1

A SEMENTE DA TRANSFORMAÇÃO: O RENASCIMENTO DO CHORO NA DÉCADA DE 70.

Paula Veneziano Valente Universidade de São Paulo – USP Doutorado em Música Processos de Criação Musical Subárea de Linguagem e Estruturação Musical / Teoria da Música

Resumo: A presente comunicação faz parte da nossa tese em andamento, que tem como ponto central o choro contemporâneo, analisando seus principais elementos de transformação, especialmente o procedimento da improvisação na performance dos grupos atuais. Esta apresentação tem como principal objetivo uma refleção sobre a década de 70 e o chamado “renascimento do choro”, identificando-o como um período significativo para as modificações do gênero no século XXI. Entendemos que este importante movimento deve ser devidamente avaliado, e considerado como um impulso, cujas ideias floresceram nas novas correntes do choro contemporâneo. Vários músicos que iniciaram suas carreiras nesta época seguiram em suas trajetórias ousando novos caminhos, enriquecendo e modificando o gênero. Os grupos atuais nos revelam que o choro está em constante mudança, reforçando a ideia de que as características que identificam um gênero não são estáticas, ou seja, eles têm a capacidade de transformação, de ampliação, e ainda de relacionamento entre si.

Palavras chave: Música Brasileira, Choro, Década de 70.

Summary: This communication is part of our thesis in progress, which has as its central point the contemporary choro, analyzing their elements of transformation, especially the procedure of improvisation in performance of the current groups. This presentation reflects on the decade of 70 and the so-called "Renaissance of the choro", identifying it as a significant period for the modifications of the genre in the 21st century. We believe that this important movement must be properly assessed, and considered as an impulse, whose ideas flourished in the new currents of contemporary choro. Several musicians who began their careers at this time followed in their experience daring new paths, enriching and modifying the genre. The current groups reveal to us that choro is in constant change, reinforcing the idea that the characteristics that identify a genre are not static, they have the ability to transform, to enlarge, and the relationship between them.

Keywords: Brasilian Music, Choro, Decade of 70.

Este artigo é parte de um capítulo de nossa tese que dedicaremos às ideias que tranformaram o gênero choro. Nele trataremos da improvisação no decorrer do século XX, dos principais nomes ligados às inovações do choro, além deste importante movimento, que abordaremos a seguir.

Na década de 70 o choro passou por acontecimentos notadamente importantes, em um período também conhecido como “renascimento” ou “revitalização” do gênero. Apesar do termo nunca ter sido um consenso, estas expressões procuraram explicar o que ocorreu nesta ocasião, que para alguns foram anos promissores e benéficos, enquanto para outros, não significou exatamente um período muito favorável. 2

Este período durou poucos anos, aproximadamente de 1974 a 1979. Nesta época, havia uma preocupação dos jornalistas, críticos e músicos em relação à crescente influência da música norte-americana e de uma aparente falta de interesse pela música brasileira. As principais questões discutidas giravam em torno do resgate de um gênero musical que se acreditava estar desaparecendo, restrito ao passado, à preservação da tradição e à autenticidade. As gravações de choro consolidadas nas décadas anteriores, e consagradas até meados dos anos 50, eram consideradas como representantes desta tradição. A corrente tradicionalista acreditava que o choro era o gênero genuinamente brasileiro, e que deveria ser preservado como expressão da identidade musical brasileira, em contraposição, principalmente, às influências do jazz, do pop e do rock.

O acontecimento que inaugurou esta revitalização foi o show realizado em 1974, denominado Sarau, apresentado por e o conjunto Época de Ouro1. O principal objetivo deste encontro era apresentar o choro carioca aos jovens, teve como produtor e idealizador o jornalista e crítico musical Sergio Cabral, figura ligada à questão da preservação e divulgação da música popular brasileira.

Neste momento inicial, a TV Cultura criou um programa chamado “O Choro das Sextas-Feiras”, no qual diferentes intérpretes se apresentavam semanalmente para tocar choro2. Estes programas fizeram com que o gênero ganhasse espaço na mídia mais importante para o público da época, a televisão, conquistando maior espaço para o choro que andava um pouco esquecido.

Havia no final dos anos 70, vários grupos de choro formados especialmente por jovens. Podemos citar alguns deles: Os Carioquinhas, Galo preto, Choro Roxo, Cinco Companheiros, Levanta Poeira, Anjos da Madrugada, Éramos Felizes e Fina Flor do Samba. Esta geração de jovens músicos interessados pelo choro foi uma das marcas deste período, considerados impulsionadores deste movimento, porém, dos grupos novos que surgiram, somente Os Carioquinhas e o Galo Preto gravaram discos. Segundo Cazes3, os outros grupos demoraram a amadurecer e quando viram a onda já tinha passado.

Observando esta questão, vemos que na década de 70 várias rodas se estabeleceram e atraíram ouvintes e músicos, em especial a roda de um bar no , no bairro da Penha, o Sovaco de Cobra. Neste lugar se reuniam, aos sábados à tarde, grandes talentos do choro, da velha à nova guarda. Era considerado um templo do 3 gênero, e suas reuniões contavam com nomes importantes como: , Abel Ferreira, Altamiro Carrilho, músicos do Época de Ouro. Também participavam os instrumentistas que estavam começando suas carreiras, e faziam parte dos novos grupos.

A abertura de clubes do choro também foram acontecimentos relevantes da época. Estes clubes tinham como função ser mais um instrumento de divulgação e de defesa da música popular brasileira, especificamente do choro, contra a invasão das músicas estrangeiras de modo geral. Os clubes promoviam shows, festivais, reuniões, rodas de choro e até aulas.

Outros dois eventos marcantes desse momento aconteceram em 1976 e 19774. Um no Rio de Janeiro, na sala Cecília Meirelles, onde um grande público se aglomerou para ouvir Abel Ferreira, Luperce Miranda, Joel Nascimento, Déo Rian, Os Carioquinhas, Paulo Moura e o conjunto de Radamés Gnatalli. Em São Paulo, no coreto do Jardim da Luz, “quase três mil pessoas cantaram e dançaram ao som da flauta de Altamiro Carrilho e da voz de Ademilde Fonseca, a rainha do Chorinho” (Autran 2005, p.79). Estes concertos são considerados exemplos do vigor do choro na época, e de um crescente interesse da indústria cultural pelo gênero.

Tendo em vista todos os fatos ocorridos nestes anos, a indústria dos discos não poderia ficar alheia ante aos possíveis sucessos comerciais. Além das gravadoras particulares, as gravações de choro deste período foram produzidas muitas vezes por investimentos governamentais. A indústria fonográfica se valeu deste momento de efervescência, em que o mercado carecia de produtos e que o consumo, e o público, eram crescentes. Aliado a uma forte queda na vendagem das gravações de samba, em 1977, as gravadoras começaram a regravar os discos de choro, como também gravar os shows e festivais ao vivo - o que para elas se tornava um produto barato e lucrativo, porém de qualidade questionável.

Em artigo publicado no jornal Estado do Paraná em 1977 (p.26), Aramis Millarch revela sua preocupação:

E o interesse, por enquanto, é crescente. Um dos maiores perigos que alguns vêm na massificação do choro seria a repetição daquilo que acabou prejudicando o samba em seu boom comercial há 4 anos: a queda da qualidade, aparecendo o "sambão-jóia". O argumento tranquilizador é que o choro requer muito mais sensibilidade e técnica, tanto de quem toca como de quem ouve. Ou seja, é difícil aparecer um Benito Di Paula no choro. Em 4

compensação, as gravadoras estão esvaziando seus baús, relançando velhas matrizes, muitas vezes sem maiores critérios.

Ainda em relação ao mercado fonográfico, é importante destacar o nome de Marcus Pereira, publicitário com intensa participação no mercado de discos da época. Sua gravadora foi a primeira a entender este processo, abrindo caminho para a série de discos produzidos posteriormente. Apesar de muito sucesso, não sobreviveu ao mercado das multinacionais, passando a ser um produtor independente.

Não podemos deixar de mencionar que o chorinho também fez parte intensa das programações das rádios, como tema de telenovela e jingles comerciais, com intensa divulgação nos meios de comunicação.

O 1º Encontro Nacional do Choro ocorreu em 1977, em São Paulo5, no Anhembi, com a participação de nomes como: Waldir de Azevedo, Pernambuco do Pandeiro, Abel Ferreira, Eudóxia de Barros, Carlos Poyares, Zimbo Trio e Raul de Barros, importantes figuras ligadas à divulgação e preocupadas com os rumos da música brasileira.

No Rio de Janeiro ocorreu um festival patrocinado pelo MEC, com prêmios para composições inéditas e para melhor performance, com um juri formado por críticos, musicólogos e músicos, alcançando grande sucesso e obtendo outras duas edições nos anos seguintes.

Em São Paulo, os eventos mais importantes foram os dois festivais de choro da TV Bandeirantes. O primeiro chamado Brasileirinho, de 1977, teve 1.200 músicas inscritas de todo país, das quais foram 36 selecionadas, todas originais6. Em nossas pesquisas sobre este festival descobrimos que, logo na primeira eliminatória, uma composição provocou muita polêmica; chamada Espírito Infantil, de Mú de Carvalho7. Segundo o próprio compositor, no site oficial do grupo: “era um choro meio jazz, uma harmonia louca, um fraseado dissonante, divisões quebradas.” Em seguida, já na segunda eliminatória, o Choro Cromático de Benjamin S. Araújo, um dos fundadores do Clube do Choro de São Paulo, defendido pelo piano de Amilton Godói. Além do inusitado piano solista, participou com inovações na estrutura melódica e harmonia complexa para os padrões da época. Ambas as composições não levaram o prêmio, provando que a corrente tradicionalista prevaleceu, já que o ganhador 5 foi Ansiedade, de Rossini Ferreira, uma composição com características notadamente conservadoras.

O segundo festival, chamado Carinhoso, aconteceu no ano seguinte, em 1978, mas já com menor repercussão. Também foi lançado um disco com as 12 finalistas, todas elas composições nos moldes tradicionais do gênero, sem transformações relevantes. Desta vez, quem recebeu o prêmio de primeiro lugar foi K- Ximbinho, com o choro Manda Brasa. Um músico que sempre se mostrou influenciado pelo jazz, e conhecido por ser um instrumentista improvisador, compôs aqui um choro típico.

Observamos nestes festivais que a maioria dos choros tinha uma abordagem tradicionalista, foram poucos os exemplos que alteravam os paradigmas da época. Entendemos, porém, que a idéia de inovação estava, de certo modo, latente, inaugurando um discurso transformador que ressurgiu no século XXI, com mais representatividade e claramente mais amadurecido.

O contexto sócio-econômico brasileiro da época se relacionou diretamente com o renascimento analisado. Estávamos em plena ditadura militar e no campo cultural havia uma forte influência norte-americana, tanto nas rádios, como na televisão. Este, possivelmente, foi um dos motivos que levou parte da sociedade, principalmente os intelectuais, a procurar uma “saída” para o que era considerado uma invasão estrangeira, apoiando a música nacional. Por outro lado, esta própria indústria cultural apropriou-se deste projeto, com pretensões de alçar o choro à música típica brasileira. Como o choro era um gênero basicamente instrumental, não sofria a pressão da censura da época, e provavelmente foi um fator que contribuiu para ampliar seu espaço na cultura musical brasileira. Segundo Roberto Moura (O Dia, novembro de 1977 apud Autran, p.81), o choro poderia ser definido como “a antimúsica de protesto”, e que num momento de tensão para todas as artes brasileiras, não parecia coincidência que a MPB ressurgisse por meio de um gênero estritamente instrumental, onde não é preciso dizer nada.

Por um lado, a retomada foi vista por alguns com bons olhos, por acreditar que se estava finalmente fazendo justiça à música popular, e dando o valor que ela sempre mereceu. Por outro, haviam pessoas que consideravam esta revalorização, ou renascimento, como descaracterizante para o gênero. 6

O choro nunca teve pretensões a ser um produto para as massas, ou seja, seu público sempre foi modesto; as apresentações, na maioria das vezes, eram feitas em casas particulares, pequenos ambientes, nas famosas rodas de choro, sendo esta característica intimista intrínseca ao gênero. Esta era a grande contradição: o sucesso e o aumento de público, para alguns, distorcia a verdadeira função que o choro trazia de suas origens.

Outros autores também viram o movimento com ressalvas, como Tinhorão: "O choro só vai ficar em evidência, enquanto as multinacionais do disco não tiverem outro iê-iê-iê para nos massificar". (1977, apud Millarch). Este mesmo crítico, falando sobre o II Festival de Choro de 1978, do qual participou como juri, assume uma postura tradicional e conservadora contra os que queriam modernizar o choro:

Quem quiser algo diferente que crie o Festival de Choro de vanguarda para gênios de alta classe média. Ou mate o povo que o incomoda com sua pobreza, sua rotina, sua falta de cultura, seu apego à tradição da orelhada, seu instrumental ‘ultrapassado’ e sua vocação para ser autêntico.8

A questão tradição versus inovação sempre foi a grande problemática enfrentada pelo gênero, não só naquela época como até hoje. A pergunta que sempre se apresenta é: até que ponto pode-se inovar permanecendo dentro do gênero? Quantas transformações um gênero pode suportar sem perder sua identidade?

Tárik se Souza registra, em artigo de 1980, poucos anos após o início deste

"revival":

Mas estaria de fato perdido o esforço de ressurreição iniciado em 74, no sucesso nacional do show Sarau, com Paulinho da Viola e o Época de Ouro? Teriam sido tragados pelo liquidificador da discothèque todas as dezenas de conjuntos de nomes geralmente pitoresco, como o Choro Roxo, Éramos Felizes, Galo Preto, Anjos da Madrugada, Chapéu de Palha, Os Coroas, Rio Antigo, Noites Cariocas, Amapá, Chorões da Paulicéia, Bach Chorando, Os Boêmios, Amigos do Choro, Cinco Companheiros?

O autor não parece otimista quando observa que, entre 76 e 78, o choro chegou a acumular nas lojas quase meia centena de novos títulos e, em 1980, voltou ao pequeno número de meia dúzia de discos anuais. Porém, analisando a discografia desta década, inclusive a relativa aos festivais, não encontramos características relevantes inovadoras para o gênero. Apesar da grande quantidade de gravações, em sua maioria eram discos 7 de choro tradicional. Esta fase, de modo geral, beneficiou principalmente a divulgação do repertório tradicional (Jacob do bandolim, , Nazareth etc.) e, praticamente, não favoreceu o surgimento de novos compositores.

Examinando este movimento percebemos que, inicialmente, era uma iniciativa de um grupo de intelectuais e de músicos, preocupados com a memória musical brasileira, e com a expansão do choro como um gênero popular autêntico e representativo. Com o tempo, reuniu também o interesse da indústria fonográfica, e o envolvimento da política cultural do governo, com expressivo apoio de organismos oficiais.

Segundo os mais tradicionalistas, o movimento transformou uma das principais características do choro, sua informalidade, presente nas apresentações das rodas de choro e a improvisação que acontecia nas performances. Por outro lado, uma corrente mais progressista também esteve presente, vislumbrando novas possibilidades de criação dentro do gênero, como transformações na forma, na harmonia, na instrumentação e na improvisação.

Concluímos que as novas perspectivas lançadas pelo choro atual, com suas características transformadoras nos mostra que este importante movimento pode ser considerado uma espécie de impulso, o início de uma trajetória que culminou neste início de século. Vários músicos que iniciaram suas carreiras nesta época continuaram suas trajetórias procurando novos caminhos, enriquecendo e modificando o gênero.

Para finalizar este texto, gostaríamos de esclarecer que a razão pela qual resolvemos nos deter neste tema, foi a de ampliarmos, de certa maneira, nossos estudos sobre o movimento atual do choro, que é a parte essencial da nossa tese. Entendemos que este representa um processo dinâmico, que vem se desenvolvendo desde esse período.

Referências Bibliográficas:

AUTRAN, Margarida. “Renascimento e descaracterização do choro”. In Novaes, Adauto (organização). Anos 70, ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2005. 8

MILLARCH, Aramis. Choro, 1977. Artigo publicado originalmente no Jornal Estado do Paraná, Caderno: Almanaque. Seção: Jornal da Música p.1, 04/12/1977. Disponível em: . Site consultado em Fevereiro de 2012.

PETERS, Ana Paula. De ouvido no rádio. Os programas de auditório e o choro em Curitiba. Curitiba, Dissertação de mestrado,UFP, 2005.

SOUSA, Miranda Bartira Tagliari Rodrigues Nunes de. O clube do choro de São Paulo: arquivo e memória da música popular na década de 1970. São Paulo, Dissertação de Mestrado, UNESP, 2009.

SOUZA, Tárik de. Viva o choro novo! Texto originalmente publicado na revista Som Três, em agosto de 1980. Disponível em: . Site consultado em Dezembro de 2011.

1 Época de Ouro é um conjunto regional de choro fundado por Jacob do Bandolim em 1964, que teve grande importância no movimento de resistência do choro na década de 1960. Após a morte de Jacob, em1969, o grupo se dissolveu, reunindo-se novamente para este evento, agora com Déo Rian como bandolinista. 2 Estes programas foram ao ar de outubro de 1974 a janeiro de 1976, em rede nacional. Souza (2009, p.32-33). 3 http://cliquemusic.uol.com.br/materias/ver/chorinho-passado--presente-e-futuro. 4 Comemoração do centenário de nascimento do choro. 5 Foi encontrado artigo que indica a realização de um 1º Encontro nacional do Choro em Londrina, de 29 de novembro a 4 de dezembro de 1977 (Millarch, idem); porém não conseguimos documentos que confirmem esse fato. 6 Um disco foi lançado posteriormente com as 12 finalistas vendendo 7.000 cópias em 2 meses 7 Integrante do grupo A Cor do Som, formado em 1977 por Armandinho (guitarra, guitarra baiana e cavaquinho), Dadi (baixo), Mú de Carvalho (piano, teclado) e Ary Dias (bateria). 8 Elites musicais começam a implicar com o choro, Jornal do Brasil, (21/10/1978) apud Autran, 2005.