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20º Congresso Brasileiro de Sociologia (2021) 12-17 de julho de 2021 UFPA – Belém, PA Comitê de pesquisa nº 20 - Pensamento Social

À sombra de Gilberto Freyre? Alguns sentidos da mestiçagem e da “civilização brasileira” em movimentos culturais brasileiros

Rafael Marino Doutorando e Mestre em Ciência Política Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo Técnico de programação cultural - SESC SP (Belenzinho)

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I – Introdução1. Propomos, neste trabalho ainda em andamento, que Gilberto Freyre, a partir de lances argumentativos inovadores sobre a relação entre raças e identidade no Brasil, logrou forjar uma espécie de langue freyriana que estruturaria uma visão positiva sobre o Brasil como uma civilização tropical mestiça original2. Propomos que essa langue e visão sobre o Brasil são sistematicamente revisitadas por movimentos intelectuais e culturais - inclusive os assim chamados “de esquerda” e libertários, feito a antropofagia, tropicalismo e até mesmo segmentos dos estudos pós-coloniais brasileiros. Propomos, ainda, que há, nestes movimentos (principalmente nos dois primeiros), continuidades com essa langue freyriana, dado que os atos de fala e argumentos, apesar de certas restrições e diferenças, concordam com o sentido mais geral do diagnóstico freyriano sobre a originalidade mestiça do Brasil. Ressaltamos que, apesar de inspirados em termos e em certa procedimentação pocockiana (Cf. POCOCK, 2003; 2006), acreditamos que esta forma de compreensão, mais do que uma camisa de força metodológica que deve ser seguida à risca, oferece instrumentos criativos de leitura e interpretações de discursos e textos. Desta forma, o seu uso aqui será despido de intenções “ortodoxas”. Cabe dizer, ainda, que com isto não queremos dizer que os atores aqui analisados, Oswald de Andrade, e alguns críticos pós-coloniais, são estruturados totalmente a partir do discurso freyriano, mas sim que este é importante em seus esquemas intelectuais e políticos. Até porque, textos são conformados por diversas linguagens e autores frequentam vários discursos. Gostaríamos de frisar, ainda, que o nosso argumento não visa mostrar que os intelectuais e artistas acima referidos são conservadores como Freyre. Na verdade, a nossa intenção é mostrar que esses atores revisitam o ideário freyriano e a forma como fazem isso. Deste modo, mesmo com projetos políticos diferentes, pode-se notar uma confluência e continuidade entre discursos e formas de pensar.

1 O trabalho em questão está em andamento. 2 Sabemos que não é com Freyre que a ideia de uma nação providencialmente original, pela sua mestiçagem, fora urdida. Isso deveria ser buscando antes, mais especificamente nos anos posteriores à Independência de 1822, e teria se dado a partir do mito e da metáfora das três raças (branca, indígena e negra) de Von Martius (1956 [1844]), as quais, feito três rios, fundariam a específica nacionalidade brasileira. Neste período, porém, a visão sobre a mestiçagem e os destinos do Brasil eram bastante negativas (Cf. SCHWARCZ, 1995; 1997). Algo que fica bastante claro em textos de Gustav Aimard, Nina Rodrigues, Louis Agassiz, Arthur Gabineau etc. É interessante lembrar que, numa visada latino- americana, outro autor (antes de Freyre), já havia apontado a mestiçagem como uma saída civilizacional positiva para a América Latina: José Vasconcelos (1993). 3

Apesar de uma aproximação aparentemente difícil, é possível sugerir, com Ricupero (2013, p. 538), que haveria uma verdadeira linhagem de autores latino- americanos, feito José Vasconcellos, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Silviano Santiago, que valorizaram a mestiçagem como constitutiva de uma sociedade particularmente diversa no Brasil e na própria América Latina. Algo que, em chave distinta, também é observado por Danilo Martuccelli (2021, p.22), para quem o elogio da mestiçagem e da hibridização seria comum no pensamento latino-americano e daria vazão a uma obsessão - tanto por autores mais conservadores, quanto por alguns críticos pós-coloniais - de buscar as raízes e práticas políticas e societárias autenticas dos latino-americanos, as quais teriam sido destruídas (parcial ou completamente) ou encobertas pela “ocidentalização”.

II - O lance freyriano: civilização mestiça. Afirmamos que o pensamento de Gilberto Freyre trouxe novos tensionamentos e lances para o debate racial brasileiro (Cf. ARAÚJO, 1994). Se, em sua juventude, Freyre vinculava-se às teses do assim chamado racismo científico (PALLARES- BURKE, 2005) e ao pessimismo em torno da mestiçagem nacional, na sua trajetória posterior e, especialmente em sua obra Casa-grande & Senzala, haveria elementos para se falar numa outra via no debate a respeito de raça e mestiçagem no Brasil. O sociólogo pernambucana se afastava, assim, tanto de poligenistas, quanto de monogenistas. Dos primeiros, se diferenciava por celebrar a mestiçagem como uma via positiva de construção nacional; quanto aos últimos, divergia por não projetar o branqueamento da população brasileira (Cf. SCHWARCZ, 2005; POLIAKOV, 1974 e STOCKING, 1968). Isso se daria, segundo afirma Araújo (1994), pelos elementos que exporemos a seguir. Em primeiro lugar, distinguindo, em certo grau, raça e cultura, Freyre valorizou, de forma hierarquizada, as contribuições do “português”, “do negro” e “do índio” – esse de forma muito mais apagada, sendo visto como “atrasado” (FREYRE, 2013, p. 177). Deste modo, o sociólogo pernambucano, neste elogio da mestiçagem, pôde ir além das teorias raciais deterministas que imperavam no Brasil e conseguiu vislumbrar a construção de outra identidade nacional, na qual a “obsessão com o progresso e com a razão, com a integração do país na marcha da civilização, fosse até certo ponto substituída por uma interpretação que desse alguma atenção à híbrida e singular 4

articulação3 de tradições que aqui se verificou” (ARAÚJO, 1994, p. 30)4. Até porque, a sua maior inquietação no Brasil era o problema da miscigenação (FREYRE, 2013, p 31). Assim, Freyre poderia dar ao país outra interpretação para além de atrasado e inacabado, condenado a se realizar no futuro, ensejando a criação a de uma identidade coletiva para os diversos grupos que compõe a nação. Em suas palavras: “de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e de qualidades de permanência” (Ibid., p, 73). Em segundo lugar, Freyre não teria abandonado a categoria de raça - ainda que tenha dito ter aprendido a ver as diferenças entre raça e cultura com Franz Boas (2010) -, mas sim lançado mão de outra, neolamarckista (ARAÚJO, 1994, p. 39). A qual pressupõe a capacidade ilimitada de adaptação dos homens ao ambiente que estão. Destarte, a noção de meio ambiente seria essencial para compatibilizar termos como cultura e raça, sendo que esta última deveria ser lida como semelhante às características adquiridas pelo homem em seu exercício de adaptação constante. Em suma, essa ideia de raça garantiria a perenidade e estabilidade de elementos culturais. Porém, pelo seu conteúdo e compromisso biológico, o projeto freyriano se afasta do ideário de Boas. Seja como for, essa nova civilização moderna nos trópicos teria sido formada a partir do chamado equilíbrio de antagonismos (FREYRE, 2013, p. 116). Assim, à diferença dos anglo-americanos que teriam o seu país dividido entre duas partes inimigas, a branca e a negra, o Brasil seria caracterizado por “duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas”, de sorte que a nação unificada brasileira não seria estrutura pelo sacrifício de um elemento pelo outro (Ibid., p. 418). Na perspectiva do intelectual pernambucano, as relações entre a raça branca no país com as outras, principalmente a negra, teriam se dado pela monocultura latifundiária e pelo que designou como “falta” de mulheres brancas na colônia. O primeiro elemento traria distinções aristocratizantes entre senhores e escravos, o segundo, por sua vez, criaria zonas de

3 À diferença de Araújo (1994), acreditamos que, no pensamento de Freyre, a mestiçagem não pode ser vista como uma mistura com ares democráticos, até porque a sua ideia de mestiçagem era conformada desde uma hierarquização em que o elemento luso era imperante. 4 Sabe-se que Silvio Romero também apontava a originalidade brasileira a partir da mestiçagem. Contudo encarava-a como um fato que não deveria ser discutido como positivo ou negativo e argumentava que, com o tempo, elementos brancos - por esta ser, supostamente, a raça mais numerosa do Brasil - viriam a predominar na constituição brasileira (ROMERO, [s./d.], p. 28). Em Freyre, a argumentação sobre a mestiçagem teria tonalidades mais vibrantes e de esperança concreta na realização, confirmada para ele, de uma civilização tropical particular e “elevada”. 5

confraternização entre vencidos e vencedores (Ibid., 2013, p. 33). Deste modo, não é de se estranhar que o lócus máximo de realização desta nova nação tropical seja a família patriarcal, instalada na Casa-grande dos latifúndios. E Freyre vai ainda mais longe. Comparando a colonização portuguesa no Brasil às colonizações levadas a cabo por outras nações europeias, o intelectual pernambucano argumenta que aquela foi superior e logrou conformar uma nova nação diversa da metropolitana. Uma das razões disso seria o fato de nossa unidade colonial ser a família patriarcal e não o indivíduo, feito ingleses na América do Norte; o Estado, como entre os espanhóis, e as companhias de comércio, conforme fora comum entre holandeses (Ibid., p. 81). Note-se, aqui, que o argumento de Freyre contou com um processo duplo de idealização e obliteração. Freyre exclui quase que completamente a presença do trabalho escravo fora do âmbito doméstico e as relações econômicas de venda e compra de escravizados, amainando o papel central do comércio e do trabalho de escravizados na Colônia (Cf. PRADO JR., 2011)5. Ademais, até no que conhecia como âmbito doméstico, o sociólogo pernambucano docilizava as relações de opressão sexista e racista de senhores e sinhás em relação aos escravizados, pintando-as como relações ternas, de afetividade e até de aprendizado culinário (Cf. GONZÁLES, 1984). Trocando em miúdos: o patriarcalismo e a família patriarcal foram o solo fértil sobre o qual a mestiçagem fora levada a cabo e, em paralelo, a formação de uma nova nação, díspar do centro metropolitano, se deu. A partir deste enquadramento, a Casa-grande seria vista como um monumento que sintetizava a adaptação lusa em terras brasileiras. Não obstante, o edifício civilizacional de Freyre entrou num processo de constante decadência nas décadas finais do século XVIII. Metais preciosos foram descobertos mais ao sul do Brasil, a urbanização acelerou-se, a vinda da família real fora adiantada e um processo de acentuada centralização estatal foi deflagrado - em decorrência da exploração mineral e da instalação da corte na colônia (Cf. FREYRE, 2006, p. 104-134). A primazia havia passado do patriciado rústico das casas-grandes da zona da mata pernambucana para a burguesia dos sobrados de Recife. À medida que senzalas diminuíam seu tamanho, as aldeias de mucambos e palhoças, próximas aos sobrados, foram ampliando-se (Ibid., p. 270). O Sul cafeicultor e burguês

5 Note-se que, Prado Jr. (2011, p. ) aceita, em alguma medida, a transfiguração freyriana da violência do chamado trabalho doméstico em intimidade. 6

sobrepujou o Norte açucareiro; o individualismo, encarnado no bacharel e no mulato (Ibid., p. 711), amiúde, pilhava o patriarcalismo. Deste modo, o novo antagonismo é entre sobrados e mucambos e não mais entre casa-grande e senzala. Ainda no campo das transformações, o antagonismo ganha força diante do equilíbrio: a cidade prevalece sobre o campo, a rua diante da casa, o Estado em relação à casa, a máquina frente ao homem. E peças-chaves do antigo equilíbrio de antagonismos são alteradas: “os extremos – senhor e escravo – que outrora formavam uma só estrutura econômica ou social, completando-se em algumas de suas necessidades e em vários de seus interesses, tornaram-se metades antagônicas ou, pelo menos, indiferentes ao destino da outra” (FREYRE, 2006, p. 271). Ou, em formulação ainda mais passadista: “A casa-grande, completada pela senzala, representou, entre nós, verdadeira maravilha de acomodação que o antagonismo entre o sobrado e o mucambo veio quebrar ou perturbar” (Ibid., p. 711). E ainda: “desfeito em 88 o patriarcalismo que até então amparou os escravos, alimentou-os com certa largueza, socorreu-os na velhice e na doença, proporcionou- lhes aos filhos oportunidades de acesso social” (FREYRE, 2013, p. 51), todos, principalmente os mais pobres e favorecidos, estavam deixados a sorte do utilitarismo capitalista, na visão conservadora do sociólogo de Apipucos. Perante o exposto, é notável que a visão de Freyre sobre a decadência da família patriarcal era fortemente negativa. A ponto de dizer que, com dissolução deste equilíbrio de antagonismos e com a derrocado do patriarcalismo, o Brasil estaria deixando de lado a sua originalidade civilizacional e cultural. Diagnóstico que faz com que os termos europeização e re-europeização do Brasil passem a ser comuns durante o livro Sobrados e Mucambos, no qual, em diversas passagens, Freyre aponta que esse processo de re-europeização da vida, da cultura e da paisagem no Brasil era anti-lusitano (FREYRE, 2006, p. 254), marcado por um ímpeto de reconquista na economia e nos costumes (Ibid., p. 508) e instaurador de uma ordem estética e moral empalidecida, na qual elementos africanos, asiáticos e indígenas complexos eram trocados pelo cinza e preto comedidos dos europeus (Ibid., 432-433) (Cf. BASTOS, 2003). O apelo passadista, embora seja característico do pensamento freyriano, não era só seu, mas ganha nele uma nota específica e generalizante. O desaparecimento da escravidão, segundo nota Schwarz (1997, p. 136), eivou o coração de personagens da inteligência nacional de um vazio sentimental. Até mesmo antigos adversários da 7

escravidão foram acometidos por lembranças dotadas de significação e sentido provenientes da “escravidão doméstica” contrários ao “instinto mercenário de nossa época”. Tais palavras são de que no livro Minha formação diz recordar da escravidão um “julgo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela” (NABUCO, 2015, p. 170). Além do privilégio senhorial de que Nabuco participava, ou justamente filtrado e alicerçado neste, o trecho deixa entrever uma espécie de “sentimento de desagregação que acompanhava a universalização das relações mercantis [...] em que desembocava a Abolição e que formava o avesso inglório da Liberdade que alvorecia” (SCHWARZ, 1997, p. 136). Mesmo assim, cabe uma diferença importante entre as idealizações nacionais de Freyre e Nabuco. Seguindo ainda sua memorialística, Nabuco (2017, p. 136-137) não deixa de enfatizar o receio “que essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivesse feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do mundo”. O receio e o recorte de Nabuco são esquecidos uma geração depois, dado que “Freyre transforma essa ‘espécie de tribo patriarcal isolada do mundo’ em tribo transoceânica, valida não só para o Brasil inteiro, como também para o império lusitano” (ALECASTRO, 1987, p. 21). Assim, é possível afirmar que o conservadorismo difícil e particular de Freyre, em sua defesa da ordem patriarcal, dos senhores rurais e de uma avaliação positiva do passado escravocrata, se aproxima de Araripe Júnior e José de Alencar (Cf.RICUPERO, 2010). Em termos comparativos, Oliveira Viana e Gilberto Freyre teriam sim proximidades, como o destaque ao peso do latifúndio autossuficiente e do patriarcalismo na formação nacional, bem como a adaptação, via unidades rurais autocentradas, dos colonos no Brasil. Ambos também enxergam o século XIX como um período de decisivas transformações na sociedade brasileira. Todavia, divergem quanto ao Estado e quanto às questões raciais. Enquanto Viana preconizava a ação racional de um Estado centralizado na organização da sociedade civil brasileira, via a mestiçagem como um mal social - na esteira de Nina Rodrigues e Sílvio Romero -, e propugnava um arianismo racista; Freyre, por sua vez, defendia as realizações da família patriarcal contra um Estado centralizador e positivava a mestiçagem como fator essencial para a construção da original civilização brasileira. Deste modo, Freyre se 8

manteria mais fiel ao pensamento conservador clássico, em sua defesa de um passado no qual o poder era disperso, e Viana, por seu turno, conseguiu fazer o conservadorismo fincar raízes no Brasil, rendendo-lhe uma sistematicidade e uma continuidade não vista no sociólogo de Apipucos e em seu legado (Cf. RICUPERO, 2010). Sem negar a comparação de Ricupero, parece-nos, porém, que o diagnóstico freyriano sobre a mestiçagem no Brasil teve uma sobrevida e uma continuidade também relativamente sistemática, a despeito de dificuldade de Freyre em levar até as últimas consequências a defesa da continuidade da escravidão. Desta forma, pode- se ver em Freyre uma espécie de conservadorismo culturalista que se opõe ao conservadorismo estatista reformista (LYNCH; PAGANELLI, 2017) – que é a linha ideológica mais comumente tratada entre estudiosos do pensamento conservador (BRANDÃO, 2005; LAMOUNIER, 2006; SANTOS, 1978). Além disso, Freyre, em sua defesa da hibridização e do equilíbrio de antagonismos, se diferencia, a despeito da visão positiva de ambos sobre o patriarcalismo e ao período da colonização, do conservadorismo ultramontanista de um Frei Vital de Oliveira, cuja ortodoxia católica não combinaria com o elogio freyriano ao catolicismo acomodatício colonial (GAHYVA, 2021). Continuando nossa exposição, é preciso ter em vista que as teses conservadoras do Freyre tiveram carreira política e sociológica importante dentro e fora do Brasil. Dentro do Brasil, como apontam Bastos (2006), Castro Gomes (2013) e Schwarcz (1995), apesar da oposição que Freyre fez a Getúlio Vargas e ao , as teses do intelectual pernambucano foram decisivas para a construção de uma ideia unificada de povo brasileiro e uma síntese da nacionalidade – que também fora utilizada como ideologia de Estado durante a Ditadura Militar (GUIMARÃES, 2012, p.66). Deste modo, o empreendimento estado-novista torna-se, também, um momento essencial para se entender a confecção do mito da democracia racial brasileira – que não é um termo cunhado por Freyre e pouco utilizado por ele –, em que o pensamento de autores como Euclides da Cunha, Oliveira Viana e Gilberto Freyre foram chamados à baila, cabendo ao último, no entanto, primazia nessa construção política e ideológica. Ressaltamos, novamente, que Freyre não era apoiador do Estado Novo, fazendo-lhe, na verdade, oposição. Até porque, como dito, o sociólogo pernambucano via com olhos desconfiados a ação centralizada de um Estado fortificado que sobrepujaria o poder dos latifúndios locais. Isso, contudo, não 9

impediu que suas ideias estruturassem um ideário sobre o conteúdo da civilização mestiça brasileira. Aliás, figura destacada para compatibilização entre o ideário freyriano e a confecção de um estado centralizador e autoritário fora Almir de Andrade (1940), editor da revista Cultura Política (publicação oficial do Departamento de Imprensa e Propagando do Estado Novo), que forjou, extremamente influenciado po Freyre, as noções de um estado e um governo plásticos, a partir dos quais seria possível conciliar um Estado centralizador e os fluxos culturais do povo, sem que isto “descambasse” para uma desagregação regionalista (DIAS, 2019). De qualquer maneira, o Estado Novo passou a caracterizar o povo brasileiro como uma raça de mestiços, sendo que a estes eram atribuídos conteúdos morais positivos. A mestiçagem como identidade nacional passou, também enquanto política de Estado, a ser assoviada e cantada em vários sambas (Francisco Alves, e Nilton Santos) e poesias (Manuel Bandeira) e algumas práticas culturais e culinárias passaram a ser consagradas como símbolos da nacionalidade – ao mesmo tempo em que eram “desafricanizadas” –, feito a feijoda, capoeira, samba e a malandragem. Itens que, juntamente como Zé Carioca, o futebol despojado e os romances recheados de “brasilidade” de , tornaram-se, da mesma forma, imagens exportáveis da nacionalidade (CF. SCHWARCZ, 1995, s/p.). Assim, não se tratava mais, propriamente, de uma ideologia do branqueamento e nem de uma hierarquização explicita entre raças piores e melhores, e sim a operação de identificação da ideia de mestiçagem com a noção de democracia racial. Isto é, a mestiçagem moral e étnica teria um caráter integrativo no qual qualquer um dos elementos nele presentes seriam absorvidos numa totalidade sem conflitos, de sorte que a mestiçagem “diluía não só a ‘diversidade’ como também a ‘desigualdade’ entre índios, negros e brancos, gerando uma ‘área de igualdade’ que se traduzia, magnificamente, por uma categoria político-cultural” (CASTRO GOMES, 2013, p. 193). A construção dessa ideia de igualdade marcava uma distinção entre aquela igualdade vivenciada por nações europeias, o que, em fim de contas, desembocaria num tipo diferente de democracia – diverso do modelo europeu. Assim, a incursão nos fundamentos da suposta democracia racial brasileira era uma forma mesmo de afirmação das especificidades da democracia no Brasil, que não era política e sim social. Ou seja, como a sociedade brasileira tinha, em seus interstícios, um conteúdo democrático intrínseco, não seria necessário e, na verdade, se constituiria com um fato prejudicial ao andamento da nação dar ouvidos às ideias liberais e republicanas 10

europeias e às ideias de cidadania e democracia política delas caudatárias. Com essa democracia social e racial genuína, seria dispensável uma democracia política no país. Essa construção mestiça e de uma democracia racial perdura no tempo e vai influenciar inúmeros autores, até mesmo do que poderia ser designado por campo progressista, como é o caso de (2015). De acordo com Munanga (1999), o sociólogo mineiro, apesar de criticar passagens de Freyre e ter uma visão mais positiva a respeito dos indígenas, pontua que o racismo brasileiro, ao não ter instituído uma linha nítida de cor e permitir a assimilação de mestiços mais claros, por vezes, na categoria de brancos - nas palavras de Nogueira (2006), pelo preconceito ser de marca e não de origem, no Brasil -, poderia ser melhor que o estadunidense e o do apartheid sul-africano, pois mais aberto. Ademais, seria um dos elementos que possibilitariam a criação de um povo novo, o povo brasileiro, cuja etnia nacional seria diferente de suas matrizes fundadoras. Posições que, tendo origem no pensamento de Freyre, ao fim e ao cabo, alimentariam tanto a ideia de que falar em raça e negritude no Brasil seria algo antinacional, colonialista e estrangeiro (GUIMARÃES, 2012, p. 60), ao imitar o que chamam de modelo americano de racialização (Cf. RISÉRIO, 2007; BENJAMIN, 2002; VELOSO, 2005, p. 30), quanto a noção de que o enfrentamento das desigualdades raciais brasileiras deveriam ser feitas a partir de uma “disposição para ‘esquecer o passado’ e ‘deixar que as coisas se resolvam por si mesmas’” (FERNANDES, 1972, p. 25) e que políticas gerais de minoração da desigualdade já resolveriam o assunto. É preciso, aqui, até num esforço de especificação dos efeitos e continuidades do pensamento de Freyre, que se leve em conta algumas críticas feitas à democracia social ou racial e à mestiçagem. Abdias do Nascimento (2016) argumentará que o processo de miscigenação, em última instância, levaria a uma forma de apagamento do negro na sociedade brasileira. Munanga (1999), em perspectiva aproximada, além de criticar esse imaginário da miscigenação como uma forma de inibir a expressão política, social e cultural de negros e negras no Brasil, pontua que os que falam em identidade mestiça acabam por obliterar os problemas brasileiros. Segundo o antropólogo, sem dúvida, não se pode falar em pureza racial, em nenhuma perspectiva, mas confundir o fato da “mestiçagem biológica” e o fato transcultural dos povos envolvidos na miscigenação com “o processo de identificação e de identidade cuja essência é fundamentalmente político-ideológica” (MUNANGA, 1999, p. 108) 11

seria cometer um apagamento das relações de poder e das discriminações. Florestan Fernandes (2008), em meio ao chamado “projeto UNESCO”, conjugando a temática da modernização e das relações raciais no país, questionou profundamente a tese da democracia racial ao apontar a violência, e não a igualdade e celebração, dos brancos em relação aos negros no Brasil e expor, diversamente de Donald Pierson e Thales de Azevedo, que o preconceito racial tinha dinâmica autônoma – mesmo que, por vezes, podendo se ligar e potencializar – as desigualdades sociais e de classe. No plano externo, por sua vez, as ideias de Freyre serviram de pilares do luso- tropicalismo (Cf. MEUCCI, 2010), desde o qual o regime de Portugal tentava justificar ideologicamente o seu imperialismo, com uma nação portuguesa que iria do Minho ao Timor (PINTO, 2009). E não só. O sociólogo pernambucano tentaria generalizar o suposto sucesso da miscigenação ocorrida no Brasil como um modelo que poderia ser aplicado por Portugal em todos os seus domínios (Cf. CASTELO, 1998). As obras que mais se destacam nesse universo da ideia de luso-tropicalidade, entre os trabalhos de Freyre, são justamente O mundo que o português criou (2010b), de 1940, e Aventura e rotina (2010a), de 1953.

III – Antropofagia, mestiçagem e a Luisiana católica. Agora, pretendemos mostrar como essa ideia da mestiçagem se apresenta em Oswald de Andrade. Ricupero (2018) já havia pontuado que, em vários momentos, as ideias e definições sobre antropofagia não iriam muito além da síntese por meio da mestiçagem. Algo que pode ser visto em passagens sobre a antropofagia no número quatro da primeira dentição e no número quatro, mas da segunda dentição, da Revista de antropofagia6. Na revista número quatro da primeira dentição, Antonio Alcântara Machado inicia o artigo ressaltando o caráter poético do anuário demográfico. Deste, a seção mais “deliciosa” seria a parte sobre os casamentos. Machado ressalta um elemento que para ele seria muito positivo: de 1894 até 1924 o número de casamentos entre brasileiros e estrangeiros aumentou enormemente. Nesse sentido, os estrangeiros teriam se atirado “feio na prata da casa” (MACHADO, 2014 [1928], p.1); porém, os estrangeiros é que seria antropofagicamente devorado pelos brasileiros e não o

6 A título de comparação, Ricupero aponta que isto o afasta de Mário de Andrade, o qual enfatizaria mais a contingência, o dilaceramento, o diálogo e a relação, mais do que a síntese (Cf. BOTELHO; HOELZ, 2016). 12

contrário. O que, para Machado, configuraria uma legítima antropofagia, restando saber, no fim das contas, quando seria o coroamento da rainha dos antropófagos. Na publicação de número quatro (s./a., n.4, 07/04/1929, 2014, p.1), mas da segunda dentição, aponta-se, depois de um elogio e aproximação do “gostoso” catolicismo popular brasileiro - que seria sincrético e mestiço, agregando vários elementos de culturas indígenas e afro-brasileiras7 -, que a antropofagia seria uma revolta da sinceridade recalcada durante 400 anos contra a civilização de fachada, da inferioridade do mestiço trabalhador contra o ariano corroído pela decadência. Ademais, a Antropofagia seria uma comunhão que resolveria o “problema da formação da língua brasileira e do Brasil brasileiro” por meio do mais “ingênuo e brasileiro processo nacionalizar que é esse de assimilação de qualidades” do que vem de fora. É preciso notar aqui que Casa-Grande e Senzala seria apenas lançado em 1933, mas já é possível notar proximidades a respeito de positivação da mestiçagem na antropofagia desde a primeira dentição da Revista de Antropofagia. Além da Revista de antropofagia, outros elementos interessantes8 podem ser encontrados no artigo “Aqui foi o Sul que venceu”, da lavra de Oswald de Andrade e publicado em 1943 no jornal O Estado de São Paulo. Nele, Andrade aponta que, enquanto nos EUA o sul atrasado foi vencido, aqui o Sul venceu. Nesse sentido, se nos EUA o industrialismo setentrional venceu e passou a ser hegemônico, no Brasil, expressão da cultura agrária e sentimental, o que prevaleceria seria não a interferência deformadora e materialista da era das máquinas. Pelo contrário, teriam se alastrado “coordenadas de superior inteligência humana, a característica civilização luso-tropical que nos ensinou a igualdade prática das raças e boa vontade como elo do trabalho, da cooperação e da vida”. Deste modo, “no continente americano, o Brasil é o Sul sensível e cordial que venceu” e, portanto, aqui a “Luisiânia latina, católica e mestiça” teria prevalecido (ANDRADE, 1971, p. 51). No mesmo artigo, o intelectual paulista crítica os sociólogos arianos detratores da mestiçagem, que sabia incorporar ricas heranças de outros povos, e contrapõe

7 Esta será, aliás, uma temática na qual Freyre se debruçara em vários momentos de sua obra. Principalmente em Casa-grande & Senzala (2013), na qual argumenta que no latifúndio rural desenvolveu-se um tipo doméstico de catolicismo, marcado por uma adoração íntima dos santos e por uma influência que chama de animismo e fetichismo. Essa visão do catolicismo renderá críticas polêmicas de Freyre aos jesuítas, vistos como muito ortodoxos, e elogios aos franciscanos, mais afeitos à conciliação (GAHYVA, 2021). 8 É interessante lembrar que Castro (2019) e Herkenhoff (2019) apontam similaridades entre as obras de Tarsila do Amaral e o ideário posterior de Freyre, como nas telas A negra (1925) e Antropofagia (1929). 13

criticamente a germanizada zona Santa Catarina, que, para ele, não teria utilidade para a Nação, aos belos rumos nacionais indicados pela mestiçagem que teriam oferecido ao Brasil a sociologia de Euclides da Cunha, os romances de Machado de Assis e a poesia de Gonçalves Dias. Mestiçagem na qual São Paulo, por ter sido café, fazenda e terra tomaria parte9. Assim, esses sociólogos arianos não veriam a riqueza trazida por uma série de povos Africanos para o Brasil e aplaudiriam o saneamento praticado por nações brancas como os Estados Unidos. Numa espécie de colaboracionismo imperialista, estes mesmos sociólogos seriam detratores da mestiçagem popular nacional e para cá tentariam trazer modos de pensar americanos e até sua sociologia. É interessante notar, ainda, que Oswald de Andrade discute com Oliveira Viana, cujas teses racistas e arianas apontariam a existência de uma parcela branca no Brasil e não contagiada pela mestiçagem. Porém, se Viana veria essa porção populacional com esperança, Andrade apontaria nela a parte fracassada da nação. Também num texto como “A marcha das utopias”, de 1953, o autor paulista não deixará de enaltecer o Brasil como uma oposição à Reforma, que construiu, no Norte, países talhados segundo um utilitarismo mercenário e mecânico – feito Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos da América. Como oposição, o Brasil seria uma forma de utopia realizada da Contra-Reforma, cujo sustentáculo seria a miscigenação cultural e racial que aconteceu no país. Por conseguinte, o Brasil seria “a Caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva”, a “Bandeira estacada na fazendo” e a tarefa essencial daquele momento, aos brasileiros, seria justamente “nos identificar e consolidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais e históricos” (ANDRADE, 2011, p. 228). Em ensaio escrito tardiamente, intitulado “Descoberta da África”, Oswald de Andrade (2011) faz outro elogio ao pensamento de Freyre, o qual não teria deixado seduzir pelas visões dólico-loiras. O sociólogo de Apipucos teria feito penetrar no pensamento sobre o Brasil uma visão honesta e rica sobre a constituição particular do país, em que “a contribuição africana”, foi temperada, mestiçamente, pelo seu encontro com os elementos português e indígena (Ibid, p. 323).

9 É interessante notar aqui a diferença com as teses raciais de Paulo Prado, para quem haveria uma raça paulista, aristocracia e de ascendência portuguesa, e uma raça brasileira, cuja degeneração se deveria ao processo de caldeamento entre o “indígena lascivo”, “o negro corrompido” e o “português decadente do pós-1580” (PRADO, 1934;1981). Nesse sentido, afirmamos que a sombra ideológica de Prado sobre Oswald de Andrade não é tão absoluta como indicaria Berriel (2013). 14

Em vista do exposto, não é sem motivo que Cocco (2009, p. 258) assevera que é: “absolutamente claro que Oswald aposta na mestiçagem, e, para fazê-lo, ele mitiga – acompanhando muito de perto a pauta de Gilberto Freyre – toda a análise do sistema escravista e colonial do qual ela se originou”. Isto posto, não é à toa, igualmente, que a artista visual Rosana Paulino declare que a antropofagia apenas tome o negro para devorá-lo enquanto objeto e não para reconhecê-lo como sujeito e possível parceiro na construção de uma narrativa comum (PAULINO apud ROFFINO, 2018). Entretanto, precisamos pontuar que a posição de Oswald de Andrade é diversa num ponto importa: a rebeldia de setores vistos como passivos por Freyre. Por conseguinte, em seu “Manifesto Antropófago” (ANDRADE, 2011) são diversas as investidas contra o índio catequizado idealizado por setores conservadores do pensamento nacional e, em sua “Carta a Monteira Lobato”, chama a atenção o fato de Andrade, contra o juízo do escritor paulista, positivar a figura de Jeca Tatu como um unificador da nacionalidade, contrário ao arianismo, e clamar pela sua rebeldia, feito “a rocha viva que Euclides sentiu na Stalingrado jagunça de Canudos” (ANDRADE, 1971, p. 8). Considerando o que foi mostrado até aqui, pode-se notar algumas similaridades entre a antropofagia/Oswald de Andrade e o pensamento de Gilberto Freyre. Em primeiro lugar, vê-se uma valorização da especificidade da colonização portuguesa no Brasil, uma vez que o português seria mais aberto à miscigenação que em outros modelos coloniais. Em segundo lugar, há uma celebração e elogio da mestiçagem como uma forma de construção de uma civilização e uma nação particular, superior às vias civilizacionais de países protestantes e liberais. Em terceiro lugar, acentuam a ideia de que a colonização portuguesa teria sido diversa da de outros países, ao modo dos ingleses, e seria propícia à construção de uma civilização nova e original. Por último, é preciso reconhecer a utilização de tópos decisivos do pensamento arielista latino-americano no movimento antropofágico, em Oswald de Andrade e em Freyre, como o de acentuar a superioridade da brasilidade mestiça frente ao utilitarismo do Norte protestante e materialista10. Não obstante, há uma diferença importante:

10 Gilberto Freyre, em alguns momentos de Casa-Grande e Senzala (2013), procura mostrar a parecença de traços da sociabilidade brasileira com elementos das sociedades romana e grega clássicas. Amostra proveitosa disto é no tratamento que dá quanto à religiosidade católica doméstica brasileira e sua suposta similitude com os cultos romanos e gregos (FREYRE, 2013, p. 40). Também Pallares-Burke (2005) mostrará que, influenciado pelo helenista Alfred Zimmern, Freyre apontará, em seu mestrado, que gregos e brasileiros desenvolviam relações de camaradarem facilmente e que a intepretação da escravidão grega, feita pelo helenista, fora transporta para o Brasil pelo sociólogo 15

enquanto os arielistas propriamente ditos (Rubén Dario, Paul Groussac, José Enrique Rodó, entre outros) deixavam de lado elementos populares, índios, negros e até mulheres, devido ao seu patriarcalismo e sua preocupação em conformar uma raça latina ocidental (MIGNOLO, 2012; JAUREGUI, 2008), nos autores aqui vistos tais setores, até por meio do patriarcalismo, têm um lugar de destaque na intepretação – o que, porém, não se converte em protagonismo. Desta forma, afastando Oswald de Andrade da perspectiva calibanesca (JAUREGUI, 2008), e exagerando um tanto o argumento, podemos ver nestes autores a construção de um Arielismo miscigenado. No entanto, haveria diferenças importantes também entre os intelectuais citados. Primeiro, enquanto Oswald de Andrade e outros antropófagos, em vários momentos, assumiram posições políticas abertamente progressistas e até revolucionárias, Freyre, geralmente, escolheu posições conservadoras e a construção de projetos políticos repressivos, como é o caso da ditadura militar brasileira e o apoio às políticas imperialistas de Salazar. Segundo, se Freyre era um entusiasta do regionalismo com tintas conservadoras, vide seu “Manifesto regionalista” (1996), Andrade e seu modernismo se entusiasmavam pelas vanguardas europeias, chegando mesmo, o sociólogo pernambucano, a criticar estrangeirismo e as ambiguidades decorrentes do entusiasmo antropofágico pelo externo (CHACON, 1993; ALMEIDA, 2017). Terceiro, se o recurso aos discursos sobre o negro em Freyre é mais sistemático que a respeito dos indígenas, em Andrade e na antropofagia dá- se o contrário. E mais: se o recurso de Freyre é a construção do negro enquanto dominado pela família patriarcal, o índio de Oswald de Andrade e colegas é o antropófago desrecalcado e não o índio de tocheiro, catequizado e dócil dos verde- amarelos. Quarto, não podemos esquecer que Oswald de Andrade critica o passadismo de Freyre, seu regionalismo exacerbado (ANDRADE, 1971, p. 97) e sua tendência ao luso (ao nordeste luso), tentado elevar “o branco suspeito da primeira América a padrão de nacionalidade”, deixando de lado, portanto, neo-imigrados (como sírios, italianos e judeus) os quais traziam para cá milênios de civilização, atividade criadora e “sobretudo o brasão simples do trabalho” (ANDRADE, 2002, p. 207). Seja

pernambucano no intuito de dizer que a harmonia contrabalanceava o conflito. Oswald de Andrade, por seu turno, não deixa de apontar a presença da antropofagia entre os gregos. Andrade, afirma que o carnaval do Rio teria, pelos seus ranchos e magia, um ar grego e a sua explicação para isso é que a cultura órfica africana teria sido a origem de ambos (ANDRADE, 2011, p. 326). 16

como for, há confluências e similitudes importantes nos projetos e nas formas de pensar de Oswald de Andrade e Gilberto Freyre.

IV – Caetano Veloso e uma tropicalidade mestiça. A partir da experiência intelectual de Veloso, um tratamento a respeito da mestiçagem, dotado de uma proximidade notável quanto a Gilberto Freyre e seu luso- tropicalismo, pode ser visto. Por uma questão de espaço expositivo e para melhor explicitar o nosso ponto, trabalharemos, principalmente, com três ensaios de Veloso. Sabemos da limitação deste procedimento, dado que o autor em questão é, antes de tudo, um cantor. Como nota inicial sobre o assunto, é importante notar que setores destacados da MPB e do próprio tropicalismo, recuperava elementos decisivos do pensamento de Gilberto Freyre sobre a mestiçagem enquanto constitutiva da diferença 11civilizacional brasileira (Cf.RIDENTI, 2010, p. 13). Desta feita, mesmo que de modo ainda abstrato, podemos indicar uma relação importante entre o tropicalista Caetano Veloso e o imaginário de mestiçagem freyriana. Ademais, de forma mais certeira, é necessário lembrar que um sebastianismo moderno e desejante de uma nova civilização no Atlântico Sul, pensado pelo filósofo português Agostinho da Silva, já, desde os anos 1950, atraia fortemente Veloso (CF. LEAL, 2021). A vinda do filósofo português se deu dentro de uma política mais geral de modernização e arejamento intelectual e artístico fiada pelo então reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgar Santos – cujos efeitos foram decisivos para a avant-garde baiana (RISÉRIO, 1995). Tal influência tornou-se ainda mais pronunciada entre os anos de 1968 e 1969, nos quais Dom Sebatião, bem como seus ecos míticos pessoanos e agostinianos, se fizeram presentes em algumas de suas canções e happenings e quando, já no exílio, em companhia de Roberto Pinho (discípulo de Silva), visita um alquimista português que indica e “revela” o caráter mítico e sebastianista de sua canção Tropicália. Frise-se que este sebastianismo via a continuidade do destino transcendente de Portugal, fundamental para o destino do

11 Devo essa observação e colocação à professora Daniela Viera dos Santos, a quem agradeço por isso e por ter indicado expressamente a análise de entrevistas mais contemporâneas de Caetano Veloso sobre o assunto, as quais mostrariam, em certo sentido, a continuidade deste ideário de miscigenação. Também agradeço à professora o apontamento de que Veloso tem dificuldades em, grosso modo, de ver como negro, chamando-o, até, de “mulato escuro o suficiente para, mesmo na Bahia, ser chamado de preto” (VELOSO, 2017, p. 296). 17

próprio mundo, nas colônias de ultramar, principalmente na “aventura histórica” do Brasil, e que um dos pilares fundamentais sobre o qual se assentava seria o caráter mestiço e sincrético desta grande civilização luso-tropical, superior ao norte protestante (VELOSO, 2017, p. 339-345)12. Algo que teria ficado ainda mais pronunciado, para Veloso, com a leitura feita, por ele e (LEAL, 2021), da obra póstuma China tropical, de Gilberto Freyre (2009), em que o Brasil, podendo combinar tradições primordiais e tecnologia avançada, seria o guia das civilizações no mundo. A presença musical desse sebastianismo pessoano-agostiniano já tinha sua aparição planejada como uma irrupção poética em meio a apresentação musical/ happening “É proibido proibir”, durante o 3º Festival Internacional da Canção, na qual o cantor declamaria passagens do poema “D. Sebastião” – do livro Mensagens, de Fenando Pessoa (VELOSO, 2017, p. 307-310). Porém, em função das vaias e reações do público, o planejado não ocorreu e Veloso termina por dizer ao público: “Hoje não tem ”. Seja como for, esse “misticismo” racional sebastianista que enxergava um grande destino para o mestiço Brasil comparece em outras de suas músicas (ou nos significados que foram assumindo ao longo do tempo)13 – “Tropicália” (1968), “Os argonautas” (1969), “Três caravelas” (1969), “Um índio” (1976), “Nu com minha música” (1981), “Outros românticos” (1989), “Bahia, minha preta” (1993), “Onde o Rio é mais baiano” (1997), etc. – e ensaios. Analisaremos, como dito anteriormente, alguns destes. O tropicalista, no ensaio “Don’t look black? O Brasil entre dois mitos: Orfeu e democracia racial”, de 2000, refletindo sobre as diferentes acolhidas do público brasileiro entre a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Morais, e o filme Orfeu Negro, dirigido por Marcel Camus, engata algumas reflexões a respeito do racismo no Brasil. Veloso afirma que alguns comentaristas ficam espantados com a existência de racismo no país – como se as chagas da escravidão sarassem por milagre –, contudo,

12 É notável certa proximidade com alguns raciocínios de Richard Morse (1988), principalmente quando este ressalta a diferença e peso, na constituição civilizacional da América Latina, da opção tomista- medieval feita por ibéricos entre os séculos XII e XVII. A diferença, porém, é que Agostinho da Silva (1957) enfatiza a especificidade e superioridade de Portugal, e não exatamente de toda a Ibéria, e a continuidade deste destino transcendente português em suas colônias – especialmente o Brasil. Ademais, um período decisivo para asfixiar esse Portugal mítico, para Agostinho, é o século XVI, quando se instaura o período dinástico filipino. 13 Certo sebastianismo envolvendo a constituição de uma civilização tropical particular também dá o tom do documentário Fevereiros (2017), cuja participação de Veloso é essencial para estruturação de uma brasilidade mestiça baiana-carioca. 18

o próprio cantor baiano argumenta que a evidência básica da identidade entre os humanos encontrou formas de se impor contra o racismo e as teorias que o embasavam. Nesse sentido, ninguém poderia jogar fora o “acervo conquistado nesse processo”, de modo que a “experiência brasileira deve ser enriquecida com as críticas ao mito da ‘democracia racial’, não desqualificada por elas” (VELOSO, 2005, p. 29, grifos meus). Se até meados do século XX o sonho brasileiro consistia no branqueamento de sua população, com Gilberto Freyre pode-se dar uma inversão e positivação do julgamento do mestiço, o que “representou a liberação de uma auto-imagem racialmente eufórica dos brasileiros, e a expressão ‘democracia racial’ insinuou-se como rótulo adequado dessa euforia” (Ibid.). Democracia racial que fora atacada obsessivamente por cientistas sociais e militantes políticos, “de tal forma que quase se pode falar num mito do mito da democracia racial” (Ibid., 30). A partir desta positivação da chamada experiência brasileira da mestiçagem, pode-se vislumbrar também uma positivação desta frente à situação racial nos EUA, rasgado por divisões raciais orientadas pelo princípio da “uma gota de sangue”14. Essa “experiência brasileira” de Veloso também teve presença marcada em sua conferência intitulada “Diferentemente dos americanos do Norte”, de 1993. Seguindo alguns raciocínios de Antonio Cicero e, principalmente, de Agostinho da Silva, o tropicalista pensa não só o lugar do Brasil no mundo, mas o possível caminho que a civilização brasileira pode dar ao mundo. Veloso via o Brasil num paradoxo: podendo dar caminhos e soluções para o resto do mundo, a nação brasileira ainda não havia resolvido problemas que outros países tinham. Mesmo assim, uma das vantagens que via no horror brasileiro é que muito ainda poderia ser feito. Tomando de empréstimo termos da astronomia, argumenta que é importante que o Brasil afirmasse fatores de entropia, como o respeito às formalidades das leis e dos direitos, bem como o aprendizado tecnológico, porém que não poderíamos deixar de lado o caos, “o desequilíbrio onde viceja a violência e a perversão e também o talento excepcional e a inventividade, os caprichos e os relaxos, as vanguardas estéticas e os exotismos

14 Em entrevista, dada em companhia de Gilberto Gil, no ano de 2015, Veloso chega mesmo a afirma que o Brasil está cada vez mais racista, dado que foi ficando acentuadamente mais racialista. A isso, ele contrapõe justamente os carnavais da juventude, os quais seriam sincréticos e sem racismos. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=O2IxYZCu4aA. 19

sexuais (VELOSO, 2005, p. 62). Nesse bojo é que deveria estar a resposta brasileira ao mundo. Mas de que forma? Recuperando, mesmo que inconscientemente, alguns tópicos do pensamento arielista latino-americano - salpicado pelas ideias de miscigenação freyrianas -, Veloso argumenta que o Brasil é não só parte do Ocidente, mas uma das partes mais importantes, já que este país novo, imenso, original, tropical, mestiço e falante da língua portuguesa (Ibid., p. 63)15 conteria em si as características mais importantes e radicais do Ocidente, a saber: a ênfase no ideal, no sensual e na beleza. Aproximando-o da Grécia e Roma. Características que o levariam a uma superação – no sentido de transcender incorporando – do estágio nórdico do mundo e sua acentuação bárbara da tecnologia e do materialismo. Em 2017, no prefácio à terceira edição de Verdade tropical, o cantor baiano aprofundará as considerações a respeito da especificidade brasileira. Julgando Huntington e Fukuyama como apologistas do ocidentalismo e do capitalismo, Veloso pontua que o programa que chama de humanidade mínima, que os dois ideólogos citados atribuem ao Ocidente, fora um programa forjado pela humanidade em várias partes do mundo, cujos esboços “surgiram na Índia e na China, na África e, de certa forma, em toda parte” (VELOSO, 2017, p. 26). Tal programa mínimo de humanidade teria aparecido, em sua roupagem mais radical, em Antonio Cicero, visto que defendia uma abertura radical às diferenças culturais e nacionais. Porém, é importante notar que, para Cicero, o Brasil e seus habitantes teriam um papel especial e protagonista no mundo, para acentuar isto o escritor brasileiro resgata até mesmo o elogio que o filósofo Friedrich Nietzsche (2003, p. 95) fez, no aforismo 197 de Além do bem e do mal, ao homem tropical, que seria o contrário dos homens medíocres e morais das zonas temperadas. A partir daí, Veloso pontua que a crítica de Roberto Schwarz – de que seria uma apologista da globalização– não procederia tanto assim, dado que o “mito do Brasil original e instaurador do Reino do Espírito Santo era a imagem que representava” seu “desacordo com a uniformização do mundo a partir do modelo do Atlântico Norte” (VELOSO, 2017, p.26). Ademais, o cantor popular afirmará que o tropicalismo tinha responsabilidade frente a este homem tropical e seu destino, no qual enxergava um dínamo histórico escondido para renovação da civilização.

15 Oiticica (1986) não deixará de argumentar que, para ele, a mestiçagem seria algo decisivo para constituição de uma nação e uma cultura opostas aos EUA e à Europa, resistindo-lhes. Sendo, deste modo, algo anticolonial. 20

Repetindo a frase de Agostinho da Silva a respeito da necessidade de Portugal civilizar a Europa, Veloso dá outra volta em seu pensamento. Visto que, agora, o modelo luso seria interessante, dentre outras coisas, pois lá estaria no poder um partido de esquerda, que resistia à austeridade imposta pela União Europeia, e que reafirmaria a presença cultural refinada de Portugal no continente europeu; refinamento encarnado na figura do jovem cantor Salvador Sobral. Além desta diferença de pensamento frente aos ensaios anteriormente explorados, é importante ressaltar que o cantor brasileiro irá acentuar tanto a nossa originalidade (decorrente do sincretismo e da mestiçagem brasileiras), bem como seu manancial de possibilidade diante dos descaminhos do mundo técnico, que ele julgará o Brasil como extraocidental e não mais “o Ocidente ao ocidente do Ocidente”. De qualquer modo, ainda seríamos, em certo sentido, ocidentais e latinizados. Dotados de uma vocação, baseada na constituição mestiça da nação e sua especificidade prenhe de virtudes, que poderia criar outro caminho para a ordem global. Ainda quanto ao pensamento de Veloso, não deixa de ser interessante lembrar que o título do livro Verdade tropical deveria ser, na verdade, Boleros e civilização. Tal nomeação se dava pelo encontro entre o título do livro Eros e civilização, de Herbert Marcuse, e de Vereda tropical, telenovela exibida pela Rede Globo de televisão entre os anos de 1984 e 1985. Além do sabor escarninho desta possível junção e para além da sabida influência de Marcuse sobre os chamados setores da contracultura mundial e da importante recepção de tropicalistas da obra do filósofo alemão (Cf. MENEZES, 2019), é importante ver algo mais profundo na troca de Eros por Boleros. Em linhas bastante gerais, Eros, desde Freud (2010), pode ser lido como princípio vital geral, não só a libido, em oposição a Thanatos, o instinto de morte. Marcuse (1975), apontará, num diagnóstico que conjuga Freud e Marx, que o princípio vital fora sistematicamente16 subjugado pelo princípio do desempenho, forma histórica predominante do princípio de realidade, decorrente do avanço do capitalismo e do fetichismo da mercadoria. O que sugerimos é que a originalidade da civilização brasileira, explorada por Veloso, seria uma espécie de princípio vital o qual seria subjugado, por vezes, pelo

16 É interessante lembrar que Gilda de Mello e Souza (2003, p. 40-41; 52-53), em análise sobre Macunaíma, aproximará o princípio do prazer da diferença brasileira e da preguiça organizada e o princípio da realidade dos imperativos ocidentais do trabalho e da renúncia libidinal. Dualidades cujas contradições estruturariam o dilacerado romance modernista. 21

princípio da realidade do materialismo tecnicista do Norte Global. Mas que, ao fim e ao cabo, mostraria um caminho de vitalidade e de arranjo social mais feliz do que o proposto pela via desencantada dos países setentrionais. Ademais, poder-se-ia ver também um exercício de aclimatação das forças de Narciso e Orfeu – contrários aos ímpetos de dominação produtivista de Prometeu – ao Brasil quando elogia aspectos da sensualidade nativa brasileira e quando, ao comparar o país com o ocidente grego e romano, lembra que a antiguidade clássica era dada ao desenvolvimento de virtudes pessoais, intelectuais e artísticas e não ao furor tecnológico. O que abriria um caminho civilizacional diverso ao do materialismo técnico do Norte. Falando, novamente, de Agostinho da Silva, podemos ter outra imagem importante do que Veloso tinha em mente: [...] sempre mirando um horizonte de superação do estágio em que se encontra o mundo liderado pelo Ocidente protestante (a filosofia alemã, Marx, Freud e os Estados Unidos etc.), nunca deixando parecer que se tratava de uma mera nostalgia do catolicismo medieval português. Ao contrário: sendo ele tradutor de Hörderlin e dos gregos, seu amor aos sincretismos afro- lusitanos ou luso-asiáticos (e mesmo afro-asiáticos) não se queria uma negação (ou uma desistência) das conquistas da era norte-europeia, e seu ecumenismo retomava paganismos vários prevendo uma necessária superação dos cristianismo: a era do Filho dará lugar à era do Espirito Santo, com Marx e a tecnologia. Algo (ou muito) disso está por trás de toda a obra de Glauber – e, em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o tropicalismo (VELOSO, 2017, p. 308).

V- Notas esparsas sobre alguns estudos pós-coloniais17. Hal Foster (2017), em comentário sobre os chamados primitivismos e sobre a arte etnográfica, adverte que práticas críticas contrárias à fantasia primitivista18 podem levar também à fetichizações e “alterizações” exóticas involuntárias. No caso da crítica pós-colonial, ao se tentar evitar identidades estanques, em que o Outro e o Mesmo são quase irredutíveis, ocorreria, por vezes, uma fetichização e inflacionamento de “espaços intermediários”, do “entre” e do “híbrido”. Isso, para o crítico estadunidense, permitiria que aquilo que fora expulso pela porta, volte pela janela. Isto é: privilegiando- se o “misto” pressupõe-se uma distinção ou mesmo uma pureza prévia entre os termos (FOSTER, 2017, p. 166) e que, ao fim e ao cabo, leva, subterraneamente, a

17 Os estudos pós-coloniais são numerosos e variados. Contudo, pontos em comum sobre eles seriam os questionamentos das visões hegemônicas sobre a modernidade e a crítica tanto a um universalismo ocidentalista, quanto ao um eurocentrismo teórico e prático (COSTA, 2006). Aqui trataremos de alguns críticos que podemos designar como pós-coloniais e que retomam as ideias de mestiçagem e hibridização como matrizes críticas da modernidade eurocêntrica. 18 Fantasia na qual o outro, que geralmente é racializado, é exotizado enquanto aquele que tem acesso especial a processos sociais e psíquicos primários, dos quais os brancos, de alguma forma, seriam excluídos (FOSTER, 2017, p. 163). 22

restauração de um binarismo em que Outro vira uma idealização negativa – como uma espécie de oposto simétrico – do Mesmo. Se não é exatamente este o caso dos críticos que aqui trataremos, podemos, pelo menos, fazer algumas aproximações a respeito do que falava Foster e o elogio que fazem da hibridização e da mestiçagem. Vejamos as seguintes passagens: A antropofagia foi a única contribuição realmente anti-colonialista que geramos, contribuição que anacronizou completa e antecipadamente o célebre clichê cebrapiano-marxista sobre as “idéias fora do lugar”. Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. Era e é uma teoria realmente revolucionária [...]. E essa é a resposta que a América Latina tem que dar para a alienação cultural, é a única proposta de contra-alienação plausível, a única teoria de libertação e autonomia culturais produzida na América Latina. Agora todo mundo está descobrindo que tem que hibridizar e mestiçar (VIVEIRO DE CASTRO, 2007, p. 168-169, ênfases nossas).

A revolução antropofágica, à medida em que projetava os índios no mundo, fundava-se numa teoria da multiplicidade, não em alguma teoria da diversidade. O anticolonialismo não era, ali, um nacionalismo e, ainda menos, algum isolacionismo, mas uma máquina de guerra para pilhar da Europa dos ricos “o que nos interessa”. O anticolonialismo, em relação ao exterior, implicava, de fato, um anticolonialismo dirigido contra o “colonialismo interno que trata os povos indígenas como obstáculos à padronização da nacionalidade”. O anticolonialismo antropofágico implica superar qualquer manobra que vise a explicar os impasses brasileiros apenas por determinantes exógenos; e não se compromete com nenhuma aliança de tipo nacional. A resposta que a América Latina tem de dar à alienação cultural é aprofundar ainda mais a mestiçagem e a hibridização com os fluxos mundiais (COCCO, 2008, p. 271, ênfases nossas).

Sem entrar diretamente numa discussão pormenorizada sobre o uso que fazem da noção de antropofagia, não deixa de ser interessante que, como apontamos anteriormente, Oswald de Andrade tenha pensado, em diversos momentos, a sua antropofagia como uma forma de mestiçagem. Poder-se-ia argumentar, contudo, que se Andrade, com isso, buscava lançar as bases de sua argumentação sobre a especificidade civilizacional brasileira - superior ao Norte protestante -, Viveiros de Castro e Cocco tinham em mente uma política não nacional da diferença e da multiplicidade – que iria contra ao ímpeto de unificação e centralização do Ocidente. Todavia, há aí, ainda, algumas questões. Apesar de Cocco (2008) reconhecer a proeminente sombra freyriana sobre a ideia de mestiçagem e de criticar isto, não se vê, em nenhum dos dois autores, um trabalho crítico mais pormenorizado a respeito dos vínculos históricos e políticos profundos entre as noções de mestiçagem e hibridização e o ideário de uma civilização brasileira unificada sob o signo de um suposto equilíbrio de antagonismo. Em Silviano Santiago (2019), o mestiço e a mestiçagem também ganham um lugar de 23

destaque contra a “unidade”, a “pureza” e “homogeneidade” desejadas pelo Ocidente19. Não é à toa, desta forma, que citará, em rodapé, uma passagem de Oswald de Andrade na qual o artista paulista faz um elogio do mestiço frente ao branco ariano. Tendo em visto o fato de Santiago eleger a diferença como ponto crítico pós- colonial do entre-lugar latino-americano decisivo para notar as torções e desvios da norma ocidental, fugindo dos binarismos e negando a máquina colonial, parece-nos que a utilização das noções de mestiçagem e de hibridização, fortemente freyrianas, sem a referência ao seu uso concreto hegemônico – bem como a sua explicitação e crítica – pende, fortemente, mais para uma política da “diversidade”, em que uma brasilidade Una ainda prevalece, do que um discurso radical da diferença. Até porque, como argumentava Foster, uma entificação do híbrido e do mestiço pode, de modo até mesmo involuntário, trazer em si uma recolocação do Outro e do Mesmo como lugares sem troca e estanques. Podemos, nestes casos, parafrasear e ampliar crítica feita pela filósofa Denise Ferreira da Silva (2007) à reabilitação que Ricardo Benzaquen de Araújo (1994) faria de Freyre. Para o antropólogo carioca, o intelectual pernambucano - a partir da centralização que operou em direção a um pensamento sobre a mestiçagem e, a partir daí, sobre a diferença da “civilização brasileira” – poderia ser lido como espécie de crítico cosmopolita da modernidade Ocidental. O que, em linhas bastante gerais, pode ser aproximado do que fora operado por Cocco, Viveiros de Castro e Santiago. Resultando numa postura que, segundo aponta Denise da Silva (2007), principalmente pelo seu foco na mestiçagem e na hibridização (mesmo que a partir de um ponto de vista pós-colonial), poderia promover um apagamento das discussões sobre raça da gramática política no Brasil e uma eliminação das diferenças raciais e do debate sobre racismo e racialização. Essa crítica feita por Silva ganha ainda maior concretude caso lembremos que o campo semântico, imagético e político sobre a mestiçagem - como via para uma civilização brasileira original – é fortemente estruturado a partir de lances freyrianos.

VI– Considerações finais.

19 Outro autor que encararia a mestiçagem freyriana como algo ambivalente, positivo e fonte constitutiva de uma sociedade original é Wisnik (2008). Em seu pensamento, o esquema freyriano seria o polo positivo (remédio) a partir do qual seria possível pensar o Brasil e que serviria de contraponto ao polo negativo (veneno) - representado pelo pensamento pessimista de Caio Prado Jr. 24

Um(a) jogador(a) de xadrez não pode jogar o jogo sem seguir regras pré- estabelecidas. Há até algumas/alguns jogadoras/jogadores que tentam produzir inovações e mudar os regramentos, mas isso não significa que o jogo novo será entendido, aceito e jogado por outras pessoas. No caso de Oswald de Andrade e Caetano Veloso, os seus textos, apesar de algumas mudanças, trepidações e críticas, endossam um discurso freyriano de mestiçagem enquanto elemento constitutivo de uma civilização brasileira superior ao norte mecanizado e protestante. Desta forma, pensamos que, mesmo nos casos em que a repetição da mestiçagem se dê a partir de uma diferença de projetos políticos (Cf. MELO, 2014), como seria o caso de Gabriel Mariano em Cabo Verde e de maneira contundente pelos estudos pós-coloniais aqui explorados de forma ainda muito sumário, isso talvez não seja suficiente para mudar as regras do jogo efetivamente jogado. Isto é, apesar de práticas desconstrutivas, a metonímia entre mestiçagem e construção de uma identidade nacional apaziguada ainda estruturaria o jogo.

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