas que saravam as perebas, cortavam as dores, traziam a sorte. As próprias cobras, quando feridas, nelas se arrastavam para não morrer‖ (1974, p.83-84). Mediante esse dom curativo, Malva é a responsável direta por retirar Cajango de sua travessia trágica. Quer dizer, se o trágico a partir de agora não se realiza em sua conclusão porque não há o determinismo fatalista, mas sim – como o dissemos – a colocação firme de Cajango diante de todas as vicissitudes. Malva passa a integrar a própria alma de Cajango (―perdê-la é perder-se, (1974, p.98)), de sorte que agora tudo vira condição de somenos. Por isso a transição para outro espaço se fará necessária. E esse espaço é a serra, lugar propício para o outro renascimento de Cajango, que durante muito tempo se mostrou infenso à presença dos homens:

Um dia, e talvez o tempo seja longo, os homens se aproximarão levando os cacaueiros até o cume da serra. As florestas serão derribadas, as matas vencidas, Cajango tão somente uma sombra. Até esse dia, porém, e enquanto vivo estiver o corpo, não será um cego. As imagnes nos olhos, as vozes renascendo, a vida perto como a pulseira de ferro. A serra ressurge, aleijão medonho, um homem e uma mulher agora em suas entranhas. Nãohá febre, o calor diminui, mas é a serra que se levanta dentro do seu olhar. Cajango e a mulher, as mãos nas mãos. Pisam o chão úmido. As rochas como que se movem, dobrando- se a serra, para recebê-los. Descobrirão as cavernas, examinarão os fossos, encontrarão o ninho (1974, p.133-134).

Espaço cerrado aos não iniciados, a serra acolhe o casal que – como se remontasse à gênese do mundo – vai transcendentemente por um caminho que não é espiritual, como também não é telúrica, mas sim uma ascese que permite a reunião das antinomias a fim de configurar o Corpo Vivo.

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3) A Atualidade trágica em Adonias Filho

Ao longo do nosso quarto capítulo, analisamos os elementos que compõem a presença do trágico na obra de Adonias Filho, seja a partir da apropriação da forma trágica seja a partir do uso do sentido da tragédia. De qualquer modo, a obra adoniana se corporifica no exato contato entre essas duas potências sendo que, por se tratar de uma obra narrativa, predomina o estatuto ficcional da mediação (simples ou plural) o que traz, por consequência, o uso, a rigor, do gênero (entendido aqui essencialmente como forma) épica. Bom, tendo essas questões sido aprofundas em capítulos anteriores, podemos agora nos deter na interpretação das obras de Adonias Filho sob a luz da trilogia trágica de Ésquilo, a Oresteia, como forma de tentar compreender a produção do romancista brasileiro. Para enveredarmos por essa auscultação, é imperioso ter em mente que a retomada intertextual efetuada por Adonias Filho irá se realizar sob base no conceito de personagens como metáforas e não, essencialmente, como uma plena identificação unitária e limitadora entre os personagens como se efetuasse aqui (para usarmos uma expressão matemática) os conceitos de uma função sobrejetora. Diante disso, podemos partir para a exegese. O ponto primeiro que deve ser trazido à luz quando queremos tecer uma relação de sentido entre as trilogias de Adonias Filho e Ésquilo é perceber que entre eles há o tema da vingança. Esse tema, aliás, deve ser desenvolvido a partir de uma reflexão entre esses autores, uma vez que se realizam em potências distintas, apesar de redundarem em finais análogas. Como já observamos no estudo da trilogia adoniana, a vingança se efetua em Servos da Morte por contra da morte da mãe Elisa. Ou seja, ocorre um matricídio simbólico, que precisamos ainda desenvolver. Em Memórias de Lázaro, a morte do pai exige a reparação por parte de Alexandre e por parte de Roberto. Em Corpo Vivo, o assassinato da família exige de Cajango uma ação efetiva de restabelecimento do caos perpetrado pelo banho de sangue. Façamos as análises pormenorizadamente. Na primeira obra, observamos que a morte de Elisa se presta à realização de parte do seu plano de vingança contra o irascível marido. Para isso, após gravidez adúltera, gera o filho que lhe será o arauto responsável pela destruição de Paulino Duarte. Desse intento maligno, nasce Ângelo, que após seviciar a todos no interior da casa em que morava, na fazenda Baluarte, consegue concluir o plano de desgraçar o pai.

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Sua empresa, contudo, não se realiza unicamente de seus esforços. Ele conta, para isso, com a ajuda de duas entidades femininas que se complementam: mãe morta e Cláudia (cuja alcunha era Celita91). Na atitude de Ângelo, ele cumpre um dever (digamos divino) que é matar aquele que destroçou a sua mãe. A Paulino, entretanto, ele nada devia, de modo que a culpa pela consecução desse fato é nula. A culpa, a dor e o sofrimento não o perseguem. Pelo contrário, Ângelo passa a se sentir feliz e sem mais estar acometido pelas doenças e pelas febres que tanto o atormentaram. Mas como ele contou com Celita? Celita era a esposa de Quincas, que fora levada a morar em Baluarte após a cegueira de Paulino Duarte. A cegueira representava a fraqueza, a decrepitude que o antes imbatível e indesafiável fora acometido. Sem força para lutar contra vontade firme e brutal dos filhos, ele tem de aceitar a presença daquela mulher em sua casa. A primeira mulher que se instalaria naquela casa após morte de Elisa. Paulino Duarte não queria lembranças ou a presença de nenhuma mulher naquele espaço em que ele era o senhor absoluto. Mesmo quando Ângelo era pequeno e chegou a ele Etelvina, indicada para cuidar também das outras crianças da casa, ele a rechaçou. Celita seria parte importante na destruição de Paulino. Mas como isso se realizará? Precisamos lembrar que Celita tinha a mesma ignorância da real essência dos Duarte e o mesmo objetivo de transformação daqueles homens de que era encharcada Elisa. Porém, com o decorrer dos dias, esses esforços e intenções minaram, devido à

91 A etimologia do nome Elisa, Ângelo, Cláudia (o apelido Celita) são muito significativos no contexto da obra. Elisa tem o significado de ―abundância divina‖ ou ―o meu Deus é um juramento‖. O segundo sentido parece reverberar fortemente na ação da personagem que, pouco antes de morrer, afirma que se vingaria de Paulino. Mais significativo do que isso é também a fala de Emílio que incita no pensamento de domador de cavalo que a mulher só teria paz quando lhe extirpasse a vida: ―– O senhor já ouviu falar da vingança? Já ouviu dizer que a vingança é mais forte que a morte?‖ (1976, p.41). O sentido do nome Ângelo é mais facilmente depreensível, visto que guarda um cognato quase imediato entre o latim e o português para a palavra ―anjo‖. Um ponto, contudo, importante de se reconhecer é que na própria tradição bíblica, os anjos podem ser descritos tanto como seres bons (tal qual o é Gabriel) como maus (tal qual o é Lúcifer). Em Servos da Morte, fica sempre a ambiguidade entre as duas potências da natureza de Ângelo, o que nos faz inferir que ele possua necessariamente as duas. O último nome em questão é o de Cláudia, cuja significação é coxa. Isso faz referência imediatamente a duas condições. A primeira retorna à sua criação. Apesar de ser criada pelo avô, após o abandono do pai, ela tem profundas relações afetivas paternalistas com João de Paiva, um negro igualmente coxo. O apelido Celita, a seu turno, fora dado por seu avô e parece fazer um processo senão de renascimento ao menos de novo batismo. Tal alcunha, assim, passa a fazer referência a um ser que possua dotes celestes. Ou seja, os três nomes se irmanam no mesmo campo semântico, tornando seus detentores mensageiros de uma potência celeste em oposição à natureza telúrica existente no espaço de onde decorrem os eventos.

160 tamanha destruição, sofrimento e violência que ela observava naquela casa. Tomada por algum impulso que lhe parecia externo, ela começa a observar as semelhanças entre Ângelo e Anselmo, até que fala, abertamente, para Paulino e para os filhos deste que Ângelo era um filho ilegítimo. Essa fala, no âmago do antigo patriarca, é o golpe derradeiro em sua já destroçada moral. Mas qual é o preço dessa ação de Celita? Sua total perdição. Celita, ao realizar essa destruição de Paulino, irrompe sobre ela a vingança de Rodrigo. A mulher comete a falta terrível de participar da morte de um pai e deve ser punida. A quem cabe essa afronta? Ao primogênito. Rodrigo, então, instigado por Ângelo, tenciona matar Lisinha, a única filha de Celita, o que seria sua total desgraça. Com o plano realizado, nada mais resta à mulher senão voltar à sua antiga casa, para perto do avô. Assim fala Thereza Domingues, em As múltiplas faces de Os Servos da Morte, de Adonias Filho:

Celita, que desafiou o Pai Terrível, foi duramente castigada por sua ousadia. Ela cumpriu sua tarefa matriarcal – como auxiliar de Elisa, ao humilhar Paulino Duarte, revelando-lhe o adultério da mulher, e ainda, participando com Ângelo da morte do pai. Por tudo isso, ela teria que ser morta ou expulsa dali, onde o patriarcado sombrio erguera um Baluarte contra o matriarcado e contra o feminino (2006, p. 129).

O que observamos até aqui é que a morte de Elisa se demonstra como um matricídio simbólico por ser ela a grande mãe daquela casa. Sua destruição gera um efeito dominó de sofrimento e desgraça interminável. A força dessa maldição é total que todas as mulheres presentes em Baluarte sofrem da desgraça. Celita, que assumiria a posição de Elisa, padece dos meus sofrimentos, nascidos da mesma ingenuidade. Consorciada à imagem de Elisa, ela confunde-se em suas atribuições e caracteres, a tal ponto de quando Ângelo tentar violentá-la, somente a evocação do nome de Elisa poder livrar-lhe do ato insano. Mas se ela se associa à Elisa ela também lhe poderia tomar o lugar e, por isso, sua morte é inevitável. Celita-Elisa funciona, assim, metaforicamente, como Clitemnestra-Egisto: é a mãe e o usurpador. O que aqui se demonstra é o duelo das antinomias representadas pelo patriarcado e o matriarcado, com claro pendor valorativo para o primeiro. E é neste exato ponto que ressoa a discussão, de cunho teológico e político, entre Apolo e as Erínias. Nas Eumêmides, no momento do julgamento de Orestes, o deus solar afirma que não há crime na morte da mãe, porque quem dá a vida é o pai, e, para ratificar sua argumentação, cita o próprio nascimento de Atenas, das meninges de Zeus, dispensando a figura da mulher:

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Isso direi e sabe que direi verdade. Não é a denominada mãe quem gera O filho, nutriz de recém-semeado feto. Gera-o quem cobre. Ela hóspeda conserva O gérmen hóspede, se Deus não impede. Eu te darei uma prova desta palavra: O pai poderia gerar se mãe, eis Por testemunha a filha de Zeus Olímpio, Não nutrida nas trevas do ventre, Gérmen que nenhuma Deus geraria. Pálas, eu, quanto ao mais, como sei, Farei grande tua cidade e teu povo. (E. 657-68. 2004, p.121-123)

Rodrigo, então, ao matar Lisinha, era como se matasse a própria mãe, Elisa, e vingasse o seu pai. Como Orestes, sua vingança é terrível, mas inadiável. Por isso, no caso de Ângelo, não há a punição pela morte de Paulino, visto não ser ele o filho legítimo, não lhe corria nas veias o mesmo sangue. O assassinato não tinha a perversidade de ser um parricídio. A questão de Rodrigo, contudo, é um pouco mais complexa do que essa, ainda que guardasse em todas as vontades de realização das potências paternas. Thereza Domingues explica mais uma vez:

Do seu ponto de vista doentio, Rodrigo teve ainda muitos outros motivos (pessoais e transpessoais) para cometer o crime: o desejo de ver cumprida a vontade paterna, que não queria mulheres na Baluarte, o horror que lhe provocava qualquer criança recém-nascida, depois que, em menino, assistira ao parto da mãe, provocando a morte dela, e, sobretudo, a motivação transpessoal de ser ele o atual representante do patriarcado sombrio, na família – o ―filho-do-pai‖ que, finalmente, assumia seu lugar‖ (2006, p.141).

O tema da vingança em Os Servos da Morte só acontece porque há a maldição que perdura por gerações. Como na família de Atreu, a desgraça perdura tanto na descendência extirpada de Tiestes, como na desonra de Menelau, como no assassínio de Agamêmnon. Não é diferente na família dos Duarte, em que tudo é dor e sofrimento. Miguel Duarte, pai de Paulino, fora tratado como um títere nas mãos de Juca, que lhe arranja uma mulher desvairada, Lica, para que dessa ruinosa união nascesse um filho, que se prestaria aos propósitos vingativos de Juca, contra Gumercindo, pai de Anselmo. Desta forma, o homem trama, conscienciosamente, uma forma mordaz de vingança que perduraria por anos, e que não mediria esforços para ser realizada. Por isso, desde muito cedo, ele tratava Paulino como um animal, para que a selvageria e a

162 dureza estivessem presentes quando fosse necessário. Contudo, com a morte de Miguel Duarte, Paulino se sente livre para agir da maneira que melhor lhe aprouvesse e, neste momento, expulsa Juca da casa onde moram, sem ter por ele nenhum tipo de pena, preocupação ou remorso. Tendo total controle de sua vida, Paulino Duarte se estabelece como um homem de posses, o que iria atrair Elisa, que se consorcia àquele homem por interesse em sanar a dívida financeira de seu pai, como também por sentir uma afeição inexplicável por Paulino. Como já demonstramos alhures os desdobramentos deste encontro, podemos chegar ao ponto que ora nos interessa: a relação que se estabelece entre Paulino, Elisa e Ângelo. Como no Édipo, a relação existente aqui será a de um triângulo – não de cunho incestuoso (como querem algumas teorias psicanalíticas) –, mas de teor essencialmente possessivo, já que Paulino não entende como pode haver uma relação tão densa entre Elisa e Ângelo, ao ponto de o filho ter todas as características da mãe:

Ele quis examinar-lhe o rosto, procurar um sinal de Elisa nos traços delicados, na doçura da fisionomia inocente. (...)A morta havia deixado no filho um sinal diabólico – e Paulino Duarte começou a sentir que a vingança se prolongaria, que o ódio de Elisa estava presente e vivo nos olhos daquela criança (1976, p.72-73).

Ele, Paulino Duarte, que teve tão similar início de vida, com sua mãe morrendo na hora do seu parto, não pode experienciar o toque suave de uma mão materna acariciando-lhe a fronte dorida pelo sofrimento que lhe impunha a existência:

...desejava por tudo que a alma de sua mãe aparecesse, e fosse boa, e tivesse as mãos macias para alisar seu rosto sempre ferido pelos bofetões do pai. Desejava e pedia, pedia muito – e as nuvens sempre correndo, a lagoa parada como uma terra (1976, p.52).

Diante de tanta dor, restaria a Paulino Duarte o descanso na escuridão que não lhe permitira ver mais as mazelas que se cercava. Sua cegueira, portanto, deveria ver como um bálsamo, mas, ao contrário, vinha como mais um elemento portador de profundos sofrimentos. Diferentemente de Édipo, para quem a cegueira já era uma forma de reparação, para Paulino era uma profunda forma de desolação, pois que o não ver o mundo não lhe retirava do estar no mundo, pelo contrário, enfatizava, em seu coração e em sua memória, drasticamente as potências do sofrimento, ou seja, a presença fantasmagórica de Elisa:

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Apesar dos dias passados, sem que tivesse luz nos olhos, ainda não se conformara com as trevas daquela noite eterna. Através dos ruídos, dos sons conhecidos, distinguia os dias das noites. Mas, o que o torturava, a agornia que o devastava não era propriamente aquela de não ver, de sentir-se entregue aos outros como um pobre diabo. Sabia, por experiência de muitos anos, que seria respeitado pelos filhos, eles tremiam, amedrontados, diante de sua cólera. O que o corroia e feria o seu coração, eram as imagens, era a tranquilidade do corpo provocando na memória uma atividade constante. Elisa, Emílio, Juca Pinheiro, o pai bêbado, tudo renascia nas trevas, vivo, em precisão de retrato. Tudo, a lagoa e o penhasco, o ribeiro e dona Mariana. Era aquilo, aquele mundo enterrado, que brotava de dentro dos nervos como um facho, queimando, sufocando, enlouquecendo. Era Elisa, jogando-lhe o candeeiro no rosto, a luz da vela ardendo nos seus pés. Paulino Duarte, a fisionomia imóvel, sentia vontade de abrir os olhos, arrancá-los com as unhas, na ânsia de destruir aquelas criaturas. Esgotado, os mortos existindo dentro dele, vivos nas trevas (...) (Grifos nossos. 1976, p.90).

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Na formação de um espírito livre para tomar as rédeas de sua vida, a presença da divindade precisa necessariamente ter de duas pelo menos uma postura: compreender o ser que age como um indivíduo autônomo, e nessa autonomia ser capaz de projetar para o mundo sua potência de viver; ou colocar-se à parte do mundo, a fim de que, após o ato criativo em que o sopro nas narinas humanas deu início a grande travessia do ser, não se empeça o caminhar tateado, vagaroso e quedo do homem, ainda que constantemente para frente. Na tragédia grega, os deuses não se eximem de sua participação, de modo que a moira e o fatalismo representam a natureza menos livre do homem, em sua romagem pela terra. Essa condição colocada como incontestável, dá ao herói trágico, muitas vezes, circunstâncias que lhe martirizam a existência, revelando, por isso mesmo, certos traços de sua personalidade que, artisticamente, fundamentam uma obra que aponta a aspectos, para além dos epistemológicos, mas com fins fortemente ontológicos. A força divina, dessa forma, pode encontrar diversas maneiras de se realizar, sejam elas a partir da presença explícita da deidade ou pelas forças de condução do herói a determinado lugar, circunstância ou situação. No caso da obra adoniana, essa transmutação dos elementos das divindades decisórias do caminho humano, assumem três formas: Elisa, Abílio e Inuri, respectivamente em Servos da Morte, Memórias de

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Lázaro e Corpo Vivo. Como já estabelecemos os critérios de sentido dessa realização na primeira obra, vejamos como ela se realiza nas outras duas obras da trilogia. Antes, porém, de seguirmos nessa linha interpretativa, é válido afirmar que o procedimento de Adonias Filho de sua trilogia é a encenação do drama de forma distinta da de Ésquilo, que dá uma continuidade à trama. Em Adonias, ocorre a encenação do drama das paixões, que se representa, simultaneamente, nas três obras, sem que haja uma consecutividade da trama, embora possamos enxergar que há um progresso temático. Não devemos perder de vista que a trilogia de Ésquilo é a encenação das pulsões contrárias: patriarcado e matriarcado, Logos e Eros, celeste e telúrico, na respectiva identidade com os elementos masculinos e femininos92. Na contraposição das forças opostas, o objetivo é se atingir uma complementaridade, sem perder a essência individual dos elementos presentes no processo de unificação. Tal dialética é bastante presente, por exemplo, em Memórias de Lázaro, quando Alexandre, repleto do espírito do pai, verifica que a única maneira de unificar corpo e alma é se entregar, em sacrifício, ao vale. Como afirmamos antes, Alexandre é composto por quatro essências geradoras (o pai, Jerônimo, a mãe louca e neto de uma prostituta), o que lhe garante um caráter plural e praticamente infenso à possibilidade de se tornar autônomo de sua própria existência. Em O romance dramático de Adonias Filho, Ronaldes de Melo e Souza mostra que Adonias Filho absorve de Ésquilo três condições essenciais: a) o máximo de paixões aflitivas para efetivar a catarse; b) a morte que se insurge contra a nadificação e c) o mal não é vencido pela astúcia da razão, porque ele nasce do erro passional. Dessas três considerações já falamos sobre a primeira. Vejamos as demais. Alexandre quando entende o poder de permanência pela morte, realiza a essência do trágico. Sua tentativa de entender o Vale do Ouro, Gemar Quinto e todas as personagens que, ao se redor, se demonstram no limite entre a loucura e a sanidade, entre a selvageria primitiva a amoralidade o leva a concluir que ele era reflexo daquele mundo. Suas atitudes demonstravam a mesma selvageria, agressividade e possessividade, o que confirma, por exemplo, quando ele não consegue ficar muito tempo na casa de Natanael, o único lugar menos agressivo do Vale. Alexandre pertencia

92 Além das várias fontes conhecidas sobre esse tema, sugerimos as leituras dos textos de Junito Brandão (Helena – o eterno feminino) e Johan Jacob Bachofen (Mitologia arcaica y derecho materno).

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àquele lugar. A morte, para ele, funciona como única forma de resistir a essa total perda de identidade. Amalgamado ao Vale, seus limites se confundem, assim, estar no Vale era estar em paz:

Levantei-me nas trevas, o vale dormindo. Não vi, em torno, senão a noite. Nada ouvi, enquanto andei, senão o vento. A noite, o vento, eu, o vale seria isso, não fosse surgir nas próprias trevas um ponto mais escuro, a caverna de Jerônimo. Sem emoção, sem pressa, esmurrei a porta. Esperei, sem gritar. Quando ela se abriu, o vento entrando comigo, a noite fora, eu vi Jerônimo. E de Jerônimo ouvi a pergunta que não esperava: – Por que você voltou? (Grifos nossos. 2007, p. 175).

Mas Alexandre enfrenta um problema: ele não consegue compreender que o mal não irá se resolver a partir de elementos intelectivos, mas sim emocionais e passionais. Ao criar uma narrativa em que reflete as condições de sua existência ele busca salvar-se, busca romper com os traços que o prendem àquela realidade. Concluir que faz parte dela o salva da nadificação, mas não se livra da maldade e do sofrimento, apenas reconhece que aquilo faz parte de sua própria condição. Esse sofrimento é, na verdade, o reflexo de uma construção de um destino. Ele age como o pai, age de acordo com a vontade do vale e atua sob influxos de Rosália. E acerca de quais aspectos isso se realiza? Alexandre retorna trazido pelo espírito do vale: ―– Eu não voltei, Jerônimo. Trouxeram-me. (...) – O vale, o espírito do vale‖ (2007, p. 13). Ele retorna ao espaço sobre o qual o pai lhe tinha falado: ―Ali, perdido na distância que o olhar não alcança, talvez exista, com o fim da estrada, o verdadeiro mundo a que se referia Abílio, meu pai‖ (2007, p.10). Paralelamente a isso, age motivado pela vontade de Rosália, como que, depois de morta, se vingasse pelas mãos de Alexandre, por ter sido assassinado por seu irmão Roberto: ―Mas eu sufoquei a sua ameaça, não com um soco na boca, mas apertando o seu pescoço com as mãos que, já não sendo minhas, pertenciam à lembrança de Rosália que me orientava (2007, p117). Outro ponto que deve ser discutido aqui dá conta do parricídio promovido por Rosália. Como estamos vendo, esta atitude irá redundar numa série de acontecimentos trágicos. Conforme já demonstramos a partir do discurso de Apolo nas Eumênides, o traço masculino supera as potências do feminino, quer dizer, o celeste coloca-se acima do telúrico. Nesta perspectiva, ao matar o pai, Rosália sacramenta o seu próprio fim, já que sua ação não poderia ficar sem retorno. Caberá, então, a Roberto a ação de vingança

166 contra aquela que matou o pai. Ao realizar a vindita, ele passará a ser a representação do pai, já que irá lhe efetuar os desejos: ―Fizera, afinal, o que o pai teria feito‖ (2007, p.111).

** As questões que suscitam a grande dor nos personagens é a presença de um verdadeiro drama, onde o derramamento do sangue familiar jorra na sequência da obra, que pode, neste ponto, ser entendida como consecutividade de existência. Perseguidos todos por uma grande maldição, o grande combate contra a nadificação do espírito se perceberá a partir das condições passionais da existência em detrimento das questões emocionais. E, neste sentido, muito se pode aprender com a Oresteia. Em termos absolutamente sucinto, a Oresteia divide-se em três peças Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Na primeira peça, narra-se o retorno vitorioso do rei Agamêmnon ao reino após 10 anos de intenso combate em Troia e o seu assassinato, mancomunado por sua mulher, Clitemnestra e seu amante, Egisto. Na segunda peça, tem-se o castigo da rainha e do seu amante pelas mãos do príncipe Orestes e de sua irmã, Electra. Na terceira peça, vemos o julgamento de Orestes, tendo as Erínias como promotoras da Justiça e Apolo na defesa, já que ele também sustenta a ação vingativa de Orestes. Por esse ponto, vai se percebendo que a perspectiva apolínea é a perspectiva do Logos e do masculino, ao passo que a das Erínias é a do Eros e do feminino. Mas como essa justiça pode ser feita? Para entendermos as implicações desse processo, precisamos resgatar a afirmação de Jaa Torrano, em seu estudo e tradução da Oresteia: ―Em termos estritamente humanos e civis, portanto, a guerra é vista como uma demanda e a expedição como um recurso perante o tribunal‖ (2004, p. 23). Quer dizer, se a guerra é um procedimento (digamos) legal a ser aplicado a fim de se chegar à justiça, o modo violento de proceder seria – como é fácil de inferir – uma forma igualmente válida. Tal consideração no contexto da obra do tragediógrafo grego gera as implicações nos assassinatos e no desejo de vingança produzidos a partir disso. Tal efeito em Adonias Filho, ganhando um matiz sutil, reafirma esse conceito, porque a violência é sempre uma forma de se estabelecer a ordem e o sacrifício uma forma válida para se chegar aonde deseja. Vejamos por outros pontos. Em Memórias de Lázaro, Roberto mata a irmã a fim de destruir o espírito diabólico que ele alegava que ela possuía. Em Os Servos da Morte, o fato de Ângelo ter de se vingar, justifica o fato de ele poder eliminar todos ao seu redor, até chegar ao seu

167 objetivo maior: Paulino. Em Corpo Vivo, a morte de Inuri se presta como forma de libertação de Cajango. Quer dizer, em todas as obras, o efeito da violência é de fundamental importância para se conseguir o objetivo maior que se tem em mente. Nesse sentido, o sacrifício de Ifigênia por seu pai, Agamêmnon, é completamente justificado, ficando-o livre das obrigações de reparação, já que efetuara aqui, também, por conta dos desejos dos deuses, aqui, representados por Ártemis. Essa ação, contudo, irá gerar a reação de Clitemnestra, que não aceitará, de formas alguma, o sacrifício da filha a fim de salvaguardar o exército grego. Por isso a rainha se vinga. Se a guerra, portanto, é fundamental, a violência precisa decorrer de uma condição de agressividade e ferocidade. Em Adonias Filho isso atinge um estágio de profunda identificação. Para melhor compreensão desta linha interpretativa, voltemos ao estudo de Jaa Torrano:

Ao mencionar a repreensão sofrida por crer na mensagem do fogo (A. 590-2) [que se refere à comunicação de que se havia vencido à guerra de Troia], a rainha escarnece de seus destratores, não especialmente do corifeu, mas de destratores a quem o coro ecoou no epodo do primeiro estásimo (A. 475-87). Neste epodo, acusa-se de puerilidade, de aturdimento e de açodamento fadado à decepção a pronta acolhida dada à mensagem do fogo. Essa acusação se formula em termos de incompatibilidade entre o caráter feminino e os requisitos de comando, por um lado, e por outro, entre a proclamação da glória e da condição de mulher (2004, p. 51).

Nesta parte, já se começa clarificar a distinção entre as potências femininas e masculinas, a ponto de se verificar a predominância dos elementos apolíneos sobre a força das Erínias. Continua a citação Jaa Torrano:

Assim, formulada essa acusação apenas ecoa o consenso de que a glória (kléos) é essencialmente viril e estranha à condição feminina. Esse consenso predomina por toda a cultura grega e resume-se nas palavras que Péricles em sua oração fúnebre dirigiu às viúvas: ―grande será a glória daquelas de quem menos se falar, quer pelas virtudes, quer pelos defeitos‖ (Tucídides, II, 45-2) (2004, p.51).

Na construção dessa identidade essencialmente viril e estranha à condição feminina, as personagens de Adonias Filho precisam transformar todos em arautos de sua vontade, seus asseclas e seus servos. São Elisa, Celita, Rosália e Malva as personagens que passam a dar motivo de ação para os personagens masculinos. Escondidas atrás das potências do homem, elas os colocam como seus títeres, sem que percebam a influência do anjo que pode tender para o mal (como Rosália) e para o bem

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(como Malva). De qualquer modo, o homem, muita vez, apenas pressente essa influência, mas não consegue explicá-la. Por pressenti-la se acovarda e foge, porém não para um mundo externo de onde não exista aquela presença, mas sim para o seu próprio mundo interno a ponto de expurgar a participação feminina. Esse é o rito que realiza todos os homens de Os Servos da Morte. Em Memórias de Lázaro, a presentificação da mulher não se coloca como uma condição negativa, somente porque os personagens não as percebem assim. Alexandre, neto de uma prostituta e filho de uma louca, herda, em algum grau a plenivalência de paternidades e o traço da loucura que o impedirá de se proscrever do vale, casulo e grilhão indevassável, como uma fortaleza ou baluarte. Ao unir-se em matrimônio à Rosália, sentirá a emersão da perda de sentido, visto que a dúvida atroz acerca da paternidade daquele que seria seu filho ficará para sempre comprometida. Mesmo a certeza do que acontecera na hora derradeira entre Roberto e Rosália se parecerá nebuloso, de modo a não haver alternativa às suas elucubrações. Seu logos é posto por terra, submetido às forças passionais do feminino, o que lhe sucumbe a razão. As Erínias atestam o seu julgamento e Apolo nada consegue fazer para defendê-lo. Os personagens masculinos dessas duas obras de Adonias Filho são colocados, frequentemente, diante da força feminina e, por agirem exclusivamente no primado da razão e do celeste não configuram (ou não entendem) a união que deve haver entre as duas potências: masculina e feminina. Paulino, como Agamêmnon, possui, ao seu lado, a Clitemnestra que lhe prepara a morte e a vingança, sem o peso do remorso, pois que se assentaria na justiça de o rei ter dado a sua filha, Ifigênia, em holocausto. Tal qual Elisa é destruída por Paulino, a vingança se demonstra não somente digna como necessária. É Clitemnestra quem fala em resposta ao coro, o que se poderia ouvir da boca da própria Elisa:

Não me envergonho de contradizer Muitas palavras antes oportunas. No ataque a inimigos amigos aparentes Como se armariam ruinosas redes De altura que suporte o salto? Este meu combate, não sem plano prévio, Pela porfia prístina, veio, com o tempo. Fiquei onde bati, com fatos consumados. Fiz de tal modo (e isto não negarei) A não escapar nem evitar a morte. Inextricável rede, tal qual a de peixes, Lanço-lhe ao redor, rica veste maligna.

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Firo-o duas vezes e com dois gemidos Afrouxou membros ali mesmo e prostrado Dou-lhe o terceiro golpe, oferenda votiva A Zeus subterrâneo salvador de mortos. (Grifos nossos. 2004, p.201, v.1372-87)

E após o horror a que é submetido o coro, Clitemnestra-Elisa afirma não só a premeditação, mas também o zelo e a perícia no assassínio do marido, como se tivesse cumprindo uma missão. A realização do ato, de forte teor significativo, se revela mais intenso quando a mulher não se preocupa com a opinião do coro sobre seu ato. O que mais lhe era caro era o fato de o marido estar morto.

Tendes-me por mulher imprudente, Mas eu com intrépido coração vos digo Cientes: tu queres louvar-me ou repreender, Dá no mesmo, eis aí Agamêmnon, meu Esposo, e morto, façanha desta mão Destra, justo artífice. Assim é isto (Grifos nossos. 2004, p.203, v. 1401-06).

As deidades femininas das Erínias aqui se colocam com fervor, pois que a satisfação com a morte do marido, em certo ponto, irrompe com a própria queda do patriarcalismo. Condições desta natureza dão azo às discussões que vão para além do campo unicamente literário, atingindo as circunstâncias sociais e teológicas, visto que são essencialmente a manifestação de uma nova forma de se colocar na sociedade e no mundo. Citamos mais uma vez as considerações de Jaa Torrano, com o escopo de demonstrar tal ideia:

Esse pavoroso júbilo que se nutre de sangue parece a voz de Erínies. Clitemnestra se apresenta como suporte de uma hierofania infernal. O regicídio é apresentado em termos rituais como oferenda votiva a Zeus subterrâneo, uma contrapartida ctônica do sacrifício olímpico oferecido por Agamêmnon a Ártemis. O homicídio perpetrado por Clitemnestra se apresenta como suporte de uma cratofania de Eríneis, assim como a expedição de Agamêmnon, responsável por filicídio e genocídio, se deixa descrever como Erínis enviada por Zeus Hospitaleiro e assim a Justiça de Zeus em forma de Erínis (A.50-9) e a vitória de Zeus rei e de noite amiga (A. 355) (2004, p.78).

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170

Capítulo V A trilogia de Autran Dourado e a Atualidade Trágica

Introdução

Se há nas letras brasileiras um obstáculo a ser vencido, ele não é verdadeiramente encontrado em nenhum outro espaço que não seja o do próprio meio literário. Isso decorre do fato de os próprios acadêmicos e literatos atribuírem um selo de qualidade a uma obra dependendo da análise e das possibilidades às quais o texto se submeta, e não aos elementos que ele põe em submissão. O ponto de partida da autêntica análise literária não pode ser outro senão a própria produção artística, pois o sentido do tema é dado pelo discurso, já que os temas são universais. Numa palavra, cabe examinar sempre o estatuto poético do discurso literário em sua forma romanesca, guardando as demais possibilidades exegéticas para um segundo momento analítico. Um mesmo autor pode, dessa forma, versar toda a sua obra sobre o mesmo tema sem cair na repetição. Machado de Assis, por exemplo, ao discorrer sobre a traição (sugerida ou realizada) em três romances: Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba e em contos como ―A cartomante‖ e ―A missa do Galo‖. Cada texto, no entanto, aborda o assunto de maneira distinta. Sendo assim, o que faz, então, o autor ser considerado um dos grandes nomes da literatura é possuir uma narrativa que abre espaço para a pluralização de pontos de vista. O que irá definir a obra não será o tema, mas sim seu estatuto poético:

Machadianamente concebido, o narrador se representa na ficcionalização de narradores inumeráveis (o narrador sentencioso, o irônico, o cínico, o cômico, o trágico, o grave, o leviano, o tragicômico, etc.) para se haver com o dinamismo heterogêneo das representações e vivências de papéis (SOUZA, 2006, p. 16).

O fundamental para a estrutura romanesca, então, é impor-se como forma específica, legitimar-se análoga aos gêneros considerados nobres ou canônicos. Contudo, vemos na crítica contemporânea – e como consequência, nos manuais de literatura – o contrário disso. Presenciamos, assim, a absorção de características que não são propriamente ficcionais (muitas vezes tributadas a lendas e a fatos históricos), além

171 do recurso analítico proveniente de outras áreas do conhecimento, como as ciências exatas e humanas. Com esses procedimentos, a legitimidade do discurso literário fica quase restrita a zero. A certa altura de Uma poética de romance, diz Autran Dourado:

É preciso repetir sempre: o que o romancista escreve não tem nenhum valor científico como psicologia, as suas análises podem ser até absurdas‖, e continua: ―Literatura e psicologia são coisas autônomas (...) nunca é demais repetir. Tanto a psicologia quanto a ficção utilizam-se da técnica associativa, mas cada uma com a sua finalidade própria. No romance, repetimos, como técnica narrativa; na psicologia, como técnica de análise da personalidade, quando não como terapêutica, como é o caso da psicanálise (2000, p. 102).

Noutras palavras, valemo-nos da filosofia, da sociologia e da psicologia, mas nos esquecemos de uma interpretação primeiramente literária. Não há o intuito, todavia, de cairmos no estruturalismo ou na estética vazia de significação, mas sim usá-los como procedimentos auxiliadores – e não derradeiros –na interpretação da obra artística. Nas palavras de Afrânio Coutinho:

A Literatura é um fenômeno estético. É uma arte, a arte da palavra. Não visa a informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar. Acidentalmente, secundariamente, ela pode fazer isso, pode conter história, filosofia, ciência, religião. O literário ou estético inclui precisamente o social, o histórico, o religioso, etc., porém transformando essa matéria em estético. Mas o seu valor e significado residem não neles, mas em outra parte, no seu aspecto estético- literário, que lhe é comunicado pelos elementos específicos, componentes de sua estrutura, e pela finalidade precisa de despertar no leitor especial de prazer, que é o sentimento estético (2008, p. 23).

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Se é a poeticidade que valida o discurso literário, caberá ao escritor criar uma forma pessoal, de modo a singularizá-lo da massa; somente assim a literatura poderá funcionar como forma de conhecimento. Lembrando Bakthin:

Cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o eu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que nele tem sua relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história. Em relação a esse elemento, tudo o que é suscetível de repetição e reprodução vem a ser material e meio. Em certa medida, isso ultrapassa os limites da linguística e da filosofia. Esse segundo elemento é inerente ao próprio texto mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de cada campo) (2006, p. 310).

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Nesse processo, entendemos que o trabalho do autor é poético, pois é na poiesis que se instaura o novo e o original, e não no processo puramente mimético. Não se afirma aqui, como já o dissemos, que o foco final resida na forma. Até porque ficaríamos presos àquela concepção cultista parnasiana – como artistas – e, ao formalismo – como críticos. O que queremos destacar é a importância não só da arquitetura poética num texto literário, como também uma crítica que parta desse tipo de investigação e tenha esse ponto como objeto máximo de estudo. É preciso esclarecer que as outras áreas do conhecimento devem ter um caráter exegético suplementar, nunca complementar. Nas palavras de Autran Dourado:

Se o romancista emprega técnicas e conquistas da psicologia, da sociologia e mesmo da filosofia (como emprega da semântica, da astronáutica, da cibernética etc.) às vezes nem reconhece direito essas ciências, sabe-as pela rama. (Para que não se confundam as coisas, repito: ele pode reconhecer pela rama essas ciências e filosofias, mas a sua arte ele tem de conhecer como ninguém, na sua construção tem de ser lúcido, preciso e consciente, mesmo ao preço da loucura e da esterilidade: Poe, Hawthorne, Melville; na poesia, Malarmé, Valéry). Nem precisa conhecer a fundo (2000, p. 97).

Antes de nos atermos detidamente ao estudo acerca da trilogia que elencamos no início de nossa tese, repousemos brevemente nosso olhar sobre os constructos que emergem da obra de Autran Dourado. Por exemplo, a justaposição imagética em Tempo de Amar potencializa a figura fragmentada de Ismael, personagem desvitalizado, que busca nas mulheres ao seu redor uma vida que não tem. A narrativa em blocos de Os Sinos da Agonia faz com que nos deparemos com o personagem Januário, que, depois de matar o potentado João, por amor à esposa dele – Malvina –, é procurado pela guarda real; como não é encontrado, dá-se, para ele, uma morte em efígie, ou seja, uma morte social. Como trama subsequente, há a relação de amor proibido entre Malvina e seu enteado, Gaspar. Já no metarromance Um artista aprendiz, Autran Dourado mostra ficcionalmente a arte de composição do romance que será válida para sua obra como um todo. O fator de grande interesse do livro é que a vida do protagonista – João Nogueira – confunde-se com a vida do próprio Autran, além de haver relação com os personagens de O risco do bordado (1970).

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Em todos os casos, observaremos a morte como um tema recorrente na ficção autraniana (princípio telotanatico93), contudo, como dissemos algures: o que dá o sentido do texto é a forma que se aplica a esse conteúdo, ou, nas palavras de Bakthin:

A forma não pode ser entendida independentemente do conteúdo, mas não pode ser independente da natureza do material e dos procedimentos por ele condicionados. Ela é condicionada a um dado conteúdo por um lado, e à peculiaridade do material e aos meios de sua elaboração por outro (2006, p. 177).

É, nesse sentido, fundamental associarmos o conteúdo à forma. A morte como fim tem uma consequência: se a morte é o princípio da vida, o passado é o tempo privilegiado, de modo que não haverá a relação sucessiva do pretérito para o presente e para o futuro: a relação será inversa. Com esse tempo estagnado e paralisado no passado, não haverá fluxo, tudo será o tempo ido. Para o personagem estar neste tempo, é necessário que ele esteja morto em vida e que o espaço em que ele se encontre seja o da estagnação. A partir disso, a narrativa irá se desenvolver regida pelo fluxo inverso de realização cronológica, de modo a o enredo não progredir. Na vida que não se realiza, os personagens rebelam-se contra ela numa vingança contra o tempo. Nesse desejo pela morte que repudiam, os personagens não transformam sua existência; são sempre o que foram, e nessa recusa do que se deseja, o tempo para e a morte se instaura na própria vida. Na estruturação, os verbos no passado e a ausência dos tempos futuros corporificam essa finalidade pretérita da existência. Para representar esses personagens que vivem o que foram no que são, o narrador não pode se valer de apenas um único ponto de vista, mas de vários, de forma a não vir à tona apenas um traço da personalidade do personagem, mas toda a sua visão de mundo, encenando todas as ideologias e sentimentos possíveis. Em Autran Dourado, os limites entre loucura e sanidade são o tempo todo testados de forma a permitir uma literatura em que o mitopoético soerga-se às marcas que comumente se chamam de regionalistas ou intimistas – é um algo a mais na construção do sentido. Aliado a esse procedimento, a forma se biparte em vários pontos de vista. Em seu artigo intitulado Representações da Loucura em Autran Dourado, Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva afirma que ―multifacetada e portadora de uma lógica própria, a loucura encontra na experiência literária um espaço para a construção do desmoronamento‖ (2012, p. 01).

93 O conceito será explicado na parte destinada ao estudo da atualidade trágica em Autran Dourado.

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A estrutura ficcional deve ser poética, por isso é necessário neutralizar o narrador monológico, ou seja, a mediação simples. Ela não representa todas as percepções vitais dos personagens, pois se restringe à condução narrativa a partir da percepção de um narrador externo (ou mesmo interno, não impedindo, porém, a perspectiva monovisual). Para a completude da trama narrativa, são necessários alguns recursos, como o uso da falsa terceira pessoa, o narrador multiperspectivado e o romance polifônico, como já explicamos em capítulos anteriores. Esses três recursos, quando combinados, são partes de uma estruturação arquitetônica fundamental para o valor de uma ficção narrativa. A falsa terceira pessoa é o recurso estético em que a narrativa está na terceira pessoal gramatical, embora traduza uma sensação de primeira pessoa discursiva. Noutras palavras: a ficção narrativa em terceira pessoa objetiva e logifica o drama que é inerente ao personagem, ou seja, o narrador tem uma percepção exclusivamente externa desse drama, que se racionaliza ao ser narrado. Se, no entanto, esse drama se desenrolar em primeira pessoa pode haver o inconveniente de o personagem ser incapaz de analisar o evento (como uma criança ou um cachorro, lembremos aqui da cachorra Baleia) por isso essa narrativa é a mais completa, porque na terceira pessoa gramatical – que carrega a consciência crítica do narrador – narra-se o sentimento do personagem – que é a sua experiência vivida. Em Tempo de Amar, por exemplo, a dor de Ismael e sua inação não são descritas apenas como uma análise distanciada, a partir da vida não realizada do personagem.

Era doloroso demais abandonar a morada vazia. Assim sentia o coração no esforço de desprender-se. Como doía a desintegração da alma! Que experiência amarga levava consigo. Tornava a pensar na vida solta nos matos, mas o pensamento estava angustiado, não era mais a mansidão, a leveza das primeiras horas, quando iniciara a criar mentalmente um mundo novo. O corpo estava quente e doía. Se fosse possível chegar ao paroxismo do amor e então romper a vida, a vida estava vitoriosa, poderia até alcançar a morte. Aí a morte seria uma salvação. Assim pensava naquelas tardes silenciosas. Pensava... e este era o seu maior mal. Um pensamento como o seu destruía a vida (1979, p.136).

Já o narrador polifônico encena diversas vozes, não se restringindo somente à visão do personagem. Assim, unindo vários pontos de vista distintos, pode-se, por exemplo, observar a mesma história sem o autoritarismo de uma única visão. Em Os

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Sinos da Agonia, os blocos narrativos são narrados pela perspectiva de Malvina, Gaspar e Januário, para serem reunidos ao final na ―Roda do Tempo‖, em que todas as vozes se encontram. O narrador multiperspectivado pode, num primeiro momento, ser confundido com o narrador polifônico. Há, no entanto, uma diferença basilar: enquanto o narrador polifônico encena o drama, o narrador multiperspectivado personifica em si diversas vozes. Bakthin, ao analisar a obra de Dostoiévski, define o narrador polifônico da seguinte maneira: Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (2008, p. 5).

Já da fala do narrador multiperspectivado, ouvem-se todos os outros personagens. Sua voz soa como o coro da tragédia grega. Em Ópera dos Mortos, por exemplo, Rosalina, como o dissemos, vive no intermédio de duas vidas: a do pai e a do avô. Aqui já seriam duas Rosalinas, que se multiplicam quando ela passa a representar todos os seus antepassados, além dos irmãos natimortos. O narrador também irá assumir essa postura múltipla, não só quando representar as várias Rosalinas, mas quando mostrar as visões (multiperspectivadas) dos outros personagens sobre a heroína: a visão de Juca Passarinho, da população da cidade, de Quiquina. É somente dessa forma que a literatura se instaura como um discurso genuinamente autônomo. Sem a preocupação com outros gêneros ou área do saber, a trama não se constrói como sinônimo de um discurso outro, ou o enredo, que não mais irá funcionar como pretexto para uma análise de distinta natureza. Nas palavras de Autran Dourado: ―nada há de mais acidental e secundário num romance do que o enredo, que é apenas um dos elementos de sustentação da história, a maneira que o escritor encontra de manter viva a atenção do leitor‖ (2003, p. 28).

** Diante desses primeiros apontamentos que ajudarão a nortear o entendimento sobre a obra de Autran Dourado, podemos sair de uma perspectiva mais genérica e concentrar agora nossos esforços na análise da trilogia Lucas Procópio, Ópera dos Mortos e Um Cavalheiro de Antigamente a fim de associarmos seus sentidos à constituição de uma atmosfera que se ligue ao sentido do trágico.

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A partir destes romances, que complementam o sentido impetrado por Ópera dos Mortos, a autonomia dos personagens será total, visto que agora não tem mais a intenção de apenas dar corpo a dualidade existencial de Rosalina, mas demonstrar suas próprias potências anímicas. É claro que isso terá como efeito, digamos, colateral, a potencialidade do traçado psicológico da filha de João Capistrano Cota, todavia, o ponto de força que os outros dois romances terão vai demonstrar a formação e a maturidade de pai e filho, unidos, simbolicamente no sobrado de Duas Pontes. Tal qual realizamos na obra de Adonias Filho, resgataremos o conceito de trágico proposto pela escola de Jena, em particular em Nietzsche e Hölderlin, com o escopo de demonstrar que as potências de oposição antagônicas farão parte de um projeto de instauração de uma nova ordem das coisas, porque essa oposição, se (ou quando) não realizar a união dos contrários, ao menos irá servir como demonstração da realidade ontológica dos personagens. Para tanto, nesse percurso epistemológico, que redundará num aporte ontológico, será indispensável perceber que a lição trágica na trilogia autraniana virá por parte da trilogia de Sófocles: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, esta última peça fundamental para entendermos não só o destino dos principais personagens, como também para a compreensão do conceito do personagem como metáfora. Com o intuito de deixarmos mais claros as condições que possibilitarão o ato elegíatico com o qual nos defrontaremos, partamos para uma breve consideração sobre os três romances, pretextando, nessa ocasião, alguma consideração válida ao sentido da tragédia, uma vez que o estudo mais detido se realizará ao final do capítulo.

1) A trilogia Autraniana

1.1) Lucas Procópio

Na obra de Autran Dourado, o espaço mais do que um lugar é um tempo. Tudo o que decorre nas paragens de uma antiga Minas Gerais, refere-se ao momento da derrocada econômica oriunda do ressecamento das regiões auríferas, em finais do século XVIII que, por consequência, destruiu o próprio homem. É como afirma o autor, lembrando um ditado antigo: ―Avós ricos, pais nobres e filhos pobres‖. Essa pobreza, no entanto, não é fruto somente do esvaziamento financeiro, é uma pobreza de futuro. Assim, os personagens, ora lembram os momentos em que os

177 títulos lhe traziam o conforto material, ora se extinguem em lamentações e desolações por perceberem as rudezas do presente. É esse o espaço – e o tempo – em que se observa a figura de Lucas Procópio: Um Cavalheiro de Antigamente. O romance Lucas Procópio é dividido em dois grandes blocos: pessoa e persona. Comecemos, pois, pelo início. No bloco destinado à ―Pessoa‖, vemos chegar pela estrada três tristes figuras, a de Lucas Procópio, a do ex-feitor Pedro Chaves e do escravo alforriado Jerônimo. Ambos liderados por Lucas, que após descobrir em antigo baú de sua casa um documento que lhe dava posse de uma terra em Duas Pontes, saí com o pouco de ouro que sua família tinha escondido do fisco para fincar-se em suas terras recém- descobertas. Nesse sem fim de dias nas paragens mineiras, há o espaço para longas digressões e alusões a outros personagens que fazem parte da obra de Autran Dourado. Observemos o fragmento abaixo:

Não só os missionários apareciam periodicamente para corrigir a vida desregrada de fiéis e mesmo padres (a distância das dioceses e a solidão dos pequenos burgos propiciavam), mas um ou outro carismático ou pacífico eremita. Porque havia os iracundos fanáticos e os mansos de coração. Não apenas fanáticos e apocalípticos possuídos de furor messiânico eram encontrados perambulando por estradas e veréas de ínvios sertões: eremitas de misterioso passado, abandonadas as ruas penhas e ermidas, saíam, com cantinelas e ladainhas, a arrecadar esmolas para a construção de ermidas e santuários (Grifos nossos. 2002, p.12).

Neste momento há, não somente, a descrição do personagem Francisco Fernandes Coutinho, o futuro irmão Francisco de Nossa Senhora, personagem central do romance Monte da Alegria, como certa atenuação do estado de loucura ao qual ele estaria submetido e pelo qual é julgado em Monte de Alegria. Quer dizer, a leitura de uma obra, em outra, facilita a compreensão do todo, que fica prenhe de significação. Observemos que na comparação entre as duas obras, tanto em Lucas Procópio quanto em Monte da Alegria, os protagonistas andam pelos sertões com duas companhias, sobre mulas e burricos, na tentativa de realizar um sonho ou um objetivo. Há entre Francisco e Lucas muita semelhança.

Apoiado em rústico bordão, ele caminhava como São José fugindo de Belém e da fúria de Herodes. Atrás dele vinham as suas acolitas

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Marta e Maria. Depois o burrico com uma bruaca de cada lado para guardar os mantimentos, roupas e dinheiro que o irmão Francisco de Nossa Senhora já tinha arrecadado – ele se fizera esmoler. Porque o irmão Francisco tinha um grande, um enorme sonho; como todo sonhador, ia além do além, pouco lhe importando o tempo e a realidade (....). O sonho do irmão Francisco era construir bem no alto de um monte uma ermida e depois, Deus querendo, uma hospedaria ao lado para os devotos da santa, os romeiros que certamente viriam pedir uma graça ou pagar promessa (Grifos nossos1990. p.3).

É interessante observar que, neste ponto, conquanto a autonomia da obra nos permitiria lê-la sem o conhecimento dos textos com os quais dialoga, a narrativa vai se tornando labiríntica, ou digamos, melhor, a narrativa se torna uma teia, em que todas as linhas convergem para a construção de um megatexto. Os personagens, assim como a própria trama, não têm a necessidade de apresentação anterior, bastando a leitura da obra em que estão inseridos para o pleno entendimento do leitor. Este fenômeno, na literatura brasileira, encontra em Machado de Assis seu exemplo mais ilustrativo, uma vez que vemos o personagem Quincas Borba aparecendo tanto em Memórias Póstumas de Brás Cubas como no romance homônimo. O caso é que em Autran Dourado isso é radicalizado, porque os limites entre espaços, temas e personagens não ficam mais restrito às páginas dos livros, mas emanam dele e transbordam a ponto de conferir autonomia e vida a todos os agentes94. Neste ponto, a mítica cidade de Duas Pontes95, localizada no sul de Minas Gerais irmana geograficamente os acontecimentos criando mais do que uma trama uma saga. Mas se os personagens são autônomos e transbordam dos romances para fazerem parte da obra, poucos são tão fortes como Lucas Procópio96 e em grau próximo, apesar de menor, João Capistrano, pai e filho. Falaremos um pouco mais de João Capistrano mais à frente, pois ainda é preciso esgotar um certo sentido existente em Lucas Procópio.

94 Em sua tese de doutorado O romance puxa romance ou a ficção recorrente, a autora Leonor Costa Santos mostra a origem (ou ao menos a popularização) deste tipo de construção narrativa remontando à Comédia Humana, de Balzac, que tece ―uma verdadeira colcha de retalhos para, em múltiplas narrativas, retratar à moda realista o cenário da França oitocentista em franca ebulição (2008, p.113) 95 Duas Pontes é a ficcional cidade mineira privilegiada dos romances e contos de Autran Dourado, não sendo mencionada apenas em A Barca dos Homens e Sinos da Agonia. 96 ―O que faz um personagem voltar é a força do personagem. É ele quem manda na gente e não o contrário, como pode parecer‖. In. SANTOS, Leonor da Costa. O romance puxa romance ou a ficção recorrente, (Entrevista, 2008, p.198).

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A força deste personagem reside no fato de ele já ser em essência dupla: é uma máscara e uma individualidade (persona e pessoa, respectivamente). Sua essência reconstitui o ator que interpreta a farsa de Lucas Procópio, pode ser o vero ou o falso, neste caso Pedro Chaves. O primeiro, gentil, educado, cordato e ilustrado; o segundo, agressivo, rígido, bruto e ignorante. Do casamento dessas duas essências cria-se a força do personagem Lucas Procópio, que pode ser lido tanto a partir de uma perspectiva ou de outra97. O primeiro Lucas Procópio tinha o ar essencialmente quixotesco. Nascido na iminência da derrocada mineira de fim do século XVIII, sua intenção era reavivar a honra, o passado e a glória do estado. Andando até chegar às terras herdadas em Duas Pontes, ele não se incomodava de declamar o poema ―Vila Rica‖, de Cláudio Manuel da Costa, a fim de sensibilizar a todos que lhe estivessem ao redor. O destino de suas falas não era muito distinto do destino das ações do fidalgo espanhol, zombados e desacreditados, conquanto admirados, em algum grau, pelo seu cunho de defensor de morais e atitudes que o tempo parece ter esquecido ou desprestigiado. Na dedicatória do poema, Cláudio Manuel da Costa afirma serem as Minas Gerais a sua ―Pátria‖. O texto não poderia ser mais significativo, pois que o autor foi o maior nome da poesia brasileira do século XVIII. Com seu arcadismo encharcado de aspectos românticos, a construção épica do texto tende (apesar da modéstia de que se vale o autor no prólogo do texto) em reconstruir Minas Gerais dos tempos antigórios, contando sua formação a partir da epopeia de constituição do estado. Assim ele se pronuncia:

Mas doute, que eu não te ofereça mais que uma composição em metro, para fazer ver o distinto merecimento de um General que tão prudentemente pacificou um Povo rebelde, que segurou a Real Autoridade e que estabeleceu e firmou, entre as diferentes emulações de uns e outros Vassalos desunidos, os interesses que se deviam aos Soberanos Príncipes de Portugal: dirás que é digna de repreensão a minha empresa? Na verdade não espero do teu benigno ânimo esta correspondência: e tudo o que não for injúria ou acusação será para mim uma inestimável remuneração das minhas fadigas (Prólogo, s/d, p.03).

97 Em outras palavras, se o lemos na obra homônima, vemos, em sua primeira etapa, o homem lírico que tenta resgatar as glórias de Minas Gerais. Se o vemos em Ópera dos Mortos ou em Um Cavalheiro de Antigamente, deparamo-nos com a figura austera do antigo coronel amansador de cavalos.

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Para Lucas Procópio, somente a poesia poderia salvar Minas Gerais de sua decadência. A reconstrução pela leitura dos poemas deu a ele o conhecimento de cor dos textos que elevavam Minas a uma condição superior, como se ela fosse um país (tal qual também a via Cláudio Manuel da Costa). Sua imagem, contudo, só se faria completa, se ela fosse solenizada, por isso usava a vestimenta do seu avô: uma antiga farda condecorada, que lhe caía no corpo de forma um tanto quando desengonçada, visto ser ele menor do que o dono original da peça. Andando sobre mulas (à Rocinante) ia pelas ruas pregando seu evangelho. Sua força de conversão, contudo, era parca. Nem à totalidade de seus empregados, Jerônimo e Pedro Chaves, conseguiu ser totalmente efetiva. Com o primeiro, antigo príncipe de uma aldeia africana, conseguiu tirá-lo de seu banzo e de suas ideia de tornar-se um quilombola para tentar resgatar a antiga Minas Gerais (ainda que isso fosse um contrassenso, porquanto Minas era essencialmente escravocrata: ―Jerônimo ia se apossando do sonho dele. Agora era ele a querer falar do destino de Minas. Os tempos áureos haviam de voltar, dizia a si mesmo, e tudo de belo rebrilharia de novo‖ 2002, p.87). Com o segundo, a seu turno, pouco conseguiu fazer, a não ser ter lhe parcamente comovido quando leu alguns poemas. No fim, Lucas Procópio, era um homem de antigamente que pouco conseguia entender e ser entendido pelo mundo. Em nossa caminhada, é válida, entretanto, uma pequena pausa para chamarmos a atenção para uma cena essencialmente quixotesca, que ocorre quando Lucas chega à cidade de Itapecerica e, com seus cantos e poemas, acaba sensibilizando a população que o vê, à Antonio Conselheiro, como ser capaz de levar a cidade à libertação. Assim todos se armaram contra o exército em prol da independência da cidade, numa revolta que não era a intenção de Lucas, mas que nela fora posto como líder.

Só uma pessoa não vivia exaltada em todo o município: o puro, lucidamente louco Lucas Procópio Honório Cota, que continuava toda tarde indo à igreja, agora vazia, rezar aos santos de sua devoção. Quando parava numa esquina e subia no tamborete, começando a dizer os mais líricos ou heróicos versos, era motivo de riso e chacota. Poesia tem hora, Lucas Tempo-Virá, gritavam de longe para ele. Porque junto do pobre rico Lucas Procópio Honório Cota, Cavaleiro da Poesia e da Fé, permanecia o seu fiel escudeiro e antigo escravo, hoje alforriado, servindo por dinheiro e afeto. Tinha se esquecido de Lucas Procópio, bandeia e voz deles. Quando soaram as cargas dos Comblains e das carabinas, e surgiram os primeiros mortos, os três seguiram o seu caminho. Cada um tinha o seu motivo, cada um a sua fidelidade, cada um a sua

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intenção. Nunca mais se teve notícia de como terminou a revolta (Grifos nossos. 2002, p.24).

Voltando às condições existências em que estavam inseridos os personagens, o momento passado era o único presente possível. Não havia, para eles, muita possibilidade de futuro, e suas existências pareciam fadadas ao desaparecimento. No fundo, o que faziam eram sobreviver, ainda que usassem para isso o recurso do lirismo. Deve-se lembrar que na relação em que se estabelecia entre eles havia uma propensão ao parasitismo-simbiótico, porquanto a convivência era um misto de dever, obrigação e necessidade:

Cada um perdido no seu horizonte. O horizonte de Jerônimo era o horizonte esfumaçado do sonho e da esperança; o de Lucas Procópio, o do desvario, do nunca-foi, nunca-será; o de Pedro Chaves, o horizonte do tempo, de onde surgia, vinda do pelo sem fim da memória, a figura de um menino maltratado, sujo, sozinho, afundado no abandono, na mágoa, na dor... (2002, p.31).

Jerônimo e Pedro Chaves chegam a essa conclusão antes de Lucas Procópio. Ele intui que necessita da companhia daqueles homens e, ainda que em desagrado com a figura de Pedro Chaves, tem medo de mandá-lo embora. Por usa vez, Pedro e Jerônimo têm essa percepção mais direta. Este, então, absorve os antigos sonhos do patrão – num momento em que o patrão deixa de sonhar aquelas coisas ―tão bonitas‖. Aquele, indo mais além, usurpa-lhe a própria identidade, tornando-se o próprio Lucas Procópio. É da ação de Pedro Chaves que se descortina a segunda etapa do romance: Persona.

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Etimologicamente, persona significa uma máscara, ao passo que pessoa significa uma individualidade. No caso da obra em questão, essa duplicidade de signos é bastante representativa, visto que irão se transformar em símbolo. No final da primeira parte, Lucas Procópio, o vero, é assassinado. Há aqui um expediente trágico importante, que se refere à própria constituição da dúvida, uma vez que não se sabe, com clareza se quem matou Lucas foi Jerônimo (para tentar resgatar antigos objetivos do patrão) ou Pedro Chaves (para tomar a identidade de Lucas Procópio).

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De qualquer maneira, na segunda etapa do romance, Lucas chega a Duas Pontes e, após um acordo comercial com o Barão das Datas, Cristino Sales, casa-se com sua filha, Isaltina. Praticamente fruto de um comércio (―Uma escrava, como uma escrava o pai a tinha vendido para ele. Não conseguiria sua liberdade de mão beijada, teria de romper por si os grilhões da desonra e da iniquidade‖ (2002, p.122)), Isaltina, vivendo miseravelmente ao lado do Lucas Procópio/ Pedro Chaves, tem dois filhos: Teresa e João Capistrano. É da relação entre Pedro Chaves e Isaltina que o romance ganha mais fôlego, força e apuro, não só pelo uso dos recursos narrativos mais sofisticados, como a sondagem interior e a manutenção do narrador coral (que já vinha desde a primeira parte) como também pelo recurso da multipartição de Isaltina, assim como a discussão entre as potências do corpo e do espírito, encerrados na cultura ocidental numa dicotomia inconciliável. Afora isso tudo, os elementos intratextuais ainda serão essencialmente valorizados, apontando para a formação de uma obra cujos raios luminosos emanados, na verdade, convergem para um mesmo ponto: Ópera dos Mortos. Façamos esse itinerário por partes. Como o dissemos, a vida de Isaltina era de extrema angústia e sofrimento. Após ser, praticamente, vendida pelo pai, na tentativa de quitar suas dívidas, a mulher deve se submeter à brutalidade e à agressividade do marido Lucas Procópio. A Isaltina, contudo, não pagava o marido com a mesma moeda, pelo contrário, tentava torná-lo mais dócil, mais educado e cordato, a fim de sofrear um pouco da dor em que ela se via enclausurada. E com o tempo ela consegue, sua docilidade e extrema ternura amassam Lucas Procópio. O ponto mais significativo em que isso ocorre é quando a mulher, doente, desperta a sensibilidade no coronel Honório Cota:

Ao contrário do que ela esperava, o marido foi de uma dedicação exemplar, delicado mesmo, à sua maneira é verdade. Não arredava os pés de junto dela, se sentava numa cadeia de balanço e ficava horas a fio admirando-a. Para deixá-la mais à vontade no seu leito de enferma, mandou colocar no quarto uma cama de solteiro, onde passou a dormir. (...) E foi então que uma coisa extraordinária aconteceu. Aquele bruto, aquele homem sem modos e desajeitado, aquele coração duro e empedernido foi se deixando vencer pela ternura. Sem se dar conta, começou a amolecer. De repente, uma tarde, descobriu que estava

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apaixonado pela mulher. E essa agora?! disse a si mesmo, como é que vai ser? (2002, p.128).

Outro ponto de força altamente significativo é a multifacetação de Isaltina ao longo da narrativa. A despeito de ela manter a imagem fundida numa capa de regularidade, ela se reconhece detentora, não de uma personalidade múltipla, mas de uma essência diversa que tem como o resultado o ser que ela é. Em outras palavras, Isaltina não é um ser pela metade ou fragmentado, é antes um ser composto de diversas naturezas o que a faz una e plural. A surpresa do leitor diante dessa nuance de personalidade da mulher faz acompanhar a surpresa que ela mesma tem quando constata que se sente sexualmente atraída pelo marido. Façamos, aqui, uma citação de maior amplitude para dar vazão a processo consciencial por que passa Isaltina.

Sem saber por quê (aquilo nunca tinha acontecido como ela, não havia carne e nervos no seu amor pelo visconde), começou a sentir algo estranho dentro dela. Um repuxão no ventre, o calor úmido no sexo, os dedos trêmulos. Um pouco se acostumou com a ideia de que poderia ter as suas carências. A respiração apressada, ela se aproximou dele [Lucas Procópio, deitado ao seu lado]. Ofegante, ela lhe sentiu a respiração quente, o forte cheiro de homem exalando dele. Desabotoou a camisola e apalpou o seio esquerdo, sentou o mamilo duro, negro, grande como uma azeitona. Sozinha, não havia dentro de si nenhuma voz a censurá-la. Só as batidas descompassadas, num ritmo estranho. Recolocou o castiçal no criado mudo, pensou em apagar a vela. Não, melhor no claro, vê-lo e a si mesma na claridade. Uma outra Isaltina germinava, crescia dentro dela. Como ele voltasse para o outro lado, ela saltou da cama e ficou diante dele. Queria e a o mesmo tempo tinha medo, ele podia acordar. Ele tornou a se virar, ela voltou para a cama. Agora bem junto dele, o calor que vinha daquele corpo. Puxou as cobertas e ficou olhando-o. Ela, trêmula e ofegante, precisava se vencer, vencer uma donzela de repente ressurgindo dentro dela. Vai embora! Disse ela à tímida e pudica personagem; você não tem nada de estar aqui! De novo sozinha, não sabia o que fazer. O corpo sabia, foi ele que começou a agir (...) Quanto tempo ela ficou assim imóvel junto dele não podia, não queria saber. E ela sentiu a mão grande e poderosa tomando a dela. E de novo o quentume, o poder do corpo. Novamente souberam da força da terra, do poder da conjunção. Conheceram outra vez a tensão de todas as fibras do corpo, a morte num átimo de tempo. A ressurreição se repetiu, vida. (Grifos nossos. 2002, pp. 130-132).

Duas Isaltinas que se digladiam: a pudica e a fêmea lutavam a fim de se afirmar. Contudo, a pudica, a tímida eram personagens, a máscara que Isaltina de tanto usar passou a ser seu rosto: a pessoa e a persona. Quando sozinha, quer dizer, quando livre

184 das amarras e das convenções que a sociedade (e ela mesma) impunha sobre seus atos, ela pode ser verdadeiramente uma mulher. Neste ponto, deve-se trazer à luz que ser uma mulher completa não se verificou pela castração da sua personalidade tanto pudica quanto feminina, e sim pelo consórcio dessas duas naturezas que ocorriam em circunstâncias distintas. O poder do corpo, da terra mais forte como o poder do espírito. Não há na donzelice de Isaltina uma abstração das potências telúricas porque elas fazem parte do sentido da vida. Em outras palavras, agia como donzela ou fêmea atendendo às suas próprias necessidades, mas não fingia ser uma coisa ou outra: ela era as duas coisas. E, aqui, Isaltina se distingue da neta Rosalina, pois que esta tentava, o quanto podia, abafar a sua condição noturna e selvagem. Há em Isaltina o gérmen da multifacetação de que Rosalina será a referência. Assim como em Servos da Morte, de Adonias Filho, Elisa avó e neta compartilham do destino trágico na casa de Paulino Duarte: a mesma potência de cisão inerente à natureza da avó chegará à neta Rosalina. E por que isso é fundamental? Porque em Ópera dos Mortos isso possibilitará (ou melhor, definirá) a natureza dual de Rosalina, entre o pai diurno e o avô noturno. Contudo, haverá outra diferença ainda entre Isaltina e Rosalina. Enquanto a primeira mantém-se firme das suas convicções personalísticas, a segunda age movida por um esquecimento da sua porção noturna (ou dionisíaca, já pulsante e embriagada) a fim de manter uma nesga de orgulho e decoro. Voltando à Isaltina, seu destino feliz com o marido, porém, é curto, porque, com a passagem do tempo, ela não engravida o que faz com que Lucas comece a se cansar da espera e passe, então, a procurar mulheres na rua para consolar suas decepções. Com a frequência do afastamento do marido de casa, com a vida cada vez mais solitária e o com o destratar de Lucas Procópio, Isaltina vai ao ápice do desespero e do nojo quando ele chega a casa, depois de uma noite de bebidas e libertinagens, cheirando às mulheres negras que lhes serviam de escravas. Isaltina, a partir disso tudo, adoece novamente. Esse é um momento decisivo na trama, porque daí irá surgir o mote que desenvolvido também em Um Cavalheiro de Antigamente: o relacionamento extraconjugal de Isaltina com o padre Agostinho. A força de construção de uma narrativa que se alicerça em constructos de uma outra narrativa passa a ter um teor altamente representativo neste momento. De acordo com Leonor da Costa Santos

Por tratar-se do mesmo grupo familiar, as histórias ali narradas via de regra são as mesmas, o insólito é que, como se alternam os

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romances, o ponto de vista também varia. A leitura atenta das narrativas termina por conduzir o leitor ao instigante cotejo de versões. Um mesmo acontecimento narrado de dois pontos de vistas distintos pode perfeitamente sugerir dois outros. O adultério de Isaltina com o padre Agostinho, por exemplo, visto pelo filho adulto (João Capistrano), dono de uma imagem idealizada da mãe, em Um Cavalheiro de Antigamente, tem um sabor bem diferente de quando vivenciado pelo marido Lucas, no livro de mesmo nome. Por outro lado, acontecimentos semelhantes tendem a irmanar pessoas, apesar de distanciadas no tempo. A derrocada política do pai de Isaltina, o barão das Datas, é tão desmoralizante, quanto a de João Capistrano em Ópera dos mortos. A primeira sepultou (viva) a família no interior do estado (Diamantina), a segunda encarcerou todos na casa (o sobrado). Fatos semelhantes, reações parecidas: o universal retratado no particular, a vergonha da perda impele o homem para longe de seu par, no mais das vezes o isola (Grifos nossos. 2008, p. 117).

Estando doente, o médico Gouveia avisa a Lucas Procópio que a mulher poderia melhorar um pouco se também conversasse com um padre. O marido, a princípio, é refratário à ideia, mas no fim concorda. Como o padre, jovem, cordato, educado e ilustrado, era um homem totalmente distinto de Lucas Procópio, e Isaltina era uma mulher bonita, acaba havendo entre eles uma paixão. Aqui, há uma reflexão bastante interessante na obra de Autran Dourado, porque o jogo de opostos parece se completar. Isaltina era o oposto de Lucas, mas ambos, guardando as diferenças de motivos, agem de forma semelhante (especificamente, aqui, no que tange à prevaricação das obrigações esponsais), o que aponta para a instauração da reunião dos contrários. Quer dizer, sendo a literatura uma forma de enunciação dos aspectos ontológicos mais significativos, não haveria porque a separação existencial da forças de formação do ser humano. Mas como isso se realiza essencialmente? Essa possibilidade de Lucas e Isaltina serem complementares, ainda que iguais, só é possível porque eles são vários em um. Lucas é Pedro Chaves e Isaltina são várias numa só, quer dizer, ―se a parte, sem o todo, não é parte‖, a relativização dos conceitos de oposição e similitudes possibilitam a formação de uma essência equivalente. Assim, Isaltina telúrica é a Isaltina espiritual. É o que ocorre quando, em seus devaneios amorosos, ela se lembra do visconde por quem era apaixonada e funde a essa imagem a do padre Agostinho, criando, a partir do monólogo interior, uma expressiva revelação do drama existencial por que a mulher passava:

Por uma dessas artimanhas da mente, por uma dessas estranhas e absurdas leis que regem as recorrências da memória e do coração, renascia dentro dela, como das cinzas, a chama do seu amor pelo

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visconde. O coração miúdo, apertado de angústia. Há muito não pensava nele, parecia enterrado para sempre. Ele renascia de uma maneira estranha nos traços do padre Agostinho. As duas imagens se fundiram numa só figura que foi aos poucos ganhando consistência e virou figura etérea, luminosa e ideal guardada no coração, um dia chamada Alberto, agora Agostinho. E era uma figura nova para ela: de repente não mais padre, simplesmente Agostinho. E ela andava com ele de mãos dadas pelas aleias do jardim de Sinhazinha Augusta. Agostinho, disse ela pelo simples prazer de dizer o nome. E ele lhe disse mansamente Isa, era a primeira vez que assim a chamava. Agostinho, disse ela, e sentiu a mão dele delicadamente pousar no seu rosto. Sim, Isa, e ele puxou-a para si, beijou-lhe ternamente os lábios (Grifos nossos. 2002, 168-169).

Mas o encontro entre Isaltina e o padre duraram pouco, porque assim que soube deles, Lucas dá uma surra no religioso (afugentando-o da cidade) e isola a mulher no casarão onde moravam, sepultando-a em vida. O coronel, contudo, não sabe se entre o padre e a mulher houve ou não uma relação sexual, o que lhe mancharia a honra. Assim, tentando dirimir a dúvida, procura a ajuda do doutor Gouveia, a fim de aquietar o seu coração.

O coronel devia pensar principalmente nos filhos, não havia de querer para eles uma vida humilhada por uma coisa morta, já passado velho. Era preciso que eles não soubessem de nada, na verdade nada tinha chegado a haver. Mas é uma coisa que eu não posso perdoar, doutor Gouveia. Se não tem a generosidade de coração para perdoá-la, pelo menos esqueça, lhe fará bem e seus filhos se beneficiarão com isso. A não ser que queira na verdade se separar... Não, doutor Gouveia, isso de jeito nenhum! Significaria passar recibo de uma coisa que realmente não posso saber se houve. O único caminho então é esquecer, coronel (2002, p.183).

Após esses acontecimentos, o tempo passa e muito é esquecido. A vida transcorre calmamente em Duas Pontes, e Lucas Procópio, o coronel amansador de cavalos, é domado por Isaltina. Vive mais pacato e tranquilo. Porém, em determinado momento, é surpreendido por Jerônimo, que grita seu antigo nome, Pedro Chaves, e desfere contra ele um tiro, que lhe acerta o ombro. Antes de cair, no entanto, o coronel ainda acerta o negro, com dois tiros, que tomba, inerte. O tiro que Lucas recebera não o matou, contudo enfraqueceu-lhe o vigor, antecipando a sua morte:

Ele se recuperou do ferimento ma não foi mais o mesmo homem. A saúde abalada, em pouco tempo morria, sofrendo uma agonia lenta

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e dolorosa. Ao morrer, a sua morte foi a morte de um grande chefe, digno de todo o respeito. Quando mandaram tirar a sua máscara mortuária, o que se viu não foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota, em que o homem se transformara, nome pelo qual a gente o conhecia, mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na cera: na verdade as feições do terrível e antigo feitor Pedro Chaves, tanto tempo escondido (2002, p.189).

Observamos, daqui, que sua morte revelou o verdadeiro homem por trás da máscara, que mesmo amansado ainda fazia parte do seu ser. Pedro Chaves, no fundo, continuava vivo, e sua dureza e história ainda continuariam a moldar a vida de seu filho, João Capistrano: Um Cavalheiro de Antigamente.

1.2) Um Cavalheiro de Antigamente

Partamos nossa análise do romance pela leitura do fragmento de Mircea Eliade, no que tange às relações do mito.

Todo mito, independentemente da sua natureza, enuncia um acontecimento que teve lugar in illo tempore e constitui, por este fato, um precedente exemplar para todas as ações e ―situações‖ que, depois, repetirão este acontecimento. Executados pelo homem, todo ritual ou toda ação dotada de sentido repetem um arquétipo mítico. (...) A repetição implica a abolição do tempo profano e a projeção do homem num tempo mágico-religioso que nada tem a ver com a duração propriamente dita, mas constitui este ―tempo presente‖ do tempo mítico. O que equivale a dizer que, paralelamente às outras experiências mágico-religiosas, o mito reintegra o homem numa época atemporal que é, de fato, um illud tempus, quer dizer, um tempo auroral, paradisíaco, para além da história. Aquele que realizam um rito qualquer transcende o tempo e o espaço profanos: do mesmo modo, aquele que ―imita‖ um modelo mítico ou simplesmente escuta ritualmente (participando dela) a recitação de um mito, é arrancado ao devir profano e reencontra o Grande Tempo. Na perspectiva do espírito moderno, o mito – e com ele todas as outras experiências religiosas – anula a ―história‖. Mas há que notar que a maioria dos mitos, pelo simples fato de que enunciam o que passou “in illo tempore”, constituem, eles próprios, uma história exemplar do grupo humano que os conservou e do cosmo deste grupo humano (s/d, pp 27-28).

Começamos com esta longa citação, contida na coleção ―O poder do poder‖, no livro O poder do Mito, para demonstrar que as personagens Lucas Procópio, o vero, e João Capistrano são figuras essencialmente míticas, o que deságuam em seu estatuto simbólico na obra narrativa.

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Na parte dedicada ao estudo de Lucas Procópio, vimos que o personagem possui sua identidade roubada pelo feitor Pedro Chaves após ser assassinado a sangue frio98. Daí toda a segunda parte do livro – Persona – se desenvolve e, do relacionamento deste novo Lucas Procópio com Isaltina nascem dois filhos: Teresa e João Capistrano. É sobre o segundo filho que nosso estudo quer se deter agora. João Capistrano Honório Cota é o filho de brutal, agressivo e potente amansador de cavalo, Pedro Chaves. Sua natureza, contudo, não é reflexo da imagem do pai, mas sim do nome que este usurpou. Quer dizer, João, vivendo num mundo não histórico, repete os comportamentos, as potências existenciais do verdadeiro Lucas, como se à força do nome seu caráter fosse moldado.

Embora menino fechado, João Capistrano era muito aberto e sensível ao lado feérico das coisas e da vida, e a missa era então, com o seu ritual (...) e mesmo o seu latinório, que ninguém entendia, mas achava muito bonito: missa era então a própria feérie (1992, p.19).

Para podermos aqui tecer breves comparações exemplificativas, lembremo-nos de Elisa, de Os servos da morte, de Adonias Filho. Após ter três filhos com o violento domador de cavalos, Paulino Duarte, a mulher observa que o fruto daquele ódio que existia entre eles foram as criaturas malévolas, telúricas e destrutivas que ela chamava de filhos. Nada da sua essência fora legada àqueles meninos, o que mais patenteava sua solidão e sofrimento. Somente o seu quarto filho, Ângelo, era menos agressivo, menos violento (ou tinha uma violência, digamos, controlada, ou melhor, direcionada). Sua origem, também, era outra, pois que era o resultado da união extraconjugal de Elisa com o vizinho Anselmo. De qualquer modo, Ângelo era um ser menos autônomo, já que era um servo da mãe, mesmo (e principalmente) depois que ela morrera. O caso de João é semelhante no que se refere à gênese que ele remonta. A despeito da educação que a mãe lhe dera (e que Isaltina também destinara a Lucas), a sua personalidade era, antes de tudo, passiva, cordata, pacata e gentil. Menos agressivo que o pai, as dores do mundo o torturavam sobremaneira, por conta do pouco esforço

98Na obra Lucas Procópio, há um interessante jogo de silêncio provocado, não gratuitamente, pela ambiguidade proveniente do sujeito desinencial, ocultando, peremptoriamente, o agente efeito da ação, Jerônimo ou Pedro Chaves. A título de manter o mistério proposto pelo autor, não iremos nos debruçar em resolver a questão, ficando apenas com o fato de que Lucas fora assassinado. Contudo, não nos escusaremos de fazer uma pequena lembrança de que, ao final da obra, o negro Jerônimo, ao reconhecer o antigo feitor sob a máscara de Lucas, atira nele, ferindo-o no ombro. Se o tiro fora de vingança pela morte do seu patrão ou apenas uma forma de acabar com aquele com o qual ele dividira os primeiros caminhos depois de alforriado, não nos é possível saber.

189 que tinha para suportar as inquietações do mundo. Numa vida perfeita, onde o casamento feliz, a boa condição financeira, a imagem idealizada dos pais não poderia sofrer nenhum tipo de afetação, sob pena de lhe ferir o âmago do ser, João era um ser cuja essência era extremamente sensível às intempéries. Tal sensibilidade de João não era vista por seu pai com bons olhos, pois que demonstravam fraqueza. Há aqui um ponto é bastante significativo, pois já antevemos a formação do personagem como metáfora. Para entendemos a construção da personalidade metafórica de João ao longo da narrativa, faz-se necessário esclarecer esse conceito de personagem como metáfora. Comecemos nos valendo de um estudo de Thaís Seabra Leite, em sua dissertação de mestrado de título O personagem como metáfora e a arquitetura imaginante de Autran Dourado. Neste estudo, a autora demonstra que é ―a partir das metáforas – e dos personagens como metáfora – que o imaginário toma forma, o abstrato torna-se concreto e o desconhecido, conhecido‖ (2014, p.14). Sendo assim, nesse jogo de significados duplos em que, contudo, o que os termos têm de similar fica implícito, a metáfora, em Autran Dourado, tende para a construção de uma forma em que o segundo termo substitua sempre o primeiro, constituindo-se símbolo. E como o próprio autor afirma em Poética do romance: matéria de carpintaria, quando vai explicar os nomes ―Lucas Procópio‖ e ―João Capistrano‖: ―Não há correspondência exata, senão seriam signos e não símbolos, alegorias e não formas simbólicas. Não é uma leitura cabalística o que proponho‖ (2000, p.150). Esse conceito de personagem como metáfora pode também ser observado em Friedrich Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia. No capítulo 10, assim afirma o filósofo:

É tradição incontestável que a tragédia grega, em sua forma mais antiga, tinha como objetivo único os sofrimentos de Dioniso e que por muito tempo o único herói presente no palco foi precisamente Dioniso. Mas pode-se afirmar, com igual certeza, que antes e até Eurípedes jamais Dioniso deixou de ser o herói trágico e que todas as figuras célebres do teatro grego, Prometeu, Édipo etc., não são mais que máscaras do herói original, Dioniso (Grifos nossos. 2011, p.79).

Por outros termos, podemos concluir que o personagem como metáfora é um recurso acionado para tornar palavra aquilo que o autor tem como imagem; e o que era significado se torna significante mediante a ação realizada.

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Ficando claro como se realiza a construção do personagem como metáfora, podemos demonstrar agora que João simboliza a própria derrocada da masculinidade mineira e, em algum grau, a decadência a que aquela região no século XVIII estava submetida. Mas como isso ocorre? No tempo dos grandes coronéis do ouro e mesmo do café, a selvageria, a posse pela força, a brutalidade eram sinônimos de ser verdadeiramente homem. João vai na contracorrente desta definição: é um ser tímido, calado, isolado, calado, sofrido e melancólico por natureza. Ele é, assim, o primeiro símbolo de uma queda insopitável. Ao tachar o filho de afeminado, culpando a mulher99 Isaltina, por uma educação não procedente, Lucas Procópio luta contra o seu próprio futuro que parece se esvair de sua mão. O filho é o oposto do que pode suportar, visto que representa um tempo em que sua violência – e, portanto, os seus domínios – não terá mais vez. João Capistrano Honório Cota era um homem extremamente sensível à dor. Há nessa afirmação um ponto que deve ser demonstrado com clareza, porque, num primeiro momento, podemos supor que essa fragilidade resida em acontecimentos puramente externos. É verdade que o desenrolar da dor se dá pelo fato de ele receber uma carta acusando sua (até então) digna mãe de adultério. Tomado pela dor e pela descrença, seu mundo rui. Com a figura da mãe desbastada, ele inicia uma grande investigação para saber quem foi o responsável por aquela vil epístola, tendo por finalidade matar o autor e redimir o nome da mãe. O que ele não sabia é que nesta empresa ele teria como recompensa saber da verdade de sua própria família. O honrado pai era um homem indigno, a mãe sofrera várias vezes violência e tinha se apaixonado, sim, pelo padre da cidade. Por tudo isso, João cai num profundo estado de melancolia e dor.

É muito difícil saber o que modela a alma infantil e muitas vezes faz uma pessoa doente por dentro, mas talvez sejam essas algumas das razões por que João Capistrano ficou para sempre um homem

99 Isaltina tem uma concepção de homem perfeito e é a partir dela que ela moldará João Capistrano. Assim ela fala ao filho: ―Mestre Diogo e seu pai não são capazes de fazer de você um homem de verdade. Quem vai fazer de você um homem mesmo, um homem de bem, um cavalheiro distinto e de caráter como foi seu avô, Cristino de Almeida Sales, barão das Datas e amigo do imperador D. Pedro II, sou eu (1992, p. 15). Essa formação dada pela mãe forja a essência de João, ao passo de ele se comportar somente dentro desse código, o que não significa que uma ação ou outra não lhe soasse estranha ou descabida: ―João Capistrano era um homem tão fechado e estranho, que pela primeira vez na vida chamou Quincas Ciríaco de querido. Na sua complicada cabeça, feita inicialmente pelo pai, apesar de depois ser alterada pela mãe, querido era tratamento usado por mulher e para mulher‖ (1992, p.41).

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terrivelmente triste. Nunca ninguém se lembrava de ter visto um riso em sua boca, riso mesmo, riso de verdade. Quando lhe contavam um caso realmente engraçado, o que se via na sua cara era apenas um repuxar de lábios, os dentes apareciam, os olhos brilhavam mais intensamente: sabia-se então que ele estava rindo. Não se podia mesmo chamar aquilo de riso, era apenas um breve esgar, mais um ríctus, ele engolira a alegria (1992, p. 12).

É aqui que outro ponto de força aparece de modo contumaz: a melancolia de João Capistrano remete a um estado de espírito que se observa na alma romântica. Erich Auerbach, por exemplo, afirma que o poeta romântico é um estranho entre os homens; é melancólico, extremamente sensível, ama a solidão e as efusões do sentimento (s.d., p.228). Já Jaime Ginzburg, citando Leopardi, lembra que

A melancolia é, de qualquer maneira, o mais sublime dos sentimentos humanos. (...) Considerar a imensidão incomensurável do espaço, o número e a grandeza maravilhosa dos mundos, e perceber que tudo isso é pequeno, até minúsculo em comparação com a capacidade de nossa alma; imaginar o número infinito de mundos e o universo sem fim e sentir que nosso espírito e nosso desejo é ainda mais vasto que o universo; proclamar sem cessar a insuficiência e o nada de todas as coisas, sofrer privações e desejos, e em consequência a melancolia, isso é o que me parece ser a marca mais evidente da grandeza e da nobreza da natureza humana (2001, p. 107).

Essa condição melancólica de João Capistrano propicia a ele a aproximação com seu pai (digamos, etimológico) Lucas Procópio, o vero. É o mesmo ar quixotesco, o mesmo desabrido dos sentimentos e das paixões. Mas João é como se fosse a continuidade desesperança e queda do seu sucessor. É como se os cantos para o retorno da antiga Minas Gerais não ecoassem mais por aquelas terras e somente o silêncio da desilusão tenha sobrado. Inerte e incapaz, João Capistrano é um homem mais fraco. Sua masculinidade, em critérios comparativos a tanto de Lucas Procópio como a de Pedro Chaves é frágil pois não tem a força lírica do primeiro e nem a força física do segundo. No artigo, Masculinidade e Decadência nas Minas de Autran Dourado, o autor Osmar Pereira Oliva lembra que a crise da masculinidade se inicia no século XVII e se intensifica no século XIX. E citando Elisabeth Badinter diz que

todos os países europeus atravessavam perturbações econômicas e sociais semelhantes, decorrentes das novas exigências da industrialização e da democracia. A vida dos homens se modifica, as reivindicações feministas se fazem de novo ouvir, a ansiedade masculina desperta (2010, p.02).

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Os homens dessa época, com profunda dificuldade em lidar com essas questões, sucumbem a seus extremos. Lucas Procópio/Pedro Chaves só cessa sua violência e autoritarismo quando envelhecido e doente. João Capistrano, legando o controle de seus negócios ao amigo Quincas Ciríaco, interna-se em atividades escapistas, como a marcenaria e os jogos. De forma geral, pai e filho representam um estado de crise, conquanto o segundo exemplifique um estar no mundo incompatível.

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João Capistrano Honório Cota era Um Cavalheiro de Antigamente, um homem do passado que nunca descansa de si mesmo. Esses epítetos dado ao personagem demonstram parte de sua personalidade perante as pessoas da cidade. Nele o espírito do sonho e do devaneio era extremamente palpável de sorte que a não realização dessas expectativas o levaria ao silêncio e a dor. Assim como o avô Cristino Sales, o Barão das Datas, João também se interessa pelo jogo político. Após vencer as eleições, contudo, é traído e nunca mais se prende aos fatos da cidade100. O caso é que o barão também sofrera uma derrota política, condição que alude a uma característica cíclica, um eterno retorno de acontecimentos malfazejos na vida dos personagens que partilham da mesma realidade. Rosalina e Isaltina (como vimos na parte anterior, destinada ao estudo de Lucas Procópio), João Capistrano e avô, João Capistrano e o verdadeiro Lucas Procópio. Tudo, na realidade, é símbolo. Quando chegamos a esta parte de nossas reflexões, devemos lembrar sempre que tanto Lucas Procópio quanto Um Cavalheiro de Antigamente deságuam, necessária e deliberadamente, em Ópera dos Mortos, o que significa dizer que Rosalina, a protagonista deste romance, não é somente o misto diurno e noturno do pai e do avô, ela é a união completa de todas as essências que a precederam: ela é o amálgama da família Honório Cota e daqueles que detêm este nome. É importante notar que, do ponto de vista da técnica narrativa, Um Cavalheiro de Antigamente, é um romance menor na ficção de Autran Dourado, principalmente se comparado ao monumental Sinos da Agonia e ao próprio Ópera dos Mortos. Contudo, a

100 Esses acontecimento é derradeiro em Ópera dos Mortos, pois daí se irá suscitar todo o comportamento isolado da filha de João, Rosalina.

193 grandeza dessa obra é percebida apenas quando observada como parte de um grande mosaico, onde ela entra como elemento altamente significativo. Não é que aqui não haja a presença dos elementos que consagram o autor como um dos mais sofisticados narradores da literatura brasileira, como o narrador coral ou o mergulho interior, propiciados pela falsa terceira pessoa. O problema (se é que podemos chamar assim) está no fato de a narrativa não se assentar em tantas ambiguidades e silêncios como as anteriores, não dotando Um Cavalheiro de Antigamente do mesmo vigor narrativo. Como muitos dos silêncios agora soando como alaridos, as imprecisões que fomentavam a dúvida e o conflito se tornam agora apenas uma das referências da obra e não mais o ponto de força que revelará o sentido da tragicidade dos personagens. Por outros termos, o trágico agora fica por conta dos acontecimentos doridos ou não, de modo que não mais se manifestam na construção engenhosa no consórcio entre forma e sentido. O livro, é claro, está muito longe de estar ruim, mas digamos, num tom de ensaio ou resenha, que o autor nos acostumou ―mal‖ quando lançou Ópera dos Mortos. Em Um Cavalheiro de Antigamente, tal qual em Lucas Procópio, os símbolos surgem para dar o tônus existencial dos personagens. Parte de significativa expressividade se encontra quando João e Quincas vão pescar e passam pelas voçorocas:

Aos domingos os dois [Quincas e João] iam pescar, ver as voçorocas perto do cemitério, que tanto impressionaram João Capistrano quando o pai o levou (Lucas Procópio já estava muito mudado) para ver as grandes erosões de terra, verdadeiras crateras vermelhas feito goelas sanguinolentas e famintas: lá embaixo havia até árvores, um riozinho correndo, nascido de um olho dágua. Brincavam no Largo do Carmo, viam chegarem os mortos pobres das fazendas, que vinham em redes, ou os indigentes da Santa Casa, para serem encomendados na Igreja do Carmo, quem tinham acompanhamento de padre ao cemitério era só gente rica. (...) Eles [os defuntos] vinham nus, a camisola tinha mais serventia; a sujeira e a miséria davam asco. Os coveiros jogavam os defuntos de qualquer maneira na cova. Eles caíam tortos e espandongados feito bonecos de pano (Grifos nossos. 1992, p. 27)

A grande expressividade está por conta de uma sucessão de símbolos: as voçorocas que (pré) anunciam a derrocada de João, ao longo da trama, o cemitério onde no futuro (em Ópera dos Mortos) ele enterrará seus inúmeros filhos natimortos, como que ―de qualquer maneira na cova‖.

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Mas quando falamos no futuro, referimo-nos mais à sequência cronológica do que uma progressão existencial, já que o futuro é, em realidade, uma grande inexistência. No fundo, nem mesmo há presente, pois que os personagens vivem nos interregno do tempo, assim tudo se corporifica como um eterno passado que avassala as existências. Quando João se lembra do pai, a imagem que lhe vem à cabeça é de um homem forte, viril diferente daquela com que ele conviveu mais recentemente. Quer dizer, a lembrança é sempre a mais antiga.

A mais recuada e brumosa visão que João Capistrano tinha de sua infância (ele fez de tudo para esquecê-la e até certo ponto conseguiu) era a de um homem grande, forte e espadaúdo, de sobrancelhas grossas espetadas feito taturana, a barba comprida, as botas sujas de barro, vibrando um chicote no ar, descendo-o sobre sua mãe. Esse homem era seu pai, Lucas Procópio Honório Cota (1992, p. 07).

Mesmo da mãe, como servo de sua vontade, ele herda seus fumos (ou reminiscências) de grandeza, não lhe restando nada mais que não fosse a decepção quando a realidade se impõe soberana: ―Ela [Isaltina] sempre foi mulher de grandes sonhos, João Capistrano herdou isso dela, só que ele nunca os realizou‖ (1992, p.25). No que se refere à forma de demonstrar esse tipo de comportamento e ação, podemos notar a ausência de verbos no futuro, mesmo quando há, são verbos no futuro do pretérito, único tempo do indicativo que não indica certeza. Preso às condições modais do subjuntivo, a hipótese do futuro do pretérito potencializa um tempo sempre irrealizado em que nada viverá o suficiente para se afirmar em condições plenas: ―Quincas Ciríaco era precoce, já revelava a grande sabença e juízo que iria teria quando homem feito. Você não monta e esporeia cavalo, não fazem burro mesmo quando manco e encaveirado puxar carroça?‖ (Grifos nossos, 1992 p.216). Na construção do entroncado mistério acerca da dignidade da mãe, a narrativa de Um Cavalheiro de Antigamente começa a abrir espaços para os pontos de vista dos principais envolvidos – agentes e confidentes – do imbróglio, como Dr. Gouveia, padre Agostinho e a própria Isaltina. Com quase sempre a visão do coro dando a perspectiva da cidade, João vai tecendo a suas próprias considerações sobre o relato. Obviamente, por mais que todos pudessem mentir acerca das suas participações nos encontros entre Isaltina e o padre, o fato é que a João pouco cabia a escolher, visto ser ele um servo direto da mãe. Moldado naquela ternura que conseguira amansar o próprio Lucas

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Procópio, João seria incapaz de reagir à força de mulher101 que da mãe emanava, de forma que, à Bentinho, em Dom Casmurro102, afirma:

... eu acho que pareço mais a minha mãe, puxei a ela, embora pareça o seu contrário, disse João Capistrano. Ela é muito dada, sua conversação encanta, sou apenas uma sombra de minha mãe. Mas no polimento, na maneira educada de me comportar e de ser, sou muito mais ela, afinal de conta foi ela sozinha que me educou (Grifos nossos. 1992, p.57).

A partir daqui, João vislumbra as múltiplas Isaltinas, descobre a verdade sobre o pai e o quanto se enganara ao longo de sua vida acerca das pessoas que o rodeavam. Para a construção dessas reflexões, Autran Dourado usa o monólogo interior como forma de depreender a angústia por que passava João, tal qual se verifica no solilóquio engendrado pelo personagem, como se dirigisse à sua mãe

E mantinha conversas imaginárias com a mãe, a quem fazia todas as perguntas que o coração e mente desejavam, e ele mesmo respondia. Mãe, a senhora alguma vez copulou com o padre Agostinho? Que é isso, meu filho?! Onde, como? Não sei, mãe, no coro, enquanto Joana cochilava ou dormia lá embaixo. É incrível, João, como você pode imaginar uma coisa dessas! Você tem a mente suja, a imaginação contaminada. Não Igreja do Carmo? Sou católica, tenho respeito pelas coisas da Igreja. Se não acredita em mim, pergunte a Joana se ela alguma vez ouviu algum ruído, algum gemido de gozo. O teto que separa a nave e o coro é de madeira, é muito difícil não escutar. Mãe, a senhora dizer isso! Você pensa que não sou de carne, que nunca gozei na minha vida? Não sou estátua de mármore, meu filho. Não diga isso, mãe, não me faça sofrer! (Grifos nossos1992, p. 88)

O uso do solilóquio aqui tem um caráter bastante significativo. Isso se deve ao fato de o recurso ter sido fortemente usado por Santo Agostinho em sua obra Líber Soliloquium, no qual o religioso busca comprovar a existência de Deus a partir de vigorosos métodos de raciocínio. No caso de João, sua capacidade intelectual fica obnubilada pela força da mãe, ainda que esta não esteja presente, a qual justifica seus encontros com o padre Agostinho. Quer dizer, o uso do solilóquio representa mais do

101 Usamos, de propósito, a expressão ―força de mulher‖, conquanto se trate da mãe do protagonista, para já anteciparmos o conceito que discutiremos ao final deste capítulo, quando cotejarmos essa relação à luz da tragédia edipiana. 102 Ao reconhecer a potência existencial de Capitu, assim profere Bentinho: ―Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição‖ (Grifos nossos, 1982 p.216).

196 que a discussão com a mãe e consigo mesmo, mas com o próprio padre responsável por ―desvirtuar‖ sua mãe. Sendo assim, esse solilóquio patenteia uma veia emocional superior á racional, quer dizer, diante da perda da discussão consigo mesmo, João sente, ainda mais as forças ruírem. Não é por acaso que, ao final do romance, ele irá transformar a mãe numa estátua de mármore (como veremos mais à frente) com a real tentativa de reconstruir a imagem divinizada da mãe, quando ela mesma afirma ser um ser tanto ligado ao espiritual (―Sou católica, tenho respeito pelas coisas da Igreja também‖ (1992, p. 88)) como ao lado material (―Você pensa que não sou de carne, que nunca gozei na minha vida? Não sou estátua de mármore‖ (1992, p. 88)).

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João Capristano precisa fugir de toda aquela dor que ele se infligia. Observemos como, a partir da falsa terceira pessoa, se descortina o azorrague de João:

Tudo aquilo que João Capistrano disse sobre a temporada que ia passar na Fazenda do Encantado só em parte era verdade. Não que estivesse conscientemente mentindo aos outros e a si mesmo: é que ele próprio não sabia o motivo profundo que o fazia fugir das Duas Pontes. Só uma coisa era certa: ele estava inconscientemente fugindo de sua mãe e de si mesmo, de um passado cuja existência real ele nunca poderia saber. Queria esquecer, se esquecer. Como se fugindo não levasse consigo o pior companheiro, ele mesmo (Grifos nossos. 1992, p. 95)

O que verificamos aqui é que a trama se passa a partir do dilaceramento existencial de João ao saber do passado da mãe e não consegui conviver com ele. Curiosamente o pai, que mais deveria sentir-se vilipendiado, procura esquecer o ocorrido, João não, é como se tentasse o tempo todo lembrar-se, remoer e reviver a antiga dor: Conscientemente achava que não devia remexer nas coisas mortas, mas no fundo da alma uma brasa coberta pelas cinzas do esquecimento (às vezes ele achava ter conseguido esquecer) continuava viva, bastaria um sopro um ventinho, para de novo reviver e queimar. Porque na realidade ele não queria esquecer. Se não, para que levar consigo aquela maldita carta? Por que não a destruía? Era como se quisesse manter viva uma dor antiga (Grifos nossos. 1992, p. 95).

Numa descrição kafkiana, João vê, na imagem da noite espessa, o profundo sofrimento em sua alma.

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Na fazenda, durante o dia, ele conseguia se manter ocupado. No fim da tarde, na rede do alpendre, quando o sol se punha e as cores do dia eram engolidas pela boca da noite, uma melancolia no princípio apenas difusa ia crescendo até se transformar em angústia. Sufocado, o peito doendo, ele temia que a sensação pudesse se tornar insuportável e a confusão e o descontrole tomassem conta dele (1992, p. 95).

Como um louco, tomado de desvario, João é um personagem com propensão para dor e para o sofrimento. À família Honório Cota é necessário apenas um estímulo para que isso se desencadeie, pois lhes falta estofo para suportar as vicissitudes da vida. No caso de João, o primeiro impulso é a carta. Contudo, ele reconhece que sua loucura tem origens mais profundas: ―Quando menino eu era muito aberto e sensível às coisas luminosas e brilhantes do mundo e da vida‖ (1992, p.104), ele, inconscientemente, recupera sua natureza no verdadeiro Lucas Procópio. É como se, quando mais jovem, estivesse mais perto da sua verdadeira natureza e com ela se sentia em paz. Ao se defrontar com a verdade sobre os pais, o mundo da delicadeza, do bem e das coisas feéricas caíram por terra fazendo com que dele emergisse de grande sofrimento e desilusão. O sofrimento e a loucura seriam consequência deste estado de espírito fragilizado.

De uns tempos pra cá, até as músicas que mamãe toca e que sempre me encantaram não conseguem me prender por muito tempo a atenção, o meu pensamento voa pra longe, na direção da minha infância. Procuro me lembrar de algum sinal que me indique onde foi que tudo começou. Tudo o quê? disse o dr. Maciel Gouveia. A minha loucura, disse João Capistrano (1992, p.104).

No artigo Representações da loucura em Autran Dourado, a autora Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva aborda o capítulo ―As volta do filho pródigo‖, do romance O Risco do Bordado. Guardando, é claro, as diferenças de obra, um ponto em comum é a maneira de os personagens em estado de loucura se relacionarem com os familiares ao seu redor. Assim afirma a autora:

O texto de Autran Dourado traz à tona o louco que não se submete às leis do pai e rompe a estrutura coesa da família. Entretanto, apresenta um cunho conservador quando mostra o louco como incapaz de reagir àquilo que o destino reserva para ele. Embora a narrativa não contenha informações evidentes sobre a origem de sua loucura, a personagem apresenta um profundo desconforto com a ideia

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de se segregar na vida limitada no círculo familiar e no universo da pacata cidade interiorana (2011, pp. 137-138).

Quer dizer, entre a aceitação do estar na família e o entendimento das forças da moira, o louco está na erraticidade existencial, cumprindo uma caminhada cujo traçado não clarifica nem o início e tampouco o fim. Na conclusão do seu trabalho, a autora assevera ainda:

E assim sua loucura significa a impossibilidade de construção de uma autonomia. É impossível não relacioná-la ao conflito que é colocado ao indivíduo: a maturidade exige a independência psicológica, física, financeira, o andar sozinho no desamparo do mundo, o que psicologicamente pode significar a incompreensão de que esse desamparo é uma condição intrínseca do ser humano. Como um ser limitado, inacabado, ele se acha perdido, incompleto, incapaz, uma criatura sem seu criador por perto. Essa privação lhe causa medo, pânico, desespero, loucura. Manter-se louco, alJenado é assegurar a incapacidade, a dependência, a subordinação, a menoridade, mas é também garantir, instintivamente, a própria sobrevivência (2011, p. 138).

Se isso se casa perfeitamente ao tio Alfredo, em O Risco do Bordado, em parte nos faz compreender a essência da insanidade em Lucas Procópio e em Um Cavalheiro de Antigamente. Nessas duas obras, a loucura funciona como um outro mundo, igualmente válido, porém. E isso só se realiza, concretamente, porque substitui no louco uma realidade imposta pelo mundo por uma realidade que se impõe ao mundo. Lucas Procópio, o verdadeiro, existia, essencialmente, enquanto declamava ―Vila Rica‖ por Minas Gerais tentando resgatar a antiga glória do estado; João só era feliz enquanto era mantido ―em cárcere privado‖ pela mãe numa rede de mentiras, atenuações e fantasias. No fundo, todos se mantinham, como vimos na citação acima, em estado de menoridade em relação ao mundo. Incapazes de viver sem essas fantasias, buscam a todo modo resgatar o que foi. No caso de João isso é mais sintomático, visto que matar Godofredo Barbosa, o redator da carta e o responsável por destruir seus mais ―sacrossantos‖ pilares identitários, era a única forma de se tornar plenamente feliz novamente. Mas se tal loucura é inerente à gente Honório Cota, parece que Isaltina é infensa a este mal. Mais forte do que os homens ao seu redor, a mulher denota, apesar dos sofrimentos por que passou, um brio e uma dignidade que contribuíam peremptoriamente para certo domínio nos seres que lhe estavam ao redor. Não que ela fosse tirana ou déspota, ao contrário havia nela uma alegria de viver e uma ternura que

199 dominavam os corações mais embrutecidos. É por isso, como já o afirmamos, que ela controla o filho (mais fraco) e amansa o marido (mais forte).

Um dia ele não aguentou, disse por que não fala comigo, diabo de mulher?! Ela não respondeu, mas ele viu nos olhos que Isaltina sabia. Está bem, estive com outra, quer saber o nome dela? disse ele. Ela foi rude, tal o ódio de que se achava possuída. Eu por acaso alguma vez procurei saber o nome de algum de seus animais? disse. Tomado de fúria, ele levantou o rebenque para ela. Ela não e mexia, não tinha nenhum medo, como não tivera medo diante do revólver do pai. E então, toda coragem e desafio, perigosamente ela disse bata, pode bater! Apesar de toda força, de toda a sua superioridade física, João, seu pai não teve coragem de me bater, disse ela. Ele ficou pequeno diante de mim. Devagar foi baixando o rebenque, não ousava me fitar. Virou de costas e saiu. (...) A única maneira de detê-lo era fazer o que eu fiz. Se eu me mostrasse submissa, ele teria me batido (1992, pp. 70-71).

Contudo, esse seu vigor e resistência à loucura não é herdado por seus descendentes, que parecem, ainda, serem sempre tributários do tom quarta-feira proveniente do verdadeiro Lucas Procópio. E talvez, inconscientemente ou não, este é o tom que Islatina dá ao seu filho, ela o prende ao passado, ela o faz viver num outro tempo, como se o presente fosse algo negativo, enojante. É interessante notar (e mais uma vez a comparação com Os Servos da Morte é bem-vinda) que Elisa e Isaltina efetuam duas formas distintas de negar o presente violento em que vivem: a primeira, com a vingança e com o ódio, torna o seu filho um arauto apocalíptico do marido; a segunda, com ternura e com o amor, constrói seu filho à imagem do tipo de homem que ela julgava o correto. Pelo sim ou pelo não, ambas obsedam os próprios filhos, já que não lhe permitindo o eclodir das próprias potencialidades o castram para a vida. O ódio e o amor, sem liberdade, são sempre passíveis de destruição. Ao término do romance, deparamo-nos com João sendo julgado por ter matado Godofredo Barbosa, o autor da carta. Após ter sido alegada ―defesa da honra de terceiros‖, João Capistrano Honório Cota é inocentado e, de braços dados à mãe, saí do tribunal. A partir disso, ele irá reconstruir a imagem partida dos genitores. Neste momento, o que causa um grande estranhamento a todos na cidade é não só a nova sepultura do pai, mas uma sepultura e uma lápide para a mãe, que, contudo, ainda estava viva. Em sua mente, essa atitude selava, de vez, a verdade dos fatos que a ele eram mais do que convenientes, mas necessários.

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João inicia, então, a construção de um grande sobrado, e o corifeu, que a tudo observava, conduz a leitura da cidade e dos leitores para a ―teia‖, para o ―simbolismo‖ e para a ―premonição‖ de que se encharcaria as ações de João Capistrano, desembocadas em Ópera dos Mortos.

Daquele dia em diante João Capistrano começou, com a paciência com que uma aranha tece a sua teia, a reconstruir o ídolo quebrado, a imagem partida que a mãe e ele fizeram de Lucas Procópio Honório Cota. E todos viam premonição e simbolismo em tudo. Assim foi quando João Capistrano resolveu dar um novo túmulo ao pai, condigno com a sua importância e posição, grande homem e senhor que a mãe e ele inventaram. Mandou vir de São Paulo dois túmulos e demais complementos em mármore Carrara. Um para o pai, simples, apenas uma cruz e uma lápide (...). O segundo era mais difícil de explicar, o de Isaltina Sales Honório Cota: ela ainda estava viva. (...) Na lápide ele tinha mandado gravar o nome de Isaltina Sales Honório Cota, a data do seu nascimento, deixando pra mais tarde o dia da sua morte. Abaixo o nome da mãe e da data do nascimento, em letras graúdas: ANJO DE BONDADE E PUREZA (Grifos nossos. 1992, p.224).

1.3) Ópera dos Mortos

Todo o vigor existencial dos componentes da família Honório Cota encontra em Ópera dos Mortos o seu ponto de força mais expressivo. Aliado ao aparato conteudístico, o romance sofistica técnicas que vinham sendo desenvolvida pelo autor desde o seu primeiro texto publicado, ―Teia‖, de 1947. Assim, para compreendermos um pouco melhor o riscado seguido por Autran Dourado, façamos um brevíssimo percurso estético das suas obras para entendermos a potência criativa que é Ópera dos Mortos. Em 1950, o autor lança ―Sombra e Exílio‖ (vencedor do Prêmio Mário Sette). Nessa novela, o personagem Rodrigo, após ser traído por sua esposa com seu irmão dele, reencontra a mulher após alguns anos. A traição o enclausura em si e o constrangimento do reencontro lhe chaga violentamente o coração. Reunidos, anos mais tarde, em Novelas de Aprendizagem, ―Sombra e Exílio‖ e ―Teia‖ desenvolvem as linhas de força da poética autraniana: o barroco das intercessões temáticas, a loucura, o enclausuramento, o silêncio, a revolta dos personagens contra o tempo e a teia que une todas as pessoas num único espaço e sentimento.

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Marco importante na obra do mineiro, Novelas de Aprendizagem mostra a formação de um indivíduo, à semelhança de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Em Autran, no entanto, para além da formação literária, haverá também a humanista, já que a construção do homem103 não parte das históricas condições externas, mas da existência interior que redundará num ser literário, ou seja, no produto das relações existentes entre o espaço da criação estética ou artística, a essência anímica do ser e o contexto social em que se insere. Tudo isso para criar, a partir da extensão do tema, uma obra monumental para a qual convergem, como num grande bordado, todos os pontos do símbolo. Tal processo formativo é a máxima perseguida pelo autor: ser um escritor artesão. Em Breve Manual de Estilo, transcrevendo conversa com Godofredo Rangel, este diz que ―não se aprende com gigantes, mas com bons artesãos, com os que conhecem bem o ofício‖ (2003, p. 74). À época do diálogo, já era Autran um esteta, sem que seu esteticismo fosse sinônimo do formalismo marmóreo dos parnasianos ou do pragmatismo fechado da análise literária, típica do formalismo russo. No mesmo livro, destacando a estrutura em detrimento (mas não esquecimento) da trama, Autran afirma acerca do aspecto secundário do enredo e de sua utilidade específica para açular o interesse primeiro do leitor. No fundo, o que queria o autor era captar a emoção de seu público, enquanto o entretinha nas malhas da trama para fornecer a ele (ao leitor) a qualidade do texto bem construído, mantendo a ideia de que o emprego do esforço se disfarce na forma, como um templo grego. Em 1952, lança Tempo de Amar, análise radical das relações entre homem e religião, a partir da dicotômica distinção entre âmbitos psíquico e físico, arraigados em nossa civilização. Em Ópera dos Fantoches, de 1994, os mesmos personagens de Tempo de Amar retornam, agora não mais em Cercado Velho (tentativa espacial de criar uma cidade para onde se irmanariam os temas), mas na mítica cidade mineira de Duas Pontes (espaço privilegiado presente em quase todos os seus romances), lugar que alocará, por toda a sua obra, as pluralidades de personagens interligados numa enorme teia. Ismael, o protagonista dos dois livros, pede ao narrador que conte sua vida para se reconhecer vivo. Considerava-se a si mesmo sem destino, preso ao tempo pretérito do

103 Sobre a construção do homem, antecipamos que esse aparato ontológico será o mote temático que nos ajudará a compreender parte da problemática trágica a que as obras de Autran Dourado se filiam.

202 qual não conseguia se desligar. Há, assim, no romance, uma implícita ode ao poder vivificante da literatura. Em 1961, lança A Barca dos Homens (vencedor do prêmio Fernando Chinaglia). No livro, as técnicas narrativas são ampliadas com a presença, não somente, da multiplicidade de narradores, mas também de linhas narrativas que se espraiam de pequenos a grandes blocos narrativos, à proporção que a efabulação se desenvolve. Outro recurso aqui empreendido será o monólogo interior, que o mestre imaginário de Autran Dourado, Erasmo Rangel, explica ser ―uma das técnicas literárias que usam a livre associação de ideias para exprimir e narrar o que se passa na região do espírito que não é articulada‖ (2005, p. 87). No intermitente monólogo interior do esquizofrênico Fortunato, de A Barca dos Homens, haverá o fluxo desconexo de imagens que lhe representam o mundo interior:

Agora ele olhava as estrelas e via como estavam distantes, o céu às vezes parecia alto às vezes parecia baixo, as estrelas eram gordas e molhadas ou duras e finas como uma dorzinha, aí levou a mão à perna e apalpou, o São Jorge galopava no seu cavalo, as estrelas faiscavam, era como fritinhos, como grilos na noite, as aranhas se arrastavam peludas, não é bom ficar olhando muito tempo para as estrelas, faz mal dizia a mãe, por isso não olhava muito tempo seguido para as estrelas quando era menino, alguma coisa podia acontecer com ele (...) (1979, p. 163).

Uma vida em segredo vem três anos depois e é suscitada a partir de um fato curioso. Conta Autran que a história veio pronta, originada de um sonho. Em A Poética do Romance, ele diz que

daí em diante foi um trabalho (único até agora na minha vida de escritor) relativamente fácil. Em pouco mais de um mês tinha escrito a história que Gabriela da Conceição Fernandes me revelara. E vi que havia nela um mistério que eu devia e procurava esconder na escrita. Era uma vida simples, humilde, franciscanamente rica. O título veio como consequência – Uma vida em segredo‖(2000, p. 170).

Em 2002, o livro foi adaptado para o cinema pela diretora Suzana Amaral. Ganhador do Prêmio Jabuti e do Prêmio Goethe de Literatura do Brasil, em 1981, pelo livro de contos As imaginações Pecaminosas, Autran Dourado foi demonstrando um talento cunhado a partir de um esforço de lapidação de estilo, que não caía na cartilha do culto da inspiração do gênio romântico. No ano 2000, venceu a edição do Prêmio Camões, o mais importante em literatura portuguesa.

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Após esse breve itinerário poético a que nos propomos trautear, chegamos ao livro sobre o qual gostaríamos de nos dedicar: Ópera dos Mortos. Incluído pela Unesco na Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal, a obra, de 1967, consagra de vez Autran Dourado como um dos maiores escritores brasileiros. Falando sobre a falência moral e econômica da família de Lucas Procópio Honório Cota, o autor, ao recuperar elementos da tradição grega, cria uma primorosa obra de profundo apuro estético. Esse livro compõe a trilogia da derrocada mineira do século XVIII junto com Lucas Procópio (1984) e Um Cavalheiro de Antigamente (1992). Na verdade, mais do que compor o quadro, ele será o vértice de onde partirão e paradoxalmente chegarão todos os pontos de força do romance. Partamos, sem mais delongas, ao nosso estudo.

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No processo de composição de Ópera dos Mortos, Autran Dourado afirma, em Uma poética do romance, matéria de carpintaria:

A primeira ideia nasceu de uma frase que de repente brotou no meu espírito: ―É preciso enterrar os mortos.‖ Verifiquei posteriormente que era uma reminiscência da Antígona, de Sófocles. Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura. Os mortos de Rosalina e os mortos de Antígona. Os mortos- vivos (2000, p. 151).

Antecipamos aqui um conceito que será fortemente desenvolvido na última parte deste capítulo que é a exata discussão temática de nossa tese: a atualidade da tragédia ática na obra de Autran Dourado. E fazemos isso para poder partir da reflexão que não é possível entender Ópera dos Mortos por uma perspectiva meramente do signo, pois que o romance, como um todo, é símbolo. No caso específico sobre essa obra, todo cuidado é pouco, porque muitos foram os autores de qualidade que sobre ela se debruçaram com o escopo de escavar os sentidos em níveis narrativos diversos. O próprio Autran Dourado já desenvolveu diversos trabalhos extenuando exegeses claras acerca do modus operandi proposto na construção da obra. Sendo assim, nosso estudo não pretende dissecar todos os elementos possíveis de serem (re) interpretados aqui, mas sim apontar brevemente os principais elementos de força, de modo a se ter um suporte teórico a fim de se desenvolver, com mais clareza e segurança, os principais aspectos do diálogo produzido com a tragédia grega, em particular com a trilogia tebana de Sófocles.

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2) A ideia do personagem como metáfora

A etimologia da metáfora conduz para o sentido de transporte ou transferência. De forma geral, não é raro confundir esse conceito com o da conotação propriamente dita. Isso não ocorre, no entanto, gratuitamente. A confusão entre esses dois conceitos se realiza porque a metáfora não é utilizada apenas quando percebemos uma semelhança entre a coisa a ser expressa e a outra ideia em que a imaginação percebe uma relação (comparação implícita), mas como nos ensina Othon Moacir Garcia, ―mesmo onde se dispõe de uma denominação já existente, um impulso interior nos incita a preferência por uma expressão metafórica‖ (1969 p.77). Num campo mais didático ainda, podemos dizer que se reconhece a metáfora a partir de duas considerações. A primeira refere-se ao conceito mais difundido, que se dirige a uma comparação implícita, nascida da similaridade proveniente da associação de ideias (como no exemplo: ―No fundo ela amava aquele seu meio-irmão, espinho e dor da sua vida. Sinos da Agonia, p. 123). Já o segundo caso dá conta da supressão de determinado elemento que terá seu uso substituído por outro termo. Nesses casos, estamos diante de uma metáfora pura, porque há uma fusão de duas ideias, contudo com a manutenção apenas de um elemento linguístico. Dessa interpretação que se tem a formação do símbolo. Assim, ―é a partir das metáforas que o abstrato torna-se concreto, o imaginário toma forma e o desconhecido torna-se conhecido‖ (LEITE, 2014. p. 14). E isso só se realiza efetivamente quando a ideia se converte em significante através da ação. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche explica esse conceito quando lembra as máscaras de Dioniso no teatro grego, demonstrando, pois, que há a concretude e a realidade a despeito (e talvez por isso mesmo) da representação cênica:

Para se empregar a terminologia de Platão, as figuras trágicas do teatro grego poderiam ser explicadas mais ou menos assim: o único Dioniso verdadeiramente real aparece numa pluralidade de figuras sob a máscara de um herói combatente e que, por assim dizer, se encontra enleado na rede da vontade individual (2011, p. 79).

Diante dessas ideias, podemos partir para a interpretação do romance Ópera dos Mortos, do lugar de onde nos sugere o autor: dos símbolos do relógio, das voçorocas e do sobrado.

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Após o estudo que realizamos acerca dos outros dois romances da trilogia a que nos propusemos debruçar, é mais rápido o entendimento sobre a trama de Ópera dos Mortos, uma vez que para cá convergem os outros dois romances. Neste romance, conta-se a história de Rosalina, filha de João Capistrano Honório Cota e neta de Lucas Procópio Honório Cota. Morando no sobrado construído pelo pai, a menina, ao lado de sua mãe, Dona Genu, vivia a rotina de família abastada do século XVIII de um Brasil colonial. Contudo, dois grandes acontecimentos vêm interromper a tranquilidade existencial de Rosalina: o fato de o pai ter sido vilipendiado na eleição em que legalmente ganhou o mandado (mas uma manobra escusa impediu-lhe a posse) e depois a morte da matriarca. Essas duas circunstâncias terão um enorme peso sobre todos no sobrado, porque com a perda da posição política, o pai irá se fechar completamente para todas as pessoas da cidade. Ele corta relação com todos e se isola dentro do casarão. Com Dona Genu morta, o pai se enclausura ainda mais, mantendo um pesado silêncio. Além disso, ele toma uma decisão que será parte de um (fúnebre) ritual: a paralisação de um dos relógios de pêndulo que a casa continha. Tal atitude, numa clara demonstração de revolta contra o tempo, será uma maneira de manter o tempo para sempre paralisado. Pouco tempo depois, com a morte do pai, Rosalina se vê sozinha naquela casa. Paralisando o segundo relógio de pêndulo que havia na casa, ela mantém a mesma impassibilidade diante de todos na cidade. Na verdade, sua atitude ritualística atinge um ponto a até mais radical do que o pai, que, na ocasião da morte da mulher, ainda respondia e cumprimentava aqueles que vinham lhe desejar os pêsames. Observemos, primeiramente, a) a atitude de João Capistrano: Quando um ano depois dona Genu morreu, a cidade inteira achou que tinha chegado a hora de reparar o malfeito [a traição política sofrida por João Capistrano], e recompor tudo. Ele se abriria de novo às amizades, o sobrado voltaria a se encher de gente. (...) O coronel Honório se trancou no quarto. Só apareceu na hora de fechar o caixão. Na sala, ele olhou todos do alto, nenhuma palavra. Dirigiu-se primeiro para o grande relógio-armário, aquele mesmo, e parou o pêndulo. Eram três horas. A gente esperava angustiado ele fazer mais alguma coisa, dizer uma palavra; alguns já se arrependiam de ter vindo. Nada daquilo que se esperava aconteceu. Ele não recusou cumprimento, aceitava os pêsames de olhos baixo, em resposta, dizendo não carecia tanto incômodo. Disseram que certa hora ele chorou, mas ninguém mesmo viu, aquele homem chorar? Nessas horas se inventa muito. (...)

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A morte de dona Genu em nada mudou as suas relações com a cidade, como a gente esperava. Fechou-se ainda mais, passava por nós como se os olhos não vissem, mirando um vazio muito longe. A única mudança notada foi que ele passou a dar de tardinha grandes passeios com Rosalina (1999, p. 39-40).

b) e a atitude de Rosalina: De repente, viu-se: Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha – os olhos postos num fundo muito além da parede, os passos medidos, nenhuma vacilação; trazia alguma coisa brilhante na mão. Rosalina era uma figura recortada de história, desses casos de damas nobres que contam pra gente, toda inexistente, toda etérea, luar. (...) Abriu-se caminho para Rosalina. Quando a gente pensou que ela fosse primeiro para junto do pai, voltou-se para a parede e aquilo que ela trazia brilhante na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota. (....) Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na copa ouviam a pêndula no seu trabalho de aranha. (...) Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu (1999, p. 41-42).

Mas por que Rosalina age dessa maneira? Condoída e compadecida com o sofrimento do pai, ela toma para si a responsabilidade de lhe manter a honra e o nome e, por isso, se fecha a qualquer ação que soasse diferente daquilo que o pai fazia. Encarcerando-se para tudo e para todos, ela deixa os seus negócios financeiros nas mãos de Emanuel (homem pelo qual ela era apaixonada) e incumbe Quiquina, empregada por quem tinha afeição, respeito – e certo medo –, a vender as flores de seda que fazia, enquanto vivia no interregno dos tempos do ir e do devir impossível. Sua existência se construía de reflexões e silêncios espectrais, que apontavam para duas realidades opostas de sua própria condição vital, que se demonstra pelo monólogo interior que dela insurge.

Por que Quiquina demorava tanto? Engraçado eu casar? Por que engraçado? eu bem que podia casar. Emanuel bem que quis. Não agora, antes, quando nada ainda tinha acontecido. Papai fazia planos para mm. Depois me esqueceu, se entregou àquela maluqueira. Pra que precisava daquilo, se tinha tanto? Não, eles não podiam ter feito aquilo com ele. Com ela. Ele não merecia aquilo. Tão bom, tão calado, tristinho. Pra sempre tinha de odiar. Não esqueço, ninguém

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deve esquecer. Agora nós somos os dois sozinhos no mundo. Disse o pai. Quando o enterro da mãe saiu. Depois é que a gente chorou, a gente não podia guardar por mais tempo o choro engolido. Pra ninguém ver que a gente tinha chorado. Na frente deles. Ninguém pode saber, esta morte é só da gente, tudo que eles dizem é fingimento. Você não viu? Com aquela cambada só mesmo assim. Ou então como fazia Lucas Procópio. Só mesmo a pau, conforme disse o pai. Vovô Lucas Procópio. As histórias, muitas, contraditórias. Papai não dizia direito, é capaz dele não saber direito, quando vovô morreu ainda era menino. Era capaz dele não lembrar bem (...) (1999, p. 43- 44).

Toda a sua vida estava fadada a esse marasmo se não fosse a chegada de José Feliciano, ou Juca Passarinho, homem que, saindo da cidade onde morava, por conta da morte de seu protetor, Major Lindolfo, instala-se no sobrado a fim de ter algum trabalho. Com o passar do tempo, Rosalina passa a se envolver sexualmente com este empregado, chegando mesmo a ter um filho com ele. A chegada de José Feliciano, conquanto irá radicalizar a postura plural de Rosalina, também será uma forma de lhe conter os impulsos da loucura, tanto é que após a morte do filho que eles têm e de sua partida de Duas Pontes, ela enlouquece. Vejamos como se demonstra certa tomada de consciência por parte da mulher.

Ali estava ela sufocada pelo tempo, vencida no mundo. Os relógios na sua linguagem muda, ela também uma vez falou por eles. Bem alto, em silêncio, do alto da escada, pra que todos vissem. Por que tinha deixado se arrastar pelo orgulho, pela loucura do pai? (1999, p. 167).

Toda essa história, base da trama do romance, não pode, contudo, nos tirar a atenção dos elementos estruturais que irão conversar com o próprio conteúdo do romance. Vamos a essas discussões.

3) Os símbolos

Vários são os símbolos que pululam em Ópera dos Mortos, mas poucos são tão significativos como as voçorocas, os relógios e o sobrado. Desses três, contudo, talvez o sobrado seja o mais importante, uma vez que será ele o elemento que permitirá a compreensão da protagonista: Rosalina. Vamos então pela ordem gradativa.

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3.1) As voçorocas

No site da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), assim se definem as voçorocas: Sulcos, ravinas e voçorocas - isto é formação de grandes buracos de erosão causados pela chuva e intempéries, em solos onde a vegetação é escassa e não mais protege o solo, que fica cascalhento e suscetível de carregamento por enxurradas - estão presentes em praticamente todo o Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil e geralmente estão associados ao uso do solo, ao substrato geológico, ao tipo de solo, às características climáticas, hidrológicas e ao relevo. O desenvolvimento das ravinas e voçorocas descrito na literatura brasileira é geralmente atribuído a mudanças ambientais induzidas pelas atividades humanas. (...) As voçorocas atuais, que são mais frequentes nas concavidades do relevo, muitas vezes representam feições erosivas antigas, numa prova de que a erosão é recorrente e que tende a avançar pelas mesmas rotas já seguidas anteriormente, certamente devido ao condicionamento hídrico subsuperficial. Tal fato foi comprovado em estudos que constataram que uma das voçorocas estudadas segue a trajetória de um antigo canal erosivo (2014, s/p).

Observamos que as definições geológicas do fenômeno estão todas associadas às intempéries, ao uso do solo e às atividades humanas. Além disso, mostra-se que as feições físicas desse fenômeno são oriundas de ―um antigo canal erosivo‖. Todas essas características são encontradas em Rosalina, ela é a própria voçoroca, com suas ações atrativas de arrastamento irresistível, que aprisionam Juca Passarinho na gaiola de seu corpo: ―[Ele] era feliz, de noite era o visgo das voçorocas, as goelas vermelhas e escuras, de que ele não podia se afastar‖ (1999, p. 180). Além disso, ela é também ―esse antigo canal corrosivo‖ já que a destruição a que se impõe e que lhe é imposta é fruto da realidade vivida pelo seu pai e da natureza passada pelo seu avô. Rosalina ainda sofre um outro mal: ela herda, inconscientemente, o gérmen da loucura de Lucas Procópio, o vero (morto por Pedro Chaves) que só irá eclodir, derradeiramente, após dar à luz a seu filho com Juca. Rosalina, ―de feição erosiva antiga‖ é uma personagem todo metáfora, pois que se demarca de múltiplos significados:

Como desistiu de entender, [Juca Passarinho] aceitou a sua vida partida ao meio: as noites e os dias. De noite Rosalina, de dia dona Rosalina. Não buscava mais unir as duas figuras, juntar as duas

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metades. Chegava mesmo a pensar que elas nunca se encontravam (...). E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia antes de sua chegada ao sobrado (...) a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente, ele ficava, as horas caindo de mansinho, ele fruindo um prazer novo e miúdo, vagaroso, que nunca antes conhecia. Essas distinções eram demais para ele, homem simples (1999, p. 202-203).

Mas esse aspecto múltiplo de Rosalina só faz sentido quando ela é contraposta à figura de Juca Passarinho, o então empregado que após sair da companhia do Major Lindolfo, que lhe facultava uma vida de pouco afazeres, chega a Duas Pontes, onde irá trabalhar no sobrado. Esse fato é também de grande relevância, pois que Rosalina nunca aceitaria alguém da cidade dentro de sua casa, pois que significaria uma traição à memória do pai. Como a presença de um homem por ali ajudaria a manter a casa um pouco mais segura das ações dos meninos que iam, de quando em vez, jogar pedras no sobrado, Rosalina aceita a companhia do falastrão José Feliciano. O homem há chega à cidade vaticinado por alguns símbolos sinistros. O primeiro foi o sonho sobre a morte do filho do Major Lindolfo. O segundo dizia respeito à profecia de dona Vivinha, que contava a história de um homem que cometeria incesto com a sua filha. Ao saber disso, o homem foge, para evitar a realização da profecia. Contudo, com fins bem edipianos, após alguns anos ele encontra uma mulher na selva, com quem tem relações sexuais e descobre, depois ser sua filha. Essa história ilustra a impossibilidade de se fugir do fado e a resistência que o homem coloca à realização de sua própria consecução. Além disso, diante das voçorocas ele atormenta com aqueles fenômenos, já antevendo a sucção que aquelas erosões causariam. Junto a isso tudo, somava-se o fato de ele ver, assim que chegara à cidade, a formação de um redemoinho. Todas essas imagens reunidas davam o tom fatalista a que Juca estava destinado.

... as voçorocas vinham se juntar à lembrança ainda quente do sonho de há pouco, Seu major Lindolfo lhe deu um tiro bem nos peitos, na valia de nada ele gritar. Se chegasse na beirada dos barrancos das voçorocas, para ver o fundo da grota, a terra cederia sob seu pés, ele era tragado. Um sonho acordado, terrível, feito o outro (...). Os olhos fechados, a visão das voçorocas crescia assustadoramente. (...) Um vento soprou forte, fez um redemoinho que fugia do meio da praça em direção à igreja. Isso não é bom, redemoinho nunca é bom.

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Primeiro o sonho, depois as voçorocas, agora o redemunho. Quem sabe era um sinal para ele? Quem sabe não era melhor descansar um pouco, tomar outro rumo? Bobagem, essas coisas não existem, invenção de moda (1999, p. 77-81).

Todos esses acontecimentos, em termos cronológicos e de organização de capítulo, ocorrem antes daquele tomo outro o qual irmanará significativamente os elementos no fim trágico de Juca Passarinho: ―O vento após a calmaria‖. É preciso, primeiro, entender a relação intertextual com o conhecido ditado popular: ―depois da tempestade vem a bonança‖. Sabemos que a estrutura rítmica, nas construções de diversos recursos paralelísticos, contribui peremptoriamente para a veracidade enunciativa produzida por um dito popular, assim como a construção metafórica, o que é bastante eficaz para o tom generalizante da mensagem que se quer transmitir. Pois bem, num primeiro momento, é baseado neste processo que Autran constrói o título do bloco ―O vento após a calmaria‖. Com relação à interpretação dos significantes de natureza substantiva, nota-se que a inversão da ordem propicia uma inversão da intenção amenizadora do dito popular, configurando-se agora um sentido mais sombrio, uma vez que se reserva para o futuro as condições menos felizes. Mas que condições são essas e quem poderia ser os elementos representativos deste ―vento‖ e desta ―calmaria‖? O vento, demarcando força e saída da condição básica de tranquilidade associa-se às ideias do redemoinho, da vida de Juca Passarinho com Rosalina e, em última estância, à imagem forte e viril do coronel Lucas Procópio. Já a calmaria, liga-se à vida de Juca quando ainda estava sob a proteção do Major Lindolfo e, em última estância, à imagem pacífica e branda do coronel João Capistrano. Mas são essas condições que, à frente de seus olhos Juca não vê, e se deixa levar pela imagem alva e lânguida de Rosalina, que, vai tecendo ao seu redor uma teia que o arrasta para dentro.

Nada aconteceu, nada de ruim aconteceu. Bobagem, cisma. Tudo se desfez no ar, como as sombras da noite se dissolvem com a luz nova da manhã. O sol brilhava a meia altura no céu, uma bola de fogo ofuscante, ele ma podia olhar. O mundo luminoso, de dores limpas e puras, o canto da manhã ensolarada. Nada aconteceu? E ontem? Ontem, começou a pensar meio assustado. Quem sabe aquilo tudo não era mesmo um aviso pra ele? Quem sabe não devia fugir, largar o sobrado de banda, a cidade, pegar viagem, andejo? Não. Por quê? Porque tudo de ontem foi bom? E Quiquina? Quê que podia acontecer? Nada. Queria acabar o que tinha

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começado, o que Quiquina atrapalhou. O que podia acontecer era ele gozar uma mulher feito aquela, uma mulher como ele nunca conheceu. E se o perigo estivesse exatamente ali, no prazer, no gozo? E se ela tivesse por dentro o visgo daquelas voçorocas? (Grifos nossos. 1999, p. 181).

De acordo com Marcelo Villela Fabiani, em sua dissertação de mestrado, sob o título, A tradição poética de Autran Dourado em „Ópera dos Mortos‟,

as imagens do sonho, de redemoinho e das voçorocas são fundamentais para a configuração de um ambiente impregnado pelo espaço da morte, contribuindo para um cenário cuja decadência humana é representada pelo cunho autodestrutivo das personagens. Essas imagens são interpretadas com símbolos, que ao traduzirem o estar no mundo de personagens mortos em vida, envolvem o leitor num interessante desvelar de sentidos subjacentes à obra literária (2011, p. 95).

3.2) Os relógios

A presença dos relógios é fundamental quando compreendida a partir da sua relação com o espaço do sobrado (uma vez que estabelece as dimensões onde e quando a narrativa vai ocorrer) e a partir de sua paralisação. Quer dizer, o relógio pode ser entendido por sua não ação de marcar o tempo e por ser a metáfora utilizada para indicar o comportamento de Rosalina ao longo da narrativa, metáfora essa fundamental para que se perceba sua natureza múltipla. Já comentamos que após a morte da mãe e do pai, param-se dois dos relógios- pêndulos que havia na casa. O gesto de parar os relógios alude a um comportamento repetitivo de Rosalina. Ao agir, no presente, como se vivesse no passado, ele atualiza o tempo ido ao mesmo tempo que afasta de si o tempo que vive, quer dizer, ela vive sempre num outro tempo. Caracterizada a obra na efervescência integral de verbos no pretérito, reafirma-se o paradoxo acima e a consequente estagnação. É por isso que, por exemplo, sendo o sobrado associado ao tempo, o ruir diante do mundo é o que lhe resta, porquanto progredir ou mesmo manter-se depende de uma ação. Em outras palavras, é a passividade contemplativa que permite a ruína. O único relógio que não estava parado no sobrado ajudava Quiquina a lembrar de seus afazeres assim como lembrava a Juca. Para Rosalina, a simbologia do relógio parado fazia parte de um imenso ritual ao qual ela se impunha como também da rememoração presentificada da morte do pai, que por sua vez agiu da mesma maneira

212 quando dona Genu morreu. João Capistrano tinha em Genu a ponte não só para a cidade, mas para a vida. No caso de Rosalina sua condição é mais cruel, porque, após o luto permanente a que ela se impõe, não consegue mais encontrar, inteiramente, ligação ou relação com nenhuma outra pessoa. Quem poderia estabelecer um ponto de contato entre ela e a cidade, é muda: Quiquina ―só ouve, não fala. Uma ponte inútil, por ela não se pode atravessar‖ (2000, p. 148). De maneira geral, o relógio era uma marcação no tempo da narrativa. Assim, as suas respectivas paradas eram também a parada no futuro dos personagens. Em níveis formais, a narrativa abre mão do uso de verbos no futuro, para indicar que tudo está estrangulado no passado e no presente imutável. Em Matéria de Carpintaria, Autran Dourado se pronuncia sobre o fato:

Os tempos dos verbos. Não é apenas um livro do passado imperfeito, nele não há (só se foi por descuido) verbo no futuro. Como não há futuro para Rosalina. É sempre ―vou fazer‖, nunca ―farei‖. Dizer o futuro é afirmar-se, é sair do passado, do mundo dos mortos, é ser (2000, p. 149).

A paralisação do tempo é marca de uma ruína, que se subdivide em questões formais e narrativas e comportamentais e ontológicas. Na primeira acepção, no que tange à estrutura, paralisar-se no tempo é recuperar o comportamento lunático do primeiro Lucas Procópio, cantor de ―Vila Rica‖. A manutenção do passado é também recuperar o comportamento de Isaltina que vai educar João Capistrano sob a égide de uma falsa imagem tanto do avô, Cristino Sales, como de seu pai, Lucas Procópio (Pedro Chaves). Essas duas atitudes são a fonte da desgraça e da destruição dos personagens e reverberam, estruturalmente, numa narrativa em que a trama não se desenvolve em níveis efetivamente cronológicos, mas sim num misto de monólogos narrados e refletorizações a fim de se potencializar o fenômeno da polifonia. Em nível comportamental e ontológico, a parada do relógio configura-se como uma ação ritualística de um grande drama de luto. Afirma sobre isso, Ronaldes de Melo e Souza:

Sob o acicate da rebelião, [os personagens de Autran Dourado] substituem a roda da vida pela roda da morte. Na tentativa desesperada de sustar o tempo, apenas conseguem congelá-lo no passado, na direção unilateral que conduz tão somente à morte. No ato titânico de negação do fluxo do tempo, assumem uma substância tartártica num estado plutônico-subterrâeno. Realizam uma ruptura

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retroativa no fluxo do tempo, que se consuma na desmesura trágica, mas também patética, de substituir a morte como fim da vida pela morte como princípio da vida (...). O destino que os aniquila não é uma determinação exterior, mas o desdobramento espontâneo da vontade ressentida contra o fluxo do tempo (2010, p. 164 – 166).

A parada do relógio é, então, uma não aceitação da morte, pois que se a mantém presentificada no âmago de todos os seres. Não há a passagem do tempo, em que se construirá a vida. Em uma palavra, os personagens recusam-se à reunião entre espírito e matéria que tanto marca a civilização ocidental. Quiquina, por exemplo, quando para o relógio após o enlouquecimento de Rosalina, demarca uma negação da vida, pois que a loucura também irá significar morte. Façamos uma comparação com o famoso poema de Alphonsus de Guimaraens, ―Ismália‖. No texto, o eu lírico mostra que é a loucura e o sonho que levam Ismália a buscar dois planos opostos de existência: ―Queria a lua do céu/ Queria a lua do mar‖. Contudo, após jogar-se no vazio buscando a ascese existencial, ela ganha asas e voa, ainda que seu corpo encontre a ―lua do mar‖. Observamos, aqui, que a lua do mar é um reflexo, portanto falso. Dialogando com a perspectiva platônica no que tange ao mundo das ideias e ao mundo das sombras, Ismália é enganada pelos seus sentidos, até que Deus lhe dá asas angelicais que lhe permitem a transcendência, para o ―real‖ do espírito. Algo semelhante se dá com Rosalina, conquanto sem o mesmo lirismo. Seu desvario é a marca derradeira de sua incapacidade de existir em sociedade. Levada para um hospício, é como se lhe decretassem uma morte simbólica, uma morte em efígie. Diferentemente de Ismália, porém, Rosalina tem sua loucura no plano do concreto. Como as voçorocas, a mulher arrasta para dentro de si a própria terra do que é feita. Mas essa força é maior do que ela mesma, o que a leva à loucura. Sua própria constituição procura, desesperadamente, a reunião de duas potências (do pai e do avô) assim como procura, incessantemente, materializar os espíritos em formas de filhos que não vingam. Sua loucura não é somente individual, mas uma marca da profunda cisão que se abate na sociedade ocidental. Na constância ritualísitca, a família Honório Cota busca sempre manter vivos os seus mortos. Isso se verifica, em João Capistrano, tanto na construção do jazigo em memória do pai morto como no mausoléu erigido para a mãe, ainda viva. Há, também, sem dúvidas, as já esmiuçadas paradas do relógio tanto de João quanto de Rosalina.

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Quer dizer, tudo é símbolo, que pulula de seres que vivem cercados de memórias e imagens que, por conta do culto dos vivos, se tornam eternos. Todos são, essencialmente, servos da morte, porque, mesmo parecendo que querem afastar-se da morte acabam a ela se afinizando. Por outros termos, paradoxalmente ludibria-se a morte ao se querer estagnar o tempo e, neste parar do tempo, não se vive, pois tudo agora é o que foi.

O Sobrado

O sobrado é a metáfora fundamental para compreender a essência existencial dos protagonistas da trama, uma vez que ele é fruto anímico de Lucas Procópio e João Capistrano que convertem em sentido e força para a herdeira Rosalina. Por esse aspecto, várias podem ser a possibilidade interpretativa do sobrado. Abaixo elencamos algumas: a) A noção de que é o resultado deliberado da essência existencial de Lucas Procópio e João Capistrano; b) O fato de ter sido herdado e a consequente herança trágica de que se encharca; c) A tentativa de dar fundação a um futuro que na verdade se paralisa no passado; d) O fato de o sobrado ser Rosalina; e) A convergência entre a construção do sobrado e o fazer artístico.

Tentemos demonstrar, significativamente, todas essas potencialidades. Como já foi diversas vezes demonstrado, o sobrado foi construído por João Capistrano em honra à memória de seu pai, Lucas Procópio. Não se pode perder de vista que tal processo de construção obedeceu a algumas condições anímicas essenciais. A primeira deveu-se ao fato de ele tentar resgatar a imagem quebrada de seu pai que, se fora produzida por sua mãe, fora igualmente destroçada quando, ao tentar descobrir a verdade sobre a virtude moral de Isaltina, descobriu também, no pai, um homem irascível e violento. Ao final de Um Cavalheiro de Antigamente nota-se, após ser absolvido do crime de ter assassinado Godofredo Barbosa, o esforço empregado para

215 resgatar os tempos antigórios104 de sua memória e de sua mundividência. O sobrado é uma dessas maneiras.

Quando o mestre que o coronel Honório Cota mandou buscar de muito longe, só para modelar a sua casa, disse quem sabe não é melhor a gente trocas as vergas das janelas de baixo, a gente dá a mesma curva que o senhor que dar nas de cima (...) ele trancou a cara. Ora, já se viu, mudar, pensou. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa te de ser assim, eu quero Eu mais ele. E olhe, moço, disse ele, eu não quero um sobrado que fique assim feto uma casa em riba da outra. Eu quero uma casa só, inteira, eu ele juntos para sempre. O mestre viu aquele olho rútilo, parado, viu que o coronel não falava mais com ele mas para alguém muito longe ou para as bandas do ninguém (1991, p. 14- 15).

Bom, com isso sendo lembrado, notamos que o sobrado é a soma da potência desses dois homens que, conquanto sejam pai e filho, possuem uma natureza totalmente distinta, sendo que o primeiro, irascível e violento foi o progenitor de um homem cordato e pacífico. Essas duas naturezas, somadas, desaguaram em Rosalina, que tragicamente, estará, diurnamente, no cumprimento do dever assumido moralmente com o pai (que é de se afastar de todas as pessoas, as quais o traíram) e, noturnamente, estará sujeita as libertinagens sexuais de cunho dionisíaco do avô Lucas Procópio. O sobrado é assim o elemento privilegiado da encenação dramática, pois que revela a essência dos personagens como (e até por consquencia disso) as antinomias que daí irão surgir. Portanto, o fatalismo sobre Rosalina é radicalmente acachapante, visto que não

104 A construção do sobrado possui, em nossa interpretação, uma possibilidade teológica que se associa à construção do Templo de Salomão, e, dessa forma, o levantamento do templo seria a obra para o filho (Davi/Lucas) e não para o pai (Salomão/Lucas). De acordo com a Bíblia, Davi pretendia sair do tabernáculo em que vivia e construir uma casa para Deus. Contudo, Deus, por intermédio de Natã, disse a Davi que não quer que ele construa tal morada, por conta do muito derramamento de sangue que em guerras tinha sido produzido. Assim, Deus diz que o responsável por essa construção seria o filho de Davi, Salomão: ―Este me edificará casa, e eu confirmarei o seu trono para sempre‖ (1 Crônicas v. 12). Coube, pois, a Salomão construir o templo para Deus por ser um homem sábio e pacífico (―Bem sabes tu que Davi, meu pai, não pôde edificar uma casa ao nome do Senhor seu Deus, por causa da guerra com que o cercaram, até que o Senhor os pôs debaixo da planta dos pés. Porém agora o Senhor meu Deus me tem dado descanso de todos os lados; adversários não há, nem algum mau encontro. E eis que eu intento edificar uma casa ao nome do Senhor meu Deus, como falou o Senhor a Davi, meu pai, dizendo: Teu filho, que porei em teu lugar no teu trono, ele edificará uma casa ao eu nome‖ (1 Reis 5 v. 3-5)).

216 consegue fugir de nenhum lado de sua realidade, nem para o bem e nem para o mal e, neste ponto, sua natureza se biparte múltiplas vezes, construindo um ser plural. O sobrado, contudo, é um misto de ruínas e sombras. Curioso pensar que as ruínas são advêm de uma falta de dinheiro, pois que os negócios de Rosalina eram cuidados com zelo por Emanuel que, anualmente, vinha-lhe prestar contas. Além do mais, Roslina ainda tinha certa força de trabalho na venda das flores. Ainda que tal ação não lhe produzisse muito lucro, pois que tudo ficava a cargo de Quiquina, a dona do sobrado não lhe perguntou se as contas estavam ou não certas (Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os preços. Sabia fazer preço. Pra igreja era mais barato, nada de graça, porém (1999, p. 45)). O que se entende disso é que as ruínas do sobrado, num correlato objetivo, são as ruínas da própria Rosalina e da família Honório Cota que, num olhar mais amplo, podem ser entendidas como a queda da sociedade patriarcal brasileira105. De acordo com Eneida Maria de Souza:

O retrato da sociedade patriarcal é construído com o objetivo de apontar a decadência e o fim de uma imagem das Minas, do brilho e do ouro que, na realidade, nunca existiram. Os romances representativos desse ciclo constituem o que o próprio autor denominou de ópera para o Brasil arcaico: Ópera dos Mortos, Lucas Procópio e Um Cavalheiro de Antigamente. A genealogia da família Honório Cota, iniciada com Lucas Procópio e estancada com a loucura de Rosalina (e a morte do filho), é montada em flashback, na qual o romance Ópera dos Mortos funciona como tema-base, recomposto através de livres variações. A história dos antepassados de Rosalina é retomada nos textos posteriores – Lucas Procópio e Um Cavalheiro de Antigamente – aprofundado, à maneira da perspectiva barroca, a saga família dos Honório Cota

105 A artigo Masculinidade e decadência nas Minas de Autran Dourado, de Osmar Pereira Oliva, Angela Heloísa Benedito Buxton, Agnes Gomes Brant, Elizabeth Marli Martins Pereira, traz uma reflexão importante sobre a relação a decadência da masculinidade em Lucas Procópio, Um Cavalheiro de Antigamente e Ópera dos Mortos. Vários são as causas propostas no trabalho, entre elas a problematização da identidade masculina na luta de se preservar a tradição mineira na figura paterna (como se observa em Ópera dos Mortos e Lucas Procópio) ou na própria encenação edipiana, na tentativa de se superar a autoridade do genitor (Um Cavalheiro de Antigamente). Após transformações econômicas decorrentes da industrialização e aos as exigências democráticas, o homem parece inapto a dirigir tantas modificações no seu estar no mundo. No caso das trilogias que estão sendo estudadas, vemos, com clareza que as muheres, a despeito de menor força física possuem força moral superior aos homens. Isaltina, pr exemplo ―doma‖ Lucas Procópio e forja o caráter de João. Já Rosalina se mostra com mais potência de domínio que Juca Passarinho: ―Desesperado, nada mais podia acontecer. Queria acabar de vem com aquilo tudo. Queria partir, queria ficar. Devia antes destruir Rosalina. Ela porém era mais forte do que ele, resistia; ele esperava (1999, p. 195).

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Contaminados ainda de material mítico, traduzido nas histórias da decadência do Brasil arcaico, os livros que integram esse ciclo se destacam pela visão fragmentada e em ruína dos valores da família patriarcal. Marcada igualmente pelo drama e pelos desenlaces próprios da estética do desengano e da ilusão, a obra de Autran reúne o imaginário social das Minas com a fatalidade dramática das narrativas e tragédias universais (1996, p. 22).

O sobrado é, portanto, espaço e tempo, porque não concentra apenas locativamente os mortos que são celebrados106 pelos habitantes da casa, mas demarca também dois momentos temporais: o tempo passado, de riquezas, opulências e sacralização e o tempo presente, da solidão, da ruína e do profano. No que tange à sacralização e ao profano, observa-se que os filhos de Dona Genu eram enterrados cemitério do sobrado. Filhos legítimos de uma dinastia (ainda que fadada ao fim), eram os ―anjinhos‖ (libertos do pecado) autorizados, por direito, a serem colocados no campo mortuário da família Honório Conta, reunindo-se aos seus antepassados. Já o filho de Rosalina com Juca Passarinho, não poderia ser enterrado ali, porque era profano107. Era o símbolo da traição da memória do pai. Da mesma maneira que Lucas traia Isaltina, é como se Rosalina traísse João108.

Sua primeira reação foi jogar longe aquele embrulho nojento, se livrar daquele cheiro molhado nauseabundo e voltar correndo. Mas a imagem de Quiquina esperado-o de volta impediu-lhe o ato. Não podia prosseguir, não podia avançar além das voçorocas. Nem uma vez dó ele cuidou do que ia fazer desde o momento em que Quiquina lhe ordenou que saísse, quando ela disse cemitério, voçorocas. Não pensou em enterrar aquele embrulho no cemitério, nas voçorocas. Apenas obedecia. Afora parou. Não conseguia mais avançar nem se afastar. Não podia deixar aquele embrulho na beira da estrada. A cerca, o pasto. Jogou o embrulho e a pá por cima da cerca, saltou-a. Logo adiante, entre duas touceiras, começou a cavar apressado, o mais depressa que podia. Tinha de ser bem fundo. Por causa dos tatus, ia dizendo. Tatu fuça tudo (1999, p. 239).

O que se observa das considerações entre Rosalina e o sobrado é que estão em perfeita simetria, pois que há a personificação da casa e a coisificação da mulher. A relação entre eles dialoga, comparativamente, com o poema ―A mulher e a casa‖, de

106 Falamos em celebração dos mortos, porque são eles que dão o tom comportamental da personagem. Quer dizer, Rosalina age como se estivesse no reino dos mortos ou como se os mortos estivessem nos reinos dos vivos. 107 Neste momento, Quiquina coloca-se como a guardiã da sacralidade do sobrado, pois que ela que impõe a Juca Passarinho o enterro do filho morto longe da casa dos Honório Cota. 108 As relações de cunho edipiano parecem já tomar certo corpo, contudo, tais considerações deverão ser mais bem explicadas um pouco mais à frente.

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João Cabral de Melo Neto. A sedução de Rosalina é uma sedução de casa, interna, concreta, que puxa como voçoroca em ―recessos bons de cavas‖ e acolhe em suas ―estâncias bem revestidas‖. É por isso que, em Uma Poética do romance, Autran afirma que ―quem souber ler o sobrado entenderá Rosalina‖ (2000, p. 146).

Mas o sobrado ainda guarda uma significação profunda no que tange ao processo de construção narrativa. Vejamos, pois, como o narrador convida o leitor a perceber o sobrado. Um recuo no tempo, pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (...); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino (1999, p. 12).

Tudo é sentido. Tudo são condições sensoriais que conduzem o leitor a perceber o sobrado com o próprio corpo. O sobrado está alçado a uma condição de obra de arte que se observa. Obra – é preciso que se diga – que não se desvincula das condições vitais, pois que não é despersonalizada ou sem emoção. É arte pulsante que reifica o homem e personifica os objetos. É o sobrado com sua íntima relação com Rosalina que esconde os mistérios da vida e da produção artística e é por isso que o narrador converte-se em um narrador coral, pois somente este poderia verificar com precisão as condições metanarrativas. Ao ver a obra e a arte, ele vê a vida do personagem. Neste sentido, discute-se a importância do narrador corifeu e seus limites exegéticos diante da obra. A potencialidade interpretativa do narrador, por sua vez, esbarra nos mistérios que Rosalina esconde de todos os participantes da trama, assim como esconde de si mesma, já que a pluralidade de Rosalina não garante o discurso único. E por que Rosalina se associa ao sobrado? Porque o sobrado é a constituição da arte. Digamos de outra maneira. Se Isamel de Ópera dos Fantoches acredita que somente se convertendo em personagem ele terá a condição de ser perpetuado109, apenas quando Rosalina se converte em processo artístico ela pode ser fundamentalmente observada. Assim, quando o narrador de Ópera dos Mortos demonstra todo o processo de construção por que passa o sobrado, apontado seus traços barrocos, por exemplo, ele

109 Eneida Maria de Souza afirma que ―Ismael pensava atingir um sentido para a vida, ao ser perpetuado pela ficção‖ (1996, p. 20), é por isso que ele quer narrar sua história para João, a fim de que ele possa ficionalizar a sua história: ―E ele começa a contar a sua história, a vida sem sentido. Um homem sem destino, é o que se diz de si. Como Turnus, o único personagem sem destino na Eneida, é o que ele diz repetindo o seu professor de latim. O meu caso é pior. Em Cercado Velho, onde tudo começou, não havia clima para epopeia nenhuma. Uma cidade de merda, um povo de bosta (1994, p. 21).

219 demonstra de que maneira se constitui Rosalina, assim o sobrado, tornando-se Rosalina, passa a ser a simbologia de toda a potencialidade que dela emana.

4) A Atualidade trágica em Autran Dourado

Após termos trauteado o estudo dos elementos constituintes dos romances da trilogia autraniana, podemos estabelecer os critérios do trágico que dela espargem. Para empreender tal processo, iremos partir da análise suscitado pelo romance Ópera dos Mortos, visto ser ele a obra para a qual convergem os outros dois romances, quer dizer, sendo aquele o livro cujo tema-base é construído, é para ele que devemos olhar, se nosso interesse é estabelecer os critérios do trágico. Devemos lembrar, porém, que a leitura isolada de um desses romances não compromete os seus sentidos, visto que possuem trama relativamente autônoma. Contudo, a força narrativa só se realiza em plenitude quando as peças deste mosaico se reúnem e os romances se unificam na construção de uma obra maior. A título de comparação, podemos afirmar que há uma diferença entre a trilogia de Autran Dourado e a de Adonias Filho. No primeiro, como estamos demonstrando, os livros formam um grande macrocosmos onde todos os personagens se unificam em sentido e finalidades, já no segundo, cada romance desenvolve uma perspectiva temática trágica que, olhada no todo, demonstra uma progressão enunciativa, que conversa – como já o demonstramos – com a trilogia de Ésquilo. Por outros termos, repetimos, os romances de Autran convergem para um único bloco de sentido, que se desenvolve em campos de forças distintos, contudo não antagônicos. Tal pluralidade de força e de sentido favorece, assim, o conceito de perspectividade. Digamos isso melhor. No nível do romance, sabemos que perspectivação opera em dois níveis: o do enredo (multivisão) e do narrador (multiperspectivismo). No primeiro caso, narra-se o evento (enredo) várias vezes a partir de diferentes pontos de vista (multiperspectivismo). Esse fenômeno é, pois, muito significativo em A Barca dos Homens, em que ―há multiplicidade não só de narradores (...), de focos, visões ou pontos de vista, mas de linhas narrativas – narrativas dentro de narrativas. Uma narrativa geral (macronarrativa) que se constrói através de narrativas particulares (micronarrativas) (Uma Poética do Romance, 2000, p. 152).

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Na trilogia que ora estudamos, verificamos esse fenômeno como fundamental à ambiguidade que instiga e açula a interpretação do leitor. Por exemplo, somos colocados diante da possível relação extraconjugal entre Isaltina e o padre da cidade. Em Lucas Procópio, o marido, Lucas, ouve o que acontece e sonda para saber se tudo aquilo era verdade ou não. Para não ter a honra manchada, expulsa o padre da cidade, após espancá-lo, mas nunca admite para si e para os outros a possibilidade de suas suspeitas serem verídicas. Quando lemos o mesmo evento em Um Cavalheiro de Antigamente, tudo nos leva a crer que a relação existiu, já que é a própria Isaltina que fala sobre isso com o filho, João. Contudo, ela não o faz de maneira objetiva, apenas sugere, e o filho, que já via destroçar-se a imagem do pai, vê, agora, ruir, a imagem da mãe. Se a traição existiu ou não, fica dependente dos olhos daquele que vê. Esse tipo de ambiguidade foi muito bem explorado por Machado de Assis, em Dom Casmurro. Não nos referimos ao caso específico de Capitu poder ter traído ou não Bentinho, mas sim ao fato de Bentinho olhar para Ezequiel e ver a imagem do falecido amigo, Escobar. Notemos que os olhos de um marido que se sente traído faz com que ele veja aquilo que quer, independentemente se tal fato é ou não verdade. E, se o que há é a multiperspectivação em Autran Dourado, alguns recursos devem ser utilizados a fim de potencializar o sentido. Um deles é o narrador coral e o narrador parabático110. De acordo com Ronaldes de Melo e Souza

Como coro narrativo, Ópera dos Mortos se define como um romance polifônico. Um dos narradores corais é o narrador coletivo, que representa a voz de toda a gente que tenta penetrar no sobrado a fim de lhe decifrar o enigma. O outro, bem mais importante, permanece inominado. Na verdade, ele desempenha uma função equivalente à da parábase no drama aristofânico. (...) O narrador inominado pode ser caracterizado como narrador parabático, pois se distancia dos eventos narrados a fim de elaborar uma teoria de toda a narrativa (2010, p. 181).

Na descrição da cena em que Lucas Procópio é surpreendido por um negro que o reconhece como Pedro Chaves, há o mesmo evento narrado de forma

110 O que podemos entender de forma mais didática é que o narrador coral participa emocionalmente das considerações sobre a obra ao passo que o parabático o faz de maneira mais distanciada. Digamos melhor, por um exemplo. Em Ópera dos Mortos, o narrador coral avalia todo o processo de construção do sobrado, convidando o leitor a ―sentir‖ a residência que guarda a essência dos Honório Cota. Já o narrador parabático promove a exegese dessas essências fazendo a verdadeira interpretação de um romance. Assim, a parábase é um procedimento crítico e avaliativo do coro que, após engendrar a reflexão, volta a identificar-se com os personagens.

221 diferente em Lucas Procópio e em Um Cavalheiro de Antigamente. O narrador coral deste confere um tom exegético das condições existenciais distinto da que encontramos naquele, possuidor de uma observação onisciente do fenômeno. Observemos as duas condições.

Em Um Cavalheiro de Antigamente:

Foi no Ponto que um dia a gente viu uma coisa espantosa. Quando, ao sair do banco, o coronel Lucas Procópio se deteve para falar com alguém sobre um negócio qualquer, de repente apareceu um preto retinto gritou Pedro Chaves, e deu um tiro no ombro dele. Mesmo ferido, o coronel sacou o revólver e matou o crioulo com dois tiros. (...) Ninguém pôs reparo nisso, todo mundo viu que tinha um revide, legítima defesa (1992, p. 23).

Em Lucas Procópio:

Uma tarde, quando tudo parecia tranquilo na sua vida e todos esperavam que o velho tivesse acalmado de vez, o destino lhe armou uma peça. Aconteceu que se viu forçado a um gesto de legítima defesa, por todos presenciado. Estava numa roda de amigos, viu passar por ele um preto, não lhe parece estranho. O preto andou alguns passos, se voltou. E, sem que ninguém entendesse nada, disse Pedro Chaves! (...) Armado de uma garrucha, o preto lhe desferiu um tiro no ombro. Mesmo ferido, o coronel ainda foi mais ligeiro. Sacou do revólver e desfechou no preto dois tiros seguidos, certeiros, que o prostraram no chão, morto (2002, 188).

Em níveis de sentido, podem-se retirar duas considerações. Quando há o narrador coral, a perspectiva é coletiva, ou seja, embora se ouça o corifeu, percebe-se que a visualização e o entendimento do que há faz parte de uma análise geral, de todos da cidade. No segundo caso, diante de um narrador onisciente, a ideia percebida é de uma afirmação da realidade, quer dizer, um fato verdadeiro que se narra. E é aqui que reside a ambiguidade que potencializa os sentidos na obra de Autran Dourado. Se os romances são lidos isoladamente têm-se distintas interpretação e certeza, ao passo que quando analisados em sua integralidade o sentido agora é ampliado e o leitor, ciceroneado pelo coro é convidado a estabelecer novas verdades.

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222

Em Poética do Romance, Autran Dourado diz que

a primeira ideia [sobre a criação de Ópera dos Mortos] nasceu de uma frase que de repente brotou no meu espírito: ‗É preciso enterrar os nossos mortos‘. Verifiquei posteriormente que era uma reminiscência de Antígona, de Sófocles. Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura. Os mortos de Rosalina e os mortos de Antígona. Os mortos-vivos (2000, p. 151).

Essa afirmação de Autran Dourado se demonstra não somente na atitude de Rosalina, em seu permanente culto aos mortos, mas também na própria atitude de Juca Passarinho que, diante do vaticínio dos seus sonhos e da imprecação de Vivinha mantêm-se em direção ao abismo que o destruirá. Tudo isso, somado aos recursos formais que vimos estabelecendo ao longo deste capítulo, corporifica a trilogia da decadência mineira como essencialmente trágica. Acreditamos que para a construção de uma análise mais proficiente seja indispensável um breve estudo sobre a trilogia de Sófocles, de modo a estabelecemos com segurança os caminhos por que iremos percorrer.

4.1) A trilogia de Sófocles

Um ponto interessante que se deve ter em mente no estudo das tragédias helênicas é que seu sentido melhor se haure quando se compreende uma confluência de fatores como as lendas, as histórias, a religião e a arte; e que tal conhecimento era reunido pelos gregos no auge do século V a. C. Quer dizer, os tragediógrafos costumavam produzir suas peças a partir de mitos e histórias já em muito conhecido pelo público, de maneira que menos importante que o enredo, as tragédias propunham uma reflexão ontológica além do desenvolvimento do gosto estético, visto que a teatralização era composta por música e dança, conferindo à tragédia um espetáculo a todos os sentidos do corpo, como também ao intelecto. É claro que, quando falamos em produção de peças a partir de mitos, não queremos dizer que entre os grandes autores helênicos havia imitação de caracteres ou formas, porque eles invencionavam, além de algumas modificações no enredo, uma nova forma estética, o que lhes conferia portentosa originalidade. Assim, Electra, em Sófocles, Ésquilo e Eurípedes possui caminhos e meios diferentes para chegar ao seu

223 destino, contudo o fim mesmo se realiza: Clitemnestra e Egisto são mortos por causa do assassinato de Agamêmnon. Assim, são as histórias em comum que nos levam hoje a remontar um determinado cenário, como é o caso da maldição que ocorre na casa de Laio que, vaticinado a não ter um filho com a mulher, Jocasta, gera, ainda assim, Édipo, que seria sua destruição. Para Ésquilo e Eurípedes, contudo, a maldição de Laio decorre do fato de ele ter sequestrado e estuprado Crisipo. Por outros termos, Sófocles rompe, deliberadamente, com o enredo dos labdácias para produzir uma obra altamente original. Segundo Ordep José Trindade Serra

De forma novíssima, Sófocles concentrou no herói o mýthos de sua tragédia: desvinculou a paixão de Édipo de um ―pecado original‖ alheio e remoto; elevou a necessidade interna de seu acontecer a um horizonte ontológico onde ela se mostra absoluta, isto é, solta da rede dos liames morais tecidos, a priori, no entrelace de destinos postos em linha de consequência, intercomunicados pelo sangue. No drama sofocleano, Édipo é o foco onde germina a crise trágica e onde ela se concentra. Nem o seu passado fica já ―dado‖: recomeça numa busca... Arranca da presença inquisidora do herói, que o provoca — e nesse ato se transforma. Até sua maldição (seu futuro) nasce aí de sua boca... Deste modo, o seu drama é provocação de si mesmo, em face do abismo divino: um rompimento que o recorta no singular de uma vertigem desoladora, na máxima solidão (s/d, p. 09).

O mito de Édipo por Sófocles, ao romper com a tradição do sangue, instaura um sentido novo, pois que se afasta dos outros tragediógrafos, como Ésquilo, que mantêm o homem em permanente estado de dependência, mesmo em sua queda mais abismal. Sófocles, assim, produz uma obra essencialmente ontológica.

Pode-se mesmo dizer que Sófocles inventou o mito de Édipo... na medida em que, manipulando imagens destacadas do flutuante corpo legendário, através de um recorte decisivo cingiu-as a um núcleo de irresistível gravitação, implicou o sentido de sua trama na figura do herói, tornada mais densa, concentrada no problema da sua existência. Deu então nova autonomia a sua história, referida ao jogo de uma identificação, possessa de uma identidade que a cristalizou — e escondeu de muitos olhos atentos a dança de suas variações. Assim o poeta individualizou este mito: fez dele um indivíduo trágico, solitário, monoúmenos, terrivelmente autocentrado, à imagem de seu protagonista — do sofocleano Édipo (Idem. s/, p. 10).

No caso da maldição que recai na casa dos Honório Cota, a interpretação é um pouco mais complexa, porque reúne duas potencialidades fatalistas: o nome e o destino do sangue. Quer dizer, Rosalina, assim como João Capistrano possuem o mesmo

224 gérmen da loucura do Lucas Procópio verdadeiro, ao passo que guardam, em determinados momentos, o calor virulento de Lucas Procópio/ Pedro Chaves: João, quando tomado de raiva, acredita que somente com violência poderia pagar a traição política que sofrera; Rosalina, quando embriagada, entrega-se, noturnamente, à sexualidade desmedida com Juca Passarinho. Mas se falamos em potencialidades fatalistas devemos entender até que ponto elas se constroem, já que elas se definem com sinônimos de passividade, ou seja, uma não actância diante das forças do destino. No caso de Édipo, suas ações não são passivas e o fatalismo que se quer enxergar é um tanto quanto relativo, pois que o moto produtor de descobrimento da verdade parte do próprio herói. Suas ações constantes de achar a verdade o levam ao ápice da própria destruição, pois que se revela que matou o pai, casou-se com a mãe, teve quatro filhos com ela. Como consequência perde tudo, o reino, os olhos e a dignidade. Embora nunca se coloque culpado por ter praticado tais ações (visto serem elas produzidas por um desconhecimento), Édipo é vencido pela própria ignorância, e ela que o destrói. O caminho por que andam João Capistrano e sua filha Rosalina, neste sentido, são distintos. O que causa a destruição de João é tentar saber quem era seu pai e qual foi o crime moral de sua mãe. Promovido por uma carta anônima, seu impulso de ―saber‖ deu relevo à sua ignorância e aquele coronel que tudo tinha na vida perde tudo em consequência da verdade. A mãe, responsável por todos os mistérios, é então a esfinge que o devora, pois que ele não a consegue desvendar. Mais fraco que Isaltina, João é moldado em sua personalidade por ela, e dela não escapa, como uma voçoroca que a tudo engole. Sua força de vontade é frágil e somente a dor de se ver dilacerado é maior do que a vontade de ter tudo resolvido. Segue em frente, com medo de chegar ao final e vacila, enlouquece, perde a sua realidade e, por fim, tenta recriar um mundo que não mais existe, construindo o sobrado em memória do pai e um mausoléu, em memória da mãe. Rosalina, por sua vez, não possui a força da verdade de Édipo, pois que leva a sua vida não em frente, mas em círculos. Não quer descobrir a veracidade das coisas e quando dela se aproxima logo irrompe em devaneios ou em outras atividades saindo daquelas reflexões: Vovô Lucas Procópio. As histórias, muitas, contraditórias. Papai não dizia direito, é capaz dele não saber direito, quando vovô morreu

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ainda era menino. Era capaz dele não lembrar bem, todo mundo queria esquecer o vovô. Por quê? O retrato na sala não dizia nada. Botar uma flor pra ele. Só aquela cara, os grandes olhos, as sobrancelhas grossas, os lábios nascendo carnudos detrás da barba. As histórias contadas (...) Quiquina não conheceu Lucas Procópio. Tem vez que Quiquina fica muito tempo parada na frente do retrato, depois az escondido um nome-do-padre, volta ligeira para a cozinha. Por que aquilo? (...) Depois o silêncio cai no sobrado: tudo vazio, as horas custavam a passar, modorrentas, gatos no borralho da tristura. Os relógios parados. Menos a pêndula da copa. Duas horas (1999, p.44).

Rosalina, assim, não se tem as atitudes do pai, mas em parte vai lhes manter culto, seguindo, portanto, as características da filha de Édipo, Antígona. A seu turno, João Capistrano, seguindo os passos do filho de Laio, busca descobrir a verdade dos fatos e, ao fazer isso, tenta encontrar a sua própria identidade. Nesta busca por identidade, Édipo revela que o sofrimento é inerente à natureza humana e, por isso, Sófocles não se preocupa em revelar ou trabalhar culpas111, mas sim a compaixão. É a compaixão de Antígona pelo pai e pelos irmãos, é a compaixão de Édipo pelas filhas e é (por que não?) a compaixão (ou ao menos o respeito) de Creonte por Etéocles. O Édipo de Sófocles é um homem maior, grande por conta de suas enormes qualidades e defeitos. É Ordep Serra que comenta essa relação.

Mas o Édipo que Sófocles pintou é um homem de inegável grandeza. Tem magníficas qualidades — e defeitos também notáveis. Já muito se falou de sua autosuficiência, de sua precipitação no julgamento, da autoritária dureza com que ele destratou e sentenciou Creonte, do destempero furioso que mostrou no seu confronto com Tirésias, da teimosia que o fez ignorar advertências repetidas de Jocasta e do servo. É claro que tudo isso contribuiu para a terrível peripécia do reconhecimento que o arrasou. Porém, segundo já notaram Dodds (1983) e Knox (1971), suas virtudes contribuíram ainda mais para sua desgraça. Édipo não é apenas o violento e arrebatado príncipe que, sem maiores cautelas, sem julgamento, condena à morte o próprio cunhado (note-se, entretanto, que ele soube refrear sua fúria, por respeito pela mulher e com pena da aflição dos tebanos: a custo, mas conteve-se); é também o homem generoso, compassivo, que se aflige com a dor de seu povo, assume prontamente as suas responsabilidades para com Tebas; o homem franco, sincero, com um terrível amor à verdade: mesmo com o risco de sua segurança, de sua honra e de sua vida, procura, insistentemente, conhecê-la toda.

111 Édipo, para livrar-se da culpa que poderia sentir diante do seu destino trágico, engendra três argumentos: a) a predição que recai sobre Laio e o conseqüente fatalismo a que Édipo, então, estaria submetido; b) a inconsciência diante das suas ações, já que tanto não queria matar o pai como casar-se com a mãe; e c) alega legítima defesa diante do ataque de Laio.

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E é isso que o perde (s/p, p.17).

Nesse contexto, entre Lucas Procópio, João Capistrano e Rosalina, ela é a portentosa heroína que impera sobre os seus próprios antepassados. Seu culto aos mortos é a profunda ação de manter viva duas essências dentro da sua. Muitas vezes esse comportamento se lhe torna demasiadamente cruel, pois que não pode nunca descansar de si mesmo. Ela é como uma voçoroca (maior mesmo do que a avó) que atrai para dentro de si tanto o pai quando o avô, além de guardar os traços do verdadeiro Lucas Procópio, como também de ter um pouco de Isaltina. Com todos dentro de si, o espaço para a Rosalina essencial parece tornar-se apertado e limitado, mas a isso ela se impõe e a maneira que ela encontra de fazer isso é tornar-se múltipla. Paradoxalmente ser múltipla é também uma característica, ou seja, é uma marca do indivíduo e é isso é a sua definição, se tal paradoxo puder ser plenamente empregado.

4.2) Antígona

Antígona é uma peça que rasga definitivamente com o fatalismo. A personagem homônima, filha de Laio e Jocasta e irmã de Ismênia, Etéocles e Polinice, rebela-se contra as leis da polis, conclamando as leis divinas da deusa ctônica Justiça112 (Dikê). Toda a trama se desenrola após a morte de Édipo e de seus filhos Etéocles e Polince, que, após disputa sangrenta pelo trono, morrem simultaneamente em batalha. Como Etéocles lutava pelo Estado, Creonte, seu tio, ordena que ele se enterrado com todas as honras devidas ao passo que deixasse o corpo de Polinice jogado no chão, para que fosse comido pelas aves. Antígona, contra esse edito, tenta, com as próprias mãos,

112 Muitas poderiam ser as reflexões acerca da posição assumida por Antígona, que conclama os deuses do submundo, ou do telúrico, para se oporem aos deuses uranianos, representados na figura de Creonte. A razão versus a paixão encontram aqui portentosa força. Não é o caso de nosso estudo nos determos nesta reflexão, portanto, ficaremos apenas como uma citação do professor Junito Brandão: ―Dentro de tais princípios [estabelecidos pela diferença entre o matriarcado e o patriarcado], na sociedade matriarcal todos os homens são iguais, por isso que todos são irmãos; na patriarcal, o que se postula é a obediência à autoridade e a uma ordem hierárquica na sociedade. O matriarcado é o universalismo, o patriarcado é a limitação. A família matriarcal é aberta, porque universal; a patriarcal é fechada, porque individual. Numa predomina o caos, a natureza, a liberdade, o eros, o amor; na outra, a limitação, a hierarquia, a ordem, o logos‖ (1985, p. 27-28).

227 enterrar o corpo do irmão, mas é presa em flagrante. Não conseguindo dissuadir o tirano tio de suas intenções de livrar o irmão de vagar cem anos no rio que levava ao reino dos mortos, é sepultada viva. Diante disso, Ismênia tenta morrer em seu lugar, algo que Antígona é contra. Neste ínterim, Hêmon, seu primo e noivo, tenta socorrê-la, indo à sua sepultura, mas já era tarde demais. Antígona se suicidara. Diante daquele quadro, o filho de Creonte também se suicida, causando uma reação em cadeia, já que sua mãe, tomada de profundo horror e desgosto ceifa sua própria vida. Após esse breve resumo da trama de Antígona, já podemos estabelecer os traços de força que ela operará com a trilogia clássica de Autran Dourado, em particular com a presença de Rosalina

4.3) O culto aos mortos

A morte é uma das formas mais tradicionais de se elevar um herói à fama. Morto em batalha, o guerreiro se eterniza e seu nome é cantado indefinidamente. Aquiles, que diante de si tinha a possibilidade de uma existência longa e pacífica em troca do ostracismo, preferiu a morte jovem em favor da fama eterna. Assim, o estatuto da morte pode demonstrar um processo positivo de eternização no imaginário coletivo, já que ela se define como sinônimo de valoração. Esse culto de cunho mortuário é significativo nas obras autranianas, pois que o morto, alçado à condição superior passa a ditar as normas de conduta e as formas de pensamento daqueles que lhe dedicam encômios. No caso do culto aos mortos perpetrado tanto por Antígona e Rosalina o sentido se aproxima daquele que Ronaldes de Melo e Souza denominou de princípio teleotanático, em que o ser humano ―se nos apresenta como morte, que subsiste como sombra do que poderia ter sido e nunca foi‖ (2010, p. 163). Nesta atitude comportamental, ―o drama do rancor mudo, da dor surda e, sobretudo, da necessidade de se conformar com o horror do destino‖ (2010, p. 163) se configuram como a única maneira de estar no mundo. É claro que comparativamente, Ismênia e Rosalina seguem mais essa característica que Antígona, conquanto todos tenham que ceder à força inquebrantável do destino. É como o coro afirma a Creonte: ―Não é lícito aos mortais evitar as desgraças que o destino lhes reserva!‖ (. s/d, p. 107). Em Ópera dos Mortos, todo o texto é organizado em torno do signo e do símbolo da morte. Logo de início, o nascimento de Rosalina só é possível após João e

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Genu terem uma sequência incontável de filhos natimortos ou que viviam até os seis meses de idade. Seu nascimento, embora fruto de grande alegria para os pais, sub- repticiamente é também a morte de um desejo de João, a de ter um filho homem (não se pode esquecer de que numa sociedade patriarcal, a linhagem era definida pelo varão, o qual assegurava os domínios do nome e das posses dos seus antepassados). Mas Rosalina cresce com toda a educação e saúde, gozando de uma vida fausta materialmente e espiritualmente.

Nesse ambiente foi crescendo Rosalina, se instruía, tinha a melhor educação que se dava naqueles tempos. E encorpou, virou moça bonita, disputada, todo rapaz de olho nela e na herança do coronel (1999, p. 31).

Contudo, a grande desgraça se assola em sua casa, após o pai ter sido traído politicamente. E é aqui que o ponto de contato entre Ópera dos Mortos e Antígona ganham maior ponto de contato. A presença dos mortos Édipo, Polinice e Etéocles para Antígona e a de Lucas e João, para Rosalina, funcionam como as condições governantes das ações das personagens. De modo que são servas da morte113 contra cujas leis não podem reagir. Assim a fala de Antígona poderia ser proferida por Rosalina: ―Será um belo fim, se eu morrer, tendo cumprido esse dever (...) pois o tempo que terei que agradar aos mortos, é bem mais longo que o consagrado aos vivos‖ (s/d, p. 77). Em ambas as personagens há um enfrentamento da organização lógica (entendida como logos) da lei vigente, para impetrarem um novo status quo. Antígona, com a certeza ferrenha de que sua ação deve ser praticada, Rosalina refugiando-se no sobrado. Não se pode achar, contudo, que a atitude da filha de João seja uma covardia ou uma inação, porque seu combate em prol da memória do pai se dá no terreno do sagrado promovido por João Capistrano.

113 Em sua dissertação de mestrado, O personagem como metáfora e a arquitetura imaginante de Autran Dourado, Thaís Seabra Leite promove um estudo em que aponta uma interpretação de Tajano Vieira a qual alude uma relação erótico-sexual entre Antígona e Polinice, para então afirmar que ―na interpretação de Trajano Vieira, portanto, o drama sofocliano de Antígone não estaria relacionado apenas ao embate entre honra privada e a ordem da polis, mas consistiria na ‗incapacidade de transpor um âmbito viciado de relações afetivas‘. A heroína não conseguiria, portanto, escapar aos elos afetivos incestuosos que marcaram a tragédia da família de que adveio (2014, p. 100). Em caso semelhante, poderia figurar o comportamento de Rosalina diante de João (tal qual João parecia nutrir pela mãe Isaltina), que insepulto mantém-se, eternamente, em sua vida.

229

Neste ponto, Rosalina se aproxima também de Édipo, em Édipo em Colono. Na tragédia grega, Édipo é engolido pela terra, espaço sagrado das Eumênides, o que estabelece uma relação com o divino.

Vamos sem mais tardança. Permitam que eu Mesmo encontre o caminho da sacra tumba Que o destino reservou para mim nesta terra. Por aqui, agora por aqui. Hermes, o guia das sombra, e a deusa do mundo inferior me orientam. Luz que apagaste, iluminavas-me outrora, banhas meu corpo pela vez derradeira (v. 1544-50, 2002, p. 125)

Rosalina, em linha análoga, é engolida pelo sobrado e dele faz parte como um ser pendular vivendo entre as realidades dos seus antepassados. Contudo, ela é simbolicamente também engolida pelas voçorocas. Tendo ela, entretanto, as mesmas disposições metafóricas dessas imensas erosões geográficas, Rosalina promove a autofagia, levando-a, assim à loucura, que, pela perda das capacidades intelectivas mais sóbrias, seria um sinônimo da própria morte. Em outras palavras, tanto Rosalina quanto Édipo partilham de um fim bastante semelhante. A morte de Rosalina é uma morte que se realiza desde que nasce e a todo instante, porque para ela não há futuro algum, tudo é presente, ou melhor, tudo é passado, pois que ela vive no que poderia ter sido. Se como dissemos antes a parada dos relógios definem um tempo congelado, há vários outros momentos que são superpostos criando várias camadas que não se realizam adequadamente, pois que deveriam estar em distintas cronologias. Assim, ela vive o passado do avô e do pai, tal qual a não realização de se futuro com a morte de seu filho. Quer dizer, a ausência dos mortos se demarca essencialmente por conta de suas presenças. Última descendente da família Honório Cota, Rosalina como Antígona se vê como a derradeira responsável por manter a tradição, a honra e a responsabilidade no culto aos mortos. Não tendo com que partilhar a sua dor, a sua única solução é bipartir- se indefinidamente. É a mesma solidão que sofre Antígona quando ouve de Ismênia: ―mas, minha pobre irmã, em tais condições, em que posso eu valer, quer por palavras, quer por atos?‖ (s/d, p. 76). Na trilogia autraniana, todos carregavam seus mortos: Pedro Chaves trazia a essência existencial de Lucas Procópio; Isaltina, a imagem criada de seu pai, Cristino Sales; João Capistrano, as imagens do pai e da mãe; Rosalina e Quiquina que estavam

230 sob as forças dos Honório Cota e até mesmo Juca Passarinho, que, arraigado ao tempo, carregava o sertão, os tempos com o Major Lindolfo. Toda a obra é uma ode à morte, mas que se demonstra, em cada um de forma distinta e em maior ou em menor grau significativa. As disposições entre Ópera dos Mortos e Antígona também apresentam um outro ponto de força bastante significativo. Já comentamos que Creonte se ligava à polis tal qual Antígona ao direito natural e divino. Após a desgraça que se abate sobre a casa do tirano, ele chega à conclusão de que é o grande responsável:

Ai de mim! De tanta infelicidade, eu bem seu que sou o autor, nem poderiam elas nunca ser atribuídas a outro. Fui eu, eu somente, eu, este miserável, que os matei... Servos... levai-me depressa... levai-me para longe... eu não vivo mais!... eu estou esmagado! (s/d, p. 107).

Em Ópera dos Mortos, a população, representada pelo coro, adquire contornos semelhantes de arrependimentos, diante do que fizeram com o coronel João Capistrano Honório Cota. Com o coronel João Capistrano:

O coração miúdo, a gente fazia força pra esquecer, pra não ver as faces chupadas, os olhos encovados do coronel. A gente praticava assuntos amenos. Mas era impossível não ver. Deus não permitia que se esquecesse aquele luto a encher de sombra as ruas da cidade (1999, p. 40).

Com Rosalina:

Quando Rosalina chegou no último degrau da escada, parou, disse qualquer coisa baixinho no ouvido de Emanuel, ninguém ouviu, apenas um mover brando de lábios. (...) A gente instintivamente se afastava, ia abrindo caminho para ele. Ela nos olhava, abaixava ligeiramente a cabeça, feito agradecendo tímida os nossos cumprimentos, que mal dávamos, calados, medrosos. Mas não eram para nós aqueles gestos, aquele olhar, no fundo do coração se sabia. (...) Emanuel abriu a porta do carro para ela entrar. Ele lhe dava a mão, ajudava-a. Vimos que ele fez uma reverência para ela, como um vassalo cumprimenta uma rainha. (...) O carro partiu barulhento, deixando atrás de si uma nuvem de poeira. Lá se ia Rosalina para longes terras. Lá se ia Rosalina, nosso espinho, nossa dor (1999, p. 247-248).

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** Outra força de grande arrebatamento sobre os personagens é a Moira. Mas agora ela não é apenas uma força fatalista de imposição de realidade, mas uma potência extremamente rigorosa sobre a qual luta o herói, ainda que o resultado desse embate seja o seu próprio fim. Neste ponto a atitude de combate se casa às ideias de Schiller que demonstra que para a existência do sublime é necessário o sofrimento físico e a resistência moral a este mesmo sofrimento. Quer dizer, aqui se impõe uma vontade do ser humano sobre a dor e o dilaceramento. Tal Moira é o destino que se profere pela voz dos oráculos, que tanto orientam quanto dirigem os personagens. Em Um Cavalheiro de Antigamente, pode-se dizer que Godofredo Barbosa, o responsável pela carta a João Capistrano, funciona como um oráculo demoníaco, já que detentor do saber completo opera a destruição existencial do personagem. Ópera dos Mortos, o oráculo se traveste de diversas formas e vem a partir da figura de Juca Passarinho, já que seus sonhos, a visão do redemoinho e das voçorocas aliados à lembrança do que fora dito por Vivinha, no mito do pai, sem saber, desonra a filha dão o tom de tragicidade no romance. Juca Passarinho, conquanto presencie esses vaticínios, com seu olho cego, não consegue racionalizar o que acontece com ele, quando já totalmente arrastado para dentro das condições elegiáticas do sobrado. Juca guarda a ideia da vida como sinônimo de fatalismo: A gente estando em paz com Deus, tudo vai bem. Não adianta fugir. Deus é forte. O que for, soará. É fugindo do buraco que a gente cai nele (1999, p. 81). Mas se Juca traz as referências do destino, Quiquina é a mão que o tece. É ela que, dramatizando os eventos na trama, comanda as ações e promove os acontecimentos como acha que deve fazer. Como uma outra consciência de Rosalina, ou mesmo a consciência de João Capistrano, ela, Quiquina, mantém firme a vigilância sobre a casa, impedindo que outras pessoas ali entrassem. Além do mais é ela quem impede que Rosalina fraqueje no eterno luto em que estava cerrada, para tanto se vale das mais variadas técnicas, como repreender Rosalina com os olhos, ir à cidade vender as flores feitas no sobrado... Suas ações são sempre pensando no bem de Rosalina, a despeito de fazer, verdadeiramente, o bem ou não. Um dos pontos trágicos mais instigantes do livro ocorre Rosalina está dando à luz a um menino, filho dela com Juca Passarinho. Quiquina, competente e respeitada parteira da cidade, está ajudando-a. Contudo, depois de longo tempo de trabalho de

232 parto, ela avisa, com os olhos, a Juca que o menino114 nascera morto e que era para ser enterrado longe do casarão. A grande ambiguidade, aqui, fica por conta dessa sua tão apregoada competência em partos, mas ter agora o menino morto em mãos. Além do mais, pelo monólogo narrado, somos convidados a observar o pensamento da mulher que via naquele menino uma possibilidade de desvirtuar Rosalina do luto eterno em que se encontrava. Era só deixar ele sufocado, ele nascendo sufocado. Não nascendo sufocado, tinha de fazer outra coisa. Não sabia como ia se arranjar, tinha medo. Não de Rosalina, ela não vai nem perceber. Era só falar assim com as mãos: ele nasceu morto. Rosalina será que chorava? Não, ela devia saber o que aquilo ia ser na sua vida. Até um bem pra ela. De novo o medo. Não de Rosalina. De alguém escondido no ar, ali no quarto. Dentro dela. Uma voz, um olho. Um crime, disse o promotor (1999, p. 227).

Essa sua ação promove o fim trágico da obra, pois que isso causará não somente a fuga de Juca Passarinho do sobrado e da cidade, mas o próprio enlouquecimento de Rosalina. Parando o último relógio, Quiquina conota a morte de Rosalina, que, levada ao hospício, por Emanuel, continua a cultuar os seus mortos. Assim, tanto Antígona quanto Rosalina deixam insepultos os seus amores, restando apenas a liberdade ou penalidade da morte.

114 O fato de ser um menino torna tudo mais trágico. Primeiro porque traduz a derradeira queda do patriarcalismo, segundo porque elimina a possibilidade de continuidade do nome dos Honório Cota. O fim, agora, é acachapante e imutável.

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Conclusão

O término de nosso trabalho é mais uma imposição de fim do que um esgotamento do tema, uma vez que muitas das considerações aqui levantadas suscitaram a reflexão de outras importantes frentes de estudo. Assim, o nosso ponto final visa, na verdade, a uma delimitação espacial, esperando que as interpretações engendradas possam contribuir para exegeses futuras. Toda nossa proposta de trabalho é fruto do desejo interno de fazer (re)emergir os nomes de Autran Dourado e Adonias Filho nos cursos de letras e, posteriormente, nas escolas e no público. Autores de grande destreza no que tange à arte literária, a realidade circundante parece que não lhes deposita a devida importância. Ao longo de nosso estudo, portanto, buscamos revelar todo o intrincado processo criativo que tanto o mineiro quanto o baiano costuram nas letras brasileiras, indo – nós e eles – buscar na cultura grega o sentido do trágico, que, ao se consubstanciar com o estilo individual de cada um será possível produzir uma forma inédita e significativa (pelo fenômeno da absorção e inovação) a fim de impor uma arte genuinamente original. Não só original – deve-se acrescentar – mas uma arte em que as condições epistemológicas da literatura serão o caminho e o meio por onde as potências ontológicas do ser humano em geral encontrarão espaço para se exporem. Neste lugar de emersão de caracteres, a vida será o motivo do canto, ainda que se apresente pelo signo do nêmesis: a morte. Por outros termos, é a morte, a paralisação do tempo e o fatalismo, elementos que pululam na obra ora de um ora de outro autor aqui estudado, mas que demonstrarão a potência vital na superação da morte ou o comportamento que deveria ser seguido para se suplantar a dor. Assim, diante da composição de tantos traços estruturais que serão derradeiros na construção da qualidade artística, Adonias Filho e Autran Dourado compõem uma literatura forjada no símbolo do rigor e do vigor de forma e conteúdo, valendo-se para isso da ressignificação dos elementos da tradição. Em seus textos, o enredo não funciona como um elemento de maior destaque, mas dele não se prescinde, de maneira que se mantém o valor climático da história sem por isso desconsiderar o valor epistemológico do saber literário. Açulando sempre a atenção do leitor, as obras vão se desdobrando num desenrolar episódico e narrativo, que escondem, deliberadamente, os constructos do conhecimento helênico, com o

234 objetivo de soerguer uma forma inédita, uma vez que os autores não perseguem a forma clássica da tragédia, mas seu sentido. O que existe, então, nesses romances, é a escolha do trágico, pois somente ele, com suas pulsões dramáticas, poderia, a partir da hýbris e da catarse, se debruçar com profundidade na essência e na consciência anímica do homem, revelando sua natureza dual, apolínea e dionisíaca, que se digladiam constantemente sem nunca construir uma síntese perfeita. Em outras palavras, a dialética da natureza humana nunca se realiza em síntese, pois, se assim o fosse, a dialética não se consubstanciaria em forma autêntica, uma vez que se buscaria sempre um equilíbrio, que para o homem real se realiza quase como uma utopia. A trilogia trágica de Adonias Filho e a de Autran Dourado constroem, assim, um sentido novo de identificação da realidade anímica, a partir da revalidação dos elementos do trágico. E é esse procedimento arquitetônico-conteudístico que lhes expõe a portentosa arte literária.

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