UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

CAROLINA MARTINS DELDUQUE

TCHEKHOV E O ATOR BRASILEIRO: DO TEXTO À CENA

CAMPINAS 2018 CAROLINA MARTINS DELDUQUE

TCHEKHOV E O ATOR BRASILEIRO: DO TEXTO À CENA

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADORA: DRA. LARISSA DE OLIVEIRA NEVES CATALÃO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA POR CAROLINA MARTINS DELDUQUE, E ORIENTADA PELA PROF. DRA. LARISSA DE OLIVEIRA NEVES CATALÃO.

CAMPINAS 2018

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

CAROLINA MARTINS DELDUQUE

ORIENTADORA: DR(A). LARISSA DE OLIVEIRA NEVES CATALÃO

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. LARISSA DE OLIVEIRA NEVES CATALÃO 2. PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN 3. PROF. DR. CASSIANO SYDOW QUILICI 4. PROFA. DRA. MARIA SILVIA BETTI 5. PROFA DRA. CRISTIANE LAYER TAKEDA

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra- se no processo de vida acadêmica da aluna.

DATA DA DEFESA: 29/01/2018

À minha família, todo meu amor: Julietas, Augusto, Angela, Marcos e Gabriel.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pai e criador.

À minha família, meu porto seguro sempre.

À Fapesp, pelo apoio financeiro sem o qual esse trabalho seria inviável.

À minha orientadora Larissa, por seu olhar cuidadoso e amoroso, mas ao mesmo tempo exigente, fundamental à escrita da tese.

A todos Os Geraldos, minha família escolhida, que além de todo companheirismo na opção pela vida de grupo em teatro, colaboraram objetivamente com o trabalho: Douglas, por sua ajuda com o projeto, e sua assistência de direção em O Drama e outros contos de Anton Tchekhov; à Maíra, à Julia e ao Lucas pela coragem e generosidade de se aventurar comigo no Drama; à Paula, por estar sempre por perto, pelas discussões, por todas as ajudas com a elaboração e correção dos textos.

Aos atores e atrizes que gentilmente cederam seu tempo para conversar e dividir comigo seu amor a Tchekhov e ao teatro: Celso Frateschi, Analu Prestes, Emílio de Mello, Mariana Lima e Renato Borghi.

A Arman Saribekyan, por ter me apresentado um Tchekhov de forma tão amorosa e radical.

À Aline Olmos, pela parceria no projeto de montagem do Drama.

A Rodrigo Alves do Nascimento, pelas conversas sobre Tchekhov, livros e dicas de teatro russo.

Ao olhar e aos comentários da banca examinadora, especialmente a toda minuciosidade e provocações feitas por Cristiane Layer Takeda, que muito colaboraram no processo de finalização do trabalho.

Ao teatro, que me alimenta, me seduz e me faz viva.

RESUMO

Esta tese tem o objetivo de analisar como alguns grupos de teatro brasileiros colocaram em cena duas das mais importantes peças de Anton Tchekhov (1860-1904) – A Gaivota (1896) e As Três Irmãs (1900). Para tanto, dentro do contexto do teatro brasileiro moderno e contemporâneo, foram selecionados três espetáculos: As Três Irmãs (1972), do , direção de Zé Celso, Da Gaivota (1998), direção de Daniela Thomas, e Gaivota – tema para um conto curto (2006), direção de Enrique Diaz. Entendendo o ator como um elemento estruturante central da cena, a pesquisa foi apoiada principalmente em entrevistas e depoimentos de atores e atrizes que compuseram esses espetáculos, além de outros materiais usados nos processos de criação e resultantes do espetáculo, como: adaptação textual, gravação em DVD e críticas publicadas em jornais e revistas. A proximidade histórica entre Anton Tchekhov e Constantin Stanislavski – o primeiro a encenar as peças com maestria – fez desse encenador uma referência fundamental nesse processo de transposição para cena e, por isso, buscou-se também detectar rastros dessa relação nos referidos trabalhos. Por fim, a análise resultante trata do enfrentamento desses artistas brasileiros com essa obra dramática, buscando compreender os meandros, os aspectos gerais e aqueles detalhes mais sutis de como esse material dramático foi transposto para cena. Investigaram-se quais caminhos foram trilhados, metodologias de criação foram usadas e escolhas foram feitas para criar os espetáculos. Além disso, a tese traz o modo como os espetáculos foram recepcionados pela crítica e pelos estudos acadêmicos.

Palavras-chave: Anton Tchekhov; ator; teatro brasileiro.

ABSTRACT

This thesis analyzes how some Brazilian theater groups staged two of Anton Chekhov's most important plays - The Seagull (1896) and The Three Sisters (1900). In order to do so, within the context of modern and contemporary Brazilian theater, three plays were selected: As Três Irmãs (1972, Teatro Oficina), directed by Zé Celso, Da Gaivota (1998) directed by Daniela Thomas, and Gaivota – tema para um conto curto (2006) directed by Enrique Diaz. Understanding the actor as a central structuring element of the scene, the research was mainly supported by interviews and testimonies of actors and actresses who composed these plays, as well as other materials used in the creation processes and about the play, such as: textual adaptation, DVD and reviews published in newspapers and magazines. The historical closeness between Anton Tchekhov and Konstantin Stanislavski - the first to stage the pieces with mastery - made this director a fundamental reference in this process of transposition to the scene and, therefore, it was also sought to detect traces of this relationship in those works. Finally, the resulting analysis deals with the confrontation of these Brazilian artists with this dramatic work, trying to understand the meanders, the general aspects and the more subtle details of how this dramatic material was transposed to the scene. Were investigated which creation methodologies were used and what choices were made to create the plays. In addition, the thesis shows how the plays were received by critics and academic studies.

Key words: Anton Chekhov; actor; Brazilian theater.

SUMÁRIO

Apresentação 12

CAPÍTULO 1 - Anton Tchekhov em cena 17

As quatro grandes obras dramatúrgicas de Anton Tchekhov 18 Tchekhov e Stanislavski, uma relação inovadora entre texto e cena 26 A obra tchekhoviana e a referência stanislavskiana 31 Tchekhov e a cena brasileira: um grande desafio para os palcos nacionais 33

CAPÍTULO 2 – As Três Irmãs do Teatro Oficina, uma quebra em cena aberta 45

1. Antecedentes: o trabalho do ator nos primeiros doze anos do Teatro Oficina 45

A formação kusnetiana e o teatro realista 46 Dramaturgia nacional e liberdade antropofágica 48 Procedimentos do teatro épico com propostas antropofágicas 49

O encontro com o Living Theatre 51 A crise e o retorno ao trabalho com o texto dramático em As Três Irmãs 52

2. As Três Irmãs: o processo de criação da obra dramática 53

O texto de Tchekhov na tradução e visão de Zé Celso 53 A concepção cênica de Zé Celso 59 O trabalho com o texto à beira mar a partir de “viagens” com mescalina 62

O elo de ligação entre atores e personagens 65

3. O espetáculo 70

O espaço cênico e os objetos cenográficos como signos do tempo 71 A curta temporada: uma quebra em cena aberta 76

A estreia na visão da crítica 78

Comentários finais 83

CAPÍTULO 3 - Da Gaivota, um embate entre diferentes visões de teatro 85

1. Antecedentes: a adaptação dramatúrgica 86 A discussão estética na voz dos personagens 86 O uso de solilóquios 92

1. O processo de criação 94

Um jogo entre ficção e realidade 95 Gaivotas em voos livres - seis atores interpretando Tchekhov 99 O tom melodramático de Arkadina na pele de Montenegro 101 O tom de Frateschi: o apoio na palavra e no texto dramático 103 Torres e Nachtergaele: representantes de uma nova geração 106

3. O espetáculo 109

O conjunto das interpretações sob a ótica da recepção crítica 111 Comentários finais 115

CAPÍTULO 4 – Gaivota - tema para um conto curto: a materialidade do jogo 117

1. Antecedentes: as metodologias para o trabalho do ator 117

2. O processo de criação 121

O estabelecimento dos princípios para um grande jogo em cena 122 A dramaturgia reescrita na cena: uma criação dos atores e diretor 126

3. O espetáculo e sua recepção crítica 132

O uso da narrativa 132 O jogo com os personagens: revezamento de atores e atuação em coros 134 O processo de criação apresentado em cena 139 A relação inusitada com os objetos cênicos 144 O uso de recursos tecnológicos em cena 145 Comentários finais 147

Considerações finais 149

Referências Bibliográficas 155

Anexos 162

Anexo 1 - Transcrições de entrevistas 162

1. Celso Frateschi 162 2. Celso Frateschi (segunda entrevista) 169 3. Emílio de Melo 177 4. Renato Borghi 190 5. Mariana Lima 198 6. Analu Prestes 201

Anexo 2 - Depoimento de Arman Saribekyan 209

Anexo 3 - Dramaturgia O Drama e outros contos de Anton Tchekhov 210

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APRESENTAÇÃO

Uma das minhas primeiras referências de estudo sobre o trabalho do ator foi o livro A Preparação do Ator, de C. Stanislavski (1863-1938). Na época, tinha 14 anos, fazia teatro no grupo da escola e já pensava em seguir com o teatro de forma profissional. Ao ingressar no curso de graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em 2004, li seus livros e seu nome era uma referência constantemente citada principalmente na disciplina "A Gramática da Ação Física", ministrada pelo professor Roberto Mallet, no segundo ano do curso. Ainda estava no primeiro ano da faculdade quando tive meu primeiro contato com a dramaturgia de Anton Tchekhov (1860-1904). Cursava uma disciplina sobre estéticas teatrais ministrada pela professora Isa Kopelman, na qual um dos grupos de alunos fez algumas experimentações cênicas a partir do texto As Três Irmãs. Entretanto, àquela altura, não havia notado a grandeza do texto. No Mestrado, também cursado no Instituto de Artes da Unicamp, pesquisei alguns discípulos de Stanislavski que fizeram atualizações do seu Sistema e pudessem ser úteis ao ator contemporâneo. Ao estudar mais a fundo o Sistema desenvolvido por Stanislavski, observei o quão significativo foi seu encontro com o dramaturgo Anton Tchekhov: a partir da encenação de suas obras, o mestre russo iniciou e desenvolveu grande parte dos princípios e técnicas de seu Sistema de atuação. Foi a partir desse momento que me interessei, de fato, pela obra do autor. Fazia parte da proposta da pesquisa uma investigação prática que, por conta desse "casamento histórico", fosse baseada em uma dramaturgia de Tchekhov. A ideia era fazer experimentações cênicas com o texto a partir das derivações do Sistema estudadas na teoria. Como no início da pesquisa contava com um grupo de quatro mulheres, e já conhecia previamente o texto As Três Irmãs, optei por focar nessa obra. Durante esse período, participei das atividades promovidas pelo Centro Internacional de Formação em Artes Cênicas (ECUM), em 2010, em Belo Horizonte (Brasil), que trouxe vários mestres, professores e atores da Escola Russa atual. Dentre eles, Anatoli Vasiliev, encenador com reconhecida trajetória no mundo das artes cênicas, e Mikhail Chumachenko, aluno de Maria Knebel (1898-1995), discípula direta de Stanislavski. Ouvi e transcrevi todas as palestras ministradas por esses "mestres" e participei de um curso prático com Chumachenko, no qual foram abordados princípios do Sistema de Stanislavki em contato com a dramaturgia de A. Tchekhov. 13

Nessa ocasião, eu e mais alguns alunos fomos convidados pelo professor para participar de um curso semelhante, porém mais intenso, que seria ministrado por ele em Moscou, aberto para estudantes estrangeiros. Em maio do ano seguinte, eu e outros dois colegas fomos para Moscou participar do curso, que durou cerca de 15 dias. O fato de estar na Rússia, naquele clima frio, com um chá servido a todo momento, o rigor em chegar no horário das aulas, todas essas circunstâncias ofereceram uma experiência de contato direto com vestígios do contexto cultural em que Stanislavski criou seus exercícios e práticas. Grande parte dos exercícios era muito semelhante com alguns dos que fazíamos em aulas de interpretação e improvisação no Brasil, mas o jeito de ministrá-los e todo contexto eram muito distintos, o que me deu uma nova perspectiva sobre o estudo. Além de praticar exercícios do Sistema de Stanislavski, dedicávamos um período ao estudo do texto, com leitura, releitura e discussões acerca de cada detalhe das situações dramáticas, das circunstâncias propostas e dos personagens das dramaturgias. Especialmente pela condição de estrangeiros, escapavam-nos facilmente pormenores do contexto das histórias, que o professor buscava compor com detalhes capazes de mudar atmosferas e sentidos das cenas. É o que ocorre, por exemplo, na peça curta Um Pedido de Casamento (1888), quando o hipocondríaco Ivan Vassiliyitch chega à propriedade rural para pedir em casamento Natalia Stepanovna, que acabara de voltar da colheita e está em trajes de trabalho. Naquela época, segundo Chumachenko, eram comuns os pedidos de casamento após a colheita, no interior da Rússia. A moça, ao vê-lo, apesar de não saber o motivo da visita, acha que vai ser cortejada. O que ocorre, no entanto, é que ele quando se depara com aquela mulher naqueles trajes descuidados, acaba por falar sobre outras questões, inclusive mencionando ser de sua família uma parte da propriedade que ela julga ser da família dela, o que a leva a crer que ele não está lá para pedi-la em casamento, constatação que a deixa cada vez mais irritada. Essa informação de que ela acabara de voltar da colheita e de que aquela era uma época em que comumente ocorriam os pedidos de casamento na Rússia é um detalhe ao qual só temos acesso ao conhecer o contexto da época e do lugar. Com Chumachenko, aprendi que os textos de Tchekhov devem ser lidos muito devagar, prestando atenção a cada vírgula, cada particularidade que pareça estranha – é preciso parar para entender. Ou ir adiante e depois voltar em determinado ponto. E então ler novamente. O percurso do Mestrado deixou valiosas contribuições para meu trabalho tanto como atriz quanto como professora de teatro, formadora de atores. Constantemente uso as 14

descrições dos exercícios aprendidos com Chumachenko em ensaios, mas principalmente nas aulas de teatro que ministro. Mesmo com a bagagem dos cursos e estudos de metodologias derivadas do Sistema – como o método de Eugênio Kusnet (1898-1975) e a técnica de Mikhail Chekhov (1891- 1955) –, o resultado prático final das minhas experimentações não me deixou plenamente satisfeita. Por mais que tivéssemos encontrado maneiras de dar formas a alguns trechos da peça, alguns jeitos interessantes de se trabalhar com esse texto dramático de maneira verossímil, eu sentia que não tinha conseguido dar conta de toda potência cênica que residia em sua obra dramática: as emoções, as situações dramáticas tão bem costuradas, a comicidade, o simbolismo, os finais abertos. O que aconteceu é que, no decorrer do trabalho, eu fui tomando consciência da complexidade da obra do dramaturgo e vislumbrando sua potência, momento em que senti a necessidade de mais referências de encenações, especialmente aquelas que dialogassem mais diretamente com o contexto em que a minha prática artística – e, portanto, esta pesquisa – está inserida. Após a conclusão do Mestrado, ainda houve mais uma experiência que foi determinante no meu envolvimento com a obra do autor. Em abril de 2013, produzi e cursei um workshop com o ator armênio Arman Saribekyan, da companhia francesa Théâtre du Soleil, no qual, durante cinco dias, investigamos as grandes obras dramáticas do autor russo por meio de improvisações. O ator, que fala russo e tem um grande amor pelo dramaturgo, realiza sua oficina "Tchekhov em carne e osso" há alguns anos em vários lugares do mundo. Nessa ocasião, ao terminarmos o trabalho, cogitamos a possibilidade de nos reencontrar futuramente para uma experiência artística mais longa. Esse impasse entre o reconhecimento de uma grande potência cênica na obra de Tchekhov e, ao mesmo tempo, a necessidade por referências de encenações brasileiras foi o que motivou esta proposta de pesquisa, iniciada em agosto de 2013. A pesquisa partiu da seguinte questão: como as peças de Anton Tchekhov foram encenadas por artistas do teatro brasileiro (diretores, cenógrafos, atores etc.)? De modo mais específico, como se deu a apropriação cênica do ator brasileiro? A dramaturgia desse escritor é uma delicada combinação entre nuances trágicas, cômicas, patéticas e simbólicas, repleta portanto de teatralidade: convidativa ao ato, à ação. Há traços em sua obra que evidenciam essa característica, como a presença da oralidade na escrita e a riqueza de seus subtextos, num texto por de trás do texto, que traz à tona o fluxo de vida dos personagens, aquilo que está por debaixo do que é dito. A análise teve foco no processo da transposição do texto dramático para cena: não 15

somente a partir de vestígios e registros da encenação, mas também em paralelo com o texto dramático. O objetivo, assim, é investigar de que modo os atores e diretores trabalharam com esse texto e seus subtextos, transformando em interpretação: quais recursos, estilo e procedimentos de interpretação fizeram com que essas peças funcionassem (ou não) para o público brasileiro. Meu objeto de estudo, portanto, é composto por três encenações brasileiras de duas das grandes obras dramatúrgicas de Anton Tchekhov: As Três Irmãs, encenada em 1972 pelo Teatro Oficina, com direção de Zé Celso; Da Gaivota, encenada em 1998, sob direção de Daniela Thomas; e Gaivota - tema para um conto curto, encenada em 2006, sob direção de Enrique Dias. No contato com essas obras, busquei investigar como esses artistas conseguiram traduzir o autor para o contexto social e cultural brasileiro sem cair em armadilhas de se pretender representar uma Rússia folcloricamente imaginada. Além disso, explorei um possível contato ou referência em Stanislavski – uma vez que havia uma forte ligação histórica entre os dois homens russos e essa era uma referência fundamental em meu trabalho artístico também. Além dos aspectos temáticos e metodológicos, busquei averiguar como essas encenações exploraram a inerente teatralidade presente nos textos de Tchekhov, ciente de que o teatro brasileiro, em seus aspectos formais, é também composto por muita teatralidade, mas bem diferente daquela proposta por Tchekhov. Ainda por último, fora do ambiente acadêmico, mas sem deixar de ser um apêndice da pesquisa, o desejo de atuar em um espetáculo com base na obra de Tchekhov, dirigida por Arman Saribekyan, transformou-se em realidade no ano de 2015, com a montagem do espetáculo O Drama e outros contos de Anton Tchekhov. A realização de entrevistas com atores e diretores que participaram das encenações que fazem parte do corpus da pesquisa foi uma metodologia fundamental para trazer à tona aspectos da interpretação e encenação que não são encontrados nos livros e na teoria. Consegui realizar entrevistas com cinco atores, além de contar com algumas entrevistas publicadas em jornais ou livros – como no caso da atriz e o ator e diretor Enrique Dias. Quanto à estrutura da tese, o primeiro capítulo é voltado a explicar aspectos necessários à compreensão das análises dos espetáculos, que ocuparão os capítulos seguintes. Apresento um histórico sobre a vida e obra de Anton Tchekhov, analiso as características temáticas e formais de sua obra dramatúrgica, apresento a relação entre o autor e Stanislavski, além de traçar uma pequena contextualização sobre suas encenações no Brasil. Finalizando o primeiro capítulo, discorro brevemente sobre a contribuição que a prática com o ator armênio 16

Arman Saribekyan trouxe para o meu entendimento, enquanto atriz brasileira, da poética de Tchekhov. Feita essa contextualização, os três capítulos seguintes foram organizados de modo a contemplar uma análise detida de cada um dos espetáculos, tendo como base as entrevistas dos atores que participaram das montagens e outros materiais, como, por exemplo, o registro audiovisual do espetáculo Gaivota - tema para um conto curto, inúmeras críticas e reportagens sobre essas peças, bem como a versão, ainda que incompleta, de Zé Celso de As Três Irmãs. O encontro com esses artistas, essas montagens e Tchekhov – num diálogo em face da minha prática enquanto atriz – iluminou alguns caminhos de abordagem de textos do autor russo. Tais experiências, como veremos, traçam características da relação entre Tchekhov e o ator brasileiro e, para além dela, reforçam a universalidade e atemporalidade de uma dramaturgia de inesgotável renovação.

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CAPÍTULO 1 - Anton Tchekhov em cena

Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904), dramaturgo e contista, é considerado um dos escritores mais importantes da literatura e do teatro modernos. Nasceu em Taganrog, na Rússia, numa família numerosa, com cinco irmãos e, durante sua infância e juventude, não tinha muitos recursos. Apesar disso, após terminar os estudos do colégio em sua cidade natal, formou-se médico. (TCHEKHOV, 2011) O talento para escrever manifestou-se logo cedo, nos tempos de ginásio. Já nessa época, colaborava com revistas e jornais humorísticos para ajudar no sustento da casa. O autor ficou primeiramente conhecido por seus contos, que, no início de sua carreira literária, eram cômicos. Além dos contos, começou a escrever pequenas esquetes, paródias e cenas para os jornais de Moscou e São Petersburgo e, logo depois, em meados de 1880, redigiu sua primeira peça em um ato, Na Estrada Real (NASCIMENTO, 2013). Posteriormente, publicou Os Males do Tabaco (1886) e O Canto do Cisne (1887), ambas escritas com referência na atuação de atores que conhecia na época. Nesse ínterim, escreveu sua primeira peça longa, Ivánov (1887). Já muito popular por seus contos, escreveu também algumas peças curtas e cômicas, entre elas O urso (1888) e Pedido de casamento (1889), encenadas com grande entusiasmo na época. Por terem uma estrutura dramática simples, um quiproquó engraçado, um final feliz, um tema universal, ainda são bastante encenadas por grupos amadores e profissionais no Brasil e no mundo inteiro. Mesmo com sua carreira literária “a todo vapor”, não abandonou a medicina. Em uma das muitas cartas que trocou com Aleksei Suvórin, editor do Jornal Nóvoi Vriémia (Novo Tempo), de São Petersburgo, entre os anos de 1886 e 1891 - anos em que escreveu a maior parte de seus contos -, o escritor se referiu à medicina como “sua esposa” e à literatura, “sua amante” (TCHEKHOV, 2002). Atento observador do ser humano, a medicina trouxe um diferencial em sua literatura. Com a precisão de um cirurgião e o grande amor que tinha pelo homem, as palavras eram seu instrumento para desenhar aquilo que via nas profundezas da alma do povo russo. Aos 30 anos, fez uma longa viagem rumo à Ilha de Sacalina (no largo da Sibéria), local onde, na época do governo czarista, havia uma colônia penal. Tchekhov demorou 11 semanas para chegar de Moscou até aquele “lugar maldito” – como muitos chamavam a ilha àquela época. Suas motivações, quando empreendeu a viagem, não foram compreendidas. Mas ele queria 18

"ver com seus próprios olhos" as condições de seus habitantes – em sua maioria, condenados a trabalhos forçados. Durante três meses e dois dias, o autor fez uma série de entrevistas, visitas, averiguando cada detalhe da vida daquelas pessoas. Após a viagem, escreveu o livro A Ilha de Sacalina – Notas de Viagem (TCHEKHOV, 2011), no qual narra detalhadamente sua expedição: “A publicação do livro terá conseguido atingir um dos objetivos do autor: agitar a opinião pública e com isso obrigar o império czarista a suprimir os castigos corporais mais cruéis e a rever procedimentos do sistema prisional”. (TCHEKHOV, 2011, p. 14) A grande contribuição dessa estranha experiência, além da agitação da opinião pública em torno de um assunto de extrema importância social, foi o desenvolvimento da sua capacidade de “traduzir em ficção aquilo que observava”. (Idem, ibidem) Essa viagem, portanto, deixou impressões profundas em sua alma, que reverberaram na construção de seus personagens e suas histórias. Sua literatura sempre respirou teatralidade; mesmo em seu contos, as situações, personagens e o modo de narrar são muitas vezes teatrais. Nas cartas que escrevia para Suvórin (TCHEKHOV, 2002), seu amigo e editor de um dos jornais em que publicava seus contos, ao narrar uma situação cotidiana que, por algum motivo, havia lhe chamado a atenção, fazia-o de maneira teatral. Exagerava em alguns traços, dramatizava a situação e buscava, quase sempre, extrair uma lição bem humorada. Em 1896, escreveu A Gaivota, peça em quatro atos, primeira grande obra dramática na qual Tchekhov conseguiu encontrar uma forma poética que tivesse equivalência ao que, já havia algum tempo, conseguia com seus contos. Entretanto, a peça obteve um fracasso enorme em sua primeira encenação, em São Petersburgo, ocasião em que Tchekhov pensou seriamente em deixar de escrever para o teatro. Somente em 1898, com a encenação feita pelo Teatro de Arte de Moscou (TAM), sob direção de C. Stanislavski, a peça alcançou estrondoso sucesso, e o autor começou a ter prestígio e a ser reconhecimento como dramaturgo. Após esse encontro, escreveu mais três peças para que a companhia as encenasse: logo em seguida de A Gaivota (1896), veio Tio Vânia (1899-1900), depois As Três Irmãs (1901) e, por último, quando ele já estava bastante adoecido, O Jardim das Cerejeiras (1903-1904).

1. A Gaivota e As Três Irmãs - duas grandes obras dramatúrgicas de Anton Tchekhov

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O conjunto das quatro obras dramatúrgicas consagraram Tchekhov como um dos maiores dramaturgos do teatro ocidental. Szondi (2001) o classifica como um dos escritores que teria inaugurado o Teatro Moderno e um dos primeiros autores a adentrar na chamada "crise do drama". De acordo com sua tese, em Tchekhov, o próprio estabelecimento de uma ação dramática é posto em xeque na medida em que seus personagens, em grande parte das situações, ainda que estejam em aparente diálogo, estariam “falando sozinhos”, como se estivessem em monólogos que algumas vezes se tornam verdadeiros solilóquios reflexivos. Não faltam exemplos em suas peças, e o teórico analisa principalmente o personagem Andrei, em As Três Irmãs, que se lamenta de seus problemas com o velho Ferrapont, um personagem surdo. Em suas obras, o autor traz à cena situações e personagens do cotidiano russo do final do XIX, realçando aspectos da vivência do homem comum. Como se manejasse um bisturi, disseca cada uma das situações, tantas vezes banais e comuns – como um almoço em família, uma tarde de descanso, a chegada em casa depois do trabalho –, mostrando detalhes e especificidades dos comportamentos que tornam seus personagens um retrato vivo e completo do homem. Essa humanidade, colocada de modo tão particular naquela época e naquele país, tornou também universal e atemporal a obra de Tchekhov. Porque o homem se repete: nós, ao lermos suas peças, identificamo-nos facilmente com os personagens, sentimos compaixão e, simultaneamente, rimos deles, pois reconhecemos suas pequenezas e mesquinharias. Vladimir Nabokov, escritor russo-americano, comentou sobre os personagens do dramaturgo: “Todas as personagens de Tchekhov tropeçam nas pedras porque não conseguem tirar os olhos das estrelas.”1 Em A Gaivota, seja Nina, Arkádina, Trepliov ou Trigórin, sejam novos ou velhos artistas, sejam atores, em frente à cena, ou escritores, – atrás da cena, todos se movem com esse descompasso constante: a impossibilidade de caminhar sem tropeçar, pois estão com os olhos sempre em outro lugar, naquilo que a vida poderá ser ou naquilo que ela já foi. Assim também em As Três Irmãs, Olga, Macha e Irina sonham com uma mudança para Moscou. Entretanto, não chegam a planejar isso, a pensar nisso como um projeto mais possível de se tornar concreto, elas param na idealização de partir. Tchekhov traz uma apresentação bastante objetiva e detalhada do homem em seus personagens, apresentando-os frequentemente em solilóquios autorreflexivos, assim como em constante contradição entre seus desejos e suas ações. Todo esse panorama é terrivelmente triste e melancólico. Ainda assim, não podemos esquecer que o humor é também uma

1 www.funarte.com.br 20

característica inerente à sua estética. Com perspicácia, Nabokov observa que "O mundo, para ele, é cômico e triste ao mesmo tempo, e sem repararmos na sua comicidade não compreenderemos a sua tristeza, porque são inseparáveis." (NABOKOV in TCHEKHOV, 2001 - a). Parece que essa vontade de rir ao ler algumas das situações apresentadas em suas peças vem exatamente da consciência de não podermos fazer mais nada senão rir perante a iminência da morte. A comicidade tchekhoviana reside em grande parte num jogo de identificação ou rejeição dos personagens e situações, muitos deles com nuances de verdadeiros tipos cômicos. Em A Gaivota, podemos citar Arkádina, com seu tom melodramático e sarcástico. Além dela, o administrador Chamraiev, um "grosseirão" que entra em conflitos engraçados com a própria Arkádina. Além de alguns personagens trazerem cores cômicas, muitas das situações também são mostradas com uma pitada de humor: um exemplo é a cena em que Trepliov apresenta sua nova peça aos familiares, na qual praticamente todos caçoam das inovações propostas pelo jovem autor. Diante dessa situação patética, nós, leitores, rimos, ao mesmo tempo em que sentimos compaixão pela crueldade com que sua própria mãe o trata. Já em As Três Irmãs, quase todos os homens da história, ao contrário das irmãs, têm traços cômicos. A peça é pontuada por piadas e chacotas deles, enquanto as irmãs parecem vivenciar um verdadeiro drama e, muitas vezes, caem em choro. A comicidade é, portanto, uma característica intrínseca ao estilo do autor, que ele mesmo fez questão de sublinhar – colocou a rubrica “Comédia em quatro atos” depois do título de A Gaivota. Nessa obra, bem como nas demais, as situações que compõem o enredo tratam do dia-a-dia mais comum dos personagens: o tempo que a antiga grande atriz Arkádina passa com sua família no campo; as conversas entre os empregados na lida diária. Mais do que às situações cotidianas, as ações cotidianas levam ao descortinar dos sentimentos. Olga se lembra da morte do pai porque está corrigindo os cadernos de suas alunas. A ação de corrigir os cadernos não tem menos importância que a referência à morte. Por sua vez, os acontecimentos mais trágicos da história, como, por exemplo, o suicídio de Trepliov, não são mostrados. O ritmo do cotidiano é ligeiro e, nesse sentido, se aproxima muito mais do ritmo da comédia do que do drama ou da tragédia, em que acompanhamos falas graves dos personagens e acontecimentos catastróficos. Talvez por isso, segundo narra Stanislavski (1989) em Minha Vida na Arte2, o diretor frequentemente insistisse para que os atores

2Uma autobiografia em que Stanislavski convida o leitor a se aproximar de seu percurso artístico imbricado à sua própria vida, tecendo importantes reflexões sobre sua formação enquanto artista. O diretor e ator apresenta ao leitor 21

evitassem dar ênfase ao sentimentalismo. Ainda assim, como veremos em tópico adiante, essa será uma questão de grande discussão entre o encenador e o escritor. Figueiredo, no posfácio para tradução brasileira do texto A Gaivota, tenta esclarecer: “O problema pode se tornar compreensível se lembrarmos que a noção rigorosa de comédia equivale menos ao riso do que ao estilo baixo – em contraste com o estilo elevado, da tragédia.” (FIGUEIREDO in TCHEKHOV, 2004, p. 121). Trata-se de um humor que parece alegre, mas que revela sempre algo submerso, colaborando para acentuação de uma atmosfera cada vez mais sufocante, que vai, aos poucos, adquirindo traços simbólicos, dramáticos, culminando em vários acontecimentos com nuances trágicas no último ato das histórias: Trepliov se mata no final de A Gaivota, assim como, no fim de As Três Irmãs, Barão Tusenbach é morto em duelo. Ainda assim, é uma tragédia silenciosa, pois tais acontecimentos não são mostrados ao público: ouve-se o tiro, há conversas sobre o que acabara de acontecer, mas a ação de matar e morrer não é colocada em cena. Os acontecimentos drásticos - como o duelo ou o suicídio – não são mostrados, porque parecem ter a mesma importância que o restante do "cotidiano". As histórias terminam com um desfecho aberto em que melancolia e esperança se misturam. Em A Gaivota, por exemplo, ainda que haja o suicídio de Trepliov, não há um desfecho no sentido comum do termo, de conclusão de um enredo. Como analisa Figueiredo,

tal acontecimento, por mais dramático que pareça, por mais sofrimento que concentre em si, não representa nem solução, nem desvelamento, nem catarse. O espectador subentende que a mesma crise e o mesmo desajuste prosseguirão intactos e apenas se agravarão na vida futura dos personagens. (FIGUEIREDO in TCHEKHOV, 2004, p.123)

Há um final – Trepliov se mata, Nina continua em sua vida artística em temporadas do interior, mas há uma forte impressão de que aquele conflito (interno dos personagens) não se resolveu, que vai permanecer. Assim também ocorre com os demais personagens: será que a morte do próprio filho causará alguma transformação em Arkádina? Além disso, o final é aberto não só porque desconhecemos o desfecho propriamente dito da maior parte dos personagens, mas também porque não ocorre resolução dos conflitos, uma vez que, mesmo com esses acontecimentos trágicos, há esperança também. Os finais são um misto de morte e de recomeço: em As Três Irmãs, o barão morre no duelo, os militares suas dúvidas, inquietações e descobertas que impulsionaram a criação de seu conhecido sistema de atuação - o Sistema de Stanislavski. 22

partem da cidade, mas as irmãs terminam juntas e unidas, dispostas a recomeçar. Em A Gaivota, Trepliov se mata, mas Nina persiste em sua carreira e segue sua vida. As peças de Tchekhov apresentam uma grande dimensão simbólica. Um forte exemplo está em A Gaivota, na qual o próprio título da peça contém em si uma ideia simbólica, já que o escritor não está se referindo à história do animal gaivota. O título da peça é símbolo de vida e morte, da fugacidade da vida e da certeza da morte, de liberdade, daquilo que poderia ter sido mas não foi. É o que Nina, a gaivota, afirma no final do texto – “NINA – (...) Eu sou uma gaivota. (...)” (TCHEKHOV, 2004, p.106) Ela se sente assim, ela assina as suas cartas a Trepliov como gaivota. A gaivota não está apenas presente no título da peça, mas também de várias formas ao longo da trama, sendo um símbolo que concretiza algumas possibilidades de reflexão. Segundo Fernandes, uma delas é a própria condição dos artistas jovens: "A presença real da gaivota na peça – morta, empalhada, exibida – é um recurso de pressão emocional, símbolo aberto que pretende refletir, entre outras coisas, a condição comum dos jovens artistas." (FERNANDES, 2010, p. 14). Essas possibilidades de reflexão são ampliadas à medida que o símbolo é mencionado ou/e aparece na trama. A menção à gaivota é feita em sete momentos diferentes ao longo da dramaturgia. Ao final da história, a simbologia da gaivota permanece em aberto: é movimento de vida, e movimento de morte, paradoxalmente representando forças fundamentais opostas e complementares. A gaivota termina eternizada, porém estagnada, no bicho empalhado, Nina segue seu voo, e Trepliov finda com sua própria vida. Assim também, em As Três Irmãs, o desejo das irmãs de ir para Moscou, metaforicamente, é a idealização de encontrar a felicidade. Sua obra dramatúrgica tematiza o cotidiano, trazendo à tona o fluxo da vida, mas mostra, também, aquilo que está nas entrelinhas das falas dos personagens, tudo que está por trás de suas ações. Segundo a análise de Williams, "Em Tchekhov, o que é visível e diretamente exprimível nada mais é do que um contraponto à vida que não se realizou – as possibilidades, os medos, os desejos comuns e interiores" (WILLIAMS, 2010, p. 174). Por meio de sua abordagem, numa composição entre as falas e ações - sugeridas nas rubricas -, o autor revela um universo aparentemente comum e cotidiano, mas repleto de complexidade. É nos menores detalhes que a ação vai se desenhando e pode se desenvolver. As ações sugeridas nas rubricas ajudam a determinar o sentido das falas. Muitas vezes, elas se relacionam com o que está por trás de toda peça e não com o texto que está sendo dito. Williams aponta que as indicações do autor, frequentemente, mostram ações miméticas, isto é, “no sentido de que faz ver no corpo do ator um estado emocional.” 23

(WILLIAMS, 2010, p.159). Apesar dos apontamentos das ações, o dramaturgo não descreve seu desenvolvimento completo. Nesse sentido, deixa brechas para interpretações diferentes, que, dependendo da sequência de ações externas e internas criada, irá ecoar no público de um jeito ou de outro. O que está nas entrelinhas das falas dos personagens é o subtexto. Desta maneira, em certa medida, o sentido do texto é aberto. O ponto crucial da discussão levantada na peça é claro, o enredo é definido, mas ainda assim existem muitos “não-ditos” perceptíveis ao leitor. A dramaturgia de Tchekhov avança para além do realismo novecentista por meio de um trabalho delicado de subtexto, que oferece ao ator um manancial de criação bastante rico. Segundo Pavis, subtexto pode ser definido como:

Aquilo que não é dito explicitamente no texto dramático, mas que se salienta da maneira pela qual o texto é interpretado pelo ator. O subtexto é uma espécie de comentário efetuado pela encenação e pelo jogo do ator, dando ao espectador a iluminação necessária à boa recepção do espetáculo. Essa noção foi proposta por Stanislavski (1963, 1968), para quem o subtexto é um instrumento psicológico que informa sobre o estado interior da personagem, cavando uma distância significante entre o que é dito no texto e o que é mostrado pela cena. O subtexto é o traço psicológico ou psicanalítico que o ator imprime a sua personagem durante a atuação. (PAVIS, 2008, p. 368)

Essa definição destaca a natureza paradoxal do subtexto, que não aparece no texto, mas é sugerido por ele. Está presente enquanto potência, mas é somente na cenaque ele pode ser atualizado. O sentido do texto só se completa com sua encenação, pois a escolha das ações determina a essência da cena e contribui para o entendimento da peça como um todo. A estrutura dramatúrgica armada por Tchekhov é, portanto, uma rede complexa. O ritmo das ações é ligeiro; as situações e as conversas travadas podem parecer banais; alguns personagens são apresentados de maneiras ridículas; suas ações podem revelar estados emocionais angustiados ou terríveis: um emaranhado insustentável para o anúncio de um desmoronamento silencioso e constante. Ao final da história, quase nada permanece em ordem. As rubricas têm grande importância. A maior parte delas indica ações (também gestos e movimentos) ou acontecimentos, mas também mostram para quem os personagens estão falando, suas emoções, entradas e saídas. De maneira mais ampla, essas indicações do autor criam paisagens sonoras nas situações e indicam pausas, imprimindo um ritmo à 24

dramaturgia, à criação das cenas, à construção da ação da peça como um todo, de modo a embasarem uma composição cênica. Embora seja sucinta na maior parte das vezes, a indicação também pode trazer detalhamentos, como ocorre no quarto ato da mesma peça. Quando Trigórin e Arkádina voltam à propriedade de Sórin, após dois anos, e o escritor famoso se depara com Trepliov, Macha e o Professor, ocorre um diálogo acompanhado de uma longa rubrica, como se observa a seguir:

TRIGORIN - Casou-se? MACHA - Há muito tempo. TRIGORIN - Está feliz? [Cumprimenta Dorn e Medviediênko e, em seguida, hesita antes de se aproximar de Trepliov] Irina Nikoláievna me disse que o senhor já esqueceu o que houve e deixou sua raiva para trás. (TCHEKHOV, 2004, p. 94)

Essa rubrica informa que Trigorin está um pouco receoso em cumprimentar Trepliov, já que cumprimenta naturalmente os demais personagens, mas hesita em se aproximar do jovem escritor. Essa hesitação pode ser traduzida cenicamente com uma pequena pausa que interrompe esse ato quase automático de cumprimentar as pessoas quando se chega em algum lugar. Ao se colocar nessa situação, o ator pode optar por "rechear" esse gesto com uma intenção de medo, susto ou apreensão. Essas sensações são alguns exemplos de escolhas que podem dar sentido às ações e ao texto do personagem. No discurso, após hesitar, o personagem procura suavizar essa tensão existente entre os dois. No terceiro ato, há uma rubrica que traz um panorama de ações:

[Enquanto Chamraiev fala, Iákov se ocupa das malas, a criada traz para Arkádina o chapéu, o mantô, o guarda-chuva e as luvas; todos ajudam Arkádina a se agasalhar. O cozinheiro espia da porta esquerda e, depois de esperar um pouco, avança hesitante. Entram Polina Andréievna e, depois, Sórin e Miedviediênko.] (TCHEKHOV, 2004, p. 77).

Ao lê-las, é possível imaginar o desenrolar teatral de uma cena inteira, pois há muitas indicações de ações, de maneira que fica bastante concreto o desenvolvimento da situação proposta: Arkádina está de partida e é mimada por todos. Além disso, houve dois acontecimentos dramatúrgicos antes de sua partida: Trepliov tentou se matar e Trigorin se confessou apaixonado por Nina. Essas circunstâncias trazem uma urgência para sua partida, tanto para afastar Trigorin de Nina, já que ele partirá como ela, como dela mesma se afastar 25

do filho que lhe causa angústia . O administrador conversa com ela, o servo pega suas malas, uma outra criada lhe traz o chapéu e seus demais apetrechos. Até mesmo os empregados que não estão em cena aparecem para espiar, demonstrando que todos ali estão a seu serviço. Nesse momento, ela é o centro das atenções, todos a ajudam até na mais simples ação, que seria a de se agasalhar. Parecem nutrir por ela um entremeio de admiração e receio, já que ela é uma grande atriz, tem uma personalidade exuberante e forte e vive em Moscou, em contraponto com a vida simples e ordinária levada por aqueles empregados no ambiente rural. O conjunto das falas e rubricas pode produzir o raciocínio daquele personagem, revelando um comportamento, como ocorre no primeiro ato, em um diálogo entre Trepliov e seu tio:

SÓRIN [penteando a barba] Esta é a tragédia da minha vida. Na mocidade, eu tinha sempre o aspecto de um beberrão, você nem imagina. As mulheres jamais gostaram de mim. [Senta-se] Por que minha irmã anda de mau humor? TREPLIOV - Por quê? Está entediada. [Senta-se a seu lado] Sente ciúmes. Já está até contra mim, contra o espetáculo e contra a minha peça, porque não é ela que vai representar, e sim Zariêtchnaia. Nem conhece a minha peça mas já a odeia. (TCHEKHOV, 2004, p. 13).

Nessa fala, Sórin está pensando e, para "tomar tempo", penteia a barba enquanto fala. Além disso, pode mostrar que está incomodado em fazer essa pergunta, com receio de tocar em um assunto delicado. Depois que termina esse pensamento, há uma outra ação – ele se senta – para finalizar, para pontuar seu pensamento. Ele pondera, hesita e só então fala do mau humor da irmã. Quando o ator usa esses movimentos para traduzir seu estado de espírito, para "tomar tempo", esses atos poderão vir a ser ações carregadas de subtextos. Está falando de uma coisa, e isso o leva a outra e assim por diante. Então, refletindo sobre sua vida, fala sobre as mulheres, que, provavelmente, levam-no a pensar na irmã. É possível perceber, em alguns momentos, uma mudança de estado, de comportamento dos personagens, que é dada por meio das ações mostradas também nas rubricas. Mesmo que o ator escolha utilizar outro gestual que não o indicado, se tirássemos as rubricas não teríamos uma composição tão rica, porque elas podem servir à interpretação dos atores na criação de suas ações, tornando concreta a situação proposta, os estados e comportamento dos personagens. Nesse tipo de peça moderna, na qual, segundo Williams (2010), as falas não são, necessariamente, ações, as rubricas têm função fundamental. As inovações na dramaturgia de Tchekhov contribuíram para uma mudança significativa no paradigma da relação entre texto e cena: sua escrita aponta para um teatro 26

que, ao fugir das convenções de cena anteriores ao moderno, necessita de uma criação cênica singular para poder se estabelecer adequadamente no palco. Sua dramaturgia precisa, portanto, dos atores e diretores como co-autores.

2. Tchekhov e Stanislavski, uma relação inovadora entre texto e cena

Como dito anteriormente, A Gaivota foi encenada pela primeira vez na noite de 17 de Outubro de 1896 (WILLIAMS, 2010), em São Petersburgo. Segundo Henri Troyat (TROYAT, 1998), biógrafo francês do autor, Tchekhov assistiu aos ensaios e já nesse momento, se mostrava bastante preocupado com o tom de grandiloquência dos atores em cena. Entretanto, a cinco dias da estreia, a atriz que interpretava Nina desistiu de atuar, afirmando não ter condições de trabalhar com esse papel. Em seu lugar entrou uma jovem atriz cuja interpretação feita com tanta verdade emocionou o autor e lhe deu esperanças de que a estreia pudesse não ser tão terrível como pressentia. A interpretação da atriz, no meio de um elenco que representava de maneira “afetada”, não conseguiu mudar o resultado final do espetáculo. Além de notáveis problemas na concepção de encenação e na linguagem de interpretação da grande maioria do elenco, o contexto em que ocorreu essa apresentação foi um outro fator que deixou esse evento ainda mais crítico. Era tradição no teatro da Rússia daquela época, dedicar a estreia de uma peça a um ator ou a uma atriz de renome. Para essa estreia, a homenagem foi feita a uma atriz cômica muito amada pelo público, que iria atuar em uma comédia apresentada na mesma noite, após A Gaivota. A plateia formada naquele dia estava ali para homenagear esse grande nome cômico do teatro russo e esperava rir, se divertir. Quando as cortinas se abriram revelando personagens frágeis e um enredo sem muita ação ou quiproquós, o público reagiu com vaias, em parte também porque sua expectativa não foi alcançada. A estreia foi um desastre: o público riu, as críticas nos jornais da época foram implacáveis. Troyat (TROYAT, 1998) relata que, no entanto, quatro dias depois, a peça foi apresentada novamente para outro público – cuja expectativa não estava mais ligada a homenagear uma grande atriz cômica. A apresentação não teve um êxito grande, mas o público saiu emocionado. Ainda assim, o evento anterior de estreia e sua repercussão crítica negativa acabaram comprometendo a temporada. Somente dois anos mais tarde o autor começou a despontar como grande dramaturgo, com a encenação do mesmo texto, desta vez realizada por C. Stanislavski no palco do Teatro 27

de Arte de Moscou (TAM). Foi N. Dântchenko, parceiro de Stanislavski na criação das bases do TAM, quem descobriu a peça de Tchekhov, mostrou ao diretor e convenceu o autor a permitir que a encenassem. Em seu encontro com os idealizadores do TAM, havia um desejo mútuo de inovação da arte cênica, fator que incontestavelmente favoreceu uma boa interpretação da peça. Após o grande sucesso com a encenação deste espetáculo pelo TAM, o autor passou a escrever suas peças para a companhia encenar. Suas primeiras obras para o teatro eram engraçadas e curtas. Talvez por isso também a primeira apresentação da peça tenha sido um fracasso. Segundo Figueiredo (2004), o insucesso ocorreu, em grande parte, pela expectativa do público, que foi ao teatro para rir, já que seus escritos eram conhecidos por serem cômicos. Além disso, a grande atriz que interpretaria o papel principal era também conhecida por ser cômica. Já na opinião de Raymond Williams (2010) - que, em Drama em Cena faz uma análise da montagem do TAM em paralelo com texto de Tchekhov -, a primeira encenação realizada era convencional e, por isso, não conseguiu colocar em cena a complexidade da dramaturgia proposta pelo autor, que se tornou arrastada e monótona. Sabemos que foi também nesse momento da história do teatro que surgiu o advento da encenação, e que Stanislavski, na Rússia, foi um de seus expoentes. Dessa maneira, o encenador se configura como o primeiro leitor cênico da obra do autor. A grande diferença entre sua leitura e a anterior consiste em que, enquanto a primeira leu o texto de Tchekhov somente enquanto falas a serem distribuídas entre os atores e uma marcação de movimentações, Stanislavski concebeu uma encenação, uma proposta cênica para o texto do dramaturgo, trabalhando o espaço das entrelinhas, traduzindo os conflitos silenciados em cena, as indicações das rubricas. Por meio de recursos materiais da cena, como a iluminação, a cenografia, e a sonoplastia, mas especialmente do jogo entre os atores, fez aparecer em cena as diversas camadas de todo um universo tchekhoviano, presente potencialmente no texto. Tchekhov parecia ter encontrado um parceiro ideal na proposição de novas formas para cena. Assim como Williams, outros estudiosos do fenômeno teatral concordam que se estabeleceu entre esses artistas um casamento inovador. Heliodora diz que “O nome de Tchekhov estará eternamente ligado, naturalmente, ao de Stanislavski, o criador do TAM, reformulador do espetáculo não só na Rússia, mas no mundo inteiro." (HELIODORA, 2007, p. 291) O crítico Peter Szondi, também comenta que

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Stanislávski e Nemiróvitch-Dântchenko, por serem os primeiros a sistematizarem com maior consciência a especificidade do "fenômeno teatral"são os que dão conta, com todos os percalços, de apresentar uma chave precisa do então estranho drama tchekhoviano. O resultado, como se sabe, foi de ordem revolucionária. (SZONDI, 2001, p. 48)

Sérgio de Carvalho exemplifica que a força teatral dos personagens tchekhovianos

só foi reconhecida graças a um gênio do palco como Stanislavksi, que conseguiu estabelecer meios técnicos para que os atores abandonassem os padrões grandiloquentes da interpretação romântica, vigente até então, e se aproximassem dos meios-tons das personagens que interpretavam. Sua meta era apresentar indivíduos com particularidades nítidas e intransferíveis. Na montagem de “A Gaivota”, primeira grande realização do Teatro de Arte de Moscou, Stanislavski criou para a cena de abertura, em que Macha caminha pela vereda enquanto explica o motivo de sua roupa preta (“Estou de luto pela minha vida”), uma série de pequenas ações, como quebrar castanhas ou se desviar de troncos caídos pelo caminho. Esse particularismo teatral, inédito para os padrões da teatralidade da época, vinha como tentativa de tradução gestual do comportamento interno das personagens." (CARVALHO in BRAVO, 1998, p. 106-109)

As três citações mostram que o nome de Tchekhov está ligado ao nome de Stanislavski. Suas obras precisavam de uma encenação também renovada para alcançar uma efetividade cênica. Além disso, o escritor russo passou a despertar interesse em terras estrangeiras principalmente a partir das temporadas realizadas pelo TAM fora da Rússia. Na América, foi na década de 20 que a Companhia excursionou pela primeira vez com grande impacto nos Estados Unidos. Os estudiosos ainda mencionam alguns aspectos inovadores da técnica do encenador que, além de serem imprescindíveis para revelar detalhes e nuances dos personagens e situações propostas na dramaturgia, foram capazes de revolucionar o fenômeno teatral. Como cita Carvalho, o encenador cria um verdadeiro texto cênico – uma série de ações, gestos e movimentos que fazem o público ver, por meio de ações, o que os personagens estão sentindo, pensando e/ou desejando. Esse encontro marcou também o nascimento do conhecido “Sistema de Stanislavski”, já aberto para o século XX. Foi a partir do trabalho com textos de Tchekhov que Stanislavski pôde elaborar e experimentar as bases de seu Sistema de atuação, criando um 29

conjunto de elementos, procedimentos e metodologias que serviam de alicerce para o trabalho criador do ator. Sob a perspectiva de Stanislavski, nesse processo de passagem do texto para cena, era preciso encontrar uma transposição verossímil, ou seja, que atingisse uma verdade cênica. A verdade a que o encenador se referia não tem a ver com o conceito platônico de verdade, segundo o qual a verdade está no ser, naquilo que é, sendo, portanto, eterna e imutável. "A verdade" pode significar o que é real ou possivelmente real dentro de um sistema de valores. Ou seja, para o diretor, o sentido de verdade significa a construção cênica de uma realidade verossímil, com lógica e continuidade. A fim de atingir, em sua composição cênica, uma realidade verossímil, o diretor estruturou uma série de elementos, que, quando trabalhados em conjunto, possibilitam ao ator interpretar seu papel, criando um personagem com verossimilhança. Trata-se de ferramentas para trabalhar sobre si mesmo em relação ao personagem e ao texto dramático, buscando construir um processo criativo a partir de um trabalho de identificação entre ator e personagem, pressupondo a ideia da criação de uma representação da realidade. O ator, enquanto intérprete de um papel, por meio do famoso "se mágico" (STANISLAVSKI, 1968), coloca-se no lugar do personagem e age como se fosse aquele personagem naquela situação. Para isso, usa sua própria memória como referência, emprestando ao personagem suas próprias emoções – daí surgiu o conceito de "memória emocional"(STANISLAVSKI, 1968) - e também sua imaginação. Tchekhov frequentemente participava dos ensaios de suas peças e/ou trocava cartas com os diretores e alguns atores. Nesses momentos, envolvia-se com discussões sobre aspectos da encenação de sua obra. E não eram poucas as vezes que discordava de muitas das interpretações propostas por Stanislavski. Em uma dessas correspondências, trocada durante o processo de criação de As Três Irmãs, o escritor dá uma opinião sobre uma escolha da encenação:

O senhor me conta que, no Terceiro Ato, quando Natacha anda pela casa durante a noite, ela apaga as velas e procura por bandidos atrás dos móveis. Mas parece-me que seria preferível que ela andasse cruzando o palco em uma linha reta, sem olhar para nada ou ninguém, à Lady Macbeth, com uma vela – desse modo a cena ficaria mais curta e apavorante. (TCHEKHOV apud TAKEDA, 2003, p. 161)

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Como se pode observar, enquanto Stanislavski propõe uma série de pequenas ações e subtextos para personagem Natacha, a sugestão do autor é sintética, com menos ações e intenções, almejando um efeito cênico mais apavorante. Tal debate polariza dois criadores, dois autores do evento teatral: o do texto e o da cena. Sendo dois criadores, era natural que suas ideias se chocassem. Além disso, a dramaturgia de Tchekhov, por se constituir nessa estrutura moderna, tem muita abertura para criação da cena, gerando diferentes olhares que poderiam entrar em choque. Em outro exemplo, uma carta trocada no mesmo período entre a atriz Olga Knipper – que veio a se casar com Tchekhov – e o autor, a atriz coloca questões sobre a interpretação de uma cena na qual parecia haver um desacordo entre ela e N. Dântchenko:

O ponto de discordância com Nemiróvitch é a confissão de Macha no Terceiro Ato. Eu atuaria o Terceiro Ato com um estado de tensão, impetuosamente, a confissão seria então feita com um tom forte, dramático, ou seja, a escuridão das circunstâncias exteriores teria suplantado a alegria do amor. Mas Nemiróvitch quer que a alegria do amor apareça, que Macha considerando tudo, esteja repleta desse amor e não o confesse como se fosse um crime. O Segundo Ato está repleto desse amor. Na interpretação de Nemiróvitch, o Quarto Ato é o ponto culminante; na minha, é o Terceiro Ato. Qual é a sua resposta?” (KNIPPER apud TAKEDA, 2003, p. 165)

Essa correspondência é um exemplo de como o texto de Tchekhov era visto como algo aberto e, por isso, passível de interpretações distintas. A atriz, ao se colocar no lugar da personagem, tem uma percepção sobre sua situação, sentimentos e ações. Já o encenador, que vê a situação da personagem de outro ponto de vista, parece ter outra percepção. Em crise, a atriz escreve para seu companheiro e autor. É notório que, mesmo como essa abertura, havia também uma grande confiança nas intenções do autor em relação às suas proposições e respeito pelas opiniões sobre as cenas e personagens. Um outro episódio, que revela pontos de discordância na relação entre o autor e Stanislavski, é relatado pelo próprio encenadorem Minha Vida na Arte (1989). Na época, na primeira leitura de As Três Irmãs feita pelo grupo, o diretor narra que os atores estavam emocionados, chorando após acabar a leitura e que, em contraponto, Tchekhov tinha ficado inconformado, insistindo em nomear a peça como uma comédia. Além de encenador, Stanislavski costumava atuar nessas peças. Em mais um episódio relatado nesse livro, após uma apresentação de A Gaivota feita especialmente para 31

Tchekhov assistir, o autor teria dito poucas palavras que Stanislavski confessou compreender apenas muito tempo depois de tê-las escutado: "Maravilha, veja que maravilha! Faltam apenas os sapatos rasgados e as calças em xadrez." (STANISLAVSKI, 1989, p.310) Ele interpretava Trigórin, um escritor famoso e mulherengo que seduzia as mulheres. Sua sedução, entretanto, acontecia mais pelo encanto que produzia nelas -por ser um escritor que recitava belas palavras - do que por sua aparência exterior. Na perspectiva tchekhoviana, era importante mostrar esse contraste criando uma composição um pouco mais desleixada no figurino. São exatamente esses detalhes que tornam seus personagens tão humanos e, por isso, universais. Nessa troca de correspondências e nos relatos desses encontros, é possível perceber como o autor pensava sua dramaturgia para cena, até mesmo em termos de ações, subtextos e detalhes da caracterização dos personagens. Além disso, essa vivência e reflexão constante entre atores, diretores e um autor possibilitou que Tchekhov aprimorasse ainda mais seu olhar teatral para dramaturgia e também Stanislavski aperfeiçoasse seu olhar sobre a encenação da peça e interpretação dos personagens com verdade cênica. A base da verossimilhança encontrada pelo diretor se apoiava fortemente na construção de ações e subtextos que traziam à tona o fio dramatúrgico proposto pelo autor. Os dois, sem sombras de dúvidas, buscavam mostrar o homem ao homem. E, nesse momento marcante da história do teatro, fizeram-na de forma revolucionária.

3. Caminhos da recepção da obra tchekhoviana no imbricamento com a referência stanislavskiana

A visão que Stanislavski teve da obra de Tchekhov e imprimiu em suas encenações "impregnou" a recepção da obra dramatúrgica de Tchekhov. O encenador, a partir de um trabalho feito com os atores, que necessariamente passava pelo processo de identificação já mencionado, conseguiu dar vida aos personagens "tão humanos" potencialmente desenhados por Tchekhov, trazendo à cena a obra do autor de maneira verossímil, ou seja, atingindo uma verdade cênica. Outros grandes encenadores da história do teatro encenaram e encenam até os dias de hoje a obra do dramaturgo. O TAM, com suas famosas peças das obras de Tchekhov, revolucionou o teatro ocidental, tornando-se uma referência indissociável das obras do autor. Um exemplo é a encenação italiana de Giogio Strehler de "O Jardim das Cerejeiras", do ano 1973, que se inspirou em elementos da metodologia e abordagens da direção teatral lançados 32

por Stanislavski (GOMES, 2017), sendo considerada pela pesquisadora Adriane Gomes uma atualização da versão stanislavskiana. No contexto da história do teatro brasileiro, houve uma entrada do Sistema de Stanislavski via os livros de sua autoria que chegaram ao solo nacional a partir do final da década de 60 - a primeira tradução data de 1964, do título A Preparação do Ator (1968). Uma outra forma de entrada também foi por meio do trabalho do imigrante polonês Eugênio Kusnet (1989-75), que foi ator e professor em grupos teatrais brasileiros nessa época. Entre esses grupos, um exemplo é o Teatro Oficina, que, como veremos em capítulo adiante, conforme atesta Renato Borghi (BORGHI, 2016) - um dos fundadores do grupo –, Kusnet e seus ensinamentos baseados no Sistema, fundamentaram algumas atuações do grupo e foram uma parte importante na formação de seus atores, sendo uma das metodologias que apoiavam suas criações artísticas. Ainda uma outra via de acesso ao Sistema foi por meio do trabalho de . Celso Frateschi, que dirigiu e atuou em muitas peças de Tchekhov, entre elas Da Gaivota - espetáculo que também será objeto de análise em capítulo posterior -, ao comentar sobre sua formação enquanto ator e diretor, ressalta a importância da experiência que teve com Boal durante sua permanência no Teatro Arena:

A grande influência de Stanislavski no Arena era de Boal. Apesar dele ser identificado muito com o trabalho brechtiano pelo Coringa e tudo mais, a base de interpretação dele era uma tradução do Actors Studios. Augusto Boal estudou nos EUA e, quando ele veio para cá, traduziu de uma forma brilhante todo o sistema de interpretação, que era um pouco o que o Arena desenvolveu aqui. (FRATESCHI, 2016)

O diretor brasileiro, mundialmente conhecido por seu “Teatro do Oprimido”, havia estudado no Actors Studios, escola norte-americana fundada por Elia Kazan, Cherl Crawford e Robert Lewis, que desenvolveu um método a partir de uma leitura muito específica dos ensinamentos de Stanislavski. Nessa vertente, havia um trabalho com forte apoio na construção da psicologia dos personagens a fim de revelar suas emoções e estados de alma. A escola foi muito frequentada por grandes nomes do cinema, dentre os quais Marlon Brandon, Al Pacino, Marylin Monroe, Julia Roberts e Jonny Deep. Esses dois exemplos são apenas uma pequena amostragem de um movimento maior que se iniciou nessa época e que, com as encenações das peças de Tchekhov em território nacional, cresceu ainda mais. Eram vias de acesso à referência stanislavskiana, que apesar de 33

terem a mesma raiz, muito distintas entre si, geraram diferentes abordagens, métodos e técnicas de atuação. Mais recentemente, com o crescimento de atores formados em escolas técnicas e universidades, o ensino do Sistema faz parte da pedagogia de grande parte dos cursos. O ator Emilio de Mello, cuja formação se deu na Escola de Arte Dramática de São Paulo, na década de 80, menciona ter estudado princípios de interpretação baseados em Stanislavski (Mello, 2016). O ator participou da encenação Gaivota - tema para um conto curto (2006), espetáculo no qual os atores e diretor homenageiam, em cena, a emblemática montagem de A Gaivota feita pelo TAM. É preciso acrescentar que as traduções a que os atores e diretores brasileiros tiveram acesso, especialmente no primeiro momento, foram feitas a partir de versões norte- americanas, que, segundo estudiosos da obra stanislavskiana, como Takeda, sofreram cortes e alterações no significado de palavras e do discurso, trazendo prejuízo à leitura do ator brasileiro (TAKEDA, 2008). Segundo nota da tradutora do russo para o inglês, Elisabeth Hapgood, Stanislavski teria lhe incumbido a tarefa de, ao traduzir seus manuscritos, eliminar as repetições e cortar tudo que não tivesse sentido para atores que não fossem russos – explicação que poderia justificar os cortes e alterações de sentido criticados pelos estudiosos do assunto (DELDUQUE, 2012). É significativo também que apenas recentemente vieram ao conhecimento do ator brasileiro alguns estudos importantes sobre o Sistema de Stanislavski, como o livro de Elena Vássina, Stanislavski: Vida, Obra e Sistema (VÁSSINA, 2015), em que a pesquisadora faz uma rigorosa revisão de tradução de grande parte dos conceitos e elementos do Sistema.

4. Tchekhov e a cena brasileira: um grande desafio para os palcos nacionais

Como vimos, o escritor russo teve grande relevância para a renovação das formas do teatro em sua época. Sua obra lançava desafios estéticos não raro de difícil assimilação na Rússia e no ocidente, tanto que a primeira encenação de um de seus maiores clássicos, A Gaivota, foi um fracasso. No Brasil, isso não seria diferente. Segundo levantamento feito por Nascimento em seu estudo sobre a recepção de Tchekhov no Brasil (NASCIMENTO, 2013), no início dos anos 40, enquanto nos EUA e na Europa, o autor já era um dos dramaturgos mais encenados, aqui no Brasil, seu nome ainda era desconhecido. As primeiras encenações do dramaturgo em terras canarinhas foram feitas por grupos amadores e/ou universitários. A primeira de que se tem registro, O Urso, comédia 34

em um ato, foi montada pelo grupo Teatro de Estudante de Pernambuco, em 1946, sob direção de Hermilo Borba Filho. Na década seguinte, suas peças curtas e cômicas foram encenadas de forma expressiva, ainda por grupos estudantis e amadores. No teatro profissional, as primeiras encenações foram feitas pelo Teatro Brasileiro da Comédia (TBC) e pelo Teatro Nacional da Comédia (TNC), ambos com diretores emigrados. A primeira encenação de Tio Vânia data de 1955, pelo grupo de teatro amador Tablado, com direção de Geraldo Queiroz. As Três Irmãs foi encenada pela primeira vez no Brasil no ano de 1956, sob direção de Alfredo Mesquita, com os alunos da Escola de Arte Dramática (EAD) de São Paulo. Somente na década de 60 as obras mais longas começaram a ser representadas por grupos profissionais. No ano de 1968, O Jardim das Cerejeiras foi representado no Brasil pela primeira vez, sob direção de Ivan de Albuquerque, pelo Grupo do Rio-RJ. Já a primeira encenação de A Gaivota data de 1974, por Jorge Lavelli, no Rio de Janeiro (NASCIMENTO, 2013). Nessa época, se, por um lado, as encenações das comédias de um ato enfatizavam os traços farsescos da poética do autor, por outro, os espetáculos baseados em suas obras maiores traziam aspectos que buscavam reproduzir um certo “realismo e naturalismo”, vindos das leituras de sua obra feitas no exterior. Segundo Nascimento, “Isso implicava em encenações repletas de pausas sugestivas, em ritmo lento, na tentativa de valorizar qualquer subtexto psicologizante e camadas de interpretação que não se evidenciariam em uma encenação externalizante." (NASCIMENTO, 2013, p.70) A dramaturgia do autor, como já apontado, tratava de situações do cotidiano do homem russo comum, característica que provavelmente levava a uma tentativa de encenação e interpretação “realistas”. Segundo observa o pesquisador, os espetáculos evidenciavam as situações dramáticas e a psicologia dos personagens, sem uma proposta de encenação eficaz. Entretanto, a dramaturgia do autor é uma rede complexa, com nuances cômicas, simbólicas e trágicas, ainda que, tematicamente, pareça tratar apenas da vida diária das famílias representadas. O cotidiano é como uma cortina que aos poucos vai se abrindo. E, nesse sentido, como traduzi-lo para o contexto brasileiro sem cair em armadilhas de se produzir uma representação de uma Rússia folcloricamente imaginada? Há alguns clichês bastante comuns sobre a Rússia em nosso imaginário. O clima frio sugere a representação de 35

personagens com roupas de inverno pesado, assim como situações em que eles conversam sentados em sofás, tomando chá, servidos com o tradicional samovar3. Apesar desses desafios e aparentes entraves, mesmo nesse período, havia interesse pela obra do autor por parte da classe artística brasileira. Uma evidência desse interesse são os escritos de Antonio Callado (1917-1997), jornalista e dramaturgo brasileiro, que publicou uma série de críticas e resenhas sobre as peças de Tchekhov (NASCIMENTO, 2013) nos jornais brasileiros da época. Em uma dessas críticas, ele aponta os aspectos que, segundo sua visão, tornariam o escritor russo familiar a nós, brasileiros:

Poucos escritores estrangeiros são mais intrinsecamente brasileiros do que Anton Chekov. (…) Equilibrado e sensato, cuidadoso das aparências, mais "europeu" do que russo, viu perfeitamente, viu tão bem quanto o grande Dostoiévski, a revolução que se acercava, mas viu-a de forma muito mais nossa: as elites russas não eram elites nenhumas, os fazendeiros e senhores de engenho não eram nem maus nem bons, mas estúpidos e imprevidentes, todo o mundo via o errado de tudo, mas ninguém queria dar-se o trabalho de endireitar nada, todos falavam muito em cultura mas ninguém a conhecia fora dos livros, cultura viva, inventada, fecunda. Sua peça "O Cerejal" ou "O Pomar de Cerejas" ou como a chamemos, podia desenrolar-se numa fazenda de café, assim como ‘As três irmãs’ podia acontecer num engenho de açúcar (...)" (CALLADO in NASCIMENTO, 2013, p. 07)

Em seu comentário, Callado expõe os motivos pelos quais acredita que a obra do autor russo não é tão distante de nossa realidade, como muitos em sua época acreditavam ser. A despeito de considerar o dramaturgo “mais ‘europeu’ do que russo”, mostra como os cenários escolhidos por Tchekhov encontram exemplos análogos no contexto brasileiro, citando uma fazenda de café ou um engenho de açúcar. Não só as paisagens, mas pode-se fazer um paralelo também com os conflitos e a postura da classe dominante. A elite russa e os fazendeiros e senhores de engenho (elites brasileiras) pareciam ter a mesma passividade em suas posturas perante o mundo: gostavam muito de falar sobre o que precisava melhorar, mas não “dar-se o trabalho de endireitar nada”. Outro exemplo de aproximação ainda nesse momento inicial é o caso do também dramaturgo brasileiro Jorge Andrade (1922-1984), que, em algumas obras, especialmente A Moratória (1955)e Rasto Atrás (1964), estabelecem, com a obra de Tchekhov, pontos de contatos estilísticos, temáticos e de composição dos personagens, revelando que o escritor brasileiro estudou e se inspirou fortemente na obra dramática do escritor russo. (CATALÃO,

3Utensílio culinário de origem russa, usado para aquecer água e servir chá. Muito apreciado pelos czares do século XIX, e frequentemente citado por autores russos, como o próprio Tchekhov, Dostoievski, e Tolstoi. 36

2011a e 2011b) A primeira tradução em edição brasileira de suas grandes obras ocorreu somente na segunda metade da década de 50. (NASCIMENTO, 2013) Para completar esse panorama, nas reportagens dessa época, os críticos frequentemente mencionavam que as peças "tinham um tom melancólico e um ritmo lento" (NASCIMENTO, 2013), de maneira que os grupos profissionais ainda não compreendiam plenamente o ritmo das peças e tinham um certo receio de encená-las por medo de não agradar o público. Segundo Arman Saribekyan, a linguagem de Tchekhov na Rússia é extremamente popular (SARIBEKYAN, 2015). O ator armênio esteve no Brasil em 2015, para dirigir um espetáculo a partir da obra de Tchekhov com o grupo Os Geraldos, do qual faço parte. Saribekyan é ator da reconhecida companhia francesa Théâtre du Soleil(Paris – França), cuja experiência cultural e formação artística o aproximam de Anton Tchékhov de uma forma bastante singular: ele conhece o idioma russo com fluência, encenou peças do autor na Rússia e ministrou em vários países workshop sobre o trabalho do ator baseado nos principais textos dramáticos tchekhovianos. Saribekyan, além de falar russo e francês, também sabe português e inglês. Nossa comunicação se dava prioritariamente em português. Entretanto, havia no grupo duas integrantes que falavam francês fluentemente, de modo que quando alguma comunicação não se estabelecia em português, ou mesmo nos momentos de tradução direta dos textos e vídeos russos para o português, havia também essa outra possibilidade de encontrar as palavras por meio do idioma francês. No trabalho com Arman, o principal desafio do grupo Os Geraldos estava em lidar com a adaptação cultural e social das obras do autor para o contexto brasileiro, sem cair em clichês, uma vez que, como vimos, embora o cotidiano seja sua paisagem mais comum, a essência está nas nuances e subjetividades do comportamento humano. Nesse sentido, dependendo de como tais indicações dramatúrgicas fossem trabalhadas, a encenação corria um grande risco de se tornar exacerbadamente psicológica, sem ação e tediosas para o público, fazendo com que ficasse inatingível para o espectador toda potencialidade de suas obras. Sobre este aspecto, Arman apontou que: “Tchekhov é um dos autores mais montados e um dos menos compreendidos, pois frequentemente suas peças são mal interpretadas e suas encenações recorrem ao folclore de uma Rússia imaginada ou a um ‘psicologismo’ decadente”. (SARIBEKYAN, 2015) 37

O ator se refere aos clichês que vislumbrou em grande parte das encenações a que assistiu e que, como vimos, coincidem com o modo como Tchekhov foi lido e encenado no panorama inicial da história do teatro brasileiro. Segundo sua visão, a referência do cotidiano trazia consigo uma mal-interpretada Rússia, imaginada de maneira folclórica, já que, especialmente aqui no Brasil, estamos muito distantes culturalmente desse país. Entretanto, apesar da visão errada da melancolia e lentidão, isto é, de leituras pouco aprofundadas das peças, vislumbrava-se, como Callado observou, os pontos de contato entre os contextos brasileiro e russo, que atraíam os artistas. A chave do trabalho da proposta de Saribekyan com o grupo caminhou nesse sentido: enfatizar aspectos mais universais desses personagens. Os atores deveriam se esforçar para entender e criar em "carne e osso" as características que os fazem tão humanos, e por isso, tão universais, seja na Rússia, seja no Brasil. Nesse sentido, o primeiro aspecto sobre o qual o grupo se debruçou foram as traduções dos textos de Tchekhov. Segundo o ator, a má compreensão de Tchekhov passa, invariavelmente, por um problema de traduções de baixa qualidade, que deixam de lado dimensões fundamentais do texto do autor:

A linguagem do personagem é, em muitos casos, a ‘chave’ para compreendê-lo, pois sua forma de falar o situa de antemão quanto a sua classe social ou a seu nível cultural. Assim, há nuances que escapam ao tradutor e que retiram o cômico tão presente em toda a obra do autor e, por isso, os personagens se tornam banais e seus propósitos também, consequentemente. (SARIBEKYAN, 2015)

Para que o grupo de atores d’Os Geraldos pudesse capturar essas diferentes nuances dos personagens, sem se contaminar por traduções inadequadas, Arman trouxe um grande livro de Tchekhov em russo, com as suas quatro obras maiores, algumas peças curtas e muitos contos também. Como trabalhamos com cinco atores, em um período de apenas três meses, consideramos que os contos curtos de Tchékhov, mais do que suas peças, seriam um bom ponto de partida do processo. Muitos de seus contos são bastante teatrais: há situações dramáticas, personagens, subtextos e ações muito bem desenhadas, facilitando o processo de adaptação para cena. Além disso, é possível perceber nesse material traços estilísticos de sua escrita, como o tratamento cômico das situações e dos personagens e o final em aberto, que foram mais desenvolvidos com grande genialidade em suas obras dramáticas. Um dos primeiros contos que investigamos foi O gordo e o magro. Fizemos um trabalho de revisão do texto que se valeu de duas traduções para o português, uma publicada 38

pela Editora L&PM no Brasil, feita por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, e outra, uma edição de Portugal, de Marina Khabenskaya, publicada na Revista de Letras do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto – Portugal. Trata-se de um conto curto e humorístico, no qual dois amigos de infância, um magro e outro gordo, reencontram-se numa estação ferroviária. A situação, que a princípio parece alegre e afetuosa para ambos, transforma-se completamente quando o gordo revela ao magro que se tornou um burocrata importantíssimo. Nesse momento, o magro, que minutos antes lhe contava empolgadíssimo sobre seu casamento e sua ‘vidinha mais ou menos’, fica apavorado, mostrando-se um bajulador e mudando radicalmente o modo de tratar seu amigo de infância. O gordo sente-se enojado diante de tal atitude e se despede secamente. Esse encontro ocorreu num lugar muito inusitado, público e de passagem, em que dificilmente se encontraria um conhecido. O gordo, chamado Micha, estava sozinho, provavelmente a negócios e de passagem, enquanto o magro, que se chama Porfíri, vinha acompanhado por sua esposa, filho e carregado de malas, trouxas e caixas – estava de mudança para aquele lugar. Os amigos se encontram e, após duas falas curtas trocadas, Porfíri começa a falar esbaforidamente. Na tradução brasileira:

Ah, meu querido! – começou o magro, depois de se beijarem. – Que encontro inesperado! Mas que surpresa! Olhe para mim! Continua bonitão como sempre! A mesma simpatia e elegância! Mas, veja só você! Meu Deus! E então, como você está? Está rico? Casou? Eu já sou casado, como pode ver... Esta é minha mulher, Luíza, nascida Vanzenbach... luterana... E este é o meu filho, Nafanail, aluno do terceiro ano do ginásio. Este, Nafânia, é um amigo de infância! Fomos colegas de ginásio! (TCHEKHOV – trad. SOARES, 2011, p. 55)

Na versão portuguesa:

Querido amigo! – começou a dizer o magro depois de se terem beijado – Não estava nada à espera! Que surpresa! Vá, olha bem para mim! Continuas a ser um bonitão! Sempre encantador e janota! Deus seja louvado! Vá, conta lá como vai a tua vida? Estás rico? Casado? Eu já sou casado, como vês... Esta é a minha mulher Luísa, Vantsenbakh em solteira... protestante. E este é o meu filho, Nafanail, aluno da 3a classe. Este, Hafania, é um amigo da minha infância. Estudamos juntos no liceu! (TCHEKHOV – trad. KHABENSKAYA, 2011, p. 298)

Mesmo em se tratando de uma tradução portuguesa e uma brasileira, ambas foram consideradas inadequadas por Arman, porque os adjetivos e a linguagem usada tornariam o conto mais intelectual e menos popular. Comparando com o russo, Saribekyan evidenciou que 39

as falas são diretas, simples, como em uma conversa cotidiana entre dois amigos. Buscando se aproximar dessas características, a versão do grupo para esta fala ficou:

– Meu querido! – começou o magro, depois de se beijarem. – Nunca imaginei! Que surpresa! Olha para mim! O mesmo bonitão de sempre! Fofo e elegante! Ai, meu Deus! E, então, como você está? Rico? Casado? Eu já sou casado, como pode ver.... Esta é minha mulher Luísa Vantsenbakh em solteira... luterana. E este é o meu filho, Natanael, aluno do ginásio. Este, Natan, é um amigo de infância. Estudamos juntos no ginásio. (Grupo Os Geraldos e Arman Saribekyan)

As alterações são pequenas, porém significativas, especialmente levando-se em consideração uma transposição para a cena. A busca foi por traduzir na fala o estado eufórico do magro, sintetizando as perguntas, por exemplo – “Rico”? “Casado?” –, e deixando-a mais cotidiana, como por exemplo – “Fofo e elegante!”. O exercício da revisão da tradução foi feito também por meio de improvisações, em que os atores, ao se colocarem ficcionalmente nas situações propostas nos contos, agiram como se fossem aqueles personagens. Desta maneira, também é possível levar em conta não só as palavras usadas, mas o ritmo de dizê- las, a cadência entre as frases, as entonações, porque sempre há em Tchekhov algo submerso, escondido. Assim, Saribekyan dirigiu a pesquisa prévia do grupo, para que os atores encontrassem a verdadeira linguagem do personagem. O estudo passava, invariavelmente, por um trabalho de uma dedicada compreensão do texto e, ao mesmo tempo, um incansável trabalho de improvisação. Os atores deveriam apresentar as nuances descritas com seus corpos, usando a própria imaginação como referência. Para ampliar o imaginário da cultura russa, os atores assistiram a algumas versões dos contos e de cenas das peças mais longas de Tchekhov interpretadas por grandes atores russos da década de 1960. Os vídeos eram em russo e sem legenda para o português, mas a tradução simultânea feita pelo próprio Arman e o fato de todos conhecerem previamente os textos possibilitou o entendimento. Essas referências foram verdadeiras aulas de interpretação para o grupo: nos inspiramos em algumas ações, trejeitos e caracterizações. Ao vermos o vídeo, tínhamos uma impressão mais concreta dos aspectos dos personagens que Saribekyan descrevia. Dessa maneira, frequentemente Arman, além de auxiliar com uma tradução direta e simultânea dos textos do russo, também fornecia dados de contextualização cultural e, sobretudo, linguística. Ainda em relação a isso, uma das chaves de leitura dos personagens tchechovianos usada por Arman era que "o caráter de cada personagem também está implícito 40

em seu nome – embora não sistematicamente." (SARIBEKYAN, 2015). Como exemplo, citou alguns personagens de A Gaivota:

Arcadina: seu nome indica que ela é estrangeira à sua sociedade, pois não é um nome de origem russa, e sim grega: Arcadia, país mítico, paradisíaco. É, portanto, alguém que busca a felicidade, mas em outro lugar, num paraíso perdido. Seu nome de casada é Treplev, que significa alguém que fala muito, que desperdiça seu potencial, que se gasta em palavras. Trigorin: significa três desgostos. Ou seja, desde o início, sem precisarmos escrever a gênese do personagem ou analisar seus subtextos, sabemos que ele vai magoar três pessoas: Nina, Arcadina e Treplev. Sorin: na etimologia da palavra: lixo. Aquele que suja, que gasta, que parasita. Masha: o nome mais ordinário nessa cultura, ou seja, alguém que não tem uma individualidade muito desenvolvida, que não tem muitos interesses. Nina Zarechnaia: significa aquela que não deve nunca prometer nada. Ou seja, seu destino de personagem já está traçado, assim como na tragédia grega ou na Commedia dell’Arte. Como ela não consegue fugir, vai, inevitavelmente, ao seu encontro. Os personagens menos importantes ganham nomes comuns que denotam a falta de importância do mesmo no enredo ou simplesmente sua posição social, como: Iacov: um nome muito comum entre os camponeses. Shamrayev: é um nome que não é muito compreensível, o que revela o lado obscuro desse homem. (SARIBEKYAN, 2015)

São características reconhecíveis nos personagens, que encontram correspondência no desenrolar dos acontecimentos. Conhecer esses significados pode ajudar o ator na composição de seu personagem em "carne e osso", como Saribekyan fazia questão de salientar. O trabalho com Saribekyan resultou na construção do espetáculo O Drama e outros contos de Anton Tchekhov, composto da encenação de quatro contos: O Drama, O Criminoso, A Pamonha e A Corista. O grupo fez uma revisão de tradução dos três últimos contos, bem como suas adaptações dramatúrgicas. O primeiro conto foi uma tradução inédita, pois não se encontrou versão publicada em português, somente em espanhol. A dramaturgia do espetáculo se encontra disponível nos anexos da tese. O trabalho com a tradução, bem como o conhecimento aprofundado do contexto cultural e linguístico do autor, foram fatores imprescindíveis na compreensão do "cotidiano", presente não só em suas peças, como nos contos também. Um dos desafios em encenar Tchekhov no Brasil está em como compreender esse cotidiano, de maneira que não seja um clichê de uma Rússia folcloricamente imaginada e que tenha uma equivalência com o contexto social e cultural brasileiro. 41

Há inúmeras semelhanças entre os "mundos" de Tchekhov e a vida brasileira. Em consonância com o comentário de Antônio Callado, no conto O Criminoso, por exemplo, há uma situação absurda de um servo miserável que é condenado por roubar porcas dos trilhos de trem. Além do aspecto social, já que também aqui assistimos a condenações da classe mais pobre por pequenos furtos, enquanto crimes de corrupção cometidos pelos políticos - representantes da classe dominante e do poder - dificilmente são punidos. Há, sobretudo, um aspecto humano muito forte nesse personagem: esse servo é um homem miserável, que, sem acesso a qualquer formação ou estudos, vive imerso numa grande ignorância. É um sujeito simples, que parece ser feliz, apesar de sua situação, exatamente porque não é capaz de enxergar as graves consequências de suas limitações. É um tipo que gera muita empatia e é facilmente reconhecível nos interiores do Brasil. Para além dessa questão temática, há a questão formal da teatralidade inerente à obra de Tchekhov. Esse é um aspecto que comemumente atrai os artistas brasileiros a "sonhar" com as obras de Tchekhov. O teatro brasileiro apresenta um caráter altamente épico, no sentido da exacerbação da teatralidade. O uso de fragmentação, música, tipos consiste em nota comum.Entretanto, é uma teatralidade muito diferente da teatralidade de Tchekhov. O teatro brasileiro é marcado por um certo clima de festa e, ao mesmo tempo, por precariedade material. Somos expressivos, falantes, sentimentais, caóticos e até mesmo indisciplinados. Essas características, no contato com o diretor armênio, que trazia consigo um cultivo por uma tradição teatral eslava bastante autoritária, tornaram o trabalho do grupo bastante árduo. Se, por um lado, a direção de Arman favoreceu uma compreensão dos personagens tchekhovianos do ponto de vista linguístico e cultural, por outro lado, foi um choque muito grande para o grupo o seu jeito dogmático de trabalhar, acostumado a diretores com características culturais e de convívio mais próximas às suas. Independentemente das diferenças de análise e recepção que a obra de Tchekhov possa ter no Brasil, o interesse por ela aumenta4, ainda mais com o aparecimento recente de traduções diretas do russo. Essa tese apresenta a análise de como três grupos bastante distintos, localizados no eixo Rio-São Paulo, leram e adaptaram cenicamente duas das peças mais importante do autor. São espetáculos que se propuseram, de maneiras distintas, a

4 Algumas encenações importantes das décadas de 80 e 90: Jorge Takla, com O Jardim das Cerejeiras (1982) e A Gaivota (1996); Celso Frateschi com Tio Vânia (1989) na EAD; Francisco Medeiros montou A Gaivota (1994); e Enrique Diaz encenou As Três Irmãs (1999) (Cf. Nascimento, 2013).

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encontrar equivalências no cenário nacional que dessem conta da atmosfera de cotidiano presente na obra do autor e também procurassem ressaltar sua inerente teatralidade. A primeira encenação selecionada ocorreu na década de 70, quando, em 1972, o Teatro Oficina, já com mais de 10 anos de atuação nos palcos do teatro brasileiro, sob direção de José Celso Martinez Côrrea, popularmente conhecido como Zé Celso, decidiu encenar o texto As Três Irmãs. Nessa ocasião, a recepção do público brasileiro via Tchekhov como um autor cômico nas suas peças curtas; e dramático, ‘pesado' e lento em suas peças maiores. O dramaturgo começava a se tornar mais conhecido no Brasil. Nessa época, segundo estudo de Nascimento, havia um vínculo muito forte com as famosas encenações do TAM e, por consequência, ao Sistema de Stanislavski. (NASCIMENTO, 2013) A vinculação ao sistema de atuação russo foi inevitável especialmente nesse momento inicial. Entretanto, em torno dessa referência, havia distintas possibilidades de interpretação e um pouco de especulação, o que poderia resultar em abordagens no mínimo diversas entre si e, em alguns casos, até equivocadas acerca do que seria o "modelo stanislavskiano". Naquele momento, havia apenas uma tradução em português (de Portugal) aqui no Brasil da peça As três irmãs, que não usava palavras e expressões coloquiais, e sim uma linguagem erudita, sem oralidades. Não é de se estranhar, portanto, que Zé Celso tenha optado por revisar a dramaturgia e não seguir a tradução disponível. Nesse trabalho, Zé Celso trabalhou o texto a partir dos ensaios, fazendo uma aproximação com falas do cotidiano brasileiro, sem perder fidelidade com a obra. O diretor percebeu o que os encenadores anteriores de Tchekhov no Brasil não tinham percebido: que a peça tinha uma simplicidade, a ser alcançada também por meio das falas coloquiais, recheadas de expressões populares, inclusive com canções do povo. Na segunda análise, daremos um salto temporal para o final da década de 90, quando Daniela Thomas assinou a direção de Da Gaivota, espetáculo baseado em A Gaivota. Nesse momento, o dramaturgo já era bastante conhecido e encenado, sob diversos pontos de vistas e approaches, no meio artístico brasileiro. O espetáculo de Thomas traz mais uma possibilidade de abordagem do texto dramático de Tchekhov no contexto brasileiro. A diretora não buscou fazer uma representação de sua obra dramatúrgica, mas colocar o texto como base para uma discussão sobre o fazer teatral, questão fortemente presente na obra do autor e que lhe interessava. A partir de algumas versões de traduções de sua obra em português e francês, a adaptação dramatúrgica trazida pela encenadora suprimiu vários personagens e situações dramáticas, trazendo à cena um recorte de diálogos e monólogos entre os quatro personagens artistas e mais dois secundários. 43

A encenadora trouxe grandes nomes do teatro brasileiro para interpretar os personagens tchekhovianos. Em uma abordagem que flerta com a performance, na esfera da recepção: como eram atores conhecidos pelo público brasileiro, foi possível estabelecer um jogo de identificação entre os personagens ficcionais e os atores que representavam tais papeis, tornando a discussão sobre os diferentes jeitos de se fazer teatro interessante ao público e artistas brasileiros. Fernanda Montenegro – a grande dama do teatro brasileiro -, por exemplo, que, além de integrar o elenco, foi responsável pela produção do espetáculo, atuou como Arkádina, uma atriz representante de um teatro mais convencional na peça de Tchekhov. Por fim, a tese apresenta uma última análise, de um espetáculo que estreou em 2006, baseada na mesma obra dramática, Gaivota - tema para um conto curto, com direção de Enrique Diaz. Esse espetáculo teve uma proposta de exploração do texto dramático a partir da materialidade do jogo dos atores, que resultou em uma criação coletiva de um novo texto espetacular. O diretor atua em cena, orquestrando um processo que foi conduzido a três mãos – a dele próprio, a do ator Emílio de Mello e a da atriz Mariana Lima – por meio de diferentes metodologias do trabalho do ator, as quais os artistas, num desejo similar ao de Trepliov, queriam experimentar, testando novas abordagens para cena. Entre essas metodologias, está o Jogo Lúdico, que possui pontos de contato com derivações do Sistema de Stanislavski. O interesse na dramaturgia do autor por artistas brasileiros ficou ainda mais evidente no ano de 2010, em comemoração aos 150 anos do nascimento de Anton Tchekhov, quando foram realizadas muitas montagens comemorativas inspiradas em sua obra, entre as quais a do encenador russo Adolf Shapiro, que dirigiu Chekhov4 - Uma Experiência Cênica, num projeto com atores brasileiros da Cia Mundana de Teatro, que fez um espetáculo a partir de cada um dos atos de cada uma das quatro grandes obras do autor russo. Esse espetáculo foi apresentado no Espaço Tchekhov 2010, um evento promovido pela Fundação Nacional de Artes e o Festival Internacional de Teatro Anton Tchekhov, de Moscou. A programação, além de diversos espetáculos sobre a vida e obra do dramaturgo, contou também com exposições e palestras. Ainda nesse ano, também foi publicado na revista Bravo uma reportagem comemorativa sobre o autor, com análises de espetáculos brasileiros de suas quatro grandes obras. Na última década do teatro brasileiro houve uma continuidade no interesse de grupos de teatro em encenar peça do autor. São exemplos: a montagem baseada na obra Tio Vânia, que o renomado grupo brasileiro Galpão realizou em 2011, com direção de Yara Novais, sob 44

o título Tio Vânia (aos que vieram depois de nós); e o espetáculo O Jardim das Cerejeiras, Cia de Teatro Elevador Panorâmico, com direção de Marcelo Lazzaratto, de 2014. Vários artistas que fizeram parte das encenações analisadas por essa pesquisa continuam encenando obras de Tchekhov nos dias de hoje, com uma obstinação ferrenha em alguns casos. Celso Frateschi, ator que atuou em 1998 na montagem Da Gaivota, dirigiu em 2015 um espetáculo baseado em contos do autor e, em 2016, um espetáculo baseado nas correspondências de Tchekhov. Renato Borghi, que atuou em As Três Irmãs (1972), interpretou o personagem Sórin em A Gaivota, com direção de Nelson Baskerville, no ano de 2015. Analu Prestes, sua companheira no mesmo espetáculo, esteve em cartaz no ano de 2017 com o espetáculo Nada, com direção de Gilberto Gawronski – que atuou em Gaivota, tema para um conto curto. Nessa peça, ela e a atriz Clarisse Derzié Luz interpretam alguns trechos selecionados da obra do autor. Como se fechássemos um ciclo, ainda é importante citar o espetáculo Tchekhov é um cogumelo, baseado na obra As Três Irmãs, que estreou em 2017, com direção de André Guerreiro Lopes. Nesse espetáculo, repleto de recursos midiáticos, o diretor colocou três atrizes de diferentes gerações em cena em diálogo com a projeção de uma entrevista que ele mesmo fez com o diretor Zé Celso, sobre a encenação do mesmo texto do Oficina realizada em 1972.

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CAPÍTULO 2 – As Três Irmãs do Teatro Oficina, uma quebra em cena aberta

“O palco é arte. Pegue um bom retrato, corte-lhe o nariz e introduza no buraco um nariz verdadeiro. O efeito será real, mas o quadro estará estragado.”(TCHEKHOV in ROUBINE, 1982, p.38 )

De acordo com Fernando Peixoto, e muitos outros estudiosos, críticos e artistas do teatro brasileiro, “O Oficina é um patrimônio cultural do país." (PEIXOTO, 1982, p. 08). O grupo é até hoje um símbolo de resistência cultural, sobretudo graças à obstinação de um de seus fundadores – José Celso Martinez Corrêa (Zé Celso). Nasceu como teatro universitário e amador, em 1958, na Faculdade de Direito (Largo de São Francisco) em São Paulo, com um grupo de estudantes – entre eles Renato Borghi e Zé Celso. A companhia se profissionalizou e abriu sede própria no bairro do Bixiga, no ano de 1960, num prédio onde antes, curiosamente, funcionava um centro espírita. No ano de 1972, doze anos depois de muitas experiências com os mais diversos tipos de teatro, surgiu a ideia de encenar o clássico de Anton Tchekhov, As Três Irmãs. O espetáculo, com quatro horas de duração, treze atores mais seis músicos em cena, estreou no dia 26 de dezembro de 1972 no próprio espaço do grupo na cidade de São Paulo, com temporada de dez dias. No início do ano seguinte, 1973, esteve em curta temporada na cidade do Rio de Janeiro, no Teatro Gláucio Gil.

1. O trabalho do ator nos primeiros doze anos do Teatro Oficina

Renato Borghi e José Celso Martinez Corrêa eram alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na USP, quando, no final da década de 50, conheceram-se num bar, onde, àquela época, estudantes e intelectuais se reuniam para participar de atividades culturais e discussões filosóficas. Borghi, aos 21 anos, acabara de voltarao curso universitário após sua primeira temporada no teatro profissional, realizada no Teatro Copacabana, com a peça Chá e Simpatia. Ele decidiu terminar os estudos porque havia prometido à sua família. Zé Celso, segundo Borghi, era um "jovem muito tímido, de terno, gravata e sobretudo" (SEIXAS, 2008, p. 61), que fazia parte da nata intelectual da cidade. A primeira conversa entre os dois foi um papo descontraído sobre MPB. José Celso perguntou-lhe se conhecia a cantora Isaurinha Garcia. 46

Ver Isaurinha Garcia cantando era uma verdadeira aula de atuação: a cantora usava o Método do Actor's Studio para trabalhar na interpretação de suas canções. Quando, em uma outra noite, foram assistir a seu show, a artista deixou uma impressão tão forte que ficaria marcada para sempre na memória de Borghi. Nessa época, os dois estudantes tinham muito em comum: queriam romper com os padrões culturaisda classe média, odiavam Direito e esperavam que algo diferente acontecesse em suas vidas. Foi então que Zé Celso escreveu uma peça que tematizava o conflito de gerações e a libertação dos valores da família. Junto a eles, reuniram-se outros, em sua maioria estudantes de Direito também, e fundaram o Grupo Oficina Amador. Zé Celso escrevia e dava a Borghi os papéis para atuar, revelando-se a ele "meio impositivo" (SEIXAS, 2008, p. 63) mesmo nessa época. Seus papéis no grupo estavam definidos: Borghi como ator, e Zé diretor, atuando também em cena muitas vezes. Após terminarem a faculdade, em 1960, alugaram um imóvel na rua Jaceguai, 520, onde funciona a sede do grupo Oficina até hoje. Foi nesse momento que o grupo passou a ser profissional.

A formação kusnetiana e o teatro realista

Eugênio Kusnet era ator do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e foi convidado por Borghi para se juntar a eles, em 1961. Ele aceitou com a condição de que ministrasse aulas de interpretação ao grupo – era considerado herdeiro de C. Stanislavski. Kusnet esteve com o Oficina durante seus primeiros quatro anos de história e foi em grande parte responsável pela formação desses atores, que ainda eram iniciantes no teatro profissional. O ator e professor iniciou sua vida teatral na Rússia, na década de 20 (PIACENTINI, 2011). Ao contrário do que comumente se pensa, nessa época, início do século XX, não chegou a estudar ou ter contato direto com o próprio Stanislavski e seu Sistema. Entretanto, seu fazer artístico foi inevitavelmente influenciado pelas ideias e conceitos que estavam em voga à época na Rússia, cujo modelo ideal eram as peças e os trabalhos de atores do Teatro de

Arte de Moscou e, por consequência, as pesquisas do mestre russo. O contato com os conceitos do Sistema de Stanislavski ocorreu quando já estava no

Brasil, com a chegada de seus livros aqui, em meados da década de 60:

Só muito mais tarde, aqui no Brasil, quando tive pela primeira vez a oportunidade de ler suas obras, cheguei a reconhecer nos elementos de seu método alguns detalhes de meu trabalho, quase instintivo, daquele tempo. Comparando as 47

experiências concretas de Stanislavski com as minhas, embora muito tímidas e vagas, mas que surgiram sob a influência dele, naquela época, é que concebi a ideia de lecionar a arte dramática na base do método. (KUSNET apud PIACENTINI, 2011, p. 29)

O trabalho com o "método" - além de uma viagem de retorno que fez à Rússia em 1968, na qual teve contato com discípulos diretos de Stanislavski, como Maria Knebel - anos mais tarde levaria Kusnet à publicação de alguns livros, dentre os quais o mais importante, Ator e Método (1975). Seu método consistia em uma análise científica do texto dramático num primeiro momento e, depois, na prática de laboratórios de improvisação em que os atores tinham liberdade para aplicar o que ele nomeava de "memória emocional" (KUSNET, 1975). Segundo Borghi, após dois anos de práticas, em 1963, na montagem de Pequenos Burgueses, de M. Gorki, os atores passaram a entender melhor os procedimentos de criação aplicados por Kusnet. Neste processo de criação, o grupo teve contato pela primeira vez com a literatura dramática russa, e a atuação, em parte graças às suas aulas, foi ganhando em complexidade. Segundo Borghi, os atores aprendiam também vendo-o atuar em cena e observando o modo como ele próprio aplicava esses procedimentos:

O trabalho de Kusnet para criar o pai Bessenov era assombroso. O texto dele, com as anotações de seus subtextos, devia estar exposto em um museu. O curioso é que o trabalho dele partia de um exame meticuloso, frio e calculado das falas e situações da personagem, mas o que aparecia no palco era de um forte impacto emocional. (SEIXAS, 2008, p. 101)

Além do aprendizado teórico e prático dos ensinamentos de Kusnet, foi nesse momento que os atores descobriram a ideia da vontade e da contra-vontade no estudo dos personagens. Ou seja, há o que o personagem quer, mas também há vontades opostas, assim como na vida real, em que somos um mundo de contradições. Borghi explica que, em nosso cotidiano, por exemplo, é bastante comum estarmos, ao mesmo tempo, fazendo algo, mas com o pensamento em algum outro detalhe da vida que queremos resolver (BORGHI, 2016).

Essa ideia era contemplada quando se estudavam as personagens. Como resultado dessa prática encabeçada por Kusnet, criaram o espetáculo Pequenos Burgueses, encenado em 1963. As cenas eram compostas por personagens realistas, nas quais os atores, por meio de sua atuação, causavam na plateia uma forte empatia e identificação, a 48

partir de um exímio trabalho de criação da personagem. Tanto que este espetáculo foi o primeiro grande sucesso do Oficina. Segundo Borghi,

Que foi uma coisa que, dizem, foi uma das melhores montagens realistas já executadas no Brasil. Não sei se é verdade ou não, mas o fato é que realmente a peça teve um sucesso estrondoso. Fizemos 1200 apresentações. (BORGHI, 2016)

Os personagens geraram identificação com o público não só pelas técnicas de atuação adquiridas, como também pelo grupo ter conseguido fazer do espetáculo um retrato coerente com a situação política do Brasil de 1963. A obra de Gorki, escrita em 1901, mostrava uma Rússia em mudança, com o surgimento das primeiras manifestações populares contra a injustiça e o absolutismo do governo czarista. Além disso, tratava de um outro tema que muito lhes interessava: o conflito de gerações entre pais e filhos, com ecos dessa revolução no ambiente familiar. Quando a dramaturgia foi encenada pelo Oficina no Brasil, o presidente Jânio Quadros havia renunciado, e João Goulart, seu vice, que tinha ideias mais socialistas, deveria assumir. Entretanto, a extrema direita e a classe média mais conservadora não queriam que ele assumisse de forma alguma, exercendo uma resistência, que, para o grupo, parecia análoga à situação ficcional. Com essa ponte, os personagens não eram mais simplesmente russos de outro século que nada tinham a ver com nossa realidade canarinha, mas gente com conflitos e ideais muito próximos aos do público brasileiro. Essa característica de encenar seus espetáculos para discutir algum tema político brasileiro e atual foi se tornando cada vez mais marcante e radical com o passar dos anos. O Oficina sempre buscou, mesmo na encenação de dramaturgias clássicas, uma analogia com a situação política do país e também com a situação interna do grupo, de seus conflitos e interesses.

Dramaturgia nacional e liberdade antropofágica

A forte repressão a que o Brasil estava sujeito nesse período por conta da ditadura tornou o tema da identidade com a cultura brasileira cada vez mais pungente. Tanto que, em 1967, depois de alguns trabalhos com obras de autores estrangeiros, a escolha foi por encenar O Rei da Vela, do brasileiro Oswald de Andrade. O texto, apesar de ter sido escrito em

1932/33, era desconhecido do público até então. 49

No espetáculo, cuja musa era , símbolo máximo da breguice brasileira, Borghi conta que havia "aquela vontade de devorar o Brasil e depois vomitá-lo em cena de uma forma poética" (BORGHI, 2016). Esta encenação ficou conhecida como um marco do teatro moderno brasileiro. Entretanto, assim como na primeira encenação de Vestido de Noiva, no início da década de 40, o público demorou a reagir ao novo teatro a que assistia.

(SEIXAS, 2008) Posteriormente, houve uma experiência de Zé Celso fora do Oficina, que traria grandes influências para a forma de atuação posterior do grupo, ao longo de toda sua história. Ele dirigiu o musical Roda Viva, de de Holanda, no Rio de Janeiro. Nessa época, o diretor começou a trabalhar misturando jovens sem qualquer experiência teatral anterior com alguns atores mais experientes, para fazer o que ele chamava de "coro antropofágico". Tratava-se de um corpo coletivo de pessoas, conduzido por corifeus, que, em conjunto, por meio da expressão corporal e de movimentos agressivos e sedutores, se movimentavam em um ritmo que ía aumentando, como "uma grande trepada" (SEIXAS, 2008, p. 141). Esse coro tinha grande importância no desenvolvimento do espetáculo e, em certo momento, avançava em direção à plateia, que se apavorava, em um tipo de intervenção que, naquela época no Brasil, era uma inovação.

Procedimentos do teatro épico com propostas antropofágicas

Após essas experiências antropofágicas, o Oficina recuou um pouco na direção da radicalidade de suas propostas cênicas, pois a censura artística estava cada vez mais presente. Em 1968, estreou Galileu, Galilei, de Bertold Brecht. A peça narra a vida de Galileu Galilei, italiano que, no século XVII, defendeu o heliocentrismo e teve de renunciar publicamente sua descoberta para não ser queimado pela inquisição. Esse foi o ano em que o Ato Institucional número 5 foi aplicado, por meio do qual, dentre outras medidas radicais, a tortura foi institucionalizada. Então este texto era muito propício à discussão que o grupo queria levantar. Foi nessa encenação que, pela primeira vez, Zé Celso trouxe a ideia do coro de Roda Vida, “destemido e antropofágico” (SEIXAS, 2008, p.164), para dentro do Oficina. Além disso, com essa montagem, o grupo começou a radicalizar nos princípios de encenação e interpretação do teatro épico, expondo a metateatralidade, ou seja, os mecanismos de construção da cena, ao espectador. Em seguida, encenaram Na Selva da Cidade, ainda de Brecht, quando o coro antropofágico teve seus dias de glória. Neste momento, começou a haver um certo 50

estranhamento e divisão entre os recém-chegados, que compunham o coro, e os atores mais antigos, que estavam no grupo desde sua fundação. Segundo Borghi,

Nesse momento estava se criando no Oficina uma coisa meio radica, assim, nós, os chamados representantes, éramos atores que tinham nome, tinham carreira, tínhamos prêmios, e os da regimália, que eram o coro. Tinha uma certa animosidade, principalmente deles em relação a nós. (BORGHI, 2016)

O termo "regimália", a que Borghi se refere, é uma gíria trazida pelo diretor argentino Victor García ao teatro brasileiro, sinônimo de "os porra louca". Em defesa do coro, Zé Celso explica que

Não era uma questão ideológica, mas uma concreta e maravilhosa emersão de uma contradição enriquecedora e nova, não só no Teatro Brasileiro, mas Mundial: o ressurgimento, depois de milênios, dos Coros da Tragédia Grega. (CORRÊA, https://blogdozecelso.wordpress.com)

Claramente existia uma separação: havia os membros mais antigos, da formação inicial do Oficina (como Renato Borghi, Fernando Peixoto, Esther Góes, Othon Bastos, entre outros), que eram considerados "caretas" – os atores da palavra, que falavam o texto e representavam baseados na construção de personagens – e o coro, ou a regimália, que eram os atores do corpo. É evidente que Zé Celso namorava a nova corrente, encantando-se cada vez mais com a possibilidade de agir sobre o público desta maneira. Por ser o diretor e um dos líderes do grupo, o coro antropofágico foi ganhando cada vez mais espaço nos espetáculos. Simultaneamente, ia encontrando cada vez menos resistência, na medida em que os atores mais antigos iam deixando o grupo por estas discordâncias. Nessa época, o grupo também estudava técnicas de interpretação de J. Grotowski e queria aplicá-las, sem ter qualquer vivência daqueles conceitos lidos: os atores faziam do seu próprio jeito o que entendiam daquelas leituras, buscando, principalmente, acrescentar práticas corporais constantes durante o processo de criação. Segundo Borghi, “Quanto aos laboratórios, se eram grotowskianos ou não, penso que não teve muita importância. Fomos criando uma nova linguagem, muito nossa, que brotaria durante os improvisos sobre os temas da peça.” (SEIXAS, 2008, p. 168) Os procedimentos para o trabalho criador se acumulavam e somavam-se: ainda realizavam ensaios de mesas de leituras,aprendidos com Kusnet, e, aos 51

laboratórios práticos, em que improvisavam os temas da peça, acrescentavam práticas corporais de luta e alongamento.

O encontro com o Living Theatre

Logo em seguida, ainda por conta da perseguição pela censura, Borghi e Zé Celso foram passar um tempo na Europa, onde conheceram o Living Theatre. Segundo Borghi, esse coletivo, expulso dos EUA por ser considerado muito revolucionário, pregava o fim do texto dramático e de personagens psicologicamente construídas. Seus espetáculos funcionavam da seguinte maneira: eram construídos roteiros previamente, e, no momento da apresentação, o público era levado a participar do evento. Além disso, existiam alguns ideais que faziam parte do trabalho do grupo: “liberdade individual e coletiva através do prazer e do orgasmo.”

(SEIXAS, 2008, p. 177). Essas novas descobertas e formas diferentes de fazer e pensar arte, assim como as experiências que Zé Celso teve nessa época em Nova York e em outros países da América Latina, inclusive Cuba, trouxeram muitas mudanças e influências para o Oficina. O coletivo norte-americano veio ao Brasil e passou quase um ano convivendo com o grupo brasileiro. Segundo Borghi, eles faziam um certo "imperialismo intelectual", pregando o "fim ao texto dramático" e "ode às drogas e ao sexo grupal". Entretanto, esse movimento, somado à ideia do coro antropofágico, não era aceito por todos os integrantes, tensão que acirrou a divisão entre os atores, especialmente Zé Celso e Renato Borghi. Nessa época, o Oficina virou a "Casa das transas", com muitos acontecimentos ao mesmo tempo. A escolha ia se radicalizando em trazer experimentações ousadas, misturando os diversos gêneros artísticos nas salas de apresentações. Os eventos artísticos eram acompanhados de comidas, baseadas em pratos típicos dos moradores do Bixiga. As peças eram dirigidas a um público em potencial sem poder aquisitivo, o que gerou um problema financeiro ao grupo. A solução para amenizar o problema foi remontar o antigo repertório e apresentá-lo em temporadas que foram verdadeiros sucessos de público. Com o dinheiro levantado, o grupo investiu em um trabalho novo inspirado no Living: viajaram por algumas cidades do Brasil, nas quais se apresentavam em laboratórios de criação abertos ao público. Sem o apoio de um texto dramático, havia bastante interação com a plateia, a partir de temas que giravam em torno da ditadura e da consequente apatia da classe média em relação a essa situação política. Além disso, a turnês contavam com 52

apresentações de seu antigo repertório para grandes públicos, chegando a alcançar 6 mil pessoas em uma única sessão (SEIXAS, 2008). Quando retornaram a São Paulo, em 1972, aproveitando os laboratórios realizados pelo Brasil, estrearam Gracias, Señor, criação dramatúrgica autoral do grupo, em que não havia barreira entre público e atores. Borghi (2016) conta que os atores chegavam a rasgar documentos do público, como a identidade e carteira de trabalho. O ator, já um pouco indignado com a postura do grupo, considerava esse tipo de ação um comportamento impositivo em relação à plateia, porque ele se preocupava com o trabalho que a pessoa teria depois para obter uma segunda via de seus documentos destruídos. Nesse momento, o desacordo entre os modos de atuação foi levado ao extremo. Por fim, o espetáculo foi severamente proibido pela censura após alguns meses de temporada e não pôde mais ser apresentado em território nacional.

A crise e o retorno ao trabalho com o texto dramático em As Três Irmãs

Além da censura artística e das discordâncias internas artísticas e ideológicas, o grupo, nesse ano de 1972, passava por uma forte crise financeira. Com todas essas inovações propostas no recente trabalho, os poderes públicos estavam fechando as portas para o Oficina. A experiência estava se mostrando inviável economicamente. Para completar o panorama crítico, muitos atores saíram, ficando, da formação original, somente Zé Celso e

Renato Borghi.

Diante desta encruzilhada, Borghi conta que

Então nós resolvemos fazer um clássico para tirar os olhos do Exército de cima da gente, porque nós estávamos vigiados, às vezes presos, às vezes com aquelas fotografias de frente de perfil, com o dedão, na polícia federal, coisa e tal. Estávamos muito visados, todos. Aí essa coisa era uma coisa diplomática mesmo, de fazer um Tchekhov, que o Tchekhov sempre fala sobre tudo o que a gente quer falar. É impressionante. (BORGHI, 2016)

A escolha recaiu sobre a obra As Três Irmãs, escrita por Anton Tchekhov em 1901, vinda de um grupo liderado por Borghi, que via uma possibilidade de trazer o Oficina de volta ao palco e recuperar seu prestígio. O ator enxergava na encenação deste texto uma opção mais segura, de trabalhar com uma dramaturgia literária, uma tentativa de recuperar o teatro, que, talvez, segundo sua opinião, estivesse sendo deixado de lado. 53

2. As Três Irmãs: o processo de criação da obra dramática

O contexto russo na peça é o da pré-revolução socialista, quando a classe intelectual e mais abastada não agia para alterar os abusos e injustiças de seu governo czarista. Zé Celso achava que no Brasil, muitos anos depois, vivíamos uma situação análoga: os anos de ditadura estavam passando e nada era feito para que algo mudasse. Além disso, o diretor via o mergulho nessa obra como uma possibilidade de fazer uma viagem em profundidade sobre o que haviam sido aqueles doze anos do grupo e, também, uma oportunidade de unificação

(CORRÊA e STAAL, 1998). Segundo reportagem do Estado de São Paulo, essa era apenas a quarta encenação da obra aqui: "É a quarta encenação da peça em São Paulo. Há dezessete anos foi levada pela EAD (Escola de Arte Dramática), sob a direção de Alfredo Mesquita, posteriormente foi montada por Ziembinski, no Rio, e por Giani Ratto, na Bahia." (O ESTADO DE SÃO

PAULO, 1972).

O texto de Tchekhov na tradução e visão de Zé Celso

Zé Celso fez, em primeiro lugar, uma revisão da tradução do texto de Tchekhov, que não foi publicada, mas se encontra parcialmente digitalizada no Fundo do Teatro Oficina, disponibilizada no Arquivo Edgard Lauenroth (AEL), Unicamp/SP. O material apresenta, além do texto da obra dramática propriamente, algumas anotações e grifos do diretor. Numa pesquisa, realizada em bibliotecas da USP, Unicamp e Unesp em sebos do país, por possíveis traduções em português que estariam em circulação nessa época, foram encontrados exemplares do ano de 1965, traduzidos por Augusto Pastor Fernandes, em Lisboa, Portugal. Após essa versão, há uma tradução nacional do ano de 1976 por Maria

Jachinta e Boris Schnaiderman - essa última com grande circulação até os dias de hoje. Se olharmos para este texto comparando-o com a versão mais antiga em língua portuguesa, do ano de 1965, e também com a versão nacional de 1976, veremos como o diretor procurou trazer para a fala dos personagens um português menos rebuscado e mais coloquial. O texto de Tchekhov trata de situações cotidianas em um ambiente familiar, onde as pessoas conversam, logo, é natural de se imaginar que usem uma linguagem menos formal e mais próxima ao coloquial. O autor russo buscava traduzir o jeito de falar e o modo de pensar de cada um dos personagens, em uma escrita a serviço da cena. Nesse sentido, a 54

tradução de Zé Celso estava plenamente sintonizada com a ideia original do próprio autor, recuperando esse traço tão essencial de sua obra dramática e não mantido pela tradução feita na época com a mesma efetividade cênica. Há inúmeras mudanças nas falas dos personagens ao longo de toda tradução. Cabe aqui salientar dois casos, que irão exemplificar tal característica. O primeiro é uma cena do primeiro ato, quando os personagens Solioni e Tusenbach conversam. Na tradução de Augusto Fernandes:

SOLIONI [com voz aguda] - Garoto, garoto...O barão prefere passar sem a sopa, desde que o deixem filosofar. TOUSENBACH - Vassili Vassilievitch, peço-lhe para me deixar em paz… (Muda de lugar) Isto acaba por se tornar irritante. (TCHEKHOV trad. FERNANDES, 1965, p.34)

Na tradução de Maria Jachinta:

SOLIONI [com voz aguda] - Menino, menino, menino...o barão passará até sem comer, contanto que o deixem filosofar. TUSENBACH - Vassíli Vassilievitch, eu lhe pediria que me deixassem em paz… [Muda-se de lugar.] Isso acaba me aborrecendo... (TCHEKHOV trad. JACHINTA, 1979, p. 26).

Já na tradução de Zé Celso:

SOLIONI [com voz aguda] - ne-ne-ne-ne-ne-ne...O barão prefere passar sem a sopa, desde que deixem ele teorizar. TOUSENBACH - Vassily Vassilievitch, eu te peço, me deixa em paz! [mudando-se de lugar]: Isso está ficando irritante. (TCHEKHOV trad. CORRÊA, 1972, p. 11).

Percebemos que as primeiras versões usam uma construção gramatical mais formal. Já na versão de Zé Celso, a fala dos personagens é mais direta e menos formal, aproximando sua fala do português falado. Além disso, na versão de Zé Celso, ele adapta o “garoto” ou “menino” para “ne-ne-ne” que se assemelha com “nenê”, sendo ainda mais irritante e ao mesmo tempo acaba produzindo um jogo sonoro, que coincide com o significado da palavra. O outro exemplo está logo no início do quarto ato, quando o personagem Fedotiki está se despedindo de Irina e Tusenbach. Na tradução de Fernandes:

FEDOTIK - Daqui a dez anos ou daqui a quinze? Mas então, mal nos havemos de reconhecer e cumprimentar-nos-emos friamente…[tira uma fotografia] Não se mexam...Uma última vez. (TCHEKHOV trad. FERNANDES, 1965, p.153)

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Maria Jachinta:

FEDOTIK - Daqui a dez ou quinze anos? Mas, então, mal nos reconheceremos…. Vamos nos cumprimentar friamente… [tira uma fotografia.] Não se movam...Uma última vez..." (TCHEKHOV trad. JACHINTA, 1979, p. 120).

Enquanto que, na tradução de Zé Celso, novamente temos uma frase mais direta e o acréscimo da palavra "aí", que é da linguagem coloquial:

FEDOTIKI - Daqui há dez anos? Ou daqui ha 15. Mas aí, mal vamos nos reconhecer e vamos nos cumprimentar friamente. [tira uma fotografia] Não se mexam...uma última vez...5 (TCHEKHOV trad. CORRÊA, 1972, p. 59)

Essa característica de sua tradução mostra que o diretor pensou o texto "na boca dos personagens", ou seja, olhando para a dramaturgia não como uma obra de literatura acabada em si mesmo, mas sobretudo como uma base para criação cênica, que, para tanto, está a serviço da linguagem teatral e referenciada na linguagem falada. Notamos que, mesmo com as diferenças, ainda é um português que respeita a regras de concordância verbal, coerência, etc. O texto, por consequência, fica mais simples e adequado à linguagem falada, de modo que seu entendimento, tanto pelos atores quanto do público, torna-se mais fácil e direto. Ora, a obra dramatúrgica de Tchekhov foi escrita com a consciência e com o propósito de que fosse falada. Tchekhov era um autor popular na Rússia, que escrevia histórias do povo e para o povo, tendo iniciado sua carreira com a publicação de contos curtos e cômicos em jornais. Neste caso, a tradução, como se buscasse enaltecer um grande autor estrangeiro, compromete a oralidade com o uso de um português mais ornamentado. De que adianta a erudição do português se o sentido para que foi criada a obra se perde? Assim como outros expoentes do Teatro Moderno, Tchekhov traz a linguagem falada para cena. Conseguindo aproveitar essa característica, Zé Celso fez a escolha por linguagem mais coloquial e manteve viva, mesmo após finalizada a revisão do texto traduzido, a busca pela forma mais apropriada de dizer alguns trechos. Isso porque, na perspectiva desse trabalho, para encontrar a palavra certa, havia um fluxo com o trabalho prático da cena. Ele riscava palavras ou deixava duas possibilidades de palavras para exprimir a mesma ideia, mostrando que o material estava em constante transformação, a exemplo da imagem a seguir:

5 Cientes dos dois pequenos erros ortográficos dessa frase ("há" e" ha", cujas grafias corretas são "a" e "a"), optamos por deixar as grafias das palavras exatamente como estão escritas no material de pesquisa. 56

Página do texto As Três Irmãs, tradução de José Celso Martinez Corrêa. São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP.

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Além disso, nesse material também há grifos do diretor em algumas rubricas e trechos do texto. Essas marcações são indícios de que ele iria aproveitar as sugestões dadas pelo autor sobre ações, movimentos e emoções ou, ainda, salientar frases que lhe pareciam mais importantes. O documento revela, assim, elementos que fizeram parte de sua leitura e interpretação da obra. Logo na primeira página do texto, vemos alguns exemplos destes grifos:

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Primeira página do texto As Três Irmãs, tradução de José Celso Martinez Corrêa. São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP.

Seus grifos estão nas informações sobre os figurinos das personagens Macha e Irina – cujas cores são indícios de seus temperamentos e estados de alma. Enquanto Irina está vestida de branco, como personificação da pureza e da esperança, Macha está vestida de preto, quase sempre alheia à alegria da casa e com fortes alterações de humor. Já Olga usa o uniforme azul escuro da escola e corrige as lições das alunas. O encenador aproveita esses signos indicados pelo texto. Ele ainda grifa algumas indicações de ações dadas por Tchekhov. O diretor dialoga com o texto que lhe é dado, utiliza-o em sua composição cênica, ou seja, ele tinha a visão do texto como uma proposta, uma potência a ser atualizada por meio da realização de uma ação em cena. Nesse sentido, o texto de Tchekhov é uma matéria que o diretor busca compreender e criar sobre ela. A descoberta mais interessante dessas anotações, porém, surge quando analisamos as marcações do diretor sobre as indicações de tempo. Ele grifou, por exemplo, todas as informações de tempo que aparecem nessa página: "Meio-dia", "o relógio dá doze pancadas", "Faz onze anos". Essas indicações do cadernos de estudos da dramaturgia são indícios de sua escolha em trabalhar o texto pelo viés simbólico da ideia da passagem do tempo que sempre se renova, com seus ciclos de início e recomeço. O tempo é, de fato, um dos grandes temas da peça. O texto é estruturado em quatro atos, e existem indicações do autor sobre a passagem do tempo, as estações do ano, o envelhecimento dos personagens. O tratamento do tempo é uma constante na dramaturgia de Tchekhov: a ação no primeiro ato começa ao meio-dia e, no quarto ato, quatro anos depois, termina ao meio-dia, como um ciclo que se fecha e recomeça. Zé Celso percebe esse movimento do tempo na ação dramática de As três irmãs e escolhe ressaltá-lo, traduzindo-o por meio da representação dos ponteiros de um relógio que se movimentam e todos os dias completam um ciclo que começa, termina e recomeça no mesmo ponto. A ideia de um ciclo temporal, que começa, termina e recomeça, também aparece na relação de cada ato com as quatro estações do ano. Em todos os atos, há uma menção exata do horário e do local em que se desenrola a ação. Para além de uma representação naturalista da realidade, essas menções temporais e espaciais enfatizam, em cada um dos atos, uma atmosfera simbólica diferente. No início do primeiro ato, é meio-dia, primavera, faz calor. Há uma atmosfera alegre de certa maneira, em razão da comemoração do dia da santa de Irina. É possível deduzir, 59

portanto, que no segundo ato seja verão - há uma festa de mascarada, deve ser a estação mais quente. Os personagens transitam da casa para o espaço externo, entrando e saindo o tempo todo. As situações mais embaraçosas entre os personagens - como a paixão entre Macha e Verchinin, a traição de Natacha e o vício no jogo de Andrei -, entretanto, ainda estão veladas. Já no terceiro ato, a ação se desenrola no meio madrugada, e provavelmente é outono – é uma estação secana Rússia e mais favorável a incêndios, evento que ocorre algumas horas antes da ação começar. Essa atmosfera combina com os demais acontecimentos do ato: os personagens fazem revelações, como se também estivessem se incendiando. No quarto ato, os pássaros estão migrando, indício do início do inverno e, simbolicamente, da partida dos militares, que deixam a cidade: um novo ciclo irá começar. Zé Celso percebeu essas atmosferas simbólicas distintas em cada um dos atos e interpretou a presença forte do tempo como um ciclo em constante recomeço. Segundo sua visão (CORRÊA e STAAL, 1998), a peça tem um movimento singular, em que cada um dos quatro atos representa um tempo, somando quatro tempos, quatro períodos diferentes, que se ligam como um círculo que se fecha, e que, ao mesmo tempo, por ser circular, tem uma continuidade infinita: são quatro as estações do ano, são quatro anos que se passam ao longo da história. A peça começa e termina ao meio-dia. De acordo com a visão de Zé Celso (CORRÊA e STAAL, 1998), cada ato é um marco diferente de um ciclo: o primeiro é o do renascimento de sua consciência, seguido pelo tempo de escravidão e espera, no terceiro, a quebra e a queima, e no quarto, a sua morte. O diretor também acredita em um quinto tempo, de sua primeira ressurreição, pois, no final, esse movimento se quebra (com a ideia da morte, da partida dos militares, do vazio), abrindo espaço para o novo. Ele relaciona esse tempo simbólico com o movimento que, de fato, acontecia nesse período na Rússia, que antecedeu a primeira revolução socialista e originou a União Soviética. Segundo seu ponto de vista, a história "é um ciclo de formação de vida (nascimento, juventude, maturidade e morte) que precede a primeira revolução do século

XX." (CORRÊA in JORNAL ÚLTIMA HORA, 1973).

A concepção cênica de Zé Celso

Para o diretor, cada um dos atos estava conectado com um dos quatro elementos naturais e se relacionava com os diferentes movimentos que o próprio grupo vinha fazendo no decorrer de sua trajetória: 60

A peça começa ao meio-dia, na festa de nascimento [sic] da irmã mais nova, a Irina. Todos os personagens estão ligados em torno de um ponto único: o aniversário. É o primeiro ato e todos estão ligados nesse mesmo alvo… É a primavera, o sol à pino, o início do século. A Irina está lavando flores na água, e a água é o elemento do primeiro tempo. No fim do ato, um peão roda, há uma pequena pausa, é a abertura do segundo tempo. Segundo ato: os personagens já não se relacionam mais todos juntos, mas se organizam em vários grupos, de três em três ou de dois em dois. A unidade do primeiro tempo acabou. São oito horas da noite, verão, o elemento é o ar, o ar de verão… o terceiro tempo é o outono, o fogo. São duas horas da manhã. Os personagens não estão nem mais unidos, nem em pequenos grupos separados: estão todos sós, todos se trombando uns com os outros. É o momento em que o relógio do quarto se arrebenta e o tempo se espatifa. É o momento da quebra, da passagem para o inverno. O quarto tempo é o inverno, é o gelo cobrindo tudo, os pássaros indo embora, é a morte, é o fim. (CORRÊA, 1998, p. 230 e 231)

Sua concepção se conecta simbolicamente com a dramaturgia de Tchekhov, seja pelos elementos da natureza, seja pelas estações do ano. Trabalhar com a água como o elemento do primeiro ato traz uma ideia de fluidez conjunta; ora, todos estão unidos em torno de um único evento, que é o dia da santa de Irina, comemorado na Rússia como se fosse o aniversário. A primavera, por sua vez, traz a beleza da natureza florescendo, do tempo agradável, de calor, que não chega a ser insuportável. Imaginar todas as ações e o comportamento dos personagens contextualizado por essa atmosfera traz uma leveza, uma fluidez para tudo. Já no segundo ato, é noite, verão, e o elemento é o ar. A passagem da água para o ar pode indicar uma dispersão. O ar é um elemento que traz em si essa ideia de dispersar: os personagens já não estão mais todos juntos, tanto que temos várias cenas em grupos menores, ao longo de todo ato. No terceiro ato, é meio da madrugada, outono, e o elemento é o fogo. O fogo é um elemento que causa a transformação: um alimento para ser cozido passa necessariamente pelo fogo e se transforma. O fogo arde e destrói. Neste ato, a simbologia do fogo é muito visível no comportamento dos personagens, que parecem mesmo estar mais sozinhos e com suas emoções e sentimentos ardendo em chamas, tanto que temos várias revelações e desabafos neste ato, além do incêndio que o antecede – que é um acontecimento dramatúrgico que se liga diretamente com este elemento. No quarto ato, é dia novamente, fechando o ciclo, é inverno, tempo de frio e de partida. Há até mesmo uma descrição dos pássaros migrando em uma das falas iniciais de Olga neste ato. Os militares estão partindo, há o duelo e a morte concreta do Barão. O lugar se esvazia, ficando somente as três irmãs no jardim da casa. Olga ouve uma música ao longe que 61

indicaria a vinda de um novo tempo, um ciclo que vai recomeçar. Numa contradição interessante, enquanto no começo da peça todos estão em festa, mas existe uma tristeza por trás por conta da lembrança da morte do pai, no final, apesar da partida dos militares e da morte do Barão, a peça termina com uma música alegre e com um sentimento de esperança compartilhado pelas irmãs. Esse final, segundo a concepção de Zé Celso, era a indicação do início de um "Quinto Tempo". Essa ideia "esotérica" da peça, que traz os elementos da natureza e vê cada um dos atos como um tempo diferente, como uma estação do ano distinta, se coaduna com a atmosfera simbólica presente na dramaturgia de Tchekhov. Zé Celso enxergou a fluidez do texto teatral e uma pulsão de vida no texto. O diretor escolheu trabalhar com os sentidos de transcendência presentes na peça. As Três Irmãs é um texto que abarca diversas possibilidades de sentidos e imagens, entre elas o transbordamento para um futuro que não se conhece. Essas escolhas, originadas de um estudo vertical da dramaturgia – como bem atestam as notações detalhadas do diretor em sua tradução -, ajudaram a aprofundar ainda mais o sentido das palavras e das situações criadas textualmente. Zé Celso compreendeu, de forma artística e criativa, a essência da peça ao enxergar o texto e seus quatro atos como uma espécie de mandala circular. A mandala é um termo que, em sânscrito, significa “círculo” ou “completude”. Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da psicologia analítica, estudou em profundidade a simbologia das mandalas e relacionava-as sempre à simbologia universal do círculo (JUNG, 2008). Esse símbolo também foi usado no cartaz de divulgação do espetáculo. O círculo, como uma espiral, era composto por imagens de toda trajetória do grupo Oficina até aquele momento. Por meio desta simbologia da "completude" e da ideia de circularidade, essa imagem traz visualmente a concepção cênica de Zé Celso sobre o texto de Tchekhov, estabelecendo um elo com a história do grupo brasileiro, e, com isso, particularizando uma obra que, apesar de muito calcada na cultura russa, é também universal.

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Foto: cartaz do espetáculo As Três Irmãs (mandala com fotos da trajetória do grupo). São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP.

O trabalho com o texto à beira mar a partir de “viagens”com mescalina

Zé Celso entendia a peça As Três Irmãs como um movimento de um relógio, circular, que, num dado momento, quebra-se. A partir dessa primeira visão, o grupo estudou o texto junto com uma série de viagens com mescalina orgânica, à beira mar, em Boracéia-SP, trabalhando em cima de uma mandala circular desenhada no chão. Provavelmente havia o desejo de uma ligação mais forte com a natureza, uma vez que a concepção da encenação propunha a ligação de cada um dos atos com um dos quatro elemento naturais. Com os canais de sua percepção mais abertos e alterados, Zé Celso iniciou sua concepção 'esotérica' com um desenho, no chão, de um círculo cruzado, de Norte a Sul e

Leste a Oeste, onde foi marcado um centro:

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No momento em que marcamos o centro, nós tivemos a sensação de poder atravessar a parede, e de que havia uma outra coisa a descobrir do outro lado! e então “(…) nós começamos a ler o texto e a descobrir o seu outro lado, a sua parte esotérica, a perceber que seus quatro atos eram, também, quatro movimentos, ‘quatro tempos’”. (CORRÊA, 1998, p. 230).

Segundo Zé Celso (1998), a sensação provocada pelo uso do alucinógenofazia-os se sentirem como se estivessem em sintonia com os militares russos, enviando um recado para que eles aqui também fizessem sua revoluçãoe, ao mesmo tempo, passando a limpo a de lá. Em entrevista, a atriz Analu Prestes, que interpretava a personagem Irina, descreveu um pouco melhor a experiência:

Então na verdade a gente mergulhava no personagem e era como se nós fôssemos verdadeiramente aqueles personagens. Foi uma experiência muito profunda, uma vivência. (...) Para mim, foram as minhas primeiras experiências nesse sentido. Então é muito doido, né?! Porque você não pode pirar. Agora como faz se você está com todos os seus sentidos a mil. Porque ela abre todos os seus sentidos. A sua sensibilidade fica à flor da pele, você começa a ver além das coisas que estão à sua frente. Você fica horas olhando uma flor, horas olhando um arroz integral e aquele arroz se transforma em milhares de coisas. Agora, como não pirar? Eu não sei te explicar. Eu não sei como isso aconteceu, sinceramente. Porque teve algumas pessoas que não conseguiram e surtaram. É um tipo de experimentação muito perigosa essa. É muito radical. (PRESTES, 2017)

Em seu depoimento, a atriz tenta explicar como eram esses laboratórios durante o processo de criação, mas lhe faltam palavras, por se tratar de uma experiência radical, praticamente uma vivência. Com o uso do alucinógeno, a impressão é que os atores "viviam" a situação ficcional de seus personagens de maneira profunda, buscando encarnar todas as emoções, vivenciando-as com intensidade como se estivessem eles mesmos passando pelas situações ficcionais. A barreira entre ficção e realidade, assim, fica bem tênue, o que leva a atriz a mencionar o grande risco que uma experiência como esta envolvia. Essa experiência pôde provocar nos atores uma sensação real que tinha uma analogia muito forte com a situação ficcional das personagens. A família dos Prosorov estava constantemente fora da realidade ou tentando escapar dela: Irina sonha com Moscou, com o amor, mas tudo não passa de idealizações em sua mente; Macha vive um casamento infeliz e procura a felicidade numa paixão fora do casamento, mas, sem coragem em dar um fim em sua união conjugal, continua nessa relação como se nada estivesse acontecendo; Andrei, que parece se esquecer do quanto é endividado, afunda-se cada vez mais em dívidas nos jogos e 64

finge não perceber que é traído pela esposa; mesmo Olga, que é a mais centrada das irmãs, parece se dedicar exclusivamente ao trabalho, não deixando espaço para sua vida pessoal, também num movimento de fuga da realidade. A imagem a seguir é um registro desse momento inicial do processo de criação:

Foto: Processo de criação na praia. Teatro Oficina, São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP.

Além da ligação com a natureza, almejando uma maior conexão com os elementos naturais, havia a proposta dos atores conseguirem estabelecer um elo entre os temas trazidos pela dramaturgia, o contexto histórico da Rússia com a realidade do grupo - que também estava revendo sua própria história, precisava de mudanças e estava imerso num contexto político em que a censura estava se acirrando cada vez mais e nada era feito para mudar essa realidade. O texto trazia uma situação em que as irmãs estavam "presas" num universo real da casa, do trabalho e dos amigos. Entretanto, seus pensamentos, anseios e desejos não estavam conectados de fato a esse universo. Assim como a sensação descrita por Prestes, que começou "a ver além das coisas" que estavam à sua frente com o uso da mescalina, as irmãs pareciam "ver além" também de seu universo real. Dessa maneira, o uso da substância alucinógena ajudou os atores a se colocar numa situação análoga de "estar fora da realidade e ver além". O uso da mescalina – como um meio para alterar e abrir os canais da percepção –, o contato físico com a natureza e com a grandiosidade do oceano foram elementos que possibilitaram aos atores experiências que visavam a dar estofo à construção dos personagens, 65

ao entendimento da história e de seus significados mais simbólicos. As práticas, nesse tempo e espaço, também visavam a auxiliar na criação da analogia pretendida pela encenação entre a realidade ficcional da dramaturgia e a realidade do grupo.

O elo de ligação entre atores e personagens

Zé Celso enxergava na peça de Tchekhov um movimento circular que passava por quatro fases e, no final, haveria um quinto tempo de recomeço. De maneira análoga, ele identificava, no decorrer dos anos trajetória do grupo, a mesma passagem por esses quatro tempos simbólicos, e esse rumo, ao final, a um quinto tempo, ao novo, a um recomeço. O momento presente de encenar este texto era exatamente essa possibilidade de recomeçar, após um grande ciclo completado. Da mesma maneira, o diretor via uma mensagem no final de AsTrês Irmãs: apesar da morte do Barão e dos militares indo embora da cidade, as três permanecem juntas e com esperanças pelo tempo novo que irá recomeçar. Assim como o sentido da peça como um todo tinha uma equivalência com a autobiografia do grupo e o momento atual de crise, para interpretação dos personagens, cada ator/atriz deveria encontrar um elo, encarando-o como alegoria de lamentação, de exposição das angústias e ansiedades daquele período. A atuação deveria partir de relações vivas com o personagem interpretado, para que a efetividade desta encenação como símbolo da trajetória do grupo de fato se realizasse. A história de Tchekhov é composta por catorze personagens, entre eles as três irmãs que dão título à peça: Olga, Macha e Irina Prosorov. Cada uma delas representa, de certo modo, uma possibilidade de lidar com o futuro, em sua busca pela felicidade. Em entrevista, Borghi conta que os atores tinham bastante semelhança com os personagens que os faziam, pois, já na escolha de cada personagem, foi levada em consideração a possibilidade de se estabelecer esse elo entre personagem e ator. Como o grupo estava desfalcado de seus nomes mais antigos – que eram mais experientes –, além do próprio elenco do Oficina, foram convidados alguns atores que já haviam trabalhado com eles anteriormente, para viver os personagens principais, como a Maria Fernanda para fazer a

Olga, Kate Hansen, a Macha, Analu Prestes a Irina e Othon Bastos, o Barão Tusembach. Com apenas um personagem cortado – o velho Ferrapont – e o próprio Zé Celso em cena como o velho Tcheboutikine, o elenco era composto por treze atores. Sobre sua relação com o personagem, o diretor comenta: "Espécie de feiticeiro. De certa maneira, é quem 66

conduz os acontecimentos, sempre em segundo plano". (NASCIMENTO, 2012, p. 76 e 77) Zé Celso acredita que este personagem, para Tchekhov, teria um pouco do próprio autor. Então, interpretá-lo seria como trazer para cena um pouco dessa figura do autor e dele mesmo, enquanto encenador, "que conduz os acontecimentos". Borghi atuava como Andrei, que, na ficção, era o irmão que deveria ter sido brilhante nos estudos, mas perdera todo dinheiro de suas irmãs em jogos de azar. Além disso, era dominado e traído por sua mulher. Sobre sua identificação com o personagem, Borghi conta que:

Nas Três Irmãs havia uma identificação enorme porque, assim como elas estão sendo postas para fora de casa, eu ia me sentindo expulso aos poucos, porque eu era uma discordância viva. Então, quer dizer, eu também tinha aquele sentimento de repente perder a minha casa, o meu lugar. E assim foi. (BORGHI, 2016)

Borghi usava sua própria memória, trazendo suas experiências pessoais para a criação de seu personagem. Assim como Andrei era posto para fora aos poucos pela sua esposa, ele também se sentia sendo expulso pela "nova onda" em que o grupo se encontrava. Andrei talvez seja o mais solitário dos personagens. As irmãs têm umas às outras, mas ele está separado, tanto delas quanto de sua esposa. Assim também o ator se sentia em seu grupo. Além disso, Borghi também acabara de se tornar pai nessa época e isso era algo novo para ele, assim como para Andrei. Dessa maneira, o ator "emprestava" os sentimentos e experiências de sua vida, particular e no grupo, para se colocar na situação de seu personagem. Assim como seu colega, Analu Prestes, também menciona que se via completamente identificada com Irina:

Eu achava que eu era a Irina. Porque eu me via totalmente Irina. Eu era jovem, estava começando a trabalhar e o trabalho era tudo pra mim, era a minha crença. Então eu me identifiquei totalmente com essa personagem. (PRESTES, 2017)

A atriz, na época com vinte anos, exatamente a mesma idade de Irina na ficção, estava apenas iniciando sua carreira como atriz profissional quando foi convidada por Zé 67

Celso para atuar na montagem. Na época, ela atuava na Cia Pão e Circo, que ocupava o porão do Teatro Oficina com um grupo de jovens atores. Em A preparação do ator (1968), Stanislavski sugere aos atores que a criação de qualquer personagem deveria ser feita a partir de si mesmo. Ou seja, o ator teria que se utilizar de própria sua memória, seus sentidos, experiências vividas e sua imaginação para sua criação ficcional. Como a madeira é matéria prima de um carpinteiro, para o ator, seu corpo, suas memórias e sua imaginação são a matéria prima de sua carpintaria. Na medida em que os atores deveriam encontrar equivalências, analogias entre eles e os personagens, fazendo uma relação com os elementos do Sistema de Stanislavski e com a própria base de formação de atores que haviam tido anteriormente, podemos dizer que, neste processo de criação, os atores fizeram uso de sua memória emocional (STANISLAVSKI, 1968). Mas como isso se dava na prática? Como este uso da memória pessoal e das próprias emoções não se encerrava somente num processo da mente e de fato poderia ser útil no sentido prático, para criação de uma ação em cena, do caráter de um personagem? Há outros elementos do Sistema de Stanislavski que nos ajudam a rastrear e a compreender esse processo de criação ocorrido na prática. Os atores poderiam trabalhar com as circunstâncias propostas e o se mágico. Por circunstâncias propostas, estão compreendidos todos os elementos que estão em torno daquele personagem, sejam eles vindos do texto, como da encenação: o lugar em que se passa a ação na ficção, o cenário – ou, no caso, o local em que fizeram esses laboratórios de criação -, os dados temporais, o que aconteceu antes da ação dramática, ou seja, "tudo que é proposto para que os atores levem em conta na criação" (VÁSSINA, 2015, p. 295). Por meio do uso do se mágico (STANISLAVSKI, 1968) o ator deve, dentro destas circunstâncias propostas, agir como se fosse o personagem, colocando-se no lugar dele. Há aí uma instância dual: o ator se coloca no lugar do personagem. Cada ator fará, portanto, uma interpretação diferente de um mesmo papel, já que empresta de si as memórias, o corpo, imaginação e alma para dar vida a ele. É nesse procedimento que as práticas, treinamentos e estudos anteriores se concretizam e é nele, portanto, que o elo de ligação entre personagem e ator é construído e mantido. Há uma primeira parte voltada a uma espécie de construção, mas, a cada apresentação, é preciso que ela seja reestabelecida, revivida, no aqui e agora, pois é somente neste momento que a criação artística de fato se completa. A fim de estabelecer esse elo, durante o processo de criação, os atores passaram, após o primeiro momento de vivências na praia com a natureza, por laboratórios de improvisação, em que buscavam vivenciar as situações propostas pela dramaturgia. A ideia 68

era explorar ao máximo cada uma das situações e improvisá-las como se estivessem acontecendo na vida real, não se preocupando com o tempo de duração estendido. Borghi explica que "A gente vivia cenas, com as próprias palavras, com as ações que a coisa inspirava. Uma cena, que teria dez minutos, durava às vezes 5 horas." (BORGHI, 2016). Analu também conta que "a gente mergulhava no personagem e era como se nós fôssemos verdadeiramente aqueles personagens." (PRESTES, 2017) e que essa vivência proporcionou a eles profundidade no processo de criação do personagem. Em paralelo com os exercícios de vivência e laboratórios de improvisação, o diretor conduzia um trabalho a partir da dramaturgia propriamente dita, fazendo-os repetir incansavelmente as falas de seus personagens até que fossem ditas de tal maneira que parecessem verdadeiras, trazendo à tona os sentimentos e emoções submersos no texto. A busca por atingir uma "verdade cênica" era também um princípio que estava na base do Sistema de Stanislavski: o mestre russo, muitos anos antes, quando encenou a obra tchekhoviana, trabalhava com seus atores exercícios para que suas ações, falas e emoções parecessem verdadeiras aos atores e ao público. No caso dessa encenação, Analu explica um pouco melhor como se dava esse exercício para se chegar na "verdade do personagem":

O exercício para você falar é você convencer o outro que você está falando a verdade. Você fala para mim uma coisa e eu vou te dizer: 'eu não acreditei no que você está falando.' Aí você vai falar de novo. Aí ele – o Zé Celso – me levou a uma exaustão numa madrugada, que eu me lembro muito bem disso porque ele falava: 'eu não estou acreditando, faz de novo''. E eu fiz zilhões de vezes até chegar a exaustão e a um choro profundo. Aí eu cheguei na verdade da Irina. Eu cheguei naquele momento da profundidade do que aquele texto precisava. (PRESTES, 2017)

A atriz revela que só alcançou a "verdade de Irina" após ter vivenciado uma grande exaustão e um choro profundo. Irina, apesar de sua leveza – aparece como uma menina doce, vestida de branco –, é uma personagem que passa por grandes sofrimentos. Ela é a filha mais nova, perdeu a mãe ainda quando criança. Seu desejo de retornar a Moscou, assim como o de suas irmãs, é também um desejo de retorno a um período que, pela sua lembrança, foi feliz. Um pouco mais velha, mudou-se de Moscou e perdeu o pai também, ainda nova. Macha tem a experiência infeliz do casamento e a paixão avassaladora por Verchinin fora do matrimônio, e Olga se dedica exaustivamente ao trabalho. Nenhuma das duas consegue se satisfazer com seu cotidiano. Irina, no transcorrer da trama, não chega a se apaixonar ou a amar, vive de uma ilusão do que seria o amor, ou do que seria o amor pelo 69

trabalho, porque em nenhum dos campos consegue ter uma experiência concreta e satisfatória. Por fim, seguindo o modelo de ambas as irmãs, acaba aceitando a se casar com o Barão, sem estar por ele apaixonada e começa a trabalhar também, ainda que lhe falte o envolvimento que viria da vivência de uma vocação. Ainda assim, nesse momento, suas decisões mostram que está aceitando a realidade e faz uma opção por tentar ser feliz com essas escolhas. No entanto, suas apostas numa vida feliz acabam mais uma vez não se concretizando: seu pretendente é morto num duelo, e sua vida, suas palavras, apesar da aparente leveza, carregam dor e sofrimento. Por constituir outra via de compreensão dessas circunstâncias, a vivência de ser acometida por um choro profundo foi um procedimento eficaz para que Prestes experimentasse, com o corpo e a alma, toda essa tristeza indizível presente na composição de sua personagem. O efeito alucinógeno da droga possibilitou aos atores um alargamento das sensações, preparando-os para que "vivessem" em profundidade os elementos suscitados pela peça e experimentassem as circunstâncias dos personagens da ficção buscando sempre um elo com sua própria história e com a história do grupo. Em seguida, no trabalho com o texto dramático, havia essa exaustão de dizê-lo até o momento em que ele ficasse verossímil, ou seja, que o público pudesse acreditar que aquela pessoa na frente dele realmente pudesse dizer aquelas palavras. Dessa maneira, após esse longo processo, os atores chegavam à profundidade emocional que o texto pedia e o diretor intencionava. A possibilidade de analisar e entender o processo de criação desse espetáculo a partir de elementos do Sistema de Stanislavski remete primeiramente ao contato que o grupo teve anteriormente ao longo de quatro anos com o Método de Eugênio Kusnet, que é baseado nos princípios do Sistema. É identificável essa referência, que está na base do trabalho desses atores. É possível reconhecer, no processo dessa encenação, como Zé Celso se apropriou dos procedimentos aprendidos anteriormente e transcendeu-os, somando-os às práticas que vinham se enraizando em suas experimentações cênicas desde Roda Viva. Recriando tais elementos do Sistema de Stanislavski de sua própria maneira, acrescentando instrumentos, como o uso da mescalina, por exemplo, ocorria, como consequência, este prolongamento temporal do processo de vivência das situações trazidas pelo texto. O texto de Tchekhov tem um forte teor emocional, observável principalmente nas rubricas das falas das três irmãs, que transitam a todo momento da alegria para a tristeza, se alterando entre a falta de esperança e a esperança plena, ao mesmo tempo em que mantêm uma leveza e uma delicadeza características delas. A impressão é de que, a todo momento, há um rio denso de emoções correndo por suas veias, mas,na superfície, elas mantêm uma 70

leveza, como se suas águas corressem suavemente. Às vezes, esse rio vem à tona e mostra toda sua força, mas rapidamente esse fluxo passa, diminuindo de intensidade, correndo leve novamente. No fundo, elas vivem o tempo todo numa espécie de melancolia. Nesse sentido, as experiências pessoais de cada ator, postas por eles mesmos em analogia com as de seus personagens, foram fundamentais para fazer emergir em cena esse forte teor emocional presente no texto. Além disso, os laboratórios de improvisação fizeram com que eles vivessem em profundidade as situações propostas pela dramaturgia e, por consequência, pudessem entender e dar vazão aos sentimentos dos personagens.

3. O espetáculo

Após aproximadamente cinco meses em processo de criação (BORGHI, 2016), o espetáculo, conforme já mencionado, estreou no dia 26 de dezembro de 1972. Nessa temporada de estreia houve um rompimento no grupo, com a saída de um de seus fundadores - Renato Borghi. No início do ano seguinte, 1973, foram feitas algumas substituições no elenco, e o espetáculo ficou em temporada na cidade do Rio de Janeiro, que também foi interrompida quando estava na metade, por conta dessa desestruturação anterior. A peça tinha um cenário moderno, com vários objetos que pretendiam dar a ideia da circularidade do tempo e trazer à tona todo simbolismo almejado por Zé Celso em sua concepção. O elenco atuava com intensidade, vivenciando as situações propostas pela dramaturgia e, em muitos casos, quase em transe. A ideia de transitar entre os quatro elementos vislumbrados na leitura da peça pelo diretor - água, fogo, ar e terra - se concretizava no próprio comportamento dos atores, em suas ações, na forma como diziam o texto e traduziam as emoções dos personagens, quase que se transformando nesses elementos: tanto que, como será abordado nos próximos tópicos, há um princípio de incêndio em cena. Assim como no processo de criação, havia um ritual feito pelos atores antes de entrar em cena, em que se reuniam, formavam um círculo e ingeriam a mescalina – com exceção de alguns poucos integrantes, aproximadamente meia-hora antes do início do espetáculo, "a gente estava numa roda embaixo dos camarins, quando batia [quando o alucinógeno começava a fazer efeito], a gente entrava em cena e começava o relógio a tocar. O tempo começava a girar. E aí a gente fazia a peça", explica Analu Prestes (PRESTES, 2017). Prestes (PRESTES, 2017) e Borghi (BORGHI, 2016) relatam que esse “estar em cena entorpecido” fazia com que alguns atores esquecessem as marcas pré-estabelecidas pela 71

direção, às vezes até mesmo as falas dos personagens e perdessem um pouco o seu tempo ritmo. Para Prestes, foi uma experiência muito profunda, que a possibilitou vivenciar as emoções da sua personagem e passar isso ao público de maneira "verdadeira". Como veremos nos próximos tópicos, as críticas fazem jus ao sentimento da atriz. Já Borghi, se irritava com essa falta de rigor no trabalho e se preocupava com as consequências nem sempre desejadas que adentrar a esse universo do caos poderiam trazer. Apesar da curta existência, o espetáculo teve um forte impacto na história do Oficina e causou grande impressão na crítica da época – que fez muitos elogios à interpretação e algumas críticas à concepção não convencional de Zé Celso.

O espaço cênico e os objetos cenográficos como signos do tempo

Sobretudo o tempo – e sua circularidade infinita – era a chave de encenação do espetáculo, responsável pelo movimento constante e implacável daquela mandala já vislumbrada no início da concepção cênica de Zé Celso. Estava presente simbolicamente de diversas maneiras em cena: como um grande relógio na parede ao fundo, no formato circular do espaço cênico, num peão que era rodado no final do primeiro ato, numa ampulheta (carregada pela personagem Anfissa, serva da família Prosorov), num relógio, num carrinho de bebê presente em cena conduzido pelo personagem Andrei, e ainda nas pausas após as falas das personagens. As fotos abaixo trazem imagens de dois dos objetos que concretizavam o signo do tempo em cena – um relógio desenhado na parede e um pequeno relógio de mesa:

As três irmãs. Teatro Oficina, São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP. 72

A foto acima, além de trazer a imagem do relógio como um signo do tempo presente em cena concretamente, traz uma composição que recupera algumas características essenciais dessa encenação. À frente, colocam-se as protagonistas e, mais atrás, mais quatro personagens, dentre os quais o velho Tcheboutikine, interpretado por Zé Celso, criando uma composição que, ao mesmo tempo em que parece ser tirada do cotidiano – uma pessoa lendo o jornal, uma mesa de refeição ao centro –, apresenta, ao fundo, panos cobrindo objetos e a parede desenhada com um relógio e números e palavras, elementos que evidentemente quebram com esse aparente "realismo". Assim também o comportamento dos personagens: enquanto Zé Celso está numa ação cotidiana de ler um jornal, as atrizes à frente mostram, em seu comportamento, um gestual com maior amplitude e mais codificado.

O relógio é mencionado na dramaturgia – as 12 badaladas no dia da santa de Irina. Olga, logo no início da peça, lembra que há um ano o pai havia morrido. Em seguida, o relógio badala 12 vezes, exatamente como bateu naquele dia e como bate todos os dias. O tempo passou, aquela hora voltou, e situações diferentes aconteciam. O relógio, portanto, como um instrumento de marcar o tempo, lembra-nos de sua passagem e de sua circularidade – ele é um objeto circular, que marca sempre as mesmas horas. A ampulheta, também um instrumento de marcar o tempo, apesar de não ser mencionada no texto, é posta em cena por Zé Celso nas mãos de Anfissa. A encenação traz, portanto, o signo da passagem do tempo em primeiro plano na cena.

…E As três irmãs, como ela é redonda, tudo nela é movimento. Ela tem um lado cinético, muito bonito. Tem um balanço, um relógio, um peão, um carrinho de bebê com as quatro rodinhas sempre girando, tudo sempre nesse movimento de rodar, para dentro ou para fora. Quando rodamos no sentido horário, trazemos ela de volta para nós. Em As três irmãs é tudo assim: o peão, o relógio que quebra, o tic tac…É 73

uma dança: todos juntos, depois três em três, depois se trombando, se espatifando e, no final, num terreno deserto, a morte, as três sozinhas, mas juntas, abraçadas, parecendo uma árvore. (CORRÊA, 1998, p. 231 e 232)

Nesta fala, reveladora do grande simbolismo enxergado pelo encenador na obra do dramaturgo, Zé Celso explica de que maneira vê esse movimento sempre circular e sua beleza cinética: ele se torna evidente nos objetos e adereços de cena – como o carrinho de bebê, o peão ou o relógio que se espatifa. Esse movimento também se manifesta como uma dança, que, a cada ato, tem uma nova conformação, caminhando do coletivo para a solidão da morte. Essa coreografia não é solitária, pois, apesar de todas as movimentações, as irmãs continuam juntas, mas, no final, estão fixas, enraizadas como uma árvore. George Steiner, em A Morte da Tragédia (2006), analisa o teatro de Tchekhov como sendo uma música, por não ser propriamente a representação de um conflito, mas por pretender exteriorizar crises da vida interior de seus personagens. Assim como a música, o paralelo com a dança pretendido por Zé Celso produz um movimento externo na encenação que tem uma cadência, um ritmo, entonações e agrupamentos, características que poderiam aproximá-lo de conseguir traduzir essas crises, essa vida interior de seus personagens, presentes de forma tão pungente no texto de Tchekhov. Abaixo, o carrinho de bebê e o peão, objetos cênicos que traziam essa circularidade em movimento:

As três irmãs. Teatro Oficina, São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP.

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Na composição assinada por Ricardo Piva, principal cenógrafo da peça e do grupo no período, havia um grande círculo de madeira, que concentrava toda a ação cênica. Apesar do simbolismo deste elemento justificado na fala de Zé Celso, o ator Renato Borghi tinha algumas ressalvas em relação à configuração cenográfica do espetáculo:

Exatamente, o cenário era uma mandala. Eu também entrei um pouco em crise aí. Eu disse: 'Parece uma pizza de pau'. Era de madeira. Deve ter ficado bonito, mas olhando de fora, quando estava sendo construído, eu tinha impressão de ser uma coisa muito pesada, e não era necessário aquele peso todo em cena. Era uma coisa enorme, de madeira. O palco inteiro de madeira em cima da madeira. Era uma enorme pizza de pau em cima de um palco de madeira. Eu já comecei a achar ruim ali. (BORGHI, 2016)

Borghi se pergunta sobre a real necessidade daquele grande tablado circular de madeira em que se passava toda ação cênica, já que o ator não compreendia o sentido daquela proposta. O seu descontentamento revela uma questão importante sob o ponto de vista da atuação: havia uma dificuldade em usar a materialidade daquele cenário para apoiar o jogo dos atores em cena. Tratava-se de uma proposta que tinha um sentido simbólico do ponto de vista da encenação, mas, ao mesmo tempo, talvez não tivesse a mesma efetividade enquanto um elemento material que pudesse ser usado em cena pelos atores. Além disso, o fundo do teatro ficava à mostra – deixando visíveis as marcas do incêndio da década de 60. Pela imagem abaixo, é possível termos uma ideia mais concreta destes elementos:

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As três irmãs. Teatro Oficina, São Paulo, 1972. Fonte: Fundo do Teatro Oficina no acervo AEL – Unicamp/SP.

Deixar o fundo do teatro incendiado à mostra é uma reverberação da ideia do encenador sobre o texto, que deseja fazer um elo com a própria história do grupo. Essas marcas, ao fazerem parte do espetáculo, são apresentadas para o público como um dos elementos da composição cênica, transformando-se em um signo a mais de leitura, que conta a história do grupo e mostra uma marca no tempo e do tempo. Pode-se observar também que eles não usaram todos os móveis e todo ambiente cenográfico mencionados no texto: havia uma improvisação de móveis. Um mesmo objeto cênico – a mesa – era usado na cena inicial, que na dramaturgia acontecia na sala dos Prosorov, e ressignificado no último ato, que acontecia na varanda. Os mesmos móveis eram recolocados a cada ato, criando espaços ficcionais diferentes. Essas escolhas cenográficas – o tablado circular e a utilização dos mesmos móveis para criar diferentes ambientes na cena - mostram que o encenador não tinha uma preocupação em representar de modo realista a dramaturgia. Além disso, os músicos estavam em cima do palco. Ou seja, o encenador estabelecia códigos não-realistas na utilização dos elementos cenográficos, procurando, sobretudo em suas escolhas, oferecer, para além da representação de uma história de ficção, uma camada simbólica de leitura ao espectador, que se coadunava com a sua própria história.

A curta temporada: uma quebra em cena aberta

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Durante a temporada de estreia, uma das apresentações ocorreria na virada do dia 31 de dezembro para o dia 1º de Janeiro, passagem do ano. Eles iriam começar a apresentação às

22h para comemorar a virada do ano em cena. Nessa apresentação, quando já era um pouco mais de meia-noite, ocorria o início do terceiro ato, que, na ficção, acontece logo após um grande incêndio que assola a vizinhança. Estavam todos sob efeito da mescalina. Zé Celso conta que sentiu que ali, da mesma maneira como o enredo da peça tem um ato, cheio de explosões e revelações, também estava acontecendo uma quebra no Oficina. Alguns atores, muito "ligados" por conta do efeito do uso da mescalina, neste momento, saíram da marca estabelecida e começaram a criar uma confusão em cena. Esse ato, dentro da concepção de Zé Celso, tinha uma conexão com o elemento fogo e, nesse momento, os atores "verdadeiramente" encarnaram essa conexão, sendo eles próprios eram como tochas a queimar, a se expandir, a se alastrar. Toda passagem pelo fogo gera uma transformação. E foi o que aconteceu. As coisas não poderiam mais voltar a ser como antes. Nas palavras de Zé Celso: “A partir daí, o terceiro e o quarto ato foram levados num nível de confrontação extrema. De um lado, um teatrão que queria voltar ao teatro do palco, do outro um teatro sagrado recém-descoberto. O fim da peça virou uma guerra de teatros." (CORRÊA, 1998, p. 235) Quando Zé Celso menciona esta "guerra dos teatros", faz referência à divergência interna que havia sobre o que era o teatro para cada um dos fundadores do grupo. Borghi queria voltar ao palco, à representação; Zé Celso e os novos integrantes, por outro lado, ansiavam por radicalizar ainda mais as experiências anteriormente vividas, na redescoberta do que chamavam de um teatro sagrado. Não se buscava simplesmente representar o incêndio – acontecimento ficcional da dramaturgia -, alguns atores queriam vivenciar essa experiência e expor isso, arder, queimar em cena. Os atores, num momento de subversão da representação, queriam vivenciar a situação ficcional dos personagens. Ir além de representar um papel com verossimilhança. Dessa maneira, as duas instâncias, ficção e realidade, se misturaram. Foi nesse momento que Borghi decidiu se retirar:

Aí eu cheguei no meio do palco, interrompi aquela batucada toda e falei: 'Zé, da mesma maneira que eu entrei ali há onze anos atrás, eu estou saindo. Eu não concordo com isso, não acho que o teatro morreu, não acho que a palavra morreu.' Eu tinha que declarar isso no Gracias Señor e era muito dolorido: 'O teatro está morto. A palavra está morta.' Mas eu não acreditava nisso. Então por discordância mesmo de orientação eu estou indo embora. Foi um prazer enorme trabalhar com você. Adeus. (BORGHI, 2016)

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A tensão estava tão extrema que um dos fundadores do Oficina se despediu e deixou o grupo em cena aberta. Quando Borghi saiu, ao perceber não haver mais espaço no grupo para o teatro de palavra, mesmo ele sendo seu último representante, a estrutura interna do grupo ficou bem fragilizada. Afinal, Borghi era um pilar fundamental e um grande parceiro para Zé Celso. Tanto que, mesmo após sua saída, o grupo tentou substituí-lo às pressas e foi se apresentar no Rio de Janeiro para continuar com a temporada, mas, nas próprias palavras de Zé Celso: “A peça era linda, mas não aguentou o desmoronamento do coração interno do grupo." (CORRÊA, 1998, p. 237) Ao longo da trajetória dos primeiros doze anos do Teatro Oficina – quatorze se contarmos desde o momento em que os amigos de faculdade fundaram o grupo amador –, Renato Borghi e Zé Celso optaram por percorrer diferentes caminhos. Enquanto Borghi resistia em acreditar na força de um teatro estruturado e apoiado na palavra e na construção de personagens, Zé Celso levava o grupo a experiências com o coro antropofágico e de cisão com a palavra. Segundo Borghi, na montagem de Galileu, Galilei, que havia ocorrido quatro anos antes, em 1968, o diretor já estava encantado com o coro antropofágico, dando-lhe bastante espaço em cena. Esse movimento, entretanto, em seu ponto de vista, às vezes era excessivo, gerando, por consequência, um clima hostil no grupo, de divisão interna:

O convívio das cenas racionais com o transe carnavalesco tinha um equilíbrio delicado, o que tornava o espetáculo irresistível. Durante a carreira do espetáculo, entretanto, esse equilíbrio foi rompido pelo crescimento e excesso cometidos pelo coro antropofágico. Percebi então que estavam formando dois partidos antagônicos dentro do Oficina: o partido do coro, ou se quisermos, o partido do corpo e os atores da palavra, que falavam o texto e representavam bem. (SEIXAS, 2008, p. 164 e 165)

O período em que o Living Theatre esteve com o grupo no Brasil e a herança que ficou de seus valores e de sua postura libertária acirrou ainda mais a tensão. Logo depois, no início da década de 70, durante a turnê pelo Brasil, as brigas se tornaram cada vez maisconstantes entre ala mais jovem e os mais velhos. A cada dia, Borghi ia ficando mais sozinho, já que, àquela época, muitos dos atores "mais velhos" deixaram o grupo. Grande admirador e amigo de Zé Celso, Borghi entendia que, nesse momento histórico, "uma hora a corda tinha que estourar" (BORGHI, 2016). A trajetória de Renato Borghi dentro do Teatro Oficina foi de suma importância para sua formação como ator. A passagem pelo Método de Eugênio Kusnet foi uma das experiências mais marcantes e que deixou raízes mais profundas em seu jeito de trabalhar: 78

Eu acho que eu encontrei no Oficina tudo aquilo que eu coloco como a minha formação de ator. Eu acho que eu sou uma pessoa que eu sou hoje a partir de toda a pesquisa que eu fiz no Teatro Oficina. Stanislavski, com o Kusnet, no Actors Studios, com o Boal. (BORGHI, 2016)

O ator, mesmo com toda novidade e radicalidade que o rumo das propostas cênicas tomou ao longo dos anos, resistia em lutar por um teatro apoiado na palavra e na construção de personagens. Zé Celso, que convidou o colega de faculdade a desvendar consigo a arte teatral, queria ir até o fim em suas propostas com o coro antropofágico e a possibilidade de agir no público de uma maneira, em sua visão, cada vez mais radical. Ambos estavam interessados em fazer do acontecimento cênico uma discussão política que interessasse ao público brasileiro da época. Quer dizer, qualquer que fosse o texto dramático ou proposta cênica trabalhada, sempre deveria estar em conexão com a realidade do grupo, do país e do público. Assim, a saída de Borghi representa, metaforicamente, por parte do Oficina, um forte questionamento ao texto dramático e à importância da palavra em cena. Tanto que, nos anos seguintes, o jeito de atuar do Oficina tornou-se cada vez mais radical nesse sentido: com espetáculos muitas vezes para grandes multidões e longa duração, sempre com grande interação performática e provocativa com a plateia, extrapolando os limites entre ficção e realidade, ator e público. Para este teatro, a proposta cênica vale muito mais enquanto um acontecimento que pode ser vivenciado corporalmente pelo público, do que só imaginado.

A estreia na visão da crítica

Como vimos, ao longo da trajetória do Teatro Oficina, houve um desejo comum em todos seus espetáculos: ser um meio artístico para discutir com a plateia alguma questão ligada ao contexto político do país. Ainda que a escolha por encenar As três irmãs também tenha sido em virtude de driblar a censura, o grupo não queria deixar de trazer uma discussão. Na época em que o espetáculo estreou, a ditadura estava no auge da censura artística, e Zé Celso via em seu público – a ‘classe média inteligente’ –, que se colocava como vítima passiva e complacente do sufocamento social e político, traços de comportamento análogos aos das personagens principais da peça. Como em um espelho, mostrando a história dessas 79

irmãs, também vítimas passivas e complacentes de um sufocamento, ele pretendia problematizar a postura de sua própria plateia. Mariangela A. de Lima, em crítica publicada no jornal O Estado de São Paulo, concorda com a atualidade e identificação da peça com a realidade brasileira:

Reconhecemos em 1972, a impressionante atualidade da peça. O comportamento dos Prosorov pode ser aplicado também a uma situação cultural. Um exemplo oportuno é o próprio teatro brasileiro, marcado por um compasso de espera e por uma ingênua confiança de que os belos dias do futuro estão calmamente aguardando a nossa chegada. Enquanto isso decoram com cores agradáveis a fachada de uma construção antiga. (LIMA, 1972)

Na história de Tchekhov, na Rússia pré-revolucionária, as irmãs Prosorov eram símbolo de uma classe dominante que esperava por dias melhores, sem conseguir agir nessa direção. Sentiam-se sufocadas, ansiavam por mudanças, tanto que desejavam partir, ainda que não conseguissem agir concretamente em direção a essa outra realidade pretendida. A crítica compara a ficção com a situação da própria classe artística do teatro brasileiro daquela época, que era marcada por uma passividade ingênua, que também se deixava ir levando, aguardando tranquilamente que uma nova realidade acontecesse, como se não fosse sua responsabilidade subverteresse contexto opressor. A atitude passiva tanto na Rússia como no Brasil, se repetia. Essa analogia com o contexto político brasileiro pretendida por Zé Celso nos faz refletir sobre alguns aspectos. O primeiro é se ela de fato se estabelece cenicamente. A crítica de Mariangela de Lima indica que sim. Em quase todas as catorze reportagens encontradas em diferentes jornais da época – paulistas e cariocas –, essa visão é mencionada como fator estabelecido pela encenação. Trazer essa identificação com o momento político brasileiro e também com a história do Oficina permite uma atualização daquele contexto para o público brasileiro. Entretanto, esse aspecto político não seria apenas um, entre tantos outros presentes no texto? Quais as consequências, em sua recepção, na escolha por essa ênfase? Uma outra crítica, publicada no Jornal do Brasil, toca neste ponto:

Por um lado, o texto e o contexto de Tchekhov foram respeitados quase literalmente; por outro lado, a cenografia e toda composição visual são as de um espetáculo moderno e há um empenho no sentido de enfatizar uma ideia política atual discretamente sugerida na peça: a incapacidade da ação da intelligentsia, oculta debaixo de uma torrente de belas intenções, teorizações e divagações. Mas o contraponto entre a confiança na força do texto e sua transposição para um esquema atualizado não se estabelece com o devido equilíbrio.Se intelectualmente José Celso consegue transmitir uma ideia atual através de um texto clássico, cenicamente ele não 80

soube criar uma fórmula para superar as limitações do tom tchekhoviano convencional e fazer um espetáculo autenticamente moderno. (MICHALSKI,1973)

Na opinião da crítica, que provavelmente conhecia o texto dramático antes de assistir à encenação, o espetáculo enfatiza um aspecto político, que, segundo o jornalista, é sugerido discretamente no texto. Entretanto, essa ideia política está na linha de frente de todo o enredo: é bastante perceptível, no texto, o quanto a atitude passiva das irmãs em relação a mudanças em sua realidade é um reflexo da classe social a que pertencem: não só elas, mas praticamente todos os personagens - exceto Natacha, que não é da mesma classe social e toma as rédeas da casa, moldando-a ao longo dos anos, conforme sua vontade – têm esse comportamento intelectual e incapaz à ação. No final do parágrafo, Michalski menciona que, mesmo buscando um approach mais moderno, o diretor não soube superar "as limitações do tom tchekhoviano convencional", referindo-se, provavelmente, ao tom tchekhoviano que era mais comumente conhecido e representado. Mais adiante, na mesma reportagem, o crítico explica a que "limitações" se refere:

José Celso caiu, inclusive, na armadilha na qual praticamente todos os diretores acadêmicos caem ao encenar Tchekhov: a de um andamento excessivamente lento, pontuado de pausas pesadas, e que acaba arrastando o espetáculo a uma duração e uma monotonia exaustivas. (MICHALSKI, 1973)

Segundo sua visão, Tchekhov exige um ritmo dinâmico de encenação, que, nesse caso, na opinião do crítico, não foi alcançado. O espetáculo tinha quatro horas de duração. Em entrevista, Borghi (Borghi, 2016) conta que às vezes as cenas se arrastavam mais, e o tempo de duração tornava-se ainda maior. É possível concluir que essa duração extensa e arrastada fosse um resquício dos laboratórios de criação, cuja proposta era de vivenciar, explorar ao máximo, ir a fundo em cada situação dramática. Além disso, certamente havia uma mudança da percepção temporal dos atores por conta do uso da mescalina antes de entrar em cena. Analu (PRESTES, 2017) conta que, assim como ela, as outras duas atrizes que interpretavam as irmãs, mesmo com o uso do alucinógeno – que era tomado meia hora antes de entrar em cena –, diziam o texto de acordo com o que estava escrito no papel, mas isso não acontecia necessariamente com todos os atores. A atriz explica, inclusive, que não se recorda muito bem de como era para o público acompanhar toda essa intensa experiência: "Para te dizer bem a verdade, eu não me lembro muito, porque você está viajando, você está fazendo o 81

personagem, em cena. (...) A gente ficava em cena 6 horas, praticamente em transe, contando essa história do Tchekhov." (PRESTES, 2017) O público, diferentemente dos atores, não estava "dopado", e, por isso, provavelmente, tinha uma percepção temporal diferente. Possivelmente Zé Celso queria causar um embate com o público, mas a resposta da plateia, ao menos do ponto de vista dessa crítica, parece vir em outra direção: a longa duração, com tom arrastado e monótono, acabava distanciando a cena dos espectadores. A peça era vivida com intensidade pelos atores. A plateia, porém, por conta desse tom mais arrastado, parecia estar se distanciando. Em outra reportagem, encontramos mais um efeito que pode ser decorrente da longa duração da peça. Novamente comparando a encenação com o texto dramático no qual foi baseada, o crítico menciona que o fio narrativo da peça acaba se diluindo: “acredito que quem não conhece o original terá dificuldade em acompanhar a narração, tão límpida à simples leitura do texto." (TUMSCITZ, 1973) As críticas da época mostram também que houve um estranhamento em relação às novas abordagens na criação cênica a partir de um texto dramático e sua encenação. A direção, ainda que ao longo do processo de criação tenha feito um estudo do texto dramático e de suas situações, baseando-se num esquema de teatro que visava à construção do personagem e à identificação dos atores com os personagens que iriam criar – sobretudo pelas referências no trabalho de Kusnet, que estão na base da formação do grupo –, queria superar esse modelo, criando uma cena sem o compromisso de representar o texto de fato. A proposta cenográfica é um exemplo dessa tentativa. Entretanto, sua proposta de modernização foi questionada:

Ainda uma vez sensível à moda da vanguarda teatral, José Celso Martinez usou a belíssima peça russa como roteiro para um espetáculo de exaltação de sua figura como diretor, agora fortalecida por sua própria presença em cena, num dos papéis principais, com segurança surpreendente por sinal. Mas ‘As Três Irmãs’ é um desses textos que perdem muito a qualquer modificação de rubrica. (TUMSCITZ,1973)

Mais adiante, continua:

Mesmo a poderosíssima concepção visual do espetáculo me parece menos forte do que seria o cenário realista pedido pelo autor. Porque a peça vive de uma análise minuciosa do cotidiano. Tentar torná-la vibrante e grandiosa é tirar-lhe grande parte do sopro poético. (TUMSCITZ, 1973)

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De acordo com seu ponto de vista, como vimos, a encenação simbólica criada pelo grupo não seria adequada. Também conhecedor do texto, o crítico indica a preferência por uma encenação que tivesse uma proposta de representação mais fiel às proposições do autor, indicadas em seu texto. Entretanto, a comparação entre texto e cena feita pelo crítico, em que coloca o texto como um modelo que deve ser seguido em cena, não é justa. Ainda assim, apesar da inúmeras críticas à encenação, a reportagem faz um grande elogio à interpretação dos papéis principais:

Maria Fernanda tem, no papel de Olga, o maior momento de sua carreira desde Blanche Dubois. Seu rosto tenso, mistura de medo e uma tentativa comovente de ser amável, numa das últimas cena, quando agredida pelo povo, valeria por si só uma ida ao teatro. Outra grande figura é a jovem Analu Prestes, que consegue um equilíbrio fantástico entre naturalidade e exacerbação, uma Ítala Nandi outra vez. Ainda animadora, se bem que desdosada, como a própria montagem, a interpretação de Kate Hansen. (TUMSCITZ, 1973)

A empatia e o bom trabalho das três atrizes que fizeram as protagonistas da peça, emprestando-lhes toda sua sensibilidade, foram fatores que favoreceram a recepção do espetáculo pelo público. O crítico fala em comoção, mencionando as diversas emoções da personagem Olga, que Maria Fernanda conseguiu concretizar por meio de sua atuação. No mesmo tom de reconhecimento do trabalho dos atores, o crítico Michalski também faz elogios ao elenco:

Mas o maior acerto do espetáculo reside no trabalho do elenco. (...) José Celso concentra seu trabalho criativo na condução de atores, e consegue uma série de desempenhos meritórios, principalmente considerando a inexperiência de grande parte do elenco. (MICHALSKI, 1973)

Ainda que haja questões e consequentes reflexões a respeito do enfoque na visão política que a encenação confere ao texto, da duração extensa e falta de ritmo, da diluição ou não do fio narrativo da dramaturgia e mesmo nos aspectos modernos da encenação, parece unânime entre os críticos que o trabalho de interpretação foi bem conduzido por Zé Celso e bem realizado pelo conjunto dos atores. Esta crítica, inclusive, estende o mérito a todo elenco, apesar de reconhecer a inexperiência de grande parte dele. 83

A efetividade do espetáculo está, em grande parte, portanto, na impressão causada pela interpretação dos papéis, que são complexos, comoventes, contraditórios e risíveis. Os elogios das críticas demonstram que os atores conseguiram compreendê-los e repassar para a cena a vitalidade e a comovente humanidade dos personagens tchekhovianos para o público brasileiro.

Comentários finais:

Este espetáculo foi um marco na trajetória do Teatro Oficina. Nesse trabalho, o grupo radicalizou na experimentação de procedimentos de interpretação, tensionando ao máximo a barreira entre ficção e realidade, e usando a mescalina como um importante ingrediente em seu processo de criação. Pretendeu, com isso, subverter a dualidade do ator em cena e vivenciar "verdadeiramente" a situação dramática do texto. Zé Celso, nesse sentido, se apropria de procedimentos e elementos do Sistema de Stanislavski, colocando o princípio da verdade cênica, em que se baseia o Sistema, também como base fundamental para construção das interpretações em cena. No caso do encenador brasileiro, há a inclusão do procedimento de exaustão, do ultrapassar os limites físicos para chegar na verdade do personagem. Ou seja, ele aponta para o Sistema e o supera. Tais experimentações, por um lado, trouxeram um resultado interessante: há, nas críticas, um grande elogio às interpretações. Entretanto, por outro lado, essa mesma radicalidade em vivenciar totalmente a representação gerou uma grande quebra do grupo em cena aberta. Em cena, o grupo desconstruiu a dramaturgia de Tchekhov por meio da vivência radical de uma situação dramática: desde o início do processo de criação, ao se apropriar do texto e fazer uso de palavras e expressões que "cabiam mais na boca dos atores", até o momento da encarnação radical, do transe. Nesse sentido, o elemento fogo, vislumbrado pelo encenador em sua leitura da obra dramatúrgica, surge na realidade da cena, gerando uma dispersão caótica, que materializou em cena não só a situação proposta pela dramaturgia, mas a situação caótica em que o próprio grupo se encontrava, descortinando o conflito vivido principalmente entre os dois fundadores, um embate entre visões de mundo e a própria ideia do que é fazer arte. 84

No instante em que Borghi, interrompendo o fluxo do espetáculo, retira seu figurino, coloca-se como ator diante da plateia e mostra ao público a realidade dos conflitos internos do grupo. As divergências entre os seus dois fundadores chegaram a um ápice que, ao invés da unificação almejada pelo diretor no início do processo de criação, resultou na saída de um deles do grupo. Por consequência, no curto período após sua saída, a temporada foi interrompida. Depois disso, no ano de 1974, Zé Celso foi preso, torturado e exilado. Esse espetáculo acabou sendo um ponto final no grupo em sua versão inicial. É somente na década de 80 que o diretor retoma as atividades com o Teatro Oficina, mas com uma constituição totalmente diferente.

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CAPÍTULO 3. Da Gaivota, um embate entre diferentes visões de teatro

Ou somos gaivotas ou morremos. Se não tivermos a determinação, a coragem de ir pelos mares, buscar nosso quinhão nas profundezas das águas e levantar vôo diante de qualquer tempestade, NÃO SOBREVIVEMOS. Este voar contra tudo é uma imagem perfeita do ator. (MONTENEGRO, Programa do espetáculo, 1998)

Cem anos depois da lendária encenação de A Gaivota pelo Teatro de Arte de Moscou (1898), no ano de 1998, estreou a versão brasileira encenada por Daniela Thomas: Da Gaivota. A montagem reuniu grande elenco do teatro brasileiro, todos nomes conhecidos pelo trabalho na TV e no cinema, e de reconhecido talento por terem recebido importantes prêmios no decorrer de suas carreiras. A artista, ao encenar, traduzir e adaptar o texto de Tchekhov no Brasil, no final da década de 90, fez a opção de focar na discussão estética, criando um recorte no texto e adaptando-o a partir dos diálogos entre os quatro personagens principais (Nina, Trepliov, Trigórin e Arkádina) – artistas de diferentes gerações – e apenas mais dois secundários: o administrador Chamraiev e o proprietário do local onde se passa a trama e irmão da Arkádina, Sórin. A Gaivota é uma obra que exerce grande fascínio sobre os atores. A peça se iniciacom uma encenação (uma peça dentro da peça), que é um fracasso. Há um conflito entre diferentes gerações de artistas. Arkádina é uma célebre atriz, que está começando a envelhecer e, por isso, sente-se angustiada, e tem um amante, Trigórin, que é um escritor também famoso; o filho dela, Trepliov, é um jovem escritor inovador, que namora Nina, uma aspirante a atriz. O conflito entre gerações ocorre também entre mãe e filho. Existem, ainda, na trama, conflitos ocasionados por amor: as duas mulheres acabam apaixonadas pelo mesmo homem, Trigórin. A paixão de Trepliov por Nina passa, então, a não ser mais correspondida.

Vida e arte se misturam. São temas que fazem e farão sentido a artistas de qualquer época. No final, um dos novos artistas – Trepliov, o escritor – acaba por se matar por não conseguir viver sem a sua paixão, que para ele era toda sua inspiração, e a outra – Nina, a atriz – continua resistindo, apesar de todos os percalços, mesmo não obtendo o tão sonhado sucesso, porque encontrou a sua vocação. A produção do espetáculo brasileiro e a idealização do projeto foram coordenadas pela grande dama do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, que também atuou como Arkádina. Junto com ela, sua filha Fernanda Torres, Celso Frateschi, , e Nelson Dantas ensaiaram durante quatro meses, "tempo normal de uma 86

produção comercial" (FRATESCHI, 2015), partindo já de uma adaptação do texto trazida por

Thomas. Foi realizado um ensaio aberto ao público na cidade de Santo André-SP e uma pré- estreia em 10 de Julho de 1998 no Teatro Guaíra, em Curitiba. A estreia oficial aconteceu em 31 de Julho no Teatro Leblon, no Rio de Janeiro. Ainda em Setembro do mesmo ano a peça teve uma curta temporada em São Paulo/SP, no SESC Vila Mariana, com uma apresentação fechada para convidados e três abertas ao público.

1. Antecedentes: a adaptação dramatúrgica

A adaptação de Thomas consiste em uma redução textual que preserva apenas os personagens, diálogos e situações dramáticas com foco na discussão estética. A forma como essa camada metateatral se desenvolve na encenação amplia uma forte característica do texto do Tchekhov, que é o uso de solilóquios: recurso utilizado tanto na literatura quanto no teatro para explorar o que está na consciência e na cosmovisão dos personagens. No caso de Tchekhov, porém, os solilóquios muitas vezes acontecem com dois personagens em cena, porque o diálogo serve de pretexto para que um deles reflita consigo mesmo, praticamente se esquecendo de que existe um interlocutor. Existe, portanto, no texto, um tom reflexivo favorável à discussão estética que guia essa adaptação dramatúrgica.

A discussão estética na voz dos personagens

Em sua versão da peça, que não teve por objetivo ser fiel ao enredo, como dito, Thomas eliminou personagens e procurou uma concentração da narrativa. Segundo Frateschi (2015), sua intenção era centrar o espetáculo numa discussão estética sobre o teatro, sobre diferentes visões e possibilidades de se fazer arte e deixar todo o restante – os personagens secundários, os conflitos e dramas que os envolvem – em segundo plano. Em entrevista concedida à Folha de São Paulo, Thomas explicou seu trabalho com o texto:

"Eu peguei muita coisa", diz ela. "Fiz um círculo em volta, maluco, com umas cinco traduções inglesas, duas francesas, algumas portuguesas de Portugal, espanholas. E 87

saí brincando, escolhendo o que eu achei o som mais legal." Cortou vários personagens, como Macha, para concentrar-se no conflito das atrizes (a diva Arkádina e a jovem Nina) e dos escritores (o talentoso Trigorin e o jovem Treplev, filho de Arkádina), daí o título Da Gaivota e não o original A Gaivota. (SÁ, 1998)

Apesar do grande recorte (uma vez que o texto original é composto por dez personagens, e existia um número considerável de cenas com os personagens que não aparecem em sua adaptação), Frateschi assegurou que o fio narrativo principal proposto no texto se manteve, deixando a discussão estética em grande evidência (FRATESCHI, 2015). Fernanda Montenegro, em entrevista à Revista Bravo, também esclareceu que a intenção desse conjunto de artistas não eramontar A Gaivota, mas, sim, dar evidência a questões que lhes interessavam nessa obra:

Acho que vi umas três montagens da peça e um filme russo, não muito bom. Essas peças eram todas A Gaivota, mas nós não quisemos fazer A Gaivota, com todos os elementos de uma grande encenação tchecoviana. Não era isso que interessava. Fizemos um trabalho tirado de A Gaivota, uma ousadia que muitos podem achar um sacrilégio. (MONTENEGRO in BRAVO, 1998)

Essa "ousadia" foi estimulada e instaurada pela encenadora, que trabalhou na adaptação do texto antes de iniciar o processo de criação com os atores, processo sobre o qual comenta o ator Celso Frateschi: "ela foi reduzindo, reduzindo, até deixar somente os personagens que seriam teoricamente importantes d’A Gaivota. Mas o que interessava, para ela, era este diálogo do próprio fazer teatral, das visões de teatro." (FRATESCHI, 2015). Para além dos quatro personagens artistas, cuja importância é evidente para desenvolver a discussão pretendida, também foram mantidos Sórin e Chamraiev: o primeiro, irmão de Arkádina e dono da propriedade em que se passa a trama, tem a função de ser ouvinte de Trepliov e de Arkádina e de reconhecer e incentivar o jovem escritor; já Chamraiev – administrador da proprieade – é rabugento, mas tem profunda admiração por Arkádina e quer servir-lhe apesar do desprezo com que ela o trata. Os dois são responsáveis por cenas engraçadas que equilibram a tensão da dramaturgia, ao entrarem constantemente em atritos e emitirem suas opiniões sobre o artista e sua prática, mesmo não sendo representantes dessa classe. Analisando o texto original, é possível intuir alguns trechos que tenham interessado a Thomas. Em vários momentos, especialmente esses quatro personagens emitem opiniões sobre o que pensam do teatro, do fazer artístico e do artista. 88

Ainda no primeiro ato, quando Trepliov está terminando os últimos preparativos para a atuação que Nina fará de seu texto, o jovem escritor reclama com o tio Sórin sobre o egocentrismo de sua mãe enquanto artista. Tem-se a impressão de que ele também se sente muito inseguro diante dela, temendo por sua opinião e aprovação. Nesse contexto, deixa bem claro que a arte como praticada por sua mãe não o satisfaz, tem sede e radicalidade por encontrar algo novo e original: "TREPLIOV Precisamos de novas formas. Formas novas são indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada." (TCHEKHOV, 2004, p.15) Logo em seguida, também emite a opinião de que despreza Trigórin, amante de sua mãe e escritor já consagrado pela fama:

SÓRIN: A propósito, me explique, por favor, que tipo de homem é esse escritor? Eu não o entendo. Vive calado. TREPLIOV: Um homem inteligente, simples, um pouquinho melancólico, você sabe como é. Muito honesto. Ainda está longe dos quarenta anos, mas já é famoso e se sente farto da vida... Com relação ao que ele escreve... como posso lhe dizer? Tem beleza, tem talento... Mas...depois de Tolstói ou de Zola, não dá vontade de ler Trigórin. (TCHEKHOV, 2004, p.16)

Já Nina tem um fascínio pelo famoso escritor, antes mesmo de conhecê-lo:

NINA Como os contos dele são maravilhosos! (TCHEKHOV, 2004, p.18)

A discussão estética também se dá entre Nina e Trepliov. Ainda que sejam da mesma geração, entram em conflito desde o início da trama por terem visões diferentes do que é teatro:

NINA É difícil representar a peça que você escreveu. Não tem personagens vivos. TREPLIOV Personagens vivos! Não se deve representar a vida do jeito que ela é, nem do jeito que devia ser, mas sim como ela se apresenta nos sonhos. NINA Na sua peça há pouca ação, é só declamação, do início ao fim. E, para mim, uma peça precisa ter amor... (TCHEKHOV, 2004, p.19)

Após a apresentação de Nina, no final deste ato, vemos a opinião de Arkádina sobre as novas formas que seu filho se propõe a criar. Em sua visão, Trépliov é pretensioso demais ao propor novas formas:

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ARKÁDINA No entanto, em vez de escolher uma peça comum, ele nos obrigou a escutar esse disparate decadentista. Pois estou disposta a ouvir uma brincadeira, e até um disparate, mas não essas pretensões a formas novas e uma nova era na arte. Para mim, não se trata de formas novas, o que há aqui é apenas má índole. (TCHEKHOV, 2004, p.26)

Por esse breve trecho, é perceptível a má vontade da atriz em compreender a sensibilidade de seu filho. Arkádina não vê como inovadoras as propostas do jovem escritor, mas sim como uma afronta ao que ela considera que é arte. No segundo ato, acompanhamos o movimento de Nina que, no contato com Arkádina e Trogórin, aos poucos vai se desfazendo de sua visão ilusória sobre os artistas. A jovem atriz estranha a humanidade deles: por exemplo,que um escritor tão famoso "passe o dia todo pescando no lago e fique tão contente por ter apanhado duas carpas", assim como ver uma atriz chorar por um motivo fútil. Ela os colocava num pedestal, como seres superiores e inacessíveis, mas aos poucos vai percebendo que eles "choram, pescam, jogam cartas, riem e se zangam como todo o mundo..." (TCHEKHOV, 2004, p.48). Ainda nesse ato, Nina e Trigórin conversam longamente, estabelecendo uma relação amigável – Trigórin revela sua humanidade nesta cena, ao desfazer a ilusão de que a vida de artista é somente "maravilhosa e boa", como imaginava Nina:

NINA Pois então, eu lhe pergunto, o que há nisso de maravilhoso e radiante? Ah, que vida absurda! Agora estou aqui com a senhorita, estou emocionado, e enquanto isso, a todo instante, lembro que uma novela inacabada espera por mim. (TCHEKHOV, 2004, p.52)

E depois continua se lamentando:

NINA quando comecei, escrever era para mim um martírio incessante. (TCHEKHOV, 2004, p.53)

Comenta sobre sua constante insatisfação com sua obra: apesar do sucesso, acha-se medíocre, incomparável aos grandes, exatamente como diz Trepliov. No contato com esses artistas, apesar de ir se dando conta de que, assim como todo ser humano, eles possuem fragilidades, Nina adora Arkádina, uma diva aplaudida de um teatro que as pessoas ainda admiram. Entretanto é uma visão de uma jovem que é oprimida pelos pais e possivelmente muito pouco saiu de seu reduto na fazenda. Já Trepliov, representante também da voz de uma nova geração e de um novo teatro que ainda tenta se 90

consolidar, cresceu convivendo com artistas e possui muitas questões com o teatro que sua mãe representa e mesmo com as obras de Trigórin. O ápice do conflito entre as diferentes gerações e visões de teatro é explorado no terceiro ato, na briga entre mãe e filho. Nessa ocasião, ambos dizem, sem receios e com certa amargura, tudo o que pensam um do outro enquanto artistas, revelando a pretensão característica de uma nova geração face ao orgulho ferido da antiga, que vê seus valores sendo jogados ao vento:

TREPLIOV [irônico] Os verdadeiros talentos! [Raivoso] Pois é, se quer mesmo saber, eu tenho mais talento do que todos vocês! [Arranca a atadura da cabeça] Vocês são apenas banais, tomaram a arte em seu poder e só julgam legítimo e autêntico aquilo que vocês mesmos fazem, e quanto ao resto, tratam de perseguir e sufocar! Não reconheço o valor de vocês! Não reconheço nem a ele nem a você! ARKÁDINA Seu decadente! TREPLIOV Volte para seu adorado teatro e represente as suas pecinhas medíocres e lamentáveis! ARKÁDINA Nunca, em toda minha vida, representei em peças desse tipo. Deixe- me em paz! Você não é capaz nem de escrever um reles vaudeville. Seu burguesinho de Kiev! Parasita!. (TCHEKHOV, 2004, p. 70 e 71)

Entre o terceiro e o quarto atos, passam-se dois anos. Nesse período, Nina, perdidamente apaixonada por Trigórin, abandona a casa do pai e se muda para Moscou a fim de tentar a vida como atriz, mas não tem muita sorte: sua vida pessoal fracassa, ela se envolve e é abandonada por Trigórin, tem com ele um filho, que morre ainda pequeno. O relato de toda essa experiência é feita por Trepliov, que acompanhou de longe as desventuras da jovem, a quem não deixou de amar. No final, Nina acaba por sair em temporadas pelo interior da Rússia – não conquistou a fama como sonhava, mas não desistiu da profissão. Trepliov, por sua vez, alcança projeção, publica alguns escritos e vive como escritor. Nesse momento, o escritor tem uma visão completamente diferente sobre sua arte:

TREPLIOV (...) Eu que falava tanto em formas novas, agora sinto que, pouco a pouco, vou caindo na rotina. (TCHEKHOV, 2004, p.101)

E continua:

TREPLIOV Cada vez mais me convenço de que a questão não consiste em formas novas e formas velhas, mas sim em que a pessoa escreva sem pensar em formas, sejam quais forem, que ela escreva porque isso flui livremente da sua alma. (TCHEKHOV, 2004, p.101)

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Em uma cena de fortes emoções, os jovens têm um rápido reencontro e, em seu diálogo, abordam as visões e opiniões que eles têm após alguns anos de experiência com o fazer artístico. Tchekhov novamente nos divide, apresentando uma visão mais otimista, que não desiste da luta apesar das dificuldades, e outra mais pessimista, do artista que continua perdido e vagando por respostas as quais nunca considerará satisfatórias:

NINA (...) Agora eu sei, Kóstia, agora eu compreendo que no nosso trabalho, representando no palco ou escrevendo, o que importa não é a glória, não é o esplendor, não é aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim a capacidade de suportar. Aprender a carregar a sua cruz e acreditar. Eu acredito e, assim, nem sofro tanto e, quando penso na minha vocação, não sinto medo da vida. TREPLIOV [com tristeza] Você encontrou o seu caminho, sabe para onde ir, enquanto eu continuo mergulhado no caos dos devaneios e das visões, sem saber para que e para quem isso serve. Eu não acredito e não sei qual a minha vocação. (TCHEKHOV, 2004, p.107)

A adaptação dramatúrgica proposta por Thomas é pertinente, portanto, pois encontra ecos no texto de Tchekhov concretamente na voz de seus personagens. Como Frateschi comenta, o recorte é feito, mas o fio narrativo é mantido, uma vez que, ainda que muitas cenas e alguns personagens sejam cortados, mantêm-se os quatro principais, bem como os conflitos mais importantes. O approach pretendido pela encenadora – fazer uma adaptação dramatúrgica para centrar o espetáculo na discussão sobre o fazer artístico –, na opinião de Montenegro, é também a grande questão que Tchekhov coloca em seu texto, e mesmo tendo passado mais de cem anos, é ainda um problema que permanece atual, apesar das diferentes circunstâncias. Em sua opinião, é extremamente necessário para os artistas de agora falarem dessas questões:

A Gaivota propõe uma questão de caráter profundamente existencial de como a criação modifica a tua vida, a tua vida interna. Como a vida criativa transforma até a tua sensibilidade, seja encorajando uma continuação dessa trilha artística, seja soterrando-a. A peça não fica no campo do comportamento apenas, chega ao nível existencial e da criação. É uma discussão muito angustiada sobre o que é ser artista, a contaminação da vida cotidiana que vai minando a pura intuição, matéria-prima do artista. (...) o grupo de pessoas que se reuniu para fazer esta peça está mais interessado nessa discussão do que neste espetáculo ou na busca de plateias, apenas. A peça discutia, há 100 anos, estéticas já decaídas abrindo caminho para outras se inventarem. Passados 100 anos, há um problema: tudo foi experimentado e estamos às voltas com as mesmas questões. (MONTENEGRO in BRAVO, 1998)

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Se, no início do século passado, havia uma decadência nas formas que careciam de inovação, de reinvenção, passados cem anos, o século XX foi aquele em que inúmeras experimentações formais foram e continuam sendo feitas, mas, no âmago da discussão artística, seguimos ainda sem uma resposta plenamente satisfatória: quais são as formas? Como encontrar uma forma plenamente satisfatória para dar voz àquilo que se quer levar à cena? Qual a linguagem, qual o estilo de interpretação que consegue tocar no público atual? Segundo Fernanda Montenegro, essas questões continuam latentes na vida dos artistas e precisam ser sempre investigadas – objetivo esse central nessa encenação. Além disso, a maestria de Tchekhov está em conseguir, por meio de situações da vida comum, como uma mãe trocando ataduras de seu filho machucado ou um encontro entre dois amantes na beira de um lago, tocar em questões muito profundas do ser humano. O depoimento ainda indica que a encenação não tinha objetivo de ser “comercial” e angariar bilheteria – era um projeto abraçado por aqueles atores, de mergulhar nas problemáticas referentes à vida na arte.

O uso de solilóquios

Além da discussão estética estar presente na voz desses personagens, a crítica Silvia Fernandes observou, no texto de Tchekhov, os solilóquios, que ela vê como “ monólogo mal disfarçado em diálogo”, procedimento usado pelo dramaturgo algumas vezes em seu texto, o qual Thomas tomou como linha mestra de sua adaptação:

(...) é preciso atentar para a relação incômoda que liga esta convenção particular de reprodução da vida ao impulso de auto-revelação que anima os personagens, sempre prestes a iniciar um discurso confessional, que não raro descamba para o monólogo mal disfarçado em diálogo. A primeira cena da peça, onde o velho Sorin não passa de um ouvido passivo às queixas do sobrinho Treplev, é um bom exemplo desse procedimento. (FERNANDES in PROGRAMA DO ESPETÁCULO, 1998)

Ainda que Sórin pareça ser um ouvido passivo, o velho tio tem uma função importante para o sobrinho: ele o ouve atentamente, sem o questionar, mas buscando compreendê-lo, acolhê-lo em suas aflições e dúvidas. E esta é uma qualidade na relação que o rapaz não tem com Nina e muito menos com sua mãe, Arkádina. Assim como nessa cena indicada por Fernandes, é possível identificarmos essa característica – diálogos nos quais apenas um dos personagens fala bastante – em várias outras. No segundo ato, na cena em que Nina e o escritor Trigórin conversam, grande parte do 93

texto é composta praticamente de solilóquios de Trigórin sobre a obsessão do artista que vê em cada detalhe da vida uma inspiração para criar uma obra e por isso está sempre "trabalhando", e sobre sua constante insatisfação com seu trabalho, apesar de toda bajulação que recebe. Assim como no final da peça, quando Nina e Trepliov conversam, é muito evidente o quanto Nina está "monologando": suas falas são longas e a maior parte delas volta- se para uma "descrição" do seu estado interior, uma reflexão profunda sobre o que ela pensa da arte anos depois de tê-la vivido na pele. Ninaextravasa seus sentimentos. O crítico Luiz Macksen, ainda que também reconheça essa característica dos solilóquios e da interiorização das questões particulares de cada um dos personagens no texto de Tchekhov – “Tchecov constrói subtons, nuanças de estilo em monólogos interiores, onde a voz dos personagens parece ser ouvida apenas por cada um deles." (MACKSEN, 1998) –, pondera que a adaptação de Thomas acabou por se fixar num aspecto redutor do universo tchekhoviano:

O que motiva o gesto ou a inércia – em Tchecov há sempre alguém pretendendo algo que não consegue realizar – está no interior deles e a justificativa para cada um ser tal como é nunca se localiza no plano da realidade, mas na interiorização do mundo. É essa tentativa que a adaptação de Daniela Thomas foi buscar, mas que acaba por se fixar num aspecto tanto redutor do universo tchekhoviano (MACKSEN, 1998)

Está muito claro que a proposta do espetáculo foi lançar uma lupa à discussão sobre o fazer teatral, e não encenar a obra literária A Gaivota, de modo que adotar o texto de partida como parâmetro de apreciação da cena é negar a autonomia que há entre as duas obras. É evidente que a encenação, enquanto um recorte do universo tchekhoviano, implica em perdas referentes ao material dramatúrgico: há personagens suprimidos, e a criteriosa representação do ser humano, a partir do olhar de um autor que também era médico, acaba por se dissolver e perder complexidade, em face de outros ganhos, de natureza incomensurável. Um texto de teatro é uma obra de literatura enquanto ainda é texto. O teatro mesmo acontece no aqui e agora e seria muito leviano não levar em consideração a realidade dos atores e do público que vai assistir à peça. O que essa adaptação faz é escolher um olhar sobre a realidade, sobre o que os artistas em questão precisavam comunicar naquele momento. Nesse sentido, é notória a conexão com a realidade da cena brasileira, fator favorável a esta encenação. Além disso, a proposta de Thomas toca numa discussão em voga no teatro atualmente: sobre a preponderância da cena ou não em relação ao texto e em que medida essa 94

relação entre texto e cena começou a dar indícios de que o peso entre uma e outra instância estava se alterando. Uma das principais referências que baliza essa discussão é o teórico alemão Lehmann (LEHMANN, 2007) que, no livro Teatro Pós-dramático coloca novos paradigmas de relação entre cena e a dramaturgia observado em espetáculos teatrais a das décadas de 1980 e 1990. Em seu estudo, cunhou o conhecido termo "teatro pós-dramático", que tem, como uma de suas características, assim como pode se observar nessa montagem, a exploração do teatro como acontecimento, como arte da presença, do presente: o foco naquilo que acontece entre aqueles que executam e seus espectadores.

2. O processo de criação: traços performáticos da direção e liberdade no trabalho do ator

A diretora do espetáculo foi casada com Gerald Thomas, encenador que renovou e questionou a cena teatral brasileira nas décadas de 80 e 90, trazendo influências da Inglaterra, Alemanha e EUA, por onde seus trabalhos circulavam e/ou eram produzidos. Ambos formaram uma parceria artística desde os anos 80, época em que a artista trabalhava com ele como cenógrafa. Da Gaivota foi o primeiro trabalho da artista como diretora, e, segundo opinião de Frateschi, a parceria com Gerald Thomas, com certeza, influenciou bastante seu modo de pensar e trabalhar, o que se revela, sobretudo, nos elementos performáticos da encenação: "ela tentava pegar esse lado meio performático que o Gerald Thomas tem e colocar dentro do espetáculo também." (FRATESCHI, 2015). A proposta de direção de Thomas inicia-se já na escolha do elenco, que deveria criar, no campo da recepção do público, uma camada de identificação entre ficção e realidade: a dama do teatro, na ficção de Tchekhov, deveria ser interpretada por uma atriz de grande representatividade do teatro brasileiro, o famoso e sedutor escritor Trigórin seria criado por um ator que tivesse um perfil de galã de televisão famoso, e assim sucessivamente. A coincidência entre a gênese desses personagens e a visão pública sobre esses atores escolhidos é um aspecto importante da montagem, cuja ênfase está, justamente, nessas seis figuras em cena. Um cenário grandioso e não-realista, em harmonia com figurinos neutros, coloca as atenções na interpretação dos atores. Se por um lado, Thomas trouxe predeterminadas para o processo de criação sua adaptação textual e a proposta de criar um jogo entre ficção e realidade com a escolha do elenco, por outro lado, deu aos atores total liberdade para trazerem suas linguagens e formas 95

de trabalho na construção dos personagens e no trabalho com o texto. Como eram praticamente seis monólogos e a encenadora "escolheu um elenco de peso" (SÁ, 1998), a ideia parecia promissora.

Um jogo entre ficção e realidade

A fim de aprofundar a discussão estética – e as questões de relacionamento humano e de visões de mundo que a transcendem –, a diretora buscou, como já mencionado, uma identificação entre os personagens fictícios e os atores que, no contexto cultural brasileiro, tivessem imagem análoga aos papéis que interpretariam no espetáculo. Frateschi comenta que "Thomas brincava um pouquinho com uma visão que ela tinha dos atores. Pelo menos com a visão pública que ela conseguiu ter desses atores e usava isso um pouco para uma referência, ter uma visão a mais do personagem." (FRATESCHI, 2015). Desta maneira, na interpretação, as escolhas de quem seria convidado para atuar possibilitaram materialmente a construção de uma segunda camada de signo cênico, calcada na relação entre a realidade dos atores – conhecida pelo público brasileiro – e a realidade ficcional dos personagens. Dentro do plano metalinguístico, a escolha também se revela um elemento representativo da própria história do teatro brasileiro, colocando em cena diferentes tipos de teatro. Então, por exemplo, Fernanda Montenegro, grande dama do teatro brasileiro, interpretou Arkádina, a dama da peça de Tchekhov, e Fernanda Torres (sua filha), atuou como Nina, atriz da nova geração. Frateschi, na época com 46 anos e já conhecido por algumas atuações da TV como galã, atuou como o escritor famoso e galanteador Trigórin. O personagem Trepliov foi interpretado por Matheus Nachtergaele, que, na ocasião, era conhecido apenas por um "público de teatro mesmo", pois era um novo ícone do teatro experimental. Os personagens mais secundários, Sórin e Chamraiv, foram interpretados por Nelson Dantas – um ator já um pouco esquecido pelo público brasileiro nessa época –, e

Antônio Abujamra, que tinha em comum com seu personagem o tom sarcástico. Fernanda Montenegro, na época com 69 anos e já muito reconhecida por suas atuações no teatro, na TV e no cinema, foi, no mesmo ano em que a peça foi encenada, a primeira atriz brasileira indicada ao Oscar. Começou seu percurso artístico no rádio aos 16 anos, foi para o teatro e toda sua formação como atriz veio de sua trajetória nas grandes companhias do teatro brasileiro. Atuou no Teatro Brasileiro da Comédia, foi dirigida por Ziembinski, Gerald Thomas, entre outros. Depois atuou no cinema e na TV. No final da 96

década de 90, época em que a montagem foi realizada, tinha recebido todos os prêmios nacionais, cinco internacionais, além da mencionada indicação ao Oscar. Logo, ela teve uma formação como atriz que veio em grande parte da experiência, das inúmeras temporadas no teatro, das estreias no cinema e na TV e era conhecida pelo grande público como uma grande atriz dramática. Fernanda Torres tinha 33 anos. Na época em que a peça foi encenada, quase todos os seus trabalhos na TV eram pautados pelo humor. A atriz também já tinha feito muitos trabalhos no cinema, sendo premiada como Melhor Atriz por sua atuação em Eu sei que vou te amar, de Antônio Jabor (1986), nos Festivais de Cinema de Cannes e Cuba. Diferente da mãe, que, por ser de uma geração mais antiga, nunca frequentou escolas de atuação, Fernanda passou por uma escola de formação de atores, o Tablado, no Rio de Janeiro, conhecida por formar atores principalmente para TV. Há uma relação de equivalência entre a história destas atrizes com a ficção, na medida em que elas são de diferentes gerações, e Torres tem uma marca em sua atuação bem diferente da de sua mãe, da geração anterior. A atriz era também símbolo de uma nova geração de artistas.

Em reportagem no Jornal O Globo, ela comenta sobre estas correspondências:

Para Torres há componentes muito próximos dela e de sua mãe na história de uma atriz consagrada que sufoca as ambições literárias do filho, cuja namorada é uma jovem atriz em busca do sucesso. - Assim como a Nina, eu também confundia realização com sucesso, achava que uma coisa significava o mesmo que a outra. (TORRES in O GLOBO, 1998)

Torres reconhece as semelhanças na história dela e de sua mãe, assim como se vê na pele de Nina, como uma jovem atriz, que, ao iniciar sua carreira artística, confundia a realização com osucesso. Essa é a grande questão da personagem: no início, ela acredita que a realização está na fama, na glória, no sucesso. Tanto que, no primeiro ato, momentos antes de interpretar a peça de Trepliov, vemos seu fascínio e sua expectativa por conhecer Trigórin e estar perto de Arkádina. No segundo ato, em sua longa conversa com Trigórin, Nina expõe, em muitas falas, essa visão que tinha. Entretanto, no último ato, depois de ter, de fato, vivenciado a profissão, a atriz finalmente compreende que a realização artística, alheia à conquista do sucesso, depende de se cumprir uma vocação. 97

Celso Frateschi era um ator conhecido, e correspondia ao perfil de galã, por suas atuações em novelas da Rede Globo. Frateschi transitava bastante pela TV e pelo teatro, não tinha um grande reconhecimento como Montenegro, porém era famoso, característica que poderia levar a uma certa semelhança com o personagem ficcional Trigórin, o artista famoso que foi convidado para interpretar. Assim como Montenegro, teve uma formação que foi ganhando corpo a partir das experiências nos grupos de teatro brasileiro nos quais atuou.

Sua carreira profissional teve início no Teatro de Arena. Segundo ele, sua base toda em relação trabalho de ator veio dos anos em que atuou no grupo. A principal referência foi Augusto Boal, que trazia uma proposta de interpretação stanislavskiana, via uma tradução do Actors Studios. Além disso, em seu método, havia uma busca por um jeito de interpretar brasileiro: a construção do personagem brasileiro a partir da observação da rua, do homem brasileiro, num trabalho de busca por uma identidade. O ator conta que este trabalho tinha "uma base stanislavskiana com um pressuposto marxista forte, que entendia o fenômeno humano como um fenômeno dialético e contraditório."

(FRATESCHI, 2016). Por suas opções ideológicas, priorizava trabalhos com conteúdo crítico, que traziam questões políticas à reflexão do público, preferencialmente voltados para um público popular. Nessa época, era secretário de cultura de Santo André e também professor da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo. Uma figura bastante polivalente, também era político, professor e atuava na TV esporadicamente. Matheus Nachtergaele, com 29 anos na época em que a peça foi encenada, era, entre os quatro protagonistas, o mais novo e menos conhecido pelo público em geral. Embora não fosse famoso ainda para o grande público – sua primeira atuação na TV ocorreu em 1998, na minissérie transmitida pela Rede Globlo, Hilda Furacão –, havia conseguido grande reconhecimento no teatro por sua atuação, em 1995 e 1996, na inovadora peça O Livro de Jó6, recebendo os prêmios Shell e Mambembe de Melhor Ator. Era um ator bem conhecido no meio teatral e símbolo de um teatro mais experimental. Logo, esses aspectos de sua história se coadunavam com a história do personagem que interpretava: o jovem dramaturgo Trépliov. O ator havia se formado na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo na década de 90.

6 Espetáculo do grupo Teatro da Vertigem, que encenou esse texto bíblico num hospital. Sua dramaturgia, inovadora na época, foi criada também a partir de depoimentos pessoais dos atores em relação com a temática da a morte, "com a constatação inapelável da vulnerabilidade e da fragilidade humana" (www.teatrodavertigem.com.br). 98

Os outros personagens, mais secundários e não-artistas, também foram interpretados por atores conhecidos na época. Nelson Dantas, o mais velho, na época com 71 anos, foi conhecido pelo grande público por sua atuação na TV, em 1985, na novela Roque Santeiro, transmitida pela Rede Globo. No entanto, mais de dez anos depois, quando a peça estreou, já não era muito lembrado. Ele interpretava o velho Sórin, que, em A Gaivota, de Tchekhov, também era o mais velho dos personagens. Antônio Abujamra, na época com 66 anos, era conhecido por sua irreverência e seu humor ácido, características que o assemelham um pouco ao personagem por ele interpretado: Chamraiév, que, nos momentos em que aparece em cena, está sempre implicando com

Arkádina. No espetáculo, portanto, os atores tinham uma relação direta com a situação de enunciação – os personagens da peça –, que, por si só, é usada pela direção como um signo. Esta relação cria um jogo entre realidade e ficção, entre contar a história de Tchekhov e contar a história do teatro brasileiro, revelando um aspecto performático da proposta de encenação.

Segundo Pavis em sua definição de "performance", no Dicionário de Teatro,

o performer não tem que ser um ator desempenhando um papel, mas sucessivamente recitante, pintor, dançarino e, em razão da insistência sobre sua presença física, um autobiógrafo cênico que possui uma relação direta com os objetos e com a situação de enunciação. (grifo nosso, PAVIS, 2008, p. 284)

Os atores, pelo menos no sentido geral dentro do contexto artístico, foram usados como autobiógrafos da cena: o seu percurso artístico, a sua fama ou o seu anonimato, o seu estilo de interpretação, a sua representatividade em relação aos demais artistas brasileiros, ou seja, a sua vida artística torna-se um signo em si, porque é um dado marcante para a recepção. Entretanto, como veremos adiante, esta segunda camada de leitura foi explorada apenas nesse plano da encenação. Ainda que existissem características semelhantes – não apenas reconhecíveis pelo público, como no caso da personagem Nina e a atriz Fernanda Torres –, a criação dos personagens não partiu de um processo de identificação do ator com o personagem, como propõe Stanislavski, por exemplo em A Preparação do Ator (STANISLAVSKI, 1968). É um dado que poderia ser levado em consideração, que até os ajudou na construção dos personagens, entretanto não foi colocado por Thomas como procedimento de interpretação, somente como signo no campo da recepção do espectador. 99

Na relação entre ficção e realidade, o maior impacto se deu no jogo entre Arkádina e Fernanda Montenegro, que é aclamada pela crítica e pelo público como a maior atriz do teatro brasileiro. Nelson de Sá, ao entrevistá-la na Folha de São Paulo, compara-a com sua personagem Arkádina, dizendo que, no Brasil, ela pode ser considerada uma diva, assim como Arkádina o é na ficção. A atriz, ao responder, faz uma aproximação ponderada entre as circunstâncias propostas da realidade ficcional e as dela, pois, diferentemente de Arkádina, não se considera uma diva, nem age como tal: “Eu acho as divas desumanas. São fechadas num culto a si mesmo, numa idolatria.” (MONTENEGRO in SÁ, 1998). O grande público tem Montenegro no imaginário como uma grande diva, por ela ser uma grande atriz. No entanto, Fernanda procura distanciar-se do lado egocêntrico de Arkádina. A personagem não aceita que outros chamam mais atenção do que ela, nem o próprio filho. A figura de Fernanda para o grande público é uma imagem de esplendor e grandiosidade. Obviamente sua personalidade difere completamente da arrogância e insensatez de Arkádina, no entanto, para os fãs, a ideia da diva se sobrepõe à realidade da vida da atriz famosa. Nina tinha, no texto de Tchekhov, uma visão quase sobre-humana dos artistas, aproximando-os dos deuses. Em uma de suas falas, enquanto conversava com Trigórin, chegou a mencionar que sonhava em ser artista e em seu sonho era carregada por carruagens. No entanto, aos poucos foi desmontando essa visão: ao ver Arkádina chorando por ter discutido com seu filho, ao perceber o quanto Trigórin gosta de pescar – algo tão simples, tão humano. Nina representaria esse público “ingênuo” perante seus ídolos, mas que, ao conhecê-los de perto, encontra neles pessoas comuns. É perceptível como toda concepção de Thomas deu grande foco ao ator, colocando-o como o protagonista do palco. Como vimos anteriormente, Thomas deslocou e potencializou, performaticamente, o fio condutor da dramaturgia dos acontecimentos da ficção para o diálogo entre os seis personagens.

Gaivotas em voos livres - seis atores interpretando Tchekhov

Como dito anteriormente, os atores trabalhavam em diálogos que eram, muitas vezes, solilóquios com longas falas autorreferentes, nos quais eles falam de si mesmos, refletem sobre si. Entretanto, no campo da ficção, há uma distância enorme entre o que os personagens falam e o que fazem – os personagens não estão ligados à realidade, o que demonstra frequentemente sua incapacidade para vida. O que vemos como resultado: cada um dos 100

personagens tem um caráter contraditório. Essa característica está mais diluída no texto de Tchekhov, já na adaptação de Thomas fica bastante evidente, o que faz com que a interpretação desses papeis seja bastante desafiadora para os atores, pois facilmente poderia "se aceitar como verdade a interpretação que esses personagens fazem de si mesmo." (FERNANDES, 2010, p.201). O ator precisa ser capaz de interpretar essas duas camadas: apresentar a reflexão sobre si mesmo e ao mesmo tempo conseguir apresentar as contradições do caráter, mas sem ter as ações que a dramaturgia original propunha para se apoiar. Na peça, Arkádina vive de relembrar os velhos tempos em que declamava grandes textos de teatro e era aplaudida pelo público, esquivando-se do problema com seu filho, que tenta se suicidar. Ela decide simplesmente ir embora. Trepliov insiste em sua paixão por Nina até o final, mesmo sendo recusado, mesmo a atriz deixando muito claro que não o ama mais. Trigórin se encanta frivolamente pela jovem atriz Nina, mas não tem forças para deixar Arkádina. Nina, ao final da história, subverte essa lógica, porque tem plena consciência de sua realidade, e opta por seguir adiante, "carregando a sua cruz". Ainda assim, ao se apaixonar e manter até o fim a sua paixão por Trigórin, parece não ser por ele que ela realmente se apaixona, mas pelo que ele representa. Ela não consegue enxergá-lo de fato. Toda essa complexidade dos caráteres, que pode ser explorada na interpretação e que está intrinsecamente ligada à discussão estética colocada pela diretora, leva a uma necessidade da realização de trabalhos de atores muito consistentes. As formações e experiências anteriores que os atores tiveram configuraram cada um deles como profissionais bastante qualificados, porém com características e estilos de interpretação muito diferentes. O ponto que parece uni-los é que, dentro da história do teatro brasileiro, todos eram (e são até hoje) grandes atores, conhecidos pelo público e/ou reconhecidos pela crítica.

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- Da esquerda para direita: Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Fernanda Torres, Antônio Abujamra, Celso Frateschi e Nelson Dantas. Da Gaivota, 1998. Fonte: Folha de São Paulo, São Paulo, 10 jul.1998.

Cada um desses seis atores trouxe, além de sua própria história como signo, seu jeito de interpretar, suas questões com o teatro e seu amor por Tchekhov. A linguagem de interpretação do espetáculo foi construída como uma grande colcha de retalhos, com os diferentes estilos de interpretação entrando em conflito ou dialogando. Segundo Frateschi (2016), houve uma liderança de Fernanda Montenegro em relação à parte de interpretação, mas, ainda assim, a ideia era que cada um deles trouxesse mesmo a "sua carga", para a interpretação dos personagens, já que Thomas não era diretora de atores.

Ela tinha uma grande confiança no trabalho de cada um deles e lhes deu essa liberdade. Abujamra desenvolveu uma interpretação com um tom crítico, perspicaz, tingindo com bastante ironia seu personagem, que o diferenciava muito do tom melodramático de Montenegro. Nachtergaele trabalhou um tom expressionista, intenso, "uma coisa meio trágica, era um furacão fazendo a cena" (FRATESCHI, 2016). Dantas trouxe uma calma, e Torres, por sua vez, fogo, ansiedade. A atuação de Frateschi, por outro lado, tinha um peso forte no trabalho com o texto e o apoio na palavra, a fim de evidenciar a objetividade e a humanidade com que Tchekhov pintava seus personagens. A seguir, mais detalhes das interpretações dos quatro papéis que centram a discussão da peça: os artistas representantes de duas diferentes gerações.

O tom melodramático de Arkádina na pele de Montenegro 102

Segundo reportagem de O Globo (O GLOBO, 1998 ), esta foi a primeira vez que Montenegro interpretou Tchekhov no teatro. Anteriormente, ela havia interpretado o autor na TV, quarenta anos antes, na década de 50. A maior parte das reportagens jornalísticas da época comenta bastante sobre sua atuação. Provavelmente, isso ocorreu em decorrência da fama que ela gozava e que acabava sendo um atrativo muito forte para fisgar o público. Além disso, a atriz idealizou e encabeçou a produção do projeto, e alcançou, também, segundo a crítica da época, uma grande atuação neste papel. Em entrevista à revista Bravo na ocasião da estreia do espetáculo, a atriz falou sobre o grande desafio de interpretar esse autor:

Tchekhov é um insidioso autor. Seus personagens, num primeiro olhar são civilizados, requintados, sensatos, as crises de Tchekhov quando explodem vão às últimas consequências. Vemos suas peças e concordamos: 'meu Deus! A gente é capaz disso!' É risível, mas é humano. Olho a Gaivota e penso: como dar conta desse desgraçado autor? Tchekhov é muito mais cruel do que se pinta por aí. (MONTENEGRO in BRAVO, 1998)

A atriz percebe uma grande humanidade e complexidade posta por Tchekhov em seus personagens, que muitas vezes parecem ser o que não são em realidade. Reflete sobre sua complexa humanidade: o autor os pinta risíveis ao revelar suas mesquinharias, mas simultaneamente humanos, por gerar uma identificação e consequente compaixão; percebemos que somos capazes de agir e pensar exatamente como aquelas figuras. Em sua interpretação, Montenegro buscou reforçar as cores melodramáticas que enxergava na personagem Arkádina: uma grande dama de um teatro um pouco decadente, que se emocionava fortemente, dava vazão aos seus sentimentos, deixando-se guiar por eles, atribuindo grande importância a si própria. Entretanto, Montenegro tinha uma percepção crítica de que as atitudes de Arkádina revelavam um certo vício pelo divinismo, e que, portanto, representavam uma deformação da realidade:

A Arkádina tem o vício do divismo. Eu acho que hoje, no campo das artes cênicas, restou um certo saudosismo desse poder mágico, misterioso, de as pessoas seguirem o ator com carruagens. Fica na memória, porque estamos muito perto deste século que acabou há cem anos. Mas hoje a gente tem uma visão crítica e vê que é uma deformação. (MONTENEGRO in BRAVO, 1998)

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A personagem da ficção, assim como Montenegro, é uma grande atriz, mas que tem essa visão distorcida de si mesma, comportando-se como uma diva. Esse comportamento, segundo a atriz, é uma deformação que ficou para trás: embora hoje as grandes atrizes não se comportem mais assim, a imagem ficou no imaginário coletivo. Por isso, para suas referências durante o processo de criação, a atriz buscou em sua memória outras grandes atrizes com quem trabalhou no passado:

Existe alguma referência de algumas extraordinárias atrizes que eu vi. Eu trabalhei três anos com Henriette (Morineau). E ela era, segundo Décio de Almeida Prado, um primeiro-ministro em cena. Pisava forte. Tem também um ‘se exibir’ e um ‘olha a minha luz’. Não tem nenhuma modéstia. A sua figura é maior do que a arquitetura do teatro. É o teatro. Um exercício muito engraçado porque não tem bom-mocismo. Nem com filho, nem com ninguém. É por cima mesmo. Mata o que for. (MONTENEGRO in SÁ, 1998)

Sendo assim, além do tom melodramático, a atriz tingiu sua personagem com um comportamento inspirado em uma grande diva do passado: com um pisar forte ao entrar em cena, uma confiança exagerada em si própria, que se enxerga grande, maior do que todos, até mesmo maior que o teatro. Por seus depoimentos, percebemos que Montenegro, na pele de Arkádina, toma consciência das "ciladas" que Tchekhov prepara com seus personagens – que nunca são o que parecem à primeira vista. A atriz, ao mesmo tempo em que lhe empresta sua melodramaticidade, tem, pela personagem, um olhar crítico e compassivo, o que resulta em uma atuação, como veremos em tópico a seguir, muito elogiada pela crítica.

O tom de Frateschi: o apoio na palavra e no texto dramático

Buscando seguir uma linha mais apoiada na palavra e no próprio texto dramático, Celso Frateschi havia trabalhado anteriormente a dramaturgia tchekhoviana, na década de 80, quando dirigiu e atuou em Tio Vânia, na EAD (Escola de Artes Dramáticas). Admirador da obra desse autor, após essa experiência com A Gaivota, em 2004 atuou em As Três Irmãs, sob direção de Enrique Diaz. Em 2015, dirigiu um espetáculo sobre contos do autor e, no ano seguinte, novamente na direção, debruçou-se sobre sua obra epistolar. É, portanto, um grande conhecedor de seu texto. Vê sua obra como um desafio intrigante especialmente aos atores, pela riqueza de detalhes e precisão com que pinta seus personagens:

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A dificuldade de entender o Tchekhov é que ele é muito preciso no registro de sua obra. Tem pouquíssimas indicações para o ator, mas aquelas indicações às vezes são tão desconcertantes, quanto os monólogos mais profundos. De repente, Astrof se despede do Vânia e da Sônia e sai assobiando, depois daquele drama... Então, como ator você pensa, que para ele sair assobiando, ele tem que estar sendo construído de uma maneira completamente diferente desde o início. Aí você refaz tudo. Muitas vezes as pessoas não colocam ele assobiando porque tentam encaixar ele numa visão, num caráter que não é o que o Tchekhov propunha. O Tchekhov propunha uma coisa muito mais ampla, muito mais desconcertante. O Vânia tem que estar vestido de uma forma extremamente elegante, mas ele vive do campo, se você usa isso, você revela a personagem uma maneira muito mais completa, nesses detalhes. (FRATESCHI, 2015)

Em depoimento, o ator exemplifica, através do trabalho que fez com a obra Tio Vânia, as dificuldades para um ator interpretar um personagem de Tchekhov. A composição proposta pelo autor é muito rica em detalhes, que muitas vezes podem escapar a um olhar menos atento. No exemplo que Frateschi menciona, o personagem Vânia, por viver no campo, poderia ser imaginado com roupas mais simples, do dia-a-dia. Mas Tchekhov o descreve como "vestido de uma forma extremamente elegante". E esse "detalhe" faz toda diferença, porque ficamos desconcertados quando vemos uma figura vestida de um jeito que não se encaixa naquele contexto. Mas isso não é um mero detalhe estranho ou aleatório: o autor está querendo revelar ao ator algo sobre o caráter daquele personagem. Como mostramos no primeiro capítulo, o próprio Stanislavski quando interpretou Trigórin na emblemática encenação feita pelo TAM no século anterior, cometeu esse equívoco de vesti-lo de maneira elegante, enquanto para Tchekhov, o interessante era exatamente criar esse descompasso entre um homem que não se importa muito com sua aparência e é, ao mesmo tempo, muito atraente para as mulheres, sejam jovens ou mais maduras. Frateschi teve, em sua formação, um contato com a tradição stanislavskiana, que propõe a criação do ator a partir de um processo de identificação entre ator e personagem. No entanto, ele pondera algumas limitações que o trabalho a partir desse método podem trazer ao ator, reafirmando seu apoio no próprio material dramático e no entendimento das questões que o texto traz como um todo:

Stanislavski propõe um processo de identificação, principalmente o que chegava até a gente aqui, entre ator e personagem. Buscar uma sensação de verdade, que aquele personagem está existindo, a partir da identificação. Eu nunca acreditei nisso como ator. Não acho que é por aí. Eu acho que como qualquer artista, de qualquer outra arte, você vê o material que está trabalhando com muitos ângulos. E são opções que você constrói. O psicológico faz parte disso, evidentemente, mas não é pela identificação. O próprio Stanislavski quando ele fala mais no fim, pelo menos o que 105

a gente entende do super objetivo, a gente percebe que é outra coisa. O super objetivo coloca um pouco o porque que você está fazendo aquilo. Não é o objetivo da personagem, mas é que função tem aquela montagem naquele determinado momento, o que está causando aquela determinada montagem naquele momento em que está sendo montada. Ou seja, aqui na época do Arena se traduzia numa pergunta: para quê que você está fazendo isso? Por que você está fazendo? Que são questões que superam o personagem e estão mais ligadas à peça como um todo. Com isso, uma peça que é clássica pode ter uma contemporaneidade. (FRATESCHI, 2016)

Frateschi pontua que o mais importante, em sua opinião, para além de uma construção apoiada fortemente na psicologia dos personagens, como propunha Stanislavski no início de suas pesquisas, é entender por que você está fazendo determinada obra de arte naquele momento. E esse "se perguntar isso" foi colocado pelo mestre russo, mais no final de sua vida, quando começou a trabalhar com a ideia de “super objetivo”. A partir desse conceito, todo trabalho parte dessa forma de se relacionar com o texto dramático: por que fazer isso agora? A encenação de Thomas traz uma resposta democrática a essa pergunta ao colocar em cena um embate vivo entre diferentes tipos de teatro. Falar desse atrito entre essas duas gerações da arte, representadas nas pessoas desses quatro personagens artistas, é uma questão bastante pungente para encenadora, para os atores e para o público brasileiro. Quais forças traz esse teatro representado por Frateschi, dessa tradição política com um papel importante na história do teatro nacional? Será que essa força ainda pulsa enquanto acontecimento para o público? Frateschi observa a grande utilidade de Tchekhov para o homem contemporâneo, por ter colocado à luz alguns traços do comportamento humano que sempre precisarão ser reexaminados:

Eu acho extremamente útil para o homem contemporâneo. Eu acho que como qualquer autor que trabalhou em momentos de grandes transformações, eu acho que ele consegue registrar alguns componentes do comportamento humano que são muito úteis de serem revelados, de serem reestudados, recolocados na nossa contemporaneidade. Então eu acho o Tchekhov um autor raro neste sentido, e de uma modernidade incrível, pela forma como ele constrói o texto, É de uma modernidade que você fala: Puxa, não existe isso! A precisão das palavras, a precisão dos diálogos, como que ele contém em cada palavra um universo submerso genial! Se você tem o mínimo de carinho e tempo para ouvir, para sentir, você vai para lugares realmente muito diferentes, desconhecidos. E também esta capacidade que ele tem de questionamento, então eu acho ele extremamente contemporâneo. Eu acho o Tchekhov tão contemporâneo quanto Shakespeare, pela qualidade artística do seu trabalho. (FRATESCHI, 2015)

Nesse depoimento, além de justificar e explicar de que modo enxerga a contemporaneidade desse autor, o ator menciona a qualidade poética de Tchekhov. Em 106

relação à temática, em A Gaivota, para além de um embate sobre diferentes visões de teatro e de arte, o autor traz conflitos existenciais e nos apresenta personagens com humanidade e tal universalidade, que se tornam reconhecíveis em qualquer época e lugar. Os exemplos são muitos: o perfil melodramático e caricatural de diva da atriz Arkádina, vide o forte embate entre mãe e filho (Arkádina e Trepliov), que ultrapassa a discordância sobre a ideia de teatro para instaurar um forte conflito na relação entre mãe e filho; ou mesmo o amor não correspondido de Trepliov por Nina e de Nina por Trigórin. O amor, a vida e a arte são assuntos absolutamente universais e interessantes ao homem de qualquer época, em qualquer lugar. Já em relação ao aspecto formal, Frateschi menciona qualidades como "precisão no registro", ou seja, os diálogos muitas vezes são simples, as situações quase sempre quotidianas – uma família que se reúne em uma casa de campo de um dos parentes, uma troca de ataduras de uma mãe em seu filho, uma conversa entre um jovem artista e um artista já consolidado na beira de um lago, numa tarde qualquer – mas, nas entrelinhas desse texto, há todo um "universo submerso". O texto de Tchekhov é rico em subtextos, fator que, simultaneamente, dá uma liberdade de criação grande para o ator, ao mesmo tempo em que se configura um grande desafio. Em seus depoimentos, demonstra grande autoridade sobre o entendimento do texto de Tchekhov e de como a sua obra traz questões universais, interessantes aos artistas e público daquela época e desta. Seu jeito de trabalhar também foi muito influenciado pela referência brechtiana7, não tanto pela postura dialética do encenador alemão, mas pelas características de seu método, ou seja, segundo Frateschi: "o personagem vai sendo moldado passo a passo, lentamente. A emoção surge de uma maneira diferente." (FRATESCHI in SÁ, 1998) Nesse caso, diferente de Montenegro, que tingiu com cores melodramáticas sua personagem, ou seja, dando bastante ênfase às emoções, numa encarnação dos sentimentos vividos, o processo de Frateschi teve um forte viés analítico, em que as emoções surgiam também, mas como resultado de uma moldagem, da construção de uma linha de ações, da análise do comportamento do personagem em cada situação.

Torres e Nachtergaele: representantes de uma nova geração

7Eugen Berthold Friedrich Brecht (1898 -1956) foi um importante encenador alemão do século XX , conhecido no meio teatral especialmente por ter desenvolvido o seu teatro épico.

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Enquanto Montenegro e Frateschi não se veem identificados com Arkádina e Trigórin, Torres e Nachtergaele percebem muitas semelhanças entre si próprios e os personagens da ficção. No processo de criação, trouxeram importantes referências especialmente de suas trajetórias enquanto artistas. Em entrevista à Folha de São Paulo, Torres comenta sua identificação era total com Nina. A atriz relata que leu Nina pela primeira vez aos 13 anos e sentia uma identificação romântica com a figura tchekhoviana. Nessa época, a atriz via a personagem de um jeito romantizado e quando foi convidada a atuar na peça dirigida por Thomas quase 20 anos depois, num primeiro momento, ainda tinha essa imagem ingênua da personagem, e por isso, não a achou tão interessante. Entretanto, ao reler a peça, e conseguir fazer algumas aproximações com seu próprio percurso artístico, pode compreender as emoções, as ações, os comportamentos, as reações, o texto, ou seja, a vida interior de Nina, de outra maneira. Ao interpretá-la com 32, Torres vê a personagem por outros ângulos, conseguindo compreender mais a fundo a curva da personagem ao longo da dramaturgia: "Você só entende a curva dela depois que come o pão que o diabo amassou, depois que sofre com a insatisfação com você mesmo. É o que ela diz." (TORRES in SÁ, 1998) O repórter, na entrevista, quando ela diz também ter passado "o pão que o diabo amassou", estranha e pergunta novamente, "Você passou o pão que o diabo amassou? " (SÁ, 1998). O tom de estranhamento provavelmente apareceu por ser filha de Fernanda Montenegro. A atriz responde que, exatamente por isso, sentiu muitas vezes que sua existência não era necessária enquanto artista. Assim como Nina, passou pelo momento de confundir a realização artística com a fama, com uma idealização do que era ser artista, mas continuou persistindo. Ainda em mesma reportagem, narra que ao fazer um trabalho como esse, muitas pessoas se surpreendem, por conta da expectativa em vê-la como uma atriz cômica na TV, mas para ela o cômico é somente uma de suas facetas. E a artista, como Nina, continua persistindo, mesmo com essa condição em que se vê, de questionamento de sua própria existência, pela sombra do trabalho de sua mãe. Nachtergaele, assim como Torres se vê muito espelhado com Trepliov: "Esse processo que a gente viveu nos ensaios tem uma característica que talvez seja a que eu mais usei no Treplev, que é a semelhança entre ator e personagem." (NACHTERGAELE in SÁ, 1998) Em seguida, explica de que maneira percebe essas relações de equivalência:

Eu venho de um espetáculo feito em um hospital, de experimentação, com um grupo, uma radicalidade juvenil. E procurei sentir qual era o embate com essa nova experiência, que é o texto de um dramaturgo, que é um clássico. Isso é muito 108

interessante. Pela primeira vez eu era um personagem que não estava sendo construído junto com o dramaturgo. (NACHTERGAELE in SÁ, 1998)

Esse embate com o texto dramático, ainda que tenha sido uma prática comum no teatro no teatro brasileiro nas gerações anteriores, para esses atores, que iniciavam sua carreira artísticas nos anos de 80 e 90, era uma novidade. O ator trazia consigo outras qualidades, diferentes bagagens: experiências corporais a partir de treinamentos físicos trazidos de outros lugares do mundo, o trabalho a partir do material pessoal de cada ator, as criações de dramaturgias coletivas a partir da improvisação. Na formação dessa "nova" geração de atores, muitas vezes, os textos dramatúrgicos "mais clássicos" permaneciam nas estantes das bibliotecas e eram muito mais usados enquanto estudos de teatro, do que enquanto material dramático potente à criação cênica. Dentre essas diversas bagagens, Nachtergaele menciona a realização "laboratórios" como uma metodologia para o trabalho do ator na criação do espetáculo, ou seja, buscar inspirações na observação e na vivência de uma experiência real de determinada situação ficcional. Assim, no trabalho anterior - a peça O livro de Jó - visitou e esteve com moribundos em hospitais de São Paulo antes de interpretá-los. No caso dessa peça, o "laboratório" acabou sendo "ficar na sala de ensaio com esses outros cinco teatros" (NACHTERGAELE in SÁ, 1998). O ator se apoiou no fio condutor apontado pela encenação almejado em criar um embate entre diferentes tipos de teatro. Logo, a experiência real daquela situação era estar em cena, ensaiar com aqueles outros atores, buscando um debate com aquelas diferentes técnicas de interpretação. Ainda menciona a leitura de Hamlet, de Shakespeare, clássica obra dramatúrgica em que também buscou inspirações também para compreender a vida interior de Trepliov. O ator viu semelhanças entre esses dois personagens: assim como Hamlet, Trepliov tem sinais, mesmo que mais sutis, de enlouquecimento. Mesmo Tchekhov, em A Gaivota, anuncia essa relação de analogia entre ambos. Há uma cena em que Trépliov e Arkádina dialogam interpretando falas de Hamlet e da rainha, personagens da referida obra shakespeariana.

Por esse pequeno conjunto de depoimentos colhidos em entrevistas e reportagens nos jornais da época, é possível aferir que por um lado, os atores da nova geração estiveram mais abertos a concepção performática de Thomas, inclusive usando conscientemente a relação proposta pela encenadora entre a vida pessoal e a vida ficcional. Por outro lado, os depoimentos dos atores da geração anterior revelam toda potência cênica do próprio material 109

dramático: ao buscarem mais inspiração no próprio texto, desvelaram características emocionais, comportamentos, ações e relações entre os personagens tchekhovianos.

3. O Espetáculo

Segundo reportagens encontradas em jornais na época de sua encenação, o espetáculo, com uma hora e meia de duração, apresentava um cenário sombrio: no espaço de representação, havia uma instalação e umas poucas cadeiras e uma mesa de iluminação, que incidia de baixo sobre os objetos e os rostos dos atores, dando, portanto, bastante foco à performance dos atores. Apesar de não haver preocupação com a criação de convenções para que as circunstâncias de tempo e lugar propostas na dramaturgia de Tchekhov fossem mostradas (como o início do século passado, a Rússia, a propriedade rural de Sórin), alguns signos foram usados pela encenação, como, por exemplo, o lago. O palco era ocupado pelos atores considerando uma quarta parede, sendo que o lago seria localizado na plateia. Na obra literária, há uma rubrica logo no primeiro ato, que descreve a propriedade rural de Sórin com uma varanda, de onde se vê um lago mais a frente. A presença do lago, assim como o próprio nome da peça, tem também uma qualidade simbólica. Algumas cenas importantes, como o diálogo entre Nina e Treplióv em que o jovem dramaturgo traz para ela uma gaivota morta, e a cena seguinte, em que Nina e Trigórin conversam sobre a vida artística, acontecem próximas ao lago. Ver o lago é olhar o futuro, o infinito, o lugar onde a gaivota pode ser livre e voar, ou morrer. Muitas metáforas são construídas por conta da presença do lago, que passa a ser presença simbólica. A encenadora, optando por manter de alguma maneira o signo do lado, se apropria desse simbolismo, dando uma ênfase a ele, na medida que outros signos não são usados.

Em entrevista, o ator Celso Frateschi descreveu como era o espaço cênico:

O cenário era em cima de uma instalação, feita por Marcelo Larrea, que trabalhou em cima de fotografias aéreas de São Paulo. Ele fazia uma coisa extremamente interessante. Mas era simplesmente essa casa. Um mundo bastante decadente. No fundo tinha esse aquário, que era uma janela, que virava um aquário. Então era um aquário que virava janela depois. Era bem grande. A Fernanda Torres fazia o monólogo dela dentro do aquário, como se estivesse dentro d’água. E todas as cadeiras eram viradas ao contrário. (FRATESCHI, 2016)

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Pela descrição do ator, pode-se perceber que a encenadora usou o móvel "cadeira", colocando-as em várias posições e configurações - como amontoadas, em pé, ou servindo de apoio como um espreguiçadeira - como um elemento que deu possibilidades concretas aos atores para apoiar a criação de suas interpretações. Entretanto, em relação à citada instalação, cuja imagem infelizmente essa pesquisa não conseguiu acesso, Frateschi lamenta que tenha chegado praticamente no dia da estreia, não sobrando muito tempo aos atores para de fato se relacionarem com ele de forma mais orgânica. Os figurinos, como se pode observar também na foto abaixo, eram neutros - Arkádina e Nina estão vestidas com um tom bege - e sem muitos detalhes. Até mesmo o recurso da sonoplastia foi suprimido ao mínimo necessário: “A direção não usa músicas, apenas ruídos como efeitos sonoros que sublinham cenas." (MACKESEN, 1998)

Fernanda Montenegro - Arkádina - e Fernanda Torres - Nina. Da Gaivota, 1998. Fonte: www.uol.com.br

A paleta de cores utilizada nos figurinos– praticamente claro e escuro, com mínimas variações entre branco, bege, cinza escuro e preto – sugere uma artificialidade enquanto linguagem. As mulheres estavam vestidas com cores mais claras, os homens, por sua vez, com cores escuras. Trepliov usava claro e escuro. Quase tudo fica preto e branco: o signo do figurino é neutralizado, reduzido. Com a iluminação focada principalmente no rosto dos atores e com poucas peças de cenário, apenas cadeiras e uma mesa de iluminação, não há mais nada para "distrair" a atenção do público. Do mesmo modo, não havia mais nada para ajudar na criação de atmosferas e significados e guiar a imaginação do espectador, porque até mesmo a sonoplastia é reduzida ao mínimo, beirando também a neutralidade. 111

Sendo assim, também por conta desse minimalismo em todos os elementos da encenação – texto, cenário, iluminação, figurinos, sonoplastia –, a “densidade das cenas se concentraria, portanto, na interpretação dos atores." (MACKSEN, 1998). Toda potência da cena estaria concentrada no diálogo entre esses personagens. A encenadora reduziu ao máximo a utilização de outros elementos cênicos, concentrando-se na interpretação e no diálogo entre estes atores, em suas expressões enquanto artistas da cena. Dando a eles a "liberdade" de interpretar e tirando-lhes qualquer apoio em um cenário ou figurino mais realista, a diretora pretendia deixar que o público visse como diferentes e reconhecidos artistas da cena teatral brasileira conversavam, relacionavam-se, como suas estéticas, seus estilos, seus jeitos de atuar eram postos em cena conjuntamente.

O conjunto das interpretações sob a ótica da recepção crítica

Silvia Fernandes, em análise sobre a encenação proposta por Thomas, avaliou positivamente suas escolhas, que, segundo sua opinião, foram ao encontro da temática fundamental proposta por Tchekhov em A Gaivota:

Apesar de extirpar nada menos do que quatro personagens e outras tantas falas do texto, conseguiu ampliar a ideia central da gaivota tchekhoviana. Sem deixar de refletir sobre o conflito existencial do artista de teatro, priorizou a discussão dos teatros, escolhendo, para seu elenco, legítimos representantes dos teatros brasileiros, atores que carregam na simples presença uma linguagem, uma linha de trabalho, uma história inconfundível e, mais que isso, uma inalienável opção profissional. O simples fato de contracenarem já é uma discussão do que o teatro pode ser e a atualização possível de um confronto que, de certa forma, parece repetir-se com outros protagonistas. (FERNANDES, 2010, p. 15)

Na opinião de Fernandes, Thomas, ao reduzir texto e personagens, conseguiu ampliar a ideia central da dramaturgia. Em uma obra metateatral, ela criou várias camadas de significação sobrepostas à ficção, apresentando ao público um dado de realidade muito forte para ser ignorado, na medida em que, antes mesmo de interpretarem seus personagens, os atores já eram um signo, pois havia esse jogo entre ficção e realidade como pressuposto da encenação. Este dado real provocou também um deslocamento espacial e temporal em relação à obra escrita por Tchekhov: da Rússia para o Brasil, do início do século XX para o final do século XX, universalizando a discussão sobre o fazer teatral. Além disso, sua concepção reforçou a existência de uma repetição: um conflito, que há 100 anos existia entre 112

artistas, repetia-se com outros protagonistas. Esse dado, além de universalizar a obra de Tchekhov, levantou a possibilidade, por equivalência, de universalização do próprio espetáculo que ela criou. Fernandes aprofundou sua análise dessa relação – realidade versus ficção –, mostrando o quanto as equivalências entre ficção e realidade resultaram em uma tradução cênica atual e interessante ao público brasileiro:

Se em Tchékhov o dramaturgo Treplev expõe a modernidade de seu texto simbolista ao sarcasmo da mãe Arkádina, atriz dos realismos de Dumas Filho, aqui Mateus Nachtergaele, o Jó peregrino das vanguardas pós-modernas, opõe sua interioridade melancólica à exuberância técnica e afetiva da maior atriz brasileira, Fernanda Montenegro. O dramaturgo Trigorin, que o autor concebe como opositor natural de Treplev e seus castelos de Axel, só poderia ser representado por Celso Frateschi, herdeiro do Arena de São Paulo, criador do Núcleo de São Miguel, intérprete de Brecht e Heiner Muller. Quanto à jovem atriz, Nina, ganha o vigor da geração dos anos de 1980, que mesmo em tempos difíceis percebeu que era possível fazer arte. Filha do Asdrúbal, neta do Oficina, Nina/Nanda subverte a galeria tchekhoviana dos incapazes de viver. Para ela a melancolia e a derrota são ritos de passagem para outro lugar. (FERNANDES, 2010, p. 15)

O ápice do argumento de Fernandes, ao relacionar a própria história do teatro brasileiro na trajetória de cada um dos intérpretes com as trajetórias dos personagens tchekhovianos, estava na subversão de Nanda/Nina. A pesquisadora pontua uma época no teatro brasileiro, a geração dos anos 80, em que era ainda mais difícil fazer arte do que se comparado ao final da década de 90 – a própria criação do Ministério da Cultura brasileiro, que data de 1985, mostra-nos a falta de políticas públicas que pudessem dar conta do escoamento das produções teatrais (e artísticas) e sua profissionalização. Torres, no entanto, subverteu e continuou, assim como a personagem por ela interpretada, Nina, que subverte "a galeria tchekhoviana dos incapazes de viver". Ao contrário de Trepliov, que se matou, ela persistiu na vida artística. Nina é capaz de persistir porque compreende o sentido do que está fazendo. Entendeu que este sentido não estava na fama, nem na glória, em nada do que sonhara, antes de experimentar de fato a carreira artística, mas, sim, na capacidade de resistir e ter fé. Essa convicção em sua vocação, apesar dos inúmeros percalços encontrados, a fez continuar viva na arte. A proposta de Thomas era chegar ao embate das diferentes visões de teatro em vários níveis: no nível que o texto propunha, no nível do que cada um desses atores representava para o público brasileiro e também no nível das diferentes linguagens de interpretação que cada um deles trazia. Logo, orquestrar todos esses níveis provavelmente era um fator ainda mais desafiador para os atores em sua interpretação: 113

Num primeiro momento, foi o entendimento da proposta, que era uma proposta complexa da Daniela. E a construção deste diálogo, que não se dava no nível que Tchekhov propunha, mas sim no embate das ideias que a Daniela estava levando lá. Então, você coordenar isso, você equalizar estes diálogos simultâneos que existiam, não é uma coisa tão simples para o ator também. (FRATESCHI, 2015)

Ainda que fossem praticamente seis solilóquios, exigindo de cada ator um trabalho até certo ponto individual, esses personagens tinham um nível de diálogo, que segundo Frateschi, era caracterizado como um choque, exatamente por serem estilos de interpretar bastante distintos. Em sua visão, o resultado era interessante, apesar de reconhecer uma grande dificuldade de colocar esses personagens para dialogarem:

o que dava um resultado, ao mesmo tempo que é difícil disso funcionar em cena, por que alguns diálogos são diálogos extremamente realistas, com uma carga psicológica bastante acentuada. Então era muito difícil você contracenar, buscando um diálogo, uma lógica. Uma vez que cada um dos atores estava numa linguagem diferente. Acabou funcionando. (FRATESCHI, 2015)

Todavia, a recepção da crítica na época se divide em relação ao resultado alcançado. Como já mostrado, a crítica de Silvia Fernandes avalia positivamente o resultado da encenação. Já na visão de Macksen, há uma falta de integração no conjunto das atuações. Além disso, em sua opinião, exceto a interpretação de Montenegro, a qual o crítico elogia bastante, as outras interpretações apresentavam alguns problemas:

Os intérpretes têm solos com traços frios, e sem muita unidade. Os atores jogam em estilos diferentes, algumas vezes excludentes. Antônio Abujamra se contém com algum esforço para não ampliar com sentido crítico o empregado Chamraiev, reduzido a um personagem esquemático. Nelson Dantas, com uma interpretação de contornos mais realistas, insinua a humanidade do velho Sorin. Celso Frateschi tem uma atuação equidistante do atormentado Trigorin. Fernanda Torres empresta convicção e tom nervoso à interioridade da jovem Nina, superando a contenção que parece comandar a linha de interpretação do elenco. Fernanda Montenegro utiliza sua autoridade cênica para construir uma Arcadina que transmite a representação do seu papel de atriz na vida e o desespero feroz pela sua incapacidade de ordenar os sentimentos. A atriz tem duas cenas (a conversa definitiva com Trigorin e o diálogo sobre a idade) em que exerce plenamente essa autoridade cênica. Matheus N. é um Trepliev que se põe convenientemente à sombra, mas o ator demonstra um relativo conflito entre a palavra e um sentido mais corporal de interpretação. (MACKSEN, 1998)

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O crítico aponta alguns problemas de interpretação enraizados nas escolhas da encenação, que quebra deliberadamente com a harmonia identificada no texto de Tchekhov. Enquanto a dramaturgia de Tchekhov é uma dança perfeita, com uma costura muito bem desenhada entre as cenas, conduzindo o leitor/espectador de uma cena para outra, a proposta de Thomas é um recorte de praticamente seis solilóquios, interpretados em diferentes registros de interpretação. Na reportagem, inevitavelmente, compara e qualifica, de modo distinto, cada uma das interpretações. Em sua opinião, ainda que teça algum comentário positivo acerca da atuação de Torres, somente Montenegro parece trazer qualidades que o deixam satisfeito. Além disso, a polifonia dos diferentes estilos de interpretação acabou gerando alguns resultados negativos, como a falta de unidade cênica. Seu ponto de vista, entretanto, parece estar baseado em uma expectativa que tinha em relação à dramaturgia escrita por Tchekhov. Ele cita, por exemplo, que "Celso Frateschi tem uma atuação equidistante do atormentado Trigorin", fazendo uma comparação entre a atuação do ator e uma característica que percebe no personagem ficcional. A intenção de Thomas e do elenco, como já mostrado, não foi a de fazer uma representação daquele texto. Ademais, essa diferença nos estilos de interpretação foi uma proposta: a encenadora quis deixar os atores livres em sua expressão, ciente de que essa escolha representaria um embate vivo entre diferentes tipos de registro de interpretação. Ainda que essa característica seja proposital, ela realmente gera uma falta de unidade na linguagem de interpretação, fator que, para o público comum, acaba sendo um complicador na compreensão do espetáculo e na construção de uma encenação com verossimilhança, uma vez que a unidade cênica se estabelece de forma conceitual. Entretanto, um público mais acostumado ao signo teatral, às referências, à linguagem da cena contemporânea e que conheça previamente o texto da peça de Anton Tchekhov – como é o caso da crítica Silvia Fernandes –, esse público consegue distinguir a intenção do recorte dramatúrgico, o jogo entre ficção e realidade com o elenco, seus diferentes estilos de interpretação e a consequente discussão que estas escolhas geram sobre as diferentes visões do teatro. Esse público consegue acompanhar o espetáculo de maneira fluída, perceber as relações entre as personagens e os atores, então, racionalmente, por ter essa ou/e outras referências anteriores, estabelece as pontes necessárias para entender a proposta da encenadora.

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Considerações finais

Flertando com a performance, a encenadora traz uma proposta de desconstrução da dramaturgia de Tchekhov cujo apoio está num jogo entre ficção e realidade. Com um texto mais enxuto e sintético do que o original A Gaivota, Da Gaivota coloca o foco no ator, com um grande jogo verbal, baseado na palavra. E deixando livres para voos esses atores, os coloca em uma grande arena para tentarem dialogar, o que acaba se configurando com um grande choque de linguagens. No aspecto formal e levando em conta o que os atores que estão interpretando esses papeis representam para o público brasileiro, a escolha potencializa a discussão sobre o fazer teatral levantada por Tchekhov, mostrando como suas questões nos interessam até os dias de hoje. Além disso, esse espetáculo tem sua importância para a história de Tchekhov no Brasil por trazer grandes nomes do teatro brasileiro interpretando Tchekhov e dar a eles a oportunidade de cada um realmente trazer a sua carga, o seu modo de trabalhar, com um texto "tchekhoviano". Desse modo, a encenadora trouxe um retrato vivo de alguns caminhos da cena brasileira daquele momento. No centro de sua arena performática, um duelo cheio de arestas, entretanto, capaz de nos fazer refletir sob ângulos diferentes a condição do ator brasileiro. Montenegro, como esperado, provou que toda sua fama em ser até hoje uma das maiores atrizes brasileiras, não é à toa: sua interpretação foi a única elogiada unanimemente pela crítica. Frateschi veio como um representante de uma geração em que a formação do ator passava pela experiência de fazer teatro em grupo, trazendo ainda toda carga política pela qual passou boa parte dos atores das gerações de 50 e 60, especialmente no eixo Rio São Paulo. Apesar de grande admirador e conhecedor da obra de Tchekhov e sua grande experiência enquanto ator e diretor, nesse espetáculo, sua interpretação pareceu não convencer a crítica. Estaria o público, nessa época, já cansado desse viés mais politizado proposto pelo artista? Torres trouxe a TV, o humor, o cinema, e especialmente sua história: filha de uma das maiores atrizes brasileiras, lidar com a sombra da mãe, com a sua sensação de insignificância frente ao trabalho de Montenegro, mas assim como Nina, continuar persistindo na vida artística. Para parte da recepção crítica, esse signo teve força no acontecimento teatral, fortalecendo e ampliando a relação entre essas personagens presente potencialmente no texto. Naschtergaele, por sua vez, assim como Trepliov na ficção criada por Tchekhov, foi o mais "incompreendido" pela recepção crítica. Sua interpretação não os convenceu. Trazer o trabalho desse ator, naquele momento, foi talvez a aposta mais ousada da encenadora. É 116

interessante notar o quanto o teatro que ele trouxe, hoje em dia tem grande espaço e é bastante elogiado pela crítica. Entretanto, essa experiência mostrou uma dificuldade que esse tipo de ator pode ter na relação com a criação de um personagem a partir de um texto dramático mais clássico.

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CAPÍTULO 4 – Gaivota - tema para um conto curto: a materialidade do jogo do ator

"...especialmente pela via da turbulência interior dos personagens/protagonistas da Gaivota, que Tchekhov pergunta se é mais difícil criar ou viver" (FERNANDES, 2010, p.228)

Gaivota - tema para um conto curto, também baseado na obra dramática A Gaivota, de Anton Tchekhov, surgiu a partir do desejo de três artistas – Enrique Diaz, Emílio de Mello e Mariana Lima – estudarem este texto, tendo como metodologia suas recentes pesquisas no campo do trabalho do ator. Sob direção de Enrique Diaz, que também atuou em cena, juntaram-se a eles Bel Garcia, Gilberto Gawronski, Isabel Teixeira e Malu Galli. Assim como Diaz, alguns dos atores pertenciam também à Cia dos Atores, que, na ocasião de estreia do espetáculo, comemorava 18 anos de reconhecida trajetória na cena teatral brasileira. No resultado final do espetáculo, percebemos que A Gaivota é uma história contada por eles, que está a serviço da discussão sobre o fazer teatral, temática presente no texto e de grande interesse deste coletivo. Na encenação, o grupo reunido alia dois aspectos elementares: a criação coletiva dos atores e a criação autoral do diretor/encenador. Ainda que Enrique Diaz esteja no processo nessas duas instâncias, de encenador e ator, as funções estão bem delimitadas, sendo possível reconhecer a marca de cada ator no processo e, ao mesmo tempo, a concepção de Diaz. Com uma hora e meia de duração, Gaivota - tema para um conto curto estreou no dia 6 de dezembro de 2006, no Teatro Poeira, Rio de Janeiro, onde permaneceu em cartaz até o final de março de 2007. Foi apresentada em nove países, incluindo uma excursão pela França e Espanha. No Brasil, em 2008, último ano em que foi encenada, foi apresentada em

15 cidades. (NASCIMENTO, 2013).

1. Antecedentes: as metodologias para o trabalho do ator trazidas pelos artistas que idealizaram o projeto

No final da década de 80, Diaz reuniu no Rio de Janeiro alguns atores recém- formados para guiá-los na experimentação de qualidades de atuação não-psicológica e para colocar em prática as referências do teatro de vanguarda e contemporâneo com que estava 118

entrando em contato enquanto estudioso e espectador – como Meyerhold (1874-1940), Bob Wilson (1941 - ), Tadeusz Kantor (1915-1990) e outros (VIEIRA, 2014). Com esse grupo, começou a montar peças teatrais. A temática abordada nesse espetáculo - os meandros da criação artística - sempre esteve presente nos trabalhos de Diaz, tanto que também foi tratada em um de seus primeiros trabalhos como diretor, A Ba A Qu - um lance de dados (1990). Em meados de 1991, esse coletivo passou a se chamar Companhia dos Atores, fundado juntamente com a atriz Bel Garcia (1967-2015), que também atuaria em Gaivota. Diaz desenvolveu grande parte de seu trabalho artístico dentro dessa Cia, buscando experimentar, em sua trajetória, diferentes linguagens teatrais nos trabalhos que dirigiu, com influências da performance. Trabalhou com textos do modernista brasileiro Oswald de Andrade, que resultou no espetáculo A Morta (1992). Também investigou o gênero do melodrama e as novelas de rádio – com a criação do espetáculo Melodrama (1995), que rendeu vários prêmios à Companhia e a ele, como diretor. Outro trabalho que se destaca é a adaptação do romance A Paixão segundo GH (2003), quando iniciou sua parceria com a atriz e atual esposa Mariana Lima. Mais recentemente, voltou-se a textos contemporâneos de autores estrangeiros, montando, numa parceria com Emílio de Mello, In On It (2010), texto do dramaturgo canadense Daniel Maclvor. A Cia dos Atores sempre trabalhou com o chamado processo colaborativo, de modo que houve, em todas as peças, mesmo quando baseadas em literatura dramática, um trabalho de criação sobre os textos, no sentido de encontrar uma dramaturgia para cena. Em 2001, Diaz ganhou a bolsa Virtuose, do Ministério da Cultura brasileiro, por meio da qual foi estudar teatro em Nova York. Nesse período, fez um estágio com o grupo Mabou Mines, além de cursos na CITI Company, dirigida por Anne Bogart, onde conheceu a abordagem do Viewpoints e o Método Suzuki – metodologias que usaria cinco anos mais tarde, no processo de criação da Gaivota. Os exercícios do Método Suzuki consistem em um trabalho de ritmo, com várias músicas, sendo que, para cada uma delas, há um tipo de treinamento específico: um andar, uma caminhada, um circuito de bater os pés (MELLO, 2016). Já o trabalho com os Viewpoints se trata de uma improvisação corporal e espacial, a partir de um ou mais dos viewpoints ou pontos de vista, como: tempo, repetição, espaço, duração, gesto, forma, padrão das trajetórias e respostas cinestésicas. Após o retorno ao Brasil, Enrique Diaz convidou um grupo de atores – incluindo alguns da Cia dos Atores e outros – para desenvolver um treinamento improvisacional baseado nessas metodologias para o trabalho do ator, que acabara de estudar no estágio em 119

Nova York. Como resultado desse treinamento, estreou, em 2004, Ensaio.Hamlet, uma releitura do clássico de Shakespeare. Dois anos depois, num projeto liderado por Diaz, em parceria com Emilio de Mello e Mariana Lima, ocorreu a montagem da Gaivota. Há uma confusão que liga esse espetáculo à Cia dos Atores. Segundo Mello, o público e a crítica relacionaram esse espetáculo à Cia Dos

Atores, mas, na verdade, não foi uma produção do grupo: "Como a Gaivota veio muito na rebarba do Hamlet, ele tinha muito a mesma pegada, a mesma proposta de pesquisar e desconstruir a obra do Tchekhov, como a gente tinha feito com Shakespeare, a coisa toda ficou muito ligada." (MELLO, 2016). Lima acrescenta que a ligação pode ser explicada por terem tido processos de criação com metodologias semelhantes: "São trabalhos construídos de forma parecida, na arquitetura das cenas, através de exercícios de viewpoints, de composição, de vivências." (LIMA, 2016) Os títulos sugerem que houve transformações nas dramaturgias originais, de acordo com os anseios e procedimentos do grupo em cada encenação. No trabalho com Hamlet, o grupo coloca a palavra "Ensaio" e o signo "." (ponto) como título para sua versão, o que sugere uma tentativa de compreensão: um ensaio é sempre um momento em que os atores e diretor trazem suas propostas, fazem os rascunhos e aos poucos, o desenho vai se tornando cada vez mais concreto, com constantes ajustes. O signo do ponto remete a .com, fazendo referência ao mundo tecnológico e atual. A encenação faz uso de vários recursos tecnológicos, o que corrobora com a proposta de ser uma versão com signos e componentes atuais, mas com referência na obra - Hamlet permanece no título. No trabalho com A Gaivota, há a frase "tema para um conto curto", sugerindo a escritura e a contação de uma história, a partir de um tema. Nesse espetáculo, tendo como eixo central a temática do fazer teatral, o grupo conta a história de A Gaivota. Além disso, essa frase é tirada da própria dramaturgia - em uma conversa com Nina, Trigórin menciona que aquela situação que ela lhe conta seria "uma ideia para um conto curto" (TCHEKHOV, 2004, p. 57). Essa "coincidência" traz em si uma camada de metalinguagem, pois o texto de Tchekhov é usado no título da peça, mas fora de seu contexto ficcional, como forma de expressar uma a perspectiva sobre a obra daquele coletivo de atores. Emílio de Mello, também em 2001, tinha sido contemplado pela mesma bolsa Virtuose. Em sua experiência, estudou com o encenador russo Anatoli Vassiliev durante dois meses em Paris, na França, acompanhando-o a partir de então, junto com o grupo de atores que também havia feito o curso. Passaram dois meses na Suíça e um mês em Moscou, e, por último, ficaram um mês em temporada novamente na Suíça, apresentando o resultado do 120

trabalho oriundo dessa vivência. Vassiliev fora aluno de Maria Knebel (1898-1985), discípula direta de Stanislavski. Ele pertencia a um grupo de artistas muito ligado aos ensinamentos do mestre russo, mas, ao mesmo tempo, de vanguarda, já que o diretor realizou uma releitura do trabalho de Stanislavski. Sua pesquisa culminou no desenvolvimento do "Jogo Lúdico", uma metodologia para criação do ator a partir de textos dramáticos ou narrativos (MELLO, 2016). Nesse estágio vivenciado por Mello, toda base dramatúrgica de seu trabalho prático eram obras de Tchekhov e F. Dostoiévski (1821-1881). O Jogo Lúdico é "um estudo do texto de pé". Ao invés de longas leituras e releituras do texto teatral, comumente nomeadas no meio teatral como "trabalho de mesa", Mello (2016) explica que se faz apenas uma leitura rápida, com o intuito de descobrir os conflitos principais e seu encadeamento, ou seja, como cada ação se encaminha para o próximo conflito. Em seguida, os atores memorizam essa sequência e, então, improvisam a cena. Desse modo, não há uma preocupação em decorar as falas do texto, mas sim em entender a situação proposta nele e aprofundar seu entendimento em ação, descobrindo os jogos que podem ser desenvolvidos para sustentá-la cenicamente. Nesse trecho da entrevista, o ator conta mais detalhadamente em que consiste essa metodologia:

É um trabalho através de conflito. Tinha uma coisa que chamava tese, antítese e modulação. Que é o seguinte: você entra com uma proposta, você tem um conflito, eu e você temos um conflito, então a gente tem que desenvolver esse conflito. Eu tenho um ponto de vista, e você tem outro. Para se criar um conflito tem uma tese e uma antítese. O conflito acontece. A modulação é o desenvolvimento do conflito que nos leva a um outro conflito, a uma outra tese, a uma outra antítese, e é isso que faz o caminho dramático de uma cena, de uma peça. Então ele faz esse mapeamento da peça inteira. Então ele faz uma grande escaleta de improvisação. (MELLO, 2016)

O nome "lúdico" traz a ideia da brincadeira, do faz de conta, quer dizer, eu sempre estou jogando com o outro, crio um acordo, como numa brincadeira de criança, para entrar em desacordo na ficção. Precisa haver um acordo muito forte entre os atores para poder ser trabalhado o desacordo dos conflitos em cena. Trata-se de uma estrutura de trabalho, que estabelece bases para um jogo improvisacional a ser desenvolvido na prática, em ação pelos atores. Essa metodologia aproxima-se da Análise Ativa, que corresponde ao estudo da dramaturgia em ação. Stanislavski defendeu o uso dessa metodologia ao final de sua vida, conforme nos conta Maria Knebel, no livro El último Stanislavsky, análisis activo de la obra 121

y el papel (1996). Knebel, por sua vez, como mencionado, foi professora de Vassiliev, o que poderia explicar a semelhança. Por meio desse procedimento, Stanislavski mudou radicalmente o uso dos elementos de seu Sistema, conferindo à ação uma função estruturante primordial: a cena seria feita a partir das ações físicas, numa construção em processo, fazendo com que os elementos do Sistema - a fé cênica, a memória emotiva, as circunstâncias propostas, o "se mágico" - fossem usados em prática e em conjunto, catalisados na criação de ações físicas. No início, esses elementos tinham uma aplicação mais fragmentada, sendo usados em estudos - leitura e análise racional - para entendimento do texto, das situações, personagens e suas relações. O mestre russo usava o termo ação física para deixar evidente que toda construção, toda memória emotiva, toda psicologia do personagem seria materializada por meio de ações. Dentro dessa lógica, o ator reconhece a dramaturgia do texto e a partir desse reconhecimento recria uma dramaturgia para cena, ambas vistas como um encadeamento de ações. Vassiliev sintetiza ainda mais, não cita os elementos do Sistema como componentes de sua metodologia, optando pelo foco em uma abordagem prática da dramaturgia pelo entendimento de seus acontecimentos, conflitos, e desenlaces, com uso da improvisação. Como dito anteriormente, na criação da Gaivota, o intuito dos atores era estudar uma obra a partir destas metodologias, que haviam pesquisado durante o período das bolsas. A Gaivota parecia ser o material ideal: trabalhar com o texto era um desejo compartilhado pelos três. Mello, assim como Lima e Diaz, era um grande admirador de Tchekhov de muitos anos atrás e, ainda, durante sua formação como ator na Escola de Arte Dramática (USP-SP), tentara encabeçar uma montagem de A Gaivota, que não foi levada à frente. Em seu camarim, dentre as fotos de artistas penduradas, está a do autor russo. (MELLO, 2016). A escolha desse texto – com o qual Mello, no trabalho com Vassiliev, já tinha entrado em contato, bem como com outras obras de Tchekhov – era conveniente, sobretudo, por tematizar uma discussão pela qual os atores estavam interessados naquele momento: o teatro, o processo de criação do ator, os signos e as diferentes linguagens da cena.

2. O processo de criação

Segundo Mello (2016), o processo de criação do espetáculo durou seis meses, nos quais foram usados muitos procedimentos experimentados anteriormente em Ensaio.Hamlet, já que havia a proposta parecida de desconstrução dramatúrgica e o diretor era o mesmo. A 122

prática norteadora foi especialmente o estabelecimento de um processo colaborativo, no qual os atores traziam propostas de cena, mas havia também uma concepção de encenação, pela qual o diretor era responsável. Como dito anteriormente, assim como em Ensaio.Hamlet, Diaz atuou, o que diluía ainda mais a hierarquia entre direção e atores. O trabalho, desde o início, foi um grande estudo da obra de Tchekhov conduzido pelos três idealizadores do projeto. Como resultado desse processo, houve o estabelecimento de princípios de jogo que nortearam a encenação do espetáculo, e, em conjunto e paralelo, a criação de uma nova dramaturgia.

O estabelecimento dos princípios para um grande jogo em cena

Para início dos ensaios, os artistas conduziram, durante um mês, uma série de workshops abertos ao público em geral interessado nas pesquisas sobre o trabalho do ator que haviam sido desenvolvidas por Mello e Diaz nos estágios no exterior, tendo como objeto de referência para as improvisações a obra dramatúrgica A Gaivota, de A. Tchekhov. Após esse primeiro mês, deram andamento ao trabalho apenas os sete atores que fariam a peça, entretanto a dinâmica de trabalho seguiu de modo parecido. A condução era realizada por Diaz, Mello e Lima, e os ensaios, realizados três vezes por semana, contavam com uma parte de estudo teórico e outra de experimentações práticas, com composições criativas e técnicas. Na parte do estudo teórico, houve a leitura do texto dramático a partir diferentes versões de traduções, em português e francês, assim como contos e cartas do autor. Além disso, realizaram um estudo sobre o Teatro de Arte de Moscou e a encenação emblemática dessa peça, dirigida por Stanislavski no final do século passado. Alguns ensaios foram realizados numa casa, no bairro Cosme Velho do Rio de Janeiro, na qual havia um grande jardim, onde os atores fizeram algumas experimentações. É desse contato que vieram os elementos da natureza presentes no espetáculo - como plantas, terra e legumes. (MELLO,

2016) 123

Atores Gilberto Gawronski e Mariana Lima em cena de Gaivota - tema para um conto curto. Fonte: Lenise Pinheiro/Folha Imagem.

Ainda nessa casa, os atores fizeram experimentos práticos com alguns contos de Tchekhov: decoravam os textos e contavam as histórias enquanto realizavam atividades cotidianas. Por exemplo, em um exercício, Mello narrou o conto A Brincadeira (TCHEKHOV, 1994) ao mesmo tempo em que cozinhava um peixe (MELLO, 2016).Essas experiências dizem muito da maneira como eles viam e tentavam transpor para cena o texto de Tchekhov: histórias simples, ditas de uma maneira prosaica, quase como se estivessem preparando uma refeição diária em uma cozinha. Além dos experimentos práticos com outros textos do universo tchekhoviano, havia, sobretudo, ao longo de todo processo de criação, criações de cenas improvisadas a partir de situações ou personagens de A Gaivota. O grupo nomeava esse tipo de criação de cena como "composições" (MELLO, 2016). Tomemos como exemplo a cena final da peça: o suicídio de Trepliov. No texto, esse acontecimento não é mostrado. Tchekhov optou por mostrar o que acontecia na sala ao lado: com toda família presente, ouvia-se apenas o som do tiro, e dois personagens, na boca de cena, Dorn e Trigórin, comentavam o ocorrido de modo a não alarmar os outros. Segundo Mello (2016), havia duas propostas de composição para essa situação dramática, uma feita por ele e Mariana Lima e outra por Felipe Rocha e Malu Galli. A metodologia de trabalho se dava da seguinte maneira: as duas propostas eram apresentadas a todos do grupo, e eles escolhiam uma ou outra; havia também a possibilidade de optarem por trazer para o espetáculo alguns elementos de cada uma das composições criadas. Na proposta de Mello, os atores usavam um tomate sendo pisado, que criava um símbolo da cabeça do Trepliov explodindo com a bala do revólver. No resultado do espetáculo, vemos esse tomate 124

sendo pisado em meio a outras ações e recursos cênicos que o grupo escolheu para compor esta cena final. O intuito dessas composições era encontrar um princípio de jogo que pudesse sustentar em cena aquele acontecimento dramatúrgico, não se restringindo à sua representação realista. Nesse caso, o princípio encontrado está ligado a uma ação (esmigalhar) em um objeto cênico (o tomate), que cria uma analogia com aquele acontecimento (a cabeça esmigalhada com um tiro). O espectador vê uma imagem daquilo e não mais sua representação de modo realista. As composições, muitas vezes, eram propostas por um ator no processo de criação, e acabavam apropriadas e usadas por outro ator no espetáculo. Um exemplo é a cena na qualArkádina fazia um aquecimento vocal com um gravador. Originalmente, foi uma improvisação de Mello, mas foi desenvolvida por Mariana Lima no espetáculo. Em paralelo com as composições, havia ainda uma parte técnica composta pela prática de exercícios físicos baseados no método Suzuki e no Viewpoints, além de um estudo prático do texto por meio do Jogo Lúdico, de Vasiliev. Em relação à prática física, Mello explica que "foi um trabalho que nos ajudou muito nessa coisa do conjunto, de criar em cena e não estar ali representando um corpo só, mas sim um corpo único." (MELLO, 2016) O treinamento, portanto, auxiliou a ampliar o pensamento dos atores sobre improvisação do conjunto. A ideia de um "corpo único" tornou-se também um dos princípios de jogo construídos ao longo do processo de criação, que pode ser identificado no resultado do espetáculo: a impressão é deque há um único corpo nos contando uma história, que se multiplica e se metamorfoseia nos personagens. Outro princípio de jogo encontrado está vinculado com o uso do Jogo Lúdico. Mello explicou que, na improvisação das cenas, o ator usava o texto (a situação dramática), mas não necessariamente as palavras do autor: "Porque aí você tem uma escaleta de conflitos, e você usa o texto do Tchekhov, mas não as palavras do Tchekhov, são as suas palavras." (MELLO, 2016) Como resultado no espetáculo, percebe-se que houve a manutenção da maioria das situações propostas pela dramaturgia, ainda que os atores não usassem sempre as mesmas palavras escritas por Tchekhov. Há a criação de um novo texto, atoral, no qual algumas palavras do autor são preservadas e outras são acrescentadas, alteradas, adaptadas. Dessa maneira, os atores se apropriaram do texto de maneira pessoal e intimista, modificando bastante a dramaturgia. No palco, o processo originou uma cena em que as palavras são ditas com muita naturalidade, quase num tom de depoimento dos atores. Não há desconexão entre a fala e seu conteúdo, o que se mostra como uma preciosa virtude deste trabalho: os atores estão à vontade com o texto e o dizem com naturalidade, o que dá à 125

interpretação verossimilhança e organicidade. Por fim, a metodologia do Jogo Lúdico deu um suporte dramatúrgico a mais às "composições". Esse procedimento, portanto, teve grande importância para o entendimento da dramaturgia textual e, por consequência, para a manutenção de um fio condutor, aspecto essencial para condução do espectador em uma narrativa. Um último princípio de jogo está ligado à exploração da temática do fazer teatral de modo a apresentar ao público, junto ao texto de Tchekhov, questões inerentes ao processo de criação: discussões das diferentes visões sobre os personagens e da maneira de encenar esse texto, presença desubtextos, técnicas de ator, referências estudadas (como a encenação emblemática pelo TAM no século passado). Todos esses elementos também foram usados como materiais para criação das cenas e dramaturgia do espetáculo. Dessa maneira, eles trouxeram para o espetáculo o diálogo entre ator e personagem presente no processo de criação, como um elemento que compunha a cena, aos olhos do espectador. Durante o processo de criação, o grupo foi encontrando princípios para o estabelecimento de um grande jogo em cena, explorando, em sobreposição, a temática do fazer teatral e a história de AGaivota. Posto isso, a atuação no espetáculo era calcada em um jogo que se dava em dois níveis: do ator e do personagem. Como atores, narravam alguns acontecimentos e circunstâncias da fábula, apresentavam os personagens, montavam e desmontavam os cenários, discutiam as situações propostas e condições do processo criativo. Ou seja, como atores, realizavam a condução do espetáculo. Conforme as situações dramáticas começavam a acontecer, eles transitavam do nível do ator para o do personagem. Os personagens eram identificados por meio de peças de figurino - a Arkádina sempre usava um casaco bege - e por objetos - como os óculos escuros usados por Macha ou a bengala usada por Sórin. Em alguns momentos, havia mais de um ator fazendo o mesmo personagem, como se eles pudessem se multiplicar aos olhos do espectador. Essas escolhas levaram à criação de um espetáculo em que a metateatralidade é bastante explorada, calcada principalmente no jogo entre ator e personagem: no trânsito entre a atuação e a revelação da artificialidade. Dessa maneira, o tema do fazer teatral, portanto, é explorado enquanto temática, mas é também colocado em questão pela forma que o próprio espetáculo adquire.

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A dramaturgia reescrita na cena: uma criação dos atores e diretor

Para o espetáculo, Diaz traz a contribuição do modus operandi da Cia dos Atores, na qual os atores sempre estiveram envolvidos na criação da dramaturgia. Essa característica confere aos intérpretes grande autoridade em cena. Mello (2016) cita que, ao final do processo, sabia quase todos os trechos do texto de cor. Esse modo de trabalhar oferece ao coletivo, portanto, ciência e domínio do todo, como se todos fossem também um pouco dramaturgos e diretores, ainda que a partir do ponto de vista de dentro da cena. Lima (2016) chama os atores de "co-criadores do trabalho" e explica um pouco melhor o papel de Diaz como sendo um orquestrador desse movimento todo:

Enrique fazia o trabalho de costura, de encenação de um material muito imagético, muito potente , mas cheio de arestas, de gordura. O diretor faz um trabalho dificílimo nesse tipo de trabalho, porque é democrático e, por isso mesmo, caótico, plural, calcado nas diferenças, na escuta e no olhar cuidadoso para isso. (LIMA, 2016)

Nesse trabalho de criação da dramaturgia do espetáculo, que aconteceu por meio das metodologias já citadas, a base textual usada foi uma tradução de A Gaivota em português, de Rubens Figueiredo, além de uma tradução em francês. Como resultado, chegou-se a ter um registro escrito, que é a dramaturgia final do espetáculo, apesar da forte impressão, quando assistimos, de que o texto é improvisado em algumas partes. O título do espetáculo revela seu recorte: o que interessava aos atores em sua pesquisa a partir do texto clássico de Tchekhov era o tema da criação artística, o que, a partir do ponto de vista deles, seria central na peça. Faz parte da ideia a ameaça iminente do espetáculo não se realizar em cena conforme imaginado pelos artistas. Esse tema seria o grande eixo do espetáculo, foco que já se revela nas primeiras palavras ditas em cena: “Eu me pergunto como começar uma peça que fala exatamente do fracasso de uma peça?” (LIMA in GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006). De certa maneira, essa pergunta inicial coloca, simultaneamente, o público diante do primeiro grande acontecimento dramatúrgico trazido pelo texto – isto é, a apresentação de uma peça, escrita pelo jovem Trepliov e interpretada por Nina, que fracassa porque quase todo o público não a compreende e por causa das interferências irônicas da mãe do escritor – e traz o tema sobre o fazer teatral de modo bastante contundente: os atores sonham com aplausos e o que mais temem é o fracasso. 127

Embora não tenha havido a preocupação em desenvolver o texto de Tchekhov de forma literal – várias cenas são cortadas, alguns personagens secundários são suprimidos, há inserções de falas dos atores que não existem no texto –, ainda assim, o espetáculo mantém o enredo bastante próximo ao original. Ao compararmos a obra literária de Tchekhov com o texto do espetáculo, é possível perceber que permanece a essência das situações propostas, bem como o desenvolvimento da ação dramática ao longo da história. Ao início de cada ato, precede uma narração, feita por um dos atores com a edição da peça traduzida por Rubens Figueiredo em mãos, sobre as circunstâncias propostas por Tchekhov para os acontecimentos que serão mostrados ao público: uma descrição do cenário ou de características dos personagens que irão iniciar a cena. Alguns personagens são apenas apresentados pelas narrações de cada ato, como Dorn e Polina. O procedimento da narração é usado constantemente em outros momentos com o mesmo propósito de descrever personagens, cenários, e conectar as situações representadas. No primeiro ato, após os comentários que introduzem a história e a encenação, até o momento da apresentação da peça de Trepliov por Nina – que é o acontecimento principal deste ato –, as situações apresentadas são as mesmas encontradas no texto original. Após a performance de Nina, vários diálogos são cortados, com uma escolha do grupo por sintetizar e trabalhar com apenas mais duas situações: o encontro entre Nina e Trepliov, após dois anos sem se verem, e o suicídio do jovem escritor. Ao compararmos essa dramaturgia com o texto de Tchekhov, ainda que na leitura desse último também se tenha a impressão de que as situações se passam bem rapidamente, as cenas, em geral, nessa encenação, são mais sintéticas. Também não há uma reprodução perfeita do texto, são sínteses misturadas a comentários próprios dos atores, ora depoimentos pessoais relacionados às situações dos personagens, ora discussões sobre o fazer teatral. Mesmo que a maior parte das cenas, em relação ao texto dramático de Tchekhov, esteja mais sintética, alguns acontecimentos têm um desenvolvimento maior. Nesse ato, isso acontece na cena entre Arkádina e Sórin, na qual a atriz se lembra de sua atuação em A Dama das Camélias8. Enquanto, no texto de Tchekhov, ela faz apenas uma menção a esta lembrança, no espetáculo há uma cena inteira em que ela interpreta novamente o texto de Dumas e fala das sensações enquanto atriz. Dessa maneira, a atriz insere na cena uma camada de reflexão sobre o processo de criação.

8Alexandre Dumas Filho, 1848. 128

Um outros exemplo acontece ao final do primeiro ato, quando um dos atores lê, em cena, um trecho do livro de memórias de Stanislavski - Minha vida na arte (STANISLAVSKI, 1989), no qual ele apresenta a impressão do elenco após o final do primeiro ato, durante a primeira encenação da peça: “Estreia da Gaivota no TAM, 1898. Parecíamos ter fracassado. O pano de boca fechou-se em meio a um silêncio sepulcral. Os atores estreitavam-se timidamente uns aos outros de ouvidos atentos ao público.” (STANISLAVSKI apud GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006) Não é por acaso que a leitura do livro de memórias do primeiro encenador da peça é feita em cena na montagem atual, que tinha como intuito aproximar o público das circunstâncias que envolveram essa emblemática encenação de A Gaivota. A menção acontece porque, para os artistas, para quem encena uma peça de Tchekhov, é quase inevitável a relação com o Teatro de Arte de Moscou e Stanislavski, sobretudo na encenação dessa obra, que foi um marco na história do teatro, por conta da projeção que essa peça e o nome de Tchekhov passaram a ter depois dessa encenação. Além disso, é uma referência muito forte, do ponto de vista da interpretação e de todos os desdobramentos que tornaram Stanislavski uma notória autoridade sobre o trabalho do ator. No segundo ato, novamente há uma narração sobre as circunstâncias que o envolvem: as cenas irão se desenvolver alguns dias depois do fracasso da peça de Trepliov, num local ainda externo, porém mais próximo à casa; ao meio-dia, horário muito quente. Em sequência, as situações da peça original também são mantidas, havendo apenas um corte em uma cena em que estariam as personagens que foram suprimidas por esta encenação, Dom e Polina. O ato termina com uma narração que descreve o que, na interpretação do grupo, poderia ser um subtexto da personagem Nina, revelando ao público algo que no texto original está implícito: seu deslumbramento, seu encantamento com a vida artística que sonhava em ter. A proposta dessa narração repete-se no início do terceiro ato: é informado o tempo transcorrido - uma semana se passa - e também como Trepliov perde seu amor, na medida que Nina se mostra cada vez mais interessada em Trigórin, perde sua inspiração, e portanto, sua vontade viver, o que o leva a uma tentativa fracassada de suicídio. Esse acontecimento não é narrado tacitamente no texto de Tchekhov logo no início do ato, sendo apenas mencionado após transcorridos alguns diálogos, na cena entre Arkádina e Sórin. As situações desse ato presentes na peça original novamente são mantidas, embora cada vez de maneira mais resumida. 129

Além de resumir as situações existentes da obra de Tchékhov, o grupo acrescentou outras ações, inexistentes no texto original. Um exemplo, nesse terceiro ato, consiste na cena entre Trepliov e sua mãe, Arkádina, quando ela está trocando as ataduras do ferimento oriundo da tentativa de suicídio do filho. Os atores apresentam um diálogo introdutório à cena, no qual revelam aos espectadores suas interpretações sobre os personagens. Gilberto Gawronski, no papel de Trepliov, está sentado à esquerda do palco, com uma atadura na cabeça. Mariana Lima, como Arkádina, refaz o curativo na cabeça de seu filho. O ator inicia a cena dizendo textos sobre lembranças da infância de Trepliov – parte que não existe na peça de Tchekhov. Arkádina está sentada de costas para o público, assistindo a uma projeção visual, que passa trechos de sua carreira artística:

TREPLIOV - Quando eu tinha 5 anos, a minha mãe inventou de fazer uma peça em casa. Ela me fantasiou de príncipe e colocou um abacaxi na minha cabeça. Eu fiquei todo arranhado. Quando eu tinha 7 anos, eu fui assistir a minha mãe fazer A Dama das Camélias, eu tive que tomar dois vidros de xarope porque eu não podia tossir durante a peça. ARKÁDINA - Ai eu meu Deus...como estava novinha! Que linda que eu estava! Meu Deus, a minha bochecha... eu me lembro eu estava grávida do Kóstia nessa peça e nem sabia... TREPLIOV - Engraçado, eu estou amando a minha mãe, como eu a amava na infância. ARKÁDINA - Ai, meu Deus, nesta montagem, nesta montagem eu fiz um trabalho deslumbrante. Eu me lembro. O Kóstia era pequeninho, ele ficava dormindo no camarim. Aí teve essa noite que eu deixei ele dormindo perto da lâmpada, e quando eu fui lá ver ele tava todo vermelinho. TREPLIOV - Quando minha mãe fazia Tio Vânia, ela fazia Helena, uma mulher muito bonita, ela me apresentou para os colegas de elenco como príncipe herdeiro, ela dizia que eu ia ser ator… ARKÁDINA - Meu Deus, essa época eu não podia nem sair na rua que vinha uma multidão atrás de mim, me pedindo autógrafos TREPLIOV - Quando eu tinha 14 anos, eu quebrei o braço. E ela autografou o gesso. Os meus amigos me diziam que eu ia ter que ficar com o braço engessado para sempre. ARKÁDINA - Quando você tinha um ano, Kóstia, um ano. Eu acho que você e eu éramos a mesma pessoa e não existia mais nada nesse mundo meu filho. TREPLIOV - Quando eu tinha 25 anos, eu dei um tiro na cabeça. ARKÁDINA - Quando você fez 25 anos eu falei para você não fazer mais clic clic nessa cabeça. (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006)

Somente depois dessa última fala da Arkádina tem início a situação dramática proposta no texto de Tchekhov - Trepliov estava se recuperando de um ferimento na cabeça, após ter tentado se matar. Todo texto anterior é criação dos atores e revela o que o grupo entendeu que estaria por trás da peça, qual a sua interpretação das memórias, de todo o histórico da relação entre essa mãe e esse filho. Em seu ponto de vista, Trepliov teria sido 130

criado dentro dos teatros: nos camarins, nos ensaios, nas comemorações que aconteciam depois das apresentações. Entretanto, não existe nenhuma indicação na peça original de que isso realmente tivesse acontecido. Com esse desenvolvimento dramatúrgico, os atores trazem à cena uma interpretação possível da relação entre os personagens, escancarando para o público a psicologia dos conflitos entre mãe e filho. Aspectos que, se não tivessem disparado a criação de uma cena, estariam restritos às sutilezas da construção dos personagens. Desse modo, no resultado final do espetáculo, o que aparece enquanto parte da fábula também se configura, sob outro ponto de vista, como uma amostragem do próprio trabalho de criação do ator: investigar, fazer laboratórios, buscar uma compreensão profunda de intenções, subtextos e entrelinhas. As falas acima mostram o que a peça já traz: o amor entre a mãe e o filho e como o sucesso dela era um motivo de conflito para os dois. No entanto, revelam possibilidades apenas imaginadas pelos atores do espetáculo, como a existência de um desconforto do menino Trepliov em acompanhar a mãe em sua vida artística e o sonho de Arkádina de que ele também se tornasse ator. São ações possíveis no contexto da personalidade dos personagens de Tchekhov, no entanto, imaginadas pelo grupo de atores. O que eles fazem é verbalizar essa investigação na cena, mostrando isso ao público também. O quarto e último ato é apresentado com o maior grau de síntese, comparado aos anteriores, evidenciando uma dinâmica crescente de redução de cenas e personagens ao longo do espetáculo. Há, novamente, uma narração inicial, que apresenta ao espectador os acontecimentos transcorridos nos dois anos que se passaram entre os atos, além de informações atuais sobre os personagens. Em sequência, há a encenação do reencontro entre Nina e Trepliov, cujo texto resultante segue abaixo para exemplificar de que modo, em sua adaptação, eles trabalharam com a síntese e mudaram palavras, deixando-o mais prosaico:

NINA - Se você soubesse quantas vezes eu vim aqui e não tive coragem de entrar. Eu tinha medo que o Trigórin me visse. Que sua mãe me visse. Eu sonho todas as noites que você olha pra mim e não me reconhece. Você tá tão bonito Kóstia...tão bonito! Eu mudei? Eu mudei muito? TREPLIOV - [digitando em um notebook, amassando papéis e jogando-os fora.] Não sei. Não sei. Alguma coisa. Os olhos maiores, não sei, não sei. NINA - Ontem à noite eu fui até a beira do lago, eu vi o nosso teatro. Ele ainda estava lá. Parecia um esqueleto. Chorei, chorei tanto. Eu vi e me lembrei, lembrei do tempo que eu acordava de manhã e começava a cantar. Eu amava você, eu sonhava [um ator começa a jogar água na cabeça dela com um regador] com a glória, eu achava que a vida de atriz [o mesmo ator joga papeizinhos picados nela] era: ATOR 1 - Eu sonhava ATRIZ 1 - Eu achei que eu ia receber flores a cada estreia ATOR 2 - Eu achei que eu ia comprar uma casa bem grande. (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006) 131

Além da redução do número de palavras e frases, há inversões na ordem de alguns assuntos colocados, colagem de algumas falas de Nina e interrupções de outros atores com depoimentos pessoais sobre o fazer teatral; ainda assim, algumas frases foram mantidas. As rubricas foram revistas, colocadas em outro contexto e, portanto, completamente alteradas. Como efeito, se, por um lado, a cena fica mais próxima ao público, por outro, a desconstrução da dramaturgia às vezes turva a compreensão da linha narrativa da fábula. Os comentários quebram o sentimento que as falas expressam, criando uma camada metalinguística, e causam interrupções no fluxo da história, efeito que parece proposital: menos interessados pela fábula do que pelas questões que ela traz, os atores conduzem o espectador a transitar do fluxo da história das personagens para os mecanismos de sua representação, objetivo que de fato se cumpre. Nesse jogo entre representar a situação e revelar os signos teatrais, algumas das ações criadas estabelecem códigos que tornam evidentes a composição artificial da cena, além de serem metáforas interessantes das situações dos personagens. Jogar um balde de água na atriz no momento que ela está dizendo "eu te amava, eu sonhava com a glória" é uma composição que cria uma metáfora da situação de Nina: ela foi para Moscou em busca de um amor, de se realizar enquanto artista, o que para ela significava ser famosa. Entretanto, a vida em Moscou, tanto no campo pessoal como no profissional foi como "um balde de água fria" em suas idealizações - ela comenta mais adiante que perdeu um filho, e sentia que representava mal os papéis em cena. Do mesmo modo, a ação de "jogar papeizinhos picados" nela logo em seguida, no momento em que está começando sua frase "eu achava que a vida de atriz era...", também produz uma imagem que é uma metáfora interessante daquela situação: os papeizinhos picados materializam "toscamente" um louvor a uma atriz, à fama. Fechando um ciclo, o grupo termina o espetáculo na mesma posição em que começou. O código criado no início da peça – de que aqueles atores estavam em cena enquanto atores em primeiro lugar e que nos contariam uma história – é retomado no final, assim como em alguns outros momentos ao longo do espetáculo. Em sua adaptação textual, o grupo de atores procurou, valendo-se de um processo colaborativo em que perceptivelmente direção e atores criaram juntos, construir uma composição dramática que mostrasse como eles pensam o teatro, no contexto da cena contemporânea brasileira. Além disso, como se houvesse uma fissura no processo de criação, o espetáculo mostra ao público, verbalmente, o 132

material sobre o qual se debruçou para criar: o diálogo com Stanislavski, com a Rússia do século passado, referências que os atores comentam em cena, por vezes com ironia, por vezes com indagações. Ao mesmo tempo, recriam os temas presentes na dramaturgia de Tchekhov, ao alterar palavras, sintetizar diálogos e inserir pequenos textos.

3. O espetáculo e sua recepção crítica

A fim de destrinchar e compreender o resultado dessa composição cênica, formada por um jogo entre contar a história de A Gaivota e fazer uma reflexão sobre o processo de criação, a análise de algumas cenas sintetiza chaves importantes de encenação e interpretação, que podem ser organizadas dentro dos seguintes aspectos:

- O uso da narrativa;

- O jogo com os personagens: revezamento de atores e atuação em coros;

- O processo de criação apresentado em cena;

- A relação inusitada com os objetos cênicos;

- O uso de recursos tecnológicos em cena.

O uso da narrativa

O recurso da narrativa é usado largamente durante todo o espetáculo. Os atores usam esse recurso principalmente como forma de conduzir o espectador, nesses dois planos que compõem o espetáculo: o da fábula e o da reflexão sobre o processo criativo. Quando para costurar a fábula, as narrações descrevem personagens, cenários e circunstâncias, criando códigos claros na encenação e resolvendo possíveis percalços que a adaptação do texto poderia causar à fruição do público. Já as narrações no plano da reflexão sobre o processo criativo extrapolam o que acontece na história e nelas os atores compartilham memórias pessoais deles mesmos, o que favorece a aproximação da peça com o espectador. Por meio desse recurso os atores guiam o público no exame da história de A Gaivota. Ao mesmo tempo, quando os depoimentos e memórias pessoais são lançados, ocorre uma identificação com percalços de natureza humana, passíveis de serem acompanhados, gerando empatia entre quem está narrando a história e quem a está assistindo. 133

Trata-se de um recurso primordial para a costura da dramaturgia como um todo, na medida em que, sem grandes aparatos cenográficos para ilustrar os espaços em que as cenas se passam (um jardim, uma sala, um escritório), essas imagens espaciais deveriam ser inferidas a partir dos jogos entre os atores. Mello (2016) conta que a proposta em relação ao espaço consistiu em fazer uma descrição: como, num palco branco, sem nada, os atores poderiam criar aquele ambiente de campo proposto no texto dramático? Ainda no início da peça, há uma cena que exemplifica bastante esse aspecto. Lima entra com uma xícara de café em mãos, e, ao mesmo tempo em que vai derramando o café no chão, conta ao público que a história se passa ao redor de um lago.

Foto: Mariana Lima. Fonte: gravação da peça Gaivota – tema para um conto curto, 2006.

Então, por meio de elementos minimalistas – como uma xícara de café, vasos de plantas, e até mesmo tomates –, eles compuseram todo um universo rural. Ao jogar o café de uma xícara no chão, combinando a esse gesto a fala descritiva "aqui tem um lago", forma-se o lago por meio de uma imagem poética, ou seja, o lago se configura por completo na imaginação do espectador que, por esse aspecto minimalista e analógico, cria o lago em sua imaginação. A beleza da imagem – elaborada a partir de um objeto cotidiano que foi ressignificado para compor aquele espaço – torna a cena convidativa. Instaura-se de imediato um tom de cumplicidade, de jogo, porque, se o espectador não aceitar o jogo, não verá o lago, e não poderá, portanto, fruir a peça. A cena encanta ao propor uma atmosfera que evoca algo de brincadeira de criança e, assim, consegue instaurar uma leveza logo no primeiro ato. Se, no plano da fábula, a narração é importante para instaurar atmosferas, estabelecer circunstâncias ou acrescentar informações à trama, no plano da reflexão sobre o processo 134

criativo, a narração é justamente a ferramenta que abre, na história, os espaços da discussão sobre o fazer teatral. Um bom exemplo de uma narração, que combina ambos os planos, ocorre no transitar, em fluxo, da esfera do ator para a do personagem, descrevendo-o. A cena entre o professor e Macha começa dessa maneira: o ator Emílio de Mello descreve a situação e o seu personagem, e isso funciona como uma transição, até que ele "entra no personagem" e atua dentro da situação proposta. O mesmo ocorre no início do último ato, em que os atores fazem uma narração coletiva, extrapolando o que acontece na história. Essa cena se inicia com um ator dizendo que Trepliov havia sido publicado em revistas literárias e até ganhava algum dinheiro com isso. Outro ator menciona uma tempestade, seguido por uma atriz que diz: faz "dois dias que não pára de chover". Outra voz informa: "Passaram-se dois anos"- referindo-se ao tempo transcorrido entre um ato e outro; em seguida ouvimos: "Passaram-se seis meses desde que a gente começou a ensaiar a peça"; Diaz completa: "Passaram-se 110 anos da primeira encenação da peça, inventaram o fax, AZT, clonaram a ovelha, fizeram o coelho fluorflorescente...", Além de explicarem e darem dados sobre a situação que irá se desenrolar a seguir , esse coro informa que correram alguns anos entre o terceiro e o quarto atos, e ampliam a ideia de passagem do tempo para o sentido do espetáculo como um todo, que trata das diferenças entre as pessoas e entre as opiniões dos diferentes tempos. Falam sobre o tempo da peça e sobre o tempo de fora da peça. Sobre coisas que aconteceram aos atores em suas vidas reais e sobre fatos comuns ao público. Com beleza plástica e ritmo preciso, ocoro embala o público até transportá-lo para a situação dramática da peça. O recurso da narração, portanto, tem a importância de dar a ver, com mais nitidez, a esfera de que uma história é contada. Ao operar essa construção aos olhos e exame do público, deixam despontar um forte vetor de metalinguagem.

O jogo com os personagens: revezamento dos atores e atuação em coros

No espetáculo, os sete atores se revezam nos personagens, de modo que as três atrizes passam pelas três personagens femininas (Nina, Arkádina e Macha) e os atores, pelos masculinos (Trepliov, Trigórin, Professor e Sórin).Além disso, em alguns momentos, atuam em coro em um único personagem, fragmentando seu discurso na atuação. Esse revezamento dá a camada de que esses atores estão nos contando uma história, sob diversos pontos de 135

vista, além de conferir um ritmo ao espetáculo, pois, se no início essa alternância acontece de maneira um pouco mais lenta, no decorrer das cenas ele vai se tornando mais frenético, até que, no final, há uma diminuição dessas trocas, retornando ao movimento inicial. Por sua vez, conforme será analisado mais à frente, a atuação em coro acontece para ampliar ou desenvolver algum aspecto da ficção que eles querem mostrar. Além disso, esse recurso do coro é usado como um recurso dramatúrgico para costurar as cenas. Na primeira situação dramática apresentada, Mariana Lima joga com a personagem de Macha e Emílio de Mello, com o do professor. No final do primeiro ato, Mello também joga como o personagem de Trigórin. Trepliov, no início, é interpretado por Enrique Diaz e Felipe Rocha ao mesmo tempo, em um jogo em que o texto de Trepliov é dito em duas vozes que vão se alternando. Após um curto período, apenas Felipe Rocha se mantém no papel sozinho. Toda essa configuração, no segundo ato, é alterada. Já no terceiro, observamos um dinamismo ainda mais frenético nesse revezamento dos atores. Neste ato, todas as mulheres atuam como Arkádina. Elas atuam em coro durante o início da cena entre ela e Trepliov. Após algumas falas e movimentos, uma das atrizes se empodera mais da personagem, enquanto as outras duas funcionam como se fossem ecos da fala dela, até que saem de cena, ficando somente Mariana Lima no papel. No último ato, no qual, conforme vimos, o enredo original é apresentado mais sucintamente, com apenas uma situação dramática encenada, Trepliov é feito somente por Emílio de Mello e Nina por Mariana Lima. No final, assim como no começo, portanto, o movimento de troca entre os atores é menor. Durante o processo de criação, os atores, ao jogarem como diferentes personagens, atuavam como Ninas e Trepliovs, representantes de um novo teatro, e também como Arkádinas e Trigórins, representantes de um teatro já em decadência, mas que alcançou o sucesso. Foi importante para os atores experimentarem ambas as situações. Em entrevista para esta pesquisa, Lima conta que não lhe parecia justo nem com Tchekhov, nem com eles mesmos montar a peça em reverência à beleza do texto. A seu ver, só seria possível encenar esse texto a partir de uma releitura que expressasse as inquietações deles enquanto artistas nos dias de hoje. Entretanto, é preciso ponderar que a dramaturgia de Tchekhov, como demonstrado em capítulo anterior, é muito rica enquanto potência para criação de uma encenação, especialmente pela incrível humanidade com que Tchekhov pinta seus personagens e suas relações. O coletivo quis fazer uma escolha nesse sentido de gerar uma atualização da obra, buscando questionamentos que pudessem ser pertinentes para o seu fazer artístico:

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Quem representa Treplev hoje? E Arkádina? Quem seria o escritor renomado e cansado e o autor jovem, problemático? Em qual dessas duas manifestações podemos nos colocar? (...) Nós queríamos entender o lugar em que nós estávamos atuando, já não éramos mais Ninas nem Treplevs, mas ainda não estávamos tão cansados quanto Arkádina. (LIMA, 2016)

Esse depoimento deixa claro o ponto de vista do grupo na leitura dessa peça: mais do que compreender aqueles personagens a fundo, o objetivo era fazer a peça para expor e pensar em questões deles próprios enquanto artistas. Os atores se colocaram em diversas posições e buscaram trazer para o público não uma opinião de qual personagem era melhor ou pior, mas mostrar a beleza e a mesquinhez de todos, tentando não julgar. Isso se coaduna bastante com a intenção de Tchekhov: o autor mostra vários lados dos personagens, seus vícios e suas virtudes, deixando para o público o difícil papel de juiz. Por um lado, essa escolha permite aos atores estarem sempre brincando e manipulando a emoção dos personagens, oferecendo várias versões e pontos de vistas das situações e cenas, e isso é coerente com a proposta do espetáculo de ser, sobretudo, um grande jogo de atores em cena. Por outro lado, na interpretação do ator, não há um mergulho a fundo em um único personagem. Mello, em entrevista a mim concedida, considera que o revezamento nos personagens favoreceria um entendimento da obra como um todo, sem prejuízo para a interpretação mais particular de cada personagem, porque haveria um aprofundamento maior no conhecimento de todos sobre a peça. De fato, a dança dos personagens entre os atores ocorre de maneira fluída, agradável, sem truncamento. Percebe-se que todos têm intimidade com o espetáculo construído. Fica clara a existência de uma preocupação coletiva em contar uma história única, e esse andamento caminha sem incongruências, de maneira ágil. Mello explicou que, realmente, não foi intenção do processo mergulhar a fundo na psicologia de cada um dos personagens. Os atores pretendiam "usar uma imagem que pudesse emocionar", ou mostrar a depressão de Macha, por exemplo, "através das minhas ações e imagens, olhando a bolsa, procurando meus remédios." (MELLO, 2016) e não vivenciar a depressão de Macha. No mesmo sentido, na cena em que Arkádina interpretava Dama das Camélias, a atriz chegava a chorar e se emocionar, ou seja, os atores até chegaram a usar a emoção – "mas como símbolo de um teatro, símbolo de uma linguagem e não que isso fosse a linguagem da peça." (MELLO, 2016). 137

O grande objetivo da interpretação era o jogo: "Não, não sinta porra nenhuma, sinta que o jogo está funcionando, sinta que está chegando. Eu não estou sentindo alguma coisa, o jogo é o mais importante, ele tira a gente da psicologia." (MELLO, 2016) Segundo Mello, nesse espetáculo, o ator deveria construir uma imagem poética que seria um símbolo da situação do personagem, de seus sentimentos e o ator deveria estar ocupado nisso e não em sentir a emoção do personagem na cena. Como dito anteriormente, o código para estabelecimento do personagem é dado pelo figurino e pelos objetos de cena. Sempre são peças de roupa sobrepostas às que os atores já estão vestidos. Desta maneira, o espectador acompanha esse movimento de "vestir" o personagem, o que gera um recurso cênico dinâmico, um ritmo forte para cena. As trocas geram uma dinâmica cênica que prende a atenção, em detrimento de se conhecer melhor os sentimentos e angústias de cada personagem. Essa dinâmica de cena completa um ciclo rítmico que se inicia mais compassado, ganha velocidade no decorrer das cenas, até chegar a uma energia frenética, e depois retorna ao movimento mais lento do início. O que fica mais forte é a esfera do ator, daquele que interpreta, que manipula, que dá voz. Afinal, A Gaivota é a história que, contada por eles, está a serviço da discussão sobre o fazer teatral. Silvia Fernandes (2009) avalia que, quando a cena se constrói com constantes ajustes e os personagens são substituídos ritmicamente entre os atores, por vezes até atuando em coros, ocorre o favorecimento de uma compreensão mais abrangente da história contada na peça. Na medida em que os atores estão focados em compreender os conflitos de vários personagens e em se colocar nesses diversos pontos de vista, alargam o entendimento da dramaturgia como um todo, mas incorrem na perda de complexidade de cada um dos personagens. A atuação em coro geralmente acontece no começo das cenas, marcando uma transição entre uma situação anterior e a que passará a ocorrer. Um exemplo em que esse procedimento funciona ocorre no terceiro ato, na cena em que Trigórin confessa para Arkádina que está apaixonado por Nina, mas ela o convence a ficar com ela e retornar para Moscou.

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Foto: Malu Galli, Mariana Lima, Enrique Diaz e Emilio de Melo. Fonte: gravação da peça Gaivota – tema para um conto curto, 2006.

Nessa cena, as três atrizes atuam como Arkádina, cada uma delas fazendo uma parte do texto, com uma atuação ao mesmo tempo fragmentada e múltipla, que amplia a impressão de envolvimento de Trigórin por sua amante, na medida que vemos três Arkádinas argumentando, andando em círculos ao seu redor e apelando pelo amor de um Trigórin. Nesse sentido, a cena amplia uma leitura do texto que se mostra clara, uma relação dominadora que Arkádina teria sobre Trigórin. Por outro lado, ainda que, por meio desse recurso, seja possível entender a interpretação do grupo sobre a relação entre os dois, a escolha não favorece a emoção ou a compaixão do público por Arkádina, porque a complexidade de suas ações se dilui. Arkádina, no início da cena, se rebaixa e seduz Trigórin, engolindo seu orgulho, procura fazer o que for preciso para mantê-lo junto de si, mesmo Trigórin assumindo que está apaixonado por Nina. Ela raciocina e percebe que se elogiar seu talento do modo como ela faz é algo que Nina não conseguirá fazer, então ela o faz, o envolvendo sexualmente também. É possível cogitarmos pelo texto, que provavelmente já vivenciaram outras vezes essa situação, de ele se apaixonar por outras mulheres, enquanto Arkádina mantém-se junto de si. No fundo, Arkádina se sente sozinha e tem medo da solidão. Apesar de toda fama, ela é muito carente e dotada de um imenso paradoxo entre força e fragilidade. Essas nuances de sentimentos e emoções – que, como visto no capítulo 1, caracterizam os personagens tchekhovianos – não encontram espaço nessa proposta de encenação, que ganha dinamismo, jogo e imagens impactantes, em detrimento da beleza que reside no preciosismo do autor russo em tratar dos meandros das relações humanas. 139

O processo de criação apresentado em cena

A exploração cênica do processo de criação – que, como vimos, constitui uma chave para a linguagem do espetáculo – aparece, em muitos momentos, com uma fusão dos dois planos – o da fábula, e o da revelação da cena. Quando isso ocorre, o plano dos atores é reforçado pela “coincidência” temática com a situação dramática existente na fábula de A Gaivota. Trazer o processo de criação para a cena tem um intuito de levantar uma discussão sobre trabalho do ator, teatro, linguagem. O coletivo faz isso de diversas maneiras. Um exemplo é a cena em que Arkádina está relembrando trechos de A Dama das Camélias. Antes de entrar em cena, a atriz faz um ritual de aquecimento vocal com um gravador portátil. Assim, o grupo aproveita esse gatilho, essa isca de informação, como foi dito acima, para incluir mais dados sobre o fazer teatral, inexistentes na obra original. Eles incluem um momento que antecede a apresentação para o público, o momento em que o ator aquece sua voz antes de entrar em cena. Tal recurso potencializa a discussão sobre o fazer teatral que está na obra original, porque mostra os bastidores, a ansiedade de enfrentar a cena, a necessidade de valer-se de um recurso preparatório que ajude o corpo e a mente do ator a estarem aptos para dar o máximo de si no palco. Além disso, a cena é cômica: colocar uma atriz fazendo um aquecimento com exercícios ditados por um gravador portátil é engraçado porque é uma maneira dos atores ironizarem esse momento de preparação para entrar em cena. Mostram que a personagem está buscando replicar os exercícios, como se estivesse fazendo uma espécie de "academia." Atualmente, com inúmeras técnicas e referências novas, bem como escolas de teatro a disposição dos atores, a essência do fazer artístico pode se perder facilmente, já que os exercícios e metodologias disponíveis podem ajudar o ator com seu aperfeiçoamento técnico, mas o fazer artístico é mais complexo, exigindo uma prática comprometida com o que se está expressando, com o porquê disso. A cena do final do primeiro ato, já mencionada, na qual um dos atores lê o trecho do livro de memórias de Stanislavski, também é paradigmática dessa ideia. Há um elemento que torna a leitura do trecho bastante pertinente: o encenador russo fala do receio do fracasso, retomando a primeira fala do espetáculo e tocando em um dos pontos mais delicados do fazer teatral. O grupo usa esse trecho para fazer uma analogia com sua situação naquele momento - também temem o fracasso. Isso gera uma suspensão, porque ao mesmo tempo que existem evidentemente muitas diferenças, há um sentimento em comum: naquela época, o TAM se arriscava num experimento de novas técnicas de atuação, com o texto de um dramaturgo que até então havia fracassado. Mais de cem anos depois, a Cia dos Atores traz essa referência, 140

tanto por notoriedade e importância na história do teatro e do próprio dramaturgo, quanto pela semelhança em estarem experimentando também novas linguagens, novas propostas de abordagem de trabalho de um texto dramático. Ambos são movidos pelo desejo semelhante de inovar a arte cênica. Além dos encenadores terem essas semelhanças em seus trabalhos mesmo com a grande passagem de tempo entre eles, a montagem de Diaz em vários pontos se contrapõe às propostas de Stanislavski. No trabalho com a "memória emocional" comentado por Stanislavski em A Preparação do Ator (STANISLAVSKI, 1968), os atores deveriam fazer exercícios de agir como se fossem aqueles personagens, na situação dramática, e todas as circunstâncias propostas eram importantes e deveriam ser consideradas: ou seja, a idade do personagem, sua relação com os demais, o que tinha acontecido a ele antes, como isso tinha afetado, a época em que a história se passava. O ator deveria trazer a sua carga emocional, mas ainda assim, era um diálogo com o outro, com as circunstâncias do personagem que iria interpretar. Todo esse trabalho, realizado durante o processo de criação, não era mostrado ao espectador, ou seja, a dimensão do ator não era revelada. O que aparecia para o público era a construção do personagem, o ator aparecia por meio disso, ficava em segundo plano. Além disso, cada ator verticalizava na experiência de construir um único personagem. Já na encenação de Diaz, os atores se revezam entre os personagens. Há o uso de memórias e emoções dos atores no processo de criação, mas esse procedimento, além de servir à esse momento, é apresentado ao espectador durante a realização do espetáculo, ocorrendo uma apropriação acompanhada de mudança radical de perspectiva que os diferencia da proposta de Stanislavski: o ator está à frente do personagem e o próprio procedimento - uso das memórias e emoções - transforma-se em base para o estabelecimento de uma linguagem na encenação. Ademais, há momentos em que o grau metalinguístico se intensifica com os diálogos entre ator e personagem, sobre o processo de sua construção, e da descoberta do subtexto ou mesmo de uma ação que está fazendo em cena. No final do segundo ato, Emílio de Mello, interpretando o personagem Trigórin, descreve o que, na interpretação da Cia, poderia ser um subtexto da personagem Nina ao final deste ato:

A gaivota sonha. Ela volta para casa sonhando. Sonhando com os dormentes dos trilhos de trem que vai levá-la para Moscou. Ela sonha com o hotelzinho que ela vai ficar hospedada. Sonha com a primeira noite que vai passar longe de casa. Sonha com os amigos que ela vai fazer em Moscou e sonha com o amor... (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006)

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No texto de Tchekhov, a fala de Nina é bem mais sintética: "Isto é um sonho." (TCHEKHOV, 2004, p.57) Esse procedimento, utilizado diversas vezes ao longo do espetáculo, mostra ao público os subtextos descobertos pelo grupo na criação daqueles personagens, a leitura do grupo sobre as personagens e situações que viveram na fábula. Sob o ponto de vista da criação, os atores trazem para a cena as escolhas de interpretação pensadas durante os ensaios. O ator revela ao público o que imaginaram que a personagem poderia estar pensando quando disse sinteticamente - "Isso é um sonho". Dessa maneira, expõem, literalmente, sua interpretação por meio de uma fala, utilizando o recurso da narração para ampliar o imaginário do espectador, que, então, poderá imaginar as possibilidades que se abrem a partir da decisão de Nina. O ator oferece alguns dados que tornam a imaginação dele mais concreta, colocando em palavras o que ficaria subentendido para cada espectador imaginar.

Foto: Mariana Lima e Enrique Diaz. Fonte: gravação da peça Gaivota – tema para um conto curto, 2006.

No texto essa fala, é abstrata, não sabemos a que "sonho" Nina está se referindo. O grupo a concretiza no trem, no hotel, nos amigos, só mantém ainda abstrato, no final da frase, "o amor". Pelos acontecimentos que antecedem sua fala, entretanto, ainda não apareceu na história que ela já tinha decidido partir. Nina tinha acabado de conversar com Trigórin e após a conversa, Arkádina o avisa que irão ficar mais tempo na propriedade, ou seja, não irão voltar para Moscou. O sonho dela nesse momento poderia ser também o fato do Trigórin estar ali, ser um escritor e estar se encantando por ela. Além disso, ter a oportunidade de estar mais próxima de Arkádina, uma grande atriz, que decide passar mais tempo lá. O sonho dela poderia ser também o teatro - pois ela olha para o palco quando diz essa frase: "NINA [aproxima-se no tablado, reflete um pouco] Isto é um sonho!" (TCHEKHOV, 2004, p.57). Ou 142

seja, pelas indicações do texto, o sonho dela nesse momento poderia apontar também para a arte e para o amor. Os atores trazem o diálogo entre ator e personagem como um elemento que compõe a cena, aos olhos do espectador. Isso se torna um pretexto para abertura dramática do texto ao exame do público. Ou seja, a plateia, no momento de fruição da obra, entra em contato com um exame e uma análise possível dos personagens, daquela situação, de seus sentimentos. O grupo, nesse sentido, faz e demonstra sua atualização dos significados latentes no texto. Na perspectiva de Diaz, o ator aparece em primeiro plano, junto com o personagem. Assim, os subtextos, bem como dúvidas e memórias pessoais do processo de criação, quebram propositalmente a construção da realidade ficcional do personagem. É nesse sentido que, além da revelação do subtexto para o público, os atores também trazem suas memórias pessoais para a cena. É o que ocorre no segundo ato, quando as três atrizes, vestidas como Nina, conversam com Trigórin sobre como é ser um escritor. Nessa conversa, quando Nina deveria falar sobre suas idealizações da vida artística, Mariana Lima complementa com um depoimento pessoal: "Eu faria peças em presídios, peças experimentais, eu deixaria que fizessem xixi em mim." (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006). Ela está remetendo a Apocalipse 1, 11, do Teatro da Vertigem, espetáculo experimental no qual atuou. Essa peça aconteceu em um presídio, e realmente um ator fazia xixi em cima dela. Ela não é

Nina, ela é sempre ela mesma - a Nina é um enquadramento. Essa opção por quebrar com a ideia da representação e fazer uma adaptação textual que desconstrói a dramaturgia e joga com as perspectivas daqueles atores diante dessa história são os principais aspectos que, na opinião da crítica Maria Ângela Lima, tornam os personagens tchekhovianos tão interessantes:

Enquanto personagens do autor russo, os quatro artistas têm limites impostos pela verossimilhança e cada um se identifica com uma tendência artística. Examinados em sobrevôo por intérpretes do século XXI, as duas atrizes e os dois escritores da história, se amalgamam em uma discussão estética que interessa a todos exatamente porque não pode mais afirmar valores com segurança ou permanecer em uma única trincheira. (LIMA, 2007)

A crítica afirma que, se pensarmos no texto, há alguns limites de verossimilhança nos quatro artistas e protagonistas da história, porque eles estão falando de problemas da cena teatral, da representação, mas de outra época. Entretanto, segundo sua visão, o modo como esse grupo brasileiro se apropriou e examinou essa temática, não focando nas características individuais de cada um desses quatro protagonistas, mas trazendo essa discussão estética para 143

o seu próprio contexto, tornou essa questão interessante a todos: intérpretes e público brasileiro. Nesse sentido, o grupo opta por falar do teatro e não das tantas outras questões que a peça traz, que estão apontadas nas complexas relações humanas entre aqueles personagens. Focando em um aspecto, a complexidade dessas relações se perde, em contraponto com uma verticalização no aspecto do fazer teatral. Essa escolha possibilita que eles apresentem o seu modo de pensar o teatro e por consequência, há uma aproximação com o público brasileiro também, que poderia se identificar mais facilmente. No entanto, na opinião da crítica Bárbara Heliodora, esta aproximação com as circunstâncias pessoais dos atores acaba não comunicando com o público:

Bel Garcia, Emílio de Mello, Enrique Diaz, Felipe Rocha, Gilberto Gawronski, Malu Galli e Mariana Lima compõem o elenco, todo ele afinado com o conceito do espetáculo, e por isso mesmo pouco preocupado com o que possa ou não passar à plateia. Sua investigação fica, portanto, um pouco presa a intimidades do grupo e tão interiorizada que não pode ser bem ouvida pelo público. (HELIODORA, 2006)

Na opinião de Heliodora, o que fica é uma investigação interessante aos atores, que serve a seu jogo, mas se encerra nisso, porque eles reduzem a temática às intimidades do grupo, o que não é suficiente para capturar o público, para que se construa algo junto, que o espectador possa fruir. Ainda que certa radicalidade dessa crítica acabe por ignorar os méritos da obra, ela aponta para um aspecto de fato perigoso dessa encenação: as referências sobre a trajetória do grupo, que foram levadas à cena, quando não são de conhecimento do público - e dificilmente são -, deixam de cumprir seu propósito dramatúrgico e realmente atrapalham a fruição do espetáculo. Um exemplo é a cena em que Mariana Lima faz seu depoimento pessoal sobre sua atuação no Teatro da Vertigem. Quando ela diz “eu deixaria que fizessem xixi em mim”, referindo-se a uma experiência real que teve em cena, a fala pode soar aleatória ou até sarcástica para o espectador que desconhece essa origem, perdendo o impacto que a frase, coerente com a situação dramática, tem para quem sabe do contexto. É preciso ponderar, entretanto, que essas intimidades a que ela se refere não prevalecem no espetáculo, sendo o compartilhamento de memórias pessoais apenas uma das estratégias que o elenco utiliza para instaurar a discussão sobre a prática do teatro.

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A relação inusitada com os objetos cênicos

Os objetos cênicos que apoiam a criação das metáforas têm a característica de serem inusitados e/ou utilizados de forma inusitada. Há muitas plantas, legumes e verduras, além de outros elementos cotidianos, como batom, café e secador de cabelo, ou extra-cotidianos, como um capacete de astronauta. A profusão de objetos de categorias tão distintas, entre os quais parece não haver nenhuma unidade, cria uma dissonância conveniente ao jogo da cena, como ocorre, por exemplo, com o secador de cabelo enquanto arma de fogo e o batom, usado na testa de um ator como representação do sangue. Assumem, portanto, a precariedade do símbolo, de modo a reforçar a tônica do espetáculo de questionar a construção da metáfora e a própria ideia de representação. A cena, no texto de Tchekhov, em que Trepliov coloca aos pés de Nina uma gaivota morta é emblemática desse recurso. No espetáculo, um ator pega um saco com água e, fazendo vários furos, deixa a água vazar; enquanto isso, outro intérprete entra com várias cadeiras empilhadas de uma maneira desorganizada e um terceiro ainda está mexendo numa cesta com legumes e, depois de arrumar algumas cenouras e batatas no chão pega uma couve- flor. Ele, então, leva a verdura até Nina, coloca-a aos seus pés e troca de posição com o ator que trazia as cadeiras empilhadas, começando o jogo dessa cena. Nesse momento, o ator diz que acabara de matar uma gaivota e está colocando aos pés de Nina. Ela não consegue compreender essa ação dele, e os dois acabam discutindo. Percebe-se que começa a haver um desentendimento entre eles, que os distancia e agrava a dificuldade de Nina de compreender as crises de Trepliov. Quando o ator coloca a couve-flor lá, dizendo que é uma gaivota, a atriz diz, em primeiro lugar, "isso não é uma gaivota, é uma couve-flor" (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006). E o público ri. Estando pontuada essa desconstrução do símbolo, eles continuam a cena, aceitando o jogo de que aquele objeto está ali para simbolizar uma "gaivota morta". As imagens das cadeiras desorganizadamente empilhadas e os furos no saco plástico que deixam a água vazar compõem uma atmosfera de desordem e fragmentação, que se assemelha ao processo mental de Trepliov e à desintegração que está ocorrendo na relação entre os dois. Nina acha estranho ele matar uma gaivota e colocá-la a seus pés, fica assustada e diz não conseguir mais compreender seu modo de se expressar por símbolos. Eles somam a essa camada de incompreensão da ficção, uma camada de revelação do símbolo, questionando a forma de Trepliov representar o que está sentindo e a própria ideia de representação. Quando Nina diz que isso não é uma gaivota, outros atores entram com outros objetos 145

perguntando se aqueles poderiam representar a ave: um vaso com uma planta, outro ator deita e se abraça a um tapete enrolado, outro entra jogando terra no chão... Sucede-se, assim, uma série de ações aparentemente desconexas que culmina na explosão de Nina, que diz: "você está se comunicando por símbolos de uma forma totalmente incompreensível. Me desculpa, eu sou simples demais para entender essas coisas". (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006)

Foto: Felipe Rocha e Emílio de Melo. Fonte: gravação da peça Gaivota – tema para um conto curto, 2006.

Nesse momento, o grupo nos dá a sua perspectiva sobre esse acontecimento dramatúrgico. A confusão da cena, portanto, é símbolo da perspectiva de Nina: ela está achando tudo muito confuso e sem sentido, especialmente a relação entre eles.

O uso de recursos tecnológicos em cena

Ainda que não sejam os elementos mais marcantes da encenação, aparecem alguns recursos tecnológicos, cujo uso, de certa maneira, corrobora a proposta de se usar objetos comuns ao cotidiano do homem contemporâneo. Um exemplo logo no início do espetáculo, onde há a utilização de uma projeção audiovisual, é a cena na qual Nina apresenta a peça escrita por Trepliov. A projeção tem início com uma imagem da Lua, seguida por algumas imagens dos próprios atores - parece que estão ensaiando- em um jardim, em sequência surge uma banheira. Há uma sucessão de imagens aparentemente desconexas, sem ligação óbvia com o que está sendo dito no palco pela atriz. Junto a isso, Diaz fala em um microfone algumas informações sobre o processo de criação da peça: questiona-se se o texto criado por Trepliov era bom ou ruim, pondera sobre a 146

escolha do jovem e inovador autor em representar o diabo com um cheiro de enxofre, entre outras reflexões. Desse modo, a conexão das imagens acontece mais com a fala dele do que com o texto da cena na voz da atriz que está interpretando Nina. Retomando, a composição da cena é articulada pelos seguintes elementos: - a atriz dizendo o texto de Nina escrito por Trepliov (que é um texto um pouco "sem sentido", uma poesia solta, subjetividades)

- as imagens projetadas ao fundo,

- Diaz falando no microfone sobre a artesania dessa cena, - e ainda, um helicóptero de brinquedo conduzido por um controle remoto que está nas mãos do ator que interpreta Trepliov. O uso desses recursos tecnológicos também simboliza, em outra camada, as inovações que Trepliov busca apresentar. O resultado da cena, resvalando na bizarrice, gera um efeito cômico, embora os atores estejam com interpretação sóbria e nada sarcástica, o que cria um contraste. Também funcionam bem os recursos tecnológicos na cena em que Arkádina vai trocar as ataduras de Trepliov. Antes de iniciar a situação dramática, a cena começa com Trepliov sentado ao fundo do palco numa cadeira e, atrás dele, há uma projeção audiovisual. Mariana Lima, que nesse momento está interpretando Arkádina, está sentada na outra ponta, bem perto do público e de costas para ele, assistindo à projeção também.

Foto: Mariana Lima e Felipe Rocha. Fonte: gravação da peça Gaivota – tema para um conto curto, 2006.

As imagens mostram cenas verídicas da atriz em trabalhos anteriores, no teatro e no cinema, quando era mais jovem, fundindo o plano da artista com a da personagem Arkádina que, nessa cena, relembra momentos de sua trajetória profissional e de sua vida pessoal. Ela vê uma imagem e, como quem resgata memórias, diz: "nessa época eu era tão famosa que não podia nem sair na rua, você era um bebê e ficava no camarim..." (GAIVOTA – TEMA PARA 147

UM CONTO CURTO, 2006). Começa, então, a reunir as memórias artísticas com as memórias dela como mãe e de Trepliov, da infância, até chegar à idade atual, quando, de fato, começa a situação dramática. O vídeo mostra ao público o que supostamente ela estaria "vendo" dentro de si , suas memórias que se misturam na vida pessoal, ao mesmo tempo em que revela o egocentrismo do seu caráter, já que, mesmo na relação com o filho, suas lembranças são permeadas pelos acontecimentos de sua vida artística. Portanto, a tecnologia, nesse caso, é um recurso interessante pelo estímulo que dá ao imaginário do público, enriquecendo e detalhando-o. É a possibilidade de compartilhar, com o público, esse “filme” que passa na cabeça dela, instaurando sua perspectiva, que se reveza com a de Trepliov, quando ele faz comentários acerca das situações e sentimentos recordados. No plano da exploração poética do processo criativo, há um dos recursos tecnológicos mais utilizados no espetáculo: aparelhos de som, manuseados pelos próprios atores. Em alguns momentos, quando entra a música, os atores manuseiam os aparelhos, como se fossem eles mesmos os responsáveis por operar a trilha sonora. Essa escolha tematiza o fazer teatral, na medida em que se faz símbolo claro de que mesmo o recurso da sonoplastia é algo que vem da cena e é, por conseguinte, um artifício. Também no sentido de se criar uma quebra da ilusão teatral, na cena final do espetáculo, Diaz entra carregando uma câmera com a qual grava o diálogo final entre Nina e Trepliov, nessa cena representados por Lima e Mello. Como se estivesse ali para registrar e acompanhar os acontecimentos, dá a ideia de um voyer, alguém que vê e observa apenas, sem tomar partido de um ou outro personagem. Depois de terem, ao longo do espetáculo, jogado com um revezamento de perspectivas, tanto dos atores quanto das personagens, finalizam-no, colocando, diante da disputa entre dois tipos de visões de arte e de vida – cada um defendido por uma das personagens –, o ponto de vista de um voyer, de quem assiste sem tomar partido. Manipulado por Diaz, o equipamento torna-se, por fim, o recorte da visão do diretor da obra, daquele que é responsável, ainda que dentro de um processo colaborativo, pela palavra final sobre o que é ou não levado à cena.

Comentários finais

Nesse grande jogo, a maior qualidade do trabalho – e, ao mesmo tempo, o ponto em que às vezes incorrem em alguns problemas, consiste na liberdade com que os atores lidam com o texto dramático. Eles abordam-no de uma maneira tão livre, tão aberta e tão 148

irreverente, que alcançam ressignificações interessantes da fábula, mas às vezes também a deixam escapar. Especialmente no início do espetáculo, alguns comentários são como piadas internas e causam certa dispersão na atenção do público, o que, por algumas vezes, atravanca um pouco a condução no espetáculo. Entretanto, esse tom, em muitos momentos, combina com o humor que o próprio Tchekhov coloca em seu texto. Um exemplo acertado é no segundo ato, o trecho em que Arkádina exige que lhe sejam levados cavalos e dá um escândalo por não ter sido atendida. O resultado da cena é engraçadíssimo, mas não deixa de ser dramático, pois revela, em sua crise, quão ridícula e mesquinha ela é. Ainda nesse ato, há uma outra cena em que os atores fazem um brinde e bebem vodka. Mariana Lima, que fará o papel de Arkádina começa a cena dizendo: "um brinde à Tchekhov, que morreu bebendo champanhe. Esse, sim, soube morrer, e seu caixão foi levado num vagão repleto de ostras." (GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO, 2006) Fala de um dado engraçado e real da vida do próprio autor, revelando que a vida daquele que criou essa história é, ela própria, uma amostragem da convivência entre fatos cômicos e trágicos. Depois, ao acrescentar falas na discussão que não existiam no texto, tornam-no mais atual, como, por exemplo, quando ela menciona que o brinde deve ser e filho, ao confronto entre a idealização e a realidade do que é ser artista, e outras questões inerentes à vida, que o autor russo soube capturar com maestria. Nesses espetáculos, essas temáticas e cenários presentes na obra do dramaturgo encontraram equivalências e uma transposição cênica que, cada uma a seu modo, aproveitaram a teatralidade feito também aos próprios atores. A atriz continua a jogar a situação dramática como se estivesse um pouco bêbada - comportamento que é acrescido por eles na cena, que resulta em um tom interessante: combina com a personagem, vivendo sempre um pouco fora de sua realidade. Essa irreverência e despojamento no trato do texto dramático mostram ao público a maneira como aqueles atores pensam o teatro, compondo uma metalinguagem, que, para além do que está tematizado no texto dramático, é a chave da encenação de toda a obra. Assim sendo, nessa desconstrução dramatúrgica, o ator é, sem dúvida, o grande eixo pelo qual toda a obra se estrutura. São corpos, memórias, modos de dizer o texto, jogos, experiências criativas, sensações: pontos de vista que se cruzam, que se dão a ver, que se misturam, num grande jogo em que há uma polifonia de signos cênicos para exame e deleite do espectador.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Desistir...eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério, é que tem mais chão nos meus olhos do que o cansaço nas minhas pernas, mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros, mais estrada no meu coração do que medo na minha cabeça." (Cora Coralina)

Neste trabalho, apresentei uma análise de como três grupos do teatro brasileiro moderno e contemporâneo leram e adaptaram cenicamente duas das obras dramatúrgicas mais importantes de Anton Tchekhov: A Gaivota e As Três Irmãs. Esses espetáculos, de distintas maneiras, deram vida às propriedades rurais descritas nos textos, aos egos feridos de artistas tão mortais como qualquer ser humano, à melancolia por se viver em idealizações de um futuro que nunca chegará, às paixões fora do casamento, à infelicidade conjugal, às dificuldades nas relações entre mãe e filho presente na dramaturgia tchekhoviana: suas diversas nuances – o cômico, o trágico, o simbólico –, a metalinguagem e a trama complexa e rica em subtextos. Em 1972, em sua busca por construir uma encenação com verossimilhança ao público e aos atores brasileiros, Zé Celso propôs uma concepção que visava a estabelecer um elo entre a história do grupo até aquele momento e a história de As Três Irmãs, tecendo analogias com a circularidade do tempo que observou na dramaturgia. Trouxe, em sua encenação, nuances simbólicas presentes concretamente em cena por meio da escolha do cenário e de objetos cênicos que traduziam a ideia do tempo e sua circularidade. Seguindo por essa linha de raciocínio, o diretor conduziu um processo de criação a partir de uma identificação entre atores e personagens, realizando laboratórios de criação com o uso de uma substância alucinógena – a mescalina – para que os atores vivessem as situações propostas na dramaturgia com tamanha intensidade, que fossem capazes de atingir, em cena, "a verdade daquele personagem". (PRESTES, 2017). Havia, nessa época, uma grande crise interna no grupo, acompanhada de uma forte repressão política no contexto externo. Esses dois fatores fizeram dessa encenação, portanto, uma tentativa de unificação: não só do grupo, mas também de todas as visões de teatro e técnicas que o coletivo tinha apreendido e experimentado até então. Nesse espetáculo, Zé Celso propôs ir além do modelo stanislavskiano de representar um papel e convidar os atores a uma vivência daquela situação, efeito que seria atingido com auxílio do uso da mescalina, uma substância alucinógena. 150

Em cena, a efetividade cênica de sua proposta acontece, apesar de ser questionada pela crítica da época em alguns aspectos. Ao contrário do que imaginava Zé Celso, a tensão interna se acirrou ainda mais nessa peça e um de seus fundadores, Renato Borghi, saiu do grupo durante uma das apresentações do espetáculo, quando parte do elenco, ao vivenciar com tamanha intensidade as situações ficcionais, acabou saindo das marcas propostas e começou a provocar um incêndio real no palco. Essa encenação usou uma tradução do texto vinculada a uma prática teatral, resultando em palavras e expressões que faziam parte do cotidiano brasileiro daquela época e conseguindo levar à cena personagens verossímeis, por meio de um processo de criação inovador que, apesar de ser ancorado na identificação entre ator e personagem, trouxe o uso da mescalina e a proposta do ator vivenciar as situações ficcionais. O segundo espetáculo analisado propôs um jogo entre ficção e realidade, valendo-se, para tanto, da imagem pública que os atores têm. Entretanto, essa prerrogativa de identificação entre ator e personagem foi estabelecida somente enquanto signo de leitura para o público brasileiro. No processo de criação dos personagens, nenhum dos atores levou, necessariamente, essa identificação como um ponto de partida para sua criação, como aconteceu na encenação do Oficina em 72, por exemplo. Thomas não era diretora de atores, então deixou-os propositalmente livres para experimentarem suas técnicas: cada um daqueles personagens poderia ser uma expressão artística diferente da poética de cada um daqueles atores. Com um cenário nada realista, pouquíssimos adereços e objetos cênicos, figurinos trabalhados em tons neutros e os recursos de iluminação e sonoplastia reduzidos também a uma certa neutralidade, toda ênfase foi colocada na interpretação dos atores. Cada ator trouxe consigo, além da sua própria história enquanto signo de leitura para o espectador, o seu jeito de atuar, de modo que os seis intérpretes foram colocados para dialogar em diferentes níveis: no nível ficcional e no nível do próprio embate pela diferença da linguagem de interpretação de cada um. Em decorrência dessa falta de unidade na atuação, uma parte da crítica da época questionou o estabelecimento da verossimilhança no espetáculo. Ainda assim, essa encenação trouxe uma proposta de adaptação de seu texto dramático, estabelecendo pontos de contato interessantes com a dramaturgia do autor. Em sua versão, alguns aspectos que são muito marcantes na poética de Tchekhov – como a presença de solilóquios e o fato dos personagens não dialogarem de fato entre si muitas vezes – tornam-se ainda mais evidentes. Além disso, o espetáculo, ao mesmo tempo em que lança mão de um jogo de identificação entre atores e personagens, aproximando o universo tchekhoviano desse público por consequência, deixa 151

grandes atores livres em suas expressões. Dessa maneira, a cena é também uma vitrine viva de um embate de distintas abordagens do trabalho do ator brasileiro. O terceiro espetáculo analisado, também baseado em A Gaivota, não se propõe a ser uma representação da obra dramatúrgica de Tchekhov, já que a própria ideia de representação é posta em xeque a todo momento: a peça vai acontecendo como se fosse um rascunho sendo refeito, aos olhos do espectador. Entretanto, a análise do registro audiovisual da peça mostrou que houve um comprometimento em contar uma história, resultando em um enredo claro, capaz de envolver o espectador brasileiro nas situações dramáticas. Em seu "novo texto", a maior parte das situações dramáticas foi mantida, assim como a ordem dos acontecimentos e a maioria dos personagens. As situações são retratadas de modo mais sintético, por um lado, e, por outro, são exploradas do ponto de vista de sua criação – revelando subtextos, discutindo signos colocados em cena –, escancarando para o espectador os meandros da criação artística. O grupo também altera palavras e expressões, deixando-o num formato mais arrojado. Alguns termos e frases são propositalmente identificáveis como próprios deles e não do universo tchekhoviano. Com uma intenção diferente da de Zé Celso, que em sua adaptação quis manter uma certa fidelidade ao texto tchekhoviano, o grupo, em sua versão, não teve essa preocupação; pelo contrário, sua intenção foi de se apropriar daquele texto e fazer dele outra coisa. O texto é dito e interpretado de maneira orgânica pelos atores, fazendo com que o espectador brasileiro flua facilmente em muitos momentos da peça. Um coletivo de artistas se uniu para experimentar novas abordagens para o trabalho do ator e discutir o fazer teatral, e para isso explorou uma dramaturgia cuja temática dos diferentes tipos de teatro e os embates entre as diferentes gerações de artistas aparece bastante. Dessa maneira, o grupo, em seu espetáculo, conseguiu contar a história de Tchekhov, mas, sobretudo, atingiu seu objetivo de desdobrá-la como mote para criação de um grande jogo, em que a metateatralidade foi explorada em diferentes níveis: como uma das temáticas da história contada, no jogo entre os atores e como linguagem de encenação. A proposta apresenta uma possibilidade que dá muita autonomia e autoridade ao ator em relação à composição da cena e na lida com o texto dramático. Ademais, mostra ao público como esses artistas brasileiros pensam o teatro e, por meio da materialidade de seus corpos, escrevem em cena um novo texto espetacular. Ainda que esse trabalho tenha exposto três exemplos que encontraram, ao longo da história recente do teatro brasileiro, caminhos distintos para trabalhar o texto de Tchekhov, passando, questionando e quebrando com um processo de identificação entre ator e 152

personagem, conforme o modelo stanislavskiano proposto em suas famosas encenações, encenar e interpretar o texto dramático de Tchekhov é bastante desafiador para o ator brasileiro atual. Primeiramente por conta do problema da tradução de sua obra. Mesmo com cada vez mais opções em português, o registro de sua produção dramatúrgica tem uma característica particular de ser uma poética muito complexa e, ao mesmo tempo, precisa. Como traduzir com essa precisão? Conforme pontuamos no primeiro capítulo, há questões das oralidades nas falas dos personagens e dos significados dos nomes, por exemplo, que são perdidas nesse processo de tradução textual. Diante desse impasse, os grupos tendem a trabalhar o texto revisando a expressividade e experimentando a troca de uma palavra ou outra, que seja mais orgânica à cena pretendida por cada grupo. Esse trabalho com o texto, seja de revisão de tradução, seja de adaptação, é uma característica comum às três montagens, aspecto que se mostrou importante nos três casos para a efetividade cênica de seu texto aqui no Brasil. A maestria de Tchekhov está em falar de questões muito profundas do ser humano, mas respaldado por um concreto cotidiano. Essa é uma chave de sua dramaturgia que muitas vezes é subestimada. Como traduzir esse cotidiano e, ao mesmo tempo, tocar em tantas questões profundas? Nas experiências que tive enquanto atriz durante esse período, pude compreender que, além das dificuldades com os traços linguísticos do texto, há um grande desafio na interpretação desses personagens tão humanos, mas ao mesmo tempo “distantes no tempo e no espaço” de nós, atores brasileiros: é preciso encontrar uma analogia que seja capaz de dar sentido para a ação realizada e ao texto dito em cena. Na atuação da peça O Drama e outros contos de Anton Tchekhov, por exemplo, no conto A Corista, em que interpreto a corista Pacha, que é “roubada” em sua casa pela esposa de seu amante, acredito que minha atuação começou a ficar mais verossímil quando, finalmente, depois de estreada a peça e feitas algumas apresentações, consegui entender na minha pele a situação daquele personagem. E não porque eu já tenha passado por situação igual, mas porque eu entendi que aquela mulher, naquela situação de ser praticamente roubada pela esposa de seu amante, sente-se ultrajada em sua dignidade e muito impotente: entrega tudo o que tem à “esposa legítima” para que ela pague as dívidas que o marido havia feito, ficando sem nenhuma de suas joias, que eram toda sua segurança, conseguidas por si mesma, de outros homens, não daquele “imprestável”. Ao usar a sensibilidade para compreender aquela situação, pude fazer analogia com uma situação real em minha vida. Os personagens de Tchekhov são muito reais, e a dificuldade em encarnar essa realidade passa necessariamente por um processo interior de investigar a fundo também nossas próprias 153

misérias, pequenezas e precariedades. Enquanto atores, para se encarar um Tchekhov buscando alcançar toda sua potência teatral, precisamos estar dispostos a um mergulho radical. Há quem diga que Tchekhov traz um retrato muito pessimista do ser humano, exatamente por conta dessa radicalidade com que pinta nossas misérias mais profundas. Para mim, o autor traz essa tristeza, mas há também muita ironia e uma ponta de esperança, que é como uma luz no fim do túnel, capaz de mudar nossa perspectiva do caminhar. Como atriz, Nina é para mim o maior exemplo desse misto de esperança e radicalidade. Ao contrário de Trepliov, que se matou, optou por persistir na vida artística. Nina é capaz de persistir porque compreende o sentido do que está fazendo. Entendeu que este sentido não estava na fama, nem na glória, em nada do que sonhara, antes de experimentar de fato a carreira artística, mas, sim, na capacidade de resistir e ter fé. Essa convicção em sua vocação, apesar dos inúmeros percalços encontrados, a fez continuar viva na arte. Após esse breve vislumbre da relação que se construiu do enfrentamento com a dramaturgia tchekhoviana no teatro brasileiro recente, noto uma desfragmentação crescente no uso do texto dramático enquanto base para dramaturgia da cena. Essa desfragmentação é observada ainda no trabalho com As Três Irmãs, em que Zé Celso se propôs a fazer uma representação do texto dramatúrgico. Outra característica comum é a realização de um trabalho de adaptação: seja ele uma revisão da tradução, uma proposta de cortes e sínteses, até passando por acrescentar ao texto do ator, textos dos atores em cena. O meu trabalho prático também mostrou a necessidade de uma adaptação. Essas duas características apontam para um movimento que, ainda que cenicamente resultem em espetáculos com notável qualidade artística, demonstra uma mudança de perspectiva na relação com o texto dramático. Ora, essa é uma característica comum do teatro que se faz atualmente. Mas eu me atrevo a perguntar o porquê disso. Esse tipo de relação não estaria mascarando uma dificuldade real em ler, em enfrentar e encontrar uma transposição cênica para esse texto dramático? Em minha formação de atriz, feita na Universidade, dentro Unicamp, que é uma das maiores referências nacionais na formação de atores, realizei pouquíssimos trabalhos cênicos com base em literatura dramática. Dos cinco espetáculos que atuei, somente um deles foi baseado em uma dramaturgia de autor. Após a faculdade, formamos um grupo - Os Geraldos, o qual em 2018 completa 10 anos de existência, e somente nesse ano iremos nos debruçar em um trabalho a partir de um texto dramático. 154

Enquanto sensação interna, como atriz, ainda me sinto distante de ter realizado um enfrentamento marcante com esse "insidioso autor". Aliás, quando li tal expressão em uma entrevista realizada com Fernanda Montenegro, essa qualidade ficou ecoando na minha cabeça: quantas ciladas não temos ao ler um simples conto tchekhoviano? E que desastre pode ser uma cena criada a partir de seu texto que não o tenha lido com o devido cuidado, buscando compreender seus meandros, profundidades, desconfiando de cada fala colocada na boca de seus personagens: será que Pacha realmente se compadece daquela mulher e lhe entrega tudo o que tem? Será que ela nunca ganhou nada de valor de seu amante e ele lhe trazia realmente somente docinhos? As dificuldades no percurso até agora foram muito grandes, por inúmeras vezes me senti derrotada como artista em cena durante as apresentações do Drama: "essa cena não acontece de fato", "o público não se envolve como nas outras peças", "o que vocês estão fazendo não parece ter sentido a vocês", "não reconheço Os Geraldos nesse trabalho". Ou mesmo em termos da produção - que é a locomotiva para que a arte possa resistir de alguma maneira - o diretor que retorna à França e o não diálogo que estabelecemos com ele, as atrizes que abandonaram o trabalho após poucos meses da estreia. Mas também, muitas vezes me senti tomada por chuvas de esperança: pessoas que assistiram a peça e se identificaram com os personagens, gostaram muito das histórias contadas e principalmente o fato de, mesmo com todas as dificuldades, conseguirmos seguir adiante, tocar o barco e aprofundar, pouco a pouco, o trabalho das cenas. Empresto de Nina a perseverança em seguir buscando caminhos para se enfrentar a obra desse maravilhoso autor; e dela e de Tchekhov, o seu amor ao teatro, para seguir adiante, mesmo se, assim como Nina, o rumo forem os teatros do interior e não os grandes palcos de Moscou.

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Oficina encerra o ano com peça de Tchekov O Estado de São Paulo, 26 dez. 1972.

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Anexos

Anexo 1 - Entrevistas

1. Transcrição de entrevista com Celso Frateschi Realizada em São Paulo/SP no dia 26 de Fevereiro de 2015.

Carolina Delduque - Quero conversar com você sobre o espetáculo "Da Gaivota", dirigido por Daniela Thomas, da qual você é ator. Eu gostaria de conversar sobre esta experiência com você. A estreia aconteceu em 1998. Quanto tempo levou o processo de criação, aproximadamente?

Celso Frateschi - Entre dois e três meses. Com o elenco já mais formado, foram uns dois meses. A gente fez uma pré-estreia em Santo André...uns dois meses digamos. Foi o tempo normal de uma produção comercial. Apesar de eu acreditar que a Daniela, estava trabalhando nisso há mais tempo principalmente, ela e a Fernandinha, que puxava um pouco o projeto. Mas eu acho que o ensaio mesmo, a gente ensaiou aqui no Goethe, no Pinheiros, foram uns dois meses mesmo.

Delduque - Ela fez uma adaptação do texto.

Frateschi - Forte, digamos que ela fez uma decantação, ela mesma dizia que transformou o texto em seis monólogos.

Delduque - Era isso que eu queria entender um pouco, encontrei algumas reportagens, que falavam bastante desta adaptação. Ela cortou os personagens, eu me lembro que ficaram os mais essenciais. Então, era realmente como se fossem seis monólogos mesmo?

Frateschi - Não. Havia diálogo, mas ela foi reduzindo, reduzindo, até o de personagens que seriam teoricamente importantes da gaivota. Mas o que interessava para ela, era este diálogo do próprio fazer teatral, das visões de teatro. Tanto que ela tinha atores, que há uma tendência de alguns diretores mais contemporâneos de tentar confundir um pouquinho a persona e o personagem, então de alguma forma os atores tinham uma história que rebatia algum tipo de paralelo com o personagem. A Fernanda Montenegro estava fazendo Arkádina, o Matheus Nachtergaele fazia o Trepliov, eu fazia o Trigórin, que era uma coisa mais assentada. O Abujamra fazia o Chamráiev e o Nelson Dantas, o Sórin, a Fernanda Torres fazia a Nina. Ela brincava um pouquinho com uma visão que ela tinha dos atores. E pelo menos com a visão pública que ela conseguiu ter destes atores e usava isso um pouco para uma referência, ter uma visão a mais do personagem.

Delduque - Então ela escolheu os atores através destes perfis?

Frateschi - Os atores um pouco, a partir destes personagens, a adaptação era dela, não era um conjunto, nem grupo, mas um elenco que foi montado especificamente para esta peça.

Delduque -E na construção dos personagens, vocês levavam isso em consideração? Essas semelhanças?

Frateschi - Não necessariamente, até mesmo porque com a minha formação é muito difícil fazer desta forma, para mim não existem duas pessoas iguais. Então a construção das minhas 163

personagens, sempre procuro ver o que eles são diferentes de mim, não o que eles são parecidos. É um processo avesso ao que Stanislavski propõe. Mas muito próximo ao que eu acho que é o que o Tchekhov propõe. Apesar deles terem trabalhado juntos. Mas evidentemente, o fato de ter sido um ator muito vinculado a todo um movimento de esquerda no Brasil, o trabalho que eu tive na periferia, das montagens que eu tinha feito até então. Há uns anos atrás, tinha feito uma montagem importante do Heiner Muller, depois o Horácio que eu faço desde então. Então tem uma figura do Trigórin, que poderia estabelecer algum tipo de paralelo com o Trigórin. E aí isso ela aproveitou como simbologia da peça, com símbolo.

Delduque - Até porque vocês todos eram figuras conhecidas.

Frateschi - É, eram atores que de alguma forma. Já tinha uma inserção dentro do teatro paulistano, principalmente brasileiro. Então tinha um pouco isso. Também haviam três, artistas que estavam no trabalho e tinham trabalho anteriormente com Gerald Thomas. A Daniela Thomas, a Fernanda Torres e a Fernanda Montenegro. As três tinham trabalhado muito com...

Delduque - Eu não sabia. Foi o primeiro trabalho da Daniela como diretora?

Frateschi - De teatro, eu acho que ela não fez mais muita coisa não, como diretora. Ela falava que não era diretora, ela tentava pegar este lado meio performático que o Gerald Thomas tem e colocar dentro do espetáculo também. Em relação a interpretação, ela não buscava nada estilo Stanislavski, pelo contrário. Ela trabalhava inclusive muito pouco, ela tentava fazer com que a gente trouxesse a nossa própria carga. Pois era isso o que interessava a ela.

Delduque - É, eu li algumas reportagens que falavam um pouco destas diferenças de interpretação, os tons eram diferentes em cada personagem...

Frateschi - E ela tentava reforçar estas diferenças. O que dava um resultado, o que é difícil disso funcionar em cena, por que alguns diálogos são diálogos extremamente realistas, com uma carga psicológica bastante acentuada. Então era muito difícil você contracenar, buscando um diálogo, uma lógica. Uma vez que cada um dos atores estava numa linguagem diferente. Acabou funcionando, por que todos ele eram belíssimos atores e isso funcionada bem com a Fernanda, a Fernandinha, com o Matheus. Eram cenas, os diálogos meus mais fortes com as duas Fernandas, eram muito fortes, era muito interessante. Mas com um resultado especifico. Não sei se a busca da Daniela era uma discussão proposta pelo Tchekhov, ou uma discussão do teatro contemporâneo. Ou seja, o que ela estava buscando? Então ela não estava interessada em recuperar de alguma forma a poética que o Tchekhov propunha.

Delduque - Ela queria fazer uma leitura daquilo.

Frateschi- Erauma coisa para discutir o teatro, as tendências do próprio teatro, que é o que a peça faz na verdade.

Delduque - É, a companhia dos atores faz isso de uma maneira diferente.

Frateschi - A montagem deles também, é de uma forma um pouco mais escancarada as questões que o Tchekhov coloca. Rompia um pouco mais ainda do que a Daniela rompia.

164

Delduque - E vocês chegaram a ler o texto do Tchekhov ou vocês já foram direto para adaptação feita pela Daniela Thomas?

Frateschi - Coletivamente a gente não leu. Mas é claro que todos nós conhecíamos e admirávamos, porque era um texto emblemático para o teatro. A adaptação dela pareceu bastante boa por colocar, escancarar mais essa discussão estética, deixá-la em evidência. Agora o Tchekhov é um autor muito especial, eu só não fiz o Jardim das Cerejeiras.

Delduque - É, eu vi que você já fez vários. Fez o Tio Vânia também.

Frateschi - Eu fiz várias adaptações diferentes do Vânia e agora por exemplo o curso que a gente está iniciando aqui no Ágora é sobre Tchekhov. A base são os contos do Tchekhov. Aqui a gente trabalha muito em cima da perspectiva da narrativa, mas basicamente o que a gente vai tentar traduzir para o palco é a poética que o Tchekhov explicita na sua produção epistolar. Umas cartas que ele manda para o Suvórin e para outros, tentando explicitar o que ele entende de arte, o que ele entende de literatura, a gente vai tentar traduzir estas questões para o teatro, ou para o ator basicamente. Eu acho que ele é muito especial, por que ele consegue colocar questões estéticas de uma maneira explicita, como no caso da Gaivota. Mas na verdade, o que está colocando, são questões humanas, é o comportamento humano que ele está colocando em questão, que ele está de alguma forma explicitando para que a gente possa se espelhar e refletir sobre isso. Então não é uma simples discussão estética. É uma discussão que vai além. Política, social, humana do ponto de vista e isso que eu acho fascinante ler, eu acho um autor quase insuperável nessa dimensão.

Delduque - É eu acho isso, mas eu acho também que parece tão difícil montar ele.

Frateschi - É difícil mesmo, não acho que é um autor fácil de montar.

Delduque - Trazer estas questões para o palco é complicado.

Frateschi - Ao contrário da Daniela, nas outras montagens que eu participei, a do Enrique Diaz (As Três Irmãs) um pouco, eu acho que ele procurava a discussão humana num primeiro ponto também. Mas a dificuldade de entender o Tchekhov é que ele é muito preciso no registro de sua obra. Tem pouquíssimas indicações para o ator, mas aquelas indicações às vezes são tão desconcertantes, quanto os monólogos mais profundos. De repente, Astrof se despede do Vânia e da Sônia e sai assobiando, depois daquele drama...Então, como ator você pensa, que para ele sair assobiando, ele tem que estar sendo construído de uma maneira completamente diferente desde o início. Aí você refaz tudo. Muitas vezes as pessoas não colocam ele assobiando porque tentam encaixar ele numa visão, num caráter que não é o que o Tchekhov propunha. O Tchekhov propunha uma coisa muito mais ampla, muito mais desconcertante. O Vânia tem que estar vestido de uma forma extremamente elegante, mas ele vive do campo, se você usa isso, você revela a personagem uma maneira muito mais completa, nesses detalhes.

Delduque - Tem o lado comicidade junto que eu acho difícil às vezes.

Frateschi - É muito difícil.Está muito presente na obra dele. E não é uma comicidade como nós brasileiros entendemos a comicidade, está numa outra dimensão. É muito legal, eu gosto dele, talvez um dos autores mais perturbadores, eu acho que eu trabalhei e trabalho. Eu quero 165

montar ainda o Jardim, que é uma obra prima fantástica, estas outras três pelo menos eu já conheço.

Delduque - Voltando à Gaivota, no processo de criação, o que foi mais difícil?

Frateschi - Num primeiro momento, foi o entendimento da proposta, que era uma proposta complexa da Daniela. E a construção deste diálogo, que não se dava no nível que Tchekhov propunha, mas sim no embate das ideias que a Daniela estava levando lá. Então, você coordenar isso, você equalizar estes diálogos simultâneos que existiam, não é uma cosia tão simples para o ator também. Ter a discussão, a proposta da discussão estética, e ao mesmo tempo está a proposta da discussão humano. Eu acho que isso foi o mais difícil, o mais fascinante também, não é?! Então eu acho que isso foi mais difícil, mas também o mais interessante de buscar.

Delduque - O que você acha de encenar Tchekhov aqui no Brasil?

Frateschi - Bom, eu acho extremamente útil para o homem contemporâneo. Eu acho que como qualquer autor que trabalhou em momentos de grandes transformações, eu acho que ele consegue registrar alguns componentes do comportamento humano que são muito úteis de serem revelados, de serem reestudados, recolocados na nossa contemporaneidade. Então eu acho o Tchekhov um autor raro neste sentido, e de uma modernidade incrível, pelo forma como ele constrói o texto, É de uma modernidade que você fala: Puxa, não existe isso! A precisão das palavras, a precisão dos diálogos, como que ele contém em cada palavra um universo submerso genial! Se você tem o mínimo de carinho e tempo para ouvir, para sentir, você vai para lugares realmente muito diferentes, desconhecidos. E também esta capacidade que ele tem de questionamento, então eu acho ele extremamente contemporâneo. Eu acho o Tchekhov tão contemporâneo quanto Shakespeare, pela qualidade artística do seu trabalho. Então acho que é uma pena a gente ter poucos 'Tchekhovs' em cartaz. Podia estar sempre em cartaz, por que eu o acho realmente muito útil para nós.

Delduque - Mas você acha que tem poucos em cartaz por causa desta dificuldade?

Frateschi - Eu acho difícil. Eu acho que hoje ele talvez não seja um foco de atenção tão grande entre os diretores jovens, acho que essa onda que a gente está da "pós-dramaticidade" ainda permanece. De negar o texto. Que é um pouco o que de certa forma a Daniela e o Gerald Thomas, de alguma forma colaboraram bastante, de tentar buscar o texto do espetáculo mais do que o texto dramatúrgico. Priorizar o texto do espetáculo sobre o texto dramatúrgico. Eu acho que ainda se está muito nesse viés. Eu acho que é uma característica do teatro contemporâneo. A mim, não é o que mais me fascina, eu acho que a gente tem muito a contribuir ainda se a gente enfrentá-lo de frente sem autoritarismo, e não falar assim: "olha isso não me interessa, eu não uso." Mas enfrentar como um colega de trabalho contemporâneo que tem uma opinião, a respeito do mundo e das pessoas, das relações, que você encarar diretamente e enfrenta diretamente, não suprime. Eu acho legal quando a gente consegue enfrentar as questões que o Tchekov coloca, não quando a gente adapta para os nosso interesses, entendeu? Mas é um autor fantástico, eu acho que devia ser. Por que ele não é tão montado? Talvez seja por isso, estamos numa fase autoritária, é uma fase infelizmente, uma fase em que você é muito confessional, em que o ator se coloca como personagem. Estas coisas todas, eu acho que diminui um pouco, esta possibilidade do que eu acho que é uma característica do teatro: de olhar o outro, olhar o que é diferente, olhar aquilo que não é gente 166

ou olhar a gente a partir daquilo que não é a gente. E o Tchekhov mostra esse universo humano, você pega a produção de contos dele é uma coisa genial.

Delduque - Eu queria falar um pouco agora da estreia da temporada, você disse que houve um ensaio aberto antes.

Frateschi - Houve uma micro temporada em Santo André, a gente ensaiou lá um tempo e depois nos apresentamos, como um ensaio aberto.

Delduque - E depois do ensaio aberto para estreia oficial, houve alguma mudança?

Frateschi - Não, não houve mudança não. Já estava pronto. Não teve um processo por exemplo como com o Gerald Tomas. No caso dele, é uma peça atrás da outra falando sobre as mesmas questões, de alguma forma. Não teve "working in progress". Talvez no próximo espetáculo da Daniela sobre o Tchekhov ela vá recuperar as coisas que a gente fez lá..

Delduque - Então nesta pré-estreia, já estava pronto?

Frateschi - Sim.

Delduque - E como foi a reação do público? O que vocês perceberam?

Frateschi - Foi muito positiva, a peça era um sucesso. Foi sucesso aqui, foi sucesso no Rio. Onde ía era um sucesso. Por mais discordâncias críticas aqui e ali que poderia saber, até do próprio elenco, que era um elenco muito ativo, não era um elenco de pessoas passivas. De qualquer maneira a discussão que estava sendo proposta, era uma discussão que estava interessando. Até saiu de cartaz de uma maneira que nos deixou um pouco triste, por que estava fazendo sucesso.

Delduque - Foi uma temporada relativamente curta.

Frateschi - Eu acho que um pouco pelo nosso sistema de financiamento público, que prioriza muito mais a divulgação da produção do que a temporada, você ganha para produzir o espetáculo, não para mantê-lo.

Delduque - Depois você tem que produzir um espetáculo novo.

Frateschi - Você ganha muito mais dinheiro produzindo um espetáculo do que mantendo o espetáculo em cartaz. Esta é perversidade das nossas leis. Mas isso é outro assunto.

Delduque - E ainda que vocês são atores famosos.

Frateschi - É realmente difícil.

Delduque - E você acha que a peça comunicou o público? Pelo que você está falando, eu acho que sim.

Frateschi - Sim, foi muito bom.

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Delduque - As pretensões da concepção cênica, do plano de encenação, se realizaram de fato?

Frateschi - Plenamente, a Daniela é uma grande artista. Eu admiro muito todo o trabalho de cenografia e esse trabalho também que ela se lançou como diretora, achei extremamente interessante e comunicável, sem dúvida nenhuma comunicável.

Delduque -E você como artista ficou satisfeito?

Frateschi - Muito, muito.

Delduque - Anteriormente a esse trabalho você já tinha trabalhado com Tchekhov. Qual foi seu primeiro contato com esse autor?

Frateschi - O meu primeiro contato foi há muito tempo atrás. Acho que foi na década de oitenta com uma versão que eu fiz na EAD (Escola de Arte Dramática-USP), como professor, uma primeira montagem do "Tio Vânia".

Delduque - Você dirigiu?

Frateschi - Sim. Depois fiz mais três versões diferentes.

Delduque - E todas você dirigiu?

Frateschi - Dirigi e atuei, o Vânia. Eu fazia em algumas delas. Uma só dirigi, outras eu dirigi e fiz o Cerebriakov, que é um papel que eu acho maravilhoso, do velho ranzinza acadêmico. Depois fiz "As Três Irmãs", com Henrique Dias, também maravilhoso, muito prazeroso e também um elenco fantástico. Com a Júlia, com a Cacau, com o Fernando Eiras, o Antônio Pedro, o Luciano Quiroli, um elenco da pesada, muito bom. E Da Gaivota, são estas três que eu fiz.

Delduque - E quando você dirige, o que você indica para os atores?

Frateschi - Muitas coisas. (Risos)Fundamentalmente a gente aqui no Ágora, trabalhamos muito a poética do ator, por mais anacrônico que pareça, porque hoje o ator é de novo uma peça do espetáculo, mas a gente insiste em trabalhar qual a dimensão, qual o universo poético que o ator trabalha. Qual o limite que ele tem, qual o espaço em que ele se coloca pessoalmente, não da sua vida, mas quando ele consegue colocar a sua opinião a respeito da peça, a respeito da personagem. Então esse limite que se dá na sutileza do seu corpo, no limite da expressão do seu corpo. Então todo trabalho que a gente tem é que o ator desenvolva a sua visão poética sobre o que está sendo feito. Eu acho muito legal, eu gosto muito. Agora, é um trabalho bastante complexo, o que a gente tem desenvolvido aqui. Basicamente esta postura narrativa, ou seja, eu estou querendo dizer o que com isso? Narrativa no sentido do Walter Benjamin, do narrador.

Delduque - E do jeito que foi a adaptação Da Gaivota, existiu uma narrativa ou não?

Frateschi - Existiu, a história toda era contada.

Delduque - Ela manteve a narrativa da história. Ela só condensou os diálogos mesmo. 168

Frateschi - Não chegava nem próximo do estilhaçamento do Gerald Thomas.

Delduque - Estou perguntando, por que eu não vi nada.

Frateschi - Não, não. Todo o texto, Por que você percebe que a história é toda contada com estes seis personagens. Ela fez um bom trabalho de adaptação.

Delduque - É bem falado pela crítica.

Frateschi - Era muito bom e mantém a narrativa da história e mantém o conflito, a discussão que ela quer manter.

Delduque - Das gerações, das diferenças das visões estéticas.

Frateschi - Das visões de teatro.

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Transcrição de entrevista com Celso Frateschi. Realizada em São Paulo/SP no dia 27 de Janeiro de 2016.

Carolina Delduque -No espetáculo “Da Gaivota”, Daniela Thomas usou a visão que o público tinha dos atores para criar um jogo entre ficção e realidade que brincava com uma semelhança do que a figura enquanto artistas que vocês representavam na realidade brasileira e os próprios personagens da dramaturgia que vocês estavam representando. Por exemplo, Fernanda Montenegro é citada em inúmeras reportagens como a “grande dama do teatro brasileiro” e, no espetáculo, ela interpreta também a atriz Arkádina, grande dama de seu teatro. Você poderia comentar um pouco mais sobre isso?

Celso Frateschi - Não sei se existe esse paralelo direto, Carol. Acho que tem mais um pouco de figuras em que a gente, de alguma forma, sempre se projetou. Não por vontade própria, mas pela relação que a gente estabeleceu com o trabalho da gente. Eu não tenho nenhum processo em que eu me identifique com o Trigórin. Do ponto de vista da personalidade, da subjetividade. E essa relação que se estabelece eu não vejo que seria direta. No caso de Fernanda, ela é uma grande atriz, uma grande dama, como a Arkádina era, mas fica por aí a semelhança. O resto do trabalho é outra coisa. Então tem um paralelo, mas não sei se é um espelho.

Delduque - As reportagens da época exploram bastante essa ligação, então eu queria entender um pouco melhor como funcionava isso mesmo, para vocês, atores...

Frateschi - Isso é uma preocupação que, sinceramente, talvez Daniela tenha tido, mas nenhum de nós percebia que estava caminhando por aí. Tanto que essa identificação não passa pela construção do personagem. O personagem não tem nenhuma identificação psicológica, não passa por aí.

Delduque - Entendo. Eu lembro que, na nossa última entrevista, você comentou um pouco sobre essa diferença, quando disse sobre o processo de criação de vocês, que era “um processo avesso ao que Stanislavski propõe, muito parecido com o que Tchekhov propõe, apesar deles terem trabalhado juntos.” Quando fala isso, está se referindo, possivelmente, a uma identificação com o personagem – que viria de Stanislavski –, um caminho que, nesse caso, vocês não adotaram.

Frateschi - Por que que tem a ver com Tchekhov do ponto de vista da narrativa? Porque Tchekhov apresenta o ser humano de uma maneira mais diversa, multifacetada. Nesse sentido, ele é extremamente contemporâneo. Talvez seja esquisito falar “contemporâneo”, talvez essa divisão, esse ponto de vista filosófico de como encarar o ser humano, tenha existido em todas as épocas. Lá traduzia-se dessa maneira. Pelas cartas que a gente vê com Tchekhov e com Stanislavski, você percebe que Tchekhov reclama de um chororô, de várias coisas que Stanislavski propunha em vários outros textos. Então, o que leva a gente, o que me levou a tentar ver a personagem com mais objetividade era a questão: o que era esse escritor que vai para essa propriedade rural e só quer saber de pescar? Não está interessado diretamente naquilo. Como que ele se interessa por escrever e, ao mesmo tempo, como é que ele destrói aquela gaivota, que é a Nina. Tudo isso são questões que não passam só pelo aspecto psicológico, que é o que normalmente as pessoas que vão trabalhar com Tchekhov ou 170

com Stanislavski pegam mais para valer. Então essa semelhança, esse paralelo com o Trigórin, eu nunca me preocupei em fazer, esse era quase que um dado de concepção de Daniela. Na construção da personagem, eu nunca tive essa preocupação. Minha preocupação era com as relações que o Trigórin tinha com aquele conjunto de personagens.

Delduque - Você acha que uma abordagem mais stanislavskiana traz esse lado psicológico?

Frateschi - Stanislavski propõe um processo de identificação, principalmente o que chegava até a gente aqui, entre ator e personagem. Buscar uma sensação de verdade, que aquele personagem está existindo, a partir da identificação. Eu nunca acreditei nisso como ator. Não acho que é por aí. Eu acho que, como qualquer artista, de qualquer outra arte, você vê o material que está trabalhando com muitos ângulos. E são opções que você constrói. O psicológico faz parte disso, evidentemente, mas não é pela identificação. O próprio Stanislavski, quando fala mais no fim, pelo menos o que a gente entende do super objetivo, a gente percebe que é outra coisa. O super objetivo coloca um pouco o porquê que você está fazendo aquilo. Não é o objetivo da personagem, mas é que função tem aquela montagem naquele determinado momento, o que está causando aquela determinada montagem naquele momento em que está sendo montada. Ou seja, aqui na época do Arena se traduzia numa pergunta: para que você está fazendo isso? Por que você está fazendo? Que são questões que superam o personagem e estão mais ligadas à peça como um todo. Com isso, uma peça que é clássica pode ter uma contemporaneidade. Então, era mais por aí que a gente ía. Mas eu nunca me preocupei com esse pressuposto que Daniela, de alguma forma, colocou em algumas entrevistas, como um dos motes que ela trabalhou. Eu acho que são vários motes. E esse mote ela utiliza como signo do espetáculo.

Delduque -Sim, e não como uma chave de interpretação para os atores.

Frateschi - Isso. Inclusive, ela fazia questão de que a gente tivesse essa diversidade.

Delduque - Ah, sim. Isso também eu gostaria de entender um pouco melhor. As reportagens falam também um pouco disso. Às vezes até criticando o fato dos atores estarem em linguagens diferentes, que teria gerado um certo estranhamento. Como era isso? Não havia uma referência comum de interpretação para todos?

Celso Frateschi: Não. É claro que você tinha a liderança de Fernanda Montenegro, que é uma grande atriz, uma grande colega e bastante participativa nos ensaios e tudo o mais. Fernanda achava, por exemplo, que a peça tinha uma característica melodramática que ela tocava na construção da personagem dela e que funcionava. Agora essa coisa chocava com a estrutura, com o cenário, com outras interpretações.

Delduque -Sim, e a Arkádina realmente é mais melodramática.

Frateschi - Ela tem razão. E ela às vezes reforçava essas tintas. Toda a inteligência e a perspicácia, a crítica da interpretação de Abujamra estava lá também. Que era muito diferente desse melodramático de Fernanda, que era muito diferente do jeito do Matheus interpretar era quase expressionista, ele era completamente intenso, mas num intenso que não era o do melodramático, era uma coisa meio que trágica, era um furacão fazendo a cena, era muito bonito também. E chocava com isso, mas ao mesmo tempo dialogava, não era um choque não pensado, me parece, por Daniela. A calma, a tranquilidade de Nelson Dantas, o fogo, 171

ansiedade de Fernandinha. Tudo tinha alguma coisa a ver, não no sentido de identificação, mas no sentido de diálogo, com os personagens que estavam acontecendo lá. Eu acho bastante interessante isso. Era uma coisa boa de fazer. Mas não tinha essa linha. Não foi um processo fácil. Na construção das personagens, não foi um processo que se tira de letra, era difícil buscar esse diálogo. Tanto Daniela, quanto Fernanda Torres estavam vindo de casamentos com o Gerald Thomas, que era uma coisa muito forte, era um alter ego que estava ali.

Delduque - Como foi esse percurso no processo de criação? Vocês decoravam o texto primeiro? Vocês trabalhavam com improvisações?

Frateschi - Foi um processo bastante profissional, nesse sentido. Estudava-se o texto, tinha um trabalho de mesa, e aí ia para o palco. Um trabalho como é geralmente um trabalho profissional. Dispõe-se, com o texto, a tentar dar o que o diretor está pedindo para você.

Delduque - Mas Daniela já vinha com alguma proposta de cena?

Frateschi - A sensação que eu tenho é que Daniela tem insights maravilhosos. A colocação no palco já é uma ideia, que é um pouco o que o teatro contemporâneo faz. Tem um conceito que ela traduz poeticamente de uma maneira bastante contundente no seu cenário. E aí a gente, evidentemente, dialoga com isso. Quando você não usa a cadeira tradicionalmente, como era na peça; a cena era feita dentro de um aquário...

Delduque - Como era esse cenário? Você poderia descrevê-lo para mim?

Frateschi - O cenário era em cima de uma instalação, feita por um cara que trabalhou em cima de fotografias aéreas de São Paulo. Ele fazia uma coisa extremamente interessante. Mas era simplesmente essa casa. Um mundo bastante decadente. No fundo, tinha esse aquário, que era uma janela, que virava um aquário. Então era um aquário que virava janela depois. Era bem grande. Fernanda Torres fazia o monólogo dela dentro do aquário, como se estivesse dentro d’água. E todas as cadeiras eram viradas ao contrário. Você chegou a ver?

Delduque - Eu vi muito pouco registro fotográfico. A impressão que eu tinha era a de que não havia quase nada no palco.

Frateschi - Era quase nada mesmo. Eram cadeiras acinzentadas.

Delduque -E vocês ensaiavam nesse cenário durante o processo de criação?

Frateschi - Não, isso foi uma desgraça, porque só apareceu no dia da estreia. Era bem difícil, porque ele era muito complicado. Lá no Rio, onde a gente estreou, ele não cabia, tinha o problema do palco não aguentar. Não foi uma coisa tão simples.

Delduque -Mas a concepção em si do cenário ela já tinha, certo?

Frateschi - Sim.

Delduque -Então vocês decoravam o texto e iam para cena? E Daniela ia orquestrando?

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Frateschi - Exatamente. Na verdade, o ensaio era bem participativo. Ela abria bastante. Deixava claro que não sabia trabalhar com atores - “não quero trabalhar com ator, nem sei se eu sou diretora, vamos ver o que vai sair daqui”, entende? “Confio em vocês”. E a ideia dela eram esses seis monólogos praticamente. Porque foram cortados muitos personagens, que são importantes e que normalmente não se cortaria até. Mas ela escolhe esses para colocar a discussão que ela pretendia me cena.

Delduque - Então teve uma construção de personagem, como personagem mesmo, a ideia que a gente tem de personagem. Isso não estava desmontado?

Celso Frateschi: Não. Não estava desmontado, não.

Delduque - O figurino veio depois; como foi?

Frateschi - Também como numa montagem tradicional. Então, algumas semanas antes, chega uma espécie de figurino, vai se completando.

Delduque -Durante o processo de criação, vocês usavam algo, alguma peça, que fosse como um elemento de composição da personagem? Ou não?

Frateschi - Variava, mas acho que não era, não. Não me lembro de ter sido. Era uma produção com estrutura. Então chegava a tempo de você incorporar os elementos de figurino. Não era na hora. Também não era como, por exemplo, com a mesma tranquilidade que eu tive com “A Tempestade”, que eu cheguei dois meses antes e já estava tudo pronto.

Delduque -Sobre o trabalho do ator, quais eram as referências importantes para vocês? Stanislavski foi uma referência importante?

Frateschi - Sim, claro, Stanislavski foi muito importante. Eu sou meio que autodidata. Eu não fiz um curso, escola ou universidade de teatro. Eu sempre trabalhei mais a partir da carreira eu fui construindo. Mas eu trabalhei muito no Arena, onde o curso era Brecht e Stanislavski. Tinha esse binômio que Cecília trabalhava, em 68, 69. Kusnet tinha influenciado o Arena, mas a grande influência de Stanislavski no Arena era de Boal. Apesar dele ser identificado muito com o trabalho brechtiano pelo Coringa e tudo mais, a base de interpretação dele era uma tradução do Actors Studios. Augusto Boal estudou nos EUA e, quando ele veio para cá, traduziu de uma forma brilhante todo o sistema de interpretação, que era um pouco o que o Arena desenvolveu aqui. Porque o Arena, ao buscar na década de 50 isso, bem antes de mim, mas ao buscar um jeito de interpretar brasileiro em contraponto com o jeito de interpretar do TBC, que era um modelo europeu, ele buscava pela identificação dos atores, a construção do personagem brasileiro a partir da observação da rua praticamente. Então, grandes atores lá, como Paulo José, como Milton, como Flávio Migliaccio, como Guarnieri, Vianinha, que formaram uma geração de atores, que é um pouco a base do bom teatro brasileiro, eu acredito, não tenho muita dúvida disso, vem de um trabalho stanislavskiano de construção, de identidade, de construção de psicologias e de um trabalho de observação muito do homem brasileiro. Então, não interessava mais a impostação europeia, mas interessava como que o brasileiro se comporta. Para isso, Boal foi fundamental, nessa tentativa de realismo do Arena. Eu não sei se vocês tiveram contato na Unicamp, mas ele tem todo um sistema de construção de uma dialética da psicologia dos personagens, que é extremamente interessante, como vontade, contra-vontade, etc...não sei se vocês chegaram a ver isso aí...e que criou a base 173

stanislavskiana. Mas era uma base stanislavskiana já com um pressuposto marxista forte, que entendia o fenômeno humano como um fenômeno dialético e contraditório.

Delduque -Eu não conheço muito o trabalho de Boal. Eu tive mais contato com o Método de Kusnet.

Frateschi - Ele foi muito importante. Um baita ator, muito importante. Kusnet deu aula tanto no Arena, quanto no Oficina. Você tinha, por exemplo, uma grande peça do teatro brasileiro, que inaugura essa fase mais, que é do seminário, “Eles não usam black-tie”. O Kusnet russo, o Guarniere italiano. Não tinha nenhum brasileiro no elenco. E era humor. Era muito uma busca muito interessante. Um baita sucesso.

Delduque - Sim, puxa, muito interessante essa época! Eles traziam as referências de fora, mas trabalhavam com a realidade daqui.

Frateschi - Sim, então a minha base, meu começo foi com o Arena. Eu tive uma grande felicidade de trabalhar com bons diretores. Eu trabalhei muito com Fernando Peixoto, que tinha uma base brechtiana muito forte, muito interessante e que marcou e me ajudou bastante. Depois, mais para cá, foi Antônio Pedro, Márcio Aurélio, eu trabalhei bastante também. E foi um pouco isso. E o repertório também, que, quando você vai trabalhar determinada coisa, você estuda para aquele projeto e vai ampliando seu repertório.

Delduque -Levando em consideração essa referência em sua própria formação no Sistema de Stanislavski e também o imbricamento desse Sistema com a obra de Tchekhov. A primeira vez que “A Gaivota” foi encenada na história, em São Petersburgo, foi um fracasso. Mas, depois que o Teatro de Arte de Moscou encenou, sob direção de Stanislavski, a peça foi um sucesso. Tchekhov, depois desse episódio, escreveu suas três grandes obras para o Teatro de Arte de Moscou encenar. Então, acho que havia todas aquelas rixas que você mencionou, que, nas cartas por eles trocadas, ficam bem evidentes, mas, ao mesmo tempo, existe um diálogo criativo muito frutífero. Eu queria saber sua opinião sobre esse diálogo entre eles.

Frateschi – Eu acho que tanto um quanto o outro tinham como material a Rússia contemporânea deles e o mundo contemporâneo deles. A gente tem todo o trabalho de Freud quase que contemporâneo a eles. Ou seja, é uma preocupação da inteligência em tentar abordar o homem, entender o homem dentro de uma situação social, histórica, muito diferente da que eles herdaram. Não era mais uma Rússia completamente czarista e eles tinham muito presente já a Europa capitalista, tanto que a primeira revolução socialista acontece onde não é, nem poderia ser considerado que o capitalismo tivesse consagrado na União Soviética, na Rússia. E a União Soviética surge em cima disso e até com todos os problemas que isso pode ter causado. A história é complicada. Mas acho que tanto Tchekhov quanto Stanislavski tinham a mesma preocupação, que era traduzir o homem contemporâneo deles. E isso não se dava por ideias comuns pura e simplesmente, mas por questões comuns. Com dois artistas da dimensão deles, não era um casamento hollywoodiano, eles discutiam, eles conversavam, discordavam. É gozado porque, se você pega a carta de fundação do Teatro de Arte de Moscou, tem tudo a ver, a história é fantástica. Ele e N. Dantchenko ficaram 24 horas em cima de uma mesa para definir uma coisa e outra e pensavam diferente. A preocupação de um e de outro era bastante diferente. Mas entraram em acordo e estavam com uma preocupação comum; pelo menos, com questões comuns. Eu acho que Stanislavski e Tchekhov também se colocaram questões comuns, formularam questões juntos. E procuraram desenvolver essas 174

questões na sua arte. Às vezes se completavam – a maior parte das vezes - , às vezes discutiam, mas nenhuma discussão é de rompimento, ou diziam “ah, o que você está fazendo não tem nada a ver”; eram detalhes que Stanislavski desenvolvia nas peças e que Tchekhov não gostava, não era nada essencial. Eu acho que as principais questões eles desenvolviam juntos. E eu acho que é assim que se dá um processo: não é pela paz das respostas, mas pela formulação das questões comuns.

Delduque -E como você vê a utilização do Sistema de Stanislavski para o trabalho do ator com os textos de Tchekhov?

Frateschi - Stanislavski ajuda a todo ator. É um livro de cabeceira de todo ator. Ele consegue formular alguns conselhos tão importantes, que não dá para você não levar em consideração. Hoje em dia, você tem muito ator e muito ator mal formado. Você sabe como é insuportável um solilóquio de uma pessoa que não para de se mexer. “Que não leu o capítulo do foco de Stanislavski”. Ou seja, ele me parece uma base importante para qualquer ator brechtiano ou não-brechtiano, artaudiano e não-autardiano. Ele acaba criando algumas lições para o ator que você não pode desconsiderar, no meu modo de ver.

Delduque -Ainda que existam questões já ultrapassadas, como a questão da ênfase no psicológico que você comentou...

Frateschi – Completamente, mas você não precisa, para dizer um texto, olhar para o céu. Você vê, hoje em dia, várias peças famosas em que o cara está se mexendo e você não consegue entender uma palavra do que ele fala, por mais belo que seja o texto que ele diga. Então, Stanislavski é fundamental, não tem como você falar “não leia isso, porque é uma coisa inútil”. É claro que, se você pegar questões mais essenciais dele, como a memória emotiva e tudo o mais, hoje é bastante questionável. Principalmente se você tem uma perspectiva narrativa. A visão do mais melodramático, do homem mais como vítima do mundo, e tudo mais, que eu acho que Stanislavski, de alguma forma, arrasta e que Tchekhov para isso serve, entende? Vou justificar meu erro por um passado meu, então eu tento defender a personagem. Mas isso é muito pouco útil para você entender o homem contemporâneo no século XXI, me parece. A gente ainda está longe de tentar entender, de conseguir chegar perto dessa complexidade, que é o homem contemporâneo. Todos esses mestres aí eu acho que são extremamente úteis, o problema é que eles já não nos bastam. Essa é nossa angústia, esse é nosso problema. Stanislavski é fundamental, Brecht é fundamental, Artaud é fundamental, Grotowiski é fundamental, Peter Brook é fundamental, e todos eles são muito importantes. Mas não conseguimos ainda chegar, porque o homem ainda é dinâmico. Eles conseguiram nas épocas deles. E hoje como é que a gente faz? Tem pesquisas sérias acontecendo. Tem trabalhos sérios acontecendo, mas eu não acho que é uma coisa tão assim, você não vai sair da faculdade artista. Você vai ter um instrumental de gente muito legal que vai te ajudar a formular questões. Eu acho que a escola, uma formação universitária pode ser algo muito bom. O problema é que os formandos agora, em São Paulo acho que são quase 250 por ano, são cursos de seis meses, oito meses que dão DRT. Então é uma visão muito técnica e aí perde o sentido artístico que é o homem, que é a gente dialogar com a vida. Essas questões, essas atrações que o jovem ator tem, que o mercado oferece, hoje são muito sedutoras. Achar que resolve a vida tão simples, a fama, tem uma porção de coisas que acho que desvia muito o cara do sentido artístico mesmo.

Delduque - Eu li umas entrevistas que colocam Fernanda Montenegro como a grande diva do teatro brasileiro. Você, que trabalhou ao lado dela, como a vê? 175

Frateschi – Nas experiências que eu tive com ela tanto no teatro quanto na TV, que você cruza em cena e tal, ela sempre foi uma grande companheira, uma parceira. É claro que nem pensei em ter qualquer grau de comparação. Eu acho que ela é uma grande dama do teatro brasileiro e, isso posto, ela é maravilhosa. Eu acho que tem um grande problema de gente que às vezes almeja o lugar dela. Mas ela construiu esse lugar com muito trabalho e com muito talento, com muito esforço. Ela trabalha muito, ela não é uma pessoa que tira de letra, o ensaio com ela é intenso. Assim como eu tive também com outro grande ator, que foi , dividi cenas várias vezes também. É outro de quem todo mundo fala, mas é um companheiro... A última peça que a gente fez junto, que nem era uma boa peça, que foi “Para sempre”. No último dia de espetáculo, a gente estava estudando como fazer a peça, como resolver uma cena que ainda não estava resolvida. Quer dizer, são grandes caras. Eu acho que o teatro deve ter uma baita honra de tê-la como uma pessoa que faz parte da nossa tribo. É uma pessoa muito parceira no trabalho. Ela provocava no ensaio. Ela dizia que o processo de criação não é um processo delicado necessariamente. Às vezes "tem que ir pro pau", para resolver o problema. É carinhoso no sentido de que você tem que se entregar, mas às vezes você chega em momentos de atrito. Aí esse momento de atrito tem que ser encarado como parte do processo criativo e não como uma tentativa de você se sobrepor, ou de se humilhar ou vice e versa. Não é por aí. Ela provocava, eu me lembro dela provocando em vários ensaios. Mas de uma maneira extremamente positiva para o trabalho. E nunca se impondo a partir do fato dela ser a diva que é. Nunca usou isso. Mas ela tem opiniões fortes. Ela propõe coisas, sugere para o seu trabalho. Eu gostei muito de ter trabalhado com ela. Para mim, foi um prazer maravilhoso. Uma das coisas boas do espetáculo foi ter trabalhado com ela. Sempre presente e nunca ausente. Ela sugere coisas e sugere coisas consistentes. E aceita o jogo cênico, joga em cena. Trabalhar com esses grandes é uma maravilha. Talvez a maior escola. Ver o cara cotidianamente, observar, que é uma coisa hoje que você não vê tanto. A geração nova quer negar a geração anterior. A gente sempre teve isso, por um lado.. Mas o momento em que você ultrapassa essa fase é legal, porque você vê que tem gente muito boa em todas as gerações e canalhas em todas as gerações também.

Delduque -Uma última pergunta. Você poderia falar um pouco sobre os outros trabalhos que você fez com Tchekhov?

Frateschi – Kike, com quem eu montei “As Três Irmãs”, é uma coisa completamente diferente de Daniela. Ele é um diretor fantástico, também ator. Ele, diferentemente de Daniela, sabe mais, conhece um pouco mais o nosso jeito de trabalhar. Lá você trabalha improvisando, jogando. É um processo mais aberto, não era tão rígido quanto foi o de “A Gaivota”. Nós fomos estudar o que foi o “As Três Irmãs”, de Zé Celso. Eu tive a felicidade de ter assistido, acho que eu era um dos únicos a que tinha assistido. Mas Zé foi conversar, foi trocar ideias conosco. A construção do espetáculo, ainda que tenha tido problemas e tudo o mais, era um jogo legal, bastante interessante, que Kike propunha. E não interferia também na sua metodologia pessoal de criação. Também era uma montagem que não era feita por um grupo, então você chegava com propostas, ele propunha, e a gente respondia a isso no palco. Mas já tinha todo um trabalho corporal diferenciado, que buscava uma unidade, física, de se postar, de pisar no chão mesmo. Ele buscava todo um outro tipo de unidade que não foi o caminho que Daniela buscou. Eu fazia o Verchinin, uma coisa é que sempre eu fazia os personagens que Stanislavski tinha feito também. E era muito prazeroso. No “Tio Vânia”, eu continuo trabalhando, porque, para mim, é um personagem fantástico. Eu tive a felicidade de fazer a primeira vez lá na EAD com Pedro Veneziani, que fazia o Vânia, e a Beth Dorgan fazia a Sônia. Eram alunos lá. Depois eu fiz com Fabinho Rariforh fazendo o Vânia e foi um 176

trabalho fantástico. Depois, eu fiz com Angelo Brandini fazendo o Vânia também. Foram processos muito prazerosos, de busca, de construção das cenas. E com um olhar mais brechtiano sobre Tchekhov, do que stanislavskiano. As relações eram discutidas. E eu acho que é isso que é a contemporaneidade do Tchekhov, ele trabalha o caráter a partir das relações, não a partir do nascimento. E isso era muito bom. Mesmo esses contos mais curtos que a gente está trabalhando agora aqui são muito prazerosos. É uma obra sempre muito provocativa, muito instigante. Eu gosto muito.

Delduque -Como você trabalhou e trabalha com as diferenças dos contextos entre quando eles foram escritos – então eles tratam de uma realidade russa, do século passado, etc – e a nossa realidade de agora? Para você, parece-me que isso nunca foi um abismo. Como você lidava e lida com essas questões?

Frateschi – Eu sempre parto da pergunta: por que aquele conto me interessou? Por que determinado texto me interessa? Ou, num trabalho profissional, quer dizer, por que me chamaram para fazer isso, por que estão querendo fazer isso? A razão tem esse componente de estar respondendo a alguma angústia, ou a alguma questão que você está se colocando. Às vezes, a questão é fútil: eu quero um texto que faça sucesso e tenha bilheteria. Ou eu quero me inserir dentro de uma discussão de que eu estou fora. No sentido mais da sua vaidade do que do teu interesse artístico ou humano daquele determinado problema. Aí a coisa, se for por aí, é fútil. Mas, se por exemplo, nós estamos trabalhando um conto de três atores, chama-se “Carteira”. São três atores mambembes que estão passeando e acham uma carteira. Tinha muito dinheiro na carteira. Era um jovem e dois mais velhos. E eles começam a sonhar com esse dinheiro, ficam pensando no que ele irão fazer com esse dinheiro. E resolvem comemorar. Aí os dois mais velhos mandam o mais novo até a aldeia para comprar vodka, salame, mortadela, essas coisas para eles poderem comemorar. Aí o jovem vai e começa a pensar “bom, mas por que eu vou deixar esses dois caras com o dinheiro? são dois atores velhos, não têm mais nada para dar. Eu que sou jovem e tenho futuro, para o bem da Rússia, e tal...vou matar esses caras”. Ele resolve colocar veneno na vodka. Os outros dois fazem a mesma coisa: “por que nós vamos dar esse dinheiro para esse fedelho, ele não é ninguém, por que ele merece desse dinheiro? Nós que já fizemos tanto pelo teatro russo etc..é que merecemos isso”. E eles resolvem matar o garoto. Aí o garoto chega com o lanche, eles vão comemorar e matam o garoto. E, para comemorar a morte do garoto e que eles tinham ficado ricos, eles brindam com a vodka. E morrem os três.... Então, é divertidíssimo, bom para caramba, desconcertante. Mas assim, não é uma parábola da gente? Por que que nós nos interessamos? É claro que é bem escrito, e tal… mas a gente se mata por uma merdinha de uma verba, a gente está o tempo inteiro passando a perna no companheiro, etc… É uma discussão que é tão presente para nós, atores. Por que esse conto tem a ver? Ou eu me coloco a questão que ele está colocando do ponto de vista da metáfora que ele propõe ou ele não tem muito sentido. Por isso que eu acho que a gente aqui trabalha a coisa da narrativa, porque eu acho que a questão é a que Walter Benjamin coloca, o narrador ou ele tem alguma coisa a dizer para contar a história que ele está contando, que não é a própria história, necessariamente, além da própria história. E isso não significa você torcer a história. Mas significa você apontar na história os pontos que te interessam. Ou não tem muito sentido. Então a sensação que eu tenho é que a nossa função como ator ou como diretor é tentar buscar isso. O que há de relevante pro nosso contemporâneo? Não é um exercício estético.

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Transcrição de entrevista com Emílio de Mello. Realizada no Rio de Janeiro/RJ no dia 12 de fevereiro de 2016.

Carolina Delduque:Eu queria conversar sobre o espetáculo "Gaivota - tema para um conto curto", em que você atuou em 2006, pela Companhia dos Atores.

Emílio de Mello - “A Gaivota” não é a da Companhia dos Atores. “A Gaivota – tema para um conto curto” é uma produção nossa - minha, de Enrique Diaz e de Mariana Lima, mas que não tem nada a ver com a Companhia dos Atores. Eu mesmo não sou da Companhia. O “Hamlet” é uma obra da Companhia dos Atores. No ano de 2000, eu e Kike (Enrique Diaz) ganhamos uma bolsa chamada “Virtuose”. Eu fui para Moscou e para França, e ele foi para Nova York. É uma bolsa para se desenvolver um projeto sobre algo que se queira estudar. Eu fui desenvolver um projeto de metodologia do trabalho do ator, eu queria pesquisar a criação de personagens com pessoas diferentes que eu tinha escolhido na época, e ele foi fazer um trabalho com Anne Bogart de Suzuki e Viewpoints e umas coisas em que ele estava interessado. Nós voltamos dessa viagem e começamos a pensar em coisas. Aí Kike montou “Hamlet”, com base nessa experiência que ele teve. Uma adaptação, uma desconstrução do “Hamlet”. A peça foi um sucesso imenso. Logo que ele fez essa montagem, foi com uma parte da Companhia, não foi com a Companhia inteira. E tinha vários atores que não eram da Companhia. Malu não era, que entrou depois no lugar de Bel Teixeira. Eu não era da Companhia, Fernando Eiras também não, tinha muita gente que não era. Era, assim, metade- metade. Aí, depois disso, veio a nossa montagem de “A Gaivota” - um projeto meu, de Mariana e Kike. E veio colado ao “Hamlet”, que era da Companhia, mas, ao mesmo tempo, era um projeto que não incluía vários atores da Companhia. Eram só três atores da Companhia, na verdade. “A Gaivota” tinha só dois atores da Cia: Kike e Bel. O resto, ninguém era da Companhia. Na verdade, era um projeto nosso, era uma produção minha e dele, e a gente fez “A Gaivota”. Como veio muito na rebarba do “Hamlet”, ele tinha muito a mesma pegada, a mesma proposta de pesquisar e desconstruir a obra de Tchekhov, como a gente havia feito com Shakespeare, a coisa ficou muito ligada. Tanto é que teve uma Mostra do Kike em Portugal, que era “A Gaivota” e “Hamlet”. Tinha muito a ver com “Hamlet”, mas não é da Cia dos Atores, era um projeto pessoal nosso. Só que o processo de “A Gaivota” foi muito parecido com o de “Hamlet”. A gente trabalhou durante seis meses, num processo de desconstrução, estudando a obra dele, e cada um de nós aplicando uma metodologia que a gente tinha trazido da época das bolsas. Então, eu trouxe todo o trabalho com Vasiliev que eu tinha feito em Moscou, e Kike trouxe todo o trabalho de Anne Bogart com o método Suzuki. E a gente fez uma mistura disso. Nossos ensaios tiveram toda uma base de composições, que foram feitas aqui no Teatro Poeira. A gente ia trabalhar “A Gaivota”, aí o que a gente fez: a gente veio dar um curso aqui no Teatro Poeira de um mês, aberto, então trabalhamos com os atores que trabalhavam conosco e outros que estavam aqui, interessados no curso, em conhecer nosso trabalho. Assim fomos tentando coisas, durante um mês e meio, trabalhando três vezes por semana, aplicando metodologias de construção. Eu aplicava algumas; Kike, outras; Mariana, outras, e a gente ia tentando. E esse mesmo processo de trabalho se estendeu para os nossos ensaios, que tinham, então, uma parte de estudo de texto, uma parte de composição - a gente sempre faz isso, a gente faz composições a partir de cenas, a partir de Atos, a partir de personagens, que é um pouco o material para construção do espetáculo - e o trabalho técnico, com o Viewpoints, o Suzuki e o Vassiliev, que a gente fazia junto. Então tudo isso era muito misturado. Tudo isso criou um processo de trabalho, que foi diferente do “Hamlet”, porque tinha toda uma base de treinamento mais desenvolvida por nós, e, ao mesmo tempo, trazia a herança das composições pessoais, da visão pessoal de cada artista em 178

cima de cada personagem, de cada cena, de cada ato ou de cada história que queria contar. Então, esse espetáculo de “A Gaivota” não é um processo da Companhia dos Atores somente, entende? É realmente uma proposta de artistas para desenvolver uma obra, uma tentativa de desenvolver, de pesquisar uma obra.

Delduque - Como você descreveria cada uma dessas referências que fez parte do trabalho técnico?

Mello - O trabalho do Suziki é bem técnico e físico. Um trabalho de ritmo, um trabalho muito físico. São várias músicas, e para cada música tem um tipo de treinamento: um andar, uma caminhada, um circuito de bater os pés, é tudo uma coisa bem japonesa, um trabalho físico, bem forte, físico. Junto disso, vinha todo viewpoints, que são os sete pontos de vista, com os quais você trabalha a improvisação. Viewpoints ajudou a gente muito nas improvisações, no pensamento de improvisação, no conjunto, como é que você destaca um conjunto grande, onde tudo está se movimentando, que está ocupando um espaço, ocupando arquitetura, ritmo, tempo, se ocupando de vários “points”, pontos de vista, para gente poder desenvolver uma improvisação em conjunto.

Carol - Quais são os sete pontos?

Mello - O espaço, arquitetura, tempo, ritmo, resposta cinestésica. Tem os níveis: nível baixo, nível médio, nível alto. Tem o flow, que você vai juntando todos os pontos de vista e depois deixa rolar. Isso a gente sempre fazia mais para o final do treinamento. Esse foi um trabalho que nos ajudou muito nessa coisa do conjunto, de você estar em cena e não estar ali representando um corpo só, mas sim um corpo único. Junto disso, uma coisa super interessante, que ajudou muito a gente, foi o técnica Alexander, que a gente tinha o trabalhado com a Valéria Campos. O Alexander tem muito essa relação com o todo, com o espaço, você engloba a sala. Então, a gente aqui faz parte de uma conversa, que daí seria dentro desse camarim, desse teatro, que vai até a rua… essa relação com o todo ajudou muito a gente no trabalho do Viewpoints. Você começa sempre a pensar a coisa no conjunto. Então a gente trabalhava muito isso, sempre, exaustivamente. Complementar a isso, tivemos todo o trabalho do jogo lúdico de Vassiliev. E aí eu posso te falar um pouco melhor, porque era mais a minha parte. Foi tudo um estudo que eu fiz para trabalhar. Vassiliev é um pedagogo que dá aula no GITIS, formou uma turma, e foi discípulo de Maria Knebel, que trabalhou com Stanislavski. Então ele era de uma turma muito ligada a Stanislavski, só que é um grupo de encenadores russos que são de vanguarda. Então eles pegam todo o trabalho de Stanislavski e fazem uma releitura, que é sempre o que se faz. O próprio Lee Strasberg, que fez a tradução do método de Stanislavski para os americanos, é um método Lee Strasberg, não tem nada a ver com Stanislavski. Inclusive, isso é dito pelos russos. O que ele fez, o que ele desenvolveu nos Estados Unidos, não tem nada a ver com Stanislavski, absolutamente. Essa coisa de memória emotiva, a utilização desses recursos, dessas técnicas que foram propostas por Stanislavski, se desenvolveram e deram resultado para algumas pessoas. Mas foi um trabalho quase como uma releitura, assim como o que faz Vassiliev hoje, que é um trabalho de releitura em cima de Stanislavski. E como o trabalho tinha muito a ver com Tchekhov, toda base dele era Tchekhov e Dostoiévski – eu trabalhei muito com Dostoiévski, mais do que com Tchekhov até –, então casava muito bem para o estudo da obra, para o estudo do texto. O sistema do Vassiliev é, basicamente, um estudo do texto de pé. Então você estuda o texto, não com o foco em entender o que diz cada frase, mas, sim, uma leitura que busque quais são 179

os conflitos. Você faz como uma escaleta da cena, dos conflitos principais, que se encaminham para o outro, você decora um pouco aquilo e improvisa junto com o outro companheiro. E a gente usava isso o tempo inteiro e estudava o texto a partir daí. Tanto é que, nessa semana, eu estava conversando com Kike... Tem uma menina estudando na Sorbone o trabalho do Kike, e ele veio me perguntar sobre o nosso trabalho em “A Gaivota”. Ele me falou: “você se lembra se a gente parava muito para ler o texto? Eu não me lembro da gente parando para ler texto...”. Primeiro que o nosso espaço de ensaio não tinha mesa. Então a gente nunca lia na mesa. A gente fez na mesa a primeira leitura do texto. Depois, era o texto espalhado pelo chão...aí pegava um cena, duas cenas, e saía fazendo, entendeu? Não ficava parado para ler. Então a gente leu muito pouco o texto dessa maneira careta. A gente ía, estudava, se reunia, fazia grupos de dois ou três, fazia cenas e ficava juntando essas cenas. E as cenas começavam a acontecer. Porque aí você tem uma escaleta de conflitos e usa o texto de Tchekhov, mas as palavras são suas, não dele. Então, no resultado do espetáculo, não é o texto de Tchekhov, mas ao mesmo tempo é, pois os conflitos estão todos lá, e algumas coisas são tiradas do Tchekhov, de verdade. Lógico que tem umas coisas que a gente foi colocando, a gente não tem aquele respeito cego pela obra dele, a gente colocava muita coisa junto, misturava muita coisa que tinha muito a ver com a nossa visão daquela cena, de como a gente via aquilo. Por exemplo, a gente teve um encontro com Angela Materno, que é uma teórica da UFRJ que conversou com a gente, que fez um trabalho teórico em cima da obra do Tchekhov. Uma das coisas mais importantes que ela nos disse foi o seguinte: “A Gaivota” é um conflito de geração, um conflito entre o teatro da Arkádina e o teatro do Trépliov, o teatro da Nina e o teatro do Trigórin. E tínhamos uma tendência a nos achar Trépliov e Nina ao invés de Trigórins e Arkádinas. Então a gente achava que a gente estava fazendo um espetáculo tendencioso. Mas Angela veio para a gente e falou: “Mas vocês não são Trépliov, vocês são Arkádina, vocês são Trigórin. Porque vocês são um grupo de atores todos já consagrados, vivem de teatro, ganham a vida de teatro, estão com dinheiro para fazer este projeto, estão vivendo o que vocês fazem, então isso é o quê? Arkádina. É o teatro convencional, estabelecido contra o teatro novo, de vanguarda”. E a gente, que se achava de vanguarda, no fundo, era Arkádina. Ou seja, Angela Materna nos trouxe justamente o ponto de equilíbrio disso. A gente era os dois, a gente era tudo. Então, para trabalhar a obra dele, para trabalhar “A Gaivota”, a gente tinha que trabalhar tudo. A gente não podia ser Trépliov ou Arkádina, a gente tinha que ser todos. A gente tinha que ser o Trigórin, a gente tinha que ser a Nina, a gente tinha que mostrar isso sempre. E isso nos ajudou infinitamente a construir o espetáculo, que não ficou maniqueísta. A gente não quis defender nenhum tipo de teatro. A gente quis colocar os teatros e, no embate dos teatros, deixar para quem assiste achar assim legal o teatro da Arkádina, o teatro do Trépliov. A gente não queria fazer uma proposta escrachada, ruim, da peça do Trépliov, pois ela não é uma peça ruim. Pode ser uma peça boa, mas que as pessoas não entendiam. E o teatro da Arkádina não precisa ser ruim, ele pode ser bom, pode ter um teatrão bonito, né?! Tanto que tinha uma cena de “A Dama das Camélias” que a gente fazia, que tinha muito a ver com a tradição, mas a coisa da tradição bem feita. E ela fala daquilo com uma emoção muito grande, porque ela falava da vida dela. Então era lindo! Eu achava isso muito bonito, esse jogo de lados do teatro, a gente fala de um teatro, fala de outro, mas não fica julgando nenhum deles, fica só mostrando a nossa visão deles.

Delduque - Isso faz a peça ficar contemporânea...

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Mello - Faz a peça ficar viva! Ali era um discurso nosso, a gente usava Tchekhov como nosso companheiro para o discurso. A gente usava a história de Tchekhov para nós, para gente falar sobre aquilo, porque eu acho que ele, na época, estava querendo falar sobre isso também. Ele, de uma certa maneira, também estava nesse conflito: entre o Teatro de Arte de Moscou, Stanislavski, que era rico, que tinha grana, e o teatro dele, que era novo, que tinha as pessoas lá, olhando pelo buraquinho, ninguém respirava, ninguém falava nada, e ele pensava: “caralho, é um fracasso”... sabe essa insegurança de Trépliov junto com a estrutura de Arkádina? Isso é a peça. Então, para nós, foi essa a grande base do trabalho, o grande legado de Angela Materno para nós foi esse espelho, o “olha quem vocês são”. E isso determinou muito o nosso trabalho. Ajudou muito a gente a não ser maniqueísta, a ser libertário com a obra, a não criticar Arkádina, nem Trépliov, e sim mostrá-los, com as suas idiossincrasias, com as suas diferenças, com as suas fraquezas, com as suas virtudes. Então tinha esse trabalho que era muito legal, pois a gente fazia vários personagens. Podia experimentar uma Arkádina, experimentar uma Nina, experimentar várias Ninas. Tinha uma cena, por exemplo, que tinha várias Ninas. Então, era como se as Ninas se multiplicassem um pouco, quantas pessoas não se identificam com a Nina? E de maneiras diferentes. Então tudo isso era colocado em cena. Para mim, nosso trabalho era um grande estudo da obra de Tchekhov. Talvez por nosso mérito, virou um espetáculo, mas era um grande estudo. A gente queria estudar a obra dele e virou um espetáculo, que era assistível. Pessoas adoravam, pessoas detestavam, normal, como sempre acontece. Mas era um espetáculo de teatro e era um grande estudo. Então, nesse sentido, que eu acho também que foi muito legal a proposta de cada um de nós. Que era uma proposta de estudo. A gente tinha estudado, a gente tinha passado um tempo fora do Brasil, estudando uma metodologia de trabalho. E ali, a gente não queria somente aplicar a metodologia, mas, sim, estudar aquela metodologia, saber como ela funcionava para gente. O que foi feito ali não foi só um trabalho de viewpoints, ou um trabalho de jogo lúdico do Vassiliev, ou um trabalho só de Suzuki, era uma mistura disso. A gente se aproveitava dessas coisas todas e construía um espetáculo que tinha um pouco a nossa cara e um pouco a nossa vontade naquela momento. Eu não sei se hoje eu faria novamente aquele espetáculo, sabe? Hoje eu tenho uma cabeça diferente. Talvez eu fizesse uma outra coisa.

Delduque –Você poderia comentar um pouco sobre o curso que fez na Escola russa do ator?

Mello – Na verdade, Escola russa do ator é um curso que Vassiliev ministrava em Paris. Ele ficava lá, enfurnado durante dois meses no Théâtre du Solei, num lugar chamado Artar. É uma associação que Ariane fundou, que recebe um subsídio do governo francês para ter pesquisa sobre teatro, de vários tipos. Eu fiz um curso de Commedia dell’arte com o próprio Solei e fiz um curso de dois meses com Vassiliev. Desse curso de dois meses, formou-se um grupo de pessoas que estava querendo continuar o trabalho, e essas pessoas foram para Moscou e continuaram o trabalho em cima de Dostoiévski, de Puschikin, e de Molieré, com Vassiliev. E eu fui junto. Primeiro nós trabalhamos durante dois meses na França, depois dois meses na Suíça com esse grupo e depois a gente ficou um mês em Moscou, e então ficamos um mês apresentando o trabalho na Suíça. Eu fiquei um tempão trabalhando com ele. Para mim foi ótimo. Agora, o que chamava essa “Escola russa de ator” era o curso que ele deu lá na França, que, na verdade, tem tudo a ver com o jogo lúdico.

Delduque –Em que ano foi isso? 181

Mello – 2001.

Delduque –Eu queria saber um pouco mais das experiências que você teve em sua formação como ator com o Sistema de Stanislavski.

Mello – Além dessa experiência, eu tive toda a formação de Stanislavski durante os anos em que estudei na EAD, com Luiz Damasceno, que trabalhava com Stanislavski, Rachel Araújo, essas eram as “cadeiras stanislavskianas”. Eu tive um pouco disso, com o trabalho deles, porque eles eram atores e diretores, então eles passavam um pouco da experiência deles para nós, com uma base forte em Stanislavski. Só que o trabalho de Vassiliev era muito diferente desse. É uma releitura. É um trabalho através de conflito. Tinha uma coisa que chamava tese, antítese e modulação, que é o seguinte: você entra com uma proposta, você tem um conflito, eu e você temos um conflito, então a gente tem que desenvolver esse conflito. Eu tenho um ponto de vista, e você tem outro. Para se criar um conflito, tem uma tese e uma antítese. O conflito acontece. A modulação é o desenvolvimento do conflito que nos leva a um outro conflito, a uma outra tese, a uma outra antítese, e é isso que faz o caminho dramático de uma cena, de uma peça. Então ele faz esse mapeamento da peça inteira, em uma grande escaleta de improvisação. E isso acontece para mim até hoje.

Delduque – Então você continua usando essa metodologia?

Mello – Totalmente. Por exemplo, pega “Os Realistas”. Eu começo a ler a peça. Tem uma hora em que, se deixar, eu faço a cena inteira, mas não falo nenhuma palavra do texto, porque eu sei o caminho da peça. Eu acho isso muito rico, porque você tem uma ideia da cena, você tem uma ideia do conflito geral, da curva ali em cima. O outro, seu parceiro, também tem, ele sabe para onde você tem que ir, a gente sabe junto para onde nós temos que ir, onde nós temos que avançar e a gente começa a trabalhar isso. Há um acordo muito forte, para gente poder jogar o desacordo. Uma coisa que ele falava, que era muito clara porque a gente via isso na prática: quando os atores entravam em conflito em cena, e não os personagens, o jogo era fracassado. Você via duas pessoas em conflito. Fátima Toledo trabalha com isso, trabalha com o conflito dos atores, não dos personagens. Ela coloca um ator torturando o outro para que possa acontecer o jogo. Ela faz exatamente o contrário do trabalho de Stanislaviski. Ele criou um método de trabalho para livrar o ator da tirania da inspiração. Por que você tem que estar sempre inspirado para trabalhar? Não! E também da emoção. Então você não precisar estar emocionado, nem inspirado, você vai resolver aquilo. Ele cria uma técnica para que você possa fazer aquilo sempre, sem ser escravo da sua emoção e da sua inspiração. Você pode estar inspirado, você cria mecanismos para estar inspirado, mas, na hora do jogo, você está realizando ele de fato ali, naquele momento. Então, quanto mais em acordo você estiver com seu parceiro, mais forte será o conflito, mais bonito será isso. Quando você tem dois atores em cena se degladiando e eles estão em acordo, de fato, é lindo esse conflito. Já se forem dois atores em cena que estão se degladiando para criar a cena, o trabalho está fracasso. O trabalho do jogo está fracassado. É por isso que ele fala muito do jogo lúdico, da ludicidade, é tudo uma brincadeira. Se você não botar a brincadeira no meio, você tira o brilho do trabalho do ator, a grande riqueza do trabalho do ator, que é de fazer de conta, que é a coisa da criança, a criança tem isso: agora eu sou o Rei e você é a Rainha, e então a criança se torna a Rainha. E isso é o grande barato! Eu acredito nisso, eu vou nisso, é o lúdico, é uma grande brincadeira. A gente entra nesse palco toda noite para representar esses casais e nós não somos eles. Nós brincamos de ser eles. E as pessoas que estão na plateia fingem que acreditam na gente, ou não acreditam. Mas, enfim, 182

tem uma coisa ali que é estabelecida, que é lúdica, que não é real. E é bonito você brincar com isso. Você brincar até onde você pode brincar, até onde você pode duvidar: “ih, será que ele errou? Será que ele está falando sério? Será que ele esqueceu o texto?” Então essas coisas fazem parte do lúdico, e Vassiliev reforça muito e sempre trouxe. É isso: existe um acordo muito forte, para gente poder trabalhar o desacordo. É uma estrutura de trabalho, uma estrutura de estudo da obra, e você a usa para qualquer coisa. Tanto que os trabalhos que a gente fez depois tinham muito essa característica. As pessoas falavam: “mas vocês falam o texto de verdade?” E a gente respondia: “Sim, o texto está escrito ali.” Aí as pessoas respondiam: “Mas parece improvisação”. Mas por que que parece improvisação? Porque a imagem que a gente tem do trabalho, a nossa pré-disposição é de improvisação, é viva. Nós estamos falando um texto que existe ali. Agora a nossa imagem é de improvisação, é como se aquilo estivesse acontecendo, naquele momento. A improvisação é livre de qualquer coisa, você pode começar uma cena e não terminar, porque a improvisação te leva a vários lugares. O que a gente fazia no estudo do jogo lúdico não é exatamente improvisação. Ela tem uma estrutura que deve ser seguida. Então ele falava: “é como você soltar uma pipa. Se você não segurar a linha e puxar, a pipa cai. Para ela fazer um malabarismo, você precisa ter um ponto, segurando, que dá para onde você vai. Isso faz a pipa dançar no ar.” Então, para gente poder fazer a cena dançar, a gente tem esses pontos que nos ligam. É o tempo inteiro uma improvisação orientada.

Delduque – Então, num primeiro momento, é mais importante saber de cor esses pontos, do que decorar o texto propriamente.

Mello – Sim, porque depois, quando você decorar o texto, ele já vai estar no lugar. Isso ajuda muito no trabalho da composição. Tanto que ajudou muito a gente a construir esse texto, esse subtexto que é colocado dentro em “A Gaivota”, junto com o de Tchekhov, porque ele vem muito desse jogo lúdico, da coisa de como a gente vê a cena, de como a gente improvisa a cena, de como aquele ator que está jogando com você está vendo a cena, está vendo o conflito. E faz você também mudar a perspectiva em relação ao conflito, porque você começa a enxergá-lo de outra maneira. O conflito está entre os atores, não está em cada um. Ele tem que estar sempre entre, ele não pode estar em mim ou em você. Ele está entre. E a gente está ali trabalhando o conflito junto, construindo-o junto. Por isso que alguns estudos são fracassados, porque às vezes a gente não consegue isso. Muitas vezes, a gente não consegue, a maioria das vezes, mas é um “puta” material de trabalho. Ele é um ótimo material de fomento de estudo. Quanto mais você faz, mais você vai dominando aquilo, e aí mais você vai tirando fruto, tirando proveito daquele tipo de trabalho. Era muito legal. No trabalho lá com Vassiliev, por exemplo, a gente rendia muito. A gente chegava às seis da manhã e saía às seis da tarde. Todos os dias, de segunda a sexta. Era muito tempo, trabalhando, fazendo, vendo, ouvindo...porque ele falava de cada estudo que a gente fazia. E aí você vai assimilando. Eu pensava que eu nunca ia conseguir fazer um estudo bem feito, mas,no final de dois meses, lá estava eu fazendo, surfando dentro daquilo e vendo a cena acontecer, para minha surpresa e para surpresa de todo mundo que estava assistindo. E ela acontecia, porque alguma coisa acontecia ali, algum acerto. Às vezes era um pequeno pedacinho… e esse é o trabalho da gente… ficar lá tirando pedacinho por pedacinho para poder… ah, isso aqui é legal… isso vai dar uma mão, isso um pescoço… aí você vai tirando aquilo ali e, pouco a pouco, vendo a coisa acontecer. Deve ir tentando. Então isso no processo da gente era muito legal: vamos tentar? Vamos!

Delduque –Por que vocês escolheram "A Gaivota"?

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Mello - A gente queria fazer um trabalho juntos, e eu sempre quis fazer “A Gaivota”. Eu trouxe “A Gaivota” desde o começo, porque era um texto que eu queria fazer desde quando eu era aluno da EAD. Eu amava “A Gaivota”, sempre amei esse texto, sempre tive uma coisa afetiva com ele. Uma vez eu estava com um diretor de teatro de São Paulo, William Pereira, a gente veio ao Rio e foi à casa de Renata Sorrah convidá-la para fazer a Arkádina. Imagina, nós, alunos de escola de teatro, fomos convidar Renata para fazer a Arkádina num projeto da gente que não tinha dinheiro, não tinha porra nenhuma. E a gente tinha essa vontade, como um sonho de fazer esse trabalho. Nunca aconteceu. Não conseguimos nem encontrar com Renata. Mas, depois de alguns anos, eu consegui fazer a peça. Depois de quase, sei lá, 20 anos, eu vou realizar esse sonho. Então, veio muito disso, veio muito de uma coisa com Kike que ele achava que a peça tinha a ver com discutir o teatro, discutir a criação, que é uma coisa que interessava a ele, como no próprio “Hamlet”, que discute também isso, então estava na mesma vertente. E Mariana que também é apaixonada por Tchekhov, tanto que o nosso altar tem duas fotos do Tchekhov. Tem uma de Stanislavski também, que está de Trigórin.

Delduque – Eu acho que essa montagem traz uma discussão sobre o fazer teatral que era muito viva em sua época, para o tempos de hoje. E, ao fazer isso, atualiza a discussão, não só pelo fato da temática encontrada na dramaturgia já em si poder ser atemporal, mas também pela forma como vocês a encenaram. Você poderia comentar um pouco sobre isso?

Mello – Eu acho que a gente tem muito essa questão com a forma. Eu vi algumas montagens de “A Gaivota”, e em algumas delas eu sentia o ranço de uma linguagem antiga. Para você fazer uma personagem de 1896, quando foi montado esse texto pela primeira vez, aí você fica imbuído de uma proposta de forma antiga, que não seria a forma como a gente faria hoje. Parece um teatro quase empoeirado, que não funciona mais, no meu ponto de vista. Primeiro que nós não somos dessa geração, então a gente não sabe fazer esse tipo de coisa. Por exemplo, Fernanda Montenegro poderia fazer um Tchekhov assim, clássico. Cleyde Yaconis, Sérgio Brito, Ítalo Rossi, essa galera do TBC, década de 40, teatro clássico. Talvez eles fizessem um Tchekhov mais parecido com esse teatro da época de Stanislavski. Hoje em dia, a gente não tem mais isso, os atores não têm mais essa referência. Hoje a gente está misturado com a televisão, com o cinema, com outras técnicas, com globalização, de modo que representar dessa forma é quase que uma maneira de você se mascar, e não você mostrar qual o seu ponto de vista sobre aquilo. Então já a escola do “Ensaio.Hamlet” nos ajudou muito com isso, porque era muito leitura muito pessoal de cada um sobre o “Hamlet”. Você era você mesmo falando de Hamlet, não era uma imagem que você tinha de um Hamlet representado na época clássica. Tratar isso de uma maneira próxima era um princípio nosso, não tinha nada de trejeito. Ou talvez, eu me lembro de uma vez em que eu fiz um workshop sobre a Arkádina, e a minha imagem era Raul Cortez. Tinha uma imagem Raul Cortez, aquele grande ator, clássico, porque o Raul tinha isso, né? E lá, naquele lugar, que era quase um deus do Olimpo, fazendo um aquecimento vocal. Tinha uma coisa muito longe da gente, mas hoje não é mais assim, a gente não tem mais isso. Eu acho que nem Fernanda Montenegro tem mais isso. Você vê Fernanda ali, ela já é uma senhorinha, uma velhinha, está ali. Por isso que ela é tão moderna, tão hoje, tão aqui agora. Então, a gente tinha muito essa referência, mas sempre falando dessa referência com uma visão muito nossa, uma visão muito pessoal daquilo. As coisas se encaixavam muito bem, nada é representado. Lógico que é, né? Só que representado de uma outra maneira, não representado de uma forma “representada”. A forma é a nossa forma representada, só que a nossa forma representada não dava a leitura de uma forma representada. Parecia que não tinha forma nenhuma.

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Delduque – É...parecia um pouco que vocês estavam sempre ensaiando, reensaindo e ensaiando novamente. E isso acaba virando uma forma.

Mello – Que era nossa forma, isso é uma forma. Essa forma era plausível, era muito bem aceita por nós. Eu lembro que uma vez um cara falou assim para mim: “Poxa, eu adorei essa peça, eu nunca cheguei ao teatro e estava tudo aceso, com os atores lá. Sempre tinha um escurinho, aí abria uma cortina. E lá, estava tudo aberto.” E assim, a hora que a peça ia começar, aí começava um movimento, que era um movimento à mostra mesmo, a gente mostrava tudo isso acontecendo, esse fenômeno.

Delduque – Sim, essa impressão do estudo que você me conta agora, eu tive muito ao assistir ao espetáculo. Parecia mesmo que vocês estavam analisando, estudando e convidando o espectador para fazer esse exercício com vocês...

Mello – Era como se a gente fizesse a mágica e mostrasse o truque. Só que o truque não era exatamente o truque. O truque era mostrar o truque parecendo mágica. Porque o Mister M., por exemplo, ele mostra como ele faz, aí ele acaba com a magia. Só que a gente mostrava como a gente fazia, e mantinha a magia, porque a coisa estava acontecendo, a coisa continuava acontecendo. Por isso que dava a sensação de que a gente não estava fazendo Tchekhov. Os puristas falavam isso – “Isso não é Tchekhov!”- Pode não ser o Tchekhov que eles viam, mas era o nosso Tchekhov. Aquele que estava em nosso camarim, em nosso altar de artistas, que é a nossa inspiração, é o nosso Tchekhov. Ele está aqui, ele estava junto com a gente, ele estava na obra, o tempo inteiro. A gente estava impregnado dele, não tinha como a gente estar distante dele. Agora, era a nossa visão dele, a gente não estava repetindo nada, a gente não estava copiando nada. A gente estava sendo autêntico e sincero com aquilo que estava vivendo naquele momento. Então fazer a peça era muito incrível para gente, porque ela tinha um valor para mim, não só porque era um projeto meu, mas porque, como ator, eu preciso acreditar, preciso fazer com que essa coisa seja minha também. Por mais que eu saiba que existem pessoas que não gostam, a gente continua fazendo e acreditando.

Carol – Eu gostaria de saber sobre a tradução e adaptação do texto. Como isso foi feito?

Mello – Eu tinha uma tradução em francês e uma versão brasileira de Rubens Figueiredo, que foi a nossa base, mas a gente usou muitas coisas. Eu tinha uma adaptação de Margaride Ohais, que eu usava também. Era super legal, era bem ousada essa adaptação. Além dessa, tinha uma outra versão em francês, que nós usávamos bastante, e essa em português.

Carol –E como vocês chegaram ao texto espetacular?

Mello – A gente tinha muitas coisas que eram improvisadas, que vinham tanto das composições, quanto do trabalho do jogo lúdico, e juntava com o texto “duro”, que é o texto que já estava escrito. Então a gente juntava o texto duro, com esse texto improvisado nos estudos.

Carol – É bastante perceptível, para os que conhecem o texto de Tchekhov, como vai transitando entre o texto do Tchekhov e esse texto criado por vocês.

Mello – Na minha opinião, e eu sei que eu sou muito suspeito nela, eu acho que esses dois textos (o criado por nós nas improvisações e o de Tchekhov) conversam muito bem juntos. Eles se completam, eles ajudam, dentro de uma visão, lógico. Por exemplo, tem uma cena que 185

a gente nunca acertou, era como um tabu. Era aquela hora em que entra o Chamraiev, o capataz da fazenda. Ele entra e diz para Árkadina que ela havia pedido cavalos, mas que não teria, e vai justificando, explicando. Essa era a ideia de Tchekhov. Mas a gente não conseguia fazer, porque a gente tinha uma ideia dessa cena que era a ideia do produtor. Para gente, esse personagem era como um produtor, aquele que diz: “Isso você pode e isso você não pode.” E a gente queria, então, uma cena assim. A gente queria, na verdade, que entrasse um ator, que não fosse da peça, que fosse uma outra pessoa e que falasse assim: “a senhora não vai ter isso, não vai ter, não vai ter...”, e a cena acabava naquela loucura, dos dois brigando, e ela dizendo que iria embora, etc. É a cena escrita por Tchekhov. Então, quero dizer com isso que, para mim, a nossa estrutura é muito coerente com a de Tchekhov. Mas a gente nunca conseguiu fazer essa cena, por uma questão de interpretação e até por uma questão de jogo mesmo, que não funcionava com o ator - que era o Felipe. Aí quando a gente fez uma das últimas apresentações no Gamboa, quem fez foi Cláudio Mendes, que é um ator incrível aqui do Rio. Ele já havia sido convidado para fazer esse projeto logo no início, mas, na época, ele não pôde. Quando quatro anos depois, nós viemos fazer o projeto no Gamboa, que é o espaço do Marco Nanini. Seriam somente duas apresentações. A gente resolve convidar o Claudinho novamente para fazer a peça. Fazendo o capataz e entrando nessa cena. Foi a coisa mais incrível, porque a cena finalmente aconteceu. Ela fazia parte da nossa história com aquela peça, ela fazia parte de uma ligação que a gente tinha com o Claudinho, de tempo, de quatro anos depois, de um amigo nosso, que chegou ali e resolveu fazer a cena de um minuto. Ele fazia divinamente aquela cena. Somente nas últimas apresentações é que essa cena foi resolvida. Em outra ocasião, eu me lembro de estar no palco, eu e Kike, em alguma cidadezinha na turnê que fizemos na França, e a gente comentando: “Caralho, essa cena a gente não resolve, a gente tem que resolver! Eu não consigo ficar bem porque a gente não resolve essa cena.” Aí Kike falou: “Emílio, às vezes tem isso. Às vezes a gente tem que deixar a cena, o tempo dela para se resolver. A gente não tem que ficar o tempo inteiro resolvendo a cena. A cena às vezes se resolve.” E, paro nosso caso, o destino resolveu a cena para gente. A gente conseguiu fazer “A Gaivota”, com essa cena acontecendo, pelo menos duas vezes na história dela. Então, é isso o que eu quero dizer: essa coisa do trabalho vivo, ele permite que você esteja o tempo inteiro trabalhando ele, funcionando, não funcionando. É aquela coisa do teatro, que é empírica. Ou ele acontece ou não acontece, e tudo em volta precisa estar convergindo para isso, você precisa ter esse espírito para que a coisa aconteça. E ela aconteceu. Para mim, ela aconteceu divinamente. Por causa disso. Por causa dessa busca, dessa procura, dessa insaciabilidade com o que a gente tinha e a gente continua buscando, durante quatro, cinco anos. Durante o tempo em que a peça ficou em cartaz, a gente estava buscando ela ainda, por isso que ela fica viva. Senão, ela para de existir. No dia em que ela está pronta, não tem mais sentido.

Delduque – Existe um texto escrito da peça?

Mello – Sim. Tinha que ter. Tem uma dramaturgia. A gente fez muita turnê internacional, então a peça tinha que ser traduzida. Ela foi traduzida para o francês, inglês, flamengo, porque a gente fez em Amsterdã. Então ela tinha várias traduções. Em japonês também, porque a gente fez no Japão.

Delduque – E foi Enrique Dias que fechou o texto?

Mello – Sim, mas era muito coletivo também. Ele realmente fechava, mas ele teve uma coisa específica nesse trabalho, pois ele trabalhou como ator, então ele foi perdendo aos poucos 186

esse parâmetro de diretor do espetáculo. Então a coisa era muito coletiva mesmo. A gente discutia muito a direção do trabalho, o direcionamento. Foi um trabalho bem em equipe. Lógico que a palavra final era dele, tanto que ele assinava a direção sozinho, mas era um trabalho muito coletivo. Era tudo muito discutido, a não ser que a gente tivesse um impasse, aí ele decidia. Mas poucas vezes isso acontecia.

Delduque – Eu acho que, por meio da utilização dos objetos, o espetáculo traz muitas imagens interessantes. Quando eu assisto, eu fico criando e imaginando junto. Uma das minhas imagens preferidas é a do lago, que Mariana faz derramando café no palco. Você se lembra da criação dessa cena? Como esses objetos foram escolhidos?

Mello – Eu não sei se eu me lembro exatamente....essa do café era muito Mariana mesmo, era a cara dela essa cena. Nossa proposta era fazer uma descrição, como que, num palco branco, sem nada, a gente vai criar aquele ambiente de campo. Então todas as histórias vieram muito a partir daí. Dessa coisa minimalista, de você trazer uma planta, você trazer uma terra, e você trazer uma xícara de café. E daí você forma um lago, você forma a floresta, você forma a lua, você forma todo esse universo rural. Na época dos ensaios, a gente ensaiava numa casa, no Cosme Velho, que tinha um jardim. Então a gente fez improvisação no jardim, tinha mosquito, era no meio da mata, na floresta da tijuca. A gente teve também esse trabalho de campo. E de repente, um dia, pega uma xícara de café e fala: “Aqui tem um lago”. E o lago se forma. Aí vem alguém e anda no lago, e a Nina vai e...aquilo vira. Então, quer dizer, você minimaliza uma cena e cria uma imagem poética daquilo. E, na verdade, essa poesia era o mais importante. O tomate pisado, por exemplo, como símbolo do cérebro do Trépliov explodido pela bala. Na verdade, nada mais que uma natureza sendo pisada, massacrada. Era um símbolo. E isso aconteceu numa improvisação também. Uma composição. Era eu e Mariana fazendo uma proposta da cena final, e Felipe e Malu fazendo outra. E aí na nossa proposta teve essa história do tomate pisado.

Delduque – Então havia sempre várias propostas para as cenas?

Mello – Às vezes tinha. Lembra aquela cena da Árkadina fazendo um aquecimento vocal com o gravador? Era uma improvisação que eu fiz, e depois Mariana acabou usando para cena dela. Então tudo era assim. Às vezes eu emprestava uma coisa que outro havia feito em sua composição, e desenvolvia na minha composição. Durante o processo de criação, Malu sugeriu que a gente também decorasse alguns contos de Tchekhov. Aí depois, teve um dia em que ela trouxe um peixe, de verdade, fomos todos à cozinha da casa, e ela me pediu para eu cozinhar o peixe e contar uma história. Então, eu limpava o peixe, cortava, e ia contando uma história assim, com todo mundo sentadinho, me assistindo. Aquilo, por exemplo, virou, para gente, uma imagem prosaica incrível tchekhoviana. Era uma história super simples e interessante ao mesmo tempo. Às vezes era só uma descida de uma garota e um garoto em um trenó num morro de neve e ele sussurrava “eu te amo” .Então são coisas assim, histórias simples e ditas de uma maneira prosaica, como se estivéssemos cozinhando numa cozinha. Então aquilo se transformava numa cena teatral. Duas coisas muito simples, prosaicas, numa cena teatral. Então esse trabalho nos alimentava de imagens, e essas imagens iam para o espetáculo. Então, o lago foi isso, o tomate também foi, as plantas... “A Gaivota”, para gente, poderia estar simbolizada de várias maneiras. O que é a gaivota? Uma couve-flor, uma meia, um peixe… essa coisa da natureza viva, isso me dá uma imagem mais forte do que um bixo empanado. A gaivota pode ser qualquer coisa, quando você fecha 187

muito, acho que você limita o imaginário. O que é que era a gaivota? Eu acho que esse é a grande busca: o que era a gaivota na peça? O que era aquela gaivota que o Trépliov mata? O que era a representação disso? Acho que isso tem que ficar em cada um.

Delduque – Tchekhov mesmo não fecha...

Mello – Não! Tanto que ele falava que o artista não tinha que responder nada, ele tinha que perguntar, quem responde é quem lê, é o público que cria as respostas. A gente não tem que responder nada. Eu tenho que colocar questões num espetáculo, num texto, romance. E isso também era muito a nossa tônica. Se você responde para o espectador, onde fica a filosofia tchekhoviana?

Delduque – Na atuação do espetáculo, vocês se revezam nos papéis dos personagens, além de serem narradores da história. Eu queria que você comentasse um pouco como vocês lidavam com a construção dos personagens, com a complexidade psicológica de cada um, uma vez que faziam muitos?

Mello – A linha psicológica não tem nada a ver com o texto dele. A emoção não vem pelo sentimento. Se você explica ou demonstra sentimento, você está fazendo um jogo psicológico, e a gente nunca usou isso, nunca foi nossa proposta usar o jogo psicológico, a emoção, mas, sim, usar uma imagem que pudesse emocionar. Então, por exemplo, para compor o professor Miedviediênko: eu pego uma cadeira para compô-lo. Eu acredito naquilo, estou compondo aquilo. E chega uma hora em que eu viro aqui. O que me permite o tempo inteiro estar brincando com a emoção, sem entrar num sentimento da personagem. Se eu fosse criar uma Macha deprimida, eu não estou fazendo a Macha deprimida, vivendo a depressão da Macha, mas estou mostrando a depressão da Macha. Através das minhas ações e imagens, olhando a bolsa, procurando meus remédios. Você está dando ações para ela e livrando-a da psicologia. Quando a gente usou psicologia, que era importante usar? Na cena de “A Dama das Camélias” que a Arkádina fazia, em que ela chorava, a gente usava, mas como símbolo de um teatro, símbolo de uma linguagem e não que isso fosse a linguagem da peça, a gente não trabalhava com psicologismo.

Delduque – Sim, mas o fato de vocês fazerem vários personagens não impede um aprofundamento em cada um deles, em sua complexidade?

Mello – De maneira nenhuma. Na verdade, o que acontece é que eu nunca me vejo fazendo um personagem apenas. Eu me vejo fazendo um espetáculo. Estou servindo a um espetáculo. Meu personagem é equilibrado pelos outros, eu estou o tempo inteiro em contraponto com outro ator, então estou construindo um espetáculo. O fato de eu fazer uma hora um personagem, uma hora outro, me ajuda mais ainda a fazer o espetáculo. Então, por exemplo, eu - que fiz uma cena do Trépliov, uma cena do Trigórin e fazia uma cena do professor Miedviediênko - podia experimentar esses personagens. Eu até fiz uma cena da Arkádina num ensaio, experimentei ela também. Experimentava tudo e aí essa experiência acabava me ajudando também a falar coisas para Mariana também, paras as composições dela das cenas da Arkádina. Você vai tentando ver o que aquele personagem te sugeriu e outro não está enxergando, então, de repente, você dá esse toque, e a pessoa vai e usa aquilo. Estão todos trabalhando o espetáculo, então acho que a gente não deixa de se aprofundar não, a gente se aprofunda na obra fazendo isso.

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Delduque – E ainda assim, dá para falar em “personagem”? Você acha que no teatro podemos falar em personagens?

Mello – Lógico, sem dúvida nenhuma. São vários personagens que nós fazemos ali. É sempre um personagem criado, não é o ator na vida. Pode ter muito de mim, mas não sou eu. Se não tiver personagem, aí se aproxima da performance. Aqui não. Teatro, para mim, tem sempre personagem.

Delduque – Para nos aprofundarmos um pouco na abordagem que vocês tiveram para criação dos personagens e situações, em que você mencionou que prepara as ações e mostra a situação, criando imagens. Você poderia comentar um pouco sobre a cena do suicídio do Trépliov?

Mello – Eu crio a situação, eu crio um impasse, eu crio uma imagem, o que, na verdade, é tudo o que um ator faz. Você cria uma imagem: o que é a imagem da morte para ele. Ela não se concretiza, mas está ali. Tem uma imagem de morte dentro de mim, e eu posso criar essa imagem e para você isso vai bater de uma maneira fortíssima, mas para outros não. Eu me lembro de uma vez em que eu fiz a cena final de “Hamlet” e eu ficava muito emocionado nesta cena. Eu fazia com um cigarro e eu falava :... “e o resto é espírito”, e ele fumava e morria. Eu ficava super tocado com aquilo, mas eu sabia que eu não podia me emocionar muito, porque a cena era emocionante, mas ele não estava emocionado, ele só falava uma coisa bonita. Para mim, isso é muito forte… “e o resto é poeira”... mas, seu eu for entrar no drama do cara morrendo...entende?

Delduque – Sim… a imagem precisa estar forte para que o espectador se emocione...

Mello - O espectador se aproveita dela, se aproveita dela da maneira como ele quiser. Essa é a nossa proposta. Essa é a nossa imagem de morte: um secador de cabelo, com tomate esmagado e uma música. Caralho… aquilo talvez emocione pela criatividade de usar isso, pela maneira original de se falar da morte, ao mesmo tempo tem a imagem ali, porque um tomate esmagado parece uma coisa meio sangue, mas, ao mesmo tempo, aquilo parece ser bonito… caralho… é o fim da peça, é o artista morrendo porque ele não aguentou, porque ele não suportou aquilo, não suportou viver sem o teatro que ele acreditava. Viver sem o amor. Porque o teatro dele estava ligado a um amor e o teatro da Nina está ligado à fé, ao acreditar. Acho que esse é o grande barato, o grande conflito da peça: o teatro se faz pelo amor, pela paixão, ou o teatro se faz pela fé, por acreditar? Trigórin e Nina representam a fé, quer dizer, acreditam ou não acreditam. E Arkádina e Trépliov representam o amor, a paixão. E o teatro vive por causa disso.

Delduque – e um sobrevive e outro morre.

Mello – É, mas tudo morre um pouco. Porque ela perde o bebê, tudo morre. Sem julgamento. Na verdade, são duas visões de teatro bonitas, autênticas, reais, e que estão ali. Você vai falar: qual o teatro que vale a pena? Qual o que sobrevive? Não sei, não sei. A gente está mostrando ele ali, a gente está falando sobre isso e acho que é uma coisa bonita.

Delduque – Na verdade acho que o teatro precisa dos dois: do amor e da fé.

Mello – Sem dúvida, sem dúvida. Tanto que é uma peça quase pessimista, por mais que ele fale que é comédia. 189

Delduque – Para terminar, gostaria de pontuar e ponderar sobre as referências que vocês fazem a Stanislasvki ao longo do espetáculo. Ao final do primeiro ato, vocês chegam a ler um trecho de “Minha Vida na Arte”, no qual Stanislavski narra sobre as sensações que eles tiveram em Moscou logo após o final da apresentação do primeiro ato, lá em 1898. Então você poderia falar um pouco mais sobre esse diálogo, vocês buscaram essa referência, como foi isso?

Mello – Sim, muito. A gente não só buscou nos livros que contam um pouco sobre o Teatro de Arte de Moscou, da história de Tchekhov, das cartas de Tchekhov a Suvórin, contos de Tchekhov, livros que contavam como foi a encenação de “A Gaivota” pelo Teatro de Arte de Moscou, que contam um pouco sua história. Então, a gente buscava isso e trazia tudo isso para cena. A gente queria falar disso, dessa tentativa de se criar o novo sem ter certeza se aquilo ia ser assimilado ou não. Porque o próprio texto é bem isso. Então a gente trazia essas referências, porque, para eles, lá no TAM, isso era muito real, muito novo. A primeira encenação desse texto havia sido um fracasso, mas, quando eles fizeram, foi uma loucura, Eu acho isso tão incrível, e a gente tentava trazer as mesmas coisas para gente. A vida inteira da gente é isso: estou fazendo uma coisa nova, legal, mas ela vai ser entendida? Vai ser assimilada? Aceita? Sei lá. Isso também não cabe a nós. A gente vai lá e faz. A gente falava disso: dessa ambivalência do teatro: que ela pode ser tanto um sucesso, quanto um fracasso. E é Trépliov, Trigórin, Arkádina e Nina. É isso o tempo inteiro. Não tinha como a gente não usar essas referências: cartas, passagens, nota de jornais. Alguma coisa que a gente via, coisa que falavam para gente, e a gente ia colocando e trabalhando isso nas composições. E tudo ia fazendo muito sentido.

Delduque – Tinha algum espaço de improvisação mesmo no momento da apresentação?

Mello – Tinha. Sempre tem. Essa peça, como tinha uma dramaturgia muito aberta, tinha mais do que outras esse espaço para improvisar. O espírito da improvisação é o aqui e agora, é trabalhar com o que a gente tem, naquele momento, isso é a base da improvisação. Então, esse espírito a gente tinha. E isso fazia com que a gente tivesse sempre com essa possibilidade da improvisação. Mas o texto acontecia sempre igual.

Delduque – A concordância de estar jogando o mesmo jogo com certeza era um fator muito importante para que isso acontecesse...

Mello – Sim, com certeza. Estava todo mundo fazendo a mesma peça, isso era muito importante. Quando tinha algum que não estava fazendo a peça, a gente sabia. Por exemplo, alguns atores que tinham tendência mais psicológica. Isso não funcionava com a gente. Não sei que a versão você assistiu, mas teve um ator que trabalhou conosco, o Gilberto Gawronski, ele tinha uma tendência muito psicológica, não funcionava direito com a gente. A gente teve que brigar muito para chegar nesse “lugarzinho”, que é um lugar sem psicologia, é jogo, acredita nisso, é jogo. Não dá para ficar nisso: “ai, não senti, não está legal”. Não, não sinta porra nenhuma, sinta que o jogo está funcionando, sinta que está chegando. Eu não estou sentindo alguma coisa, o jogo é o mais importante, ele tira a gente da psicologia.

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Transcrição de entrevista com Renato Borghi. Realizada em São Paulo/SP no dia 23 de fevereiro de 2016.

Carolina Delduque – Eu queria conversar sobre a montagem das “Três Irmãs”, em que você atuou em 1972, no Teatro Oficina.

Renato Borghi – Você veio tocar num ponto complicado para mim, porque eu fiquei uma semana só na peça. Eu saí no dia 31 de dezembro de 1972 para 1973. Tchekhov sempre foi um favorito nosso, a gente sempre amou, estudou Tchekhov muito. Porque ele, inclusive, fazia parte da nossa formação russa que nós tivemos com Eugênio Kusnet.

Delduque – Eu li alguma coisa sobre essa formação stanislavskiana que vocês tiveram. Você poderia comentar um pouco sobre ela, com Boal também, certo?

Borghi – Boal era uma formação stanislavskiana também, mas via Actors Studio. Com Boal, foi uma coisa mais rápida. Já com Kusnet, foram três ou quatro anos de aulas com ele. Ele dava um curso para gente toda manhã. E aí eu pude entender bem a formação stanislavskiana. Essa coisa de você criar o personagem a partir de saber o que ele quer, em que circunstâncias ele se encontra, qual o objetivo dele na cena e qual o objetivo da peça e dele na peça. Toda essa coisa que você ía pela intuição ficava uma coisa mais científica. E o método das ações físicas, que foi uma coisa também muito trabalhada, ou seja, o que o personagem faz. Eu acho que isso tudo nos deixou muito próximos da literatura russa, dramática. Por exemplo, nosso primeiro grande sucesso foi "Pequenos burgueses", de Gorki. Que foi uma coisa que, dizem, foi uma das melhores montagens realistas já executadas no Brasil. Não sei se é verdade ou não, mas o fato é que realmente a peça teve um sucesso estrondoso. Fizemos 1200 apresentações e depois, em 1975, inspirado nessa versão do Oficina, eu dirigi uma versão que ficou também um ano em cartaz.

Delduque – Então, nessa época de formação com o Kusnet, ele trabalhava como ator, mas também ministrava essas aulas para vocês...

Borghi – O que ele mais adorava na vida era ser professor. Então, realmente ele era um ator brilhante, maravilhoso. Ele fez um trabalho excepcional no “Pequenos Burgueses”, inclusive o texto dele é uma coisa, como Zé Celso diz, que deveria estar exposto no Museu de Arte, porque ele botava cada subtexto! Uma riqueza. Mas também foi muito bom, porque, além da aprendizagem teórica e prática dos ensinamentos de Kusnet, a gente também foi descobrindo outras coisas, como a vontade, sim, o que personagem quer. Mas ninguém quer a mesma coisa ao mesmo tempo. Por exemplo, eu quero dar uma entrevista a você, mas, ao mesmo tempo, estou preocupado com um detalhe da minha vida que estou querendo resolver. Então, a gente é um mundo de contradições, de vontades opostas. Nós descobrimos aquela coisa da “contra-vontade”. Era vontade e contra- vontade. Assim, nossos personagens passaram, de um certo momento em diante, a ter vontade e contra-vontade. Agora eu acho que é muito interessante se você disser assim: vontade explícita e a face oculta daquilo que está aqui. Depois dessa experiência com Kusnet, a gente começou a ficar um pouco apaixonado por Brecht. Aí coincidiu que Zé Celso teve uma bolsa na Europa e voltou, trazendo mil coisas da adaptação de Brecht da “Antígona”, ele trouxe um monólogo dito por uma das maiores atrizes do mundo, Dizen Elinvaigan. O monólogo dela é muito interessante porque ela não falava “Ai de mim” (em tom grave e declamativo), mas fazia uma coisa mais aqui (menor, mais próxima 191

da fala cotidiana). As ideias eram muito claras, o que ela estava pensando, o que ela sentindo. Eu acho que isso também foi muito importante para nós, porque, a seguir, a gente fez uma peça que eu considero intermediária entre Stanislavski e Brecht, que era “Andorra”, de Max Frisch. Era uma peça já com uma estrutura brechtiana. Depois a gente vai para um Brecht para valer, que é o “Galilei Galileu”. Antes disso, nós passamos por uma revolução interna muito grande, que foi o tropicalismo, o encontro com Oswald de Andrade, a montagem de “O Rei da Vela” e a busca por esses valores do antropofagismo, ou seja, aquela vontade de devorar o Brasil naquilo que ele tinha de maravilhoso e cafona e horroroso e vomitá-lo. Devorar o Brasil e depois vomitá-lo em cena de uma forma poética, dramática, etc.. Foi um dos grandes sucessos do Oficina, que me marcou profundamente. Depois veio Brecht para valer, que foi o “Galileu Galilei”. Aí começa uma coisa que depois vai chegar às “Três Irmãs”. Foi o seguinte: Zé Celso foi convidado para fazer uma direção fora do Oficina, única direção que ele fez fora do Oficina. Depois ele fez uma direção de Beckett, “Esperando Godot”, no Centro Cultural Banco do Brasil. Em 1968, ano daquela efervescência política, do AI 5 e tudo mais, Zé Celso dirigiu uma peça chamada “Roda Vida”, de Chico Buarque de Holanda, que era uma peça estruturalmente ainda um pouco inexperiente, como eu posso dizer, não era uma peça completa. Ele topou dirigir, porque ele achava o tema importante, foi ao Rio, dirigiu e, para dar um estofo para peça, criou um negócio que ele chamava de coro. Então ele contratou muita gente para fazer o coro daquela historinha. E esse coro era antropofágico, que partiu para uma antropofagia radical, porque eles entravam em contato direto com a plateia, sacudiam o público, as pessoas desmaiavam nas cadeiras, aí eles comiam fígado cru de verdade, que era a única coisa que sobrava do personagem, que era consumido pelo Ibope. Era um cantor do tipo Roberto Carlos e a única coisa que sobrava dele era o fígado e eles comiam o fígado e as pessoas vomitavam...era uma reação violenta. Zé Celso ficou muito encantado com essa possibilidade de agir sobre o público dessa maneira. Quando a gente fez “Galileu Galilei”, ele trouxe o coro para fazer o carnaval do “Galileu Galilei”. Então esse carnaval já era, vamos dizer assim, uma pesquisa de Zé Celso que estava avançando em uma direção. E era um coro de pessoas muito diferentes de nós – eu, , Rita, Fernando Peixoto, Miriam. Eles eram um coro muito jovem e muito radical e com uma crença em um outro teatro, em uma outra corrente de teatro. Bom, Zé começou a namorar essa corrente... Em seguida, a gente fez “Na Selva da Cidade”, de Brecht, que talvez tenha sido a montagem mais bonita do Oficina, em que ele utilizou os personagens do coro para fazer os gangsters, que eram contratados pelo chinês. Tiveram a oportunidade, acho que pela primeira vez, de fazer papéis com texto. Eles se saíram muitíssimo bem. Nesse momento, estava se criando no Oficina uma coisa meio radical, assim, nós, os chamados representantes, éramos atores que tinham nome, tinham carreira, tinham prêmios, e os da regimália, que eram o coro. Tinha uma certa animosidade, principalmente deles em relação a nós. Nós éramos considerados por eles como “caretas”, porque eles eram radicais ao ponto de também uma absoluta entrega ao consumo de drogas, e isso e aquilo. Não que a gente não experimentasse também, mas não era uma coisa que fazia parte da vida, de manhã, à tarde e à noite. Eles viviam nessa pesquisa de alucinógenos para sacar o que seria o ator do futuro, qual seria a comunicação do teatro, num futuro próximo, etc.. Nessa altura, quer dizer, o carnaval do “Galileu” já começou a desandar, porque a peça durava três horas, sendo que vinte minutos deveriam ser o carnaval. Aí a peça, às vezes, durava quatro horas, porque o carnaval se estendia por uma hora, eles traziam o público ao palco, dançavam com o público, teve dia em que chegaram a tirar a roupa, aí a polícia veio, a peça foi fechada, enfim, foi uma coisa meio complicada para… para mim, para Othon Bastos, para Rita, que saiu, para muita gente que formou a base do Teatro Oficina até 192

ali. Na época, eu estava nutrindo um certo rancor, mas hoje em dia eu entendo que não foi nada além do que a história. A história nos dividiu. Nós chegamos a um radicalismo em um espetáculo que nós apresentamos. Era um espetáculo quase sem palavras, era uma coisa que existia por conta de uma influência que o Living Theatre exercia, que esteve aqui e ficou conosco quase um ano. Essa experiência levou a gente a fazer o “Gracias Señor”, que também era uma coisa interativa, com a plateia. Eu já divergia porque eu achava que o nosso comportamento com a plateia era um tanto quanto fascista mesmo, uma coisa de você pegar a plateia e dizer: você está morto. Essa aí é sua carteira de identidade, rasga ela...Mas eu falava: não pode rasgar, porque o cara vai ter que tirar outra...carteira de trabalho, fazer o cara rasgar....não… Então eu comecei a entrar numa certa divergência, mas eu entendo que o radicalismo tinha que ir até o fim. Só que eu não estava disposto muito a ir até o fim. O “Gracias Señor” deu uma parada, aliás, parou até hoje, ele foi retirado pela censura federal da ditatura, como é que eu direi, para exames, e desses exames nunca mais voltou. Então nós resolvemos fazer um clássico para tirar os olhos do Exército de cima da gente, porque nós estávamos vigiados, às vezes presos, às vezes com aquelas fotografias de frente, de perfil, com o dedão, na polícia federal, coisa e tal. Estávamos muito visados, todos. Era uma coisa diplomática mesmo, de fazer um Tchekhov, que sempre fala sobre tudo o que a gente quer falar. É impressionante. Tchekhov pega a existência, o ser humano, as contradições da gente e vai até o fim dessas coisas… os personagens eram muito parecidos com a gente, com nosso convívio interno de grupo, de sacações, utopias etc… Escolhemos “As Três Irmãs”, fomos buscar de volta alguns atores que já tinham trabalhado com a gente: Maria Fernanda fazendo a Olga, Othon Bastos fazendo o Barão Tusenbach, e mais o elenco do Oficina que estava ali. Nós fizemos uma incursão em Tchekhov, muito dolorida, muito por dentro de tudo, nevrálgica, sentindo cada movimento, fazendo muitos laboratórios, coisa que, com Tchekhov, de uma certa maneira, quase nunca é feito dessa forma. A gente fez muitos laboratórios, que já era uma prática nossa, de muito tempo.

Delduque – Como eram esses laboratórios?

Borghi – A gente vivia cenas, com as próprias palavras, com as ações que a coisa inspirava. Uma cena que teria 10 minutos às vezes durava cinco horas. Porque a gente ficava dentro daquela ideia, conseguia extrair o sumo total da cena. Tinha muito a ver também com a experiência pessoal, com o momento que a gente estava vivendo, a utilização das emoções, o Oficina estava muito fragmentado naquele momento, né?!

Delduque – Esses laboratórios tinham a ver com as propostas do Sistema de Stanislavski?

Borghi – Sempre tiveram. Acho que a gente nunca fez, até o momento em que eu saí, nada sem que se passasse por esse exame inicial. O que o personagem quer? O que a peça quer, e depois, em que ela tem a ver com a gente. Fundamentalmente, em uma dimensão mais profunda, o que o Oficina sempre fez, em cada peça, foi uma discussão com a plateia sobre um momento que a gente vivia no Brasil politicamente, ou existencialmente dentro daquele contexto. E foi assim que agente chegou às “Três Irmãs”. Trabalhamos uns bons meses, ensaios compridos, longos, trabalhamos muito. E chegamos a estrear no mês de dezembro, eu acho. Então a peça começou a carreira.

Delduque – Quanto tempo durou o processo de criação?

193

Borghi – Eu não me lembro exatamente. Acho que foram uns quatro ou cinco meses, provavelmente. Aí a peça estreou, eu lembro que os atores estavam magnificamente bem. Maria Fernanda estava ótima, Analu Prestes foi uma revelação como Irina. Othon Bastos, aquele ator maravilhoso de sempre no Barão de Tusembach. Zé Celso fazia um personagem também. Henricão fazia um personagem, mas um dia ele sumiu, porque parece que ele passou para o outro lado, com o excesso de consumo de alucinógenos... passou para o outro lado. E a história seguiu seu rumo. Eu sentia Zé Celso muito tendente a retomar o carnaval do “Galileu”. Tanto que, depois que eu fui embora, ele montou várias vezes o carnaval do “Galileu”, em Portugal, em uma série de lugares. Só o Carnaval do “Galileu”, às vezes. Nós estreamos e eu fiquei...quarta, quinta, sexta, sábado, e domingo, eu acho, que era do dia 31 para o dia primeiro. Nós fizemos o espetáculo mais tarde do que seria normalmente, para comemorar em cena a passagem de ano, porque nós achávamos isso lindo e tal. E assim foi feito. Estreamos. Nesse dia, eu fiz o primeiro e o segundo atos normalmente e, quando eu fui para o camarim para me preparar para entrar no terceiro ato - ou melhor, do primeiro para o segundo, talvez -, eu comecei a ouvir uma coisa que me era familiar, mas era de outro lugar, era do “Gracias Señor”: “Corrente! Firma!”. Aí comecei a ouvir um batuque também...e pensei: ué, mas que é isso? Que estranho! Fui até lá e olhei os atores que faziam parte do carnaval do “Galileu”, eles tinham trazido o público todo para o palco e o público estava todo em ritmo de candomblé, dançando, e gritando “Corrente, firma!”, e fazendo movimentos, como se dizer, como se estivessem tomados todos, etc... Eu fiquei olhando. Aí eu fui para o meu camarim, olhei no espelho e pensei comigo: Renato, você gosta disso? É isso que você quer? Você vai aguentar isso mais tempo? O que Zé Celso quer não é mais o que você quer. Nós somos parceiros íntimos. A nossa dupla de parceria deu espetáculos como “Pequeno Burguês”, “Andorra”, “Galileu Galilei”, “Na selva da cidade”. Um período maravilhoso. Não quero dizer que agora não seja porque depois que Zé Celso montou espetáculos como “Hamlet”, “Bacantes” etc, que são já produtos da pesquisa dele numa outra linguagem e que, para mim, são maravilhosos. Eu acho que talvez ele seja o maior diretor do mundo. Porque eu já viajei muito e encontrei poucos talentos como Zé. Aquele momento foi especialmente difícil para mim, porque seria a separação dele. E depois eu estava começando a levar uma vida que não era bem mais a vida da comunidade, não cabia mais. Porque o meu filho estava com seis meses, eu estava recém-casado, aquilo tudo era olhado com uma desconfiança enorme pela seita, pelo grupo, aquela coisa de careta... Que na minha casa tinha cortina de linho… enfim, uma série de coisas que me deixavam profundamente irritado. Então eu fui nutrindo uma vontade de sair, eu fiquei me olhando no espelho e pensando – você quer mesmo ir? Acha que chegou a hora de ir embora? Chegou. Então, o que você vai fazer? Eu vou vestir a minha roupinha da rua e vou me embora para casa. Aí eu cheguei no meio do palco, interrompi aquela batucada toda e falei: “Zé, da mesma maneira que eu entrei ali há onze anos atrás, eu estou saindo. Eu não concordo com isso, não acho que o teatro morreu, não acho que a palavra morreu”. Eu tinha que declarar isso no “Gracias Señor” e era muito dolorido. O teatro está morto. A palavra está morta. Mas eu não acreditava nisso. Então, por discordância mesmo de orientação, eu estou indo embora. “Foi um prazer enorme trabalhar com você. Adeus”. E eu fui embora. Eu sumi. Saí de São Paulo, para ninguém me encontrar. De onde eu estava, eu declarei aos jornais todos e revistas que eu tinha saído por discordância de orientação, e ponto final. E assim eu comecei uma outra vida. Em contraposição com “o teatro está morto”, eu montei o teatro vivo, com a minha ex-esposa, Ester Góes. Eu montei uma peça que se chamava “O que mantém o homem vivo”. Foi uma resposta assim, bem birrenta, de última hora. Eu acho que, hoje em dia, eu adoro Zé, a gente agora conversa muito, troca ideias. Estamos os dois, somos os dois frutos da mesma coisa, porque, na verdade, a nossa vida é fazer teatro, nós não somos pessoas encantadas que vão fazendo novelas e essas coisas. A gente se dedica 194

muito a fazer teatro, eu estou fazendo aqui na minha casa. Então a gente enfrenta problemas que a crise está gerando para gente, problema de grana, de continuidade, etc.. Mas nós somos do teatro e isso em comum a gente tem. Nosso negócio é teatro mesmo. E Zé Celso é bem radical nesse sentido. Eu acho que eu encontrei no Oficina tudo aquilo que eu coloco como a minha formação de ator. Eu acho que a pessoa que eu sou hoje é fruto de toda a pesquisa que eu fiz no Teatro Oficina - Stanislavski, com Kusnet, Boal, do Actors Studios.

Delduque – Eram muito diferentes essas duas vertentes?

Borghi – Não, praticamente a mesma coisa. Mas com uma embocadura diferente, mais moderna, a do Boal. É a mesma coisa, mas a colocação de Lee Strasberg, de Stella Adler, de Elia Casán...

Delduque – O Strasberg trabalhava muito com memória emocional, né?!

Borghi – Muito. Kusnet tinha até uma certa reserva com a Memória Emocional. Mas, como eu tinha que aplicar às vezes, fazia parte do processo de ensaio, ele me ajudou bastante, ele me explicou muitas coisas importantes, como, por exemplo, que não adianta você se lembrar da emoção. A emoção do dia em que meu pai morreu. Não adianta. O dia em que minha mãe morreu. Não adianta. Agora se eu lembrar de algum lençol verde, com um volume dentro, com dois homens carregando e colocando no chão da sala, e o barulho que fez e que era o corpo do meu pai, aí eu fico emocionado. É o detalhe físico que o transporta para esse momento, de uma emoção que a gente chama de emoção específica, aquela emoção, não outra. É muito difícil isso, eu tenho dado aulas e é muito difícil o entendimento disso, a aplicação correta. É perigoso. É muito difícil. Mas eu sempre fui um ator meio destemido, quer dizer, eu queria experimentar tudo até o fim. Então, eu experimentei essas coisas todas para valer.

Delduque – Tchekhov, pelo que me parece, casa bem com essas referências...

Borghi – Sim, Stanislavski estava ali, ao lado dele. Só que Tchekhov sempre dizia: “A minha peça é um pouco comédia. E você fez só um drama...” Ele não concordava com a visão de Stanislavski. Quando ele viu “O Jardim das Cerejeiras”, ele achou que o Stanislavski tinha errado tudo, que era absurdamente ridículo, aquele monólogo do irmão da Liuba, “O armário, você...armário...”. Ele achava que era uma coisa engraçada, ridícula. Aí ele foi a um lugar onde uma pessoa fez uma homenagem para ele e fez um discurso parecido, e ele falou para o Stanislavski: “Está vendo, é isso. Não é aquilo, é isso.” Entende?

Delduque – Sim. É que tinha as emoções, mas também tinha a comicidade.

Borghi – Eu fiz “Tio Vânia” depois. E eu lembro que “Tio Vânia” era muito engraçado. O personagem que dá título à peça tinha uma frustração, uma coisa, mas depois, ele praticamente ria da frustração dele. Sabe, “sou um babaca, um falido”... e a plateia começava também a se manifestar. Porque uma pessoa falida às vezes pode ser muito pesada, mas também pode ser extremamente engraçada na sua falência. Essa coisa ambivalente que a gente descobriu. Bom, a minha experiência com “As Três Irmãs” foi essa de que eu te falei.

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Delduque – Você fazia o Andrei?

Borghi – Sim, inclusive tinha muito a ver comigo naquele momento. O meu filho estava com seis meses nessa época e andava de carrinho ainda. E eu tinha uma cena rondando, com o carrinho, com a criança, assim meio desesperado. Meu subtexto era “o que é que eu vou fazer da minha vida, o que é que vou fazer da minha vida”... e aquele fracasso, a Natacha expulsando as irmãs que acabam indo para fora da casa, e ela toma conta de tudo, e ele fica um pau mandado da mulher, que é amante do Protopopov. Eu lembro muito que era muito verdadeiro, eu tinha uma dor verdadeira. Eu tinha uma dor já também de quem se sente fora, que já está saindo. Eu estava completando 14 anos de fundação do grupo, 14 anos de trabalho. Nesse tempo, a gente teve momentos de absoluta felicidade. Então, foram 14 anos, sendo que os três últimos foram começando a complicar. E eu diria, hoje em dia, se me perguntam por que eu saí, que foi a história. Nós tivemos apelos em relação a coisas diversas e diferentes. E eu sempre amei a profissão de ator, eu sempre adorei a palavra, eu sempre gostei de me expressar através de palavras. Eu sempre gostei da ideia de fazer grandes personagens; então, a partir de um certo momento, eu comecei a fazer personagens maravilhosos. O Rei da Vela era um personagem extraordinário. Depois o Cláudio Correia e Castro saiu do “Galileu”, e o grupo me incumbiu de fazer o Galileu com uma barriga de pano, quer dizer, eu não tinha fisicamente nada a ver com o Galileu - nem idade, nem corpo, nem nada. Mas eu fui obrigado a fazer e era deslumbrante fazer esse papel. Em “Na Selva da Cidade”, eu era protagonista. Depois que eu saí do Oficina, comecei a fazer papéis grandes. Foi o “Frank Quinto”, no Studio São Pedro, depois “O que mantém o homem vivo”, com a minha ex-mulher, Ester Góes. “Tio Vânia”, Shakespeare. E por aí afora eu fui andando e fazendo a minha carreira.

Delduque – A concepção da encenação e tradução do texto foi feita por Zé Celso. Você poderia comentar um pouco dessa fase inicial do processo, vocês liam bastante o texto? Como se deu a escolha dos personagens?

Borghi – Bom, o meu estava na cara.

Delduque – Ah, sim...tinha muito forte essa questão da identificação entre os atores e os personagens que fariam.

Borghi – Isso... Renato é o Andrei. Zé Celso também era óbvio que era o Tchebutikin. Othon Bastos foi chamado depois de um tempo. Havia um ator que estava fazendo o Barão de Tusenbach, mas não estava dando muito certo. Então Othon veio com a experiência dele para fazer o Barão de Tusenbach, que é um papel muito importante. Lulu Prestes era óbvio que seria a Irina. Maria Fernanda foi chamada para fazer a Olga, porque era perfeita, como idade, como experiência, como tudo. Kate Hansen, que se aproximou do grupo naquela ocasião, começou a fazer parte do Oficina, era uma mulher muito bonita, fazia Macha. A montagem, artisticamente, era fortíssima, foi linda. Apesar de que a gente não estava nem um pouco prestando atenção a uma parte que eu acho importante do teatro, que é o tempo-ritmo.

Delduque – Tinha quatro horas a peça?

Borghi – Tinha. E às vezes alongava, ficava enorme. Às vezes durava mais, muito mais. Foi aí que nós começamos a nossa tradição de quatro horas, cinco horas. O “Na Selva da Cidade” estreou com seis, aí teve de cortar para três. Diminuir coisas que não tinham como ficar, porque a plateia não estava acostumada com um espetáculo de seis horas. 196

Delduque – No caso de “As Três Irmãs”, não havia tanta interação com o público. Houve, naquela ocasião em que resolveu abandonar o grupo, mas essa prática não fazia parte desse espetáculo, certo?

Borghi – Exato, não havia essa interação direta com a plateia. Em “As Três Irmãs”, o que me causou estranheza foi a volta daquela coisa, da invasão da plateia no palco, do candomblé, do batuque, da possessão. Eu estranhei muito por isso, porque, de repente, comecei a ouvir um batuque, “corrente, firma”....aí eu estranhei muito, fui lá ver, fiquei olhando e pensei “bom, agora está na hora de ir embora”. E aí fiquei dez anos meio afastado do Oficina, mas Zé Celso é meu irmão, minha família. Aí a gente se aproximou de novo, hoje em dia estou muito próximo dele, gosto muito do trabalho dele, enfim, eu só não seria um ator do Oficina, a única diferença é essa.

Delduque – Como era a escolha dos figurinos? Vinha de uma proposta dos atores, do diretor?

Borghi – Tinha um rapaz chamado Ednisio Ribeiro Primo - era um baiano, eu acho -, que fez um figurino. Aí houve um dia - eu até acho que estava começando aí a minha discordância - em que eu levei Zé Celso para olhar o figurino. “Olha o que ele fez, olha o que ele está fazendo.” Então tinha coisas que, em Tchekhov, você não conseguia admitir. Que a Natacha tivesse uma roupa de galinha, não realista, mas uma coisa, assim, que tivesse fantasias coloridas etc… Eu falei: “Zé, eu não sei. Eu acho que está errado.” Ele olhou, ficou na dele, depois ele mesmo chamou uma pessoa e fez o figurino, o próprio Zé Celso. As mulheres usavam uma túnica comprida, muito simples, muito bonita. A gente usava roupas normais, só que eram ternos, coisas com um acabamento mais antigo. E nós fizemos a peça assim, mas o figurino era do Zé, muito mais do Zé, do que do outro que fez.

Delduque – O cenário era uma mandala...

Borghi – Exatamente, o cenário era uma mandala. Eu também entrei um pouco em crise aí. Eu disse: “Parece uma pizza de pau”. Era de madeira. Deve ter ficado bonito, mas, olhando de fora, quando estava sendo construído, eu tinha impressão de ser uma coisa muito pesada, e não era necessário aquele peso todo em cena. Era uma coisa enorme, de madeira. O palco inteiro de madeira em cima da madeira. Era uma enorme pizza de pau em cima de um palco de madeira. Eu já comecei a achar ruim ali, depois fui achar ruim do batuque e aí eu fui embora.

Delduque – Eram vários elementos cenográficos ao mesmo tempo no palco ou eles saíam e entravam conforme mudavam as cenas?

Borghi – Era um cenário único. Tudo se passava em cima daquela pizza. Às vezes tinha um canto com um voal fazendo uma cortina. O cenário era aquele chão. Tinha também herdado de “O Rei da Vela” um balanço, sobre o qual Zé Celso ficava sentado de Tchekutikin, filosofando, ali, sentado. Está bem distante, estou contando para você tudo que me vem, mas, como é um momento muito importante, muito delicado da minha vida, acho que eu consegui reter algumas coisas do espetáculo.

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Delduque – Você já falou um pouco do Andrei, que tinha muito a ver com você naquela época. Você se lembra um pouco mais sobre a sua concepção do personagem?

Borghi – Eu acho que eu concebi o Andrei com o sentimento de falência que eu estava tendo naquele tempo. Eu estava sentindo que tudo o que eu construí com o Oficina estava ruindo, estava tudo caindo, despencando em cima de mim. E eu construí o personagem com este sentimento. Eu estava com a vida nova, muito mudada, eu estava recém-casado, e era uma coisa completamente diferente da comunidade em que eu vivia, era uma outra realidade, uma outra coisa. Eu sou meio cigano, então, para mim, foi um pouco difícil de me adaptar a essa realidade, mas foi bom, foi uma coisa muito importante na minha vida, porque me deu uma coragem de enfrentar o mundo de uma outra maneira, continuar a fazer o meu teatro, a assinar as minhas coisas. Tanto que, depois que eu saí de lá, eu consegui fazer muitas coisas, como escrever “Estrela d’alva”, “Decifra-me ou devoro-te”, eu escrevi muita coisa. Eu acredito que o Oficina, pela genialidade de Zé Celso, devia ser um lugar muito difícil para realização pessoal dos outros. Eu acho que Fernando Peixoto era um diretor que não conseguiu dirigir lá dentro. Ele era um diretor, mas eu acho que ele devia ter um pânico de dirigir perto de Zé Celso, de comparar o espetáculo dele com o de Zé Celso, é inevitável a comparação. Então, eu acho a gente se realizou mais fora do que dentro. Quer dizer, como ator, não. Como ator, foi absolutamente maravilhoso para mim. Agora, dirigir, escrever, essas coisas, ficava assim meio temeroso, porque o Zé era uma coisa assim, de uma pujança, de uma riqueza...genial mesmo...acho que o termo para ele é genial.

Delduque – Além de “As Três Irmãs”, você já interpretou outros textos de Tchekhov, com o “Tio Vânia”, que você citou e, recentemente, “A Gaivota”. O que o atrai no texto de Tchekhov?

Borghi – É muito bom você representar pessoas que existem. Eu reconheço cada ser humano que está colocado nas peças dele. Então eu olho e falo: “Nossa, que beleza de personagem....eu quero fazer!”. “Tio Vânia”, eu fiz de tudo até conseguir fazer. O personagem tinha 47 anos, e eu adaptei para 57. Porque eu não queria deixar de fazer. É um personagem que eu li e pensei: “Eu tenho que fazer. Eu tenho que fazer.” Muito, muito forte. Eu o entendo de ponta a ponta. E os outros personagens existem. A Sônia existe muito claramente, a Helena. Eu acho que os personagens todos. Em “As Três Irmãs”, havia uma identificação enorme, porque, assim como elas estão sendo postas para fora de casa, eu ia me sentindo expulso aos poucos, porque eu era uma discordância viva. Então, quer dizer, eu também tinha aquele sentimento de de repente perder a minha casa, o meu lugar. E assim foi. Se eu achasse que Tchekhov era meio abstrato, meio chato, eu não seria assim tão favorável às montagens dele. Eu fui realmente das pessoas que mais defenderam a entrada de Tchekhov no nosso repertório. Eu me lembro de que eu tinha coisas assim, de repente, era como se eu recebesse um espírito, que me soprava o tempo rítmico da cena. Eu tinha uma ligação espiritual muito forte com a coisa, como se os atores do Teatro de Arte de Moscou estivessem soprando nas orelhas… Ah, foi bom, foi bonito, tudo isso valeu muito a pena. Muito legal. Até o final difícil foi legal também. Não lamento nada.

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Transcrição de entrevista com Mariana Lima Realizada por e-mail no dia 01 de Outubro de 2016.

Carolina Delduque - Você estudou na escola de Lee Strasberg, que é conhecida por difundir uma das muitas vertentes de métodos criados a partir do Sistema de Stanislavski. Então, você poderia contar como foi essa formação e se teve outros contatos com o Sistema de Stanislavski em sua formação de atriz além desse? Como foram? Você ainda usa esses princípios em seu trabalho como atriz?

Mariana Lima - Eu estudei apenas três meses, quando estava vivendo em NY, aos 20 anos. Foi um ano em que trabalhei muito em vários subempregos para custear uma estadia na cidade. Fiz muitos cursos, e o de Lee foi um deles. De certa forma, as escolas americanas ajustam o método para uma interpretação mais cinematográfica, mais intimista, interiorizada. Não acho que é a melhor leitura do método, que, a meu ver, tem bases muito teatrais, físicas para além da memória emotiva. Na verdade, os exercícios de memória ou de substituição da situação por outra me incomodavam um pouco. É um trabalho interno. Foi bom para me ajudar a criar esse escopo de metodologia que depois fui amalgamando com outras técnicas. Durante a criação do Apocalipse 1,11, Antônio Araújo usava o método para gente destrinchar um personagem, uma cena. Pensar a cena através do método. Então eu experimentei a potência do método. Ajuda muito a construir uma inteligência de ator, de compreensão do movimento da cena e do personagem dentro da cena.

Delduque - Antes de atuar na Gaivota, em 1998, você atuou em "Tio Vânia", sob direção de Élcio Nogueira Sanches. Como foi esse processo de criação? Como você vê a sua interpretação - quais os recursos, memórias, técnicas, procedimentos, inspirações - que usou para criação do personagem?

Lima - Foi um processo muito rico, de encontros fundamentais para minha vida. Trabalhar com Elcio, Renato Borgui, Luciano Chiroli, Leona era trabalhar com várias escolas de teatro. Renato vindo do TBC, de Zé Celso, Leona do Oficina, Lucci que já tinha rodado por tudo. Nossos ensaios usavam muito dessas experiências de cada um para compor os personagens. Nossa histórias pessoais eram a matéria-prima da composição dos personagens e das situações. “Tio Vânia” fala muito da relação do homem com o trabalho, seja ela a terra ou o papel. E da força que adquirimos quando nos sentimos realizados naquilo que fazemos. Nossa singularidade vem dessa afirmação do que somos através do trabalho que fazemos. Então falávamos disso e também do amor. De onde colocamos o amor nas relações, do afeto. Foi um trabalho muito amoroso, de amor a Tchekhov, ao Teatro, a essa idéia de companhia de teatro mesmo sem ser formalmente. De se envolver com cada detalhe da produção, da feitura do espetáculo, porque cada detalhe é uma afirmação sobre a peça, sobre as escolhas que fazemos com ela. Durante o processo, falamos muito sobre a “verdade”. Como estar verdadeiramente imbuído das razões do personagem, como deixar o personagem falar através de você. Nós nos dedicamos a isso com exercícios, com vivências; tomamos daime uma vez e fizemos a peça toda num jardim. Tomamos em pequena quantidade, o suficiente para ficarmos com a consciência levemente alterada. Foi muito importante, uma experiência que me marcou bastante. Uma vez que você acessa essa região, você pode voltar a ela sempre que quiser.

Delduque - Ainda antes de atuar na Gaivota, você fez assistência de direção em “Hamlet.com”, que também foi dirigido por Enrique Dias. Como você vê a transição entre esses dois trabalhos? O que eles têm em comum? E diferente? 199

Lima - São trabalhos construídos de forma parecida, na arquitetura das cenas, através de exercícios de viewpoints, de composição, de vivências. Não é uma cartilha, mas, sim, um desejo que se repetiu de tirar conteúdo tanto do material escrito, da dramaturgia e da teoria, mas também da leitura que os atores, que são co–criadores do trabalho, fazem do material. Essa transposição, essa leitura, atravessa o corpo, a inteligência de todos, e Enrique fazia o trabalho de costura, de encenação de um material muito imagético, muito potente , mas cheio de arestas, de gordura. O diretor faz um trabalho dificílimo nesse tipo de trabalho, porque é democrático e, por isso mesmo, caótico, plural, calcado nas diferenças, na escuta e no olhar cuidadoso para isso.

Delduque - Porque montar Tchekhov no Brasil, nos dias de hoje? Porque montar “A Gaivota”?

Lima - Acho que Tchekhov é um autor sempre atual, é universal no tempo, mas, a meu ver, só se se você faz uma releitura com as inquietações que te movem hoje. Fazer por reverência à beleza do seu texto não me parece justo nem conosco, nem com ele. Estamos no Brasil, século XXI. O que está lá que ainda nos faz questionar nosso ofício hoje? Quais os paralelos, os elos? São muitos. “A Gaivota” é uma peça sobre o desejo de criação, manifestado em diferentes pessoas, em gerações diferentes. Quem representa Treplev hoje? E Arkadina? Quem seria o escritor renomado e cansado e o autor jovem, problemático? Em qual dessas duas manifestações podemos nos colocar? São perguntas que afloram quando você se propõe a fazer a arqueologia do texto. Nós queríamos entender o lugar em que nós estávamos atuando; já não éramos mais Ninas nem Treplevs, mas ainda não estávamos tão cansados quanto Arkadina. A linguagem do trabalho, as cadeiras, a terra, os duplos, o trabalho que fazíamos com o cenário, montando e desmontando, as plantas, eram a tradução dessa procura. O novo e o velho: esse embate presente em todos os tempos. Dessa batalha nascem as obras de arte originais.

Delduque - Fale um pouco sobre o processo de criação. Como foi o início, a escolha por esse texto, a sua contribuição na estruturação desse processo. Quais as dificuldades e desafios enfrentaram?

Lima - Bom, o projeto nasceu do encontro de Kike, Emílio e eu, não lembro exatamente por quê, mas acho que todos nós tínhamos um desejo pessoal, uma curiosidade com esse texto, com o Teatro de Arte de Moscou, com Stanislavski, com todas essas técnicas que definiram muito o modo como fazemos teatro hoje. A partir dessa decisão, chamamos parceiros que gostaríamos de embarcar junto nessa viagem. Isso é fundamental num trabalho de pesquisa: quem são os artistas, os co-criadores que vão se juntar pra dissecar, estudar, digerir, antropofagizar esse manancial. Com essa gente muito especial, caímos dentro da leitura de tudo o que encontramos sobre o autor, a época, as cartas, os textos poéticos, os teóricos, os autores russos contemporâneos, depois entramos em sala de ensaio. Trabalhávamos numa casa com jardim no Cosme Velho e lá improvisamos, compusemos, levantamos toneladas de cenas, personagens, situações, fizemos whorkshops, vivências, trabalho de corpo e voz e, desse caldo, fomos cozinhando a peça. Era um corpo vivo, permeável a questionamentos , inquietações do momento presente, nossas questões pessoais, sociais, culturais, questões contemporâneas que friccionavam com o texto, com o “espírito Tchecoviano”. Kike foi o responsável, como diretor, por organizar o material. E ele fez isso, estando também em cena, implicado na cena, o que deixou todo mundo mais exposto de certo sentido, provocando em nós um ajuste diário, mesmo com a peça em cartaz. 200

Carol - Numa reportagem da revista Bravo, há uma menção de que Enrique Diaz faz uma homenagem a Stanislavski também com esse espetáculo. E, de fato, no espetáculo, vocês mencionam como foi a recepção do público naquela emblemática apresentação do TAM da peça na Rússia, em 1998. Como você vê essa homenagem? Você vê outros pontos de contatos com Stanislavski na interpretação, por exemplo?

Lima - Existem pontos de contato o tempo todo na montagem. Como disse antes: o modo como eles trabalhavam, a maneira como afetivamente eles se relacionavam, a paixão deles pelo teatro, pelo ofício, a carpintaria do teatro foi uma inspiração e uma referência permanente.

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Transcrição de entrevista com Analu Prestes. Entrevista realizada por Skipe no dia 27 de Maio de 2017.

Carolina Delduque -Eu queria conversar um pouquinho com você sobre a peça "As Três Irmãs", em que atuou no de 1972, sob direção de Zé Celso, junto ao Teatro Oficina. Pra começar, queria que você me contasse sobre como foi a sua formação de atriz.

Analu Prestes - Aos 15 anos eu entrei na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), na qual existia um curso para adolescentes. E o Naum Alves de Souza era o professor de teatro. Eu entrei num curso de Artes Plásticas. E tinha Artes Plásticas e Teatro. Então eu comecei a minha formação , aos 15 anos como artista plástica, cenógrafa e figurinista, porque o trabalho do Naum, junto com a Sônia, que era professora de Artes Plásticas, era desenvolver naquele grupo de adolescentes, a multiplicidades de coisas que a gente poderia fazer. Então dali surgiu um grupo que depois deu origem ao Podi Minoga, que é um grupo, não sei se você conheceu, mas era a Mirah Haar, o Carlos Moreno, o Flávio de Souza...foi um grupo que desmembrou, que o Naum era o líder e depois ele saiu, mas foi um grupo muito peculiar em São Paulo porque todas eram artistas plásticos, escreviam, compunham, atuavam. Então a minha multiplicidade - eu sou atriz, artista plástica, cenógrafa, fotógrafa - veio dessa formação que eu tive lá na FAAP com o Naum. A gente montava os espetáculos na FAAP, no tempo em que eu fiquei na FAAP, depois foi pedido que o Naum se retirasse porque ele tinha um trabalho muito revolucionário na época para a escola e a gente foi trabalhar na casa do Naum. Ele morava numa vila, lá a gente construiu um pequeno teatrinho. A gente transformou o quarto dele numa salinha de espetáculo, que cabiam 40 pessoas. E lá eu ainda fiz alguns trabalhos com o Naum, e esse grupo. Eu conheci o Luís Antônio Martinez Corrêa, que é irmão do Zé Celso, quando eu estava trabalhando com o Naum nessa época lá na casinha da vila. E quando eu saí do grupo, depois de 5 anos, eu já estava com quase 20 anos, eu fui trabalhar com o Luís, no porão do Teatro Oficina. A gente escreveu um pequeno musical, que se chamava “Sipriana e Santa Lã”, em que ele trabalhava com uma turma bem jovem e eu entrei para trabalhar com ele para escrever a peça e fazer o cenário e o figurino desse trabalho, e acabei atuando como atriz. Nessa época, o Zé Celso chegou no Oficina com o Gracias Señor, de uma viagem que ele vinha fazendo pelo Nordeste. Quando ele chegou em São Paulo eu conheci o Zé Celso e o grupo Oficina. Aí o Zé convidou eu e o Luiz para gente integrar com o pessoal que fazia o Gracias Señor, que era o "anti teatro", era a "não atuação" - e foi uma escola incrível para mim. E eu estava começando a atuar e entrei num grupo doido, maluco, que fazia experimentações, que vinha do Living Theatre tb, de uma convivência com aquele grupo inglês, que eles faziam experiências "livéticas" para atuação também. Aí, depois de fazer o Gracias Señor, a gente subiu com "O casamento do Pequeno Burguês" e a nós estreiamos profissionalmente. Então eu já estreei profissionalmente com 20 anos como cenógrafa, figurinista e atriz. Porque nós montamos o Brecht - "O casamento do pequeno burguês"- ainda no porão e quando terminou "O Gracias Señor", que a polícia interditou, o Zé não tinha o que colocar e nós subimos com esse trabalho que a gente fazia no porão. Nosso grupo chamava "Pão e Circo". Então eu já estrei profissionalmente aos 20 anos com essas três funções: atriz, cenografa e figurinista. Porque o cenário e figurino eram meus, e aí nós ganhamos um prêmio de Revelação de Atriz e o Luiz de Revelação de Direção com esse trabalho. Nós ficamos só dois meses em cartaz no Oficina enquanto o Zé preparou "As três irmãs" e me convidou para fazer a Irina. Então para assim, foi um “mega” desafio, uma atriz que tinha acabado de estrear profissionalmente, eu vinha de um grupo de trabalho com o Naum muito irreverente, mas muito ligado à musical, às criações, às improvisações coletivas...e de repente eu me via diante de um texto, de um Tchekhov, com um grupo completamente alucinado, porque eu peguei o auge dessas 202

experimentações do Teatro Oficina. Se usava Mescalina para se trabalhar o Tchekhov. Era uma coisa muito louca. Foi uma época muito louca, muita irreverência na época, era uma época em que todo mundo usava muitos ácidos, e drogas e tudo. Então eu faço parte dessa geração, e nessa época no Oficina para fazer As Três Irmãs, para fazer a pesquisa e o aprofundamento do texto, todo mundo viajando de mescalina...para você ver a loucura que era. Então na verdade a gente mergulhava no personagem e era como se nós fôssemos verdadeiramente aqueles personagens. Foi uma experiência muito profunda, uma vivência...você pode imaginar...de uma profundidade impressionante...você pode calcular o que foi isso. E nós fizemos a temporada toda das "Três Irmãs". Duravam 6 horas esse espetáculo do Zé Celso. A gente fez essa temporada que durou 1 mês só - eu acho - e terminou no ano novo do dia 31 para o dia 01, com a saída do Borghi. Durante a peça houve um rompimento entre eles, e foi nessa noite de ano novo que eles se separaram. Então, quer dizer, para mim, foi uma experiência como atriz muito grande, porque o Zé, claro, um mestre, um diretor que já vinha de uma experiência incrível, com milhares de trabalho já com o Teatro Oficina. E nessa época, eu muito jovem, ele me proporcionou uma vivência muito incrível como atriz. Foi uma grande escola que eu tive em pouco tempo. Uma escola muito profunda, em muito pouco tempo.

Delduque -Foram quatro meses de processo de criação?

Prestes - É..mais ou menos...eu não me lembro exatamente quantos meses a gente ficou trabalhando para criar. Eu sei que a gente estreou em dezembro, final do ano.

Delduque - Você comentou dessa tensão, que o Borghi saiu. Eu até entrevistei o Borghi, ele me contou um pouco sobre isso. Me disse que era um ponto difícil de falar.

Prestes - Era um casamento artístico de anos, essa separação dos dois, foi uma coisa muito traumática para o grupo. Eu e o Luiz Antônio éramos os bebês do grupo, dois jovens que estavam ali, fazendo "As Três Irmãs", a gente não pertencia ao Oficina. Nosso grupo era o Pão e Circo. Então esse problema, esse rompimento traumático foi do grupo Oficina. Por um acaso do destino nós vivenciamos essa separação. Ainda viemos para o Rio de Janeiro fazer As Três Irmãs. Houveram algumas substituições no Rio de Janeiro, mas aqui no Rio de Janeiro a polícia interditou com menos de um mês de temporada. A gente um dia quando chegou lá no Teatro, as portas estavam lacradas e a gente estava impedido de fazer o espetáculo. Então aí terminou "As Três Irmãs". A minha história com "As Três Irmãs" acabou aí, porque o nosso grupo "Pão e Circo" foi convidado para representar o Brasil no Festival Mundial de Teatro em Nice em 1973. E aí nós remontamos o trabalho, e meu pai financiou essa viagem e nós fomos embora para Europa e ficamos por 4 meses percorrendo vários festivais de teatro com esse nosso trabalho. Então o meu primeiro contato com o Tchekhov foi esse contato muito profundo, nesse trabalho, muito irreverente, nessa experiência com o Teatro Oficina, com o Zé Celso.

Delduque -Para você, o texto "As Três Irmãs" fala do que?

Prestes - De vida e de trabalho. A Irina representa a juventude e além de tudo ela acredita no sonho e no trabalho. Eu hoje estou fazendo um espetáculo aqui no Rio chamado Nada. São textos do Tchekhov. É uma colagem de textos do Tchekhov, que o Gilberto guaoo dirigiu. Então, eu começo fazendo "Malefícios do Tabaco", e aí a gente entra no "O Canto do Cisne", que é a história do ponto e do velho ator. São duas atrizes, eu e a Clarice que fazemos os homens. Ela faz o ponto e eu faço o Vasiliet, que interpreta o "Malefícios do Tabaco". E 203

quando a gente entra no "O Canto dos Cisne", o Gilberto fez uma colagem. Como a Clarice fez "A Gaivota", o Gilberto fez "O Tio Vânia". Então a gente tem trechos de "As Três Irmãs", de "O Tio Vânia", do "O Jardim das Cerejeiras" e de "A Gaivota". Eles revivem cenas desses espetáculos durante uma madrugada que eles começam a beber e a falar de tempo, de velhice, de trabalho.

Delduque -E você chega a fazer algum trecho de "As Três Irmãs"?

Prestes - Eu falo. Mais pro final, quando a gente traz "As Três Irmãs", tem uma cena que eu falo, é o mesmo texto que eu falava na época do Oficina, quando eu fiz "As Três Irmãs", que é sobre o trabalho. E a gente transformou essa fala num blues. Então a gente faz cantando aquilo com a marcação de só estalando os dedos. E a gente termina o espetáculo com essa fala da Irina: "É preciso trabalhar. Somente trabalhar".

Delduque - Essa fala é muito bonita.

Prestes -É...que é o mote da Irina mesmo e é o que a gente acredita hoje, que a gente precisa trabalhar e muito. Só o trabalho é que realmente vai levar a gente a algum lugar.

Delduque -Quando você começou a estudar "As Três Irmãs", o que era mais difícil no trabalho de atriz? Os monólogos deviam ser bem desafiadores...

Prestes - O mais difícil e alguma coisa que eu aprendi com esse trabalho com o Zé, é a verdade. Qualquer que seja o texto que eu esteja falando, qualquer que seja a linha de encenação. Você pode estar fazendo Moliere, um Shakespeare ou um Tchekhov. é a verdade absoluta na hora que você está atuando. Então o que eu aprendi lá, foram exatamente os exercícios para trazer para o aqui e agora.

Delduque -Como eram esses exercícios? Você pode descrevê-los para mim?

Prestes - O exercício para você falar é você convencer o outro que você está falando a verdade. Você fala para mim uma coisa e eu vou te dizer: 'eu não acreditei no que você está falando.' Aí você vai falar de novo. Aí ele - o Zé Celso - me levou a uma exaustão numa madrugada, que eu me lembro muito bem disso porque ele falava: 'eu não estou acreditando, faz de novo''. E eu fiz zilhões de vezes até chegar a exaustão e a um choro profundo. Aí eu cheguei na verdade da Irina. Eu cheguei naquele momento da profundidade do que aquele texto precisava.

Delduque - Como era para recuperar isso depois na apresentação?

Prestes - Ah sim...isso aí a gente consegue depois para o resto da vida. Isso é um trabalho de você trazer pro chão o texto. E isso a gente até passa para alguns atores quando contracenam com a gente também, a gente fala: 'não gente, a voz está colocada num plano acima, eu não tô acreditando no que você está falando, pode baixar o tom, joga para o chão. Joga para o aqui e agora." Que às vezes você fala de uma maneira aqui em cima, poetizando, como eu tô falando agora... (nesse momento ela imita um tom mais agudo) assim você não acredita no que você está falando. Parece falso, completamente falso, e você tem que convencer o outro. Agora eu acreditei no que você está falando...agora eu acreditei nessa emoção. Você está chorando, isso 204

é verdade, isso é verdadeiro. Então esse tipo de trabalho eu aprendi nessa minha experiência com o Zé com "As Três Irmãs."

Delduque - Você acha que o uso da mescalina ajudava, por alargar a percepção?

Prestes - Para mim, foram as minhas primeiras experiências nesse sentido. Então é muito doido, né?! Porque você não pode pirar. Agora como faz se você está com todos os seus sentidos a mil. Porque ela abre todos os seus sentidos. A sua sensibilidade fica a flor da pele, você começa a ver além das coisas que estão a sua frente. Você fica horas olhando uma flor, horas olhando um arroz integral e aquele arroz se transforma em milhares de coisas. Agora, como não pirar? Eu não sei te explicar. Eu não sei como isso aconteceu, sinceramente. Porque teve algumas pessoas que não conseguiram e surtaram. É um tipo de experimentação muito perigosa essa. É muito radical. Na verdade você teria que estar com um psicanalista, um psiquiatra fazendo essas experiências, porque caso você vá num caminho, ele pode te colocar de volta. Porque às vezes tem caminhos que podem não ter volta. Depende de cada pessoa. Você não sabe se tem algum traço esquizofrênico? Se a pessoa tiver algum traço esquizofrênico, você toma um ácido, e ele pode deflagrar uma coisa que pode não ter volta. Então para a maioria dos atores que estavam lá...tinha por exemplo, a Maria Fernanda, ela não fazia com mescalina. Era uma parte do elenco, a maior parte do elenco que fazia. Uma parte que vinha do "Gracias Señor", e dessas experimentações com o Zé. Para mim foi assim: eu mergulhei realmente no universo da sensibilidade absoluta. Então quando a gente fez a primeira passada geral de "As Três Irmãs" nós fomos para uma praia deserta e fizemos uma mandala para pegar o amanhecer a Irina. Eu fiquei no centro dessa mandala, a gente acendeu uma fogueira e eu tinha um texto que eu evocava todas as entidades da natureza para que elas estivessem presentes enquanto a gente fosse fazer essa roda girar. E aí começou o nosso trabalho em "As Três Irmãs". A gente fez a roda todinha, levou o dia inteirinho. E foi muito louco, porque de repente eu vi o Renato Borghi chorando...ele chorou horas e horas e horas. Quer dizer, ele chegou no mais profundo do personagem. E é muito triste. Era um personagem muito triste, né?! Um personagem realmente muito triste. Então eu tenho lembranças, fragmentos desse nosso laboratório. Mas é uma coisa muito doida. É difícil da gente falar nisso hoje. Mas na época se fazia. Tinham uns grupos de teatro, fora do Brasil que faziam.

Delduque - É uma vivência, né?

Prestes - Exatamente, é uma vivência através de um personagem. Então você vai viver a vida daquele personagem. E é claro que você vai trazer coisas suas também. Porque quando vai interpretar um personagem ele se abre para trazer o personagem mas ele vai trazer de toda a experiência que ele teve, se qual a idade que ela tenha, ele vai interpretar o personagem com a sua bagagem. Você vai usar as suas coisas também para poder falar aquilo ali.

Delduque -Você se via um pouco identificada com a Irina em alguns pontos?

Prestes - Totalmente. Eu achava que eu era a Irina. Porque eu me via totalmente Irina. Eu era jovem, estava começando a trabalhar e o trabalho era tudo pra mim, era a minha crença. O meu sonho de ir para Moscou era real, eu queria ir para Moscou, sabe? Então eu me identifiquei totalmente com essa personagem.

Delduque - E essa profundidade toda que os laboratórios proporcionavam, depois, com o público, como era essa relação? O público percebia essa profundidade toda? 205

Prestes - Olha eu não sei te dizer como é que era para o público, porque a gente tomava a mescalina meia hora antes de entrar em cena para quando batesse ela a gente estava numa roda embaixo, dos camarins, quando batia, a gente entrava em cena e começava o relógio a tocar. O tempo começava a girar. E aí a gente fazia a peça. A Maria Fernanda falava que eu era a única atriz que fazia o texto como ele era. Ela ficava muito impressionada. Porque os outros às vezes davam umas piradas. Saíam às vezes um pouco do texto. Para te dizer bem a verdade, eu não me lembro muito, porque você está viajando, você está fazendo o personagem, em cena. Então essa foi uma experiência muito louca para mim. Você imagina né?! A gente ficava em cena 6 horas, praticamente em transe, contando essa história do Tchekhov. E vivendo aqueles personagens, e contando As Três Irmãs. Agora, as críticas foram maravilhosas.

Delduque - Sim, especialmente em relação ao seu trabalho e das duas outras atrizes que interpretaram as três irmãs.

Prestes - Então não era um bando de maluco que estava fazendo um monte de coisas que ninguém estava entendendo, não, a gente estava fazendo Tchekhov. Era uma coisa impressionante a gente ter esse domínio e estar sob ação da mescalina, e ter o texto todo na cabeça e fazer aquele personagem, e não sair fazendo uma baiana de repente, sei lá...podia acontecer né?! Ter um ataque de risos de repente?! Mas não acontecia.

Delduque -Algumas reportagens mencionam a existência de uma banda em cena...

Prestes - Eu lembro que tinha música, a gente cantava algumas coisas em cena. Tinha uns instrumentos de percussão, tinha um violão. Tinha, algumas coisas de música tinha sim.

Delduque - Você se lembra como era o cenário? Poderia descrever para mim?

Prestes - O cenário era muito simples: tinha uma mesa grande. Tinha um balanço, e o Zé se balançava nesse balanço. Tinha um sino enorme pendurado. Acho que basicamente era isso. Tinha uma mandala no chão de madeira, esse círculo de madeira. Era todo riscado, como foi a nossa pesquisa. E o cartaz da peça também era essa mandala, toda dividida em quadradinhos. E como se fossem os fragmentos desse tempo colocados numa hora, num relógio. Tinham uns outros elementos também. Eu me lembro que tinha um baú. Essa cena que eu fazia que eu chorei, que eu tinha chegar nesse momento para falar essa fala, era encostada num baúzão. Tinha uma bacia com água. Tinham alguns elementos a mais que entravam em cena. Tinham umas tochas de fogo.

Delduque - Mas não era nada realista.

Prestes - Não, não. Nada realista. Era aquela coisa bem ritualística. Era um ritual. Então esse Tchekhov que a gente faz hoje é totalmente contemporâneo. Esse "Nada" que a gente está fazendo, que a gente revisita vários textos dele. Duas atrizes vestidas de homem que se transformam em duas mulheres, e no final nós somos apenas dois seres humanos. É um trabalho muito irreverente e muito contemporâneo, esse que a gente faz agora de Tchekhov. É uma leitura muito bacana do Tchekhov.

Delduque - É bem diferente de "As Três Irmãs".

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Prestes - Totalmente diferente. É um formato pocket, então é um formato pequeno, com a plateia bem próxima da gente. A gente estreou no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, com a plateia bem próxima da gente. E agora a gente acabou de fazer em uma sala que cabem 40 pessoas. Mas nós também fizemos em Aracaju, num Festival, num palco italiano, para 400 pessoas e a peça funcionou totalmente. E o Tchekhov é uma coisa muito impressionante, que ele é muito atual. Não é à toa que agora a gente está em cartaz com vários textos do Tchekhov. Acabamos de estrear o Ivanov. E a Renata Sorah também está fazendo um trabalho do Tchekhov porque o que ele fala é muito atual. É uma coisa impressionante. Essas questões que ele levantou na época dele são questões que a gente ainda está se questionando e se perguntando. Isso é fabuloso, né?!

Delduque - Eu queria voltar um pouco no episódio da saída do Borghi. Você se lembra como foi?

Prestes - Sim.

Delduque - Quando eu o entrevistei, ele me contou que tinha uma parte do elenco que estava muito louca, que começou a sair muito do texto, prestes a fazer uma grande confusão: colocar fogo de verdade no teatro…

Prestes - É então...tinha uma parte do elenco que faziam coisas e piravam muito. Eu, a Kate e a Fernanda, a gente fazia "As Três Irmãs", como tinha que ser. Mas começou a acontecer isso e isso começou a irritar muito o Renato. Com razão. Poxa, você vem fazer um trabalho, aí de repente uma parte do elenco começa a ficar doidona e a inventar umas coisas em cena, de texto.

Delduque -E como foram as substituições depois?

Prestes - Quando chegou aqui no Rio teve o Aderbal que fez, o Márcio também fez aqui no Rio. Os dois que eu me lembro que entraram na peça foram eles.

Delduque - Agora falando mais do Tchekhov, você comentou a respeito da atualidade dele, que eu também concordo, seja em 72, seja agora ele permanece bem atual. Na sua opinião, quais são as questões mais fortes que você percebe na obra dele, e que o tornam tão contemporâneo?

Prestes - Eu acho que as questões são relacionadas à velhice, ele fala muito da velhice, do tempo. É uma questão com a idade, com o tempo, com o trabalho. Uma questão com a natureza também, porque desde essa época. Até no Ivanov ele também fala. A preocupação dele, a destruição das florestas. Os homens são responsáveis por isso né?! Já naquela época, imagina agora.. A questão do tempo, da angústia, do tempo que passa, e o que fazer com isso. Porque até no Ivanov, tem um personagem que se mata. E em A Gaivota também tem um personagem que se mata no final. E a coisa da esperança também, de ser uma gaivota, de você ir atrás dos sonhos, representar a vida através do sonhos, não do jeito que ela, nem de como deveria ser. E como a gaivota, de ir atrás dos sonhos, de acreditar neles. É uma fala linda da Nina na Gaivota. No Jardim das Cerejeiras também quando fala: 'a gente vai plantar um outro jardim mais bonito, e você vai ver e você vai voltar a sorrir." Quando ela fala também : "Eu não posso imaginar a minha vida sem esse jardim de cerejeiras, se tiver que ser vendido, que me vendam com ele." Tem outra também: "Você sabe onde está a verdade? Eu não. Olho e não vejo nada. Você encara os maiores problemas da vida com facilidade porque esses 207

problemas não te afetaram pessoalmente, não te feriram. Seus olhos estão tão jovens, tem pena de mim.' - um velho fala. Então, é lindo isso. Quando fala que os homens é que estão destruindo tudo. E daqui a pouco aqui na Terra não vai ter pureza, não vai ter fidelidade. Todo mundo tem um demônio dentro de si. Não tem piedade entre as pessoas, nem dos animais. Então são questões, é uma coisa que a gente fala com a maior verdade. E com a maior verdade a gente fala a fala da Irina também: 'Um dia virá e todos saberão o porque de tudo isso, porque tanto sofrimento, e não haverá mais mistério. Mas enquanto esperamos é preciso viver, é preciso trabalhar. Somente trabalhar. ' E depois quando a irmã fala: 'Minha querida irmã, nossa vida ainda não acabou. Viveremos! Se pudéssemos saber, se pudéssemos saber'’ Então é muito lindo isso, muito atual.

Delduque - Então essa experiência de "falar com verdade" que você pode aprender no trabalho com o Oficina, você acabou levando isso, ainda usa bastante?

Prestes - Eu uso em todas. É um exercício. O ator tem que convencer o outro sempre, sempre. Para mim isso é fundamental. Mesmo se eu estiver fazendo uma farsa eu tenho que convencer a pessoa de que o que eu estou falando é verdadeiro. Você tem que me convencer. Se você não convencer, você fala novamente: é mentira, eu não acredito. Fala de novo. Tem muito ator que às vezes tem dificuldade de jogar o texto no chão. Não é uma coisa fácil. Mas depois que você aprende isso, você sabe como é que você tem que se acionar para falar a verdade. O ator tem que ser verdadeiro. Ele não pode ser falso. Você tem que me convencer, tem que convencer o público.

Delduque - Eu acho que a geração de atores de agora, da qual eu faço parte, tem bastante dificuldade desse trabalho com o texto, porque veio todo um lance corporal e o uso da palavra parece que ficou um pouco deteriorado, tenho impressão que existe muito essa dificuldade.

Prestes - Agora com esse teatro pós-moderno, esse teatro confessional que a gente tem visto muito, tem muito isso, né?! O teatro confessional eu vou contar a minha história. Tem o Alan Sacó fazendo "A minha mãe" aqui no Rio, tem o Matheus Nachtergaele fazendo a partir da história da mãe que escrevia. A própria Estamira. É um tipo de atuação em que não existe a representação. Esse é um teatro totalmente verdadeiro, em que não existe a representação. É o aqui e agora. É um teatro que a gente representa. Por exemplo: eu estou fazendo um teatro, não sou eu, eu estou representando. Analu é uma mulher, não é um homem. Mas o que ele fala é completamente verdadeiro. Eu estou num tom de voz um pouco mais grave do que o meu, mas o que eu falo é totalmente verdadeiro. Mesmo eu fazendo um bufão. Porque no "Malefícios do Tabaco" eu faço ele um pouco bufão, a caracterização dele. Mas a verdade está ali presente, tem que estar. E tem um jovem ator que trabalha com a gente que fez as projeções, tudo...ele é jovem, tem 5 anos que ele começou a trabalhar, e o tempo com ele foi: 'joga pro chão'’ , 'fala a verdade Renato'’ , "Não está de verdade"”, "Bota energia", "emoção!". Aí tem ritmo, tem tudo isso, mas fala com verdade. "Você está recitando, você está poetizando, você está declamando."

Delduque -E nessa busca pela verdade, como metodologia, você chegou a trabalhar com alguns exercícios do Stanislavski?

Prestes - Olha eu não sei...o exercício é jogar a palavra pro chão. Quando você joga para baixo, não para cima...quando você fala para cima, você está falando aqui do alto, você está poetizando, você está declamando...você está num outro lugar. Se você joga ele para baixo, 208

para o chão, para terra, você está com o texto na terra, no aqui e agora, no hoje. Aqui. A gente faz uns exercícios assim : eu, meu nome, eu estou aqui e agora, que dia é hoje, aonde você está agora, tipo isso, entendeu? Mas é mesmo no texto você me convencer do que você está falando. E o Amir Haddad quando eu fiz "As Meninas" em vários momentos em que a gente resvalava, como não era uma coisa realista, a peça "As Meninas", da Maitê Proença, a gente às vezes ía para um lugar e ele o tempo todo puxava a gente para baixo. Traz o texto aqui para baixo. Não joga ele para cima que eu não estou acreditando em nada do que você está falando. Então é um exercício mesmo que a gente tem que fazer em todos os textos que a gente fala.

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Anexo 2 - Depoimento sobre Anton Tchekhov, concedido por Arman Saribekyan. Campinas, Junho de 2015.

Na minha opinião, Tchékhov é um dos autores mais montados e um dos menos compreendidos. Frequentemente suas peças são mal interpretadas, mal atuadas, e suas encenações recorrem ao folclore de uma Rússia imaginada ou a um “psicologismo” decadente. Muitas vezes, como citamos, esse problema está ligado a traduções de baixa qualidade que deixam de lado uma dimensão fundamental do texto. A linguagem do personagem é, em muitos casos, a “chave” para compreendê-lo, pois sua forma de falar o situa de antemão: sua classe social, seu nível cultural. Há nuances que escapam ao tradutor e que retiram o cômico tão presente em toda a sua obra e por isso, os personagens se tornam banais e seus propósitos também, consequentemente. O caráter de cada personagem também está implícito em seu nome – embora não sistematicamente. Podemos tomar a lista de personagens de “A Gaivota” como exemplo:

• Arcadina: seu nome indica que ela é estrangeira à sua sociedade, pois não é um nome de origem russa, e sim grega: Arcadia, país mítico, paradisíaco. É, portanto, alguém que busca a felicidade, mas em outro lugar, num paraíso perdido... Seu nome de casada é Treplev, que significa alguém que fala muito, que desperdiça seu potencial, que se gasta em palavras.

• Trigorin: significa três desgostos. Ou seja, desde o início, sem precisarmos escrever a gênese do personagem ou analisar seus subtextos, sabemos que ele vai magoar três pessoas: Nina, Arcadina e seu filho Treplev.

• Sórin: na etimologia da palavra: lixo. Aquele que suja, que gasta, que parasita....

Os personagens menos importantes ganham nomes comuns que denotam a falta de importância do mesmo no enredo ou simplesmente sua posição social, como:

• Iacov: um nome muito comum entre os camponeses.

• Shamrayev: é um nome que não é muito compreensível, o que revela o lado obscuro desse homem.

• Masha: o nome mais ordinário nessa cultura, ou seja, alguém que não tem uma individualidade muito desenvolvida, que não tem muitos interesses...

• Nina Zarechnaia: significa aquela que não deve nunca prometer nada. Ou seja, seu destino de personagem já está traçado, assim como na tragédia grega ou na Commedia dell’Arte. Como ela não consegue fugir, vai, inevitavelmente, ao seu encontro.

O que parece ser conceitual, para mim, é libertador. Conhecer a “cor” de um personagem como um Arlequim ou um Herói, um Anti-herói, nos retira o peso de uma análise que muito pouco serve à cena. Dessa maneira o corpo desse ser se exprime intensamente desde a sua primeira fala, está em ação desde o primeiro ato, e não precisa passar pelos entediantes momentos de nada, de vazio, de silêncios, de suspiros, para nos exprimir sua paixão e sua humanidade, de carne e osso.

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Anexo 3 – Dramaturgia O Drama e outros contos de Anton Tchekhov Campinas, 2015.

A dramaturgia da peça é baseada em quatro contos de Anton Tchekhov: O Drama, O Criminoso, A Pamonha e A Corista. A tradução e adaptação dramatúrgica foi feita por Arman Saribekyan e o grupo Os Geraldos.

Personagens

Carolina Delduque……. Kalafrishkina Pacha Júlia Cavalcanti……….. Patroa Sra. Kolpakov Lucas Gonzaga……….. Pável Vasilich Juiz Nicolai Kolpakov Maíra Hérissé…………. Dienis Grigóriev Sra. Júlia

O Drama (Música... Na sombra aparece Pavel Vasilich deitando no sofá para ler o jornal, acima dele aparece o título do conto. Pavel cai no sono. Entra Luka e tenta acordá-lo)

LUKA - Pavel Vasilich, tem uma senhora perguntando por você. Faz uma hora que espera. PAVEL - Que vá para o diabo! Diga que estou ocupado! LUKA - Esta é a quinta vez que ela vem. Assegura que precisa muito ver o senhor. Está quase chorando. PAVEL - Hum! Está bem. Peça que entre no escritório. KALAFRISHKINA - Naturalmente, não se lembra de mim. Eu... Eu tive o prazer de conhecê-lo na casa do Kruzky... Sou Kalafrishkina. PAVEL - Ah... hum... sente-se. Em que posso ser útil? KALAFRISHKINA (senta-se) - Veja bem, eu... eu... O senhor não se lembra de mim... Eu sou Kalafrishkina... Veja bem, sou grande admiradora de seu talento e leio sempre com grande prazer seus artigos... Não ache que é bajulação, Deus me livre! Só estou sendo justa... Sempre, sempre leio seus textos! Até certo ponto, não sou completamente alheia à profissão de autora. Claro que não ouso me chamar escritora, mas... Deixei minha gota de mel nessa colmeia... publiquei em diferentes momentos, três contos para crianças...

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O senhor não leu, naturalmente... Fiz muitas traduções... e... e meu falecido irmão escrevia no jornal “Dielo”. PAVEL - Sim... Mas... Como posso ser útil? KALAFRISHKINA - Veja bem... Eu conheço seu talento... E seus pontos de vista, Pavel Vasilich e eu queria sua opinião, não, melhor dizendo, pedir um conselho... Eu preciso te dizer, me desculpe pela expressão, que eu pari um drama, e, antes de enviá-lo à censura, queria saber sua opinião. PAVEL - Bom, deixe-o aqui... Eu o lerei. KALAFRISHKINA - Pavel Vasilich! Eu sei, o senhor está ocupado... Cada minuto é caro para o senhor. Eu sei que o senhor internamente me manda para os diabos, mas... seja bom, me deixe ler para o senhor meu drama agora... Seja gentil! PAVEL - Tenho grande prazer... Mas, senhora, eu... Eu estou ocupado... Eu... Eu tenho que partir. KALAFRISHKINA - Pavel Vasilich! Peço-lhe um sacrifício! Sou impertinente, sou entediante, mas seja generoso! Amanhã eu vou para Kazan, e eu queria saber sua opinião hoje. Ofereça-me meia hora da sua atenção... Somente meia hora! Suplico-lhe! PAVEL - Bom, por favor... Eu escutarei... Posso por meia hora… KALAFRISHKINA (dá um grito) - Meia hora, querido Pavel Vasilich! Somente meia hora! Drama em cinco atos com prólogo e epílogo. Sobre quem cantavam os rouxinóis. Dramatis Personae: Refluxigin – proprietário, 60 anos com opiniões conservadoras - uma pessoa importante. Irmã dele, Concórdia Ivanovina– 65 anos, com traços de beleza do passado, maneiras aristocráticas – bebe vodca. Filha dele, Senhorita Ana – 35 anos, uma moça pura e isso a obriga a sofrer profundamente. Valentin – estudante, 40 anos, nobre, ajuda gratuitamente seu pai doente. Zigzagoviski – proprietário rico, perverso – produto de seu tempo. Pertukarski – 65 anos, telegrafista - filho bastardo. Kutikin – Juiz, escroto, mas uma pessoa direita. Hidropsine – negociante, manca na perna esquerda – não aparece no palco. Princesa Pronskaya (vírgula) – 75 anos – gatuna. Criado Silvester Arrumadeira Fábia Os empregados velhos - têm relações íntimas PAVEL (à parte, enquanto Kalafishkina segue lendo) - Que diabo te trouxe aqui... KALAFRISHKINA - Bafúrin – coronel aposentado, foi mordido por um cachorro raivoso – não aparece no palco. PAVEL - Como se eu precisasse escutar sua bobagem! ... Que culpa tenho eu de que você escreveu um drama? KALAFRISHKINA -Barão von Shputzel – velho solteiro – tem uma filha idosa Filha dele -Encalheia, 50 anos, com traços de beleza do passado. Vestida com espartilho de seda justo. Camponeses e camponesas. Cena 1 - Uma sala luxuosa, na casa de Refluxigen. Móveis antigos caros. À esquerda portas, à direita portas. Nas paredes estão pendurados porta retratos dos ancestrais. Em vasos de cristal flores de outono murcham. O criado e a criada estão arrumando a sala luxuosa. Criado – O patrão está muito bravo com a senhorita Ana. Ele nem desceu pra almoçar ontem, está muito ressentido com a senhorita Ana. Porque a senhorita gastou todo o dote dela na construção da escola e do hospital da vila. (O criado saí xingando) Fábia(sozinha) – É maravilhoso as pessoas poderem estudar todas as matérias. É verdade o que dizem, que o conhecimento é a luz e a ignorância a treva. Pausa. 212

PAVEL (à parte) - Senhor que caderno grosso! Que punição! KALAFRISHKINA - Entra Ana, está pálida e linda. Ana – Fábia, me dá umas gotas valeriana, não dormi a noite inteira. Pausa. PAVEL - Minha esposa me encarregou de comprar e levar para a casa de veraneio cinco metros de barrado, um quilo de queijo e limpa dentes. KALAFRISHKINA - CENA 7 - Ana (sozinha) – Ana, pensei a noite toda em Valentin – como ele é nobre. Filho de um preceptor pobre, ele ajuda totalmente de graça seu pai doente. Mas ele poderia fazer uma carreira brilhante. CENA 9 - (Pausa) Entra Fábia, ela está pálida, grita: Fabia – Senhorita, senhorita! Alguém chegou! PAVEL - Como fazer para não perder a mostra do barrado? KALAFRISHKINA – Onde Está? PAVEL - Onde eu coloquei? KALAFRISHKINA – Cadê? PAVEL - Parece que foi na jaqueta azul... KALAFRISHKINA - Ana (empalidecendo) – Ele! É ele! Peça que entre! CENA 10 - Entra Valentin. Valentin está pálido. Valentin – A senhorita me chamou? Porque? Ana (à parte) – como ele empalideceu! Nós precisamos nos entender. Onde está a felicidade que o senhor me prometeu? (Kalafrishkina chora. Para Pavel) Desculpe Pavel Vasilish, esse momento é um depoimento pessoal: autobiográfico. Oh, Deus! CENA 12 - (Pausa) Valentin (empalidecendo) – eu não consigo pensar racionalmente. Eu não tenho objetivos na vida. Dúvidas, insegurança nas minhas próprias forças tiram a tranquilidade de minha alma. Cadê? Onde está o meu credo? Mesmo assim é preciso lutar: pelos ideais luminosos, pelo futuro luminoso. As relações pessoais pesam como um fardo enorme nos meus ombros caídos. PAVEL (olhando para o porta retrato sobre a escrivaninha) - Ah! Moscas desprezíveis conseguiram manchar reticências no retrato da minha esposa. Terei que falar para Olga limpar o vidro... KALAFRISHKINA - Valentin (empalideceu). Ana (empalideceu) – Eu o amo! Eu o amo mais que a vida! Barão von Shputzel – Senhorita Ana, a senhorita esquece que assim mata seu pai! Ana (olha pra Valentin)– Como ele empalideceu! Valentin (empalidecendo) – Eu não posso pensar racionalmente, eu não tenho objetivo de vida. Dúvidas, insegurança nas minhas próprias forças, tiram a tranquilidade de minha alma. Cadê? Onde está o meu credo? PAVEL (olhando para o livro) - Ela está lendo a cena 12, quer dizer que logo deve ser o final do primeiro ato. Realmente neste calor e com tal corpulência que essa carcaça tem, é possível ter uma inspiração? KALAFRISHKINA - Pavel Vasilich, o senhor não acha que esse monólogo é um pouco longo? PAVEL (desconcertado)- Não, não, nem um pouco… É muito bonito… KALAFRISHKINA - Oh, como o senhor é gentil, como estou feliz! Obrigada! Ana (olha pra Valentin com os olhos apaixonados) Valentin (empalidecendo) – sim, mas assim nossas relações não podem... (Kalafrishkina chora) – desculpe-me Pavel Vasilich esse também é um depoimento pessoal, um momento autobiográfico. (chora) 213

Ana (ela empalideceu) – A psicanálise te consumiu. Você parou muito cedo de seguir seu coração e tem muita confiança na razão. Valentin (empalidecendo) – O que é coração? É um conceito anatômico. Como termo convencional para designar sentimentos eu não o aceito. (Valentin ri sarcasticamente - hahaha). PAVEL - Ao invés de escrever dramas deveria comer gaspacho e dormir no porão... KALAFRISHKINA - Ana (empalideceu e ficou confusa) – E o amor, será que ele é também um produto das associações de ideias? (Entra Valentin.) Ana (empalideceu) - Me diga francamente: você já amou alguma vez? Valentin (com amargura) – Não vamos tocar as feridas antigas ainda não cicatrizadas. (Pausa) Ana (empalideceu) – Onde está a felicidade que o senhor me prometeu? Valentin - O que pensas? Ana – Me parece que você é infeliz. (Kalafrishkina chora) – desculpe-me Pavel Vasilich são sempre os momentos autobiográficos. (chora) CENA 17 - (Entra Silvester) Silvester - Como ele é nobre: Filho de um preceptor pobre, ele ajuda totalmente de graça seu pai doente. Mas poderia fazer uma carreira brilhante. (entra Fábia, está pálida) Fábia – Senhorita, senhorita, alguém chegou. Ana (empalideceu) – Ele, é ele. Peça que entre rápido. Prendam-me, eu sou dele! Silvester – Eles estão juntos de novo. Ah, vai ser um desastre! Ela dispensou seu noivo bonito, jovem oficial! Desperdiçou Vanlharlharski! PAVEL - Cena 17... quando é o final? Meu Deus! Se esse sofrimento continuar mais 10 minutos eu vou gritar socorro... Insuportável! KALAFRISHKINA – Cortina. (Pavel aplaude e Kalafrishkina recomeça a leitura imediatamente) KALAFRISHKINA – ATO 2: A cena apresenta a rua de uma vila, à direita uma escola, à esquerda um hospital. Na escadaria do hospital estão sentados camponeses e camponesas. Eles estão cantando: (Kalafrishkina canta “Kalinka”) PAVEL (interrompendo o canto de Kalafrishkina) - Desculpe... quantos atos são? KALAFRISHKINA - Cinco! CENA 1 Valentin (ele está pálido) – A senhorita me chamou? Por quê? (para Ana) Não me faça explicar as causas. Ana – Você não pode partir! Valentin (segurando Ana nos braços) – Você me fez renascer, me indicou o objetivo da vida! Você me renovou como a chuva da primavera renova a terra acordada. Mas... é tarde, é tarde! Meu peito está corroído por uma doença incurável. (Valentin chora. Ana chora.) PAVEL - Esqueci de tomar o bicarbonato - o que era mesmo? Sim, o bicarbonato... eu tenho provavelmente catarro no estômago… KALAFRISHKINA - Fábia (sozinha) – Que bom quando a gente estuda todas as matérias. CENA 11 Mesmos, Barão Von Shputzel , Policial com as testemunhas. PAVEL - Incrível: Smirnovisk entorna vodka o dia inteiro e ele ainda não tem catarro... KALAFRISHKINA - Valentin (empalideceu) –Prendam-me! Ana – Eu sou dele. Prendam a mim também! Eu o amo, eu o amo mais que a vida! 214

Barão Von Shputzel – Senhorita Ana, a Senhorita esquece que assim mata o seu pai. Ana – Eu o amo, amo mais que a vida! Policial e testemunhas prendem Valentim que em vão tenta se libertar dos braços persistentes dos oficiais de justiça. Valentim – Deixem-me! Ana – Prendam-me! Valentim – Deixem-me! Ana – Deixem-no! Valentim – Não força que possa nos separar. Da janela da escola está olhando Valentin. Vê-se ao fundo da cena camponeses que levam seus pertences à taverna para trocar por uma vodka. PAVEL - Um pássaro se sentou na janela... KALAFRISHKINA - Valentim - (Ele empalideceu) Deixe-me partir. Ana (ela empalideceu) Princesa Prunska – O que vocês estão fazendo? PAVEL - Um Pardal... KALAFRISHKINA - Valentim – Ela me inspirou um grande e eterno amor, ela me inspirou uma felicidade inalterável. CENA 12 Entra Princesa Prunska vírgula! Princesa Prunska – O que acontece aqui? (Pavel começa a levantar com cara de louco, e coloca a mão no pesado porta retratos da escrivaninha) KALAFRISHKINA - Barão Von Shputzel – Senhorita Ana, o que está fazendo com seu pai ancião. Assim a Senhorita vai matá-lo! Assim a senhorita me mata! Me mata! (Black out. Barulho de batida. Quando volta a luz Pavel está com o porta retrato levantado em suas mãos. Kalafrishkina está morta. Já estão em cena Semion e a JUIZ.) PAVEL (para JUIZ) – Prendam-me, eu a matei! (Semion retira o corpo de Kalafrishkina junto com seus pertences. Pavel posiciona sua cadeira para o “julgamento”. A JUIZ organiza sua escrivaninha e profere a sentença.) JUIZ - O júri o absolveu. (Pavel não entende e senta na cadeira. A JUIZ indica a porta para ele e os dois saem juntos.)

O Criminoso (Entra música. Aparece na sombra o título do conto. Abaixo, na sombra vemos Semion bater em Dienis Grigóriev, a sombra desaparece e Dienis é empurrado pra dentro da cena.) DIENIS(olhando para o escritório e descobrindo seus objetos) – Que isso? (olha pra outra coisa) Que isso? (descobre a xícara em cima da escrivaninha e cheira o que tem dentro. Depois coloca o dedo dentro e prova o líquido) Que isso, meu? (Bebe o líquido da xícara) Que isso? (Coloca a xícara sobre o pires e a JUIZ entra na sala. Os dois se entreolham, Dienis a cumprimenta. Ela senta na escrivaninha e ele começa a se dirigir para a saída da sala.) JUIZ - Dienis Grigóriev! DIENIS(parando) – Oi. JUIZ - Chegue-se mais perto (Dienis se aproxima) e responda às minhas perguntas. No dia 07 de Julho do corrente ano, o guarda ferroviário Ivan Akinfov, percorrendo os trilhos pela manhã, no Km 141, surpreendeu você, ocupado em desatarraxar uma porca, cuja função é ligar o trilho aos dormentes. Aqui está a porca. Quando ele o prendeu, você estava na posse dela. Está certo? 215

DIENIS – Hein? JUIZ – Tudo aconteceu conforme relatou Akínfov? DIENIS – Sim, foi. JUIZ – Está bem. Mas para quê estava desatarraxando a porca? DIENIS – Hein? JUIZ – Deixe de lado esses “heins” e responda à minha pergunta: para que você estava desatarraxando a porca? DIENIS – Se não precisasse dela não ia desatarraxar. JUIZ – Mas, para que precisou dessa porca? DIENIS – A porca? Com essas porcas nós fazemos pesos. JUIZ – Quem são esses nós? DIENIS – Nós, o povo... A gente de Klimov, quer dizer. JUIZ – Escute irmão, não se finja de idiota e responda-me com jeito. Não precisa mentir sobre aqueles pesos! DIENIS – Nunca menti na vida, ia mentir agora? A senhora acha que dá pra passar sem um peso? Diz que estou mentindo... Pra que diabo serve a minhoca se ficar boiando em cima? A carpa, o piquê e o leporino ficam sempre no fundo. Se por exemplo tivesse um peixe que nadasse por cima, como o barbo, ele poderia comer... Mas em nosso rio não existe barbo... Esse peixe gosta de espaço. JUIZ – Para que me conta essa história de barbo? DIENIS – Hein? Mas, a senhora que perguntou! Lá onde eu moro até os senhores pescam como eu falei. Até os meninos não vão pescar sem um peso. Claro que alguém que não entende pode ir pescar sem peso nenhum, mas isso é coisa de burro. JUIZ – Então você diz que desatarraxou essa porca para fazer dela um peso? DIENIS – É, não ia brincar com ela! JUIZ – Mas, para fazer pesos, você podia apanhar um pouco de chumbo, uma bala... um prego qualquer. DIENIS – Chumbo a gente não encontra jogado na estrada, é preciso comprar e prego não serve. Não se pode achar nada melhor que uma porca... É pesada e tem um buraco no meio. JUIZ – Está se fingindo de tolo! Como se tivesse nascido ontem ou caído do céu. Será que você não compreende, cabeça de imbecil, em que resulta esse negócio de desatarraxar porcas? Se o guarda não tivesse vigiado direito, um trem poderia ter saído dos trilhos, haveria gente morta! Você teria matado pessoas. DIENIS – Deus me livre, Senhora! Para que matar! Acha que não somos batizados que somos criminosos? Graças a Deus, meu bom senhor, sou de bem, já vivi bastante e nunca nem pensei em matar... Deus nos livre e guarde, Virgem Santíssima... Que diz? JUIZ - E segundo você, porque acha que acontecem desastres de trem? Desatarraxe duas ou três porcas e terá um desastre! DIENIS - Ora! Faz tantos anos, toda a aldeia desatarraxa porcas e, Deus me livre... Agora vem dizer que pode dar desastre... Matar gente... Se eu levasse embora um trilho ou, sei lá, por exemplo, punha um tronco de árvore atravessado nessa linha, aí então pode ser que atrapalhe o trem, mas assim... vixe! Uma porca! JUIZ - Mas, entenda isso aqui: as porcas servem para ligar o trilho aos dormentes! DIENIS - Isso a gente entende... A gente não desatarraxa todas as porcas... Deixamos algumas... Não fazemos as coisas sem pensar... A gente entende... JUIZ - No ano passado, um trem descarrilou no mesmo lugar – diz o juiz. – Agora se compreende porque foi... DIENIS - Não entendi senhor. JUIZ - Eu disse que se compreende agora o motivo por que, no ano passado, descarrilou um trem no mesmo lugar... Agora compreendo! 216

DIENIS - Para isso os senhores são instruídos, para compreender as coisas, nossos benfeitores... Deus sabia a quem dar a inteligência... A senhora julgou direito como sucederam as coisas, mas o guarda é camponês como a gente, não tem qualquer inteligência. Sem mais nem menos, me agarrou pelo cangote e me arrastou.... Antes, é preciso pensar e depois arrastar! Não é à toa que se diz: “Porque ele é um camponês, tem cabeça de camponês...”. Anote também senhora, que ele deu dois socos na minha cara e um no meu peito. JUIZ - Durante busca em sua casa encontrou-se mais uma porca... Em que lugar e quando você desatarraxou esta outra? DIENIS – Ah, tá falando daquela porca que estava debaixo do bauzinho vermelho? JUIZ - Não sei onde ela estava guardada, mas sei que foi encontrada. Quando foi que você a desatarraxou? DIENIS - Essa não foi eu, não, quem me deu foi Ignacha, filho de Siemion - torto. Tô falando daquela que deixe debaixo do bauzinho, mas aquela que estava no quintal, dentro de um trenó, foi com Mitrofan que eu desatarraxei. JUIZ - Qual Mitrofan? DIENIS - Mitrofan Pietróv... Não ouviu falar dele? Faz redes e vende para os senhores. Ele precisa de muitas daquelas porcas. Cada rede vai umas dez... JUIZ - Escuta... (Pega o código penal e lê para Dienis) O artigo 1081 do Código Penal diz que, em caso de estrago premeditado de estrada de ferro, quando tal estrago possa acarretar dano ao tráfego, e se o culpado sabia que em resultado se seu ato poderia acontecer um desastre... se o culpado sabia... Está compreendendo? Sabia! E você não podia deixar de saber que resultados traz essa história de desatarraxar porcas... O culpado deve ser condenado a degredo, com trabalhos forçados. DIENIS - A senhora sabe melhor, com certeza... Somos gente ignorante... a gente não entende essas coisas. JUIZ - Você compreende tudo! Está mentindo, é fingimento! DIENIS - Para que mentir? A senhora pode perguntar aos outros no campo, se não acredita...Sem peso, só se pode apanhar chorão, que é pior que leporino, e este mesmo não se pode apanhar sem peso. JUIZ - Agora você vai me falar de novo naquele barbo? DIENIS - Barbo não existe aqui... Se a gente solta o anzol sem peso, à flor da água, com uma borboleta como isca, apanha-se bagrinho e, mesmo assim, só de vez em quando. JUIZ - Agora, fica quieto... DIENIS - Posso ir? JUIZ - Não. Tenho que deixar você sob vigilância e mandar para a prisão. DIENIS - Como assim, para a prisão? Senhora, não tenho tempo agora, preciso ir pra feira. Tenho que receber de Iegor três rublos pelo toucinho... JUIZ - Fique quieto, não me atrapalhe. DIENIS - Para a prisão... Se fosse por alguma razão, eu ia sem reclamar, mas foi assim... sem mais nem menos... Por que? Parece que não roubei, não bati em ninguém... Mas, se a senhora tem dúvidas sobre meu lançamento de imposto não acredite naquele funcionário... Pergunte melhor ao coletor... Aquele funcionário não tem alma de cristão... JUIZ - Fique quieto! DIENIS - Estou quieto... Mas, que o funcionário mentiu quanto àqueles lançamentos, posso até prestar juramento... Somos três irmãos: Kuzmá Grigóriev, Iegor Grigóriev e eu, Dienis Grigóriev... JUIZ - Você está me atrapalhando... Ei, Siemion! (entra Siemion) Leve-o embora! DIENIS - Somos três irmãos (Dienis fala enquanto Siemion leva-o para fora da sala.) 217

Um irmão não deve responder pelo outro... Kuzmá não paga impostos e você, Dienis, é que deve responder... Juízes! Morreu o falecido patrão-general, que descanse em paz, senão ele ia mostrar uma coisa a vocês, juízes... É preciso saber julgar e não assim, sem mais nem menos... Que se mande bater vá lá, mas que seja por um motivo justo... (A JUIZ finaliza o processo, enquanto entra a música. A JUIZ sai de cena. Entra a patroa e começa a organizar a escrivaninha. Entra Peter e posiciona os móveis e objetos junto com a patroa, quando Peter está saindo a Patroa se dirige a ele. Sai música.) PATROA (para Peter) - Mande chamar no meu escritório a governanta dos meus filhos, senhorita Júlia.

A Pamonha

PATROA - Precisamos acertar as contas. (Entra música. Senhorita Júlia aparece na sombra. Acima dela aparece o título do conto. Vemos que ela exita em entrar no escritório, anda de um lado pro outro, reza. A patroa, escutando ruídos do lado de fora também caminha de um lado para o outro, fazendo um jogo com a porta. Quando a senhorita Júlia se ajoelha, a patroa abre a porta e a pega em flagrante. A senhorita Júlia aprece na porta sem jeito. Segura a porta para a patroa. A patroa se dirige à escrivaninha. Enquanto isso a senhorita Júlia começa a arrumar a barra das cortinas – que servem de portas) PATROA (para senhorita Júlia) - Sente-se. (senhorita Júlia por um impulso senta-se no chão) Senhorita Júlia! (Ela se assusta, se levanta e senta na cadeira.) Vamos acertar nossas contas. Provavelmente, está precisando de dinheiro e a senhorita é tão cerimoniosa que não pede sozinha... Então... Nós combinamos que seriam trinta rublos por mês... SRTA JÚLIA - Quarenta? PATROA - Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta rublos às governantas... Bem, a senhorita ficou aqui durante dois meses... SRTA JÚLIA - Dois meses e cinco dias... PATROA - Dois meses exatos... Tenho aqui anotado. Portanto a senhorita tem a receber sessenta rublos... Descontando nove domingos... Pois a senhorita não estudou com Kólia aos domingos, somente passearam... E mais três feriados... Três feriados... Quer dizer que temos a descontar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aula... A senhorita estudou só com Vária... Três dias, a senhorita teve dor de dente e meu marido permitiu que não desse as aulas da tarde. Doze e sete são dezenove. Descontando... Ficam... Hum... Quarenta e um rublos... Certo? Na véspera do Ano Novo a senhorita quebrou uma xícara de chá com um pires. São menos dois rublos... A xícara é mais cara, era herança de família, mas... vá lá, Deus que a perdoe! Não vamos fazer questão disso! Depois, devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou o paletozinho... São menos dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou as botinhas de Vária. A senhora deve cuidar de tudo. É para isso que recebe salário. Então, assim, menos outros cinco... No dia dez de janeiro, a senhorita pegou adiantado de mim dez rublos... SRTA JÚLIA - Eu não peguei! PATROA (mostrando o caderno para a senhorita) - Mas, eu tenho anotado aqui! SRTA JÚLIA - Então tá... está bem. PATROA - De quarenta e um vamos subtrair 27, restam quatorze... SRTA JÚLIA - Eu peguei só uma vez. Peguei três rublos com seu marido... Não peguei mais... 218

PATROA - É mesmo? Ora, isso não está anotado! Menos três de quatorze, sobram onze... (a patroa pega a carteira na gaveta da escrivaninha e pega o dinheiro.) Aqui está seu dinheiro, querida! Cinco, cinco e um...Queira receber! SRTA JÚLIA - Merci. PATROA - Mas, por que merci? SRTA JÚLIA - Pelo dinheiro... PATROA - Mas, eu a roubei, diabos, eu a assaltei! Eu a usurpei! Por que merci? SRTA JÚLIA - Em outras casas, cheguei a não receber... PATROA - Não recebeu! Não é de se estranhar! (arranca o dinheiro da mão da senhorita e joga na gaveta) Eu estava brincando com a senhorita! Estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os seus oitenta rublos! (pega o envelope na gaveta) Estão aqui preparados, neste envelope! (entrega o envelope) SRTA JÚLIA – Merci. PATROA - Mas, é possível ser assim tão palerma? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que é possível nesse mundo não ser audacioso? É possível ser tão pamonha? (Senhorita Júlia vai se retirar, quando está quase saindo a patroa lhe chama.) PATROA – Senhorita Júlia, desculpe. SRTA JÚLIA – Merci. (sai) PATROA (organizando sua escrivaninha) –Como é fácil ser poderoso nesse mundo! (Inicia a música do próximo conto, Peter entra em cena e ajuda a patroa a modificar o cenário. Depois do cenário pronto ambos saem de cena)

A Corista

(Na sombra aparece o título do conto. O título sai e na sombra, atrás da cortina, vê-se Pacha e Nicolai Kolpakov no sofá, a música mecânica começa a sair e transita para música tocada no violão por Kolpakov. Pacha canta desafinada tentando seduzi-lo. Ele canta afinado tentando corrigi-la, ela continua desafinada, ele para de tocar. A campainha toca, Nicolai se assusta) PACHA: Deve ser o carteiro ou, talvez, uma amiga. (Ele se esconde e ela sai da sombra. Sombra desaparece. Pacha entra em cena colocando o robe sobre a camisola e abre a cortina lateral cantarolando. Entra uma dama toda vestida de preto sem falar nada e atravessa a cena até sentar na cadeira.) PACHA: Que deseja? DAMA: Meu marido está aqui? PACHA: Que marido? Que marido? DAMA: O meu marido... Nikolai Kolpakov. PACHA: Nã...ão, senhora... Eu... eu não conheço nenhum marido. DAMA: Então, a senhorita diz que ele não está aqui? PACHA: Eu... eu não sei sobre quem está perguntando. DAMA: Sórdida, covarde, nojenta… Sim, sim a senhorita é sórdida. Estou muito, muito feliz de finalmente poder lhe exprimir isso! DAMA: Onde está meu marido? Aliás, se ele está aqui ou não é indiferente para mim, mas devo dizer-lhe que foi descoberto um desfalque e Nikolai Kolpakov está sendo procurado... Querem prendê-lo. Eis o que a senhorita fez! Hoje mesmo ele será encontrado e preso. Eu sei quem o levou a este horror. Sórdida, nojenta! Repugnante, vendida criatura! Sou impotente… escute-me, baixa mulher!... Sou impotente, a senhorita é mais forte do que eu, mas há quem me defenda e a meus filhos! Deus está vendo tudo! Ele é justo! Ele há de cobrar cada uma das 219

minhas lágrimas e todas as minhas noites de insônia! Chegará o dia em que há de se lembrar de mim! PACHA: Eu, senhora, eu não sei de nada. DAMA: Mente! Sei de tudo! Há muito que a conheço! Sei que, neste último mês, ele passa o tempo todo na sua casa! PACHA: Sim. E o que é tem? O que é que tem isso? Recebo muitas visitas na minha casa, mas não obrigo ninguém. Todo mundo é livre. DAMA: Estou lhe dizendo: foi descoberto um desfalque! Ele gastou fundos da repartição! Por causa de uma... como a senhorita... por sua causa, ele cometeu um crime. Ouça, a senhorita não pode ter princípios, vive unicamente para fazer o mal, este é o seu objetivo, mas não se pode pensar que tenha caído a tal ponto, que não lhe tenha ficado sequer um vestígio de sentimento humano! Ele tem mulher, filhos... Se for condenado ao degredo, vou morrer de fome, juntamente com as crianças... Compreenda isso! No entanto, há um meio de salvá-lo, bem como a nós, da miséria e da vergonha. Se eu depositar hoje novecentos rublos, vão deixá- lo em paz. Apenas novecentos rublos! PACHA: Que novecentos rublos? Eu... eu não sei... Eu não peguei... DAMA: Não estou lhe pedindo novecentos rublos... A senhorita não tem dinheiro e eu não preciso de nada do que é seu. Peço-lhe outra coisa... Geralmente, os homens presenteiam aquelas como a senhorita com objetos preciosos. Devolva-me os objetos que meu marido lhe deu! PACHA: Minha senhora, ele nunca me deu nenhum objeto. DAMA: Mas, onde está o dinheiro? Ele gastou o que era dele, o meu e ainda o alheio... Onde foi parar tudo isso? Ouça-me, eu lhe peço! Eu estava indignada e disse-lhe muitas coisas desagradáveis, mas estou pedindo desculpas. Deve odiar-me, eu sei, mas, se é capaz de compaixão, procure colocar-se na minha situação! Suplico-lhe, devolva-me os objetos! PACHA: Hum... Eu faria isso com prazer, mas, que Deus me castigue, ele nunca me deu nada. Acredite na minha consciência. Aliás, a senhora tem razão, certa vez, ele me trouxe duas coisinhas. Olhe, vou lhe devolver se quiser… (retira um bracelete e um anel da caixinha de jóias dentro da gaveta da mesa e coloca sobre a mesa) olhe! DAMA: O que é que está me dando? Não lhe peço esmola, mas aquilo que não lhe pertence... aquilo que você, aproveitando-se da sua situação, extorquiu de meu marido... este homem fraco e infeliz... Quinta-feira, quando eu a vi no cais, em companhia de meu marido, você estava usando broches e braceletes caros. Então, não represente para mim o papel do cordeirinho inocente! Pergunto-lhe pela última vez: vai me entregar os objetos ou não? PACHA: Meu Deus! Como a senhora é estranha… Asseguro-lhe não ganhei nada de Nikolai além desse bracelete e desse anelzinho. Ele trazia-me apenas docinhos. DAMA: Docinhos... Em casa as crianças não têm o que comer e aqui tem docinhos. A senhorita, definitivamente, se recusa a devolver-me os objetos? Que fazer agora? Se eu não arranjar os novecentos rublos, ele estará perdido, e também eu com as crianças. Matar esta infame (senta-se desabada na cadeira) ou ajoelhar-me diante dela? (Vira-se para Pacha e pega em suas mãos) Eu lhe peço! Você arruinou e desgraçou meu marido, salve-o agora... Não tem por ele compaixão, mas as crianças... as crianças... de que é que as crianças são culpadas? PACHA: Mas, que posso fazer? A senhora diz que eu sou uma mulher infame e que arruinei Nikolai, mas eu estou lhe falando como se estivesse diante do próprio Deus... Asseguro-lhe que não tirei dele nenhum proveito… Em nosso coro, somente a Mótia tem um amante rico, as outras todas passam miséria. Nikolai é um senhor instruído e delicado, por isso eu o recebia. Nós não podemos deixar de receber as pessoas. 220

DAMA: Eu peço os objetos! Dê-me os objetos! Estou chorando... me rebaixando... Olhe, vou me ajoelhar! Olhe! (Vai se ajoelhar no colo de Pacha. Pacha de sobressalto a levanta e a senta novamente na cadeira) PACHA: Está bem, vou entregar-lhe os objetos. Olhe, mas eles não são de Nikolai... Recebi- os de outros visitantes. (Pega a caixinha de jóias na gaveta e começa a retirar as joais, colocando-as sobre a mesa para a dama) Como queira...Tome-os, se quiser, mas saiba que não tirei qualquer proveito de seu marido. (A dama abre a bolsa, retira o lenço e começa a pegar as jóias e colocar no lenço) Pegue, fique rica! Mas, já que a senhora é nobre... uma esposa legítima, deveria mantê-lo perto de si. Não o chamei a minha casa, ele veio sozinho... DAMA: Não é tudo... Isso não dá nem quinhentos rublos. PACHA:(Pacha retira ainda uma cigarreira e um relógio de ouro da gaveta e entrega para a dama) Mas, não me resta mais nada... Nem que me reviste! (A Dama sai. Nicolai Kolpakov espia pela brecha da porta que vem do fundo para a cena, quando vê que sua mulher não está estra em cena aliviado e se senta para tomar o vinho que está na mesa) PACHA: Que objetos o senhor me trouxe? Quando foi? Permita que lhe pergunte? NIKOLAI: Que bobagem! Objetos! Meu Deus! Ela chorou na sua frente, rebaixou-se. (Bebe vinho) PACHA: Estou lhe perguntando: que objetos o senhor me trouxe? (joga sua tiara de cabelo nele) NIKOLAI: (Ele para de beber e afasta a taça. Pega o paletó e começa a se vestir)Meu Deus, ela é direita, orgulhosa, pura… E ainda quis se ajoelhar diante... desta rapariga! (Pacha vai pra cima dele para batê-lo. Ele a imobiliza, segurando seus braços) E fui eu que a levei a esse ponto! Eu que permiti! Não, nunca vou me perdoar por isso! Não vou me perdoar! Vai embora...imunda! (Empurra Pacha no chão) Ela quis ajoelhar-se e... diante de ti! Ah meu Deus! (Pacha fica sozinha em cena, encolhida no chão aos prantos, a luz vai diminuindo) PACHA: Os objetos... meus objetos... e daquela outra vez, um negociante me bateu e por nada.. (Black out. Retorna a música. Na sombra aparecem todos os personagens as quatro mulheres sentadas no sofá e os dois homens em pé. Em cima deles aparece a assinatura do autor, Anton Tchekhov)