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1 20º Congresso Brasileiro de Sociologia (2021) 12-17 de julho de 2021 UFPA – Belém, PA Comitê de pesquisa nº 20 - Pensamento Social À sombra de Gilberto Freyre? Alguns sentidos da mestiçagem e da “civilização brasileira” em movimentos culturais brasileiros Rafael Marino Doutorando e Mestre em Ciência Política Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo Técnico de programação cultural - SESC SP (Belenzinho) 2 I – Introdução1. Propomos, neste trabalho ainda em andamento, que Gilberto Freyre, a partir de lances argumentativos inovadores sobre a relação entre raças e identidade no Brasil, logrou forjar uma espécie de langue freyriana que estruturaria uma visão positiva sobre o Brasil como uma civilização tropical mestiça original2. Propomos que essa langue e visão sobre o Brasil são sistematicamente revisitadas por movimentos intelectuais e culturais - inclusive os assim chamados “de esquerda” e libertários, feito a antropofagia, tropicalismo e até mesmo segmentos dos estudos pós-coloniais brasileiros. Propomos, ainda, que há, nestes movimentos (principalmente nos dois primeiros), continuidades com essa langue freyriana, dado que os atos de fala e argumentos, apesar de certas restrições e diferenças, concordam com o sentido mais geral do diagnóstico freyriano sobre a originalidade mestiça do Brasil. Ressaltamos que, apesar de inspirados em termos e em certa procedimentação pocockiana (Cf. POCOCK, 2003; 2006), acreditamos que esta forma de compreensão, mais do que uma camisa de força metodológica que deve ser seguida à risca, oferece instrumentos criativos de leitura e interpretações de discursos e textos. Desta forma, o seu uso aqui será despido de intenções “ortodoxas”. Cabe dizer, ainda, que com isto não queremos dizer que os atores aqui analisados, Oswald de Andrade, Caetano Veloso e alguns críticos pós-coloniais, são estruturados totalmente a partir do discurso freyriano, mas sim que este é importante em seus esquemas intelectuais e políticos. Até porque, textos são conformados por diversas linguagens e autores frequentam vários discursos. Gostaríamos de frisar, ainda, que o nosso argumento não visa mostrar que os intelectuais e artistas acima referidos são conservadores como Freyre. Na verdade, a nossa intenção é mostrar que esses atores revisitam o ideário freyriano e a forma como fazem isso. Deste modo, mesmo com projetos políticos diferentes, pode-se notar uma confluência e continuidade entre discursos e formas de pensar. 1 O trabalho em questão está em andamento. 2 Sabemos que não é com Freyre que a ideia de uma nação providencialmente original, pela sua mestiçagem, fora urdida. Isso deveria ser buscando antes, mais especificamente nos anos posteriores à Independência de 1822, e teria se dado a partir do mito e da metáfora das três raças (branca, indígena e negra) de Von Martius (1956 [1844]), as quais, feito três rios, fundariam a específica nacionalidade brasileira. Neste período, porém, a visão sobre a mestiçagem e os destinos do Brasil eram bastante negativas (Cf. SCHWARCZ, 1995; 1997). Algo que fica bastante claro em textos de Gustav Aimard, Nina Rodrigues, Louis Agassiz, Arthur Gabineau etc. É interessante lembrar que, numa visada latino- americana, outro autor (antes de Freyre), já havia apontado a mestiçagem como uma saída civilizacional positiva para a América Latina: José Vasconcelos (1993). 3 Apesar de uma aproximação aparentemente difícil, é possível sugerir, com Ricupero (2013, p. 538), que haveria uma verdadeira linhagem de autores latino- americanos, feito José Vasconcellos, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Silviano Santiago, que valorizaram a mestiçagem como constitutiva de uma sociedade particularmente diversa no Brasil e na própria América Latina. Algo que, em chave distinta, também é observado por Danilo Martuccelli (2021, p.22), para quem o elogio da mestiçagem e da hibridização seria comum no pensamento latino-americano e daria vazão a uma obsessão - tanto por autores mais conservadores, quanto por alguns críticos pós-coloniais - de buscar as raízes e práticas políticas e societárias autenticas dos latino-americanos, as quais teriam sido destruídas (parcial ou completamente) ou encobertas pela “ocidentalização”. II - O lance freyriano: civilização mestiça. Afirmamos que o pensamento de Gilberto Freyre trouxe novos tensionamentos e lances para o debate racial brasileiro (Cf. ARAÚJO, 1994). Se, em sua juventude, Freyre vinculava-se às teses do assim chamado racismo científico (PALLARES- BURKE, 2005) e ao pessimismo em torno da mestiçagem nacional, na sua trajetória posterior e, especialmente em sua obra Casa-grande & Senzala, haveria elementos para se falar numa outra via no debate a respeito de raça e mestiçagem no Brasil. O sociólogo pernambucana se afastava, assim, tanto de poligenistas, quanto de monogenistas. Dos primeiros, se diferenciava por celebrar a mestiçagem como uma via positiva de construção nacional; quanto aos últimos, divergia por não projetar o branqueamento da população brasileira (Cf. SCHWARCZ, 2005; POLIAKOV, 1974 e STOCKING, 1968). Isso se daria, segundo afirma Araújo (1994), pelos elementos que exporemos a seguir. Em primeiro lugar, distinguindo, em certo grau, raça e cultura, Freyre valorizou, de forma hierarquizada, as contribuições do “português”, “do negro” e “do índio” – esse de forma muito mais apagada, sendo visto como “atrasado” (FREYRE, 2013, p. 177). Deste modo, o sociólogo pernambucano, neste elogio da mestiçagem, pôde ir além das teorias raciais deterministas que imperavam no Brasil e conseguiu vislumbrar a construção de outra identidade nacional, na qual a “obsessão com o progresso e com a razão, com a integração do país na marcha da civilização, fosse até certo ponto substituída por uma interpretação que desse alguma atenção à híbrida e singular 4 articulação3 de tradições que aqui se verificou” (ARAÚJO, 1994, p. 30)4. Até porque, a sua maior inquietação no Brasil era o problema da miscigenação (FREYRE, 2013, p 31). Assim, Freyre poderia dar ao país outra interpretação para além de atrasado e inacabado, condenado a se realizar no futuro, ensejando a criação a de uma identidade coletiva para os diversos grupos que compõe a nação. Em suas palavras: “de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e de qualidades de permanência” (Ibid., p, 73). Em segundo lugar, Freyre não teria abandonado a categoria de raça - ainda que tenha dito ter aprendido a ver as diferenças entre raça e cultura com Franz Boas (2010) -, mas sim lançado mão de outra, neolamarckista (ARAÚJO, 1994, p. 39). A qual pressupõe a capacidade ilimitada de adaptação dos homens ao ambiente que estão. Destarte, a noção de meio ambiente seria essencial para compatibilizar termos como cultura e raça, sendo que esta última deveria ser lida como semelhante às características adquiridas pelo homem em seu exercício de adaptação constante. Em suma, essa ideia de raça garantiria a perenidade e estabilidade de elementos culturais. Porém, pelo seu conteúdo e compromisso biológico, o projeto freyriano se afasta do ideário de Boas. Seja como for, essa nova civilização moderna nos trópicos teria sido formada a partir do chamado equilíbrio de antagonismos (FREYRE, 2013, p. 116). Assim, à diferença dos anglo-americanos que teriam o seu país dividido entre duas partes inimigas, a branca e a negra, o Brasil seria caracterizado por “duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas”, de sorte que a nação unificada brasileira não seria estrutura pelo sacrifício de um elemento pelo outro (Ibid., p. 418). Na perspectiva do intelectual pernambucano, as relações entre a raça branca no país com as outras, principalmente a negra, teriam se dado pela monocultura latifundiária e pelo que designou como “falta” de mulheres brancas na colônia. O primeiro elemento traria distinções aristocratizantes entre senhores e escravos, o segundo, por sua vez, criaria zonas de 3 À diferença de Araújo (1994), acreditamos que, no pensamento de Freyre, a mestiçagem não pode ser vista como uma mistura com ares democráticos, até porque a sua ideia de mestiçagem era conformada desde uma hierarquização em que o elemento luso era imperante. 4 Sabe-se que Silvio Romero também apontava a originalidade brasileira a partir da mestiçagem. Contudo encarava-a como um fato que não deveria ser discutido como positivo ou negativo e argumentava que, com o tempo, elementos brancos - por esta ser, supostamente, a raça mais numerosa do Brasil - viriam a predominar na constituição brasileira (ROMERO, [s./d.], p. 28). Em Freyre, a argumentação sobre a mestiçagem teria tonalidades mais vibrantes e de esperança concreta na realização, confirmada para ele, de uma civilização tropical particular e “elevada”. 5 confraternização entre vencidos e vencedores (Ibid., 2013, p. 33). Deste modo, não é de se estranhar que o lócus máximo de realização desta nova nação tropical seja a família patriarcal, instalada na Casa-grande dos latifúndios. E Freyre vai ainda mais longe. Comparando a colonização portuguesa no Brasil às colonizações levadas a cabo por outras nações europeias, o intelectual pernambucano argumenta que aquela foi superior e logrou conformar uma nova nação diversa da metropolitana. Uma das razões disso seria o fato de nossa unidade colonial ser a família patriarcal e não o indivíduo, feito ingleses na América do Norte; o Estado, como entre os espanhóis, e as companhias de comércio, conforme fora comum entre holandeses

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