UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS - PROFLETRAS

BRUNA FRANCINETT BARROSO FAUSTINO DE SOUZA

EXPERIÊNCIAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL: A CONTRIBUIÇÃO DAS NARRATIVAS LITERÁRIAS

NATAL/RN 2019

BRUNA FRANCINETT BARROSO FAUSTINO DE SOUZA

EXPERIÊNCIAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL: A CONTRIBUIÇÃO DAS NARRATIVAS LITERÁRIAS

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras pelo Programa de Mestrado Profissional em Letras – ProfLetras – da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Orientadora: Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos.

NATAL/RN 2019

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Souza, Bruna Francinett Barroso Faustino de. Experiências de leitura e escrita no Ensino Fundamental: a contribuição das narrativas literárias / Bruna Francinett Barroso Faustino de Souza. - Natal, 2019. 217f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Mestrado Profissional em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientadora: Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos.

1. Ensino - Dissertação. 2. Leitura - Dissertação. 3. Escrita - Dissertação. 4. Narrativa - Dissertação. 5. Experiência - Dissertação. I. Campos, Sulemi Fabiano. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 811.134.3:37

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

BRUNA FRANCINETT BARROSO FAUSTINO DE SOUZA

EXPERIÊNCIAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL: A CONTRIBUIÇÃO DAS NARRATIVAS LITERÁRIAS

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras pelo Programa de Mestrado Profissional em Letras – ProfLetras – da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Aprovada em: _____/_____/______.

BANCA EXAMINADORA:

______Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Presidente

______Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Examinadora interna

______Profa. Dra. Ana Crélia Penha Dias Universidade Federal do – UFRJ Examinadora externa

______Profa. Dra. Kátia Cilene Ferreira França Universidade Federal do Maranhão – UFMA Examinadora externa

Dedico este trabalho, em primeiro lugar, à minha família, que criou uma grande rede de suporte para que eu pudesse cursar o Mestrado. E o dedico também à minha aluna Karol Oliveira (in memoriam), que marcou a sua passagem neste mundo com gestos de alegria e esperança e me deu boas aulas sobre persistir em busca dos sonhos.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, o meu Bom Pai, pela saúde e pela disposição necessárias nestes anos de muito estudo e trabalho. Agradeço aos meus grandes apoiadores: a minha mãe Dona Ivete, o meu esposo Juscelino e os meus filhos Gabriel, Ester e Samuel por entenderem a minha ausência e por fazerem parte desta minha conquista. A minha gratidão aos professores do ProfLetras/Natal por compartilharem valiosas aprendizagens de forma humana e comprometida; em especial, à Coordenação do Programa, na pessoa de Alessandra Castilho, pela dedicação à turma e presteza em atender a cada mestrando com eficiência. A minha gratidão aos amigos que torceram por mim e me incentivaram a prosseguir nos momentos mais desanimadores e aos meus colegas de Curso pelo encorajamento a cada nova pedra no caminho. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo incentivo à pesquisa materializado na concessão da Bolsa, sem a qual seria insustentável o projeto de voltar à Academia. E, por fim, mas não menos importante, agradeço aos meus alunos participantes da Pesquisa por torná-la possível e única; e, de modo especial, a cada aluno e ex-aluno, ao longo destes 21 anos de docência, pelas parcerias responsáveis pela construção das experiências e consequente formação profissional e pessoal.

AGRADECIMENTO ESPECIAL

À orientadora

Estar de volta aos bancos acadêmicos, depois de 13 anos, foi um grande desafio. Embora a formação continuada fosse uma preocupação permanente, voltar à Academia não foi fácil e, sem as valiosas contribuições de uma orientadora exigente, teria sido ainda mais difícil. Por isso, agradecer à orientação da professora Sulemi é reconhecer o seu papel fundamental na minha trajetória no ProfLetras. A sua forma de problematizar, sem dar respostas prontas, conduziu-me a reflexões complexas sobre as leituras teóricas e sobre a minha própria prática; provocou-me a curiosidade científica e permitiu-me a autonomia e o amadurecimento enquanto discente. Além disso, a sua forma de orientar representou o seu respeito aos meus saberes e me proporcionou segurança para buscar novos conhecimentos que justificassem teoricamente o meu fazer prático. Assim, ensinou-me a teoria de maneira invisível quando me apresentou Larrosa, por exemplo, e ressignificou a minha visão de docência. Através da sua dedicação e da sua agenda sempre preenchida, ensinou-me sobre disciplina, compromisso e responsabilidade. E, ainda, a sua atuação política me ensinou sobre a importância da participação social e do posicionamento político do professor. Por tudo isso, a minha gratidão sincera à minha orientadora Sulemi Fabiano Campos. Sem dúvidas, uma nova referência para a minha vida.

RESUMO

A exposição excessiva aos textos de linguagem mais objetiva e de comunicação instantânea disponíveis em meios digitais exerce alguma influência na produção escrita dos alunos do Ensino Fundamental no espaço escolar? O acesso às experiências de leitura através de narrativas literárias pode favorecer o desenvolvimento de outras habilidades de leitura e escrita mais complexas? Partindo dessas questões, desenvolvemos uma pesquisa social sob o paradigma qualitativo, conforme Bortoni-Ricardo (2008), de naturezas interventiva e interpretativista. O procedimento metodológico usado para a intervenção é a realização de oficinas de leitura e escrita a partir de narrativas literárias, desenvolvidas na Escola Municipal Deputada Maria do Céu Pereira Fernandes, da cidade de Goianinha/RN. O objetivo geral da pesquisa é construir experiências significativas de leitura literária a partir do acesso às experiências dos autores dos textos lidos, a fim de que, tendo o que dizer, os alunos desenvolvam satisfatoriamente a escrita de forma subjetiva e criativa. Assim, os objetivos específicos são: i) diagnosticar as práticas de leitura mais recorrentes para os estudantes e o impacto dos textos de comunicação imediata nas redes sociais na sua construção narrativa; ii) analisar os diferentes modos de dizer dos autores das narrativas lidas e suas implicações na construção de sentidos pelos alunos; e iii) promover produções escritas de narrativas literárias valorizando as experiências dos estudantes. Para isso, tomamos como aporte teórico a concepção dialógica da linguagem de Bakhtin (2004) e adotamos a concepção de indissociabilidade das práticas de leitura e escrita, bem como a distinção entre redação e produção textual, conforme Geraldi (2003; 2009; 2012; 2015). Partimos da definição de leitura rigorosa quanto à recuperação de pistas interpretativas do texto, conforme Riolfi et al. (2014), mas também da definição de leitura subjetiva, de acordo com as contribuições teóricas de Rouxel, Langlade, Rezende (2013), a fim de chegarmos à produção de narrativas literárias em consonância com Dalvi, Resende e Rover-Faleiros (2013) e consideramos a necessidade de espaços na Escola para a experiência como aquilo que nos toca, de acordo com a noção de Larrosa (2017).

Palavras-chave: Ensino. Leitura. Escrita. Narrativa. Experiência.

ABSTRACT

Does the excessive exposure to more objective language texts and instant communication available in digital means exert any influence on writing productions of primary school students in the school environment? Does the access to reading experiences through literary narratives can favour the development of more complex abilities of reading and writing? Starting from these questions we developed a social research under the qualitative paradigm, according to Bortoni-Ricardo (2008) of interventional and interpretational natures. The methodological procedure used for the intervention is the realisation of reading and writing workshops from the literary narratives developed in the Municipal School Deputada Maria Do Céu Pereira Fernandes in the city of Goianinha/RN. The general aim of the research is to build meaningful experiences of literary reading, starting from the access to the author’s experiences of the texts that were read, aiming that by having what to say, the students can develop satisfactorily a subjective and creative writing. So, the specific goals are: I) diagnose the most recurrent practices of reading for the students and the impact of immediate communicative texts on social network in its narrative construction; ii) analyse the different ways of saying from the authors of the narratives that were read and their implications on meaning construction by the students; iii) promote writing productions of literary narratives valuing the experiences of the students. For this, we took as theoretical support the concept of dialogical language by Bakhtin (2004) and we adopted the conception of indissociability of reading and writing practices, as well as the distinction between essay and writing production according to Geraldi (2003; 2009; 2012; 2015). We started from the definition of strict reading regarding to the recuperation of interpretation clues on the text according to Riolfi et al. (2014), but also the definition of subjective reading according to the theoretical contributions of Rouxel, Langlade, Rezende (2013), aiming to arrive on the productions of literary narratives in accord with Dalvi, Resende e Rover-Faleiros et al. (2013) and we considered the necessity of spaces in the school to experience how that touches us, in accord with the notion of Larrosa (2017).

Keywords: Teaching. Reading. Writing. Narrative. Experience.

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Conceitos relacionados às teorias da leitura subjetiva ...... 51 Quadro 2 - Distribuição dos alunos de acordo com o bairro ...... 60 Quadro 3 - Distribuição dos alunos de acordo com a idade ...... 61 Quadro 4 - Critérios apontados para a escolha de um livro ...... 66 Quadro 5 - Práticas de leitura ...... 67 Quadro 6 - Preferência de material para acessar e publicar nas redes sociais ...... 68 Quadro 7 - participação na atividade diagnóstica ...... 71 Quadro 8 - Grade de análise da produção inicial ...... 73 Quadro 9 - orientações para Comunidade de leitores e Diário de leitura ...... 90 Quadro 10 - Ficha de autoavaliação ...... 90 Quadro 11 - Situação geral das produções do Módulo 2 ...... 149 Quadro 12 - Sugestões para atividade de vivências ...... 165 Quadro 13 - Ficha de avaliação ...... 168 Quadro 14 - Dificuldades no processo de escrita ...... 172

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Frequência ao cinema...... 65 Gráfico 2 - Frequência ao teatro ...... 65 Gráfico 3 - Frequência à biblioteca ...... 65 Gráfico 4 - Conteúdo mais acessado da internet ...... 68 Gráfico 5 - Definição da internet ...... 69 Gráfico 6 - Dificuldades no processo de escrita ...... 171

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - A indissociabilidade entre a leitura e a escrita ...... 33 Figura 2 - Questionário para aluno ...... 64 Figura 3 - Texto motivador produção inicial ...... 70 Figura 4 - Modelo de grade 1 ...... 72 Figura 5 - Modelo de grade 2 ...... 73 Figura 6 - TI 1 ...... 74 Figura 7 - TI 2 ...... 75 Figura 8 - TI 3 ...... 76 Figura 9 - TI 4 ...... 78 Figura 10 - A1 ...... 81 Figura 11 - A2 ...... 83 Figura 12 - A3 ...... 84 Figura 13 - A4 ...... 85 Figura 14 - Capa do livro Os Meninos Verdes ...... 91 Figura 15 - Capa do livro Seminário dos ratos ...... 97 Figura 16 - Capa do livro A menina sem palavra ...... 103 Figura 17 - Diários de leitura ...... 110 Figura 18 - Diário 1/registro 1 ...... 111 Figura 19 - Cubo elementos da narrativa...... 114 Figura 20 - Envelopes com contos de Cora Coralina ...... 114 Figura 21 - Diário 1/registro 2 ...... 115 Figura 22 - Momento de registro nos Diários 1 ...... 117 Figura 23 - Confecção de cartaz ...... 118 Figura 24 -Momento de produção ...... 119 Figura 25 - Momento de reescrita ...... 120 Figura 26 - Diário 1/registro 3 ...... 122 Figura 27 - Momento de conclusão da narrativa 1 ...... 123 Figura 28 - Fichas de registros em grupos ...... 130 Figura 29 -Varal com os textos ...... 131 Figura 30 - Organização da sala ...... 132 Figura 31 - Diário 2/registro 4 ...... 133 Figura 32 - Diário 1/registro 5 ...... 134

Figura 33 - Alunos registrando as primeiras impressões no Diário ...... 135 Figura 34 - Momento da escolha de livros para empréstimo ...... 136 Figura 35 - Atividade de reescrita ...... 138 Figura 36 - Leitura do conto “A cabeça” ...... 141 Figura 37 - Narrativa produzida pela professora-pesquisadora ...... 143 Figura 38 - Primeira versão das narrativas do Módulo 2 ...... 145 Figura 39 - Momento de registros nos Diários 2 ...... 146 Figura 40 - Diário 6/registro 6 ...... 146 Figura 41 - Ficha de autoavaliação preenchida 1 ...... 147 Figura 42 - Ficha de autoavaliação preenchida 2 ...... 148 Figura 43 - Momento de reescrita do Módulo 2 ...... 150 Figura 44 - Diário 1/registro 6 ...... 159 Figura 45 - Momento de registro nos Diários 3 ...... 160 Figura 46 - Diário 1/registro 7 ...... 161 Figura 47 - Mapa interpretativo ...... 162 Figura 48 - Momento da atividade do mapa interpretativo ...... 163 Figura 49 - Mapa interpretativo produzido pelos alunos ...... 164 Figura 50 - Mediação da professora através de lapbook ...... 166 Figura 51 - Momento da escrita da primeira versão ...... 167 Figura 52 - Cartaz dos mapas interpretativos produzidos ...... 170 Figura 53 - Sessão de fotos ...... 181 Figura 54 - Foto da turma com a Gestão da Escola ...... 182 Figura 55 - Apresentação do projeto ...... 182 Figura 56 - Mediadores de leitura ...... 183 Figura 57 - Encenação “O despertar do narrador” ...... 183 Figura 58 - Participação das alunas ...... 184 Figura 59 - Foto vencedora do concurso ...... 185

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 15 2 CONSTRUTOS TEÓRICOS: O SABER CONDUZ O FAZER ...... 22 2.1 Contextualização do ensino de LP e normatização do estudo do texto ...... 22 2.2 Visões teóricas e escolhas metodológicas dos professores ...... 28 2.3 Uma concepção de leitura e escrita: a indissociabilidade ...... 32 2.4 Novas tecnologias da informação e da comunicação e a construção da experiência....36 2.5 O texto literário no Ensino Fundamental ...... 43 2.5.1 O espaço do texto literário no contexto escolar ...... 43 2.5.2 O lugar dos sujeitos: a leitura subjetiva ...... 49 3 ASPECTOS METODOLÓGICOS: O FAZER E O PENSAR SOBRE O FAZER ...... 52 3.1 Paradigma de pesquisa ...... 52 3.2 O contexto de pesquisa ...... 58 3.3 Os colaboradores da pesquisa ...... 60 3.4 Diagnósticos dos sujeitos de pesquisa ...... 62 3.4.1 Instrumento 1: o questionário ...... 62 3.4.2 Instrumento 2: produção textual inicial ...... 70 3.4.3 Instrumento 3: a autobiografia de leitor ...... 79 4 O PLANEJAMENTO: CAMINHOS PARA A INTERVENÇÃO ...... 87 4.1 A experiência na/da intervenção: que experiência é esta? ...... 88 4.2 O planejamento do Módulo1: O papel do narrador e dos tipos de discurso nos efeitos de sentidos ...... 91 4.3 O planejamento do Módulo 2: A caracterização de ambiente e personagens e construção do suspense ...... 97 4.4 O planejamento do Módulo 3: O desenvolvimento dos acontecimentos na construção narrativa ...... 103 5 A EXPERIÊNCIA DO VIVIDO: POSSIBILIDADES E DESAFIOS ...... 109 5.1 A experiência do Módulo 1 ...... 109 5.1.1 Oficina Os sentidos do/no texto ...... 109 5.1.2 Oficina Os detalhes no texto ...... 112 5.1.3 Oficina Da conversa para a escrita ...... 116 5.1.4 Oficina Escrever-ler-escrever ...... 120

5.1.5 Oficina Construção e socialização ...... 121 5.2 A experiência do Módulo 2 ...... 131 5.2.1 Oficina A hora do suspense ...... 131 5.2.2 Oficina Um olhar para as sutilezas do texto ...... 137 5.2.3 Oficina A leitura do mundo precede a leitura do texto...... 139 5.2.4 Oficina Suspense compartilhado ...... 141 5.2.5 Oficina Jogo de reescritas ...... 145 5.3 A experiência do Módulo 3 ...... 158 5.3.1 Oficina Primeira leitura que toca ...... 159 5.3.2 Oficina Na trilha interpretativa do texto ...... 162 5.3.3 Oficina Projeção dos eus ...... 164 5.3.4 Oficina Da escrita para a reescrita ...... 167 5.3.5 Oficina Compartilhando histórias, construindo experiências ...... 169 5.4 A experiência do encerramento do projeto ...... 180 5.4.1 O lançamento do livro “Narrativas que florescem”...... 181 5.4.2 A apresentação do livro para a comunidade escolar...... 184 6 AFINAL, POR QUAIS PORTOS HAVEMOS DE PASSAR? ...... 187 REFERÊNCIAS ...... 192 APÊNDICE A - AUTOBIOGRAFIA DE LEITORA ...... 195 APÊNDICE B - EDITAL DO CONCURSO DE FOTOS ...... 197 APÊNDICE C - FOTOS DO CONCURSO DE FOTOS ARTÍSTICAS ...... 198 ANEXO A - FOLDER DISTRIBUÍDO NO LANÇAMENTO DO LIVRO...... 201 ANEXO B - LIVRO “NARRATIVAS QUE FLORESCEM” ...... 202 15

1 INTRODUÇÃO

“A aposta não é nova, nem eu o primeiro ou o último utopista.” (GERALDI, 2003, p. 42)

Fazemos uso das palavras do Geraldi para iniciar este trabalho porque explicitam o pensamento que o fundamenta: uma aposta que não é nova, mas que, a serviço de mais uma utopista, uma professora de Língua Portuguesa na Educação Básica da rede pública há 21 anos, ressignifica a sua própria prática enquanto contribui para o reposicionamento de outros docentes. E para entender a aposta, passamos a discutir o seu contexto. É certo que a palavra é capaz de registrar as fases das mudanças sociais ao longo da História. Nesse sentido, é indiscutível que a leitura e a escrita são práticas complexas que exercem um papel determinante nas relações sociais em todas as suas dimensões e, devido a esse protagonismo e à complexidade que lhes é própria, são interesses permanentes da escola. Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), a escola tem a responsabilidade de garantir aos estudantes os saberes linguísticos necessários para uma atuação cidadã, considerada um direito inalienável. Com o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação, as práticas sociais de leitura e escrita sofreram um considerável impacto, especialmente entre crianças e adolescentes que já nasceram na era digital e que não apresentam maior resistência a elas. Diante desse contexto, à escola se coloca o desafio de utilizar essas novas tecnologias a serviço do ensino e da aprendizagem, ampliando as possibilidades de participação social dos estudantes. Os PCN (BRASIL, 1998) já traziam a proposta de incorporar as novas tecnologias de informação e comunicação às práticas escolares para garantir aos alunos uma aprendizagem que atendesse às demandas sociais. Mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 9) reitera essa orientação, definindo como uma das dez Competências Gerais a serem desenvolvidas em todas as áreas: “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais”. Concernente à área de Linguagens, o documento assume a ideia de que a linguagem é uma construção humana, histórica, social e cultural, numa perspectiva enunciativo-discursiva e quanto à abordagem de ensino, o texto ganha centralidade. Constitui-se, pois, como mais um passo nas políticas públicas educacionais do país, sobretudo por dialogar com diretrizes anteriores. Por outro lado, o documento acrescenta, às já cristalizadas práticas e ao objeto de 16

ensino, as transformações ocorridas no século passado e intensificadas no atual, em virtude do desenvolvimento das novas tecnologias multimídias, considerando-as decisivas para a participação do estudante nas esferas pública, profissional e pessoal. A relevância do documento é indiscutível, todavia há outras competências igualmente importantes para o desenvolvimento dos educandos em sua integralidade. Não pretendemos desprezar a importância da multiplicidade de linguagens disponíveis nos meios digitais e as possibilidades comunicativas decorrentes como objetos de estudo nas aulas de Língua Portuguesa (LP). Não se trata disso, já que é imperativo que o ensino acompanhe as mudanças sociais, tendo em vista o caráter histórico e social da própria linguagem. A questão que levantamos é o risco de a escola, a pretexto de trabalhar com textos de interesse mais imediato dos estudantes, como os de comunicação instantânea em aplicativos em redes sociais1, abandonar outras possibilidades de leitura e escrita, sob pena de negar ao estudante a interação com outras linguagens, como a literária. A partir da observação inicial das experiências de leitura e escrita dos estudantes de uma escola pública da rede municipal, na cidade de Goianinha, Rio Grande do Norte, notamos que: a) por um lado, os adolescentes leem e escrevem muito em ambientes digitais; b) por outro lado, no espaço escolar, constituem um sério desafio tanto a interpretação das narrativas literárias propostas pelo LD, quanto a produção de narrativas que exigem maior subjetividade2. É certo que há inúmeras possibilidades de utilização dos meios digitais que podem contribuir para o uso e o estudo da linguagem, tais como: consultas de ortografia e verbetes, leitura integral ou de fragmentos de obras canônicas, interação com poemas digitais, construção de e-books; porém, o que notamos em relação aos hábitos de leitura e escrita do grupo observado foi que tais possibilidades quase sempre são ignoradas. Nesse ponto, os recursos disponíveis nos meios digitais não eram aproveitados satisfatoriamente, pois os alunos observados faziam uma subutilização das suas potencialidades, restringindo o uso ao aspecto comunicativo imediato; em especial, observamos que poderia haver relação entre a superficialidade das narrativas produzidas pelos alunos em aula e o excesso de exposição a textos informativos e comunicativos de caráter mais imediato, mais curto, de linguagem e

1 Estamos considerando como textos de comunicação instantânea em aplicativos em redes sociais, os textos usados, com maior frequência, pelos adolescentes em Facebook e WhatsApp (mensagens, comentários, legendas, status etc). 2 Empregamos o termo “subjetividade” aqui neste trabalho para nos referirmos à escrita mais pessoal, sem a preocupação em obedecer a um modelo de estrutura e com o compromisso de o aluno se projetar no texto com mais autonomia. 17

composição estrutural mais objetiva e simplificada, recorrentes nos aplicativos de redes sociais pela necessidade comunicativa, a natureza dos textos e o próprio suporte textual. Tais situações observadas devem ser problematizadas ao pensarmos o processo de ensino/aprendizagem, pois, segundo pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação e divulgada no Portal TecMundo3, oito em cada dez brasileiros entre 9 e 17 anos têm acesso à internet; entre adolescentes das classes D e E, o índice chega a 70%. Ou seja, a adolescência atual está exposta a uma gama de informações sobre os mais diversos assuntos, inclusive os adolescentes oriundos de classes menos privilegiadas. Entretanto, observando o comportamento dos nossos alunos, constatamos que, embora apresentem certas dificuldades para cotejar, relacionar ou aplicar as informações nesses espaços, interagem com os textos de comunicação imediata com mais propriedade do que com os textos de linguagem literária. Assim, ressaltamos que, por um lado, o discurso comumente ouvido entre professores de que os alunos não leem nem escrevem não se sustenta, uma vez que os adolescentes estão lendo e escrevendo muito nos meios digitais; e, por outro lado, isso não representa necessariamente que estão lendo e escrevendo significativamente em se tratando de outros textos, como as narrativas literárias. Portanto, propomos trabalhar com essa linguagem, a fim de construir outras experiências de leitura e escrita. Considerando o contexto de ensino atual, é comum um questionamento entre professores de LP na Educação Básica: como ensinar aos alunos a ler e escrever significativamente, valendo-se das sutilezas da linguagem, em um tempo em que eles estão submetidos a práticas de leitura e escrita que exigem linguagem e estrutura mais rápidas e objetivas? Considerar a complexidade da leitura e da escrita como práticas sociais é considerar também um trabalho aberto às novas práticas de interação humanas, sem rejeitar outras possibilidades de construção de experiências. Assim, a nossa pesquisa tem sua relevância por contribuir com a reflexão sobre as implicações negativas de uma prática docente que privilegie uma competência da BNCC em detrimento das demais, sob pena de incorrer em um ensino pouco abrangente e não cumprir a proposta do documento. Desse modo, propomos o (re)conhecimento e a (re)construção da formação dos alunos por meio de leituras de narrativas literárias que permitam o resgate da consciência do leitor quanto à complexidade do mundo do escrito para que, a partir da percepção das experiências

3 Disponível em: . Acesso em: 22 set. 2018.

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de escrita dos autores das narrativas lidas, os alunos (re)descubram a magia e a imprevisibilidade necessárias ao ato de escrever e escrevam seus textos, como sujeitos que se reconhecem como tal e que, mais que isso, valorizam os diferentes modos de dizer, inerentes à concepção dialógica da língua, os quais são particular e privilegiadamente perceptíveis no discurso literário. Reconhecemos a importância da escrita sob outro viés, para além da escrita numa perspectiva utilitarista e prevemos a contribuição das narrativas literárias no que tange à formação escritora através de experiências, para além dos textos mais objetivos e da imitação inconsciente e mecânica de gêneros discursivos trazidos pelo LD, de forma modelar. Diante disso, tomamos como objeto de pesquisa: o acesso ao discurso literário por meio da leitura de narrativas literárias e sua provável contribuição na produção escrita dos alunos de uma turma de 8º ano do Ensino Fundamental (EF), da Escola Municipal Deputada Maria do Céu Pereira Fernandes; e pretendemos responder às seguintes questões: a) A exposição excessiva aos textos de linguagem mais objetiva e de comunicação instantânea, disponíveis em aplicativos nos meios digitais, exerce alguma influência na produção escrita dos alunos do Ensino Fundamental? b) O acesso ao discurso literário e às experiências dos autores dos textos lidos, através da leitura de narrativas literárias, pode favorecer o desenvolvimento de uma escrita mais proficiente? Vinculadas às questões expostas, formulamos as seguintes hipóteses: 1. Há relação entre o excesso de exposição aos textos de linguagem objetiva e de comunicação mais imediata nas redes sociais e a superficialidade das construções narrativas dos adolescentes no espaço escolar. 2. O acesso à experiência dos autores das narrativas literárias lidas pode potencializar o processo de formação leitora dos estudantes e, consequentemente, o desenvolvimento da escrita subjetiva criativa. A fim de pensarmos o problema da superficialidade das produções narrativas dos alunos, adotamos inicialmente a perspectiva de Geraldi (2003, p. 137):

[...]para produzir um texto (em qualquer modalidade) é preciso que a) se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz [...]; e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d). A proposta se opõe à forma como as escolas têm tratado a escrita, conferindo-lhe um caráter artificial e improdutivo que prejudica a percepção dos estudantes quanto à importância na sua participação social. Assim, definimos os seguintes objetivos: 19

➢ Objetivo geral: Construir experiências significativas de leitura literária a partir do acesso às experiências dos autores dos textos lidos, a fim de que, tendo o que dizer, os alunos desenvolvam satisfatoriamente a escrita de forma subjetiva e criativa. ➢ Objetivos específicos: • Diagnosticar as práticas de leitura mais recorrentes para os estudantes e o impacto dos textos de comunicação imediata nas redes sociais na sua construção narrativa; • Analisar os diferentes modos de dizer dos autores das narrativas lidas e suas implicações na construção de sentidos pelos alunos; • Promover produções escritas de narrativas literárias valorizando as experiências dos estudantes. A fim de atendermos aos objetivos, adotamos o paradigma qualitativo, uma vez que não se pode negligenciar o contexto sócio-histórico no qual os alunos se inserem; e, nessa perspectiva, os métodos empregados são de caráter interventivo e interpretativista, permitindo a reflexão sobre a própria prática à professora-pesquisadora4. O trabalho parte da aplicação de um questionário que serve ao diagnóstico em relação ao perfil de alunos quanto às experiências com leitura e escrita, o que não desconfigura a pesquisa como qualitativa, uma vez que o instrumento foi adotado com a finalidade de mapear o que foi observado inicialmente; além disso, foi proposta aos alunos a produção inicial de uma narrativa de experiência para análise e comparação futura; e, ainda com caráter diagnóstico, foi solicitada a autobiografia de leitor, a fim de que professora e alunos se percebessem como sujeitos leitores e produtores de sentidos. A intervenção consiste em três Módulos de Oficinas, sendo cada um constituído de cinco Oficinas. Cada Módulo agrupa as Oficinas em torno de um conhecimento mobilizador em comum com duração de 10 a 12 aulas, o que representa um total de 30 a 36 aulas. Destacamos que, embora tenhamos optado por introduzir cada Módulo de Oficinas por meio de em conto motivador, não abordamos aqui a questão do gênero para a escrita dos alunos, por entendermos que, ao solicitarmos uma narrativa literária dos alunos, conferimos a eles a autonomia para escrever um conto, uma fábula, uma crônica, um texto de memórias etc. Ou seja, entendemos, com isso, que solicitar uma narrativa pode lhes proporcionar uma reflexão

4 Optamos por usar o termo “professora-pesquisadora” neste trabalho por defendermos a visão de indissociabilidade entre a teoria e a prática em uma proposta de intervenção nos moldes do Programa do Mestrado Profissional em Letras. 20

crítica quanto ao gênero que melhor se aplicaria à situação e, portanto, conferiria mais sentido ao processo de escrita e de aprendizagem. Como mencionado, o trabalho foi desenvolvido na Escola Municipal Deputada Maria do Céu Pereira Fernandes, uma escola pública da cidade de Goianinha/RN. Nela, os colaboradores da pesquisa são, principalmente, os estudantes de uma turma de 8º ano do EF, a partir de uma relação colaborativa, ora entre alunos, ora entre professor e alunos, a fim de incentivar a autonomia dos alunos e valorizar a troca de experiências. Os estudantes foram incentivados a trabalhar colaborativamente para o melhor aproveitamento das possibilidades de aprendizagens e a registrar as suas impressões individuais de leitura em um Diário. Como resultado da experiência, compilamos as narrativas dos alunos em um livro intitulado “Narrativas que florescem” (disponível como Anexo B) e como produto educacional, em resposta às exigências do ProfLetras, organizamos um Caderno Pedagógico intitulado “Oficinas de leitura e escrita: relato da experiência do vivido”, constando as experiências vividas durante as oficinas (disponível em repositório digital do Programa). Os dados da pesquisa são gerados principalmente por produções textuais dos alunos, mas também por fichas avaliativas e questionários aplicados para fins de diagnóstico, além de fotos, notas de aulas e registros individuais nos Diários de leitura. Este trabalho foi organizado em quatro partes, a saber: No primeiro capítulo, fazemos referência aos construtos teóricos nos seguintes tópicos: i) de início, apresentamos a contextualização do ensino de língua pátria no Brasil e as causas e consequências da normatização do estudo do texto em sala de aula, a partir da visão de Geraldi (2003; 2009; 2012; 2015) e Neves (2017); ii) no segundo tópico, tratamos do modo como as concepções de um professor interferem na sua prática; iii) depois, explicitamos a concepção de leitura e escrita à qual o trabalho se filia, baseada nas contribuições de Geraldi; iv) em seguida, abordamos as demandas decorrentes dos avanços tecnológicos no contexto de ensino, os riscos da adoção de uma prática voltada unicamente para os textos com características mais utilitárias, partindo de Palfrey e Gasser (2011), além da perspectiva de criação de espaços para a experiência nas escolas, de acordo com Larrosa (2017); v) por fim, um tópico para defendermos a importância da leitura literária na perspectiva do sujeito leitor como alternativa para o desenvolvimento de experiências éticas e estéticas de leitura e escrita, conforme contribuições de Dalvi, Resende e Rover-Faleiros et al. (2013), Riolfi et al. (2014), Rouxel, Langlade, Rezende (2013). O segundo capítulo faz referência aos procedimentos metodológicos e traz a seguinte distribuição: i) apresentação da metodologia de pesquisa, segundo Bortoni-Ricardo (2008); ii) 21

o contexto de pesquisa e a caracterização da escola; iii) a apresentação dos colaboradores da pesquisa; iv) o diagnóstico dos sujeitos de pesquisa. No terceiro capítulo, apresentamos a proposta de intervenção nos seguintes tópicos: i) a aplicação da noção de experiência; ii) o planejamento dos Módulos de Oficinas. Já no quarto capítulo, apresentamos a experiência do vivido em cada uma das Oficinas com a análise dos dados, relacionando-os e aos objetivos propostos. Por fim, expomos as conclusões e as considerações finais do trabalho.

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2 CONSTRUTOS TEÓRICOS: O SABER CONDUZ O FAZER

“Escolha-se, por inevitabilidade, o posto. Escolhido, o posto é movediço. É preciso desenhá-lo” (GERALDI, 2003, p. 5)

As problemáticas inerentes ao espaço escolar quanto à(s) aprendizagem(ns) não têm uma solução instantânea e simplista. Dada a complexidade dos desafios que se apresentam à prática docente na Educação Básica (EB), há diferentes meios para diferentes objetivos. Apropriamo-nos da fala de Geraldi para destacarmos que cabe aos professores a escolha de uma abordagem teórica que fundamente o seu trabalho, já que a teoria e a prática são aliadas. É, pois, este o objetivo deste capítulo: construir a trajetória teórica percorrida para nos fundamentar. Assim, escolhemos como ponto de partida (e de chegada) o processo interlocutivo da linguagem sob a perspectiva dos eixos definidos por Geraldi (2003) — a historicidade da linguagem, o sujeito e suas interações. Organizamos o capítulo em cinco pilares: a) inicialmente, abordamos a normatização do texto na sala de aula, segundo Geraldi (2003; 2009; 2012; 2015) e Neves (2017), por entendermos que a problemática que levantamos é resultante de uma construção histórica em torno do estudo de língua pátria; b) em seguida, abordamos concepções de leitura e escrita, segundo Pietri (2007) e Leffa (1999), a fim de defendermos que as atividades planejadas pelos professores são por elas motivadas; c) abordamos a indissociabilidade entre leitura e escrita, consoante Geraldi (2003; 2009; 2012; 2015), por propormos a leitura como meio para desenvolver a escrita; d) seguindo, abordamos benefícios e limitações de uma prática focada nas novas tecnologias da informação e da comunicação, bem como a possibilidade de criação de um espaço para a experiência no contexto escolar, segundo Palfrey e Gasser (2011) e Larrosa (2017), respectivamente; e) por fim, abordamos a relevância da leitura literária na construção de novas experiências, consoante Riolfi et al. (2014), Dalvi, Resende e Rover-Faleiros et al. (2013) e Rouxel, Langlade e Rezende. (2013). Passamos a desenhar o nosso posto para ratificar a intervenção.

2.1 Contextualização do ensino de LP e normatização do estudo do texto

O insucesso de muitos estudantes brasileiros concernente à interpretação e à produção de textos é frequentemente apontado no cerne de discussões sobre a qualidade da educação. Os indicadores apontam para uma sequência de resultados insatisfatórios em avaliações externas e 23

reiteram a crise no sistema educacional no país, cujas causas múltiplas e históricas impossibilitam uma resolução imediata, motivo pelo qual se arrasta ao longo de décadas, atestando a ineficiência de práticas. Assim, o objetivo desta seção é conhecer a construção que se deu historicamente em torno da língua, a fim de entendermos o contexto atual do ensino de LP nas escolas públicas brasileiras, conforme algumas contribuições de Neves (2017) e, principalmente, de Geraldi (2015). Inicialmente, a sistematização gramatical sempre foi utilizada para a difusão de uma língua entre povos conquistados, ou seja, a língua foi tomada como aspecto essencial para a dominação de um povo e, na tentativa de unificá-la, reforça-se o desejo de domínio de uma cultura. Conforme Geraldi (2015), no Brasil colônia, a sistematização gramatical se deu por necessidade de contato e exploração, por isso afirmamos que há uma relação entre a reflexão sobre a língua e o exercício do poder. Tal contexto explica por que professores de LP com dicas e normas do “bom uso” fazem sucesso até hoje, e que os veículos de comunicação de massa explorem negativamente os “desvios gramaticais” cometidos por pessoas públicas, ou que as chamadas “pérolas do Enem” sejam destaque nas redes sociais todos os anos. Aliado a isso, materiais didáticos populares entre os professores ignoram diferenças regionais e locais ou as citam como se fossem anormalidades. Isso pinta um quadro de retorno à correção gramatical rígida que cala uma parte da população a qual, convencida de não saber falar, silencia e, silenciada, é sobrepujada. Logo, a manutenção do silêncio mantém a hegemonia de um pensamento e corrobora as relações de poder. Ao longo dos anos, a escola desenvolveu um papel de guardiã dos valores tradicionais referentes à linguagem. Somente na década de 90, com a popularização dos PCN, o material adotado para ensino e o foco das aulas mudaram; todavia, sob uma visão equivocada. Pela influência direta que os Livros Didáticos (LD) têm na prática dos professores, é preciso considerarmos como o aparecimento e o desenvolvimento da ciência linguística provocou mudanças no material adotado: os livros, que antes traziam textos clássicos, predominantemente, passaram a trazer gêneros de linguagem coloquial e popular, com representações das interações orais, gerando um entendimento equivocado de que a escola não deveria tratar da modalidade padrão escrita. É claro que a abordagem desses textos representaria um avanço na Educação se não se tratasse de uma mera substituição desses em lugar daqueles. Segundo Neves (2017), acabou-se por estabelecer uma incoerência entre os textos oferecidos para leitura e os solicitados para análise linguística. Estes, evidentemente, na variedade padrão e essa incoerência só acentuou o distanciamento entre o que se ensina nas 24

aulas e o uso recorrente dos alunos. A autora destaca que a escola atual sofre a acusação de privilegiar o ensino de uma variante em detrimento das outras, ou seja, a norma padrão, mais especificamente na modalidade escrita. Mas, parafraseando a pergunta de Neves (2017), a quem caberia a tarefa de ensinar a variedade padrão da língua na forma escrita, além da escola? Se os alunos já têm acesso a outras variantes da língua em outras instâncias de interação e se já conhecem e aplicam os recursos disponíveis para a interação oral, não se espera que a escola ensine a falar informalmente. Desse modo, é papel da escola, sim, tratar da língua escrita na forma convencionada como padrão. Obviamente que isso não significa reforçar estigmas, atribuindo valoração negativa às variantes dos estudantes. É bem provável que eles, ao conhecerem a variante padrão, passem a usá-la em suas interações por reconhecerem o seu papel social, inclusive no tocante à inclusão em espaços sociais e aos bens culturais formais. Entretanto, a alteração de código não deve se dar na perspectiva de substituição de um pelo outro, mas de adequação às situações, buscando- se o respeito à heterogeneidade constitutiva da linguagem, até porque ensinar exige respeito aos saberes dos alunos, no sentido de

[...] não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam [...] mas também... discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos (FREIRE, 1996, p. 30).

Com isso, a escola cumpre o seu papel de oferecer o acesso à variedade padrão, sem fortalecer preconceitos linguísticos. Ainda na perspectiva de Neves (2017), os professores de LP sofrem com a insatisfação diante da — como chama Geraldi (2003) — crise de expressão dos estudantes e o seu baixo desempenho, mas também com a pressão dos professores de outros Componentes Curriculares e Equipe Pedagógica, que os apontam a cada “erro” dos estudantes. Sofrem ainda com a cobrança da família dos alunos e da sociedade em geral que, culturalmente, esperam que as aulas de LP se centralizem no jogo dicotômico de erro/acerto pela formação que tiveram. Essa insatisfação dos professores com a crise de expressão dos alunos pode representar dúvidas em relação ao objeto de ensino da Disciplina; a pressão dos colegas de trabalho pode representar a ausência de compreensão da concepção de linguagem como atividade fundamental no desenvolvimento do homem, em qualquer área e como patrimônio da cultura escrita, gerando a responsabilização unicamente dos professores de Português; e a cobrança da sociedade pode representar o entendimento equivocado de que o ensino da língua é o ensino da norma. 25

Desse modo, é preciso que esclareçamos que ensinar a variante padrão escrita não é reforçar preconceitos ou incentivar a discriminação; é, na verdade, fomentar o acesso à sistematização dos saberes letrados, sem o qual, estaria formalizando as desigualdades de oportunidades e realização pessoal, já que conhecer e aplicar a norma padrão escrita é também meio de inclusão na sociedade. Enfim, o sistema escolar tem papel determinante na promoção das crianças e adolescentes, sobretudo daqueles oriundos das classes mais marginalizadas, cuja variedade, quase sempre, se distancia ainda mais da forma aceita como padrão; isso, por representar o melhor, talvez até o único, meio de acesso a esse bem simbólico na nossa cultura letrada. Para a autora ainda, na contramão do que se espera, a escola brasileira, apesar de alguns avanços já mencionados, ainda insiste no ensino da metalinguagem, até mesmo na tentativa de minimizar as cobranças e acusações que sofre, numa perspectiva mumificada da língua. Dessa forma, ao desconsiderar o uso, o ensino torna-se artificial. Por outro lado, há professores que, fundamentados na crítica ao ensino prescritivo da língua, assumem uma prática baseada na ideia de que não se pode corrigir. Neste trabalho, assumimos que ambas as visões apresentadas são equivocadas e defendemos que a imposição da variedade padrão, associada à intolerância e à valoração negativa à variedade que os alunos dominam, gera a rejeição ao que a escola propõe, além de provocar insegurança nas crianças em relação à própria linguagem, pois a elas é apresentada uma língua que não reconhecem como sua. A aversão se manifesta quando os alunos se veem diante de um papel em branco, já que, ao desconsiderar a sua variante, a escola os faz pensar que eles não sabem a língua e, pois, também não sabem escrever. Logo, as crianças passam a enxergar a escrita apenas como uma atividade escolar, desvinculada das práticas de uso com as quais elas já estão familiarizadas. Em outras palavras, na vida, as crianças escrevem para se comunicar e na escola elas escrevem para obter uma nota e isso é desmotivador. A distinção entre redação e produção textual proposta por Geraldi (2015) não se restringe a uma questão de nomenclatura e nisso já identificamos um primeiro equívoco. Não são termos equivalentes, mas de compreensões distintas do ato de escrever. Para o autor, escreve-se porque — e quando — se tem o que dizer e para quem dizer, o que ele denomina como produção textual. Com base nisso, escolhe-se como dizer, tanto no sentido composicional, quanto no sentido de seleção das palavras, com uma intenção real e clara, a fim de se alcançar uma determinada finalidade. Uma possibilidade de minimizar esse distanciamento das atividades escolares em relação às situações de uso da língua está na centralidade do texto, conforme propõem os 26

documentos oficiais; mas também é preciso refletirmos sobre como esse objeto de estudo das aulas pode se transformar em um vilão, em se tratando do seu uso como pretexto para análise linguística ou mesmo para o estudo estrutural do gênero discursivo sem considerar a singularidade dos enunciados em função do seu caráter dialógico. Com a publicação dos PCN (BRASIL, 1996), adotou-se nas escolas uma prática fundamentada a partir de gêneros e a proposta se transformou na didatização dos textos5, isto é, a normatização comumente adotada no estudo da gramática da frase foi incorporada ao ensino dos gêneros discursivos, de modo que eles passaram a ser também normatizados e os professores passaram a desenvolver atividades cujo objetivo era escrever, segundo o modelo dos textos estudados. E o que poderia ser uma solução para o ensino da escrita passou a ser um problema por: a) podar a criatividade dos estudantes, já que estes passaram a imitar o texto-modelo, como se não houvesse várias formas de dizer uma mesma coisa, como se escrever fosse um ritual ou técnica; b) focar no aspecto composicional, em um processo de engessamento do texto, o qual, dissecado em partes, é apresentado como forma, desconsiderando o fato de que a estabilidade dos gêneros é relativa, em virtude das condições de produção e os fins interacionais; c) e, sobretudo, por aumentar o fosso entre a escola e as práticas reais de uso, visto que os alunos não sabem por que escrevem. Segundo Geraldi (2015), os gêneros discursivos foram tomados como objeto de ensino, deixando de ser vistos como processos disponíveis para a atividade discursiva humana realizáveis nas esferas de interação. O estudo bakhtiniano prestou-se, pois, “a um deslocamento no ensino que vai das tentativas de centração na aprendizagem através das práticas, para objetos definidos previamente, seriáveis, unificados e exigíveis em avaliações nacionais” (GERALDI, 2015, p. 79). Nada menos bakhtiniano, uma vez que, vista assim, a prática de ensino fundamentada nos gêneros deixa de cumprir o seu objetivo. Por essa razão, rejeitamos aqui a ideia de trabalhar a partir de gêneros discursivos nessa perspectiva engessada em que eles perdem a natureza do texto em uso significativo; adotamos, pois, a perspectiva de Geraldi (2003, p. 135) ao afirmar:

Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua. [...] Sobretudo, porque é no texto que a língua – objeto de estudos – se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto discurso que

5 Ferrarezi Jr. E Carvalho (2017) introduzem a obra trazendo essa mesma problematização em relação ao tratamento dado ao texto na sala de aula, sobretudo com referência à leitura. 27

remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas dimensões.

Ainda em consonância com Geraldi (2015), tomamos a escola como lugar de aprendizagem(ns), considerando que professores e alunos são aprendizes, apesar de em patamares distintos. Nessa visão, concebemos um modelo de escola que centra seu ensino nas práticas, abrindo-se às aprendizagens, no plural, sem que se defina um ponto de chegada fixo, não por falta de planejamento ou de objetivos, mas por valorizar o processo acima do produto, devolvendo a voz aos estudantes. Nesse entendimento, tratamos o texto sem necessidade de engessá-lo em uma estrutura e sem intenção de sobrepor a forma ao conteúdo, pois “... não se trata simplesmente de redigir um texto sobre determinado tema, mas de dizer algo a alguém a propósito de um tema. A imaginação se sobrepõe à correção do dizer, ainda que esta possa ser buscada não só no sentido gramatical da expressão” (GERALDI, 2015, p. 78). Pelo reconhecimento da ineficiência de práticas que engessam o texto e o distanciam das relações sociais, propomos que os estudantes tenham a oportunidade de dizer algo a alguém, partindo da subjetividade das próprias histórias de vida e do acesso a experiências de leitura, isto é, rejeitamos uma prática que possa reiterar a normatização transferida do estudo da gramática para o estudo dos gêneros, a fim de que os alunos concebam o texto como atividade discursiva com significado. Reconhecemos que a normatização do texto tem causas na construção histórica em torno do ensino da língua, bem como tem consequências nas produções escritas dos estudantes, seja pela tentativa de uma escrita modelar6, seja pela supervalorização da forma em detrimento do conteúdo, seja pela excessiva preocupação com os aspectos gramaticais. Tendo explicitado o contexto geral de ensino de LP, os avanços e obstáculos quanto à redefinição do texto como objeto de ensino na perspectiva dialógica e a nossa posição de rejeição à normatização, tratamos das concepções de leitura e escrita a seguir, por entendermos que a falta de clareza nessas concepções também causa práticas equivocadas.

6 Ao usarmos a expressão “escrita modelar”, referimo-nos à tentativa dos alunos de usarem textos de escritores reconhecidos como modelos e ao fato de alguns professores ainda usarem em suas aulas esquemas listando as palavras ou expressões para iniciar cada parágrafo. 28

2.2 Visões teóricas e escolhas metodológicas dos professores

Conforme a problemática quanto ao papel dado ao texto em sala de aula de LP, julgamos indispensável uma reflexão sobre as concepções de leitura e escrita por entendermos que há uma relação com as atividades planejadas pelos docentes. Por isso, o objetivo desta seção é abordar algumas dessas concepções, segundo contribuições de Pietri (2007) e Leffa (1999), bem como Geraldi (2003) e Freire (1996). A concepção teórica dos professores tem implicações diretas na sua prática e, como consequência, a sua atuação em sala interfere na concepção que os estudantes constroem inconsciente e/ou empiricamente sobre leitura (e escrita). Assim, recorremos inicialmente a dois autores que discorrem sobre as concepções de leitura. No entender de Pietri (2007), a leitura é, por um lado, uma prática social escolarizada pelo fato de as pessoas considerarem ser uma das funções da escola ensinar a ler e, por outro lado, uma prática não escolar pelo fato de alguém poder desenvolver habilidades de leitura fora da escola. Para o autor, ao pensar no ensino de leitura, é preciso, primeiramente, refletir sobre a relação leitor-texto. Consideramos tal definição pouco abrangente, tendo em vista que se limita à relação entre leitor e texto; ademais, trata da leitura escolar e não-escolar de uma maneira dicotômica, como se fossem práticas excludentes, quando, na verdade, podem ser tratadas como práticas complementares. Em Leffa (1999), as linhas que discutem a leitura podem ser organizadas em três abordagens: a ascendente (a leitura na perspectiva do texto), a descendente (a leitura com ênfase no leitor) e a conciliatória (considera texto, leitor e processo interativo). Na primeira, tem-se o foco no próprio texto e a leitura é vista como um processo de extração de um sentido único para o texto, dado pelo autor; vista dessa forma, a leitura na sala de aula se mostra limitada pelo fato de, quase sempre, o sentido do texto ser dado pelo professor de acordo com o que subjaz ao texto, dando ao aluno, como leitor menos experiente, um papel secundário. Quanto à segunda abordagem, o foco está no leitor, e não no texto, e os sentidos atribuídos resultam de conhecimentos linguísticos, textuais e enciclopédicos e de fatores afetivos, dentre os quais o autor destaca a importância das experiências de vida do leitor; para ele, nas vivências do dia a dia o leitor constrói uma representação mental do mundo, a qual é acionada quando este se coloca diante de um texto, ou seja, o processo deixa de ser extração de sentido para ser atribuição de sentido; vista por esse ângulo, a leitura em sala de aula é mais produtiva por considerar diferentes leitores e suas experiências de vida e o professor passa a ser um dentre os 29

leitores. Já na terceira abordagem, a leitura é vista como uma atividade mental e social; na perspectiva interacional há a ampliação da abordagem centrada no leitor, pois a relação se dá entre o leitor, o texto e o autor, ou seja, o texto é construído também pelo leitor à medida que este lhe atribui sentidos, levando em conta as convenções de interação social. Se, por um lado, a primeira abordagem de Leffa é limitada por considerar que o sentido está no texto; por outro, apesar de a segunda ser mais abrangente do que a primeira, também apresenta uma limitação, tendo em vista que o leitor é tomado como soberano, como se pudesse atribuir qualquer sentido, o que não é verdade, porque há sentidos desautorizados pela materialidade do texto. Já a abordagem interacional, é a que mais se aproxima de uma prática voltada para a língua como meio de interação. Como notamos, seja em Pietri, seja em Leffa, é possível concluirmos que a concepção que os professores assumem tem uma relação com os objetivos que definem e com as atividades que propõem aos alunos; consequentemente, tem relação com as experiências de leitura dos estudantes e o modo como eles a concebem que, por sua vez, tem relação com os resultados obtidos na leitura e também na escrita. Portanto, quando pensamos no contexto atual de ensino de língua pátria, pensamos também nas concepções implícitas na atuação docente, pois um professor que planeja atividades priorizando questões formais da língua ou estrutura composicional do texto só o faz porque construiu determinadas concepções ao longo da formação e da trajetória de docência. Uma das consequências de lacunas na formação dos profissionais é a dependência ao LD. Repetir seus exercícios, sem reflexão sobre os objetivos ou sem julgamento quanto à relevância do que se pede para a formação de experiências significativas de leitura e escrita ou mesmo solicitar atividades de “produção textual” de atas e requerimentos, por exemplo, sem um interlocutor ou qualquer alusão às esferas de circulação desses textos é também um equívoco. Ao limitarmos a nossa aula ao LD, incorremos no erro de desconsiderar a dinamicidade das manifestações linguísticas dos estudantes e a potencialização da aprendizagem que a heterogeneidade dos seus modos de dizer pode proporcionar. Essa perspectiva de uso crítico e reflexivo do LD requer o reposicionamento dos professores, pois lhes confere mais autonomia na mobilização dos conhecimentos e recursos disponíveis. Partindo do entendimento das abordagens levantadas e da sua relação com a adoção de estratégias de ensino, esclarecemos que para nós: i) ler não é decodificar — apesar de a decodificação estar implicada na leitura — e não é extrair um sentido que está unicamente no texto, limitando o papel do leitor; ii) ler também não é atribuir qualquer sentido, desconsiderando a materialidade do texto ou os contextos, conferindo ao leitor um papel 30

soberano. Assim, a concepção adotada concorda com a defendida por Geraldi (2003) de que a leitura é um encontro com o texto, porém não apenas isso, mas também um encontro com o outro, o encontro de um eu com um tu. Para o autor:

É por isso “que se fala em compreensão de um texto, e não em reconhecimento de um sentido que lhe seria imanente, único. Não se creia, no entanto, que a labilidade seja tal que a relação, através de um texto, entre um eu e um tu seja impossibilitada. Na produção de sentidos, há ao mesmo tempo uma abertura e um fechamento (GERALDI, 2003, p. 103).

Sendo assim, a leitura é uma abertura no sentido de o leitor ser um sujeito ativo na produção de sentidos e é, ao mesmo tempo, um fechamento por não permitir qualquer leitura, sem considerar as pistas dadas pela materialidade escrita; é uma atividade individual por exigir conhecimentos e experiências individuais, mas também uma atividade social por se constituir na interação com o autor e com outros leitores. Essa concepção prevê o respeito à heterogeneidade, pois a aula de leitura passa a ser um espaço de compartilhamento de saberes a partir do texto, proporcionado pelas “situações dialógicas ilimitadas que constituem suas possíveis leituras” (AUTHIER-REVUZ, J., 1982, p. 104 apud GERALDI, 2013, p. 91). Considerar essa concepção de leitura é reconsiderar o papel dos professores, os quais passam a ser também leitores, cuja leitura configura como mais uma dentre as possíveis. Esse reposicionamento é importante porque:

O diálogo entre professoras ou professores e alunos ou alunas não os torna iguais, mas marca a posição democrática entre eles ou elas. [...] O diálogo tem significação precisamente porque os sujeitos dialógicos não apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim crescem um com o outro (GERALDI, 2003, p. 162).

Ou seja, entendermos a leitura dessa forma exige o reposicionamento dos professores porque não lhes permite uma postura autoritária, de modo que não se sustenta a ideia de serem eles os detentores do conhecimento; não cabe aos professores fornecer o sentido do texto, já que é possível que o texto não tenha um único sentido, cabendo-lhes a função de gerenciar a discussão do grupo em torno dos sentidos possíveis em concordância com as pistas linguísticas e com os contextos de produção e recepção dos textos. Tal discussão deve ser conduzida de maneira não-hierárquica, de modo que o diálogo promova o crescimento e a autonomia dos sujeitos envolvidos. Sendo assim, a resistência dos professores em relação à leitura de mundo com que os educandos chegam à escola pode se constituir, na visão de Freire (1996, p. 122), “um obstáculo à sua experiência de conhecimento”. Para esse autor, respeitar a leitura do mundo dos alunos 31

não significa adotá-la como a melhor ou a correta, mas tomá-la como ponto de partida para a produção do conhecimento, o que se aplica inclusive à leitura, sendo possível, assim, falar em leituras possíveis. Evidentemente que, sendo o professor um leitor mais experiente, o seu papel na condução da leitura dos seus alunos é fundamental; em contrapartida, se ele tiver a iniciativa de orientar quanto às diferentes estratégias de leitura para diferentes fins, é esperado que os alunos conquistem autonomia. Por essa razão, se a concepção de leitura defendida aqui exige o reposicionamento do professor, também exige o reposicionamento dos estudantes, o qual pressupõe a sua autonomia que se constrói à medida que têm acesso a diferentes experiências de leitura, seja na dimensão individual ou na coletiva. Freire (2018, p. 105) afirma:

Ler um texto é algo mais sério, mais demandante. Ler um texto não é “passear” licenciosamente, pachorrentamente, sobre as palavras. É apreender como se dão as relações entre as palavras na composição do discurso. É tarefa de sujeito crítico, humilde, determinado.

Temos, pois, no leitor, segundo Freire, um sujeito: a) crítico, pela possibilidade de assumir uma posição sobre o texto, em concordância ou não; b) humilde, pela forma como se mostra disponível para aprender a cada nova leitura; c) e determinado, por se deixar envolver pelo texto para entendê-lo. A um professor de EF, desenvolver esses três aspectos do sujeito leitor é uma iniciativa muito cara, pelas possibilidades de favorecer a proficiência na leitura não só como atividade escolar, mas como prática de participação social em resposta à inserção dos discentes em instâncias públicas formais. Diante da complexidade e da relevância, o ensino de leitura se apresenta em primeiro lugar como um desafio, em virtude do crescente número de suportes e práticas atuais e as diferentes estratégias possíveis a serem acionadas de acordo com os objetivos do leitor. Em segundo, como um risco, por exigir o seu reposicionamento crítico concernente às atividades e à metodologia propostas, sobretudo porque, de acordo com Geraldi (2003, p. 113) “Recompor a caminhada interpretativa do leitor [...] exige atenção ao acontecimento dialógico que ocorre no interior da sala de aula.”. E, por fim, como um compromisso social, por ampliar o acesso dos discentes aos bens culturais formais e por proporcionar a formação e participação cidadãs, devolvendo-lhes a palavra. Após pensarmos sobre a concepção de leitura adotada, tratamos da concepção de escrita. Se para Riolfi et al. (2014, p. 63), “ler é um ato criador que retira da apreensão estática aquele que lê passivamente”, podemos depreender que, ao ler, uma pessoa se movimenta da sua 32

condição passiva de receptora do texto para a condição ativa de construtora de sentidos e, como tal, formula outros textos tomando como base aquilo que leu. Isso, entretanto, não se dá por imitação, como se o texto ao qual a pessoa teve acesso fosse o modelo a seguir, de acordo com o que vemos comumente nas aulas baseadas em gêneros discursivos, de forma didatizada. Na verdade, o que ocorre é que as experiências de leitura, construídas a partir do acesso às experiências dos autores dos textos lidos, permitem a alguém ter o que dizer, reconhecendo que há, inclusive, várias formas de dizer. Isso se dá porque “os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como ‘produto’ deste mesmo processo” (GERALDI, 2003, p. 6). Sendo assim, escrever para nós não é uma técnica ou um dom, também não se limita a uma tarefa escolar. Mais que isso, escrever é uma forma de atuação nas diferentes instâncias sociais, é a “devolução do direito à palavra às classes desprivilegiadas” (GERALDI, 2003, p. 135), é um meio de participação cidadã, é ter voz; e, vendo assim, é um direito7 por colocar o indivíduo como “autor e ator de seu lugar no mundo” (CASTRILLÓN, 2011, p. 90). Nessa perspectiva, ler e escrever são práticas intrinsecamente ligadas, de modo que a prática docente precisa considerá-las em colaboração, conforme defenderemos no próximo tópico.

2.3 Uma concepção de leitura e escrita: a indissociabilidade

Nesta seção, o objetivo é explicitar a indissociabilidade existente entre leitura e escrita e defender as consequências dessa visão de indissociabilidade na nossa prática. Partimos, pois, da visão de leitura e escrita como práticas sociais indissociáveis, isto é, só se lê porque alguém escreveu e só se escreve com base no que se leu e porque se tem algo a dizer para alguém que lerá. Geraldi (2003) explicita essa ideia de indissociabilidade ao falar do processo dialógico usando a metáfora dos fios de um bordado que tecem outros bordados, de modo que o encontro dos fios gera uma cadeia. Ou seja, o leitor é sempre marcado pelas experiências dos autores dos textos que leu e essas experiências que o marcam podem gerar outros textos. Essa relação está ilustrada na Figura 1 abaixo:

7 Castrillón, em seu livro O direito de ler e de escrever, de 2011, defende a leitura e a escrita como direitos dos indivíduos para a atuação na sociedade. Na obra, a autora destaca a necessidade de tratamento das práticas como políticas públicas. 33

Figura 1 - A indissociabilidade entre a leitura e a escrita

Fonte: Elaborada pela autora (2019).

Ademais, essa indissociabilidade está pressuposta também no que o autor chama de movimento equilibrado entre as tendências da diferenciação e da repetição (GERALDI, 2003, p. 12). A primeira, refere-se à possibilidade do uso de expressões novas, que ampliem os seus modos de dizer com base nas leituras de mundo do sujeito e que imprimam as marcas da identidade de quem escreve; já a segunda, refere-se ao emprego de expressões já usadas e legitimadas, as quais são conhecidas do sujeito pelas experiências adquiridas nas interações com outros textos. A nossa intervenção acredita nessa indissociabilidade, por isso pretende ampliar as estratégias de escrita por meio da leitura sob essa perspectiva de necessidade do equilíbrio entre as tendências da diferenciação e da repetição quanto aos modos de dizer, respeitando os usos dos estudantes, mas também fornecendo-lhes acesso a outros modos de dizer por meio do discurso literário, isto é, defendemos que leitura e escrita são práticas inseparáveis e complementares e que a indissociabilidade é premissa para o planejamento das atividades das aulas de Português que se prestam a um ensino significativo. Entendemos que um provável entrave nessa proposta, evidentemente, diz respeito ao reposicionamento dos estudantes, uma vez que exige deles o entendimento de que, sendo a língua uma construção histórica e social, cabe-lhes o papel de sujeitos ativos no processo de construção dos usos, em oposição à sua adesão à escrita por imitação dos modelos estabelecidos. Sobre a produção de textos, Geraldi (2003, p. 135) explicita a importância da escrita na sala de aula:

34

E isto não apenas por inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às classes desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande maioria que hoje ocupa os bancos escolares. Sobretudo, é porque no texto que a língua — objeto de estudos — se revela em sua totalidade [...]

Concordamos com essa visão do autor, tanto pelo caráter social conferido ao fazer docente ao interromper o ciclo de silêncio das classes marginalizadas, quanto pela dimensão interacionista da linguagem subjacente. O autor (GERALDI, 2012, p. 118) destaca que “a língua é o meio privilegiado de interação entre os homens” e explica que a escola desconsidera a natureza dialógica da língua quando propõe atividades de escrita sem um interlocutor real. Ele trata essa atividade simulada de escrita como redação escolar, diferenciando-a de produção textual, referente à escrita com finalidade comunicativa. O desafio que se apresenta aos professores é, pois, tornar o ensino de escrita significativo para os estudantes, a fim de que estes reconheçam a escrita escolar também como uma das práticas sociais de compartilhamento de suas experiências, ou seja, como uma forma de agir no mundo, de se fazer ouvir. Isso se contrapõe à ideia de escrever para obter uma nota, pois se fundamenta em dar voz ao estudante para que a escrita escolar faça sentido e ultrapasse o caráter técnico e avaliativo. Diante da solicitação de um texto, é muito comum ouvirmos dos alunos: “não sei escrever” ou “como eu começo?”. Isso revela uma concepção negativa de escrita, cuja construção se deu, involuntariamente, no espaço escolar e romper esse paradigma não é simples, porque significa, para os professores, repensar a própria identidade profissional. Há quem pense, por exemplo, que para desenvolver a escrita basta escrever. Para um professor com essa concepção, as atividades de escrita pela escrita serão priorizadas nas aulas e o resultado será muita escrita e pouca ou nenhuma produção de texto. Quanto a isso, acreditamos que quem escreve com mais frequência provavelmente terá mais chances de ampliar a proficiência na escrita, pelo fato de poder testar construções e descobrir empiricamente as melhores escolhas. Todavia, somente o exercício repetitivo, desarticulado da compreensão das funções sociais da escrita, dos contextos, das sutilezas dos recursos da linguagem, não garante a proficiência, tendo em vista que, sem uma ação reflexiva, sem a percepção do caráter dialógico dos textos, sem a compreensão da relativa estabilidade dos gêneros resultante dos processos interativos ou sem a projeção do sujeito, a escrita pode se tornar uma atividade vazia, mecânica e sem sentido. É interessante retomarmos a necessidade de equilíbrio entre o diferente e o repetido, entre a estabilidade e a mudança, que explicitamos. Para um aluno de EF, é natural a busca pelo 35

modelo. Isso lhe dá mais segurança, até mesmo pela concepção de escrita que foi construindo nos anos de escolarização, segundo a qual há uma forma de “escrever bem”. No entanto, um professor adepto de uma visão interacionista da linguagem pode e deve provocar reflexões sobre os diferentes usos de recursos expressivos e as suas implicações na produção de sentidos com base nas diferentes formas de representação do mundo de cada sujeito; pode e deve provocar reflexões sobre os diferentes propósitos comunicativos e a necessidade de adequação dos modos de dizer aos interlocutores e às intenções dos textos; pode e deve provocar reflexões sobre a singularidade dos textos e a consequente impossibilidade de qualquer uso modelar. Acreditamos, pois, que, a partir de um trabalho de leitura e análise dos diferentes modos de dizer dos autores dos textos lidos e da compreensão da própria posição de sujeitos participantes do processo de construção da língua, os alunos desenvolverão maior autonomia na escrita. Para Freire (2018, p. 109): “O ensino da leitura e da escrita da palavra a que falte o exercício crítico da leitura e da releitura do mundo é, científica, política e pedagogicamente, capenga.”. De fato, o ensino de leitura e escrita exige uma prática crítica, reflexiva e significativa. Essa prática, para nós, pressupõe: o distanciamento de qualquer tentativa de imitação de um modelo; o uso da forma/estrutura a serviço do conteúdo e da intenção e não o inverso; e a compreensão do próprio sujeito como participante ativo do/no processo, como constituidor da e constituído pela linguagem. Desse modo, partimos da visão de Geraldi (2003, p. 98), segundo a qual “um texto é o produto de uma atividade discursiva onde alguém diz algo a alguém”; e adotamos a concepção concernente à produção textual — o estudante tem o que dizer e, por isso, escreve — de que “é para o outro que se produz o texto” (2003, p.102). Ainda segundo o autor, o outro se insere no texto tanto no processo de construção de sentidos quanto na produção, uma vez que é a condição básica para que o texto exista. Então, para ele, e para nós também, o ensino de escrita precisa definir os interlocutores, precisa encontrar razões para dizer o que se quer dizer. Nesse sentido, a intervenção configura como possibilidade de respeitar o direito dos discentes de se fazer ouvir, de compartilhar as suas experiências, colocando-os como sujeitos ativos. Logo, a concepção que defendemos é a que considera a leitura e a escrita como indissociáveis e, por isso, partimos da leitura como meio de chegar a experiências de escrita que desenvolvam diferentes estratégias. Tal concepção serve como paralelo à escrita modelar e superficial e à escrita mais objetiva e utilitarista, com a qual eles já convivem em outras instâncias de interação (na esfera de consumo, por exemplo, através de panfletos, anúncios, letreiros etc), sobretudo no ciberespaço, particularmente nas redes sociais. 36

Assim, passamos à sessão que trata da relação entre as orientações das práticas de ensino e o papel das novas tecnologias da informação e da comunicação nas interações dos adolescentes, bem como das implicações dessa relação no contexto de aula de LP.

2.4 Novas tecnologias da informação e da comunicação e a construção da experiência

Diante da noção de leitura e escrita como experiências humanas essenciais em uma sociedade como a nossa e da concepção de indissociabilidade, é imperativo pensarmos nas novas tecnologias da informação e da comunicação e nas suas relações com o ensino de LP. Então, o objetivo desta seção é explicitar essa relação, além de defender a necessidade de criação de espaços para a experiência na escola, conforme contribuições teóricas de Larrosa (2017). Ao pensarmos nas novas tecnologias, pensamos nos novos suportes textuais8 (blogs, fanpages, sites etc), assim como nos novos gêneros (hiperconto, chat, ciberpoema, memes etc) que foram surgindo como respostas às demandas de interação virtual. Esses novos espaços de interação transformam o modo de produção e recepção de textos nas práticas sociais e, consequentemente, na escola. A BNCC (2018, p. 61) destaca que “As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens”, dentre as quais está a linguagem digital. Então, o ensino que toma a dialogicidade da linguagem e as suas dimensões sociais como fundamento não pode desconsiderar as manifestações linguísticas contemporâneas. Queremos destacar que, embora as facilidades decorrentes das novas tecnologias da informação e da comunicação sejam inegáveis, em vários aspectos e em várias áreas, não podemos assumir uma postura entusiasta a ponto de não levantar questionamentos sobre: a) o lugar que os textos digitais ocupam de fato nas relações sociais de cada turma especificamente, a fim de evitarmos uma abordagem que não tenha tanta relevância em um dado contexto; b) o risco de usar as novas tecnologias como ferramentas de ensino sem objetivos claros, sob pena de incorrer em um modismo mais do que em um uso efetivo para a facilitação da aprendizagem; e, principalmente, c) os usos feitos pelos adolescentes e as implicações do seu excesso na construção das experiências.

8 Consideramos o blog como suporte textual neste trabalho em função de abrigar textos de diferentes gêneros, como perfis, artigos, entrevistas, crônicas etc, assim como a fanpage (página do Facebook) que abriga memes, vídeos, comentários, status etc. 37

Porém, antes de tratarmos do espaço das novas tecnologias da informação e da comunicação na escola, entendemos ser necessário falarmos sobre o processo histórico pelo qual chegamos à atual revolução digital. Passamos, pois, à trajetória que antecede e explica o quadro atual. A comunicação permite a participação e a evolução de um indivíduo e é inerente à cultura humana, de modo que o homem sempre buscou diferentes formas de se comunicar ao longo da História: a fala, as pinturas rupestres, a escrita (em pedra, cerâmica, papiro, papel); e diferentes técnicas: telégrafo, telefone, rádio, televisão, computador. De acordo com Stampa (apud MOLLICA, PATUSCO, BATISTA et al., 2015)9, a criação do computador foi proposta ao exército americano durante a II Guerra, com fins estratégicos e a internet surgiu em 1969, nos Estados Unidos, também com esses objetivos; somente em 1987, ela passou a ter fins comerciais. Assim, foi um longo processo desde as primeiras palavras faladas até as culturas impressa e, mais recentemente, digital. Quanto às transformações no modo de produção e recepção de textos, é importante destacarmos que ler e escrever não são verbos intransitivos. Sob essa lógica, um professor de EB não pode afirmar que os seus alunos não leem e não escrevem. Talvez não leiam e não escrevam o que e como a escola gostaria, mas leem e escrevem muito; prova disso são os números do Portal TecMundo10 referentes ao uso das redes sociais, segundo os quais, 8 em cada 10 brasileiros entre 9 e 17 anos fazem uso da internet. Entre os adolescentes das classes D e E, o público alvo desta pesquisa, o índice chega a 70%. De fato, os adolescentes estão lendo e escrevendo muito em ambientes digitais: mensagens instantâneas de texto, status, comentários de publicações dos colegas, legendas de fotos e vídeos, memes. Todos esses textos são muito comuns na rotina dos adolescentes. Concomitantemente à popularização da internet no Brasil nos últimos anos, a escola passou a discutir o assunto, ora como uma ferramenta para ampliação das aprendizagens, ora como um inimigo que rouba a atenção e o protagonismo do professor tradicional. Por um lado, profissionais da Educação defendem o acesso à internet como um grande aliado dos professores porque permite a hipertextualidade na leitura e na escrita e a troca com outros sujeitos, o que pode configurar como a potencialização de diferentes aprendizagens, tendo em vista que os estudantes têm acesso a outras informações e conhecimentos, além daqueles disponíveis no LD;

9 STAMPA, M. Perícia como análise comunicativa do sujeito: possibilidades através dos recursos informatizados. In MOLLICA, M. C.; PATUSCO, C.; BATISTA, H. R. (orgs.). Sujeitos em ambientes virtuais: Festschriften para Stella Maris Bortoni-Ricardo. São Paulo: Parábola, 2015. 10 Disponível em: . Acesso em: 22 set. 2018. 38

além disso, destacam o surgimento de novas formas de leitura e escrita e a consequente multiplicação de assuntos; um outro aspecto positivo é a velocidade com que as informações e os conhecimentos chegam aos alunos, pelo fato de possibilitar a constante atualização dos conteúdos e o favorecimento da contextualização dos assuntos estudados em sala de aula com as demandas sociais. No entanto, há quem pense diferente, destacando que a quantidade de informações disponíveis na rede de internet é potencialmente extenuante, o que gera uma sobrecarga de informação. Outro aspecto criticado é que a quantidade de informações a que um adolescente está submetido em ambientes virtuais nem sempre é proporcional à qualidade, de modo que, em um processo de filtragem, os usuários precisam selecionar o que querem arquivar para decidir quais devem ser ignoradas ou esquecidas e quais devem ser ampliadas ou consolidadas. Um terceiro aspecto negativo apontado diz respeito a um comportamento intitulado por Palfrey e Gasser (2011) de multitarefas, o qual é muito comum entre os “Nativos Digitais”11 e consiste em dividir a atenção entre as mídias digitais e as mídias tradicionais – televisão, música e leitura de impressos. Como dissemos, leitura e escrita são experiências humanas e, portanto, são construções históricas e sociais; desse modo, as novas tecnologias inauguram novas formas tanto nas práticas de leitura, quanto nas práticas de produção, como também problematizam questões sobre a noção de autoria compartilhada, tão comum em publicações nas redes sociais ou ainda sobre a veracidade das informações e a responsabilidade de quem as compartilha. Assim, à escola cabe tratar das diferentes modulações da leitura e da escrita, eximindo-se de preconceitos quanto à linguagem própria dos textos de comunicação imediata em redes sociais ou de rótulos quanto ao público que prioriza esses textos, tendo em vista que qualquer preconceito ou rotulação são incoerentes com a percepção de que as linguagens são múltiplas e dinâmicas e que isso é resultante de transformações provocadas pelos sujeitos sociais. A própria BNCC define que as práticas contemporâneas de linguagem devam ser tomadas como objeto de estudo nas aulas tendo em vista que os alunos têm acesso a ela, mas que isso não representa, necessariamente, um uso crítico. Conforme o documento: “Ser familiarizado e usar não significa necessariamente levar em conta as dimensões ética, estética

11 Segundo Ribeiro (2018, p. 45), Prensky (2001) adotou o par nativos digitais/imigrantes digitais, definindo os primeiros como jovens nascidos a partir de 1980, com “cérebros e cognição fisicamente adaptados a uma comunicação acelerada e multitarefa”. Neste trabalho, define-se como pessoas nascidas após a popularização da internet no Brasil. 39

e política desse uso, nem tampouco lidar de forma crítica com os conteúdos que circulam na Web” (BRASIL, 2018, p. 66). Realmente, é o que notamos: a maioria dos adolescentes colaboradores desta pesquisa não conhece as possibilidades de ferramentas de aprendizagem disponíveis na internet e, por isso, faz uma subutilização da rede, limitando-se, quase sempre, aos aplicativos mais populares de conversas e compartilhamentos (Facebook, WhatsApp) nas redes sociais. Por essa razão, é fundamental que a escola esteja aberta às novas tecnologias digitais, seja como ferramenta, seja como objeto de ensino, como uma das dez Competências Específicas de LP para o Ensino Fundamental:

Mobilizar práticas da cultura digital, diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitais para expandir as formas de produzir sentidos (nos processos de compreensão e produção), aprender e refletir sobre o mundo e realizar diferentes projetos autorais. (BNCC, 2018, p. 85).

Como vemos, é responsabilidade dos professores de LP tratar dessas questões em sala de aula, sob pena de incorrer no erro de não abordar as práticas sociais contemporâneas, fortalecendo estigmas e desconsiderando a dinamicidade da língua. Por outro lado, é preciso atentarmos para o que o próprio documento destaca:

Não se trata de deixar de privilegiar o escrito/impresso nem de deixar de considerar gêneros e práticas consagrados pela escola, tais como notícia, reportagem, entrevista, artigo de opinião, charge, tirinha, crônica, conto, verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica etc., próprios do letramento da letra e do impresso, mas de contemplar também os novos letramentos, essencialmente digitais. (BRASIL, 2018, p. 67)

Conforme a orientação, é fundamental elucidarmos que não se trata de, sob o argumento de estarmos abordando as práticas sociais contemporâneas, excluirmos outras práticas, assumindo um comportamento de substituição dos textos de tradição escolar pelos de circulação digital. Chamar a atenção para isso pode até parecer elementar; no entanto, o modo como os PCN foram interpretados quanto à prática fundamentada nos gêneros nos dá a certeza de que essa não é uma preocupação desmotivada, já que muito do que o documento orientava chegou às salas de aula de maneira equivocada. Notamos que os textos mais utilizados pelo grupo de colaboradores são mensagens instantâneas de textos, status, comentários de publicações, legendas de fotos e vídeos, memes, os quais apresentam especificidades próprias do suporte de veiculação e da intenção comunicativa. A objetividade, a linguagem direta e informal, a estrutura composicional 40

simplificada, a baixa informatividade, o uso de períodos curtos e a consequente supressão de elementos coesivos são características muito comuns a esses textos e, obviamente, não há nada de errado nisso, já que atendem claramente aos objetivos de comunicação nesses espaços virtuais. Não pretendemos negar a relevância desses textos em seus contextos de uso, tampouco rejeitá-los como experiências significativas para os sujeitos participantes da pesquisa, até porque já assumimos que leitura e escrita são construções sociais e históricas. O que propomos é diagnosticar o impacto dos textos de comunicação imediata nas redes sociais na construção narrativa dos estudantes, ou seja, investigar de que modo o que eles leem e escrevem no ciberespaço interfere nas escolhas feitas ao escreverem em contexto escolar. Isso porque entendemos que o contato excessivo com textos usados em ambientes virtuais pode ter alguma influência nas produções escritas em sala de aula. Nessa linha, é relevante observar o comportamento dos estudantes partindo da premissa de que a maneira como os adolescentes leem e escrevem na escola seja, em alguma medida, consequência da forma como se relacionam com as tecnologias digitais, em especial, com os aplicativos de comunicação instantânea mais populares, em virtude de ser esse o uso social de leitura e escrita mais frequente para muitos deles. Dada a quantidade de textos que chegam ao usuário via ciberespaço, é natural que este estabeleça alguns critérios de filtro e, por uma questão de economia de tempo, escolha ler os mais curtos e objetivos, adotando intuitivamente o mesmo comportamento em espaços não-virtuais. Assim, narrativas breves, descrições rasas de personagens e ambientes, construção imaginativa simplificada, repetição de recursos linguísticos, períodos curtos e desconectados, uso de texto motivador como modelo de escrita são características comumente encontradas nos textos produzidos pelos discentes na escola. Isso pode estar relacionado com as experiências de leitura que eles constroem em ambientes digitais, visto que, quando incentivados a leituras impressas, os alunos, quase sempre, optam por textos mais curtos que exijam um intervalo de atenção mais reduzido, como se houvesse uma transposição das estratégias que usam no ciberespaço para as que usam na escola, sem uma reflexão crítica sobre as adequações do que o sujeito escreve com base nos interlocutores, no suporte e nos propósitos. Não queremos tratar escola e tecnologia de maneira dicotômica, mas a necessidade das adequações precisa ficar clara para os alunos. Alinhada a esse pensamento, destacamos a visão de Larrosa (2017, p. 18): “A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação”. O autor levanta a problemática de que a uma geração exposta a tantas informações, faz-se 41

necessário dizer que: em primeiro lugar, informação não é experiência; em segundo lugar, a informação não deixa lugar para a experiência; e, por fim, constituir-nos como sujeitos informantes e informados cancela nossas possibilidades de experiência. Assim, para o autor:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça (LARROSA, 2017, p. 18).

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, o que tem acontecido aos estudantes durante as aulas no EF? O que toca os alunos nas aulas de LP? Na nossa sociedade, chamada sociedade da informação, há espaço para a experiência, no sentido empregado por Larrosa? Diante dessas perguntas retóricas, convém pensarmos que quando enxergamos os nossos alunos somente como processadores de informações, deixamos de estimular a construção da experiência individual e coletiva e limitamos as múltiplas possibilidades de aprendizagens decorrentes de uma prática que lhes permita se reconhecerem como sujeitos que atuam no mundo e na escola. Com base na perspectiva distintiva entre informação e experiência dada pelo autor, pareceu-nos fundamental traçar um perfil dos discentes colaboradores da pesquisa quanto ao uso das novas tecnologias da informação e da comunicação, assim como se revelou essencial acionar outros bens culturais que favorecessem outras experiências. Ainda com base em Larrosa, depois da necessidade de informação vem a necessidade de opinião e a obsessão por opinar também “anula as nossas possibilidades de experiência” (LARROSA, 2017, p. 20). Para ele, nós somos o resultado da combinação entre informação e opinião e isso gera cada vez mais sujeitos fabricados e manipulados, os quais supostamente têm opinião própria e supostamente são bem informados. É interessante a relação que podemos fazer entre a necessidade de opinar e o comportamento da maioria dos usuários das redes sociais, em especial, os adolescentes. Um novo fato exige uma nova opinião a publicar, quase sempre sem verificar a veracidade do fato ou a credibilidade de quem o divulgou ou ainda sem qualquer filtro de seleção das informações. Espera-se que todos se posicionem e isso anula o espaço da experiência, seja pela efemeridade dos debates diariamente substituídos, seja pela velocidade que impede uma reflexão mais complexa. Além de apontar o excesso de informações e a exigência de emitir opinião como obstáculos para a experiência, o autor também aponta a ausência de tempo. Os sujeitos modernos são consumidores de notícias e as redes sociais se constituem como o espaço 42

privilegiado para compartilhá-las ou acompanhá-las. Por essa razão, os usuários dedicam-se tanto a elas, porque as novidades são renovadas a cada segundo e é preciso estar informado e opinar, sob pena de não fazer parte do grupo e ficar excluído das relações sociais. E sentir-se incluído em um grupo é necessidade permanente para os adolescentes, pois lhes garante o sentimento de pertencimento, de independência dos pais e, assim, ganhar popularidade nas redes é sinônimo de status. Para Larrosa (2017), esse contexto também anula a experiência, uma vez que não há tempo para pensar sobre os fatos, já que a velocidade com que se apresentam e se sobrepõem impossibilita o acompanhamento; além disso, anula a experiência porque, enquanto se investe tempo em relacionamentos virtuais, negligenciam-se as relações reais próximas. A título de exemplo, pensemos no contexto de lançamento de um novo filme. Antes mesmo da sua estreia no cinema, é possível obter informações sobre as gravações e a opinião de críticos, quando se cria uma expectativa. Na primeira semana de exibição, os adolescentes formam filas gigantes para assistir antes que comecem a divulgar os spoilers12. A experiência de estar com a família ou os amigos para ver o filme, de sentir o cheiro da pipoca, de se emocionar com a história, de comentar as cenas depois, de relacioná-las à própria vida é substituída pela pressa de assistir antes dos colegas. Ou seja, se “A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova” (LARROSA, 2017, p. 26), ela não nos acontece no excesso de informação e de opinião ou na falta de tempo, porque o sujeito da experiência precisa estar aberto ao novo, ao pensamento, ao autoconhecimento, à escuta de si e do outro, às lembranças, à formação, à transformação e à exposição. Nesse sentido, o excesso de exposição aos textos disponíveis no ciberespaço e o tempo gasto nos compartilhamentos virtuais constituem um distanciamento das possibilidades de construção do saber da experiência, o qual se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana, de modo particular, subjetivo, pessoal e real. Desse modo, a escola não deve assumir uma postura entusiasta em relação às novas tecnologias da informação e da comunicação, como se elas fossem a grande solução para os seus problemas. Isso seria incoerente com a dimensão investigativa inerente à Educação. Portanto, a fim de proceder à análise do impacto das experiências leitora e escritora construídas em espaços virtuais sobre a leitura de textos em uma linguagem literária mais complexa, assim como, sobre a produção escrita mais distanciada dos textos utilitaristas, propomos a construção

12 Do inglês spoil (estragar), o termo significa revelar informações sobre filmes, livros etc. 43

de outras experiências de leitura e escrita através de narrativas literárias, transformando a sala de aula em lugar de experiências. Isso mesmo, no plural, haja vista que “duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência” (LARROSA, 2017, p. 32). Ou seja, na aula de LP encontra-se o espaço privilegiado para a construção das experiências, pela centralidade no texto, uma produção dialógica que se dá no encontro de um eu com um tu e cujos sujeitos se percebem na condição de coparticipantes das construções da língua, sendo delas constituintes e por elas constituídos. Isso posto, escolhemos partir da ideia de que as experiências de leitura geram experiências em produção textual através do texto literário, sobre o qual passamos a tratar.

2.5 O texto literário no Ensino Fundamental

Para a construção de novas experiências de leitura e escrita, adotamos o texto literário como uma alternativa — não a única — capaz de suscitar resultados significativos em resposta às problematizações já explicitadas. O objetivo desta seção é, pois, contextualizar o lugar do texto literário no EF, segundo as contribuições de Riolfi et al. (2014), bem como elucidar a nossa visão de leitura subjetiva, de acordo com Rouxel, Langlade, Rezende (2013), defendendo a sua contribuição para a construção de experiências de leitura e escrita no contexto escolar.

2.5.1 O espaço do texto literário no contexto escolar

Para contextualizar o uso do texto literário nas aulas de LP, é interessante pensarmos um pouco sobre o espaço que a ele se deu ao longo dos anos no nosso país. No Brasil-colônia, ler textos literários era sinônimo de prestígio social, por vários motivos, dentre os quais o alto preço do livro e o baixo índice de pessoas alfabetizadas. Somente um número restrito de pessoas estava inserido no contexto da literatura. Com o tempo e de forma tímida ainda, esse cenário foi passando por algumas mudanças quanto ao nível de escolarização e o acesso aos bens culturais. Atualmente, com livros mais baratos, com a opção de leitura em e-book13, com mais pessoas alfabetizadas e com a popularização de bens culturais letrados, seria de se esperar que a leitura do texto literário fosse mais frequente; porém, nem

13 Os e-books são a versão eletrônica dos livros impressos. Por serem mais baratos e ocuparem menos espaço, inicialmente se pensava que eles provocariam a extinção dos livros tradicionais. Mas não foi o que aconteceu, o que reitera a ideia de que as diferentes tecnologias oportunizam diferentes percepções. 44

sempre acontece assim. Segundo a observação dos estudantes colaboradores nesta pesquisa, por exemplo, na prática, a leitura literária ainda não está tão presente na rotina das pessoas. Isso nos provoca algumas reflexões, dentre as quais merecem destaque as mudanças sociais ao longo do tempo em relação ao comportamento dos leitores, especialmente os mais novos. Com o advento das novas tecnologias de informação e de comunicação e as transformações que se deram no próprio estilo de vida das pessoas, a leitura garantiu o seu espaço em pelo menos três dimensões: i) nos textos informativos mais curtos e objetivos de caráter mais utilitarista (letreiros, anúncios, placas, propagandas, avisos, roteiros, gráficos, mapas, boletos etc) para atender a demandas práticas imediatas do cotidiano; ii) nos textos de caráter mais didático (resumos, artigos, notas de aulas, mapas conceituais etc) para fins de estudo, quase sempre restritos ao espaço escolar ou acadêmico; e iii) nos textos de comunicação instantânea nas redes sociais em aplicativos populares como o Facebook e o WhatsApp, os quais têm grande adesão do público adolescente. Basta uma observação rápida do comportamento atual dos jovens para se chegar à evidência de que o tempo para a leitura está mais direcionado a essa última dimensão e que o texto literário tem ainda espaço pequeno para o público observado nesta pesquisa. Ademais, o próprio gosto do leitor também mudou na busca por textos de linguagem menos densa, mais objetiva ou por fragmentos de textos maiores. Isso é perceptível pela resistência dos discentes quando propomos a leitura integral de um livro. Sob essa ótica, só aumenta a nossa responsabilidade, enquanto professores, no sentido de oferecer bens culturais com os quais os alunos não se relacionam tanto em outros espaços além da escola. No entanto, esta, quase sempre, não tem dado a devida atenção ao texto literário, tratando-o ora como pretexto para análise linguística no EF, ora com didatismo no Ensino Médio, colaborando para o aumento do desinteresse dos estudantes pelo texto literário à medida que avançam na escolarização. Entendemos que a escola, algumas vezes, macula a paixão das crianças pela imaginação, pela criatividade, pela viagem a outras vidas e mundos, proporcionada pela leitura literária e a transforma em aversão. Isso vem invalidando ou limitando a contribuição do texto literário na construção de outras experiências significativas de leitura. Para Riolfi et al. (2014), o que justifica o ensino de literatura é justamente o fato de o texto literário opor-se ao natural, ao normal, ao palatável. Os autores falam que o gosto médio produz cada vez mais informação e menos cultura. Não assumimos neste trabalho que há uma cultura superior à outra, mas que há culturas diferentes, fazendo-se necessário conhecê-las e, no caso dos estudantes mais marginalizados em relação ao acesso a bens culturais, cabe à escola 45

fomentar essa oportunidade. Ainda com base nos autores, o ensino de literatura no EF foi reduzido a uma questão moralizante, tornando-a um engodo para os alunos, distanciando-se do propósito do texto literário de rebelar-se contra uma injunção utilitarista. Segundo os autores ainda, constituem algumas das motivações para a leitura literária: ler para reconhecer a inquietação das palavras; ler para (re)conhecer os textos que constituem nosso legado cultural, ainda que para contestá-lo; e ler para compor a estrutura da narrativa. Isso aponta para o tratamento do texto literário para além de um pretexto para o estudo gramatical ou para além de questões estruturais com foco no próprio texto como ainda é comum, embora Todorov14 critique, desde o século passado. Assim, a visão defendida pelos autores dialoga com as orientações dos PCN:

É importante que o trabalho com o texto literário esteja incorporado às práticas cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma específica de conhecimento. Essa variável de constituição da experiência humana possui propriedades compositivas que devem ser mostradas, discutidas e consideradas quando se trata de ler as diferentes manifestações colocadas sob a rubrica geral de texto literário (BRASIL, 1998, p. 29).

O texto literário exerce um papel determinante no desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita. Logo, temos na leitura literária um caminho para a construção de outras experiências de leitura — e até de outras experiências de vida — para os estudantes, sobretudo quando pensamos naqueles mais envolvidos com os textos de comunicação imediata virtual15. Pensando nos memes, a título de exemplo, são textos interessantes, atuais, que articulam múltiplas linguagens e que confrontam várias vozes e, pois, exigem algumas habilidades do leitor16; no entanto, a construção imagética já vem pronta, o que dificulta o processo de construção subjetiva por parte do próprio leitor. Sob a justificativa de partir de textos mais recorrentes nas práticas sociais, com uma linguagem mais próxima do uso do estudante, o que se observa em uma análise rápida dos textos trazidos pelo LD é que se tem priorizado textos mais objetivos — Histórias em Quadrinhos, notícias, anúncios publicitários, receitas etc — em detrimento daqueles de construções mais subjetivas. E quando aparecem textos menos objetivos, que exijam outras habilidades para o seu processamento (a projeção das experiências particulares e processos

14 Todorov, na obra A literatura em perigo, de 1939, já criticava esse tipo de abordagem do texto literário, trazendo uma discussão atualizada ao contexto escolar brasileiro. 15 Referimo-nos aqui aos textos mais usados em aplicativos populares entre os alunos, como Facebook e WhatsApp. 16 Conhecimentos linguísticos, extralinguísticos, intertextualidade são algumas das exigências para a construção dos sentidos de um meme, por exemplo. 46

cognitivos mais abstratos, por exemplo), apresentam-se de forma didatizada, seja em forma de fragmentos, seja pelo tipo de atividades solicitadas, seja pelo uso como modelo de um gênero, desfavorecendo a leitura subjetiva17 e minimizando as possibilidades de explorar as formas de dizer do autor para construir experiências mais autônomas. Pietri (2007, p. 50), a exemplo de Todorov, também faz uma crítica ao modo como a escola trata a leitura literária ao afirmar que “As práticas de leitura desenvolvidas com base no livro didático não se diferenciam de gênero para gênero. Lêem-se [sic] o poema e a notícia muitas vezes com o mesmo objetivo, isto é, responder às questões de compreensão de texto.”. Não defendemos que os textos mais objetivos e de grande circulação social sejam irrelevantes como objetos de ensino; evidentemente que são práticas cotidianas importantes que devem ser tratadas sistematicamente pela escola; defendemos, porém, que a escola não tem dado a devida importância à leitura literária, especialmente no EF Anos Finais, inviabilizando “... o exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita” (BRASIL, 1998, p. 30). E nisso reside a contribuição da leitura literária em sala de aula: a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, a extensão e a profundidade das construções literárias a serviço da comunicação sem função utilitarista. Em diálogo com essa ideia, Dalvi, Resende e Rover-Faleiros et al. (2013) destacam a importância da construção e da socialização de experiências de leitura, dada a complexidade da atividade de leitura em suas dimensões coletiva, social e histórica e, simultaneamente, individual e solitária. Rouxel (apud DALVI, RESENDE; ROVER-FALEIROS et al., 2013) ressalta a ideia de que a construção de experiências de leitura está associada à instituição dos alunos como sujeitos leitores, de modo que a presença da turma é essencial para a formação de cada aluno, dada a diversidade das experiências individuais de leitura e dos modos de ler compartilhados. A leitura é tomada como experiência que, nas palavras de Silva (apud DALVI, RESENDE; ROVER-FALEIROS et al., 2013, p.52), é “aquilo que nos afeta por meio dos sentidos passados, das sensações do presente, incluindo as que sonhamos em projeções para o futuro e que, por isso mesmo, não conseguem ser olvidadas.”. Tal definição está em conformidade tanto com Geraldi (2003), no tocante a ouvir os estudantes permitindo-lhes construir sentidos para o texto e compartilhá-los; quanto com a definição de experiência de

17 Segundo Rouxel (2013). 47

Larrosa (2017) mencionada anteriormente, concernente àquilo que nos toca, porque faz sentido em um dado momento, sendo esse sentido singular. Diante disso, adotamos a concepção de que o cerne não está no ensino da literatura, mas no ensino da leitura literária, segundo a qual o objeto de ensino “passa a ser a experiência da leitura literária e a reflexão, experiência e reflexão essas que podem ser mediadas e sociabilizadas no espaço da sala de aula” (DALVI; RESENDE; JOVER-FALEIROS et al., 2013, p. 13), como um instrumento para uma leitura mais rigorosa18 (RIOLFI et al., 2014) e, consequentemente, para uma produção textual subjetiva e significativa. Valendo-nos da ideia de que as experiências de leitura podem se dar a partir da interação com as diferentes formas de dizer do discurso literário, pelo uso estético da linguagem, optamos pelas narrativas literárias por entender que a sua contribuição está tanto na provável identificação dos alunos pela forte relação com textos de tradição oral já conhecidos (lendas, causos etc), quanto pelo fato de todos terem o que contar a respeito das próprias vivências individuais, o que garante o espaço para a heterogeneidade, para a diversidade e para a experiência. Goldberg (2008), ao iniciar a sua obra, destaca que é bem provável que boa parte das pessoas não esteja interessada em escrever um livro de romance, mas é igualmente provável que todos tenham histórias para contar, porque existem histórias que só aconteceram com uma pessoa. Assim como ele, pensamos que é provável que os nossos alunos não queiram se tornar escritores de novelas, mas é certo que todos têm histórias para contar e que todos desejem ser ouvidos (ou lidos); sendo assim, interessa-nos promover produções escritas de narrativas literárias considerando as experiências individuais de quem escreve, incentivando a reflexão sobre as diferentes formas de dizer e os sentidos decorrentes das escolhas. Em consonância com essa ideia, Campbell afirma que “Todos nós precisamos contar nossa história, compreender nossa história...” (2009, p. 5) e levanta a possibilidade de a violência entre jovens estar relacionada à falta de mitos para ajudá-los a se relacionar com o mundo ou compreendê-lo para além do meramente visível. De fato, as mudanças socioculturais demonstram um afastamento das novas gerações dos textos que exploram a imaginação e a projeção da subjetividade e isso pode ser reavaliado, sob pena de negar a voz a quem silencia

18 Para os autores (RIOLFI et al., 2014), a leitura rigorosa “exige sucessivas operações de retroação” (p. 51) e “implica seguir cuidadosamente o percurso para a recuperação das pistas interpretativas do texto” (p. 52). Valemo-nos dessa estratégia nas oficinas propostas a fim de perceber os recursos empregados nas narrativas e as implicações na atribuição de sentidos. 48

(embora tenha o que dizer) por não se permitir enxergar além da objetividade do mundo concreto. Segundo os PCN (BRASIL, 1998, p. 29):

A literatura não é cópia do real, nem puro exercício de linguagem, tampouco mera fantasia que se asilou dos sentidos do mundo e da história dos homens. Se tomada como uma maneira particular de compor o conhecimento, é necessário reconhecer que sua relação com o real é indireta. Ou seja, o plano da realidade pode ser apropriado e transgredido pelo plano do imaginário como uma instância concretamente formulada pela mediação dos signos verbais...

Por isso, a literatura constitui-se em um meio de acesso ao universo fabuloso e criativo, essencial à formação dos adolescentes. Dessa forma, compartilhamos com a opinião de que a literatura é um direito19, ou seja, entendendo a literatura sob uma noção mais ampla, ela é uma necessidade e uma manifestação universais, dada a complexidade da sua natureza. Rompendo com qualquer expectativa utilitarista, a utilidade da leitura literária está na sua inutilidade, ou seja, na sua possibilidade de ruptura com a visão de que é preciso servir a propósitos concretos imediatos. Por essa razão, entendemos que a leitura literária está alinhada: i) à ideia de Geraldi (2003) de garantir aos estudantes o espaço da fala, historicamente negada; ii) mas também à visão de Riolfi et al. (2014) quanto à leitura rigorosa, no sentido de refletir sobre as sutilezas do texto; iii) e ainda à noção de Larrosa (2017) de construção do saber da experiência através de compartilhamentos de experiências individuais e coletivas. Contrariamente à literatura como um direito, “O que temos hoje é um mundo desmitologizado” (CAMPBELL, 2009, p. 9) e, entre outros fatores, pela ausência do contato com o mito, com a história contada e recontada, com os processos imaginativos, com a fabulação, os alunos escrevem, quase sempre, narrativas vazias, de baixa complexidade ou, o que é ainda pior, escrevem mecanicamente seguindo um modelo dado pelo professor ou pelo LD, somente para adquirir uma nota. De acordo com Campbell (2009), as pessoas estão mais ávidas pelo acúmulo de informações e pela aprendizagem sobre tecnologias do que pela reflexão sobre as subjetividades, de modo que a narrativa literária configura como uma espécie de humanização no sentido do exercício da reflexão e do refinamento das emoções, como possibilidade de resposta ao embrutecimento nas produções escritas de parte dos jovens. Por uma questão de adaptação ao público-alvo da pesquisa, o conto foi o gênero escolhido porque, segundo Terra (2018), é uma narrativa versátil, que pode ser apreciada por pessoas de diferentes gostos e idades. O autor destaca que há vários tipos de contos: o

19 Opinião defendida em Cândido (2011). 49

maravilhoso, o de terror, o policial, o de mistério, o fantástico, o erótico, o psicológico e isso amplia a aceitação dos sujeitos envolvidos, alcançando-os em suas particularidades. Ademais, a escolha decorre do fato de se tratar de uma narrativa de caráter mais condensado, mais curto do que o romance — e, por essa razão, com mais chance de os estudantes aderirem — e nem por isso menos profunda e complexa, centrada em um único evento, com poucas personagens e com um desfecho surpreendente. Além disso, sendo a crônica também uma narrativa mais breve, optamos pelo conto por distinguir-se dela, quase sempre, pela maior complexidade da linguagem, pelo maior grau de aprofundamento e elaboração dos elementos narrativos (tempo, espaço, personagens) e pelo distanciamento maior da objetividade20, em virtude das finalidades da intervenção de oferecer uma leitura menos comum, que permitisse uma produção mais fabulosa. Abordamos os contos motivadores de cada Módulo de Oficinas detalhadamente no capítulo que trata dos procedimentos metodológicos. Sobre uma geração de adolescentes sobrecarregados pelo excesso e velocidade das informações, nada mais atual do que o que escreveu Walter Benjamim em seu ensaio “O narrador”21, de 1936: “o narrador não está de fato entre nós, em sua atualidade viva [...] a arte de narrar está em vias de extinção”. Esse cenário inquietante em que o narrador que há em cada um de nós é, quase sempre, sufocado pela pressa e utilitarismo justifica esta proposta de intervenção, através da qual pretendemos resgatar o narrador adormecido nos discentes, para que eles observem e entendam a própria realidade, mas também reflitam sobre as suas experiências e narrem suas histórias, assumindo-se na condição de produtores e não só de “consumidores” de textos. Diante disso, cabe tratarmos sobre a nossa visão de sujeito, a qual está relacionada diretamente com a posição metodológica assumida.

2.5.2 O lugar dos sujeitos: a leitura subjetiva

Pensar que a experiência de acesso ao discurso literário pode contribuir para a autonomia dos alunos em relação à leitura e à escrita é pensar no reposicionamento desses sujeitos. Por isso, neste subtópico o objetivo é apresentar a perspectiva subjetiva da leitura como alternativa teórico-metodológica para o ensino de escrita.

20 O termo foi empregado aqui em oposição a subjetividade. Não se deve relacioná-lo à concisão do textual, característica importante no conto. 21 Benjamim, W. O narrador. In: ____. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. 10 ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 197. 50

Entendemos que construir outras experiências de leitura e escrita com os alunos passa pela ideia de transformação da aula em um ambiente de escuta e respeito às individualidades, às experiências individuais. Langlade (2013, p. 26) questiona: “Longe de serem apenas escórias da atividade leitora, não seriam eles [os ecos subjetivos] os indícios de uma apropriação do texto, de uma singularização da obra realizada pelo leitor?”. A pergunta retórica demonstra a sua defesa quanto à leitura subjetiva não ser hierarquicamente inferior à leitura crítica e objetiva. Para o autor:

[...] toda obra literária engendra uma multiplicidade de obras originais produzidas pelas experiências, sempre únicas, dos leitores empíricos. Essa importância central outorgada à participação do leitor na elaboração de um texto singular leva a questionar a noção de texto literário (LANGLADE, 2013, p. 33).

Sendo assim, a participação do leitor se dá de maneira mais efetiva, uma vez que a ele cabe a complementação da obra ao inserir elementos do seu universo pessoal para compreendê- la. Por essa razão, a concepção de leitura subjetiva nos parece muito pertinente a uma proposta de intervenção com o objetivo de construir novas experiências de leitura e escrita através do texto literário. Jouve (2013, p. 53) destaca que “Toda leitura tem[...] uma parte constitutiva da subjetividade” e que isso se constitui como uma realidade negativa para muitos, mas que, na verdade, deveria ser o centro das aulas de literatura, uma vez que no plano educativo pode ser bem mais interessante para o aluno exatamente por lhe fazer mais sentido. Na mesma linha, para Lebrun (2013, p. 137), uma pergunta é essencial: “Que leitor se quer formar?”, pois para uma didática focada na leitura literária, a finalidade deve ser “formar um leitor intérprete autônomo capaz de se apropriar pessoalmente dos textos e de dar sentido a suas leituras”. E, de fato, entendemos que os alunos se apropriarão pessoalmente do texto quando se projetarem nele, ou seja, quando puderem estabelecer associações entre o texto e a sua própria realidade. Para Rouxel (2013, p. 197), muito se tem falado nas pesquisas atuais em didática da literatura sobre a necessidade de se repensar a abordagem, a fim de priorizar a leitura literária. No entanto, segundo a autora, pouco avançamos quanto ao papel do leitor real e, após duras críticas à prática escolar atual, ela propõe como uma perspectiva didática o espaço para o texto do leitor, o qual define como “trabalho de singularização” do texto pela implicação do sujeito. 51

Nessa linha, o quadro que segue trata de conceitos fundamentais para uma didática em leitura literária:

Quadro 1 - Conceitos relacionados à leitura subjetiva Conceitos relacionados à leitura subjetiva Leitura subjetiva Abordagem pautada na intersubjetividade do sujeito leitor; com espaço para a subjetividade do leitor diante da obra. Sujeito leitor Leitor real, que se projeta no texto e através dele volta a si; agente na recepção e envolvido emocionalmente com o texto. Texto de leitor Atividade leitora como manifestação do íntimo do sujeito; reapropriação da obra no sentido de transformá-la. Mediador Escuta atenta que implica o leitor e contribui para a sua formação leitora humanizadora; ponte entre texto que instrui e leitor que constrói. Fonte: elaborado pela autora (2019).

Uma abordagem que toma o leitor como real, apressado, dividido entre várias tarefas parece-nos apropriada ao público da intervenção, uma vez que se alinha com a nossa perspectiva de ouvir os alunos e valorizar a sua experiência pessoal e a sua história, conferindo- lhes lugar central como sujeito ativo. E, partindo dessa valorização das subjetividades como espaço para novas experiências de aprendizagens, entendemos contribuir para uma escrita também criativa, distanciada da escrita modelar e utilitarista que criticamos anteriormente. Portanto, buscamos nesta intervenção um espaço na sala de aula como meio de construção e atribuímos à leitura literária a promoção do encontro dos alunos com outras variedades linguísticas, por meio dos diferentes modos de dizer presentes no discurso literário; assim como a oportunidade de se fazerem ouvir mediante a autonomia criadora. Defendemos que para escrever é preciso ter o que dizer, mas também sensibilidade e fabulação, é preciso sair do lugar comum e, especialmente, é preciso se sentir ouvido. Assim, fundamentada nos aportes teóricos apresentados, a proposta será organizada conforme os procedimentos metodológicos expostos no próximo capítulo.

52

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS: O FAZER E O PENSAR SOBRE O FAZER

“... construir a escola que queremos impõe-nos ações na escola que temos” (GERALDI, 2015, p. 44-45)

A escola pública que temos hoje não é a que queríamos ter. Isso perpassa a fala de educadores espalhados pelo país há décadas. Porém, a insatisfação frente à realidade que nos é posta não justifica o comportamento de inércia, o discurso derrotista ou a transferência de responsabilidades. Em contrapartida, também não justifica o idealismo romântico, a defesa inconteste ou o sonho sem luta. Afinal, educação é uma trança, na qual as três pontas são a teoria, a prática e a luta. Assim, se desejamos uma escola diferente, precisamos agir na escola que temos a fim de transformá-la. Nessa perspectiva, não há um único caminho no sentido de atingir um objetivo e, por isso, é necessário definir a linha à qual nos filiamos. Feito isso, este capítulo tem como finalidade apresentar as ações e os procedimentos metodológicos adotados neste trabalho em busca da escola que queremos e para isso está organizado nas seguintes seções: explicitação do paradigma da pesquisa, consoante Bortoni-Ricardo (2008), e dos aspectos éticos da pesquisa; caracterização do contexto de pesquisa, na qual apresentamos a Escola; caracterização dos sujeitos da pesquisa com a apresentação dos alunos colaboradores; explicitação dos três instrumentos de diagnóstico utilizados.

3.1 Paradigma de pesquisa

Tão importante quanto contextualizar teoricamente um trabalho, é esclarecer os caminhos escolhidos para conduzi-lo, estabelecendo as relações necessárias entre teoria e prática. Sendo assim, esta primeira seção tem como objetivo apresentar brevemente os paradigmas de uma pesquisa de âmbito social, assim como definir o paradigma ao qual o trabalho se filia, além dos aspectos éticos, sobre o que passamos a tratar. O pensamento científico permeia todos os aspectos da vida do homem. Sendo assim, diante das problemáticas inerentes ao espaço escolar e dos variados caminhos possíveis para a sua resolução, precisamos enxergar a sala de aula como objeto de pesquisa sistemática, no campo da pesquisa social, de acordo com Bortoni-Ricardo (2008), sob dois paradigmas: o quantitativo e o qualitativo. Enquanto o primeiro paradigma busca explicações causais para os fenômenos, privilegiando a razão analítica; o segundo busca a interpretação dos significados culturais, privilegiando a razão dialética. Enquanto o paradigma quantitativo valoriza o 53

pensamento científico; o qualitativo enxerga o senso comum como uma das dimensões do conhecimento e, por isso, utilizável para interpretar fenômenos sociais presentes na escola. Segundo a autora, “A pesquisa qualitativa procura entender, interpretar fenômenos sociais inseridos em um contexto”. (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 34). Para ela, o objetivo de uma pesquisa qualitativa em sala de aula diz respeito à identificação dos processos que, por serem tão rotineiros, tornam-se invisíveis aos professores (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 49), ou seja, um profissional chega a se acostumar tanto com o que faz, diz e solicita, que acaba por não notar mais o significado das próprias ações, o que configura como um comportamento negativo quanto à capacidade de autoavaliação no processo de ensino. É muito comum professores com mais tempo na profissão apresentarem maior tendência de automatizar as próprias ações e isso pode gerar entraves na aprendizagem dos alunos. Usar o mesmo LD ano após ano, atuar com uma mesma série/ano sempre, planejar as aulas isoladamente e reaproveitar atividades de anos anteriores são algumas das situações que podem contribuir para a automatização dos professores; porém, há uma atitude que pode prejudicar a ação docente em maior proporção: a identidade que o professor construiu na sua formação. Nisso está a relevância do paradigma qualitativo, já que devolve ao professor um papel ativo quanto à prática, afastando-se da visão de sujeito passivo, cuja função é aplicar o que a ciência produziu. Considerando-se como pesquisadora nesta intervenção uma professora de Educação Básica há duas décadas, o paradigma qualitativo não só se aplica como também adquire dimensão imperativa, já que a pesquisadora está inserida no locus da pesquisa e, portanto, é também objeto da própria reflexão. Por isso, o paradigma qualitativo foi adotado nesta pesquisa, tomando como referência Bortoni-Ricardo (2008) sobre: • A reflexividade: a pesquisadora é parte do mundo que pesquisa; assim, ao passo que pesquisa, a pesquisadora se insere na observação. • A subjetividade: a pesquisadora tem sua forma de ver o mundo, a qual afeta a sua análise. • A não-passividade: a pesquisadora não é passiva, reflete sobre si mesma, sobre as suas ações e sobre os resultados delas. • A adequação: a pesquisadora busca interpretar os fenômenos sociais inseridos no contexto, o que é coerente com a visão dialógica que considera aspectos socio-históricos da linguagem. 54

Ademais, o paradigma qualitativo nos interessa, especialmente, porque permite “construir e aperfeiçoar teorias sobre a organização social e cognitiva da vida em sala de aula, que é o contexto por excelência para a aprendizagem dos educandos”. (BORTONI-RICARDO, 2008, p. 42), sobretudo por se tratar de uma pesquisa voltada ao processo de leitura e escrita, interesses permanentes da escola. Entendemos que o contexto sócio-histórico em que os sujeitos estão inseridos tem alguma relação com suas formas de participação no mundo. No âmbito escolar, não é diferente: os alunos passam muitos anos na escola e são por ela formados ao mesmo passo que ela também se transforma pela sua presença e atuação. Dessa forma, pensar uma pesquisa na escola é pensar nos contextos que se cruzam, se encontram, se complementam e se constroem no espaço de uma aula. Assim, justifica-se a escolha do paradigma qualitativo de natureza interventiva e interpretativista, por permitir a reflexão de questões sociais, históricas e culturais imbricadas nas práticas docentes e nas aprendizagens discentes. Consoante Bortoni-Ricardo (2008), o paradigma interpretativista critica o positivista argumentando que nas ciências sociais não se pode negligenciar o contexto sócio-histórico dos sujeitos. Concordamos com essa posição ao pensarmos no espaço escolar e a definição do nosso objeto nesta pesquisa só se fez possível mediante a observação do contexto dos estudantes, pelo fato de a problemática identificada quanto às dificuldades na escrita narrativa literária ter alguma relação com tal contexto. Nessa perspectiva, a metodologia empregada é interventiva porque intervêm ativamente e intencionalmente na sala de aula; e interpretativista porque permite à professora-pesquisadora a reflexão sobre a prática a partir da observação dos fenômenos sociais. Essa visão comunga com a visão de Oliveira e Oliveira (1999) ao afirmarem que:

[...] a finalidade da pesquisa/ação é de favorecer a aquisição de um conhecimento e de uma consciência crítica do processo de transformação pelo grupo que está vivendo este processo, para que ele possa assumir, de forma cada vez mais lúcida e autônoma, seu papel de protagonista e ator social (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1999, p. 27).

Compreendemos, assim, que a objetividade de uma pesquisa não está no distanciamento do pesquisador em relação ao locus e aos sujeitos de pesquisa, mas sobretudo na sua capacidade de observação e reflexão crítica quanto ao contexto sócio-histórico. Logo, o nosso interesse ultrapassa questões quantitativas e reside no processo educativo. A escolha do paradigma qualitativo e a redefinição dos professores também enquanto pesquisadores reiteram a visão de (1996) de que não há ensino sem pesquisa como 55

também não há pesquisa sem ensino, tendo em vista que a prática docente crítica envolve o movimento dinâmico e dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Apropriando-nos dessa fala do autor, entendemos como essencial esse movimento no processo de ensino por ser dinâmico no sentido de contínuo e progressivo; e dialético, por se basear no diálogo entre os sujeitos sem supervalorizar relações hierárquicas. Ademais, a posição defendida pelo paradigma interpretativista dialoga com os interesses do Programa de Mestrado Profissional em Letras, ProfLetras, que pretende melhorar a qualidade da educação pública oferecendo ao professor a oportunidade de repensar a sua formação e a sua prática, de forma ativa. Portanto, esperamos que por meio da observação, da interpretação e da compreensão dos fenômenos sociais envolvidos no espaço escolar, o professor, agora também como pesquisador, se inclua no processo reflexivo e por ele seja (trans)formado. Assim:

O professor pesquisador não se vê apenas como um usuário de conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se propõe a produzir conhecimentos sobre seus problemas profissionais, de forma a melhorar sua prática. O que distingue um professor pesquisador dos demais professores é seu compromisso de refletir sobre a própria prática, buscando reforçar e desenvolver aspectos positivos e superar as próprias deficiências. Para isso ele se mantém aberto a novas estratégias (BORTONI- RICARDO, 2008, p. 46).

A partir desse compromisso de refletir sobre a própria prática, não fazemos distinção entre o professor e o pesquisador e, por isso, optamos por usar o termo professora-pesquisadora no sentido de rejeitar a dicotomia teoria-prática e legitimar a voz do professor como sujeito ativo no processo. Assim, o caráter interpretativista é essencial para o reposicionamento do professor, porque lhe permite transformar e ser transformado. O aspecto mais inquietante para a professora-pesquisadora nesse cenário transformador está no reconhecimento de sua identidade como sujeito ativo na produção — e não somente no consumo ou na aplicação inquestionável — de conhecimentos, sobretudo no contexto atual de deslegitimação da voz docente. O procedimento metodológico usado para a intervenção é a realização de oficinas utilizando-se da leitura literária como ponto de partida para a produção escrita. São realizados três módulos de oficinas, a saber: • Módulo 1: O papel do narrador e dos tipos de discurso nos efeitos de sentidos; • Módulo 2: Caracterização de ambiente e personagens e construção do suspense; • Módulo 3: O desenvolvimento dos acontecimentos na construção narrativa. 56

Se a proposta prevê o reposicionamento dos sujeitos, não podíamos escolher os textos que introduziriam cada Módulo de Oficinas sem ouvir os estudantes. Levando em conta que eles demonstram muito interesse por filmes de heróis e reconhecendo o impacto que a linguagem menos realista causa neles em filmes e séries, a escolha dos textos motivadores se deu principalmente pela representação fantástica. Assim, eis os contos escolhidos: • Os meninos verdes, de Cora Coralina; • As formigas, de ; • O dia em que explodiu Mabata-bata, de . Para Roas (2014, p. 31), “A narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito pelo contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real”. Isso é o que torna o fantástico inquietante: ao mesmo tempo em que parte do contexto sociocultural real do leitor22, questiona e subverte a realidade; ademais, a combinação entre realidade e ficção só se materializam, para o autor, mediante a transgressão linguística, ou seja, a busca de recursos para dizer o indizível. Entendemos, pois, que se propomos algo em resposta ao imediatismo e à objetividade dos textos cotidianos e se pretendemos dar aos alunos o protagonismo de contarem suas histórias a partir da apropriação subjetiva da linguagem, a narrativa fantástica combina essas pretensões. Além disso, os contos foram escolhidos segundo os seguintes critérios: a linguagem não convencional23, materializada nos diferentes modos de dizer empregados pelos autores Cora Coralina, Lygia Fagundes Telles e Mia Couto; a complexidade das possibilidades de leituras subjetivas; as dimensões imaginativa e previsibilidade/imprevisibilidade dos recursos e estruturas empregados. Reconhecemos que trabalhar com contos de autores diferentes, de estilos diferentes e de épocas e contextos diferentes se apresenta como um desafio. Porém, entendemos também que tal desafio se alinha à proposta de intervenção que busca proporcionar o acesso a outras experiências significativas pelo fato de que quanto mais diversa for a coletânea, maior a possibilidade de garantir essas experiências. Ademais, embora distintos quanto ao estilo dos autores, à época, ao contexto e ao nível de complexidade, os contos de certa forma se aproximam dos alunos nos seguintes aspectos: i) Em “Os meninos verdes”, a presença da avó é marcante, assim como para boa parte dos alunos que ou moram com as avós ou ficam com elas o dia todo, enquanto os pais

22 Para o autor, essa é a principal diferença entre as narrativas fantástica e maravilhosa, pois enquanto a primeira parte da realidade contemporânea do leitor, a segunda cria um mundo sobrenatural. 23 Alvarez (apud ROAS, 2014, p. 19) usa a expressão transgressão linguística. 57

(frequentemente, só a mãe) trabalham, além da temática que pode ser levantada quanto à aceitação social do diferente através dos seres verdes; ii) Em “As formigas”, o suspense mobiliza a curiosidade comum entre os adolescentes e ainda pode ser levantada a questão de aceitação do diferente mais uma vez, que configura como uma temática relevante, já que temos alunas com necessidades educativas especiais na turma; iii) Já em “O dia em que explodiu Mabata-bata”, a vida mais rural, o trabalho infantil, as formas divergentes de enxergar a escola (a do tio e a do menino), a figura da avó mais uma vez, a presença da crença popular e da violência são possibilidades exploratórias que se aproximam das realidades sociais representadas na turma. Reconhecendo o desafio de uma intervenção a partir de contos tão diversos, fica evidente o papel mediador da professora-pesquisadora. Por essa razão, as oficinas foram organizadas em um primeiro momento de leitura subjetiva (ROUXEL, 2013) e um segundo momento de leitura rigorosa (RIOLFI et al., 2017) com a mediação da professora-pesquisadora. Inicialmente, a previsão era de que cada módulo de oficinas tivesse duração de 10 a 12 aulas, o que representaria um total de 30 a 36 aulas para a intervenção, dependendo dos desdobramentos. O planejamento das oficinas, constando os objetivos, as atividades e os recursos previstos, será apresentado no próximo capítulo. Considerando a proposta de uma pesquisa de âmbito social, a ética deve ser um princípio norteador de todo o processo, seja no planejamento metodológico, seja na análise dos dados. Referindo-nos ao contexto de pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, a preocupação com as questões éticas é especialmente importante, tendo em vista o fato de os procedimentos metodológicos envolverem dados obtidos diretamente com os participantes e as informações serem identificáveis (Resolução 510/2016). Em consonância com os artigos 18 e 19 da Resolução, a presente proposta assegura que os alunos estão livres de danos maiores do que os existentes na vida cotidiana (Art. 18), não havendo riscos à sua integridade física nem danos materiais. Para a minimização de possíveis riscos, coube à professora-pesquisadora: • Deixar claro aos participantes todas as etapas e atividades previstas e os objetivos pretendidos, com clareza, garantindo-lhes a segurança e a confidencialidade; • Fornecer todas as informações quanto à intervenção, ressaltando que as atividades solicitadas no âmbito da pesquisa não seriam aproveitadas para fins de avaliação escolar e garantindo a não penalização dos que não participassem; • Garantir assistência em casos de eventuais danos materiais ou imateriais aos participantes, bem como ajuda emocional para algum caso de intimidação ou constrangimento; 58

• Promover um ambiente de diálogo e cooperação, recusando qualquer forma de preconceito ou estigmatização. Assim, em consonância com a perspectiva social de pesquisa, partimos para a compreensão do nosso locus e dos sujeitos colaboradores nas próximas seções.

3.2 O contexto de pesquisa

A presente seção tem como finalidade apresentar o locus da pesquisa. Para tanto, procedemos à caracterização breve sobre a localização, sobre o perfil geral da Escola e sobre a sua posição na educação pública do município. A intervenção foi realizada na Escola Municipal Deputada Maria do Céu Pereira Fernandes que está situada na Rua Professora Nazaré Duarte, nº 74, Conjunto Novo Horizonte II, na zona urbana do município de Goianinha, Rio Grande do Norte. Segundo dados do ano de 2019, a Escola oferece o Ensino Fundamental regular do 5º ao 9º ano, nos turnos matutino e vespertino, e a Educação de Jovens e Adultos, no período noturno. A Escola tem 569 alunos matriculados, sendo o turno matutino o que concentra o maior número de estudantes. De acordo com os dados da Prova Brasil de 201524, a proficiência média da Escola é de 247,4 e a proficiência padronizada é de 4,9 em LP. Ainda de acordo com essa avaliação externa, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) ultrapassou a meta de 3,8 estabelecida pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) para o ano e alcançou a nota 4,3. Já na análise dos dados referentes ao ano de 201725, observamos que a proficiência média em LP continuou superior à de Matemática, atingindo 255,6, a proficiência padronizada cresceu para 5,2 na disciplina e a nota geral da Escola também cresceu e chegou a 4,7, superando a meta de 4,0. Como notamos, a instituição vem mantendo o crescimento no IDEB desde o ano de 2011 e tem superado a meta do MEC desde 2015, ou seja, são indicadores muito positivos. Quanto ao contexto da educação do município de Goianinha, a Escola obteve destaque desde 2015 com os melhores índices da cidade, chegando a superar os resultados de escolas maiores e de tradição local. Embora os dados apontem para uma trajetória positiva, para o MEC, a Escola ainda aparece no grupo das que precisam melhorar por não ter atingido a média 6,0;

24 Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2018. 25 Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2018. 59

porém, tomando os referidos dados como base, possivelmente em poucos anos a Escola atingirá essa nota. Apesar de os indicadores atestarem resultados em uma perspectiva crescente ao longo dos anos e de uma perspectiva otimista quanto à manutenção do contexto de avanço, observamos um déficit ainda acentuado em relação às habilidades de leitura e escrita, sobretudo em algumas turmas, motivo pelo qual propomos esta intervenção. Em virtude da demanda observada de maneira ainda mais particular em uma turma de 6º ano, no ano letivo de 2017, surgiram duas necessidades: i) de uma reorientação curricular no sentido de priorizar as práticas de leitura e escrita; ii) e de um acompanhamento da referida turma pelo mesmo docente nos anos seguintes. Nesse sentido, a turma em questão, já no 7º ano em 2018, suscitou em nós as problematizações que mobilizaram o projeto de pesquisa e, em sequência, já no 8º ano, em 2019, a turma passou a ser o nosso contexto de intervenção. Cabe ressaltarmos que alguns desses estudantes foram transferidos, outros mudaram de turno, outros foram reprovados, de modo que a turma atual só mantém 12 alunos daquela turma de 2017 e os outros 15 alunos foram chegando de outros turnos ou de outras escolas ou estão repetindo a série. Assim, a pesquisa foi desenvolvida com 27 alunos, com idade entre 12 e 21 anos, de uma turma de 8º ano do EF do turno vespertino. Em relação à instituição, está localizada em um conjunto habitacional periférico da zona urbana, em uma área de relativa concentração populacional. Há no bairro, uma creche, um ginásio poliesportivo, uma academia comunitária, dois postos de saúde, uma capela católica e algumas igrejas evangélicas. A atividade comercial está restrita a pequenos mercadinhos, bares e quiosques. Embora relativamente grande para o tamanho da cidade, o bairro não dispõe de uma Base da Polícia, de modo que os pequenos furtos são comuns, além dos problemas relacionados ao consumo e venda de drogas, sendo que essas situações não interferem na segurança da Escola no período diurno. Ademais, em virtude das poucas opções de lazer, muitos adolescentes do bairro (e da Escola) começam a frequentar festas de rua e a ingerir bebidas alcoólicas ainda muito novos. Quanto ao espaço físico, a Escola dispõe de uma Sala de Direção, uma Secretaria, Sala de Professores, Sala de Informática, Laboratório de Ciências e Sala de Atendimento Especial, além de Cozinha, Biblioteca, banheiros (para alunos, alunas e funcionários, separadamente), pátio coberto e 7 salas de aula. Salientamos que a Sala de Informática não conta com um profissional para atender ao público e as máquinas e o espaço físico são insuficientes para levar uma turma completa. No tocante à Biblioteca, apesar de um acervo relativamente bom, o espaço pequeno e o calor excessivo também inviabilizam a permanência de uma turma completa no 60

local. Por essas dificuldades, as atividades de intervenção ocorreram principalmente na própria sala de aula, tendo sido realizada uma Oficina na sala do laboratório de Ciências. Conhecendo o contexto da Escola, procedemos ao contexto dos colaboradores.

3.3 Os colaboradores da pesquisa

Esta seção apresenta os sujeitos colaboradores da pesquisa. Para isso, apontamos algumas informações que tenham relação com a proposta, tais como idade, moradia e condição social. Os colaboradores da pesquisa são 27 alunos de uma turma de 8º ano do EF do turno vespertino, os quais residem em cinco bairros, conforme o quadro:

Quadro 2 - Distribuição dos alunos de acordo com o bairro Bairros Quantidade de alunos Conjuntos Novo Horizonte I e II 09 Conjunto Altos de Goianinha 06 Loteamento Bosque das Palmeiras 05 Conjunto Nova Batalha 04 Comunidade do Catu 03 Fonte: elaborado pela autora (2019).

Os alunos residentes nos bairros Conjuntos Novo Horizonte I e II, Altos de Goianinha e Bosque das Palmeiras chegam à Escola, quase sempre, caminhando ou de bicicleta. Um grupo pequeno é trazido pelos pais/responsáveis de moto ou carro. Já os alunos que moram em Nova Batalha ou Catu, dependem de ônibus disponibilizados pela Gestão Municipal. Quanto às especificidades dos bairros, destacamos: o Conjunto Nova Batalha é o mais estigmatizado da cidade pelos índices de violência e circulação de drogas; o Loteamento Bosque das Palmeiras não tem todas as ruas calçadas e a iluminação pública é deficiente; o Conjunto Altos de Goianinha dispõe de iluminação pública e calçamento, mas apresenta pequenos furtos com frequência. Desses três bairros, apenas o Loteamento Bosque das Palmeiras tem posto de saúde; em nenhum deles há escolas, creches ou farmácias. Consideramos importante dedicarmos uma atenção especial à caracterização da Comunidade Indígena do Catu. Dos bairros atendidos pela nossa Escola, é o mais distante da sede do município e o que apresenta hábitos mais rurais. Poucas características de origem indígena diferenciam fisicamente os alunos da comunidade dos demais; o que há, quase sempre, 61

são diferenças de comportamento ou na linguagem como marcas mais distintivas. A título de exemplo quanto ao comportamento, esses adolescentes são mais respeitosos com colegas e professores e são mais disciplinados para os estudos; e quanto à linguagem, apresentam mais marcas da variante rural. Todavia, destacamos que o preconceito que esses alunos poderiam sofrer por tais diferenças não tem implicações negativas na rotina da sala de aula, o que resulta sobretudo da autovalorização da própria identidade e do orgulho que eles sentem da sua cultura e origem. Por essa razão, não vimos necessidade inicial de reconhecimento desses alunos pelos demais e, por isso, não entendemos que a intervenção deveria trazer algo específico para esse grupo, mas que deveria proporcionar-lhe outras experiências para além das que eles já têm e das quais tanto se orgulham. Desse modo, esses alunos não receberam um tratamento diferenciado no sentido de valorizar a cultura deles, mas tiveram espaço de compartilhar suas vivências e experimentar as dos colegas, num espaço de colaboração e equidade. Com isso, esperamos que toda a turma entendesse que há culturas diferentes no contexto escolar, sem que isso represente a superioridade de uma em relação à outra. Concernente à idade, os sujeitos da pesquisa têm entre 12 e 21 anos, distribuídos conforme o quadro 3:

Quadro 3 - Distribuição dos alunos de acordo com a idade Idade Quantidade de alunos 12 anos 02 13 anos 11 14 anos 09 15 anos 01 16 anos 01 17 anos 02 21 anos 01 Fonte: Elaborado pela autora (2019).

A grande disparidade de idades constituiu um desafio para a nossa intervenção sobretudo porque tamanha heterogeneidade dificulta o planejamento de atividades que atendam às especificidades de todos. Assim, tivemos o cuidado de observar o que alcançaria a maioria, que são adolescentes de 13 e 14 anos; contudo, sem deixar de considerar as minorias, tendo em vista que na diversidade potencializamos as aprendizagens. Outra especificidade nessa turma é a presença de três alunas com necessidades educacionais especiais. Uma aluna tem 17 anos e apresenta uma deficiência física nos membros 62

inferiores, a qual não a impede de andar e não atinge o seu desenvolvimento cognitivo, de maneira que ela participa das atividades propostas nas aulas normalmente. A outra aluna tem 16 anos e há uma suspeita de que tenha dislexia, em virtude da troca recorrente de fonemas; como é alfabetizada, consegue acompanhar as atividades propostas, sendo necessária uma atenção especial em relação à leitura em voz alta e ao tempo maior para realizar as tarefas. A terceira aluna tem 21 anos e apresenta deficiência intelectual, o que prevê a adaptação de algumas atividades, principalmente pelo fato de ela ainda estar em processo de alfabetização e pelo comportamento mais infantilizado, buscando mais produções orais ou o apoio de um copista para as produções escritas. Destacamos que nenhuma das três alunas apresentou laudo médico à Escola. No primeiro e no último caso, as deficiências são visíveis; já no segundo caso, tratamos apenas como uma suspeita de dislexia, sem um diagnóstico mais preciso. A falta de laudos médicos dificulta o nosso trabalho porque nos impossibilita um atendimento mais direcionado; por outro lado, revela o nível de comprometimento das famílias no sentido de buscar tratamento específico para as necessidades das filhas. Outro grande desafio no trabalho diz respeito às faltas recorrentes de duas delas. Entretanto, embora reconheçamos os entraves e desafios do trabalho, entendemos que a intervenção favoreceu a participação das alunas sobretudo porque as atividades eram colaborativas e permitiam que elas compartilhassem as suas vivências, contribuindo para a construção de experiências coletivas de tolerância, superação, solidariedade, união e empatia etc. Feita a caracterização, passamos à seção que trata do diagnóstico dos sujeitos.

3.4 Diagnósticos dos sujeitos de pesquisa

O objetivo deste tópico é apresentar os três instrumentos adotados para a realização de um diagnóstico dos sujeitos da pesquisa, bem como as relações entre o perfil dos colaboradores, o problema de pesquisa e as atividades propostas. Os instrumentos empregados para a realização do diagnóstico dos sujeitos foram três: um questionário, uma produção narrativa escrita inicial e uma autobiografia de leitor. Passamos a discorrer sobre eles para a melhor caracterização da turma.

3.4.1 Instrumento 1: o questionário

63

Este subtópico apresenta o instrumento usado para diagnosticar o perfil dos participantes da pesquisa em relação ao acesso a bens culturais, bem como verificar o lugar que os suportes digitais têm para eles, a fim de validar a nossa observação inicial sobre a subutilização das aprendizagens oportunizadas pelos recursos digitais e de defender a necessidade de uma abordagem reflexiva e crítica das novas tecnologias. O questionário, representado na Figura 2, foi aplicado com os estudantes do 8º ano B para traçar um perfil quanto aos bens culturais e às práticas de leitura e escrita mais recorrentes entre eles, assim como as características dos textos com os quais interagiam comumente. Vale ressaltarmos que a adoção do questionário como instrumento diagnóstico não desconfigura o caráter qualitativo da pesquisa, já que funcionou como verificação da observação inicial de que os alunos, em sua maioria, têm a internet como o principal bem cultural disponível, o que justificaria a sua maior influência nas práticas de leitura e escrita em sala de aula. Desse modo, a ausência de acesso a outros bens culturais estaria dificultando o favorecimento da construção de outras experiências éticas, estéticas e linguísticas.

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Figura 2 - Questionário para aluno

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

O instrumento continha 20 perguntas objetivas e um espaço no final para algum comentário ou observação que os alunos quisessem registrar. O tempo gasto para respondê-lo foi, em média, de 15 minutos. Foi aplicado na própria sala de aula, sob a orientação da professora-pesquisadora, sem necessidade de identificação. Dos 27 alunos matriculados na turma, apenas um deixou de responder por não estar presente no dia da aplicação. Dos 26 alunos que responderam, 17 ingressaram na escola com até 3 anos de idade e apenas dois só conheceram a escola aos 6 anos. Esses números são bem positivos porque sugerem a preocupação das famílias com a escolarização dos filhos; porém, quando perguntados sobre a idade que tinham quando aprenderam a ler e escrever, nove alunos responderam que aprenderam com mais de 7 anos, seis alunos disseram que aprenderam aos 6 e apenas um com menos de 4 anos de idade. Isso nos leva a crer que, embora tenham chegado 65

cedo à escola, o processo de alfabetização se deu de forma lenta para a maioria deles. Quanto ao acesso dos estudantes a bens culturais, observemos os gráficos a seguir:

Gráfico 1 - Frequência ao cinema Com que frequência você vai ao cinema?

nunca

anualmente

às vezes

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Gráfico 2 - Frequência ao teatro Com que frequência você vai ao teatro?

nunca

anualmente

às vezes

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Gráfico 3 - Frequência à biblioteca Com que frequência você vai à biblioteca?

às vezes

nunca

anualmente

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

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Observamos, no gráfico 1, que 12 alunos nunca foram ao cinema, 10 vão anualmente e quatro vão às vezes. No gráfico 2, quanto ao teatro, 22 alunos nunca foram, dois afirmaram ir anualmente e dois afirmaram ir às vezes. Vale destacarmos que não há cinemas ou teatros na cidade e, considerando que muitos adolescentes sentem vergonha de dizer que nunca foram a esses ambientes, é possível que os números não correspondam exatamente à realidade. Já em relação à ida à biblioteca, 18 alunos disseram que vão às vezes, cinco disseram que nunca foram e três responderam que vão anualmente. Se considerarmos que há uma biblioteca na Escola e uma biblioteca pública municipal no centro da cidade, esses números, embora melhores em relação ao cinema e ao teatro, têm uma representação ainda mais negativa, tendo em vista que a biblioteca é mais acessível para eles. Quando perguntados sobre a internet, nenhum adolescente disse não ter acesso, dois disseram ter acesso às vezes em outros ambientes (escola, casa de amigos e parentes) e 24 disseram ter acesso em casa. Isso confirma a ideia de que, para muitos, a internet é o bem cultural mais presente e, consequentemente, mais importante e mais influente. Quando perguntados sobre quantos livros leram no ano anterior, sete responderam nenhum, quatro responderam um e seis responderam dois. Já em relação a quantos livros compraram ou ganharam, 15 alunos disseram nenhum e quatro disseram um. Os números revelam que os livros impressos não fazem parte da rotina da maioria dos alunos, o que não representa nenhuma novidade se considerarmos os números nacionais26 referentes à leitura. Já diante da pergunta sobre o critério de escolha de um livro, os dados são bem desafiadores, conforme o quadro 4, a seguir:

Quadro 4 - Critérios apontados para a escolha de um livro Critérios Quantidade de alunos Histórias curtas 12 Mais ilustração e menos texto escrito 08 Histórias longas 03 Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Como observamos, o critério que se destaca na hora de escolher um livro é a presença de histórias mais curtas ou de mais ilustração do que texto escrito. Histórias mais longas são evitadas. Isso pode ter relação com a falta de tempo, tão comum no nosso estilo de vida atual.

26 Segundo Pesquisa Ibope encomendada pelo Instituto Pró-Livro e divulgada no Portal G1 em 18 de maio de 2016, brasileiros leem 2,54 obras por ano. Disponível em: . Acesso em 20 fev. 2019. 67

Dos consultados, três responderam que não usam qualquer critério porque não costumam escolher livros. Esses números reiteram a nossa ideia inicial de preferência por textos curtos, rápidos e de organização simples. Um outro quesito do questionário solicitava que os discentes enumerassem de 1 a 10 (sendo 1 correspondente à mais frequente e 10 à menos frequente) as práticas de leitura mais frequentes para eles nas suas atividades cotidianas. Os textos na internet foram apontados como os mais frequentes no cotidiano por 22 dos 26 alunos. O acesso, segundo as respostas, é diário para 24 dos entrevistados e desses, 14 admitiram dedicar mais de 6 horas do dia à internet. O livro ficou em primeiro lugar para dois alunos e em último para sete. Esses dados revelam a presença e a importância dos textos de circulação em suporte digital para esse grupo. O que nos chamou a atenção nessa questão também foi o fato de três alunos afirmarem terem visto um jornal impresso somente pela televisão e nunca pessoalmente, revelando a disparidade de acesso entre o impresso e o digital. O quadro 5 traz as opções dadas no quesito:

Quadro 5 - Práticas de leitura Faixas na rua Fachadas de lojas e comércios Letreiros e cartazes em muros e ônibus Encartes distribuídos nas ruas (propagandas, campanhas) Placas Panfletos promocionais de lojas Revistas impressas Jornais impressos Livros Textos na internet (status, comentários, legendas de fotos, memes, vídeos, conversas em Aplicativos. Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Com base nas respostas dadas, já sabemos que os adolescentes passam muito tempo na internet, agora precisamos entender o que fazem por lá. Eis o gráfico 4: 68

Gráfico 4 - Conteúdo mais acessado da internet

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Foram apresentadas algumas opções de uso da internet para que eles assinalassem sim, não ou às vezes, quanto à frequência de acesso. De acordo com o gráfico 4, os alunos consultados priorizam vídeos no YouTube (22), redes sociais (21) e jogos (19), ou seja, há uma busca evidente por imagens já prontas; por outro lado, os três conteúdos relacionados a estudo, formação ou informação juntos foram citados apenas por dois alunos. No tocante aos conteúdos que não são consultados, cursos em plataformas digitais e bibliotecas foram unanimidade e os sites de informação foram opção para apenas dois alunos. A situação exposta no gráfico contribui para o pensamento inicial de haver relação entre os textos a que os alunos têm acesso mais frequente e o modo como escrevem nas aulas de LP, dada a exposição excessiva a essas práticas. Em outra questão, os discentes foram perguntados sobre a rede social mais utilizada: o WhatsApp ficou em 1º lugar, sendo citado por 13 alunos e o Facebook veio em seguida, citado por 08. Esses números, de certa forma, surpreenderam porque em uma observação inicial pensávamos que o Facebook fosse mais popular; no entanto, considerando que é possível acessar o WhatsApp mesmo quando a rede de internet está lenta (situação comum nos bairros dos alunos), faz sentido que esse seja o aplicativo mais usado. Eles também responderam sobre o objetivo principal de acesso às mídias digitais: as finalidades de distrair-se e de conversar ou se comunicar juntas arrebanharam 16 votos. Quanto ao material que acessam ou publicam nas redes sociais, vejamos o quadro 6:

Quadro 6 - Preferência de material para acessar e publicar nas redes sociais Para acessar Para publicar

Fotos 12 16 69

Memes 09 05

Vídeos 05 04

Textos escritos curtos 00 01

Textos escritos longos 00 00

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Notadamente, a turma tem a preferência por textos híbridos como fotos, vídeos e memes. As fotos são preferência tanto para acessar quanto para publicar, enquanto os textos escritos são evitados pelos consultados. Quando questionados sobre a atitude que costumam ter quando um amigo publica um texto mais longo na rede social, a maioria (11) respondeu que, apesar de não gostar de textos longos, lê em respeito ao amigo; por outro lado, apenas cinco disseram não ter problemas para ler os textos maiores. Já sobre a pergunta “Como você define a internet?”, foram dadas algumas opções de respostas representadas no gráfico 5 através de números, a saber: 1 corresponde a essencial, 2 a perigosa, 3 a prejudicial e 4 corresponde a importante. Vejamos:

Gráfico 5 - Definição da internet DEFINIÇÃO DA INTERNET

Essencial [] Essencial Perigosa Prejudicial Importante Perigosa [] [] Importante

Prejudicial []

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Segundo o gráfico 5, a internet foi definida como importante por 21 pessoas (58%), como essencial por 10 (28%), como perigosa por quatro (11%) e como prejudicial por apenas uma pessoa (3%). Para responder à definição, os alunos poderiam escolher mais de uma palavra e o interessante é que, mesmo aqueles que escolheram duas definições, optaram por associar as duas positivas (importante e essencial), de modo que podemos inferir que, para a maioria deles, a internet só apresenta benefícios. 70

Esse conjunto de informações levantadas ratifica a afirmação que fizemos de que há uma subutilização das possibilidades de aprendizagens oportunizadas pelas tecnologias digitais, talvez em decorrência da falta de um direcionamento; ademais, fortalece a opinião defendida, em concordância com os documentos oficiais, de que há a necessidade de a escola abordar essas possibilidades de maneira reflexiva e crítica sem, no entanto, incorrer em uma defesa inquestionável para qualquer contexto. Atesta ainda que a internet é, para muitos dos informantes, o principal (ou o único) bem cultural disponível. Assim, a partir desses dados, é possível construir um perfil dos alunos mais próximo do real, a fim de justificar a relevância da intervenção para proporcionar o acesso a outras práticas de leitura e escrita que possam contribuir para o desenvolvimento das aprendizagens dos estudantes. Além do questionário, adotamos um segundo instrumento para diagnóstico, sobre o qual tratamos a seguir.

3.4.2 Instrumento 2: produção textual inicial

Neste subtópico apresentamos o contexto da produção escrita inicial dos alunos, assim como a análise de quatro textos produzidos, a fim de elencar as principais dificuldades que a turma apresenta na construção narrativa. Contextualizando a produção textual inicial, fizemos a leitura do texto “O menino”, de Chico Anysio, disponível no Livro Didático Português Linguagens (2015), usado pela turma, representado na Figura 3.

Figura 3 - Texto motivador produção inicial

Fonte: Cereja e Magalhães (2015, p. 12-13).

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Em seguida, foi feita uma discussão sobre o texto, partindo das seguintes provocações: a) O que você sentiu durante a leitura?; b) Que sensações ela lhe despertou?; c) Como você vê o narrador?; d) Você consegue fazer alguma relação entre a história e a sua vida? Quais? Os alunos foram incentivados a falar sobre as primeiras impressões que tiveram sobre o texto em uma roda de conversa. Pedimos que falassem informalmente da própria infância, contassem suas histórias, lembrassem algum episódio e relacionassem as próprias histórias com a do menino personagem do texto. Com exceção de três alunas mais tímidas, os alunos interagiram bem. Depois, eles deveriam escrever alguma das histórias que compartilharam oralmente. A aula teve boa aceitação, principalmente pelo fato de não estarem lendo o texto do livro apenas para responder às questões que seguiam. Ressaltamos que a escolha de um texto do LD se fundamenta na defesa de que o livro garante aos alunos textos diversificados, bons e adequados à faixa etária, cabendo aos professores a adaptação das atividades às turmas, de modo que evitem tomá-lo como recurso inquestionável, por um lado; ou demonizá-lo completamente, por outro. No momento de interação oral, a participação foi muito boa. Já no momento da escrita, notamos mais resistência, de modo que, ao final da aula, apenas 13 alunos conseguiram concluir os seus textos. Após a produção escrita, os alunos foram incentivados a apresentá-la para os colegas e a fazer alguma alteração. Porém, dos 25 alunos presentes, apenas dois aceitaram apresentar. Isso revela o quanto a escrita se mostra como uma dificuldade comum ao grupo.

Quadro 7 - participação na atividade diagnóstica Roda de conversa 22 alunos participaram Produção escrita 13 alunos participaram Apresentação 02 alunos participaram Fonte: Elaborado pela autora (2019).

O objetivo da produção textual era fazer um levantamento mais pontual das principais dificuldades apresentadas e mapeá-las tanto para planejar melhor as etapas da intervenção, quanto para compará-las a outras produções dos estudantes durante e no final do processo interventivo. Para essa avaliação individual inicial, observamos aspectos que pudéssemos relacionar às hipóteses da pesquisa: i) Há relação entre o excesso de exposição aos textos de linguagem objetiva e de comunicação mais imediata nas redes sociais e a superficialidade das construções narrativas dos adolescentes. 72

ii) O acesso à experiência dos autores das narrativas literárias dos textos lidos pode favorecer a formação leitora do estudante e, consequentemente, o desenvolvimento da proficiência na escrita. Assim, observamos nesse momento: o projeto de texto27 (construção narrativa), o emprego intencional de expressões/recursos, a caracterização de personagens e ambientes, o uso de trechos/ideias do texto motivador, a organização dos períodos, a presença/ausência de desfecho. Para definir os aspectos que avaliaríamos nos textos, partimos da análise de dois modelos de grades de correção: o primeiro, o de grade para análise formal de textos, proposto por Riolfi et al. (2014, p. 21), representado na Figura 4; e o segundo, o de descritores e critérios apresentados por Abaurre e Abaurre (2012, p. 56-57), representado na Figura 5.

Figura 4 - Modelo de grade 1

Fonte: Riolfi et al. (2014, p. 21).

27 Estamos usando a expressão para nos referirmos a uma sequência narrativa mínima (apresentação, sequência de acontecimentos e desfecho). 73

Figura 5 - Modelo de grade 2

Fonte: Abaurre e Abaurre (2012, p. 56-57).

A partir da análise dos modelos, propomos os seguintes critérios para a avaliação individual inicial, conforme o Quadro 8:

Quadro 8 - Grade de análise da produção inicial Aspectos observados Construção narrativa Emprego intencional de recursos Caracterização de personagens Caracterização de ambiente Organização dos períodos Desfecho Uso de trechos do texto motivador Aspectos éticos Fonte: Elaborado pela autora (2019).

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Destacamos que esse instrumento foi para uso da professora-pesquisadora no sentido de investigar as principais demandas da turma e não teve caráter quantitativo, sendo adotado para fins de diagnóstico e de reflexão para planejar as etapas seguintes da intervenção. Conforme mencionamos, no dia da aplicação deste segundo instrumento diagnóstico, dos 25 alunos presentes apenas 13 entregaram a produção, os quais foram identificados com o código TI, referente a Texto Inicial, e um número correspondente a cada aluno, a fim de preservar a sua identidade. Para esse momento de construção diagnóstica, selecionamos quatro dentre os 13 textos recebidos, em níveis diferentes de proficiência, os quais passamos a analisar. Passamos ao primeiro texto representado na Figura 6 e transcrito na sequência:

Figura 6 - TI 1

Fonte: TI 1 (2019).

Transcrição TI 1 1 Quando eu era pequena eu gostava de jogar bola com os meninos, teve um dia que eu fui jogar 2 bola, ai eu comecei a chutar a bola ai eu fiquei bastante empolgada e chutei a bola quando eu chutei 3 o menino chutou também e eu cai ralando a cara dentro da lama e fui correndo pra dentro de casa!

Observamos que se trata de uma aluna (linha 2: empolgada) e essa informação é importante para comentarmos aspectos referentes ao conteúdo da narrativa. Ela destaca que gostava de brincar com os meninos, “... gostava de jogar bola com os meninos...” (linha 1), e pelo destaque dado, podemos entender que o seu comportamento de jogar com os meninos não era comum no seu contexto e que, possivelmente, esse comportamento era atípico a ponto de marcar as suas lembranças de infância. Quanto à organização, destacamos uma construção narrativa ingênua pelas lacunas no desenvolvimento dos acontecimentos. Observamos a repetição recorrente das palavras bola e chutar (4 vezes, cada uma), o que sugere um vocabulário pouco diversificado para uma aluna do 8º ano. Também notamos alguma conexão entre as frases, mas sempre usando os mesmos elementos, destacados no texto: quando (linhas 1 e 2), e (linhas 2 e 3) e aí (duas ocorrências na linha 2). Outra questão interessante para destacarmos é a ausência de caracterização das 75

personagens, o que poderia enriquecer a história e acrescentar a subjetividade na forma singular que a aluna enxergava as pessoas e os espaços na sua infância. A forma como se dá o desfecho é repentina, brusca, sem explorar o possível suspense de as duas crianças terem chutado a bola ao mesmo tempo, por exemplo, o que poderia ser um clímax e tornaria a história mais interessante. Além disso, o texto de apenas três linhas é simplista, não estimula uma construção imagética do leitor e não exige estratégias mais complexas de leitura. Vamos à próxima produção transcrita:

Figura 7 - TI 2

Fonte: TI 2 (2019).

Transcrição TI 2 1 A minha emfancia começa quando minha irmâ tava Brincando de boneca na casa da minha 2 tia eu pege a minha boneca e fui brinca com ela e foi muito bom eu amo brinca de Boneca e de 3 escondesconde e ai mais coisas e na minha enfansia eu andava sem Sandalha e andava de bisiqueta 4 essa e minha enfansia... eu amo minha enfansia e muito bom anda de biciqueta anda de roupas de 5 segunda mão...

Pensando no conteúdo da narrativa TI 2, está marcada a importância que a irmã tem na infância da aluna, a ponto de ela dizer que a sua infância começa em uma brincadeira com a irmã: “A minha emfancia começa quando minha irmâ tava Brincando de boneca...” (linha 1). Considerando que a aluna já inicia o texto falando na irmã, podemos inferir que a irmã é a sua grande influência na infância. Ainda sobre o trecho, a princípio, nos pareceu incoerente, mas observando a sequência, percebemos que a aluna escolhe um momento específico da infância para narrar, de modo que fica implícito que ela não tem a intenção de dizer que a sua infância começou ali e só o faz pela sua dificuldade em escolher como começar a narrativa. Quanto à organização, a baixa informatividade, a ausência de caracterizações e a pressa em concluir comprometem o projeto de texto e uma leitura mais significativa para o leitor. Em relação à caracterização, por exemplo, a aluna poderia ter-se dedicado a falar da sua 76

boneca, que ela afirma amar, “... amo brinca de Boneca...” (linha 2), mas não explora as lembranças que tem dela. Como desfecho, a expressão “é muito bom... andar de roupa de segunda mão” (linhas 4 e 5) é uma evidente alusão ao texto motivador “O menino”, de Chico Anysio, que fala das roupas reaproveitadas da personagem, ou seja, isso caracteriza uma tentativa de usá-lo como modelo de escrita, ainda que inconscientemente. Observemos mais este texto dos alunos representado na figura 8 e transcrito em seguida:

Figura 8 - TI 3

Fonte: TI 3 (2019).

Transcrição TI 3 1 Tinha uma menina que se chamava Dani ela morava debaixo de uma lona com o sua mãe e o seu 2 padrasto e as suas duas irmãs que se chamava Alessandra e edilma e quando cho-via molhava 3 eles a chuva e ela era pobre e um dia umas pessoas da prefeitura passou lá e viu eles na quela 4 situação e decidiram que ia dar uma casa aquela família ae tiraram fotos e levaram para uma 5 cidade para colocar aquela situacão na televisão.

Retomando o comando da proposta de produção textual, a turma foi solicitada a narrar uma história da própria infância; poderia ser alegre, triste, engraçada, curiosa, mas deveria ser real. Lendo a narrativa, observamos a escolha do narrador em terceira pessoa e a criação da personagem Dani (linha 1), o que nos levou a pensar que a aluna não entendeu a proposta ou não queria ser identificada em virtude da alta exposição gerada pela história que conta. Assim, o conteúdo não está somente em contar um fato, mas também em denunciá-lo, o que notamos porque, apesar de apresentar a família toda no trecho “... sua mãe e o seu padrasto e as suas duas irmãs...” (linhas 1 e 2), o foco não está nela, mas no espaço e na condição de vida, como nos trechos “... quando cho-via molhava eles...” (linhas 2 e 3) e “... era pobre...” (linha 3). O tempo dos verbos “morava” e “molhava” (linhas 1 e 2, respectivamente) não é o mesmo de “passou” e “viu” (linha 3) e essa escolha deixa implícita a situação que se repete: 77

morar embaixo de uma lona sem proteção contra a chuva, reforçando a ideia de denúncia. Por outro lado, a ordem dos termos em “molhava eles a chuva” (linhas 2 e 3) nos conduz para o foco que se pretende dar: a falta de proteção e, ainda, para uma tentativa de enfatizar a ideia usando dois termos que correspondem à mesma situação (molhar e chuva). Uma informação que não fica clara é quando a aluna diz que umas pessoas da prefeitura decidiram dar uma casa para a família e depois diz que levaram a situação para a televisão (linhas 4 e 5). Não fica claro para o leitor se foi a prefeitura ou a televisão que resolveu a situação da família, o que pode revelar a falta de clareza da criança quanto à situação ou mesmo da própria família. Mas também pode significar dificuldade de ordenar os acontecimentos de modo linear na narrativa. Qualquer que seja a hipótese escolhida pelo leitor, ficam evidentes a necessidade de falar sobre o que marcou a infância sem se expor e o entendimento de que a família não sairia daquela condição sem uma ação externa (da prefeitura ou da televisão). A uma aluna como esta pode faltar acesso a bens culturais letrados, mas não lhe falta experiência de vida e leitura de mundo. Sobre a organização, notamos uma construção narrativa mais amadurecida para o nível de ensino, já que há, minimamente, uma apresentação da personagem e do espaço, seguida de uma sequência de acontecimentos. Podemos dizer que houve conexão mínima entre os termos/partes do texto se tomarmos os trechos “que se chamava Dani” (linha 1) e “quando cho-via” (linha 2), como exemplos. Porém, a ausência de um ponto de suspense e de um desfecho mais detalhado sobre o que aconteceu com a família, assim como a caracterização mais específica do espaço prejudicaram a construção imaginativa do leitor. Embora não haja claramente uma palavra/expressão retirada do texto motivador, podemos notar que a ideia de infância sofrida do outro texto está presente implicitamente também aqui. Passamos ao último texto escolhido, na Figura 9, transcrito a seguir:

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Figura 9 - TI 4

Fonte: TI 4 (2019).

Transcrição TI 4 1 Quando eu era pequena, eu era muito artilosa não podia ver niguém que eu ia imitar, pegava 2 escondida facas de cerra e ia brincar de cortar algumas coisas, eu nem sei porque e até mesmo 3 me cortava. A primeira vez que eu vi alguém riscando uma caixa de fósforo foi a minho avó. 4 Continuando quando ela saiu para varrer o quintal, peguei a caixa de fósforo escondida e chamei o 5 meu primo, porque tudo que eu fazia chamava ele. Como eu vi ela risquano o fósforo sentei no sofá 6 com o meu primeo, amostrei à ele como se fazia, só que eu risquei no sofá e pegou um pouco de 7 fogo. Eu assustada chamei minha avó e ela veio correndo e apagou o fogo e ficou um buraco no sofá 8 dela.

Quanto ao conteúdo, ao usar a palavra “artilosa” (linha 1), a aluna pode estar repetindo o que ouvia quando aprontava alguma coisa quando criança, pois usar a forma “artilosa” em lugar de “ardilosa” pode fazer referência à expressão “fazer arte”, expressão muito comum no interior, usada para descrever crianças muito ativas. Observamos a presença marcante da avó e do primo nas lembranças da infância e notamos que o contexto é diferente do contexto de outros alunos da turma: ela brincava, as brincadeiras eram no interior da casa, tinha a companhia de outra criança, a avó estava sempre por perto. O uso do narrador-personagem e as escolhas que faz, como na expressão “... não podia ver niguém que eu ia imitar...”, nos permitem perceber alguma projeção da aluna no texto. No que se refere à organização, a narrativa começa com a caracterização da personagem e uma contextualização em “Quando eu era pequena, eu era muito artilosa não podia ver niguém que eu ia imitar, pegava escondida facas de cerra e ia brincar de cortar algumas coisas, eu nem sei porque e até mesmo me cortava...” (linhas 1-3), ou seja, percebemos um projeto de texto que caracteriza a personagem (artilosa) e que marca minimamente a passagem do tempo (quando eu era pequena). Na sequência, a aluna organiza as ações (saiu, peguei, chamei, sentei, amostrei, risquei etc). Notamos que houve alguma caracterização da personagem “artilosa” e que essa característica é o ponto de partida para as 79

situações narradas, isso é interessante e contribuiu para manter a coerência do texto, apesar da presença de uma expressão que poderia provocar ambiguidade para o leitor: “peguei a caixa de fósforo escondida” (tanto a narradora quanto a caixa poderiam estar escondidas, linha 4) em virtude da ordem em que as palavras foram colocadas. Quanto à ligação dos períodos, observamos uma tentativa de conexão através da palavra “continuando” (linha 4). Em relação à expressão “eu risquei no sofá e pegou um pouco de fogo” (linhas 6 e 7), fica aparente o uso intencional para minimizar a própria ação através do verbo pegou, ou seja, “o sofá pegou fogo”, em lugar de “eu atirei fogo no sofá”, complementando com a expressão “um pouco”. Por fim, um ponto que distingue esse texto dos demais é o seu maior distanciamento do texto motivador apresentado pela professora- pesquisadora. Como dissemos, os quatro textos escolhidos para este diagnóstico apresentavam-se em níveis diferentes de proficiência escrita, conforme se pode constatar. Todavia, tomando a observação dessas produções como referência, podemos ampliar a nossa observação primeira e listar algumas características para a escrita dos alunos observados. Assim, afirmamos que eles, em sua maioria: i) preferem textos mais curtos; ii) optam, com frequência, por períodos com estrutura mais simplificada; iii) apresentam dificuldades quanto a caracterizações mais detalhadas e construção de pontos de suspense ou desfechos mais elaborados; iv) escolhem expressões mais convencionadas, evitando modos de dizer mais subjetivos; v) repetem termos com frequência pela dificuldade de estabelecer conexões entre as partes; vi) tentam, em alguma medida, imitar o texto motivador, porque o reconhecem como uma forma de “escrever bem”; vii) preferem contar a própria história de modo mais realista. Tais constatações ratificam as nossas suspeitas quanto ao fato de a escrita escolar ser influenciada, de alguma maneira, pelas práticas de escrita mais objetivas e utilitaristas com que os alunos estão mais familiarizados e justificam a escolha dos procedimentos metodológicos voltados para a leitura subjetiva e a escrita criativa. Feito o mapeamento das principais dificuldades na escrita dos estudantes, passamos a seguir ao terceiro instrumento, utilizado para observar o perfil dos sujeitos em relação à leitura literária.

3.4.3 Instrumento 3: a autobiografia de leitor

O terceiro instrumento usado para o diagnóstico da turma foi a autobiografia de leitor. Segundo Rouxel (2013), a autobiografia do leitor é um gênero que se inaugura com Pierre 80

Dumayet, em 2000. Para a autora, o gênero centra-se na leitura e abre a reflexão sobre a relação da literatura com a formação das pessoas. Quando nos apropriamos de uma leitura, somos por ela (trans)formados e essa trajetória de experiência estética e ética pode ser compartilhada na autobiografia de leitor. Nesse sentido, a autobiografia de leitor é uma boa ferramenta no espaço escolar, sobretudo porque permite pensar sobre como se determinam os gostos literários e a identidade do leitor, ou seja, “permite observar o lugar que ocupa o processo de identificação na recepção dos textos e a que fenômenos de desdobramento identitário são convidados os sujeitos leitores durante o ato de leitura”. (ROUXEL, 2013, p. 68). Assim, ajuda-nos a enxergar a nossa identidade literária e, por isso, configura como um instrumento de diagnóstico muito relevante porque os estudantes poderão escrever sobre o que já leram e associar as leituras aos momentos de suas vidas, enxergando-lhes o valor na construção da história pessoal. Por isso, antes de serem solicitados à escrita da autobiografia de leitor, apresentamos a nossa autobiografia de leitora, a fim de que os estudantes reconhecessem o movimento de significação da leitura literária ao longo da vida. A seguir, temos um trecho (texto completo disponível no Apêndice):

Autobiografia de leitora O meu nome é Bruna. Sou cristã, sou nordestina, filha, mãe, neta, esposa, irmã, amiga, professora, aluna. Na vida de interior no litoral agreste ou nos anos na capital Natal, nesses 39 anos de existir, vivi histórias de todo tipo que adoraria contar, fosse para alegria ou para lamentação. Mas me limito a falar agora das histórias que se cruzam com as minhas, todas misturadas num balaio de bambu liso de tiras finas e resistentes. Nasci numa família simples, filha de um assalariado da indústria e de uma costureira e dona de casa, ambos sem o Ensino Fundamental completo. Não tive uma infância cercada por livros, nem ouvi meus pais lerem histórias para eu dormir. Aprendi a ler [...] tinha 7 anos [...]. Embora soubesse ler, a minha leitura se limitava a ler as lições do quadro e do caderno na escola, quase sempre com o objetivo de fazer alguma atividade; além disso, lia algum anúncio na TV, alguma placa na rua, algum rótulo de produto... Na minha escola de Ensino Fundamental I havia o dia da história e eu adorava aquele momento porque a professora abria um livro e nos contava narrativas de príncipes e princesas. E foi assim que descobri que os livros eram como guardiões dos mundos escondidos. E isso me interessava. Mesmo gostando deles, não faziam parte da minha vida fora da escola, pois não os tinha em casa. Descobri que no meu bairro havia um prédio com uma sala escura que abrigava um tesouro incalculável: era uma espécie de biblioteca desativada. Não sei por qual razão estava desativada, mas eu quis ir pedir livros emprestados. Não é que me emprestaram? Lembro-me de um deles, tinha uma capa colorida, com o desenho de uma flor abatida pelo frio. Enquanto falo, aquela capa se coloca diante dos meus olhos. Era o meu preferido porque tinha a palavra friorenta na capa e, como eu nunca tinha ouvido aquela palavra, achava engraçada, desajeitada, desafiadora [...] Passei a estudar em uma escola que exigia livros no Ensino Fundamental II. Eram vários: Matemática, Português, até de Inglês tinha! O que me chamou a atenção era um pequeno, com um cachorro na capa, “Um dono para Buscapé”. Fiquei imaginando como seria conversar com os amigos sobre as aventuras do cãozinho, mas me surpreendi quando a professora pediu que nós respondêssemos a uma folhinha que veio dentro do livro porque valia nota. Enfim, respondi direitinho, tirei uma nota bacana, mas nunca soube o paradeiro do Buscapé, nunca falei com os meus colegas sobre as aventuras do cachorro e achei que preencher aquela folhinha era um jeito de ler muito sem graça. Mudei de escola no ano seguinte, mas nessa não tinha livro não. De nada. Nem grandes com lições, nem pequenos com folhinhas. [...] Então, resolvi ler o único livro que tinha na minha casa. Ele era todo preto por fora, era grosso e eu pensei “como é grandão, vou ter o que ler por um bom tempo!”. Não tinha desenhos na capa e as letras estavam apagadinhas, nem dava pra ler o título, mas eu sabia o seu nome, Bíblia. [...] Como a minha mãe vinha reclamando da conta de luz e eu não poderia acender uma outra lâmpada em outro cômodo só para ler, eu arrastava a cadeirinha de balanço azul para a frente da casa, onde havia um poste. Aproveitava a luz da rua e começava. Esse ritual se repetia todas as noites. Aquele livro não era como os outros, ele tinha outros livros dentro. Era como um livro pai de outros livros. Havia os filhos grandes, os filhos pequenos e os filhos bebês. Aquilo era incrível! Eram histórias de reis, guerras, amores, famílias... Já pensou que genial? Tinha de tudo! Eu não entendia bem tudo o que lia, mas seguia na missão. Depois de um bom tempo, finalmente concluí. Sensação estranha é terminar um livro, é um sentimento de solidão. De luto. Depois de mais de um ano juntos, agora eu estava sozinha de novo. Sem livro! Descobri um outro livro pela casa. Meu pai apareceu com ele porque estava como técnico de um time de futebol da cidade. Ele era amarelado. Sujinho. Feio. Sem figuras. Pontinhas comidas, por baratas talvez. Sobre as regras do futebol. Resultado: escanteio, linha de impedimento, tiro de meta... deixaram de ser um mistério para mim. Li tudinho e me tornei torcedora que não dorme sem ver os gols do Fantástico aos domingos. [...] 81

Dizem por aí que nós somos o que comemos; mas eu acho que nós também somos um pouco do que lemos. Não gosto de frio, como a flor friorenta. Amo os cachorros, como o Buscapé, e dei o nome de Maxon (personagem do livro A seleção) para o meu Shih Tsu. Acredito nos princípios cristãos, conforme os ensinamentos bíblicos e leio as cartas de Paulo até hoje. Sou apaixonada por futebol e odeio as baratas. Gosto tanto das histórias improváveis de amor que vivo uma. Sou sensível às injustiças. Tento ser otimista e manter a esperança como a menina Polyanna em um jogo diário do contente. E, assim, os livros têm muito a ver com quem sou e a cada nova leitura me sinto revisitada e pronta para me transformar novamente.

A apresentação da autobiografia de leitor da professora-pesquisadora foi um momento muito significativo. Logo nas primeiras linhas, os alunos já diziam “essa mulher do texto parece a professora”. O momento foi interrompido duas vezes por barulhos externos à sala. Mesmo assim, tão logo a leitura recomeçou, todos estavam em silêncio acompanhando. Ao final, os comentários eram: “fiquei imaginando os lugares” ou “deu pra lembrar de todos os livros?”. Após um tempo para ouvir os comentários e responder às perguntas, explicamos o objetivo de uma autobiografia de leitor e pedimos que cada um fizesse a sua, sem preocupação em imitar a que havia sido lida. E, assim, a aula seguiu com a escrita dos alunos por mais uma hora. Das 24 autobiografias entregues, selecionamos quatro para analisar, a fim de traçar um diagnóstico quanto às histórias de leituras dos alunos e conhecer as suas preferências. Adotamos a representação A1, A2, A3 e A4 para nos referirmos às autobiografias de leitor dos estudantes. Passamos à análise da autobiografia 1, conforme a Figura 10, transcrita abaixo:

Figura 10 - A1

Fonte: A1 (2019).

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Transcrição autobiografia 1 1 Meu nome é ..., nasci em João pessoa, Paraíba. Meu nome é pequeno porque não tem o 2 sobrenome do meu pai, quando nasci em quatro de abril de dois mil e seis ele não queria me assumir 3 e fugiu, então minha mãe foi meu meu pai também. Quando eu tinha os meus dois anos fui para o 4 Catu, uma aldeia Índigena do municipio de Goianinha. Estudei numa escola que tem lá e que vai 5 até o 5º ano, no 6º ano fui para Goianinha estudar, era muito tímida. Tenho 13 anos, estou no 8º 6 ano e ainda estudo aqui, minha cor preferida é verde porque é da natureza e representa esperança. 7 Quando era menor amava ouvir estórias que o meu avô contava quando ele era criança, com que 8 brinquedos ele brincava. Aprendi a ler com os meus 5 aninhos e gostava de ler contos de princesas 9 como chapeuzinho vermelho, cinderela, a bela adormecida, a branca de neve, sempre pensava em 10 ser elas andando na floresta com uma capa vermelha encontrava alguns anões, me espetava numa 11 agulha e adormecia, um príncipe vinha e me beijava e me convidava para um baile e perdia meu 12 sapatinho de cristal. É muito bom imaginar. Eu continuo lendo alguns livros mais confeso que 13 não gosto muito de ler. Gosto mais é de enventar histórias e escrever, os livros que li a pouco 14 tempo foi Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros. Apocalipse que conta várias 15 histórias legais. Alguns gibis como Caroline. Vilões das histórias que fala do lobo mal que sempre 16 está aprontando com os três porquinhos, e a chapeuzinho vermelho. Contos românticos que eu amo, 17 livrinhos de poesia e entre outros.

Notamos, inicialmente, que a aluna demonstra uma necessidade de falar mais sobre ela: nome, onde nasceu, a ausência do sobrenome do pai, a origem indígena etc (linhas 1-6). Nesse sentido, parecia não ter entendido a proposta de uma autobiografia de leitor. Porém, à medida que avançamos na leitura, notamos que não se trata de não ter entendido a proposta, mas de não ter muitas histórias de leitura para contar. Além disso, percebemos uma dificuldade de relacionar as leituras feitas à vida, às experiências que construiu. Algo que chama a atenção no texto é que a aluna se justifica à professora no trecho “Eu continuo lendo alguns livros mais confeso que não gosto muito de ler” (linhas 12 e 13), admitindo que não gosta de ler e, para isso, usa modalizadores, como “confesso” (linha 12) e “não gosto muito” (linha 13). Por outro lado, ela destaca a sua preferência por escrever, no trecho “Gosto mais é de enventar histórias e escrever” (linha 13). A partir da linha 7, a aluna introduz suas histórias de leituras através das histórias que ouvia do avô (no trecho “... ouvir estórias que o meu avô contava...”), demonstrando uma visão mais ampla de leitura, que considera a oralidade e não só a decodificação de um texto escrito. Em seguida, ela fala dos clássicos da literatura infantil com subjetividade, projetando-se nas histórias, como observamos no trecho “... pensava em ser elas andando na floresta...” (linhas 9-12). A partir da linha 13, ela retoma as suas leituras sem, no entanto, associar às suas histórias. Vejamos esta outra produção, representada na Figura 11 e transcrita em seguida:

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Figura 11 - A2

Fonte: A2 (2019).

Transcrição autobiografia 2 1 meu nome e ... não curto muito ler livros tenho 13 anos. quando eu tinha 7 anos eu tinha um livro 2 dos incriveis na aquela epoca não tinha visto o filme mais eu de agora sei que o livro era a 3 continuação do filme, voltando pra eu do passado o livro dos incriveís acho que foi o primeiro livro 4 que tinha lido tudo não me lembro oque gostei no livro, so acho que teve ter sido o bastante pra 5 me ter lido todo nunca contei pra uma pessoa sobre o livro, eu ainda me lembro do livro por causa 6 dos desenho que ficava em cima das letras eu de agora curtu jogar e estou aprendendo a tocar violão.

Em A2, notamos que o aluno já inicia dizendo não gostar de ler, conforme o trecho “... não curto muito ler livros...” e, para isso, usa uma expressão bem relacionada ao ciberespaço das redes sociais: o verbo curtir (linha 1). Na linha 2, ele relaciona o livro ao filme, mostrando que leu primeiro o livro, viu o filme, fez associações entre os dois e concluiu que o livro era a continuação do filme, de acordo com o trecho “... agora sei que o livro era a continuação do filme...”. Apesar de afirmar que não lembra bem da história, embora não conte na sua autobiografia, podemos inferir que ele lembra do essencial, já que faz essas associações. Outro ponto a se destacar é que, apesar de afirmar que não “curte” ler, ele conta como a sua primeira leitura integral de um livro marcou a sua vida a ponto de ele lembrar das ilustrações: “... eu ainda me lembro do livro por causa dos desenho...” (linhas 5 e 6). Enquanto leitores, somos conduzidos por ele a imaginar como seriam essas ilustrações de que trata. Embora não se lembre da história, ele admite que devia ser realmente boa, pois ele conseguiu ir até o final na leitura (linhas 4 e 5). Vamos à autobiografia 3, representada na Figura 12 e transcrito em seguida:

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Figura 12 - A3

Fonte: A3 (2019),

Transcrição autobiografia 3 1 Meu nome é... tenho 13 anos e moro em Goianinha novo horizonte, estudo na escola maria do céu e 2 gosto de ler livros em quadrinho um dia eu lir um livros que falava sobre as drogas e álcool esse 3 livro falava sobre as doenças que as drogas causa e álcool ele fala que você poder perde o trabalho e 4 a familha por causa das drogas

Como observamos, o aluno se apresenta (linha 1) e já fala do livro que leu (linha 2), sem fazer conexões claras entre a sua leitura e a sua vida. Talvez, para um leitor que conhece o bairro em que ele mora e o contexto de vulnerabilidade envolvendo meninos da sua idade, esteja clara a relação entre as drogas e a sua vida; porém, para outros leitores, não inseridos no contexto dele ou não conhecedores desse contexto, não esteja tão explícita essa relação. Obviamente que, para um garoto da sua idade e tão imerso nessa realidade parece ser desnecessário explicitar qual é a relação entre a sua leitura e a sua vida; mas ele precisaria se colocar no lugar de um provável leitor para elucidar linguisticamente essas relações. Além disso, o modo como fala no trecho “... um dia eu lir um livros...” (linha 2), nos leva a inferir que a leitura é algo incomum para o estudante, pois se refere a ela como algo distante da sua realidade. Sobre a autobiografia 4, representada na Figura 13, temos:

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Figura 13 - A4

Fonte: A4 (2019).

Transcrição autobiografia 4 1 2 O meu nome é ... tenho 15 anos, sou filho, aluno e irmão, nesses meus 15 anos de existir nunca li 3 um livro por falta de incentivo dos pais dos professores e etc... mais também nunca tive interesse 4 em ler livros, porque também nunca tive condições de comprar, pois tenhos cinco irmãos (a) e o 5 dinheiro era pouco para pagar agua e energia e também compra alimentos para a família, aos meus 6 três anos meus pais se separaram e as coisas ficaram mais difíceis, mais melhoraram com o tempo. 7 Quando completei sete anos minha mãe casou novamente agora com o meu padrasto e com o passar 8 do tempo as coisas melhoraram mais ainda, ai chegou minha quinta irmã, que hoje tem 7 anos e sem 9 incentivo para ter ver filmes e sem condições também eu ia pra rua brincar de bola e até hoje 10 grande parte do meu tempo eu gasto jogando bola com os amigos ou sem eles e apesar de não ter 11 incentivo eu só tenho a agradecer a minha família por tudo que eles fazem por mim principalmente 12 a minha mãe que me colocou no mundo e apesar de tudo e sempre fui grato por tudo que aconteceu 13 e tá acontecendo na minha vida e hoje nos 15 anos meu maior sonho é ser jogador profissional de futebol.

Nesse texto, o aluno inicia como a professora-pesquisadora iniciou a sua autobiografia lida em sala, como se observa no trecho “... sou filho, aluno e irmão, nesses meus 15 anos de existir...” (linha 1). Isso revela uma tentativa de imitar a forma de escrever da professora, tomando-a como modelo, como se ele tivesse, inconscientemente, a concepção de que existe um jeito certo ou único para escrever. 86

Em sequência, ele não fala da sua história de leitura porque, para ele, não há. Então, ele se dedica a apresentar as razões por que não lê (linhas 2 e 3). A falta de incentivo de pais e professores; a falta de interesse próprio; e a falta de condições financeiras são os motivos citados por ele, conforme o trecho “... nunca li um livro por falta de incentivo dos pais dos professores e etc... mais também nunca tive interesse em ler livros, porque também nunca tive condições de comprar...” (linhas 1-3). A princípio, consideramos uma inverdade a justificativa de falta de incentivo de professores porque, embora o aluno seja novo na turma, a própria professora, no início do ano letivo, já havia encaminhado a turma para a biblioteca da escola para escolher um livro para a leitura. Porém, pensando no lugar que chamamos de biblioteca, no espaço pequeno e quente, na escassez de livros para a faixa etária do garoto e até na ausência de uma proposta mais bem definida para a leitura, realmente também estávamos incluídos entre os professores que não contribuíram muito para a construção da sua história de leituras. Esse olhar crítico para a forma como a leitura é tratada comumente na nossa Escola foi fator essencial para um diagnóstico mais amplo e o consequente planejamento dos Módulos de Oficinas. Na sequência, o aluno se dedica a explicar por que não tem condições, atribuindo isso à família (linhas 3-7), introduzindo a explicação através da conjunção “pois” (linha 3). Depois, ele usa o trecho “... sem incentivo para ter ver filmes e sem condições também...” (linha 8) para falar da sua paixão pelo futebol. Finalmente, dos 27 alunos matriculados na turma, 24 conseguiram escrever e entregar a autobiografia de leitor. Dentre os que entregaram, a metade escreveu poucas linhas, restringindo-se a uma leitura que fizeram às vésperas da produção, talvez até por acharem que não tinham uma história de leituras para contar. No entanto, a outra metade conseguiu escrever uma lauda inteira, alguns com foco em fatos da vida particular, sem muita referência às leituras feitas; outros, contando detalhadamente uma ou outra história lida, sem relacionar diretamente com o que tais histórias representaram para as suas vidas; e, ainda, um terceiro grupo, bem menor, que contou histórias de leituras realmente intercaladas com as suas histórias de vida. Diante disso, usar a autobiografia de leitor se constituiu como um instrumento muito relevante pelos seguintes motivos: i) permitir o mapeamento das preferências da turma; ii) contribuir para a seleção das próximas leituras, tanto no sentido de atender aos gostos, como no sentido de ofertar outras experiências; iii) proporcionar à professora e aos próprios alunos o reposicionamento como sujeitos que leem; iv) colaborar com o planejamento das Oficinas segundo as demandas da turma.

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4 O PLANEJAMENTO: CAMINHOS PARA A INTERVENÇÃO

[...] as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco (LARROSA, 2017, p. 16).

Iniciamos este capítulo com as palavras de Larrosa por compartilharmos da visão de que as palavras têm força. E força criativa, problematizadora, fabulosa e questionadora. Entendemos que “as palavras fazem coisas conosco” e, por isso, propomos uma intervenção na perspectiva de uma transformação primeira na própria professora-pesquisadora. Sendo assim, o objetivo deste capítulo é apresentar a concepção de experiência considerada nesta pesquisa, bem como a leitura subjetiva da professora-pesquisadora dos textos motivadores, e ainda o planejamento dos módulos de oficinas propostos segundo os conhecimentos mobilizados. Segundo Geraldi (2003), o leitor pode recorrer a um texto a partir de quatro principais razões: leitura-busca-de-informações, leitura-estudo-do-texto, leitura-fruição e leitura-pretexto. Uma quinta é apontada posteriormente: “para refletir sobre o modo como outros organizam o que tinham a dizer” (Geraldi, 2003, p. 181). Dentre essas razões apresentadas pelo autor, duas nos interessam nesta pesquisa: a leitura-fruição, que se aproxima da noção já mencionada de leitura subjetiva (ROUXEL, 2013); e a leitura-reflexão-da-organização28, que se assemelha à definição de leitura rigorosa de Riolfi et al.(2014). Essa última, a leitura rigorosa, pode ser considerada como ponto de partida para as produções textuais dos discentes, mas também como um ponto de chegada, já que os textos produzidos pelos alunos também podem ser lidos com a finalidade de reflexão sobre a organização. No entanto, isso não tem a pretensão de impor as estratégias organizacionais dos textos lidos, mas a de permitir aos alunos o reconhecimento do próprio estilo, segundo as escolhas quanto aos diferentes modos de dizer possíveis. Feitas essas considerações, passamos à experiência.

28 Esta quinta razão, embora proposta, não foi nomeada assim por Geraldi (2003). Resolvemos nomeá-la por questão de economia e para facilitação da compreensão dos leitores.

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4.1 A experiência na/da intervenção: que experiência é esta?

Nesta seção apresentamos os três Módulos de Oficinas, os conhecimentos mobilizados em cada um e a sua organização geral; antes, porém, explicitamos a compreensão de experiência defendida na proposta, segundo Larrosa (2017). Reconhecemos que para essa geração marcada pelo imediatismo, pela objetividade e às vezes pelo embrutecimento, o trabalho com a construção de experiências de leitura e de escrita, para além da superficialidade comumente presente nos textos com os quais os estudantes mais se relacionam, é uma rica possibilidade de desenvolvimento da proficiência. Portanto, pretendemos mobilizar a subjetividade, a reflexão epilinguística29 e a ação colaborativa, além de proporcionar a avaliação dialógica, conferindo autonomia aos sujeitos. Larrosa (2017) aborda os pares ciência/técnica, teoria/prática e experiência/sentido. Esse último par é proposto pelo autor no sentido de ressignificação da palavra experiência como aquilo que nos toca porque nos faz sentido. Outro aspecto que destacamos é a valorização da heterogeneidade quanto ao que se escreve ou como se escreve e, como consequência, a ampliação das possibilidades de aprendizagens. Ressaltamos que, segundo Larrosa (2017, p. 13):

[...] não se pode pedagogizar, nem didatizar, nem programar, nem produzir a experiência; que a experiência não pode fundamentar nenhuma técnica, nenhuma prática, nenhuma metodologia; que a experiência é algo que pertence aos próprios fundamentos da vida, quando a vida treme, ou se quebra, ou desfalece; e em que a experiência, que não sabemos o que é, às vezes canta.

Concordamos, pois, com essa perspectiva de que não podemos didatizar a experiência nem tampouco podemos ensinar ou produzir a experiência. Acreditamos que a experiência é construída pelos sujeitos, os quais têm função ativa no processo. Sendo assim, o que podemos fazer é proporcionar o espaço, na sala de aula, para a sua construção. E essa é a metodologia que usamos. Associada a essa perspectiva, a concepção de escrita de Geraldi já explicitada acaba por assumir para nós, ao mesmo tempo, a condição de aporte teórico e de procedimento metodológico, tendo em vista que a intervenção parte do que interessa dizer aos alunos, conferindo-lhes o espaço da fala, da reflexão e da participação social. Para Larrosa (2017, p. 12): “É verdade que pensar a educação a partir da experiência a converte em algo mais parecido com uma arte do que com uma técnica ou uma prática.”. Por

29 O termo aqui se refere à reflexão sobre a língua e, portanto, aplicável à proposta de reflexão sobre os modos de dizer. 89

compartilharmos dessa visão de que trabalhar com a experiência exige sensibilidade e flexibilidade do professor-pesquisador, as atividades que seriam desenvolvidas foram previamente pensadas pela professora considerando o diagnóstico realizado, mas também foram se desenhando colaborativamente, ao longo das oficinas, com os discentes à medida que surgiam as experiências. Para o autor ainda, “ler é escrever, conversar, mas não sobre o texto e sim sobre o mundo, sobre a vida, sobre o que somos e o que nos acontece” (LARROSA, 2017, p. 170). Isso dialoga com a ideia de leitura subjetiva que está no cerne da nossa abordagem. Assim, entendemos a sua definição como a leitura que faz sentido, que provoca, que sensibiliza, que socializa. Diante disso, o nosso trabalho partiu da visão de que a experiência da docência é muito mais do que o tempo contado em meses e anos, é muito mais do que um conhecimento construído pela prática diária, muitas vezes repetitiva. A experiência para nós é aquele momento que nos toca porque faz sentido e nos ressignifica. E, por nos ressignificar, também ressignifica a escola e os demais sujeitos nela inseridos. Assim, cada um dos três módulos se realizou em cinco oficinas com duração de 10 a 12 aulas, totalizando 36 aulas, e partiu de um texto motivador e de um conhecimento mobilizador. Os textos motivadores são os contos: “Os meninos verdes”, de Cora Coralina; “As formigas”, de Lygia Fagundes Telles; e “O dia em que explodiu Mabata-bata”, de Mia Couto. A escolha considerou a temática abordada, a linguagem mais distanciada da convencional, a complexidade das possibilidades de leitura; e a previsibilidade/imprevisibilidade dos recursos empregados. Rejeitamos qualquer intenção de caráter modelar para a escrita dos alunos, de modo que a intenção é abordar narrativas literárias, sem nos limitarmos ao conto (embora os textos motivadores o sejam), por entendermos que, ao solicitarmos a produção de narrativas, possibilitamos a escrita de crônicas, memórias, fábulas etc, o que, para nós, confere maior autonomia aos alunos. Ademais, propomos o Diário de leitura para registros individuais durante os três módulos e a criação da Comunidade de leitores no final das oficinas para funcionar permanentemente na escola como espaço de fomento à leitura literária. No quadro 9, apresentamos o funcionamento detalhado:

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Quadro 9 - orientações para Comunidade de leitores e Diário de leitura Atividade Objetivos Funcionamento i) Manter um grupo de compartilhamento i) Organização de encontros mensais. das leituras. ii) Orientação de alunos mediadores. Comunidade ii) Favorecer o desenvolvimento da leitura iii) Realização de atividades voltadas para De leitores subjetiva. o incentivo à leitura. iii) Proporcionar outras experiências estéticas, éticas e linguísticas. i) Promover o registro de experiências i) Distribuição e personalização do éticas, estéticas e linguísticas caderninho. proporcionadas pela leitura. ii) Orientações gerais para registro de Diários ii) Contribuir significativamente para o impressões, sentimentos, hipóteses De leitura desenvolvimento de habilidades de escrita geradas pela leitura. criativa. iii) Momentos para registro em sala de iii) Valorizar os diferentes modos de dizer aula. dos alunos, respeitando as subjetividades. iv) Socialização de trechos dos registros feitos. Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Para a avaliação das produções escritas durante o processo, pensamos em uma ficha de autoavaliação (representada no Quadro 10), a fim de incentivar a autonomia dos estudantes na observação das próprias produções e para construir a percepção de texto enquanto processo, tornando-os mais receptivos à revisão e à reescrita das produções posteriores.

Quadro 10 - Ficha de autoavaliação Aspectos que você deve observar na sua escrita Sim Não Usei pontuação e acentuação para o texto ficar mais expressivo. Tive atenção com a concordância adequada dos termos/palavras. Explorei o vocabulário e os recursos da linguagem intencionalmente. Construí frases organizadas e estabeleci conexões entre os períodos e parágrafos. Me preocupei com a compreensão do leitor quando for ler meu texto. Detalhei com riqueza de detalhes personagens, ambientes e fatos. Construí a história explorando a sequência dos acontecimentos. Marquei a passagem do tempo entre os fatos por meio de diferentes expressões/recursos. Escolhi o narrador e os tipos de discurso pensando nos efeitos de sentido. Usei as minhas próprias histórias para deixar o texto mais interessante. Causei expectativas no leitor. Dei um desfecho coerente à história. Provoquei a imaginação e a emoção do leitor. Reli o meu texto e fiz as adaptações necessárias. Escolhi um título adequado. Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Como produção final dos alunos, a proposta de início consistia na escrita de um autorretrato de leitor30, no próprio Diário de leitor, que serviria também como uma autoavaliação individual, a fim de que eles refletissem sobre seus próprios avanços. Porém,

30 O termo se refere à escrita de um perfil de leitor, ou seja, ao final do projeto, como os alunos se definem enquanto leitores. 91

durante as oficinas, percebemos que a possibilidade de compilarmos os textos produzidos em um livro coletivo impresso chamou mais a atenção dos alunos, o que nos pareceu um resultado apropriado no sentido de, além de lhes legitimar a voz, estender o alcance das produções para a comunidade escolar. Isso nos pareceu mais produtivo, sobretudo pela possibilidade de provocar experiências de leitura e escrita também nos alunos das turmas não contempladas no projeto. Além disso, como produto, organizamos um Caderno Pedagógico constando a narrativa da experiência de intervenção. Passamos, então, ao planejamento dos Módulos de Oficinas.

4.2 O planejamento do Módulo311: O papel do narrador e dos tipos de discurso nos efeitos de sentidos

O primeiro módulo teve como texto motivador o conto “Os Meninos Verdes”, de Cora Coralina (Figura 14), sobre o qual colocamos o nosso olhar a seguir:

Figura 14 - Capa do livro Os Meninos Verdes

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Os meninos verdes — E a estória dos Meninos Verdes, vovó? — Então vocês querem saber a estória dos Meninos Verdes? Mas não é uma estória, é um acontecido. Me pediram para não divulgar o assunto, esperando para ver o que acontece, porque o caso é muito sério! Vou contar só pra vocês. Foi assim:

31 Chamamos de Módulo o grupo de Oficinas que se desenvolvem a partir de um mesmo conhecimento mobilizador. Assim, organizamos três Módulos de Oficinas na intervenção. 92

“No quintal da Casa Velha da Ponte sempre tivemos horta com verduras, legumes. Também pomar com árvores de frutas variadas e jardim com flores.” O quintal é o mundo de seu Vicente, um homem que viveu sempre plantando, cultivando, colhendo. É prestadio e metediço. Certo dia, entre plantas que nascem lá, boas ou más, apareceram duas plantas diferentes. Seu Vicente estranhou, queria arrancá-las. Eu disse: — Não, deixe crescer, vamos ver o que sai daí. Com o passar dos dias, as plantas se desenvolviam de forma estranha, não eram conhecidas de ninguém. Certo foi que um dia, de manhã cedo ainda, no tempo de frio, vem seu Vicente com uma cara de espanto e me diz: — Dona Cora, Dona Cora, vem ver uma coisa! Eu estava acendendo o fogo para fazer o café e disse: — Espera um bocado, depois do café eu vou. — Não, não, a senhora vem já. Venha ver! Impressionada com aquele chamado urgente fui até o quintal. E lá, debaixo das tais plantas estranhas, vi umas coisinhas que se mexiam, buliam. Umas coisas vivas. Na primeira olhada não pude definir o que seria aquilo. Pareciam bichos, filhotes de passarinho, qualquer coisa que tivesse caído por ali, que tivesse despencado de um galho de árvore. E tinham se juntado na sombra daquelas duas plantas. Depois me abaixei e examinei melhor. Eram seres vivos, com todas as formas de crianças em miniatura! Tomei um nas mãos, senti que era gelatinoso, com movimentos muito vivos, como querendo escapar da minha mão. Assombrada, achei que precisava retirá-los da terra, porque eles estavam bem sujinhos! Seu Vicente apanhou o balaio que ele usa para os trabalhos no quintal. Forrou-o com panos e cobertas velhas e acomodou aqueles seres. Eram sete, e, achando que eles estavam com frio, seu Vicente rebuçou. Examinando de perto, perguntou: — É bicho, é passarinho ou é gente? — Velho, isso é uma coisa que nós vamos indagar, e não fale pra ninguém! — É salta-caminho! — falou assombrado. — Cubra com mais um cobertor e leve para o outro lado da casa. Depois do café vou resolver o que se faz. Voltei para o fogão, fiz o café, e comecei a imaginar o que seria aquilo. Fui vê-los. Estavam juntinhos e já não tremiam. Tomei um nas mãos e vi que tinha a cabeça verde, olhos verdes, boquinha verde, dentinhos verdes em ponta, orelhas verdes e o cabelinho como de milho, mas verde. Os pés e as mãos tinham unhas como garras de passarinho. Na barriguinha lisa, o umbigo era apenas uma manchinha verde mais escura. Eram dois grupos. Um grupo tinha a cabecinha chata e o cabelo pendendo para baixo. O outro grupo tinha cabeça pontuda, cabelo em ponta, tendendo para cima. Os sinais sexuais estavam um tanto indefinidos, mas notava-se a diferença entre um grupo e outro. Tornei a 92reenche-los e disse: — Velho, precisamos dar alimento pra eles. Seu Vicente, sempre pronto a dar comida a todo bicho que aparece, falou: — Vou fazer uma papa de farinha! — Não, não faça de farinha, vou fazer mucilagem. Seu Vicente alimentou os serezinhos às dedadas — à moda nordestina — passando na boca e empurrando. Assim, ele e os serezinhos ficaram todos lambuzados. Aí, considerando que aquele mistério tinha que ser mantido em segredo, pensei que era muito pesado para mim só. Fiz um chamadinho para uma vizinha muito boa, que veio à minha casa. Contei a ela o acontecido. — Preciso de sua ajuda. Ela ficou admirada quando viu o conteúdo do balaio, e compreendeu a necessidade de guardar segredo. — Dona Cora! Vou fazer uns macacõezinhos de flanela, parece que eles estão com frio. Costurou quatro macacões rosa e três azuis, achou que eram meninas e meninos. Eles aceitaram as roupas. Mais tarde, quando voltamos lá, eles tinham estraçalhado as flanelas com os dentinhos. Continuavam juntinhos, meio tremendo. Depois passaram a não querer mais a mucilagem. Vi que em vez de aumentarem de peso e de tamanho estavam diminuindo. Aí eu pensei: “E agora, deixar morrer à míngua não é possível”. Minha vizinha sugeriu falar com seu irmão, um médico conceituado. Dr. Passos veio mais tarde, olhou, espantou-se, e deu uma orientação muito inteligente: — Tudo é verde neles. Como estão rejeitando alimento, vamos colorir a mucilagem de verde e vamos vesti-los de verde. Minha vizinha costurou macacõezinhos verdes e passamos a alimentá-los com sopas e purês de espinafre, repolho, alface, agrião, chicória. Eles gostaram do verde das comidinhas e das roupas. Seu Vicente transformou o balaio numa casinha, enfeitada de folhas verdes, com camas-beliche, cadeirinhas e mesinhas, tudo pintadinho de verde. Aí a coisa foi melhorando, começaram a se desenvolver e perderam aquele aspecto gelatinoso. Foram se firmando, a gente via que eles tinham mais vitalidade. Brincavam entre si, e quando um começava a chiar, os outros respondiam num chiado diferente. Numa hora parecia que aquele chiado era uma risada, noutra, um grito ou uma conversinha entre eles. Agarrando a beira do balaio, saíam, espalhando-se pela casa. Batizei-os como Meninos Verdes. Muito ocupada com meus doces, um dia, mexendo com os tachos, um dos meninos começou a subir pela minha perna, pela minha roupa e, quando vi, estava no meu pescoço, olhando para dentro do tacho. Passei uma dedada de açúcar pela boquinha dele. Gostou. “Oi, que danado!” Não podia mantê-los em minha casa, sempre com a porta da rua e a porta do meio abertas. Passei a manter fechada a porta do meio. O tempo passando, o problema se agravando, os meninos cada vez mais vitalizados. Seu Vicente cansado, sentindo-se importunado. — Dona Cora, olhe o que os danados estão fazendo comigo, minhas mãos arranhadas, eu sem tempo até para fazer um cigarro de palha. A senhora vai fazer criação desses salta-caminhos? — Paciência, isso veio para mim, mas não tenho como resolver. — Deixe, Dona Cora, num dia de chuva, coloco todos numa caixa de papelão e solto rio abaixo. — Velho, não fale isso outra vez. É um crime. Os Meninos Verdes vieram para mim. Tenho de resolver o problema. Pedi socorro para minha boa vizinha: — Converse com a mulher do Presidente da República. É criatura muito humana, já esteve aqui na cidade, conhece a senhora. Carteei com a Primeira-Dama. Em resposta dizia-se muito admirada e pedia fotos. O filho de minha vizinha tirou fotos muito nítidas. Eu as enviei. A resposta chegou antes do que eu esperava: ia mandar buscar os Meninos Verdes. Eu disse a ela que o carro deveria parar longe de casa para não despertar suspeitas. Os portadores — um médico, uma enfermeira e uma assistente social — chegaram como se fossem comprar doces. Ficaram pasmos, absurdos com o que viam! Meus Meninos Verdes foram acomodados pela enfermeira em uma caixa acolchoada e rumaram para o Planalto. Assim, me achei aliviada, mas não liberta. Espiritualmente estava ligada a eles e já sentindo sua falta. Acompanhava à distância a nova vida dos Meninos Verdes. Quando chegaram ao Palácio, foi um espanto geral. O Presidente mandara construir, na parte do palácio reservada à família, uma casa especial com auditores e visores. Quando não estava ocupado, gostava de sentar-se na frente da casa dos Meninos Verdes. Uma enfermeira os acompanhava permanentemente. A alimentação estava a cargo da nutricionista. Pedagogos, psicólogos e antropólogos faziam parte da equipe de estudos. Os serezinhos cresciam devagar. O Presidente da época foi substituído, e todos os presidentes depois dele continuaram a cuidar dos meninos. Foi quando resolveram criar a Cidade dos Meninos Verdes, um polo de turismo que seria mais interessante que a Disneylândia, na América do Norte. Chamaram um grande arquiteto para projetar a cidade. Quando estava para iniciar-se a construção da cidade, cientistas brasileiros convidaram cientistas estrangeiros para conhecerem aqueles seres que surpreendiam a todos pelo seu desenvolvimento. Vieram cientistas de muitos países, e ficaram assombrados, sem saber o que eram e de onde tinham vindo aqueles serezinhos. Examinaram, fotografaram, radiografaram, observaram, indagaram. 93

Mas a ideia de criar uma Cidade dos Meninos Verdes como atração turística não foi aprovada. Os serezinhos eram um fenômeno científico obscuro, de imprevisível futuro, assim, decidiram continuar observando suas vidas, o que poderia significar grandes avanços na Ciência. Países estrangeiros ofereceram tecnologia científica para acompanhar o caso e queriam levar os Meninos Verdes para a Europa, Ásia, Estados Unidos. Ofereceram até indenização! O Brasil rejeitou a proposta. O governo aceitou apenas a colaboração científica, técnica, cultural de todos os países do mundo, declarando os Meninos Verdes patrimônio universal da Ciência. Acompanho à distância meus Meninos Verdes. Estão crescendo devagarinho, dão sinais de inteligência e vivacidade, já estão com 12 centímetros! Disponível em: . Acesso em: 22 set. 2018. • O olhar da professora-pesquisadora sobre o conto Iniciar com um diálogo é já uma maneira diferente. Mais que isso, a personagem anuncia a história que vai contar. E, assim, surge a personagem antes da narradora, o que permite a leitura de que ter vivido a história está acima de contá-la, isso garante a relevância da narrativa. Além disso, a personagem é uma avó que conta para os netos um acontecido. Embora classificado como segredo, eles é que perguntam sobre a história, o que nos leva a entender que a história já havia sido contada a outros. E em tom de mistério, começa a narrativa. A caracterização do lugar, já de início, nos transporta para lá e imaginamos um quintal grande e verde, ainda comum nas cidades pequenas, como a nossa. A figura da avó ganha centralidade, aproximando-nos do enredo: a nossa avó, por exemplo, vivia no quintal, tinha uma horta, o pé de abacate, as bananeiras e uma parreira, além das plantas medicinais (hortelã, capim santo e boldo). Mas a avó do texto não cuida do quintal, ela tem alguém para isso, permitindo algumas reflexões socioculturais envolvendo essa avó. Seguindo esse momento de ambientação, surge a complicação, cujo desfecho já foi adiantado no título. Ainda que tenhamos o trecho Na primeira olhada não pude definir o que seria aquilo. Pareciam bichos, filhotes de passarinho, qualquer coisa que tivesse caído por ali, que tivesse despencado de um galho de árvore. E tinham se juntado na sombra daquelas duas plantas, já sabíamos, pelo título, que eram meninos verdes. Vemos esse momento como um ponto alto da narrativa porque nos provoca, nos desestabiliza. Como podem nascer meninos verdes no meio das plantas? Essa tensão entre a realidade e a ficção, entre uma imagem concreta de uma avó, seus netos e seu quintal e uma imagem abstrata de seres verdes que surgem em meio às plantas nos resgata do mundo real e nos obriga a entrar em um mundo outro. O fato de o narrador estar em 1ª pessoa é usado como argumento para defender que aquilo realmente aconteceu, ou seja, contribui para fortalecer a veracidade do fato, que não é uma estória, é um acontecido, conforme já dito no início; afinal, as avós são culturalmente dotadas de credibilidade, são frequentemente figuras de destaque por serem responsáveis pela família, situação muito comum na realidade do nosso grupo. Outro aspecto decisivo na leitura do conto é a forma como os seres são tratados quando encontrados: com assombro e cuidado. Nisso está outra reflexão interessante: como reagimos diante do diferente? Por que o diferente nos assombra? Embora a personagem tenha sido 94

atenciosa, ela impõe um segredo em torno do fato, o que revela tolerância e não aceitação, uma vez que aceitar é bem mais complexo do que tolerar. Assim, buscar soluções para alimentar e vestir os seres configura como cuidado, mas também pode ser visto como adequação, principalmente quanto às roupas, que acabam não servindo. Então, ouvir o médico conceituado e oferecer tudo verde parece ser a melhor forma de atender às suas necessidades. A personagem diz tê-los batizado, isso lembra o ato religioso do batismo, tão valorizado na nossa cultura; no entanto, contrariando a nossa referência cultural de batismo, não dá nomes aos seres, é como se as suas individualidades não fossem consideradas. E, apesar de percebermos alguma intimidade sendo construída nos trechos seguintes, D. Cora continua vendo a situação como um problema (O tempo passando, o problema se agravando, os meninos cada vez mais vitalizados.), o que pode gerar uma reflexão sobre a nossa forma de olhar para o diferente como um problema. Nesse sentido, essa é uma questão muito cara para o nosso espaço, pois há alunas com necessidades educativas especiais e alunos de origem indígena, por exemplo, e levantar uma discussão sobre quem é diferente e quem é igual é muito válida, no sentido de pensar sobre a relação que essa definição tem com a perspectiva de cada um. O modo como as autoridades são colocadas na narrativa também é muito provocativo: por que os seres precisam ser mantidos presos e em segredo? Por que há uma equipe para estudá-los? A ideia de criar um espaço turístico também é bem reflexiva porque gera uma ideia de que o que é diferente desperta curiosidade, riso, diversão. É interessante pensar como os programas de humor na TV, por exemplo, exploraram até pouco tempo atrás as figuras do anão, do negro, do nordestino, do gordo, do homoafetivo etc. Ademais, vemos a possibilidade de exploração financeira dos Meninos Verdes na proposta de indenização de outros países que queriam mantê-los para estudos, ou seja, ventila-se a possibilidade de colocar o lucro acima do respeito à dignidade dos seres. Quanto ao desfecho do conto, é intrigante por dois motivos: em primeiro lugar, a história no espaço real de uma avó contando o acontecido para os netos fica sem desfecho, pois não sabemos o que os netos disseram dela ou se eles se deram por satisfeitos com o modo como acaba; e em segundo lugar, também a história dentro da história, de certa forma, fica sem desfecho, porque não se sabe o fim dos Meninos Verdes, o que eles eram, de onde vieram etc. Essas lacunas na narrativa são interessantes porque nos permitem perceber que um conto, dada a sua condensação, não se propõe a dizer tudo; e, além disso, conferem autonomia ao leitor, a quem caberá preenchê-las. Há ainda a possibilidade de observar a escolha dos termos usados no discurso direto pelos diferentes personagens: as repetições nas falas de D. Cora e Seu Vicente, pressupondo 95

informalidade e intimidade; o emprego do termo “velho” para se referir ao Seu Vicente, conferindo uma posição hierárquica; a autoridade no discurso do médico, pressupondo posições valorativas distintivas; a insensibilidade na fala do jardineiro, dando pistas das visões das relações de classe entre personagens. Por todas essas questões e possibilidades, o conto de Cora Coralina inaugura nossa intervenção. Passamos ao planejamento das cinco oficinas do Módulo 1. • Oficina 1: Os sentidos do/no texto Objetivos Proporcionar a leitura subjetiva. Ampliar as habilidades de oralização e escuta. Construir sentidos para o conto, associando-o às experiências pessoais. Reconhecer diferentes efeitos de sentido produzidos pelos tipos de narrador e de discurso. Identificar as intenções de expressões/construções não convencionais presentes no texto motivador. Recursos Cópias do texto motivador. Pastas em L. Tapete, almofadas e cadeira de balanço. Cartões e caneta hidrocor. Diários de leitura. Caixa de som e pen drive. Livro Os Meninos Verdes, Cora Coralina. Atividades Acolhimento (som ambiente) Conversa inicial: percepções sobre o título do conto, levantamento de hipóteses sobre o conteúdo do conto; registro inicial no Diário. Leitura do conto “Os meninos verdes”: jogo de leitura. Dinâmica: no cartão recebido, registro das percepções do texto em uma palavra; socialização com a turma. Roda de conversa: leitura subjetiva; registros no Diário. Vivência (orientações).

• Oficina 2: Os detalhes no texto Objetivos Proporcionar a leitura rigorosa para reflexão sobre a organização do texto. Favorecer o acesso a outras linguagens. Desenvolver habilidades de apresentação oral de trabalhos. Ampliar as habilidades de oralização e escuta. Reconhecer os efeitos gerados pelos discursos no sentido dos textos. Proporcionar o espaço para a emoção a partir da leitura literária. Recursos Diários. Projetor e notebook. Cópias de outros contos. Envelopes. Cubo com elementos da narrativa. Atividades Vivência: a) A figura da avó: expor objetos que representem as avós; entrevistar a avó sobre seus hábitos quando tinha a sua idade; representar dramaticamente a avó, imitando algum traço, expressão ou linguagem; apresentar um poema sobre a avó. b) A figura da vizinha: contar uma história da vizinhança; expor fotos com os vizinhos; apresentar um texto comparando o comportamento dos vizinhos das grandes e pequenas cidades; fazer uma eleição do melhor vizinho na rua, apresentar o resultado pra turma. Mediação da professora: Análise das diferentes construções implicadas nos tipos de discurso e os efeitos no texto; comparação de um mesmo trecho, escrito nas formas direta e indireta e relacionar aos efeitos produzidos; marcas do envolvimento no narrador no conto. Distribuição de envelopes com cópia de outros contos da autora. 96

• Oficina 3: Da conversa para a escrita Objetivos Valorizar o aspecto interacional da linguagem. Resgatar e compartilhar experiências pessoais. Mobilizar os conhecimentos sobre tipos de narrador e de discurso para construir efeitos de sentido. Desenvolver estratégias de emprego de recursos expressivos. Adequar a linguagem à situação de produção. Registrar as suas experiências de forma expressiva. Reconhecer a escrita como processo. Projetar a subjetividade na escrita. Recursos Diários. Projetor e notebook. Cópias das fichas de autoavaliação. Papel A4. Atividades Jogo de leitura: os outros três contos distribuídos na aula anterior. Separar a turma em 3 grupos, de acordo com os contos lidos; os grupos farão uma leitura partilhada do texto. Roda de conversa: o que destacam nos textos; os sentimentos e lembranças que cada texto despertou. Registro no Diário. Produção textual: em duplas, narrar uma história ficcional partindo de alguma situação (triste, feliz, curiosa, engraçada etc.) que tenha vivido com a avó ou na vizinhança. Autoavaliação: observar o texto produzido a partir da ficha de autoavaliação. Revisão e reescrita.

• Oficina 4: Escrever-ler-escrever Objetivos Ampliar estratégias de emprego de recursos expressivos. Adequar a linguagem à situação de produção. Reconhecer a escrita como processo. Projetar a subjetividade na escrita. Desenvolver estratégias de revisão do próprio texto. Compartilhar as produções com a turma. Recursos Diários. Papel A4. Atividades Revisão das narrativas: leitura dos textos; propostas de alterações. Revisão e reescrita.

• Oficina 5: Construção e socialização Objetivos Reconhecer a escrita como processo. Desenvolver estratégias de revisão do próprio texto. Avaliar os próprios avanços em relação à escrita. Compartilhar as produções com a turma. Interagir com outras linguagens. Ampliar as práticas de leitura em espaços virtuais. Recursos Diários. Papel A4. Varal e prendedores de roupas. Projetor, notebook, pen drive. Atividades Diário: registro das dificuldades nas etapas do processo de escrita, revisão e reescrita. Revisão e reescrita (etapa 2): orientação das duplas. Socialização das narrativas em forma de varal. Experiências com textos híbridos: divisão da turma em três grupos; momento para assistir aos três vídeos selecionados; cada grupo discute sobre um vídeo e organiza uma apresentação oral, relacionando-o às discussões proporcionadas pelas leituras feitas no Módulo. Atividades complementares: sugestões de outros vídeos. 97

A seguir, listamos os vídeos exibidos para encerrar o Módulo, trazendo a proposta de apresentar outras formas de utilização dos espaços virtuais, alinhadas às experiências construídas na sala de aula:

Vídeos selecionados 1) Vídeo: Tolerância. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019. 2) Vídeo: Trabalhando as diferenças. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019. 3) Vídeo: Empatia. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019.

4.3 O planejamento do Módulo 2: A caracterização de ambiente e personagens e construção do suspense

A transição do Módulo 1 para o Módulo 2 traz um desafio quanto ao nível de complexidade dos textos motivadores com a intenção de provocar uma gradação no nível de dificuldade de leitura, a fim de construir experiências mais amplas de interação com o texto. Desse modo, cabia a nós também pensarmos quais desafios o conto de Lygia nos apresenta; desse modo, passamos à leitura subjetiva da professora-pesquisadora sobre “As formigas”.

Figura 15 - Capa do livro Seminário dos ratos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

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TEXTO MOTIVADOR 2: AS FORMIGAS, LYGIA FAGUNDES TELLES Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. – É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina. – Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. – É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção. – Estudo Direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. Minha prima voltou-se: – Um caixote de ossos? A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada. – Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? – Ele disse que eram de adulto. De um anão. – De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos! – Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa, recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: –Não deixem a porta aberta senão meu gato foge. Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa. – Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. – De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido? – É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. – Que é que você está fazendo aí? – perguntei. – Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar. – São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei. – Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. – Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool. – Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. – Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. – Esquisito. Muito esquisito. – O quê? – Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? – Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas. Não vi nenhuma. 99

Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei: – E as formigas? – Até agora, nenhuma. – Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. – Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? – Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas então quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. – Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. – Elas voltaram. – Quem? – As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta. – E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… estão se organizando. – Como, organizando? Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol. – Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver! – Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia. Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro. – Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. – Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir. – Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam? Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. – Voltaram – ela disse. Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. – Estão aí? Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz. – Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava… – Que foi? Fala depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. – Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. – Você está falando sério? – Vamos embora, já arrumei as malas. A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. – Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? – Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta. – E para onde a gente vai? – Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra. TELLES, L. F. Seminário dos Ratos. Rio de janeiro: Rocco, 1998, p. 7-14. Disponível em: . Acesso em: 22 set. 2018.

• O olhar da professora-pesquisadora como sujeito-leitor sobre o conto. 100

O narrador em primeira pessoa confere aproximação com o leitor; notamos que o que a narradora-protagonista vê quando desce do táxi não é nada animador e ela divide conosco as suas percepções, através de algumas expressões, como: “apertei o braço da prima” e “É sinistro”; assim, conduz as percepções do leitor desde o início, dando-lhe pistas de que algo estaria para acontecer; isso acaba por favorecer o ar de suspense, desde o primeiro momento. Por conseguinte, notamos que o espaço é um elemento importante na construção narrativa e a sua caracterização é determinante para fortalecer o clima de mistério que permeia a pensão; não só o espaço é importante, mas também o tempo se mostra determinante, desde o início, no jogo criado pela narradora: “já era quase noite”. Além disso, outro aspecto que contribui para a formação do suspense poderia estar no próprio discurso direto. A fala da prima “Pelo menos não vi sinal de barata” seria uma resposta ao cheiro forte de creolina? O modo como a narradora encaminha conduz a leitura de forma reticente. Assim também, a descrição da dona do lugar parece fortalecer a percepção negativa do ambiente, compondo a sua descrição, a qual é brevemente interrompida por um diálogo sobre o curso das moças e retomada em seguida com a caracterização da sala e do quarto. Surge, então, o caixotinho com ossos e a sua descrição progressiva: formados, raros, limpos, brancos, perfeitos. A fala da senhora nos revela uma certa indiferença em relação aos ossos: “Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo”. Ou seria também uma estratégia narrativa para despertar curiosidade? Explorar a escolha dos termos também é um exercício interessante para quem lê: descansar a mala, pensão, fogareiro, velha balofa, baforada são algumas formas que podem possibilitar a percepção de uma certa argumentatividade implícita; além do neologismo desformigar que marca a subjetividade da autora. Ademais, é possível ver suspense na forma como ela caracteriza as janelas, comparando-as a olhos tristes, personificando o mistério. Em outro ponto, a narradora conta o seu sonho, que revela um desconforto com os ossos do caixotinho. Quando desperta, a prima ainda está acordada e acompanhava as formigas, elemento novo na história. Percebemos, mais uma vez, a importância dada ao tempo, pois acontece muita coisa à noite, gerando mais suspense. A estudante de Medicina mostra-se curiosa porque os ossos não estão na posição deixada. Seriam as formigas as responsáveis? Quando amanhece, nada de cheiro forte ou formigas, nem mesmo as mortas. Outro aspecto importante no texto é a forma como rompe com a realidade. De início, uma história comum: estudantes que dividem o quarto; depois, estudantes fugindo de formigas apressadas por montar o esqueleto de um anão. A pergunta sobre o miado do gato ou um grito, 101

na sequência, reforça o espanto delas em fuga. E o desfecho se dá, estranhamente, com uma lacuna: o que aconteceu? As formigas montaram o esqueleto? E a dona da pensão, nunca viu nada disso? Por quê? Ironicamente, embora o tempo (dia/noite/dia) e o espaço (sobrado, sala, quarto) sejam tão importantes na construção narrativa, não há uma definição mais específica sobre o lugar (cidade de origem, cidade onde estudavam) nem sobre o tempo (no sentido de época) em que se deu a história. Outra questão para pensarmos é a falta de nomes para as personagens e a caracterização limitada à dona da pensão. Enfim, Lygia imprime um estilo complexo e provocativo, perfeito para ampliar as construções de sentidos nas discussões com a turma. Vamos às oficinas do Módulo 2. • Oficina 1: A hora do suspense Objetivos Proporcionar a leitura subjetiva. Ampliar as habilidades de oralização e escuta. Reconhecer, na construção narrativa, diferentes efeitos de sentido produzidos pela caracterização do espaço e dos personagens. Identificar o papel do suspense na construção narrativa. Incentivar a leitura de obras completas. Favorecer a construção de imagens subjetivas sobre o conto. Recursos Cópias do texto motivador “As formigas”. Figuras de formigas em papel. Caixa de som e pen drive. Mala e livros. Diários de leitura. Cópias de apontamentos para orientar a escrita no Diário. Livro Seminário dos ratos, de Lygia Fagundes Telles. Cópia de ficha para registro de empréstimos de livros. Atividades Acolhida: som ambiente, figuras de formigas dispostas em fila. Performance: entrada com uma mala grande. Diário: avaliação do Módulo 1; registro das primeiras impressões sobre o Módulo 2. Leitura expressiva/performática do conto “As formigas” pela professora-pesquisadora. Diário de leitura: momento para registro. Conversa literária: leitura subjetiva. Mediação da professora: análise de texto quanto à caracterização de ambiente. Desfecho da expectativa da mala: empréstimo de livros; criação da Comunidade de leitores; agendamento de compartilhamento das leituras.

• Oficina 2: Um olhar para as sutilezas do texto Objetivos Proporcionar a leitura para reflexão rigorosa sobre a organização do texto. Favorecer o acesso a outras linguagens. Reconhecer os efeitos gerados pela caracterização do ambiente e das personagens. Promover outras experiências éticas e estéticas. Recursos Cópias do texto motivador “As formigas”. Papel A4. Diários de leitura. Edital do Concurso de fotos artísticas. Atividades Mediação da professora: análise colaborativa de trecho do conto. Proposta de reescrita colaborativa do conto: lacunas do texto; socialização. Diário de leitura: registro. Orientações para Concurso de fotos artísticas. 102

• Oficina 3: A leitura do mundo precede a leitura do texto Objetivos Proporcionar práticas de leitura e escrita além do espaço escolar. Ampliar o acesso a bens culturais e a interação a partir de outras linguagens. Reconhecer e explorar os efeitos estéticos gerados pelo espaço na construção dos sentidos. Promover outras experiências éticas e estéticas. Recursos Transporte. Celular. Papel A4. Diários de leitura. Atividades Visita à Biblioteca Pública Municipal. Orientações para as fotos artísticas. Registros fotográficos. Diário de leitura: momento para registro.

• Oficina 4: Suspense compartilhado Objetivos Desenvolver a oralização e a escuta. Resgatar experiências sobre histórias de suspense. Analisar a construção do suspense e do desfecho na narrativa. Projetar a subjetividade através da escrita. Recursos Cópias de texto A cabeça, de Luiz Vilela. Papel A4. Diários de leitura. Atividades Jogo de leitura: grupos. Conversa literária: leitura subjetiva. Roda de conversa: histórias de suspense. Diário de leitura: momento para registro. Produção textual: narrar uma das histórias de suspense compartilhadas.

• Oficina 5: Jogo de reescritas Objetivos Mobilizar os conhecimentos construídos na leitura crítica da própria produção textual. Analisar a construção narrativa do próprio texto, fazendo registros do processo de escrita. Comparar a linguagem do texto escrito físico com a linguagem do stop motion. Recursos Papel A4. Diários de leitura. Fichas de autoavaliação. Projetor, notebook e pen drive. Atividades Análise colaborativa das produções. Reescrita das narrativas. Exibição do Vídeo: Stop motion artesanal do Conto As formigas. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019.

O modo como o Módulo 2 foi estruturado previa a exploração da construção imagética, em oposição ao excesso de imagens já prontas disponíveis para os alunos. Isso representava um desafio, já que de acordo com o questionário aplicado, os conteúdos mais acessados pelos estudantes eram textos que priorizavam imagens prontas.

103

4.4 O planejamento do Módulo 3: O desenvolvimento dos acontecimentos na construção narrativa

Ainda no sentido de proporcionar uma gradação quanto à dificuldade na leitura, concluído o Módulo 2, o desafio é introduzir a leitura de uma obra estrangeira. Entendemos que isso pode gerar dificuldade na construção de sentidos por trazer linguagem e espaço diferentes. Outro desafio consiste na dimensão cultural abordada no conto de Mia Couto, a qual será destacada, a fim de favorecer a percepção dos estudantes quanto ao aspecto social da linguagem. Assim como do Módulo 1 para o Módulo 2, a transição para o Módulo 3 marca outro passo quanto à complexidade do conto escolhido, o qual traz, além do discurso literário desafiador, a abordagem de questões complexas. Passamos à leitura subjetiva da professora-pesquisadora.

Figura 16 - Capa do livro A menina sem palavra

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

TEXTO MOTIVADOR 3: O DIA EM QUE EXPLODIU MABATA-BATA, MIA COUTO.

De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento. 104

O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que era órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das primeiras horas. Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada. “Deve ser foi um relâmpago”, pensou. Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou? Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntos os todos rios para nascerem para nascerem da mesma vontade da água. O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança seu vôo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e ali deita a sua urina. Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escovar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se. Reparou em volta, os outros bois assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor. - Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres. A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saídas. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio a boleia do rabo do Mabata-bata, apostar na briga dos mais fortes. Em casa, o tio advinha-lhe o futuro: - Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca. E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que iria deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga, frutos de djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direcção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê. Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta da casa. Quando chegou ela disparou a aflição: - Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois. - O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar. - Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos … - Aconteceu brincadeira dele, mais nada. Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três. - Boa noite, precisam alguma coisa? - Boa noite, viemos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde, foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui. Outro soldado acrescentou: - Queremos saber onde está o pastor dele. - O pastor estamos à espera – respondeu Raul. E vociferou: – Malditos bandos! - Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado. Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí? - Avó: eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo. - Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso. Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale. Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou: - Azarias, volta. Azarias! Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta. Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho. - Apareças lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro. Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos habituados à penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta. - Azarias? Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina. - Sou eu, Raul. Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estoirava com ela também. - Volta em casa, avó! - O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir. E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Por trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento. - És tu, Azarias. Volta comigo, vamos pra casa. - Não quero, vou fugir. O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto pra saltar e agarrar as goelas do sobrinho. - Vais fugir para onde, meu filho? - Não tenho onde, avó. - Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados – precipitou-se a voz rasteira de Raul. - Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria – E voltando-se para o pastor: – Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu. Anda ajudar o teu tio juntar os animais. - Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo. Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito. - Como é? Os bois estão aí? 105

- Sim, estão. Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade de Azarias. - Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois? A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prêmio e pediu ao miúdo que escolhesse. - O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido. Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens. - Fala lá o seu pedido. - Tio: próximo ano posso ir na escola? Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento: - Vais, vais. - É verdade, tio? - Quantas bocas tenho, afinal? - Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde. - Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui. O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio- dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar: - Vens pousar quem, ndlati? Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos. - Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me? E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem de sua chama.

COUTO, M. A menina sem palavras: histórias de Mia Couto. São Paulo: Boa Companhia, 2013 (p. 11-16).

• O olhar da professora-pesquisadora como sujeito-leitor sobre o conto. O encontro entre dois universos: o real e o ficcional. Assim, vemos o conto de Mia Couto. A guerra, a violência, o trabalho infantil, a orfandade, a exploração do mais fraco e a falta de investimento na educação compõem a dura realidade da história, tudo em confronto com a pureza, a crença, a esperança, a brincadeira infantil, a cultura popular e a educação como ascensão. Logo no início, já se dá o choque entre os dois universos, pois o conto exige do leitor uma construção imagética: um boi que explode. A poeticidade está fortemente marcada na morte do boi: “Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento”. E tal poeticidade se coloca em oposição à dureza da realidade de uma mina de guerra explodindo, de um órfão explorado que só trabalha desde cedo e não vai à escola, bem como no temor da reação de um tio que explora. O menino busca uma explicação na natureza (relâmpago) e na cultura popular (ndlati), optando pela última, o que revela a força das crenças para a sua comunidade, reconhecidamente rural. Preocupado com o castigo do tio, o menino resolve fugir, o que nos leva a crer que o tio era um homem agressivo e o narrador nos conduz a isso no trecho que rememora outros fatos para justificar a decisão do menino como a mais acertada: “Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás 106

dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. [...] Brincar era só com os animais: nadar o rio a boleia do rabo do Mabata-bata, apostar na briga dos mais fortes. Em casa, o tio advinha-lhe o futuro: - Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca. E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados”. Nesse trecho, fica implícito que a relação é menos de tio/sobrinho e mais de patrão/empregado. Por outro lado, a figura da avó é conciliatória, é a parte afetiva da família e ela sabia disso, tanto que insiste para ir procurar o menino, reconhecendo que ele não voltaria com o tio. Nesse trecho, identificamos um discurso misto: “Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estoirava com ela também”. Embora reconheçamos a voz de Raul, não está marcada por travessão, o que nos conduz a um narrador- onisciente, que invade o pensamento da personagem e o revela ao leitor. Assim, a conciliação da avó é retomada quando ela promete um prêmio ao menino que pede para estudar. Nesse ponto, abre-se uma reflexão importante porque podemos reconhecer que o texto não está em um contexto nacional, visto que no Brasil a educação é pública e obrigatória. Então, de onde é esse menino que sonha em estudar? Quais comparações podem ser feitas com a nossa realidade em que muitos estudam por obrigação? Por que ele não estuda? Em sequência, o tio promete atender ao pedido do menino, sem intenção alguma de cumprir, o que está revelado pelo próprio narrador-onisciente no trecho: “Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento”. Aqui, mais uma vez, o narrador revela a frieza de um tio que é mais patrão. O menino aparece, está feliz diante da expectativa de estudar e, então, pisa em uma mina. A explicação, assim como a da explosão do boi, é dada de forma poética, construindo uma imagem belíssima e intrigante para a morte: “E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem de sua chama”. Apesar da construção abstrata em torno da morte, percebemos o emprego do termo cristalizado “viagem”, comumente utilizado para se referir a ela, configurando como uma pista importante para o desfecho dentro do universo real; mas também é feita uma relação inédita da morte como um abraço com a ave do fogo, conduzindo para um desfecho no universo da ficção, ou seja, a realidade e a ficção se reencontram. Portanto, a tensão entre o real e o ficcional introduz o conto e o encerra, de forma poética, metafórica, provocando no sujeito leitor sentimentos de estranhamento, de espanto, de compaixão e empatia, de revolta, mas também de aceitação. Sim, aceitação, pois ao leitor resta aceitar que o protagonista teve uma morte mais feliz do que a vida que levava. Enfim, uma 107

experiência ética singular no tocante à percepção de outras realidades, de problemáticas invisíveis aos nossos olhos já embrutecidos e acostumados com a exploração e a violência cotidianas; e uma experiência estética prazerosa e desafiadora pelas hipóteses quanto à leitura, as quais formulamos durante todo o texto, pelo emprego particular e criativo de termos, palavras e combinações, além das idas e vindas necessárias para entender que a ave de fogo, na verdade, é uma mina de guerra. Passamos às cinco oficinas planejadas para o Módulo 3. • Oficina 1: Primeira leitura que toca Objetivos Proporcionar a leitura subjetiva. Desenvolver estratégias de recuperação de informações. Analisar os diferentes modos de dizer usados no texto e a sua contribuição para a construção dos sentidos. Reconhecer a intencionalidade na escolha de expressões/recursos. Construir experiências éticas e estéticas. Recursos Diários. Cópias do texto motivador. Livro “A menina sem palavras”, Mia Couto. Atividades Leitura do título. Diário: registro das hipóteses quanto ao conteúdo do conto. Leitura do 1º parágrafo. Diário: registro das primeiras impressões. Leitura subjetiva do conto: jogos de leitura.

• Oficina 2: Na trilha interpretativa do texto Objetivos Desenvolver estratégias de recuperação de informações. Associar a relação entre as expressões usadas e as imagens criadas. Identificar diferentes estratégias de marcar o desenvolvimento dos acontecimentos. Reconstruir a trajetória narrativa do conto através de imagens. Recursos Cópias do texto motivador. Diário. Cópias do mapa interpretativo. Cartolinas. Cópias das orientações para a vivência. Atividades Diário: registro da alteração nas percepções do texto após a segunda leitura. Mapa interpretativo: reconstrução da trajetória narrativa através da ordenação das imagens disponibilizadas conforme as percepções da dupla. Socialização dos mapas interpretativos produzidos. Vivências: orientações para a Oficina 3.

• Oficina 3: Projeção dos eus Objetivos Relacionar o texto com as experiências pessoais dos alunos. Compartilhar, oralmente, as experiências éticas através de textos híbridos. Valorizar as diferentes linguagens materializadas no hibridismo dos textos. Incentivar a produção de narrativas do vivido. Recursos Papel A4. Diários. Atividades Vivências. Diário: impressões sobre as vivências compartilhadas. Produção textual.

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• Oficina 4: Da escrita para a reescrita Objetivos Mobilizar os conhecimentos na produção escrita. Ampliar as estratégias de organização textual. Desenvolver a escrita significativa. Projetar a subjetividade através de expressões/recursos próprios. Estabelecer articulações entre períodos e parágrafos como estratégia para a construção de sentidos. Recursos Papel A4. Fichas de avaliação. Diário. Atividades Revisão do texto de outro grupo; Diário: impressões sobre a responsabilidade de revisar o texto do amigo. Reescrita.

• Oficina 5: Compartilhando histórias, construindo experiências Objetivos Analisar a adequação da linguagem à situação. Reconhecer a escrita enquanto processo. Fortalecer a autonomia dos sujeitos quanto à avaliação do próprio texto. Compartilhar as narrativas produzidas. Favorecer a construção de experiências éticas e estéticas. Recursos Papel A4. Varal e prendedores. Atividades Socialização das produções; Diário: registro das impressões sobre as narrativas compartilhadas; Conversa literária. Diário: registro da conversa literária.

Para marcar o encerramento do projeto, lançamos as possibilidades à turma: Na Escola i) Lançamento da Comunidade de leitores para outras turmas. ii) Exposição dos Diários de leitura, na Biblioteca. iii) Organização de sala temática sobre um dos contos. iv) Lançamento de blog literário. Na Casa da Cultura i) Exposição das fotos do Concurso e premiação dos vencedores. ii) Apresentação cultural organizada pelos alunos. iii) Lançamento do livro de narrativas da turma. iv) Apresentação dos mediadores de leitura.

Diante das possibilidades expostas, os alunos optaram pela programação na Casa da Cultura em virtude de o espaço acomodar melhor os convidados. Porém, entendemos que seria necessário um momento de apresentação do trabalho na própria Escola para que a comunidade escolar também participasse. Apresentados os planejamentos correspondentes a cada uma das cinco oficinas de cada um dos três módulos, passamos ao relato da experiência.

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5 A EXPERIÊNCIA DO VIVIDO: POSSIBILIDADES E DESAFIOS

É verdade que pensar a educação a partir da experiência a converte em algo mais parecido com uma arte do que com uma técnica ou uma prática (LARROSA, 2017, p. 12).

Neste capítulo, apresentamos o relato da experiência do vivido, conforme os desdobramentos durante a realização das oficinas, assim como apresentamos os dados gerados pelas produções narrativas dos alunos, fichas de avaliação e autoavaliação, registros nos Diários de leitura e notas de aulas. Embora tendo autorização para usar fotos, áudios ou vídeos dos estudantes, evitamos a exposição dos alunos e do ambiente escolar no corpo deste trabalho, a fim de evitar quaisquer constrangimentos ou desconfortos; assim, preferimos usar as imagens dos textos e das produções da turma, restringindo o uso de fotos dos alunos aos momentos de encerramento do projeto por terem sido eventos públicos. Optamos por apresentar os dados e analisá-los à medida que relatávamos a experiência, a fim de facilitar a compreensão do processo de intervenção, assim como enfatizar a construção das aprendizagens dos alunos durante o desenvolvimento das oficinas, de forma gradativa. Passamos ao relato de cada módulo, partindo do Módulo 1.

5.1 A experiência do Módulo 1

Neste tópico explicitamos os desdobramentos do Módulo 1, cujo conhecimento mobilizador é a relação entre o narrador, os tipos de discurso e os efeitos de sentidos; apresentamos ainda as produções dos alunos acompanhadas das análises. Passamos às Oficinas.

5.1.1 Oficina Os sentidos do/no texto

Conforme o planejamento apresentado (p. 95), os objetivos da Oficina 1 eram: proporcionar a leitura subjetiva; ampliar as habilidades de oralização e escuta; construir sentidos para o conto, associando-o às experiências pessoais; reconhecer diferentes efeitos de sentido produzidos pelos tipos de narrador e de discurso; identificar as intenções de expressões/construções não convencionais presentes no texto motivador. 110

Para iniciar a nossa intervenção, ao tocar para a entrada nas salas, solicitamos que os alunos aguardassem no corredor por alguns minutos enquanto terminávamos de organizar o espaço. Isso colaborou para despertar a curiosidade em relação à Oficina. Ao entrarem, as cadeiras estavam dispostas em semicírculo, no centro havia um tapete, uma cadeira de balanço e umas almofadas. O som ambiente reproduzia o som de pássaros. Após distribuir os cadernos que serviriam de Diário e explicar o objetivo, entregamos pastas contendo a cópia do conto “Os Meninos Verdes” e pedimos que observassem apenas o título e formulassem hipóteses sobre o conteúdo do texto. Então, iniciamos a leitura.

Figura 17 - Diários de leitura

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Concluída a leitura, pedimos que os alunos registrassem o sentimento em relação ao texto e seguimos em uma roda de conversa. Inicialmente, a participação foi insatisfatória, eles estavam tímidos e apenas seis alunos se expressaram. Porém, foi importante ver a expectativa da maioria em relação à aula. Apenas dois alunos estavam dispersos, sem demonstrar qualquer interesse pelas discussões. Sobre as alunas com necessidades educativas especiais, uma delas, a que se apresenta em processo de alfabetização, chegou atrasada e perdeu o momento da leitura. Então retomamos a leitura diretamente do livro, mostrando-lhe as ilustrações. Foi muito bom esse momento porque foi possível dar atenção individualizada à aluna, enquanto os demais faziam seus registros pessoais no Diário. Uma segunda aluna se ofereceu para ilustrar o texto, isso nos pareceu significativo por se tratar de uma aluna muito tímida, que tem uma participação bastante discreta. 111

Dentre os alunos mais tímidos, a surpresa veio de uma aluna que se ofereceu para ajudar na organização da sala após a oficina. Os demais alunos com esse perfil, participaram discretamente das atividades, sem contribuir com as discussões com a turma. Na roda de conversa, pudemos compartilhar algumas histórias: sobre a avó, a maioria tinha o que dizer, em virtude de a presença das avós ser muito forte no grupo, já que alguns vivem ou passam a maior parte do tempo com elas; sobre a vizinhança, também houve algumas histórias interessantes, quase sempre engraçadas; além dessas já previstas, houve muitas histórias sobre aceitar o outro como é, talvez pelo fato de termos alunas com necessidades especiais na turma. Dentre as histórias, uma nos chamou a atenção: um aluno que tem uma irmã com necessidades especiais compartilhou que ele deu uma queda na sua irmã quando ela tinha cinco anos e que, por isso, ela tinha adquirido as limitações. Foi um momento que deixou a turma reflexiva e despertou a sensibilização de todos. Sem dúvida, uma experiência ética muito relevante. Dos 27 alunos, estavam presentes 22 e, ao final, a avaliação foi de que a Oficina foi muito produtiva. Como resultado desse momento, destacamos o primeiro registro de um Diário (Figura 18) para análise:

Figura 18 - Diário 1/registro 1

Fonte: Diário 1 (2019).

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Transcrição Diário 1/registro 1 1 Acho que eles eram folhas e que moravam na floresta ou um guinomo 2 Depois desse texto aprendi a não excluir o próximo. E depois dessa conversa e para valorizar e 3 respeitar o diferente. Tenho uma prima com Daun e foi difício acreditar. Mas me acostumei e ela 4 nem parece que tem e ela é muito fofa. Desvalorizamos muito as pessoas por causa da cor da pele 5 classe social se é feio ou bonito mas isso nem importa.

Nesse registro 1, a aluna se projetou, como observamos em “... foi difício acreditar” (linha 3), colocando-se na leitura, comparando-a com as suas experiências particulares, de acordo com o trecho “Tenho uma prima com Daun...” (linha 3). Notamos alguma subjetividade desde o início, como em “Depois desse texto aprendi a não excluir o próximo” (linha 2) e isso nos leva a crer que, embora não tenha falado sobre a história do conto lido, ela compreendeu o texto em um nível de leitura mais complexo, já que se apropriou dele de modo significativo, conforme o trecho “Desvalorizamos muito as pessoas... (linha 4). Nisso, reconhecemos a ideia de “texto do leitor” de Rouxel, já mencionada anteriormente, como o texto que o leitor produz à medida que projeta as suas experiências no texto lido e constrói novas experiências. Nesse registro também reconhecemos o caráter ético da leitura literária, uma vez que a aluna destaca a sua reflexão pessoal e a consequente mudança de comportamento, conforme o trecho: Depois desse texto aprendi a não excluir o próximo. E depois dessa conversa e para valorizar e respeitar o diferente (linhas 2 e 3). Considerando o conjunto dos Diários, a maioria pareceu não ter entendido a proposta ou não ter conseguido se apropriar da leitura em uma construção mais subjetiva, nesse primeiro momento. Isso nos levou a pensar em um tempo maior para os registros nas oficinas seguintes. Esse fazer e pensar sobre o fazer revela-nos a relevância da pesquisa social. Relatamos a Oficina 2 a seguir.

5.1.2 Oficina Os detalhes no texto

Para essa Oficina 2, os objetivos definidos foram: proporcionar a leitura rigorosa para reflexão sobre a organização do texto; favorecer o acesso a outras linguagens; desenvolver habilidades de apresentação oral de trabalhos; ampliar as habilidades de oralização e escuta; reconhecer os efeitos gerados pelos discursos no sentido dos textos; proporcionar o espaço para a emoção a partir da leitura literária. A ideia seria começarmos com a retomada da primeira oficina através da leitura de trechos dos registros no Diário. Porém, quando solicitados, os estudantes não quiseram compartilhar os seus registros e optamos por não insistir nesse primeiro momento, a fim de que 113

a nossa insistência não provocasse alguma resistência posterior ao instrumento proposto. Então, partimos para o momento da vivência. A participação também não se deu conforme o esperado. Apenas uma aluna trouxe um objeto que representava a sua avó: um LP (disco grande de vinil) de . Ela nos contou que nas férias, na casa da sua avó, na Comunidade do Catu, ouve todos os dias as músicas do cantor e que, inclusive, o seu apelido na família tem origem em uma das letras do músico. Outros sete alunos conversaram com as avós sobre como eram suas vidas quando elas tinham 13, 14 anos e, baseados nessa conversa, compartilharam com a turma que o trabalho na roça era a atividade mais comum. Os demais alunos, não realizaram nenhuma das sugestões dadas na oficina anterior. Ficamos um pouco decepcionadas com a baixa participação nessa atividade, pois pelo entusiasmo demonstrado no momento das orientações, esperávamos uma adesão maior. Por outro lado, uma coisa positiva é que todos fizeram seus registros no Diário, embora ninguém tenha aceitado compartilhar. Passando nas cadeiras de cada um, lemos os registros e vimos que alguns se limitaram a resumir a história do conto, mas outros falaram sobre o que sentiram: amor, raiva do preconceito, alívio por conversar sobre “essas coisas” (usando a expressão deles) etc. Retomamos um trecho do conto “Os meninos verdes”, agora sob a mediação, para uma leitura rigorosa, no dizer de Riolfi. Então, o conto foi projetado em slide e passamos a observar e discutir a escolha das palavras, a variação entre discurso direto e indireto, os efeitos provocados pelo narrador em 1ª pessoa, as expressões que marcavam a passagem do tempo, a importância da caracterização dos meninos verdes e do quintal para a compreensão do leitor etc. Nesse momento, houve pouca interação, embora eles fossem estimulados a destacar trechos do texto e comentar os efeitos de sentido provocados. Isso nos levou à reflexão sobre a importância de uma metodologia que ouve os alunos, a fim de que eles sintam segurança para participar. Quanto à mediação da professora-pesquisadora para uma leitura rigorosa, à medida que as consequências das escolhas feitas no texto eram levantadas, era apresentado um cubo colorido aos alunos, constando elementos importantes na construção de uma narrativa. Apesar da participação abaixo do esperado, acreditamos que foi possível analisar recursos e elementos empregados no texto, de modo mais aprofundado e, portanto, representou um espaço para construção de experiências.

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Figura 19 - Cubo elementos da narrativa

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Outro momento positivo desta Oficina foi durante a distribuição dos envelopes com cópias de outros contos de Cora Coralina. Os alunos ficaram muito concentrados, acharam o envelope bonito, observaram por fora primeiro. Foi interessante perceber que algo tão simples pudesse causar tamanha expectativa neles.

Figura 20 - Envelopes com contos de Cora Coralina

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). 115

Os alunos leram os contos individualmente e com atenção. Já era o final da aula; então, só observamos as reações durante a leitura individual, demos um tempo maior para o registro no Diário e deixamos para explorar a leitura dos contos na oficina seguinte. A seguir, destacamos o registro 2 de um Diário para análise.

Figura 21 - Diário 1/registro 2

Fonte: Diário 1 (2019).

Transcrição Diário 2/registro 2 1 A história do “medo de Cora Coralina” foi bem interessante pois falava de uma jardineira que 2 pegava uma perua ou expresso com um caixão, um cara acenou e estava muito cheio o transporte 3 então ele foi em cima. Começou a chover e para ele não se molhar entrou dentro do caixão. Em 4 seguida dois homes acenaram, o cara que estava no caixão cochilou e acordou e pensou que a chuva 5 parou, os dois homens vinham correndo e do nada o cara abre o caixão e dá um susto nos dois homens 6 e eles caiem quebrando tudo, pescoço, braço, perna. Foi legal e engraçado e é por isso a história se 7 chama “medo”.

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Nesse 2º registro, a aluna do Diário 1, ao contrário do que fez no seu registro 1 (comentado anteriormente), dedicou-se à contação da história lida, conforme o trecho “A história do ‘medo de Cora Coralina’ foi bem interessante pois falava de uma jardineira”, (linha 1), ressaltando detalhes da narrativa. O seu comentário pessoal sobre o conto limitou-se a dois trechos: no primeiro, “foi bem interessante” (linha 1), afirma que foi interessante, sem explicar os motivos com mais detalhes, uma vez que, na sequência, inicia o resumo da história; no segundo, “Foi legal e engraçado e é por isso a história se chama ‘medo’” (linhas 6 e 7), usou mais adjetivos para caracterizar o texto, mas não estabeleceu relação alguma com prováveis experiências vividas, e concluiu justificando o título do conto, sem, no entanto, aprofundar-se nisso ou explicitar se a história realmente lhe provocou medo, por exemplo. Se um mesmo Diário trouxe registros tão diferentes, não podemos acreditar que foi por falta de compreensão da proposta; mas que a diferença tenha ocorrido pelo maior ou menor envolvimento desse leitor com o texto lido. Isso nos leva à seguinte reflexão: é bem provável que as projeções que o leitor faz ao ler um texto estejam relacionadas também ao seu grau de interesse ou identificação com ele. Dos 27 alunos, cinco faltaram; não os mesmos que tinham faltado à primeira oficina. Isso gerou alguma dificuldade em virtude da necessidade de retomar a primeira Oficina, de modo mais detalhado, com os alunos que a perderam. Apesar disso, a Oficina 2 teve bons resultados, sobretudo se considerarmos que o aspecto central da oficina consistia na leitura mais pontual do conto e normalmente já é um trabalho menos apreciado pelos alunos. Passamos a relatar a próxima oficina.

5.1.3 Oficina Da conversa para a escrita

Nesta Oficina 3, os objetivos propostos foram: valorizar o aspecto interacional da linguagem; resgatar e compartilhar experiências pessoais; mobilizar os conhecimentos sobre tipos de narrador e de discurso para construir efeitos de sentido; desenvolver estratégias de emprego de recursos expressivos; adequar a linguagem à situação de produção; registrar as suas experiências de forma expressiva; reconhecer a escrita como processo; projetar a subjetividade na escrita. Iniciamos a Oficina 3 com a organização dos 23 alunos presentes em três grupos, conforme os textos distribuídos em envelopes no final da Oficina 2, sendo: grupo 1 referente ao conto “O casamento e a cegonha”; grupo 2 referente ao conto “Medo”; e grupo 3 referente ao conto “As cocadas”, ambos de Cora Coralina. 117

Seguimos com os jogos de leitura, através dos quais cada grupo leu o seu conto em uma leitura partilhada, segundo a divisão organizada por eles próprios. Esse foi um momento muito interessante pelo fato de um menino e uma menina mais tímidos, que sempre se negavam a ler em voz alta, terem participado nos pequenos grupos. Ou seja, quando em um grupo menor, eles conseguiram participar e isso representou um avanço significativo. Além disso, foi produtivo porque em cada grupo havia um aluno ou aluna de leitura mais fluente que se dispôs a ajudar os demais, espontaneamente. Alguns outros alunos (seis) que resistem à leitura em voz alta continuaram resistindo; porém, não interpretamos isso como fracasso, mas como parte do processo de desenvolvimento das aprendizagens dos alunos, pois apesar de se recusarem a participar dos jogos de leitura, conseguiram participar das discussões no grupo, expondo a sua interpretação. O último conto lido foi “As cocadas”, então pedimos a uma aluna mais tímida para distribuir umas cocadinhas que trouxemos e a turma gostou desse momento, ao mesmo passo que fez associações com o texto discutido, o que representou também uma experiência coletiva. Após os jogos de leitura, a turma estava mais à vontade e pôde comentar os contos uns dos outros e comparar, segundo as provocações da professora-pesquisadora, a linguagem ou o estilo empregado pela mesma autora, sem qualquer pretensão de discutir as questões formais dos contos, mas na intenção de perceber a maneira subjetiva com a qual Cora Coralina se colocava nas narrativas lidas.

Figura 22 - Momento de registro no Diário

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). 118

No tempo destinado aos registros no Diário, notamos que um aluno havia esquecido o seu em casa e estava ocioso, então solicitamos que ele organizasse um cartaz com os contos lidos para afixar na sala, conforme foto abaixo.

Figura 23 - Confecção de cartaz

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Dando continuidade, a proposta de produção escrita era narrar uma história ficcional (triste, feliz, curiosa, engraçada etc) partindo de uma situação real que viveu com a avó ou uma vizinha, ou seja, as duplas poderiam acrescentar elementos ficcionais ao fato ocorrido. Algumas duplas, já de início, começaram a escrita colaborativa. À medida que visitávamos as cadeiras, notávamos o processo de negociações sobre os rumos das histórias. Quatro das onze duplas estavam muito dispersas e eram exatamente aquelas nas quais havia alunos com dificuldade acentuada na escrita. Portanto, enquanto acompanhava essas duplas com mais atenção, pensávamos como reorganizar as duplas na próxima oficina de escrita, a fim de evitar as distrações. Apesar desse comportamento ter sido um ponto negativo, destacamos um ponto positivo que o superou: duas duplas nos surpreenderam realizando a proposta com muito empenho, tendo em vista que eram alunas com dificuldade acentuada tanto na escrita quanto na socialização.

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Figura 24 -Momento de produção

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Após uma hora de produção, foram distribuídas as fichas de autoavaliação para que as duplas olhassem para a própria narrativa de modo crítico. Essa foi uma experiência diferente para a turma e gerou novas negociações entre eles. As duplas começaram a reler o que já tinham produzido, verificando se atendia aos pontos listados na ficha e, quando entendiam que não, faziam alterações. O objetivo não era a escrita de um texto perfeito, até porque a visão que defendemos é a de escrita como processo, mas a reflexão crítica sobre o próprio dizer/escrever e, nesse sentido, considerando que foi uma experiência nova para os estudantes, pudemos observar que atendeu, relativamente, à expectativa. No final, todas as duplas entregaram o que tinham produzido. Das onze narrativas, cinco estavam concluídas e as demais estavam incompletas. Optamos por receber mesmo as não concluídas para garantir que seriam terminadas por eles, sem a ajuda de outras pessoas ou outros recursos externos. Após a aula, aproveitamos para fazer uma primeira leitura das produções e comparar com as fichas de autoavaliação que eles preencheram. De fato, havia pouca consciência sobre aspectos não contemplados nas produções; porém, conforme já dissemos, a intenção inicial de olhar criticamente o próprio texto foi alcançada. Relatamos a experiência da Oficina 4 a seguir.

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5.1.4 Oficina Escrever-ler-escrever

Nesta oficina 4, os objetivos definidos foram: ampliar estratégias de emprego de recursos expressivos; adequar a linguagem à situação de produção; reconhecer a escrita como processo; projetar a subjetividade na escrita; desenvolver estratégias de revisão do próprio texto; compartilhar as produções com a turma. Neste dia, houve uma situação bem atípica na escola. Além das dificuldades comuns da sala de aula, um aluno publicou em suas redes sociais uma conversa com um amigo, tratando da intenção de realizar um massacre na escola, a exemplo do ocorrido na cidade de Suzano/SP, semanas antes. Logo no início do expediente, todos os professores foram alertados sobre a situação e o clima de nervosismo e medo nos perseguiu por toda a tarde. As aulas nessa turma seriam as duas últimas e já entramos na sala sentindo forte dor na cabeça provocada possivelmente pelo estado emocional. Apesar disso, procuramos esconder o medo e continuar a Oficina conforme o planejado. No final do dia, não passava de uma brincadeira impensada dos dois garotos; todavia, optamos por incluir o episódio no nosso relato para exemplificar que, muitas vezes, o planejamento de uma aula é recortado por inúmeros fatores externos e/ou internos que ultrapassam os aspectos teórico-metodológicos e exigem novos encaminhamentos do professor. Iniciando, devolvemos as narrativas produzidas pelas duplas na Oficina 3, acompanhadas de algumas ideias para continuar ou melhorar os textos. Atendemos cada dupla de maneira direcionada, explicando os pontos positivos da produção e orientando novos encaminhamentos para dar sequência à escrita, através da revisão.

Figura 25 - Momento de reescrita

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). 121

Infelizmente, a revisão e a reescrita não aconteceram conforme esperávamos, em virtude de alguns obstáculos: i) alunos que faltaram na Oficina 3 ainda estavam começando as narrativas e, portanto, demandavam outro tipo de orientação, dividindo a turma entre os que estavam na 1ª versão e aqueles que estavam na 2ª; ii) algumas duplas resolveram não continuar as narrativas iniciadas na oficina anterior e começaram novas narrativas, entrando para o grupo de alunos na 1ª versão e que precisavam de mais atenção; iii) houve também duas duplas incompletas em virtude da ausência de um dos componentes, de modo que essas duplas também avançaram muito pouco na 2ª versão; iv) outra dificuldade foi quanto a quatro alunos de duplas diferentes conversando, atrapalhando o resultado das suas duplas ou das duplas próximas; v) um outro obstáculo enfrentado foi quanto a uma dupla que fez a reescrita com pressa, sem atentar para as sugestões e sem um processo de negociação das alterações, ficando com tempo ocioso. Essa foi a Oficina com maior número de alunos: 25 presentes; e, sem dúvida, a mais desafiadora do Módulo. Além da dificuldade de orientar duplas em níveis tão diferentes no processo, o fator emocional também dificultou a concentração nas orientações direcionadas às duplas e um melhor aproveitamento do tempo. Assim, ao término das duas aulas, tínhamos avançado muito pouco e, a princípio, a sensação foi de que o trabalho não havia atendido aos objetivos. Porém, já em casa, fazendo a revisão das notas de aula, pudemos verificar alguns aspectos positivos, dos quais destacamos o fato de duas duplas e um trio, apesar de tudo, terem conseguido manter a concentração para revisar seus textos, conduzindo um processo de negociação e colaboração muito produtivo para a reescrita. Vale ressaltar que também eles não conseguiram concluir, mas ficaram com suas narrativas muito bem encaminhadas. Recolhemos todas as produções novamente, inclusive a 1ª versão de quem já havia iniciado a 2ª, a fim de concluirmos na aula seguinte, sem recursos externos à sala. Vamos à experiência da Oficina 5.

5.1.5 Oficina Construção e socialização

Os objetivos nesta Oficina 5 foram: reconhecer a escrita como processo; desenvolver estratégias de revisão do próprio texto; avaliar os próprios avanços em relação à escrita; compartilhar as produções com a turma; interagir com outras linguagens; incentivar a ampliação das práticas de leitura em espaços virtuais. 122

Iniciamos apresentando a pauta da oficina, a fim de que o grupo entendesse a importância de gerenciar melhor o tempo. Ressaltamos que a atividade de escrita, revisão e reescrita estava prevista inicialmente para três aulas, mas que já tínhamos usado cinco e não havíamos concluído. Sendo assim, cada um deveria escrever no seu Diário qual foi a maior dificuldade que enfrentou nesse primeiro momento de escrita. A seguir, destacamos um dos registros para análise.

Figura 26 - Diário 1/registro 3

Fonte: Diário 1 (2019).

Transcrição Diário 1/registro 3 1 A minha principal dificuldade foi me concentrar com o barulho da sala de aula e organizar minhas 2 ideias. O que eu mas gostei do módulo um foi trabalhar com o texto, gosto muito de fazer texto e 3 convesar sobre eles.

Nesse 3º registro do Diário 1, a aluna destaca questões práticas, como o barulho (linha 1) da turma durante as Oficinas. Ainda que aparentemente não tenha relação direta com a proposta do Diário, no trecho “A minha principal dificuldade foi me concentrar com o barulho da sala de aula e organizar minhas ideias”, ela aponta o contexto de escrita como fator que atrapalhou a sua concentração (e a sua leitura). Por outro lado, como ponto positivo do Módulo, aponta os momentos de escrita sem citar as atividades de leitura, o que nos leva a pensar que, para ela, os momentos de leitura não foram tão produtivos em virtude do barulho. No final do Módulo, passamos nas cadeiras de todos os alunos, a fim de observar como estava a adesão à escrita nos Diários e chegamos às seguintes conclusões gerais: i) os alunos não estavam usando os Diários conforme as orientações dadas; ii) eles limitavam-se a registrar somente o que a professora-pesquisadora solicitava durante alguma Oficina; iii) os registros 123

eram curtos e com pouco ou nenhum envolvimento subjetivo com as narrativas lidas. Desse modo, vimos a necessidade de pensar alguma estratégia para fortalecer esse instrumento. Logo após esse momento, as duplas se organizaram e fomos em cada uma, lendo as narrativas, destacando os avanços e apontando possibilidades. Depois de circular em todas as duplas e definir um tempo de 50 minutos para a entrega da versão definitiva da primeira narrativa, observamos maior empenho em concluir a atividade dentro do tempo definido. Isso nos fez pensar sobre a forma como já estavam condicionados à imposição de um tempo limite para a produção textual, o que é um aspecto negativo que pode podar o processo criativo, mas nesse caso foi positivo porque permitiu a conclusão do que estava planejado para a Oficina 5.

Figura 27 - Momento de conclusão da narrativa 1

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Quanto às dificuldades, a mais recorrente foi em relação ao desfecho dos textos. Muitas duplas diziam não saber como terminar a história. Para uma delas, inclusive, a produção já estava bem extensa, sem qualquer indicação de que caminhava para um fecho. Nesse caso, sugerimos um final sem final, ou seja, que a dupla deixasse a narrativa com algumas lacunas propositais para provocar o leitor. A ideia foi entendida pelas alunas e elas criaram um final bem provocativo, exigindo uma leitura complexa do leitor. Outra questão a se considerar foi a insistência em reiniciar um outro texto, sem dar continuidade à versão incompleta, conforme orientado; esse comportamento foi observado novamente, em especial em três alunos novatos que, sob nossa visão, não estavam habituados com o processo de reescrita na escola de origem, diferentemente dos alunos veteranos que já tinham essa prática. Embora nos empenhássemos em explicar a importância de desenvolver a 124

versão anterior, não tivemos sucesso com uma das duplas que optou por reiniciar pela segunda vez. Das 10 narrativas produzidas, selecionamos cinco para análise, para as quais usamos o código: M1.1, M1.2, M1.3, M1.4 e M1.5, sendo M1 referente a Módulo 1 e os números seguintes (1, 2, 3, 4 e 5) correspondentes às duplas. Transcrição M1.1: A avó Maria 1 Eu tinha uma avó, que se chamava Maria e ela morava em Recife e a minha família morava 2 em Goianinha e nós só víamos através do telefone e fazia muito tempo que nós não víamos 3 pessoalmente no mês de junho, no dia 26. ela iria completar ano e minha família resolveu dar para 4 ela uma passagem para ela vir a família em Goianinha. 5 Nós fizemos um almoço para reunir a família para comemorar os seus 90 anos de vida. Ela 6 estava feliz que fazia muito tempo que não via em Goianinha, a terra onde ela morava. 7 Eu não via a hora de ver ela, ia matar saudades, de dar um abraço nela bem forte, de dar um 8 beijo, de tirar várias s fotos com ela, fazem com ela algo que eu não tinha feito, na via a hora de ver 9 ela estava tão ansioso por que ela estava vendo e pensava “tomara que ela seja boa, não seja muito 10 chata com a gente. E quando chegou :que alívio! “ela era gente boa.

A narrativa inicia com um verbo no passado (Eu tinha uma avó) sugerindo que a avó à qual o texto se refere morreu. Na linha 2, há uma aparente incoerência no trecho “só víamos através do telefone”, mas só aparente porque se tratando de vídeo-chamada, é possível “ver pelo telefone”. Outra aparente incoerência está no trecho “a terra que ela morava” (linha 6), uma vez que, pela construção, o leitor pode recuperar a ideia de que se trata do lugar onde ela morava antes. Em sequência, os alunos ensaiam a criação de uma expectativa em torno da chegada da avó, no trecho “Eu não via a hora de ver ela...” (linha 7), mas, contrariando isso, concluem o texto sem narrar, de fato, o acontecimento, como se nota no trecho “E quando chegou :que alívio!” (linha 10). Isso nos revela a dificuldade de construir a narrativa, explorando as possibilidades da história, limitando-se a um relato mais objetivo, mais enxuto. Vejamos uma outra produção. Transcrição M1.2: No parque 1 Chegou um parque na minha cidade, e eu queria muito ir mais não tinha com quem. Minha 2 mãe trabalhava chegava bem cansada e não tinha como me levar, meu pai é que não ia mesmo, por 3 que trabalhava o dia inteiro e meu irmão só sabe jogar e estudar. 4 Então, resolvi chamar minha avó. Fiquei pensando como eu iria pedir para ela pra ir pro 5 parque comigo. Fui lá em vovó, conversei, enfim pedi a ela gostou da proposta. Quando chegou de 6 noite, fiquei muito ansiosa liguei pra minhas amigas e convidei elas também. Fiquei pensando eu iria 7 ver meu crush. Fui escolher minha roupa, fiquei indecisa no outro dia, fui para a escola, fiquei 8 conversando com minhas amigas estávamos muitos ansiosas. Chegou a noite, fui me arrumar. 9 Depois que me arrumei, liguei para vovó e ela já estava pronta. Chegando lá, encontrei meus 10 amigos Jad, Katarina, Caue, Luiz e Lucas. Fomos no brinquedo minha vó disse que não queria ir 11 naquele brinquedo esquisitos, só foi me acompanhar. Então conversei, brinquei e vi meu crush, 12 fiquei feliz por vê-lo minhas amigas chamaram ele, e ficamos conversando. Chamei a vó para ir no 13 brinquedo, ela disse que não ia, mas eu insisti muito. Fomos na águia. A vovó quase morre kkk 14 quando saiu do brinquedo vomitou... Disse que nunca mais ia. No outro dia perguntei se ela gostou. 15 -Vó, e ia gostou do parque? 16 Ela disse: 125

17 -Nam, nunca mais uma dessa, era melhor eu tá em casa assistindo minhas novelas!

De início, notamos uma certa contextualização, pois as alunas se preocupam em justificar a ida ao parque com a avó através do trecho “... eu queria muito ir mais não tinha com quem” (linha 1) e apresentam a família em “Minha mãe trabalhava chegava bem cansada e não tinha como me levar, meu pai é que não ia mesmo, por que trabalhava o dia inteiro e meu irmão só sabe jogar e estudar” (linhas 2 e 3). Em seguida, elas começam a narrar, de fato, partindo do impasse para chamar a avó, conforme o trecho “Fiquei pensando como eu iria pedir...” (linha 4), sem, contudo, explorar o momento. Depois, percebemos a dificuldade de organização dos acontecimentos em uma sequência linear, no trecho: “Fomos no brinquedo minha vó disse que não queria ir naquele brinquedo esquisitos, só foi me acompanhar. Então conversei, brinquei e vi meu crush, fiquei feliz por vê-lo minhas amigas chamaram ele, e ficamos conversando. Chamei a vó para ir no brinquedo, ela disse que não ia, mas eu insisti muito. Fomos na águia” (linhas 10-13), ou seja, a dupla fala da tentativa de convencer a avó a ir no brinquedo, interrompe para contar os momentos com as amigas e o crush para, só depois, retornar à insistência com a avó para brincar. Além disso, vale ressaltar que a ida da avó no brinquedo pareceu ser o ponto alto da sua narrativa e, pois, merecia ser explorado mais no desenvolvimento narrativo, como no trecho “... ela disse que não ia, mas eu insisti muito” (linha 13). No texto, é interessante ressaltar que há influência da escrita em comunicações rápidas em aplicativos e redes sociais quando a dupla reproduz o riso pela reação da avó, “kkk”, por exemplo (linha 14). Já no uso do discurso direto, vemos a relação estabelecida entre a linguagem e a situação, com o uso de expressões como “vó”, “e aí”, “nam” e “tá” e isso demonstra que as alunas refletiram sobre a adequação da linguagem, diferenciando a fala do narrador e a fala das personagens. Por isso, o texto se mostra relativamente maduro quanto ao objeto de estudo do Módulo 1 (narrador, tipos de discurso e efeitos de sentido). Na sequência, vamos à análise do próximo texto. Transcrição M1.3: O barulho 1 __Vovó tereza, conta mais uma história da sua vida. 2 __você quer saber de qual época? 3 __De quando você era jovem. 4 Levi queria saber da joventude de tereza pois era uma criança muito curioso com apenas 1anos. 5 Vovo Tereza disse que quando era jovem morava em frente ao mercado que se chamava "mercado 6 paraibano" que era um dois principais mercados da cidade Levi para a historia e perguntou 7 para tereza : 8 __E la no mercado tinha chocolate? 9 Tereza respondeu: 126

10 __claro que vendia porque essa pergunta? 11 __vó, é porque eu gosto muito de chocolate. 12 Levi anosioso ficou se balançando na roda da casa. A avó se glartou, foi para a varanda cuidado 13 das suas plantas. Então, o neto aproveitou e entrou no guartinho secreto da avó. Ele olho pra direita 14 e esquerda e ver um bau, a sua frente e ficou curioso então ele abri e encontra os arquivos antigos. 15 Então ele pensa: 16 __O que sera isso 17 Levi vai em direção a rua avo e falo seguinte pergunta: 18 __vó, o que é isso? 19 Vó Tereza ficou nervosa e quando ia responder chegou seu João ai tereza conversou sobre o que 20 tinha mais arquivos e ele ficou surpreendido. Levi, meu amor, entra pra nos jantar levi entrou e o 21 jantar ja estava na mesa 22 __ levi, vai escovar os dente e vai dormir

Observamos, no início desse texto, a referência ao conto “Os Meninos Verdes” de Cora Coralina, que usamos como motivador do Módulo. A escolha por começar com o diálogo entre avó e netos “Vovó tereza, conta mais uma história da sua vida.” (linha 1), assim como o texto motivador das oficinas marca a tentativa de tomá-lo como modelo de escrita. Continuando, o texto segue em 3ª pessoa “Levi queria saber da joventude de tereza...” (linha 4), assim como o texto motivador que inicia com um diálogo entre avó e netos e passa para um narrador-observador. Nisso, temos, mais uma vez, uma tendência de copiá-lo, ressaltando a dificuldade de projetar as próprias experiências na escrita. Entre diálogos sem muita relevância para a construção da sequência narrativa, o narrador se limita a observar e introduzir as falas. No trecho “... foi para a varanda cuidado das suas plantas...” (linhas 12 e 13), mais uma referência implícita ao conto de Cora Coralina que se refere a jardim, quintal e plantas. Já no trecho “Ele olho pra direita e esquerda e ver um bau...” (linhas 13 e 14), os alunos introduzem um elemento que poderia gerar mistério, tornando a narrativa interessante, mas não o exploram e acabam dividindo a atenção do leitor com o trecho “... chegou seu João...” (linha 19). Nesse ponto, aparece uma nova personagem, sem qualquer caracterização, cabendo ao leitor imaginar quem seria; e, também sem detalhes, o narrador anuncia a conversa sobre o que tinha no baú, conforme o trecho “... ai tereza conversou sobre o que tinha mais arquivos e ele ficou surpreendido”, deixando para o leitor imaginar qual seria o conteúdo. Talvez, os alunos tenham buscado, com isso, causar suspense no leitor; porém, não foi o que aconteceu, pois as excessivas lacunas deixadas dificultaram a construção de sentidos. Seguimos para a análise de outra produção. Transcrição M1.4: Em uma caminhada 1 Quando eu era mais novo Lembro até hoje aconteceu. Em um sobrado,meio nublado, estava 2 entendiodo, sem nada a fazer pensava em alguma coisa, mais não saia nada, quando chega a minha 3 vó eu falou: 4 ___meu neto vamos andar. 5 Eu, com cara de idiota, mas suspeitando responde: 127

6 ___ Neide, ande vamos? 7 Minha vo respondeu. 8 ___ vamos andar aqui no lodo. 9 Eu respondi 10 ___ ta, vamos. 11 Famos de bicicleta mesmo. Ao chega no lugar, tinha uma espicie de arvore grande e junta. Eu 12 muito medrosa, não queria entrar, mais minha vó queria ver as arvores. Como sabia disse?ela 13 gostava muito dessas árvores pois capa de celular dela tinha árvores, minha avó falou: 14 __ vamos entrar. 15 Eu não queria entrar, mas como confiava nela, Nós entramos minha avó cada vez mais ficava mais 16 nervosa e da vez em quando escutava som de folhas sendo pisadas e tinha certeza em uma pedra, 17 percebe quando as coisas estava chegando mas e mais perto. Minha avó percebeu um homem vindo 18 atrás de mim, ela me puxou e mandou correr eu saí correndo junto com ela e não tinha percebido 19 uma Cabana, então acabei entrando né nela sem querer. Eu me escondi e minha vó disse: 20 __ se esconda quando tiver chance vá para casa. Eu saiu. Eu estava de baixo de um mesa Quando 21 o homem me achou e falou sorrindo: 22 ___ Eu não mardo não. 23 Ele me deu água e comida eu e meu pai viramos amigos dele. e sem pre que podemos voltamos a 24 cabana.

O que mais chama a atenção nessa narrativa são os vários estranhamentos com que o leitor se depara durante a leitura. Um primeiro estranhamento causado pelo texto é que, enquanto narradores, os alunos tratam a avó como avó (“... a minha vó eu falou...”, nas linhas 3 e 4) e, como personagens, no discurso direto, tratam como Neide (“Neide, ande vamos?”, na linha 6) e a justificativa para essa mudança de tratamento não fica clara, ou seja, não se trata de adequar os termos ao discurso direto; se o fosse, o tratamento mais comum seria o inverso: o narrador usando o termo Neide e a personagem usando o termo avó. Um segundo estranhamento é provocado pela falta de clareza quanto ao narrador- personagem: é feminino ou masculino? Pois enquanto na linha 4 faz referência a um narrador- personagem masculino (“meu neto vamos andar”); nas linhas 11 e 12, a referência é feminina, através do adjetivo “medrosa” (“Eu muito medrosa, não queria entrar, mais minha vó queria ver as arvores). Talvez essa situação tenha sido gerada pela composição do trio: duas meninas e um menino, o que causou alguma confusão sobre o foco narrativo na hora da escrita. Outro estranhamento diz respeito ao fato de o neto (ou neta) suspeitar do convite da avó, no trecho “Eu, com cara de idiota, mas suspeitando responde” (linha 5), o que nos sugere que ela poderia ser uma avó que aprontava surpresas, por exemplo; porém, isso também não fica claro no texto. Um quarto estranhamento está no trecho: “Ao chega no lugar, tinha uma espicie de arvore grande e junta. Eu muito medrosa, não queria entrar, mais minha vó queria ver as arvores” (linhas 11 e 12), pois também não está claro em que lugar eles (ou elas) chegaram, nem onde iriam entrar (seria nas árvores?), no trecho “Nós entramos” (linha 15). Mais adiante, outro estranhamento: o neto (ou neta) entra, sem querer, em uma cabana, cuja existência não havia percebido antes (linhas 18 e 19). 128

A recomendação da avó sobre uma futura fuga em forma de discurso direto nas linhas 20 e 21, “se esconda quando tiver chance vá para casa. Eu saiu. Eu estava de baixo de um mesa Quando o homem me achou e falou sorrindo”, provoca no leitor uma expectativa que também não é explorada. Logo em seguida, a expectativa é desconstruída pelo termo “sorrindo” (linha 21), o qual introduz o desfecho da história. Podemos inferir que a ideia era um desfecho tomando a quebra de expectativa como estratégia; porém, a forma como foi se desenvolvendo não colaborou para produzir o efeito pretendido. Esses estranhamentos apresentados dificultaram a construção de sentidos e revelam ausência de um projeto de texto mais elaborado, ou seja, a falta de um planejamento inicial da história a ser contada desfavoreceu a construção narrativa, simbolicamente representada no desfecho brusco e reticente. Enfim, vamos à última narrativa selecionada no Módulo 1. Transcrição M1.5: As ferias na casa do vó 1 Fui passar ferias na casa da minha avó (eu fui e perguntei a ela oque ela fazia quando era do meu 2 tamanho) ela falou que quando era pequena ela costumava brinca com os colegas de uma brecredo 3 de coisa. Brimcava de boneca, de tica-tica, esconde esconde e muita mais ela so fica isso no final 4 de semana, porque durante ai semana ela ia trabalhar para o seu pai e a sua mãe. 5 Ela trabalhava na roça, ela tinha 4 irmãos que ajudavas ela a fazer plantação e ela ficava jogando 6 agua para a plantação. Ela gostava de ter muito alimento em casa era fruta, verduras e tudo mais ela 7 sempre ela ficava anciosa para chega o fim de semana. Quando ela gostava de brincar. 8 Ela morava na Lagoa do poço o nome dela e bebertina a casa dela era muito grande e ate o quintau 9 dela era muito grande ela trazia as amigas delas para brincar elas toda final de semana porque chegava 10 a semana ela ficava muito triste e tinho que trabalhar para ajudar a mae e o pai

O que mais chama a atenção nesse texto é a experiência que os alunos constroem ao ouvir a avó, no trecho“Fui passar ferias na casa da minha avó (eu fui e perguntei a ela oque ela fazia quando era do meu tamanho)” (linhas 1 e 2). Talvez não se trate de uma narrativa literária, mas de um relato de experiência, pela ausência de uma estrutura narrativa mínima, já que o texto inicia com a promessa de narrativa, mas depois toma como foco o relato. Apesar disso, o texto é interessante porque se configura como uma experiência ética, conforme observamos no trecho “Brimcava de boneca, de tica-tica, esconde esconde e muita mais ela so fica isso no final de semana, porque durante ai semana ela ia trabalhar para o seu pai e a sua mãe” (linhas 3 e 4), no qual os alunos compartilham as vivências da avó. Quanto ao conhecimento mobilizado no Módulo, notamos que a possibilidade de usar o narrador e os tipos de discurso como recurso para construir a história não foram suficientemente explorados. O texto começa em 1ª pessoa, então o leitor espera pelo narrador- personagem com algum destaque na narrativa; todavia, ele tem pouca ou nenhuma influência no desenvolvimento da história, tanto que da linha 2 em diante tudo é contado em 3ª pessoa. 129

Ao final da análise de cinco dos textos resultantes do primeiro módulo, em linhas gerais, apesar de alguns avanços discretos, observamos nas narrativas analisadas que escrever de forma subjetiva; marcar a sequência dos acontecimentos a partir de estratégias distintas; projetar-se no texto usando recursos diferentes; relacionar as experiências pessoais a fenômenos ou fatos sociais; reconhecer o narrador e as formas de discurso como recursos importantes no texto ainda se apresentam como dificuldades para boa parte dos alunos da turma. Após as produções, para concluir o módulo, dividimos a turma em três grupos e exibimos três vídeos curtos.

Vídeos selecionados 1) Vídeo: Tolerância. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019. 2) Vídeo: Trabalhando as diferenças. Disponível em: . Acesso em 30 mar. 2019. 3) Vídeo: Empatia. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2019.

Infelizmente, em virtude de problemas técnicos com a caixa de som da Escola, os vídeos foram exibidos sem áudio; então, como os vídeos eram curtos e havia poucas falas, optamos por manter o planejamento e fizemos uma narração das cenas. Talvez, a falta de áudio tenha exigido mais atenção dos alunos, o que, no final, acabou sendo um aspecto positivo desse momento, pois a turma pareceu bem concentrada. Ademais, o fato de ser uma linguagem que explora a imagem e o movimento também favoreceu para que tivessem interesse. Dando continuidade, cada grupo deveria comentar um dos vídeos, relacionando-o ao conto motivador “Os Meninos Verdes”. A intenção era relacionar a leitura do texto impresso com a leitura do texto híbrido. Enquanto os vídeos estavam sendo exibidos, notamos uma boa aceitação da turma; porém, quando passamos para o momento de discussão nos grupos, a aula foi interrompida porque os alunos foram chamados para lanchar. Apesar de dispersos, os três grupos chegaram a entregar a ficha com as observações relacionadas aos vídeos; porém, pela falta de uma discussão maior, foram mais impressões individuais listadas, em oposição à proposta de registro das considerações coletivas.

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Figura 28 - Fichas de registros em grupos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Lendo as fichas, fica evidente que os alunos não chegaram a discutir os vídeos. Sobre o vídeo Tolerância, por exemplo, tivemos como registros: “Algo que entendi que vez de ser amigo ele ficaram querendo ser o maior do outro” e “Entendi que eles construiram suas piramides E depois ficaram brigando por que um queria se melho do que outro. No fin os dois ficaram feridos”. Ainda que eles tenham registrado considerações sobre os vídeos, muito provavelmente, a discussão teria contribuído mais para a construção de experiências. Por uma questão de tempo, não foi possível uma maior participação da turma na organização do varal com a última versão das primeiras narrativas. Então, apenas as duplas que estavam mais adiantadas participaram, principalmente as meninas.

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Figura 29 -Varal com os textos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Terminado o Módulo 1, passamos a relatar as Oficinas do Módulo 2.

5.2 A experiência do Módulo 2

Neste tópico, relatamos a experiência das atividades do Módulo 2, conforme o planejamento para cada Oficina (p. 101), cujo conhecimento mobilizador é a relação entre a caracterização de ambiente e personagens e a construção do suspense na narrativa. Conforme previsto, a transição de um Módulo para o outro configurou-se como um desafio em virtude da complexidade gradativa das leituras e atividades propostas. Vamos ao relato.

5.2.1 Oficina A hora do suspense

Para esta Oficina, os objetivos definidos foram: avaliar o Módulo 1; proporcionar a leitura subjetiva; ampliar as habilidades de oralização e escuta; reconhecer, na construção 132

narrativa, diferentes efeitos de sentido produzidos pela caracterização do espaço e dos personagens; identificar o papel do suspense na construção narrativa; incentivar a leitura de obras completas; favorecer a construção de imagens subjetivas sobre o conto. Conduzimos os 22 alunos presentes para a Sala do Laboratório de Ciências, a qual já havia sido previamente preparada pela professora-pesquisadora durante o intervalo: cadeiras dispostas em três grupos, luz reduzida, som ambiente de suspense, uma trilha de figuras de formigas no chão, em direção a um objeto encoberto por um tecido em tom chamativo.

Figura 30 - Organização da sala

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019)

Após todos estarem acomodados, entramos arrastando uma mala grande, sob os olhares atentos. Inicialmente, pedimos para que os alunos relembrassem o que havíamos feito no Módulo 1 e registrassem em seus Diários o que mais gostaram. Dentre os registros, destacamos um para análise a seguir.

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Figura 31 - Diário 2/registro 4

Fonte: Diário 2 (2019).

Transcrição Diário 4/registro 3 1 Eu gostei muito do momento sobre nossa avó, que fez a gente lembra a ela. De fala sobre as coisas 2 que ela faz comidas, que eu amo o feijão dela. Saudades daminha voinha.

Apesar de curto, o registro 4 do Diário 2 é marcado pelas experiências pessoais da aluna, como observamos nos trechos destacados: “gostei muito...”, “... fez a gente lembra a ela”, “... eu amo o feijão dela” e “Saudades daminha voinha”. Isso revela que, para projetar a subjetividade, não é preciso escrever em quantidade, mas estabelecer relações com leituras anteriores, lugares, pessoas e tempos. Nesse sentido, o registro em análise atendeu à proposta. Em seguida, solicitamos que fizessem uma observação inicial do conto de Lygia Fagundes Telles e registrassem as suas primeiras impressões. Nesse momento, fomos interrompidos porque a nossa presença foi solicitada em uma reunião de pais/responsáveis para entrega de resultados do 1º bimestre e uma funcionária ficou com a turma. Decidimos por relatar esse episódio para explicitar que não trabalhamos em condições ideais no contexto escolar, mas que há entraves entre o planejamento e a execução de um trabalho e que isso também deve ser considerado como objeto de reflexão. Quando retornamos, os alunos já estavam concluindo os seus registros. Selecionamos um para análise na sequência.

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Figura 32 - Diário 1/registro 5

Fonte: Diário 1(2019).

Diante da dificuldade de usar o Diário, pensamos em tópicos que pudessem conduzir os registros, somente no sentido de orientação. Embora o objetivo fosse apenas sugerir pontos que pudessem nortear os registros, os alunos estão tão habituados ao esquema de pergunta- resposta que responderam aos pontos sugeridos como se fosse uma atividade, como os exercícios do LD. Por isso, mais uma vez, retomamos o funcionamento do Diário e a necessidade do seu uso de modo subjetivo, esclarecendo a importância de privilegiar a escrita livre sobre as impressões, de modo mais pessoal. Retomamos a Oficina sob o som de suspense baixinho. Iniciamos uma leitura performática, com modulações na voz, circulando entre os grupos, com paradas estratégicas para observar as reações dos alunos. Seguindo a trilha de figuras de formigas no piso, caminhamos até o objeto encoberto pelo tecido e revelamos o esqueleto oculto, de acordo com o desenrolar da história. De fato, foi um momento de muita concentração, da turma toda, até mesmo os alunos mais inquietos estavam acompanhando. Enquanto professora, também foi uma experiência marcante para nós porque, considerando o baixo nível de concentração da turma, vê-los concentrados foi um momento singular. 135

Quanto às alunas com necessidades educativas especiais, uma delas não estava presente. As outras duas participaram normalmente das atividades, sem necessidades de adaptação, inclusive a aluna em processo de alfabetização. Isso foi possível porque boa parte das atividades eram orais, então ela pôde contribuir tranquilamente. Somente a atividade de registro no Diário precisamos adaptar e fazer oralmente com a aluna. Concluída a leitura, pedimos que cada um registrasse as suas observações sobre a história, aprofundando ou reformulando os registros anteriores. Daí, seguimos para a conversa sobre o que sentiram. Medo e curiosidade foram citados pelos alunos, que destacaram o tecido sobre o objeto, o som ambiente e as formigas como fatores que contribuíram para o mistério em torno do texto. Isso nos permitiu introduzir invisivelmente a reflexão sobre diferentes recursos disponíveis para construir o suspense.

Figura 33 - Alunos registrando as primeiras impressões no Diário

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Ao serem questionados sobre as possíveis razões de não haver caracterização das duas meninas no texto, tampouco os seus nomes, responderam que a caracterização do lugar era mais importante para construir o suspense. Obviamente que essa percepção nos causou satisfação, por atender aos objetivos propostos no Módulo, quanto ao papel da caracterização para a construção narrativa de suspense. 136

Logo em seguida, revelamos o conteúdo da mala: uma parte da Biblioteca Particular da professora. Apesar de a Escola ter uma biblioteca, ainda que modesta, entendemos que levar uma parte da nossa biblioteca seria uma forma de reafirmar o papel do professor como sujeito leitor. Queríamos levar um acervo bem diverso, para que todos pudessem se identificar com alguma leitura e nesse trabalho de seleção do material que estaria na mala, a autobiografia de leitor, que os alunos escreveram na etapa de diagnóstico, teve um papel fundamental. A autobiografia nos forneceu informações sobre o que eles já liam. Os títulos iam desde Histórias em Quadrinhos, mangás, contos infantis a livros de contos, romances, diários, poesia, livros de histórias bíblicas e de autoajuda. A maioria dos títulos levados já compunha o acervo da Biblioteca, mas alguns foram adquiridos especialmente para a Oficina (como os mangás) após a leitura das autobiografias que nos ajudaram a conhecer a história de leituras do grupo e a reconhecer o seu perfil como leitores. Abrimos o espaço para que cada estudante escolhesse um título que levaria para ler em casa. Observamos que os alunos comparavam os títulos, as capas, abriam, folheavam, cheiravam. Foi uma experiência muito interessante porque, de tanto ouvirmos/repetirmos que os alunos não gostam de ler, acabamos por acreditar; quando, na verdade, o encantamento da turma diante de uma mala cheia de livros nos demonstrou exatamente o contrário: eles tiveram interesse pelos livros e transformaram esse momento em um dos mais marcantes da intervenção. Isso nos permite concluir que é possível obtermos resultados positivos quanto à leitura, mesmo diante de contextos desfavoráveis.

Figura 34 - Momento da escolha de livros para empréstimo

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). 137

Colocamos quatro alunos para organizar esse momento e registrar os empréstimos; a outros três alunos encarregamos de conduzir, inicialmente, a Comunidade de leitores. Usamos esse tempo para explicar-lhes os objetivos e o funcionamento da Comunidade e da necessidade da adesão de um grupo para fomentar ações de leitura na Escola, o qual chamaríamos de mediadores de leitura. Os dois grupos (o que organizava os empréstimos e o de mediadores de leitura) se mostraram muito satisfeitos com as atribuições recebidas e demonstraram alguma autonomia para organizar os colegas. No final da aula, vários alunos se dispuseram a ajudar na organização da sala. Esse comportamento nos revelou o protagonismo dos alunos incentivado pela leitura subjetiva que prevê que cada sujeito tem o que dizer. Embora não tenhamos notado dificuldades maiores para desenvolver a Oficina, se fôssemos elencar aspectos negativos, destacaríamos: os aspectos físicos da sala (quente e com cadeiras inadequadas), a ausência da professora-pesquisadora por alguns minutos por causa da reunião e ainda dois alunos terem faltado nas duas últimas oficinas e estarem desambientados. Todavia, podemos dizer que foi uma experiência interessante para todos, inclusive, uma das mais marcantes da nossa trajetória docente. Vejamos a Oficina seguinte.

5.2.2 Oficina Um olhar para as sutilezas do texto

Nesta Oficina, os objetivos consistiam em: proporcionar a leitura para reflexão sobre a organização do texto (leitura rigorosa); favorecer o acesso a outras linguagens; reconhecer os efeitos gerados pela caracterização do ambiente e das personagens; promover outras experiências éticas e estéticas. Iniciamos a Oficina apresentando o concurso de fotos artísticas. Essa atividade não estava prevista desde o início; todavia, vimos a necessidade de acrescentá-la em resposta ao diagnóstico realizado por meio do questionário que apontava a interação nas redes sociais através de fotos como uma das principais práticas do grupo. Assim, lançamos o concurso de fotos com o tema “Biblioteca: espaço de interação”, cujos subtemas poderiam evocar interação com livros, com pessoas, com lugares, com histórias, com culturas, com autores ou com o passado e, para isso, marcamos a ida à Biblioteca Pública Municipal para a Oficina 3. Aparentemente, os alunos ficaram motivados. Dando sequência, relemos o trecho inicial do conto “As formigas”, solicitando que os estudantes fizessem observações sobre o que eles acrescentariam à história, se fossem a escritora. Logo começaram as falas citando a falta de informações como o nome das 138

personagens e do lugar onde a história se passava. Depois, fomos para a releitura do trecho final do conto e fizemos a mesma solicitação e os alunos demonstraram insatisfação em relação ao final da história que, para eles, não tinha final. Abrimos a discussão sobre os motivos prováveis para a omissão das informações que eles listaram. As respostas mais comuns foram na seguinte linha: i) detalhar o nome e as características físicas das moças não era determinante para a construção da narrativa; a prova disso era que o texto deu a descrição da dona da pensão, uma vez que contribuía para o suspense; ii) o final estava sem final (segundo eles) exatamente para manter o suspense e a curiosidade, dando ao leitor a possibilidade de imaginar o desfecho. Chegamos, pois, à conclusão de que a caracterização (das personagens e do espaço) é um recurso importante para manter o suspense em uma narrativa e, a partir disso, propusemos o exercício de “completar” as lacunas deixadas no texto, sem alterar a história.

Figura 35 - Atividade de reescrita

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

A ideia inicial era reescrever o início do conto, os três primeiros parágrafos, para acrescentar o nome e a caracterização das duas personagens de destaque. Aparentemente, seria um exercício simples; porém, o fato de o foco narrativo estar em 1ª pessoa dificultava a descrição da narradora-personagem. Desse modo, o exercício era bem mais complexo do que aparentava e exigia a formulação de uma estratégia para introduzir a caracterização. 139

Passando pelos grupos, vimos que a maioria optou por fazer isso dentro do discurso direto porque a narradora saía de cena e ficava apenas a personagem. Um grupo separou a descrição em um parágrafo e, sem notar, mudou o foco narrativo para a 3ª pessoa. Um outro grupo propôs uma alteração bem original: a narradora, em um outro tempo, lembrava do que lhe acontecera no passado e, assim, fazia uma caracterização dela mesma. Observando as diferentes estratégias que eles iam negociando e testando, notamos a complexidade da atividade no sentido de exigir uma leitura rigorosa realmente. Nesse sentido, a atividade superou as nossas expectativas. A divisão dos grupos para esse momento se deu de forma diferente: organizamos de modo que ficassem alunos com maior dificuldade na escrita junto a alunos com mais facilidade, a fim de que esses ajudassem àqueles. De início, houve grande resistência pela distribuição dos grupos e nós precisamos intervir. Apesar do impacto inicial, a atividade, ao final, mostrou-se bem produtiva. Ademais, essa forma de organização gerou mais concentração naqueles alunos mais dispersos porque estavam isolados dos amigos mais próximos. Porém, para os alunos com mais facilidade na escrita gerou algum desconforto porque precisaram trabalhar com colegas em outros níveis de proficiência. Apesar dos aspectos positivos, a atividade só foi concluída por um grupo. Os demais ficaram para entregar na aula seguinte, ou seja, mais uma vez, o momento da escrita gerou grande dificuldade. Podemos dizer que essa Oficina nos surpreendeu muito porque pensamos que seria uma proposta simples quando solicitamos a reescrita dos parágrafos iniciais do conto, acrescentando a caracterização das personagens; no entanto, vimos que não foi tão simples assim. Por isso, mesmo que oito grupos não tenham concluído a atividade, entendemos que o processo de negociação das estratégias e de retomada das pistas do texto para acrescentar a caracterização pôde atingir os objetivos de proporcionar a leitura para reflexão sobre a organização do texto; de reconhecer os efeitos gerados pela caracterização do ambiente e das personagens; e de promover outras experiências éticas e estéticas. Relatamos a próxima Oficina a seguir.

5.2.3 Oficina A leitura do mundo precede a leitura do texto

Os objetivos definidos para esta Oficina 3 foram: proporcionar práticas de leitura e escrita além do espaço escolar; ampliar o acesso a bens culturais e a interação a partir de outras 140

linguagens; reconhecer e explorar os efeitos estéticos gerados pelo espaço na construção dos sentidos; promover outras experiências éticas e estéticas. Tínhamos avisado aos alunos que a Oficina 3 seria realizada na Biblioteca Municipal. Reunimos a turma na Escola, retomamos os objetivos da visita e explicamos novamente o tema da sessão de fotos para um concurso de fotos artísticas com o tema “Biblioteca: espaço de interação”. A nossa única ferramenta eram os celulares de alguns alunos; então, conversamos previamente sobre a necessidade de compartilharmos os aparelhos disponíveis. Apenas três alunos faltaram e até os que tinham faltado à última Oficina e não sabiam ainda o objetivo da visita, mostraram-se motivados. Quando chegamos à Biblioteca, os alunos estavam sem ideias de como fazer as fotos, embora tivessem recebido as orientações. Porém, após as primeiras iniciativas, os demais foram aderindo, de forma que, em pouco tempo, quase todos estavam fazendo suas fotos. Emprestamos o nosso celular para os alunos que não tinham ou que deixaram em casa. Isso contribuiu para um clima de colaboração entre eles, seja para dividir os aparelhos disponíveis, seja para colaborar com as fotos de outra dupla. Foi motivador observar o que conseguiram produzir com tão poucos recursos. Depois de uma hora na Biblioteca, retornamos para a Escola e quando chegamos, usamos o tempo para compartilhar oralmente a experiência. Muito embora tenha sido uma Oficina mais curta, pudemos notar envolvimento, criatividade, originalidade, trabalho coletivo, interação e cooperação. Então, definimos um prazo para que eles enviassem as fotos que deveriam ter título e legenda. Ainda que pareça se desviar da proposta de intervenção, entendemos que a atividade não seria simplista. Os alunos teriam que desenvolver diferentes estratégias em relação à leitura não-verbal e à escrita condensada. Para escolher um título para a foto, por exemplo, precisariam fazer a leitura dela e para escrever uma legenda teriam que resumir os sentidos da imagem. Essa foi uma maneira encontrada para trabalharmos leitura subjetiva e escrita criativa a partir das práticas já recorrentes entre os alunos. No finalzinho do horário, duas alunas nos procuraram para dizer que já tinham concluído a leitura integral do livro que levaram na semana anterior. Evidentemente que isso nos surpreendeu pelo fato de elas terem conseguido concluir o livro inteiro em uma única semana. Vale destacar que uma das alunas já era leitora ativa, mas a outra nunca tinha comentado sobre qualquer leitura nas aulas e não conseguia concluir a leitura integral de uma obra facilmente. Diante disso, pensamos em realizar a troca dos livros entre os alunos que já concluíram a leitura na oficina seguinte, a qual relatamos a seguir. 141

5.2.4 Oficina Suspense compartilhado

Na oficina 4, tínhamos como objetivos: desenvolver a oralização e a escuta; resgatar experiências sobre histórias de suspense; analisar a construção do suspense e do desfecho na narrativa; projetar a subjetividade através da escrita. Não foi fácil realizar esta oficina: no dia anterior, havia sido a Festa Junina da Escola e os alunos estavam visivelmente cansados; muitos faltaram, só 20 estavam presentes; vários não demonstravam interesse pela aula. Iniciamos compartilhando a atividade da Oficina 2, na qual os grupos deveriam reescrever os primeiros parágrafos do conto “As formigas” acrescentando a caracterização das personagens e do ambiente, segundo as estratégias mais adequadas para o grupo. Não houve muito empenho em compartilhar as estratégias pensadas pelos grupos, embora fossem incentivados com perguntas e sugestões. Dando sequência, iniciamos os jogos de leitura do conto “A cabeça”, também em grupos. Porém, também não funcionaram tão bem pelo fato de os grupos estarem conversando sobre a Festa Junina. Notando isso, repensamos a metodologia, desfizemos os grupos, organizamos a turma em círculo e passamos a uma leitura com pausas estratégicas para perguntas e levantamento de hipóteses. As conversas paralelas diminuíram e alguns alunos se concentraram mais. Esse é mais um exemplo de que os aspectos teórico-metodológicos considerados no planejamento das ações docentes sofrem influências do contexto real da sala de aula.

Figura 36 - Leitura do conto “A cabeça”

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). 142

Nesse novo formato, houve maior participação dos alunos e a discussão girou em torno das reações diversas diante de fatos ruins, como acidentes e assassinatos. Em tempos de celulares com câmeras, é bastante comum a divulgação de imagens de acidentes e mortes sem qualquer responsabilidade quanto ao conteúdo do que se compartilha, então aproveitamos o surgimento do assunto para tratar da responsabilidade ética de quem compartilha algum texto nas redes sociais e das consequências negativas que as nossas publicações podem ocasionar. Como o assunto era bem próximo da realidade dos estudantes, a oficina começou a funcionar melhor. Reforçamos que aquela era a nossa proposta: a apropriação do texto pelos sentidos que podemos construir com base nele. Eles foram contando as suas histórias, relacionando ao texto lido, como exemplos de que, muitas vezes, a vida humana é colocada em 2º plano e o objetivo é filmar, tirar fotos e publicar. Considerando a importância dada pelo grupo às redes sociais como espaço de interação, conforme resultados do questionário aplicado, foi uma discussão bem relevante porque levantou questões presentes na vida cotidiana dos alunos, favorecendo experiências éticas significativas. Após relacionar o conteúdo do texto com as experiências individuais, pudemos fazer uma análise da narrativa em relação à construção, aos efeitos provocados por elementos linguísticos, quanto ao modo como as falas das personagens eram introduzidas, sobre o desfecho dado pelo narrador, a importância do suspense etc. Nesse momento da Oficina, o papel da mediação da professora ficou evidente pela necessidade de avaliação e reorientação contínuas das discussões, no sentido de conduzir os estudantes durante a leitura rigorosa. Logo em seguida, pedimos que os estudantes contassem histórias inusitadas ou de mistério que tivessem presenciado ou ouvido. Como eles não estavam tão envolvidos como nas outras oficinas, iniciamos contando as nossas próprias histórias de adolescência. Só então, surgiram algumas histórias: passos na cozinha, acidentes, vozes de pessoas mortas etc. Chegando à última parte da Oficina, solicitamos que se organizassem em duplas, escolhessem alguma das histórias compartilhadas oralmente e escrevessem uma narrativa explorando o suspense. Também com a finalidade de motivá-los, avisamos à turma que também escreveríamos a nossa narrativa, enquanto eles escreviam as deles.

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Figura 37 - Narrativa produzida pela professora-pesquisadora

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Esse foi um momento interessante. Já havíamos nos colocado no papel de leitores quando levamos parte da nossa biblioteca particular para a sala (na Oficina A hora do suspense) e agora estávamos nos colocando na condição de produtores de textos. Assim, pudemos mostrar para a turma que a escrita era um processo também para a professora, de modo que reler e reescrever eram estratégias necessárias para qualquer sujeito que escreve. Enquanto eles escreviam, nós também escrevíamos e quando avisamos que tínhamos concluído e queríamos compartilhar, os alunos se surpreenderam pelo fato de já termos terminado. Diante disso, aproveitamos para lhes mostrar que, quanto mais escrevemos, mais facilidade adquirimos para escrever. Isso não era o resultado da aquisição de uma técnica, mas da apropriação das habilidades que desenvolvemos, à medida que lemos e escrevemos, com as experiências de leitura e escrita que vivenciamos. Então, compartilhamos a nossa narrativa com a turma, transcrita abaixo:

Meu avô e sua Morena Bruna Faustino de Souza O meu avô era um homem forte, grande, corajoso. Gostava de andar a cavalo desde a meninice e, na velhice, tinha uma égua da sua inteira confiança como companheira. Em um dia qualquer de sol, saiu na égua para o Zumbi (esse era o nome da propriedade que herdara do seu pai), como era de costume fazer. 144

Apesar das terras estarem arrendadas para a plantação de cana-de-açúcar, ele sempre ia por lá para olhar como as coisas estavam ou apenas para ficar um tempo só. Gostava de cavalgar por ali e arrumar os pensamentos, enquanto olhava o velho açude ou as ferragens, desgastadas pelo tempo, de um trator velho, onde moravam a vegetação seca e a poeira. Aquela paisagem, ora verde, ora amarelada, decorada por galhos e por pássaros barulhentos, por alguma razão, lhe trazia quietude e satisfação. A estrada de barro que acompanhava as terras era larga e o caminho que dava para o açude tinha uma trilha estreita por atalho. Iam os dois, ele e a Morena, por ali, devagar. Bem perto da grande fenda que recortava o chão do terreno, a égua empacou decidida. “O que é isso? Você nunca deu pra ruim, Morena! Ande, vamos...”. Dizia meu avô, sem querer usar as esporas, raramente necessárias. Após insistir, agora já com mais irritação na voz, deu-lhe de leve, com a macaca de couro: “Bora, Morena. Que coisa é essa agora? Diacho de teimosa mais besta”. Então, diante da completa recusa em prosseguir, usou finalmente as esporas, relutante: “EIA, MORENA!”. A égua, estática, não demonstrou qualquer intenção de seguir caminho. Foi então que ele, impacientando-se, desviou o olhar para os cantos da velha trilha. No meio do mato, por entre pés de araçá, a fenda se acabava. Como quem desconfia dos próprios olhos, ele olhou mais uma vez na direção e descobriu o motivo da indolência da Morena. Era lenta, lisa, brilhante, grossa, de couro artisticamente desenhado. Linda! Deslizava, sem pressa, terminando de entrar na fenda. Meu avô, homem corajoso que era, virou estátua. Paralisado de espanto, acompanhava a imponência da grande cobra que descia para a sua toca. Somente depois de concluída a saída gloriosa da protagonista de cena, a dócil égua seguiu o caminho estreito na direção do açude, sem que o seu companheiro de andanças chegasse a lhe pedir. Depois de um longo período de silêncio, só interrompido pelo trote tranquilo da sábia Morena, o meu avô recobrou a razão e disse: ̶ Boa menina. Boa menina!

Após compartilharmos a nossa história, notamos mais interesse de algumas duplas. Todos seguiram com o momento de escrita, cada dupla no seu ritmo. Passamos nas cadeiras para acompanhar o processo de negociações e aproveitamos para participar do desenvolvimento de alguns textos, fazendo sugestões, respondendo a alguma pergunta (quase sempre sobre ortografia). Observamos que uma das duplas usava o celular enquanto escrevia. Então, aproximamo-nos para entender como o aparelho era utilizado. Elas nos mostraram que digitavam quando tinham alguma dúvida porque o corretor do celular as ajudava a ver a escrita adequada de algumas palavras “mais difíceis”. Elogiamos a estratégia escolhida para as questões ortográficas e orientamos quanto ao uso crítico do corretor que, às vezes, não trazia a escrita adequada. Nessa situação, pudemos notar que o aparelho estava sendo usado com outras funções e que isso representava um avanço para uma turma na qual muitos passavam mais de 6 horas nas redes sociais, diariamente. Isso nos pareceu um bom exemplo de outros usos para o aparelho tão popular entre eles. Diante das dificuldades enfrentadas, reconhecemos que a Oficina 4 foi muito desafiadora; no entanto, comparando as dificuldades com os objetivos definidos, podemos afirmar que atendeu aos fins propostos, especialmente porque as duplas conseguiram entregar a primeira versão da narrativa.

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Figura 38 - Primeira versão das narrativas do Módulo 2

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Para encerrar a aula, retomamos as orientações para participação no concurso de fotos e solicitamos que todos trouxessem os Diários na última Oficina do Módulo para que pudéssemos acompanhar os registros feitos. E, finalmente, partimos para a última Oficina.

5.2.5 Oficina Jogo de reescritas

Na última oficina deste Módulo, os objetivos eram: mobilizar os conhecimentos construídos na leitura crítica da própria produção textual; analisar a construção narrativa do próprio texto, fazendo registros do processo de escrita; comparar a linguagem do texto escrito físico com a linguagem do stop motion. Iniciamos apresentando as etapas e os objetivos da Oficina. Em seguida, tendo destacado que se tratava da última Oficina do Módulo 2, solicitamos que os alunos registrassem no Diário qual foi o momento mais interessante e o mais difícil e, depois, entregassem os Diários para uma primeira análise da professora-pesquisadora.

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Figura 39 - Momento de registros nos Diários

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Dentre os Diários entregues, selecionamos um registro para análise a seguir.

Figura 40 - Diário 6/registro 6

Fonte: Diário 6 (2019).

1 O momento mais legal foi a história das formigas e os livros e o momento mais dificil foi reescrever 2 o texto várias vezes foi muito difícil

Nesse registro, a aluna aponta dois momentos que, segundo ela, foram legais: a história das formigas e o momento de empréstimo dos livros, ambos correspondem à Oficina 1, na qual tínhamos como foco a leitura subjetiva e fizemos uma abordagem explorando o suspense. Isso nos leva a inferir que essa Oficina representou uma experiência significativa para ela. Quanto ao momento mais difícil, a aluna cita “reescrever várias vezes”, ou seja, ela remete-nos à Oficina de revisão e reescrita. Isso nos permite concluir que ela se identifica mais com as atividades de leitura e tem mais dificuldade com as de escrita. Quanto a isso, chamou- 147

nos a atenção o fato de a aluna usar a expressão “mais difícil” (linha 1) e a expressão “muito difícil” (linha 2), sugerindo a sua tentativa de reforçar a sua dificuldade no processo de reescritas. Após esse momento, começamos a compartilhar a 1ª versão da narrativa produzida na Oficina 4, inclusive a professora-pesquisadora. Nessa atividade, eles se colocaram na posição de leitores dos próprios textos: o riso, a curiosidade, a surpresa, o envolvimento pelo universo fantástico e a dúvida foram compartilhados, mas não pela leitura de um escritor de referência. Foi um momento interessante porque eles poderiam trazer sugestões para os textos uns dos outros. Houve uma boa interação, com boas intervenções, exceto por uma ou duas críticas mais irônicas, as quais foram descartadas pelo próprio grupo. Dando continuidade, as duplas se reuniram para avaliar possíveis ajustes nos seus textos, considerando as sugestões dadas pelos colegas no momento de socialização e a ficha de autoavaliação. Como essa atividade já havia sido realizada no final do Módulo 1, percebemos mais segurança das duplas ao realizá-la. Nas figuras abaixo, representamos duas das fichas preenchidas para uma breve análise. Quanto às fichas de autoavaliação, distribuídas para facilitar o olhar das duplas para o próprio texto, também percebemos mais familiaridade e mais segurança em algumas duplas. Embora para outras o preenchimento da ficha tenha se dado sem muita reflexão, notamos algum avanço no sentido de proporcionar alguma autonomia na avaliação da própria produção.

Figura 41 - Ficha de autoavaliação preenchida 1

Fonte: Ficha de autoavaliação 1 (2019).

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Figura 42 - Ficha de autoavaliação preenchida 2

Fonte: Ficha de autoavaliação 2 (2019).

As fichas de autoavaliação foram adotadas como um instrumento para facilitar o olhar das duplas para o próprio texto. Diferentemente da primeira vez que utilizamos na oficina de revisão e reescritas do primeiro módulo, percebemos mais familiaridade com o instrumento e mais segurança. Na ficha 1, por exemplo, diante da afirmativa “organizei a história causando expectativa no leitor”, a dupla assinala que não, reconhecendo que esse ponto precisará ser revisto no momento da reescrita. Já na ficha 2, diante da afirmativa “me preocupei com a compreensão do leitor do texto”, a dupla assinala que não, admitindo que isso precisará ser retomado na nova versão. Nesse sentido, a ficha de autoavaliação colaborou, ainda que primariamente, para que os alunos planejassem a narrativa considerando, desde aspectos formais da língua até aspectos relacionados à recepção do texto. Outro avanço notado nessa oficina diz respeito a quatro duplas que solicitaram alguma sugestão da professora-pesquisadora para o desfecho; isso mostra a compreensão de escrita como processo e como atividade colaborativa. No tocante aos pontos negativos, assim como no final do primeiro Módulo, uma dificuldade enfrentada nesse momento de reescrita foi o fato de termos produções em situações bem distintas. A questão das faltas é um fator que, desde o início da intervenção, atrapalha muito a condução das atividades porque impossibilita a continuidade e o acompanhamento progressivo. Vejamos a situação da turma no quadro a seguir:

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Quadro 11 - Situação geral das produções do Módulo 2 Situação das Motivo Orientação Quantidade duplas Incompletas Um dos alunos ausente na Analisar os ajustes sugeridos pela turma 02 e em 2ª versão Oficina 5. na socialização. 1ª versão Aluno(s) ausente(s) ou Narrar uma história de suspense ocorrida 04 sem par na Oficina 4. com alguém da dupla ou agum conhecido. 1ª versão Presentes na Oficina 4 Concluir a narrativa e chamar a professora 01 que não concluíram. para compartilhar a 1ª versão. 1ª versão Alunos fugiram da Retomar o comando da produção: narrar 01 proposta e reiniciaram. uma história de suspense. Completas e Alunos concluíram a Avaliar ajustes propostos; negociar 03 em 2ª versão escrita na Oficina 4. possíveis alterações, a partir da ficha. Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Mesmo em uma turma não muito numerosa (apenas 27 alunos), as diferentes situações das duplas impossibilitaram um melhor acompanhamento, sobretudo daquelas que ainda estavam na primeira versão. Além disso, as duplas que iam concluindo a 1ª versão ao longo da Oficina 5 e passariam para a fase de revisão e reescrita só tinham a própria professora- pesquisadora como interlocutora imediata para os textos, já que no momento da socialização para a turma as narrativas ainda estavam incompletas. Essa situação nos gerou preocupação no sentido de que a nossa prática não incidisse sobre o que este trabalho critica veementemente, ou seja, preocupamo-nos em não tornar a escrita sem sentido pelo fato de não termos outros interlocutores reais; todavia, ressaltamos a intenção de organizarmos um livro com as produções das duplas, o que prevê pensarmos nos interlocutores prováveis: outros alunos, professores, pais/responsáveis etc. Apesar das dificuldades, os aspectos positivos se sobressaíram, tendo em vista o histórico da turma em relação aos entraves quanto à escrita. Ademais, a tendência comum de imitar um texto tomado como modelo pareceu-nos um obstáculo vencido, pelo menos, nessa Oficina, uma vez que não vimos nenhuma narrativa que copiasse o conto que usamos como motivador, ou outro texto lido em outros momentos da intervenção. Alguns alunos, particularmente, apresentaram avanços significativos. Três alunas e um aluno que não se expressavam oralmente de jeito nenhum, no início do ano letivo, já conseguiram se expressar e interagir nas duplas para realizar as atividades propostas, ainda que com alguma dificuldade. Ademais, três alunos com resistência acentuada à escrita também apresentaram avanços, considerando que conseguiram participar mais ativamente das atividades de escrita, revisão e reescrita.

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Figura 43 - Momento de reescrita do Módulo 2

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Como no módulo anterior, o momento da reescrita se estendeu além do que esperávamos e não foi possível exibir o vídeo de stop motion do conto “As formigas”. Apesar de o vídeo ter menos de 2 minutos de duração, o tempo gasto para organizar e montar projetor, notebook e caixa de som não nos permitiu realizar essa etapa. Então, fornecemos o link de acesso ao vídeo para que os alunos assistissem em casa e vimos nisso uma oportunidade de ampliar a utilização dos recursos digitais. Encerrado o módulo, passamos à análise de cinco das narrativas produzidas, para as quais usamos o código: M2.1, M2.2, M2.3, M2.4 e M2.5, sendo M2 referente a Módulo 2 e os números seguintes (1, 2, 3, 4 e 5) correspondentes à identificação das duplas. Transcrição M2.1: Noite sombria 1 Em uma noite, já era umas 10 horas, saí de casa com uns colegas. Íamos andar pelo bairro; na 2 volta para casa, já passava das 3 horas da madrugada, eu e Andrey vínhamos um pouco mais à 3 frente dos outros com uma lanterna, clareando o caminho por entre o mato. 4 Quando reparamos melhor, tinha uma pessoa de preto agachada. Tentamos olhar para o rosto, 5 querendo identificar, mas não conseguíamos ver. Notamos que a pessoa não tinha pés, então 6 ficamos assustados e saímos correndo para avisar aos outros que vinham atrás. Ninguém acreditou 7 em nós, aí resolvemos levá-los até lá para mostrar. 8 Chegando, já não estava mais lá. No lugar, só havia um bilhete escrito assim: “eu vou voltar... 9 ah!” 10 Nós morremos de medo daquele bilhete, saímos correndo para o condomínio, onde havia 11 palavras escritas com sangue nas paredes: MORTE. TERROR. 12 O medo só crescia. Seguimos para casa, enquanto ouvíamos barulhos estranhos nos 13 acompanhando; mas não queríamos nem olhar para trás. 14 Entramos todos, apavorados, na casa de Andrey e, quando batemos a porta, escutamos um grito 15 bem forte. Era um grito de mulher. Era aterrorizante.

Já de início, os alunos aproveitam o tempo e o ambiente para gerar expectativa no leitor, como observamos nas expressões “Em uma noite, já era umas 10 horas”, “já passava das 3 horas da madrugada” e “clareando o caminho por entre o mato” (linhas 1-3). No segundo parágrafo, os alunos usam a caracterização para explorar a construção de um clima de 151

mistério em torno da personagem, conforme as expressões “tinha uma pessoa de preto agachada”, “a pessoa não tinha pés” e “ficamos assustados e saímos correndo” (linhas 4-7). Essas características são dadas para revelar um ser entre os mundos real (a pessoa) e fantástico (não tinha pés), conforme a linha 5, especialmente. Em outro ponto do texto, eles dão continuidade ao suspense através do trecho “Chegando, já não estava mais lá. No lugar, só havia um bilhete escrito assim: ‘eu vou voltar... ah!’” (linhas 8 e 9), inserindo o bilhete como um elemento intensificador da relação entre os mundos real e fantástico, uma vez que o ser sem pés se comunica na linguagem dos garotos. Embora os alunos tenham repetido a expressão saímos correndo, nos parágrafos 2 e 4 (linhas 6 e 10) e normalmente entendamos a repetição como uma dificuldade de progressão do texto; nesse caso, entendemos como uma tentativa de reforçar o medo das personagens, o que configura como uma estratégia interessante. Um recurso muito bem empregado pela dupla foi a grafia das palavras MORTE e TERROR em caixa alta. Podemos observar que além de destacar que as palavras foram “escritas com sangue” (linha 11), a dupla não se satisfaz e explora graficamente as palavras, o que sugere maior ênfase, contribuindo para o suspense. Outro recurso de efeito muito enigmático para o leitor foi o desfecho aberto: “Entramos todos, apavorados, na casa de Andrey e, quando batemos a porta, escutamos um grito bem forte. Era um grito de mulher. Era aterrorizante” (linhas 14 e 15). Ou seja, em virtude das experiências de leitura construídas através dos contos As formigas e A cabeça, é possível concluir que esses alunos não esqueceram de dar um desfecho à narrativa, mas deixaram o desfecho a cargo do leitor, intencionalmente, a fim de manter o suspense. Passamos agora à análise de outra narrativa. M2.2: O boneco de louça 1 Na velha cidade, havia um senhor chamado Bernardo. Ele tinha uma loja de brinquedos. Ele 2 mesmo fabricava os bonecos que não agradavam muito as crianças do lugar. A sua loja era 3 empoeirada, escura, estava sempre vazia. Os bonecos eram feios, mas Seu Bernardo os adorava. 4 O seu boneco preferido era o de louça, seu nome era Jason. Era macabro, era grande, o seu corpo 5 parecia com o de uma criança de verdade. Tinha a aparência de um menino de 6 anos. 6 Em uma noite de lua cheia, deu uma tempestade na velha cidade, com direito a raios e trovões 7 e as chuvas acompanhadas de vento davam pancadas fortes na loja do Senhor Bernardo, o qual foi 8 ao porão onde guardava seu boneco de louça. Parecia buscar uma companhia. 9 Ao chegar lá, o boneco tinha mudado de lugar. Seu Bernardo notou e foi pegá-lo para colocar de 10 volta na prateleira de sempre. Mas quando o homem deu as costas, Jason chamou o seu nome bem 11 baixinho: 12 “Senhor Bernardo”. 13 ̶ Quem está aí? 14 O boneco riu baixinho. 15 O senhor Bernardo, sempre tão corajoso, estava apavorado. Saiu correndo para o seu quarto que 16 ficava nos fundos da loja. 17 Ele ouviu passos que o seguiam. Era constrangedor. Estava tremendo muito e não tinha por quem 18 chamar. A cidade inteira parecia dormir, embora não fosse tarde. 152

19 Depois de alguns segundos, houve uma queda de energia. O homem só contava agora com a luz 20 da lua para lhe conduzir ao escuro quarto. Os passos estavam cada vez mais próximos, ele podia 21 sentir. Então, gritou: 22 ̶ QUEM ESTÁ AÍ? ME DEIXE EM PAZ! 23 O boneco não respondeu. Deu uma risada assustadora, avisando que não tinha razão para deixar 24 o seu criador em paz naquela noite.

Nessa narrativa, o ambiente criado pelo aluno (cidade velha, loja empoeirada, tempestade, raios e trovões, queda de energia) permite ao leitor a construção do plano imagético da história. Observamos que a forma como a ambientação foi construída não parece ser somente uma questão composicional, ou seja, uma tentativa de obedecer à estrutura, mas uma necessidade de comunicar. Notamos que a apropriação do conto “As formigas” contribuiu para que o aluno percebesse uma estratégia de construir o suspense sem que isso signifique uma mera imitação. Embora ele tenha utilizado a estratégia de fornecer informações gradativamente ao longo do texto, assim como a autora do conto motivador, isso não foi feito da mesma maneira, pois Lygia não deu nomes a todas as personagens, por exemplo, enquanto os alunos optaram por nomear as personagens, o que revela que se trata da internalização de um conhecimento sobre como construir o suspense. Assim, as pistas são dadas durante o desenvolvimento da história (boneco macabro, noite de lua cheia, loja vazia etc) e contribuem para a instalação do clima de suspense. Outra diferença, assim como a autora do conto motivador personificou o esqueleto e as formigas, na narrativa há a personificação do boneco; porém, isso se constrói em outro nível de complexidade, pois além de nomeá-lo (Jason), os alunos lhe conferem ações mais próximas de ações humanas: o boneco fala, ri e interage com o seu criador. Ou seja, eles não copiaram o texto motivador, mas o acesso às estratégias usadas e a percepção dos efeitos provocados permitiu-lhes construir as próprias estratégias. O uso das letras em caixa alta dentro do discurso direto “QUEM ESTÁ AÍ? ME DEIXE EM PAZ!” (linha 19) reforça o grito anunciado pelo verbo gritou (linha 18) e acrescenta desespero à ação de Seu Bernardo. Já o desfecho adiciona suspense à história porque dá ideia de continuidade e isso nos pareceu intencional. Não se trata de uma narrativa sem desfecho, como comumente encontramos nos textos produzidos pelos alunos nesse nível de ensino, mas da escolha por um desfecho aberto para provocar um efeito no leitor. O uso dessa estratégia no texto remete ao conto motivador, porém não se trata de imitação, os alunos têm um modo próprio de desenvolver a narrativa, isso nos permite defender que o texto literário constitui uma possibilidade de ensino de escrita criativa. Os alunos percebem as estratégias utilizadas pela autora do conto lido e os efeitos de sentido produzidos 153

por elas e, a partir desse reconhecimento, podem desenvolver um modo de dizer próprio. Assim, eles não fazem uma atividade escolar para adquirir apenas uma nota, mas mobilizam conhecimentos adquiridos em torno do que querem comunicar e conseguem traçar estratégias para fazê-lo. Vejamos outra produção. Transcrição M2.3: A criança amaldiçoada 1 Eu era mais novo quando aconteceu algo aterrorizante comigo. 2 Da minha casa. eu olhava todo dia para uma janela perto e todo dia eu via uma velha branca, de 3 cabelos brancos, de olhar vesgo, boca sem dentes. Eu nunca tinha prestado atenção, mas naquele 4 dia notei que a velha me olhava com um olhar estranho daquela janela. Um dia, saí para passear num parque que ficava a uns dois quilômetros da minha casa. Eu já 5 voltava do passeio, cansado, e me deitei no chão para descansar. Olhei para a janela de sempre, agora 6 de outro ângulo, e a velha estava lá me olhando. Passou um carro, atrapalhando a minha visão, e 7 quando ele se foi, voltei os olhos para a janela novamente e a velha havia sumido. Achei que era 8 coisa da minha cabeça e segui pra casa. 9 Um dia apareceu uma menina diferente na minha rua, com cabelos curtos e usando uma saia. 10 Quando fitei meus olhos nela, vi que falava com alguém enquanto me encarava. Achei que, mais 11 uma vez, era coisa da minha cabeça. 12 Mas, numa noite qualquer, escutei gritos. Ouvi que meu pai e minha mãe também acordaram. Saí 13 do quarto para encontrar com eles no corredor, mas o que vi foi uma criança e um corpo no chão. 14 Na rua, a criança estava com as mãos cheias de sangue. 15 Eu, aterrorizado com a cena, desmaiei antes mesmo de qualquer reação. Na manhã seguinte, 16 quando acordei, eu estava na minha cama. Então, dei um pulo, lembrando da noite anterior e olhei 17 para a rua. Não havia criança ou corpo ou qualquer marca de sangue. Também não havia ninguém 18 em casa. Só havia a janela de sempre, de onde a velha misteriosa gritou: 19 ̶ A criança amaldiçoou você. 20 Eu estava tremendo de pavor. Então, para distrair a minha mente, liguei o meu computador. 21 Quando acessei a internet, havia uma pesquisa sobre “a criança amaldiçoada”. A curiosidade foi mais 22 forte que eu, então eu li a lenda da criança amaldiçoada que dizia: quem vir a criança, escutará gritos 23 todas as noites... 24

O narrador em 1ª pessoa, anunciando que a história é aterrorizante, “Eu era mais novo quando aconteceu algo aterrorizante comigo” (linha 1), convida-nos à leitura e confere credibilidade à história. Feito o convite, o narrador caracteriza a personagem no trecho “via uma velha branca, de cabelos brancos, de olhar vesgo, boca sem dentes” (linhas 2 e 3) e essa caracterização contribui para instaurar o quadro aterrorizante, antes anunciado, que se repete até que um dia, marcando a complicação na sequência narrativa (parágrafo 3, linhas 5-9), um fato novo acontece, trazendo desequilíbrio. Pelo menos, é isso que o leitor pensa inicialmente, até que, no 4º parágrafo, surge uma outra personagem, conforme o trecho “Um dia apareceu uma menina diferente na minha rua, com cabelos curtos e usando uma saia” (linha 10), sem relação aparente com a velha sumida, introduzindo outra complicação à história. Podemos pensar que se trataria de um problema pontual na sequência narrativa sem continuidade. Porém, seguindo a leitura, podemos entender como uma estratégia criativa para manter a expectativa do leitor, o que pode ser comprovado 154

pelo uso da expressão “Achei que era coisa da minha cabeça” (linhas 8 e 9) retomada mais adiante, “Achei que, mais uma vez, era coisa da minha cabeça” (linhas 11 e 12). Essa retomada liga os dois episódios e garante a coerência. Continuando, outro elemento entra na história “um corpo no chão” (linhas 15). Talvez, o aluno quisesse ressaltar que fenômenos misteriosos eram comuns na sua vida, por isso citou a velha e a menina; porém, considerando essa intenção, seria necessário esclarecer melhor a relação entre um episódio e outro. Nesse caso, usar estratégias de articulação entre períodos e parágrafos favoreceria a construção de sentidos pelo leitor e não se trataria de mera questão estrutural, mas de uma questão relevante para conduzir a trajetória interpretativa do leitor. Esse é um bom exemplo de que a análise dos aspectos formais da língua colaboraria para a organização do texto. Mais adiante, a velha reaparece (linha 19) fazendo menção à menina (linha 20) e, agora sim, houve articulação de forma mais clara entre os episódios. Em seguida, o aluno chega ao desfecho do narrador-personagem, mas não revela o desenlace para a velha e a criança ou mesmo para os seus pais, mencionados uma única vez na narrativa. Embora entendamos que o objetivo talvez fosse provocar reações no leitor quanto ao final, as lacunas deixadas poderiam ter sido mais bem articuladas, a fim de colaborar para uma leitura mais eficiente. Apesar disso, o ambiente de mistério está construído, criativamente, através da caracterização da velha, da menina, da casa vazia, da descrição detalhada na cena do corpo ensanguentado e, finalmente, do desfecho que apresenta a lenda e retoma o título. Passemos à análise no próximo texto. Transcrição M2.4: A bruxa 1 O dia era chuvoso. Uma bruxa andava sozinha pela floresta quando encontrou, em uma das suas 2 armadilhas, uma menina. 3 A garota aparentava ter uns 12 anos, estava assustada e cansada. A bruxa, dando uma de 4 boazinha, disse que a levaria para a sua casa e a ajudaria a encontrar a sua família. 5 A bruxa cuidou dela, lhe deu comida e água e, desde aquele dia, passou a criá-la com a promessa 6 de, assim que desse, procurar a sua família. A menina estava mais animada e acreditava na 7 promessa. 8 Os dias foram passando. Passaram-se semanas, meses... A menina estava crescendo e a bruxa lhe 9 ensinou as técnicas de bruxaria. E, assim, elas passaram a viver como mãe e filha e a garota passou 10 de menina abandonada para aprendiz de bruxa malvada.

A narrativa se mostra rápida desde o início, sem muita caracterização para as personagens (bruxa e menina) ou para o espaço (floresta e casa). Isso fica implícito pelo emprego do período curto “O dia era chuvoso” (linha 1). A ambientação se restringe a um dia chuvoso na floresta (linha 1). Em seguida, notamos uma pista para a complicação através do trecho “dando uma de boazinha” (linhas 3 e 4). No parágrafo 3, a narrativa entra, aparentemente, em um momento de equilíbrio, conforme 155

notamos no trecho “A bruxa cuidou dela, lhe deu comida e água” (linha 5). A essa altura, embora não tenham sido fornecidas características físicas das personagens, o leitor conta com informações suficientes para desenhar um perfil psicológico delas: a bruxa é dissimulada e esperta, enquanto a menina é ingênua e isso se revela como um recurso interessante, deixando essas conclusões para quem lê. A passagem de tempo, representada por semanas, meses... (linha 8) também é rápida, assim como o desfecho: “E, assim, elas passaram a viver como mãe e filha e a garota passou de menina abandonada para aprendiz de bruxa malvada” (linhas 9 e 10). Porém, isso não chega a prejudicar a compreensão da história, porque, embora de forma mais condensada, comunica o que precisa comunicar. Notamos alguma influência dos contos de fadas pela presença da bruxa. No entanto, em oposição aos contos infantis nos quais a bruxa sempre se dá mal, a bruxa dessa história termina bem com a menina que passa a viver como sua filha. Ou seja, esse desfecho se distancia dos desfechos comuns, então podemos inferir que, por mais que as alunas tomem a própria história de leituras como referência, isso não acontece no intuito de imitar algum texto lido. Passamos agora à última narrativa. Transcrição M2.5: Skarllet 1 ̶ Rápido, a menina já vai nascer! A bolsa já estourou. A mãe está com muita dor. Temos que 2 pegar o bebê logo, antes que nos percebam! 3 Conversavam os dois homens suspeitos pelos corredores do hospital. Os verdadeiros médicos se 4 aproximaram do corredor e os dois intrusos se esconderam: 5 ̶ E agora, como vamos levar a criança? O tio é mesmo confiável? 6 ̶ Não sei. Talvez não tenha coragem de entregar a própria sobrinha para ser cobaia de 7 experimentos. Acho que esse cara quer nos passar a perna! 8 ̶ Ele não seria capaz! Nós temos um acordo. Combinamos que assim que a menina nascesse, ele 9 a entregaria para darmos início ao nosso projeto. Ele também tem seus interesses na nossa pesquisa. 10 Em uma sala, longe dali, um homem olhava para o relógio impaciente e andava de um lado para 11 o outro, freneticamente: 12 ̶ Droga! Isso está demorando demais! Será que minha irmã teve complicações no parto? 13 O homem estava preocupado, havia horas que sua irmã entrara na sala de cirurgia e nada de darem 14 notícias. Não sabia como contaria a ela que o marido havia morrido a caminho do hospital, em um 15 acidente de carro. Foi quando a porta se abriu, revelando um médico de semblante tristonho: 16 ̶ Sinto muito. Sua irmã não resistiu, mas sua sobrinha felizmente conseguiu sobreviver. É uma 17 garotinha linda e saudável. 18 A morte da irmã foi um baque para o homem que repensou o que fez e a negociação terrível pelas 19 costas da irmã. Esteve mesmo a ponto de ser cúmplice do sequestro de uma criança inocente, tudo 20 por causa da sua ambição? Essa pergunta o assombrava e o fazia se sentir um monstro. Mas ainda 21 havia um jeito de se redimir: criaria aquela menina, educaria e daria uma vida confortável e feliz para 22 ela. 23 Depois de uma semana inteira ignorando as ligações e mensagens dos cientistas com quem havia 24 quebrado o acordo, o homem finalmente foi buscar sua sobrinha na maternidade, disposto a 25 esquecer o passado e se dedicar àquela criança. Quem dera fosse tão fácil! Quando saiu do hospital 26 com a garotinha nos braços, dois homens apontaram seus revólveres para a cabeça deles: 27 ̶ Achou que quebraria nosso acordo e sairia impune, Conan? 28 ̶ Por favor, nos deixem em paz! Aquela ideia é loucura, não podemos fazer pouco caso de uma 29 vida em nome de nossa ambição! 30 Um dos homens riu e bateu palmas, sarcasticamente: 31 ̶ Muito lindo o seu discurso, mas se já acabou com as lições de moral, vamos levar a pirralha. 156

32 ̶ Vocês são loucos, ela não tem mais ninguém no mundo, estava sozinha, não posso deixar que 33 façam isso com ela. Não posso. 34 ̶ Tá bem, Conan. Nós te deixamos ir com a garota, mas vai ter que aplicar o vírus nela. 35 ̶ O quê? 36 ̶ Isso mesmo, será interessante ver o desenvolvimento do vírus fora do laboratório, vamos ver se 37 ele se adapta à hospedeira deixando-a viver como uma garota normal. 38 ̶ Mas, isso é... 39 ̶ Isso nada! É pegar ou largar: você decide! 40 ̶ Tudo bem ̶ suspirou derrotado. ̶ Eu aplico o vírus nela, vamos até o laboratório. 41 Os três homens foram. Conan aplicou o vírus na sobrinha. Haviam criado aquele vírus a fim de 42 descobrir sua reação no organismo humano. Acreditavam que o vírus mudava drasticamente o DNA 43 da pessoa infectada, tornando sua imunidade muito alta, seus reflexos fora do comum e sua 44 inteligência absurda. 45 Os cabelos da garotinha se tornaram azuis e seus olhinhos verdes expressivos ganharam um brilho 46 anormal. Era o vírus se manifestando no corpinho frágil da garota. Apesar de tudo, Conan estava 47 feliz pelo vírus não ter matado a garota e por ela estar bem. Um dia, se dirigiu ao cartório, para 48 registrar a menina: 49 ̶ Que nome colocará, senhor? 50 ̶ Skarllet, minha pequena Skarllet. 51 Conforme os anos iam passando, Skarllet crescia mais linda e encantadora. A garota tinha um aço 52 muito especial com Conan, que estava feliz por tudo ter ficado bem. Quando completou seus 53 dezesseis anos, fez um pedido a Conan: queria estudar em uma escola. Sempre havia estudado em 54 casa; Conan nunca a tinha deixado frequentar uma escola, dizia que era para protegê-la, mas ela 55 nunca soube exatamente de quê. Também nunca entendera o motivo de o seu cabelo ser azul; seu tio 56 disse que se tratava de uma rara anomalia genética. 57 Ela era super inteligente, super ágil e imune aos mais variados tipos de doenças, sinais de que o 58 vírus tinha se adaptado ao seu corpo, ou o contrário! Durante o seu primeiro ano na escola, todos os 59 professores se admiravam com o nível de conhecimento que Skarllet possuía. Não tinha amigos e 60 dizia que não precisava de nenhum. Sempre séria e reservada, conquistava muitos olhares por ser 61 dona de uma beleza exótica, mas nunca se apaixonara, queria seguir sem se apegar a nada e a 62 ninguém. 63 Sua vida ia bem, mas mudaria em uma tarde ensolarada de outono, quando receberia uma 64 ligação assustadora. A pessoa do outro lado lhe ameaçava: 65 ̶ Saiba que estamos de olho em você e quando chegar a hora, iremos atrás de você para roubar o 66 seu DNA. 67 Ela foi para casa atordoada. Quem seria aquela pessoa? Contou o ocorrido ao seu tio que ficou 68 perturbado e, num ato de desespero, decidiu que fugiriam do país. 69 ̶ O que está acontecendo, tio? Por que fugir? Foi só um trote, não há o que temer. 70 ̶ Sim, Skarllet, há sim. Eles querem te levar, querem extrair teu sangue e usar para produzir o 71 vírus que injetei em você quando bebê. por isso o seu cabelo é azul e você é super inteligente, ágil e 72 imune a doenças. 73 ̶ O quê? 74 A garota não acreditava no que acabara de ouvir. Então, era por isso que todas aquelas coisas 75 estranhas aconteciam com ela. Conan lhe explicou tudo sobre o vírus que corria em suas veias. Agora 76 fazia sentido... As semanas seguintes foram de tensão e mistério. Inúmeras cartas e e-mails 77 ameaçando a moça e a sua vida se transformou em um pesadelo. 78 Durante meses, mudaram de endereço, inclusive em outros países. Em uma das fugas, estavam 79 chegando no aeroporto quando foram abordados por cinco homens armados até os dentes: 80 ̶ Entregue a garota, Conan. Será melhor. ̶ ordenou um dos homens, apontando a arma para a sua 81 cabeça. 82 ̶ Vamos, Conan, não seja teimoso. Já vimos este filme antes e você sabe como acaba. 83 ̶ Não posso. 84 ̶ Se não pode, decida você, garotinha. Salvará inúmeras vidas, se vier conosco. Seu sangue poderá 85 ser a cura para várias doenças até então incuráveis. Você não é egoísta a ponto de se negar a fazer 86 isso, não é mesmo? 87 ̶ Não caia nos jogos mentais deles, Skarllet. 88 Mas ela, pela primeira vez, não sabia o que fazer. Ela era o motivo de toda aquela confusão e 89 resolveria do seu jeito. “A briga terá fim se o motivo da briga morrer”. Esses foram os últimos 90 pensamentos de Skarllet, antes de se atirar na frente de um carro que passava em alta velocidade. 91 Naquele dia, Conan chorou. 157

92 Chorou como nunca havia chorado em sua vida. Seria aquele um castigo dos céus? Será que 93 seus pecados foram tão graves para pagar tamanho carma? Devia ser isso mesmo! Talvez 94 merecesse mesmo sentir aquela dor; e talvez ela nem fosse suficiente. Skarllet foi um anjo em sua 95 vida, mas seu anjo partiu, deixando-o na terrível estrada da vida, na qual somos apenas passageiros.

Percebemos que o discurso direto ganha destaque desde o início do texto, sendo responsável pelo desenvolvimento de boa parte da história. Isso representa a escolha desse recurso como estratégia narrativa para organizar os diálogos que sustentam a construção do suspense. A linguagem mais informal empregada nos diálogos, como em “Não sei. Talvez não tenha coragem de entregar a própria sobrinha para ser cobaia de experimentos. Acho que esse cara quer nos passar a perna!” (linhas 6 e 7), em oposição à linguagem mais formal usada pelo narrador em 3ª pessoa, como em “Conversavam os dois homens suspeitos pelos corredores do hospital. Os verdadeiros médicos se aproximaram do corredor e os dois intrusos se esconderam” (linhas 3 e 4), demonstram maturidade dos alunos quanto à adequação da linguagem à situação e revelam a escolha da linguagem como recurso para provocar determinados efeitos de sentido. Notamos a introdução do suspense através do trecho “Sua vida ia bem, mas mudaria em uma tarde ensolarada de outono...” (linhas 52 e 53) e percebemos a intenção dos alunos de oferecer pistas ao leitor em relação aos rumos que a narrativa tomará. Em “Inúmeras cartas e e-mails ameaçando a moça e a sua vida se transformou em um pesadelo” (linha 63), as palavras cartas e e-mails contribuem para conduzir a expectativa do leitor. Porém, para quem já conheceu os responsáveis pela perseguição à personagem no trecho “Depois de uma semana inteira ignorando as ligações e mensagens dos cientistas com quem havia quebrado o acordo, o homem finalmente foi buscar sua sobrinha na maternidade” (linhas 20 e 21), o clima de mistério parece não se sustentar. E a escolha de um narrador-onisciente, que conhece os pensamentos das personagens, como em “Ela era o motivo de toda aquela confusão e resolveria do seu jeito. A briga terá fim se o motivo da briga morrer” (linhas 72 e 73), tem relação direta com o fato de esse clima de mistério não ser mantido, por já ter fornecido informações importantes ao leitor. Apesar disso, não temos uma falha na construção narrativa, mas uma estratégia complexa que mantém a atenção do leitor, porque o mistério é sustentado em torno do desfecho, que se mostrou surpreendente por se afastar do “final feliz” e ainda problematizou a questão das consequências das decisões de Conan (tio da protagonista), provocando uma reflexão ética muito pertinente, conforme o trecho “Chorou como nunca havia chorado em sua vida. Seria 158

aquele um castigo dos céus? Será que seus pecados foram tão graves para pagar tamanho carma? Devia ser isso mesmo! Talvez merecesse mesmo sentir aquela dor; e talvez ela nem fosse suficiente. Skarllet foi um anjo em sua vida, mas seu anjo partiu, deixando-o na terrível estrada da vida, na qual somos apenas passageiros” (linhas 76-78). Nele, o leitor é enredado pelo narrador através das suas perguntas retóricas. Identificamos no texto dois aspectos importantes: por um lado, a escrita é resultante das experiências de leitura do aluno, uma vez que ele mobiliza diferentes estratégias e demonstra a apropriação de recursos com base no acesso a diferentes modos de dizer; por outro, percebemos uma escrita pessoal e criativa que se afasta de tentativas de imitação do texto motivador e se utiliza de diferentes recursos para provocar efeitos de sentido nos leitores reais que, certamente, são envolvidos pela construção narrativa e se identificam eticamente, de alguma forma, com o desfecho. Essa narrativa é um bom exemplo de que, quando oportunizamos uma leitura mais complexa aos alunos através da leitura subjetiva e rigorosa do texto literário, as possibilidades de uma escrita mais complexa se ampliam e os estudantes podem desenvolver novas habilidades de escrita. em oposição aos textos utilitaristas do cotidiano e das mensagens instantâneas nas redes sociais. Concluímos o Módulo 2 e optamos por não iniciar o outro módulo na aula seguinte porque só tínhamos mais uma aula antes do recesso escolar; por essa razão, houve uma pausa entre os Módulos 2 e 3. Somente após o recesso, voltamos às oficinas. Isso foi muito positivo porque oportunizou um tempo para a retomada das notas de aulas e a consequente reflexão sobre o desenvolvimento do processo e a revisão. Passamos à experiência do Módulo 3.

5.3 A experiência do Módulo 3

Neste tópico apresentamos o Módulo 3, cujo conhecimento mobilizador é a articulação como recurso para o desenvolvimento dos acontecimentos. Como tivemos o recesso escolar entre os Módulos 2 e 3, entendemos que seria interessante, antes de retomar as oficinas, fazermos uma avaliação dos módulos concluídos e aproveitamos para discutir sobre atividades possíveis para o encerramento do projeto. Além disso, devolvemos os Diários que tínhamos recolhido para uma análise durante o recesso. A análise parcial nos permitiu avaliar o processo, pois dos 23 alunos que registraram 159

alguma dificuldade nas oficinas, 19 citaram os momentos de reescritas. Isso nos ajudou a pensar o Módulo 3. Nessa análise, foi possível identificar que o uso do Diário não se limitou à sala de aula.

Figura 44 - Diário 1/registro 6

Fonte: Diário 1 (2019).

No registro representado na figura, notamos que a aluna buscou outros recursos para se expressar, fazendo colagens, por exemplo. Essa atividade não havia sido proposta no Módulo 2 de que trata o registro. Isso significa que a aluna continuou fazendo os seus registros além da sala. A partir dessa constatação, pensamos em incentivar o uso de desenhos e colagens em alguma oficina do Módulo 3. Entregamos os Diários reforçando os objetivos e depois disso passamos à primeira Oficina.

5.3.1 Oficina Primeira leitura que toca

Para a Oficina de início do Módulo 3, listamos os seguintes objetivos: proporcionar a leitura subjetiva; desenvolver estratégias de recuperação de informações; analisar os diferentes modos de dizer usados no texto e a sua contribuição para a construção dos sentidos; reconhecer a intencionalidade na escolha de expressões/recursos; construir experiências éticas e estéticas. Iniciamos apresentando o título do conto motivador 3: “O dia em que explodiu Mabata-bata”. Solicitamos que os alunos registrassem no Diário as suas impressões quanto ao título, refletindo sobre qual seria o conteúdo do conto.

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Figura 45 - Momento de registro no Diário

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Após um tempo para esse primeiro registro, passamos à leitura do 1º parágrafo do conto, demos uma pausa pedindo que registrassem, em forma de desenho, as primeiras imagens que construíram do texto. Enquanto registravam, também comentavam oralmente a surpresa diante do conteúdo do parágrafo e como a explosão de um boi, com ossos e sangue voando para todos os lados, ganhou beleza nas palavras de Mia Couto. Só nisso, a escolha por uma leitura com pausas estratégicas já valeu a pena.

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Figura 46 - Diário 1/registro 7

Fonte: Diário 1 (2019).

Nesse registro, a aluna explora a linguagem não verbal para representar a imagem construída na leitura do 1º parágrafo do conto de Mia Couto. No desenho, vemos árvores, chifre e borboletas vermelhas. Seguimos a leitura com pausas estratégicas, nas quais a turma compartilhava suas percepções e sensações sobre a história e, concluída essa etapa, pedimos um terceiro registro no Diário, agora sobre as impressões gerais sobre o conto completo. Após o tempo para registro, passamos à discussão sobre o texto, provocada por perguntas da professora-pesquisadora: o que mais chamou a atenção? Há algum trecho ou elemento que possa ser associado a algum fato da sua vida? Esse momento de conversa sobre o conto foi muito produtivo. Notamos que o assunto que predominou nas falas foi a questão do analfabetismo, por isso perguntamos a cada aluno sobre o grau de escolaridade dos pais/responsáveis. Apenas uma das alunas respondeu que a mãe tinha concluído o curso de Pedagogia; três alunos responderam que um dos seus pais tinha 162

concluído o Ensino Médio; outros três disseram que o pai ou a mãe tinha concluído o Ensino Fundamental; dois afirmaram não saber e os demais, maior parte da turma, responderam que seus pais tinham parado de estudar antes de concluir o Ensino Fundamental. Apesar de termos iniciado esse momento compartilhando que havíamos sido a primeira da família a chegar à Universidade, tendo os pais sem o Ensino Fundamental completo, percebemos um certo receio neles em dizer que os seus pais não tinham estudado. Prova disso é que nenhum dos alunos admitiu que os pais fossem analfabetos, embora tenhamos a informação de que há o caso da mãe de um deles que não sabe assinar o próprio nome. Essa vergonha aparente em falar da baixa escolaridade dos pais só revela que eles reconhecem o papel social da escola. Depois de uma Oficina dedicada exclusivamente para explorar as possibilidades de leitura do conto, passamos ao relato da Oficina seguinte.

5.3.2 Oficina Na trilha interpretativa do texto

Na Oficina 2, os objetivos elencados foram: desenvolver estratégias de recuperação de informações; associar a relação entre as expressões usadas e as imagens criadas; identificar diferentes estratégias de marcar o desenvolvimento dos acontecimentos; reconstruir a trajetória narrativa do conto através de imagens. Iniciamos com a proposta do mapa interpretativo. Dividimos a turma em duplas, distribuímos o material e fornecemos as orientações, ressaltando que eles deveriam refazer a trajetória da narrativa através das figuras disponibilizadas.

Figura 47 - Mapa interpretativo

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). 163

Inicialmente, achamos que a proposta do mapa seria simples para os alunos; no entanto, à medida que a iniciamos, notamos a sua complexidade cognitiva, pois eles precisavam reler o texto, retomar informações em sequência, construir imagens mentais quanto aos acontecimentos da narrativa e representar as imagens construídas mentalmente de forma concreta, limitando-se às figuras disponíveis. Ou seja, era um exercício complexo que exigia várias habilidades.

Figura 48 - Momento da atividade do mapa interpretativo

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Nessa atividade, as duplas foram montando suas estratégias: i) uma das duplas reclamou porque não havia figuras de borboletas e moedas para eles usarem na trilha; isso mostra que a imagem mental mais forte para eles foi a da explosão do boi no início do conto. ii) outra dupla usou a estratégia de um aluno ler e ordenar as figuras primeiro para o colega ler e avaliar a sua ordem depois. iii) duas duplas estavam com dificuldade e se juntaram para reler o conto antes do mapa. iv) uma outra dupla lia o texto, procurava figuras que combinassem e vinha perguntar se estava certo; explicamos que não havia uma única sequência possível para as figuras, que a sequência dependeria das imagens que eles criaram enquanto liam; então a dupla mudou a estratégia e passou a observar as figuras e associar com algum momento do conto.

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Figura 49 - Mapa interpretativo produzido pelos alunos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Com exceção de duas duplas, todas estavam muito concentradas nessa atividade. Desse modo, o mapa interpretativo surpreendeu quanto às habilidades de leitura que exigiu dos alunos e da exploração de diferentes estratégias na construção de sentidos; além de ter sido uma atividade que agradou os alunos. Ao término, quando perguntados sobre o exercício, ouvimos: “gostei”, “muito bom”, “é uma atividade boa, mas quebra a cabeça”. Então, fizemos uma boa avaliação da proposta tanto pela complexidade cognitiva quanto pela aceitação dos estudantes. No final da Oficina, distribuímos e explicamos as orientações para a realização da atividade de vivências na oficina seguinte, conforme relatamos abaixo.

5.3.3 Oficina Projeção dos eus

A Oficina 3 se desenvolveu a partir dos seguintes objetivos: relacionar o texto com as experiências pessoais dos alunos; compartilhar, oralmente, as experiências éticas através de textos híbridos; valorizar as diferentes linguagens materializadas no hibridismo dos textos; incentivar a produção de narrativas do vivido. Para iniciar, perguntamos aos alunos quem havia realizado a atividade de vivências orientada na oficina passada. De acordo com o Quadro 12, os alunos poderiam entrevistar alguém próximo que não teve oportunidade de estudar; poderiam gravar um vídeo sobre a 165

importância da escola; poderiam montar um mural coletivo com imagens representando o trabalho infantil no Brasil; ou poderiam realizar uma roda de conversa com meninos que trabalham como carroceiros na feira livre da cidade.

Quadro 12 - Sugestões para atividade de vivências VIVÊNCIAS: ORIENTAÇÕES 1) Entrevistem um parente que não teve oportunidade de estudar. 3) Montem um mural coletivo usando imagens que representem o O que o impediu de ir à escola? trabalho infantil. As imagens podem ser: Como isso interfere ou interferiu na sua vida? De crianças trabalhando em diferentes funções. O que o impede de voltar a estudar hoje? De lugares que representem alguma ocupação ou trabalho. Que conselho ele daria para um adolescente que não gosta de estudar? De gráficos que demonstrem os números do trabalho infantil no Brasil. 2) Preparem um vídeo de, no máximo, 3 min, no qual todos do grupo Outras imagens que o grupo considerou relacionadas ao assunto. falem sobre a importância da escola. 4) Conversem com carroceiros da feira livre da cidade sobre: O que a escola representa para vocês? Quais são os aspectos positivos do trabalho? O que vocês mais gostam na escola? Quais são os aspectos negativos do trabalho? De que forma a escola participa da formação de vocês? De que modo o trabalho interfere nos estudos? Para vocês, a escola é um lugar de quê? Quais são os planos para o futuro? Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Apenas dois grupos tinham realizado a atividade proposta. Isso nos causou muita frustração porque eles demonstraram bastante interesse quando distribuímos as sugestões. Sobre os motivos prováveis para a não realização da atividade, pensamos que poderia estar relacionada ao fato de ter sido uma proposta em grupo e fora da escola, de modo que poderia ser difícil juntar os colegas para realizá-la. Dos grupos que conseguiram realizar a atividade, um apresentou, em cartaz, dados referentes à leitura e à escrita no Brasil, destacando a sua importância social; o outro grupo compartilhou oralmente a entrevista que realizou com a avó de um dos componentes, tratando dos motivos que a impediram de estudar e o que isso representou ou representa para a sua vida. Em sequência, solicitamos que todos registrassem em seus Diários as impressões sobre esse momento que, apesar de não ter tido a adesão da turma, foi relevante porque permitiu uma reflexão, ainda que rápida, sobre leitura e escrita como práticas sociais importantes. Continuando, distribuímos as orientações para a atividade de escrita e passamos à explicação da proposta por meio de um lapbook32, no qual destacamos passos importantes para construir um projeto de texto.

32 Lapbook é um recurso didático visual, o qual serve como uma ferramenta de revisão muito produtiva. Como os alunos não são crianças, optamos por fazer em forma de mapa conceitual. 166

Figura 50 - Mediação da professora através de lapbook

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Essa foi uma etapa muito boa da Oficina, pois percebemos os alunos concentrados, participando. Durante esse momento mais expositivo, buscamos usar como exemplos os contos que estudamos desde o início e, em especial, as narrativas produzidas por eles, a fim de posicioná-los como sujeitos que escrevem. Assim, ao falar de ambientação, de suspense, de personagens, buscamos ressaltar aspectos positivos das narrativas resultantes dos Módulos 1 e 2 e isso provocou maior interesse. É importante destacar que isso só foi possível porque já tínhamos realizado uma avaliação inicial das produções dos alunos, ou seja, se os textos estivessem guardados esperando o final do bimestre para serem lidos e avaliados sob o único pretexto de atribuir uma nota, isso não seria possível. Cabe falarmos isso porque há vários fatores que dificultam o acompanhamento contínuo e ágil das produções dos alunos por parte dos professores, tais como: a quantidade de turmas, o número excessivo de alunos por turmas, a falta de hora-atividade para planejar melhor as aulas e corrigir as produções com mais eficiência. Portanto, ler e avaliar os textos durante o processo foi fundamental para que fôssemos nos apropriando das histórias dos alunos para valorizá-las nesse momento e reorientando as deficiências apresentadas. 167

Logo após, iniciamos a produção textual, deixando a critério da turma se fariam individualmente ou em duplas. Alguns alunos optaram por fazer individualmente, mas a maioria permaneceu no formato de duplas. No final da aula, tínhamos orientado dois textos e encaminhado para a segunda versão; e quatro outros textos foram concluídos e aguardavam orientação. Dentre os textos concluídos, um era de uma aluna (ela optou por fazer individualmente) que nas outras oficinas de escrita apresentou muita dificuldade de fechar a produção dentro do tempo definido. Com isso, entendemos que, para ela, o processo de negociação é mais difícil e escrever sozinha é mais produtivo.

Figura 51 - Momento da escrita da primeira versão

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Ao término da Oficina, dos 23 alunos presentes, um estava desatento e não conseguiu escrever, uma aluna disse não querer fazer a atividade, mas os outros 21 alunos presentes produziram satisfatoriamente. Dando sequência, passamos à próxima oficina.

5.3.4 Oficina Da escrita para a reescrita

Para a Oficina 4, os objetivos previstos foram: mobilizar os conhecimentos na produção escrita; ampliar as estratégias de organização textual; desenvolver a escrita 168

significativa; projetar a subjetividade através de expressões/recursos próprios; estabelecer articulações entre períodos e parágrafos como estratégia para a construção de sentidos. A penúltima oficina iniciou com a apresentação da pauta, a fim de que pudéssemos gerenciar o tempo melhor, uma vez que já notamos nos outros módulos que os momentos de reescrita demoravam além do esperado. Seguindo, iniciamos o processo de orientação dos textos, dupla a dupla ou aluno a aluno (alguns preferiram fazer individualmente). Alguns estudantes estavam em 1ª versão, exigindo mais atenção, com uma leitura pausada e encaminhamentos; enquanto outros, já tinham passado por essa etapa e já estavam reescrevendo, precisando rever uma observação ou outra. No final desse momento, tínhamos cinco textos concluídos, em 2ª versão, e outros cinco no processo de reescrita pós-orientação. Então, demos início à segunda parte da oficina: recolhemos as produções concluídas, dividimos a turma em cinco grupos e distribuímos as narrativas para que cada grupo lesse e analisasse, segundo a ficha abaixo:

Quadro 13 - Ficha de avaliação ASPECTOS A OBSERVAR NA ESCRITA Explorou a linguagem. Organizou as frases e relacionou os parágrafos. Preocupou-se com a compreensão do leitor. Detalhou personagens, ambientes e fatos. Explorou a sequência dos acontecimentos. Marcou a passagem do tempo de diferentes maneiras. Escolheu o narrador pensando nos efeitos de sentido. Usou a própria realidade para criar novas situações. Causou expectativas no leitor. Deu um desfecho coerente à história. Provocou a imaginação e a emoção do leitor. Escolheu um título adequado. Usou o texto para expressar as emoções. Compartilhou experiências significativas. Releu o texto e fez as adaptações necessárias. Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Nos Módulos 1 e 2, os alunos foram incentivados a avaliar a própria produção. Nesse Módulo 3, eles avaliaram o texto de outro grupo. A ficha continha os mesmos aspectos para observação, então a expectativa era de que os alunos conseguissem fazer uma avaliação madura, sobretudo porque não se tratava mais do próprio texto. Visitamos cada grupo para nos certificar de que todos tinham entendido a atividade e, assim, eles começaram os jogos de leitura, a 169

reflexão sobre trechos, a formulação de hipóteses quanto aos sentidos. Optamos por não interferir na avaliação dos grupos porque entendemos que tal atividade traria maturidade para eles e desenvolveria diferentes habilidades, tanto em leitura, quanto em escrita. Já tínhamos trabalhado com a ficha de autoavaliação. Apesar de termos notado alguns avanços quanto à reflexão sobre a própria produção, entendemos que avaliar a produção do outro pudesse gerar outras habilidades. Dividimos os grupos com cuidado para que nenhum aluno tivesse que analisar o texto que produziu e percebemos que essa estratégia facilitou a reflexão. Nesse formato de avaliação, a participação foi maior, até porque manter o olhar crítico sobre o texto de outrem é mais fácil. As fichas voltaram com poucos itens assinalados como contemplados nos textos. Além disso, os grupos anotaram sugestões para melhorar as produções. Foi um exercício bastante proveitoso. Dentre os pontos não contemplados nos textos, os mais apontados pelos grupos foram aqueles relacionados ao leitor: “causou expectativa no leitor?” e “provocou a imaginação e a emoção do leitor?”. Isso revela que os grupos se posicionaram como leitores críticos diante das narrativas. Evidentemente que sempre há situações que interferem no trabalho educativo. Nessa oficina, alguns fatores atrapalharam: a grande circulação de alunos (inclusive de outros turnos) no corredor, para o ensaio da Banda Marcial da Escola; e a saída de alguns estudantes para participar do ensaio e do treino de atletismo. Apesar disso, foi uma oficina de muitas aprendizagens para a maioria. Enfim, vamos à última.

5.3.5 Oficina Compartilhando histórias, construindo experiências

Na Oficina 5, foram definidos os seguintes objetivos: analisar a adequação da linguagem à situação; reconhecer a escrita enquanto processo; fortalecer a autonomia dos sujeitos quanto à avaliação do próprio texto; compartilhar as narrativas produzidas; favorecer a construção de experiências éticas e estéticas. Para iniciar, retomamos rapidamente a nossa trajetória durante o projeto, relembrando os momentos de cada módulo. Apresentamos um cartaz com alguns dos mapas interpretativos que os alunos construíram na Oficina 3, destacando as relações que cada grupo fez entre as figuras e o desenvolvimento dos acontecimentos na narrativa.

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Figura 52 - Cartaz dos mapas interpretativos produzidos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Após esse momento, organizamos a sala em círculo e distribuímos as cópias do material contendo as 10 narrativas produzidas durante este último módulo. Iniciamos a leitura de cada texto e, à medida que concluíamos cada um, fazíamos uma pausa para ouvirmos o que os alunos tinham a dizer sobre a história. A maioria dos alunos presentes se mostrou bastante interessada em ouvir as histórias escritas pelos colegas, então foi um momento com uma participação considerável. Alguns textos provocaram risadas, outros provocaram espanto e outros geraram elogios. Por um lado, a intenção era terminar com leitura, assim como iniciamos. Por outro lado, a escolha de terminar com a leitura dos textos deles teve a intenção de posicioná-los como sujeitos de escrita. Essa etapa, na nossa opinião, reiterava a nossa defesa da concepção de leitura e escrita como práticas sociais complexas e indissociáveis. Lemos todas as produções e aproveitamos essa etapa para ressaltar a importância do título para os leitores. Assim, escolhemos títulos colaborativamente para as narrativas que ainda 171

não tinham. Foi uma experiência gratificante, enquanto docente, observar a cooperação dos alunos entre si. Questionados sobre as dificuldades no processo de escrita, os alunos responderam conforme o gráfico 6 a seguir.

Gráfico 6 - Dificuldades no processo de escrita

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Em primeiro lugar, de acordo com o Gráfico 6, 70% dos alunos apontaram a reescrita como a principal dificuldade enfrentada durante as oficinas. Isso mostra que, inconscientemente, eles ainda resistem para aderir à visão de escrita como processo. Em segundo lugar, com 15% do total, está o número de alunos que não declararam qualquer dificuldade; aparentemente, isso poderia ser um fator positivo, todavia observamos que esses alunos que não declararam as suas dificuldades correspondem àqueles que não têm feito os seus registros no Diário frequentemente ou àqueles que não estiveram presentes em todas as oficinas, o que prejudica a sua visão do processo de forma mais reflexiva e abrangente. Algumas respostas que nos surpreenderam foram: o barulho, citado por apenas um aluno, em uma turma considerada barulhenta; e combinar com o colega, resposta apontada por dois alunos como fator que dificultou o trabalho, pois sugerimos produções em duplas exatamente para facilitar o processo. Assim, o quadro a seguir resume as maiores dificuldades enfrentadas pela turma, referentes à escrita:

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Quadro 14 - Dificuldades no processo de escrita Total de alunos 27

Registros das dificuldades 23

Reescrita 19

Escrita em dupla 02

Tempo 01

Barulho 01

Fonte: Elaborado pela autora (2019).

Feito esse levantamento, demos continuidade, conversando sobre a organização do livro. Primeiro, listamos no quadro os nomes que os alunos iam sugerindo e fizemos uma votação da qual todos os presentes participaram; depois, agendamos o dia de tirar uma foto com todos para inserir no livro; em seguida, definimos um grupo de alunos responsáveis pelas ilustrações e outro pela digitação dos textos; após, projetamos os textos de apresentação do livro e de introdução dos capítulos para avaliação da turma que poderia sugerir alterações; por fim, levantamos ideias para a capa. Aproveitamos esse momento para explicar-lhes as etapas do processo de produção do livro: digitação, revisão, criação de capa e ilustrações, diagramação, revisão novamente e impressão. Conhecer esse processo também nos pareceu uma boa oportunidade de demonstrar que escrita é processo. Continuando, passamos ao planejamento do lançamento da Comunidade de leitores. Cada um dos cinco mediadores de leitura (eram três inicialmente, mas ampliamos para cinco) apresentaria um resumo oral da sua última leitura para estimular os outros. Na sequência, definimos uma programação prévia para o dia do lançamento do livro: apresentação do projeto, socialização de uma das narrativas produzidas e participação dos mediadores de leitura relatando a relevância do projeto para eles. Assim, concluímos a Oficina 5 do Módulo 3. 173

Passamos à análise de cinco das narrativas produzidas durante o módulo, para as quais usamos o código: M3.1, M3.2, M3.3, M3.4 e M3.5, sendo M3 referente a Módulo 3 e os números seguintes (1, 2, 3, 4 e 5) correspondentes à identificação dos alunos/duplas. Transcrição M3.1: O velho 1 Havia um velho que se chamava Dinho, ele bebia cachaça e chegava em cassa chumbado. Ele 2 tinha família e era bravo e não comprava alimento pra casa pois só gastava com bebida e 3 dependia da família pra comer. Esse velho era muito chato, pois sem fazer nada ele mexia com a 4 vizinhança sem ninguém fazer nada com ele mexia com todo mumdo. 5 Teve um dia que eu e meus amigos estávamos na calçada rindo com outras coisas ele pensou que 6 era com ele e nos ameaçou de morte. Isso se repetia todo dia. 7 Ele falou: 8 - Eu vou mata-lo. 7 dias depois ele veio de novo ameaçou e foi embora. Eu tive uma raiva tão 9 grande que eu não queria saber da família e pais, não queria saber de nada eu disse: 10 - Vou comprar uma bomba. No mesmo da hora 11:00 da noite fui lá com um isqueiro uma 11 bomba acendeu: PÁPÁ!!! O velho acordou assustado, o filho dele me viu correndo e foi contar a 12 minha mãe. Eu me lasquei, eu estava ferrado ainda bem que meu pai estava dormindo quem resolveu 13 foi ela no outro dia meu pai abriu a porta e disse: quem tava lá no na frente à mãe dele e ela comtaram 14 tudo ao meu pai, ai que eu me lasquei de verdade, pois meu pai quando chegou do trabalho eu 15 pensei que ia ser pior mais ele falou comigo tranquilho ele aproveitou que a janela estava aberta e foi 16 falar com ele. Meu pai me chamou e fez eu pedir desculpa ao velho e eu pede e eu falei pra ele pedir 17 desculpa pra mim, por ele ficar me ameaçando e foi isso tudo desculpado: eu na minha e ele na dele 18

Observamos, de início, a tentativa de caracterizar a personagem no trecho “Havia um velho que se chamava Dinho, ele bebia cachaça e chegava em cassa chumbado. Ele tinha família e era bravo e não comprava alimento pra casa pois só gastava com bebida e dependia da família pra comer. Esse velho era muito chato, pois sem fazer nada ele mexia com a vizinhança sem ninguém fazer nada com ele mexia com todo mumdo” (linhas 1-5), através de termos como chumbado, bravo e chato, por exemplo. Só então o aluno introduz o acontecimento que desencadeia a história: “ameaçou de morte” (linha 6). Notamos que o aluno tem alguma dificuldade de escolher como dar sequência à narrativa. Tal dificuldade fica evidente pelo uso das expressões “Teve um dia” (linha 5) e “Isso se repetia todo dia” (linha 6) dentro do mesmo parágrafo. A escolha parece não ser coerente, já que essas expressões se excluem, ou teve um dia para ocorrer o fato ou ele se repetia todo dia. Apesar dessa escolha que gera uma incoerência pontual, em seguida, por meio do discurso direto, o aluno introduz a expressão que reafirma a ideia de que a ameaça se repetia no trecho “veio de novo ameaçou” (linha 8). Um aspecto interessante a destacarmos é a forma como se dá a passagem do tempo no texto: “7 dias depois” (linha 8) e “No mesmo da hora 11:00 da noite” (linha 10) são construções que exemplificam a tentativa de fornecer informações exatas sobre o tempo. A nossa hipótese é que, de tanto falarmos sobre a importância de marcar o tempo dentro da 174

narrativa para a construção de sentidos, o aluno pode ter entendido que se tratava de um tempo cronológico exato. Outro aspecto a se destacar é o uso da palavra “PÁPÁ!!!” (linha 11) que, além de já chamar a atenção do leitor por ser uma onomatopeia, foi intensificada pelo emprego das letras maiúsculas e pelo uso do sinal de exclamação. Ou seja, há a intenção clara de enfatizar o termo, o que se confirma com a expressão seguinte “O velho acordou assustado” (linha 11). Embora o foco narrativo esteja em 1ª pessoa desde o início do texto, a partir da linha 12, notamos mais envolvimento do narrador-personagem com a história, como observamos no trecho “Eu me lasquei, eu estava ferrado ainda bem que meu pai estava dormindo quem resolveu foi ela no outro dia meu pai abriu a porta e disse: quem tava lá no na frente à mãe dele e ela comtaram tudo ao meu pai, ai que eu me lasquei de verdade...” (linhas 12-14). Por fim, o texto termina com uma experiência ética: “Meu pai me chamou e fez eu pedir desculpa ao velho e eu pede e eu falei pra ele pedir desculpa pra mim, por ele ficar me ameaçando e foi isso tudo desculpado: eu na minha e ele na dele”. O aluno compartilha a sua experiência e permite uma reflexão aos leitores. Vejamos outra análise. Transcrição M3.2: sem título 1 Estava indo passear em um parque de tarde, o céu estava sem nuvens, o sol brilhava como nunca, 2 o parque era bem bonito; inclusive, era cheio de árvores, tinha uma lagoa com água cristalina, que 3 lembrava diamantes sendo refletido pela luz. Fiquei encantada com um balancê cheio de musgo 4 em um grande e velho carvalho do lado da lagoa e havia flores amarelas ao redor. Uma paisagem 5 linda e encantadora para se apreciar... Fiquei um bom tempo lá. Já estava escurecendo e tinha que ir 6 embora. No portão, indo em direção ao carro, olhei para o lado e passava uma criança sozinha, 7 moradora de rua, pedindo esmola. Era um garotínho e aparentava estar com fome e frio e, naquela 8 noite, estava bem frio na verdade, principalmente para quem estava com roupas rasgadas, sujas e 9 velhas que aquela pobre alma usava. 10 Ele vinha em minha direção, enquanto isso, olhava o rosto triste e amargurado daquela inocente 11 criança. Ele me pediu dinheiro para comer algo. Sem reações, me afastei devagar e entrei no carro. 12 Olhando para trás, vi os olhos de decepção daquele pequeno, que tinha a esperança de ver algo para 13 comer ou uma família ou uma casa para chamar de lar. Fiquei muito culpada e chocada com a ação 14 desumana que fiz, porque tinha alguns trocados em meu bolso e não o ajudei. Fiquei pensando que 15 todos os dias essas pessoas são rejeitadas e excluídas de alguma forma pela sociedade. 16 Uma semana depois, fui para o parque de novo, bem alegre e filiz, por voltar àquele lugar, fiquei 17 a semana toda juntando dinheiro e levei um cobertor junto. Antes de entrar no parque com um 18 cobertor na mão e sete reais no bolso, fiquei procurando o garotinho e tinha uns outros dois moradores 19 de rua perto dali. Fiquei com experança de encontrá-lo de novo. 20 Pedi informação a um velho que era morador de rua, que tinha visto da última vez. Ele me contou 21 que o nome da criança era João Pedro e ele vivia com a avó, só que ela morreu fazia poucos meses. 22 Perguntei se ele tinha pais, só que o velho disse que os pais não queriam saber dele. Triste em saber 23 que ele estava só, sem ninguém no mundo para protegê-lo, perguntei onde ele estava. Ele me disse 24 que aquela pobre e frágil criança morreu atropelada após roubar um salgado da lanchonete 25 aqui perto. 26 Sem reações e assustada com o que aconteceu, dei o cobertor e o dinheiro ao velho. 27

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Nessa narrativa, o que chama a atenção do leitor no início é a forma detalhada com que caracteriza o lugar: “... o céu estava sem nuvens, o sol brilhava como nunca, o parque era bem bonito; inclusive, era cheio de árvores, tinha uma lagoa com água cristalina, que lembrava diamantes sendo refletido pela luz. Fiquei encantada com um balancê cheio de musgo em um grande e velho carvalho do lado da lagoa e havia flores amarelas ao redor. Uma paisagem linda e encantadora para se apreciar...” (linhas 1-5). Notamos que a aluna se detém na ambientação empregando uma linguagem bem subjetiva e isso colabora para que o leitor construa imagens mentais sobre o ambiente da história. Essa aluna, provavelmente, entendeu a função da caracterização do espaço na narrativa. Somente após caracterizar detalhadamente o ambiente, entra em cena a figura de uma criança no trecho “No portão, indo em direção ao carro, olhei para o lado e passava uma criança...” (linha 6) e as atenções se desviam para a sua caracterização: “...sozinha, moradora de rua, pedindo esmola. Era um garotínho e aparentava estar com fome e frio e, naquela noite, estava bem frio na verdade, principalmente para quem estava com roupas rasgadas, sujas e velhas que aquela pobre alma usava” (linhas 7-9). Isso envolve o leitor porque lhe permite construir imagens também do garoto. Destacamos que não se trata apenas de caracterizar a personagem para corresponder à construção mínima da narrativa, mas do trabalho com a linguagem, explorando as suas sutilezas nas sequências escolhidas de forma muito particular e criativa para provocar certos efeitos. No parágrafo 2, a forma como a narradora-personagem se coloca na história, como quem olha para o menino e se comove, mas não tem reação prática, pareceu-nos representar um comportamento comum na nossa sociedade e, nesse sentido, o texto nos permite uma reflexão ética complexa sobre a sensibilidade na contemplação da natureza no parágrafo 1 e, em oposição, a insensibilidade na falta de empatia para com a criança pedinte. Por isso, podemos afirmar que a narrativa M3.2 atendeu à proposta de narrar histórias vividas ou presenciadas com êxito pois, tal qual o conto motivador de Mia Couto, proporcionou uma autoavaliação ética em quem lê, assim como em quem escreve, conforme notamos no trecho “Fiquei muito culpada e chocada com a ação desumana que fiz” (linhas 13 e 14). Isso, porém, não representa a imitação inconteste do conto motivador. Esse ponto da história remete o leitor ao desfecho e, se o fosse, já representaria um texto muito interessante. No entanto, a aluna retorna ao parque, agora preparada para ajudar a criança. Então, o desenlace desvia-se do “final feliz” que o leitor espera, pois “aquela pobre e frágil criança morreu atropelada após roubar um salgado da lanchonete” (linhas 25 e 26). Nisso, mais uma vez, percebemos alguma aproximação com o conto motivador, cujo final foi 176

a morte do protagonista; entretanto, mantemos a opinião de que isso não se deu por imitação a um modelo de escrita, mas pela apropriação do texto que permitiu a visão das estratégias possíveis para um final realista (a vida nem sempre tem finais felizes) e envolvente. Vamos a outra narrativa. Transcrição M3.3: sem título 1 Os dias daquela pequena menina eram tristes e sem cor. Seus olhinhos de boneca refletiam a 2 solidão e a amargura que há tanto tempo estavam trancados em seu coração. Sua infância havia sido 3 esmagada, assim como seus sonhos, que antes eram coloridos, mas agora eram preto e branco. 4 No dia em que a vi pela primeira vez, estava sozinha, isolada no canto da sala de aula. Assim 5 que fitei sua expressão tristonha, senti que a sua alma gritava silenciosamente por socorro. 6 Queria me aproximar e ajudá-la de alguma forma, mas nunca tinha coragem. 7 Até que um dia, vencida pela curiosidade que me assombrava, resolvi conversar com a garota que 8 tanto me intrigava. Naquele dia sentei á próxima e puxei assunto, mas não parecia me ouvir; ela 9 estava distante, pensativa, seus olhos se encheram de pesadas lágrimas que caíam sem parar. 10 Era como se aquilo aliviasse seu sofrimento, então eu só perguntei se ela queria conversar. 11 No fim da tarde, antes de irmos pra casa, ela se abriu comigo, e falou tudo o que sofria dentro de 12 casa: sua mãe a maltratava sem nem ter motivo. Eu fiquei horrorizada com aquilo. Na época, eu não 13 entendia como uma pessoa podia fazer coisas assim com um ser tão inocente? Na verdade eu, até 14 hoje nunca entendi isso. 15 Nos dias seguintes nos tornamos grandes amigas, e ela passou a desabafar sobre tudo comigo. Foi 16 bom me tornar amiga dela, descobri que ela era muito legal e divertida. Houve um dia em que ela me 17 pediu pra nunca contar a ninguém sobre aquilo porque ela tinha medo da mãe. Eu nunca falei nada 18 em respeito a ela, mas acabei me sentindo culpada por isso. No outro ano minha amiga foi morar 19 com o pai em outro Estado e eu nunca mais a vi. Esse caso me mostrou até onde a maldade do ser 20 humano pode ir. E até hoje me sinto triste em saber que assim como aquela menina pequenina e frágil, 21 existem muitas outras crianças que sofrem com a violência dentro de casa. 22

A estratégia usada para caracterizar a personagem é muito interessante, pois foge da escolha mais comum de iniciar com um parágrafo de caracterização para depois introduzir a sequência narrativa. Nesse caso, a aluna optou por uma sequência descritivo-narrativa e foi descrevendo a protagonista à proporção que narrava, como se observa no trecho “Os dias daquela pequena menina eram tristes e sem cor. Seus olhinhos de boneca refletiam a solidão e a amargura que há tanto tempo estavam trancados em seu coração. Sua infância havia sido esmagada, assim como seus sonhos, que antes eram coloridos, mas agora eram preto e branco” (linhas 1-4). Comprovamos que isso foi um recurso intencionalmente escolhido porque, no parágrafo 2, ela segue com a mesma estratégia, como no trecho “No dia em que a vi pela primeira vez, estava sozinha, isolada no canto” (linha 5) ou na expressão “fitei sua expressão tristonha, senti que a sua alma gritava silenciosamente por socorro” (linhas 6 e 7), nos quais temos uma sequência descritiva (sozinha, isolada, tristonha) e narrativa (vi, fitei, senti), ao mesmo tempo, envolvendo o leitor na história. No parágrafo seguinte, a estratégia é mantida no trecho “ela estava distante, pensativa, seus olhos se encheram de pesadas lágrimas que caíam sem parar” (linhas 10 e 11). Também 177

observamos o seu cuidado em não fornecer o nome da menina ou maiores informações sobre ela, talvez para preservar a sua identidade. Isso nos permite inferir que se trata de uma aluna que já faz escolhas linguísticas muito maduras e que já apresenta um modo de dizer muito próprio. Continuando a leitura, notamos a projeção da narradora-personagem de modo mais incisivo no texto, conforme o trecho “Eu fiquei horrorizada com aquilo. Na época, eu não entendia como uma pessoa podia fazer coisas assim com um ser tão inocente? Na verdade eu, até hoje nunca entendi isso” (linhas 13-15), posicionando-se, inclusive, em relação à questão do abuso (Na verdade eu, até hoje nunca entendi isso). Ao se posicionar, ela abre a reflexão quanto a haver ou não explicação para o fato de uma forma interessante, como se confidenciasse ao leitor a sua posição de discordância e incredulidade. Então, a narrativa promove uma experiência linguístico-estética muito complexa, em virtude da escolha estratégica das construções e, ainda, permite uma densa experiência ética. Após conhecer a menina, ouvir a sua história e se tornar sua amiga, a narradora-personagem confidencia ao leitor que se sente culpada por nunca ter compartilhado a história com alguém e isso, de certa forma, cria uma relação de confiança entre narradora e leitor porque ao contar estabelece-se a aproximação. Por fim, o desenvolvimento conduz o leitor à expectativa de um final feliz. De acordo com o trecho “No outro ano minha amiga foi morar com o pai em outro Estado e eu nunca mais a vi” (linhas 19 e 20), a aluna opta por um desfecho em aberto e desconstrói a expectativa gerada. Na sequência, ela faz uma reflexão em torno da problemática levantada na narrativa, conforme o trecho “Esse caso me mostrou até onde a maldade do ser humano pode ir. E até hoje me sinto triste em saber que assim como aquela menina pequenina e frágil, existem muitas outras crianças que sofrem com a violência dentro de casa” (linhas 20-22) e conclui provocando a reflexão do leitor sobre o assunto. Com isso, fica implícita a sua intenção de, além de narrar um fato, denunciar uma prática comum no país e isso revela a sua compreensão de escrita como prática social dotada de sentido. Vamos a mais uma análise. Transcrição M3.4: sem título 1 Eu tinha uma prima de 14 anos. ela era linda. Seu cabelo era cacheado, a cor dos seus olhos 2 era um tipo de castanho claro. Seu pai e sua mãe se separaram quando ela tinha 10 anos e não 3 demorou muito para que a sua mãe arranjasse outro namorado e ele era estranho, tinha tatuagens 4 em todas as partes do seu corpo e o seu rosto parecia de um cadáver. Sua mãe falava que era 5 amor, mas eu achava que era só fogo mesmo. Enfim, o nome do seu padrasto era Alex, ele não tirava 6 os olhos de sua “filha” e ela tinha... medo dele. 7 Em um tal dia, sua mãe saiu para resolver umas coisas e a sua filha Alícia ficou em casa. Com o 8 seu padrasto Alecia foi tomar banho, seu padrasto foi no guarda-roupa dela futucar suas roupas... 9 Alecia saiu do banheiro e... se deparrou com aquela situação. Seu padrasto saiu do quarto dela sem 178

10 dar um piu. Ela estava sem entender nada as horasse passaram, já eram 23:06 da noite, sua mãe 11 estava dormindo, ele foi até o quarto de Alecia, observou ela um pouco e depois trancou a porta. 12 E foi daí que o inferno começou. Ele ameaçava ela todos os dias e tudo se repetia, ela não tinha 13 coragem de contar pra sua mãe por conta das ameaças. Seus amigos da escola perceberam que ela 14 estava muito quieta e não se comunicava com mais ninguém. Ela não se abria pra ninguém. 15 Até que depois de um tempo, ela resolveu contar para a sua mãe o que o padrasto estava fazendo 16 com ela. Sua mãe não acreditou e falou que era coisa da sua cabeça e tudo se repetia. Ela estava 17 sempre procurando por ajuda, mas ninguém acreditava nela. Até que um dia ela cansou de tudo 18 aquilo, cansou de seus problemas e, infelizmente, ela tirou a sua própria vida. 19 A vida é cheia de problemas e o mundo também. Tem seres “humanos” que são egoístas, não estão 20 nem aí para os problemas das pessoas. E se alguém tivesse escutado os seus problemas? Talvez Alecia 21 estivesse viva! Pois é... 22 Apesar de entendermos o quanto ela estava sofrendo, nada justifica a sua atitude, pois viver 23 sempre será a melhor escolha

O texto começa com a caracterização da personagem, “Eu tinha uma prima de 14 anos. ela era linda. Seu cabelo era cacheado, a cor dos seus olhos era um tipo de castanho claro” (linhas 1 e 2), e uma breve apresentação inicial de fatos que vão desencadear os acontecimentos, como a separação dos pais da menina, “Seu pai e sua mãe se separaram quando ela tinha 10 anos” (linha 2), e o envolvimento da mãe com um namorado, “e não demorou muito para que a sua mãe arranjasse outro namorado” (linha 3). Na sequência, a narradora em 1ª pessoa passa à caracterização negativa do namorado da mãe da prima, conforme o trecho “e ele era estranho, tinha tatuagens em todas as partes do seu corpo e o seu rosto parecia de um cadáver” (linhas 3 e 4), dando pistas de que o conflito maior da história giraria em torno dele. Continuando, a aluna usa as reticências para definir o que a sua prima sente em relação ao padrasto, conforme o trecho “não tirava os olhos de sua ‘filha’ e ela tinha... medo dele” (linha 6). Isso revela que ela percebe a pontuação como um recurso importante para gerar efeitos no leitor. Mais adiante, ela explora o vocabulário como recurso através do emprego da palavra futucar (linha 8) e da expressão dar um piu (linha 10). Seguindo a leitura, percebemos que o momento do abuso propriamente dito não é narrado. A aluna escolheu bem as palavras para tratar do assunto: “observou ela um pouco e depois trancou a porta. E foi daí que o inferno começou” (linhas 11 e 12) e empregou o termo inferno, deixando a cargo do leitor acionar o repertório de conhecimentos de mundo sobre os inúmeros casos de abuso envolvendo padrastos e enteadas no país e chegar às conclusões sobre o que aconteceu. Nos períodos seguintes, ameaça e medo de contar à mãe reconstroem o cenário comum em tantos lares no Brasil, revelando as experiências de quem escreveu sobre a problemática. Isso se confirma adiante, na linha 16, quando a reação da mãe é apresentada (Sua mãe não acreditou e falou que era coisa da sua cabeça). Ou seja, quem narra os acontecimentos assim, 179

só o faz com base nas experiências que tem, sejam próprias e reais, sejam de outrem ou ficcionais. Diante desse contexto, o desfecho vem, de maneira trágica, ainda no antepenúltimo parágrafo: “Ela estava sempre procurando por ajuda, mas ninguém acreditava nela. Até que um dia ela cansou de tudo aquilo, cansou de seus problemas e, infelizmente, ela tirou a sua própria vida” (linhas 16-18). Os últimos parágrafos são dedicados à questão do suicídio, trazendo uma questão ética para o leitor, sobretudo para os possíveis interlocutores adolescentes. Podemos inferir que, para essa aluna, a escrita tem uma função social muito importante, pois escolheu uma abordagem considerada tabu para muitos: o abuso e o suicídio. Vamos à análise da última narrativa selecionada. Transcrição M3.5: sem título 1 Em um dia de domingo, mais ou menos umas 6:30, 7h da manhã, meu avô tinha comprado um boi 2 preto com branco. Justo nesse dia meu avô estava descendo uma ladeira segurando a sua corda, 3 então o boi teve um susto, não sabíamos basicamente o que era, mais meu avô soutou a corda e o boi 4 saiu correndo em direção a uma estrada de barro, cheia de lama, perto da fazenda do amigo do meu 5 avô. Lá perto havia um partido de cana-de-açúcar, depois de muito correr, o boi conseguiu chegar 6 ao canavial que já estava alto. Quando ele entrou, corremos atrás deles eu, meu pai e meu primo, 7 mas não conseguimos alcançar quando nós reparamos o tempo já era quase noite e lá vinha uma 8 tempestade enorme, então ficamos desesperados, sem saber de mais nada. 9 Nós sentamos de baixo de uma árvore com fome e com sede, quando olhamos pra plantação vinha 10 uma moto com dois caras, eles pararam e perguntaram se estava tudo bem. Meu primo disse que não. 11 - É porque um boi do meu avô se soltou e fugiu. 12 - Mas que boi é esse? 13 - É um grande, preto, com chifre transado. 14 - Esse boi estava ali em baixo quando nós vínhamos. 15 - Olha, gente, ele deve estar lá ainda. Vamos lá logo. 16 - Ele tava em que canto, moço? 17 - Ah, ele tava perto da pista, indo pro sítio de João Maria, vão lá logo. 18 - Tá ok, nós já vamos, obrigado, até mais. Tchau. 19 - Tchau. Vão com Deus e boa sorte. 20 Nós fomos embora, tentamos pegar um atalho mas não deu certo, por onde nós fomos tinha um 21 buraco enorme, não conseguimos passar e voltamos. Cada vez estava ficando mais escuro, quando 22 reparamos pro chão: tinha sangue. Meu avô começou a chorar, ficamos com medo. Continuamos 23 andando e achamos o boi do meu avô. Ele ficou feliz, mas quando olhamos a cabeça dele estava 24 sangrando, não sabíamos o que tinha acontecido direito, ele estava fraco de mais não conseguia se 25 levantar. Meu primo ligou pra meu amigo pra chamar um carro, mas quando o carro chegou, era tarde 26 e o boi teve um triste fim: ele tinha perdido muito sangue, não aguentou e acabou morrendo. Meu 27 avô chorou muito, era o boi mais caro dele. E assim, sem saber o que tinha acontecido com o boi, 28 nós terminamos nossa história. 29

Como no texto motivador, a narrativa gira em torno de um boi, conforme o trecho “meu avô tinha comprado um boi preto com branco” (linhas 1 e 2). Como no conto de Mia Couto em que o boi era o mais querido do tio Raul; na narrativa, o boi era muito importante para o avô do narrador, como mostra o trecho “Meu avô chorou muito, era o boi mais caro dele” (linha 28). Assim como no texto motivador em que os bois sobreviventes vão para o meio 180

do mato, o boi da história entra no canavial. E em ambos os textos, o boi morre. Como notamos, são várias as semelhanças entre as duas narrativas. Porém, os alunos não se limitam a imitar a história lida, pois acrescentam ao texto vários elementos que marcam a experiência deles. Um exemplo disso é a presença do canavial no trecho: “Lá perto havia um partido de cana-de-açúcar, depois de muito correr, o boi conseguiu chegar ao canavial que já estava alto. Quando ele entrou, corremos atrás deles eu, meu pai e meu primo, mas não conseguimos alcançar...” (linhas 5-7). O emprego do termo “partido de cana” demonstra uma marca local, já que moramos em uma cidade produtora de cana-de-açúcar, rodeada por canaviais por todos os lados. Os alunos inserem esse cenário na história, convidando o leitor a conhecer o contexto deles. Além disso, eles usam a imagem de dois homens em uma moto: “quando olhamos pra plantação vinha uma moto com dois caras” (linhas 9 e 10). Essa também é uma marca representativa do lugar onde vivem, no qual a motocicleta é o meio de transporte mais popular, inclusive nas áreas mais rurais, como no espaço onde se passa a narrativa. Como outro exemplo, há, ainda, o emprego de palavras e expressões bem comuns para nós, como: chifre transado, canto e pista. Tudo isso nos conduz ao entendimento de que os alunos não tomam o conto de Mia Couto como modelo de escrita, mas usam como uma referência para fazer as próprias escolhas. Embora notemos que os alunos apresentam dificuldade em desenvolver a história, podemos destacar qualidades positivas na produção também quanto à adequação da linguagem ao discurso direto. Outro ponto que demonstra criatividade e subjetividade dos alunos é a forma escolhida para terminar a história: após o desfecho com a morte do boi e o choro do avô, o narrador-personagem se aproxima do leitor por meio do trecho nós terminamos nossa história (linha 29), avisando que a narrativa acabou. Com essa última produção analisada, passamos ao relato da experiência do encerramento do projeto.

5.4 A experiência do encerramento do projeto

Neste tópico, relatamos a experiência de conclusão do projeto em dois momentos: o lançamento do livro de narrativas produzidas pelos alunos na Casa da Cultura da cidade e a apresentação do livro para a comunidade escolar.

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5.4.1 O lançamento do livro “Narrativas que florescem”

Por falta de espaço e recursos técnicos adequados, decidimos realizar o lançamento do livro “Narrativas que florescem” na Casa da Cultura da cidade. Além disso, essa era uma maneira de valorizar o trabalho da turma e dar maior visibilidade. Então, confeccionamos convites para pais/responsáveis e outros convidados (professores, representantes da Secretaria de Educação). Fizemos um levantamento de quantas pessoas, aproximadamente, estariam presentes, já que o local comporta um número limitado de pessoas. Produzimos um folder (disponível no apêndice) no qual apresentávamos o projeto e preparamos a encenação “O despertar do narrador”. Essa etapa de planejamento do evento também representou uma experiência importante, pois nenhum aluno nunca tinha participado do lançamento de um livro, então era algo novo para eles e precisamos conversar inclusive sobre a roupa e a postura mais adequadas para a ocasião. Também tivemos a preocupação de distribuir funções para todos que quisessem participar. Iniciamos a programação com uma sessão de fotos de todos os alunos assinando dois exemplares do livro que seriam doados à Biblioteca da Escola.

Figura 53 - Sessão de fotos

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Anunciamos a entrada oficial de cada aluno individualmente. Após a entrada de todos, solicitamos a presença da Gestão da Escola para uma foto com a turma.

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Figura 54 - Foto da turma com a Gestão da Escola

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Em seguida, passamos a fala para uma das alunas que seria a cerimonialista. Ela anunciou a presença do Secretário de Educação, agradeceu a presença dos convidados e convidou um colega para a leitura de um poema sobre a importância da leitura. Depois, ela convidou a professora-pesquisadora para a apresentação do projeto, então fizemos uma adaptação do contexto inicial, dos objetivos, da metodologia e dos resultados para a compreensão do público.

Figura 55 - Apresentação do projeto

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Na sequência, a aluna convidou os cinco mediadores de leitura para falarem o que o projeto representou para cada um. Nesse momento, fomos surpreendidas pelos depoimentos porque não havíamos ensaiado, eles falaram espontaneamente sobre como o projeto os ajudou a pensar leitura e escrita sob outra ótica.

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Figura 56 - Mediadores de leitura

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019). Foi uma experiência muito marcante, enquanto docente, atestar o protagonismo de alunos tão tímidos, de um bairro de periferia, dois deles de uma comunidade indígena. Apesar do nervosismo, eles estavam muito realizados pela experiência de produzir um livro coletivo. Dando continuidade, a cerimonialista anunciou a apresentação cultural “O despertar do narrador”. Tratava-se da encenação de uma aluna, representando o narrador que há adormecido em todos nós33, despertando do sono para compartilhar as suas histórias com outros.

Figura 57 - Encenação “O despertar do narrador”

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

33 Uma referência à Walter Benjamim (1996). 184

Na sequência, convidamos uma aluna que apresentava uma dificuldade acentuada em escrita e grande resistência ao processo de reescritas. Destacamos os seus avanços e entregamos o primeiro livro a ela. A intenção era que ela se sentisse valorizada pelo esforço em acompanhar as oficinas, embora fosse um desafio para ela e explicitar que leitura e escrita são atividades complexas. Esse momento foi muito emocionante, para ela, para a professora e para o restante da turma que reconheceu o seu empenho.

Figura 58 - Participação das alunas

Fonte: Acervo da pesquisadora (2019).

Depois disso, uma outra aluna veio à frente e leu uma das narrativas para os convidados: “Entre a beleza e a dureza da vida”. Enquanto ela lia, observávamos a reação dos demais alunos. Notamos que eles estavam muito orgulhosos por estarem apresentando o nosso trabalho. Para finalizar, a cerimonialista agradeceu a presença de todos, anunciou que a turma ficaria disponível para fotos com os convidados enquanto os exemplares seriam distribuídos e depois haveria um lanhe na área externa. Daí em diante, eles aproveitaram o momento fazendo fotos com a família, com a professora e os convidados.

5.4.2 A apresentação do livro para a comunidade escolar

Como a Casa da Cultura não comportava a comunidade escolar, realizamos o lançamento do livro “Narrativas que florescem” para os pais/responsáveis e convidados. Então, faltava ainda apresentar o livro para a Escola. 185

Embora todos já tivessem conhecimento da realização do projeto, entendemos que seria uma ótima oportunidade para ampliar o alcance dos resultados. Começamos com a distribuição de exemplares do livro para todos os funcionários da Escola, inclusive dos outros turnos (além do vespertino) no dia seguinte ao do lançamento. Notamos satisfação em muitos colegas pela conquista da turma, considerada uma turma “difícil” desde o 6º ano. Víamos professores e funcionários lendo o livro nos corredores, durante o intervalo. Alguns até comentavam uma narrativa ou outra que tinha lhes chamado mais atenção com a professora ou com os alunos participantes do projeto. Foi uma experiência singular notar que os adultos também estavam impactados com os alunos que viraram escritores. Para o evento no pátio, a programação consistiu na apresentação do contexto, dos objetivos e da metodologia do projeto de forma simplificada para que todos compreendessem. Aproveitamos a ocasião para divulgar os vencedores do concurso de fotos artísticas, uma atividade realizada na Oficina 3 do Módulo 2.

Figura 59 - Foto vencedora do concurso

Fonte: Dupla 2 (2019).

Os alunos da turma foram anunciados como os autores do livro e uma das narrativas foi lida: “O boneco de louça”. Em seguida, os dois exemplares assinados por todos os alunos 186

foram entregues à bibliotecária para compor o acervo da Escola. Vários alunos de outras turmas já estavam na fila de empréstimo para ler. Se queríamos construir experiências de leitura e escrita com os alunos do 8º ano B, acabamos por construir também com os demais sujeitos da comunidade escolar. Concluída a etapa de relato das experiências do vivido e de análise das narrativas, passamos às considerações finais.

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6 AFINAL, POR QUAIS PORTOS HAVEMOS DE PASSAR?

Nesta seção, tratamos das considerações a que chegamos com a intervenção, assim como às conclusões das análises feitas. A nossa proposta de intervenção surgiu da observação de uma problemática real em uma turma de 8º ano do EF de uma escola pública, na cidade de Goianinha/RN. O trabalho partiu de duas questões: i) A exposição excessiva aos textos de linguagem mais objetiva e de comunicação instantânea, disponíveis em aplicativos nos meios digitais, exerce alguma influência na produção escrita dos alunos do Ensino Fundamental?; e ii) O acesso ao discurso literário e às experiências dos autores dos textos lidos, através da leitura de narrativas literárias, pode favorecer o desenvolvimento de uma escrita mais proficiente? Para tais questões, formularmos as seguintes hipóteses: i) Há relação entre o excesso de exposição aos textos de linguagem objetiva e de comunicação mais imediata nas redes sociais e a superficialidade das construções narrativas dos adolescentes no espaço escolar; e ii) O acesso à experiência dos autores das narrativas literárias lidas pode potencializar o processo de formação leitora dos estudantes e, consequentemente, o desenvolvimento da escrita subjetiva criativa. Considerando essas hipóteses, tínhamos como objetivo geral construir experiências significativas de leitura literária a partir do acesso às experiências dos autores dos textos lidos, a fim de que, tendo o que dizer, os alunos desenvolvam satisfatoriamente a escrita de forma subjetiva e criativa. Optamos por alcançá-lo através dos seguintes objetivos específicos: i) Diagnosticar as práticas de leitura mais recorrentes para os estudantes e o impacto dos textos de comunicação imediata nas redes sociais na sua construção narrativa; ii) Analisar os diferentes modos de dizer dos autores das narrativas lidas e suas implicações na construção de sentidos pelos alunos; iii) Promover produções escritas de narrativas literárias valorizando as experiências dos estudantes. O objetivo de diagnosticar as práticas de leitura mais recorrentes entre os alunos está relacionado à nossa hipótese de que haveria relação entre a escrita superficial em sala de aula e a exposição excessiva aos textos de linguagem objetiva de comunicação imediata nas redes sociais. Quanto a isso, a partir da aplicação de três instrumentos diagnósticos (o questionário, a narrativa escrita inicial e a autobiografia de leitor), chegamos às seguintes conclusões: • Os estudantes colaboradores da pesquisa tinham a internet como principal bem cultural; chegavam a usar a internet por até 6h diariamente; as redes sociais eram a ferramenta mais acessada; as principais práticas de leitura e escrita no espaço virtual eram textos híbridos, 188

como memes, fotos e vídeos; os textos verbais escritos mais longos eram evitados pela grande maioria; • Na produção narrativa escrita, os alunos optavam por textos curtos, sem desfecho ou de desfecho brusco; não exploravam suficientemente os recursos linguísticos disponíveis; apresentavam uma tendência de imitar textos de autores de referência; empregavam, frequentemente, a estrutura de períodos simples usada nas mensagens de comunicação imediata; • Na história de leituras, a leitura de obras integrais não era a primeira opção para eles; muitos declararam não gostar de ler; as preferências do grupo eram por mangá, Histórias em Quadrinhos, poemas e histórias curtas, demonstrando claramente que eles optavam por textos mais visuais. Diante disso, as experiências de leitura e escrita construídas pelos alunos nos espaços virtuais têm relação com a leitura e a escrita em espaço escolar. Os objetivos de analisar os diferentes modos de dizer dos autores e suas implicações na construção de sentidos e produzir narrativas literárias valorizando as experiências dos estudantes estão associados à hipótese de que o acesso à experiência dos autores das narrativas literárias lidas poderia potencializar o processo de formação leitora e desenvolvimento da escrita subjetiva criativa. Concernente a isso, analisamos registros nos Diários de leitura dos alunos e 15 narrativas produzidas durante os três módulos de oficinas e, a partir das análises, chegamos às seguintes constatações: • A interação com diferentes culturas e linguagens presentes nos textos motivadores lidos promoveu experiências linguísticas, éticas e estéticas pertinentes, assim como forneceu material para a escrita, já que só escreve quem tem o que dizer; • O conhecimento e a valorização de diferentes modos de dizer mobilizou experiências de leitura e escrita significativas e ampliou a segurança dos alunos para se expressar sem a preocupação de imitar um modelo; • A percepção sobre diferentes estratégias empregadas por quem escreve e diferentes sentidos construídos por quem lê conduziu a reflexão sobre quais recursos empregar na hora da escrita para provocar diferentes efeitos no leitor; • A projeção dos alunos na leitura e na escrita, de forma subjetiva, contribuiu para construir a concepção de leitura e escrita como práticas de participação social efetiva e, consequentemente, para a compreensão de leitura e escrita para além de atividades escolares; 189

• O acesso ao discurso literário ampliou as práticas de leitura e escrita dos alunos, para além daquelas utilitaristas com as quais eles já tinham contato em outros espaços sociais; • A leitura subjetiva e rigorosa e a produção textual com um interlocutor real favoreceram aprendizagens em relação aos aspectos formais da linguagem empiricamente, conferindo-lhes maior significado do que no método prescritivo de ensino. Diante disso, o contato com as experiências dos autores das narrativas literárias lidas potencializa o processo de formação leitora e o desenvolvimento da escrita subjetiva dos estudantes. Durante a intervenção, enfrentamos alguns entraves e não obtivemos o mesmo resultado com todos os estudantes, obviamente. Alguns avançaram mais e outros avançaram menos. Contrariando uma tendência comum de higienizar o trabalho, registrando somente os aspectos positivos da intervenção, optamos por registrar os entraves, a fim de reiterar a importância da reflexão docente sobre a própria prática e a necessidade de flexibilidade nas atividades planejadas. Entendemos que fatores como a dificuldade de concentração e/ou de trabalhar em dupla ou em grupo e a história de leituras anteriores geraram diferentes resultados entre os sujeitos. A ausência de visão de escrita como processo, implícita na resistência de alguns alunos em revisar e escrever novas versões para o mesmo texto, também se configurou como um entrave. Dois alunos, novatos na Escola, precisavam ser convencidos de que não deveriam iniciar outros textos nas oficinas de reescrita, mas que deveriam revisar e reescrever a 1ª versão. Outra situação que dificultou o andamento de algumas oficinas se refere à saída de alguns alunos para outras atividades escolares (ensaios ou treinos). Ressaltamos ainda a não realização de etapas que exigiam alguma atividade fora da sala de aula, como entrevista com algum parente sobre as consequências da falta de estudo, por exemplo. Outra dificuldade que devemos considerar na atuação docente para a intervenção foi a necessidade de devolutivas rápidas para as situações que surgiam nas oficinas. Como exemplo, destacamos a análise imediata das produções textuais entre as oficinas de escrita e revisão. Sem isso, dificilmente teríamos os resultados que tivemos. A celeridade no retorno dado aos alunos foi possível porque a turma era pouco numerosa, as produções foram principalmente em duplas e a professora-pesquisadora se dispôs a reduzir a sua carga horária, assumindo menos turmas durante a intervenção, para priorizar a pesquisa. Diante disso, ressaltamos que para obtermos resultados melhores na Educação Básica, além de formação adequada, é urgente melhorar as condições de trabalho dos profissionais. 190

Queremos ainda destacar os diferentes resultados obtidos com as três alunas com necessidades educativas especiais. Uma delas esteve presente em todas as oficinas, participou de todas as atividades e, embora seja muito tímida, conseguiu ampliar a interação com outros colegas da turma, além do seu grupo mais próximo; sua participação foi tão significativa que contribuiu com as ilustrações do livro. As outras duas alunas tiveram um número considerável de faltas e, quando estavam presentes, tinham alguma dificuldade em acompanhar a oficina; apesar disso, ambas estiveram presentes em pelo menos uma oficina de leitura e uma oficina de escrita e conseguiram contribuir, ainda que oralmente (no caso da aluna em processo de alfabetização), com uma das narrativas produzidas. Apesar dos entraves apresentados, os aspectos positivos se sobressaíram durante a intervenção. Um exemplo disso é o uso da linguagem empregada pelos alunos em textos de comunicação rápida em aplicativos e redes sociais (kkk, nam, tá) e recursos gráficos (onomatopeia, caixa alta) dentro do discurso direto, revelando a preocupação com a adequação linguística à situação. Outro exemplo é a tendência de usar um texto como modelo; isso nos pareceu um problema vencido nas últimas produções. Outro avanço diz respeito à autoestima dos estudantes, pois era uma turma desmotivada, com muitos alunos fora da faixa etária ideal, alguns com histórico de reprovação, e através do projeto pudemos presenciar algumas mudanças no comportamento de vários em relação à autonomia, à segurança e à motivação. Mais um ponto positivo resultante do projeto se refere aos valores de colaboração, tolerância e afetividade entre alunos e entre alunos e professora. Como resultado da pesquisa: i) identificamos maior autonomia na escrita em oposição à tendência de imitação dos autores de referência e uma escrita mais solta, mais livre, mais criativa e, assim, mais significativa; ii) observamos maior percepção quanto ao papel da caracterização do espaço e das personagens na produção de efeitos de sentidos, assim como maior preocupação com as pistas interpretativas ao longo do texto apontando para o desenlace e a redução considerável dos desfechos bruscos; iii) verificamos maior consciência em relação à função dos aspectos formais da linguagem na construção dos textos; iv) percebemos a valorização e a construção de experiências linguísticas, mas também estéticas e éticas, tanto individuais quanto coletivas; v) notamos que, quando oportunizamos práticas complexas de leitura subjetiva e rigorosa aos estudantes, em oposição aos textos utilitaristas do cotidiano e das mensagens instantâneas nas redes sociais, eles ampliam suas estratégias de escrita de maneira mais complexa, como vimos nas narrativas analisadas. Em se tratando de um trabalho na área de Linguística, vale destacar que adotar as narrativas literárias na nossa metodologia contribuiu substancialmente para a análise de 191

aspectos formais da língua. A pontuação, a grafia, a seleção vocabular, a concordância, a acentuação, a conjugação e os tempos verbais e os conectores foram objetos invisíveis de estudo em todas as oficinas (de leitura subjetiva, de leitura rigorosa, de escrita, de revisão e de reescrita). Dizemos objetos invisíveis porque não os abordamos em aulas de taxonomia. Não adotamos uma perspectiva prescritiva dos fenômenos da língua nem tampouco usamos o texto literário como pretexto para estudos gramaticais de frases ou trechos, mas apostamos na reflexão contínua quanto aos efeitos produzidos por palavras e construções, tanto durante a leitura, quanto durante a escrita/reescrita para construir experiências de leitura e escrita. Portanto, o trabalho com as narrativas literárias é uma possibilidade produtiva para o ensino de leitura e escrita no Ensino Fundamental, mas também pode ser adaptado para outros níveis da escola básica, pois favorece o desenvolvimento da autonomia, a projeção da subjetividade e a construção de experiências de leitura e escrita para além das práticas utilitaristas, em resposta à excessiva exposição dos alunos aos textos de comunicação imediata nas redes sociais. Além de contribuir para a organização narrativa focada nos recursos e seus efeitos e não apenas na estrutura composicional do gênero discursivo.

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APÊNDICE A - AUTOBIOGRAFIA DE LEITORA

O meu nome é Bruna. Sou cristã, sou nordestina, filha, mãe, neta, esposa, irmã, amiga, professora, aluna. Na vida de interior no litoral agreste ou nos anos na capital Natal, nesses 39 anos de existir, vivi histórias de todo tipo que adoraria contar, fosse para alegria ou para lamentação. Mas me limito a falar agora das histórias que se cruzam com as minhas, todas misturadas num balaio de bambu liso de tiras finas e resistentes. Nasci numa família simples, filha de um assalariado da indústria e de uma costureira e dona de casa, ambos sem o Ensino Fundamental completo. Não tive uma infância cercada por livros, nem ouvi meus pais lerem histórias para eu dormir. Aprendi a ler, a partir do método tradicional de alfabetização; tinha 7 anos quando consegui juntar sílabas para formar palavras e juntar palavras para formar frases. Embora soubesse ler, a minha leitura se limitava a ler as lições do quadro e do caderno na escola, quase sempre com o objetivo de fazer alguma atividade; além disso, lia algum anúncio na TV, alguma placa na rua, algum rótulo de produto... Na minha escola de Ensino Fundamental I havia o dia da história e eu adorava aquele momento porque a professora abria um livro e nos contava narrativas de príncipes e princesas. E foi assim que descobri que os livros eram como guardiões dos mundos escondidos. E isso me interessava. Mesmo gostando deles, não faziam parte da minha vida fora da escola, pois não os tinha em casa. Descobri que no meu bairro havia um prédio com uma sala escura que abrigava um tesouro incalculável: era uma espécie de biblioteca desativada. Não sei por qual razão estava desativada, mas eu quis ir pedir livros emprestados. Não é que me emprestaram? Lembro-me de um deles, tinha uma capa colorida, com o desenho de uma flor abatida pelo frio. Enquanto falo, aquela capa se coloca diante dos meus olhos. Era o meu preferido porque tinha a palavra friorenta na capa e, como eu nunca tinha ouvido aquela palavra, achava engraçada, desajeitada, desafiadora. Com o tempo, deixei de visitar a sala escura, não lembro por que e deixei de ler. Passei a estudar em uma escola que exigia livros no Ensino Fundamental II. Eram vários: Matemática, Português, até de Inglês tinha! O que me chamou a atenção era um pequeno, com um cachorro na capa, “Um dono para Buscapé”. Fiquei imaginando como seria conversar com os amigos sobre as aventuras do cãozinho, mas me surpreendi quando a professora pediu que nós respondêssemos a uma folhinha que veio dentro do livro porque valia nota. Enfim, respondi direitinho, tirei uma nota bacana, mas nunca soube o paradeiro do Buscapé, nunca falei com os meus colegas sobre as aventuras do cachorro e achei que preencher aquela folhinha era um jeito de ler muito sem graça. Mudei de escola no ano seguinte, mas nessa não tinha livro não. De nada. Nem grandes com lições, nem pequenos com folhinhas. Que coisa angustiante não ter o que ler! Então, resolvi ler o único livro que tinha na minha casa. Ele era todo preto por fora, era grosso e eu pensei “como é grandão, vou ter o que ler por um bom tempo!”. Não tinha desenhos na capa e as letras estavam apagadinhas, nem dava pra ler o título, mas eu sabia o seu nome, Bíblia. Abrindo, não se encontravam desenhos de flores friorentas ou cachorros sem dono. Só letras. E letras bem pequenas, arrumadas em duas colunas. Vamos à leitura! Como a minha mãe vinha reclamando da conta de luz e eu não poderia acender uma outra lâmpada em outro cômodo só para ler, eu arrastava a cadeirinha de balanço azul para a frente da casa, onde havia um poste. Aproveitava a luz da rua e começava. Esse ritual se repetia todas as noites. Aquele livro não era como os outros, ele tinha outros livros dentro. Era como um livro pai de outros livros. Havia os filhos grandes, os filhos pequenos e os filhos bebês. Aquilo era incrível! Eram histórias de reis, guerras, amores, famílias... Já pensou que genial? Tinha de tudo! Eu não entendia bem tudo o que lia, mas seguia na missão. Depois de um bom tempo, finalmente concluí. Sensação estranha é terminar um livro, é um sentimento de solidão. De luto. Depois de mais de um ano juntos, agora eu estava sozinha de novo. Sem livro! Descobri um outro livro pela casa. Meu pai apareceu com ele porque estava como técnico de um time de futebol da cidade. Ele era amarelado. Sujinho. Feio. Sem figuras. Pontinhas comidas, por baratas talvez. Sobre as regras do futebol. Resultado: escanteio, linha de impedimento, tiro de meta... deixaram de ser um mistério para mim. Li tudinho e me tornei torcedora que não dorme sem ver os gols do Fantástico aos domingos. Uma vez ganhei uma rifa de um livro na minha escola. Uau, mais um companheiro de aventuras estava a caminho. Comecei a leitura e me confundi toda. Comecei de novo e me confundi mais uma vez. Não conseguia entender por que o livro começava falando sobre uns personagens e do nada mudava tudo. Li, mesmo sem entender e guardei o livro maluco numa estante. Sempre achei chiques as casas que tinham estantes de livros. Só pegava no livro maluco quando ia limpar a poeira; olhava a capa e lia “A palavra é... amor”, e pensava: “será que ele é sem sentido assim de propósito? Deve ser pra dizer pra gente que o amor é maluco, é... deve ser isso, então”. Anos passaram, mudei de escola novamente, agora já estava no Ensino Médio, já tinha descoberto o amor e sabia que era maluco mesmo, foi quando a professora explicou o que era conto na aula. Como num estalo, decifrei o enigma: o livro maluco era de contos, por isso as histórias mudavam, os personagens eram outros. Assim que cheguei em casa, abri-o e reli: que coisa maravilhosa! Meu livro tinha juízo! Já eu, apaixonada... No Ensino Médio, tive um professor de Literatura encantador que nos falava de livros e eu amava as aulas. Ele nos mandava comprar um livro a cada bimestre. Tínhamos que ler e apresentar um trabalho. Isso seria moleza pra mim, o problema seria comprar o livro. Meus pais estavam se separando, as coisas estavam diferentes na minha casa, tínhamos que economizar. Meu pai não deixava faltar comida, mas dinheiro para livro não daria. Então, eu pedia o livro dos colegas emprestado e, como todos tinham que ler também, era difícil alguém querer emprestar. A minha saída era ler nos intervalos. Era uma leitura apressada, feito atleta dos 100 metros, mas por isso mesmo era emocionante. Li o Dom Casmurro: imaginava uma Capitu simpática, divertida, com roupas esvoaçantes e felizes; e um Bentinho inseguro, franzino, silencioso, bobo, com roupas em tons pastel; é claro que aquilo não daria certo, e não deu (como eu e o meu primeiro amor)! Li O cortiço: o professor nos levou para visitar a comunidade do Mosquito para entendermos melhor o ambiente da história; uma experiência difícil de esquecer e desde então a exploração e a ganância passaram a ser substantivos concretos pra mim. Li Capitães de areia: leitura difícil para uma menina com formação cristã como eu, mas o estilo envolvente do me levou a ler Mar morto depois. Li Iracema: que canseira aquela descrição do Alencar me deu, só li porque era necessário, mas não recomendo a ninguém até hoje. Li Inocência: em poucos dias tracei o livro envolvida pela história de um amor proibido e, pela primeira vez, vivi o luto literário. Falando de morte, também li Morte e vida Severina: essa é uma obra especial pra mim, já reli algumas vezes e ainda me impressiono com as coisas escondidas que descubro cada vez que volto ao texto; nele, o peso da vida e da morte do nordestino é aliviado pelo ritmo revelado nas palavras. Li O pagador de promessas: no Zé do Burro com a sua promessa teimosa, a representação das culturas portuguesa e africana na nossa religião, da ingenuidade e simplicidade do povo e a reflexão sobre os nossos eus desconhecidos para nós mesmos. Li Os miseráveis: embora na edição adaptada, uma leitura questionadora, reflexiva, cheia de conflitos éticos internos. Como eram bons aqueles meus momentos de leitura, uma nova realidade dentro da minha dura realidade adolescente. Cresci amando os livros, concluí o Ensino Médio e logo me tornei professora de Português aos 17 anos. Nos meus primeiros anos de docência, uma decepção: eram tantos os conteúdos no Programa que eu deveria cumprir que não conseguia bons momentos de leitura com os meus alunos de 5ª e 6ª séries (atualmente, 6º e 7º anos). 196

Já na Universidade, li muitas coisas, mas algumas me marcaram, como: Casa Grande e Senzala, pela riqueza dos detalhes; A hora da estrela, pela quebra de expectativa; O crime do Padre Amaro, pela denúncia corajosa; Amor de perdição, pela reflexão sobre os limites do amor; A Bolsa Amarela, pela luta entre realidade e imaginação. Li Florbela Espanca, eternizada na voz do Fagner; Fernando Pessoa, homem de muitas faces; e Drummond, sempre atual. Mas na Universidade, as leituras mudaram de cor, eram mais teóricas, secas, sem muita vida. Parecia até que a minha forma colorida de enxergar os livros tinha sido um sonho. Anos mais tarde, como professora de Língua Portuguesa e Literatura, li Vidas secas, A hora e a vez de Augusto Matraga, Contos de amor novo, Comédias da vida privada, Cantigas de adolescer, Memórias Póstumas de Brás Cubas, A corrente da vida, Sempre haverá um amanhã. Lia para as aulas. E às vezes relia nas aulas, com os alunos. Não pedia para responderem àquelas folhinhas, queria que eles pensassem a leitura fora de uma gaiola, então normalmente nós conversávamos sobre os livros. Chegou o meu primeiro filho, o Gabriel, que hoje está com 19 anos. Ele nunca foi muito fã de leitura, ele até que me ouvia contando os contos de fadas, mas ele gostava mesmo era de contar as suas histórias baseadas naquelas que eu já tinha lido para ele. Então, eu ouvi centenas de versões do conto “Os três porquinhos”, o seu preferido. E era muito engraçado esse momento porque ele sempre começava: Era uma vez três porquinhos... e a partir daí brotavam histórias, com personagens de outras histórias misturadas. Depois, me tornei mãe da Ester, uma leitora insaciável até agora com 17 anos. Com ela eu aprendi a ler as sagas: ler um livro e esperar a publicação da continuação? Tenso. Era como se as personagens estivessem adormecidas por um tempo na nossa imaginação. Lemos A seleção, A escolha, A coroa e A herdeira. Quatro livros viciantes. Como ela tinha mais tempo que eu, sempre estava adiantada, então ficava me perguntando: já chegou na parte x? Quando eu não tinha chegado, respondia: sério? Acredito não que vai acontecer isso. Também lemos A culpa é das estrelas, Os treze porquês, O melhor de mim, O vendedor de sonhos, A menina que roubava livros, O menino do pijama listrado. Tudo por influência dela e/ou com ela. Como mãe de Samuel, de 11 anos, li Histórias da Bíblia, li e reli contos de fadas como A Branca de neve e O Patinho feio, que ele amava. Mas depois entramos noutro tipo de leitura, aquela que quer acompanhar o filme também ou vice-versa. Então, lemos João e Maria e depois vimos o filme. Vimos os filmes e depois lemos Detona Rauph e O pequeno Príncipe e sempre havia um momento de conversa para comparar livro e filme. Também lemos Diário de um banana, Polyanna, Vida com propósitos e, o mais recente, O menino que florescia. A maternidade me relembrou a delicadeza da leitura e eu passei a trabalhar poemas na sala de aula com mais sensibilidade. Nisso, recebemos visitas semanais de: , Camões, José Paulo Paes, Mário Quintana e tantos outros. As aulas de leitura passaram a ser as mais esperadas da semana e os alunos começaram a trazer também os poemas para compartilhar. Nós líamos e falávamos sobre os textos e pronto. Era suficiente. A poesia se garantia para aquelas turmas do 9º ano. Muitas vezes, foram as melhores aulas da semana porque podíamos colocar o nosso olhar sobre os poemas e as aulas tinham pedaços de nós. Dizem por aí que nós somos o que comemos; mas eu acho que nós também somos um pouco do que lemos. Não gosto de frio, como a flor friorenta. Amo os cachorros, como o Buscapé, e dei o nome de Maxon (personagem do livro A seleção) para o meu Shih Tsu. Acredito nos princípios cristãos, conforme os ensinamentos bíblicos e leio as cartas de Paulo até hoje. Sou apaixonada por futebol e odeio as baratas. Gosto tanto das histórias improváveis de amor que vivo uma. Sou sensível às injustiças. Tento ser otimista e manter a esperança como a menina Polyanna em um jogo diário do contente. E, assim, os livros têm muito a ver com quem sou e a cada nova leitura me sinto revisitada e pronta para me transformar novamente.

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APÊNDICE B - EDITAL DO CONCURSO DE FOTOS

I CONCURSO DE FOTOS ARTÍSTICAS Apresentação A professora-pesquisadora responsável pelo Projeto Experiências de Leitura e Escrita no E.F. torna público o Edital do I Concurso de Fotos Artísticas que tem como tema “Biblioteca: espaço de interação”. Público-alvo O I Concurso de Fotos Artísticas está direcionado aos alunos do referido Projeto, regularmente matriculados no 8º B – vespertino, da Escola Municipal Maria do Céu. Tema Como o tema geral é “Biblioteca: espaço de interação”, as fotos deverão ser tiradas em uma biblioteca (podendo ser a biblioteca da própria escola, de outras escolas ou da cidade), cabendo aos alunos inscritos a criação, a recriação ou a organização do espaço, a fim de evocar subtemas como: interação com os livros, com outras pessoas, com histórias, com culturas, com o passado, com lugares ou com autores etc. Objetivos Os objetivos do Concurso consistem em: • Reconhecer a biblioteca como um espaço de interação e promoção de aprendizagens; • Proporcionar a articulação das práticas de leitura e escrita desenvolvidas em espaço escolar com outras linguagens (nesse caso, a fotografia). Inscrição Os alunos deverão: • Organizar-se em duplas; • Escolher um nome para identificar a dupla; • Registrar a inscrição por meio do preenchimento de uma ficha de inscrição. Critérios Cada dupla participará com duas fotos que deverão ter um título. As fotos serão entregues à organização até o prazo definido, através de meio digital disponibilizado pela professora. Não serão aceitas fotos após o prazo; ou sem o título que as identifique; ou que sejam resultado de montagens ou que não sejam inéditas. Seleção Serão selecionadas 7 duplas para se submeter ao julgamento da Comissão e cada uma concorrerá com uma das fotos. A seleção levará em consideração aspectos estéticos da imagem, como: cores, foco e mensagem, além da adequação à temática e a originalidade. Cada um dos cinco itens terá valor de 0 a 2 pontos, totalizando 10 pontos. Julgamento As fotos serão julgadas por pessoas que tenham conhecimentos reconhecidos sobre Artes e Fotografia. A Comissão julgadora será composta por 3 pessoas que observarão os critérios de seleção para eleger os três melhores trabalhos. Resultado O resultado será divulgado nos murais da Escola Municipal Maria do Céu, segundo a premiação abaixo: 1º lugar: medalha de ouro 2º lugar: medalha de prata 3º lugar: medalha de bronze Disposições finais A organização decidirá sobre questões não contempladas neste Edital. As fotos de todos os participantes serão parte da exposição das ações do Projeto para a comunidade escolar, a ser realizado em local e data a definir posteriormente. Goianinha/RN, 10 de junho de 2019. Bruna Francinett Barroso Faustino de Souza Comissão julgadora Para cada um dos 5 itens, atribua uma nota de 0 a 2 pontos, considerando os níveis: 0,0 – não atende; 0,5 – regular; 1,0 – bom; 1,5 – ótimo; 2,0 – excelente. Avaliador: ______Dupla Cores Foco Mensagem Temática Originalidade Total

Ficha de inscrição

Nome da dupla: ______Aluno: ______Contato: ______Aluno: ______Contato: ______

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APÊNDICE C - FOTOS DO CONCURSO DE FOTOS ARTÍSTICAS

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ANEXO A - FOLDER DISTRIBUÍDO NO LANÇAMENTO DO LIVRO

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ANEXO B - LIVRO “NARRATIVAS QUE FLORESCEM”

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