Para Onde!?, Volume 6, Nú mero 2, p. 69­80, jul./dez. 2012 ISSN 1982­0003 Instituto de Geociências, Programa de Pós­Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.

Pontes imaginárias sob o céu da manguetown: o mangue beat e os novos olhares sobre o Recife1

David Tavares Barbosa2 & Caio Augusto Amorim Maciel3

2Mestrando em Geografia – PPGEO/UFPE. E­mail: [email protected] 3Prof. Dr. do Departamento de Geografia – UFPE. E­mail: [email protected]

Recebido em 04/2012. Aceito para publicação em 12/2012. Versão online publicada em 01/02/2013 (http://seer.ufrgs.br/paraonde)

Resumo: A questão principal deste trabalho consiste em analisar o movimento Mangue Beat, buscando compreender como os discursos desta cena cultural contribuiram para uma reconstrução e/ou remodelação das paisagens da cidade do , através da criação de novos signos para a urbe e seus espaços pú blicos. O projeto foi desenvolvido mediante pesquisas iconográficas na produção cultural do Mangue Beat, somado à revisão da literatura acerca da problemática sócio­espacial do Recife e observações técnicas no espaço urbano da cidade. Buscar­se­á apontar nos resultados que a crıt́ ica da cidade elaborada pela cena mangue a partir de contribuições diversas, pretendeu ser mais abrangente e integrativa (o estuário ligando todos os pontos e todas as frações de classe da Manguetown, em ebulição e potencialmente em revolta) do que as propostas de transformações urbanas desenvolvidas pela prefeitura, posterior ao debate crıt́ ico promovido pelo referido movimento. Palavras-Chave: Recife. Mangue Beat. Rio Capibaribe. Paisagens.

Introdução de, e reivindicando, por meio da polıt́ ica – do dis­ curso e da ação – a elucidação de problemas sociais Muito se tem debatido acerca da validade e ambientais do Recife, lançando novos debates dos estudos de expressões artıś ticas, como o cine­ sobre os ambientes do rio Capibaribe. ma, a mú sica e a literatura a partir de uma perspec­ Torna­se então relevante desenvolver este tiva geográfica. Questões culturais tornam­se cada estudo, pois parte­se da consideração de que deve­ vez mais emergentes nos debates mundiais, na mos avançar nos estudos sobre as cidades além das medida em que a mundialização da cultura, a disso­ aperências de suas materialidades, pois importan­ lução das fronteiras, os choques culturais e a inter­ tes aspectos sociais se processam nestes espaços penetração de culturas são intensificadas pelo mun­ além das realidades concretas, sendo a cidade tam­ do. Se a emergência de situações globais revela a bém construıd́ a através das práticas cotidianas de necessidade de valorização da variável cultural no seus habitantes, através de suas atividades menta­ estudo geográfico, na escala local, mais especifica­ is, emocionais e afetivas, que variam segundo a mente para este artigo, nas cidades, estes estudos posição social destes atores sociais. são extremamente necessários. As obras iconográficas analisadas neste Dentro do contexto de cidades cada vez artigo referem­se à produção artıś tica realizada mais cosmopolitas e multiculturais, analisar o Man­ por duas bandas que integraram o Mangue Beat: gue Beat, assim como outras inú meras expressões & Nação e Mundo Livre S/A. culturais, numa perspectiva espacial da cultura Para isto, foram selecionados os seguintes álbuns: torna­se condizente, visto ser este movimento Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), desenvolvido em relação direta com o espaço da da Chico Science & Nação Zumbi; Samba Esquema cidade do Recife, criando novos signos para a cida­ Noise (1994); Guentando a O ia (1996); Carnaval na

1Pesquisa realizada junto ao PIBIC/CNPq/UFPE sob o tıt́ ulo “Entre discursos e ações: Influências do Mangue Beat sobre as polıt́ icas pú blicas acerca do rio Capibaribe”. Apresentada como trabalho de conclusão de curso em Bachare­ lado em Geografia na UFPE com o tıt́ ulo “Pontes Imaginárias sob o céu da Manguetown: Influências do Mangue Beat sobre as polıt́ icas pú blicas no entorno do Rio Capibaribe – Uma análise do Circuito da Poesia e do Carnaval Multicul­ tural”.

-69- Obra (1998), da Mundo Livre S/A. Procurou­se te, mas também nas representações a respeito das identificar, mapear e caracterizar os geossıḿ bolos paisagens, regiões, lugares e territórios” (CORRE A; mobilizados pelo Mangue Beat no meio urbano ROSENDHAL, 2009, p. 8). A mú sica, assim como recifense, segundo a sugestão metodoló gica de outras artes, como o cinema, a literatura e a pintu­ Maciel (2005) para a interpretação de metonıḿ ias ra, revela­nos um imaginário onde são expressas geográficas a partir da retórica da paisagem. visões de mundo e sentimentos diversos, e que, Parte­se assim do pressuposto de que as como criações sociais, podem ser vistas sob a ótica mú sicas do Mangue Beat, assim como os discursos da espacialidade (Idem, p. 7­8). e falas de seus integrantes, apresentam significa­ Este imaginário, para CLAVAL (2008), é dos simbólicos inerentes a toda e qualquer ação essencial à construção do espaço geográfico, pois humana de construção dos espaços, sendo assim, permite compreender que as pessoas expõem as capazes de estruturar, de diferentes maneiras, a suas aspirações e feições pessoais aos espaços, realidade exterior observável. Os apontamentos construindo narrativas e sıḿ bolos no e do espaço teóricos que justificam este estudo vinculam­se para além do que seus sentidos lhes revelam. Esta aos aportes fornecidos por geógrafos que, princi­ construção de narrativas pelo imaginário geográfi­ palmente após o cultural turn processado na disci­ co, ocorre em relação direta com o espaço, produ­ plina na década de 1970, possibilitaram o enrique­ tor e produto dos simbolismos, onde os lugares cimento da abordagem cultural na geografia pela concretos ligam­se à imaginação através de códi­ inclusão de abordagens semióticas, hermenêuticas gos e sıḿ bolos territoriais instituıd́ os coletivamen­ e fenomenológicas na disciplina, aproximando­a te (MACIEL, 2005). teó rica e metodologicamente das disciplinas Geógrafos desta renovada abordagem preo­ humanıś ticas (SAHR, 2008). cupam­se assim, em debater expressões culturais Através desta “nova geografia cultural”, que tenham o espaço e o tempo como partes inte­ compreende­se que a análise dos aspectos simbóli­ grantes da trama (CORRE A; ROSENDAHL, 2007) e cos, os sentimentos, o 'emocional­afetivo' dos indi­ que favoreçam a análise dos aspectos simbólicos da vıd́ uos, constituem importantes fatores para a cons­ paisagem (NETA, 2005), tomadas assim, como dis­ trução do espaço, assim como os dados objetivos, cursos, produtores da realidade, de sentidos e de pois elaboram representações do mundo contem­ significados (ALBUQUERQUE JR., 2001). plado, abstrato ou concreto, atribuindo leituras Compreende­se, então, que todo texto musi­ ilustrativas permeadas de emoções e significados cal deve ser interpretado como um diálogo social simbólicos, essenciais para a instituição da identi­ em andamento, que ocorre em determinadas situa­ dade dos indivıd́ uos com o espaço (GOMES, 2007). ções históricas e sociais, refletindo estes cenários Compreende­se que não há espaços sem as (KONG, 2009, p. 141­142). Esta autora, aliás, apon­ práticas que lhes conferem sentido. O espaço incor­ ta algumas razões para o estudo geográfico da mú si­ pora os significados que lhe são atribuıd́ os pelas ca que merecem ser aqui apontadas. Ela considera relações sociais que o constroem e interpretam. que a mú sica de um determinado lugar pode trazer Outrossim, o simbolismo analisado nestes estudos imagens dele, servindo de fonte primária para se culturais não deve ser confundido apenas com as compreender o caráter e a identidade dos lugares. imposições do poder que visam sustentar uma Além disto, a mú sica também seria um importante estratégia de dominação, mas é também expressão meio para contar a experiência ambiental dos indi­ da atividade dos indivıd́ uos que buscam situar­se vıd́ uos (cotidianas ou fora do comum). Pode­se numa realidade exterior que a ultrapassa (MACIEL, assim dizer que, “a mú sica possui uma dualidade 2005, 15­16). de estrutura: como o meio e como o resultado da A partir dos aportes teórico­metodológicos experiência, ela pode produzir e reproduzir siste­ fornecidos por esta geografia de abordagem cultu­ mas sociais (KONG, op. cit., p. 133­134). ral, pode­se afirmar que nos produtos culturais – Neste sentido, ao analisar os discursos em especial a mú sica para este trabalho – encon­ engendrados pelo Movimento Mangue Beat para tram­se mais do que rimas e prosas, pois estes apre­ determinados espaços urbanos, pode­se compre­ sentam densos significados simbólicos inerentes a ender como movimentos culturais que eclodem em toda e qualquer ação humana de construção dos zonas periféricas (re) interpretam o mundo, parti­ espaços. cipando da construção de novos espaços emblemá­ As expressões artı́sticas tornam­se cada ticos e reivindicando uma maior participação do vez mais relevantes aos geógrafos a partir da referi­ papel popular no contexto polıt́ ico contemporâ­ da renovação da geografia cultural, onde se desco­ neo. Entende­se este movimento musical enquanto briu que “a geografia não está apenas em toda par­ um ativismo social indutor de novos signos para a

-70- cidade, que conseguiu reivindicar, por meio da polı­́ do Recife. Conforme expõe Vargas (2007) o Man­ tica – do discurso e da ação – a elucidação de pro­ gue Beat5 formou­se pela junção de dois grupos de blemas sociais e ambientais do Recife. jovens. Um primeiro, formado por Fred Zero Qua­ Nas re­interpretações e criações de novas tro, Renato L., Xico Sá, H. D. Mabuse, e Hélder Ara­ imagens à cidade do Recife, o Mangue Beat conse­ gão, todos de classe média, alguns universitários, guiu conferir novos signos aos mangues do Recife e interessados por mú sica e que organizavam festas uma reativação no debate sobre a organização espa­ e discotecagens, influenciados pela filosofia do cial da “cidade anfıb́ ia”. Suas ideias favoreceram o , que teria originado a Mundo Livre S/A. desenvolvimento de um olhar crıt́ ico da cidade de Um outro grupo, formado pela junção de Chico Recife, ao construir imagens de si e da cidade, que Science, Jorge du Peixe, Lú cio Maia e Dengue – mem­ podem ser visto nas suas mú sicas, na iconografia bros do grupo musical Loustal, formado em 1989 – de seus álbuns e vıd́ eos, assim como nas declara­ e de membros do bloco carnavalesco de samba- ções de seus integrantes. reggae Lamento Negro, desenvolvido pelo Centro Cultural Daruê Malungo, no bairro de Peixinhos6, O Movimento Musical Mangue Beat subú rbio pobre de Olinda, que teria originado a Chico Science & Nação Zumbi. O Mangue Beat corresponde a uma cena Para Teles (2000) o Mangue Beat corres­ cultural4 que surgiu na década de 1990, na cidade ponde a um movimento musical baseado numa de Recife, articulando elementos da “cultura tradi- democracia sócio­econômica, pois conseguiu mes­ cional” do Nordeste do Brasil (maracatu, ciranda, clar pessoas de três diferentes estratos sociais em samba) com elementos globais ligados à cultura seus grupos: universitários de classe média (Zero pop (rock, mú sica eletrônica, rap, reggae). Caracte­ Quatro, H. D. Mabuse, Renato L., Xico Sá, Carlos Frei­ rizado como um movimento que emergiu numa tas e Lú cio Maia); classe média baixa da periferia sociedade marcada por uma realidade espacial (Chico Science, Dengue, Du Peixe, Gilmar Bola 8) e urbana de forte exclusão social, suas mú sicas e alguns moradores dos “mocambos” ou “excluıd́ os”, discursos caracterizam­se por uma visão crıt́ ica do grupo Lamento Negro. Conforme este autor, a sobre o espaço que viviam, buscando mostrar suas maior revolução promovida pelo Mangue Beat foi próprias visões sobre a cidade. “quebrar um paradigma: em suas hostes, encontra­ Dentre as principais bandas que se desta­ ram­se sem ranço, nem paternalismo, todos os caram nessa “nova onda” musical desenvolvida na estratos sociais” (TELES, op. cit, p. 274). Região Metropolitana do Recife, podem ser citadas Fundamentados numa noção radical de diretamente, Chico Science & Naçã o Zumbi e hibridismo, que busca novas e mú ltiplas formas de Mundo Livre S/A, e indiretamente, bandas como influências, esta experiência musical procurou Eddie, Mestre Ambrósio, Devotos, Faces do Subú r­ definir suas identidades através da negociação de bio, Sheik Tosado, dentre outras. Além do papel informações culturais locais, regionais e globaliza­ influente na mú sica, o Mangue Beat teve importan­ das, negociando acordos entre o tradicional e o te influência sobre o cinema, sobre as artes plásti­ moderno, entre o nacional e o estrangeiro. Partem cas, sobre a moda, contudo foi mais forte como um então, dos ritmos globalizados do rock, da black movimento musical. music, para voltar aos ritmos tradicionais pernam­ Priorizando a análise das duas bandas prin­ bucanos que conheciam em sua infância, que para cipais deste movimento – e que assumiram direta­ este autor, procede­se mais pela relação com o mente a identidade de Mangue Beat – é importante ritmo do que por um processo de reavaliação da destacarmos que os membros dos dois grupos são mú sica brasileira, baseado num posicionamento oriundos de diferentes estratos sociais da cidade crıt́ ico, coletivo e independente para divulgação de

4Os “fundadores” desta cena cultural preferem caracterizá­la por dois termos: como "Cooperativa Cultural Mangue", pela atividade coletiva de organização de festas e apresentações, divisão de tarefas e custos; e “Cena Mangue Beat”, por denotar um estado de acontecimento, sem deter a necessidade de uma proposta teórica fechada; Definido como "movimento Mangue Beat" pela mıd́ ia, inicialmente era chamado de “” pelos grupos que o constituıá m (o ecossistema mangue de um lado, e o bit, de binary digit, unidade de medida de informação dos sistemas eletrônicos, do outro), mas ficou comnhecido como “mangue beat” na mıd́ ia nacional, a partir de uma leitura equivocada da imprensa, que entendeu beat, do inglês “batida” (VARGAS, 2007). 5Grafia utilizada pelo autor. 6Outros autores afirmam que o grupo Lamento Negro era vinculado ao centro de apoio a comunidades carentes de Chão de Estrelas, localizado no bairro de Campina do Barreto, na Zona Norte do Recife. Sobre o assunto, ver Teles (2000) e a entrevista de Jorge du Peixe na revista da MTV nú mero 69.

-71- seus trabalhos (TELES, op. cit). e alagados. Segundo um instituto de A primeira vez que o termo “mangue” apa­ estudos populacionais de Washington, receu divulgado na imprensa para designar um é hoje a quarta pior cidade do mundo estilo musical, foi numa matéria do Jornal do para se viver. (CHICO SCIENCE & Comércio de 01/06/1991, intitulada de “Sons NAÇA O ZUMBI, 1994). Negros no Espaço Óasis”, para divulgar uma das Apropriando­se do sugerido por Vargas festas desenvolvidas por seus membros (TELES, (2007), acreditamos que o argumento central 2000). Esta aproximação entre os integrantes do deste primeiro manifesto corresponde a uma ten­ movimento e os mangues de Recife talvez tenha se tativa de relacionar a riqueza e diversidade ecoló­ aprofundado quando, em 1992, Chico Science, Zero gica dos ambientes de manguezais à cultura reci­ Quatro e Mabuse dividiram um apartamento na rua fense – fornecendo um poder metafórico aos man­ da Aurora, num prédio chamado Capibaribe, onde, guezais e estuários da cidade, atribuindo através era possıv́ el avistar das janelas do apartamento as dessas representações, um poder de ligação entre a áreas do porto, as pontes e rios da cidade. cultura e as identidades da cidade. No entanto, as intenções do movimento e a A partir de uma “brincadeira levada a sério” visão que seus integrantes tinham sobre a cidade (SOUZA, 2000), o Mangue Beat provocou na socie­ do Recife só foram apresentadas oficialmente no dade recifense uma necessidade de se pensar sobre primeiro manifesto do Mangue Beat, lançado em os seus complexos problemas sociais, atitude esta 1993, junto ao encarte do CD “Da Lama ao Caos” da que, antes de mais nada, corresponde aos frutos da banda Chico Science e Nação Zumbi. Intitulado experiência da juventude urbana recifense, que como “Caranguejos com Cérebro” foi escrito por através das suas mú sicas, tematizaram os proble­ Fred Zero Quatro, um dos fundadores do movimen­ mas que experimentavam na condição de jovens to e vocalista da banda Mundo Livre S/A. Mesmo saidos dos seguimentos de menor poder aquisitivo, com a advertência de Jorge Du Peixe, em entrevista e que conseguiram se projetar, colocando­se no à revista da MTV em 2007, de que tal texto na ver­ centro da cena cultural de sua cidade e de seu paıś dade trata­se de um release de uma festa organiza­ (SOUZA, 2000, p. 5). da pelos membros da banda, consideraremos neste Compreendemos assim, que o Mangue Beat texto o release “Caranguejos com Cérebro” como correspondeu a um fenômeno cultural resultante um verdadeiro “manifesto”, pois este torna pú blico da confluência de diversas experiências sociais e os esforços dos integrantes do movimento na estéticas, que buscavam denunciar a situação de denuncia dos principais problemas da cidade, na desigualdade encontrada na sociedade recifense. tentativa de “salvar” a cidade do Recife. Buscavam demonstrar a relação entre a metrópole Manguetown – A Cidade e o mangue, entre seus habitantes quase distintos, A planıć ie costeira onde a cidade do lançando os problemas da bela e perversa Recife, Recife foi fundada é cortada por seis mostrando o olhar da periferia sobre a metrópole rios. Após a expulsão dos holandeses, do Nordeste, com sua miséria acumulada, do qual no século XVII, a (ex) cidade “maurıć ia” apenas usufruıá m parcialmente, ou para alguns passou a crescer desordenadamente às nem isso. Enquanto muitos viam a cidade do Recife custas do aterramento indiscriminado buscando contemplar suas belezas, suas histórias e e da destruição dos seus manguezais. seus atrativos turıś ticos, o Mangue Beat buscava Em contrapartida, o desvairio irresistı­́ explicitar a realidade opressora da cidade. Procu­ vel de uma cıń ica noção de “progresso”, ravam mostrar a cidade espacialmente fragmenta­ que elevou a cidade ao posto de metró­ pole do Nordeste, não tardou a revelar da, presa no mito da metrópole, repleta de proble­ sua fragilidade. máticas urbanas, que cada vez mais levavam ao Bastaram pequenas mudanças nos agravamento do quadro de miséria e caos urbano. “ventos” da história para que os prime­ iros sinais de esclerose econômica se Nem telú rico, nem neomiserável, em manifestassem no inıć io dos anos 60. um paıś neo­social. Produção cultural Nos ú ltimos trinta anos a sıń drome de urbana, experimental, crı́tica, avessa estagnação, aliada à permanência do aos encantos da 'indú stria cultural', mito da “metrópole”, só tem levado ao produzida por grupos marginais, cheia agravamento acelerado do quadro de de sonhos e imagens do desejo, mas miséria e caos urbano. profundamente refrataria às formas de O Recife detém hoje o maior ıń dice de sociabilidade do Brasil institucional. desemprego do paıś . Mais da metade Formas culturais heterogêneas, disfor­ dos seus habitantes moram em favelas mes, caóticas, mas respresentativas do

-72- processo de exclusão social existente que acrescentaram/atualizaram sentidos às meto­ no paıś (ZAIDAN FILHO, 2004, p. 37­ nıḿ ias paisagıś ticas locais, assim como criando 38). novas metáforas sobre a cidade. Sem querer atribu­ ir ao Mangue Beat uma atitude heróica ú nica na Para Leite (2002) este movimento musical cidade, compreendemos que outros discursos, promoveu a recuperação do discurso sonoro da autores, cientistas já decantaram a beleza, os pro­ cidade, a partir da exaltação das contradições da blemas e a dinâmica destas paisagens antes dos cidade sem a utilização de uma apologia ufanista da mangueboys e manguegirls. Além do mais, depen­ cultura pernambucana, cantando a miséria da peri­ dendo das respostas que buscarmos, veremos que feria e contribuindo para uma nova reapropriação o Capibaribe e seus espaços alagadiços cantados da cultura popular. nesta cena musical talvez nunca tenha deixado de Em outra importante contribuição ao estudo ter uma imagem positiva – pela sua beleza e histori­ do Mangue Beat, Neta (2005) destaca ainda, que a cidade – ou uma imagem negativa – pela sua amea­ construção das identidades do Mangue Beat desen­ volveram­se diretamente relacionadas com o espa­ ça e/ou poluição. Numa cidade tão plural, torna­se ço, onde as metáforas espaciais criadas objetivavam extremamente difıć il e perigoso atribuirmos uma atribuir sentidos ao processo de identificação, atra­ interpretação a estas paisagens como uma verdade vés de respostas não­etnocêntricas às questões peri­ apriorıś tica. Assim, pensamos deixar claro que a féricas da cidade do Recife, com grande engajamento escolha pelo Mangue Beat baseou­se, além da sua polıt́ ico. Sobre a atitude polıt́ ica deste movimento, contemporaneidade, na delimitação de um corpus Hermano Viana certa vez falou que metodológico ao trabalho, sem tentativas de reifi­ car as ações deste movimento7. [O Mangue Beat] Não é polıt́ ico no sen­ Retomando, na análise da iconografia pro­ tido parlamentar do termo: o buraco duzida por seus integrantes, destacamos um con­ aqui está mais embaixo, mais na Lama. junto de assuntos centrais abordados de interesse A atividade Mangue no Recife foi polıt́ i­ ao estudo geográfico em questão. A saber: a articu­ ca sem aliança com os polıt́ icos. A sua lação de discursos sociais através da mú sica, reve­ lição mais básica foi absolutamente lando as realidades sociais da cidade; a reativação clara: se o mundo está ruim, mudemos de debates desenvolvidos pelo geógrafo Josué de o mundo. Se a cidade do Recife está culturalmente estagnada, implante­ Castro, tais como a realidade dos mocambos, e a mos na cidade sem a ajuda ou o mece­ situaçã o de abandono social que vivem seus nato de ninguém um estado caótico de homens­caranguejos; sobre as relaçõ es inter­ agitação artı́stica. Não adianta ficar escalas observadas nas cidades emersas nas novas sentado no bar (cadê Roger?) recla­ dinâmicas da globalização high-tech; a tematização mando da vida, da distância de Londres do mangue enquanto caráter identitário da cidade, ou de Nova Iorque. Basta fazer alguma lançando a ideia da Manguetown, da cidade­ coisa, qualquer coisa boa. Basta confiar estuário. na própria criatividade (VIANA apud Convém destacar ainda, a partir do exposto VARGAS, 2007, p. 111). por algumas contribuições teóricas, que este movi­ mento artıś tico tece visões sobre a cidade do Recife Convém destacar então, que a interpretação a partir da imagem de uma cidade cindida pela con­ do movimento Mangue Beat neste trabalho é basea­ do na idéia que este se desenvolveu em relação dire­ centração de renda, representando o espaço urba­ ta com o espaço da cidade do Recife, criando novos no a partir da ênfase de alguns aspectos mais cen­ signos para a cidade, e reivindicando, por meio da trais, tais como a violência, a desigualdade de renda polıt́ ica – do discurso e da ação – a elucidação de e a cidade como uma heterogeneidade social problemas sociais e ambientais do Recife, lançando (NETA, 2007). novos debates sobre os ambientes do rio Capibaribe. A (re)construção destas imagens e senti­ dos pelo Mangue Beat corresponde a um fator cru­ O Mangue Beat e os Novos Olhares sobre o Recife cial para entendermos a realidade da cidade do Recife, pois o imaginário mediado por tais tipos de Convém salientar, antes de continuarmos expressõ es culturais interferem em fenô menos esta discussão, que interpretamos o Mangue Beat geográficos concretos, atribuindo valor a dados como um dos inú meros discursos sobre o Recife espaços, podendo ser estudados como verdadeiros

7Neste ponto, agradecemos as valiosas observações feitas pelo Prof. Jan Bitoun, assim como suas sugestões biblio­ gráficas.

-73- sistemas simbólicos que articulam debates sociais. morros do Recife. Em tal ponto, aproximam sua Estas novas imagens evidenciam os interesses do interpretação das de Josué de Castro, em seu Mangue Beat para com o mundo, apresentando romance “Homens e Caranguejos”. uma consistência histórica e geográfica profunda, Sã o as “impressionantes esculturas de pois exprimem as percepções e comportamentos lama” cantada pela Nação Zumbi, reflexo dos “cava­ dos que a mobilizam e re­interpretam em novas leiros da miséria com suas estranhas armaduras de metáforas. Além disso, alguns dos integrantes barro”, do romance Homens e Caranguejos, de desta “cena” recentemente têm tido ação destacada Josué de Castro. Desenvolvem também a idéia do em alguns órgãos governamentais, casos de Renato Homem-Gabirú. Ambos buscam dar forma a indig­ L. (Secretário de Cultura da PCR); Roger de Renor nação que sentiam com a tragédia cotidiana da (diretor­presidente da TV Pernambuco e articula­ miséria humana vivenciada na cidade do Recife. dor da ativação da rádio pú blica Frei Caneca); Fred Zero Quatro (ex­assessor da Secretaria de Cultura Rios, Pontes & Overdrives da Prefeitura do Recife). (Chico Science e Fred Zero Quatro) E neste sentido, que corroboramos com Porque no rio tem pato comendo lama Kong (2009, p. 133­134; 153­154) quando esta Rios, pontes e overdrives afirma que a mú sica, enquanto meio e resultado Impressionantes esculturas de lama das experiências individuais e/ou coletivas, é Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, capaz de produzir/reproduzir sistemas sociais, mangue, mangue apresentando um papel de construção social de E a lama come mocambo e no mocambo tem identidades, onde estas expressões culturais possi­ molambo bilitam uma comunicação capaz de produzir, man­ E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem ter, transformar, negociar e confrontar significa­ no sol do meio­dia dos. Acredita­se então que, os discursos lançados O carro passou por cima e o molambo ficou lá pelo Mangue Beat apresentam um potencial de Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo revelar as realidades sociais da cidade pois estes tu. desenvolveram lutas e estratégias de ação social Da Lama ao Caos que buscavam um maior respeito e inserção dos (Chico Science) espaços e sujeitos periféricos. Posso sair daqui para me organizar E tal reinvidicação é feita não através de um Posso sair daqui para desorganizar olhar distante, de quem vivencia os problemas da Da lama ao caos. Do caos à lama cidade num olhar vertical, tal como visto pelas ima­ Um homem roubado nunca se engana gens vendidas da “Veneza Brasileira”, e sim do olhar O sol queimou, queimou a lama do rio de quem vivencia de perto as mazelas sociais da Eu vi um chié andando devagar cidade, de quem é um habitante da tematizada Man- Vi um aratu pra lá e pra cá guetown, a “cidade complexo, do caos portuário” ou Vi um caranguejo andando pro sul daqueles que vêem de perto a ausência de alterna­ Saiu do mangue, virou gabiru tivas dos “homens que em tudo mimetizam os Oh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça caranguejos” (CASTRO, 2010), degradados fıś ica e Quanto mais miséria tem, mais urubu ameça. civicamente. Visualiza­se neste movimento cultu­ ral o “olhar morfológico” espontâneo e crıt́ ico do Ao desenvolver a continuação da metáfora qual Sauer (2000) faz referência. Aquele olhar que iniciada por Josué de Castro dos “Homens­ procura observar o visıv́ el, mas também registrar caranguejos” (CASTRO, 2010), transformando todos os detalhes, questionar, confirmar e apontar estes nos “Caranguejos­com­cérebro”, a cena Man­ novos fatos, objetos e sentidos da paisagem. Um gue consegue “reumanizar aqueles habitantes da olhar que provoca mudanças de percepções dos cidade que haviam sido desumanizados”, esqueci­ que o acompanham. dos pelo modelo econômico de desenvolvimento Um dos temas centrais das mú sicas das excludente, caranguejos estes que assinam o mani­ bandas que faziam parte do Mangue Beat, corres­ festo do movimento (MELO FILHO, 2003, p. 518). ponde a figura do homem periférico, em especial, o Tais metáforas presentes nas obras do Mangue que mora nos mangues do Recife. Em suas inter­ Beat e do geó grafo Josué de Castro procuram pretações, exploram a imagem do homem subur­ demonstrar uma inquietação frente a miséria pre­ bano, completamente pobre e miserável, excluıd́ o sente na sociedade, colocando a fome, a miséria e a social e espacialmente da cidade do Recife, e que exclusão social diretamente relacionadas com as luta para sobreviver nos manguezais e também nos relações sócio­polıt́ icas.

-74- A própria utilização do caranguejo nestas roxo. De um lado, as casas crescendo representações, a partir da elaboração destes “per- cada vez mais com a distância, até vira­ sonagens kafkianos” assume uma conotação sócio­ rem arranha­céus no centro da cidade. econômica, pois esta adquire o poder de represen­ As torres das igrejas também crescen­ tar as populações ribeirinhas, de representar o do cada vez mais, até alcançarem as alturas imensas das torres das igrejas homem explorado pelo sistema, a partir da metafo­ do bairro do Recife. Do outro lado, as rização “do 'ser' que cava a lama para dos mangues casas diminuindo de altura, ficando retirar os nutrientes necessários; como um "ser" cada vez mais baixas com a distância, que participa ativamente das trocas orgânicas que virando mocambo e latadas, até desa­ se dão no manguezal” (VARGAS, 2007, p. 71­72). parecerem de todo dentro da lama do Assim, além da imagem opressiva destas tematiza­ mangue. […] João Paulo sentia­se como ções, estas adquirem também, uma imagem liber­ se estivesse no lombo de uma monta­ tadora, na medida que a atitude de cavar o chão do nha que fosse um divisor de águas, de mangue apresenta a capacidade de oxigenar o pân­ onde corriam, para um lado, os rios da tanos do Recife, podendo assim, reanimar a vida da fortuna e, para o outro lado, os rios da miséria (CASTRO, 2010, p. 70, grifo cidade. meu). Conforme já relatado acima, as mú sicas do Mangue Beat relacionam­se com algumas questões Queremos assim dizer que nesta cidade expostas por Josué de Castro. Em depoimento dis­ cindida, onde dois rios sociais parecem cada vez ponıv́ el no Memorial Chico Science, o jornalista mais se separar, não é somente a visão incorfomada Renato L., um dos principais nomes do movimento e angustiante dos mangueboys que se assemelha à admite que os livros do geográfo pernambucano de João Paulo. Na verdade, pensamos aqui como constituıŕ am­se enquanto bons companheiros dos que a visão de João Paulo fosse a própria visão des­ integrantes do movimento, onde “a Geografia da tes mangueboys. Assim como o personagem do Fome, de Josué de Castro, dividiu sem ciú mes a romance de Josué de Castro, percebemos no Man­ cabeceira da cama com os clássicos da ficção­ 8 gue Beat uma vontade de reagir à depressão, de cientıf́ ica ”. e assim como o autor, reconhecem que, libertar seus espaços de vivência das garras das a problemática social recifense encontra­se relaci­ paisagens negras dos mangues do Capibaribe, com onada com questões polıt́ ico­econômicas além das suas folhas viscosas e sua lama pegajosa. questões locais, como observado no trecho abaixo: Assim, a visão de Chico Science e dos dema­ is mangueboys aproxima­se da defendida por Josué A Cidade de Castro, correspondente à visão retórica dos man­ (Chico Science) gues, através do resgate de vivências da infância, A cidade se encontra prostituıd́ a atribuindo um tom agressivo a paisagem urbana Por aqueles que a usaram em busca de saıd́ a "formal", e um tom romântico a paisagem dos Ilusora de pessoas de outros lugares mocambos, evidenciando assim, as paisagens domi­ A cidade e sua fama vai além dos mares nantes e excluıd́ as da cidade (NETA, 2007). No meio da esperteza internacional Tematizam então, os mangues do Recife A cidade até que não está tão mal como uma periferia entregue à miséria e ao desca­ E a situação sempre mais ou menos so do poder pú blico. Tal periferia não é, no entanto, Sempre uns com mais e outros com menos tematizada como um local conformado com a misé­ A cidade não pára, a cidade só cresce ria, acostumado a sofrer calado e satisfeito. Mas O de cima sobe e o de baixo desce. sim uma periferia que coloca o mangue como insurreição. Os mocambos e seus molambos como Tal visão da cidade onde “o de cima sobe e o agentes ativos na dinâmica urbana do Recife. Com de baixo desce” assemelha­se fortemente à visão idéias próprias, questionadores e inconformados. de que o menino João Paulo, do romance “Homens E acima de tudo cidadãos esquecidos pelo sistema e Caranguejos”, presenciou quando subiu na torre econômico avassalador. Esquecidos e não venci­ da Igreja de Afogados: dos. Pois da lama pode vir o caos. Da lama da misé­ João Paulo subiu à torre da igreja e, do ria pode vir a coragem pra se enfrentar os urubus. alto, naquela hora em que o sol se Percebemos em ambos, o desejo de evadir desta punha, viu a cidade inteira vestida de “paisagem humana parada e monótona. Desejo

8Depoimento de Renato L. intitulado “Dez anos sem o cientista dos ritmos”, disponıv́ el no site do Memorial Chico Science: http://memorialchicoscience.com/. Acesso em: 25 jan. 2010.

-75- imperioso de sair de tudo. De sair de dentro de si Enquanto estou um pouco mais junto eu quero te mesmo. De sair do cıŕ culo fechado da famıĺ ia. Do amar ciclo do caranguejo. Da cidade do Recife” (CASTRO, 2010, p. 42). Recife, cidade onde a lama correspon­ Ao compreender o mangue como um lugar de a uma metaforização da estratificação social, dos excluıd́ os sociais, o Mangue Beat coloca como o mas também adquire o perfil de uma possıv́ el cerne desta problemática social do Recife as rela­ insurreição. ções sociais e econômicas deste sistema, colocan­ do­os diretamente responsáveis por produzir e Antene-se manter o fenômeno da pobreza urbana. O uso des­ (Chico Science) sas metáforas coloca a cidade como palco e espelho E só uma cabeça equilibrada em cima do corpo da luta pela sobrevivência, que expressa a luta dos Escutando o som das vitrolas, que vem dos moradores das periferias recifense, da cidade dos mocambos manguezais – agora a Manguetown – que sofrem Entulhados a beira do Capibaribe com as espacializações de desigualdades fixadas Na quarta pior cidade do mundo no cerne da sociedade. Expõem uma realidade espa­ Recife, cidade do mangue cial da cidade do Recife que difere das apresenta­ Incrustada na lama dos manguezais das em cartões postais (a Veneza brasileira, a Vene­ Onde estão os homens carangueijos za americana). Minha corda costuma sair de andada Referindo­se a cidade do Recife através da No meio da rua em cima das pontes [...] fedentina exalada pelos rios e manguezais, Chico Recife, cidade do mangue Science parece fazer referência à podridão do jogo Onde a lama é a irresureição social da cidade, das desigualdades sociais espaci­ almente localizadas no Recife (NETA, 2007). Os Os mocambos tematizados pelo Mangue rios e mangues talvez não sejam os maiores culpa­ Beat, em especial na banda Chico Science & Nação dos pela fedentina habitual da cidade. Estes, pelo Zumbi promovem a retomada do termo já em desu­ contrário, ao costurar as mazelas sociais aos cen­ so “mocambo”, resgatando assim, o debate das raı­́ tros de ambição num ú nico tecido urbano, tem o zes sociais, culturais e econômicas da cidade, pro­ poder de aproximar os espaços estratificados da movendo a retomada do debate sobre a formação cidade, seja pelas pontes fıś icas, seja pelos odores sócio­econômica da cidade e do conseqü ente agra­ exalados destes corpos lıq́ uidos. Convém lembrar vamento da concentração de renda caracterıś tica que para Claval (1999, p. 84) a lembrança mais da cidade (NETA, 2007). tenaz que guardamos dos lugares está, frequente­ Encarando este tipo de habitação popular mente relacionada aos cheiros e odores dos quais enquanto um lócus de reprodução social de uma estes são portadores. população miserável, assim como o fez Josué de Mesmo ao trabalhar uma conexão entre as Castro, interpretam o mocambo como um sıḿ bolo cenas culturais observadas na cidade do Recife da miséria e desigualdade social da cidade, como com os fenô menos culturais difundidos pelas um fenômeno a ser superado, mas também, como industrias culturais de caráter global, possibilita­ um lugar de referência, de vıń culos simbólicos do ram o desenvolvimento de uma luta para impedir seu morador, como se a identificação da cidade com que a economização da vida social imposta pela o mangue correspondesse ao próprio processo de cultura de massas se expandisse na cidade através identificação dos mocambeiros com o local de da força da propaganda e de seus valores globais. moradia (idem, ibidem), tal qual o amor dos Como exposto por Angela Prysthon (2004), o Man­ homens­caranguejos pela risoflora (em referência gue Beat, ao emergir da “periferia da periferia” à Risophora mangle). revela­se como um dos diálogos mais radicais entre tradição e modernidade, entre centro e periferia na Risoflora mú sica popular dos anos 1990. E tal diálogo fica (Chico Science) evidente na interpretação da imagem sıḿ bolo do Oh Risoflora! movimento, a "parabólica enfiada na lama", uma Vou ficar de andada até te achar simples tradução visual da combinação destas dua­ Prometo meu amor vou me regenerar lidades proposta pelo movimento, representação Oh Risoflora! simbólica da relação estabelecida entre a natureza Não vou dar mais bobeira dentro de um caritó e a cultura urbana do Recife, tão cara a sua forma­ Oh Risoflora, não me deixe só ção histórica, história esta corporificada na elabo­ Eu sou um carangueijo e quero gostar ração da metáfora formada na imagem de uma ante­

-76- na tecnológica afundando­se num mar de lama Ao promoverem tais crıt́ icas da/sobre a (VARGAS, 2007). cidade, as suas mú sicas conseguiram estimular Ao encenarem em suas expressões musica­ transformações nas identidades sócio­espaciais da is as diferenças observadas entre o local (em espe­ cidade, a partir do momento que desenvolveram cıf́ ico o cotidiano de uma cidade localizada num um conjunto de metáforas que passou a conceituar paıś subdesenvolvido) e o global (as constantes os manguezais e ambientes estuarinos como o cora­ relações estabelecidas com a tecnologia e as ima­ ção da cidade, como o ú nico espaço capaz de impe­ gens metropolitanas), elaboram um redireciona­ dir que a cidade do Recife afundasse numa “depres- mento do papel do “popular” no contexto contem­ são crônica que paraliza os cidadãos”. porâneo. Seguem à risca a receita que coloca a auto­ Tais metáforas, incorporadas pelas diferen­ consciência como principal saı́da (cosmopolita) tes classes sociais da cidade, apresentaram e ainda para a afirmação periférica (PRYSTHON, 2004, p. hoje são importantes discursos com potencial de 43­45). agrupar diferentes identidades em torno dos espa­ Estes, narram a cidade de forma avessa, ou ços mais sıḿ bolicos da cidade: o estuário dos rios pelo menos incitam uma leitura às avessas de Capibaribe e Beberibe no centro histó rico­ alguns de seus principais geossıḿ bolos (os man­ geográfico da cidade. guezais, rios, alagadiços, etc). Nos seus aspectos Analisando as contribuiçõ es de Michel mais familiares, nos seus monumentos e espaços Roux e sua geografia do imaginário, Caio Maciel pú blicos mais simbólicos, (rios, pontes, mangues), considera que os homens se reportam nostalgica­ buscam expor aquilo que já não é perceptıv́ el pela mente a alguns espaços mıt́ icos, a partir da eleição sociedade. Tais espaços são por eles contemplados, de algumas imagens e metáforas que, de certa for­ mas principalmente, contestados em suas proble­ ma, corresponde a uma maneira de “reencontrar o máticas. Nos espaços onde as pessoas não mais equilıb́ rio telú rico que a modernidade técnica e os enxergavam suas realidades sociais desastrosas, o valores do progresso romperam” (MACIEL, 2012, movimento enxergava e tentava torná­los perceptı­́ p. 79). Assim, convém destacar que representações veis para o restante da população. Marcelo Pereira, como estas desenvolvidas pelo Mangue Beat teri­ editor do Caderno C do Jornal do Comércio, um am como papel uma “função existencial da indivi­ importante caderno jornalıś tico de divulgação do duação”, que permite aos indivıd́ uos a busca por se Mangue Beat, resume da seguinte forma este olhar diferenciar dos outros, e, ao mesmo tempo, se inte­ às avessas dos mangueboys: grar ao coletivo.

Descer o Capibaribe com olhos de Considerações Finais turista ou navegante é, para muitos recifenses ou recifencizados [...] uma Ao interpretarmos o Mangue Beat como descoberta fascinante e bela, ao um movimento inspirado na geografia da cidade do mesmo tempo cruel, como a poesia que se escreve, com tintas desta mesma Recife, que buscava encenar sobre as condições água e lama. A realidade cotidiana das sociais de seus moradores e as problemáticas da margens ribeirinhas do Planeta Man­ cidade, conclui­se que o movimento incentivou gue denunciam um outro Recife, mais nestas ações a valorização dos imaginários geográ­ cru, ingrato, abandonado à sorte. São ficos da cidade, jogando imagens do cotidiano na as entranhas de uma cidade cartão mú sica. Possibilitaram um questionamento das postal, entrecortada de belezas natura­ imagens­sıḿ bolos da cidade, buscando demons­ is e outras moldadas pela arquitetura trar as desigualdades do Recife, suas problemáti­ criativa dos recifenses, mas nem sem­ cas urbanas, explicitando a realidade da cidade, pre definitiva, e alimentada pela ale­ por muitos já esquecida ou abafada. gria e hospitalidade decantada dos pernambucanos. Há nessas entranhas O movimento possibilitou grandes mudan­ uma poética do avesso, extraı́da da ças na sociedade recifense. Mudanças na forma do lama e da alma ­ uma dentro e fora da recifense ver sua cidade, na forma como ele questi­ outra, ser e palavra ­ dos homens­ ona seus problemas e percebe o seu espaço urbano, caranguejos e mangueboys (Marcelo e até na forma como se vêem enquanto cidadãos do Pereira, depoimento ao Memorial mundo, enquanto membros de uma sociedade glo­ Chico Science9). bal. Colocou a cultura popular no debate promovi­

9Depoimento intitulado “Mangueletter: poética, agridoce, colagem (clonagem) popconcreta e antenada para o Pla­ neta Mangue, escrita nos 459 anos da própria Manguecéia tresloucada”, disponıv́ el na homepage do Mmorial Chico Science: http://memorialchicoscience.com/.

-77- do até então por estudiosos e acima de tudo, GOMES, E. T. A. Recortes de Paisagem na Cidade demonstrando a efervescência cultural e polıt́ ica do Recife: uma abordagem geográfica. Recife: Mas­ que provém dos espaços periféricos da cidade. sangana, 2007. A aproximação teó rica com a geografia cultural neste estudo tentou apontar os componen­ KONG, L. Mú sica Popular nas Análises Geográficas. tes polıt́ icos que as expressões artıś ticas suscitam, In: CORRE A, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Cinema, demonstrando que estas, além de serem desenvol­ Música e Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, p. vidas em relação direta aos processos de apropria­ 129­175. ção espacial, correspondem igualmente a discur­ sos que encontram­se carregados de simbolismos, LEITE, R. P. de S. Contra­usos e espaço pú blico: sendo assim co­fundadores das paisagens, e igual­ notas sobre a construção social dos lugares na Man­ mente elementos­chave da coesão polıt́ ica da espa­ guetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais, cialidade pú blica. São Paulo, vol. 17, nú mero 49, 2002, p. 115­134. Acredita­se assim que se faz mais do que D i s p o n ı́ve l e m : < h t t p : / / w w w. s c i e l o . b r necessário revisitar a cidade na perspectiva da /pdf/rbcsoc/v17n49/a08v1749.pdf>. Acesso em: subjetividade de suas paisagens (tanto nos seus 22 jan. 2010. elementos construıd́ os ou nos elementos fıś ico­ naturais), pois além de interpretarmos como as MACIEL, C. A. A. Espaços Pú blicos e geo­ pessoas vêem seus espaços vivenciados estarıá ­ simbolismos na “cidade estuário”: rios pontes e mos desvendando as ordens de significados e códi­ paisagens do Recife. Revista de Geografia da gos de referência espacial que estruturam as dinâ­ UFPE, Recife, v. 22, nº1, JAN/JUL, 2005, p. 10­18. micas sociais. Convém lembrar que a crıt́ ica da cidade ______. A Geografia Polıt́ ica da Paisagem: ima­ reelaborada pela cena mangue a partir de contri­ gens, narrativas e sensibilidades culturais em dis­ buições diversas, ressaltando­se a figura de Josué puta no espaço pú blico recifense. 2010. In: de Castro, pretendeu ser muito mais abrangente e MACIEL, C. A. A.; GONÇALVES, C. U.; PEREIRA, M. C. integrativa (o estuário ligando todos os pontos e de B. (Org.). Abordagens Geográficas do Urbano todas as frações de classe da Manguetown, em ebu­ e do Agrário. Recife: EdUFPE, 2012, p. 26­41. (No lição e potencialmente em revolta) do que as pro­ prelo) postas recentes de transformações urbanas desen­ volvidas pela Prefeitura do Recife. MELO FILHO, D. A. Mangue, Homens e Caranguejos em Josué de Castro: significados e ressonâncias. Referências História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 10(2), maio­ago 2003, p. 505­524. Dis­ ALBUQUERQUE JR., D. M. A Invenção do Nordeste p o n ı́ v e l e m : < h t t p : / / w w w. s c i e l o . b r e outras artes. 2º edição. São Paulo: Cortez, 2001. /pdf/hcsm/v10n2/17748.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2009. CASTRO, J. de. Homens e Caranguejos. 4º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. NETA, M. A. V. Geografia e Literatura: decifrando a paisagem dos mocambos do Recife. 2005, 116 f. CLAVAL, P. A Geografia Cultural: o estado da arte. In: Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universi­ CORRE A, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Manifesta- dade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ções da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: 2005. EdUERJ, 1999, p. 59­97. ______. A dimensão espacial do movimento ______. Uma, ou algumas, abordagem(ns) cultu­ mangue e a construção de uma identidade territo­ ral(is) na Geografia Humana? In: SERPA, A. (Org.). rial: visões sobre o urbano e os locais de moradia. Espaços Culturais: vivê ncias, imaginaçõ es e Terr@ Plural, Ponta Grossa, 1(2), ago.­dez., 2007, representações. Salvador: Edufba, 2008, p. 13­29. p. 29­40. Disponıv́ el em: < http://www.revistas2. uepg.br/index.php/tp/article/viewFile/1150/86 ______. Cinema, Mú sica e Espaço – Uma introdu­ 2>. Acesso em: 25 set. 2010. ção. In: CORRE A, R. L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Cine- PRYSTHON, A. Diferença, pop e transformações ma, Música e Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, cosmopolitas no Recife a partir do Movimento Man­ 2009, p. 7­13. gue. Revista Fronteira – estudos midiáticos, São Leopoldo, v. VI, n. 1, 2004, jan/jun, p. 33­46. Dispo­

-78- nıv́ el em: . Acesso em: 01 fev. 2010.CORRE A, R. L.; VARGAS, H. Hibridismos Musicais de Chico ROSENDAHL, Z. Literatura, Mú sica e Espaço – Uma Science & Nação Zumbi. Sã o Paulo: Ateliê introdução. In: CORRE A, R. L.; ROSENDAHL, Z. Editorial, 2007. (Org.). Literatura, Música e Espaço. Rio de Janei­ ro: EdUERJ, 2007, p. 7­16. ZAIDAN FILHO, M. Pernambuco falando para o mundo. Recife: Livro Rápido, 2004. SAHR, W. D. G. J. Ação e EspaçoMUNDOS – a concre­ tização de espacialidades na Geografia Cultural. In: Discografia SERPA, A. (Org.). Espaços Culturais: vivências, imaginações e representações. Salvador: Edufba, Chico Science & Nação Zumbi. Da Lama ao Caos. 2008, p. 33­57. São Paulo: Chaos/Sony Music, 1994. 1 CD.

SAUER, C. O. Geografia Cultural. In: CORRE A, R. L.; ______. Afrociberdelia. Sã o Paulo: ROSENDAHL, Z. (Org.). Geografia Cultural: um Chaos/Sony Music, 1996. 1 CD. Século(1). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000, p. 99­ 110. Mundo Livre S/A. Samba Esquema Noise. São Paulo: Banguela Records, 1994. 1 CD. SOUZA, C. M. de. Da Lama ao caos: Diversidade, diferença e identidade cultural na cena Mangue do ______. Guentando a Ôia. Sã o Paulo: Recife. En publicacion: Informe final del concurso Excelente Discos, 1996. 1 CD. ­ Culturas e identidades en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas, CLACSO, ______. Carnaval na Obra. São Paulo: Buenos Aires, 2001. Disponı́vel em: . Acesso em: 09 mar. 2009.

-79- Imaginary bridges over the manguetown´s sky: the mangue beat and the new perspectives about the Recife

Abstract: The main issue of this paper is to analyze the Mangue Beat movement, trying to understand how discourses of cultural scene contributed to the reconstruction and/or reshaping the landscape of the city of Recife, through the creation of new signs for the town and its public spaces. The project was developed through research the iconography of the Mangue Beat cultural production, coupled with review of literature on the problematic socio­spatial of Recife and observations techniques in the urban city. Search will be pointing in the results that criticism of the city prepared by the scene Mangue from various contributions, intended to be more comprehensive and integrative (the estuary connecting all points and all strata of the Manguetown, boiling and potentially revolt) than the proposed urban transformations developed by the city, after the critical debate promoted by this movement. Keywords: Recife; Mangue Beat; River Capibaribe; Landscape

Puentes imaginarias en el marco del cielo de la manguetown: el mangue beat y los nuevas miradas en el Recife

Resumen: El tema principal de este trabajo es analizar el movimiento Mangue Beat, tratando de enten­ der cómo los discursos de la escena cultural ha contribuido a la reconstrucción y/o transformacion el panorama de la ciudad de Recife, a través de la creación de nuevos signos para la ciudad y sus espacios pú blicos. El proyecto fue desarrollado a través de la investigación sobre la iconografıá de la producción cultural de Mangue Beat, junto con la revisión de la literatura sobre la problemática socio­espaciales de Recife y observaciones técnicas en la espacio urbana. La bú squeda se apunta en los resultados que la crıt́ ica de la ciudad preparado por la escena Mangue atraves de contribuciones varias, destinados a ser más amplio e integrador (el estuario de conectar todos los puntos y todos los estratos de la Mangue­ town, hervir y, potencialmente, rebelión) que las transformaciones urbanas propuestas desarrolladas por la ciudad, después de que el debate crıt́ ico promovida por este movimiento. Palabras clabe: Recife. Mangue Beat. Rıó Capibaribe. Paisajes.

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